A União Das Naturezas Do Redentor.pdf

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DEDICATÓRIA À memória de João Carlos, meu pai, que me ensinou a amar o senso de justiça e de retidão vindos de Jesus Cristo, o Redentor.

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO PREFÁCIO INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA CAPÍTULO 2 A UNIPERSONALIDADE DO REDENTOR CAPÍTULO 3 NOMES QUE APONTAM PARA A UNIO PERSONALIS CAPÍTULO 4 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS NA NATUREZA HUMANA DO REDENTOR CAPÍTULO 5 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA DIVINA DO REDENTOR CAPÍTULO 6 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A PESSOA DO REDENTOR CAPÍTULO 7 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE OS CRISTÃOS CAPÍTULO 8 A COMUNICAÇÃO DE ATRIBUTOS CAPÍTULO 9 A IMPECABILIDADE DO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 10 A TENTABILIDADE DO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 11 ENSINO GERAL SOBRE A TENTAÇÃO DO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 12 ENSINO ESPECÍFICO SOBRE A TENTAÇÃO DO REDENTOR DIVINO-HUMANO

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

CAPÍTULO 13 A PERFEIÇÃO DO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 14 A HONRA E ADORAÇÃO QUE DEVEMOS AO REDENTOR DIVINO-HUMANO Capítulo 15 A FÉ QUE DEVEMOS AO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 16 A OBEDIÊNCIA QUE DEVEMOS AO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 17 O AMOR QUE DEVEMOS AO REDENTOR DIVINO-HUMANO BIBLIOGRAFIA ÍNDICE DE ASSUNTOS DE NOMES DE TEXTOS ANALISADOS DE TEXTOS CITADOS

POR QUE UMA SÉRIE DE LIVROS SOBRE JESUS CRISTO?

Apresentação

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

POR QUE UMA SÉRIE DE LIVROS SOBRE JESUS CRISTO?

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PREFÁCIO

O

meu objetivo tem sido sempre o de apresentar uma matéria que tenha um suporte profundamente escriturístico, para o deleite dos que gostam de ler teologia fundamentada na infalível Palavra de Deus. O desafio a que me propus levou-me a trabalhar em áreas outrora desconhecidas para mim, como este assunto da unipersonalidade do Redentor. Essa unipersonalidade sempre haverá de escapar à nossa perfeita compreensão. Todavia, tento trabalhar neste livro com várias informações que Deus, em sua Palavra, fornece para o nosso conhecimento dessa maravilhosa e encantadora Pessoa Redentora. No livro anterior, As Duas Naturezas do Redentor,1 apresentei da forma mais didática que pude as naturezas divina e humana de Jesus Cristo, estudadas separadamente, sem tratar propriamente de qualquer aspecto da união delas. Neste livro, há a tentativa de estudar as duas naturezas unidas. A expressão mais comum a ser usada neste livro sobre a unipersonalidade do Redentor será unio personalis, ou união pessoal, embora na Teologia Sistemática seja comum a referência à união hipostática. Esse segundo livro sobre a Pessoa do Redentor trata do assunto de uma perspectiva um pouco mais técnica do que o primeiro mencionado acima, e mesmo mais técnica do que os dois primeiros que escrevi sobre o Ser de Deus.2 Esse livro é mais recheado de terminologia técnica porque também trabalho em alguns casos sob uma perspectiva histórica, o que exige um uso desse vocabulário, especialmente quando trato da história da doutrina. Alguns nomes e conceitos não muito familiares aos crentes em geral aparecem e, com um pouco de esforço, creio eu, todos podem lucrar com as informações, mesmo quando o arcabouço histórico do leitor não for muito apurado. Tentei usar os termos técnicos de uma maneira inteligível. Todavia, não sei se essa será a opinião do leitor. O fato é que não pude evitar esse aspecto terminológico, pois o assunto o exige. A metodologia do livro segue mais ou menos os meus livros publicados anteriormente. A grande ênfase desse livro continua sendo a dos comentários e análises de textos que servem de fundamento para a doutrina da qual me proponho tratar. 1. Heber Carlos de Campos. As Duas Naturezas do Redentor (São Paulo: Cultura Cristã, 2004). 2. Heber Carlos de Campos. O Ser de Deus e Seus Atributos (São Paulo: Cultura Cristã, 2002, 2ª. edição) e A Providência e Sua Realização Histórica (São Paulo: Cultura Cristã, 2001).

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Os capítulos desse livro, que se relacionam entre si, são divididos da forma mais lógica que me foi possível fazê-lo. O Capítulo 1 trata do desenvolvimento histórico da doutrina da unio personalis nos primeiros concílios gerais da Igreja. As duas partes principais do capítulo tratam dos erros que apareceram na Igreja e dos acertos trazidos pelos concílios. No final desse capítulo há uma grande ênfase nos erros que devemos evitar e nas atitudes que devemos ter para com os que estão no erro e para com aqueles que não querem sair do erro. É um capítulo que termina em tons negativos, mas que pode ser muito positivo para a vida da Igreja, se ela prestar atenção aos elementos históricos da doutrina. O Capítulo 2 trata da unipersonalidade do Redentor propriamente dita. Nele, eu trato primeiramente das definições e, logo a seguir, da base bíblica e históricoteológica da doutrina. Então trato de algumas verdades gerais sobre ela, suas características, sua singularidade e as distinções que há nela. O capítulo 3 destaca apenas cinco dos muitos nomes de Jesus Cristo que apontam para a unio personalis. A idéia desse capítulo é que esses nomes não seriam possíveis nele se não fosse a união hipostática. É um capítulo longo que tem boas sugestões para os que gostam de ensinar sobre a Pessoa do Redentor, porque apresenta algumas facetas muito interessantes dele. Nos Capítulos 4, 5, 6 e 12, a ênfase cai sobre os efeitos da unio personalis em: (1) a natureza humana do Redentor; (2) os alegados efeitos na natureza divina; (3) a Pessoa completa do Redentor; e (4) os efeitos na vida dos crentes. Esses capítulos são muito importantes e, por isso, devem ser cuidadosamente analisados, especialmente os três primeiros. Os Capítulos 7, 8 e 9 tratam de um modo específico e extensivo dos efeitos da unio personalis sobre a Pessoa do Redentor, ou seja: a comunicação de atributos, a impecabilidade e a tentabilidade do Redentor. Os Capítulos 10 e 11 tratam das tentações em geral e das tentações específicas de Cristo Jesus. Ainda que não tenham uma ligação direta com a unio personalis, as tentações relacionadas a Jesus Cristo não poderiam existir se não fosse a humanidade do Redentor. O Capítulo 13 trata da perfeição de Jesus Cristo em sua existência divinohumana. A ênfase está na perfeição do seu relacionamento com Deus; no seu relacionamento com os homens; em suas funções mediatoriais; no exercício dos seus dons espirituais; e na sua conduta moral. A perfeição do Redentor divino-humano é completa. Os Capítulos 14, 15 e 16 tratam dos nossos deveres para com a pessoa divinohumana do Redentor: devemos a ele honra e adoração, fé, obediência e amor. O livro termina com uma aplicação geral, instando os leitores a olharem para Jesus, conformando-se a ele.

PREFÁCIO

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Foi-me bastante difícil escrever sobre a unipersonalidade do meu Redentor porque ela é altamente complexa e exigiu de mim um tempo enorme de pesquisa, inclusive em algumas áreas com as quais eu não estava familiarizado. O desafio foi grande porque este livro, no meu entendimento, vem preencher uma lacuna na literatura teológica em língua portuguesa referente à Pessoa de Cristo. Eu me esforcei ao máximo para tornar esse livro acessível a todos os crentes que gostam de estudar as verdades a respeito do Redentor Jesus Cristo. Todavia, vários capítulos abordam a Pessoa de Cristo de um prisma que muitos deles nunca haviam abordado. Eu oro a Deus para que a presente abordagem seja um desafio para os crentes em geral, de um modo especial aos professores de escola dominical, e mais particularmente ainda aos estudantes de teologia e ministros da Palavra. Se eles puderem aproveitar razoavelmente esse livro, eu já me terei dado por satisfeito.

INTRODUÇÃO

J

á estudamos, anteriormente, no livro As Duas Naturezas do Redentor, que o Senhor Jesus Cristo é o verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Como verdadeiro Deus, possui todos os atributos divinos que são essenciais e que perfazem a Divindade. Semelhantemente, como verdadeiro homem, ele possui todas as propriedades essenciais aos seres humanos, e, além disso, assumiu, por causa de nossos pecados, todas as conseqüências deles. Todavia, essas duas naturezas não agem separadamente, como se fossem duas pessoas. Elas estão perfeitamente unidas numa só pessoa, mantendo a distinção das naturezas, mas de modo que nunca a divina é humanizada nem a humana deificada. Ambas as naturezas estavam e ainda estão em operação para o exercício das obras mediatoriais do Redentor, de forma que elas, conquanto distintas, nunca podem estar separadas. É a esse assunto que este livro diz respeito.

A. A NECESSIDADE DO ESTUDO DA UNIO PERSONALIS 1) A carência de publicações específicas sobre o assunto. Não há, em nossa língua portuguesa, que eu conheça, nem um livro sequer que trate da matéria da unio personalis. Para ser honesto, nem em língua inglesa encontrei um livro sobre esse assunto. O que existe são pequenos capítulos de livros sobre Cristologia em geral e artigos que podem ser vistos na internet. A razão da ausência de literatura sobre a unio personalis provavelmente está ligada à dificuldade de se conseguir material para trabalhar e de ser este realmente um assunto que exija bastante de quem escreve. Tomei para mim essa tarefa, desafiado pela carência de publicações específicas, e gastei muitíssimas horas para conseguir material, para produzir o meu próprio e para organizá-lo de maneira a tornar o assunto mais palatável para aqueles que querem aprender de uma forma mais sistemática. 2) A pequena informação que os cristãos possuem exige um livro sobre a unio personalis. Além de haver pouco material publicado sobre o assunto, muitos ministros de nossas igrejas não têm tido acesso a livros em geral sobre Cristologia. É relativamente mais comum os Ministros da Palavra terem noções das duas naturezas do Redentor, mas poucos já trabalharam com as informações que a Escritura fornece

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sobre a unio personalis. Os livros que tratam apresentam um panorama da Teologia Sistemática dão pouca atenção ao assunto da unio personalis. Quando tratam dela, não o fazem de modo suficiente para esclarecer coisas que precisam e que podem ser esclarecidas. Se os ministros não têm acesso a bons livros sobre essa matéria, o que podemos dizer dos professores de escola dominical e dos cristãos em geral? Poucos cristãos já ouviram falar na unipersonalidade do Redentor. Esse é um problema muito fácil de se constatar nas igrejas cristãs. A ignorância sobre esse assunto é muito grande. Portanto, é necessário que a Igreja tenha consciência da união das duas naturezas e dos resultados dela para o próprio Redentor e para aqueles a quem ele redimiu. Não se deve supor que, por ser um dos mistérios mais profundos da fé cristã, a doutrina da unio personalis seja assunto somente para os teólogos ou somente para os estudantes de teologia. Essa é uma verdade tão vital que deve ser estudada pelos crentes para que eles tenham a sua fé nutrida. Quando o Espírito Santo nos faz entender aquilo que se pode entender dessa união, nós, os crentes, amamos cada vez mais o Deus triúno que fez esse arranjo tão maravilhoso da unio personalis. Somente com o estudo dessa matéria pelos cristãos é que eles ficam livres de serem vencidos pelas investidas errôneas contra a Pessoa de Cristo. 3) A dificuldade da matéria exige um estudo mais detalhado. Nesse livro, navegaremos em águas profundas, e aqueles que estão acostumados a brincar na praia terão que ter bastante vontade e coragem para penetrar (até onde é possível!) os arcanos divinos ligados à encarnação. Esse tema da unio personalis faz parte dos grandes mistérios da fé cristã, e nós devemos ter coragem para tratar desse assunto, com o auxílio da graça divina, para que a Igreja de Cristo conheça o que está revelado sobre ele. O nosso caminhar deve ser de grande temor e tremor, para que não digamos nada que não seja expressão da verdade. Não estudaremos essa matéria confiando no nosso conhecimento ou em nossa inteligência, e muito menos a estudaremos com intrepidez descabida, mas o senso de temor do Senhor deverá permear tudo o que viermos a dizer. Conquanto o assunto da unio personalis seja um mistério muito grande, somente precedido em profundidade pelo mistério da união das Três Pessoas da Trindade, não podemos nos furtar a estudá-lo. Não é da nossa competência especular as dificuldades, mas estudar, até onde a revelação divina nos permita, esse tema tão importante para a fé cristã. Há alguma luz que vem dessa revelação e que nos impulsiona a estudá com muito senso de reverência e santo temor para que a admiração e o espanto tomem conta de nossa alma devido à profundeza e beleza de tão grande e maravilhosa união.

INTRODUÇÃO

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B. A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA UNIO PERSONALIS 1) A doutrina da unio personalis é importante porque temos nela uma compreensão melhor da redenção. O valor do que Cristo fez dependeu inteiramente daquilo que ele era, e, portanto, é de suprema importância que nós tenhamos uma visão correta da redenção que ele realizou. Ele pode fazer somente pelo que ele veio a ser com a unio personalis. Nunca poderíamos ter a redenção e nem Jesus poderia realizá-la sem essa união maravilhosa. A união hipostática garante a nossa redenção, assegurando, de maneira inequívoca, o fato de nós sermos representados por alguém que possui a nossa natureza, satisfazendo, assim, a exigência de obedecer ativa e passivamente em nosso lugar. Ao mesmo tempo, essa união hipostática aponta para um Redentor que não é simplesmente humano, mas, sobretudo, divino, um Redentor poderoso que satisfaz todas as exigências de Deus. A união hipostática, portanto, é muito importante para que compreendamos de maneira própria a nossa redenção. 2) A Doutrina da unio personalis é importante porque ela é produto unicamente da revelação divina. Não há maneira de se estudar a unio personalis à parte da revelação objetiva e subjetiva dessa verdade de Deus a nós. Certa vez Jesus Cristo perguntou aos seus discípulos: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?”. Pedro se antecipou e respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Então, Jesus disse a Pedro: “Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai que está no céu” (Mt 16.15-17). O ponto importante aqui é que não foi o conhecimento humano (por si próprio) que descobriu a união hipostática, isto é, não foi o conhecimento humano que descobriu que o Filho de Deus era Jesus Cristo. Pedro não teve uma “intuição” ou um “insight”, mas ele percebeu a verdade da unio personalis pela bondade de Deus. A capacidade humana de compreender as coisas não é suficiente para detectar num jovem carpinteiro o Filho de Deus encarnado. Quando Pedro fez a declaração mencionada acima, ele a fez porque havia recebido luz divina para conhecer e aceitar a verdade da unio personalis. Somente por revelação divina podemos saber que Jesus Cristo é Deus e é homem. Todos os outros homens comuns e outras religiões não atingidas pela graça reveladora de Deus haveriam de ver em Cristo apenas um homem. Todavia, Pedro viu nele “o Cristo, o Filho do Deus vivo”, e isso em razão da revelação de Deus. A unio personalis foi revelada a Pedro pela graça divina, que o tornou um bem-aventurado. Pedro foi apontado por Cristo para ser um líder na sua Igreja (v. 18), provavelmente por ele ter sido o primeiro a reconhecer a união hipostática. A doutrina da união hipostática é muito importante para a maturidade cristã. É uma doutrina que precisa ser aprendida e

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apreendida pela Igreja cristã por sua importância determinante da sua sobrevivência. Sem essa doutrina, todo o arcabouço teológico do Cristianismo desaba. Quando a Igreja cristã não presta a devida atenção à doutrina da união hipostática, ela nunca vem a entender as doutrinas relacionadas a ela, a saber, redenção, expiação, reconciliação, e mesmo as noções bíblicas da Trindade. A unio personalis é uma doutrina central, na qual muitas outras estão dependuradas. A Igreja nunca se tornará madura enquanto não entender a importância dessa doutrina. Geralmente, quando a Igreja Católica interpreta o texto de Mateus 16.18, ela coloca Pedro como o fundamento da Igreja. Contudo, o ensino geral da Escritura é que o fundamento da Igreja é Cristo, aquele de quem Pedro disse: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, sendo esta a declaração de Pedro da união hipostática do Filho. A Igreja não estava sendo fundamentada sobre Pedro, mas sobre a Rocha dos Séculos, aquele de quem conhecemos que era ao mesmo tempo Deus e homem. 3) A doutrina da unio personalis é importante porque, por causa dela, não haverá a derrota da Igreja para as portas do inferno. Logo após a declaração de Jesus de que a “descoberta” de Pedro tinha sido uma revelação divina, o texto diz que a Igreja, construída sobre a Rocha dos Séculos, nunca haveria de sucumbir diante dos ataques infernais. Na verdade, as portas do inferno não prevalecem contra a Igreja enquanto ela reconhecer a união hipostática do Filho e permanecer no ensino dela como está revelado nas Escrituras. É perfeitamente verificável que as Igrejas denominacionais que não mais crêem, não mais ensinam ou ignoram a doutrina da união hipostática, acabam sendo vencidas pelas “portas do inferno”. Os ramos do Cristianismo que rejeitam a unio personalis, mostrando Jesus Cristo como apenas um homem, não passam de instituições secularizadas. Muitos dos que vão a esses grupos religiosos nunca crêem no Cristo da Escritura e não conhecem verdadeiramente o Redentor. Muitos deles serão condenados não somente por causa de sua natureza pecaminosa e de seus pecados atuais, mas porque ignoram as naturezas divina e humana de Jesus Cristo. As portas do inferno têm prevalecido contra essas Igrejas porque elas negam uma verdade cardeal do Cristianismo bíblico e histórico. Essa doutrina é extremamente importante para o fortalecimento e proteção da Igreja, onde quer que ela possa estar. Apenas a título de resumo, podemos ver quão importante é a união pessoal quando observamos a vinda do Filho de Deus a este mundo para ser Redentor. O Filho de Deus não poderia ser Redentor como Verbo divino, mas ele teve que assumir a natureza humana para exercer as suas funções mediatoriais. A fim de realizar o seu plano redentor, o Filho de Deus teve de se encarnar, sendo concebido de uma virgem, nascido dela, e teve que viver entre nós, ser um membro da nossa raça e morrer, todavia sem pecado. Somente um Redentor com natureza divina poderia ser um Redentor poderoso; somente um Redentor com natureza humana poderia morrer pelos nossos pecados; somente um

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Redentor com natureza divina e humana poderia ressuscitar dentre os mortos. Por causa de sua humanidade ele morreu; por causa de sua divindade ele ressuscitou. 4) A importância da unio personalis está no fato dela ser fundamentada na união trinitária. A união das duas naturezas no Redentor está baseada numa união infinitamente mais elevada, que é a união das três Pessoas num só ser triunitário. Essa união é a mais incompreensível e inefável de todas as uniões mencionadas nas Escrituras. Todavia, diferentemente da unio personalis, a união mencionada acima é uma união de Pessoas da mesma essência. A unio personalis, que é a segunda em mistério e insondável em alguns de seus aspectos, é a da Segunda Pessoa da Trindade, o Filho, com sua natureza divina, que, ao unir-se a uma natureza humana, tornou-se Jesus Cristo, o Redentor divino-humano. Se houvesse apenas uma Pessoa na essência divina, a nossa salvação teria sido totalmente impossível. Somente porque Deus está unido tripessoalmente entre si é que uma dessas Pessoas – Filho – pode ser enviada para se tornar o nosso Redentor, assumindo natureza humana. 5) A importância da unio personalis está na impossibilidade de haver crentes sem ela. A doutrina da constituição da Pessoa de Cristo é de tão grande e fundamental importância que nunca poderia haver redenção e nunca poderíamos ser crentes sem ela. Por essa razão, João fala que “todo espírito que confessa que Jesus veio em carne é de Deus” – A confissão do Verbo encarnado, isto é, da unio personalis, é uma evidência de que uma pessoa pertence a Deus. Não pode haver cristãos que não creiam nessa doutrina. Quem, todavia, não crê nela, recebe o julgamento divino. Por essa razão, João continua a sua argumentação: “e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus” (1Jo 4.2, 3). Todos os que negam a unio personalis não pertencem a Deus e são chamados por João de “anticristos” (1Jo 4.3). O que nós cremos sobre Jesus Cristo é o teste para se saber se somos cristãos ou não, e a confiança nessa doutrina é fundamental para a nossa existência como crentes. Não passamos no teste de nosso Cristianismo se não pensarmos corretamente a respeito de Jesus Cristo. 6) A importância da unio personalis está no fato da junção de coisas aparentemente irreconciliáveis. Quando tratamos da unio personalis, estamos lidando com coisas que são não apenas absolutamente distintas, mas com coisas que estão muito distantes uma da outra. Você pode imaginar a distância que existe entre a divindade e a humanidade e entre o Criador e a criatura? Você é capaz de imaginar a ligação entre o Infinito e o finito, e entre eterno e o temporal? Você é capaz de conceber a união entre a imortalidade e a mortalidade? Você é capaz de imaginar a união do divino com o

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humano? Você é capaz de imaginar uma natureza divina de bem-aventurança eterna ser unida a uma natureza humana cheia de tristezas e angústias? Você é capaz de pensar na onisciência ligada indissoluvelmente à ignorância e ao conhecimento limitado? Pois todas essas coisas estão envolvidas no estudo dessa maravilhosa doutrina. É importante a abordagem desse assunto capital para a nossa fé. As coisas aparentemente irreconciliáveis estão juntadas e esposadas de modo maravilhoso na pessoa do Redentor.

C. A EXIGÊNCIA DA UNIO PERSONALIS Houve algumas razões que tornaram necessária a unio personalis para que a redenção humana pudesse acontecer. Portanto, foi absolutamente necessário que o Filho de Deus assumisse natureza humana. 1) A unio personalis era uma exigência fundamental para que pecadores pudessem se unir a Deus em Cristo. Não haveria qualquer ligação dos homens com Deus à parte do Redentor divino-humano. Assim como nós éramos um com Adão, assim também, em Cristo, o segundo Adão, nós nos unimos a Deus. O caminho para essa união com Deus está enraizado e dependente da unio personalis. Nunca seríamos restaurados ao favor de Deus, a menos que ele viesse a nós através do Filho encarnado. Quando chegou o tempo devido, Deus enviou seu Filho, e este foi nascido de mulher (Gl 4.4) para ligar-nos a Deus. Aquele que existia independentemente na “forma de Deus” teve que existir, também, após a encarnação, “na forma de servo”, entrando na esfera da sujeição à lei, que é parte de sua humilhação. Somente nessa condição de humilhado é que ele pode tomar o nosso lugar e nos devolver à condição de comunhão com Deus, unindo-nos a ele. 2) A unio personalis era uma exigência fundamental para que o Redentor pudesse sofrer a penalidade dos pecados por causa dos pecados dos homens. Houve a quebra da lei pelos homens e as penalidades da lei divina eram muito sérias para serem ignoradas pelo Legislador. A natureza santa do Legislador exigia que a penalidade fosse imposta. Todavia, o amor do Legislador afrontado foi tão grande que ele resolveu perdoar pecadores. Mas ele não poderia perdoá-los ignorando a penalidade deles. O que ele fez? Ele acertou com seu Filho para que este viesse ao mundo e recebesse uma natureza humana para poder substituir os seres humanos, levando a penalidade deles no seu corpo e na sua alma. Então, somente por causa da unio personalis, Jesus Cristo pôde ser maldito de Deus para nos libertar da maldição da lei (Gl 3.13). 3) A unio personalis era uma exigência fundamental para que os homens fossem livres do poder do maligno. Os homens estavam debaixo da ira divina. Uma das manifestações da ira divi-

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na sobre o pecador foi colocá-lo sob a autoridade e o domínio do mais sagaz e maldoso dos capatazes: Satanás. Todavia, quando Deus resolveu livrar os pecadores de sua própria ira, ele enviou o seu Filho para que “tivesse participação comum” juntamente com os homens, “de carne e sangue. Destes também ele, igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo” (Hb 2.14). A unio personalis era necessária para que ele pudesse, com todas as propriedades humanas, vencer aquele que Deus havia constituído como dominador sobre a morte, o diabo. Para que houvesse essa vitória, Deus exigiu que o seu Filho se unisse a uma natureza humana. Somente um Redentor divino e humano como Jesus poderia fazer tal obra. 4) A unio personalis era uma exigência para que Jesus fosse membro da raça humana. Se Jesus Cristo viesse diretamente do céu, sem que a sua natureza humana fosse retirada de Maria, ele não poderia ser membro de nossa raça. E se ele não fosse membro da raça, ele não poderia livrar-nos da culpa e da pecaminosidade vindas da raiz comum de nossos primeiros pais. Não era necessário simplesmente que o Redentor tivesse todas as propriedades de nossa humanidade, mas que ele também fosse membro da raça humana, tendo ancestrais humanos e recebesse a carga genética deles. Somente com a unio personalis isso foi possível. Era exigência que o Redentor fosse Redentor-parente, vindo da sua família, porque a ele somente cabia o direito de ser um Redentor (cf. Lv 25.48-49; Rt 2.20 e 3.9). Ele veio da semente da mulher e, assim, tornou-se nosso parente, de nossa raça, para poder salvar gente dessa raça. Nem todos os crentes têm o desejo de meditar em coisas tão necessárias para a fé cristã. Alguns deles não querem exercitar sua mente em assuntos tão profundos, como é o caso da unio personalis. Nem todos gostam de provar da doçura do Redentor divino-humano. Alguns até tentam banir algumas das verdades cristológicas de sua mente. Poucos desejam rever suas posições teológicas a respeito de Cristo. Na verdade, poucos amam de fato Jesus Cristo, porque o que determina o nosso interesse numa pessoa é o nosso amor por ela. Todavia, a necessidade, a importância e a exigência da unio personalis são levados em conta aqui nesse livro. A oração do autor é que o estudo tão necessário e importante da unio personalis seja de grande valor e proveito para todos quantos amam o Redentor Jesus Cristo, e que todos os leitores, após estudarem a matéria, tenham uma visão melhor de quem o Redentor é e porque ele teve de ser o Redentor do jeito que a Escritura o apresenta. Que façam bom uso todos os que lerem esse livro, que é produto do esforço de muitas horas de trabalho, dentro e fora do horário de trabalho no Centro Presbiteriano de Pós Graduação Andrew Jumper.

ÍNDICE DO CAPÍTULO 1

CAPÍTULO 1 ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA

E

sse trabalho sobre Cristologia ficaria prejudicado se não tratássemos do desenvolvimento histórico doutrina da unio personalis, que tem a ver diretamente com a união das duas naturezas – a divina e a humana. Toda doutrina cristã tem o seu nascedouro e a sua formação no decorrer da história. Essa doutrina não foge à regra. A doutrina da unio personalis teve início nos primeiros concílios da Igreja Cristã, nas controvérsias cristológicas, ainda que o termo unio personalis tenha aparecido um pouco mais tarde, com o desenvolvimento da doutrina. Após os Concílios de Nicéia (325) e de Constantinopla (381), a doutrina ortodoxa da Igreja ficou sendo a da verdadeira e plena humanidade e divindade de Jesus Cristo. Os conflitos com Ário e com Apolinário, que representaram o primeiro e o segundo estágios do desenvolvimento da Cristologia, foram salutares para a Igreja no sentido de definir corretamente o pensamento sobre a natureza divina e a natureza humana do Redentor. Contudo, continuaram discussões posteriores sobre outros aspectos relativos à união das naturezas no Redentor. Esse é o terceiro estágio do desenvolvimento do pensamento cristológico. A questão era descobrir os termos corretos com os quais a Igreja poderia expressar a relação que existe entre o humano e o divino no Redentor. A solução para a questão da relação entre as duas naturezas foi abordada dois ângulos, por duas escolas distintas de pensamento da Igreja Cristã, que apresentaram respostas diferentes diante da ameaça do arianismo: a Cristologia da Escola de Antioquia e a Cristologia da Escola de Alexandria.

A. O PENSAMENTO CRISTOLÓGICO DA ESCOLA DE ANTIOQUIA Em termos cristológicos, a Escola de Antioquia3 foi caracterizada por uma 3. A Escola de Antioquia foi uma escola de pensamento centrada ao redor da Antioquia da Síria, do séc. 3º. Ao séc. 5º. Essa escola enfatizou o método gramático-histórico, em oposição à tendência da escola de Alexandria, que enfatizava a alegorização das Escrituras.

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“rígida separação entre as duas naturezas em Cristo. Foi a natureza humana que experimentou sofrimento, enquanto a natureza divina permaneceu intocada por ele.”4 Essa escola “foi marcada por uma aversão à especulação metafísica e a um profundo elemento místico no cristianismo. Ela rejeitou a exegese alegórica e estabeleceu o método gramático histórico de interpretação da Escritura. Os representantes dessa escola eram exegetas diligentes que estudaram a vida do Cristo histórico, especialmente o seu desenvolvimento humano e moral. Eles eram, dessa forma, naturalmente opostos ao Docetismo e ao Apolinarismo. A ênfase principal da Escola de Antioquia era sobre a humanidade de Cristo sem sequer pretender negar Sua divindade.”5

1. OS REPRESENTANTES DA ESCOLA DE ANTIOQUIA Essa escola de pensamento foi marcada pela presença de alguns expoentes da história da Igreja. Apenas discorreremos rapidamente sobre alguns deles.

a. Diodoro de Tarso (c.330-94) É considerado o pioneiro da Escola de Antioquia, e foi um dos principais combatentes da ortodoxia contra o arianismo. Nasceu em Antioquia e, ali e em Atenas, educou-se secularmente. Veio a ser um mestre de grande influência em Antioquia, de onde foi banido em 372 para a Armênia pelo Imperador Valente. Tornou-se bispo de Tarso em 378. Teve dois discípulos famosos: Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo. Mesmo, em geral, tendo sido considerado ortodoxo, ele foi condenado postumamente por um sínodo em Antioquia, em 499, como sendo o autor do Nestorianismo. Escreveu muitas obras, inclusive comentários da Escritura. No período final de sua vida, seguiu o método gramático-histórico de exegese em oposição ao método alegórico da escola de Alexandria.6

b. Teodoro de Mopsuéstia (c. 350-428) Teodoro foi discípulo de Diodoro de Tarso. Foi exegeta e teólogo da escola de Antioquia. Veio de uma rica família de Antioquia, e foi educado aos pés de João 4. New Dictionary of Theology, orgs. Sinclair B. Ferguson e David F. Wright (Inglaterra: Inter Varsity Press, 1988), 32. 5. J. L. Neve, A History of Christian Thought (Filadélfia: The Muhlenberg Press, 1946), 128. 6. Ver J. D. Douglas, The New International Dictionary of the Christian Church, org. J. D. Douglas (Grand Rapids: Zondervan, 1978), 964.

ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA

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Crisóstomo. Abandonou a carreira secular, c. 369, e foi para a escola monástica de Diodoro de Tarso. Foi ordenado presbítero por Flaviano, em 383, e, em 392, foi tornado bispo de Mopsuéstia, na Cilícia. Mesmo morrendo em 428, o seu prestígio foi postumamente envolvido, após o Concílio de Éfeso, em 431, quando o relacionaram ao seu condenado aluno Nestório. Sofreu a forte oposição de Cirilo de Alexandria e, embora tenha gozado de um certo apoio póstumo de Calcedônia, seus escritos foram anatematizados no Segundo Concílio de Constantinopla (553). Escreveu muitas obras exegéticas e comentários. As suas obras são mais bíblicas e exegéticas e menos filosóficas do que a dos alexandrinos.7

c. Teodoreto de Ciro (c.393-458) Nasceu em Antioquia, foi para o monastério em 416, e, sete anos depois, tornou-se bispo da Ciro, na Síria, e permaneceu bispo ali pelo resto de sua vida, exceto por dois anos, de 449 a 451, por ter sido deposto do ofício por questões cristológicas. Tornou-se um grande exegeta da Escola de Antioquia, escrevendo comentários curtos sobre Cantares de Salomão, os Profetas, Salmos, e sobre as Epístolas Paulinas. Nas controvérsias cristológicas, ele enfrentou os da escola de Alexandria, especialmente Cirilo de Alexandria, no Concílio de Éfeso, em 431. Quando Cirilo dirigiu anátemas a Nestório, Teodoreto saiu em favor de Nestório, defendendo-o. Por sua oposição teológica, Teodoreto foi deposto e exilado pelo Sínodo de Latrão, em 449, realizado em Éfeso, mas foi restaurado no Concílio de Calcedônia, em 451, onde teve que aceitar a expressão theotokos, e teve de participar da condenação de Nestório, a quem havia defendido anteriormente.8

2. A RELAÇÃO DAS DUAS NATUREZAS DE CRISTO SEGUNDO A ESCOLA DE ANTIOQUIA É importante lembrar que a escola de Antioquia nunca negou nenhuma das duas naturezas e nem qualquer mistura das delas. Todavia, o sentido de união entre as naturezas da qual eles falam tem uma conotação diferente das formulações cristológicas posteriores.

a. A relação entre as naturezas não é a de uma União Pessoal Os postulantes de Antioquia expressaram a relação entre as duas naturezas de Cristo numa espécie de união, mas essa união nada tem a ver com a unio personalis afirmada posteriormente nos concílios da Igreja. 7. Ver J. D. Douglas, The New International Dictionary of the Christian Church, 964. 8. J. D. Douglas, The New International Dictionary of the Christian Church, 965.

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Para alguns mestres da escola de Antioquia, “a divindade [de Cristo] tem sua residência na humanidade. O Logos reside no homem Jesus como num santuário; essa habitação é também comparada à habitação de Cristo no coração dos crentes.”9 A palavra que os da Escola de Antioquia usaram para descrever essa “união” era “conexão” ou “conjunção” (da palavra grega suna/meia). Como nessa escola não há lugar para uma real encarnação do Logos, diante da expressão bíblica “e o Verbo se fez carne” (Jo 1.14), Teodoro de Mopsuéstia disse que esse verso nunca deve ser tomado literalmente; o Logos foi simplesmente adotado pela carne de Jesus e fez dela a sua habitação.10 Essa postura se deve ao fato de os expoentes de Antioquia terem feito uma separação radical entre as duas naturezas. Isso dificultou para eles a verdadeira união das naturezas. G. A. Keith diz que “Ele [Teodoro de Mopsuéstia] gostava de ilustrar isso [a conjunção] com a metáfora da habitação. A natureza humana de Cristo funciona como um templo no qual Deus habita. Mas essa habitação, que se dá pelo beneplácito de Deus, difere da habitação de Deus nos profetas e em outros homens santos em virtude de sua permanência e completamento.”11

Obviamente, essa visão de Antioquia foi rejeitada violentamente pelos adversários de Teodoro de Mopsuéstia. A união era só aparente, não uma união real. A conjunção das duas naturezas (mencionada acima) não é uma “união pessoal”, uma união das duas naturezas essenciais (divina e humana), mas uma união graciosa onde o Logos entrou numa relação íntima com a humanidade de Jesus – uma espécie de união moral. Teodoreto de Ciro, que acabou não ficando com nenhum dos lados extremos da controvérsia cristológica, “sustentava que Cristo tinha duas naturezas unidas em uma pessoa, mas não em essência”.12 Pensava ligeiramente diferente de Teodoro de Mopsuéstia, mas ainda assim não aceitava a real união pessoal ou hipostática. Na Escola de Antioquia, “a natureza humana se desenvolveu independentemente da divindade; portanto, uma real participação da divindade na experiência da vida humana não era admissível. Contrariamente à intenção de Antioquia, isso destruiu a real união das duas naturezas na pessoa de Cristo.”13

b. A relação entre as duas naturezas parece implicar em duas pessoas Diodoro de Tarso “preferia falar de dois Filhos e duas naturezas, e negava 9. Neve, A History of the Christian Thought, 129. 10. Neve, A History of the Christian Thought, 130. 11. G. A. Keith, no New Dictionary of Theology, orgs. Sinclair B. Ferguson e David F. Wright (Inglaterra: InterVarsity Press, 1988), 32. 12. J. D. Douglas, The New International Dictionary of the Christian Church, 965. 13. Neve, A History of the Christian Thought, 130.

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qualquer espécie de comunicação de atributos... A negação da transferência de propriedades permaneceu como o ensino padrão da escola de Antioquia”.14 Harry Buis afirma que, em oposição ao apolinarismo, Diodoro de Tarso “tendeu a ir para o extremo oposto e, assim, tornou-se o precursor da heresia nestoriana. Sua tentativa de resolver o problema das duas naturezas de Cristo levou-o a uma posição onde ele pensava que o Logos residia no homem Jesus como num templo ou numa roupa. Para ele, a união das duas naturezas era externa e moral antes do que substancial... Na verdade, ele dividiu Cristo em duas pessoas, ao invés de afirmar uma pessoa com duas naturezas.”15

A separação que ele fazia das duas naturezas era tão grande que ele chegava a pensar que a natureza humana de Jesus Cristo foi quem morreu na cruz, enquanto que o Verbo divino permaneceu impassível. Os defensores da escola de Antioquia geralmente aceitavam a impassibilidade de Deus. Por essa razão, a tendência para um crescente Nestorianismo na escola de Antioquia. Duas naturezas, mas duas pessoas. Teodoro de Mopsuéstia percebeu o perigo das duas pessoas para a Cristologia e tentou evitar essa acusação que vinha sobre a teologia da escola de Antioquia. Ele disse: “O Filho é corretamente confessado ser um, visto que a distinção deve necessariamente permanecer, e a unidade da pessoa deve ser guardada sem interrupção.”16 “Não obstante, essa unidade não significava mais do que o ajustamento harmonioso da vontade de Jesus à vontade do Logos, de forma que Jesus se tornou o perfeito órgão do desejo e da ação do Logos. Assim, Teodoro parecia aparentemente assegurar a unidade das duas naturezas.”17

Na verdade, a união que Teodoro de Mopsuéstia apregoava não passava de uma adequação da vontade humana à vontade divina. Não era uma unio personalis, mas a vontade de Jesus submissa à vontade do Logos. A dificuldade da união das duas naturezas para Teodoro de Mopsuéstia está clara na sua citação a seguir: “Quando distinguimos as naturezas, sustentamos que a natureza de Deus, o Verbo é perfeita; perfeita, também a pessoa – por isso não é possível falar de uma existência distinta, que é impessoal; perfeita, também, a natureza do homem, e a pessoa igualmente. Mas quando olhamos para a conjunção das duas, então dizemos que há uma pessoa.”18 14. New Dictionary of Theology, 32. 15. Harry Buis no verbete “Diodorus”, Philip E. Hughes, org., The Encyclopedia of Christianity, vol. III (Delaware: The National Foundation for Christian Education, 1972), 398, 399. 16. De Incarnatione, XV, 1, apud Neve, A History of the Christian Thought, vol. 1, 129. 17. Neve, A History of the Christian Thought, vol. 1, 129. 18. De Incarnatione, VIII, apud Neve, A History of the Christian Thought, vol. 1, 129.

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Ao mesmo tempo, Teodoro fala de uma pessoa unida na harmonia das duas vontades, mas também fala da perfeição das duas pessoas que são vistas como uma quando contempladas na conjunção das naturezas. Obviamente, sua tendência, como a dos outros expoentes de Antioquia mencionados aqui, era em direção ao Nestorianismo. Ele não cria numa verdadeira união pessoal. Teodoreto de Ciro não cria na união hipostática ou na união natural (ensinada por Cirilo de Alexandria) porque ela “significava para ele uma fusão da divindade com a humanidade numa composição híbrida sob a influência de alguma lei física de combinação mecânica inteiramente oposta a qualquer conceito de ato voluntário e gracioso que caracterizou a encarnação”.19 A unio personalis, da forma como a Igreja veio a crer posteriormente, não era concebível dentro do esquema teológico de Antioquia porque, a princípio, os seus postulantes criam que havia duas naturezas e duas hipóstases, o que abriu caminho para a controvérsia com Nestório.

B. O PENSAMENTO CRISTOLÓGICO DA ESCOLA DE ALEXANDRIA A cidade de Alexandria foi o centro intelectual do primitivo império romano, especialmente pela força da educação grega no tempo de Orígenes. Foi o pensamento grego que, de alguma forma, condicionou a teologia de Alexandria no desenvolvimento feito por Clemente (c. 159-215)20 e Orígenes (185-251). Clemente de Alexandria estudava as obras de Filo, o filósofo judeu do primeiro século que era de Alexandria, para tentar reconciliar a revelação bíblica com a herança educacional grega. Por isso, Hagglund disse que a escola de Alexandria “fez a primeira tentativa de estabelecer uma síntese entre o cristianismo e a filosofia grega. Diferentemente dos apologistas, os alexandrinos não se contentaram simplesmente em apresentar a tradição cristã como uma contraparte superior à filosofia. E diferentemente dos gnósticos, eles não procuraram substituir o cristianismo por uma doutrina sincrética da salvação que abandonasse alguns dos elementos fundamentais da fé cristã.”21

A teologia de Alexandria chegou ao seu ponto máximo sob a influência de Orígenes. Todavia, o prestígio teológico da teologia Alexandria caiu quando Ário, bispo de Alexandria, ensinou a teoria de que Cristo era o Filho criado de Deus, não sendo, portanto, divino ontologicamente. Durante o século 4º, gradativamente a escola caiu na obscuridade, embora houvesse nela o brilho de Alexandre e Atanásio, que atacaram o arianismo, sendo os líderes do estabelecimento da ortodoxia cristã.22 19. New Dictionary of Theology, 33. 20. Sobre Clemente de Alexandria, veja Bengt Hagglund, History of Theology, (Saint Louis: Concordia Publishing House, 1968), 61-63. 21. Bengt Hagglund, History of Theology, 59. 22. The New International Dictionary of Christian Church, org. J. D. Douglas, 26.

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Os de Alexandria não estavam querendo misturar o Cristianismo com filosofia, mas somente apresentá-lo como a mais alta verdade.23 Nessa tentativa de apresentar o Cristianismo como a verdade suprema, podemos dizer que houve várias ênfases da escola de Alexandria: (1) ela se preocupou com o lugar do professor e da pesquisa intelectual livre da Igreja;24 (2) ela tratou da relação entre fé e razão;25 (3) ela tratou da interpretação das Escrituras;26 (4) Ela tratou da Cristologia,27 que é o que nos interessa neste momento. Em termos cristológicos, a escola de Alexandria segue numa direção diferente da escola de Antioquia. O ponto de partida dessa escola era o lado divino da Pessoa de Cristo e a encarnação de Cristo. O texto de João, “e o Verbo se fez carne” (Jo 1.14) era o texto chave deles.

1. REPRESENTANTES DA ESCOLA DE ALEXANDRIA a. Atanásio (297-373) Atanásio, que foi um dos campeões da teologia de Nicéia28 contra o arianismo, era egípcio de nascimento, mas havia recebido a educação grega. Foi influenciado por Alexandre, bispo de Alexandria, por quem foi ordenado diácono. Trabalhou muito numa escola catequética de Alexandria. Com a morte de Alexandre, em 328, Atanásio assumiu o bispado de Alexandria, aos trinta e três anos de idade. Por causa da sua luta contra o arianismo, foi alvo dos ataques deles. Experimentou cinco exílios, tendo que fugir e se esconder durante 17 anos, mas sempre encontrou abrigo e proteção nos monges do deserto e também em Alexandria, onde era querido do povo.29 “No interesse da precisão cronológica, deveria ser lembrado que Atanásio escreveu antes do tempo dos da escola de Antioquia. Mas Atanásio é tratado aqui porque os teólogos de Alexandria começaram com a sua cristologia. Deveria também ser lembrado que Atanásio não tratou intencionalmente com a pessoa e as naturezas de Cristo”.30 23. Bengt Hagglund, History of Theology, 59. 24. Sobre a pedagogia de Deus em Clemente de Alexandria, veja Bengt Hagglund, History of Theology, 61, 62. 25. Sobre fé e razão (ou gnosis) em Clemente de Alexandria, veja Bengt Hagglund, History of Theology, 62, 63. 26. Sobre a interpretação das Escrituras em Orígenes, veja Bengt Hagglund, History of Theology, 63-64. 27. Ver New Dictionary of Theology, orgs. Sinclair Ferguson e David Wright (Downers Grove, Il: InterVarsity Press, 1989), 14. 28. Atanásio, embora tivesse sido um campeão da ortodoxia da Igreja contra o surgimento do arianismo, não participou ativamente dos procedimentos conciliares de Nicéia, mas como secretário do bispo Alexandre de Alexandria, tendo, todavia, grande influência, porque escrevia para o bispo as encíclicas, cartas, circulares, etc. (ver The New International Dictionary of the Christian Church, 81). 29. Ver The New International Dictionary of the Christian Church, 79, 80. 30. Neve, A History of Christian Thought, 130, nota de rodapé 1 (grifos acrescentados).

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

Além da influência de Atanásio, a teologia de Alexandria recebeu a influência dos dois Gregórios da Capadócia, que ficaram conhecidos como Pais Capadócios, e de Cirilo de Alexandria.

b. Gregório de Nazianzo (330-389) É conhecido como um Pai Capadócio. Seu pai era bispo da Capadócia, de onde ele derivou o seu título. Foi educado em Cesaréia, onde se tornou amigo de Basílio, o grande. Defendeu a fé Nicena combatendo o arianismo. Após se tornar bispo de Constantinopla e presidir brevemente o Concilio de Constantinopla (381), Gregório renunciou e se retirou agradecidamente para a Capadócia”,31 para a cidade de Nazianzo, onde assumiu a responsabilidade da Igreja, mas a partir de 384 foi para a propriedade de sua família, onde finalmente morreu.32 “A principal contribuição de Gregório de Nazianzo para o desenvolvimento da Cristologia aconteceu em sua oposição a Apolinário. Ele argumentou que a totalidade da natureza humana que caiu em Adão deve ser unida ao Filho, corpo, alma e mente, porque ‘o que não é assumido não é sarado’.”33

Com respeito à união das duas naturezas, Gregório de Nazianzo assumiu o ponto-de-vista que “na encarnação, a humanidade de Cristo, por causa de um processo de mistura ou mescla (synkrasis, anakrasis, mixis), ficou totalmente desaparecida na divindade. Ele comparou a divindade e a humanidade de Cristo ao sol e as estrelas; o sol brilha com tal fulgor que praticamente extingue as estrelas.”34

Com isso ele queria dizer que a humanidade de Cristo é absorvida e engolfada por sua divindade. A ênfase sobre a divindade deixa a humanidade diminuída e, até mesmo, anulada.

c. Gregório de Nissa (335-395) Gregório de Nissa foi de grande valor na vitória da ortodoxia sobre o arianismo. Não possuía uma boa educação formal, como seu irmão Basílio, mas era brilhante no raciocínio. Tornou-se um professor de retórica e foi mais brilhante que seus irmãos como um pensador especulativo. Foi ordenado bispo de Nissa em 372 por seu irmão Basílio para assisti-lo numa luta pelo poder eclesiástico. Após a

31. T. A. Noble, no New Dictionary of Theology, org. S. Ferguson, 281. 32. G. L. Carey, The New International Dictionary, 435. 33. T. A. Noble, no New Dictionary of Theology, org. S. Ferguson, 281. 34. J. L. Neve, A history of Christian Thought (Filadélfia: The Muhlenberg Press, 946), 131.

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morte de Basílio, Gregório foi uma das figuras exponenciais no Concílio de Constantinopla, em 381.35 Gregócio de Nissa não conseguiu fugir da mesma dificuldade sobre a relação das duas naturezas de Cristo que o seu homônimo de Nazianzo teve. Ele também “disse que o corpo passivo de Cristo tinha se misturado com a Sua divindade ativa, que o humano tinha se transformado no divino. Ele igualou o divino e o humano ao mar e uma gota de vinagre, que fica completamente envolta e absorvida na vastidão do oceano.”36

A sua tendência docética fica patente no seu pensamento sobre a união das duas naturezas. A natureza humana, embora existente, fica eclipsada pela natureza divina, ao ponto dela não poder ser percebida em virtude da grandeza e da majestade da sua divindade. É importante observar “aqui que o Docetismo tem sempre sido a acusação feita contra os teólogos que têm seguido um curso diferente daquele seguido pela escola de Antioquia.”37

d. Cirilo de Alexandria (375-444) Nasceu e cresceu em Alexandria, e ali tornou-se bispo, em 412. Aprendeu teologia entre os monges do deserto. Lutou veementemente contra Nestório. Escreveu muitas homilias, e várias delas exerceram um papel central no conflito com Nestório, que acabou sendo condenado no Concílio de Éfeso, em 431. Neve diz que “é verdade que houve certos elementos pessoais que estavam envolvidos no conflito entre Cirilo e Nestório. A acusação é que o bispo Cirilo era um homem que usava meios questionáveis para estabelecer e para incrementar a causa pela qual ele dava suporte”.38 Adolf von Harnack, um teólogo liberal, tentando mostrar algum tipo de defesa de Cirilo, e, ao mesmo tempo, honestidade com os fatos históricos, sustentava que “enquanto Cirilo era ofensivo nos métodos que usava, todavia ele era honesto nos princípios que apoiava. Não deve ser esquecido que ele escreveu sua obra De Incarnantione Unigenite antes do surgimento da controvérsia nestoriana”.39 Além das questões pessoais e dos métodos duros empregados por Cirilo contra Nestório, havia “a rivalidade eclesiástica entre as duas sés, a de Alexandria e a de Constantinopla, que exerceu uma parte importante em toda a controvérsia.”40

35. T. A. Noble, no New Dictionary of Theology, org. S. Ferguson, 282. 36. J. L. Neve, A History of Christian Thought (Filadélfia: The Muhlenberg Press, 1946), 131. 37. J. L. Neve, A History of Christian Thought , 131. 38. Neve, A History of Christian Thought, 133. 39. Citado por Neve, A History of Christian Thought, 133. 40. Neve, A History of Christian Thought, 133.

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Os últimos anos de vida de Cirilo foram gastos em paz, embora ele tenha tido de explicar o seu ensino aos críticos de ambas as escolas, de Alexandria e de Antioquia.41 Cirilo de Alexandria e seus sucessores se opuseram à divisão proposta por Antioquia, entre o divino e o humano em Cristo, por insistir sobre a unidade de sua pessoa. Neve afirma que, para Cirilo, “somente antes da união e in abstrato podemos falar de duas naturezas; após a encarnação e in concreto podemos falar somente de uma natureza divino-humana”.42 Por causa disso, alguns de seus críticos viram-no como pendendo para o campo do monofisismo, e os monofisitas julgaram ter Cirilo do lado deles. Dentre as suas muitas obras, destacamos aqui Cinco Livros de Negação das Blasfêmias de Nestório, onde ele argumenta em favor da união pessoal do Logos divino com a carne nascida de Maria, contra a Cristologia de Nestório, baseada na conjunção entre o Logos divino e o homem nascido de Maria. Todavia, a terminologia de Cirilo às vezes era confusa e apresentou problemas, porque ela era flexível e sujeita a equívocos, embora o seu pensamento fosse claro. Um exemplo de terminologia que causou confusão foi o fato de ele argumentar em favor de dois nascimentos do mesmo e único Filho divino: um na eternidade (o divino) e um na história (o humano), enquanto que o argumento de Nestório era o de dois Filhos, um divino e um humano, que estão unidos em Cristo.43 O que Cirilo queria mostrar era que o divino e o humano estavam no mesmo Emanuel, enfatizando a união hipostática das duas naturezas, sua comunicação de atributos, e, acima de tudo, que sua virgem mãe que é verdadeiramente theotokos (portadora de Deus).44

2. UNIÃO DAS NATUREZAS DE CRISTO NA ESCOLA DE ALEXANDRIA “A unidade de Cristo não somente deu forma à Cristologia alexandrina, mas ela também proporcionou um esquema para interpretar os evangelhos. Embora salvaguardando a unidade da pessoa de Cristo, a abordagem alexandrina conduziu ao monofisismo, que apelou para Cirilo como seu mentor teológico.”45

Para Orígenes, “a alma de Cristo não caiu do seu estado de pureza. Sua alma entrou em seu corpo, e assim as naturezas divina e humana foram unidas... mas o lado físico de Cristo foi progressivamente absorvido pelo divino, de forma que ele 41. New Dictionary of Theology, 184. 42. Neve, A History of Christian Thought, 134. 43. New Dictionary of Theology, 185. 44. Ibid., 185. 45. E. Ferguson, New Dictionary of Theology, 14.

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cessou de ser homem.”46 Cristo acabou ficando com uma só natureza, a divina. Uma natureza foi absorvida na outra, pavimentando o caminho para aquilo que posteriormente se chamaria monofisismo. Não somente Orígenes teve dificuldade sobre a união das duas naturezas, mas mesmo os Pais Capadócios – os dois Gregórios – não conseguiram chegar a uma teoria consolidada sobre a relação das duas naturezas em uma só Pessoa. Cirilo de Alexandria é quem trataria melhor desse assunto.47 Neve diz que “por empregar a concepção das duas naturezas, a humana, que é impessoal, e a divina, como o sujeito de ambas, Cirilo evitou usar a palavra mixture, que os Capadócios haviam usado”.48 O resumo do sistema cristológico de Cirilo é fornecido por Neve, da seguinte forma: “Há duas naturezas e, todavia, uma unidade. Uma não é mudada na outra; nem são as duas fundidas uma na outra. Nem há um junção de uma natureza com a outra (suna/feia), nem a habitação da divindade na humanidade (e)noi/xhsij). Cada natureza preserva seus atributos”.

Todavia, Neve diz ainda que “o sistema de Cirilo realmente não ofereceu nenhuma solução razoável para o problema [da relação das duas naturezas]”.49 Cirilo conseguiu chegar onde os Pais de Calcedônia chegaram algum tempo depois. É bem provável que Cirilo tivesse a intenção de resolver finalmente as questões sobre a unio personalis, mas “ele simplesmente afirmou o mistério da piedade (1Tm 3.6) em harmonia com as tradições ortodoxas da Igreja expressas por Atanásio e pelos Capadócios, evitando ao mesmo tempo os erros de seus predecessores”.50 Algumas outras questões que ainda permaneceram depois de Cirilo foram: era Cristo uma pessoa com as naturezas divina e humana, ou era ele uma pessoa humana com natureza humana e uma pessoa divina com natureza divina, ou ainda, uma pessoa com uma espécie de duas naturezas fundidas, um tertium quid? Essas questões foram levantadas devido ao aparecimento de movimentos condenados em Calcedônia, mas que não pararam por aí. Após Calcedônia, outros movimentos apareceram, como é o caso dos Monofisitas e dos Monotelitas.

ERROS SOBRE A UNIO PERSONALIS ANTES E DEPOIS DE CALCEDÔNIA Há vários erros sobre a unio personalis, tanto antes como depois do Concílio de Calcedônia. Para os nossos propósitos, mencionaremos e discorreremos apenas sobre alguns deles. 46. Bengt Hagglund, History of Theology, 67. 47. J. L. Neve, A History of Christian Thought (Filadélfia: The Muhlenberg Press, 1946), 131. 48. Ibid., 133. 49. Ibid, 134. 50. Ibid., 134.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

A. NESTORIANISMO O movimento teológico conhecido como Nestorianismo está relacionado ao nome de Nestório (428-451), Patriarca de Constantinopla, que era um expoente extremo da Cristologia de Antioquia. Antes de ser Patriarca de Constantinopla, Nestório foi presbítero e monge na cidade de Antioquia. Seu maior adversário teológico foi Cirilo, bispo de Alexandria, que acabou levando Nestório à condenação no Concílio de Éfeso, convocado pelo imperador Teodósio, em 431. Nestório foi exilado pelo imperador no seu próprio monastério em Antioquia, e, mais tarde, foi exilado no Grande Oásis no Egito, onde morreu, no ano da realização do Concílio de Calcedônia, em 451. Os cristãos ligados ao Nestorianismo eram caracterizados por um forte zelo missionário, e levaram o evangelho à Índia e Arábia. Nos séculos 13 e 14 os cristãos nestorianos sofreram muito sob a invasão dos mongóis. Grupos de “cristãos assírios” sobrevivem, consideram-se nestorianos e proíbem a designação “theotokos”.

1. A CONTROVÉRSIA DE NESTÓRIO SOBRE O TERMO THEOTOKOS A teologia do nestorianismo afirmava que havia duas pessoas, a divina e a humana, vivendo juntas em Jesus Cristo. Nestório tomou partido na controvérsia sobre a questão de Maria poder ser chamada Theotokos (qeoto/koj), uma expressão técnica que literalmente significa “portadora de Deus”, retirada do Credo de Atanásio e que, de maneira infeliz, popularmente foi interpretada erroneamente como “mãe de Deus”, interpretação esta que prevaleceu na história do Catolicismo e não fugiu de algumas tradições protestantes. A essa altura, “o uso popular do termo theotokos havia alcançado um ponto onde os homens se atreviam a considerar a virgem como uma espécie de modo divino, igual a Deus”.51 Macleod diz ainda que “a razão por sua aversão ao termo [theotokos]não foi principalmente sua tendência de encorajar a mariolatria, mas a ameaça que o termo colocou sobre a divindade de Cristo”.52 Certamente, por causa disso, Nestório foi contra essa designação, rejeitando-a, e preferiu a expressão Christotokos (xristoto/koj, que literalmente significa “portadora de Cristo”). Macintosh afirma que Nestório teria dito: “Maria não portava a divindade; ela portava um homem que era o órgão da divindade”.53 Ela não era Theotokos, mas Cristotokos. Nestório até preferiria usar a expressão Anthropotokos (a)nqropoto/koj, que literalmente traduzida significa “portadora de homem”), para designar a expressão relativa a Maria. Macleod observa que “se Maria fosse proclamada como a Mãe da Palavra [Verbo] de Deus, isso não abriria a porta para a antiga noção ariana de que o Logos era uma criatura?”.54 51. Macleod, The Person of Christ, 182. 52. Ibid. 53. H. R. Macintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribenr´s Sons, 1912), 203. 54. Donald Macleod, The Person of Christ, 182.

ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA

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Não há dúvida de que, em alguns círculos protestantes, essa opinião de Nestório alcançaria muito maior simpatia do que a expressão theotokos, por causa da mariolatria percebida nos círculos católicos, especialmente em países da América do Sul. Na sua formulação cristológica, ao tentar preservar as duas naturezas de Cristo, Nestório acabou deixando transparecer duas pessoas, mais do que simplesmente duas naturezas, negando que houvesse qualquer união orgânica entre o homem Jesus e o Logos Divino que nele habitava.55 A analogia usada por Nestório para explicar a sua Cristologia era a da união do crente com Cristo. Na, verdade, isso não é encarnação, mas a deificação de um homem, que veio de baixo, não de cima. Longe de ser uma encarnação, a Cristologia de Nestório enfatizava mais uma aliança, uma união de Deus com o homem.

2. O ERRO CRISTOLÓGICO DE NESTÓRIO Corretamente, Nestório defendia tanto a divindade de Jesus Cristo (afirmada pelo Concílio de Nicéia) como sua humanidade (afirmada por Constantinopla). Todavia, o erro de que Nestório é acusado tem a ver com a união das duas naturezas de Cristo. O nestorianismo é acusado de ensinar a existência de duas pessoas em Jesus Cristo, a divina e a humana. Não se pode esquecer que Nestório é um discípulo da tradição da escola de Antioquia. Nela, Deus o Verbo é agudamente distinto do homem Jesus. Nestório disse em um dos seus sermões: “Por amor daquele que se gasta eu adoro aquele que foi gasto; por amor daquele que é escondido eu adoro aquele que aparece. Daquele que aparece, Deus é inseparável: por essa razão eu não separo a honra daquele que é inseparado. Eu separo as naturezas, mas eu combino a adoração.”56

Nestório ensinou que as duas naturezas de Cristo permanecem inalteradas e distintas em sua união dentro de Jesus Cristo. “O ponto forte do nestorianismo é sua tentativa de fazer plena justiça à humanidade de Cristo (um verdadeiro Salvador de homens), mas o seu ponto fraco é que ele coloca as duas naturezas juntas uma da outra com pouco mais do que uma união moral e simpática entre elas.”57

Na tentativa de separar claramente as duas naturezas é possível que Nestório 55. Veja New Dictionary of Theology, 457. 56. Sermo 9 (Loofs, Nestoriana, 262), citado por H. R. Macintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribner´s Sons, 1912), 204. 57. Peter Toon, em The New International Dictionary of the Christian Church, organizado por J.D. Douglas (Grand Rapids: Zondervan, 1978), 700.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

tenha dito alguma coisa que tenha dado a entender que ele admitia duas pessoas distintas em Jesus Cristo. Há apenas poucas frases realmente atribuídas a Nestório em documentos,58 e é possível que ele não tenha sido devidamente entendido por aqueles que o ouviram ou que o leram. O fato é que tem havido controvérsias entre os estudiosos sobre o pensamento de Nestório. Certamente ele teve a infelicidade de ter como adversário uma das figuras mais poderosas da história a Igreja – Cirilo de Alexandria (376-444),59 que certamente interpretou a sua teologia e, por causa disso, o nome de Nestório não foi muito bem visto durante muitos séculos. Ele foi condenado no Concílio de Éfeso (341) sob a influência de Cirilo, que o anatematizou como um herege e o declarou deposto. O imperador o exilou para o seu monastério em Antioquia e, mais tarde, para o Grande Oásis do Egito, onde ele morreu, em 451. Todavia, essa acusação de se atribuir uma dupla personalidade a Cristo tem sido historicamente questionada por alguns teólogos, como veremos abaixo.

3. DEFENSORES MODERNOS DE NESTÓRIO Na sua época, Nestório recebeu o apoio de vários teólogos orientais, pois sua teologia era considerada ortodoxa. Modernamente também alguns autores tentam isentar Nestório da heresia de que foi acusado, seguindo o próprio intuito de Nestório ao tentar provar a sua inocência. Mesmo teólogos bem conservadores têm uma opinião razoavelmente favorável a Nestório. A heresia conhecida como nestorianismo tem a sua discussão complicada pelo fato de que Nestório quase certamente não era aquilo que nós, hoje, chmamos de nestoriano.60 “Ele não sustentava a crença regularmente atribuída a ele de que em Jesus Cristo havia duas pessoas, a pessoa de um Deus e a pessoa de um homem que foram, mecanicamente, colocadas juntas, uma sendo Filho por natureza e, a outra, Filho por associação, de forma que realmente havia dois Filhos e dois Cristos. Ele é tão explícito quanto possível neste ponto.”61 58. Como se pensava que seus escritos só existiam em fragmentos, durante a história da Igreja foi difícil concordar com Nestório que ele não era um herege. “Mas a descoberta, em 1910, de The Book (Bazaar) of Heracleides, numa versão siríaca, tem proporcionado um maior entendimento de suas posições. Não obstante, eruditos modernos não estão em acordo em sua avaliação da doutrina de Nestório. Para alguns, ele foi a vítima infeliz de política eclesiástica; para outros, ele permanece culpado de erros teológicos apontados contra ele por Cirilo e outros” (Peter Toon, em The New International Dictionary of the Christian Church, organizado por J.D. Douglas [Grand Rapids: Zondervan, 1978], 699). 59. H. R. Macintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribner´s Sons, 1912), 204, (nota de rodapé 1). 60. Donald Macleod, The Person of Christ, 181-82. 61. Frase retirada de Bethune-Baker, Nestorius and his Teaching (Cambridge, 1908), 82, e citada por H.

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E ainda: “[Nestório] não pensava [a respeito] de duas pessoas distintas juntadas, mas de uma única pessoa que combinou em si mesma as duas coisas (substâncias) distintas, a divindade e a humanidade, com suas características (naturezas) completas e intactas embora unidas nele.”62

Isso foi escrito a respeito de Nestório no começo do século XX. Mais recentemente, tem sido dito que “Nestório manteve a sua ortodoxia, declarando que as Escrituras mostram Cristo como tendo sido verdadeiramente divino e, como tal, não envolvido no sofrimento humano e em mudança. As mesmas Escrituras apresentam Cristo como tendo vivido uma verdadeira vida humana de crescimento, tentações e sofrimento. A única maneira de entender a relação desses dois elementos distintos, o da plena divindade e o da plena humanidade, é reconhecer a presença separada deles na ‘prosopon comum’ da união.”63

Em seus Fragmentos, Nestório declara que “Cristo é indivisível naquilo em que ele é Cristo, mas ele é duplo naquilo em que ele é ambos, Deus e homem; ele é um em sua Filiação, mas ele é duplo naquilo em que toma e naquilo em que é tomado. Na prosopon do Filho ele é um indivíduo, mas, como no caso de dois olhos, ele é separado nas naturezas da humanidade e divindade.”64

Não obstante a sua tentativa de defesa, historicamente a sua Cristologia tem sido considerada heresia. A teologia de Nestório foi rejeitada no Concílio de Éfeso, em 431 A.D., e até hoje, a despeito de alguns seus defensores, continua sobre ele o peso de ter gerado uma heresia cristológica.

B. MONOFISISMO (OU EUTIQUIANISMO) Num sentido bem básico, o monofisismo é a crença doutrinária de que Jesus Cristo possuía uma só natureza. O próprio nome aponta para essa conclusão: mono= um, e physis= natureza. Os defensores do monofisismo são a contraparte do duofisismo esposado por Calcedônia.

R. Macintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribner´s Sons, 1912), 204 (nota de rodapé 1). 62. Ibid. 63. New Dictionary of Theology, organizado por Sinclair Ferguson e David Wright (Inglaterra: Inter Varsity Press, 1989), p. 457. 64. Frase de Nestorius em seus Fragmentos, 297, como citado em Ferguson, New Dictionary of Theology, p. 457.

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1. O MONOFISISMO DE ÊUTICO Êutico (378-454) é o personagem mais conhecido relacionado ao monofisismo. Ele era um superior de mosteiro em Constantinopla, por volta da metade do século 5º. A resposta às perguntas acima apontaria para uma espécie de monofisismo onde a humanidade de Cristo seria absorvida por sua divindade. O próprio Êutico havia lutado contra o nestorianismo, mas acabou se opondo à posição dos bispos da ortodoxia com quem havia ladeado na luta contra o pensamento de Nestório.65

a. A reação de Êutico a Nestório O Concílio de Éfeso tinha afirmado que “o Verbo, de um modo indizível e inconcebível, uniu a si mesmo a carne hipostaticamente animada por uma alma racional, e assim tornou-se homem”.66 Essa afirmação de Éfeso não responde a algumas perguntas que foram feitas posteriormente: “Como o relacionamento ente o divino e o humano deveria ser entendido? Como se pode falar de Deus como sendo encarnado em Jesus, e ainda se falar que Jesus tem uma humanidade plena?”. Alguns tentaram responder perguntas como essas. Entre eles estava Êutico. O pensamento de Êutico, assim como o de Nestório, tem a ver com os problemas da união das duas naturezas na pessoa de Cristo, que ainda estavam longe de serem resolvidos. “Se a tendência da escola de Antioquia era a de enfatizar excessivamente a humanidade Cristo, e, assim, a distinção entre as naturezas (o caso de Nestório), a tendência da escola de Alexandria era a de enfatizar excessivamente a divindade dele; e não meramente uma ênfase excessiva nela, mas a insistência em seu papel dominante e determinante dentro da pessoa.”67

Foi nessa última escola que Êutico desenvolveu o seu pensamento. As tendências monofisitas (uma natureza) nasceram dentro da escola do pensamento de Alexandria, na metade do século 5º.68 Êutico, que representava o pensamento da escola de Alexandria, foi um forte opositor da teologia de Nestório. Na verdade, seu ensino foi o oposto do nestorianismo. Êutico sustentava que havia a unidade da auto-consciência na Pessoa de Cristo, mas havia a perda da dualidade das naturezas. Sustentava ainda que, como um resultado da encarnação, houve uma fusão do divino com o humano em Jesus 65. Concílio de Calcedônia, Definitio fidei, Norman P. Tanner, ed., Decrees of the Ecumenical Councils, (Washington D.C., 1990), 86. 66. Cirilo de Alexandria, Cyrilli epistula altera ad Nestorium (como aceito pelo Concílio de Éfeso), ver em Norman P. Tanner, ed., Decrees of the Ecumenical Councils (Washington D.C., 1990), 41. 67. Macleod, The Person of Jesus Christ, 183. 68. Ibid.

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Cristo. Diante da pergunta de se ele confessava duas naturezas no Cristo encarnado, Êutico declarou “nosso Senhor surgiu de duas naturezas antes da união, mas eu confesso uma natureza após a união”.69 Portanto, o “consenso entre os eruditos parece ser o de que ele cria que, na encarnação, a divindade de Cristo absorveu completamente a humanidade”.70 Assim, diferentemente de Nestório, Êutico ensinava que, em Cristo, havia uma pessoa e uma natureza, porque a natureza humana havia sido absorvida pela divina. Por essa razão, os seguidores de Êutico sustentavam ser acurada a expressão “Deus sofreu” – significando que Jesus Cristo sofreu na sua natureza divina. Sua Cristologia ficou sendo conhecida também como monofisismo.71 Todavia, não deve se pensar que Êutico cria em Cristo como possuindo apenas a natureza divina que absorveu a natureza humana, mas numa espécie de mistura de duas naturezas, que acabava se constituindo numa tertium quid, ou terceira coisa ou elemento, não sendo perfeitamente Deus nem perfeitamente homem. Êutico também sustentava que Maria era theotokos, a mãe de Deus, mas com um sentido diferente do ensino de Calcedônia.

b. A Condenação de Êutico As sementes do monofisismo, na verdade, já estavam presentes no ensino de Cirilo, ao tentar combater a heresia de Nestório. Em sua obra That Christ is One, Cirilo afirma que “há uma natureza (mia physis) de Deus, a Palavra encarnada, mas adorada com sua carne”.72 Segundo a opinião de Harnack, a teoria de Cirilo é pura, mas foi um monofisismo sem intenção.73 De fato, Êutico havia apoiado Cirilo contra Nestório no Sínodo de Éfeso, em 431, o que pareceu indicar que Cirilo ensinava uma espécie de monofisismo. Mas Êutico foi acusado de confundir as duas naturezas, e foi deposto por Flaviano, bispo de Constantinopla, no Sínodo de Constantinopla, em 448. Então, Êutico apelou para Leão, o bispo de Roma, reclamando que Flaviano não o havia tratado com justeza. Simultaneamente, Flaviano também escreveu a Leão, contando o seu lado da história. Certamente Leão deu ganho de causa a Flaviano e condenou Êutico por ter falhado em não entender o mistério da fé. Para Leão, “em Cristo Jesus, nem a Humanidade sem a verdadeira Divindade, nem a Divindade sem a verdadeira Humanidade, deve ser crida como existindo”.74 Após Calcedônia, os seguidores de Êutico foram chamados monofisitas, e “foram mais consistentes em seu monofisismo, afirmando que a união das duas natu69. Citado em Ferguson, New Dictionary of Theology, p. 443. 70. Macleod, The Person of Jesus Christ, 184. 71. Palavra formada por duas palavras gregas mono (um) + physis (natureza). 72. Citado no New Dictionary of Theology, p. 442. 73. Citado no New Dictionary of Theology, p. 443. Ver Adolf Harnack, Outlines of the History of Dogma, (Boston: Beacon Press, 1957), p. 292, 293. 74. Citação de Macleod, The Person of Jesus Christ, 184.

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rezas resultou num composto que não era nem humano nem divino, mas que formou uma espécie de tertium quid”.75 Após Calcedônia, o monofisismo separou-se em duas principais correntes: Severianos e Julianistas.76

2. O MONOFISISMO DOS SEVERIANOS Os mais moderados dentre os monofisitas eram os Severianos, seguidores de Severus (460-538), o Patriarca de Antioquia. Eles estavam próximos do pensamento de Cirilo, considerando que as duas naturezas eram uma mera abstração ideal. Eles asseveravam fortemente a humanidade da natureza resultante que eles declararam ser capaz de corrupção em si mesma, como a nossa. Esse tipo de monofisismo é, às vezes, chamado por seus oponentes de phtartolatrai, adoradores do corruptível. Numa petição que fizeram ao imperador, em 532, os monofisitas severianos afirmaram que eles “reconhecem uma Trindade santa que é adorável e é de uma natureza, poder, e honra, que é tornada conhecida em três pessoas; porque nós adoramos o Pai e seu único Filho, Deus de Deus, que foi gerado dele eternamente antes de todos os tempos”.77 Eles também podiam afirmar que Maria era a “mãe de Deus”, e que “enquanto, na Divindade, [Cristo] era da natureza do Pai, ele também era de nossa natureza, na humanidade.”78 Todavia, não se deve pensar que eles criam em duas naturezas distintas na mesma pessoa. Para Severus, bispo de Antioquia, a distinção entre o humano e o divino em Cristo está baseada no seu entendimento da hipóstase “auto-subsistente” e na hipóstase “não auto-subsistente”. “Enquanto o termo hipóstase era usado amplamente e de diversas maneiras por muitos cristãos, quando Severus fala da ‘união natural’ ou da ‘uma natureza de Deus, o Verbo encarnado’, ele sempre quer dizer ‘natureza’ no sentido de indivíduo. A hipóstase não-auto-subsistente é aquela que não pode existir por si mesma. Se alguém aceita a idéia de um ser individual composto de corpo e alma, então o corpo, porque ele não pode existir independentemente da alma, é dependente da alma para sua existência, e é, portanto, não-auto-subsistente. A alma, entretanto, é auto-subsistente, e isso implica em que ela simplesmente usa o corpo para experimentar o mundo ao redor de si, mas continua a existir após a morte do corpo. Nesse sentido, Cristo é com75. Ibid. 76. Veja New Dictionary of Theology, p. 443. 77. Petition of the Monophysites to Justinian. Texto completo em W. H. C. Frend, The Rise of the Monophysite Movement: Chapters in the History of the Church in the Fifth and Sixth Centuries (Cambridge, 1972), xii, 362-5 (ver essa informação no artigo sobre o monofisimo no site http://www.geocities.com/ Athens/Olympus/2961/mono2.htm, acessado em junho de 2004. 78. Ibid.

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posto de um Verbo auto-subsistente e de uma humanidade não-autosubsistente”.79

A hipóstase auto-subsistente difere da não-auto-subsistente no sentido em que a primeira possui um nome. Visto que a humanidade de Cristo é não-subsistente, Severus não dá nenhum nome a ela, e, portanto, não fala de “o Homem” ou “Jesus”. Ao mesmo tempo em que não se fala da ação da alma de alguém separada do corpo, também não se fala da ação do Verbo separado de sua humanidade. Trabalhando com o mesmo raciocínio, Severo não faz distinção entre as ações do divino e do humano em Cristo: “[1] Em Cristo, não falamos de duas operações: não dizemos que ‘o homem chorou’ ou que ‘Deus ressuscitou Lázaro dentre os mortos’, mas que ‘o Verbo encarnado fez isso’.”80 Dessa forma, a monofisismo de Severus é relativamente diferente do monofisismo de Êutico. Ele se aproxima apenas um pouco daquilo que conhecemos nos círculos reformados como comunicação de atributos, mas ainda está longe de identificar-se com essa doutrina.

3. O MONOFISISMO DOS JULIANISTAS Julianus, bispo de Halicarnassus, na província de Caria, foi líder dos monofisitas. Em 511 ele se tornou ativo, juntamente com Severus e outros, instigando o imperador Anastácio a depor Macedônio, patriarca de Constantinopla. Com a ascensão de Justino I, em 518, foram tomadas medidas severas contra os monofisitas, e Julianus foi afastado de sua diocese, sendo deposto nesse mesmo ano. Foi para Alexandria, no que foi seguido por Severus, quando de sua expulsão de Antioquia. De algum modo, Juliano recuperou sua diocese de Halicarnassus, mas, no Concílio de Constantinopla, em 536, sob Agapetus, bispo de Roma, ele foi novamente deposto. Após sua deposição ele desapareceu, mas suas opiniões continuaram a se espalhar subseqüentemente, especialmente no oriente.81

a. O monofisismo dos Julianistas x Severianos Os Julianistas, seguidores de Juliano, bispo de Halicarnassus, ficaram mais próximos de Êutico. Para eles, o corpo humano de Cristo foi tão modificado pela união com o divino que se tornou incorruptível, pensando diferentemente de Severus, que ensinava que o seu corpo se tornou corruptível. Segundo os julianistas, Cristo sofreu por um ato de sua própria vontade, e não porque ele possuía uma 79. Ver o artigo sobre Monophysitism (parte 2) no site http://www.geocities.com/Athens/Olympus/2961/ mono2.htm, acessado em junho de 2004. 80. Roberta C. Chesnut, Three Monophysite Christologies: Severus of Antioch, Philoxenus of Mabbug and Jacob of Sarug (Londres: 1976), 11-12. 81. Informações tomadas do artigo que trata dos Julianistas, no site http://www.ccel.org/w/wace/biodict/htm/iii.x.xxxi.htm, acessado em junho de 2004. Esse site reproduz informações da Christian Classics Ethereal Library do Calvin College.

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natureza humana corruptível, como ensinavam os severianos Nessa controvérsia violenta, os julianistas acusavam os severianos de Phthartolatrae ou Corrupticolae, enquanto que os severianos acusavam os julianistas como sendo Phantasiastae (porque declaravam que o corpo de Cristo era um mero fantasma) e aphtartodoketai (ensinadores do incorruptível, conhecidos também pelo termo latino incorrupticolae). Essa foi a designação pela qual os julianistas foram mais geralmente conhecidos. Leôncio de Bizâncio nos diz que Julianus sinceramente pugnava pela “incorruptibilidade”, porque ele considerava a idéia de Severus como fazendo uma distinção entre o corpo de nosso Senhor e o Verbo de Deus, permitindo a idéia de duas naturezas nele.82 O ensino sobre a incorruptibilidade do corpo do Senhor não era uma unanimidade entre os julianistas. Um grupo ensinava que “o corpo de nosso Senhor era absolutamente incorruptível desde a própria unio”. Um segundo grupo ensinava que o corpo “não era absolutamente incorruptível, mas potencialmente o reverso, todavia poderia não se tornar corrupto porque o Verbo o impedia”. Um terceiro grupo dizia que o corpo “não era somente incorruptível desde a real unio, mas também incriado”.83

b. Corolários do Julianismo Depois da deposição final dos líderes dos vários movimentos dentro do Monofisismo, ainda permaneceram controvérsias dentro dos segmentos orientais e ocidentais da Igreja. Quatro escolásticos de Alexandria visitaram Éfeso, c. 549, e prevaleceram sobre o bispo Procópio para que ele confessasse ser um julianista. Em 560, imediatamente após o seu falecimento, é dito que sete de seus presbíteros, que também eram julianistas, colocaram as mãos do seu cadáver sobre a cabeça de um monge chamado Eutropius, e então recitaram a oração de consagração sobre ele. Ainda é dito que o corpo de Julianus foi tratado da mesma forma por seus seguidores pessoais. Logo a seguir, Eutropius ordenou dez julianistas como bispos, e os enviou como missionários para o Ocidente e para o Oriente, e, entre outros lugares, para Constantinopla, Antioquia, Alexandria, Síria, Pérsia e Mesopotâmia. Por volta de 565, o imperador Justiniano tinha se tornado um incorruptibilista, ou seja, um julianista. Ele emitiu um edito admitindo sua mudança de opinião e deu a ordem de que “todos os bispos de toda parte” deviam aceitar o julianismo. Obviamente que sua atitude encontrou grande oposição, especialmente, entre outros, de Anastásio (559-569), Patriarca de Antioquia.84 82. Informações tomadas do artigo que trata dos Julianistas, no site http://www.ccel.org/w/wace/biodict/htm/iii.x.xxxi.htm, acessado em junho de 2004. Esse site reproduz informações da Christian Classics Ethereal Library do Calvin College. 83. Ibid. 84. Ibid., parte 2.

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Não obstante a condenação oficial no Sínodo Ecumênico de Constantinopla, em 553, o monofisismo continuou sendo a posição oficial de alguns segmentos da Igreja cristã, até hoje. A Cristologia da Igreja Copta da Síria e de algumas Igrejas da Etiópia é ainda monofisista.

C. MONOTELISMO O período de 451 a 787 tem sido um período negligenciado por historiadores modernos, mas ele é muito importante, porque ajuda a entender o significado da Declaração de Calcedônia, que tratou de Cristo como possuindo duas vontades (duotelismo). Essa posição provavelmente se deve ao fato de alguns teólogos ortodoxos terem crido que a vontade era um atributo de uma natureza. Como Jesus Cristo tinha duas naturezas, ele tinha duas vontades: ele tinha volições segundo a vontade divina e tinha volições segundo a sua vontade humana. A faculdade das volições é parte fundamental da natureza humana. Portanto, podemos afirmar, com toda convicção, que Jesus Cristo tinha uma vontade humana. Todavia, essa vontade veio a existir no tempo porque a natureza humana é temporal. Por outro lado, a vontade divina do Redentor é eterna, porque ela é propriedade da Segunda Pessoa da Trindade que se encarnou. Todavia, a vontade divina do Redentor é numericamente uma com a do Pai e a do Espírito, porque a vontade é atributo da natureza, e as três pessoas possuem a mesma natureza. Logo, as três Pessoas da Trindade têm a mesma vontade divina. Portanto, é necessário que nós reconheçamos no Redentor duas vontades, porque cada uma delas está ligada a uma das naturezas.

1. UM MOVIMENTO PARALELO AO MONOFISISMO Todavia, num movimento conectado com o monofisismo, apareceu o monotelismo, que ensinava que Jesus Cristo possuía apenas uma vontade. Provavelmente, os monofisitas eram influenciados pela noção de que a vontade era um atributo da Pessoa, e não da natureza. Logo, Jesus Cristo tinha apenas uma vontade, porque ele era uma só pessoa com uma só natureza (que, segundo o monofisismo, não era perfeitamente divina nem perfeitamente humana – uma espécie de tertium quid). Os monofisitas lutaram contra o perigo de haver duas pessoas (ensinado pelo nestorianismo). Eles tentaram preservar a unipersonalidade do Redentor. Eles estavam totalmente certos em dizer que todas as ações, humanas e divinas, do Filho encarnado devem ser atribuídas a um agente, que é o Deus-homem. É assim que os cristãos, em geral, entendem o aspecto da comunicação de atributos. As ações são da pessoa divino-humana, mas não de uma energeia (operação), que aponta para uma única vontade. Essa posição, chamada monotelita, era defendida pelo imperador bizantino

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Heráclito (610-41). Na tentativa de reconciliar os adeptos de Calcedônia com os monofisitas, Heráclito emitiu um decreto, em 630, dizendo que, conquanto Cristo tivesse duas naturezas, em Jesus havia somente uma vontade. A controvérsia monotelita durou de 633 a 680. O imperador Heráclito havia proposto uma fórmula com transigência de apenas uma energia divina-humana (mia theandrike energeia), mas recebeu a oposição do Sexto Concílio Ecumênico, onde a heresia monotelita foi condenada. O mesmo concílio condenou o papa Honório I (625-638) como um herege monotelita, e seus sucessores confirmaram sua decisão. O monotelismo continuou entre os maronitas, no Monte Líbano.85

2. OS ACRÉSCIMOS DE CONSTANTINOPLA À DECLARAÇÃO DE CALCEDÔNIA Nesse Concílio de Constantinopla (680), foi reafirmada e aumentada a Declaração de Calcedônia, enfatizando as duas vontades (qelh/mata) distintas e inseparáveis de Cristo, assim como duas naturezas, estando a vontade humana e a vontade divina operando harmoniosamente, sendo a vontade humana submissa à vontade divina.86 O acréscimo que o Sexto Concílio de Constantinopla fez ao de Calcedônia teve a seguinte redação: E nós, igualmente, pregamos duas vontades naturais [du/o fisika\j qelh/seij = naturales voluntates]nele [Jesus Cristo], e duas operações naturais [du/o fisika\j e)nergei/aj = duas naturales operationes] indivisíveis, inconvertíveis, inseparáveis, sem mistura, de acordo com a doutrina dos santos Pais; e as duas vontades naturais não [são] contrárias [longe disso], como os heréticos ímpios asseveram, mas sua vontade humana segue a vontade divina, e não é resistente ou relutante, mas antes sujeita à sua vontade divina e onipotente. Porque era próprio que a vontade da carne devesse ser movida, mas que fosse sujeita à vontade divina, de acordo com o mui sábio Atanásio.87

a. Duas vontades naturais no Redentor Essa expressão, duas vontades naturais [du/o fisika\j qelh/seij = naturales voluntates], que aparece no acréscimo feito por Constantinopla, em 680, deve ser devidamente entendida. Se a palavra vontade não significa a faculdade em si, mas a decisão tomada pela vontade (a vontade desejada, não a vontade que deseja), então é verdadeiro

85. Ver Philip Schaff, Creeds of Christendom, vol. II (Grand Rapids: Baker, 6ª. ed., 1990), 73. 86. Ibid., 72-73. 87. Schaff, Creeds of Christendom, II, 72.

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que as duas vontades sempre agem harmoniosamente: há duas vontades que desejam, e há dois atos, que são o resultado da decisão tomada.88 Todavia, os monotelitas ensinam que há somente uma faculdade que deseja e um resultado de uma decisão tomada,89 porque há somente um elemento pessoal com uma natureza desejando e causando o surgimento de um ato. Os duotelitas [da ortodoxia cristã] ensinam que há duo thelemata (duas vontades), embora haja uma só pessoa. A palavra vontade (thelema) é também usada para significar não uma decisão da vontade, mas uma mera veleidade ou desejo, voluntas ut natura (thelesis) em oposição a voluntas ut ratio (boulesis). Essa vontade conforme a natureza e vontade conforme a razão são dois movimentos da mesma faculdade chamada vontade. Ambos os movimentos existem na Pessoa de Jesus Cristo, segundo a natureza divina e segundo a natureza humana, ambos sendo movimentos perfeitos, e o movimento da vontade humana de Jesus Cristo é sem a imperfeição induzida pelo pecado original ou pelo pecado atual. Além disso, a palavra vontade também tem a conotação de apetite. O apetite é parte integral da natureza humana, e, portanto, existe na perfeita natureza humana de Jesus Cristo. Todavia, os monotelitas viram corretamente a vontade divina como o princípio governante supremo. Afinal de contas, como também crêem os da ortodoxia histórica, o controle da personalidade do Redentor é dependente de sua natureza divina, portanto, com vontade divina. A vontade humana de Cristo sempre esteve submissa à vontade divina, o que, para os monotelitas, parece inútil, porque para eles, então, não há uma vontade livre de Cristo, mas sim uma vontade agindo apenas como instrumento da divindade, sendo irracional – uma máquina, da qual a Divindade é o poder motivador.90 Portanto, a doutrina das duas vontades passou a ser a doutrina da ortodoxia cristã. Se abrirmos mão dela, teremos que abrir mão da doutrina das duas naturezas. Nesse caso, o Cristianismo haveria de criar um Redentor que não é divino nem humano – mas um ser que é produto da mistura das duas naturezas, possuindo, portanto, uma só vontade.

b. Duas operações naturais no Redentor A expressão de Constantinopla sobre as duas operações naturais (du/o fisika\j e)nergei/aj = duas naturales operationes) também precisa ser devidamente distinguida. 88. Veja o artigo “Monothelitism and Monothelites”, na Enciclopédia Traditional Catholic. Net, no artigo que trata sobre as Duas Vontades e as Duas operações, uma espécie de comentário das decisões de Constantinopla em 680. http://www.traditionalcatholic.net/Tradition/Encyclopedia/Monothelitism.html, acessado em abril de 2004. 89. Em geral, os monotelitas confundiam a vontade com a decisão da faculdade. Eles argumentavam que duas vontades devem significar vontades contrárias, o que mostra que eles não podiam conceber as duas vontades distintas como tendo o mesmo objeto (ver artigo de Internet da nota anterior). 90. Ibid.

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A palavra grega energéias (energia, atividade, operação) aparece conjuntamente com vontade. Em Cristo temos duas energéias (operações), por causa de suas duas naturezas. Essa palavra não deve ser entendida na definição de Constantinopla como sinônima de potentia, dynamis (que é o sentido aristotélico); nem ela deve também ser entendida simplesmente como ação, mas como a faculdade da ação, incluindo o ato dessa faculdade. As ações de Deus são inumeráveis na criação e na providência, mas sua energeia é uma, porque ele tem uma natureza, que é comum às três Pessoas. Todavia, as ações do Filho encarnado procedem de duas energeiai, porque ele tem duas naturezas. Todas as ações são de uma Pessoa, mas essa pessoa do Redentor age sempre de acordo com cada uma de suas duas naturezas. “Os monofisitas estão muitos certos em dizer que todas as ações, humana e divina, do Filho encarnado devem ser atribuídas a um único agente (a Pessoa), que é o Deus-homem, mas [os monofisitas] estão errados em inferir que, conseqüentemente, suas ações, tanto humanas como divinas, devem ser chamadas ‘theandric’ ou ‘divino-humanas’, e devem proceder de uma única energeia divino-humana.”91

As duas operações (energeiai) no Redentor o levam a praticar ações que poderiam ser vistas de modo distinto. Três personagens da história eclesiástica, Sofrônio,92 Máximo93 e João Damasceno,94 mostraram que as duas energeiai (operações) produzem três classes de ações, visto que as ações são complexas, e visto que algumas delas, portanto, mostram as duas operações misturadas, mas não confusas. 1. Ações divinas exercidas pelo Deus Filho em comum com o Pai e o Espírito Santo (e.g. manutenção do universo), nas quais a natureza humana não toma parte alguma, e essas ações não podem ser chamadas de divino-humanas, porque elas são puramente divinas. É verdade que é correto dizer que uma Criança [Jesus Cristo, que era o rei nascido em Belém da Judéia,] governava o universo, se eu olho esse assunto através da doutrina da communicatio idiomatum, onde a ação de uma das naturezas é atribuída à Pessoa completa, mas não posso, em sã consciência, entender que as obras acima sejam próprias de uma natureza humana. Ao contrário, Jesus Cristo governa o universo, mas por causa da sua divindade, não 91. Veja o artigo sobre “Monothelitism and Monothelites” na Enciclopédia Traditional Catholic. Net, no artigo que trata sobre as Duas Vontades e as Duas operações, uma espécie de comentário das decisões de Constantinopla em 680. 92. Sofrônio (560-638), Patriarca de Jerusalém, nascido em Damasco, que algumas vezes é identificado com Sofrônio, o Sofista (ver mais detalhes no The New International Dictionary of the Christian Church (Zondervan, 1978), 916. 93. Máximo, o Confessor (580-662), teólogo e escritor bizantino. Foi secretário do Imperador Heráclito I. Renunciou a essa função e foi para o monastério em 615. Lutou contra os monotelitas (ver detalhes sobre ele no The New International Dictionary of the Christian Church, 644-45). 94. João Damasceno (675-749), teólogo grego e último dos grandes Pais do oriente (ver detalhes no The New International Dictionary of the Christian Church, 542).

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por ser divino-humano. Contudo, eu tenho de entender que, por causa da unio personalis (que é inseparável, indivisível, imutável, etc.), a natureza humana de Cristo, hoje, participa, de algum modo, da tarefa de sustentação deste mundo “pela palavra do seu poder”, ainda que o governo dessa natureza humana não seja in loco em virtude da finitude e da temporalidade dela. 2. Ações divinas que o Verbo encarnado realizou através de sua natureza humana, como, por exemplo, ressuscitar mortos pelo poder de sua palavra e curar doentes por meio de um toque. Deus é quem tem poder sobre as enfermidades e sobre a vida dos homens. Não há dúvida a respeito desta matéria, pois freqüentemente a divindade agiu através da humanidade, usando a voz que veio das cordas vocais do homem de Nazaré e do toque de suas mãos. Essas ações não aconteciam por uma opreração direta da mão de Deus ou a fala de Deus (como a que aconteceu no batismo e na transfiguração), mas por causa da unio personalis dessa pessoa teantrópica (divino-humana). 3. Existem ações que são puramente humanas do Redentor, como andar, comer, beber, obedecer, etc., onde é dito que o Redentor (a pessoa completa) sente essas necessidades. Essas ações são produzidas pela natureza humana, vindas das capacidades humanas, mas sob a direção de sua natureza divina, que é a base da personalidade do Redentor, porque existe desde sempre. Nesse sentido, elas são ações divino-humanas, mas as ações feitas são próprias da natureza humana. Todavia, essas ações são atribuídas à pessoa completa do Redentor. O Concílio de Constantinopla (680), portanto, assumiu duas vontades naturais e duas operações naturais em Jesus Cristo. A negação das duas operações, mesmo mais do que a negação de duas vontades, faz da natureza humana de Cristo um mero instrumento da vontade Divina. Mas a natureza humana é mais do que instrumento divino. A vontade humana (pois essa faculdade é produto da natureza, e não da pessoalidade) é parte essencial da natureza humana, que, por sua vez, é parte essencial da Pessoa completa do Redentor. Se ele não tivesse essa vontade humana, ele não poderia ser Salvador, e, além disso, ele não poderia expressar-se volitivamente como um homem. Portanto, não seria perfeitamente homem. Portanto, a idéia da ortodoxia, que prevaleceu, certamente colocava a vontade como uma propriedade da natureza, e não da pessoa. Logo, se ele possuía duas naturezas, ele também possuía duas vontades. Essa ficou sendo a posição histórica da Igreja.

ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS EM CALCEDÔNIA O Concílio de Calcedônia, reunido em 451, estabeleceu alguns posicionamentos que ficaram sendo o pensamento cristológico oficial da Igreja até os dias de hoje, seja entre protestantes ou católicos, incluindo a Igreja do Oriente, e nós os chamamos aqui de acertos.

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A. DEFINIÇÃO DE CALCEDÔNIA “Nós, então, seguindo os santos Pais, todos com um consentimento, ensinamos os homens a confessarem um e o mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, o mesmo perfeito com respeito à divindade, e perfeito com respeito à humanidade; que ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, consistindo de uma alma racional e um corpo; que ele é consubstancial (o(moou/sion) com o Pai no que respeita à sua divindade, e consubstancial (o(moou/sion) conosco no que respeita à sua humanidade, e igual a nós em todos os aspectos, exceto no pecado. Ele foi gerado do Pai antes das eras (pro\ aiw/niwn), quanto à sua divindade; mas, nestes últimos dias, ele foi nascido de Maria, a mãe de Deus (qeoto/koj), quanto à sua humanidade. Ele é um Cristo, existindo em duas naturezas sem mistura (a)sugxu/twj), sem mudança (a)tere/ptwj), sem divisão (a)diaire/twj), sem separação (a)xwri/stwj) – a diversidade das duas naturezas não sendo de forma alguma destruída por sua união na pessoa, mas as propriedades (i)dio/thj) peculiares de cada natureza sendo preservadas, e concorrendo a uma pessoa (pro/swpon), e uma subsistência (u(po/stasin), não partida ou dividida em duas pessoas, mas um e o mesmo Filho, o unigênito, Deus a Palavra, o Senhor Jesus Cristo; como os profetas desde o começo têm declarado a respeito dele, e o próprio Senhor Jesus Cristo tem nos ensinado, e o Credo dos santos Pais nos tem transmitido.”95

Nessa parte do capítulo, analisaremos algumas sentenças da Fórmula de Calcedônia que apontam para a humanidade e a divindade de Cristo, para ver os acertos sobre a unio personalis ali definidos.

1. CALCEDÔNIA RATIFICOU O CREDO NICENO As primeiras frases de Calcedônia mostram a harmonia desses dois concílios com respeito às naturezas divina e humana de Cristo. “Nós, então, seguindo os santos Pais, todos com um consentimento, ensinamos os homens a confessarem um e o mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, o mesmo perfeito com respeito à divindade, e perfeito com respeito à humanidade; que ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, consistindo de uma alma racional e o um corpo”.

Essas primeiras palavras do Credo de Calcedônia diziam respeito aos concílios anteriores, Nicéia e Constantinopla, que geraram o que conhecemos como Credo Niceno. A expressão inicial da fórmula, “nós, então, seguindo os santos Pais”, aponta para os Concílios de Nicéia e de Constantinopla, que haviam formulado anteriormente os credos que agora são ratificados formalmente. Essas palavras 95. Parcialmente, esse Credo está registrado em W.G.T. Shedd, A History of Christian Doctrine, vol. 1 (Minneapolis: Klock & Klock Christian Publishers) p. 399, 400.

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indicam que eles estavam teologicamente em consonância com os Pais da igreja de décadas passadas. No Credo de Calcedônia, a expressão que diz que Cristo é “perfeito com respeito à divindade” é equivalente à expressão Nicena “verdadeiro Deus de verdadeiro Deus”, e a expressão “perfeito com respeito à humanidade” é equivalente a “foi feito carne do Espírito Santo e da Virgem Maria, e tornou-se homem”, também do Credo Niceno. Tanto a divindade como a humanidade, afirmadas pelos “santos Pais” em Nicéia e em Constantinopla, foram ratificadas em Calcedônia. Portanto, o Credo de Calcedônia “solenemente reafirmou o Credo Niceno como padrão de ortodoxia”.96

2. CALCEDÔNIA ENDOSSOU AS CARTAS SINÓDICAS Kelly disse que o Concílio de Calcedônia “canonizou as duas Cartas de Cirilo e o Tomo de Leão I, as primeiras como se desfazendo do Nestorianismo e como uma interpretação sadia do credo, e a última como destruindo o Eutiquianismo e confirmando a verdadeira fé”.97 Vejamos algumas coisas dessas cartas sinódicas:

a. Cartas de Cirilo de Alexandria Cirilo de Alexandria possui uma larga correspondência de grande importância para o desenvolvimento e o estabelecimento da Cristologia que se tornou mais conhecida e aprovada em Calcedônia. São muitas as suas cartas, mas temos fragmentos de apenas algumas.98

(1) Epístola Dogmática de Cirilo de Alexandria a Nestório Essa carta foi aprovada solenemente na primeira reunião do Concílio de Éfeso (431), pelo voto de todos os bispos presentes, como estando de pleno acordo com o Credo Niceno e como a verdadeira expressão da fé católica. O Concílios de Calcedônia (451) e de Constantinopla (553) também a aprovaram pela mesma razão.99

(2) Segunda Carta de Cirilo de Alexandria a Nestório Nessa carta, onde parece que Cirilo estava adquirindo uma Cristologia mais madura,100 ele ensina com certa clareza “sobre a união hipostática entre o Logos e 96. J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines (Nova York: Harper & Row, Publishers, 1978), 339. 97. Ibid., 339. 98. Veja informações e bibliografia sobre as Cartas de Cirilo em Johannes Quasten, Patrology, vol. III (Maryland: Christian Classics, Inc., 1992), 132-35. 99. Quasten, Patrology, vol. III, 133. 100. Houve um grande desenvolvimento da Cristologia no pensamento de Cirilo desde os tempos em que

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a carne que foi unida a si mesmo. Ele afirma de maneira muito clara: “Se rejeitamos esta união hipostática como impossível ou insatisfatória, caímos no erro de fazer dois filhos”.101 Obviamente, essa observação é contra o suposto pensamento de Nestório de haver duas pessoas no Redentor. Ainda combatendo a possibilidade do ensino de duas pessoas num só Redentor, nessa segunda carta, Cirilo diz: “Porque Ele não foi primeiro nascido como um homem comum da virgem Maria, e, então, o Verbo desceu sobre ele, mas, tendo sido feito um com a carne desde o próprio ventre, é dito dele ter se submetido a um nascimento de acordo com a carne, como se apropriando e fazendo seu o nascimento de sua própria carne.”102

(3) Terceira carta de Cirilo de Alexandria a Nestório “Essa carta foi enviada por Cirilo em nome do Sínodo de Alexandria, no final de 430. Ela criou grandes dificuldades por causa dos doze anátemas legados a ela e da terminologia peculiar usada pelo autor. Embora ela tenha sido acrescida às Atas do Concílio de Éfeso, ela não recebeu ratificação formal pelo voto. Não obstante, mais tarde, prevaleceu a opinião de que essa carta e os anátemas tinham sido adotados pelos Concílios de Éfeso e de Calcedônia”.103

(4) Carta de Cirilo de Alexandria a João de Antioquia Essa carta, escrita na primavera de 433, é chamada a terceira das cartas ecumênicas. Ela veio a ser conhecida como Symbolum Ephesinum, onde ele se congratula pela paz havida entre ele próprio e os bispos de Antioquia. O Concílio de Calcedônia, em 451 recomendou essa carta sem restrição.104

b. Tomo de Leão I, bispo de Roma Após ser condenado por Flaviano, no Sínodo de Constantinopla, em 448, Êutico apelou para Leão I, o bispo de Roma. Este também recebeu relatório de Flaviano sobre a controvérsia na qual Êutico estava envolvido. Leão I escreveu e enviou a Flaviano as suas opiniões numa carta conhecida como Tomo.105 Essa carta, nas mãos de Flaviano, serviu para influenciar enormemente a fórmula de Calcedônia. ele estava refutando as dificuldades provocadas pelo arianismo até a sua grande e maior controvérsia com Nestório, que o obrigou a preparar-se melhor (ver Quasten, Patrology, vol. III, 136-37). 101. Ibid., 138. 102. Ibid., vol. III, 137. 103. Ibid., vol. III, 134. 104. Ibid., vol. III, 134. 105. O Tomo de Leão I se encontra, na íntegra, registrado na série editada por Philip Schaff, Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, vol. XIV – “The Seven Ecumenical Councils” (Grand Rapids: Eerdmans Publishing Company, 1988), 254-258. Em 449, Leão I enviou algumas cartas que foram importantes para as decisões cristológicas do século 5o. Nessas cartas, Leão I fez uma análise profunda e

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A Epístola de Leão foi reconhecida como a norma da ortodoxia.106 Quando foi lida a carta dele, registra-se que gritos foram ouvidos na assembléia: “Nós todos cremos como Leão”.107 O alvo principal do Tomo de Leão I foi o ataque às posições de Êutico. Todavia, “a Cristologia que aparece no Tomo de Leão I não tem uma originalidade especial: ele reflete e codifica com precisão magistral as idéias de seus predecessores”.108 O Tomo de Leão I tinha basicamente os seguintes pontos importantes: 1. Ele afirmou a divindade e a humanidade de Cristo de maneira muito clara. Com respeito à divindade, ele disse: “Aquele que se tornou homem na forma de um servo é Aquele que, na forma de Deus, criou o homem”. Com respeito à humanidade, ele disse: “De forma que, assim como a forma de Deus não exclui a forma de um servo, a forma de um servo não diminui a forma de Deus”.109 2. Essas duas naturezas em Cristo são permanentemente distintas e coexistem nessa única Pessoa sem mistura ou confusão. Ao contrário, na união para formar uma Pessoa, cada uma retém as suas propriedades naturais inalteradas. 3. As duas naturezas são unidas numa só pessoa, sendo que cada uma desempenha a sua própria função na vida encarnada: “Cada forma cumpre em concerto com a outra o que é apropriado a ela, o Verbo apresentando o que pertence ao Verbo, e a carne desempenhando o que pertence à carne”. 4. Essas duas naturezas apresentam algo semelhante ao que ficou historicamente conhecido como communicatio idiomatum, de forma que podemos dizer, por exemplo, que o Filho de Deus foi crucificado e sepultado, e também que o Filho do Homem desceu do céu. 5. A obra da redenção requeria um Mediador com ambas as naturezas, a divina e a humana, impassível e passível, imortal e mortal. A encarnação foi um ato de condescendência da parte de Deus, mas nela o Logos não cessou de ser verdadeiramente Deus. A sua forma servi não prejudica a sua forma dei. 6. A humanidade de Cristo é permanente, e sua negação implica numa negação docética da realidade dos sofrimentos de Cristo.110 clara da doutrina ortodoxa das duas naturezas e de uma só pessoa em Cristo. Uma dessas cartas foi endereçada a Flaviano: “Essa Epístola Dogmática a Flaviano, que Leão transmitiu, com cartas ao imperador e à irmã do imperador, Pulcheria, e ao Sínodo dos Ladrões (Robber Synod), por seus legados, foi, posteriormente, aprovada formalmente no Concílio de Calcedônia, em 451, e investida quase que com autoridade simbólica”. (Philip Schaff, History of the Christian Church, vol. III [Grand Rapids: Eerdmans Publishing House, reimpressão 1995), 738, nota de rodapé 3. 106. H. R. Macintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribner´s Sons, 1912), 212. 107. H. R. Macintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ, 212. 108. Kelly, Early Christian Doctrines, 337. 109. Ibid., 337. 110. Esses pontos se encontram sumariados em Louis Berkhof. The History of Christian Doctrines (Londres: The Banner of Truth Trust, 1969), 106, 7, e em Kelly, Early Christian Doctrines, 337.

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O Concílio de Calcedônia acolheu o Tomo de Leão I, e tomou-o como um de seus documentos para formular a sua definição cristológica.

3. CALCEDÔNIA AFIRMOU A CONSUBSTANCIALIDADE DE CRISTO COM DEUS E COM O HOMEM “que ele é consubstancial (homoousios) com o Pai no que respeita à sua divindade, e consubstancial (homoousios) conosco no que respeita à sua humanidade, e igual a nós em todos os aspectos exceto no pecado”.

Esse ponto é muito importante, porque mostra que Jesus pode realmente ser o Mediador entre Deus e os homens porque ele é igual a ambos. Não é sem razão que Paulo, escrevendo a Timóteo, fala que há “um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem”. A consubstancialidade com as duas partes é que torna possível a sua obra redentora. O fato de Cristo ser homoousios com Deus e conosco em todas as coisas (exceto no pecado) retira toda dúvida de que ele é vere Deus e vere homo, sendo, portanto, capaz de ser o Redentor dos filhos de Deus.

4. CALCEDÔNIA AFIRMOU A UNIÃO HIPOSTÁTICA Os Pais que se reuniram em Calcedônia poderiam perfeitamente dizer que a fórmula que haveriam de produzir seria uma espécie de “via media entre uma Cristologia de divisão e uma de fusão, entre Nestório e Êutico”.111 Calcedônia não pendeu para o nestorianismo, que ensinava haver duas pessoas em Cristo, nem para a fusão monofisita de uma só natureza no Redentor. A solução viria a mostrar um Cristo verdadeiramente divino e verdadeiramente humano, mas o segredo estaria na doutrina da unio personalis, que foi a força da Cristologia de Calcedônia. A formulação de Calcedônia haveria de estabelecer a doutrina cristológica de maneira sólida e duradoura, vindo a nortear a Igreja por séculos adiante. O termo união hipostática teve a sua primeira aparição na Segunda Carta de Cirilo a Nestório. Esse termo também ocorre diversas vezes no Five Tomes Against the Blasphemies.112 Para Cirilo, “o termo união hipostática possuía um caráter extremamente polêmico, pois era uma refutação da noção (que ele atribuiu a Nestório) de que a encarnação consistia meramente no Logos externamente estabelecer uma pessoa humana comum.”113 Contudo, é certamente duvidoso que Cirilo tenha usado esse termo com a pre111. Aloys Grillmeier, Christ in Christian Tradition, vol. I (Louisville: Kentucky: Westminster John Knox Press, 1995), 3. 112. Donald Macleod, The Person of Christ, 188. 113. Ibid., 190.

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cisão que ele veio a possuir posteriormente. Além disso, no tempo de Cirilo, o termo hipóstase provavelmente não era preciso como hoje o entendemos, pois ele às vezes usava-o como sinônimo de physis, o que tornava a situação desconfortável para Nestório, de quem ele discordava. Por essa razão, Cirilo e seus seguidores são algumas vezes acusados de monofisismo, já que hypostasis e physis vieram a ter a mesma significação para eles.114 Seja como for, a idéia de união hipostática ficou estabelecida de vez na Cristologia em Calcedônia.115 “A união hipostática (ou união pessoal) é mantida na doutrina ortodoxa através do reconhecimento de que a persona não é a soma de duas naturezas, mas, antes, é a divina pessoa do Filho”.116 Se o Filho não tivesse se encarnado, ele seria uma pessoa da mesma maneira. Portanto, não é a união que personaliza o Filho, mas a união diz respeito a uma pessoa divina (do Filho) que se une a uma natureza humana (não-pessoalizada) adquirida de Maria, por operação secreta e misteriosa do Espírito Santo. A natureza humana de Jesus Cristo existe somente em união com o Logos e pela união com ele, não tendo existência própria à parte dele. Essa natureza humana não tem subsistência independente. A expressão clássica “união hipostática” possui em si mesma algumas verdades importantes: (a) que o Filho de Deus é uma pessoa; (b) que essa pessoa é préexistente na pessoa eterna do Filho; (c) que a união de suas duas naturezas, a divina e a humana, surge do fato de que elas pertencem a uma e a mesma pessoa, o Filho encarnado; (d) que essa uma e mesma pessoa, o Filho de Deus, é o Agente por detrás de todas as ações do Senhor, o Porta-voz de todas as suas elocuções e o sujeito de todas as suas experiências.117 Portanto, defendendo a fé ortodoxa, Calcedônia negou a “união natural” com as suas implicações monofisitas, afirmando a união pessoal, onde a hipóstase aparece junto com prosopon, para expressar a unidade da Pessoa, distinguindo-a de uma vez por todas de physis, que é reservada para as naturezas.118

5. CALCEDÔNIA AFIRMOU A COMUNHÃO DE ATRIBUTOS A doutrina da comunhão de atributos será estudada em separado devido à sua importância no desenvolvimento dessa doutrina na história da Igreja. Será dedicado um capítulo à parte para essa doutrina neste livro. Contudo, apenas para não deixar em branco essa doutrina nessa parte histórica, porque ela pode ser facilmente deduzida do símbolo de Calcedônia, podemos apenas dizer que a doutrina da comunicação de atributos ensina que as proprieda114. Ibid., 189. 115. Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms (Grand Rapids: Baker, 1985), 316. 116. Richard A. Muller, Dictionary, 316. 117. Donald Macleod, The Person of Christ, 189. 118. Kelly, Early Christian Creeds, 341.

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des de ambas as naturezas podem ser atribuídas a uma Pessoa. Deixe-me exemplificar: Quando é dito que Jesus chorou, vemos que isso é próprio da natureza humana, e quando é dito que Jesus é o mesmo ontem, hoje, e eternamente, vemos que isso é próprio da natureza divina. A doutrina da comunhão de atributos nos ensina que, em ambos os casos, as qualidades ou os atributos de cada uma das naturezas devem ser atribuídos à Pessoa completa, e não simplesmente à natureza a que eles pertencem. Não é correto responder como fazem alguns quando perguntados: “Quem sofreu na cruz? Quem falou isto? Ou Quem fez aquilo?”. Costumeiramente, alguns ministros da palavra gostam de separar as duas naturezas, e, para responderem às perguntas acima, dizem: “A natureza humana fez isto” ou “a natureza divina falou aquilo”. Não é correto fazer essa distinção, porque tudo o que pertence a uma natureza sempre deve ser atribuído à pessoa de Jesus Cristo. A resposta nossa a essas perguntas sempre deve ser: “Ele disse isso” ou “ele fez aquilo”. Jesus Cristo foi batizado (não a sua natureza humana); Jesus Cristo chorou (não a sua natureza humana); Jesus Cristo sofreu (não a sua natureza humana); Jesus Cristo foi morto (não a sua natureza humana); Jesus Cristo é o revelador do Pai (não a sua natureza divina); Jesus Cristo ressuscitou mortos (não a sua natureza divina); Jesus Cristo fez muitos milagres (não a sua natureza divina); Jesus Cristo reina (não a sua natureza divina). Tudo o que pertence e é típico de uma natureza, deve ser atribuído inquestionavelmente à pessoa total. Nisso é o que sempre creram os Pais da igreja, inclusive em Calcedônia.

6. A CRISTOLOGIA DE CALCEDÔNIA COMBATEU O APOLINARISMO “que ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, consistindo de uma alma racional e um corpo”.

Contra Apolinário, o Credo de Calcedônia afirma que Jesus Cristo era “verdadeiro homem, consistindo de uma alma racional e um corpo”. Lembre-se de que Apolinário, em sua tricotomia, afirmou uma alma animal em Jesus Cristo, mas negava que ele possuía um espírito humano (a que ele chamou de alma racional), que foi substituído pelo Logos, portanto, não sendo o Redentor plenamente humano. Calcedônia afirmou com todas as letras que ele possuía uma alma racional, combatendo a tendência docética de Apolinário com respeito a Cristo, pois ele negava a plena humanidade do Redentor.

7. A CRISTOLOGIA DE CALCEDÔNIA COMBATEU O NESTORIANISMO Contra o nestorianismo, Calcedônia confirmou a crença em Maria como theo-

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tokos, embora tenha dado a ela uma explicação que, no meu entendimento, não esclarece tanto, mas dificulta a idéia de que o divino foi gerado em Maria, provavelmente combatendo indiretamente uma mariolatria já nascente na Igreja, mas sem muito sucesso. É curioso que a explicação de Calcedônia (“Maria, a mãe de Deus (Qeoto/koj), quanto à sua humanidade ) não afastou a tendência à mariolatria. A permanência dessa expressão inevitavelmente acelerou a mariolatria na Igreja Cristã, embora certamente não fosse o pensamento de Calcedônia. Nesse sentido, a insistência de Nestório em negar a expressão theotokos teria sido melhor para o futuro da Igreja para diminuir o avanço da mariolatria, que está muito fortemente presente em nossos dias. Nesse sentido, Christotokos seria preferível ao invés de Theotokos. Veja a afirmação de Calcedônia: “mas nestes últimos dias ele foi nascido de Maria, a mãe de Deus (qeoto/koj), quanto à sua humanidade.”

Essa expressão de Calcedônia confirma a crença dos Pais da tradição de Alexandria, da qual Cirilo foi o grande defensor, no fato de que Maria foi theotokos. Todavia, essa expressão é bem mais antiga que Cirilo, pois foi usada por Alexandre de Alexandria numa carta, no Sínodo de Alexandria (320), para condenar a heresia ariana. Atanásio também a havia usado em sua “Oração contra Arianos”.119 É uma pena que, historicamente, a expressão theotokos tenha sido traduzida como “mãe de Deus”, o que dificulta a sua aceitação principalmente entre os protestantes ortodoxos, mas ela teria muito mais aceitação entre eles se fosse traduzida como realmente significa: “portadora de Deus”. De fato, o Verbo estava nela. Ela não foi mãe do Verbo, mas ela portava Deus o Verbo dentro de si, que se uniu à natureza humana tomada dela pela ação do Espírito Santo. Todavia, não podemos fugir do fato de que ela deu à luz a uma pessoa divino-humana. Além disso, contra a teologia de Nestório, que afirmava duas pessoas unidas no Redentor, o Credo de Calcedônia afirma “as duas naturezas sem mistura, sem mudança, sem divisão, sem separação – a diversidade das duas naturezas não sendo de forma alguma destruída por sua união na pessoa, mas as propriedades (i)dio/thj) peculiares de cada natureza sendo preservadas, e concorrendo a uma pessoa (pro/swpon), e uma subsistência (u(postasin), não partida ou dividida em duas pessoas”.

Calcedônia condenou o Nestorianismo ensinando uma só subsistência (ou pessoa) “não partida ou dividida em duas pessoas”. Essa expressão visa diretamente o 119. Philip Schaff, org., The Seven Ecumenical Councils, na série Nicene and Post-Nicene Fathers, vol. XIV (Eerdmans, 1988), 208. Para maiores informações sobre o a expressão Theotokos, veja “Excursus on the Word Theotokos” (Ibid., 206-210).

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erro nestoriano. Duas naturezas sim, mas não a ponto de haver uma espécie de dupla personalidade. Por isso é enfatizada “uma só subsistência”.

8. A CRISTOLOGIA DE CALCEDÔNIA COMBATEU O EUTIQUIANISMO Contra a teologia de Êutico, o Credo de Calcedônia afirma o seguinte: “Ele é um Cristo, existindo em duas naturezas sem mistura, sem mudança, sem divisão, sem separação – a diversidade das duas naturezas não sendo de forma alguma destruída por sua união na pessoa, mas as propriedades (i)dio/thj) peculiares de cada natureza sendo preservadas.”

O ensino de Êutico foi condenado no Concílio de Calcedônia, em 451, que asseverou que Jesus Cristo era uma pessoa com duas naturezas, unidas em uma só pessoa. Todas as palavras grifadas acima mostram o desafeto dos Pais de Calcedônia pelo o monofisismo. A primeira afirmação, a de que Cristo existe em duas naturezas, combate diretamente a idéia de um só natureza em Cristo, sustentada pelos monofisitas. A afirmação seguinte, que tem a ver com as famosas quatro expressões duplas – “sem mistura, sem mudança, sem divisão, sem separação” – aponta para o modo em que as duas naturezas permanecem na mesma Pessoa do Redentor. Calcedônia defende as duas naturezas, mas explica como elas existem harmonicamente, sem que haja qualquer fusão entre elas, sem que haja qualquer alteração nelas, sem haja qualquer divisão nelas, e sem que nelas haja qualquer separação. A terceira afirmação em itálico, “não sendo de forma alguma destruída por sua união na pessoa”, aponta para a integridade das duas naturezas, quando houve a união pessoal. A quarta afirmação em itálico, “mas as propriedades (i)dio/thj) peculiares de cada natureza sendo preservadas”, aponta para os detalhes da integridade das duas naturezas. Elas foram preservadas intactas, cada uma com as suas propriedades essenciais. Nada de nenhuma das duas naturezas sofreu qualquer alteração, pois a união pessoal não implicou, em hipótese alguma, em fusão. O Tomo do Papa Leão, onde ele demonstra repúdio ao monofisismo, tornou-se uma das bases do dogma de Calcedônia, e Calcedônia tornou-se teoricamente o fechamento oficial da Cristologia ocidental, embora as controvérsias não tenham terminado ali. Calcedônia foi um marco importantíssimo e teve muitos acertos que nortearam toda a Cristologia posterior.

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ERROS ANATEMATIZADOS A RESPEITO DA UNIO PERSONALIS No decorrer da história da Igreja houve alguns concílios que condenaram alguns erros a respeito da unio personalis. Os mais comuns são os Anátemas do Segundo Concílio de Constantinopla, realizado em 553 A.D.: Anátema IV Se alguém diz que a união do Verbo de Deus com o homem foi somente de acordo com a graça ou função ou dignidade ou igualdade de honra ou autoridade ou relação ou efeito ou poder ou de acordo com o seu beneplácito, como se Deus o Verbo se agradasse do homem ou o aprovasse, como o frenético Teodósio diz; ou que a união existe de acordo com a similaridade de nome, pelo qual os Nestorianos chamam Deus o Verbo Jesus e Cristo, designando o homem separadamente como Cristo e como Filho, falando assim claramente de duas pessoas, mas quando se chega à sua honra, dignidade, e adoração, fingem dizer que há uma pessoa, um Filho e um Cristo, por uma única designação; e se alguém não reconhece, como os Santos Pais ensinaram, que a união de Deus é feita com a carne animada por uma alma racional e inteligente, e que tal união está de acordo com a síntese ou hipóstase, e que, portanto, há somente uma pessoa, o Senhor Jesus Cristo, um da Santa Trindade — seja anátema. Como a palavra “união” tem muitos significados, os seguidores da impiedade de Apolinário e Êutico, presumindo o desaparecimento das naturezas, afirmam uma união por mistura. Por outro lado, os seguidores de Teodoro e de Nestório, regozijando-se na divisão das naturezas, introduzem somente uma união de relação. Mas a santa Igreja de Deus, rejeitando igualmente a impiedade de ambas as heresias, reconhece a união de Deus o Verbo com a carne de acordo com a síntese, que é de acordo com a hipóstase. Porque, no mistério de Cristo, a união de acordo com a síntese preserva as duas naturezas que foram combinadas sem mistura e sem separação.

Anátema V Se alguém entende a expressão — uma hipóstase de nosso Senhor Jesus Cristo — de forma que ela signifique a união de muitas hipóstases, e se alguém tenta, assim, introduzir no mistério de Cristo duas hipóstases, ou duas pessoas, e, após ter introduzido duas pessoas, fala de uma pessoa de acordo com a dignidade, honra ou adoração, como Teodoro e Nestório insanamente têm escrito; e se alguém injuria o santo sínodo de Calcedônia, como se ele tivesse usado essa expressão nesse sentido ímpio, e não confessa que o Verbo de Deus está unido com a carne hipostaticamente, e que, portanto, há apenas uma hipóstase ou uma pessoa, e que o santo Sínodo de Calcedônia tem professado, nesse sentido, a única hipóstase de nosso Senhor Jesus Cristo;

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR seja anátema. Porque a Santa Trindade, quando Deus o Verbo foi encarnado, não foi aumentada pela adição de uma pessoa ou hipóstase.

CONCLUSÃO É muito importante que haja, de tempos em tempos, especialmente nos tempos de crise teológica, a realização de concílios gerais da Igreja para que ela reafirme aos seus fiéis a fé nos credos antigos ou os remodele de acordo com um melhor entendimento dos textos da Escritura, melhorando a expressão daquilo que foi dito no passado. Se o que foi dito no passado é a expressão da verdade, a Igreja tem de reafirmar eventualmente os credos antigos para que eles se tornem cada vez mais vivos pelo povo de Deus que vive hoje. Se o que foi dito no passado pode ser expresso de maneira melhor, então os concílios devem se reunir com muito cuidado a fim de que não haja distorções do que foi dito anteriormente. A Igreja sempre deve se reunir para avaliar a sua fé, reafirmando a fé dos nossos pais para que o povo de Deus veja a beleza da verdade já crida no passado e que nos liga a todos os cristãos da ortodoxia ainda hoje. Aquilo que uma vez foi verdade deve continuar a ser verdade, porque a verdade de Deus não muda. Embora os credos não sejam inspirados, eles foram elaborados com base na verdade inspirada. E se a verdade foi captada com exatidão, então a Igreja deve reafirmar essa verdade cada vez que a doutrina é questionada. Graças devem ser dadas a Deus pela ação preciosa que os cristãos do passado tiveram ao escrever aquilo em que criam. Se eles não tivessem feito isso no passado, agora no presente teríamos que fazer o que eles fizeram. Fica muito difícil, no tempo presente, onde o pós-modernismo campeia sem a afirmação de verdades absolutas, manter uma fé viva em Cristo sem que tenhamos afirmadas algumas questões fundamentais sobre a sua Pessoa. Bendito seja Deus pelos Credos dos antigos, que nos ajudam a ver a beleza, a exuberância e a maravilhosa complexidade da pessoa excelsa do nosso Redentor!

APLICAÇÃO A tônica dessa aplicação não está voltada para os acertos da Igreja, mas para a questão do erro nela. A essa altura é muito mais proveitoso advertir as pessoas que freqüentemente são vítimas de ataque dos falsos mestres e falsos profetas. A outra tônica dessa aplicação é que os erros não são somente ligados à Cristologia, mas à totalidade do ensino da Palavra de Deus. Por essa razão, as advertências dessa parte final do capítulo refletem uma preocupação geral com o falso ensino na Igreja. Contudo, com um pouco mais de especificidade, trataremos dos perigos de uma Cristologia errônea, contra a qual devemos estar precavidos.

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A. CONSEQÜÊNCIAS DOS ERROS DOUTRINÁRIOS Os erros doutrinários, sejam eles sobre Cristologia ou sobre outra área da teologia, causam uma série de conseqüências que podem ser tremendamente desastrosas para a vida da Igreja de Deus neste mundo. Dentre eles, mencionaremos e analisaremos apenas alguns.

1. OS ERROS CAUSAM DIVISÕES Os erros doutrinários que adentram uma congregação local produzem divisões e separações entre irmãos. Mesmo irmãos muito chegados são separados não somente ideologicamente, mas na vida prática, por causa dos erros que penetram na Igreja visível de Cristo aqui. Quando alguns falsos mestres penetram numa igreja local, eles separam muitos dessa igreja do ensino apostólico, ensinando as suas próprias idéias. No caso da Cristologia, esses falsos mestres, via de regra, “ultrapassam a doutrina de Cristo”, estabelecendo divisões. 1 João 2.19 – “Eles saíram do nosso meio, entretanto não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos.”

Há um sentido em que a entrada de heresias na Igreja define os que pertencem a Deus e os que não pertencem. João usa as expressões “ser dos nossos” e “não ser dos nossos”. Essa é uma questão não somente de natureza doutrinária, mas envolve seriamente a questão da salvação ou não das pessoas envolvidas na questão teológica. Os falsos mestres, ou anticristos, tinham abandonado a doutrina apostólica sobre Jesus Cristo. As controvérsias teológicas na Igreja às vezes são definidoras. Quando isso acontece, não é de todo ruim para a Igreja, porque a limpa é feita. A verdade, nesse sentido, não divide a Igreja de uma forma negativa, mas de uma forma positiva. A verdade faz com que as pessoas tomem posição ao lado ou contra Jesus. Por isso, Jesus disse que “quem não é por mim, é contra mim” e “quem comigo não ajunta, espalha”. Esse é o caso que João menciona em razão da entrada de uma heresia cristológica. Os anticristos tinham penetrado nas igrejas locais e estavam ensinando que Jesus não era o Cristo (v. 22), o que levou João a pensar com justeza que a heresia era considerada de tal forma que aqueles que não confessam o Filho também não possuíam o Pai (v. 23). João até pensava que aquele tempo já era o tempo do fim em virtude da apostasia, pois ele menciona que “conhecemos que é a última hora” (v. 18). O tempo de apostasia sempre será um tempo definidor, especialmente à medida que o fim desta presente era se aproxima. Um outro exemplo que aponta para uma espécie de definição teológica, ainda

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que com problemas de gravidade menor, é mostrado por Paulo, quando ele se dirige aos Coríntios. 1 Coríntios 11.18, 19 – “Porque, antes de tudo, estou informado haver divisões entre vós quando vos reunis na igreja; e eu em parte o creio. Porque até mesmo importa que haja partidos entre vós, para que também os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio.”

A igreja de Corinto tinha disputas de natureza ética e de natureza teológica, porque nela penetraram falsos mestres. Todavia, a definição aqui não tem o caráter tornar de evidente quem era de Deus e quem não era. A questão é um pouco mais leve, pois definia apenas quem estava com a razão, teologicamente falando, e os que estavam com a razão são os que Paulo chama de “aprovados”. Também aqui, a finalidade dos erros teológicos é que sejam conhecidos todos os que estão do lado da verdade. A Igreja precisava dar atenção e ouvidos a eles, e não aos que estavam no lado oposto. O lado positivo da entrada das heresias na Igreja é que esse fato amadurece a Igreja na doutrina e na verdade, de forma que os crentes podem ser treinados no discernimento e no aprendizado de como eles devem tratar com os irmãos e com o joio no meio do povo de Deus. De qualquer forma, o resultado da entrada de heresias ali em Corinto gerava “partidos [ou grupos]” e “divisões” que, embora necessários, traziam dor para a Igreja de Deus ali em Corinto. Todavia, nem sempre o tempo de apostasia da fé é tempo de definição soterológica, mas tempo de real separação, de discórdia e de divisões entre os cristãos. Toda heresia divide ou divorcia umas pessoas de outras. Quando acontece haver diferenças teológicas e as conseqüentes separações entre irmãos, deve haver disciplina daqueles que estão do lado errado, pois a finalidade da disciplina é recuperar as pessoas que pensam erroneamente a respeito de uma doutrina. Quando não há a disciplina, mas um afrouxamento em relação à verdade, a Igreja dá lugar ao crescimento da falsidade. Infelizmente, é muito comum os “bereanos” [os perscrutadores da Escritura para a verificação da verdade] serem criticados, e, quando isso acontece, o erro se alastra. Muitas denominações estão minadas de erros teológicos porque os “bereanos” não têm entrado em ação. Graças a Deus por aqueles que tem zelo pela verdade, e por ela batalham. O fato é que temos de evitar ao máximo a divisão na Igreja, mas, na verdade, é o erro que divide. Se o erro não for divisivo, isso é sinal de que a Igreja está imiscuída de falsa teologia. Entretanto, quando a Igreja está preocupada com a verdade, certamente o erro divide. Portanto, devemos cuidar para que a heresia não invada as nossas comunidades. A melhor saída é ensinar, antes que combater. É melhor prevenir do que remediar.

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2. OS ERROS EXIGEM DISTORÇÕES ATRAVÉS DE HERMENÊUTICA INSALUBRE Para que os erros sejam ensinados na Igreja, tem que haver uma hermenêutica errônea. Isso é o que realmente acontece. Os falsos mestres aparecem com falsas pressuposições, mudando o sentido que os autores primeiros quiseram dar ao texto, e eles apenas usarão a Escritura como textos-prova de sua interpretação. Para que os erros sejam ensinados na Igreja, os falsos mestres apartam o texto do contexto. Assim fazendo, eles sacam as suas “verdades” suprimindo a verdade de Deus. Aqui também eles trocam a verdade pela injustiça. O resultado para a Igreja é que ela acaba pouco a pouco se afastando da verdade de Deus. Aquilo que alguns mestres da Palavra de Deus lançaram no passado corre o perigo de ser corrompido. As heresias são um magneto atraente e insano para as mentes perturbadas. Elas produzem um encantamento nas pessoas de forma que muitos incautos ficam “enfeitiçados” pelo erro, achando que a mentira deles é a verdade de Deus. Os falsos mestres fazem com que os assuntos se tornem de difícil compreensão para poder expressar as suas opiniões distorcidas. Poucos crentes têm tido acesso a bons livros, e, a propósito disso, os anticristos se aproveitam dessa fraqueza de uma Igreja imatura para distorcer o sentido das Escrituras. Veja a observação importantíssima de Pedro sobre esse assunto: 2 Pedro 3.16, 17 – “Ao falar acerca destes assuntos, como de fato costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles. Vós, pois, amados, prevenidos como estais de antemão, acautelai-vos; não suceda que, arrastados pelos erros desses insubordinados, descaiais da vossa própria firmeza.”

Pedro reconhecia que partes da revelação divina através de Paulo eram difíceis de serem compreendidas. Certamente elas ultrapassavam a possibilidade de o homem entendê-las plenamente. Também Pedro já havia percebido, na sua época, o oportunismo daqueles que se aproveitam da ingenuidade teológica de alguns irmãos para semear a sua própria interpretação. Pedro também percebeu a astúcia dos falsos mestres para retirar o sentido original do autor daquelas “coisas difíceis de serem entendidas”. Os “ignorantes” e os “instáveis” podem ser entendidos como se referindo aos falsos mestres que adentravam a Igreja de Deus. Eles ignoravam a verdade como devia ser entendida e eram instáveis nas suas crenças. Viviam pulando de um lado para outro teologicamente. Pedro reconheceu que havia coisas difíceis de serem entendidas. Via de regra, o grande problema da interpretação dos textos tem nascedouro numa hermenêutica que não é sadia. Eles não usam os contextos, e nem

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querem conhecer realmente o sentido que o autor original quis dar ao texto em estudo. Eles não possuem firmeza em nada. Por essa razão, Pedro orienta seus leitores, a quem ele chama de “amados”, e que estavam agora prevenidos contra as astúcias da hermenêutica errônea dos falsos mestres. A palavra de Pedro é que eles se mantenham atentos e fiquem de guarda (“acautelai-vos”), a fim de que seus leitores “não sejam arrastados pelo erro desses insubordinados”. Se os crentes fossem arrastados por eles, certamente eles “descairiam de sua própria firmeza. É por isso que, no verso 18, Pedro os exorta, dizendo: “Antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.”

3. OS ERROS SÃO ELIMINATIVOS A entrada de um erro numa igreja, seja ele cristológico ou não, elimina muitas coisas preciosas para os cristãos, e dá proeminência à palavra do proponente da nova doutrina ou da nova revelação.

a. Eles eliminam a autoridade das Escrituras As Escrituras ficam desautorizadas em sua vida quando os falsos mestres adentram a Igreja com os seus ensinos errôneos. Quando é um problema de interpretação do texto, como vimos acima, podemos ter distorções sérias e até conseqüências danosas para os hereges, mas o problema tem origem hermenêutica. Ainda que os pressupostos sejam errôneos, existe um certo respeito pelo texto das Escrituras. É uma questão de cosmovisão diferente que leva a uma leitura diferente do texto normativo. Todavia, há os erros que adentram a Igreja porque os proponentes deles rejeitam o ensino das Escrituras sobre uma determinada matéria. Nesse caso, a autoridade da Escritura é eliminada dentro deles. Elas ficam sendo um livro dentre outros que tratam de uma determinada matéria. Elas não têm a palavra final, elas não são normativas naquilo que ensinam. Essa eliminação da autoridade acontece quando os proponentes do erro aparecem com uma nova doutrina ou com uma nova revelação. Essa não é uma dificuldade nova. A história da Igreja é recheada de casos nos quais pessoas aparecem com novos insights espirituais retirados da sua própria imaginação ou vindos de outras fontes que não a Escritura Sagrada. Essas pessoas não concordam com o raciocínio de Deus e apelam para o seu próprio raciocínio. Certa vez, Jesus estava ensinando algumas coisas sobre a incapacidade humana de vir a ele e sobre a necessidade de se apropriarem do seu corpo e do seu sangue. Os homens simplesmente não concordaram com as palavras de Deus emitidas pelo Deus encarnado. Simplesmente eles não aceitaram a autoridade de Cristo e o abandonaram porque não concordaram com a sua “teologia” [que na verda-

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de era a revelação divina]. Eles simplesmente eliminaram de sua mente a autoridade divina, porque eles não criam que Jesus Cristo era o Verbo encarnado, o Redentor singular que era divino e humano. Todavia, na mesma passagem, Pedro confessou que ele era o doador da vida eterna e o Santo de Deus (cf. Jo 6.60-69). No Antigo Testamento, os verdadeiros profetas de Deus já lutaram contra aqueles que eliminavam a autoridade do texto sagrado por aceitarem seus próprios pressupostos. Jesus evoca o texto de Isaías, e diz: “Bem profetizou Isaías, a respeito de vós, hipócritas, como está escrito: ... Em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens. Negligenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens... Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para guardardes a vossa própria tradição” (Mc 7.6-9). Os que introduzem o erro na Igreja pecam ainda mais quando eliminam a autoridade das Escrituras. Desprezar as Escrituras, na mente de Deus, significa desprezar o próprio Deus, porque elas são as suas de Deus. Em toda a história da Igreja, desde o Antigo Testamento até hoje vemos pessoas adentrando a Igreja com seus erros e desprezando a autoridade da Palavra de Deus. Modernamente vemos pessoas apresentando preceitos puramente humanos na teologia e na práxis cristã. Não é difícil perceber como elas deixam a Escritura de lado para dar lugar às suas próprias pressuposições. Quando usam a Bíblia, é para apenas justificar o papel de “pregadores” e “mestres”, mas eles ensinam doutrinas sacadas da sua própria imaginação. Você, caro leitor, não entre por esse caminho, porque ele pode ser um caminho de morte. Não elimine a autoridade da Palavra de Deus na sua vida, porque isso é uma ofensa a Deus. Receba tudo o que as Escrituras lhe disserem. Lembre-se de que elas são a autoridade última e definitiva sobre a sua vida. Peça a graça para você nunca ser levado pela artimanha dos homens que conduzem ao erro.

b. Eles eliminam as pessoas da comunhão dos santos Uma das coisas mais lamentáveis que podemos perceber como resultado da entrada de erros na Igreja é a perda de comunhão entre pessoas que pensam de modo diferente. Enquanto os erros não entram, existe uma razoável harmonia entre irmãos, mas, quando um grupo toma partido dos falsos mestres, logo a ligação gostosa e fraterna entre os outrora irmãos desaparece. Isso pode ser percebido com muita clareza em nosso tempo. Certamente você, assim como eu, conhece muitas igrejas divididas teologicamente e que acabaram se dividindo na questão da comunhão. Ter comunhão é pensar concordemente, é viver concordemente, é ter a mesma vida. Todavia, quando o erro penetra na igreja, essas coisas deliciosas da comunhão cristã simplesmente se apagam. Os cristãos já não conseguem ser amigos. Para que possam manter uma certa amizade, a matéria de teologia não pode fazer parte da conversa deles. A cosmovisão das

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pessoas se torna diferente: elas começam a ver o mundo, Deus, o pecado, a história, etc., de modo muito diferente. Quanto maior for a diferença de cosmovisão, maior será a separação entre eles. As pessoas envolvidas com o erro já não conseguem ver as coisas como os genuínos cristãos vêem; elas não sentem as mesmas coisas. Somente quando há o genuíno arrependimento e a volta às antigas doutrinas da graça é que a comunhão é restaurada. A fé [entendida como o conjunto de verdades em que as pessoas crêem] é muito mais importante do que elas pensam. Ela afeta muito mais as pessoas do que costumeiramente se pensa. Ela é central para as vidas das pessoas. Por essa razão, visões doutrinárias diferentes fazem com que a comunhão entre essas pessoas seja quebrada. Por que havia divisões, facções, partidos e discórdias na igreja de Corinto? Porque as pessoas tinham “gurus” diferentes, que ensinavam coisas diferentes. Eles se eram seguidores de pessoas que tinham pensamentos diferentes. Os partidos existentes nas igrejas não surgem somente por questão de preferência pessoal, mas por causa do pensamento. As idéias são muito importantes, e elas afetam as pessoas muito mais do que geralmente se imagina. São as idéias que fazem os homens tomarem atitudes até violentas no meio da sociedade. Na igreja não é muito diferente. As opiniões teológicas possuem a capacidade de colocar pessoas - que outrora eram muito amigas porque compartilhavam a mesma fé - em lados opostos, de forma que elas não mais se respeitam nem possuem qualquer comunhão. Esse é um dos grandes estragos causados pela entrada de doutrinas estranhas à fé. Por essa razão, você deve ensinar na igreja aquilo que é correto e fazer tudo o que puder para que os erros não penetrem no seio da igreja. Se você não ajudar nesse serviço, amanhã a beleza e a harmonia de sua igreja poderão desaparecer. Seja um participante na vitória da sua igreja. Prime pelo ensino da verdade, e não tenha medo de combater o erro. Se ele entrar, a tristeza da igreja será muito grande, porque muitos irmãos vão se separ uns dos outros, ainda que consigam viver “sob o mesmo teto”. Todavia, serão estranhos uns dos outros por causa do ensino errôneo.

4. OS ERROS GERAM OUTROS ERROS Heresia gera heresia. Os ensinos errôneos se espalham como fogo numa mata seca. Eles correm mais rápido do que a verdade, porque geralmente os erros combinam com a inclinação pecaminosa das pessoas, enquanto a verdade tem de ser ensinada. O processo de ensino do que é correto é longo e difícil, por causa dos efeitos noéticos do pecado e por causa da indisposição do coração humano em relação à verdade de Deus. Diferentemente, os erros não precisam ser ensinados. Eles são apenas alardeados e, como o terreno geralmente é propício, eles se espalham com uma velocidade impressionante.

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Sempre haverá mais filhos das trevas do que filhos da luz. O mundo está cheio de erros éticos e morais porque os erros teológicos se espalham com grande facilidade, aumentando cada vez mais e mais intensamente. Por isso, as Escrituras da verdade dizem que, no final dos tempos, haverá no meio da Igreja chamada cristã uma grande apostasia, como nunca houve em todas as épocas. A nossa era está propícia para a disseminação dos erros, especialmente num tempo onde o pósmodernismo relativiza tudo e a verdade não existe objetiva nem absolutamente. A nossa presente geração é um campo fértil para uma heresia gerar outra. Hoje nascem mais heresias pelas igrejas no mundo do que filhos da luz. Assim como apenas uma célula cancerígena pode se multiplicar fazendo crescer num tumor que, depois, torna uma pessoa infectada com septicemia, assim a heresia gera muitas outras heresias e torna a totalidade da Igreja infectada pelo erro. Como o câncer corrói o corpo, assim a heresia corrói a Igreja. Não é difícil mostrar o ponto da heresia gerando heresias. Tratando de problemas heréticos do seu tempo (que no caso era o dos judaizantes), Paulo diz que “um pouco de fermento leveda toda a massa” (Gl 5.9; cf. a questão moral que se espalha da mesma forma em 1Co 5.6). Satanás não lança todos os seus dardos de uma só vez. Ele simplesmente introduz um erro na igreja para que, a partir desse, outros possam surgir. Esse é o efeito do fermento. Calvino diz que “o estratagema de Satanás é que ele não tenta uma destruição declarada da totalidade do evangelho, mas macula sua pureza por introduzir opiniões falsas e corruptas”.120 Quando essa semente de falsidade entra, então ela se espalha de maneira extraordinariamente rápida e eficaz, porque encontra terreno fértil na inclinação pecaminosa dos homens e na disposição natural que eles têm de lutar contra a verdade de Deus. Além disso, é difícil matar o erro. Ele tem uma morte muito lenta. Ele não é destruído prontamente. Quem luta contra os erros tem que ter muita perseverança, pois esses inimigos estão entranhados na alma dos homens. Retirá-los dali é uma tarefa muito difícil. Se quisermos cortar o erro de uma só vez, haveremos de causar dano ao corpo de Cristo, assim como a retirada de um tumor, se não for feita de maneira correta, poderá causar infecção generalizada no doente. “Uma vez que a verdade de Deus foi corrompida, não mais estamos seguros. Ele [Paulo] emprega a metáfora do fermento, que, conquanto pouco em quantidade, comunica sua levedura à totalidade da massa”. Então Calvino aconselha, e todos nós devemos ouvir seu conselho: “Devemos exercitar a máxima cautela afim de que não permitamos qualquer falsificação que substitua a pura doutrina do Evangelho”.121

120. John Calvin. Commentaries on Galatians and Ephesians (Grand Rapids: Eerdmans, 1948), 154. 121. Ibid., 154-55.

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B. ATITUDES EM RELAÇÃO AOS QUE ESTÃO EM ERRO DOUTRINÁRIO 1. DISCIRNA O ERRO DELES Os erros doutrinários que rondavam a Igreja apostólica exigiam uma atitude de discernimento por parte dos ministros da Palavra. Esses erros eram principalmente cristólógicos, especialmente o Gnosticismo. Os gnósticos diziam que se pode adquirir conhecimento espiritual através de uma experiência subjetiva. O Gnosticismo era místico por natureza, subjetivo, e seu ensino precisava ser questionado. Mas não se pode questionar sem se conhecer exatamente o que os falsos mestres pensam. Há necessidade de um discernimento da parte dos mestres da Palavra de Deus para que os cristãos venham a entender corretamente não só a verdade da Palavra, mas o pensamento dos falsos mestres. Afinal de contas, a heresia não poderia se espalhar por todas as igrejas da região, pois seria um desastre os irmãos crerem num Cristo que não estava de acordo com o ensino apostólico. O que fazer? Conhecendo o ensino apostólico, a solução era discernir os erros de maneira que eles ficassem evidentes. João começou a exercer julgamento sobre os escritos dos gnósticos, mas nem sempre essa atitude de julgamento soa bem aos ouvidos daqueles que estão sendo julgados. Afinal de contas, dizem os falsos mestres, Jesus Cristo nos exorta a não estabelecermos julgamento sobre pessoas. Todavia, precisamos entender o contexto da afirmação de Jesus: “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mt 7.12). Esse verso diz respeito à condenação de alguém de modo maldoso, sem se conhecer a real situação e sem estabelecer os devidos critérios, e sem ouvir a pessoa que está sendo condenada, porque geralmente somos apressados em nosso julgamento e, freqüentemente, o nosso julgamento é errôneo. Esse tipo de julgamento precipitado e sem critério é condenado por Jesus nos versos subseqüentes. Não podemos julgar sem discernir se o que alguém está ensinando é falso ou verdadeiro. Todavia, Jesus Cristo não nos proíbe o julgamento das coisas que nos são apresentadas a fim de que conheçamos o que está por trás das palavras ditas no meio do povo de Deus. Temos de estabelecer julgamento sobre o ensino ministrado. Jesus Cristo ensinou que devemos escrutinar, discernir a verdade, para que ajamos de maneira justa: “Não julgueis segundo a aparência, e, sim, pela reta justiça” (Jo 7.24). Por que essa orientação? Primeiramente, Jesus estava ensinando que o julgamento deve ser feito para se apurar verdadeiramente os fatos; em segundo lugar, Jesus estava ensinando que devemos examinar a nós mesmos e aos nossos próprios motivos. Quando temos a atitude de discernir o erro, não podemos agir injustamente, mas sim no intuito de estabelecer a verdade de Deus. Quando tentamos

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discernir o erro, estamos “batalhando pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3); quando tentamos discernir os erros, não estamos estabelecendo um juízo pessoal, mas tentamos examinar o que está sendo dito á luz da verdade objetivamente estabelecida nas Escrituras; quando tentamos discernir os erros, nós estamos do lado de Deus, fazendo as coisas que Deus faria, ou seja, sendo justos. Há algumas palavras na língua grega que nos ajudam a entender a questão do julgamento daquilo que é ensinado na Igreja. Essas palavras gregas são krino (que pode significar pronunciar uma opinião a respeito de algo certo ou errado), anakrino (que significa “examinar”, ou “julgar conclusivamente”), e diakrino (que significa “investigar”, “examinar”, “discernir”). Veja ao menos um exemplo que trata da necessidade de exercermos julgamento sobre o que se ensina na Igreja. Paulo era um apóstolo, mas ele ainda não era muito conhecido de todos. Juntamente com Silas, Paulo foi enviado à Beréia para pregar. Veja a descrição do acontecido, feita por Lucas: Atos 17.11 – “Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando (a)nakri/nontej) as Escrituras todos os dias para ver se as cousas eram de fato assim.”

A tarefa de julgar a pregação e o ensino era a coisa mais óbvia e elogiável que poderia haver. O autor sagrado comenta a nobreza dos crentes de Beréia pelo fato deles não somente receberem “com toda avidez a palavra”, mas também porque eles examinavam as Escrituras para verificar a veracidade do ensino de Paulo. Eles julgaram o ensino de Paulo pelo exame que fizeram do seu ensino à luz das Escrituras. Esse hábito dos bereanos deveria tomar conta dos crentes de nossas igrejas, todos eles deveriam ter a vontade de buscar a verdade. O discernimento não é nada mais nada menos do que a busca da verdade sem que estejam envolvidas as nossas questões pessoais. Os de Beréia não tinham nada contra a pessoa de Paulo, mas eles queriam saber se Paulo falava de acordo com o “padrão”. Toda pregação e todo ensino deveriam passar pelo crivo das Escrituras, que são o padrão de aferição. Entretanto, não é esse espírito do tempo presente. Há alguns mestres e pregadores que vivem hoje ensinando e pregando de acordo com os seus próprios raciocínios, não querem receber julgamento do que pregam e ensinam. O que eles fazem? Apelam para o texto de Mateus 7.1 e o usam como proteção para não serem desafiados no ensino geral das Escrituras. Geralmente, os falsos mestres da Igreja contemporânea não querem ser desafiados, e, por isso, inconsistentemente, apelam para a Escritura, que, para eles, não é realmente a única fonte de autoridade. No entanto, eles correm para ela para poderem fugir da confrontação com a própria Escritura. É praticamente impossível conseguir um encontro onde as opiniões dos

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falsos mestres sejam analisadas criticamente. A única maneira é escrever livros contra a opinião deles, mas eles não se expõem ao escrutínio da Escritura. Essa atitude não é nova. Já no tempo da Igreja apostólica, João enfrentava essa reação de prevenção: “Escrevi alguma coisa à igreja; mas Diótrefes, que gosta de exercer a primazia, não nos dá acolhida” (3Jo 9). Há alguns passos que culminam na reação negativa de Diótrefes à abordagem doutrinária de João. Primeiramente, João havia escrito algo à igreja. Não sabemos o conteúdo do escrito de João. Certamente era a respeito de alguma coisa que estava acontecendo doutrinária e eticamente. O verso 10 nos mostra que ele era repreensível e que o conteúdo do escrito de João à igreja devia ser algo referente ao que ele ensinava e fazia. Em segundo lugar, Diótrefes gostava de poder, de exercer “a primazia” no meio dos irmãos. Ele queria ser ouvido e apreciado pelos irmãos, mas isso não estava acontecendo, pelo menos não com com todos, porque ele também quebrou a comunhão com eles “não acolhendo os irmãos” (v. 10). A ambição de poder fez com que ele dissesse contra João “palavras maliciosas” (v. 10), pois João era o seu opositor. Em terceiro lugar, Diótrefes não “deu acolhida” a João (v. 9). Isso significa que Diótrefes não concordava com o conteúdo da carta que ele escreveu aos irmãos. Diótrefes não aceitava que ninguém se opusesse a ele, ou que discordasse dele. Ele não “deu acolhida” porque João pensava diferentemente dele. Curiosamente, aqueles que saem da ortodoxia acham os ortodoxos intolerantes, mas eles próprios são intolerantes, não permitindo que ninguém se oponha nem julgue o pensamento deles. Eles não se submetem ao teste da verdade e ficam extremamente violentos quando alguém faz críticas ao que eles pensam. Por essa razão Diótrefes falava “palavras maliciosas” contra João. Ele persistia na falsa doutrina e ainda queria ter a primazia entre os membros da igreja. Por essa razão, como um velho e amoroso pai, João diz ao “amado Gaio”: “Amado, não imites o que é mau, senão o que é bom. Aquele que pratica o bem procede de Deus, aquele que pratica o mal jamais viu a Deus” (v. 11). Você e eu devemos seguir o conselho de João para que a Igreja de Deus seja mais harmoniosa e bendita! 2. REPREENDA-OS PELO ERRO Paulo era um mestre que não fazia rodeios quando a verdade de Deus estava em jogo. Escrevendo a Tito, um jovem ministro do Evangelho, num contexto de muito ensino errôneo na igreja em Creta, Paulo disse: Tito 1.13-14 – “Portanto, repreende-os severamente, para que sejam sadios na fé, e não se ocupem com fábulas judaicas, nem com mandamentos de homens desviados da verdade.”

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O espírito do tempo presente abomina essa espécie de atitude ordenada por Paulo a Tito. Paulo não queria o mal deles, mas apenas que os crentes de Creta fossem pessoas sadias na fé (cf. 2Tm 2.23-25). Ser sadio na fé é crer de acordo com a verdade revelada por Deus. Portanto, a repreensão severa ordenada por Paulo era para o próprio benefício daqueles que estavam assimilando uma doutrina errônea de “homens desviados da verdade”. A repreensão é um passo extremamente necessário para se evitar a difusão do erro e para que as pessoas percebam o perigo que a verdade de Deus corre quando os “homens desviados da verdade” estão à solta, sem que ninguém os repreenda. Os ministros da Palavra (sejam ordenados ou não) não podem ficar calados quando os falsos ensinos campeiam pela Igreja. Os concílios das Igrejas deveriam repreender os ministros que são faltosos não somente na área moral, mas também na área doutrinária. Ninguém que é de Deus pode se calar diante do falso ensino. Não há como manter paz na Igreja quando a falsidade está sendo ensinada e a Igreja se cala. Os fiéis mensageiros de Deus têm de repreender os que são infiéis. Se não forem firmemente repreendidos, os lobos haverão de devorar as ovelhas de Deus. Muitos falsos mestres são sagazes porque fascinam o povo de Deus com seus ensinos. Por essa razão, Paulo chamou a atenção dos crentes da Galácia, dizendo: “Ó gálatas insensatos! Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos olhos foi Jesus Cristo exposto como crucificado?” (Gl 2.1). O próprio Pedro foi repreendido publicamente de um modo severo por Paulo por ensinar alguma coisa que não estava de acordo com o padrão. Paulo foi duro com seu colega de apostolado (cf. Gl 2.11-14). Ora, se Paulo zelava pela pureza da doutrina repreendendo um companheiro de apostolado, não repreenderia outros que eram considerados claramente como falsos profetas? Você chamaria Paulo de um caçador de hereges por se preocupar com a sã doutrina, repreendendo os falsos mestres? Paulo ainda foi mais longe. Himeneu e Alexandre, por causa de problemas doutrinários, não foram simplesmente repreendidos, mas foram entregues a Satanás, para serem castigados, a fim de não mais blasfemarem” (1Tm 1.20). A blasfêmia era a perversão da verdade, porque alguns que deram ouvido ao erro ensinado por eles “vieram a naufragar na fé” (v. 19). Por isso, ele advertiu Timóteo para o dever de combater firme o combate da fé (v. 18). Isso é ser caçador de hereges? Se o é, então, todos os verdadeiros cristãos deveriam pugnar pela verdade de Deus, ainda que sejam considerados como agindo para “caça às bruxas”. O que importa é a obediência à verdade de Deus, e não aos preceitos dos homens e do próprio maligno. Se você é um ministro da palavra em algum sentido, não tenha temor de repreender os que não estão andando segundo a verdade. Essa é uma ordenança divina! Isso é parte do bom combate da fé. Repreenda os falsos mestres para que outros na

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igreja não tenham a sua fé [conjunto de doutrinas] pervertida. Você deixaria acontecer com crentes hoje o que aconteceu nos tempos de Himeneu e Alexandre (cf. 2Tm 2.15-18)? Portanto, repreenda com firmeza os que andam perturbando a boa ordem doutrinária da Igreja de Deus. João Batista chamou os escribas e fariseus (os líderes religiosos do seu tempo) de “raça de víboras”. Jesus Cristo, o amoroso e gentil Redentor, não deixou por menos (Mt 12.34). Eles os chamou de “cegos”, “guias de cegos”, “sepulcros caiados”, “serpentes”, e “raça de víboras”.Ele foi mais intenso em sua repreensão do que qualquer um dos apologistas (ou defensores da fé) contemporâneos. Para alguns crentes liberais para alguns evangélicos conservadores, Jesus Cristo usou uma linguagem inaceitável. Todavia, a verdade para ele era coisa importante, e suas palavras são palavras que vêm da boca de Deus. Você chamaria João, ou mesmo Jesus Cristo, de não ser amável, de não ser delicado, ou de não ser politicamente correto? Não foi isso que o Pai dele pensou dele. Deus Pai disse aos circunstantes, no tempo do batismo: “Este é o meu Filho amado, a ele ouvi.”

3. ENSINE A VERDADE DE DEUS PARA ELES Os falsos mestres e profetas têm invadido os lares cristãos desde tempos muito antigos. Muitos deles apresentam coisas diferentes para o povo de Deus, e esses ensinos penetram em nossos lares através da televisão e da música, sem que haja qualquer escrúpulo ou discernimento por parte dos cristãos. Já no seu tempo, Paulo deu um exemplo das coisas diferentes que eles apresentavam. É curioso que esses falsos mestres são chamados por Paulo de “falsos apóstolos” (2Co 11.13). Observe as coisas diferentes que eles ensinam: 2 Coríntios 11.4 – “Se, na verdade, vindo alguém prega outro Jesus que não temos pregado, ou se aceitais espírito diferente que não tendes recebido, ou evangelho diferente que não tendes abraçado, a esses de boa mente o tolerais.”

a. Observe a mensagem dos falsos profetas O conteúdo do ensino dos falsos profetas é perfeitamente claro no verso acima:

(1) Os falsos profetas apresentavam um Jesus diferente O “outro Jesus” pregado pelos falsos profetas era muito diferente daquele pregado por Paulo. Certamente eles ensinavam uma heresia cristológica. Provavelmente, eles ultrapassaram a doutrina bíblica de Cristo, por isso o Jesus era “um outro”. Eles estavam ensinando um conceito diferente sobre o Deus encarnado. Os crentes de Corinto estavam sendo enganados.

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(2) Os falsos profetas ensinavam um espírito diferente Não vejo por que não entender esse “espírito” como não sendo a contraparte do “Espírito”, porque o texto diz que “aceitais espírito diferente que não tendes recebido”. Esse “outro espírito” estava controlando aqueles crentes, ao invés deles serem controlados pelo Espírito Santo. Eles estavam aceitando um espírito diferente do Espírito Santo, que devia ser recebido por eles. Os crentes de Corinto estavam sendo enganados.

(3) Os falsos profetas ministravam um evangelho diferente Isso não era novidade. Paulo mencionou um evangelho diferente que os crentes da Galácia haviam abraçado (Gl 1.6). Os falsos profetas sempre quiseram perverter o ensino bíblico de Jesus aos crentes (Gl 1.7). Por isso, Paulo abomina esses falsos profetas, dizendo: “Se alguém vos prega evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema” (Gl 1.9). Os crentes de Corinto estavam sendo enganados.

b. Observe a aceitação por parte dos crentes O desastre para a igreja é que os irmãos de Corinto estavam acolhendo esses mestres como se eles fossem mestres fiéis. Paulo lhes disse: “a esse [o falso mestre] de boa mente o tolerais.” Observe que os crentes de Corinto estavam sendo enganados, porque toleravam os falsos mestres “de boa mente”. Paulo estava muito triste com a situação de Corinto e mostrou o seu zelo por eles visando à santificação da igreja para que ela fosse “uma virgem pura para um só esposo, Cristo” (2Co 11.2-3), e não outro cristo. Paulo, então, gastou um tempo grande para corrigir os erros doutrinários. Essa é a tarefa dos ministros da Palavra, para que os crentes não permaneçam na ignorância. Após repreender pelo falso ensino, os fiéis ministros da Palavra devem ensinar a verdade de Deus a eles. Alguns crêem erroneamente porque assim aprenderam. Nesse caso, resta-lhes a grande oportunidade de conhecer a verdade. Por essa razão, sempre em contextos em que tratavam de heresia, os fiéis ministros faziam exortações absolutamente necessárias para a ocasião. Vejamos algumas delas. 2 Timóteo 4.2 – “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina.”

No tempo da Igreja apostólica, eram muitos os erros cristológicos. Os apóstolos testificam desses erros: João (2Jo 10-11), Pedro (2Pe 2.1) e Paulo (2Co 11.4). Todos eles instam os ministros da palavra a pregarem e a ensinarem com toda a diligência para que os erros não se espalhem pela totalidade da Igreja. Esse é o

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único meio, humanamente falando, de tentar recuperar os falsos mestres e aqueles que já foram influenciados por eles. A pregação da verdade é a única esperança para uma Igreja mais sadia.

C. ATITUDES EM RELAÇÃO AOS QUE NÃO ABANDONAM OS ERROS DOUTRINÁRIOS 1. TENHA CUIDADO COM ELES Você deve ser muito cauteloso com respeito aos falsos profetas, porque, por trás da simpatia, da persuasão ou da inteligência deles está o engano. Mateus 7.15 – “Acautelai-vos dos falsos profetas que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores.”

Essa advertência de Jesus nos aponta para o fato de não haver meio de nos acautelarmos, a menos que tenhamos um parâmetro para julgar o ensino dos falsos mestres. O único parâmetro é a Verdade de Deus registrada nas Escrituras. Se você não conhece as Escrituras de maneira suficiente, os falsos mestres vão enganá-lo. Lembre-se de que eles vêm “disfarçados de ovelhas”. Além disso, o perigo não é somente para você, mas, se você negligenciar o exame do ensino dos falsos profetas e mestres, você estará permitindo que outras pessoas sejam enganadas por aqueles a quem Jesus chama de “lobos roubadores”. Ainda mais: se os “lobos roubadores” penetrarem em sua igreja, eles vão dar proteção a outros de sua espécie, e não às ovelhas de Cristo. Seja um cristão maduro (Hb 5.13-14), tendo atitude de discernimento a fim de que o seu amor pela verdade de Deus esteja acima de todas as coisas.

2. NÃO OS RECEBA EM SUA CASA, NEM EM SUA IGREJA A atitude de não receber os falsos mestres, a ser descrita abaixo, pode parecer antipática, contrária ao espírito do tempo presente, mas, quando se trata da verdade de Deus, você não pode pensar nas opiniões sobre etiqueta em relação às pessoas. A verdade é mais importante do que uma relação amigável que sacrifica a verdade. Análise de Texto 2 João 7-11 – “(7) Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne: assim é o enganador e o anticristo. (8) Acautelai-vos, para não perderdes aquilo que temos realizado com esforço, mas para receberdes completo galardão. (9) Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo, e nela não permanece, não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem

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assim o Pai, como o Filho. (10) Se alguém vem ter convosco e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem lhe deis as boas-vindas. (11) Porquanto aquele que lhe dá boas-vindas faz-se cúmplice das suas obras más.”

O mandamento de Deus através do apóstolo João é muitíssimo claro. Há algumas coisas nos versos acima que precisam ser lembradas:

a. Havia uma grande heresia cristológica Verso 7 – “Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne.”

Essa grande heresia cristológica já foi estudada com mais detalhes no capítulo sobre a “Negação da Plena Humanidade do Redentor no Docetismo”, em um outro livro de minha autoria.122 Essa heresia trata de um docetismo cristológico, onde os falsos mestres apresentavam um Cristo que não era realmente humano, “não confessavam Jesus Cristo vindo em carne”. Negavam-lhe sua plena humanidade. A expressão “vir em carne” significa assumir uma plena natureza humana. Portanto, os falsos mestres sustentavam essa heresia cristológica muitíssimo séria. E essa grande heresia cristológica deveria ser rechaçada.

b. Havia enganadores pregando essa heresia Cristológica Verso 7 – “Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne: assim é o enganador e o anticristo.”

Os pregadores dessa heresia docética foram chamados de “enganadores”. A expressão enganadores tem a ver com a sutileza do conteúdo por eles pregado. Se o ensino deles fosse claro, se a negação da humanidade de Jesus Cristo fosse aberta, as pessoas não seriam enganadas.

(1) Observe o nome dado aos enganadores O nome “enganadores” tem uma expressão semelhante no verso 7 – “anticristo”. Essa palavra tem a ver mais precisamente com a idéia de apresentar um “falso Cristo” do que a de uma pessoa que é contra Cristo. Todos os anticristos que viviam no tempo de João e os anticristos subseqüentes, culminando no Anticristo final, têm como tônica o ensino errôneo sobre Jesus Cristo. Portanto, um anticristo é aquele que proclama enganosamente uma doutrina sobre Cristo que não corresponde à verdade. No caso em pauta, o anticristo era aquele que negava a plenitude de sua humanidade. 122. Veja Heber Carlos de Campos. As Duas Naturezas do Redentor (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004), 347-380.

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(2) Observe a extensão que o engano alcançava Não é de se espantar que muitas pessoas no tempo de João já estivessem começando a crer coisas errôneas sobre Jesus Cristo, pois o texto diz que “muitos enganadores têm saído pelo mundo fora”. Certamente a heresia já tinha alcançado os limites da pregação da fé cristã na época. Onde a verdade sobre o Redentor chegava, logo atrás chegava o erro em virtude da difusão desses muitos enganadores. Isso significa que eles não perdiam tempo na difusão da mensagem deturpada. Essa situação antiga nos deve deixar alertas, pois o erro se propaga em nosso tempo como em nenhuma outra época, incluindo o tempo de João, o apóstolo. As heresias cristológicas estão se multiplicando e se espalhando por toda parte. Os enganadores estão espalhados mundo afora. Isso também deve nos acordar para o fato de termos que ensinar corretamente a Igreja e sanar os males causados pelos enganadores. É uma tarefa pesada, mas necessária, se tivermos o desejo de recuperar alguns para a verdadeira fé. Não fuja da tarefa de ser um ajudador na pregação da sã doutrina. Por essa razão, adverte Matthew Henry, todos nós devemos estar cônscios dessa verdade: “Quanto mais os enganadores são abundantes, mais acautelados devemos ser”.123

c. Havia o perigo do trabalho apostólico ser desperdiçado Verso 8 – “Acautelai-vos, para não perderdes aquilo que temos realizado com esforço, mas para receberdes completo galardão.”

Primeiramente, João adverte do perigo que os enganadores trazem. Ele usa a palavra “acautelai-vos”, a mesma que Jesus usou em Mateus 7.15. A idéia da palavra no grego é “mantenham [a mente] fora dos” enganadores. A idéia é: “fiquem afastados deles”. Qual é a razão dessa cautela em relação aos enganadores? João responde de uma forma negativa e de uma forma positiva.

(1) Veja o que eles perderiam com a negligência da sã doutrina A razão básica para se pregar a são doutrina é dada por João de uma forma negativa. Eles não poderiam receber os falsos mestres, mas livrar-se deles “... para não perderdes aquilo que temos realizado com esforço”. Certamente o apóstolo não queria que o seu trabalho se tornasse vão. Ele havia semeado uma boa Cristologia na mente deles e não queria ver o seu trabalho desperdiçado. Além disso, o trabalho de João foi feito com grande esforço, e ele não queria ver toda a sua construção derrubada. 123. Matthew Henry, Exposition of the New Testament, vol. III (Londres: James Nisbet and Co., 1857), 739.

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Isso aponta para uma grande necessidade: creia e pregue de tal maneira que você honre os que pregaram fielmente no passado, para que a obra deles no Senhor não seja vã. É sua função pregar e ensinar zelosamente para que o firme fundamento lançado seja preservado intacto.

(2) Veja o que eles ganhariam com a pregação da sã doutrina A razão última para não dar acolhida aos enganadores é dada de uma forma positiva. Ele queria que os cristãos de sua época recebessem a plenitude da bênção divina: “... mas para receberdes completo galardão.” Se os destinatários da Carta de João pregassem a sã doutrina, eles não somente manteriam o resultado do esforço apostólico, mas também receberiam aquilo que todos nós desejamos: o galardão completo. Veja como é importante a pregação da boa doutrina, ou a rejeição de uma Cristologia errônea. A boa pregação nos fornece o complemento de nossa salvação, porque a pregação é o início da obra de Deus em nossa consciência. É pela pregação da palavra que vem a fé, e é pela pregação da palavra de um modo sadio que recebemos o galardão pleno. É como se o apóstolo nos tivesse dito: “Acautelem-se, para que vocês não deixem cair o que já foi construído com esforço, mas também se apropriem de tudo o que Deus ainda vai lhes dar através da manutenção da boa doutrina”. Portanto, se há graus de glória, não perca essa oportunidade de receber o grau maior, que é o complemento de tudo o que Deus está fazendo aqui já em você. Ensine a doutrina de Cristo de modo correto e você receberá o galardão pleno da parte de Deus. A boa pregação e o bom ensino certamente possuem alguma conotação soterológica. Por essa razão, você não deve pensar que seja pouca coisa rejeitar os enganadores e ficar do lado da verdade de Deus sobre Jesus Cristo.

d. Havia a advertência para ficar somente com a Cristologia apostólica Verso 9 – “Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo, e nela não permanece, não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem assim o Pai, como o Filho.”

(1) Veja o veredicto sobre quem vai além do ensino apostólico É a doutrina apostólica sobre Cristo que nos aponta para Deus. É a doutrina de Cristo e de seus apóstolos que atrai nossas almas para a salvação e para o próprio Deus. Se introduzirmos algo mais do que os apóstolos ensinaram, cairá sobre nós a acusação de “não termos Deus”. Se não temos o que nos conduz a Deus, certamen-

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te não temos Deus. Por isso os crentes da Igreja apostólica “perseveram na doutrina dos apóstolos”. Portanto, na sua pregação e no seu ensino, não adicione nada que não seja verdadeiro sobre o Autor de nossa salvação. Não somente não omita nada como não adicione nada. Assim como o próprio Cristo disse através de João que “se alguém lhes fizer algum acréscimo, Deus lhe acrescentará os flagelos escritos neste livro [o Apocalipse]” (Ap 22.18), o mesmo João também dá o veredicto terrível, que é o fato de não pertencer a Deus, que é o maior flagelo que alguém pode ter. Não pertencer a Deus significa estar fora de qualquer plano salvador de Deus. Portanto, não cometa o grande erro de não permanecer na doutrina de Cristo.

(2) Veja o veredicto para quem permanece com o ensino apostólico Todos aqueles que se contentam com a doutrina de Cristo e permanecem nela têm a bem-aventurança de pertencer a Deus. Essa é a grande alegria e recompensa de quem possui uma aderência firme à verdade revelada. Quem permanece na verdade de Cristo é porque está unido a ele. Quem “ultrapassa a doutrina de Cristo” não tem Deus. Todavia, aquele que “permanece na doutrina” tem a bênção duplicada: tem o Pai e também o Filho. Ter o Pai e o Filho é conhecê-los experimentalmente, e ter um santo amor por essas maravilhosas pessoas da Trindade. Essa é uma conclusão lógica: todo aquele que crê no Filho crê também no Pai. Por essa razão o cristão da Cristologia ortodoxa possui o Redentor e o Enviador do Redentor. Portanto, não ultrapasse a doutrina de Cristo. Permaneça fiel a ela e você a grande alegria de saber que não somente pertence a Deus, mas tem o Pai e o Filho com e em você, além do Espírito que já habita o seu coração.

e. Havia a advertência para não receber os enganadores Verso 10 – “Se alguém vem ter convosco e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem lhe deis as boas-vindas. (11) Porquanto aquele que lhe dá boas-vindas faz-se cúmplice das suas obras más.”

Esse é o ponto principal dessa análise. Os verdadeiros cristãos deviam não somente se ater à Cristologia ensinada pelos apóstolos, mas também tinham que ter uma postura firme em relação aos que ensinavam uma Cristologia diferente. O cristão não pode impedir que alguém chegue na sua comunidade para a adorar a Deus possuindo uma Cristologia diferente da ensinada pela Escritura. Todavia, o procedimento para com os que ensinam erroneamente sobre Jesus Cristo deve ser de repulsa.

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João fala nestes versos sobre o tratamento que deve ser dado aos hereges e fornece a razão para eles:

(1) João diz que cristãos não deveriam receber em casa os que portavam uma Cristologia diferente Em geral, os falsos mestres, tanto em tempos antigos como em tempos modernos, são visitadores de casas tentando impor a sua doutrina. Eles atacam os lares, que são o fundamento da Igreja, que é a família maior. Se eles conseguem convencer os lares, eles terão vitória no meio da comunidade. A advertência de Paulo provavelmente tenha algo a ver com a destinatária principal da carta, que não sabemos quem é, senão que ela é chamada de “senhora eleita e a seus filhos” (v. 1). Provavelmente ela era uma generosa dona de casa, hospitaleira dos ministros que viajavam pela região, e os recebia mui alegremente. Esses enganadores provavelmente quisessem tirar vantagem de sua hospitalidade. Então, o apóstolo João faz essa advertência séria de não receber em casa os falsos mestres do ensino cristológico. Se ela e sua família recebessem um ministro da palavra, este tinha que trazer a doutrina de Cristo conforme o ensino apostólico. Do contrário, eles não deveriam recebê-los. Essa advertência pode ser aplicada a todos que são cristãos e que gostam de dar boas vindas a irmãos da fé, recebendo-os em suas casas. Todavia, se alguém não professa a mesma fé (sinônimo de conjunto de crenças), e ensina coisas errôneas a respeito de Cristo, você não deve receber em sua casa hospedando-o. Se você receber o herege em sua casa, ele pode envenenar você com as doutrinas dele. Em geral, os falsos mestres são sedutores. Se você receber o herege em sua casa, você vai denegrir a autoridade apostólica. Se eles ensinam algo além da doutrina apostólica, eles não podem ser recebidos em casa nem devem ser considerados como ministros de Cristo. Se você receber o herege em sua casa, você estará recebendo um anticristo, um pregador da falsa doutrina que mancha o nome de Cristo. Portanto, não receba em sua casa o herege. Não o hospede para que você e sua família não recebam as más influências do seu ensino.

(2) João diz que os cristãos não deviam dar boas-vindas aos que portavam uma Cristologia diferente A expressão “boas-vindas” que é a tradução de xai/rein (chairein) é uma expressão de saudação como “ave, salve”. Essas expressões eram usadas na saudação nas reuniões assim como nas despedidas de alguém que partia (cf. 2Co 13.11). A idéia que a palavra grega passa é que os cristãos não devem se alegrar com a presença dos que não portam uma boa doutrina.

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(3) João mostra a razão desses procedimentos João fala que “aquele que lhe dá boas-vindas faz-se cúmplice das suas obras más”. Quando uma pessoa “dá boas-vindas” ao herege, essa pessoa torna-se cúmplice dele. A palavra grega usada para “cúmplice” é koinwnei= (cognato de koinonia), que dá a idéia de ter comunhão com os falsos mestres. Essa é uma comunhão imunda. Portanto, qualquer atitude de simpatia para com os hereges deve ser considerada uma ofensa a Deus. Se alguém que tem uma Cristologia sadia, não deve ter tolerância para com o ensino falso. Não precisamos ser grosseiros ou malcriados com os hereges, mas devemos mostrar a nossa repulsa pelo conteúdo do seu ensino. Se não fizermos isso, haveremos de ser contados entre os que participam dos erros deles. Portanto, não tenha medo de tomar essa posição. Não se coloque entre aqueles que ensinam coisas errôneas. Tenha a coragem de posicionar-se e dar a razão da esperança que há em você, mas não dê boas vindas aos que maculam a doutrina de nosso Senhor.

3. APARTE-SE DELES Além dos passos anteriores, há outros passos que os verdadeiros cristãos devem tomar. Veja o ensino de Paulo sobre o assunto. 2 Tessalonicenses 3.6 – “Nós vos ordenamos, irmãos, em nome do Senhor Jesus Cristo, que vos aparteis de todo irmão que ande desordenadamente, e não segundo a tradição que de nós recebestes.”

Se os falsos profetas e as outras pessoas em erro na sua igreja não quiserem ouvir e aceitar a verdade, aparte-se deles. O conselho de Paulo é: “Não sejais cúmplices nas obras infrutíferas das trevas; antes, porém, reprovai-as” (Ef 5.11). Mostre com todas as linhas aos outros irmãos quem eles realmente são e aparte-se deles. Não podemos e não devemos ter comunhão com aqueles que não estejam andando de maneira indevida, desobedecendo a tradição (isto é, o ensino) apostólica, causando desordem no meio do povo de Deus por viverem desordenadamente. Devemos os apartar daqueles cuja doutrina e comportamento não se conformam à Palavra da Verdade. Lembre-se de que isto não é uma sugestão de Paulo, mas uma ordenação dele. Não tenha medo de obedecer a Deus. Aparte-se deles se você anda hoje com eles. Não se preocupe com a opinião dos outros a seu respeito. Simplesmente preocupe-se com a opinião de Deus a seu respeito.

4. EVITE-OS Desde os primórdios do povo de Deus, sempre houve os que ensinaram e fize-

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ram coisas errôneas. No Antigo Testamento há um incidente que nos ajuda a ver o problema do erro de modo normativo. O profeta Jeú, temente e fiel à palavra de Deus, fez uma pergunta importante ao rei Josafá: “Devias tu ajudar ao perverso e amar aqueles que aborrecem o Senhor?” (2Cr 19.2). A melhor maneira de agradar a Deus, e não aborrecê-lo, é desviar-se daqueles que ensinam e fazem coisas errôneas. Veja o ensino de Paulo sobre esse assunto: Romanos 16.17-18 – “Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles, porque esses tais não servem a Cristo nosso Senhor, e, sim, a seu próprio ventre; e, com suaves palavras e lisonjas enganam os corações dos incautos.”

Veja que a ordem de Paulo era para evitar os que procedem em desarmonia com a “doutrina” (ensino da verdade). Isso tem a ver com a ética ou com o procedimento ímpio dos que vivem no meio da igreja. Todavia, a prática errônea surge da teoria errônea. Por isso você precisa se afastar daqueles que ensinam o erro, porque Paulo diz que eles “com suaves palavras e lisonjas enganam os corações dos incautos”. Essa é uma referência à teoria, ao ensino do erro contra a verdade. Você tem que evitar os que ensinam a falsa doutrina porque eles são arrogantes e presunçosos (1Tm 6.3-5). Eles querem colocar a injustiça no lugar da verdade, ou para usar a terminologia paulina, eles suprimem a verdade colocando a mentira no lugar delas (ver Rm 1.18, 25). Isso é presunção! Não comungue com essas pessoas, pois elas são “pervertidas e privadas da verdade”. Veja mais uma palavra de Paulo: 2 Tessalonicenses 3.14, 15 – “Caso alguém não preste obediência á nossa palavra dada por esta epístola, notai-o; nem vos associeis com ele, para que fique envergonhado. Todavia, não o considereis por inimigo, mas adverti-o como irmão.”

Os que ensinam coisas errôneas na igreja devem ser evitados. Você não deve se associar a eles. Deve se afastar deles para que o propósito restaurador seja efetivado: para que fiquem envergonhados. Se essas pessoas são realmente de Deus, mas estão enganadas, elas se voltarão para Deus se você obedecer aos princípios estabelecidos por Deus. Você deve mostrar o seu desagrado com elas, afastando-se delas, não se associando a elas. Não fuja de fazer isso com medo de ferir sensibilidades. Essa é uma ordenança divina. Não se associe ao herege, mas advirta-o. Essa é a única maneira estabelecida por Deus para que ele volte à razão, crendo na verdade de Deus. Já foi dito acima que os falsos mestres e profetas causam divisões. Se você quer agradar a Deus, evite-os, não mantenha comunhão com os falsos mestres.

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Isso não é falta de polidez, nem falta de cortesia ou mesmo um comportamento politicamente incorreto, mas é mandamento de Deus. Tito 3.10 – “Evita o homem faccioso, depois de admoestá-lo primeira e segunda vez, pois sabes que tal pessoa está pervertida e vive pecando, e por si mesma está condenada.”

O homem faccioso é o que causa divisões por questões doutrinárias. É curioso que a palavra grega traduzida como faccioso a(ire/tikon [hairétikon], de onde vem a palavra portuguesa heresia). Não é de estranhar, pois o verso 9 fala de “discussões insensatas, genealogias, e contendas, e debates sobre a lei...” Paulo está tratando de pessoas incorrigíveis que não querem nada com a verdade. O mandamento de Deus para você é evitar essa pessoa. Fuja dela, afaste-se dela, não tenha comunhão com ela. Você não estará sendo indelicado com ela, nem deixando de mostrar amor, mas simplesmente está obedecendo ao mandamento de Deus. É assim que homens e mulheres de Deus devem proceder!

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CAPÍTULO 2 A UNIPERSONALIDADE DO REDENTOR

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a história da Igreja houve muitas controvérsias a respeito da pessoa de Cristo, especialmente com relação à unio personalis, que é a união da Pessoa do Verbo – e sua natureza divina – com a natureza humana que ele assumiu. Há vários nomes relacionados com o mesmo assunto e que podem ser considerados como sinônimos: o nome mais usado na teologia sistemática é o termo união hipostática, mas o termo que prefiro usar neste trabalho é unio personalis. Também aparece em algumas obras de teologia a expressão equivalente gratia unionis (graça de união). Todavia, somente no final do século 5º houve uma espécie de tentativa de fechamento de algumas questões doutrinárias com respeito à pessoa de Jesus Cristo, especialmente com a elaboração do credo de Calcedônia. Embora as controvérsias não tenham terminado em todas as suas ramificações, as partes mais importantes sobre a pessoa do Redentor foram ali dogmaticamente estabelecidas. A Pessoa do Redentor dos filhos de Deus é absolutamente singular. Não há nenhuma pessoa como ele. Ele é, ao mesmo tempo, Filho de Deus e filho de Maria, sendo da descendência de Davi. Cremos que ele é tanto perfeito Deus quanto perfeito homem, possuindo a substância divina e a substância humana. Todavia, embora possuindo duas naturezas, ele possui uma só personalidade. Foi sobre a questão da unipersonalidade do Redentor que houve muita querela teológica na história da Igreja. Alguns acharam que ele possuía duas naturezas, mas duas personalidades; outros acharam que ele possuía uma só personalidade, mas também uma só natureza; outros, ainda, acharam que ele possuía duas naturezas, mas uma só personalidade. Historicamente, o Cristianismo ortodoxo pendeu totalmente para essa última opinião e trabalhou sobre dela com todas as suas forças. Não há muitos textos que tratem diretamente da união das duas naturezas numa só personalidade, mas há textos que indicam claramente duas naturezas distintas, mas não dois “eus” ou duas personalidades. Com os textos que analisaremos posteriormente foi que a igreja trabalhou sem cessar. As indicações que a Escritura dá da personalidade do Redentor são as de que ela é muito mais complexa do que a personalidade de um homem comum, porque

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ela é constituída de duas naturezas. É a união de ambas as naturezas numa só Pessoa que torna complexa a Pessoa do Redentor. Essa união é chamada pessoal ou hipostática, mas não é uma união de pessoas (como a união do Pai, Filho e Espírito Santo na Divindade). A união de que vamos tratar é a união de duas naturezas numa só Pessoa que sempre existiu. UMA PALAVRA DE ADVERTÊNCIA Como esse assunto possui um alto grau de complexidade em comparação com outros assuntos de caráter teológico, é oportuna uma palavra de advertência a todo o que quiser ensinar sobre a unipersonalidade de nosso Redentor. Tanto quanto possível, o uso exato dos termos e dos conceitos é muito importante nessa matéria, talvez como em nenhuma outra. Tente usar as palavras e os conceitos da forma mais precisa possível, a fim de que você não confunda as pessoas que o ouvem ou que lêem o que você diz ou o que escreve, mas que nunca ouviram qualquer noção sobre a unio personalis. Essa é a tentativa que faço neste livro, a fim de poder ajudar e estimular todos os que se dedicam ao ensino sobre a complexa Pessoa de nosso Redentor. Portanto, peço ao leitor que se aplique no conhecimento da pessoa de Jesus Cristo [especialmente quando trata da união das duas naturezas numa só Pessoa, que é a unio personalis], a fim de que você possa ser capaz e hábil na emissão dos conceitos cristológicos. Essa é uma doutrina muito importante para você e para aqueles aos quais você transmite as verdades sobre Jesus Cristo. É uma doutrina difícil de ser compreendida, e facilmente leva-nos a cometer erros. Todavia, não se assuste com isso. Apenas seja cauteloso e tente ser fiel ao máximo ao sentido do texto da Escritura, e, na medida do possível, familiarize-se com o vocabulário teológico deste livro.

DEFINIÇÃO DE UNIO PERSONALIS Esse assunto da unio personalis (ou união hipostática) é bastante difícil, porque trata de um caso sui generis. Jesus Cristo é uma pessoa absolutamente ímpar. Ninguém tem uma personalidade com natureza (ou essência) dupla – a saber, divina e humana – como o nosso Redentor. A singularidade dessa situação é que torna muito complexa a Pessoa de Jesus Cristo. Se é difícil estudar sobre a união das duas naturezas numa só Pessoa, muito mais difícil ainda é a definição dessa obra miraculosa do Espírito Santo, que resultou na unio personalis. No entanto, alguns teólogos se aventuraram a dar uma definição dela. Veja como Müller define a unio personalis: “[é] a aquisição da natureza humana pela pessoa eterna e pré-existente do Filho de Deus de tal forma que atrai a natureza humana em unidade com a pessoa divina sem divisão ou separação de naturezas,

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mas também sem mudança ou confusão de naturezas; todavia de tal forma que os atributos de ambas as naturezas pertençam à pessoa divino-humana e contribuam conjuntamente para a obra de salvação.”124

O Filho de Deus é a Pessoa eterna, ou o modo de subsistência da Segunda Pessoa da Trindade, que possui uma existência individual desde toda a eternidade. Essa Pessoa eterna, com uma natureza divina eterna, veio a este mundo, e, pela ação poderosa e miraculosa do Espírito Santo, assumiu uma natureza humana que ainda não existia independentemente da sua união com o Filho de Deus. A natureza humana subsiste unicamente na união com o Logos, não tendo subsistência independente à parte dessa união. “Assim, a união da pessoa divina (e sua natureza) com a natureza humana não resulta na criação de uma pessoa dupla, mas numa pessoa divina, em quem as duas naturezas, a divina e a humana, estão unidas”.125 No ato da unio personalis, que é simultâneo com a concepção, o Filho de Deus, possuindo uma natureza divina, assumiu uma natureza humana que ficou unida à sua personalidade. Essa união, em si mesma, não era essencial para o Filho, mas era essencial para que houvesse um Redentor; essa união em si mesma não era acidental, nem mística nem moral, e muito menos meramente verbal, mas uma união real e sobrenatural, uma união que tem duração eterna. Uma vez que ela veio a existir, ela nunca mais deixará de existir. Essas duas naturezas não se misturam e nunca se confundem uma com a outra, ainda que “se interpenetrem em perfeita união de forma que a humana nunca é sem a divina ou a divina sem a humana”.126

DISTINÇÃO E RELAÇÃO ENTRE NATUREZA E PESSOA Na doutrina da unio personalis há o grande problema das definições e das relações entre os termos “natureza” e “pessoa”, ou “natureza” e “hipóstase”, porque na nossa compreensão moderna uma pessoa não é nada mais do que uma hipóstase racional. A definição de substância (ou natureza) é diferente da de pessoa ou subsistência. Na nomenclatura teológica que se desenvolveu durante os séculos na história da Igreja, a palavra “natureza” é designativa de “substância” ou “essência”, e a palavra “pessoa” é designativa de “subsistência”. Uma personalidade não é uma parte integral e essencial de uma natureza. É crença dos cristãos da ortodoxia que pode existir uma natureza sem a pessoa, embora nunca uma pessoa sem uma natureza.

124. Richard Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms (Grand Rapids: Baker, 1986), 316. 125. Ibid., 316. 126. Ibid., 316.

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A. O SIGNIFICADO DE NATUREZA Podemos definir natureza (ou essência) como sendo “as propriedades de uma substância que fazem ser o que ela é [mas], não a forma individual que ela possa assumir”.127 O Redentor teve todas as propriedades essenciais que eram necessárias para que ele fosse humano e todas as propriedades essenciais para que ele fosse divino, como já foi visto na definição da Confissão de Fé de Westminster. Todavia, podemos (e devemos) usar um outro nome que ajuda na definição de natureza (physis em grego), que é a palavra atributo. Um atributo é uma qualidade, aspecto ou característica essencial de uma coisa. Ele nada tem a ver com o que é acidental. Deixe-me exemplificar: uma característica essencial de uma esfera é ser redonda. Se ela deixar de ser redonda, ela não mais é uma esfera, mas um outro sólido geométrico diferente. Os acidentes da esfera são a cor, a consistência, o material de que é feita, etc. Essas coisas não são essenciais na bola, mas acidentais nela. Ela não deixa de ser bola se tiver uma cor, tamanho, consistência ou materiais diferentes. Mas ela não pode deixar de ser redonda e ainda continuar sendo uma esfera. Se os atributos mudam, muda também a essência, e o objeto ou o ser passa a ser de natureza diferente. Todavia, os acidentes podem ser mudados, sem que haja qualquer mudança de natureza ou de essência. Então, posso dizer com toda clareza que é essencial em alguma coisa o que ela não pode deixar de ter. Portanto, concluo que o Redentor possuía duas naturezas (ou essências) que o constituíam verdadeiramente em Redentor divino-humano, ou seja, a essência divina e a essência humana. Quando falamos da natureza divina do Redentor, estamos falando daquilo que é essencial em Deus, ou seja: onisciência, onipotência, onipresença, eternidade, imensidão, imutabilidade, auto-existência, transcendência, etc. Essas coisas são essenciais em Deus e fazem com que ele seja o que é. O Filho, que estava para ser encarnado, possuía todas essas coisas. Nesse sentido ele é o mesmo com seu Pai (“Eu e o Pai somos um”), isto é, ele possuía as propriedades essenciais de seu Pai. Quando falamos da natureza humana, estamos falando das propriedades físicas, racionais, morais e espirituais. A natureza humana do Logos nunca existiu separada da sua união com a Pessoa divina do Verbo, que possui uma natureza divina. A Confissão de Fé de Westminster diz que Cristo assumiu “a natureza humana com todas as suas propriedades essenciais”, que distinguem o homem como homem. O Mediador teve tudo o que pertence à essência do homem. Turretini disse que “medimos a realidade e a dignidade de uma natureza humana pelas propriedades essenciais da natureza, não pela característica de individualidade subseqüentemente acrescentada a ela”.128 127. W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. II (Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1980), 291. 128. Turretin, citado por Shedd, p. 291.

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B. O SIGNIFICADO DE PESSOA A definição de pessoa é ainda mais complicada do que a definição de natureza. Há alguns conceitos que parecem inconsistentes, e um deles desenvolvo a seguir. Tratando da definição de pessoa (e de personalidade), Bonsall comete um equívoco, segundo o meu entendimento, afirmando que “personalidade é a posse de quatro partes componentes – pensamento, sentimento, vontade e consciência”. Então ele afirma categoricamente: “Se alguém tem falta de um desses [componentes], não é uma pessoa. Existir sem o pensamento significa ser um imbecil; sem o sentimento, um robô; sem a vontade, uma medusa [ou água-viva]; e sem a consciência, um monstro”.129 Se isso é o que caracteriza a personalidade, então Jesus Cristo só possuía a mente divina, o sentimento divino, a volição divina e a consciência divina. Se formos às últimas conseqüências dessa afirmação, então, por outro lado, temos de admitir que Jesus Cristo tinha uma dupla personalidade, pois ele possuía uma mente humana (que aprendia coisas à medida que ele crescia e recebia informações de seus pais e de outros mais velhos); Jesus possuía sentimentos humanos; Jesus possuía desejos humanos e consciência humana. Portanto, Jesus era tanto uma pessoa humana quanto uma pessoa divina. Todavia, devemos recusar esse tipo de raciocínio. O que constitui uma pessoa não é a posse desses “atributos”. Esses atributos são equivalentes à natureza, como vimos anteriormente. É verdade que todos nós, seres criados à imagem de Deus, possuímos essas quatro coisas essências. Todavia, é mais próprio dizer que esses quatro componentes são próprios da nossa natureza humana, e não de nossa existência pessoal. O Verbo (ou Filho) possuía uma subsistência pessoal no Ser trinitário, tendo mente, sentimentos, vontade e consciência segundo a sua natureza divina, como também possuía os mesmos componentes segundo a sua natureza humana. Por essa razão, dizemos que Jesus Cristo possuía duas mentes: pensava como Deus e pensava como homem; que ele possuía duas maneiras de sentir: sentia como Deus e sentia como homem; que ele possuía duas vontades: queria coisas como Deus e queria coisas como homem; e possuía duas consciências, tinha uma consciência divina e uma outra consciência humana. Portanto, atribuir esses quatro componentes como sendo essenciais à personalidade pode gerar distorções maiores, porque haveremos necessariamente de admitir duas pessoas distintas no Redentor, o que seria um erro fatal para a Cristologia. Então, se queremos atribuir a Cristo essas qualidades essenciais, atribuamolas às suas duas naturezas distintas, ou seja, à divina e à humana. Todavia, quando falamos de pessoa, estamos falando da individualidade autoconsciente. Na Trindade, a essência divina é comum ao Pai, Filho e Espírito Santo, 129. H. Brash Bonsall, The Person of Christ (Londres: Christian Literature Crusade, 1967), 74.

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mas a subsistência pessoal de cada um deles é distinta. Calvino escreveu que uma pessoa é uma subsistência na essência de Deus.130 “Assim, no uso trinitário, três personae subsistem na substância (ou essência) divina sem divisão e, no uso cristológico, uma persona tem duas naturae distintas, a divina e a humana”.131 As duas naturezas de Cristo “são distintas como uma coisa é distinta da outra. Visto que Cristo é uma pessoa com duas naturezas, e que pessoa ou subsistência é a pessoa divina, a humanidade de Cristo é vista como impessoal, ou como subsistente em e através de um outro”.132 Todos os homens têm a mesma essência ou natureza – a humana – mas cada um é um indivíduo separado, ou uma pessoa distinta. Cristo tem duas naturezas distintas, a divina e a humana, mas não existem dois indivíduos distintos (separados) em Cristo, apenas uma pessoa que miraculosamente possui propriedades essenciais de duas naturezas diferentes, em virtude da unio personalis.

1. O DESENVOLVIMENTO DO SIGNIFICADO DE HIPÓSTASE Os Pais da Igreja nunca usaram o termo hipóstase num mesmo sentido. Cirilo a usou com o sentido de physis (natureza).133 Talvez por causa disso, no Concílio de Éfeso, a palavra hipóstase tenha o significado de “físico” i.e., substancial, e não o sentido de união hipostática, embora a essa altura já se cresse nesse assunto.134 A palavra grega u(po/stasij passou por vários significados na história, até chegar ao seu uso teológico. Pohle nos diz que “originalmente u(po/stasij denotava ‘subestrutura, fundação, mira, caldo’. No decurso, do tempo o termo veio a ser aplicado metaforicamente ao ‘sujeito-matéria’ de um discurso, narrativa ou poema; finalmente ele foi usado para designar ‘realidade’ em oposição a ‘aparência’. Embora a transição pudesse parecer simples e natural o bastante, não temos evidência alguma de u(po/stasij sendo usada no sentido de substancia prima (ou)si/a prw/th), i.e., um indivíduo. Nas Cartas de Paulo u(po/stasij nunca ocorre no sentido de ‘pessoa’ ou ‘substância’, mas somente no sentido de ‘fundamento’ ou ‘base’, e, quando muito, ‘essência’. Até o Concílio de Nicéia, u(po/stasij, no uso eclesiástico, era sinônimo de essência (ou)si/a). Mesmo Santo Agostinho confessou sua ignorância de qualquer diferença de significado entre os dois termos.”135

130. Calvino, Institutas, I, xiii, 6. 131. Richard Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, 227. 132. Ibid., 227. 133. St. Cyril, Contra Theodoreto (veja Joseph Pohle. Christology, – A Dogmatic Treatise on the Incarnation (St. Louis, MO: B. Herder Book Co., 1943), 114. 134. Joseph Pohle. Christology – A Dog Treatise on the Incarnation, 115. 135. Joseph Pohle. Christology – A Dogmatic Treatise on the Incarnation 113, 114.

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Somente quando se acirraram os ânimos das controvérsias trinitárias e cristológicas foi que começou a surgir um novo significado para o termo hipóstase, e, então, a expressão substantia prima veio a significar pessoa. Assim, no ardor das controvérsias cristológicas, quando estava para se definir toda a questão sobre a pessoa e as naturezas de Cristo, foi que o termo u(po/stasij veio a ser considerado sinônimo de pro/swpon, um outro termo grego usado para descrever a idéia de “pessoa”.136 Dessa forma, “o termo técnico hypostasis, quando aplicado a seres racionais, é equivalente a Pessoa”.137 Por causa dessas diferenças é que somente no Quinto Concílio Ecumênico de Constantinopla, em 553 a.D., que a frase grega du/o u(posta/seij h)/toi du/o pro/swpa (duas substâncias ou duas pessoas) foi rejeitada, e expressamente definida a união das duas naturezas em Cristo como estritamente hipostática.138 Para ilustrar um pouquinho a questão de significados diferentes de uma mesma palavra, vamos usar essa palavra pelo menos com dois sentidos. Se hipóstase significa essência (ou phusis = natureza), como sugeriu Cirilo, então só há uma hipóstase na Trindade. Todavia, se hipóstase significa pessoa, ou subsistência pessoal, há três hipóstases diferentes na Trindade. É nesse sentido que o Segundo Concílio de Constantinopla (553 A.D.) trata do primeiro anátema: “Se alguém não confessa que o Pai e o Filho e o Espírito Santo são uma natureza ou essência, uma divindade em três hipóstases ou pessoas, que seja anátema. Porque há um Deus e Pai, de quem são todas as coisas, e um Senhor Jesus Cristo, através de quem são todas as coisas, e um Espírito Santo, em quem estão todas as coisas.”139

Portanto, nesse último sentido, o Redentor possui uma só hipóstase (agora com sentido de Pessoa), que se une à natureza humana. Essa união é chamada hipostática, ou pessoal. Daí, o outro nome técnico unio personalis.

C. RELAÇÃO ENTRE NATUREZA E PESSOA Já que os sentidos de natureza e pessoa se distinguem, como podemos entender a relação que existe entre a Pessoa do Verbo (com natureza divina) e a natureza humana que o Redentor veio a adquirir? Esse assunto é realmente complexo porque é singular em todos os seus aspectos. Certamente não pode haver uma pessoa sem uma natureza (isto é mostrado na Trindade, onde havia três subsistências pessoais independentes, mas que possuíam a mesma natureza), mas é possível haver uma natureza sem uma pessoa com subsistência independente. A humanidade de nosso Redentor existe sem indepen136. Ibid., 115. 137. Ibid., 114. 138. Ibid., 115. 139. Grifos meus.

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dência pessoal na união com o Logos. Embora a natureza humana do Redentor possua substância, ela não possui hipóstase, ou seja, subsistência independente (como é o caso das Pessoas da Trindade). Em Cristo não havia dois “eus”, mas um só. Se o Verbo se unisse a uma pessoa, então haveria dois “eus”, duas autoconsciências. Entre alguns teólogos da Idade Média, que gostavam de especulações, havia a idéia de que, se o Redentor assumisse o caráter de uma pessoa humana, essa pessoa humana se libertaria da união hipostática.140 Obviamente, não se pode dar crédito a essa hipótese fictícia, mas se houvesse duas pessoas no Redentor, certamente não haveria uma união hipostática. Somente haveria uma justaposição de duas pessoas vivendo lado a lado. Nada mais. A personalidade da natureza humana está no Logos, e é uma grande honra uma natureza humana “subsistir na Pessoa Divina do que em sua própria personalidade”.141 “A união da divindade com a humanidade do Mediador é estritamente hipostática, i.e., A Divindade não é unida com a humanidade imediata e formalmente, como natureza com natureza, mas somente de uma maneira indireta e mediata através da Pessoa do Logos. Se a relação fosse reversa, ou seja, se a humanidade de Cristo fosse formalmente unida à natureza do Logos e não com a sua Pessoa, resultaria uma mistura impossível de ambas as naturezas, ou ainda, numa transformação igualmente impossível de uma natureza em outra.”142

A obra total de Cristo, por causa da união hipostática, deve ser atribuída à Pessoa do Redentor, e nada deve ser atribuído exclusivamente a uma das naturezas. A Pessoa é o agente, e a natureza é o órgão ou o meio através do qual a Pessoa age. Por isso é dito que os milagres são operados por Jesus Cristo e os sofrimentos são suportados por Jesus Cristo. O que é próprio de cada natureza é atribuído à Pessoa do Redentor que é a que age.

ANIPOSTASIA OU ENIPOSTASIA? Não é difícil compreender alguns pontos estabelecidos claramente pelo Concílio de Calcedônia, mas um deles pode criar uma enorme dificuldade para as pessoas que não possuem muita familiaridade com o assunto: Como podem duas naturezas (a divina e a humana) constituir uma só Pessoa? Essa pergunta leva a um vocabulário extremamente técnico nessa parte do livro. Todavia, tentaremos minimizar a dificuldade que os vocábulos técnicos trazem explicando o significado de palavras desse assunto que são anhypostasy (anipostasia – impessoal) e enhypostasy (enipostasia – empessoal). 140. Pohle. Christology, 130. 141. Ibid., 132. 142. Ibid., 132, 33.

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Houve duas escolas na história da Igreja, das quais tratamos no capítulo anterior, que lidaram com algumas questões da Pessoa de Cristo: a escola de Alexandria e a escola de Antioquia. Elas tiveram abordagens diferentes com relação à natureza humana da Pessoa do Redentor. Por causa das duas idéias diferentes, houve um debate entre elas que ainda permanece vivo na teologia dos tempos modernos, ainda que os termos antigos não sejam muito usados hoje. Esses termos relacionados com a unio personalis são: anipóstase e enipóstase. Embora os Pais da igreja antiga tenham emprestado os conceitos de “anipostasia” e “enipostasia” da filosofia de Aristóteles, eles empregaram esses termos (nesse contexto) para descrever certas realidades sobrenaturais que transcendem não somente o uso delas na filosofia grega, mas também as possibilidades inerentes em nosso mundo natural.”143

Essas duas palavras, anipostasia e enipostasia, expressam duas idéias diferentes com relação à personalização da natureza humana no Redentor.

A. A POSIÇÃO DA ESCOLA DE ALEXANDRIA SOBRE A PERSONALIZAÇÃO DA NATUREZA HUMANA A escola de Alexandria usava o termo anipostasia afirmando que a natureza humana não era personalizada, mas, na encarnação, foi uma pessoa divina que assumiu as propriedades gerais da natureza humana, sem que viesse a possuir uma personalidade humana vivendo conjuntamente com a personalidade divina do Verbo (que já possuía natureza divina). Portanto, nessa concepção, não há nenhuma hipóstase (ou personalidade) humana adquirida na encarnação. De um modo mais preciso, podemos dizer que o termo anipostasia significa não-auto-subsistência.144 Por isso é dito que o Verbo assumiu uma natureza humana anipostática, isto é, sem pessoalidade, ou impessoal. A hipóstase (personalidade) do Mediador é unicamente divina, que é a do Verbo. Havia, sim, uma natureza humana potencializada em Maria, mas nunca essa natureza humana foi individualizada, nem mesmo após a encarnação. Uma outra maneira de dizer a mesma coisa é que não havia uma subsistência pessoal na natureza humana, nem havia qualquer individualização dessa natureza. O Verbo não tomou uma Pessoa Humana. Se ele tomasse uma pessoa humana, o que houve em Maria não foi uma encarnação, mas simplesmente uma possessão ou, no máximo, algo que teria causado uma dupla personalidade naquele que conhecemos como Redentor. A Pessoa do Filho é a única pessoa que existe no Redentor divino-huma143. Peter D. Anders, “Divine Impassibility and Our Suffering God: How an Evangelical ‘Theology of the Cross’ Can and Should Affirm Both”, Modern Reformation, http://www.modernreformation.org/mr97/ julaug/mr9704impassibility.html, site acessado em julho de 2003. 144. Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms (Grand Rapids: Baker, 1986), 35.

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no. A solução proposta pela escola de Alexandria, nesse caso, é a única maneira de explicar a divindade e a humanidade no Redentor sem atribuir a ele duas personalidades distintas. A doutrina da anipostasia, com suas raízes no período patrístico, que está especialmente ligada aos escritores protestantes posteriores, nega a existência independente da humanidade de Jesus Cristo, à parte de sua união com o Verbo. “A sua natureza humana certamente não existia num relacionamento entre o Eu e o Tu em relação à sua natureza divina.”145 De acordo com essa opinião, a humanidade de Jesus Cristo resulta da decisão da Segunda Pessoa da Trindade de adotar a natureza humana e de ter essa natureza unida a ela, todavia não personalizada. Mas “é mais seguro insistir que ele é uma pessoa divina que, sem ‘adotar’ uma pessoa humana existente, ele tomou a nossa natureza humana e entrou para a esfera total das experiências humanas”.146 Portanto, conforme a escola de Alexandria, não existe uma personalidade humana no Redentor porque os atributos humanos que essa pessoa tem pertencem à natureza humana, e não à subsistência pessoal. Portanto, não é necessário ser uma pessoa humana para se possuir atributos humanos. Basta a natureza humana para que e Pessoa do Redentor possua atributos humanos. A natureza divina existe necessariamente na Personalidade do Verbo, mas a natureza humana não existe necessariamente, mas veio a existir porque assim o Conselho Trinitário resolveu que existisse, para que o Redentor fosse considerado humano pelas características humanas de sua natureza. Embora aceitemos o fato de não haver personalização da natureza humana de per se no pensamento da escola de Alexandria, é bom observar que o termo anipostasia não é o melhor termo para se aplicar à natureza humana de Cristo, embora a intenção dela seja a de evitar a idéia de uma pessoa humana no Redentor, para não cair no nestorianismo, que supostamente ensinava duas personalidades no Redentor. O termo preferido é o que passamos a estudar agora – a enipostasia da escola de Antioquia, que inclui, em alguma medida, a preocupação da anipostasia de Alexandria.

B. A POSIÇÃO DA ESCOLA DE ANTIOQUIA SOBRE A PERSONALIZAÇÃO DA NATUREZA HUMANA A escola de Antioquia defendia a idéia que, na teologia, hoje, é conhecida como enipostasia, que é a subsistência da natureza divina na subsistência de uma outra pessoa. O termo enipostático (empessoalidade) apareceu de forma significativa quando usado por Leôncio de Bizâncio em sua obra Adversus Nestorianos et 145. Donald Macleod, The Person of Christ, 201. 146. Ibid.

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Eutychianos para transmitir a idéia de duas naturezas existindo numa pessoa.147 É curioso que o conceito estudado anteriormente – anipostasia – combatia o nestorianismo, e o conceito de enipostasia combatia não somente o nestorianismo, mas também o eutiquianismo. O aparecimento do conceito de enipostasia foi que “permitiu a Leôncio [de Bizâncio] evitar o erro nestoriano das duas hipóstases, enquanto, ao mesmo tempo, contrariava o argumento monofisita de que não pode haver algo como uma natureza sem uma pessoa (physis anhypostatos).”148 Müller diz que esta palavra enipostasia é “usualmente aplicada à natureza humana de Cristo com referência à identificação da ‘pessoa’ ou subsistência de Cristo como a pessoa eterna do Verbo que, no tempo, assumiu uma natureza humana não auto-subsistente, anipostática. O propósito desta formulação, que surgiu após Calcedônia, principalmente no pensamento de João de Damasco, é para salvaguardar a união das duas naturezas através da afirmação da unidade da pessoa de Cristo: a pessoa é divina, e não a soma das duas naturezas.”149

Conforme essa escola, a humanidade de Cristo não é uma personalidade independente, em vez disso, encontra-se personalizada no Logos. Quem primeiro usou a expressão enipostasia foi João de Damasco. Ele esclarece o conceito em sua Exposition: “Porque a carne de Deus, o Verbo, não subsistia como uma subsistência independente, nem surgiu ali uma outra subsistência além da de Deus o Verbo, mas como ela existiu naquela, ela se tornou antes uma subsistência que subsistiu em uma outra, ao invés daquela que era uma subsistência independente. Portanto, nem ela carece de subsistência completamente, nem ainda há assim introduzida na Trindade uma outra subsistência.”150

É significativo que João de Damasco tenha tratado de assunto tão profundo em sua época, e que ele tenha percebido os perigos que ele tentou evitar nessa citação: A “carne de Deus” a que ele se refere é a natureza humana de Jesus Cristo. Ela não possuía uma subsistência pessoal independente. Essa sua idéia foi elaborada com o propósito de evitar o acréscimo de mais uma subsistência pessoa na Trindade, o que seria uma quarta pessoa na “Trindade”. Para João de Damasco, a natureza humana adquiriu personalidade (não de si própria) no Logos. Quando, na encarnação, a natureza humana foi unida ao Logos, ela se personalizou nele, de modo que há somente uma Pessoa com duas naturezas, não duas pessoas. 147. Ibid. 148. Ibid. 149. Richard A. Müller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, 103. 150. João de Damasco, Exposition of the Ortodox Faith, Book III, Chapter IX (itálico acrescido).

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É importante compreender que o termo enipostasia é preferível ao termo anipostasia. Por que? Porque “a natureza pode somente existir individualmente num indivíduo, e, daí, uma natureza sem uma hipóstase seria uma abstração”.151 Por essa razão, o termo enipostasia é preferível, porque ele concebe a subsistência da natureza humana na hipóstase do Verbo. Embora a natureza humana de Cristo “não seja um indivíduo, ela é individualizada como a natureza humana do Filho de Deus. Nem por um só instante ela existe como anipostatos ou não-pessoal. Como embrião, o feto, o infante, criança e homem, [Cristo] é hipostatos na Segunda Pessoa da Trindade.”152

O grande problema dessa visão da escola de Antioquia é que Jesus Cristo possa ser erroneamente interpretado como tendo duas autoconsciências, uma divina e outra humana. Após a encarnação, o Redentor teria dois “eus” diferentes, o que torna a situação mais difícil ainda de ser crida. Todavia, não é assim que a enipostasia deve ser interpretada. Não é uma pessoa humana que subsiste em outra pessoa, a do Verbo, mas uma natureza humana individualizada na hipóstase da Segunda Pessoa da Trindade. Jesus Cristo não era um ser divino e um ser humano, mas uma única Pessoa (sendo a base de sua personalidade a sua divindade) com duas naturezas. A hipóstase divina com sua natureza divina é a hipóstase da natureza humana, que nela subsiste. Essas duas escolas são diferentes na consideração da natureza da encarnação do Verbo. Todavia, essa pequena análise acima somente diz respeito às posições antigas, não às modernamente assumidas na teologia contemporânea. Portanto, historicamente, podemos dizer que “a união hipostática envolve o Filho divino, com ambas, a natureza divina e a hipóstase, tornando-se a hipóstase da natureza humana. Isso torna possível afirmar que Jesus [o Verbo] encarnado possui uma natureza humana e uma natureza divina unidas numa hipóstase ou pessoa. Essa doutrina das duas naturezas na Cristologia tradicional de Calcedônia procura não somente fazer uma distinção entre as naturezas divina e humana, mas também asseverar a unidade delas na única pessoa de Jesus. Essa uma só Pessoa, Jesus, é ambos, plenamente humano, possuindo todas as qualidades essenciais ou atributos da humanidade, e plenamente divina, possuindo todos as qualidades essenciais ou atributos da divindade.”153

Resumindo, podemos dizer que o termo anipostasia diz respeito ao fato da natureza humana de Cristo não poder existir em nenhum momento fora do Logos, 151. Donald Macleod, The Person of Christ, 201. 152. Ibid., 202. 153. Peter D. Anders, “Divine Impassibility and Our Suffering God: How an Evangelical ‘Theology of the Cross’ Can and Should Affirm Both”, Modern Reformation, http://www.modernreformation.org/mr97/ julaug/mr9704impassibility.html, site acessado em julho 2003.

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enquanto que o termo enipostasia indica que a realidade da natureza humana está personalizada no Logos. De um lado, podemos crer na anipostasia, porque não existe uma natureza humana independente antes da encarnação. Por outro lado, é preferível usar o termo enipostasia, porque podemos crer na individualização da natureza humana na hipóstase (pessoa) do Logos. Portanto, os termos técnicos anipostasia e enipostasia devem ser devidamente entendidos para que seja relativamente compreendida a complexa doutrina da unipersonalidade do Redentor.

FUNDAMENTO BÍBLICO PARA A UNIO PERSONALIS Há vários textos na Escritura que nos fornecem uma base bíblica para a sustentação de uma só Pessoa que possui duas naturezas. Mesmo o Antigo Testamento menciona algumas passagens que podem ser usadas como fundamento da doutrina da unio personalis. Na encarnação, o Logos (Verbo) não se une a uma pessoa humana previamente existente, mas tem acrescida sobre si a natureza humana, que é composta de alma e corpo. É a essa natureza que o Verbo se une. Há alguma base bíblica explícita para essa matéria, embora a argumentação seja mais teológica, porque trata-se do maior mistério que a fé cristã possui. Nada há mais misterioso para a fé cristã do que a unio personalis que se deu na encarnação do Verbo. A Santa Escritura também atribui a Cristo duas séries distintas de predicados, cada série correspondendo a uma de suas naturezas.

A. EXEMPLOS ANTECIPADOS NO ANTIGO TESTAMENTO Isaías 7.14 – Portanto, o Senhor mesmo vos dará um sinal: eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel.” (cf. Mt 1.23)

O profeta fala, aqui, de uma só pessoa possuindo duas naturezas completamente distintas. Ao mesmo tempo em que o texto diz que uma virgem (almah) daria à luz um filho seu, esse filho também deveria ser chamado “Deus conosco”. Um ser singular e único com divindade e com humanidade. Ele é o Deus manifesto em carne pela união das duas naturezas numa só pessoa. Isaías 9.6 – “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz.”

Aqui novamente podemos ver uma só pessoa que possuía duas naturezas. O “Deus Forte” é chamado “um menino nos nasceu”. Ao mesmo tempo em que essa pessoa é eterna, “Pai da Eternidade”, em virtude de sua divindade, ela também tem

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conotações temporais porque “nos nasceu” segundo a sua humanidade. John Owen diz que essas coisas “não são concebíveis nem possíveis, nem podem ser verdadeiras, exceto pela união das naturezas divina e humana numa mesma pessoa”.154 Embora as Escrituras não usem o termo técnico, unio personalis, os exemplos do Antigo Testamento citados acima apontam para um Redentor com duas naturezas unidas de maneira miraculosa, secreta e inexplicável logicamente.

B. EXEMPLOS CONFIRMADOS NO NOVO TESTAMENTO As palavras “semente”, de Gênesis 3.15, e “carne e sangue”,, de Hebreus 2.14, implicam que a humanidade com a qual o Logos foi unido não era ainda personalizada, não era um indivíduo distinto. João 1.4 diz que o “Verbo se fez carne”. O Verbo é a Segunda Pessoa da Trindade, que, ao fazer-se carne, assumiu a natureza humana. “Carne”, aqui, é indicativo de natureza humana, não simplesmente da parte física, que é o corpo. Conseqüentemente, podemos dizer que o Verbo encarnado é, portanto, Deus-homem (qea/ntrwpoj). “Com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi...” (Rm 1.3) . Em Gênesis 3.15, no proto-evangelho, o Salvador prometido foi dito ser da “semente da mulher”; em Hebreus 2.14, é dito que “os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele, igualmente, participou...” É importante observar que a palavra grega traduzida como “descendência” em Romanos 1.3 é spe/rmatoj (espermatos = semente), o que indica que o Senhor Jesus recebeu a sua natureza humana do fato de ser humano, não do céu. Vejamos apenas mais alguns exemplos que ilustram a unio personalis no Novo Testamento: João 8.58 – “Em verdade, em verdade vos digo: Antes que Abraão existisse, EU SOU.”

Esse texto aponta inquestionavelmente para a unio personalis. Aí está um homem, com um pouco mais de trinta anos de idade, falando a uma turma de judeus que os conhecia desde criança. Ao mesmo tempo em que as pessoas viam ali uma figura humana, com todas as características da humanidade, elas ouvem de sua própria boca a afirmação de sua divindade, argumentando sobre a sua pré-existência. Jesus Cristo provocou fortes reações nos judeus porque ele tocou na figura central deles que era muito antiga – Abraão – dizendo-se mais antigo que Abraão. Era impossível para os judeus alguém ser ao mesmo tempo Deus e homem. Somente a unio personalis é que torna possível uma pessoa complexa como a do 154. John Owen, The Works of John Owen, vol. 1 (Londres: The Banner of Truth Trust, ed. 1987), 226.

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nosso Redentor. Mas sobre essa possibilidade nunca os judeus haviam pensado. Somente bem mais tarde é que a Igreja começou a formular essa doutrina que embora complexa, é maravilhosa! Colossenses 2.9 – “Porquanto, nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da divindade.”

Em razão das duas naturezas existentes nessa mesma pessoa, Paulo fala “nele” (aquele que andava entre os seus companheiros) – um perfeito homem – com todas as propriedades humanas (inclusive a propriedade física), que ao mesmo tempo porta a plenitude da divindade, com todas as suas propriedades. Na mesma pessoa, duas naturezas unidas de forma inexplicável e ininteligível. Todavia, o texto fundamental que trata das duas naturezas unidas no mesmo Redentor é o de João 1.14, que passamos a analisar. Análise de Texto João 1.14 – “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai.”

A redenção do pecador exigia que houvesse um Redentor com ambas as naturezas, a divina e a humana, como já foi visto anteriormente. Essa exigência já havia sido decidida dentro do conselho trinitário, e mostrada no estudo do pacto da redenção. A fim de que o Redentor pudesse exercer a sua obra, foi necessária a encarnação do Verbo para que o Redentor pudesse, ao mesmo tempo, ter as duas naturezas. O Redentor tinha de ser Deus para ter o poder de redimir, e tinha de ser homem para poder sofrer no lugar daqueles a quem haveria de redimir. O Emanuel, a fim de tornar-se Redentor, teve de ser Deus conosco, teve de participar da raça humana, sendo um de nós, para exercer a sua tarefa de Mediador. Portanto, o texto acima é básico para a compreensão dessa preciosa matéria.

1. OBSERVE QUE O VERBO QUE SE FEZ CARNE ERA UMA PESSOA “E o Verbo se fez carne...”

Perceba que João dá características pessoais ao Verbo. Ele não é uma força ou uma energia, como ensinaram heresias passadas e ainda ensinam algumas heresias presentes. Quando inicia o seu Evangelho, João fala que o Verbo era uma pessoa porque ele estava com Deus (v. 1) e fazia coisas próprias de Deus (v. 3) por causa de sua natureza pessoal. Aquele que assumiu a “carne” era uma pessoa divina, a Segunda da Trindade, a Pessoa mais gloriosa e importante que já esteve entre nós. João afirma que ele é

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“o Deus Unigênito” (v. 18). Depois da encarnação, essa pessoa tornou-se a mais importante e a mais falada entre nós. Isto tem sido verdade por mais de dois mil anos, e será assim para sempre. Uma pessoa respeitada por todos, mesmo por aqueles que nunca vieram e nem virão a crer nele.

2. OBSERVE QUE ESSA PESSOA É CHAMADA VERBO “E o Verbo se fez carne...”

A palavra grega usada aqui para Verbo é Lo/goj (Logos), e é muito significativa. O Filho de Deus sempre foi a Pessoa na Divindade que teve a atribuição de ser a comunicação de Deus. Ele é o agente de todas as obras de Deus. Ao enviar o Filho ao mundo, o Pai estava enviando alguém que haveria de representar a divindade sendo o porta-voz dela, a comunicação de Deus aos homens. Assim, lingüisticamente, como uma palavra é a expressão de uma ação, ou de um pensamento, o Verbo é expressão de Deus, é Deus tornado expresso em palavras e atitudes. Há muitas coisas que poderíamos falar da palavra Verbo, desde os conceitos gregos sobre o logos até o conceito joanino, mas essa não é a intenção deste trabalho. Apenas quero deixar ao leitor a idéia de que aquele que veio ao mundo era a Palavra de Deus, aquela através da qual todas as coisas foram feitas e sem ela nada do que foi feito se fez. Essa palavra criadora é Deus comunicado aos homens, tomando parte da humanidade deles!

3. OBSERVE A NATUREZA ASSUMIDA PELA PESSOA DO VERBO “E o Verbo se fez carne...”

O Verbo passou a possuir alguma coisa que não lhe pertencia antes da encarnação – carne, isto é, as propriedades da natureza humana. A totalidade da natureza humana veio a pertencer agora ao que chamamos de “Verbo Encarnado. Todavia, não podemos crer que o Verbo assumiu uma natureza humana personalizada. A propósito dessa discussão, vimos, ainda que rapidamente, uma questão técnica que tem sido discutida desde há muito na história da igreja, sobre a anipostasia e a enipostasia. Essa natureza humana, como já vimos anteriormente, é, portanto, constituída de um corpo real e de uma alma racional, uma natureza humana completa. Esse é o sentido da palavra “carne” aqui nesse texto de João. Outros escritores bíblicos como Paulo e o escritor de Hebreus também usam a palavra “carne” no mesmo sentido de João, apontando para a natureza humana de Jesus Cristo. Como já observamos no capítulo sobre a história da doutrina, houve alguns que negaram a verdadeira humanidade de Jesus Cristo, dizendo que a sua natureza humana ele a recebeu do céu. Esse docetismo já foi esposado por Socino, logo

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depois da Reforma do século 16. Na verdade, o Verbo não era carne desde o céu, mas ele foi feito carne, isto é, ele passou um dia a possuir o que antes não possuía – a natureza humana. Como veremos mais à frente, a natureza humana não existia antes da encarnação. Ela veio a existir quando houve a encarnação, e essa encarnação foi a aquisição de todas as propriedades de um ser humano completo, com todas as suas partes integrais e perfeitas.

4. OBSERVE QUE O VERBO HABITOU ENTRE NÓS Por essa razão, o escritor bíblico fala “dos dias da sua carne” não como se referindo ao tempo da sua humanidade, mas ao tempo em que ele viveu em nosso meio. Ele não era um fantasma, mas uma coisa real, tinha aparência de homem, mas não uma simples aparência. Ele era essencialmente um homem que podia ser visto e tocado. Por essa razão, o mesmo João disse, mais tarde, quando mais experiente na vida de mestre da verdade: “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida...” (1Jo 1.1). Quando ele esteve entre nós, era uma pessoa real com todas as propriedades de um ser humano, que podia ser visto, ouvido e tocado. Nem mesmo os mais incrédulos podem negar que Jesus esteve de fato entre nós. A diferença com eles é que eles não crêem na divindade daquele que esteve entre nós. Para eles, ele não passou de um ser real, mas um homem real. Para nós, todavia, ele, o Verbo divino, habitou entre nós, não apenas como Verbo, mas como aquele que assumiu a nossa humanidade, um que veio a ser um homem real, que teve a sua natureza divina juntada inexplicável e misteriosamente à uma natureza humana, e que gastou alguns anos dessa existência divino-humana entre nós.

5. OBSERVE A QUALIDADE DA SUA PERMANÊNCIA ENTRE NÓS “Cheio de graça e verdade”

A união pessoal deu ao Redentor qualidades maravilhosas que não encontramos em nenhum outro semelhante a nós, qualidades essas que não podem ser ditas de nenhum de nós da maneira como foram ditas de Jesus Cristo. Certamente essas qualidades abaixo dizem respeito ao Encarnado, não simplesmente ao Verbo. A graça e a verdade são agora propriedade daquele que possui duas naturezas, pois essas duas coisas foram percebidas pelos seus discípulos pelo que Ele fez e pelo que disse.

6. OBSERVE A GLÓRIA DA ESTADA DELE ENTRE NÓS “E vimos a sua glória, glória como a do Unigênito do Pai.”

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Certamente essa expressão refere-se ao que se encarnou, o Verbo, e aponta para a sua fulgurante divindade. Embora Ele tenha se humilhado no fato de assumir uma natureza humana caída, com os resultados da queda, Ele não pode esconder o esplendor da sua divindade, da sua realeza. Ele não ocultou plenamente toda a sua divindade. A luz divina escapou pelas frestas da sua humanidade de forma que os homens puderam perceber que, por detrás daquele homem “manso e humilde” havia uma divindade majestosa e poderosa. “Vimos a sua glória”. Este elemento majestático do Redentor ficou patente na encarnação, e essa “glória” não escapou [por graça] à percepção dos seus amados discípulos.

7. OBSERVE A SINGULARIDADE DAQUELE QUE ESTEVE ENTRE NÓS “Unigênito do Pai”

Não há alguém semelhante ao Filho encarnado. Como ninguém, ele é Filho de Deus. Ele era o Filho singular, único, de Deus, e era “o resplendor da glória” (Hb 1.3) de Deus, sendo “a expressão exata do seu Ser” (Hb 1.3). Por essa razão, os discípulos puderam ver nele o Deus verdadeiro e a vida eterna.

FUNDAMENTO CONFESSIONAL PARA A UNIO PERSONALIS A unipersonalidade do Redentor é um ensino histórico da Igreja cristã através dos séculos, desde os primeiros séculos quando os credos foram formados até à formulação dos documentos cristãos mais elaborados, que são as confissões dos séculos 16 e 17. A Confissão de Fé de Westminster, elaborada no século 17, segue os credos antigos com respeito a esse assunto. “O Filho de Deus, a Segunda Pessoa da Trindade, sendo verdadeiro e eterno Deus, da mesma substância do Pai e igual a ele, quando chegou o cumprimento do tempo, tomou sobre si a natureza humana com todas as suas propriedades essenciais e enfermidades comuns, contudo sem pecado, sendo concebido pelo poder do Espírito Santo no ventre da Virgem Maria e da substância dela. As duas naturezas, inteiras, perfeitas e distintas - a Divindade e a humanidade - foram inseparavelmente unidas em uma só pessoa, sem conversão composição ou confusão; essa pessoa é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, porém, um só Cristo, o único Mediador entre Deus e o homem.”155

É impossível não ver como o parágrafo acima segue os dois credos principais do Cristianismo – o Niceno e o de Calcedônia. A Confissão de Fé de Westminster ensina várias coisas de credos ecumênicos da Igreja: 155. Confissão de Fé de Westminster, VII. II. (grifos acrescentados).

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A. ELA ENSINA A CONSUBSTANCIALIDADE DO REDENTOR COM O SER DIVINO A expressão da “consubstancialidade” é retirada, ainda que não literalmente, da Definição de Calcedônia (451), que fala do Filho como sendo “consubstancial [homoousios]” com o Pai. Veja como Westminster trata da consubstancialidade entre o Pai e o Filho: “O Filho de Deus, a Segunda Pessoa da Trindade, sendo verdadeiro e eterno Deus, da mesma substância do Pai e igual a ele...”

A CFW afirma de forma tríplice a divindade do Filho quando diz que ele é “verdadeiro e eterno Deus”, “da mesma substância do Pai” e “igual a ele”. Essencialmente não há diferença alguma entre as pessoas da Trindade. Elas compartilham da mesma essência. Por essa razão, Jesus disse: “Eu e o Pai somos um”. É como se ele dissesse: “Eu e o Pai possuíamos a mesma natureza substancial.” As expressões confessionais acima são formas diferentes de se dizer a mesma coisa. Portanto, a CFW ensina a perfeita divindade daquele que se encarnou.

B. ELA ENSINA A CONSUBSTANCIALIDADE DO REDENTOR COM O HOMEM A expressão de “consubstancial” com respeito à humanidade também é sacada da Definição de Calcedônia, que diz: “... e consubstancial [homoousios] a nós, segundo a humanidade.” “quando chegou o cumprimento do tempo, tomou sobre si a natureza humana com todas as suas propriedades essenciais e enfermidades comuns, contudo sem pecado, sendo concebido pelo poder do Espírito Santo no ventre da Virgem Maria e da substância dela.”

Assim como o Redentor é consubstancial com seu Pai, ele também é consubstancial com os homens. Em nada ele difere deles, com a exceção do pecado. Westminster afirma também as cousas próprias da encarnação sob os resultados da queda, que chama de “enfermidades comuns”. O mais importante, entretanto, para o nosso ponto aqui, é o fato do Redentor não somente ter sido “concebido pelo poder do Espírito no ventre da Virgem Maria” (pois o Espírito Santo poderia ter usado todas as propriedades humanas do Redentor vindas do céu, sendo Maria apenas o receptáculo por nove meses para a completa gestação dele), mas, sobretudo, pelo fato de ele ser “da substância dela”. Todos os genes que Maria teve foram passados a ele. A sua humanidade veio de sua mãe. Todos os cromossomos que ele poderia receber de Maria ele recebeu. Portanto, a consubstancialidade do Redentor com os seres humanos é uma afirmação confessional muito explícita, seguindo a idéia dos “fiéis aos santos pais”.

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C. ELA ENSINA A INTEIREZA, PERFEIÇÃO E DISTINÇÃO DAS DUAS NATUREZAS A CFW está também fundamentada nos Santos Pais para fazer a afirmação abaixo. A importância da história é muito grande para a teologia. Por isso, os teólogos de Westminster não titubearam na busca da verdade dos antigos na fé. Veja o que a CFW diz sobre o ponto acima: “As duas naturezas, inteiras, perfeitas e distintas – a Divindade e a humanidade –.”

Essa expressão acima é retirada, ainda que não literalmente, da Definição de Calcedônia, que diz: “Fiéis aos santos Pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade e perfeito quanto a humanidade.” 1. O texto da Confissão diz que elas são também “inteiras”. Por isso devemos entender que não há nenhuma cousa que esteja faltando em nenhuma das naturezas. Todos os aspectos substanciais de cada uma das naturezas permanecem após a unio personalis. 2. O texto da Confissão diz que as duas naturezas são perfeitas. A unio personalis não trouxe qualquer tipo de imperfeição para qualquer das naturezas do Redentor. Não há nenhuma mancha nelas advinda da união. Na verdade, como a união é perfeita, as duas naturezas permanecem intocadas, sem qualquer nódoa. 3. O texto da Confissão diz que elas são também “distintas”. Embora haja a união das duas naturezas, elas permanecem com as suas características distintivas sem que uma possa ser tomada pela outra. É importante o fato de que os Santos Pais (tanto de Nicéia quanto de Calcedônia) declararam unanimidade com respeito às qualidades perfeitas e completas tanto da humanidade quanto da divindade do Redentor. Nesse sentido, os teólogos de Westminster e todos os outros cristãos que aceitam a ortodoxia do Cristianismo também fazem coro com os “santos Pais” nessa verdade inquestionável e inegociável do Cristianismo histórico.

D. ELA ENSINA A UNIO PERSONALIS E A PERFEIÇÃO DESSA UNIÃO “A Divindade e a humanidade... foram inseparavelmente unidas em uma só pessoa, sem conversão composição ou confusão.”

Aqui também a CFW cita quase que literalmente as palavras da Definição de Calcedônia sobre a perfeição dessa unio personalis. Calcedônia usa abaixo quatro palavras [que estão em itálico] importantes dessa perfeição, da seguinte maneira:

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“Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se confessar em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação.”

1. SEM CONFUSÃO Isso significa que as duas naturezas são inconfundíveis. As propriedades da divindade são absolutamente diferentes das propriedades da humanidade. Não há mistura ou mescla das duas naturezas, porque as duas permanecem distintas, ainda que unidas. Em geral, os Reformados, seguindo João Calvino, ensinam que as duas naturezas estão unidas de tal forma que não há transferência dos atributos de uma natureza para outra, porque entendem que essa transferência não pode acontecer sem que haja mudança da essência daquela natureza. Portanto, não podemos admitir qualquer confusão entre as naturezas.

2. SEM MUDANÇA O nosso Redentor permanece para sempre Deus-homem, após a encarnação do Verbo. Para sempre ele será plenamente Deus e plenamente homem, duas naturezas distintas em uma só pessoa. Embora o nosso Redentor algumas vezes possa fazer alguma coisa que pertence à esfera da sua humanidade e outras vezes na esfera da sua divindade, todas as vezes deve ser entendido como sendo a operação da Pessoa completa. O fato de ora operar como Deus ora como homem não deve ser entendido como mudança nele. As duas naturezas do Redentor estão unidas de tal forma que não há perda ou mudança de qualquer um de seus atributos essenciais, mantendo cada uma das naturezas as suas propriedades para sempre.

3. SEM DIVISÃO Essa expressão é semelhante à expressão “sem separação” abaixo. Depois da união hipostática, o nosso Redentor nunca mais será somente Filho de Deus, ou Verbo, mas Filho de Deus encarnado, ou Redentor, com as duas naturezas unidas, embora distintas.

4. SEM SEPARAÇÃO As duas naturezas do Redentor estão inseparavelmente unidas, todavia, sem a perda da identidade de cada uma delas. Ele permanece para sempre Deus-homem, sendo plenamente Deus e plenamente homem. Westminster fala de maneira clara que as duas naturezas “foram inseparavelmente unidas em uma só pessoa”. John Owen diz a respeito de Calcedônia que “essas expressões foram descobertas e usadas pela Igreja antiga para evitar a fraude daqueles que corrompiam a doutrina da pessoa de Cristo e... obscureciam seus sentimentos perniciosos sob

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expressões ambíguas. Eles também fizeram uso de diversos termos que julgavam significativos desse grande mistério, ou da encarnação do Filho de Deus”.

E. ELA ENSINA UMA SÓ PESSOA NA ENCARNAÇÃO, SENDO VERE DEUS E VERE HOMO O Filho de Deus, a segunda pessoa da Trindade, possuía a natureza divina. Foi ele que se encarnou, assumindo uma natureza adicional – a natureza humana. O Filho de Deus não veio simplesmente habitar numa pessoa humana. Não havia uma pessoa humana a ser habitada. Ele veio tomar para si uma natureza que ele não possuía como Verbo. Quando ele a assumiu, ele foi capaz de se tornar o nosso Redentor e Mediador por possuir as duas naturezas. O resultado dessa união das duas naturezas é uma única pessoa, aliás, uma pessoa extremamente complexa. Ainda que esteja evidente que há duas naturezas em Cristo, ele nunca pode ser considerado como possuindo uma dupla personalidade. O nosso Redentor, portanto, possuindo duas naturezas, misteriosa e maravilhosamente é uma só pessoa – a pessoa teantrópica. Por isso, em 451, os pais de Calcedônia já haviam afirmado: “A distinção de naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência [hupóstasis]”.

VERDADES SOBRE A UNIO PERSONALIS Há algumas verdades sobre a unio personalis que precisam ser conhecidas de todos nós e que nos ajudam a compreender melhor o que aconteceu no dia em que Deus envolveu Maria com sua sombra e ela concebeu por obra do Espírito Santo.

A. A UNIO PERSONALIS FOI ASSUMIDA PELA SEGUNDA PESSOA Os Reformados, juntamente com todos os cristãos da ortodoxia e mesmo a maioria dos evangélicos, não são patripassionistas, isto é, não creêm que o Pai veio para encarnar-se, mas o Filho, a Segunda Pessoa da Trindade. Os que negam a pessoalidade do Verbo acabam afirmando que o Pai desceu até nós, pois, se existe uma só Pessoa na Divindade, então foi ela que veio a este mundo. Vejamos rapidamente essa heresia na história da Igreja: O patripassionismo é uma forma de monarquianismo que surgiu no século 3º e algumas vezes está associado a Orígenes. Os patripassionistas criam na divindade de Jesus Cristo, mas consideravam a Trindade como três modos de manifestações da mesma pessoa. Eles eram, às vezes, chamados de Sabelianos por crerem nos três modos da mesma Pessoa divina se manifestar. Eles ensinaram que o Pai veio a este mundo para sofrer e morrer sob a aparência de Filho. O nome patripassionista

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é uma composição de palavras latinas pater (pai) e passus (sofrer). Os patripassionistas ensinavam que o Pai veio a este mundo, nasceu de uma virgem, sofreu e morreu na cruz. Um outro modalista, Praxeas, tentou suavizar essa acusação que era feita aos modalistas, fez uma distinção ente o Cristo (que é o Pai) e o Filho (que era simplesmente um homem). Nesse caso, o Pai sofreu conjuntamente com o homem Jesus. Ao mesmo tempo em que entendemos que o Filho foi enviado, cremos que o próprio Filho veio voluntariamente para assumir uma natureza humana numa união pessoal consigo mesmo, de forma que a humanidade existe somente na Segunda Pessoa, não nas outras pessoas da Trindade. Essa união da natureza divina com a natureza humana é sem confusão, mistura ou separação. Portanto, a união pessoal faz com que a Segunda Pessoa da Trindade tenha duas naturezas distintas, todavia não uma personalidade dupla. A natureza humana de Jesus Cristo nunca poderia existir fora e à parte da união com o Verbo, a Segunda Pessoa. Ela nunca poderia ter existência própria como os outros homens a possuem. Os homens possuem na natureza humana porque cada um deles é uma pessoa humana, e Jesus Cristo não possui a personalidade humana, mas todas as propriedades da natureza humana.

B. A UNIO PERSONALIS FOI ASSUMIDA SOBRENATURALMENTE É uma tentativa inútil tentar explicar racionalmente ou usar o raciocínio das coisas naturais para entender coisas sobrenaturais, e, além disso, altamente misteriosas. Há mistérios que são um pouco mais próximos de nós, mas esse vai muito além de nossa compreensão porque a sobrenaturalidade de Deus é absolutamente singular. As duas naturezas do Redentor, a divina e a humana, foram unidas de um modo extraordinariamente miraculoso dentro do ventre da virgem pela ação poderosa do Espírito Santo.

1. A UNIÃO DAS NATUREZAS NÃO FOI PRODUTO DE MEIOS NATURAIS Lucas 1.34 – “Como será isto, pois não tenho relação com homem algum.”

O modo natural como se dá a união de dois genes, um masculino e outro feminino, gera a vida de todos nós. Conhecemos, hoje, muito mais do que antigamente sobre a concepção natural e sobre os componentes da vida humana por causa do desenvolvimento tecnológico e por causa, especialmente, das novas descobertas no campo da genética. Maria não sabia de muita coisa do que sabemos hoje, mas ela tinha certeza absoluta de que não tinha havido nenhum método natural de con-

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cepção, pois ela não tinha tido relação sexual com homem algum. Nessa época não se tinha nenhuma idéia de inseminação de espécie alguma. Maria estava argumentando sobre a impossibilidade de uma concepção natural. Mais do que ninguém, uma mulher sabe desta verdade.

2. A UNIÃO DAS NATUREZAS FOI RESULTADO DE AÇÃO SOBRENATURAL Lucas 1.35 – “Descerá sobre ti o Espírito Santo e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra...”

Essa descida do Espírito sobre Maria é uma ação secretamente sobrenatural. Não houve nenhum contato físico, nem a introdução de algum elemento material no ventre de Maria para que houvesse a concepção. O Espírito de Deus não injetou qualquer tipo de material com as mesmas propriedades do espermatozóide masculino. Não sabemos como essa união das duas naturezas aconteceu, nem como todos os cromossomos estavam presentes para formar o ente santo que ali se formou, com todas as propriedades de um verdadeiro homem. O poder do Altíssimo veio sobre Maria e causou a concepção de maneira absolutamente sobrenatural, sobre a qual não podemos falar praticamente nada, pois não há o que dizer. Sabemos, contudo, que a natureza divina do Verbo se uniu a uma natureza humana recebida de Maria pela ação sobrenatural do Espírito de Deus que veio sobre ela, do poder do Altíssimo que a envolveu com sua sombra. Mistério sobrenatural e inescrutável!

3. A UNIÃO DAS DUAS NATUREZAS TEVE UM PROPÓSITO ESPECIAL Lucas 1.35 – “... por isso também o ente santo que há de nascer, será chamado Filho de Deus.”

Um dos propósitos alegados para a união sobrenatural das duas naturezas foi a necessidade de se preservar o Filho de Deus livre da culpa e da corrupção do pecado. Essa união das duas naturezas livrou o Redentor de toda poluição do pecado por causa da obra sobrenatural e poderosa do Espírito Santo. Nenhum dos outros homens escapa dessas conseqüências, por causa da união natural dos genes de ambos os pais. A geração ordinária não livra as pessoas de serem contadas em Adão. Mas, pelo fato dessa união ser extraordinariamente sobrenatural, Deus não imputou pecado a Cristo nem a corrupção foi passada a ele. Por essa razão, o texto diz que “o ente que há em ti” é “santo”. A santidade de Jesus Cristo é devida à união pessoal. Não poderia ter havido uma união pessoal das duas naturezas se houvesse qualquer possibilidade de mancha de pecado no Redentor. Como as duas naturezas são ligadas indissoluvelmente, não pode haver qualquer mancha atribuída à natu-

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reza humana do Verbo encarnado, pela simples razão de que a Pessoa Santa do Verbo não poderia se unir a qualquer coisa manchada pelo pecado. Por isso mesmo, o autor de Hebreus disse: “Com efeito, nos convinha um sumo sacerdote, assim como este, santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores, e feito mais alto do que os céus” (Hb 7.26). O grande e maior propósito da união pessoal foi a preservação da santidade no Redentor.

C. A UNIO PERSONALIS FOI ASSUMIDA INTEGRALMENTE A unipersonalidade foi causada não apenas de forma milagrosa, mas também de forma integral. Isso significa que, na unio personalis, o Redentor não somente reteve todas as características essenciais da sua divindade, mas também veio a possuir todas as características essenciais de nossa humanidade. Todas as coisas que um ser humano tem, ele veio a ter. O corpo do Redentor possui todas as características básicas que qualquer outro ser humano tem. Sua alma tem todas as propriedades essenciais que uma alma humana tem. Ele assumiu todas as coisas integralmente de um ser humano, assim como manteve todas as coisas próprias da divindade. A plenitude de todas as faculdades humanas de Jesus Cristo foi assumida na unio personalis porque Jesus Cristo haveria de santificar todas essas propriedades, remindo-as. Se a humanidade assumida por Jesus não fosse plena, ele não poderia remir plenamente o ser humano. O Verbo assumiu integralmente todas as características humanas, inclusive com todas as suas enfermidades, todavia, sem pecado (Hb 4.15). Não era possível ele realizar a obra redentora se não assumisse a humanidade caída, isto é, a humanidade com todas as conseqüências da queda. Ele foi feito semelhante em tudo aos homens, inclusive esteve sujeito a todas as dores que sofreram os homens pelos quais ele morreu. É importante distinguir que ele não sofreu as enfermidades pessoais, isto é, ele não possuiu cada uma e todas as enfermidades que os homens têm possuído na história. Ele não teve deformações, cegueira, surdez, e coisas que tais. Não era necessário que ele sofresse ou assumisse essas enfermidades. As enfermidades que ele possuiu não foram naturais, mas penais. Ele sofreu as enfermidades como sangrar, suar, angústias, temor, etc., mas as sofreu como conseqüência de ser o nosso Representante. Foram enfermidades penais que vieram sobre ele, por causa da ira de Deus no representante dos pecadores. Por isso é dito que ele veio “em semelhança de carne pecaminosa” (Rm 8.3). As conseqüências físicas e emocionais que ele sofreu foram plenamente penais, e, por isso, ele teve toda a aparência de alguém que estava sofrendo por ser pecador, embora ele nunca o fosse pessoalmente. Representativamente, porém, ele foi tratado como se fosse um pecador. Daí as enfermidades e dores que vieram sobre si.

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D. A UNIO PERSONALIS FOI ASSUMIDA VOLUNTARIAMENTE O Verbo divino não assumiu a natureza humana necessariamente, mas voluntariamente. Ele também não morreu por força de alguma coisa, mas voluntariamente. Por isso ele disse: “A minha vida ninguém a tira de mim. Eu a dou espontaneamente” (Jo 10.18). O Verbo divino foi espontâneo no que fez. É verdade que ele participou do Conselho Eterno, mas ele o fez voluntariamente. Ele, voluntariamente, assumiu a tarefa de encarnar-se e realizar toda a obra redentora. Voluntariamente, ele se sujeitou à encarnação, sendo humilhado quando assumiu a natureza humana caída, sujeita a todas as dores e enfermidades, e submetendo-se à ira do seu Pai celestial. Vindo ao mundo, assumiu todas as tarefas de sacerdote, profeta e Rei. Se não tivesse possuído as naturezas divina e humana, ele não poderia ser profeta, pois, para ser profeta de Deus, ele tinha de ter a mente humana, como os outros profetas tiveram (veja Dt 18.15-18). Um profeta é aquele que se torna porta-voz de uma outra Pessoa, no caso, aqui, de Deus o Pai. O Verbo encarnou-se para ser o maior dos arautos de Deus, o proclamador das verdades do seu Pai. Voluntariamente, ele assumiu o papel de um profeta de Deus, sendo a própria Palavra de Deus. Como Deus, ele era a Palavra (o Logos) viva de Deus, a comunicação de Deus, e, como homem, falava a respeito da Palavra revelada de Deus. Se não tivesse possuído as naturezas divina e humana, ele não poderia exercer as funções sacerdotais. Voluntariamente ele assumiu a nossa humanidade para ser sacerdote. Uma das funções do sacerdote era derramar o sangue do sacrifício. Se o Verbo não assumisse a humanidade, ele não poderia oferecer-se em sacrifício a Deus. No entanto, o Verbo deu-se voluntariamente como oferta pelos nossos pecados (veja Hb 2.17 e At 3.28). Se ele não tivesse possuído as naturezas divina e humana, ele não poderia ser o nosso Rei, o nosso Cabeça, e nem poderia defender o seu corpo, que é a Igreja. Voluntariamente ele assumiu a nossa humanidade para ser o libertador-Rei do seu povo. Ele voltou aos céus, sem nunca nos abandonar aqui, mas virá gloriosamente como Rei buscar o seu povo depois de completar a redenção dele.

E. A UNIO PERSONALIS É FRUTO DO DECRETO DIVINO A união hipostática talvez seja o mistério mais profundo da teologia cristã. Todavia, é um mistério muito diferente do mistério da doutrina da Trindade. Na doutrina da Trindade, a subsistência das três Pessoas é parte inerente ao ser divino. Não devemos pensar que o Conselho Eterno da Trindade resolveu que a primeira pessoa fosse Pai, e que a segunda fosse Filho e que a terceira fosse o Espírito Santo. Essa tripessoalidade é parte constituinte da subsistência das três pessoas e é essencial ao ser divino. Nunca existiu um decreto que determinasse que existissem

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três pessoas distintas, porque sempre e eternamente elas existem como tais. Os decretos só podem existir quando existe alguém para decretar. As pessoas da Trindade não poderiam decretar a sua própria existência, porque elas são eternas. Somente as cousas que vieram a existir no tempo é que foram produto do decreto divino, que é a decisão trinitária do Conselho Trinitário. A união hipostática não era parte essencial do ser divino. Não era necessário que a Segunda Pessoa da Trindade (com natureza divina) se encarnasse, unindo-se a uma natureza humana. Isso aconteceu por causa da vontade de Deus, em cumprimento do decreto de salvar pecadores. A união hipostática foi absolutamente essencial para que houvesse a redenção divina. Foi o livre decreto de Deus que trouxe à existência, no tempo, a união hipostática, isto é, a união das duas naturezas em uma só pessoa.

F. A UNIO PERSONALIS É UM MISTÉRIO INDEMONSTRÁVEL A unio personalis sobrepassa os limites de nossa razão. Ela transcende os limites do nosso intelecto. Não há como descobrir um paralelo para ilustrar essa união maravilhosamente misteriosa. Nem mesmo a revelação da Escritura é suficiente para dar-nos luz sobre esse mistério. Um caso similar é o da Trindade. A Escritura revela uma porção de coisas relativas à Trindade, mas, ainda assim, permanece o mistério sobre ela. De modo semelhante, temos uma porção de informações sobre as duas naturezas do Redentor, embora a união, em si mesma, continue a ser um grande mistério para a nossa mente. Talvez seja o maior mistério da teologia cristã. Já no começo das controvérsias cristológicas, Cirilo de Alexandria, numa de suas cartas contra Nestório, fala do “mistério de Cristo” como alguma coisa tão inefavelmente profunda quanto incompreensível.156 O mistério da união hipostática não faz parte do ser interior da divindade, como é o caso da Trindade, mas é resultado (como vimos) de um livre decreto do Conselho da Trindade, que foi realizado na história, mas de tal forma que a própria vontade reveladora divina deixou escondida de nós, sendo, portanto, incompreensível para nós o seu modus operandi. Por essa razão, mesmo usando os textos da Escritura, não podemos demonstrar de modo compreensível a unio personalis. Não é um mistério a existência da unio personalis, mas é um mistério o modo como Deus operou a unio personalis. Há algumas coisas de Deus que foram mistério até que foram reveladas. Por exemplo, a salvação efetuada por Cristo na forma como a conhecemos foi um mistério até que Jesus Cristo veio e a revelação foi tornada absolutamente clara. Todavia, há algumas coisas da sabedoria de Deus que continuam misteriosas para o homem. Uma delas é o entendimento da unio personalis. É a sabedoria de Deus que está escondida em mistério (soqi/an e)n musthri/% men156. Pohle, Christology, 117.

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cionada por Paulo em 1Co 2.7). Essa sabedoria misteriosa de Deus está em oposição à sabedoria que os gregos buscam (1Co 1.22), que é inteligível para os seres humanos. Cristo, é a sabedoria de Deus, e a encarnação do Verbo, que é quando se dá a unio personalis, estão além da nossa compreensão, porque estão além da demonstrabilidade lógica. Essa união hipostática é “essa sabedoria que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória” (1Co 2.8). Alguns mistérios dessa sabedoria divina, nunca nos foram revelados (e a união hipostática é o principal deles), porque eles (ainda que fossem revelados) transcenderiam os limites do nosso entendimento. A indemonstrabilidade desse mistério também está ligada à falta de analogia da unio personalis. Assim como a Trindade é singular, também o é a unio personalis. Ainda que usemos a união do corpo com a alma para ilustrar a união hipostática, a ilustração fica muito aquém da realidade, porque não é união pessoal, mas união do material com o imaterial da natureza humana. Portanto, não há nenhuma analogia no mundo criado semelhante à encarnação do Verbo, que gerou a unio personalis.

CARACTERÍSTICAS DA UNIO PERSONALIS A unio personalis possui algumas características que são relativamente fáceis de serem entendidas. Elas podem ser mais facilmente explicadas e alguma luz pode surgir quando a comparamos com as outras uniões existentes mencionadas nas Escrituras.

A. É UMA UNIÃO DE CARÁTER TEMPORAL A unio personalis não é uma união eterna porque começou no tempo, mas durará para sempre. Essa união foi determinada na eternidade, mas realizada na história dos homens. O Verbo, ou a Segunda Pessoa da Trindade, é eterna, mas a pessoa teantrópica é temporal, não temporária. Houve um tempo quando havia somente o Verbo, até o momento em que houve a encarnação. A união de naturezas começou exatamente na concepção imaculada, quando o Espírito Santo agiu miraculosamente em Maria. Nesse punctum temporis, a natureza humana do Redentor, vinda de Maria, foi unida ao Logos eterno. Antes dessa união, não havia uma natureza humana do Redentor separada em Maria (apenas a potencialidade de gerar um filho), mas havia somente a Segunda Pessoa da Trindade. Essa Pessoa da Trindade não era ainda uma pessoa complexa, mas simples: Deus, o Filho, não o Deus-homem; o Logos desencarnado, não o Logos encarnado. Mas, “na plenitude do tempo”, com a obra sobrenatural do Espírito envolvendo Maria, houve um “Ente Santo” dentro dela, que haveria de ser chamado “Jesus Cristo”, o nome do Verbo encarnado, agora uma pessoa com duas naturezas, a divina e a humana. Essa união aconteceu num determinado ponto da história.

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B. É UMA UNIÃO DE CARÁTER PERENE Não obstante essa união tenha um caráter temporal, porque foi realizada no tempo, ela permanece para sempre. Biblicamente é fácil de provar essa verdade. O texto de Romanos 9.5 trata desse assunto de maneira clara: “Deles são os patriarcas e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém.” Cristo será para sempre Deus e para sempre Homem. Nunca mais ele voltará à condição de antes da encarnação. Com propriedade, o escritor aos Hebreus diz que “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e o será para sempre” (Hb 13.8). Perceba que ele usou o nome Jesus Cristo, que é o nome do Verbo encarnado. Para sempre ele será chamado Jesus Cristo. Todavia, “nunca devemos nos esquecer de que ele é um homem que nasceu; um homem que morreu; um homem que ressuscitou; um homem que ascendeu; um homem que suplica na glória; e um homem que está vindo outra vez para julgar o mundo”.157 Desde que o Verbo se encarnou, nunca mais o Redentor deixará de ser o que veio a ser. A união das naturezas é permanente, mas nós sempre o veremos como ele é, como homem, pois é assim que nos aparenta aos olhos. Por essa razão, Paulo, escrevendo a Timóteo, disse: “Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (1Tm 2.5). A mesma idéia Paulo expressa em Atenas quando diz que um dia Deus julgará o mundo através de um homem (At 17.31).Todavia, teologicamente, sabemos que ele é tanto perfeita e totalmente homem como perfeita e totalmente Deus. Teologicamente também é fácil encontrar provas dessa verdade. O Breve Catecismo de Westminster, Q. 21 diz: “O único Redentor dos escolhidos de Deus é o Senhor Jesus Cristo que, sendo o eterno Filho de Deus, se fez homem, e assim foi e continua a ser Deus e homem em duas naturezas distintas, e uma só pessoa, para sempre.”

Realmente, Jesus Cristo, de uma vez por todas, assumiu a nossa humanidade, onde o Verbo se uniu para sempre com uma natureza humana, de tal forma que ele nunca mais vai deixar de ser uma única pessoa, que ao mesmo tempo em que permanece Deus para sempre, será também homem para sempre.

C. É UMA UNIÃO QUE NÃO PROVOCA MUDANÇAS NA TRINDADE Antes da encarnação, a Trindade era composta desta forma: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Após a encarnação, a Trindade ficou constituída desta forma: Deus Pai, Deus Filho encarnado e Deus Espírito Santo. As três pessoas da 157. H. Brash Bonsall, The Person of Christ (Londres: Christian Literature Crusade, 1967), 54.

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Trindade continuam sem sofrer qualquer mudança substancial. Não obstante, o Filho teve acrescida sobre si a natureza humana, a partir de um determinado ponto da história, e assim será para sempre. O Filho será para sempre encarnado, para sempre o Deus-Homem. Nunca mais ele será somente o Verbo divino, mas o “Verbo feito carne”. “Se o Logos houvesse se unido com um indivíduo distinto e separado, a modificação do Logos pela encarnação teria sido essencial, e uma quarta pessoa, isto é, uma pessoa humana, teria, portanto, entrado na Divindade, o que teria sido uma alteração na constituição da Trindade, tornando-a constituída de quatro pessoas ao invés de três.”158

Não houve mudança na Trindade porque não foi acrescentada nenhuma pessoa a ela. O que foi acrescentado à Segunda Pessoa, foi uma natureza humana, não uma pessoa humana. A Trindade não é divino-humana, mas o Filho eterno sim. O Verbo tornou-se o Deus-Homem, mas ele não perdeu o seu papel trinitário. A encarnação não é uma justaposição de uma pessoa humana com uma pessoa divina, mas nela uma pessoa divina assume uma natureza humana, sem perder a natureza divina.

D. É UMA UNIÃO QUE PRESERVA INTACTAS AS DUAS NATUREZAS Quando o Logos consentiu em unir-se à natureza humana, ele consentiu em agir “em forma de servo”, sem, contudo, deixar de existir em “forma de Deus” (veja Fp 2.6-8). A encarnação não é uma transmutação ou transubstanciação. A essência das duas naturezas permanece intacta. Como o Filho encarnado, ele age em seu modo duplo de existência. Ora percebemos a sua verdadeira humanidade, ora percebemos a sua verdadeira divindade. Possuindo a natureza divina, ele pode ainda existir e agir como um ser divino, e ainda ele existe e age dentro da esfera da Divindade eterna e infinita, sem qualquer limitação. Possuindo a natureza humana, ele pode também existir e agir como um ser humano, e ele assim existe e age dentro da esfera da sua humanidade finita e temporal, e debaixo de suas limitações. Segundo a sua natureza humana, ele está localizado no céu, e, segundo a sua natureza divina, ele está em toda parte, como onipresente que é. O Deus-homem é ambos, limitado e ilimitado; tem uma consciência dupla: finita e infinita. Ele é capaz de pensar igual a Deus e igual ao homem. Simultaneamente, ele era o Verbo espiritual eterno e absoluto, enchendo a imensidão; e também ele era a um espírito localizado, confinado à existência humana do Jesus de Nazaré. Em suas relações trinitárias, ele permanece a Segunda Pessoa da Trindade imutável, infinita, onipre158. Shedd, p. 280.

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sente e onisciente; em suas relações humanas, ele permanece um conosco, localizado no céu, à direita de Deus.159 Fazendo um resumo dessa preservação intacta das duas naturezas, Calvino se expressa assim: “Embora a essência infinita do Logos seja unida em uma pessoa com a natureza do homem, todavia não temos nenhum pensamento de seu encarceramento ou confinamento. Porque o Filho de Deus miraculosamente desceu do céu, todavia de tal modo que ele nunca deixou o céu: ele escolheu ser miraculosamente concebido no ventre da Virgem, viver sobre a terra, e ser suspenso na cruz; e, todavia, ele nunca cessou de encher o universo do mesmo modo como desde o princípio.”160

E. É UMA UNIÃO QUE APROXIMA O REDENTOR DE NÓS Por causa dessa união de naturezas, o Filho encarnado permanece numa posição de mais proximidade dos redimidos do que o Pai ou o Espírito. Isso não quer dizer que o Pai ou o Espírito não nos amem ou que não trabalhem em nós e por nós, mas significa que, assim como o Filho encarnado é homoousios (da mesma essência) com o Pai, também ele é homoousios (da mesma essência) conosco. Ele é bem próximo a nós porque é da mesma natureza nossa. Em todas as coisas ele se tornou semelhante a nós, exceto no pecado. Por causa dessa união, ele fez uma obra e nos uniu inseparavelmente a si, de tal forma que ninguém pode nos separar dele. Somente ele pode ser chamado de nosso “irmão mais velho”; só ele pode ser o cabeça do corpo do qual todos somos membros; só ele é o Mediador entre nós e Deus.

A SINGULARIDADE DA UNIO PERSONALIS Há várias uniões mencionadas direta ou indiretamente nas Escrituras Sagradas que são muito distintas da unio personalis e que precisam ser mencionadas nessa parte do capítulo.

A. A UNIO PERSONALIS NÃO SE ASSEMELHA À UNIÃO ENTRE AS TRÊS PESSOAS DA TRINDADE Na união das três Pessoas da Trindade há relações interpessoais, um diálogo entre o “Eu” e o “Tu”, principalmente entre a Primeira Pessoa e a Segunda. Essas pessoas se inter-relacionam possuindo personalidades distintas, ou seja, subsistências pessoais diferentes. O Pai conversa com o Filho freqüentemente e ambos se referem ao Espírito, que é a terceira Pessoa da Trindade. 159. Shedd, p. 281, 282. 160. Calvino, Institutes, II, 15.

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Essa união é de pessoas distintas que estão em unidade, mas que possuem a mesma natureza.161 Por isso, essa união entre as Pessoas da Trindade é eterna, o que difere enormemente da união das duas naturezas que aconteceu no tempo e na história. A união que existe no Redentor é de duas naturezas, sendo uma eterna e a outra temporal, a primeira divina e a segunda humana. Não se trata de uma união de duas naturezas iguais, como é o caso com a Trindade. Na trindade, é a união de três Pessoas com a mesma natureza, uma união substancial, natural. Ali não houve união na mesma pessoa, mas de três Pessoas substancialmente iguais, embora de subsistências distintas. No caso de Cristo, trata-se da união de duas naturezas distintas e diferentes em uma só pessoa. Na união entre as Pessoas da Trindade, há maior glória do que na unio personalis, porque está é histórica e a outra é eterna; a primeira é natural, a segunda é temporal – um ato externo da sabedoria divina para poder realizar a redenção do pecador. Além disso, não existe um relacionamento interpessoal na pessoa do Redentor porque não há duas autoconsciências diferentes, mas apenas uma. Não há o “eu” e o “tu”, entre as duas naturezas (como é o caso da união entre as três pessoas da Trindade), porque não há duas pessoas. É o mesmo “eu” que diz “nem o Filho sabe o dia da sua vinda” e que diz que “todas as coisas estão patente aos olhos daquele que vê todas as coisas”. Há uma interdependência das naturezas na mesma pessoa de Cristo, mas não uma relação pessoal entre elas. A pessoa de Jesus Cristo depende da natureza divina para dar suporte à realização da obra da redenção, porque, sem a natureza divina, o Salvador não poderia suportar o que suportou. Por outro lado, a pessoa de Jesus Cristo não poderia fazer o que fez se não possuísse a natureza humana. Essas duas naturezas se relacionam e agem mutuamente uma sobre a outra, mas é uma união de duas naturezas, não união de subsistências pessoais, como acontece na Trindade.

B. A UNIO PERSONALIS NÃO SE ASSEMELHA À UNIÃO ENTRE ALMA E CORPO NO HOMEM A alma e o corpo, em si mesmos, não são elementos pessoais, mas partes de uma e mesma natureza – a humana. É a união de elementos distintos (material e imaterial), constituindo uma pessoa individual. Corpo e alma se relacionam e interagem entre si, uma parte influenciando a outra, mas não há semelhança dessa união com a união pessoal. Na união entre a alma e o corpo, o objetivo é ter uma natureza humana essencialmente completa, formando uma natureza que não existia. Em Cristo, a união 161. John Owen, Works of John Owen, vol. I, 228.

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não tem em vista a formação de uma natureza, mas a junção de duas naturezas completas numa só pessoa. Além disso, a unio personalis não trata da formação de uma nova natureza, nem da formação de uma nova pessoa, mas da adoção de uma natureza humana por uma pessoa que possuía uma natureza divina. Existe uma certa semelhança entre essa união de corpo e alma com a união havida no Redentor. Sobre isso, John Owen diz: “Eu confesso que há alguma espécie de semelhança entre essa união e a união de naturezas diferentes na pessoa de Cristo; mas ela não é da mesma espécie ou natureza.” Então ele fala que “as dessemelhanças que há entre elas são mais e de maior importância do que aquelas coisas nas quais parece haver uma concordância entre elas”.162 Portanto, é preferível dar mais atenção às diferenças do que às semelhanças, pois aquelas são muito mais profundas. Quando houve a união pessoal, uma pessoa divina com natureza divina já existia. Essa pessoa com natureza divina assumiu uma natureza humana que não existia à parte e separada dessa união. No ser humano, a alma não toma voluntariamente um corpo para si. É uma união involuntária, onde uma parte física se une a uma parte não-física, e não é uma união de duas naturezas, mas de duas partes que compõem a natureza humana. Corpo e alma são duas partes distintas que compõem uma e a mesma natureza – a humana. Quando nós morremos, pelo menos temporariamente as duas partes que compõem a nossa natureza humana se separam, mas, quando Cristo morreu, nunca houve separação entre o humano e o divino. Houve, sim, a separação da alma humana de Jesus do seu corpo. Contudo, nunca o corpo e a alma ficaram separados da natureza divina, justamente por causa da unio personalis.

C. A UNIO PERSONALIS TAMBÉM NÃO É IGUAL À NOSSA UNIÃO COM CRISTO. A nossa união com Cristo é real, mística, mas não é uma união de uma pessoa com natureza divina a uma natureza humana. A união com Cristo se dá porque fomos entregues por Deus a Cristo, e tudo o que é dele passa a ser nosso porque ele assume o nosso lugar, sendo nosso representante. A nossa união com Cristo é de representação, uma pessoa representando outra, mas não é união pessoal. Não há nem como comparar as duas frases seguintes de Paulo: “Deus estava em Cristo” e “Cristo vive em mim”. Elas são absolutamente distintas. Quando Paulo diz que “Deus estava em Cristo”, ele está tratando (mesmo que não tecnicamente) da unio personalis. O Filho encarnado é o próprio Deus conosco. Todavia, quando Paulo disse que “Cristo vive em mim”, ele não está se referindo à unio personalis, mas ao fato de, por estarmos unidos a Cristo, ele habitar em nós. Mas 162. John Owen. The Works of John Owen, vol. 1, 229.

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Deus e nós somos duas pessoas distintas e de naturezas muitíssimo diferentes. Nós somos ligados a ele por causa do amor dele por nós, mas ele não assume a nossa humanidade, nem nós participamos de sua divindade, como se fôssemos um só.

DISTINÇÕES NA UNIPERSONALIDADE DO REDENTOR A complexidade da doutrina da unio personalis fica evidente porque ela “coloca a combinação de duas naturezas que, por definição, têm atributos contraditórios”.163 Alguns desses atributos contraditórios são vistos na tabela abaixo. Todavia, há outros atributos que, por causa da unio personalis, distinguem-se sobremaneira uns dos outros nas duas naturezas da mesma pessoa.164 Na tabela abaixo, podemos ver as duas naturezas distintas do Redentor unidas de maneira que possamos ver as coisas próprias de cada natureza numa mesma pessoa. O Redentor como vere Deus

O Redentor como vere homo

Ele possuía a forma de Deus

Ele possuía a forma de homem

Ele tinha a mente de Deus

Ele tinha a mente de homem

Ele tinha afeições divinas

Ele tinha afeições divinas

Ele tinha vontade divina

Ele tinha vontade humana

A. O REDENTOR POSSUÍA A FORMA DE DEUS E A FORMA DE HOMEM O Redentor é uma pessoa altamente complexa, ímpar, como ninguém jamais foi ou será. Ele apresentou-se neste mundo com duas naturezas depois que foi dito que “o Verbo se fez carne”. Não se trata de duas pessoas juntadas lado a lado, mas de uma só pessoa com natureza divina que, na encarnação, assumiu uma natureza humana. Uma só pessoa com duas naturezas. Uma é chamada de forma de Deus, a outra, de forma de servo.

1. SUA FORMA DIVINA Escrevendo aos Filipenses, Paulo falou sobre Jesus Cristo como “subsistindo em forma de Deus (morfv= qeou=)” (2.6). Essa expressão significa que Jesus Cristo era consubstancial com seu Pai, possuindo a mesma natureza dele, sendo, portanto, Deus. O verbo grego u(pa/rxwn, traduzido como “subsistindo”, aponta para a continuação do ser: Cristo Jesus era e é eternamente existente “na forma de Deus”.165 163. Millard Erickson, Christian Theology (Grand Rapids: Baker Book House, 1990), 724. 164. Veja Heber Carlos de Campos, As Duas Naturezas do Redentor (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004), 120-131.

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O autor de Hebreus fala que o “Filho é a expressão exata do seu Ser” (Hb 1.3). Esses dois textos mencionados apontam para o fato do Redentor possuir todas as coisas que a divindade possui, porque a base da personalidade dele é divina. Por essa razão, podemos dizer que ele tem forma divina de existência, que é eterna. O que Paulo está dizendo na expressão acima é que “Cristo Jesus sempre foi (e sempre continua a ser) Deus por natureza, a imagem expressa da Divindade. O caráter específico da Divindade como este é expresso em todos os atributos divinos era e é seu eternamente”.166 Todos os atributos que provam a divindade de Cristo e são atribuídos à pessoa de Cristo são produto da união hipostática do Verbo com a natureza humana.

2. SUA FORMA HUMANA Paulo também registra, no mesmo texto citado acima, que, no tempo da encarnação, Cristo Jesus estava “assumindo a forma de servo (morfh\n dou/lou)” (Fp 2.7). A idéia do texto grego é que Jesus Cristo não quis usurpar a posição de Deus, mesmo sendo Deus, mas fez-se em semelhança de homem, assumindo todas as coisas próprias e essenciais de um ser humano. Paulo ainda diz que, como servo que era, foi “reconhecido em figura humana”. Essa é uma asserção clara da encarnação do Verbo. Embora a palavra Logos não apareça nesse texto, entende-se que aquele que foi “reconhecido em figura humana” era pré-existente, porque, antes, ele existia somente “em forma de Deus”. Todavia, por causa da unio personalis, aquele que possuía forma divina também veio a possuir forma humana. Nessa primeira série de predicados, podemos deduzir com clareza que ele era vere Deus e vere homo através de sua união hipostática, ou unio personalis.

B. O REDENTOR TINHA A MENTE DE DEUS E A MENTE DE HOMEM Como produto da união hipostática, o Redentor passou a possuir características das duas naturezas. Se os pensamentos são produto de uma natureza racional, então Jesus Cristo tinha duas mentes racionais: a de Deus e a de homem. Ambas as naturezas possuem a mente que lhe é essencial.

1. ELE PENSAVA COMO DEUS Mesmo se encarnando, o Redentor nunca deixou de pensar como Deus. A sua mente funcionava como a mente de seu Pai, porque ambos possuíam a mesma essência. Como resultado dessa co-essencialidade, ambos concordavam em todos os pensamentos. 165. William Hendriksen. Philipians, Colossians and Philemon (Grand Rapids: Baker, 1979), nota de rodapé 82, pg. 103. 166. Ibid., 105.

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Certa vez, Deus disse através do profeta: “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos” (Is 55.8a). Isto quer dizer que Deus, diferentemente dos homens, tem a sua maneira de pensar. Essa é a maneira de Jesus Cristo pensar no que diz respeito à sua divindade. A unidade de essência faz com que Pai e Filho pensem a mesma coisa. Essa mente do Senhor é incompreensível para nós, é sobremodo alta, não podemos atingi-la. Paulo perguntou aos crentes de Roma: “Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro?” (Rm 11.34). Sendo Deus, nosso Redentor tem mente infinita. Só as pessoas divinas da Trindade é que têm acesso a essa mente infinita. Ninguém a conhece nem é capaz de perscrutá-la ou de aconselhá-lo. Por isso, o mesmo apóstolo afirma que “as coisas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus” (1Co 2.11b). Essa mente divina é propriedade exclusiva das pessoas que compartilham do ser divino. Aquele que se encarnou possui essa mente. Dela nós, os humanos, não partilhamos, nem podemos atingi-la, porque os nossos pensamentos diferem dos dele.

2. ELE PENSAVA COMO HOMEM Como homem que era, ele também pensava como homem, pois a mente é uma propriedade da natureza. Jesus Cristo possuía um desenvolvimento mental e aprendia como todos os mortais aprendem. Cristo Jesus não nasceu de Maria com o conhecimento de todas as coisas. A Escritura diz que ele “crescia (aumentava) em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens”. A sua mente experimentou o mesmo crescimento. Ele recebeu informações de seus pais, aprendeu pela observação e entendeu os pensamentos divinos pela própria agência da mente divina que atuava na mente humana. Diferentemente da nossa mente (como homens que somos), a mente humana de Cristo era pura, santa, apta para captar todos os preceitos de Deus. Não havia nem um efeito noético em sua mente, isto é, sua mente não havia sido prejudicada pela Queda, como a nossa foi. Sua mente era perfeita, e, portanto, o seu raciocínio e os pensamentos eram perfeitos. Quando Paulo disse que nós “temos a mente de Cristo” (1Co 2.16b), ele não está se referindo à mente da natureza divina de Cristo, mas à sua mente humana, perfeita, pura, sem defeito, uma mente que todos os cristãos passam a ter à medida que eles crescem no conhecimento das verdades de Deus. Paulo fala que a mente dos cristãos serão guardadas em Cristo (Fp 4.7). Isso quer dizer que a nossa mente serão guardadas na mente de Cristo, que ela será parecida com a mente de Cristo, exatamente como os nossos corpos serão semelhantes ao corpo de sua glória (Fp 3.21).

C. O REDENTOR TINHA AFEIÇÕES DIVINAS E AFEIÇÕES HUMANAS Como produto da união hipostática, o Redentor passou a possuir característi-

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cas das duas naturezas. Se as afeições (ou sentimentos) são propriedades de uma natureza, então Cristo possuía afeições como Deus e como homem.

1. ELE SENTIA COMO DEUS As afeições ou sentimentos são próprios da natureza, e não da personalidade. Se é assim, então o Redentor era capaz de ter as afeições ou sentimentos de Deus. Por essa razão, ele foi capaz de chorar pelo mesmo motivo que seu Pai tem quando vê os pecadores morrendo. Lembre-se de que Deus disse: “Acaso tenho eu prazer na morte do perverso? Diz o Senhor Deus; não desejo eu antes que ele se converta dos seus caminhos, e viva?” (Ez 18.23, cf. Ez 33.11 e 18.32). Esse sentimento de dor que Deus tem na morte do perverso e o sentimento de prazer na conversão do perverso é a mesma dor que o Redentor teve ao chorar sobre Jerusalém, que matava os profetas e apedrejava os que lhe eram enviados, e o mesmo prazer que ele teve em vê-los sob suas asas. É próprio do Redentor tem os sentimentos de Deus, porque ele era vere Deus, possuindo a natureza divina.

2. ELE SENTIA COMO HOMEM Os sentimentos humanos de Jesus invadem a Escritura. Ele não podia ver pessoas chorando de dor pela perda de parente que ele não se comovesse e viesse às lágrimas (Jo 11.33) e nem as deixava sem solução por causa da Sua compaixão (Lc 7.13); Ele não podia ver pessoas enfermas que não se compadecesse delas; Ele não podia ver pessoas exaustas e em aflição que não se compadecesse delas (Mt 9.36); Ele não podia ver pessoas famintas que não as alimentasse cheio de compaixão (Mt 14.14). Ele foi um homem extremamente sensível às necessidades do seu próximo. Nunca ninguém foi tão humano nos sentimentos como Jesus Cristo. Ninguém chorou tão sinceramente e tão compassivamente como Ele. Os sentimentos humanos de Jesus são puros: sua compaixão é pura; sua alegria é pura; seu amor é puro; sua bondade é pura. São afeições que perderam a sua pureza nos pecadores, mas são mantidas plenamente no homem Jesus.

D. O REDENTOR TINHA VONTADE DIVINA E VONTADE HUMANA Como produto da união hipostática, o Redentor passou a possuir características das duas naturezas. Se as volições são produto da natureza (e não da pessoa), então o Redentor possuía volições como Deus e volições como homem.

1. ELE QUERIA COISAS COMO DEUS As volições de Jesus Cristo são iguais às de seu Pai. Como vere Deus que era, o Redentor não poderia querer as coisas diferentemente do seu Pai. Isso se deve ao

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fato de ele e seu Pai serem da mesma natureza. Se as volições fazem parte da natureza, então Jesus Cristo, segundo a sua natureza divina, queria exatamente como o seu Pai queria. Como homem, ele quis alimentar uma grande multidão, mas ele não podia, porque tinha somente cinco pães e dois peixes. Mas como ele não era simplesmente homem, mas possuía as volições divinas, ele resolveu multiplicar aqueles pães e peixes e alimentou mais de cinco mil homens, além de mulheres e crianças. Como homem, ele chorou ao ver Maria chorar, mas, como Deus, ele resolveu ressuscitar Lázaro pelo seu próprio poder. Como homem, ele dormiu no barco enquanto o mar se encapelava, mas, como Deus, ele resolveu acalmar o mar, a ponto de despertar assombro dos seus discípulos. A sua vontade não era apenas vontade de obediência como homem que era, mas a sua vontade também era soberana, como a de seu Pai.

2. ELE QUERIA COISAS COMO HOMEM O texto de Mateus 26.39 – “Meu Pai: se possível, passa de mim este cálice! Todavia, não seja como eu quero, e, sim, como tu queres” – aponta claramente para as coisas próprias de um ser humano. Certamente, a expressão “como eu quero” não se refere à vontade divina do Redentor, porque esta é uma com a vontade de Deus pelo fato do Pai e do Filho serem da mesma natureza. Portanto, “como eu quero” diz respeito à vontade da natureza humana de Jesus Cristo. É próprio de seres humanos desejar fugir da dor. Se um homem pode escapar dela, ele o faz, sem que isso seja pecaminoso. Todavia, Jesus não poderia deixar de passar pela dor iminente pelo fato de ele ser obediente à vontade divina. Essa vontade expressa por Jesus nesse verso está em oposição à vontade soberana de Deus de que ele estava sob o decreto de beber aquele cálice que tem a ver com o seu sofrimento vicário. Por essa razão, a vontade humana cede e dá lugar ao exercício da vontade divina, para que os propósitos redentores pudessem ser executados. Um outro verso que ensina a vontade humana de Jesus está explícito em João. “Eu nada posso fazer de mim mesmo; na forma por que ouço, julgo. O meu juízo é justo porque não procuro a minha própria vontade, e, sim, a daquele que me enviou” (Jo 5.30).

“A minha própria vontade” diz respeito à vontade humana de Jesus Cristo, que estava sempre submissa à vontade daquele que o havia enviado. Jesus não podia fugir em nada daquilo que estava determinado que ele fizesse. Por essa razão, ele estava sempre atento para não se esquecer de nada do que o Pai havia determinado no pacto da redenção. Como homem que era, ele não podia estabelecer o seu próprio julgamento humano, nem procurar fazer a sua vontade humana nesse caso, mas deveria estar atento para realizar toda a vontade decretativa do Pai na sua vida entre nós.

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“... contudo, assim procedo para que o mundo saiba que eu amo o Pai e que faço como o Pai me ordenou” (Jo 14.31).

Como homem que era, Jesus tinha prescrições de Deus para obedecer. Ao obedecer, ele estava obedecendo segundo a natureza humana, realizando as ordens de seu Pai que lhe havia dado.

E. LIÇÕES SOBRE AS DISTINÇÕES NA UNIPERSONALIDADE O Verbo condescendeu conosco, assumindo a nossa natureza humana. Por ocasião da criação, Deus fez-nos à sua própria imagem, e, por ocasião da encarnação, Deus, o Filho, foi feito à nossa imagem para que pudéssemos ser conformados novamente à imagem daquele que nos criou. Isso é muito tocante e devia fazer-nos voltar os nossos olhos para Cristo a fim de que sejamos iguais a ele naquilo que podemos. Nunca poderemos ser iguais a ele na sua divindade, mas somos chamados para sermos iguais a ele na sua humanidade:

1. SEJA IGUAL A CRISTO POSSUINDO A MENTE DE CRISTO Aprenda a pensar como Cristo. Isso é um processo. Não se aprende da noite para o dia. Temos de ter a “mente de Cristo” formada em nós. A fim de que aprendamos a pensar como Cristo, temos que meditar na sua lei de dia e de noite, fazendo com que os nossos pensamentos estejam ligados às coisas do alto. Por isso, Paulo diz: “Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra” (Cl 3.2). No verso anterior, Paulo diz que Cristo vive nesse lugar alto, o céu. As coisas do alto, em contraste com as coisas aqui da terra, são sinônimas de coisas santas, coisas celestiais, sem impureza. Quando começamos a pensar como Cristo, pensamos coisas puras. Portanto, o mandamento para nós, a fim de que aprendamos a pensar como Cristo, é este: “Habite ricamente em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos e hinos e cânticos espirituais, com gratidão, em vossos corações” (Cl 3.16).

Ter a mente de Cristo deve ser o alvo de todo verdadeiro cristão, a fim de que ele possa pensar como seu Redentor.

2. SEJA IGUAL A CRISTO, SENTINDO AS MESMAS COISAS QUE ELE SENTE Aprenda a sentir como Cristo. Isso também é um processo. Não se aprende a sentir da noite para o dia. Faz parte do discipulado cristão aprender coisa tão elevada. Paulo fala dos “entranhados afetos e misericórdias” (Fp 2.1) que devemos

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ter uns pelos outros, e nos exorta a proceder nesse sentido como o nosso Redentor. Veja o raciocínio de Paulo, como pastor amoroso que era dos crentes de Filipos: “Completai a minha alegria de modo que penseis a mesma cousa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o mesmo sentimento” (v. 2). Essas coisas são próprias de Cristo que Paulo queria que eles tivessem. Por isso é que ele instou os crentes de Filipos da seguinte maneira: “Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Fp 2.5).

O que isso quer dizer? Significa que ele abriu mão do uso das coisas que ele tinha direito, a fim de poder realizar as coisas próprias de um servo. Ele poderia chegar a este mundo, como Deus que é, e realizar tudo de modo absoluto, usando as suas prerrogativas divinas, mas ele as pôs de lado (sem deixar de ser o sempre foi – Deus), para que pudesse se colocar na posição de servo, e obedecer toda a lei prescrita por Deus. Nós todos precisamos aprender a ter o sentimento de servo que Cristo teve, a despeito de ele ser Deus. Não somos divinos como Cristo. Ao contrário, às vezes agimos como brutos irracionais, mas somos chamados para sermos humildes como ele, colocando-nos numa posição de submissão a Deus a fim de poder servir aos homens. Procure ser como seu Redentor, tendo o mesmo sentimento de servir como Ele.

3. SEJA IGUAL A CRISTO, DESEJANDO AS MESMAS COISAS QUE ELE DESEJA Aprenda a desejar as coisas como Cristo. Ele teve somente santos desejos. Eu sei que você e eu não podemos ter desejos tão perfeita e santamente como ele porque o pecado ainda habita em nós, mas o nosso alvo é ter as mesmas disposições volitivas que ele tem. Na verdade, queremos as coisas que revelam o que somos. Se ainda desejamos coisas impuras é porque ainda temos os resquícios da velha natureza em nós. É nosso dever pedir constantemente a Deus para que ele nos limpe interiormente a fim de que, à medida que o tempo passa, passemos a querer cada vez mais coisas santas, o que vai revelar que estamos crescendo em santidade. Peça a Deus para ser santo interiormente como Cristo era, a fim de que você deseje as mesmas coisas que Cristo desejava, segundo a sua humanidade.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS Os efeitos da unio personalis são vários, e necessitamos de alguns capítulos

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para estudá-los mais detidamente. Esses efeitos podem e devem ser estudados sob três perspectivas: (a) efeitos relacionados à natureza humana do Redentor; (b) os alegados efeitos relacionados à natureza divina do Redentor. (c) efeitos relacionados à Pessoa do Redentor.167 Em virtude de pressuposições de correntes teológicas vigentes no tempo da Reforma, o estudo da doutrina da união das duas naturezas do Redentor – que é humanamente incompreensível – trouxe muitas confusões de entendimento a respeito das qualificações que a natureza humana do Redentor passou a possuir, coisas essas que nenhuma natureza humana de qualquer indivíduo poderia possuir sem a unio personalis. Houve grande divergência entre protestantes luteranos e calvinistas no século 16 sobre aquilo que tecnicamente ficou sendo conhecido como communicatio idiomatum, ou seja, que a natureza divina de Cristo tenha comunicado à sua natureza humana alguns atributos próprios da divindade. Em virtude da complexidade e da extensão dessa matéria e de sua importância histórica, dedicamos um capítulo especial a ela.

APLICAÇÃO Os cristãos devem ter um posicionamento correto com respeito à unio personalis. Há algumas posturas que precisam ser tomadas pelo cristão:

A. TENHA UMA VISÃO CORRETA DA UNIO PERSONALIS Dê uma olhada na história da Igreja e evite os erros dos crentes do passado. Não divida a personalidade de Cristo, que é apenas uma; não confunda as naturezas, que são duas. Alguns homens do passado cometeram muitos erros, que vieram a perturbar a paz da Igreja de Cristo. Apenas para você se lembrar de alguns: Os arianos negaram a eternidade de Cristo, nivelando-o às coisas criadas; os apolinarianos mutilaram a sua humanidade, fazendo-o 2/3 humano; os sabelianos afirmaram que o Pai se encarnou no Filho, negando a pessoalidade distintiva dele; os eutiquianos fundiram as duas naturezas numa só; os nestorianos praticamente deram duas personalidades a Cristo. Esse é um resumo muitíssimo pequeno, mas você não pode se esquecer de que esses homens alteraram o pensamento teológico no seu tempo. Toda essa história está registrada para que você estude sobre esse importante assunto. Você não pode ser uma vítima desses erros, que se repetem com roupagens novas. 167. Veja, de modo específico, cada um dos efeitos da unio personalis sobre a Pessoa do Redentor no capítulo 8 – Comunicação de Atributos; no capítulo 9 – A Impecabilidade do Redentor Divino-Humano; no capítulo 10 – A Tentabilidade do Redentor Divino-Humano; nos capítulos 11 e 12 veja detalhes sobre a tentação do Redentor.

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Lembre-se de que você tem o dever de conhecer a respeito do seu Redentor. Ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. As duas naturezas estão unidas inseparavelmente numa só Pessoa. Elas não podem ser confundidas, fundidas, ou separadas. Elas permanecem unidas, embora claramente distintas na Pessoa do Verbo encarnado. Portanto, com referência à unio personalis,

1. NÃO MISTURE O HUMANO COM O DIVINO PARA QUE VOCÊ NÃO CAIA NA HERESIA DO MONOFISISMO Quando nós não mantemos distintas as duas naturezas, acabamos ensinando uma união a ponto de fundirmos as duas naturezas, ocasionando uma terceira coisa que não é divina nem humana. A fusão de dois metais faz com que as propriedades deles se percam e seja produzido um terceiro metal. Não faça isso com a Pessoa do Redentor, que permanece divina e permanece humana, duas naturezas distintas e intactas.

2. NÃO MISTURE O HUMANO E O DIVINO PARA QUE VOCÊ NÃO VENHA A CRER NUM SER QUE NÃO É DIVINO NEM HUMANO Alguns cristãos do período patrístico, por não obedecerem a essa regra, vieram a crer em alguém que não era divino nem humano. Eles creram num ser totalmente estranho, um ser extra-mundano, mas que não se parecia com Deus nem com o homem porque não tinha as propriedades reais e plenas de Deus e nem as propriedades reais e plenas de um homem. Alguns creram numa terceira coisa, nem Deus nem homem, que foi produto da “fusão” das duas naturezas. Tenha cuidado para não cair nesse erro.

3. NÃO DISSEQUE CRISTO DE MODO QUE VOCÊ VENHA A TER DUAS PESSOAS NUM SÓ SER Esse foi o erro daqueles conhecidos como nestorianos. Eles separaram tanto as duas naturezas – a divina e a humana – que parecia que eles ensinaram a existência de duas pessoas vivendo juntas no Redentor. Creia na pessoa do Redentor, que eternamente possui a natureza divina e que, “na plenitude dos tempos”, assumiu uma natureza humana. Por isso, ao mesmo tempo ele é eterno e temporal, divino e humano. Todavia, uma só pessoa com duas esplendorosas naturezas!

B. VEJA QUÃO INCOMPARÁVEL É A REVELAÇÃO DA UNIO PERSONALIS O Cristianismo é absolutamente incomparável em razão daquilo que a Escritu-

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ra revela a respeito de Jesus Cristo. O nosso Redentor é incomparável. Não há ninguém igual a Ele! É tão maravilhosa a revelação a respeito da união pessoal que chegamos a exclamar: “Com que me apresentarei perante o Senhor? O que posso lhe oferecer?”. A revelação divina a respeito do Redentor causa espanto e admiração em todos os que levam a sério as Escrituras, e percebemos que tudo foi feito por causa da graça divina através da encarnação do Verbo. Como poderia uma Pessoa divina, como o Verbo, unir-se a uma natureza humana ainda não-personalizada? Esse é o mistério dos mistérios! Por essa razão, devemos humildemente inclinar as nossas frontes e render muitas graças por tão grande revelação!

C. VEJA QUE CONDESCENDÊNCIA DIVINA É A UNIO PERSONALIS Não é explicável, dentro de nossa finitude, e, além disso, por causa de nossa pecaminosidade, o fato de Deus se juntar à nossa humanidade. Não fosse essa condescendência divina na unio personalis, jamais qualquer um de nós poderia ser salvo. De fato, é infinita misericórdia o fato de Deus vir até nós e experimentar as conseqüências de nossa humanidade para nos remir. Ele deixou o seu eterno lar, adentrou às nossas portas, invadiu deliciosamente o nosso interior, habitando entre nós e dentro de nós. Na verdade, ele se tornou um de nós e foi tratado como pecador, como se fossem muitos pecadores tornados num só! Isso é excelência de condescendência divina! Todavia, ainda assim, muitos homens não conseguem enxergar a beleza de Cristo vindo a nós! Muitos o rejeitam e, fazendo isso, rejeitam Aquele que o enviou. Esse pecado é agravado porque é pecado contra o Mediador, contra aquele que faz a nossa ligação com Deus. Não podemos mais fechar os olhos a essa condescendência divina!

D. VEJA QUE A COMPAIXÃO DIVINA ESTÁ REVELADA NA UNIO PERSONALIS O fato de Jesus assumir a nossa natureza na unio personalis, assumindo, inclusive, as nossas dores e as nossas enfermidades, é compaixão divina por nossas misérias. Literalmente, ele colocou o seu coração em nossas misérias e moveu-se em direção a nós fazendo com que o seu mais Amado viesse até nós e fosse um de nós. Veja o que o escritor aos hebreus disse dessa atitude de Jesus Cristo, na sua unio personalis: Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR povo. Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados” (Hb 2.17, 18).

A compaixão daquele que veio até nós assumindo a nossa natureza é tão grande (“em tudo semelhante aos irmãos”) que ele chega não somente à simpatia em nosso sofrimento, mas a sua atitude é empática, sofrendo em nosso lugar as suas dores. Diz o texto que “convinha” que fosse assim. Era o único jeito de ele se mostrar misericordioso e socorrer todos os seus irmãos que estavam em miséria e sofrimentos. Que conforto é para nós que o nosso Sumo Sacerdote tenha descido do céu, tenha assumido a nossa humanidade numa união pessoal misteriosa, e tenha oferecido a si mesmo por nós, para nos remir com toda sua compaixão!

E. VEJA A QUE OBJETIVO FINAL A UNIO PERSONALIS CONDUZ Deus tem a doce pretensão de construir uma alegria em nós com a encarnação de seu Filho. A alegria e a glória de nossos corpos, assim como de nossas almas, está fundamentada no fato de Cristo tomar a nossa carne, isto é, em assumir a nossa humanidade. Assim, como Deus fez com Cristo, o nosso modelo, podemos dizer que ele faz a mesma coisa conosco, dando-nos uma natureza humana semelhante à dele. Assim como Deus honrou a natureza humana do Filho, fazendo-a mui santa, assim também ele fará com a nossa. E não há honra maior do que ser tornado parecido com Jesus Cristo. Não há glória maior para as criaturas do que serem assemelhadas ao seu Redentor e Cabeça!

F. VEJA QUE BÊNÇÃO MARAVILHOSA A UNIO PERSONALIS NOS TROUXE Porque o Redentor é homem, ele é cheio do senso experimental de nossas enfermidades, angústias e fardos; e como Deus, ele pode suportar tudo. É a unio personalis que torna possível essa obra maravilhosa que nos livra de todas as nossas dores, angústias, enfermidades e aflições. Que maravilha é essa “invenção” de Deus do nosso Redentor! Somente Deus poderia “criar” um Redentor tão misteriosamente poderoso! Bendito seja Deus por bênção tão maravilhosa de ter um Redentor divino-humano como Ele! Quão delicioso é pensar que podemos confiar num Redentor como Jesus Cristo. É revigorante e altamente satisfatório ter uma provisão divina tão maravilhosa! Nunca a nossa alma ficará desamparada porque ela está unida a Cristo (não hipostaticamente) pela fé nessa maravilhosa obra e Pessoa de Jesus Cristo.

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CAPÍTULO 3 NOMES QUE APONTAM PARA A UNIO PERSONALIS

H

á muitos nomes de Cristo registrados nas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento. Alguns deles nos falam diretamente da sua divindade; outros da sua humanidade; outros, ainda, apontam para os diversos ministérios e funções dele. Todavia, há alguns outros que apontam de maneira direta ou indireta para a unio personalis no Redentor. Os nomes que serão estudados abaixo apontam para o fato de que o Filho de Deus, que sempre possuiu a natureza divina, ssumiu a natureza humana. Eles dizem respeito às funções que o Redentor teve por causa da união ou em função dela. Ele não poderia ter esses nomes se não fosse divino-humano. Dentre muitos nomes que apontam para a unio personalis, escolhemos apenas alguns: REDENTOR MEDIADOR SALVADOR LIBERTADOR Todos esses nomes necessitam das duas naturezas daquele a quem chamamos de Redentor.

REDENTOR O nome Redentor (que é freqüentemente aplicado a Jesus Cristo na teologia cristã) é resultado do estudo do verbo redimir e do substantivo redenção, já que a Escritura fala que fomos redimidos por Jesus Cristo. A palavra Redentor aparece muitas vezes no Antigo Testamento,168 mas, curiosamente, ela não aparece no Novo Testamento, embora o cognato redenção apareça abundantemente. Da redenção trataremos com detalhes. O nome Redentor aponta para a unio personalis porque não existe Redentor se não houver a posse das duas naturezas. Só pode haver Redentor quando as duas 168. A palavra Redentor (heb. goel) aparece predominantemente em Isaías (11 vezes); em Jó, uma vez, e duas vezes em Jeremias.

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naturezas estão inseparavelmente unidas. O Redentor implica necessariamente nas duas naturezas unidas porque não pode haver Redentor (com caráter soteriológico-escatológico) se não houver a unio personalis. A mesma coisa poderia ser dita de todos os outros nomes e títulos que estudaremos neste capítulo. Todos eles apontam para a unio personalis em nosso Redentor. O assunto geral deste livro é sobre a unio personalis. Este nome, Redentor, só pode ser entendido à luz da doutrina da unio personalis porque não há a possibilidade de haver Redentor sem que o Verbo se torne carne. Alguns podem objetar que já havia Redentor antes da encarnação porque a Escritura do Antigo Testamento afirma que Deus é o Redentor do seu povo. Todavia, no Antigo Testamento, o ensino sobre a redenção era feito através dos tipos e sombras, apontando para o verdadeiro Redentor que haveria de se manifestar. O ensino sobre o Redentor no Antigo Testamento aponta, mais precisamente, para uma redenção passada, a do Egito,169 mas não para o Redentor divino-humano que haveria de vir. O fato da obra da redenção, em si mesma, ter de ser feita por um Redentor divino humano é um ensino evidentemente patente no Novo Testamento, embora a idéia esteja latente no Antigo Testamento. Para poder ser exercer as funções de Redentor, com todas as suas propriedades divinas, o Filho de Deus teve de assumir a nossa humanidade com todas as suas propriedades. Sem as duas naturezas unidas, não haveria a possibilidade de exercer a função pela qual o Filho de Deus veio ao mundo. De um lado, o Redentor precisava ser homem porque ele tinha que oferecer o seu corpo e a sua alma como sacrifício pelo pecado. Somente um homem pode oferecer essas coisas. O Filho, como divino que era, não poderia oferecer essas coisas para a redenção, porque elas não lhe são próprias. Para poder substituir homens, o Redentor precisava ser um homem. Nesse sentido, os anjos, e mesmo o próprio Verbo, não poderiam fazer o trabalho de um substituto. Por outro lado, o Redentor precisava ser Deus para poder dar suporte à natureza humana ao ter que morrer no lugar de muitos. Precisava ser Deus para oferecer um sacrifício perfeito e suficiente para redimir todos os homens, ainda que tenha vindo para dar vida em resgate de muitos deles. Na encarnação da Segunda Pessoa da Trindade houve a união das duas naturezas, que possibilitou haver um Redentor para resgatar os que estavam presos aos seus pecados, à maldição da lei de Deus, estando sob o domínio do diabo e sob a justiça divina. No conceito das Escrituras, portanto, o Redentor é aquele que livra da escravi169. Parece-me que o texto de Jó 19.25 é o único que trata prolepticamente de um Redentor, com caráter soteriológico-escatológico. Todas as 11 citações de Isaías (exceto a de Is 59.20, 21) dizem respeito mais diretamente ou lembram os feitos redentores de Deus no passado, especialmente com referência ao Egito. As duas citações de Jeremias não fogem à regra.

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dão. A figura do Redentor é vista de duas maneiras: como aquele que compra pagando um preço e como aquele que resgata através de um pagamento. Portanto, não há como separar a Pessoa do Redentor com a sua obra de redenção. Passamos, então, a estudar a obra do Redentor, que é a nossa redenção.

A. A REDENÇÃO É VISTA COMO UMA COMPRA Nos tempos do Antigo Testamento, a noção de redenção de uma terra era vista em termos comerciais.170 Quando uma pessoa não tinha condições de pagar o preço da terra disponível que pertencia a um parente, o direito de compra ficava para o parente mais próximo, que é o redentor-parente. Foi nesse sentido que Boaz se tornou o redentor de Rute (Rt 4.4), sendo um tipo de Jesus Cristo. Várias vezes a Escritura também fala na redenção do pecado em termos comerciais. Ela usa o termo “comprar” nessas relações comerciais. Paulo é o mais pródigo no uso desse termo comercial da redenção de pecadores. Veja dois exemplos em que Paulo usa o verbo comprar na voz passiva: 1 Coríntios 6.20 – “Porque fostes comprados (h)gora/sqhte) por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo.” 1 Coríntios 7.22, 23 – Porque o que foi chamado no Senhor, sendo escravo, é liberto do Senhor; semelhantemente o que foi chamado, sendo livre, é escravo de Cristo. Por preço fostes comprados (h)gora/sqhte); não vos torneis escravos de homens.

João também usa o verbo comprar para explicar as relações de um triângulo comercial: o comprador, o comprado e a pessoa de quem se compra. Há dois outros textos muito claros vindos do Apocalipse de João. O primeiro deles será analisado logo abaixo: Apocalipse 5.9 – “e entoavam novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste (h)go/rasaj) para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação.” Apocalipse 14.3, 4 – “Entoavam novo cântico diante do trono, diante dos quatro seres viventes, e dos anciãos. E ninguém pôde aprender o cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil que foram comprados (h)gorasme/noi) da terra. São estes os que não se macularam com mulheres, porque são castos. São eles os seguidores do Cordeiro por onde quer que vá. São os que foram redimidos (h)gora/sqhsan) dentre os homens, primícias para Deus e para o Cordeiro.”

Nessas passagens, a linguagem de redenção é a de assegurar libertação através do pagamento de um preço, e esse conceito é aplicado expressamente à entrega da 170. Veja Levítico 25 e 27.

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vida de Jesus pelo derramamento de seu sangue. Jesus derramou seu sangue a fim de pagar o preço de nosso resgate. Cristo se tornou o nosso Redentor quando ele nos “comprou”. Ele pagou o preço de nossa redenção, e o preço foi o derramamento do seu sangue. Veja a análise do texto abaixo: Análise de Texto Apocalipse 5.9, 10 – “Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste (h)go/rasaj) para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação, e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes; e reinarão sobre a terra.”

Esses dois versos de Apocalipse lançam alguma luz sobre a obra da redenção feita por Jesus Cristo em forma de compra, e eles nos ajudam a enxergar o processo redentor em questão. Jesus Cristo é apresentado como alguém extremamente digno de abrir os selos do livro (provavelmente o Livro da Vida), que vai revelar quem são os remidos.

1. DE QUEM O REDENTOR OS COMPRA OS REMIDOS? Nesse texto, não está explícita nem implícita a informação sobre a Pessoa de quem a compra é feita. Apenas o ensino geral das Escrituras nos mostra que o Redentor comprou escravos não do mercado de Satanás (porque este não tem direito de posse sobre ninguém), mas daquele que tem todas as pessoas nas suas mãos. O Redentor comprou esses escravos que estavam prisioneiros no Departamento de Justiça divino. Por causa dos seus pecados, eles haviam sido condenados, e, a fim de libertá-los do estado de prisão em que estavam, ele teve de pagar à Justiça o preço estipulado pelo Juiz de toda terra. Deus é quem tem o direito de posse sobre todos os homens e é das mãos de Deus que Jesus Cristo resgata os pecadores.

2. PARA QUEM O REDENTOR OS COMPRA OS REMIDOS? Apocalipse 5.9 – “Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação...”

O texto responde à pergunta acima, dizendo: “foste morto e com o teu sangue compraste para Deus.” Essa é uma verdade sobre a qual o texto não deixa dúvida: o Redentor nos compra de Deus para o próprio Deus! Os remidos não são trocados de mão. São comprados de Deus, porque estão debaixo da ira de Deus, mas não se apartam de Deus, permanecendo agora sob o seu amor. Saem da mão de sua ira, mas vão parar na mão do seu amor. Saem de Deus e vão para Deus. Eles sempre

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estão debaixo de Deus. Quando não sob sua justiça, estão sob sua misericórdia. Nunca ninguém os arranca de Deus. Os escravos que nunca foram remidos nunca saem de debaixo da Justiça divina. Permanecem para sempre sob a ira de Deus. Os escravos que são remidos também nunca saem de debaixo das mãos de Deus. Apenas eles saem de debaixo da Justiça Divina e são colocados sob a bondade misericordiosa do mesmo Deus! O Redentor os compra para Deus, satisfazendo a sua justiça, a fim de que eles estejam perenemente sob a misericordiosa mão de Deus e desfrutem das bênçãos da Sua bondade. Deus os têm para sempre sob seus cuidados paternais e amorosos. O Redentor os comprou para Deus a fim de que eles pudessem mudar de estado (isto é, de perdidos para remidos), ficando sob a proteção graciosa de Deus para todo sempre.

3. COM O QUE O REDENTOR COMPRA OS REMIDOS? “e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação...”

É importante lembrar que Deus não poderia (por causa da sua própria natureza santa) deixar de punir os pecados dos homens. Mas para que eles pudessem ser livres pessoalmente de sua prisão, alguém teria que tomar o lugar deles. A fim de pagar a pena daqueles a quem ele veio libertar, o Redentor ofereceu o seu sangue como pagamento pela compra dos prisioneiros da Justiça Divina. A “moeda” usada para a compra não foi dinheiro, mas sangue. Nessa redenção comercial, o valor requerido é pago com a vida, pois o sangue é o significado da vida. A fim de que os mortos tenham vida, é necessário que a morte de um Substituto (que derrama sangue) seja realizada para a vida dos prisioneiros. Diferentemente de todos os outros tipos de compra, onde o valor é pago em dinheiro ou outra coisa equivalente, a redenção de pecadores é feita com sangue, é divida de sangue.

4. A QUEM O REDENTOR COMPRA? “e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação...”

A redenção operada por Jesus Cristo, que faz com que os escravos sejam colocados debaixo da bondade misericordiosa de Deus, inclui pessoas de todas as partes do mundo. Nesse sentido, a redenção de Cristo é universal. Isso não significa que ele tenha comprado cada pessoa que existe no mundo para Deus, mas que pessoas de todas as etnias e de todas as línguas são remidas por Jesus Cristo. É maravilhoso ver como a obra de Deus alcança gente de todas as épocas e lugares! Hendriksen diz que “não há nada limitado nem nacional quanto a essa

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redenção. Ela é mundial em seu alcance e abarca todos os grupos: o grupo étnico (tribo), o grupo lingüístico (língua), o grupo político (povo) e o grupo social (nação)”.171 Como é poderoso o poder de compra do Redentor! É de extremo valor o sangue de Jesus Cristo. Nunca essa “moeda” é desvalorizada, porque Deus sempre a tem em alta conta. É preciosíssimo para Deus o sangue de Cristo a ponto de Deus libertar os prisioneiros das suas prisões de todas as partes. O sangue de Jesus Cristo atingiu pessoas dos rincões mais distantes do mundo. Em toda parte, é possível ver pessoas remidas por Jesus Cristo. Essa universalidade de remidos será mais patente ainda no dia em que todos comparecerem para ouvir o “vinde benditos de meu Pai”, no dia final, pois João diz que viu “uma grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas mãos” (Ap 7.9). São esses inumeráveis que o Redentor comprou para Deus e que estarão “alvos como a neve”, perante o Redentor e Aquele para quem ele os comprou.

5. PARA QUE O REDENTOR OS COMPRA? “e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes; e reinarão sobre a terra.”

A redenção em forma de compra efetuada por Jesus Cristo tem um propósito duplo: através de sua morte redentora, Jesus Cristo nos colocou nas funções sacerdotais e reais. É importante verificar que, logo no começo do Apocalipse, a mesma referência é feita. João ensaia uma espécie de cântico, dizendo: “Àquele que nos ama, e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus e Pai, a ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém.” (Ap 1.5, 6). Isso significa que todos os remidos de Cristo (não somente alguns especiais), isto é, que os amados de Cristo, participam de uma posição privilegiada e honrosa do “sacerdócio real” (cf. 1Pe 2.9). A expressão “reino e sacerdotes” é retirada do texto de Êxodo 19.6. Os versos do Apocalipse significam que Jesus Cristo, em virtude da redenção pelo seu sangue, investiu os remidos de uma grande honraria: Eles reinam com ele porque tiveram vitória sobre o pecado, sobre a morte e o inferno, e como sacerdotes eles têm não somente acesso direto a Deus, mas todos eles são engajados no santo serviço de Deus, oferecendo-lhe uma adoração aceitável.172

171. W. Hendriksen, Mais que Vencedores, 106. 172. Veja Albert Barnes, Notes on the New Testament – Revelation (Grand Rapids: Baker Book House, 1949), 45.

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B. A REDENÇÃO É VISTA COMO UM RESGATE A noção de resgate é parecida com a idéia de compra, pois, no resgate, a compra está geralmente envolvida. Essa noção de resgate não nos é tão familiar nos dias de hoje quanto era para a mente dos escritores e dos leitores do Novo Testamento, pois, naquele tempo, havia prisioneiros de guerra e escravos de toda sorte. Embora a noção de resgate não tenha sido muito conhecida de nossa geração, ela o foi em gerações passadas. Na nossa história, tivemos exemplos de pessoas sendo resgatadas pelos senhores dominadores, no tempo da escravatura. Entre os judeus, havia várias formas de se efetuar um resgate. Essas formas eram próprias de suas leis e costumes. Uma pessoa cujo boi chifrasse uma pessoa e que morresse em conseqüência disso, teria morto o seu boi, mas seria, ela mesma, absolvida. Se o dono sabia que o boi era dado a chifrar e o deixava solto, então, nesse caso, morria o boi e também o dono. O único modo do dono salvar a sua vida é com o pagamento de um resgate de tudo o que lhe for exigido pelos parentes do morto (ver Êx 21.28-30; cf. Nm 18.15). De qualquer forma, o resgate era para livrar uma pessoa de sofrer a penalidade, seja pelo pagamento que ela própria faz, ou que outra venha a fazer em lugar dela. Geralmente, esses resgates obedeciam a uma transação triangular, envolvendo três partes – primeira, a pessoa a ser resgatada; segunda, a que pagava o resgate; terceira, a que recebia o resgate.173 Aplicando essa transação às coisas da nossa redenção, podemos dizer que nós somos as pessoas resgatadas; a que paga o resgate é Cristo, e a que recebe o resgate é Deus, o Pai.

1. SOBRE A PESSOA QUE ESTÁ PARA SER RESGATADA Na análise das pessoas envolvidas na transação da redenção, em forma de resgate, daremos atenção primeira à pessoa que está para ser resgatada. O texto abaixo mostra a real condição dela. Análise de Texto Salmo 49.7-9 – “Ao irmão, verdadeiramente, ninguém o pode remir, nem pagar por ele a Deus o seu resgate (pois a redenção da alma deles é caríssima, e cessará a tentativa para sempre).”

A situação da pessoa a ser resgatada é de profunda miséria. Ela não pode fazer nada por si mesma, pelas seguintes razões mencionadas no texto sob análise:

173. James Stalker. Studies on the Person of Christ (Chattanooga, TN: AMG Publishers, 1955), 413, 414.

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a. A impossibilidade de um homem remir outro homem “Ao irmão, verdadeiramente, ninguém o pode remir nem pagar por ele a Deus o seu resgate.”

Deus é quem tem o direito de posse sobre o pecador. Ele coloca um preço de resgate que torna impossível o resgate feito pelo próprio irmão. Em matéria de resgate de almas perdidas, ricos e pobres estão na mesma plana. Está vetada a possibilidade de alguém que é simplesmente homem remir outro semelhante. Por mais que eles amem a pessoa a ser resgatada, eles não podem fazer nada por ela. Eles não conseguem convencer Deus de aceitar alguma coisa deles.

b. A impossibilidade do resgatador humano pagar o preço altíssimo “pois a redenção da alma deles é caríssima.”

A razão da impossibilidade de um homem redimir outro homem está na frase acima: “a redenção da alma deles é caríssima”. É impossível a um redentor simples e único fazer o tipo de pagamento exigido por Deus para a redenção de um ser humano. Ele não tem como pagar o preço tão alto da redenção. No tempo dos filhos de Coré, autores do Salmo 49, havia muitos homens ricos que confiavam nas suas riquezas para fazer qualquer coisa que quisessem. Observe que, no verso 6, o salmista fala dos homens “que confiam nos seus bens e na sua muita riqueza se gloriam”. No entanto, o argumento do salmista é: por mais rico que um homem possa ser, ele não pode resgatar ninguém das mãos de Deus. O preço de uma alma é elevado demais! Não há esperança de qualquer ser humano poder pagar o preço dela. Spurgeon diz que “quando a morte chega, a riqueza não pode suborná-la; o inferno se segue, e nenhuma chave de ouro pode destravar as suas masmorras”.174 A Escritura afirma que, na redenção do pecado, não entra na conta o dinheiro. Por isso, Pedro diz: “...não foi mediante cousas corruptíveis como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo preciosa sangue...” (1Pe 1.18,19). Somente o sangue de um Cordeiro imaculado é que pode resgatar, e esse preço é caríssimo demais. Somente um Redentor divino-humano pode pagá-lo.

c. A impossibilidade de pagar o preço é vista nas tentativas fracassadas “... e cessará a tentativa para sempre.”

Quando um homem tenta remir outro homem, o fracasso é total, porque a sua riqueza dele acaba e não consegue pagar o preço exigido por Deus. Por mais que um homem tente remir o outro com os seus recursos, sempre o seu recurso será curto, insuficiente. 174. Charles H. Spurgeon, The Treasury of David, vol. II (Londres: Marshall Brothers Ltd.), 371.

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“Não há nenhuma esperança de que [o recurso] jamais venha a ser suficiente, que por qualquer aumento na quantia, ou por qualquer mudança nas condições da barganha, propriedade ou riquezas podem auxiliar nisto. Toda a questão é perfeitamente sem esperança quanto ao poder de riqueza em salvar uma vida humana da sepultura. Ela deve sempre falhar na salvação de um homem da morte.”175

Um ser humano, na tentativa de salvar outro, uma hora desistirá dessa tarefa em virtude da impossibilidade causada pelo preço altíssimo estabelecido por Deus. Essa é a triste condição humana: triste para aquele que tenta salvar e triste para aquele que não pode ser salvo e pode nem fazer alguma coisa por si próprio, porque está nas mãos justas do Todo-Poderoso.

2. SOBRE A PESSOA QUE PAGA O RESGATE No grupo de três pessoas, o Resgatador é a segunda pessoa a ser analisada aqui. Análise de Texto Mateus 20.28 – “tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.”

a. veja o espírito serviçal do resgatador “tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir.”

O Filho deixou o estado glorioso em que vivia com seu Pai desde antes da fundação do mundo (Jo 17.5) para vir a este mundo servir, ou seja, fazer alguma coisa em favor daqueles que não podiam fazer nada por si mesmos. Por causa da sua divindade e do seu senhorio, ele é que devia ser servido, mas ele veio para servir, preferindo colocar-se na posição de servo. O verbo grego usado para “servir” é diakonh=sai (de onde vem a palavra portuguesa diácono), que traz a idéia de prestar socorro aos que são necessitados. Eles estavam debaixo da maldição divina (por causa da manifestação parcial da ira divina), e Jesus veio socorrê-los, como um grande diácono que é. O Filho de Deus encarnou-se para prestar serviço aos pecadores, resgatando-os da maldição divina.

b. Veja o preço pago pelo resgatador “e dar a sua vida.”

O serviço prestado pelo grande diácono tem um valor elevado. O preço do 175. Veja, Spurgeon, The Treasury of David, vol. II, 377.

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resgate de vidas humanas é tão alto que o homem não pode pagar, como vimos anteriormente na análise do Salmo 49.7-9. Deus exige nada menos do que a própria vida do Resgatador. Não existe redenção sem sangue (e derramamento de sangue implica em morte), porque sem derramamento de sangue não há remissão (Hb 9.22). A vida do Resgatador foi o preço estabelecido pela pessoa que recebe o resgate. É como se Deus o Pai houvesse dito a Deus o Filho antes dele se encarnar: “Você irá ao mundo para resgatar, mas o preço que você pagará é, ao encarnar-se, dar a sua vida para tê-los libertos.” A vida de um pela vida de muitos. Vida por vidas. Esse foi o preço exigido e o preço pago.

c. veja a voluntariedade do resgatador “e dar a sua vida.”

Quando os homens pecaram a Bíblia diz que Deus os puniu com a morte (Gn 2.17). A vida espiritual é tirada dos homens por uma imposição penal de Deus, e eles morrem. A chamada vida física também é tirada dos homens pela mesma razão judicial, e assim eles morrem. Quando os seres humanos são mortos pela violência de outros homens, eles tornam impotentes diante da morte. Eles nada podem fazer em favor de si mesmos, e a vida lhes é tirada. Eles não têm poder sobre a própria vida. A qualquer momento a morte pode abatê-los. Todavia, é importante enfatizar que a vida do Redentor não foi tomada dele. Ninguém tirou a vida de Jesus. Ela foi dada espontaneamente por ele. Ao invés de ser vencido pela morte, ele se entregou à morte, ele se ofereceu à morte. A sua vida foi uma oferta voluntária de sacrifício. Ninguém tirou a vida de Cristo. Ele estava no controle pleno da situação. A morte não tinha poder sobre ele. Ao contrário, quando resolveu morrer, ele entregou espontaneamente a sua vida. Veja as palavras enfáticas que Jesus usa: “Por isso o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou.” (Jo 10.17, 18). Por isso, o texto diz que o Filho do homem, de uma maneira voluntária, “deu a sua vida”. Ele não titubeou um só momento em dar voluntariamente a sua vida em favor daqueles por quem morreu.

d. Veja a dignidade do resgatador “e dar a sua vida em resgate por muitos.”

É maravilhoso que a vida de um valha a vida de muitos. Se o Redentor fosse um homem comum, no máximo a sua vida valeria pela vida de um outro homem comum. Stalker diz que

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“quando os prisioneiros de guerra eram negociados no final da guerra, a troca não era sempre e simplesmente homem por homem. Um oficial era de maior valor do que um soldado comum, e diversos soldados podiam ser redimidos pela rendição de um oficial. Por uma mulher de alta posição ou de extraordinária beleza um número ainda maior de prisioneiros poderia ser trocado; e pela entrega da vida do filho do rei, muitos mais poderiam ser redimidos.”176

É nesse sentido que trato da dignidade do Filho do homem, que é o Filho encarnado do Rei. Na verdade, ele é o próprio Rei. A sua dignidade vale muitas vidas para aquele que recebe o resgate. O seu valor é muitíssimo grande, e por causa do seu valor, por causa da sua dignidade pessoal e da grandeza da sua obra, o Resgatador teve em troca de sua vida o resgate de muitos.

e. Veja a substituição feita pelo Resgatador “e dar a sua vida em resgate por muitos.”

A ênfase aqui é na preposição grega a))nti (que no texto é traduzida como “por”),177 que significa exclusivamente “no lugar de” ou “em troca de”,178 apontando inequivocamente para a idéia de substituição. É por causa da substituição que pode haver o resgate. É uma troca. O Substituto legal paga o débito, ainda que inocente, para que os que são moralmente culpados sejam livres da condenação de morte. A substituição é fundamental para a idéia do resgate. O resgate não foi pago em dinheiro, mas com a vida do Substituto, a fim de que os substituídos fossem redimidos.

3. SOBRE A PESSOA QUE RECEBE O RESGATE Das três pessoas envolvidas na transação do resgate, talvez essa seja a mais confundida de todas, em virtude de concepções errôneas a respeito do real significado da expiação que vigoraram no meio da Igreja cristã no decorrer dos séculos. É essa Pessoa que mantém o prisioneiro sob custódia e que tem todos os direitos sobre o prisioneiro. É essa pessoa que determina se aceita os termos do resgate e a pessoa que vai resgatar. Ela é quem estabelece todos os termos da transação. Salmo 49.7 – “Ao irmão, verdadeiramente, ninguém o pode remir nem pagar por ele a Deus o seu resgate” 176. James Stalker, Studies on the Person of Christ, 415, 16. 177. A versão usada enfraquece o sentido da preposição grega, pois a palavra “por” pode significar simplesmente “em favor de” ou “em benefício de”, o que não esgota o real sentido da palavra. A idéia de substituição é inquestionável nessa preposição. Embora a palavra “por” não seja errônea, o sentido de substituição é enfraquecido. 178. William Hendriksen, Mateus, vol. 2 (São Paulo: Cultura Critã, 2001), 349.

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Houve uma teoria errônea sobre a expiação ensinada em alguns círculos da Igreja cristã, começando com Orígenes (morto em 254),179 de que Cristo tinha pago o resgate a Satanás, como se Satanás tivesse direitos sobre as pessoas perdidas. Na realidade, Satanás não tem direito algum sobre as pessoas que estão sob o seu domínio. Elas estão no reino das trevas, onde Satanás “reina”, mas elas estão ali por causa da justiça punitiva de Deus. Deus foi quem as colocou sob o império de trevas, e isso é parte do seu castigo sobre elas. Portanto, essas pessoas estão sob a ira divina, debaixo dos direitos da justiça divina. Para que elas saiam de debaixo da sua justiça, é necessário que elas sejam resgatadas. É aí que o Resgatador entra. A fim de resgatá-las, ele se troca por elas, dando a sua vida por elas. Nesse caso, quem recebe o resgate é Deus, que tem o direito de posse sobre elas, impondo a justiça dele sobre elas. Quando Cristo entrega a sua vida, ele as resgata, satisfazendo a justiça divina. Quando a justiça é satisfeita, eles são livres da ira divina. O resgate pago a Deus180 é que as redime. O Filho paga ao Pai o resgate desses “muitos”, porque o Pai é quem tem direito de impor a penalidade sobre eles. Quando um Outro se oferece, as pessoas que estão sob a ira são libertas. É Nesse sentido que o próprio Deus nos liberta do império das trevas e nos traz para o reino do Filho do seu amor (Cl 1.13).

4. SOBRE AS COISAS DAS QUAIS O REDENTOR NOS RESGATA Há várias coisas das quais o Redentor nos resgata. Os argumentos usados abaixo são retirados unicamente dos textos que falam diretamente do verbo resgatar, que em grego é a)gora/zw (agorazo), e do verbo redimir, que em grego é lu/trow (lutroo).181

a. O Redentor nos resgata da maldição da lei Gálatas 3.13 – “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar, porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro.”

A maldição da lei tem a ver com a sanção penal para os transgressores dela. A maldição da lei é a expressão da ira de Deus, do seu desprazer com os homens que infringem os seus princípios. Todas as pessoas que querem continuar debaixo da lei como um método de se obter a vida eterna, estão sob a maldição da lei. A estes 179. Segundo a teoria errônea da expiação elaborada por Orígenes, a obra de Cristo é primariamente dirigida a Satanás, a fim de ganhar vitória sobre o diabo, o pecado e a morte. Conforme o pensamento de Orígenes, Satanás ganhou o direito sobre o homem. Assim, a morte de Cristo foi um resgate pago a Satanás para que tivesse, de volta, o direito da posse do homem pecador. Por sua morte expiatória, Cristo cancela os direitos de Satanás sobre o homem. 180. Cf. Romanos 3.23-25. 181. Uma discussão bem mais detalhada sobre a redenção será feita numa futura publicação que tratará dos termos usados para expiação. Um desses termos é redenção.

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Paulo chama de pessoas “das obras da lei”. A maldição vem sobre os homens, porque estes não são capazes de guardar todos os preceitos da lei. Para que a lei possa ser de benefício para o pecador, ela tem que ser cumprida na sua inteireza, mas como o ser humano não é capaz de guardar todos os seus preceitos, então, ele acaba sendo maldito dela. Paulo deixa esse aspecto muito claro, quando diz: “Todos quantos, pois, são das obras da lei, estão debaixo da maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as cousas escritas no livro da lei, para praticá-las” (Gl 3.10). O resgate dessa maldição deve ser entendido como salvação. Quando Cristo Jesus morreu substitutivamente, ele resgatou-nos da penalidade da lei, que é a maldição, tornando-se maldição em nosso lugar. A maldição tornou-se sua porque ele foi tratado como pecador maldito no nosso lugar. Assumindo sobre si toda a maldição de Deus, Ele livrou-nos de ser malditos dele. Todas as nossas dívidas foram resgatadas ali no madeiro. Gálatas 4.4, 5 – “... Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos.”

Todos os homens no tempo da dispensação do Antigo Testamento foram nascidos debaixo da lei e estiveram sujeitos às prescrições cerimoniais da lei, isto é, necessitados de obedecer a todos os rituais indicativos da salvação, para que pudessem ser libertos. Eles estavam sob a tutela da lei, sendo esta uma espécie de tutor (Gl 4.2) ou um pedagogo (Gl 3.23, 24), sendo, portanto, imaturos, estando ainda por crescer. Paulo contrasta, na passagem acima, o período em que o povo era imaturo e o período da maturidade assumida pela idéia da adoção de filhos. Debaixo da administração da salvação no período do Antigo Testamento, todas as cerimônias que eram indicativas da redenção, como os sacrifícios e ofertas, precisavam ser praticadas. Mas, depois, elas foram dispensadas para aqueles que haviam sido resgatados por Cristo, quando estes passaram para a condição de filhos adotivos de Deus. Quando Cristo veio, ele os libertou das cerimônias da lei porque ele era o próprio Cordeiro tipificado, que foi pendurado no madeiro. Quando o Antítipo chegou, todos os tipos foram deixados de lado, por não mais serem necessários. Cristo, portanto, libertou os homens de terem que executar todos os regulamentos cerimoniais em cumprimento ao mandato divino. Ser resgatado da lei não significa somente ser resgatado das cerimônias da lei, mas também resgatado das obras da lei. Os homens tinham que obedecer todos os princípios, não somente os cerimoniais, mas também os de conduta moral. Originalmente, a obediência à lei era o método de Deus para a conceder vida eterna aos homens, mas a lei ficou enferma por causa da impotência do homem em cumpri-la. A impropriedade não está na lei, mas no homem. Deus, portanto, enviou Jesus Cristo para livrar os homens de terem que cumprir todas as ordenanças como um

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meio de salvarem-se. Eles foram, nesse sentido, também, resgatados da lei. A justificação deles veio através da obediência ativa de Cristo, como é claramente afirmado em Romanos 5.19.

b. O Redentor nos resgata da penalidade do pecado A redenção efetuada por Jesus Cristo tem a ver com o resgate da penalidade do pecado. Esse é o aspecto judicial da redenção. Jesus Cristo nos livra do castigo penal que a lei impõe sobre os transgressores da lei. Efésios 1.7 – “no qual temos a redenção (a)polu/trwsin), pelo seu sangue, a remissão (a)/fesin) dos pecados, segundo a riqueza da sua graça.” (cf. Cl 1.14)

A penalidade do pecado é uma imposição da justiça da lei. Quando Cristo Jesus derramou o seu sangue, ele redimiu os prisioneiros da maldição da lei. Paulo diz que “todos quantos, pois, são das obras da lei, estão debaixo da maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as cousas escritas no livro da lei, para praticá-las” (Gl 3.10, 11). Todos os homens caem sob essa maldição porque todos são transgressores da lei divina. Todos os homens tropeçam em preceitos da lei. A fim de não receberem a penalidade, os homens deveriam guardar, sem exceção, todos os preceitos. Mas se eles tropeçam num só deles, eles se tornam culpados de toda a lei (Tg 2.10). Como não há ninguém impoluto, também não há ninguém que possa ser livre de cair sob essa maldição. Todavia, aqueles por quem Jesus derramou o seu sangue são resgatados dessa maldição. Quando o sangue de Cristo é visto por Deus, então não mais temos essa maldição sobre nós. Ela sai de sobre nós. Esse é o sentido de redenção da penalidade do pecado. Essa é uma ação feita na história do mundo, no Calvário, e aplicada a nós quando o Santo Espírito nos regenera. A penalidade é tirada de sobre nós porque Jesus Cristo se torna maldito em nosso lugar. Por essa razão Paulo diz que “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar” (Gl 3.13). A remissão da penalidade não é porque Deus a ignora. Ao contrário, esse exige que a penalidade seja paga, a fim de que haja o perdão dos pecados, que é a mesma coisa que a supressão da penalidade do pecador. Contudo, todo pecado é necessariamente castigado, mas não necessariamente pessoalmente no pecador. Este pode ser livre da penalidade quando um Vigário toma o lugar dele. Foi exatamente isso o que aconteceu com Cristo, e, por isso, não mais recebemos a justa penalidade.

c. O Redentor nos resgata do domínio do pecado Esse é o segundo aspecto da redenção. O Redentor faz mais do que simples-

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mente resgatar-nos da penalidade do pecado. Ele resgata-nos também do domínio do pecado. Escrevendo aos Romanos, Paulo disse: “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões; nem ofereçais cada um os membros do seu corpo ao pecado como instrumentos de iniqüidade; mas oferecei-vos a Deus como ressurrectos dentre os mortos, e os vossos membros a Deus como instrumentos de justiça. Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e, sim, da graça” (Rm 6.12-14).

Paulo está instruindo os crentes a considerarem-se “mortos” para o pecado (vs. 6-11). A base da morte para o pecado está naquele que “deu-se a si mesmo por nós a fim de remir-nos de toda iniqüidade”. O pecado tem o seu domínio retirado de nós. Já não somos escravos do pecado porque Jesus Cristo verdadeiramente nos libertou (Jo 8.36). A graça de Deus se nos torna abundantes no resgate operado por Cristo, libertando-nos das amarras do pecado. Ser dominado pelo pecado é não poder deixar de pecar, conceito expresso por Agostinho quando escrevia sobre non posse non peccare. Todavia, somos resgatados dessa dominação do pecado, mediante o que Cristo fez em nosso lugar. O sangue de Jesus Cristo é libertador do poder do pecado. Por causa desse tipo de libertação, somos tornados dia a dia um povo purificado, e zeloso de boas obras. Agora, já podemos escolher fazer o bem, porque as amarras que nos prendiam e nos impediam de fazer o bem foram desfeitas. Libertados do domínio do pecado, agora podemos agradar a Deus, como filhos da obediência que somos. Análise de Texto 1 Pedro 1.18, 19 – “sabendo que não foi mediante cousas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados (e)lutrw/qete) do vosso fútil (matai/aj) procedimento (a)nastrofh=j) que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo...”

Porque somos resgatados do domínio do pecado, então temos que tratar da grande possibilidade da santificação na vida. Esse o contexto onde os versos acima estão inseridos. Pedro está tratando dos pecados anteriores na vida dos seus leitores que eram “eleitos de Deus” de todas as partes onde o evangelho havia chegado no seu tempo (1Pe 1.1, 2). O procedimento mencionado no texto diz respeito ao modus vivendi daqueles que, no tempo em que Pedro lhes escreveu, eram cristãos.

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(1) O fútil procedimento é parte de nossa corrupção “que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram.”

O pecado, como corda, amarra o homem e o deixa prisioneiro, e o homem pecador é escravo da corrupção, que aqui é apresentada com a expressão “fútil procedimento”. A expressão fútil procedimento “parece indicar que o apóstolo tem principalmente em vista a servidão da vontade, a escravidão criada pelo pecado do hábito, e que o resgate é para ele o que Paulo, em Romanos 6, chama de libertação do pecado, ou, em outros termos, a santificação”.182 Os leitores de Pedro, antes de serem convertidos, eram pessoas corruptas. O comportamento deles era vão, fútil, produto de uma inclinação pecaminosa. A corrupção advinda do fato de serem culpados em Adão se manifestava diariamente nas suas inclinações para o pecado. Pedro, então, fala da libertação que eles haviam experimentado. Agora não eram mais escravos daquele comportamento fútil.

(2) O fútil procedimento é uma herança “que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram.”

Alguns intérpretes dizem que Paulo tem em mente aqui “O que pode ser chamado caráter e hábitos morais e religiosos hereditários dos judeus, o modo de pensar e de agir formado na mente natural sob a influência das peculiaridades da dispensação judaica e transmitido de geração para geração. [Mas] isso me parece limitar indevidamente o significado da frase muito expressiva diante de nós.”183

Na verdade, Paulo está falando aqui do comportamento fútil que é uma herança maldita que todos os homens recebem hereditariamente, sejam eles judeus ou gentios. Todos os seres humanos vêm a este mundo com esse maldito legado. “Ele o caráter hereditário do homem caído, recebido por transmissão, legado de pai para filho, de geração para geração.”184 A culpa é imputada, mas a corrupção é herdada. Não há como fugir dessa maldição que vem sobre todos os homens, a não ser pela obra resgatadora de Cristo Jesus. 182. L. Bonnet e A. Schroeder, Comentario Del Nuevo Testamento – Hebreos – Apocalipsis, vol. IV (Casa Bautista de Publicaciones), 231. 183. John Brown, Expository Discourses on the First Epistle of Peter, vol. I (Evansville, Illinois: The Sovereign Grace Book Club, edição 1958), 154. 184. John Brown, Expository Discourses on the First Epistle of Peter, vol. I, 154.

(T ???? 2.13, 14 – última linha do 1° §) NOMES QUE APONTAM PARA A UNIO PERSONALIS

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(3) O resgate do fútil procedimento é feito com precioso sangue “sabendo que não foi mediante cousas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados... mas pelo precioso sangue...”

A conexão do resgate feito pelo sangue de Cristo com a santificação é freqüentemente afirmada nas Escrituras e é um dos pilares da fé cristã. O sangue de Cristo será sempre lembrado como o elemento mais poderoso que Deus usa para a santificação do seu povo. Escrevendo a Tito, Paulo fala dos crentes como “...aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo, o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniqüidade, e purificar para si mesmo um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (T 2.13, 14). O sangue de Jesus Cristo é cantado em vários lugares da Escritura como sendo o elemento fundamental do resgate. Não existe resgate sem derramamento de sangue. Escrevendo um enorme parágrafo sobre a obra soberana de Deus na redenção do pecador, e referindo-se a Cristo, Paulo diz que nele “temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça” (Ef 1.7).

Diferentes valores sempre foram usados nos vários tipos de redenção. Geralmente, nos costumes romanos, o valor do resgate estava em proporção ao valor do prisioneiro. No Salmo 49.7, 8, já foi visto que a redenção de uma alma é caríssima, a ponto de nenhum homem poder pagar pela alma de seu irmão. Todavia, quando se trata da redenção da ira divina, Deus não aceita nenhum tipo de pagamento relacionando ao dinheiro; Deus não aceita nem mesmo as promessas que os homens fazem; Deus não aceita coisa alguma que o homem possa oferecer. Como já foi dito anteriormente, não há homem algum que possa pagar o preço da sua redenção e nem há dinheiro algum que pague o preço de uma vida. O valor com o qual o Redentor se apresentou diante de Deus foi o seu sangue. Nenhuma outra coisa poderia ser aceita por Deus. Por nada ele nos libertaria, exceto pelo sangue do Filho encarnado. O valor exigido por Deus e pago por Cristo é inusitado. Ninguém jamais havia visto tal espécie de pagamento para resgatar prisioneiros. É absolutamente fundamental que o sangue seja derramado para que a escravidão do pecado seja retirada e o processo de santificação se inicie na vida do cristão. A herança maldita é retirada do cristão pelo poder do sangue derramado e aspergido sobre nós. Por causa dos efeitos desse sangue, os pecadores já não são escravos do pecado, e o fútil procedimento não mais é parte da vida deles. Então, eles começam a ser purificados pelo sangue de Jesus Cristo. O texto de 1 Pedro 1.18, 19 qualifica o sangue de Jesus Cristo, dizendo que ele

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é precioso e está contrastado com “coisas corruptíveis como prata ou ouro”, que são incomparavelmente pobres se comparadas ao valor do sangue de Cristo. “O valor do que foi dado para assegurar a nossa emancipação da depravação não pode ser estimado por qualquer mente criada. Todo o ouro e toda a prata no mundo, todo o universo das coisas criadas, nada são além de vaidade, quando comparadas com o sangue-vida do unigênito de Deus.”185 O resgate feito por Cristo tem um valor inestimável em virtude do custo do sangue precioso. No preço pago por um objeto é que vemos o seu valor. O valor do resgate é medido pela preciosidade do sangue, sangue de Cordeiro imaculado.

(4) O resgate do fútil procedimento é feito por um Cordeiro puro “... mas pelo precioso sangue como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo...”

O valor do sangue está vinculado ao valor do Cordeiro. Jesus Cristo é o Cordeiro imaculado de Deus. O texto usa duas palavras para qualificar esse Cordeiro: sem defeito e sem mancha. Essas qualidades são tiradas já no tipo de Cristo, que era o cordeiro pascal de Êxodo 12. Jesus Cristo, o antítipo, é verdadeiramente puro. Daí o seu sangue ser precioso. O Cordeiro de Deus possuía uma plena dignidade moral, possuindo uma perfeita obediência à lei santa. Não tropeçou em nenhum preceito. Por isso é sem defeito e sem mácula. Em razão disso não existe uma nódoa sequer na vida de Jesus Cristo que o desqualifique para a obra de ser Redentor. Por causa de sua pureza, ele foi aceito pelo Pai para ser o Redentor dos filhos de Deus.

d. O Redentor nos resgata da presença do pecado O terceiro aspecto da redenção do pecado aponta para um tempo futuro, para alguma cousa que será realizada maravilhosamente na vida de todos os resgatados do Senhor. Nesse presente tempo, tanto os pecados do corpo como os pecados do espírito ainda estão presentes em nós, em virtude da não erradicação de nossa natureza pecaminosa pela obra regeneradora do Espírito. Eles permanecem conosco até o final, embora o processo de santificação aconteça desde o princípio regenerador. Até que a redenção se complete, tanto o corpo como a alma ainda estarão sob a sentença de morte, e sofrerão as conseqüências de um mundo ainda amaldiçoado, e sofrerão as conseqüências da inclinação para o pecado, ainda presente em nós. Todavia, um dia, no dia de Cristo, seremos todos resgatados plenamente, pois esse é o ensino das Escrituras. 185. John Brown, Expository Discourses on the First Epistle of Peter, vol. I, 159.

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Efésios 1.13, 14 – “... em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa; o qual é o penhor da nossa herança até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória.”

Esse texto aponta para o fato de Deus nos ter comprado, mas também fala que o resgate final da propriedade ainda está por acontecer. Não tomamos posse da salvação de modo pleno porque o resgate ainda não se deu. O resgate final se dará no dia da redenção do nosso corpo, que é o dia da ressurreição dos cristãos, quando se dará a filiação plena do cristão (Rm 8.23). Até que isso aconteça, ficamos esperando que o Senhor volte. Não é sem razão que, no nosso interior, também gememos para que sejamos libertados da escravidão do pecado em nosso corpo mortal, a fim de que o corruptível seja absorvido pelo incorruptível. Isso acontecerá certamente quando “o Senhor Jesus Cristo transformar o nosso corpo de humilhação, para se igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as cousas” (Fp 3.20, 21). Quando essa manifestação resgatadora sobrenatural se completar, então nunca mais pecaremos. Por sua graça, Deus nos fará viver a vida abundante, sem os incômodos de uma inclinação pecaminosa, e sem os seus efeitos, quer em nossa natureza imaterial, quer em nossa natureza material, ou seja, quer na alma, quer no corpo. Nesse dia, “num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última trombeta... os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós [os que estivermos vivos] seremos transformados” (1Co 15.52). Nesse dia haverá a manifestação do que haveremos de ser. Então, “seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1Jo 3.2). Que dia glorioso será esse, quando, pela ação maravilhosa do Redentor, formos livres da presença do pecado em nossa existência plenamente redimida!

5. SOBRE O TEMPO FINAL DO RESGATE Efésios 1.14 – “... o qual é o penhor da nossa herança até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória.”

O significado do “resgate da sua propriedade” não é difícil de ser entendido. Essa é uma figura usada nas transações legais. Para conseguir algum dinheiro, uma pessoa pode ir a uma loja de penhores e dar como garantia uma jóia, que fica penhorada até que o preço estipulado por ela seja pago, e, então, a pessoa tem a jóia resgatada. O Espírito Santo é o penhor que garante a nossa redenção, e somente quando todo o resgate for completado, então a ação garantidora do Espírito não mais será necessária. O resgate final da propriedade se dará no último dia, que é o dia do completamento da redenção. Veja alguns textos que nos ajudam a compreender algo sobre o tempo final do resgate:

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Romanos 8.23 – “E não somente ela, mas também nós que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção (a)polu/trwsin) do nosso corpo.”

Jesus Cristo, no dia final, virá e fará a redenção do corpo tanto daqueles que já haviam morrido (e que agora vêm com ele em nuvens), no evento que a Bíblia chama de ressurreição dos justos, quanto daqueles que estiverem vivos, num evento que a Escritura chama de “transformação”. A redenção do corpo (que no texto em análise é chamada de adoção) diz respeito ao resgate final da propriedade. É a culminação de todo processo redentor que começou tão logo se deu a regeneração da propriedade, ou seja, após a implantação de vida naqueles que estavam mortos nos seus delitos e pecados. Efésios 4.30 – “E não entristeçais o Espírito de Deus, no qual fostes selados para o dia da redenção (a)polutrw/sewj).”

Haverá um dia em que a propriedade será resgatada de um modo cabal. Esse dia, que é chamado de o dia da redenção, é chamado de dia de Cristo, que é o último dia. O preço do resgate já foi pago na história, quando da morte do Resgatador, mas a aplicação final dessa redenção se dará no último dia, e, então, o Espírito de Deus terá completado a sua função redentora dentro de nós. Até que isso aconteça, segundo o texto sob análise, temos de viver de tal modo que não o entristeçamos. Análise de Texto Jó 19.25-27 – “Porque eu sei que o meu Redentor vive, e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros; de saudade se desfalece o coração dentro em mim.”

É extremamente curioso que um texto do Antigo Testamento seja o que lança maior luz sobre o que haverá de acontecer no final. A análise desse texto é necessária porque, certamente, é o único texto do Antigo Testamento que trata do Redentor com a conotação neo-testamentária e que não se refere à redenção passada, no tempo do Êxodo. A esperança escatológica mostrada por Jó é extraordinária. Só podemos compreender o grande entendimento de Jó quando cremos na revelação divina que lhe veio de maneira magnífica. No meio daquele sofrimento esse homem vislumbra a mais doce esperança, que é a culminação da sua redenção.

a. A convicção da Existência de um Redentor “Porque eu sei que o meu Redentor vive.”

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Provavelmente, a expressão “vive” tem o sentido melhor de existência. É provável que Jó não tivesse a compreensão que nós hoje temos de um Redentor, mas ele estava numa situação de extrema miséria e precisava de alguém que o resgatasse da sua miséria e das suas tremendas aflições. A convicção de Jó é a de que havia um Redentor. Ele disse “eu sei”, o que aponta para uma forte convicção. Ele não apenas tinha uma esperança de um Redentor, mas a certeza da existência dele, embora esse Redentor ainda não houvesse sido revelado na forma em que o conhecemos hoje. Todavia, segundo o ensino da Escritura, “fé a certeza das cousas que se esperam e a convicção de fatos que se não vêem” (Hb 11.1). O crente Jó não duvidou da existência de alguém que haveria de remi-lo.

b. A convicção da manifestação de um Redentor “e por fim se levantará sobre a terra.”

A convicção de Jó não é somente mostrada na existência de um Redentor, mas numa futura manifestação desse Redentor sobre a terra. Embora Jó não tivesse noção alguma da encarnação do Verbo, nós, hoje, com a luz que temos da revelação bíblica, podemos entender que esse “levantar-se sobre a terra” tem a ver com a encarnação manifesta dele. O Filho vindo do céu haveria de se manifestar na terra. Como? Podemos entender essa manifestação de duas maneiras: uma manifestação na primeira vinda e a outra na segunda vinda. A expressão “por fim” pode ser usada com referência a duas épocas diferentes, que não se excluem mutuamente. A primeira maneira de o Redentor existente se manifestar foi através da encarnação e morte, pelas quais ele poderia exercer realmente a sua função de Redentor. O Filho eterno haveria de tomar uma forma temporal ao encarnar-se e ao morrer. Provavelmente esse seja um dos sentidos de “se levantará sobre a terra”. Podemos dizer que o texto de João 12.32, 33, nesse caso, poderia ser a elucidação do texto de Jó. Essa primeira interpretação quer dizer que o Filho do Deus eterno haveria de ser manifesto historicamente em seu nascimento e morte, no começo do tempo do fim. A segunda maneira do Redentor existente se manifestar pode se referir à sua segunda vinda, pois essa manifestação é mais consistente com o contexto da afirmação de Jó. A palavra hebraica usada para a expressão “por fim”, que Jó usa, pode também ser entendida como se referindo ao dia final, em vista da declaração de fé de Jó. No meu entendimento, a manifestação final do Redentor é a que Jó tem em mente. O Redentor haveria de se manifestar para realizar aquilo que é a esperança de todo o que sofre: a redenção do corpo afetado pelas enfermidades e por todas as outras aflições da alma que o corroem, é a meta final do Resgatador. A manifesta-

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ção final do Resgatador no último dia é que daria um fim aos sofrimentos tão cruéis pelos quais os homens passam.

c. A convicção da redenção final “Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus.”

Jó cria num Redentor providenciado para as necessidades do homem caído. Embora ele tivesse confiança da salvação de sua natureza imaterial, o seu corpo ainda carecia de redenção, pois seu o estado era deplorável. O Redentor, quando morreu pelas nossas enfermidades, e quando as levou sobre si (Is 53), fez isso para que um dia todos pudéssemos ser livres delas. Foi exatamente essa situação final que Jó teve em mente. Ele vislumbrou o dia final de sua redenção em sua declaração de fé. A afirmação de Jó mostra a sua crença absoluta na ressurreição dos mortos, e isso se dará somente no dia final, segundo o ensino geral das Escrituras. Ele estava vislumbrando a restauração do seu corpo, onde ele haveria de ter pele e todas as coisas mais que as enfermidades haviam carcomido. O seu corpo não teria mais enfermidades por causa da manifestação final que estava em vista nos versos sob análise. A redenção do corpo é o objetivo último da redenção conseguida por Cristo. É curioso que a expressão hebraica traduzida como “depois” tenha a mesma raiz de “por fim”, apontando para um evento que se dará imediatamente após a manifestação final do Resgatador.

d. A convicção da visão do Redentor “...em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros.”

Não somente Jó cria que o seu corpo seria completamente resgatado, mas a sua alegria se concentra no fato dele, após ressuscitado, poder contemplar face a face o seu Redentor. A expressão “em minha carne verei a Deus” significa que a sua crença na ressurreição que lhe permitiria contemplar o Redentor com os olhos físicos que ele teria de volta, em virtude da ressurreição final. A referência ao fato de que Jô veria “Deus” deve ser entendida como referência ao Redentor glorificado, que também é divino. Todavia, ele será visto por olhos humanos justamente por causa da sua humanidade. Portanto, o Deus que Jó haveria de ver era o Redentor divino-humano em seu estado glorioso. É certo que o Redentor haverá de aparecer nas nuvens com poder e glória, e será contemplado por todos (“todo olho o verá”); todavia, Jó cria que ele pessoalmente haveria de contemplar o Redentor, numa relação especial com ele. Com o corpo glorificado, ele haveria de contemplar o Redentor glorioso. Além disso, essa contemplação do Redentor lhe daria um prazer imenso. É como se Jó dissesse: “Eu

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o verei com os meus próprios olhos e isso será o meu conforto e o meu contentamento. Agora eu não posso vê-lo (cf. 23.8, 9), mas naquele dia eu o contemplarei pessoalmente para o meu deleite, e eu o verei assim como ele é (1Jo 3.2). Eu não verei ninguém mais, mas ele próprio. Eu o verei com estes olhos, não com os olhos de outros. Será uma contemplação pessoal e física do meu Redentor que vive!”.

e. A convicção de uma esperança a ser realizada “os meus olhos o verão, e não outros; de saudade se desfalece o coração dentro em mim.”

Ver o Redentor face a face era a esperança do servo Jó. Ele possuía essa expectativa de alguma coisa que ainda estava por vir, mas da qual ele já tinha saudade. É a saudade de uma coisa que ele nunca havia experimentado. É a vontade de ter aquilo pelo que sempre anelamos. O coração de Jó anelava profundamente pelo dia da sua redenção e do encontro com o Resgatador, a ponto do seu coração quase desfalecer. É a ânsia de ter algo com o que sempre se sonhou. Esse anseio é descrito pelos tradutores como “saudade”. Saudade é uma sensação que torna o coração pesado, até que as cousas aneladas se tornem realidade. Em alguma medida, todos nós temos saudade de Jesus, isto é, o desejo de ter aquele a quem nunca vimos pessoalmente. A propósito disso, há um hino relativamente antigo que corais costumavam cantar: Tenho saudade de Jesus meu Mestre Tenho saudade de Jesus, meu Rei Mas ao findar o meu labor terrestre Me encontrarei com ele sim eu sei”186

Nós podemos dizer que temos saudade do Redentor, se por isso queremos dizer do nosso profundo anelo, que até faz o coração bater mais forte, a ponto de quase desfalecer. Essa é uma emoção gostosa que nos move a sempre esperar, mesmo que a morte chegue. Nunca ninguém arrancará essa confiança cheia de expectativa da realidade de ver o Redentor, assim como ele é.

MEDIADOR O título Mediador, que é dado a Cristo, também aponta para a união das duas naturezas do Redentor. Não seria possível para Cristo exercer as tarefas de um Mediador se ele não possuísse as duas naturezas. A argumentação abaixo vai revelar a necessidade de o Mediador possuir as duas naturezas. Deus, em si mesmo, não poderia ser mediador porque ele é uma das partes interessadas; um homem simplesmente não poderia ser mediador pela mesma razão. 186. Estrofe de um hino encontrado no livro de música Favoritos Evangélicos II.

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Então, qual foi a alternativa do Conselho da Redenção para a solução desse impasse? A Trindade decidiu enviar o Filho para que este, com natureza divina, assumisse a natureza humana na encarnação. Com a unio personalis, havendo uma pessoa com duas naturezas, isto é, possuindo a mesma natureza das duas partes interessadas, criou-se a possibilidade do estabelecimento de uma mediação: um Mediador que fosse capaz de compreender e igualmente satisfazer as reivindicações e as necessidades das duas partes interessadas.

A. AS REFERÊNCIAS DA ESCRITURA AO MEDIADOR Há alguns textos na Escritura que falam de um Mediador entre Deus e os homens: 1 Timóteo 2.5 – “Porquanto há um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” Gálatas 3.20 – “Ora, o mediador não é de um, mas Deus é um” Hebreus 12.24 – “e a Jesus, o Mediador da nova aliança, e ao sangue da aspersão que fala coisas superiores ao que fala o próprio Abel.”

Quanto maiores são as preparações para uma solenidade, mais elas indicam a importância da obra para a qual essas preparações apontam. O templo de Jerusalém foi longamente preparado e as solenidades majestosas de sua dedicação ao Senhor apontaram para a importância dele na economia do Antigo Testamento, mas, no verso acima, há o anúncio do maior de todos os acontecimentos que apontam para o mais importante desígnio de Deus naquilo que nos diz respeito. Ele transcende todos os outros acontecimentos, e todas as sombras que o Antigo Testamento usou para apontar para esse grande acontecimento. Cristo Jesus, a Pedra Viva de Deus, veio para que o maior edifício pudesse ser devidamente edificado, tendo como base a grande e esplendorosa Pedra Fundamental, Jesus Cristo. A fim de que ele pudesse juntas todas as “pedras vivas”, colocando-as todas em harmonia, ele teve que exercer um papel singular – ser Mediador entre elas e Deus, porque as primeiras haviam ofendido este Último. Então, vemos a preparação para que esse Mediador viesse ao mundo. Desde a eternidade, Deus preparou a entrada do Mediador neste mundo, dando grande importância ao fato dele ser tornar homem na encarnação.

B. O NOME DO MEDIADOR O Mediador tem muitos nomes na Escritura, mas o nome que acompanha a função mediatorial na Escritura é Jesus Cristo, pois está escrito em 1Timóteo 2.5: “Porquanto há um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem.”

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O fato de o Mediador ser homem é extremamente fundamental para que ele possa exercer a sua obra mediatorial. O mesmo nome, Jesus, aparece vinculado à obra mediatorial mencionada em Hebreus. Hebreus 12.24 – “e a Jesus, o Mediador da nova aliança, e ao sangue da aspersão que fala coisas superiores ao que fala o próprio Abel.”

O autor de Hebreus também nomeia o Mediador. Aqui ele usa apenas o nome humano do único Mediador: Jesus. Isso levanta a tese de que vamos tratar, também, da nossa natureza humana. Ele tinha de ser como nós, para que pudesse fazer alguma coisa por nós junto à outra parte em litígio, pois o nome Jesus significa aquele que é salvador do seu povo em relação aos pecados deles (Mt 1.21).

C. A SINGULARIDADE DO MEDIADOR 1 Timóteo 2.5 – Porquanto há um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem.”

Por singularidade, aqui, refiro-me não somente à sua unicidade, mas também ao fato de ele ser ímpar. Nas religiões pagãs, e mesmo em certos ramos do Cristianismo, tem havido vários mediadores entre Deus e os homens. A propósito, não podemos nos esquecer do que acontece em nosso meio, na religião católica, especialmente no Catolicismo popular, que tem tido o apoio da cúpula de Roma, e que tem semeado muito erro no meio dos nossos patrícios. Não podemos acusar o Catolicismo por levantar outros deuses, como querem alguns críticos, violando o primeiro dos Dez Mandamentos, que diz: “Não terás outros deuses diante de mim”. Todavia, podemos criticar fortemente o Catolicismo por violar o segundo dos Dez Mandamentos, ou seja “não farás para ti imagem de escultura”. Na confecção dessas imagens, teologicamente, não posso dizer que eles estejam adorando deuses (embora muitos deles se curvem perante essas imagens), mas, que eles, na verdade, estejam fazendo orações a esses santos, a fim de que eles intercedam junto a Deus pelos seus problemas ou aflições. O grande problema deles, portanto (além da fabricação de imagens) é a fabricação de mediadores, que o Senhor Deus também proíbe terminantemente. Deus afirma categoricamente que existe somente um Mediador, isto é, aquele que fica entre Deus e os homens, para resolver o problema nosso e o de Deus. O nosso, porque carecemos do socorro de Deus; o de Deus, porque o Mediador faz propiciação por nós junto àquele que antes estava irado, para que, agora, ele possa tratar o pecador de um modo favorável.

D. O SIGNIFICADO DE MEDIADOR O Mediador é aquele que se interpõe entre partes litigantes com a finalidade de reconciliá-las. O termo grego para “mediador” significa “aquele que vai no meio”. Vine diz que o Mediador

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR “é como aquele que media entre duas partes com a intenção de produzir paz, como em 1 Timóteo 2.5, embora mais do que a mediação esteja em vista, porque a salvação dos homens necessitava que o próprio Mediador possuísse a natureza e os atributos daqueles com os quais ele age, e deveria igualmente participar da natureza daqueles por quem ele age.”187

Por isso, o Mediador teve de ser tanto divino quanto humano, Deus e homem, para fazer a obra mediatória. A mediação implica na realidade de uma controvérsia entre duas partes. Implica que há um obstáculo no caminho que não pode ser transposto, a menos que um mediador intervenha. Nas querelas entre os homens, muitas delas são resolvidas pela intromissão de um mediador, que é aceito por ambas as partes, a fim de que a paz venha sobre elas. Da mesma forma, nas relações quebradas entre o Criador e as criaturas, houve a necessidade de um Mediador. Se não houvesse nenhum impedimento entre Deus e os homens, não haveria qualquer necessidade de um Mediador. Deus e os homens estavam separados, em inimizade, por causa do pecado do homem contra o Deus santo. Por iniciativa amorosa do próprio Ofendido, no conselho eterno, Deus o Filho se dispôs a tomar a natureza humana para, como Deushomem, efetuar a reconciliação entre o Ofendido e o ofensor, mediando entre eles. O Mediador é aquele que age como uma garantia, assegurando alguma coisa que, de outra forma, não seria obtida. Dessa maneira, Jesus Cristo é chamado de “Mediador da nova aliança”, garantindo todos os termos dela para o seu povo (Hb 12.24).188

E. A SUFICIÊNCIA DO MEDIADOR 1 Timóteo 2.5 – “Porquanto há um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem.”

A ênfase agora é sobre a suficiência desse Mediador. Não precisamos de mais ninguém. Já mencionamos que o erro dos que professam a religião católica não é que eles professam mais de um Deus, mas que eles professam, na teoria e na prática, a posse de mais mediadores. Todos os santos, além de Maria, são mediadores, funcionando como intercessores. Contra isSo, todos os cristãos comprometidos com a Escritura têm de lutar. Jesus Cristo é absolutamente suficiente em sua obra mediatorial. Ninguém mais pode fazer o que ele faz. Por essa razão, os apóstolos disseram: “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12). Ele sozinho é capaz de reconciliar todos os pecadores do mundo com 187. Citado por Herbert Lockyer, All the Divine Names and Titles in the Bible (Londres: Pickering & Inglis Ltd., 1975), 204 188. Herbert Lockyer, ibid., 204-5.

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Deus, através da sua obra mediatorial, sem que haja a necessidade de ajuda por parte de quem quer que seja. A sua obra atinge gente de todas as partes do mundo e de todas as épocas da história. Sozinho ele redime pecadores, e sozinho ele continua a interceder por eles, como suficiente Mediador que é. Não precisamos de ninguém mais. Só de Jesus!

F. A NATUREZA DO MEDIADOR O Mediador possui uma natureza absolutamente distinta de todos os outros seres criados, e mesmo distinta das outras pessoas da Divindade. Ele é diferente das outras Pessoas da Trindade porque ele é não somente Deus, mas Deus-homem. Como tal, ele é capaz de ver as coisas do ponto de vista de Deus, e é capaz de satisfazer todas as exigências de Deus para haver reconciliação entre Deus e os homens. Afinal de contas, se ele é Mediador, ele tem que possuir a mesma natureza das partes Mediadas. Portanto, como Deus que é, ele sabe exatamente o caminho a percorrer para realizar todo o plano estabelecido para a redenção do pecador. Ele é diferente das outras criaturas, inclusive do homem, porque ele também é Deus. Todavia, para ser Mediador, ele não poderia deixar de ser homem. A humanidade de Jesus Cristo é absolutamente essencial para a sua obra mediatorial, pois, como homem, ele não somente experimenta as necessidades humanas, mas também pode sofrer no seu corpo e alma as punições que são devidas aos homens por quem ele sofre e morre. A fim de que possa haver reconciliação, o Mediador tem de ser homem. Nunca poderia haver Mediador se ele não fosse igual e, ao mesmo tempo, diferente de ambas as partes que ele media. Ele é diferente de Deus porque ele também é homem; ele é diferente do homem porque também é Deus. Todavia, ele é tanto igual a Deus como é igual ao homem, porque ele possui a natureza de ambos. Portanto, a natureza do Mediador é extremamente importante para que ele possa exercer plena e perfeitamente a sua função mediatorial.

G. AS PARTES MEDIADAS 1 Timóteo 2.5 – Porquanto há um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem.”

Como já foi visto acima, um Mediador é aquele que fica entre duas ou mais partes. No caso em questão, Jesus Cristo é o Mediador entre o Ofendido e os ofensores, Deus e os homens. Nas relações entre os homens simplesmente, ambas as partes mediadas têm de aceitar o mediador. Não é suficiente que apenas uma das partes do aceite, mas as duas partes precisam aceitá-lo. Quando uma das partes se recusa a aceitar o mediador, não há a possibilidade de reconciliação entre as partes em questão. A contro-

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vérsia que existe entre ambas as partes nunca poderá ser resolvida se as partes não forem ajustadas, a menos que as partes alegremente recebam o Mediador, que faz todas as propostas para reconciliação. A solução do problema só aparece quando as duas partes em litígio aceitam inquestionavelmente as propostas do mediador. No caso em questão, em que o Ofendido [Deus] e os ofensores [homens] não são partes iguais, pois Deus está muito acima dos homens e é o que estabelece todas as regras no universo, Deus põe em prática um plano no qual, unicamente através dessa obra mediatória, pode haver reconciliação entre as partes em litígio. Nesse caso, então, o homem não está na posição de rejeitar o Mediador, porque ele foi estabelecido pela parte Ofendida, que tem direitos sobre toda a criação, mas que veio e agiu em amor e compaixão em favor da parte ofensora. Foi o próprio Deus que enviou o Mediador. A função dele é viabilizar o cumprimento de um trato que o Pai fez com o Filho, a fim de que o Filho pudesse ficar entre o Pai e os ofensores, mediando ambas as partes, e foi isso o que ele fez em toda a sua obra redentora. Quando as pessoas mediadas [os ofensores] percebem, por ação da graça divina, quem é o Mediador, não existe nenhum questionamento, apenas motivo de grande gratidão ao Ofendido por ter proporcionado tão abnegado Mediador. Portanto, Jesus Cristo é o Mediador que recebe todo o apoio de quem o enviou (o Ofendido) e recebe a gratidão daqueles que estão numa posição de esperar misericórdia do Ofendido pela ação bondosa e voluntária do Mediador.

H. O OFÍCIO DO MEDIADOR Quando não há como reconciliar as partes por elas mesmas, e a situação se torna insolúvel, há a necessidade de alguém que oficialmente venha exercer o papel de mediador, apontado pela justiça comum. As relações entre Deus e os homens estavam quebradas e impossíveis de serem resolvidas, e essa era a grande dificuldade. De um lado estava o Deus soberano e, de outro, homens rebeldes que se opunham a ele ou o ignoravam, vivendo como ateus práticos ou mesmo ateus que negavam abertamente a sua existência. E, assim, por milênios, eles permaneceram sem a possibilidade de reconciliação, por causa da natureza rebelde dos ofensores de Deus e pela ausência de quem pudesse realizar mediação. Eles não podiam se aproximar um do outro. Se os homens tentassem se aproximar de Deus, este não os receberia, porque eles não têm mérito em si mesmos para fazer qualquer proposta decente a Deus. Os ofensores não tinham nada para apresentar ao Ofendido para apaziguar a sua ira. Havia uma grande barreira entre eles. Fazia-se necessária a intervenção de uma terceira pessoa para que a reconciliação se tornasse possível e eficaz para sempre. Nas relações rompidas do homem com Deus não haveria solução alguma se não houvesse a intervenção de Jesus Cristo como o Mediador oficial. Deus e os homens eram inimigos mortais.

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De um lado estava Deus que, por direito de Criador, poderia destruir todos os homens, pois Deus é “tão puro de olhos que não pode contemplar o mal” (Hc 1.13). De outro lado, estavam os homens rebeldes que, se pudessem, apagariam Deus de suas mentes. Certamente, da parte dos homens não havia boa-vontade de reconciliação. Mas da parte de Deus, o quadro é diferente. Por causa da sua natureza amorosa, ele resolveu agir bondosamente com os seus ofensores, mas ao mesmo tempo, ele não poderia ignorar o grande abismo que havia entre eles. Uma outra coisa que não pode ser esquecida é que Deus não pode ignorar o que os homens lhe fizeram. O mal não poderia ser simplesmente passado por alto, e os homens não poderiam ser simplesmente anistiados, isto é, ficar sem qualquer penalidade. O que foi que o Ofendido fez? O próprio Deus ofendido não poderia chegar aos homens, pois a sua ira cairia sobre eles e os mataria, como vingador que também é. Além disso, os homens rebeldes não aceitariam conversar com quem é Vingador por natureza, e continuariam a agir com hostilidade para com aquele que é Ofendido, e pronto a derramar a sua inevitável ira. Qual foi a sua solução? Num conselho eterno, ele providenciou uma terceira pessoa, o Filho, para fazer uma obra mediatória ele si e os pecadores rebeldes. Ele enviou o Filho oficialmente ao mundo. Jesus veio a mando do seu Pai. Portanto, quando Jesus Cristo veio ao mundo, ele chegou com a finalidade oficial da parte do Senhor do Universo para estabelecer a paz entre o Ofendido (Deus) e os ofensores (os homens).

I. AS QUALIFICAÇÕES DO MEDIADOR Dentre outras possíveis qualificações que podemos encontrar num mediador, há duas delas que não podem deixar de existir:

1. ELE TEM DE SER AMIGO DAS PARTES MEDIADAS A fim de exercer a função de Mediador, Jesus Cristo tem que ser amigo do Ofendido, no caso o seu próprio Pai. Não é necessário haver qualquer dúvida a esse respeito. Em muitos lugares é dito que ele ama o Pai e que o Pai o ama. Por outro lado, a Escritura também afirma que ele se tornou amigo dos pecadores, porque até chegou a ser chamado assim pelo fato de comer com eles e de dar atenção a eles. Sendo, portanto, amigo de ambas as partes, ele teve a confiança delas. O Pai confiou no seu Filho, por isso confiou a ele a grande tarefa da mediação. Os homens também devem confiar na sua obra mediatória, a obra feita por alguém que lhes dedica imensa amizade. Por essa razão, o Mediador disse: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer” (Jo 15.15). Por ser amigo, Jesus lhes contou grande parte da história das conversas dele com o seu Pai. Por essa razão, os homens pecadores devem confiar no “amigo

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mais chegado que irmão”, a fim de que ele complete todas as cousas próprias de um Mediador amigo.

2. ELE TEM DE SER CAPAZ DE REALIZAR A MEDIAÇÃO O Mediador entre Deus e os homens tem de ser capaz de levar a cabo toda a sua tarefa, para produzir reconciliação entre Deus e os homens, e para que essa reconciliação tenha sucesso.

a. Para isso ele tem de ser onipotente O Mediador não pode simplesmente ter o desejo de fazer a sua tarefa de um modo correto, mas ele tem de ter a capacidade de executar aquilo que se propôs a fazer. Há muitos mediadores nas questões dos homens que se põem a realizar algumas tarefas, mas saem frustrados, porque não possuem o poder de realizá-las pela simples razão de não possuírem controle sobre todas as circunstâncias. Se um mediador não tem poder para realizar sua tarefa, ele corre o sério risco de ver as suas tentativas frustradas. Portanto, se a natureza da tarefa do mediador está fora do seu alcance, essa pessoa não pode ser o mediador. Se Jesus Cristo fosse simplesmente homem, ele não poderia ser o onipotente Mediador que foi. A onipotência desse Mediador está no fato de ele ser Deus. Ela vem de sua divindade, e o Mediador resolve todas as coisas porque tudo está sob suas mãos. Afinal de contas, ele teve todo o poder no céu e na terra, poder esse que lhe foi dado como Mediador. Ele já era, como divino, poderoso desde sempre, mas recebeu o poder como Mediador ainda neste mundo.

b. Para isso ele tem de ser corajoso Embora a dor e expectativa da ira divina tenham causado temor em Jesus Cristo, ele enfrentou corajosamente a função de Mediador, quando fez o acerto de contas com Deus em favor daqueles por quem haveria de morrer e por quem haveria de interceder. Jesus Cristo foi intrépido em todas as suas obras redentoras. Poucos mediadores (ou mesmo nenhum deles) foram tão corajosos em sua tarefa como Jesus Cristo. Ele sabia (ao menos em alguma medida) o que estava para acontecer a ele em virtude de aceitar o seu papel de Mediador. Ele sabia do preço que haveria de pagar em sua obra mediatória. Contudo, mesmo sendo sabedor do que lhe esperava, ele não titubeou ao entrar no “corredor da morte”. Ele entrou de peito aberto (ainda que com temores em virtude da sua humanidade) para receber o peso da ira divina. Ele não temia o que os homens poderiam fazer. O seu temor estava ligado ao que Deus lhe poderia fazer, mas ele enfrentou a ira de divina para livrar-nos da ira vindoura. Ele sofreu corajosamente a fim de que nós fôssemos graciosamente libertos.

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c. Para isso ele tem de ter determinação A tarefa de mediação feita por Jesus dependeu muito da sua perseverança, da sua determinação em levar as coisas propostas às últimas conseqüências. O Mediador não mediu esforços para chegar onde chegou. Ele morreu para realizar a reconciliação entre o Ofendido e os ofensores. Ele não ficou satisfeito enquanto não disse “Está consumado”. Ele não descansou até que tivesse completado cabalmente toda a sua tarefa. O texto sagrado diz que Jesus, “tendo amado os seus, amou-os até o fim” (Jo 13.1). Isso significa que a sua tarefa foi feita com determinação até que mais nada precisasse ser feito perante o Deus justo.

J. A MEDIAÇÃO DO MEDIADOR 1. A OBRA DE MEDIAÇÃO AQUI NESTE MUNDO A mediação neste mundo, que foi histórica, acontecida há cerca de dois mil anos atrás, é uma obra consumada. Ela teve a ver com a propiciação com relação a Deus, pois os nossos pecadores ofenderam a Deus, que precisou ser propiciado, a fim de que pudesse nos perdoar. No contexto de 1 Timóteo 2.5, que fala do único “Mediador entre Deus e os homens”, há também a informação de que essa obra mediatória tem a ver com a sua obra de resgate que é feita por todos (v. 6). Através de sua obra propiciatória, tornando Deus favorável aos homens, ele pode resgatar os homens que estavam debaixo da ira de Deus. Essa obra foi feita quando ele ainda estava neste mundo, e é uma obra completada. Nada mais resta ser feito quanto a esse aspecto da obra mediatória de Cristo. Além da tarefa completada neste mundo, a sua obra propiciatória, o Mediador iniciou sua obra intercessória. Enquanto estava para finalizar a sua obra de ofertar a si mesmo em resgate de muitos, no Getsêmani, ele intercedeu em favor daqueles pelos quais haveria de padecer. Como fundamento bíblico da sua obra intercessória ainda neste mundo, veja o texto da oração sacerdotal de Jesus Cristo, registrada em João 17.

2. A OBRA DE MEDIAÇÃO NO CÉU Todavia, a obra mediatória de Cristo ainda tem continuidade no céu, quando ele exerce a tarefa de um intercessor. Essa obra é continuada e vai até que a redenção de uma das partes mediadas se complete, o que se dará na sua segunda vinda. Esse aspecto da obra mediatória de Cristo será tratado posteriormente, numa obra que trata da obra sacerdotal de Jesus Cristo, como aquele que é Intercessor. Hebreus 7.25 – Por isso também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (cf. Rm 8.34).

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Essa é uma tarefa contínua, até que a obra da redenção se complete no dia final. Então ele cessará de fazer intercessão em termos redentores, em favor do seu povo. Mas, enquanto o dia final não chega, ele vive para interceder constantemente por nós, a fim de que sejamos vitoriosos paulatinamente, até que a vitória da graça em nós seja completa.

K. A NECESSIDADE DE O MEDIADOR SATISFAZER A JUSTIÇA DIVINA Por causa do pecado, havia um grande abismo entre Deus e os homens. Se não houvesse essa grande separação, a Bíblia não mencionaria a necessidade de um Mediador para fazer a reconciliação. Antes da queda, havia uma grande amizade entre Deus e o homem, mas ela foi destruída pelo pecado. Os amigos se tornaram inimigos. A partir da queda, a Escritura mostra como Deus odeia os praticantes da iniqüidade (cf. Sl 5.5). A maldição de Deus, que veio sobre o homem e tudo aquilo que o cercava, que está descrita em Gênesis 3, é uma prova do ódio que Deus tem pela oposição maldosa que os homens lhe fazem. Depois da queda, os homens se tornaram “aborrecedores de Deus” (Rm 1.30). Meu caro leitor, nunca diga no seu coração que o pecado é algo sem muita importância para Deus. Talvez seja assim para nós, porque não temos a idéia do que significa a santidade de Deus. Por isso é que consideramos o pecado como sendo pouca coisa. Por causa da santidade de Deus, a entrada dele no nosso mundo criou um enorme abismo entre Deus e as suas criaturas racionais. Você não pode se esquecer de que o pecado entrou no mundo quando todas as coisas que Deus pôs no mundo eram santas e limpas, sobretudo o ser humano. Ele era um homem perfeito, porque foi perfeitamente criado, e o seu ambiente era de plena alegria e prazer. Todavia, ele deu lugar ao Diabo, e acabou por receber todas as conseqüências do seu nefando ato. A fim de que a harmonia anterior pudesse ser devolvida ao homem, ainda que não de forma completa nesta presente existência, foi tomada a providência para a ação de um Mediador, que se tornou absolutamente necessário, pois o Ofendido tinha de ser satisfeito em sua justiça, e a conta dos pecados tinha de ser paga para que não mais houvesse ira da parte de Deus em relação àqueles que foram mediados. Sempre a mediação tem o propósito de estabelecer a paz, mas não há como estabelecer a paz se o Ofendido não for satisfeito em sua justiça. A grande dificuldade entre algumas pessoas é entender a necessidade da satisfação para haver a paz. Elas acham que podem estabelecer a paz com um simples perdão e boa vontade da parte de Deus, mas sem a satisfação. O problema é que essas pessoas não entendem que, de acordo com Deus, não existe perdão sem que haja o pagamento da dívida. Deus só perdoa porque Alguém paga a dívida dos pecadores.

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A misericórdia de Deus foi que o levou a tratar bondosamente o pecador, mas a misericórdia divina só é possível com a satisfação de sua justiça. Somente com o derramamento do sangue do Mediador é que a justiça de Deus é satisfeita. Se Deus concede misericórdia sem aplicar justiça, ele nega a si mesmo. Na verdade, a misericórdia sem justiça não é misericórdia, mas anistia. E anistia é abandono da penalidade. Se Deus fizesse assim, ele negaria a si mesmo. Portanto, a função do Mediador é interpor-se entre Deus e os pecadores, levando sobre si a pena dos pecados a fim de que Deus fique satisfeito com a sua obra. Então, os pecadores são perdoados e curados. Quando o Mediador exerce a sua obra mediatória, “Deus não perde a severidade de sua justiça na bondade de sua misericórdia, nem a bondade de sua misericórdia na exatidão de sua severidade”.189 Portanto, a necessidade de um Mediador é para que a justiça de Deus possa ser satisfeita, a fim de que ele nos olhe favoravelmente, tendo misericórdia de nós.

APLICAÇÃO A. VEJA O PERIGO DE SE REJEITAR O MEDIADOR Se você rejeitar o Mediador Jesus Cristo, você estará em apuros porque não existe outro. A Escritura diz que há “um só Mediador entre Deus e os homens” (1Tm 2). Ninguém é suficientemente capaz de se interpor entre os homens e Deus para poder levar a ira de Deus sobre si. Se rejeitar o Mediador você corre o tremendo perigo de ficar sem mediador, sofrendo as terríveis conseqüências da punição divina. Só não é punido quem tem um Mediador. É ele quem livra você de ser punido pela ira divina, porque somente ele nos livra das mãos do Deus vivo e da ira vindoura! Aquele que rejeita o Mediador sofrerá as conseqüências dos seus próprios pecados e terá de acertar contas com a parte mais forte das partes mediadas – Deus. E cair nas mãos do Deus vivo é algo terrível (leia Is 33.14-16 e confira com Hb 10.30, 31). O sacerdote Eli possuía filhos desobedientes, e ele lhes disse algumas palavras muito significativas que podem ser aplicadas ao presente assunto: “Pecando o homem contra o próximo, Deus lhe será o árbitro; pecando, porém, contra o Senhor, quem intercederá por ele? Entretanto não ouviram a voz de seu pai, porque o Senhor os queria matar” (1Sm 2.25).

O sentido dessas palavras é o seguinte: Existe uma solução para os pecados dos homens quando eles pecam contra os próprios homens, pois Deus estabeleceu o magistrado civil para decidir sobre a controvérsia deles. Existe um árbitro que julga o caso deles, e poderá haver um fim para a controvérsia; mas se um homem 189. Li em algum lugar que essa frase é atribuída a Agostinho, embora não conheça a fonte.

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peca contra Deus, quem vai ser o intercessor dele? Quem vai ser o árbitro dele, quem vai pleitear o seu caso? Não há escapatória para o homem que peca diretamente contra o Senhor, porque despreza as coisas apontadas por Deus para o livramento deles. Os filhos de Eli haviam desprezado os sacrifícios estabelecidos por Deus para resolver o problema dos pecados deles, pois os sacrifícios eram tipos de Cristo, e apontavam o caminho estabelecido por Deus para que os homens pudessem exercitar a fé no Mediador. Mas se uma pessoa peca contra Deus desprezando o Salvador apontado nos sacrifícios, não há mais esperança para essa pessoa. Sem Jesus Cristo, não existe mediador. Ele é o único Mediador apresentado por Deus para resolver os problemas dos homens. Portanto, não corra o perigo de desprezar o Mediador estabelecido pela própria parte ofendida, que é Deus!

B. VEJA O PERIGO DE SE TER OUTROS MEDIADORES É um grande mal para a Igreja a fabricação de outros mediadores que supostamente intercedem em favor dos fiéis, além de Jesus Cristo. Esse é um pecado que o maior ramo do Cristianismo tem cometido. O Catolicismo tem favorecido a idéia de vários mediadores, que são os intercessores junto a Deus ou junto a Cristo Jesus. A primeira na fila dos mediadores é Maria (que toma diversos nomes ao redor do mundo católico), e seguem-se a ela outros santos particulares, sendo um para cada especialidade. Esse é um pecado tremendo a que muitos da tradição cristã não têm prestado atenção. É pecado porque é uma violação do ensino geral e do ensino específico das Escrituras Sagradas, que ensina a existência de um só Mediador, Jesus Cristo homem. A tendência dessas pessoas que possuem outros mediadores é minimizar, não somente na teoria, mas também na prática, a função mediatorial de Jesus Cristo. Quando elas apelam para os intercessores (ainda que elas os considerem intercessores secundários), elas estão desprezando o único Mediador e desprezando o ensino das Escrituras. Essa é uma atitude blasfema e desprezadora de Deus! Essa atitude mostra o desprezo pelo sangue de Cristo, diminuindo o seu valor. Essa atitude mostra que essas pessoas estão encontrando uma outra porta de escape para os seus problemas espirituais, além de Jesus Cristo, contrariando a afirmação bíblica de que “não há nenhum outro pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12).

C. CONFIE NO ÚNICO MEDIADOR ENTRE DEUS E OS HOMENS Jesus Cristo é o único Mediador entre Deus e os homens. Portanto, confie unicamente nele. Somente Jesus pode livrá-lo do domínio do pecado, de Satanás e

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da corrupção. Somente Jesus pode pleitear a sua causa diante de Deus. Nenhum outro mediador tem acesso a Deus para fazer o que somente Jesus pode fazer. Não confie em ninguém mais, exceto em Jesus Cristo. Somente através dele somente você tem livre acesso a Deus, somente através dele você é nutrido espiritualmente, e somente através dele você recebe conforto e segurança para a sua eternidade. Não interponha nenhum outro mediador entre si e Deus, porque você nunca terá acesso a Deus, e nunca terá comunhão de vida com Deus por toda a eternidade. O primeiro Adão, por causa de sua queda, teve a porta da comunhão com Deus fechada para si e para os seus descendentes. Somente pela vinda do único Mediador é que a porta foi aberta, e o caminho da comunhão com Deus foi restaurado, e a doce vida de Deus pode ser trazida de volta. Por causa da obra mediatória de Jesus Cristo, temos um acesso pleno a Deus, um acesso com confiança (Ef 3.12), cheio de intrepidez. Por isso, o autor de Hebreus diz: “Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne... aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé...” (Hb 10.19-22). Jesus Cristo garantiu-nos, por seu sangue, esse acesso confiante a Deus. Portanto, confie unicamente em Jesus Cristo como o seu único Mediador. Se Jesus Cristo é o único Mediador entre Deus e homens, quão seguros são a condição e o estado dos crentes! Nenhum deles se perde por causa dessa obra mediatória que se evidencia ainda hoje na intercessão (Hb 9.24) que ele faz pelos seus irmãos mais novos! Para sempre os cristãos estão em harmonia de reconciliação com Deus em virtude da obra mediatória de Jesus Cristo. Por isso, somos sempre chamados a confiar nele! Se Jesus Cristo se interpôs entre nós e Deus para gerar a nossa reconciliação com Deus, ele é merecedor de nossa confiança. Quando ele fez essa interposição, ele suportou a ira de Deus, que era contra nós. Nós é que devíamos ser os objetos da ira divina, mas, quando ele se interpôs, sofreu a ira substitutivamente. Felizes somos nós porque Deus se satisfez com sangue de Cristo, e desviou a sua ira de nós. Jesus Cristo é o único Mediador, o único que nos abriga da ira divina. Ele deve ser o objeto de nossa confiança, porque ninguém mais é capaz de fazer o que ele fez!

SALVADOR Talvez de todos os nomes e títulos de Jesus Cristo, esse seja o nome mais conhecido e o mais usado no testemunho dos cristãos. Em vários lugares na Escritura, Jesus Cristo é identificado como Salvador. Logo ao nascer, os anjos anunciaram sua chegada, e o intitularam Salvador.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Lucas 2.11 – “... é que hoje vos nasceu na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor.”

Há três nomes envolvidos aqui: O segundo nome, Cristo, aponta para a sua messianidade, aponta para aquele que foi longamente esperado pelos fiéis, o Ungido de Deus; o terceiro nome, Senhor, aponta para a sua soberania, ainda que pequenino, em Belém. A sua soberania está vinculada aos dois outros títulos desse verso; o primeiro nome, Salvador, é o que está mais em evidência aqui e aponta para a sua principal obra aqui neste mundo. Os outros dois nomes que se seguem no texto qualificam o tipo de Salvador que ele é. Quando os cristãos dos primeiros séculos queriam se identificar como tais, eles usavam o símbolo de um peixe, cuja palavra grega servia como um acróstico de identificação. A palavra grega para peixe é Ixthus. Se colocada em forma de acróstico, fica assim: Ihsouj (Iesous – Jesus) I corresponde a Xristo/j (Xristos – Cristo) X corresponde a Qeou (Theou – de Deus) Th corresponde a Uio/j (Uios – Filho) U corresponde a Sote/r (Soter – Salvador) S corresponde a Portanto, o nome Jesus, se visto na forma de acróstico acima, obedecendo a ordem das letras gregas transliteradas, significa “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”. O nome Salvador é incomparável na literatura cristã. Ele aparece com letras maiúsculas devido à sua importância. Quando falamos no Salvador, logo temos que nos reportar para o que ele fez: salvação. Portanto, nesta parte do capítulo, trataremos da obra do Salvador, pois não podemos separar o nome Salvador de sua obra que é a salvação. Todavia, essa obra de Jesus Cristo tem de ser vista de maneira correta. Quando tratamos da salvação, logo surgem algumas perguntas na mente dos cristãos: “Já fomos salvos?”. Outros perguntam: “Estamos sendo salvos?”. Outros, ainda, mais estupefatamente, perguntam: “Ainda seremos salvos?”. Usualmente essas perguntas não são devidamente respondidas. Portanto, a partir de agora, tentaremos dar respostas a essas perguntas na exposição sobre o nome Salvador. Uma das maneiras de entendermos melhor esse assunto, e a doutrina da salvação em geral, é analisarmos algumas passagens que tratam da salvação de seres humanos nos três tempos: passado, presente e futuro: 1. Obra do Salvador no Tempo passado: “Fomos Salvos” 2. Ora do Salvador no Tempo presente: “Estamos sendo salvos” 3. Obra do Salvador no Tempo futuro: “Seremos salvos”

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A. A OBRA DO SALVADOR NO PASSADO Há alguns textos da Sagrada Escritura que mostram que Jesus Cristo, o Salvador, realizou uma obra salvadora feita objetivamente no passado histórico e subjetivamente no passado da nossa vida pessoal. Romanos 8.24 – “Porque na esperança fomos salvos. Ora, esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera?” Tito 3.5 – “não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo.” 2 Timóteo 1.9, 10 – [Deus] que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos, e manifestada agora pelo aparecimento de nosso Salvador Cristo Jesus...”

As expressões “nos salvou” e “fomos salvos”, vistas nos versos acima, tratando do tempo passado de nossa salvação, exigem duas observações teológicas que devem ser devidamente distinguidas:

1. SALVAÇÃO OBJETIVA NO PASSADO HISTÓRICO DO MUNDO As expressões “nos salvou” e “fomos salvos” tratam da obra passada que Cristo fez na história e é um ato terminado.

a. Essa salvação passada tem a ver com a nossa justificação objetiva Essa justificação objetiva é vista como a obra salvadora que Cristo fez na cruz, derramando o seu sangue, na história do mundo, há dois mil anos atrás. A justificação é um ato gracioso feito no passado pelo derramamento do sangue de Cristo, pelo qual Deus nos declara como justos, imputando sobre nós a justiça de Cristo. Pela obra salvadora de Cristo, no seu tribunal, Deus nos declara isentos de qualquer obrigação de pagamento de débito porque já fomos justificados. Judicialmente, somos vistos como justos à vista de Deus, embora moralmente ainda sejamos pecadores. A salvação é vista como o pagamento da penalidade feito de uma vez por todas por Jesus Cristo para que fôssemos declarados justos por Deus, no seu tribunal. Por isso, Paulo nos diz que somos “justificados pelo seu sangue” (Rm 5.10).

b. Essa salvação passada tem a ver com a santificação definitiva A santificação definitiva tem a ver com o modo como Deus nos vê em razão da limpeza que a obra de Cristo produz e Deus nos trata como ele nos vê em Cristo.

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Por essa razão, é dito que a santificação é um ato divino já ocorrido na história, ainda que ela não tenha sido aplicada plenamente em nossa vida individual, e é como santificados que Deus nos vê. Por isso podemos dizer que já fomos salvos. A justificação objetiva e a santificação definitiva são coisas que já aconteceram na história do mundo, e Deus olha como se todas as coisas tivesse sido acontecidas em nós, realizadas em virtude do que Cristo fez por nós na cruz. Veja o que Paulo diz: 1 Coríntios 6.11 – “Tais fostes alguns de vós: mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados, em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus.”

Paulo está falando da obra de Cristo que causou a santificação nos crentes de Corinto. Veja que Paulo trata da justificação objetiva e da santificação definitiva usando os verbos na voz passiva “fostes santificados” e “fostes justificados”, como atos completos, terminados no passado, sem qualquer conotação com alguma coisa que esteja em processo, pois o verbo não permite essa ação continuada nesse caso. Além disso, os coríntios eram crentes com muitas manifestações de imaturidade. No entanto, é dito deles que já foram santificados. Portanto, a única maneira de entender essa afirmação é através da santificação definitiva, e não através da santificação subjetiva.

2. SALVAÇÃO SUBJETIVA NO NOSSO PASSADO HISTÓRICO PESSOAL As expressões “nos salvou” e “fomos salvos” tratam também da obra que Cristo já iniciou, através do seu Espírito, em nossa vida pessoal. Ela também diz respeito a uma obra internalizada que trata das coisas que Deus já começou fazer dentro de nós.

a. Essa obra de salvação já iniciada em nós tem a ver com a santificação subjetiva A obra de salvação já iniciada em nós está relacionada diretamente à santificação subjetiva, isto é, àquilo que Deus já começou a fazer dentro de nós após a obra regeneradora. Veja o que diz o autor de Hebreus: Hebreus 10.10 – Nessa vontade é que temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas.”

A santificação definitiva é conseguida unicamente pela obra salvadora de Cristo feita uma vez só e é uma obra terminada, mas que tem conseqüências no presente. O verbo grego está no particípio perfeito passivo, e dá a idéia de uma cousa

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completada no passado, mas que ainda produz efeito no presente. Nada mais se acresce a ela. Através do seu sangue, ele nos santifica plenamente, e é assim que Deus nos vê, e é com base nessa obra que Deus lida conosco. O verso acima indica a ocorrência da santificação como um evento passado na história do mundo. Ao mesmo tempo em que a santificação é vista como completada, o texto aponta para alguma coisa que Deus começou a fazer e continua fazendo em nós. Ao mesmo tempo em que a santificação é objetiva (feita na história, na cruz), ela também é subjetiva (já começada no coração do cristão). Hebreus 10.14 – “Porque com uma única oferta aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados.”

Os dois verbos usados pelo autor de Hebreus apontam para a obra santificadora através de Jesus Cristo. No primeiro verbo, aperfeiçoou, o escritor trata de uma obra passada, realizada na cruz pela “única oferta”, mas com um resultado que permanece, embora não com o conceito do processo. Trata-se da santificação definitiva. No segundo verbo, estão sendo santificados, há a ênfase na santificação progressiva, a obra que Deus já começou a fazer em nós e ainda continua a fazer. Essa obra é a santificação subjetiva, aquela que o Espírito de Cristo faz intra nos. Filipenses 1.6 – “Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós....”

Esse verso será estudado mais detidamente logo abaixo, mas ele indica, na parte em itálico, que Deus já começou uma obra santificadora nos crentes, obra essa que está ainda em processo, tendo algo por terminar.

b. Essa obra de salvação, já iniciada em nós, tem a ver com o aspecto jurídico da adoção A adoção é o ato gracioso de Deus pelo qual ele nos recebe na sua família quando somos nascidos dele e respondemos em fé. Esse é um ato jurídico, no qual Deus não faz nada dentro de nós, mas muda o modo como ele nos trata, em virtude do que Cristo fez por nós no passado. Desde o momento em que somos iniciados pela fé na carreira cristã, somos tornados filhos de Deus. É esse o ensinamento do evangelista João, quando disse: “Mas a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; a saber, os que crêem no seu nome” (Jo 1.12). O verso abaixo mostra o modo como Deus nos passa a tratar deste que somos adotados da família dele. Análise de texto 1 João 3.1, 2 – “Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus. Por essa razão o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo. Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-lo como ele é.”

Os versos acima são riquíssimos e mostram um aspecto jurídico de nossa salvação, vista como adoção-filiação, que, em última instância, é conquistada pela obra do Salvador Jesus Cristo e aplicada em nosso coração pela ação do Espírito Santo. Veja análise das partes desses versos.

(1) A filiação está relacionada ao amor do Pai por nós “Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus.”

A presente salvação, que aqui é vista como adoção, está vinculada ao amor do Pai por aqueles que a Escritura vem a chamar de “filhos de Deus”. O ser chamado de “filho de Deus” é o corolário desse amor paternal de Deus. Ninguém chega a esse status filial sem a manifestação interior desse amor, que é “derramado em nossos corações pelo Espírito Santo” (Rm 5.5). Porque Deus nos amou, ele nos colocou na sua família. Somos exortados a prestar atenção a essa verdade. Por isso, João nos insta, dizendo: “vede que grande amor...” Essa verdade não pode passar despercebida de nós, com o risco de fazermos injustiça à salvação de Deus em Cristo Jesus, tornando-a antropocêntrica.

(2) A filiação é alguma coisa já presente “e, de fato, somos filhos de Deus... e, de fato, somos filhos de Deus.”

Duas vezes aparece a expressão “de fato”, chamando a atenção para a presente realidade da nossa filiação divina. Embora a adoção filial seja completada no futuro, porque nesse tempo haverá a ressurreição do corpo (Rm 8.23), ela já é uma realidade presente. Ainda seremos filhos, mas já somos filhos. A adoção é futura, ainda que já seja presente. Essas coisas dizem respeito à salvação futura e àquela que já está sendo realizada, o “já” e o “ainda não” da nossa salvação. Ninguém pode arrancar de nós essa verdade que nos honra.

(3) A filiação é obstáculo para que o mundo nos ame “e, de fato, somos filhos de Deus. Por essa razão o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo.”

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Não obstante a presente forma da adoção seja uma glória para nós, ela nos causa embaraços enquanto estamos nas presentes condições deste mundo. Os inimigos nossos, os que não são filhos de Deus, nos odeiam pelo fato de sermos filhos de Deus. Essa nossa ligação com Deus os incomoda, porque eles não amam também aquele que nos adotou na sua família. É importante lembrar que o verbo conhecer, nesse texto, pode ser entendido no sentido hebraico de ter uma relação de amor. Justamente porque somos filhos de Deus, o mundo (os incrédulos) não nos ama, porque também não ama aquele que nos colocou em sua santa família! Enquanto os incrédulos não têm consciência de que somos filhos de Deus, eles nos tratam bem, mas, quando nos identificamos como membros dessa família, as dificuldades começam a aparecer, e, como conseqüência, somos perseguidos.

(4) A filiação não é ainda algo terminado “e ainda não se manifestou o que havemos de ser.”

A filiação não é um processo que Deus faz intra nos. Ela é um aspecto jurídico que tem duas fases. Somos considerados filhos desde o momento em que cremos. Essa é a primeira faze judicial da vara familiar. A segunda fase vem no último aspecto da nossa salvação, no último dia, quando da manifestação final do Salvador. Nesse meio termo, isto é, entre a fé no princípio e a vinda de Cristo, não há nada mais acontecendo juridicamente. A única coisa que nos cabe fazer e proceder devidamente como filhos de Deus, sendo filhos da obediência. A forma final e definitiva da nossa filiação será o completamento de nossa redenção, no dia de Cristo. Haveremos de, no tempo da parousia, ser manifestos completamente limpos na plenitude de nossa filiação, e, então, refletiremos completa e perfeitamente a pessoa do nosso Redentor, ainda que a filiação divina dele seja diferente essencialmente da nossa. Ele é o Filho essencial de Deus, e nós somos filhos adotivos dele.

(5) A filiação terá sua manifestação final na vinda de Cristo “Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-lo como ele é.”

A nossa filiação será manifesta plenamente quando houver a manifestação visível e gloriosa de nosso Salvador, vindo nas nuvens com poder e glória. Nesse dia, segundo o nosso texto, duas coisas acontecerão: a primeira delas tem a ver com a nossa confrontação com a plenitude da glória de Cristo porque “havemos de vê-lo como ele é”. Nunca ninguém deste mundo viu Cristo em toda a sua glória. João o viu em visões, com muitos símbolos, que, às vezes, eram difíceis de serem entendidos (veja Ap 1.9-20), mas nós o veremos face a face na realidade da sua glória plena. A segunda coisa é que, em virtude da sua obra concluída na história

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do mundo, haveremos de colher os frutos completamente amadurecidos dela. Seremos tornados semelhantes a ele. Será a glória da nossa salvação. O dia esperado de todos os remidos. Por esse tempo, todos nós anelamos. Por isso, fazemos coro com Paulo, dizendo: “Maranata, vem Senhor Jesus! Queremos ser filhos no sentido mais pleno e completo! Queremos ser iguais a ti, Irmão mais velho.”

B. A OBRA DO SALVADOR NO PRESENTE A Escritura sagrada freqüentemente descreve a salvação como alguma coisa que continua a ocorrer presentemente na vida do cristão. Veja o texto clássico do aspecto presente da obra da salvação: Filipenses 2.12 – “Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença, porém muito mais agora na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor.”

O texto acima aponta para o tempo presente da nossa salvação. Paulo diz: “muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação”. Ele está tratando com os crentes de Filipos para desenvolvem alguma coisa que já havia começado na vida deles. A salvação já é uma realidade incontestável em nossa vida. Todavia, ela não é um fenômeno estático, mas uma realização contínua até que ela se complete. Um outro texto que atesta a realidade da presente salvação é o texto de Paulo aos Coríntios: 1 Coríntios 1.18 – “Certamente a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus.”

O verbo em destaque descreve o tempo presente da nossa salvação, referindose à nossa santificação e perseverança nela. O verbo grego swzomenoij (de swzw, “salvar”), que é traduzido como “somos salvos”, está no particípio presente passivo, e aponta para o aspecto da salvação que está em desenvolvimento na vida dos cristãos. O verbo está na voz passiva, o que implica que a salvação não é operada por nós mesmos, mas por Deus.

1. A OBRA SALVADORA NO PRESENTE TEM A VER COM A SANTIFICAÇÃO SUBJETIVA Quando vista do prisma de Deus, a obra de Cristo já é completa e Deus nos vê como santificados. Essa é a santificação objetiva da qual falamos anteriormente. Todavia, há um aspecto da santificação que é contínuo, progressivo e presente em nossa vida. A santificação no tempo presente da salvação é a obra graciosa que o Espírito de Deus está realizando intra nos, cuja finalidade é tornar-nos parecidos com Cristo, para o que fomos predestinados. Nesse processo, como livres agentes

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que somos, temos capacidade tanto de dizer “sim” como de dizer “não” às prescrições divinas. Essa obra santificadora no tempo presente nos livra do poder e da corrupção do pecado. Nela, Deus renova paulatinamente a nossa mente (Rm 12.1, 2) e nos conforma à imagem do seu Filho Jesus Cristo (Rm 8.29), como resultado daquilo que o próprio Filho fez. Análise de Texto 1 Tessalonicenses 4.1, 3, 4 – “finalmente, irmãos, nós vos rogamos e exortamos no Senhor Jesus que, como de nós recebestes, quanto à maneira porque deveis viver e agradar a Deus, e efetivamente estais fazendo, continueis, progredindo cada vez mais... Pois esta é a vontade de Deus, a vossa santificação, ... que cada um de vós saiba possuir o próprio corpo, em santificação e honra.”

a. A presente salvação progressiva é uma ordem apostólica “finalmente, irmãos, nós vos rogamos e exortamos no Senhor Jesus que, como de nós recebestes, quanto à maneira porque deveis viver e agradar a Deus.”

(1) A ordem de Paulo era para os crentes “Finalmente, irmãos.”

A idéia da expressão acima é: “como último assunto” ou “como um ponto mais importante de conclusão”. O fechamento da sua conversa sobre o assunto em pauta com os tessalonicenses foi a respeito da santidade deles. A santidade referida era uma questão exclusiva para os “irmãos”. Para ninguém mais. A santificação é uma operação para aqueles em quem Deus já começou a boa obra.

(2) A ordem de Paulo expressava a sua intenção de progresso dos crentes Paulo usa duas palavras (“rogamos” e “exortamos”) para expressar o seu desejo de ver a igreja de Tessalônica se desenvolvendo na presente salvação. “Rogamos” – Essa primeira palavra tem uma tonalidade de “súplica”. O verbo grego contém a idéia de um “pedido”, mas ele “enfatiza a pessoa a quem se faz o pedido, mais do que a coisa pedida”.190 O desejo que Paulo tem de ver os crentes desenvolvendo a sua salvação é tão grande que ele lhes suplica um crescimento espiritual. “Exortamos” – Essa palavra é um pouco mais forte que a primeira. Ela tem o 190. Fritz Rienecker e Cleon Rogers, Chave Lingüística do Novo Testamento Grego (São Paulo: Edições Vida Nova, 1985), 442.

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significado de “animar”, e, ao mesmo tempo, de “encorajar”, visando ao bem espiritual deles, para que se animassem a viver de modo a trazer honra ao Senhor e para o benefício deles próprios.

(3) A ordem de Paulo estava sob a autoridade do Salvador “no Senhor Jesus.”

A expressão “no Senhor Jesus” é equivalente a “em Cristo”. Os rogos e a exortação de Paulo aos tessalonicenses estavam embasados na autoridade de Cristo. Nunca Paulo poderia falar sem que fosse ou estivesse “em Cristo”, isto é, sob o senhorio dele. Nada poderia sair da boca de Paulo que não passasse pela chancela do seu Senhor. Por isso, ele usa a expressão “no Senhor Jesus”.

(4) A ordem de Paulo tem a força do seu exemplo “como de nós recebestes.”

A expressão acima se refere diretamente ao ensino ou as tradições passadas por Paulo aos tessalonicenses. Todavia, não precisamos entender esses ensinos transmitidos como sendo meras informações destituídas do exemplo dado pelo próprio Paulo. Ele nunca exortou aos seus irmãos que fizessem alguma coisa que ele próprio não houvesse praticado. Portanto, posso dizer que o que eles haviam recebido de Paulo era o ensinamento e a força do próprio exemplo de Paulo. A teoria de Paulo era reforçada pela prática.

(5) A ordem de Paulo é quanto ao modo de viver “quanto à maneira porque deveis viver...”

A teoria e a prática referidas acima tinham a ver com o comportamento dos cristãos de Tessalônica. A presente salvação implica num comportamento correto dos cristãos. Não deve existir a idéia de que “uma vez salvos sempre salvos” para justificar a prática do pecado. A salvação operada pelo Salvador deve produzir frutos de justiça, tendo um comportamento adequado. Esse é o modo como devemos viver.

(6) A ordem de Paulo é para os crentes agradarem a Deus “... e agradar a Deus.”

O resultado do nosso procedimento adequado é o agrado de Deus. Todas as coisas que fazemos devem ter esse propósito supremo: agradar ao Senhor. Agradar a Deus deve ser o propósito de toda existência humana. Todas as coisas de nosso procedimento devem trazer glória ao Senhor, que, em suma, trazem-lhe conten-

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tamento. Paulo queria que os crentes de Tessalônica tivessem esse propósito em sua vida. Certamente isso não se aplica somente aos crentes daquela época, em quem a salvação já era uma realidade presente, mas na vida de todos nós, que já fomos atingidos pela graça divina, em quem a salvação também é uma realidade.

b. A salvação progressiva deve ser uma realidade em nossa vida “... continueis, progredindo cada vez mais.”

Na verdade, a presente obra de salvação em nossa vida deve ser uma obra contínua, uma obra que não pára nunca, até o dia em que a redenção termine. Ela é uma obra feita dentro de nós, onde o Espírito de Deus trabalha no processo da despoluição do nosso interior, e é uma tarefa contínua. Todavia, nós participamos dessa obra de santificação quando respondemos à ação divina em nós, ou seja, quando Deus opera, nós operamos também. Trata-se de uma luta contínua contra o pecado. O Redentor morreu para nos libertar do domínio do pecado. Portanto, sendo libertos desse domínio, podemos lutar contra a nossa própria inclinação, confiados na graça e dependentes dela, a fim de que sejamos vitoriosos. Os crentes de Tessalônica claramente “efetivamente estavam crescendo”. Essa é a atitude que todos os cristãos devem ter para que agrademos a Deus.

c. A salvação progressiva é vontade de Deus para nossa vida “Pois esta é a vontade de Deus, a vossa santificação: que vos abstenhais da prostituição, que cada um de vós saiba possuir o próprio corpo, em santificação e honra.”

Somos chamados a uma vida de pureza moral, uma vida que traz contentamento a Deus, num crescente espiritual. A vontade Deus é feita quando nós nos santificamos. A expressão “vossa santificação” está em aposição a duas cláusulas coordenadas que evidenciam o oposto da santificação, ou seja, a abstenção da prostituição e a busca devida de uma esposa (“o próprio corpo”). Deus quer que a salvação progressiva se manifeste na vida do cristão, e o caminho para isso é a conduta ilibada que ele deve seguir. A “santificação e honra” devem acompanhar todo o comportamento dos filhos de Deus, a fim de que Deus se agrade do que eles fazem.

2. A OBRA SALVADORA NO PRESENTE DO CRISTÃO TEM A VER COM A PERSEVERANÇA DOS SANTOS A presente obra salvadora de Jesus Cristo está conectada com a doutrina chamada “perseverança dos santos”, que trata da permanência firme do cristão em fé, até o final dos seus dias.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Hebreus 3.14 – “Porque nos temos tornado participantes de Cristo, se de fato guardarmos firme até o fim a confiança que desde o princípio tivemos.”

Ser “participante de Cristo” não significa possuir a natureza divina de Cristo, mas participar na santidade moral de Cristo, que é exatamente o que ele está fazendo em nós. O meio pelo qual nós permanecemos naquilo que outrora abraçamos é a fé. Somos exortados pelo escritor aos Hebreus a permanecermos firmes na antiga fé. A perseverança dos santos também é vista como ensinando que os cristãos nunca caem do estado de graça em que foram colocados pela graça divina. É por essa mesma graça que eles perseveram firmes na fé. Poderíamos dizer, de outra forma, que nós perseveramos em fé ao mesmo tempo em que Deus nos preserva graciosamente nela. Essa doutrina ensina que, quando o processo de salvação se inicia, ele continua até o seu final. Pelo fato de já experimentarem a salvação, os cristãos não são livres para dar vazão à sua pecaminosidade, mas eles sempre deverão obedecer às prescrições divinas, o que os levará no crescimento de sua salvação. O aspecto presente da salvação indica, portanto, que perseveramos naquilo que desde o princípio abraçamos. A perseverança não é mera permanência naquilo que se começou, mas também o desenvolvimento daquilo em que se começou. É a perseverança no crescimento da salvação de Cristo.

3. A OBRA SALVADORA NO PRESENTE DO CRISTÃO TEM EM VISTA A SALVAÇÃO FUTURA A título de recapitulação, antes de passarmos para o próximo ponto, veremos que “ser salvo” significa ser liberto, nesta presente vida, da culpa do pecado. Temos consciência dessa libertação quando cremos em Cristo. Como conseqüência, a expressão “ser salvo” significa ser perdoado de qualquer acusação de pecado pela fé no sangue de Jesus Cristo, que nos purifica do pecado. Mas isto não é tudo. Ser salvo significa ser liberto nesta presente vida do domínio do pecado e da poluição dele. Significa que temos vitória sobre o mundo e sobre o seu príncipe, em razão de possuirmos a nova natureza implantada em nós pelo Espírito de Cristo. Como conseqüência, qualquer pessoa que crê em Cristo jamais perecerá, eternamente. Este é um aspecto importante do processo da salvação, mas isto não é tudo. É importante observar, contudo, que a salvação é presente e, ao mesmo tempo, está caminhando em direção ao futuro. Estamos mais salvos agora do que estávamos no princípio da obra de salvação em nós, e Jesus Cristo, pelo seu Espírito, haverá de completar o que ele começou em nós. Romanos 13.11 – “E digo isto a vós outros que conheceis o tempo, que já é hora de vos despertardes do sono; porque a nossa salvação está agora mais perto do que quando no princípio cremos.”

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Paulo está dizendo aos crentes de Roma uma verdade muito importante: eles estavam dormindo espiritualmente. Eles não estavam velando por sua alma. Eles andavam descuidados. Eles tinham que acordar para a realidade, porque a salvação deles ainda não havia terminado. Ela estava em processo, mas o dia final estava se aproximando, o dia do completamento da salvação. Por essa razão Paulo lhes diz: “a nossa salvação está agora mais perto do que quando no princípio cremos”. Isto indica o processo que caminha em direção ao seu ápice, que é o tempo do aparecimento glorioso do Redentor, quando então haveremos de ver a realização final de nossa salvação. “Aquele que começou a boa obra haverá de completá-la no dia final” (Fp 1.10). A nossa redenção está mais próxima hoje do que quando ela começou em nós no passado.

C. A OBRA DO SALVADOR NO FUTURO A Escritura também descreve a redenção do crente como uma obra a ser realizada no futuro. Assim como o Salvador foi aguardado no passado histórico, em sua primeira vinda, também ele é aguardado por todas as gerações, esperando o completamento da redenção. Paulo era um desses que tinha essa esperança a respeito de Jesus: Filipenses 3.20 – “Pois a nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo.”

Essa esperança da salvação futura dos cristãos sempre atravessou as gerações. Todos nós, os que cremos no Salvador, esperamos sua volta para que ele complete a boa obra que já começou em nós. O Salvador virá do céu para remir finalmente o seu povo e para exercer juízo sobre os ímpios. Há textos da Escritura, transcritos abaixo, que dão uma evidência clara dessa salvação como sendo algo que nos acontecerá no futuro. Portanto, a salvação tem aspectos ou dimensões no passado, no presente e no futuro. Se tivéssemos que definir salvação incluindo o que foi feito no passado, no presente e no futuro, diríamos que a salvação é um processo que começa fora do homem e termina dentro dele. Isso quer dizer que a salvação é vista como alguma coisa que foi feita na história do mundo e que termina na vida pessoal daquele que é salvo. Há uma obra feita por Jesus Cristo extra nos (fora de nós, na cruz) e uma obra feita pelo Salvador intra nos (dentro de nós), que culmina no dia da sua vinda. Por essa razão, posso dizer que, embora já seja salvo, estou sendo salvo, e ainda serei salvo. O que estamos vendo agora é este último aspecto.

1. A SALVAÇÃO FUTURA DO CRENTE TEM A VER COM A LIBERTAÇÃO DA IRA DIVINA Romanos 5.9, 10 – “Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida.”

Ser salvo é ser liberto da ira divina no dia do juízo final. Essa ira virá com toda força contra os que não foram objetos da graça divina. Nesse dia, de uma forma final e formal, os cristãos serão declarados cabalmente como não tendo mais qualquer dívida, porque Jesus Cristo os livra dessa ira divina. Jamais a ira divina virá sobre aqueles por quem Jesus Cristo morreu. Nesse dia futuro, os homens receberão dois tipos de sentença: os ímpios receberão o “apartai-vos de mim malditos para o fogo eterno...” e os cristãos receberão o “vinde benditos de meu Pai...”, sendo absolutamente livres de qualquer punição da ira divina em virtude de terem sido punidos representativamente em Cristo.

2. A SALVAÇÃO FUTURA DO CRENTE TEM A VER COM A ADOÇÃO QUE AINDA ACONTECERÁ A salvação futura também está relacionada à questão legal da adoção de filhos. Ainda que a adoção já possa ser reconhecida quando uma pessoa crê em Cristo, adquirindo o poder de ser filha de Deus (Jo 1.12), todavia, a adoção será alguma coisa plena quando a redenção se completar. Sobre este assunto, Paulo disse de maneira muito clara: Romanos 8.23 – “E não somente ela [a criação], mas também nós que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo.”

Embora a adoção já tenha acontecido na vida daquele que se torna cristão pela fé em Jesus (Jo 1.12), ela ainda é alguma coisa que vai acontecer na vida do crente no futuro. Toda a obra da salvação é vista na tensão entre o “já” e o “ainda não”, inclusive a parte jurídica da adoção. Já somos filhos, mas ainda seremos filhos.

3. A SALVAÇÃO FUTURA TEM A VER COM A SALVAÇÃO DO NOSSO ESPÍRITO A salvação futura do Espírito diz respeito à limpeza plena da nossa constituição imaterial, para que herdemos a fase seguinte da Redenção preparada pelo nosso Redentor. Essa salvação futura do Espírito pode acontecer em duas ocasiões:

a. Salvação futura do espírito no tempo da nossa morte Essa salvação acontecerá imediatamente quando o Senhor nos levar desta presente vida. Ainda que nós nos esforcemos para ter uma vida santa – o que é algo

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muitíssimo positivo e desejável – nós nunca alcançamos a plenitude de santificação nesta presente existência. A velha natureza sempre nos acompanhará nesta vida, ainda que ela seja vencida pouco a pouco. Todavia, ela nunca será vencida plenamente nesta existência. A Escritura afirma que “carne e sangue” não podem herdar o reino de Deus. Por carne e sangue entenda-se nesse texto a impureza interna do homem. Ninguém vai para o céu, no estado intermediário, com qualquer grau de corrupção. Deus salvará totalmente o nosso espírito, aprontando-o para a sua nova habitação no céu.

b. Salvação futura do espírito no tempo da transformação A doutrina da transformação não diz respeito somente à transformação do corpo, como regularmente se crê. A transformação é também o final do processo de salvação do pecador que ainda está neste mundo. Quando da vinda do Senhor, os que estiverem vivos, num abrir e fechar de olhos, serão transformados (1Co 15.5052). Mesmo nos casos em que os crentes estiverem muito amadurecidos em sua fé, ainda lhes restará resquícios da velha inclinação para o pecado. Nesse último dia, quando o Senhor voltar, ele nos transformará repentinamente, completando o projeto que ele havia começado em nossa regeneração. No dia da transformação, esse projeto será finalizado com a purificação plena do nosso espírito, erradicando completamente de nosso espírito as manchas e inclinações do pecado, preparando o cristão para herdar a nova terra.

4. A SALVAÇÃO FUTURA TEM A VER COM A SALVAÇÃO DO NOSSO CORPO A salvação futura do corpo se dará exclusivamente no último dia, o dia da vinda do Senhor, para dois tipos de pessoas:

a. Salvação futura do corpo dos que estiverem vivos na transformação do último dia Esse é o entendimento mais comum que os crentes possuem da redenção do corpo. Aqueles que estiverem vivos naquele dia não precisarão passar pela morte, porque a morte não é algo pela qual os cristãos têm de passar necessariamente. A morte, como uma imposição judicial de Deus sobre os pecadores, já foi paga pelo Salvador. Portanto, eles não precisarão morrer, mas precisarão ser transformados em seu corpo, que ainda estará, a essa altura, sob os efeitos da queda. Então, na manifestação gloriosa de Jesus Cristo, os cristãos experimentarão algo que nunca os cristãos do passado terão experimentado. Paulo diz que essa experiência era desconhecida dos crentes, chamando-a de “mistério”, alguma coisa escondida dos cristãos até o momento de sua revelação. Veja as palavras de Paulo:

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR 1 Coríntios 15.51 – “Eis que vos digo um mistério: Nem todos dormiremos, mas transformados seremos todos...”

Nem todos os cristãos da última geração haverão de morrer por causa da perseguição imposta pelo homem da iniqüidade e seus asseclas. Os que permanecerem vivos na vinda do Senhor, que não passarem pela morte, terão retiradas de seu corpo todas as conseqüências malditas do pecado. Eles serão salvos de todas as máculas, rugas, defeitos, enfermidades, cicatrizes, degenerescência, envelhecimento, etc. Nada do que é produto da queda restará sobre os cristãos que estiverem vivos naquele dia. Tudo o que acontecer aos ressuscitados naquele dia também acontecerá aos vivos que forem transformados. A transformação física daqueles que estiverem vivos quando Cristo voltar será um evento tão maravilhoso quanto a ressurreição.

b. Salvação futura do corpo dos que estiverem mortos na ressurreição do último dia A salvação futura dos corpos de todos os que tiverem morrido antes da vinda do Salvador acontecerá nesse mesmo dia da vinda de Cristo, algum tempo antes da transformação dos que estiverem vivos (1Ts 4.16, 17). Paulo diz também que “a trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados” (1Co 15.52b), apontando também para a ordem dos eventos. O Salvador virá vitoriosamente para completar a salvação daqueles que já tinham o seu espírito completamente remido, e que estavam com ele no céu. Ele descerá com as almas daqueles que haviam sido mortos e as almas deles se encontrarão com os corpos deles, e eles serão trazidos de novo à vida, incorruptíveis. Assumirão um corpo glorioso, como glorioso a essa altura será o espírito deles!

5. A SALVAÇÃO FUTURA TEM A VER COM O TEMPO DO FIM a. A salvação futura se dará no dia do Senhor 1 Coríntios 5.5 – “[seja]... entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus”.

Satanás recebeu, em alguns casos, a tarefa de ser o agente do juízo parcial de Deus sobre os homens nas questões da providência retributiva neste mundo, ainda sob maldição. Deus se serve das suas criaturas racionais (no caso aqui Satanás, o principal dos demônios) para exercer juízo sobre os cristãos que andam em imoralidade (ver vs. 1-4). Deus pode permitir que Satanás aja na vida das pessoas, embora nem sempre com finalidade de juízo, como aconteceu no caso de Jó e de seus filhos. Satanás pode receber o poder de tirar a vida de uma pessoa como parte dessa

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tarefa de ser agente na obra providencial divina. A expressão “‘destruição da carne’ pode se referir à própria morte. O incestuoso da igreja de Corinto poderia morrer por causa da sua impureza, se não se arrependesse, por causa da disciplina divina, da qual Satanás era o capataz. Ela é usada freqüentemente em conexão com o juízo divino sobre o pecado”.191 Todavia, Satanás não recebeu poder para tocar no espírito humano. Deus não concedeu a Satanás autoridade para causar dano ao espírito humano em virtude do pecado do cristão. Mesmo no caso onde o pecado não é a questão, podemos ver que Deus deu a Satanás o poder de tocar no corpo de Jó, não no seu espírito. “Ele poderia destruir suas posses e afligir seu corpo, mas ele não poderia destruir a sua alma. A parte interior do crente pertence totalmente a Cristo, e temos a certeza absoluta de que ela será salva, com certeza, no dia do Senhor Jesus. Mas, enquanto isso não acontece, o crente sem arrependimento pode ser entregue para sofrer grandemente nas mãos de Satanás.”192 O texto diz que o “espírito” humano será salvo num tempo futuro – o dia de Cristo. A expressão “seja salvo”, que descreve o tempo futuro da salvação, aponta para o dia do Senhor, que é o dia da glorificação pela ressurreição e pela transformação. Nesse dia, não haverá simplesmente a salvação do espírito humano, mas da totalidade do ser humano. Esse dia é o tempo em que os cristãos mortos serão ressuscitados em glória, assim como os que estiverem vivos serão transformados, de modo que o pecado será afastado da presença deles. Eles serão plenamente conformados a Cristo Jesus, o qual “transformará o nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as cousas” (Fp 3.21).

b. A salvação futura se dará no dia da restauração de todas as coisas Atos 3.20, 21 – “... a fim de que da presença do Senhor venham tempos de refrigério, e que envie ele o Cristo, que já vos foi designado, Jesus, ao qual é necessário que o céu receba até aos tempos da restauração (apokatastaseos) de todas as cousas, de que Deus falou por boca dos seus santos profetas desde a antiguidade.”

A salvação futura se dará na vinda do Senhor, que é o dia no qual tudo o que for antigo se fará novo. Quando João teve visões das cousas futuras, ele disse: “Eis que vi novos céus e nova terra”, e então ouviu Deus dizer: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21.1, 5). Esses “novos céus e nova terra” são exatamente o equivalente à restauração de todas as coisas. Nós, os remidos, seremos restaurados completamente, e o lugar de nossa habitação definitiva no futuro também será restaurado. A criação e as criaturas, que são os filhos de Deus (das quais Paulo fala 191. John MacArthur Jr., 1Corinthians (Chicago: Moody Press, 1984), 126. 192. Ibid., 126.

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em Rm 8.21), conhecerão, no dia de Cristo, a glória da sua redenção (cf. o texto de Rm 8.21-24).

c. A salvação futura se dará no dia de Cristo Filipenses 1.6 – “Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la no dia de Cristo Jesus.”

O dia de Cristo Jesus é o dia da sua parousia (“vinda”), que ao mesmo tempo é chamada o dia da sua manifestação (epifaneia) e da sua revelação (apocalipsis). O dia de Cristo Jesus é o dia do completamento da nossa redenção. É um dia ainda futuro que será marcado por muitos eventos que denotarão ao mesmo tempo a salvação futura definitiva e a condenação futura definitiva. Paulo não demonstra qualquer dúvida sobre a finalização de nossa redenção naquele dia. Por isso ele diz que está “plenamente certo” do completamento daquilo que já havia começado na vida dos cristãos. Nesse verso Paulo fala da salvação como um processo que se inicia na vida de um indivíduo no momento da sua regeneração e se completa no dia da ressurreição dos que tiverem morrido na vinda de Jesus ou da transformação daqueles que estiverem vivos quando da sua manifestação. 1 Coríntios 1.7, 8 – “... de maneira que não vos falte nenhum dom, aguardando vós a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo; o qual também vos confirmará até ao fim para serdes irrepreensíveis no dia de nosso Senhor Jesus Cristo.”

Nesses versos, Paulo menciona a “revelação” (apocalipsis) de Jesus Cristo para o término das cousas do tempo presente. A “revelação” diz respeito à manifestação gloriosa e exaltada de Jesus Cristo. Ela se refere ao aparecimento de Jesus Cristo sem os elementos da sua humilhação que caracterizaram a sua primeira vinda. A “revelação” será a mostra de como ele realmente é agora – cheio de esplendor! É nesse dia de Cristo que os homens todos da terra “dobrarão os seus joelhos nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confessará que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp 2.10). A Igreja está “aguardando” ansiosamente por esse “dia de Cristo”. A palavra grega usada aqui é apekdechomenous, e significa “esperar com expectativa ansiosa e também com atividade. Não é uma expectativa passiva e inativa, como se estivéssemos sentados numa esquina esperando por um ônibus. Ela envolve trabalho enquanto esperamos e vigiamos cheios de esperança”.193 Até que essa “revelação” aconteça, os cristãos terão toda dotação divina para realizarem os seus ministérios. Quando esse Redentor voltar, no seu dia, ele vai 193. John MacArthur Jr., 1Corinthians (Chicago: Moody Press, 1984), 20.

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encontrá-los vivendo de forma irrepreensível como expressão da sua própria graça. A idéia de serem encontrados “irrepreensíveis” no dia de Cristo significa que Paulo “olha para o futuro e declara sua certeza de que Deus os apresentará sem culpa no tempo do juízo final. Isso significa que ninguém será capaz de acusá-los, porque naquele dia eles serão irrepreensíveis”.194 Esse é o aspecto futuro da redenção que se dará no dia de Cristo. Os cristãos serão limpos plenamente de todo pecado diante da corte divina.

d. A salvação futura se dará no dia da redenção Efésios 4.30 – “E não entristeçais o Espírito de Deus, no qual fostes selados para o dia da redenção.”

Até que o “dia da redenção” chegue, temos dentro de nós a garantia de que seremos completamente salvos. O selo da inviolabilidade dentro de nós é a ação e a presença do Espírito dentro de nós. Isso nos assegura o completamento de nossa redenção. A expressão “dia da redenção” também aponta para o tempo futuro do completamento da nossa salvação. O dia da redenção é o dia da volta de Cristo. Nesse dia, ele nos redimirá da presença do pecado (transformando os que estiverem vivos), do poder da morte (ressuscitando os cristãos que estão mortos), da ira divina (livrando-nos juízo final). Por essa razão, Calvino diz que “esse dia é usualmente chamado ‘o dia da redenção’, porque então seremos finalmente libertos de todas as nossas aflições”.195 CONCLUSÃO Quando adquirirmos um entendimento básico correto dos três tempos da salvação, então haveremos de compreender as passagens bíblicas que nos proporcionam encorajamento que nunca havíamos experimentado antes. A maioria dos crentes só fala de uma salvação no tempo passado e, por isso, perde de vista alguns benefícios que os outros tempos proporcionam para o nosso encorajamento. Por exemplo, quando lemos um verso importante como Rm 1.17 (que diz que o “evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê”) e pensamos apenas numa salvação passada, esse mesmo verso não faz sentido nenhum para nós. Todavia, se nós o entendemos como uma afirmação de uma salvação que continua agora a ser operada em nós, então o verso faz sentido, e o evangelho é mais amado por nós. Paulo estava pregando o evangelho a pessoas que já haviam sido salvas (salvação passada, cf. Rm 1.7, 15), mas que precisavam ser trabalhadas pelo evangelho de Deus a fim de que o processo da salvação continuasse. A salvação é algo que Deus continua a fazer em nós até o tempo de nosso fim aqui neste mundo, ou 194. Simon J. Kistemaker, 1Corinthians (Grand Rapids: Baker Book House, 1993), 41. 195. John Calvin. Galatians and Ephesians (Grand Rapids: Eerdmans, 1948), 302.

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do fim da presente era quando da volta de Cristo para completar a nossa salvação futura. Não perca de vista os três tempos da salvação e você não perderá a beleza do processo maravilhoso da salvação divina! Visto que a salvação aconteceu no passado, alegre-se, regozije-se e seja agradecido a Deus pelo fato dele ter-lhe salvo, declarando-o justo; alegre-se e regozije-se pelo fato de ele tê-lo adotado em sua família; visto que a sua salvação continua a ser operada no presente, como gratidão (e para o seu próprio bem), pugne por santidade e por perseverança em fé e boas obras. Seja uma pessoa confiada no poder do Salvador e na sua Palavra, sendo mais que vencedor por meio dele; visto que a sua salvação certamente será completada no futuro, dirija os seus olhos para aquele dia, cheio de expectativa e esperança! Tenha a sua mente volta para as coisas de cima e do amanhã, que são coisas eternas, e seja uma pessoa ainda mais bem-aventurada. Aquele dia será um dia de plena glória, porque ali, face a face, você verá o seu Salvador!

APLICAÇÃO Após ter tratado da obra de salvação do Salvador, preste atenção a essas aplicações finais:

A. ACEITE O CONVITE DO SALVADOR O Salvador sempre convida os cansados e oprimidos para encontrarem repouso nele. Análise de Texto Mateus 11.28-30 – “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.”

Há algumas verdades sobre o texto acima que precisam ser analisadas.

1. O CONVITE DO SALVADOR EXCLUI OUTROS SALVADORES “Vinde a mim...”

“Não há nenhum outro nome pelo qual importa que sejamos salvos”, senão pelo nome de Jesus (At 4.12). O Salvador não é um pluralista, nem um inclusivista. Ao contrário, ele é excluvista, soterologicamente falando. Ele exclui toda a possibilidade de haver um outro salvador. Ninguém pode salvá-lo, exceto ele. Essa não é uma idéia minha, mas do próprio Senhor Jesus. Jesus é o caminho (não um

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dos caminhos). Jesus não está preocupado com o que os homens de hoje pensam a respeito da exclusividade de sua obra. Por isso, ele diz: “Vinde a mim”. Ele sabe que nenhum outro poderia realizar o que é próprio do único e suficiente Salvador. Não há necessidade ninguém e de nada. Ele é completo e único.

2. O CONVITE DO SALVADOR INCLUI UMA ACEITAÇÃO DE NOSSA PARTE “Vinde a mim...”

Somos passivos na obra regeneradora de Deus. A iniciativa da doação da vida eterna é toda de Deus. Uma vez que recebemos a vida que vem de Deus, então somos conscientizados a responder em fé. Uma das expressões de fé encontradas na Escritura é “vir a Jesus”. Hendricksen diz que “o que significa ir a Jesus é claramente descrito em João 6.35: ‘O que vem a mim de modo nenhum terá fome, e o que crê em mim de modo algum terá sede’. É óbvio, à luz dessa passagem, que “ir” a Jesus significa “crer” nele. Essa fé é conhecimento, assentimento e confiança, tudo de uma só vez”.196 Quando somos regenerados pelo Espírito Santo, somos capacitados a ir a Jesus Cristo em fé, a fim de que desfrutemos da salvação que o Salvador nos concede, nessa presente vida.

3. O CONVITE DO SALVADOR É FEITO A TODOS OS AFLITOS “Vinde a mim todos os cansados e oprimidos...”

Quem são “os cansados e oprimidos”? Provavelmente, Jesus tinha em mente as pessoas que andavam sobrecarregadas pelo fardo religioso que lhes era posto nas costas pelos escribas e fariseus. Certa vez, Jesus, dirigindo-se às multidões de judeus, disse-lhes: “fazei e guardai, pois, tudo quanto eles vos disserem, porém não os imiteis nas suas obras; porque dizem e não fazem. Atam fardos pesados [e difíceis de carregar] e os põem sobre os ombros dos homens, entretanto eles mesmos nem com o dedo querem movê-los” (Mt 23.3, 4). Essas pessoas, portanto, andavam cansadas e oprimidas. Jesus, então, convida-as ao alívio de sua alma. Há um certo sentido, porém, em que os cansados e oprimidos são todos os homens que vivem neste mundo amaldiçoado por Deus. Nesse sentido, não há exceção. Todavia, não são todos que ouvem esse convite, e nem todos têm consciência de que são “os cansados e oprimidos”, porque eles nunca sentiram o oposto. Somente aqueles que são objetos da graça divina é que acabam percebendo que o convite é para eles. 196. William Hendricksen, Mateus, vol. 1 (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001), 713.

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Se você é um desses, aceite o convite do Salvador, indo em fé a Ele. Certamente você receberá aquilo de que você tanto precisa!

4. O CONVITE SALVADOR INCLUI A PROMESSA DE ALÍVIO “...e eu vos aliviarei.”

O cansaço e a opressão são produto da insatisfação espiritual. Portanto, todo aquele que vem a Jesus tem as suas necessidades satisfeitas. Por isso é dito que elas recebem alívio do Salvador. As pessoas que andam procurando a salvação através do seu próprio esforço, como já aventamos, são cansadas e oprimidas. O esforço delas não tem compensação. Elas não recebem alívio. Somente Jesus pode lhes dar o alívio de que desesperadamente necessitam. Todavia, elas encontrarão esse alívio se forem a Jesus. Só ele pode curar a sua alma sofrida. Ele diz: “Eu vos aliviarei, ninguém mais.” Nenhuma religião, nenhum guru espiritual, e nenhuma seita. Somente o Senhor Jesus lhe dará alívio se você procurar nele o seu repouso.

5. O CONVITE DO SALVADOR ENCORAJA A ACEITAÇÃO “Tomai sobre vós o meu jugo.”

Hendricksen diz que “Na literatura judaica, um ‘jugo’ representa a soma total de obrigações que, segundo o ensino dos rabinos, uma pessoa deve assumir... Já ficou demonstrado que, em decorrência das suas interpretações, alterações e acréscimos da santa lei de Deus, o jugo que os mestres de Israel punham sobre os ombros do povo consistia num legalismo totalmente sem fundamento. Era o sistema de ensino que realçava a salvação por meio da rigorosa obediência a um enorme volume de regras e regulamentos.”197

Jesus Cristo estava dizendo que o seu “jugo” não era pesado como o “jugo” imposto pelos escribas e fariseus. Não era pesado porque o lado mais pesado do fardo ele levou. Ele cumpriu plenamente a lei que deveríamos cumprir a fim de poder nos dar vida eterna. Se queremos desfrutar da salvação do Salvador, a nossa tarefa é pouca: “aprendei de mim.”

6. O CONVITE FEITO APRESENTA AS QUALIDADES DO SALVADOR “... e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração.”

O Salvador Jesus Cristo é pleno das qualidades que a Escritura apresenta, mas, 197. William Hendricksen, Mateus, vol. 1 (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001), 714, 715.

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aqui, as qualidades apresentadas provêm de uma auto-avaliação. Ele próprio disse de si que era “manso e humilde”. Uma pessoa “mansa é aquela que encontra refúgio no Senhor, entrega-lhe inteiramente seu caminho, deixando tudo nas mãos daquele que o ama e dele cuida”.198 Certamente Jesus Cristo, como Redentor, segundo a sua humanidade, confiava todas as coisas de sua vida ao seu Pai, entregando-lhe todas as angústias e sofrimentos. O manso é aquele que não reclama, não murmura e não blasfema pelas coisas que lhe acontecem. Ao contrário, ele caminha em sua vida certo de que o Pai está por detrás de tudo o que lhe acontece. Jesus era verdadeiramente um homem manso porque se portou de maneira terna diante de tudo o que lhe aconteceu. Ao mesmo tempo, Jesus disse de si que era “humilde de coração”. Essa afirmação está em oposição àqueles que, embora não sendo nada, eram altivos de coração. Jesus, sendo tudo, não se jactava de suas prerrogativas de realeza e de divindade. O seu coração era manso e cheio de humildade. Essas qualidades são extraordinárias em Jesus Cristo e dignas de toda imitação.

7. O CONVITE FEITO INCLUI TAMBÉM A PROMESSA DE DESCANSO “... e achareis descanso para as vossas almas.”

No mundo atribulado em que vivemos, não há nada que nós desejemos tanto como o “descanso”. A atribulação desse mundo é produto da incerteza, do temor e da ansiedade. Essas coisas matam os homens, de um modo geral, porque os levam ao desespero. O convite do Salvador é para que as pessoas vivam repousadamente, descansadamente, sem as inquietações que são tão comuns em nossa vida. Essas inquietações e ansiedades minam as forças das pessoas. É para pessoas assim que o Salvador faz uma deliciosa promessa nesse convite.

8. O CONVITE FEITO FORNECE AS RAZÕES DO DESCANSO “Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.”

Jesus tira o fardo pesado, a canga dura de carregar. O jugo pesado é o que todos os homens sem Cristo carregam. Elas são oprimidas e cansadas porque o fardo delas é pesado demais para eles carregarem. Aqui Jesus Cristo está falando, de forma simbólica, que o jugo que ele coloca sobre as pessoas, diferentemente dos outros, é fácil de carregar e não causa nenhum incômodo, é um jugo agradável. As coisas que o nosso Salvador requer que carreguemos são leves, os seus mandamentos são suaves. “O que ele está de fato dizendo, portanto, é que a simples confiança nele e a obediência a seus mandamentos, por gratidão pela salvação já comunicada por ele, são deleitosos. Produzem paz e alegria. A pessoa que vive 198. Hendriksen, Mateus, 715.

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esse gênero de vida não é mais escrava. Tornou-se livre. Serve ao Senhor espontânea, solícita e entusiasticamente.”199 Jesus convida os pecadores oprimidos a virem a ele porque a vida com Jesus é mais suave e mais leve para ser vivida.

B. RECEBA CRISTO COMO SEU SALVADOR “Como posso receber Cristo como Salvador?” Essa é uma pergunta vital que qualquer interessado em Cristo poderia fazer. Foi exatamente isso o que o carcereiro de Filipos perguntou: “Que devo fazer para que seja salvo?” (At 16.30). Nesse assunto, a Escritura não deixa qualquer margem de erro. Se você faz a mesma pergunta, aqui está a resposta de Deus em termos muito simples.

1. RECONHEÇA A SUA NECESSIDADE DE SALVAÇÃO Muitas pessoas não têm idéia do ódio que o pecado causa em Deus. Essa é a razão pela qual eu tenho de firmar meu ponto aqui. Para que você possa desfrutar da salvação nesta presente vida, você tem de reconhecer o seu pecado e confessar a sua necessidade de Cristo. Somente quando você tiver consciência da sua grave situação é que você vai procurar o remédio em Deus. Jesus Cristo disse que “os sãos não precisam de médicos, e, sim, os doentes” (Mt 9.12). Não há como fugir deste item da resposta à pergunta feita acima. Você precisa de um Salvador. Reconheça essa verdade. Sem esse reconhecimento, jamais você procurará o Salvador. Não existe salvação para aquele que ignora o seu pecado e a sua culpa. Não tente esconder a sua culpa escondendo-se em religiões que não pregam a pecaminosidade humana. Sobre esses, Jeremias diz que eles “curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz” (Jr 6.14). Dê ouvidos aos que dizem que você é pecador e carece desesperadamente de um Salvador, que é Jesus!

2. CREIA QUE JESUS É O CRISTO, O FILHO DE DEUS, O ÚNICO QUE LHE PODE SALVAR Os apóstolos, quando confrontados pelos seus algozes sobre o que estava acontecendo no meio deles, referindo-se a Jesus Cristo, o Filho do Deus vivo, proclamaram corajosamente: Atos 4.12 – “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dando entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos.”

Você tem que adotar como sua essa crença dos apóstolos. Você tem de confiar unicamente em Jesus. Não há possibilidade de salvação fora dele. Tanto abaixo do 199. Hendriksen, Mateus, 716.

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céu como em toda a terra não existe ninguém que possa ser para você o que Cristo pode. Só em Jesus há salvação, e somente a ele você deve recorrer. Quando Jesus Cristo estava ensinando algumas verdades difíceis para os seus ouvintes sobre antropologia e soterologia, alguns dos seus discípulos reclamaram do conteúdo do ensino, dizendo: “Duro é este discurso, quem o pode ouvir!” (Jo 6.60). Todavia, Jesus continuou o seu discurso, e, após falar da incapacidade do pecador de vir a Cristo por si próprio, o evangelista narra que “à vista disso, muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele” (Jo 6.66). Quando percebeu o abandono daqueles que não concordavam com a sua “teologia”, Jesus se dirigiu aos Doze, perguntando-lhes: “Porventura quereis vós também retirarvos?” (v. 67). A resposta de Pedro atinge o ponto que queremos encorajar você a fazer neste final de capítulo: “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras de vida eterna; e nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus” (vs. 68, 69). Não há a quem você possa recorrer, senão a Jesus Cristo, o Senhor e Salvador. Portanto, siga o caminho de Pedro, reconhecendo somente a Jesus, o Filho de Deus encarnado, como o único que pode ser Salvador de pecadores. Deus, dirigindo-se ao povo do Antigo Testamento, diz: “...Pois não há outro Deus senão eu, Deus justo e Salvador, não há além de mim. Olhar para mim, e sede salvos, vós, todos os termos da terra; porque eu sou Deus, e não há outro” (Is 45.21, 22). Por que você não faz o que Deus ordena em sua Palavra? Olhe com fé para Jesus Cristo, o Salvador, e, então, você poderá desfrutar da salvação que lhe foi conquistada no passado, está sendo realizada nesta presente vida, e ainda será consumada no futuro.

LIBERTADOR O nome “Libertador” aparece somente uma vez no Novo Testamento, mas várias vezes no Antigo Testamento, referindo-se mais à libertação do Egito e à libertação das dificuldades básicas dos crentes. Obviamente, a palavra “Libertador” é sinônima de Redentor. O que é dito do Redentor deve ser dito do Libertador. É digno de nota que o Libertador espiritual não poderia ter existido no Antigo Testamento, porque o Libertador tem que ser Deus-homem. Embora Deus seja chamado várias vezes de libertador no Antigo Testamento, deve ser entendido que Deus foi o causador da libertação do povo de Israel da escravidão do Egito, mas ele não é mencionado como sendo o Libertador espiritual no sentido em que entendemos que Jesus Cristo o foi. Somente a unio personalis é que poderia tornar real o Libertador. Nessa parte do capítulo, faremos uma comparação entre Moisés e Cristo nessa preciosa função de Libertador.200 A função libertadora deles tem conotação diferente, mas o primeiro é tipo do segundo, conforme o ensino geral das Escrituras. 200. Algumas idéias dessa comparação de Jesus com Moisés estão colocadas no artigo de I. Gordon,

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A. COM QUEM O LIBERTADOR É COMPARADO? O tema da libertação é importante especialmente na mentalidade do povo de Israel em virtude do seu grande período de escravidão no Egito, de onde foram libertos. A libertação do Egito é típica da libertação da escravidão do pecado, mencionada no Novo Testamento. Portanto, não é estranho que o libertador da escravidão do Egito (Moisés) seja comparado com o Libertador do pecado (Jesus).

1. COMO LIBERTADOR, MOISÉS FOI TIPO DE CRISTO Na conta dos judeus, ninguém se assemelha a Moisés em matéria de libertação. Ele é o libertador por excelência, pois, através de feitos miraculosos, ele libertou da escravidão o seu povo do Egito. Todavia, nós, os cristãos, podemos ver em Moisés apenas o tipo de Jesus. O tipo nunca pode ser maior do que o antítipo. Jesus Cristo é o libertador por excelência. Assim como Moisés é o tipo de Cristo, a libertação do Egito é o tipo a libertação do pecado (cf. textos como Mt 2.15 e Os 11.1 e 1Co 10.1-11), que é a libertação da ordem pecaminosa deste mundo, nestes últimos dias. Moisés e Cristo são citados freqüentemente, porque eles estão muito relacionados, especialmente em relação às funções legisladora e libertadora de ambos.

2. COMO LIBERTADOR, MOISÉS NASCEU DE UM POVO OPRIMIDO, COMO CRISTO Moisés foi nascido numa época onde um Faraó mau oprimia os descendentes de Jacó, que tinham se multiplicado no Egito por cerca de 400 anos. Quando Moisés veio ao mundo, o seu povo estava em escravidão sob um líder cruel. Veja o clima hostil: Êxodo 1.15, 16 – “O rei do Egito ordenou às parteiras hebréias, das quais uma se chamava Sifrá, e outra Pua, dizendo: Quando servirdes de parteira às hebréias, examinai: se for filho, matai-o; mas se for filha, que viva.”

Foi nesse contexto de crueldade de que Moisés nasceu. Os meninos não poderiam viver. Todavia, Deus salvou Moisés na sua libertadora providência. Se com o tipo aconteceu assim, o que poderemos dizer com relação ao Antítipo, que é Jesus? Ele também nasceu num contexto de crueldade. Ao invés do Egito, o cenário agora é Belém da Judéia. Herodes é o rei. Quando soube do nascimento do “Rei”, Herodes fez o mesmo que Faraó: ele mandou matar todos os meninos de dois anos para baixo. Veja o texto: Moses, The Deliverer, no site http://www.jesusplusnothing.com/studies/online/jcmoses.htm, acessado em 09/03/2004.

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Mateus 2.16 – “Vendo-se iludido pelos magos, enfureceu-se Herodes grandemente, e mandou matar todos os meninos de Belém e de todos os seus arredores, de dois anos para baixo, conforme o tempo do qual com precisão se informara dos magos.”

Moisés e Jesus estão relacionados até na maldade de reis opressores. Os dois libertadores, Moisés e Jesus, foram libertos pela mesma obra providencial de Deus. Ironicamente, o menino Jesus Cristo para ser liberto teve de ir para o Egito, justamente o lugar que perseguiu Moisés, o libertador dos hebreus.

3. COMO LIBERTADOR, MOISÉS ERA DE ASCENDÊNCIA REAL, COMO CRISTO Legalmente, Moisés tinha uma ascendência real, porque foi criado pela família real, como se fosse um rei, possivelmente o herdeiro do trono do Egito. Ele era realmente um príncipe! Êxodo 2.10 – “Sendo o menino já grande, ela o trouxe à filha de Faraó, da qual passou ele a ser filho. Esta lhe chamou Moisés, e disse: Porque das águas o tirei.”

A realeza de Moisés é confirmada pelo Novo Testamento no discurso que Estevão faz antes de Morrer. E ele dá um resumo da história da salvação mencionando a realeza da filiação de Moisés. Atos 7.21, 22 – “Quando foi exposto, a filha de Faraó o recolheu e criou como seu próprio filho. E Moisés foi educado em toda a ciência dos egípcios, e era poderoso em palavras e obras.”

Mesmo nascendo de pais pobres e numa raça oprimida, Moisés veio a tornar-se um grande homem, herdeiro do trono do país mais poderoso da época. São muitas as semelhanças entre a realeza de Moisés e a realeza de Cristo. De ambos é dito que eles são reis “poderosos em palavras e ações (At 7.22 [Moisés] e Lc 24.19 [Jesus Cristo]). De ambos é dito que nasceram em lares humildes, mas eram de ascendência real. Moisés tinha a mãe que o adotou; Jesus tinha Davi em sua ascendência. De ambos é dito que, sendo herdeiros do trono, recusaram a sua função de realeza nos reinos deste mundo. De Moisés, “quando já homem feito, recusou ser chamado filho a filha de Faraó” recusou a sua origem real egípcia (Hb 11.24); de Jesus é dito que, quando questionado sobre a sua realeza, ele respondeu: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (Jo 18.36). Ambos, Moisés e Jesus, eram reis de direito, mas não se tornaram reis de fato dos seus respectivos países porque eles preferiram coisas de um reino superior. Moisés “preferiu ser maltratado junto com o povo de Deus a usufruir prazeres transitórios do pecado” (Hb 11.25) porque ele

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anteviu que o antítipo também sofreria vergonhosamente. Por isso, o texto de Hebreus continua dizendo que Moisés “considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito, porque contemplava o galardão” (Hb 11.26). Ambos, de ascendência real, portaram-se com vistas a reinos de amplidão espiritual,e não de dominação física.

4. COMO LIBERTADOR,MOISÉS DEIXOU PRIVILÉGIOS COMO CRISTO Moisés abriu mão de posições (do próprio trono) para ser libertador do seu povo. Veja o que o texto da Escritura diz: Hebreus 11.24, 25 – Pela fé Moisés, quando já homem feito, recusou ser chamado filho da filha de Faraó, preferindo ser maltratado junto com o povo de Deus, a usufruir prazeres transitórios do pecado.”

Diante do quadro de opressão pelo qual seu povo passava, Moisés abriu mão de todos os privilégios que, como membro da família real, ele poderia ter. Moisés abriu mão do trono do Egito, poder, riqueza e autoridade. O seu comprometimento era levar o povo hebreu para fora do Egito, para a terra da promissão. A sua posição no Egito era de honra, mas ele preferiu associar-se com os sofrimentos do seu povo de sangue. De modo semelhante, Jesus Cristo, tendo a maior posição que um ser poderia possuir, existindo em forma de Deus, todavia, por amor a seus irmãos da raça, preferiu ser maltratado por Deus, por causa dos seus irmãos, descendo a este mundo cheio de maldição para ser tratado como um maldito de Deus. Jesus Cristo abriu mão das prerrogativas da sua realeza, sem deixar de ser rei, não para associar-se aos sofrimentos do povo, como Moisés fez, mas para livrar o povo dos sofrimentos punitivos causados pela ira de Deus por causa do pecado. Ele abriu mão do uso de todas as suas prerrogativas divinas para se colocar na posição de servo. Veja o que a Escritura diz: Filipenses 2.6-8 – “Pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornandose obediente até à morte, e morte de cruz.”

Jesus Cristo abriu mão de muitos privilégios. Isso é espantoso! De forma semelhante a Moisés, Jesus Cristo veio para libertar o povo. Essa função libertadora os une de maneira extraordinária. Eles fizeram tudo o que deveriam fazer para executar a libertação. Como Moisés amava seu povo de sangue, assim também Jesus amou o seu povo, aqueles que o Pai lhe havia entregue, abrindo mão dos privilégios que a sua

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realeza lhe dava. O alvo de Jesus Cristo era libertar o seu povo e levá-lo para fora da mundanidade, para um lugar de repouso.

5. COMO LIBERTADOR, MOISÉS FOI REJEITADO COMO CRISTO Moisés foi rejeitado pelos seus próprios irmãos de raça. O evento da rejeição está registrado tanto no Antigo Testamento (Êx 2.11-14) como no Novo Testamento (At 7.23-27). Moisés era o libertador que Deus havia enviado para o povo, e este não entendeu o intento daquele. Após matar o egípcio para proteger um de seus irmãos, ele percebeu a ineficácia de sua ação de convencer os hebreus da sua função libertadora. Por isso, Lucas registra: “Ora, Moisés cuidava que seus irmãos entenderiam que Deus os queria salvar, por intermédio dele; eles, porém, não compreenderam” (At 7.25). Assim, eles o rejeitaram dizendo: “Quem te constituiu autoridade e juiz sobre nós?” (At 7.27). É espantoso que Moisés, o tipo de Cristo, tenha abandonado os privilégios do Egito para ser libertador do povo e tenha encontrado tanta resistência no meio do povo. Na verdade, foi mais que resistência, foi rejeição! Todavia, não é de se espantar que o antítipo, Jesus Cristo, tenha recebido rejeição também. Se rejeitaram aquele que era menor, muito mais haveriam de rejeitar o Redentor maior, cerca de 1400 anos mais tarde! A rejeição a Jesus foi muito mais violenta do que a rejeição a Moisés.

a. Jesus foi rejeitado pelos seus irmãos de raça João 1.11 – “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.”

A nação judaica, aqui, é vista como sendo “os seus”, os da mesma raça. É significativo que, como nação, Israel tenha rejeitado Jesus bem antes da cruz. O livro de Mateus foi escrito principalmente para judeus do seu tempo, e, por isso, Mateus apresenta Jesus como o Messias longamente esperado. Quando ele chegou, a nação virou as costas para ele, esperando um tipo totalmente diferente de libertador. Somente uns poucos o viram como o real Messias e o receberam, e estes que o receberam foram feitos filhos de Deus (Jo 1.12). Falando da nação hebraica, Deus disse através do profeta: Isaías 1.2-4 – “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o Senhor é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim. O boi conhece o seu possuidor, e o jumento o dono da sua manjedoura, mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende. Ai, desta nação pecaminosa, povo carregado de iniqüidade, raça de malignos, filhos corruptores; abandonaram o Senhor, blasfemaram do Santo de Israel, e voltaram para trás.”

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A nação israelita desprezou Jesus Cristo. Se a nação dos hebreus rejeitou Moisés, com maior ódio rejeitou a Cristo Jesus, que nada havia feito de errado. Portanto, a rejeição a Jesus foi muito maior do que a rejeição a Moisés. O Libertador foi desprezado e “dele não fizeram caso”.

b. Jesus foi rejeitado pelos religiosos do seu tempo Mateus 12.24 – “Mas os fariseus, ouvindo isto, murmuravam: Este não expele os demônios senão pelo poder de Belzebu, maioral dos demônios.”

Após curar um endemoninhado, cego e mudo, que passou a falar e a ver, os líderes religiosos fizeram uma afirmação muito terrível a respeito do Libertador. Essa afirmação dos fariseus mostra a rejeição total que eles tinham em relação a Cristo. O Filho do Altíssimo foi igualado ao maioral dos demônios. Ele veio fazer grandes sinais e prodígios, mas os religiosos de seu tempo atribuíram a Satanás as obras de Cristo. Isso é rejeição plena do Messias vindo de Deus e nascido entre eles. O Deus-homem foi acusado de ser instrumento e servo de Satanás! De acordo com o erudito judeu Arnold Fruchtenbaum, a tradição judaica sustentava que, quando o Messias viesse, ele faria três sinais para provar a validade de sua alegação messiânica. Primeiramente, ele ressuscitaria alguém que tivesse estado morto por mais de três dias. Segundo, ele purificaria leprosos. E, por último, ele curaria alguém de cegueira e mudez. Em Mateus 12.22, Jesus realizou esse último sinal, diante do qual as multidões ficaram espantadas e disseram: “É este, porventura, o Filho de Davi?”. Em outras palavras, “este realmente poderia ser o Messias!”. Essa foi uma ocasião crucial! Mas, ao invés de aceitá-lo, eles permitiram que os fariseus respondessem por eles, e os fariseus disseram que Jesus fez essas coisas pelo poder de Belzebu (v. 24).201 Gordon faz as seguintes observações com respeito aos graves resultados dessa rejeição da pessoa e ministério do Redentor: “1. Jesus disse que tais coisas eram blasfêmia contra o Espírito Santo, que não poderia ser perdoadas (Mt 12.31, 32). 2. Com sua rejeição, Jesus começa a aludir à sua morte na cruz pela primeira vez nesse livro (vs. 38-40). 3. Jesus e João Batista tinham “varrido e ornamentado a casa de Israel” por esta não o ter aceito como Messias, e o fim de Israel agora foi pior do que foi no princípio (vs. 43-45). 4. Os laços de Jesus com o Israel natural parecem ter sido quebrados, como está indicado nos versos 46-50. 201. Essas informações estão na nota de rodapé 1 do artigo de I. Gordon, no artigo Moses, the Deliverer, no site http://www.jesusplusnothing.com/studies/online/jcmoses.htm, acessado em 09/03/2004.

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5. Jesus começa agora a falar em parábolas, de modo que aqueles que o haviam rejeitado não o entenderiam, mas aqueles que tinham ouvidos para ouvir, ouviriam. Observe que mesmo os discípulos não entendiam porque ele agora falava em parábolas (Mt 13.10-15)”.202 A rejeição de Jesus Cristo trouxe essas enormes conseqüências, que nenhum de nós deveria desejar.

c. Jesus foi rejeitado pela classe político-religiosa do seu tempo Mateus 27.22 – “Replicou-lhes Pilatos: Que farei então de Jesus, chamado Cristo? Seja crucificado! responderam todos.”

A rejeição da classe político-religiosa foi tal que eles preferiram um bandido e preteriram o Libertador. Eles preferiram um homem que os aprisionava e preteriram um que os libertava. Eles soltaram o criminoso e prenderam o inocente; libertaram o assassino e mandaram matar o Santo de Deus! Foi o povo que gritou por Barrabás, para que fosse solto, mas eles foram instigados pela classe político-religiosa. O v. 20 diz: “Mas os principais sacerdotes e anciãos persuadiram o povo a que pedisse Barrabás e fizesse morrer Jesus.” Como sempre, o povo é instigado pela classe dominante e comete injustiça. Jesus Cristo foi rejeitado pelos seus, pela classe religiosa e pela classe política. O próprio Pilatos lhes perguntou: “Que mal fez ele?” Ninguém respondeu. Apenas continuavam a mostrar a sua rejeição, dizendo em tons ainda mais altos: “Crucifica-o!” (v. 23). Nunca m libertador recebeu tanta oposição dentro de sua própria casa como Jesus Cristo! “Odiaram-me sem motivo”, disse o Libertador! No entanto, como Moisés, apesar de tudo o que lhe fizeram, Cristo amou o povo que o rejeitou, a ponto de chorar por causa da rejeição. O seu coração se enterneceu por causa deles, mesmo a despeito de toda rejeição que deles recebeu (Mt 23.37).

B. DE ONDE PROCEDE O LIBERTADOR? Deus sempre enviou libertadores, porque ele é o Deus da libertação. Os profetas sempre falaram em libertação e assim fizeram também as demais Escrituras. Moisés foi mandado por Deus, e assim também o foi Jesus. Moisés foi enviado para cumprir um plano de Deus para Israel, e assim também o foi Jesus. Em ambos os casos, os judeus não entenderam os planos de Deus a respeito deles. Os “messias” (“ungidos”) de Deus nunca foram compreendidos enquanto ministraram ao povo. Jesus e Moisés foram também iguais nisso: tanto na procedência quanto no entendimento de sua missão por parte do povo. 202. Gordon, ibid.

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Os judeus sempre esperaram por um libertador, mas nunca entenderam realmente a procedência dele. Quando o Libertador chegou, eles o rejeitaram e continuaram a esperar pelo seu libertador. Até hoje continua essa espera.Todos sabiam que o Libertador viria da descendência de Davi, mas nunca eles imaginaram que a atividade do Libertador ultrapassasse os limites da nação judaica. Eles nunca entenderam que Yahweh havia feito com o Libertador um pacto de redimir um povo exclusivamente seu que incluísse os gentios. Estava fora de cogitação tal Libertador. Muito menos esperavam eles que o libertador fosse libertá-los das prisões espirituais. A doutrina do Libertador é parte do coração da teologia bíblica e da mentalidade dos judeus, mas estes não entenderam praticamente nada da procedência do Libertador e da finalidade dele. Eles nunca imaginaram um reino espiritual de justiça, de amor, um reino que incluísse todo o povo de Deus espalhado pela face da terra, um povo que haveria de ser liberto dos seus pecados. Foi exatamente essa verdade que Paulo deixou clara aos crentes da igreja de Roma. Há um sentido em que o Libertador procede do céu: porque ele foi enviado por Deus e porque ele também é divino. Mas não existe Libertador dos pecados se ele não for também humano. É mais sobre o Filho encarnado que essa parte do capítulo trata. Na única vez em que o Novo Testamento usa a palavra libertador, a referência é especificamente à procedência dele. Análise de Texto Romanos 11.26, 27 – “Virá de Sião o Libertador, ele apartará de Jacó as impiedades. Esta é a minha aliança com eles quando eu tirar os seus pecados.”

1. O LIBERTADOR FOI PROFETIZADO NO ANTIGO TESTAMENTO COMO ALGO FUTURO Romanos 11.26 – “Virá de Sião o Libertador.”

Isaías se refere ao Libertador que foi prometido como sendo alguém que haveria de vir no futuro a Sião. Veja o texto do Salmo 14, que aponta para a esperança israelita da vinda de um libertador futuro, embora Israel já houvesse sido liberto no passado. Perceba que o Salmo 14 trata da impiedade do povo, inclusive da insensatez das pessoas, dizendo que não há Deus (v. 1). Aos olhos de Deus, não havia quem entendesse as coisas espirituais ou quem o buscasse (v. 2); todos haviam se extraviado e se corrompido; não havia quem fizesse o bem, nem sequer um (v. 3); a liderança espiritual, quer de sacerdotes ou profetas, era caída, e não adorava a Deus (v. 4). Então, no verso 7, o salmista expressa o seu anelo de um liberta-

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dor espiritual para resolver a condição miserável em que seu povo vivia, dizendo: “Tomara de Sião viesse já a salvação de Israel! Quando o Senhor restaurar a sorte do seu povo, então exultará Jacó, e Israel se alegrará”. Somente poderia ser Libertador alguém futuro e alguém como Jesus Cristo – Deus-homem. O Verbo não poderia ser libertador. Por essa razão, ele teve de descer a Sião e ser como um dos que pertenciam a Sião, o povo de Deus. Isso só foi possível com a unio personalis.

2. O LIBERTADOR ESTÁ VINCULADO A SIÃO Há uma questão textual que precisa ser tratada. Paulo retirou provavelmente a citação de Isaías 59.20, 21. Paulo afirma que o Redentor vem “de Sião”, enquanto o texto hebraico de Isaías fala que o Redentor vem “a Sião”, e a LXX (a versão grega do Antigo Testamento) diz que o Redentor vem “por causa de Sião”. Hendricksen diz que as três idéias se encaixam perfeitamente e que não há problema em nenhuma delas. Diz ele: “O libertador não veio “por causa de Sião”, ou seja, para resgatar Sião? E ele não veio igualmente “para Sião”? De outra forma, como poderia ele tê-la salvo? E não é também que, segundo sua natureza humana, ele veio “de Sião”?”203

Vejamos uma pequena análise separada dessas três versões relativas à procedência do Libertador:

a. O Libertador vem de Sião A libertação do povo sempre foi cantada na Escritura como procedente “de Sião”. O Salmista expressou sua ânsia de que a libertação do povo viesse logo para o povo de Israel. Lembrem-se de que a salvação da qual Davi fala não é libertação do jugo de escravidão a um povo. O reino de Israel estava muito bem nas suas mãos. Certamente Davi falava da libertação espiritual, e por isso ele se expressa assim: “Tomara de Sião viesse já a salvação de Israel!” (Sl 14.7). Todas as coisas espirituais viriam de Sião (Is 2.1-4), sobretudo o seu libertador! Essa também era a crença vigente nos tempos de Jesus Cristo, quando a mulher samaritana, que foi pega em flagrante adultério, recebeu de Jesus a afirmação de que “a salvação vem dos judeus” (Jo 4.22), ou seja, de Sião. Na verdade, essa era a crença de Jesus Cristo, pois ele era o próprio Libertador. Afinal de contas, a despeito de o Libertador ser Deus, ele também era homem, e, como tal, sua natureza humana vinha da linhagem de Davi.

203. William Hendriksen, Romanos (São Paulo: Cultura Cristã, 2001), 505.

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b. O Libertador vem a Sião Isaías 59.20 – “Virá o Redentor a Sião e aos de Jacó que se converterem, diz o Senhor.”

Embora “Sião” seja o equivalente de Jerusalém em muitos lugares, aqui, no texto de Isaías 59.20, “Sião” deve ser entendida primordialmente como sinônimo de “povo de Deus”, e não como a cidade de Jerusalém, porque o escopo da vinda do Libertador excede a cidade de Jerusalém, incluindo todo Israel e alcançando gentios do mundo inteiro. Prolepticamente falando, o profeta coloca Jesus Cristo como alguém que foi enviado a Sião e que está assentado em Sião: Isaías 28.16 – “Eis que eu assentei em Sião uma pedra, pedra já provada, pedra preciosa, angular, solidamente assentada; aquele que crer não foge.”

O Verbo encarnou-se e foi enviado para Sião. Ali ele foi assentado, de forma que nunca mais deixará Sião. Obviamente, Sião novamente é o povo de Deus, e não a cidade física de Jerusalém. O Libertador veio para ficar definitivamente com Sião, de modo que Sião jamais será abalada. Essa Pedra [que é Cristo] está solidamente assentada sobre Sião, e isso torna Sião firme! Todos os que são de Sião haverão de crer nele. Isaías 62.11 – “Eis que o Senhor fez ouvir até às extremidades da terra estas palavras: Dizei à filha de Sião: Eis que vem o teu Salvador; vem com ele a sua recompensa, e diante dele o seu galardão.”

Ao invés do termo Libertador, Isaías usa Salvador, e diz que esse Salvador que vem a Sião. Esse Libertador vem com uma recompensa, que tem a ver com “o fruto do penoso trabalho de sua alma” (cf. Is 53.12). Galardão aqui é sinônimo de recompensa. Os crentes é que são a recompensa do Senhor. Na verdade, a recompensa é a própria “Sião” ou “filha de Sião”, pois o verso 12 diz que esse povo será chamado “povo santo, remidos do Senhor”. O Libertador viria para Sião, e realmente os filhos de Sião são os beneficiários de sua vinda. Zacarias 2.10, 11 – “Canta e exulta, ó filha de Sião, porque eis que venho, e habitarei no meio de ti, diz o Senhor. Naquele dia, muitas nações se ajuntarão ao Senhor, e serão o meu povo; habitarei no meio de ti, e saberás que o Senhor dos Exércitos é quem me enviou a ti.”

Algumas coisas podem ser ditas desses versos: (1) A vinda do Libertador para Sião deve ser motivo de cântico e de júbilo; (2) A vinda do Libertador para Sião é para estar no meio do seu povo;

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(3) A vinda do Libertador para Sião extrapola os limites de Israel, alcançando pessoas de todas as nações; (4) A vinda do Libertador para Sião produz um povo seu; (5) A vinda do Libertador para Sião é conhecida como procedendo do Senhor. Zacarias 9.9 – “Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador, humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta.”

A vinda do Senhor para Sião é confirmada pela vinda do Verbo encarnado a Jerusalém, e, conseqüentemente, para todo o povo de Deus. O Libertador é saudado como o “Rei que vem em nome do Senhor”, mas um Rei-Libertador humilde e um justo Salvador. Portanto, o texto hebraico de Isaías 59.20 é confirmado pelo ensino geral da Escritura como vindo para Sião, o que não invalida o fato de ele vir “de Sião” ou “por causa de Sião”. De qualquer forma, a vinda dele deve ser vista e nela todos devem se alegrar muito, como recomenda o texto!

c. O Libertador vem por causa de Sião Essa é a maneira como a LXX traduz para o grego o texto hebraico de Isaías 59.20. O Libertador não vem somente de Sião, ou para Sião, mas também por causa de Sião. Sião é o objeto da obra do Libertador, que, no texto abaixo, é chamado de Renovo. Apenas para ilustrar a idéia de Sião e suas necessidades supridas pelo Libertador, façamos uma pequena análise do texto de Isaías: Análise de Texto Isaías 4.2-6 – “Naquele dia, o Renovo do Senhor será de beleza e de glória; e o fruto da terra, orgulho e adorno para os de Israel que forem salvos. Será que os restantes de Sião e os que ficarem em Jerusalém serão chamados santos; todos os que estão inscritos em Jerusalém, para a vida, quando o Senhor lavar a imundícia das filhas de Sião e limpar Jerusalém da culpa do sangue do meio dela, com o Espírito de justiça e com o Espírito purificador. Criará o Senhor, sobre todo o monte de Sião e sobre todas as suas assembléias, uma nuvem de dia e fumaça e resplendor de fogo chamejante de noite; porque sobre toda a glória se estenderá um dossel e um pavilhão, os quais serão para sombra contra o calor do dia e para refúgio e esconderijo contra a tempestade e a chuva.”

Há algumas verdades que podem ser vistas sobre Sião, nesse texto, que passo apenas a citar, sem fazer comentários detalhados. Verifique que, no texto de Isaías, elas são ressaltadas: 1. Sião é sinônimo de povo de Deus (ou Israel). Por Sião, nessa argumentação, entenda-se o povo que realmente pertence a Deus, que são chamados de Israel de Deus.

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2. Todos os de Sião serão salvos. 3. Todos os de Sião são chamados santos. 4. Todos os de Sião estão inscritos no livro da vida. 5. Todos os de Sião serão lavados e limpos de sua poluição e culpa. 6. Todos os de Sião apresentarão a glória de sua redenção. 7. Todos os de Sião terão a proteção do Senhor. Nesse sentido, todos os que fazem parte de Sião deverão ser salvos, porque a libertação vem a todo o povo de Deus, por causa dos seus pecados. O Libertador veio resgatar Sião, livrando-o da penalidade e do poder dos seus pecados.

3. O LIBERTADOR VEIO CUMPRIR UM PACTO No texto abaixo, o profeta usa o termo “Redentor”, ao invés de “Libertador”, que basicamente possui o mesmo sentido. Os termos do pacto estão presentes no texto de Isaías. Vejamo-los: Isaías 59.20, 21 – “Virá o Redentor a Sião e aos de Jacó que se converterem, diz o Senhor. Quanto a mim, esta é a minha aliança com eles, diz o Senhor; o meu Espírito, que está sobre ti, e as minhas palavras, que pus na tua boca, não se apartarão dela, nem da de teus filhos, nem da dos filhos de teus filhos, não se apartarão desde agora e para todo o sempre, diz o Senhor.”

As verdades do texto são as seguintes:

a. O texto afirma que Sião deve ser identificada com Jacó. “Virá o Redentor a Sião e aos de Jacó que se converterem, diz o Senhor.”

Vemos novamente que Sião não se refere propriamente à cidade erigida de Jerusalém, ou à nação política de Israel (embora o Libertador tivesse vindo e atuado na cidade de Jerusalém e na nação israelita; cf. Sl 2.6; 1Pe 2.6), mas sim à Jerusalém como povo ou Israel de Deus. Sião também não se refere necessária e somente aos que possuem sangue judaico, mas especialmente àqueles que pertencem a Deus, que devem ser considerados, e Paulo se referiu a eles, como “Israel de Deus”. É nesse sentido que os israelitas justos esperavam o Messias que traria “consolação de Israel” (como é o caso de Simeão; cf. Lc 4.25), ou como aquele Libertador que traria a “Redenção de Jerusalém”, isto é, do verdadeiro povo de Deus (como é o caso de Ana; cf. Lc 4.38). A libertação de Sião significada a libertação do povo de Deus, do Israel de Deus!

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b. O texto hebraico afirma que Libertador vem, portanto, para que Sião se converta “Virá o Redentor a Sião e aos de Jacó que se converterem, diz o Senhor.”

Os que pertencem a Deus têm como evidência dessa verdade a sua fé e arrependimento, que se constituem na conversão. Os de Sião que se “convertem” são aqueles que abandonam as suas impiedades e se voltam para Deus. Ao mesmo tempo em que o Libertador vem para eles, essa vinda é que lhes causa essa conversão. O Libertador não vem para os que se convertem, como se a conversão deles fosse a causa última da vinda do Libertador. Se assim fosse, seria como se “o machado se gloriasse contra o que o corta com ele ou a presunção da serra contra o que a maneja” (cf. Is 10.15). Não podemos olhar dessa maneira; não podemos inverter a ordem das coisas. O Libertador, portanto, vem para que os de Sião sejam convertidos.

c. O texto afirma que Yahweh estabeleceu uma aliança com Sião “Quando a mim, esta é a minha aliança com eles, diz o Senhor.”

Esse é o ponto principal da nossa argumentação. Deus fez um pacto com Sião de trazer redenção a eles. Na verdade, esse pacto feito com Sião era resultado de um pacto que já havia sido estabelecido entre o Pai e o Filho, antes do mundo existir. Num determinado tempo da história, Deus se revelou compassivamente ao povo e estabeleceu formalmente esse pacto com Abraão de abençoar todas as famílias da terra, e de ser o Deus de toda a descendência espiritual de Abraão, o pai da fé (cf. Gn 17). Esse pacto ficou conhecido na história da teologia como Pacto da Graça. As palavras reveladas por Deus na Escritura do Antigo Testamento foram chamadas de “Palavras do Pacto” (Dt 29.1, 9), que serviam para dar o norte ao povo e para anunciar a Redenção através do Libertador. Mesmo o sangue derramado nos sacrifícios do pacto feito com Moisés (que é a continuação e renovação do pacto da graça feito anteriormente com Abraão), é chamado de “sangue do pacto” (Êx 24.8). Quando houve a unio personalis, esse pacto tomou a forma do “novo pacto” (que havia sido predito por Jeremias; cf. Jr 31.31-34; 32.38-40), do qual o Libertador é o Fiador (Hb 7.22). Esse pacto é de natureza unilateral; um pacto onde todos os requisitos seriam cumpridos pelo próprio Deus. O Libertador seria o “mediador desse pacto com o povo”. Esse pacto, que é a realização efetiva do pacto da graça, tem o sangue do Libertador como o sangue do pacto (Mt 26.26). Esse pacto com o povo tem Jesus Cristo como o representante dos pecadores pelos quais veio morrer. Todos eles são beneficiados no Libertador e dele recebem a redenção, pois o

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sangue derramado no lugar deles é “para remissão de pecados” (Mt 26.28). Conforme o ensino de Jeremias, os de Sião haveriam de ter as palavras do Senhor impressas na mente e inscritas no coração, que tem a ver com Isaías 59.21, que é o texto objeto de nosso estudo nesta parte do capítulo.

d. O texto afirma que o Espírito de Yahweh está sobre o Libertador “... o meu Espírito, que está sobre ti...”

Essa presença do Espírito no Libertador é parte do cumprimento do pacto feito com o próprio Filho encarnado. O profeta Isaías fala da ação do Espírito de Yahweh agindo no Messias Libertador de maneira inequívoca (cf. Is 61.1-3; Lc 4.17, 18).204 A presença do Espírito na vida do Redentor é mais uma promessa do Pacto da Redenção entre o Pai e o Filho que foi peremptoriamente cumprida. A ação do Espírito nele foi de extrema importância ,porque ele era um Libertador também humano. E, como o modus operandi de Deus é consistente, o Espírito teve de atuar nele como sempre atuou nos seus ungidos. O Libertador teve o apoio total do Espírito por causa da unio personalis. Se houvesse a possibilidade de um Libertador unicamente divino, essa assistência não seria necessária. Mas como o Libertador também é humano, então, a ação do Espírito sobre ele se faz necessária.

e. O texto afirma que Yahweh colocou suas palavras na boca do Libertador “... o meu Espírito, que está sobre ti, e as minhas palavras, que pus na tua boca...”

Uma das promessas do Pacto da Redenção é o fato de o Libertador divinohumano receber as palavras libertadoras de Deus para poder transmiti-las aos de Sião. É a respeito dessas mesmas palavras que Jesus disse: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. E ainda: “Se conhecerdes o Filho verdadeiramente sereis livres” (cf Jo 8.32, 34). Jesus Cristo, o Libertador, recebeu as palavras de Cristo pela ação do Espírito, e as transmitiu ao povo de Sião, para onde ele veio. A procedência das palavras do Libertador é divina. Por essa razão, Jesus disse: “As palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras” (Jo 14.10), ou ainda de uma maneira bem mais explícita ele disse: “Porque eu não tenho falado por mim mesmo, mas o Pai que me enviou, esse me tem prescrito o que dizer e o que anunciar” (Jo 12.49). Todas as palavras salvadoras de Jesus tiveram não somente a procedência divina, mas elas todas foram “prescritas” pelo Pai. Yahweh colocou na boca do Libertador as palavras libertadoras que ele deveria dizer aos de Sião. 204. Sobre a ação do Espírito do Senhor no Messias consulte o livro deste mesmo autor, As duas Naturezas do Redentor (São Paulo: Cultura Cristã, 2004), 81-85; 470-479.

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f. O texto afirma que as palavras de Yahweh permanecerão para sempre em Sião por causa do pacto “e as minhas palavras, que pus na tua boca, não se apartarão dela, nem da de teus filhos, nem da dos filhos de teus filhos, não se apartarão desde agora e para todo o sempre, diz o Senhor.”

Há duas promessas contidas nessa parte do texto: a primeira, que Deus poria as palavras na boca do Libertador, já foi cumprida no Libertador, e tem a ver com o pacto da Redenção feito entre o Pai e o Filho feito na eternidade; a segunda, de que essa palavra não se apartaria dos filhos de Sião, está sendo cumprida, e tem a ver com o pacto da graça estabelecido com o seu povo, que é o pacto da Redenção sendo executado na história. Em outras palavras, essa promessa de Deus é “para Igreja; e, assim, é uma promessa de continuação e perpetuidade da Igreja no mundo até o fim dos séculos”.205 As palavras do Libertador de Sião, que lhe foram dadas pelo Pai, haveriam de permanecer ad eternum na vida do povo de Deus. Elas se internalizariam na vida deles para sempre, de modo que eles nunca se apartariam delas, nem elas se apartariam deles. As palavras de Deus que o Libertador transmitiu são as que alimentam o povo durante a sua peregrinação neste mundo. Essa promessa está sendo maravilhosamente cumprida na vida do Israel de Deus, que tem preservado e proclamado as verdades de Jesus Cristo através da ação do Espírito Santo neles. Essas palavras são palavras de vida e têm encontrado eco no coração dos crentes a ponto deles serem transformados e santificados por elas (Jo 17.17). Esse é o resultado final do pacto de Yahweh com o seu povo Sião. Eles seriam os beneficiários finais do pacto feito entre o Pai e o Filho.206 “O próprio concerto [pacto] promete que sempre haverá um restante fiel para preservar e transmitir a mensagem da graça de Deus. O Espírito do Senhor operará no espírito do povo de Israel na preservação e na transmissão do amor e da graça do senhor, desde agora e para todo sempre.”207

C. DE QUE O LIBERTADOR NOS LIVRA? Há várias coisas de que o Libertador nos livra. Não é tarefa muito difícil mencioná-las e argumentar resumidamente sobre elas.

205. Matthew Henry, An Exposition of the Old and New Testament, vol. V (Londres: James Nisbet and Co., 1856), 349. 206. Para mais informações desse Pacto entre o Pai e o Filho, chamado Pacto da Redenção ver o meu livro As Duas Naturezas do Redentor (São Paulo: Cultura Cristã, 2004), 51-98. 207. A. R. Crabtree, A Profecia de Isaías, vol II (Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1967), 310.

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1. LIBERTAÇÃO DO IMPÉRIO DE TREVAS Colossenses 1.13, 14 - “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor, no qual temos a redenção, a remissão (a)polu/trwsin = perdão) dos pecados.”

Esses versos mostram que a libertação operada pela divindade é absolutamente semelhante à redenção operada por ela. Portanto, não há como distinguir uma obra da outra. Ambas, a redenção e a libertação, referem-se à mesma coisa, e o resultado é que os pecadores são remidos, recebendo o perdão de seus pecados. Por causa de nossos pecados em Adão, Deus colocou todos os homens sob a dominação de trevas. Essa é uma imposição penal de Deus e todos os homens permanecem sob essa dominação impotentemente, até que sejam tirados de sob ela. O texto fala que Deus “nos libertou do império das trevas”. Inadvertidamente, alguns escritores falam de “Satanás exercendo sua jurisdição usurpada sobre corações, vidas, e atividades humanas,”208 da qual Deus nos liberta. Pessoalmente não creio que Satanás tenha assumido uma jurisdição sobre os homens usurpando o que era de Deus. Creio que Satanás é o instrumento de Deus para o exercício do seu juízo parcial sobre os homens. Parte desse juízo é colocá-los sob escuridão espiritual, e ninguém melhor para fazer isso, nesta presente época, do que o Príncipe das trevas. Os homens, portanto, são colocados sob trevas (sob o domínio de Satanás) como produto da administração divina sobre eles. Quando Deus resolve dar um outro destino a alguns deles, ele os arranca dessa dominação, que ele próprio providenciou, e os transporta para uma outra esfera de domínio, que é o reino de Jesus Cristo. Em ambos os casos, Deus está no controle, mas os instrumentos de domínio usados são pessoas diferentes e domínios de qualidades morais opostas. A morte de Cristo pôs um fim no domínio de Satanás sobre aqueles que vêm a se tornar seu povo, porque esse é o modus operandi de Deus. Paulo diz que os homens são cativos do diabo, cumprindo a sua vontade (2Tm 2.26), mas a morte do Libertador rompe os grilhões que amarram o pecador ao diabo e faz com que o pecador seja transferido de dominação. O texto citado acima mostra que o cativeiro do maligno é chamado de “império”, mas Deus desfaz esse cativeiro, transportando-nos para o reino de amor do seu Filho. Na verdade, Jesus Cristo é o agente divino da libertação dada aos pecadores, que, como conseqüência, entram no reino da luz e da verdade. Essa libertação, portanto, tem a ver com aquele que é instrumento de Deus no seu juízo parcial sobre os ímpios. Somente os que pertencem ao seu povo é que são libertos por Jesus Cristo. Os demais permanecerão na escravidão de trevas, sob 208. Veja William Hendriksen, Philippians, Colossians and Philemon (Grand Rapids: Baker, 1979), 63. É verdade que Satanás sempre quis usurpar o domínio deste mundo, e isto está patente em algumas passagens bíblicas. Todavia, como matéria de fato, o domínio de trevas que ele mantém sobre os homens é parte da administração divina sobre eles, da qual ele é apenas um servo.

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Satanás, até que o juízo final venha sobre eles. Então, as trevas serão totais e o próprio príncipe das trevas receberá também o seu castigo. Os remidos, entretanto, serão, então, plenamente libertos de qualquer tipo de ligação com o príncipe das trevas. Serão até libertos da tentação que sobre eles ainda permanece. Todavia, não podemos nos esquecer de que, aqui e agora, já somos libertados do império de trevas, embora não vivamos ainda na plenitude da luz.

2. LIBERTAÇÃO DO PECADO Jesus Cristo é o Libertador de todas as coisas relacionadas ao pecado. É importante relembrar ao leitor que a libertação operada pelo Libertador tem a ver especialmente com o aspecto decorrente da ira divina. Deus encerrou todos os homens sob essa escravidão, a fim de ser glorificado na libertação deles. É curioso que o Libertador nos liberta daquilo que o próprio Deus nos encerrou. Deus nos liberta de si mesmo. A sua graça gloriosa nos liberta da sua própria justiça! Isso é prova do amor de Deus que vem ao encontro de nossas extremas necessidades. Por essa razão, João registra o ensino do próprio Jesus sobre essa matéria em Apocalipse. Então, após falar da libertação de Jesus, ele prorrompe em louvores ao Libertador: Apocalipse 1.5, 6 – “Àquele que nos ama, e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados... [seja] a glória e o domínio pelos séculos dos séculos.”

Por causa da morte de Cristo, somos livres do pecado, e essa libertação pode ser vista de pelo menos três formas:

a. Ele é o Libertador da pena do pecado A morte do Libertador faz com que aqueles por quem ele morreu sejam livres pessoalmente da penalidade que eles merecem. Deus não retira a penalidade dos pecados, mas a transfere daqueles que pessoalmente são pecadores para Aquele que pessoalmente é santo. O salmista diz que “Deus não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos retribui consoante as nossas iniqüidades” (Sl 103). Por quê? Porque Deus já tratou dos nossos pecados com Jesus Cristo. Ele nos libertou pessoalmente de sermos punidos pelos nossos pecados assumindo a nossa pena. Foi nesse sentido que houve o pagamento “do justo pelos injustos, a fim de que fôssemos feitos justiça de Deus” (1Co 5.21). Deus não se nega a punir (porque ele se negaria a si mesmo se não exercesse justiça), mas ele se nega a punir os próprios pecadores pessoalmente por quem Cristo morreu e, assim, Cristo nos liberta da penalidade do pecado. Isso é mostra do amor de Deus, que enviou um Libertador para nos livrar de nossas penalidades. O texto de Isaías 53 é a forma mais clara de ver como “o castigo que nos traz a

(cf. Pv???????????) 206

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paz estava sobre ele, e por suas pisaduras fomos sarados”. Porque Cristo pagou a nossa pena, somos libertos da dívida de pagamento. A pena de nossos pecados foi paga, mas outro pagou a nossa conta. Por isso somos colocados na posição de justificados, isto é, daqueles que estão quites com a justiça.

b. Ele é o Libertador do poder do pecado O Libertador veio a Sião (vindo de Sião e por causa de Sião) para tratar da libertação das amarras do pecado. Por causa do seu desgosto com a rebeldia do homem em Adão e também por causa dos pecados voluntários de todos eles, Deus mantém os pecadores sob o poder do pecado, de modo que a Escritura afirma que o homem se torna (ou é nascido) escravo do pecado. João 8.34-36 – “... e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará... Todo o que comete pecado é escravo do pecado... Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.”

Ainda que tenhamos sido salvos da penalidade do pecado, porque Cristo nos “livra da ira vindoura”, essa obra foi feita historicamente, na cruz. Enquanto ela não for aplicada ao coração do seu povo, ele permanecerá sob a dominação do pecado. Enquanto a luz não entrar neles pela ação regeneradora do Espírito Santo, eles não conseguirão não pecar. Sob eles está a verdade da frase de Agostinho: non posse non peccare. Eles não possuem força para não pecar. Todavia, a Escritura afirma que Jesus Cristo veio para ser o Libertador dessas amarras do pecado, e essa libertação é operada de um modo mediato por Jesus. Ele usa a sua Palavra para trazer essa libertação da dominação do pecado. A sua Palavra, que é a verdade de Deus, é o instrumento poderoso que penetra o coração do homem e o faz livre dos seus vícios. Essa libertação trazida por Cristo é uma libertação verdadeira. Ela não falha no seu propósito. Quando a redenção de Cristo acontece, os homens são tornados livres das cordas do pecado (cf. Pv___ ), e, então, eles podem dizer sim a Deus, obedecendo-o (coisa impossível antes da libertação). Agora, sendo verdadeiramente livres, eles possuem o poder de não pecar, sendo vitoriosos sobre as próprias tentações. Sobre eles agora vigora a outra frase de Agostinho: posse non peccare. Após a libertação operada pela verdade por Cristo, os ainda-pecadores podem dizer não aos desejos de sua natureza ainda pecaminosa, mas à qual não mais são escravos. É esse também o ensino de Paulo em sua Carta aos Romanos: Romanos 6.17, 18 – “Mas graças a Deus porque, outrora escravos do pecado, contudo viestes a obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entregues; e, uma vez libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça.”

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Então, após constatar a fraqueza que ainda existia nos pecadores (pois a obra de libertação não foi plenamente efetivada nos crentes), ele os exorta a tomarem posse da retidão divina, a fim de que não venham a colher frutos de que poderiam se envergonhar novamente (como havia acontecido no passado; cf. v. 21), dizendo: “Assim como oferecestes os vossos membros para a escravidão da impureza, e da maldade para a maldade [isso no tempo em que eles eram escravos do pecado], assim oferecei agora os vossos membros para servirem a justiça para a santificação [isso depois de conhecerem a verdade libertadora do pecado]” (cf. v. 19). Então, ele conclui: “Agora, porém, libertados do pecado, transformados em servos de Deus, tendes o vosso fruto para a santificação, e por fim a vida eterna.” (v. 22).

c. Ele é o Libertador da presença do pecado Jesus Cristo é o agente Libertador do domínio do pecado. Todavia, a libertação plena somente se dará quando ele nos libertar da presença do pecado. Esse tipo de libertação final se dará no completamento de nossa redenção. Na sua segunda vinda, os nossos corpos (ainda sob a maldição divina por causa do pecado) ainda estão em corrupção (seja os que tiverem vivos, ou os que estiverem sepultados), e Cristo afastará a totalidade de nosso ser da presença do pecado. Àquela altura ele nos separará plenamente não somente do domínio do pecado, mas de todos os efeitos maléficos dele. Seremos colocados num ambiente de plena santidade quando ele renovar os novos céus e a nova terra. Ainda que remidos agora, todavia estamos na presença do pecado, possuindo ainda resquícios da velha inclinação tendo ainda desejos pecaminosos. Convivemos com o pecado e com o mundo sob maldição divina, mas, na volta de Jesus, todo o seu povo será liberto da presença de tudo o que tem relação com o pecado. Jesus Cristo nos levará de maneira definitiva para “o seu reino e glória”, para um lugar onde não entram as coisas que ora fazem parte deste mundo pecaminoso. Por essa razão, a Escritura diz: “Quanto, porém, aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos assassinos, aos impuros, aos feiticeiros, aos idólatras e a todos os mentirosos, a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte” (Ap 21.8).

Isto significa que não mais viveremos com gente misturada com o pecado. Seremos livres de toda manifestação pecaminosa hoje existente no mundo. E ainda mais: “Nunca mais haverá qualquer maldição” (Ap 22.3). Deus nos levará, por causa da obra de Cristo, para um lugar onde a maldição já não existirá. Ser liberto da presença do pecado é ser livre da maldição divina. Seremos colocados num ambiente de plena santidade, onde “contemplaremos a sua face” (Ap 22.4), e estaremos para sempre diante Daquele que está assentado no trono e do Cordeiro. Isso é glória! Isso é libertação a presença do pecado!

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3. LIBERTAÇÃO DESTE MUNDO PERVERSO Análise de texto Gálatas 1.3, 4 – “Graça a vós outros e paz da parte de Deus nosso Pai, e do [nosso] Senhor Jesus Cristo, o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai.”

Jesus Cristo é o libertador deste mundo perverso. A expressão “o qual”, se refere à pessoa do Libertador.

a. A morte do Libertador é para nos libertar deste mundo perverso “o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso”

A expressão grega traduzida na versão Revista e Atualizada como “desarraigar” pode perfeitamente ser traduzida como “libertar”.

(1) Qual o sentido de “mundo perverso”? “A libertação de que Paulo nos fala não é libertação do mundo material, mas da malignidade que o domina”.209 A palavra “mundo” usada por João não é ko/ smoj, mas ai/w=noj (“era”). Todavia, o sentido dessa palavra usada por Paulo tem a mesma conotação dada para a palavra cosmos usada por João em 17.15,210 por causa do qualificativo “ponerós” (perverso), e, portanto, essa expressão deve ser entendida como sistema de maldade que impera entre os homens e aos quais todos estão cativos. A palavra grega traduzida como “perverso” é ponhrou=, que também significa “mau”. É o mundo sob a dominação do Príncipe das treva. Todavia, a palavra ai/w=noj não aponta necessariamente para maldade ou perversidade, porque sozinha ela pode significar “era”, “período de tempo”, ou simplesmente “mundo” sem uma conotação moral específica. Contudo, porque ela vem acompanhada do adjetivo “perverso”, então podemos igualar essa palavra com o sentido que João dá à palavra ko/smoj em alguns de seus textos, como “não ameis o mundo (ko/smoj = sistema de maldade)”.

(2) Em que sentido somos libertos desse mundo perverso? Paulo afirma que somos libertos (desarraigados) desse mundo perverso. Todos os seres humanos, por uma questão da justiça divina, foram colocados sob a dominação do mal. Então, Deus nos livra da dominação da maldade que existe neste 209. F. F. Bruce, Commentary on Galatians (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), 76. 210. Ibid., 77.

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lugar que habitamos. A fim de nos salvar (libertar), ele tem que nos arrancar desse mundo perverso. Todavia, não devemos nos esquecer de que essa libertação do mundo não significa que somos arrancados do nosso habitat físico (que também é chamado “mundo”).

(3) Qual é o tempo dessa libertação deste mundo perverso? Na versão Revista e Atualizada, o texto diz: “que nos desarraigou deste mundo perverso”. Na verdade, ao invés de usara a palavra “deste”, poderíamos usar a palavra “presente (e)nestw=toj) mundo perverso”. Paulo estava tratando de uma realidade que vigorava no seu tempo. O cativeiro era palpável nos seus dias. Na verdade, essa realidade de aprisionamento espiritual sempre haverá de permear todas as gerações. A libertação “do presente mundo perverso” é uma realidade escatológica. Há um sentido em que essa escatologia já foi inaugurada, pois essa libertação já começou quando os crentes gálatas receberam essa libertação em virtude da obra de Cristo por eles. Todavia, a complementação dessa libertação só se dará na escatologia ainda por ser realizada, quando os cristãos forem plenamente libertos de toda a perversidade deste mundo, no tempo da ressurreição. Até que esse tempo chegue, os homens ainda estarão sujeitos à escravidão no que respeita à sua natureza física. Somente na ressurreição eles estarão plenamente livres das conseqüências do pecado neste “mundo perverso”. Esse mundo será perverso até que haja a renovação e venham novos céus e nova terra. Portanto, o tempo dessa libertação é aqui e agora, e também num tempo ainda por vir.

b. A morte do Libertador para nos libertar é voluntária “o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados.”

O verbo “entregar” aqui é acompanhado de um pronome reflexivo, e aponta para a voluntariedade do seu ato.211 A fim de haver libertação deste “mundo perverso” em virtude dos “nossos pecados”, houve a necessidade morte do Libertador. A fim de haver libertação, tinha de haver morte. Então, o Libertador se ofereceu a si mesmo, numa atitude voluntária, para executar essa libertação. Embora várias vezes seja dito que Jesus veio a “mandado do Pai”, é claro, nas Escrituras, que ele se ofereceu pelos nossos pecados. Falando da função sacerdotal de dar-se a si mesmo, o autor de Hebreus disse que Jesus Cristo “fez isso de uma vez por todas quando a si mesmo se ofereceu” (Hb 7.27b). 211. Veja Herman N. Ridderbos, The Epistle of Paul to the Churches of Galatia (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), 43.

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O Filho eterno de Deus, quando resolveu tomar o nosso lugar se unindo à nossa humanidade (unio personalis), ele o fez voluntariamente. Ele sabia que nenhum outro poderia fazer o que ele fez. Nenhuma pessoa unicamente humana e nenhuma pessoa unicamente divina poderia se oferecer. A voluntariedade do Libertador está condicionada ao fato dele assumir a nossa humanidade, possuindo as duas naturezas. Somente assim ele (o Filho encarnado) pode, de maneira voluntária, assumir os nossos pecados para nos libertar deste mundo perverso.

c. A morte do Libertador para a nossa libertação é decreto do Pai “... segundo a vontade de nosso Deus e Pai.”

A libertação deste “mundo perverso” operada por Jesus Cristo em sua obra expiatória voluntária foi feita para cumprir um decreto de Deus Pai. A palavra “vontade”, aqui, deve ser entendida não como um preceito, mas como um decreto.212 O que Jesus Cristo fez foi o cumprimento histórico de um decreto eterno estabelecido pela Divindade na eternidade. A unio personalis do Filho foi uma realização histórica para cumprir uma vontade determinada de antemão. Ele não se ofereceu voluntariamente para obedecer a uma norma (ou preceito) estabelecida por Deus, mas para cumprir um desígnio previamente estabelecido.213

4. LIBERTAÇÃO DA LEI A lei que Deus estabeleceu para que os homens a seguissem, segundo o entendimento de Paulo, “é santa; e o mandamento, santo e justo e bom” (Rm 7.12). Não é desse aspecto moral da lei que somos libertos. Nunca estaremos livres de obedecer a lei como norma de conduta para a nossa vida. A lei moral de Deus é eterna. Sempre haveremos de ter normas para o nosso comportamento, “porque sabemos que a lei é boa, se alguém dela se utiliza de modo legítimo, tendo em vista que não se promulga lei para quem é justo, mas para transgressores e rebeldes... para tudo o que se opõe à sã doutrina” (1Tm 1.8-10). Em que sentido, então, há libertação da Lei?

212. Para entender a distinção entre vontade como um preceito e vontade como um decreto, veja o meu livro, O Ser de Deus e Seus Atributos, 2ª. edição (São Paulo: Cultura Cristã, 2002), 372-383. 213. Ridderbos pensa de modo diferente e diz: “O que é pretendido por vontade (qe/lhma) não é o conselho de Deus, mas a vontade que emana dele: portanto, ordem ou comissão. Essa vontade se tornou conhecida em Cristo e foi realizada por ele em sua obra redentora.” (Herman N. Ridderbos, The Epistle of Paul to the Churches of Galatia [Grand Rapids: Eerdmans, 1965], 44). A palavra “ordem” ou “mandamento”, segundo o entendimento de Ridderbos, não faz muito sentido, porque o preceito (ou mandamento) pode ser ou não realizado, enquanto o decreto tem necessariamente de ser cumprido, e essa obra de Cristo era absolutamente necessária para a libertação de pecadores. É minha opinião pessoal que a idéia de “vontade” nesse texto se encaixa melhor como decreto do que de preceito.

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a. Libertação da maldição da lei Análise de Texto Gálatas 3.10, 13 – “Todos quantos, pois, são das obras da lei, estão debaixo de maldição; porque está escrito: ‘Maldito todo aquele que não permanece em todas as cousas escritas no livro da lei, para praticá-las’... Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar, porque está escrito: ‘Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro’; para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios em Jesus Cristo, a fim de que recebêssemos o Espírito prometido.”

Observe que o ensino de Paulo não era que a lei é “uma maldição”, porque o mesmo Paulo disse que ela é “santa, e o mandamento é puro, justo e bom” (Rm 7.12), e foi o próprio Deus que a instituiu. A lei não é maldição, mas ela traz maldição sobre aquele que não a obedecem.

(1) Veja que todos os homens estão debaixo da maldição da Lei Todos os seres humanos estão debaixo da maldição da lei porque todos são transgressores dela. Não há um só homem sequer “que permanece em todas as cousas escritas no livro da lei, para praticá-las” (v. 10). Se eles tropeçam, ainda que seja em um só desses mandamentos, diz a Escritura, eles se tornam culpados da transgressão de toda lei. Portanto, os transgressores da lei recebem a maldição, que é a morte, pois todo maldito deveria ser pendurado no madeiro. Esse era o tipo de punição da lei. A morte é uma imposição penal divina para os que são transgressores da lei.

(2) Veja que a libertação dos homens não pode vir pela própria Lei Embora Deus não tenha retirado da Escritura a idéia de que a vida eterna vem pela obediência a lei (“aquele que observar os seus preceitos, por eles viverá”), todavia, a lei não pode remir, não por causa de uma suposta inadequacidade, mas por causa impotência do homem em cumpri-la. Originalmente a lei foi dada ao homem para que, pela sua obediência, ele obtivesse vida eterna, mas, após a queda, a obediência plena a todos os seus preceitos se tornou uma impossibilidade, porque o que caracteriza o homem é o non posse non peccare. Perceba que a lei em si e de si mesma não pode dar vida. Para que ela desse vida aos homens, era necessária a obediência por parte deles. Pela incapacidade do homem obedecer, a lei se tornou enferma pelo nosso pecado. Embora ela continue a ser “santa, justa e boa”, ela não pode conceder libertação ao homem em virtude da desobediência dele. Por essa razão, nenhum homem pode confiar na lei, não por causa dela, mas por causa do próprio homem. A Lei se torna impotente em fazer alguma coisa em

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favor do homem por causa do status quo. Quando Paulo fala de “todos quantos, pois, são das obras da lei”, ele “sugere que a referência aqui é àqueles que confiam na lei, ou em seu desempenho da lei, para serem aceitos perante Deus”.214 Portanto, nunca pense que a lei pode libertá-lo. Ao contrário, por causa da sua transgressão, ela (que foi dada originalmente para conceder vida eterna) acabou trazendo maldição.

(3) Veja que Cristo veio para a libertação da maldição da Lei A função de Jesus Cristo ao vir ao mundo foi a de nos libertar dessa maldição, que nos foi imposta pelo Deus Legislador por causa dos nossos pecados. A maneira de ele nos libertar dessa maldição foi assumir o nosso lugar e tornar-se amaldiçoado de Deus para que fôssemos abençoados. Por essa razão, ele foi pendurado no madeiro, sendo maldito de Deus, para que fôssemos benditos de Deus. Que Cristo libertou-nos da maldição da lei é inferido de Deuteronômio 21.23, que diz: “o que for pendurado no madeiro é maldito de Deus”. “Tem sido corretamente observado que a referência a pendurar, aqui, não é à morte de cruz, algo desconhecido do antigo Israel. A referência é, antes, ao pendurar das pessoas executadas na árvore da vergonha. Tal pessoa morta por suspensão era, então, chamada ‘maldita de Deus’. É isso que o apóstolo está aplicando a Cristo.”215 Cristo veio especificamente a este mundo para ser pendurado no madeiro da vergonha, e, por essa razão, ele é chamado de maldito.

(4) Veja que a libertação trazida por Cristo vem pela substituição Deus não liberta ninguém simplesmente por ser amor. Se a libertação viesse somente por causa do amor, Deus negaria a si mesmo, pois a sua justiça seria desprezada, mas a libertação trazida por Cristo é a maior prova de que misericórdia e justiça podem vir juntas, embora não na mesma pessoa. Para usar de misericórdia conosco, Deus usou de justiça com aquele que tomou o nosso lugar. A libertação de uns exige o pagamento substitutivo feito por outro. Por isso, o texto diz que “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar” (v. 13a). “A morte é a experiência em que a repulsa final do mal por parte de Deus é decisivamente expressa, e Cristo morreu. Em sua morte, tudo o que o nosso pecado fez foi tornado seu, exceto a nossa pecaminosidade.”216 Não haveria a possibilidade de libertação de pecadores sem a substituição. Deus não poderia libertar ninguém sem que Alguém sofresse substitutivamente a punição. Todavia, a justiça de Deus não poderia deixar de ser feita. 214. F. F. Bruce. Commentary on Galatians (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), 157. 215. Herman N. Ridderbos. The Epistle of Paul to the Churches of Galatia (Grand Rapids: Eerdmans, 1965) 127, 28. 216. J. Denney, The Death of Christ, 160, citado por F.F. Bruce, Commentary on Galatians, 166.

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Ele resolveu libertar pecadores de serem pessoalmente punidos. Portanto, a única maneira de combinar a sua justiça com a sua misericórdia bondosa foi enviar seu Filho para nos substituir. O único recurso divino para ser misericordioso sem negar-se a si mesmo foi a provisão da substituição.

(5) Veja o propósito de Cristo ao nos libertar da maldição da lei O propósito de Cristo ser maldito em nosso lugar é duplo: (a) “Para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Jesus Cristo” Cristo foi pendurado no madeiro em nosso lugar para que muitos, e entre eles muitos gentios, recebessem a promessa antiga de Deus de que em Abraão seriam benditas todas as famílias da terra. Para que a bênção de Abraão pudesse ser sua e minha, Jesus foi maldito. Essa bênção de Abraão tem a ver com a justiça da fé (em contraposição à justiça pelas obras da lei). Cristo Jesus foi amaldiçoado para que pudéssemos ser justificados pela fé, e, conseqüentemente, recebêssemos paz com Deus (cf. Rm 5.1). (b) “A fim de que recebêssemos pela fé o Espírito prometido” Cristo foi pendurado no madeiro, recebendo a maldição em nosso lugar, para que o Espírito Santo pudesse ser dado aos crentes. “O dom do Espírito é agora designado [por Paulo] como o conteúdo da promessa de Abraão. Ele é a garantia ou o penhor da redenção perfeita que foi prometida a Abraão.”217 Esse dom divino é recebido pela fé, que é, também, em última instância, um resultado da obra do Espírito. “Ao mesmo tempo esta fé é o meio pelo qual, e o meio em que, Deus concede os dons do Espírito aos redimidos por Cristo.”218 Sem o mérito do sacrifício de Cristo no madeiro ninguém poderia receber o Espírito, e ninguém poderia crer em Deus. Portanto, quando você crê em Jesus, você recebe o Espírito Santo Consolador, Santificador e Intercessor, como recompensa do que Cristo fez. Da maldição de um vem bênção para o outro. Porque Cristo foi amaldiçoado, ele libertou você da maldição dando-lhe o Espírito Santificador, que é o que limpa o nosso coração, circuncidando-o!

b. Libertação da condenação que a lei traz Romanos 6.14 – Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e, sim, da graça.” 217. Herman N. Ridderbos. The Epistle of Paul to the Churches of Galatia (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), 128. 218. Ridderbos, Ibid., 128.

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Esse ponto é uma conseqüência necessária do ponto anterior, no qual vimos que somos libertos por Cristo da maldição da lei. Temos que ter em mente que o pecado, em si mesmo, não nos condena. É por causa do pecado que a lei divina nos condena. A condenação tem a ver com a lei, que é a imposição legal de Deus sobre nós. Todos os homens estão debaixo da lei. Não há um só homem que não esteja sob a maldição condenatória da lei. A dominação do pecado sobre nós tem a ver com a penalidade que está colocada sobre nós, da qual não podemos escapar por nós mesmos. Quando Cristo nos liberta, ele nos livra da condenação que a lei traz. Gálatas 3.19 – “Qual é a razão de ser da lei? Foi adicionada por causa das transgressões, até que viesse o descendente a quem se fez a promessa...”

Na economia divina da salvação, a lei não foi dada para tornar a salvação disponível. Ela não tem esse propósito. Ao contrário, a lei foi dada aos homens em virtude das transgressões deles. Ela não faria sentido se todos homens fossem justos. A lei só serve para um mundo de transgressão, especialmente o seu aspecto condenatório. Paulo ainda diz que “sobreveio a lei para que avultasse a ofensa” (Rm 5.20). Ela torna o pecado e a culpa ainda maiores, pois diz a Escritura que a lei também foi dada para tornar o pecado ainda mais evidente, pois por ela “vem o pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.20). Logo, quando a lei vem, ela nos torna ainda mais culpáveis e ainda mais merecedores da condenação que ela traz. No entanto, Cristo veio para nos libertar dessa situação em que a lei nos coloca. Por essa razão, Paulo diz que não mais estamos debaixo da lei (que nos põe debaixo da dominação do pecado), mas debaixo de uma ação graciosa de Deus que nos liberta da condenação que a lei nos traz.

c. Libertação das ordenanças cerimoniais da lei As ordenanças da lei e as cerimônias dela foram acrescentadas por causa da transgressão da lei moral já no Éden. A lei cerimonial se constituía de ordenanças, cerimônias e sacrifícios no sistema templário que apontava para uma redenção futura que haveria de vir através do Libertador, Jesus Cristo. Como uma espécie de pedagogo, a lei funcionava apontando para as coisas futuras, para Cristo. Para isso, Deus, ao dar a sua lei, usou figuras, símbolos e cerimônias que indicavam e ensinavam ao povo as coisas que haveriam de acontecer, e era necessário que o povo obedecesse a essas prescrições e cerimônias para que pudesse desfrutar retroativamente daquilo que se daria historicamente no futuro. Havia outras cerimônias estabelecidas por Deus no Antigo Testamento, das quais fomos libertos por Jesus Cristo. Veja que as ordenanças do fermento e do

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cordeiro para os nossos antigos e a abolição delas no texto de Paulo (Êx 34.25, 26 e 1Co 5.7), em virtude das coisas superiores terem vindo. Após a morte de Cristo, todo o sistema cerimonial que apontava para ele foi abolido. Os cristãos não mais precisam observar esses ritos da lei. Veja a clareza com que Paulo trata dessas cerimônias antigas: Colossenses 2.14-17 – “Tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz.... Ninguém, pois vos julgue por causa da comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das cousas que haviam de vir...”

Não estamos mais sob o peso de praticar essas cerimônias, pois elas são um fardo (porque são desnecessárias). Além disso, Paulo fala de ordenanças e cerimônias que são acrescidas pelos homens, e que eram parte de costumes judaicos, dos quais estamos livres por causa do fato de estarmos em Cristo. Veja o raciocínio do apóstolo: Colossenses 2.20, 21 – “Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas cousas com o uso, se destroem.”

Foi nesse sentido que Jesus Cristo veio nos libertar da lei. Não precisamos mais estar sujeitos a essas cerimônias, que eram significativas para os que viveram no tempo da antiga administração do pacto. Agora, libertos dessas cerimônias, recebemos direta e historicamente de Cristo todos os benefícios de seu sacrifício. Ele nos libertou das ordenanças da lei, de modo que não podemos precisamos nem devemos praticá-las. A prática delas seria um retrocesso em relação à historicidade do plano redentor de Deus. A observância delas hoje seria uma desobediência a Deus, pois Deus “aboliu na sua [de Cristo] carne a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que nos dois [judeus e gentios] criasse em si mesmo um novo homem...” (Ef 2.15). As cerimônias e ordenanças do Antigo Testamento eram sombras de uma realidade superior. Por isso, quando o superior vem, o inferior é deixado de lado. Esse é também o raciocínio do escritor aos Hebreus: “Ora, visto que a lei tem sombra dos bens vindouros não a imagem real das cousas, nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios que, ano após ano, perpetuamente, eles oferecem” (Hb 10.1). Não há mais necessidade das ordenanças que foram necessárias aos antigos na fé. Delas somos livres agora. As ordenanças e cerimônias do Antigo Testamento foram abolidas como um dever para os cristãos no novo pacto, em virtude da obra ter sido feita de uma vez

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por todas pelo Libertador. Deus estabeleceu historicamente a nova administração do pacto da graça (que no Novo Testamento é chamado de novo pacto ou nova aliança), que ele havia já prometido no Antigo Testamento, que consiste de cousas superiores, e quer que sejamos participantes dele. São bênçãos não externas, mas internalizadas pela graça libertadora de Jesus Cristo (cf. Hb 8.8-10). Por essa razão, Paulo, escrevendo aos crentes com tendência judaizante que exigiam a prática do rito antigo da circuncisão, lhes diz: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes, e não vos submetais de novo a jugo de escravidão” (Gl 5.1; cf. vs. 13 e 18). A insistência de Paulo é para que eles se portassem como libertos de Cristo com relação às ordenanças e cerimônias da lei e se firmassem unicamente naquilo que é de Cristo, pois agora eles eram “guiados pelo Espírito, não estando mais sob a lei” (Gl 5.18). Contudo, é importante que se observe que o cristão não está livre de obedecer aos preceitos morais da lei. Embora eles já sejam justificados (sem débito com a lei), eles ainda manifestam seus desejos pecaminosos. Nesse caso, é necessário que eles tenham ainda preceitos para guiá-los nesta caminhada até que a libertação completa de Cristo para eles seja manifesta na sua vinda. É necessária uma lei externa que os ajude as distinguir as obras da carne do fruto do Espírito.

d. Libertação da lei como método de se obter vida eterna e salvação A libertação dos pecadores hoje tem a ver primeiramente com o modo de se obter vida. A vida eterna é a primeira obra de Deus que acontece no pecador que ele vai remir. Desde o princípio do mundo, quando fez Adão, a vida eterna era conseguida pela obediência. Depois da queda essa lei da obediência para a vida não foi retirada. Todavia, Deus nos libertou da obrigação de obedecer a lei para possuirmos fica eterna. Essa obtenção da vida é tarefa de Cristo que, obedecendo, livrou-nos do peso de ter que obedecer para ter vida. No entanto, havia ainda nos tempos apostólicos pessoas que queriam ter a lei como método de obter vida e justificação. Os judaizantes queriam, por exemplo, que todos gentios que se convertessem entrassem na prática do cumprimento da lei para que fossem salvos ou para receberem a justificação (cf. Gl 2.16, 19; Gl 3.23-25). A obediência à lei era um método de salvação no qual eles ainda insistiam. Paulo se opôs de maneira inequívoca a essa maneira de raciocinar. Ele disse: “para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes, e não vos submetais de novo a jugo de escravidão” (Gl 5.1). Perceba que Paulo está falando daqueles que exigiam que os novos crentes gentílicos se circuncidassem. Então Paulo argumenta mais ou menos assim: “Se vocês praticam a circuncisão como uma exigência para a salvação, o que Cristo fez não vale nada” (cf. Gl 5.2). Paulo queria que eles entendessem que a prática da circuncisão os obrigava a guardar a todos os outros preceitos da lei (Gl 5.3).

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Isso era inviável para eles, e o fardo deles se tornava impossível de ser carregado, porque ninguém tem condições (em virtude de sua natureza pecaminosa) de guardar todos os princípios da lei. Então, Paulo lhes mostra que eles estavam se mantendo num método de justificação através da guarda da lei, e que ele queria libertálos dessa escravidão. Afinal de contas, Cristo havia vindo para libertá-los desse peso. Por isso, o raciocínio de Paulo é: Gálatas 5.4 – “De Cristo vos desligastes vós que procurais justificarvos na lei, da graça decaístes.”

Perceba que Paulo não está falando do “cair da graça” soteriologicamente, mas está falando de abandonar a graça como um método de Deus de remir o pecador. “Cair da graça”, ou “desligar-se de Cristo”, aqui significa o mesmo que voltar à lei como norma para a justificação. Nesse verso há dois princípios que se excluem: Cristo e a lei como meios de redenção. Quem opta pela lei não pode ficar em Cristo e nem depender de sua graça, porque a justificação pelas obras da lei é contrária (além de ser uma impossibilidade!) à obra de Cristo, que nos liberta, nesse sentido, da lei. Jesus Cristo nos livra da obrigação de obter vida e justificação através das obras da lei. Ele é quem nos dá a vida por sua obediência ativa e foi ele quem fez as obras para que pudéssemos ser justificados. Portanto, todo aquele que se inclina para a justificação pela lei cai da graça e se separa de Cristo! Por isso Paulo diz: “Agora, porém, libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e não na caducidade da letra” (Rm 7.6).

5. LIBERTAÇÃO DA IRA DIVINA 1 Tessalonicenses 1.10 – “E para aguardardes dos céus o seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, Jesus, que nos livra (ruo/menon) da ira vindoura” (cf. Rm 5.9).

a. O efeito de libertação da ira vindoura está no futuro Jesus Cristo é o Libertador (ruo/menoj), que nos livra da ira vindoura. Esse é o fato extraordinário da obra libertadora de Jesus Cristo: ele nos livra do próprio Deus e da sua própria ira, pois a vinda de Jesus Cristo será, ao mesmo tempo, uma vinda de libertação e uma vinda de juízo. No final dos tempos, Aquele que está assentado no trono e o Cordeiro se manifestarão com a sua justiça. Nós, aqueles por quem Jesus Cristo morreu, haveremos de ser escondidos debaixo das asas de nosso Libertador, e ali ficaremos seguros e protegidos da manifestação da vingança divina. Os outros, os ímpios, que não tiveram os seus pecados expiados, tentarão fugir do juízo da Divindade, mas isso é uma impossibilidade, pois o juízo de Deus é inescapável!

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Essa vingança divina pode ser parcial ou total. Os juízos parciais de Deus têm acontecido no decorrer da história, quando ele usa até os elementos da natureza para manifestar o seu desgosto com o pecado dos homens, mas a manifestação final de sua ira se dará somente no dia de Cristo, e esse juízo é terríve! Nesse dia, ele livrará o seu povo dessa ira final.

b. A causa da libertação da ira vindoura está numa obra passada Paulo está escrevendo a crentes de sua geração que haviam sido idólatras. Agora, eles haviam sido transformados pela graça divina e serviam ao Deus vivo e verdadeiro (v. 9). A base da sua libertação dos tempos de escuridão idolátrica havia terminado, pois Jesus Cristo havia ressuscitado e havia vindo para libertá-los. Observe que o texto não diz que Jesus “libertará da ira vindoura”, mas que ele “liberta da ira vindoura”. O verbo está no tempo presente. Para dizermos isso de forma diferente, podemos dizer que ele nos liberta de um acontecimento futuro, que é a manifestação da ira final de Deus, mas que a base ou o fundamento dessa libertação é algo presente. Ela está vinculada à obra que Jesus Cristo fez na cruz. Portanto, os crentes de Tessalônica estavam sendo confortados pelo fato de Jesus ter garantido a libertação deles através da sua obra redentora. Ao mesmo tempo em que eles esperam a chegada Jesus, vindo dos céus para livrá-los da ira divina, eles estavam assegurados dessa libertação pelo que Cristo havia sido e feito historicamente por eles. Os crentes de Tessalônica estavam apenas aguardando a chegada de Jesus e a conseqüente libertação da ira.

c. O sentido de ira vindoura é a condenação final A doutrina da ira vindoura não é apreciada em alguns círculos cristãos porque ela descreve um aspecto da Divindade que parece ser, aos olhos de alguns, um defeito em Deus. Há até cristãos evangélicos que negam a doutrina da ira vindoura por ela lhes parecer altamente desagradável. Todavia, se cremos no céu, temos de crer no inferno, não simplesmente pelo uso da lógica, mas porque a Escritura ensina abundantemente sobre essa matéria. Ela fala mais no tempo do juízo do que no tempo da restauração. Ela adverte mais quanto à ira divina do que anuncia coisas do céu. Quando Jesus Cristo morreu por nós, ele garantiu para nós não somente a libertação do pecado, da morte, etc., mas também da punição final. A ira da Divindade será desviada de nós porque Jesus Cristo assumiu o nosso lugar. Não experimentaremos o inferno porque Jesus Cristo o experimentou intensivamente por nós quando estava malditamente pendurado no madeiro. A única maneira de escapar conscientemente da ira divina é correr para Jesus Cristo, o nosso Libertador. Somente nele encontramos refúgio no dia do mal, no dia de escuridão!

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6.LIBERTAÇÃO DOS INIMIGOS E DA OBRA MALIGNA Análise de Texto 2 Timóteo 4.17, 18 – “Mas o Senhor me assistiu e me revestiu de forças, para que, por meu intermédio, a pregação fosse plenamente cumprida, e todos os gentios a ouvissem; e fui libertado da boca do leão. O Senhor me livrará também de toda obra maligna, e me levará salvo para o seu reino celestial. A ele, glória pelos séculos dos séculos. Amém.”

Neste texto Paulo fala de uma libertação dupla que era produto da ação do Senhor Jesus em sua vida, em virtude do abandono dos homens (v. 16) nas suas lutas nesta vida por causa do seu ministério. Ninguém o havia assistido nas horas de necessidade. Como seu Libertador, ele foi abandonado e “ninguém foi a meu favor; antes, todos me abandonaram”. Então Paulo contrasta o abandono dos homens com a libertação trazida por Cristo.

a. Paulo fala da assistência fortalecedora do Senhor “Mas o Senhor me assistiu e me revestiu de forças...”

Durante a primeira vez em que esteve preso, Paulo havia experimentado duas coisas opostas: o abandono dos homens e a assistência divina do seu Redentor. Por essa assistência ele dá graças, dizendo: “Sou grato para com aquele que me fortaleceu, Cristo Jesus, nosso Senhor, que me considerou fiel, designando-me para o ministério” (1Tm 1.12). Em todas as circunstâncias adversas ele pode afirmar com clareza que “tudo posso naquele que fortalece” (Fp 4.13). Esse fortalecedor era o Senhor Jesus Cristo.

b. Paulo fala da finalidade desse fortalecimento “... para que, por meu intermédio, a pregação fosse plenamente cumprida, e todos gentios a ouvissem.”

Paulo não poderia fraquejar no seu ministério de proclamador do Evangelho. Por essa razão, ele precisou da assistência do seu Redentor. O fortalecimento de Jesus Cristo tinha um propósito na vida de Paulo – que ele pregasse o evangelho de maneira plena, que não houvesse nenhum impedimento e que as pessoas que fossem alvo da sua pregação a ouvissem. Paulo, a despeito de ser judeu e de haver pregado a judeus, teve a forte convicção de que os gentios eram o alvo da sua pregação. Ele queria que todos os gentios ouvissem a sua ação kerigmática. Paulo está pensando na evangelização mundial na sua época. A “pregação plenamente cumprida” tem a ver, certamente, com o anúncio a todas as nações gentílicas (já que a nação israelita já havia ouvido a pregação) para que o fim chegasse

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logo, conforme o ensino de Jesus Cristo. Paulo já havia pregado a algumas nações ao oriente da Palestina; agora, parece-nos ele queria ir também ao ocidente, à Europa. Por isso ele mencionou seu desejo de ir a Roma, Gália, Espanha (Rm 15.24, 28), e há quem pense que ele tenha estado na Inglaterra.219

c. Paulo fala da libertação passada dos inimigos “... e fui libertado da boca do leão.”

Aqui Paulo fala de uma libertação que já havia ocorrido na sua vida ministerial. Era uma libertação já experimentada. A libertação por parte de Cristo foi “da boca do leão”. O que isso significa? Quem é o leão? Não é fácil saber com exatidão a que Paulo se refere. Calvino não concorda com alguns que dizem que Paulo se refere ao Imperador Romano, Nero. Diz ele: “De minha parte, ao contrário, penso que ele faz uso dessa expressão para denotar perigo em geral.”220 De qualquer forma, foi um tempo em que Paulo sentiu-se liberto por Jesus Cristo de toda forma de perseguição, ou o tempo de sua absolvição de tribunal humano, não de uma pessoa específica ou mesmo de Satanás, a fim de que pudesse exercer com libertador o seu ministério de pregador.

d. Paulo fala da libertação futura da obra maligna “O Senhor me livrará também de toda obra maligna...”

Essa libertação tem a ver com alguma coisa que ainda estava para acontecer na vida de Paulo. O ministério de Paulo ainda deveria continuar, e sua certeza é de que Jesus Cristo continuaria a ser o seu Libertador. Essa era a sua doce esperança. A “obra maligna” de que ele fala certamente diz respeito a todo impedimento para a pregação do evangelho, e às conseqüentes perseguições, tudo encabeçado pelo Maligno. Calvino diz que Paulo “espera a mesma [libertação] para o futuro; não que viesse a escapar da morte, mas que ele não viria a ser derrotado por Satanás e não se afastaria do seu curso correto”.221 Há um aspecto moral que deve ser enfatizado no entendimento dessa expressão. É como se Paulo tivesse dito: “O Maligno não me causará nenhum dano moral, eu não serei manchado por qualquer ação ímpia, porque o Senhor me livrará de toda obra maligna”. Calvino disse que essa expressão, referindo-se a Paulo, deveria significar que o Senhor Jesus o preservaria puro e inculpável de toda ação ímpia; isto porque Calvino imediatamente acrescenta a expressão ‘para o seu reino celestial’, pelo qual ele quer dizer que essa somente é a verdadeira salvação.222 219. Cf. informação dada por Gordon H. Clark, The Pastoral Epistles (Jefferson, Maryland: The Trinity Foundation, 1983), 194. 220. John Calvin, Calvin´s Commentaries, vol. XXI (Grand Rapids: Baker Book House, 1979), 271. 221. Cf. Calvin´s Commentaries, vol. XXI (Grand Rapids: Baker Book House, 1979), 271. 222. Calvino, Ibid. 271.

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e. Paulo fala da finalidade dessa dupla libertação “... e me levará salvo para o seu reino celestial.”

Como dito acima, a libertação operada por Jesus Cristo tem a ver principalmente com a libertação da possibilidade de Paulo ser moralmente manchado por qualquer obra maligna. A finalidade dessa libertação dupla de Cristo é conduzir Paulo completamente limpo, santificado (portanto, salvo), para o seu reino celestial. Essa expressão paulina aponta para o fato de que ele cria piamente que, após a sua morte, ele haveria estar com Cristo no céu, o que, segundo ele, seria incomparavelmente melhor (Fp 1.23). No passado, o Libertador havia agido, livrando-o da “boca do leão”. Agora, ele menciona uma libertação futura que seria decisiva em sua vida: libertação da obra maligna, salvando-o de toda influência e contaminação da obra maligna. Isso é absolutamente necessário para a sua entrada final no reino celestial. De uma forma, feliz Hendriksen diz que “no passado, Paulo havia sido resgatado da morte. Agora, será resgatado por meio da morte. Em nenhum dos casos sua alma perece. Ele não pode ser separado jamais do amor de Deus em Cristo”.223 Ele haveria de morrer, provavelmente, por causa da perseguição, mas seria salvo completamente de todas as conseqüências da obra maligna. No reino celestial não entra impureza alguma, porque “carne e sangue” (leia-se “corrupção”) não podem herdar o reino de Deus” (1Co 15.50). Por isso, o Libertador interveio na vida de Paulo, e ainda faz isso na vida de todos quantos lhe pertencem, para que eles entrem no “reino celestial”.

f. Paulo fala da glorificação que devemos a Deus pela libertação “A ele, glória pelos séculos dos séculos. Amém.”

Então, numa atitude de adoração, Paulo expressa sua glorificação ao Senhor, que o Libertou. Essa é uma pequena doxologia, mas carregada de sincera gratidão e admiração! A glória é uma qualidade inerente a Deus, que nenhum homem pode penetrar, nem mesmo aumentar ou diminuir. Não é, todavia, dessa glória que Paulo fala. A glória da qual ele fala aqui é a que os homens atribuem a Cristo por causa do que ele é e do que ele faz. Ele conclama, parece-me, a todos a darem glória ao Libertador, que recebe a expressão cúltica do seu povo. Por isso, Paulo, após terminar a doxologia, diz: “Assim seja!”.

223. William Hendriksen, 1Y2 Timoteo – Tito (Grand Rapids: Subcomision Literatura Cristiana, de la Iglesia Cristiana Reformada, 1979), 369, 70.

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APLICAÇÃO A. USE FIRMEMENTE A LIBERDADE QUE O LIBERTADOR LHE DEU Gálatas 5.1 – “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais de novo a jugo de escravidão.”

Gálatas 5.1 é a última parte de um conjunto de versos que estabelece o contraste entre escravidão e liberdade, terminando o parágrafo de Paulo. A partir do verso 2, uma nova linha de raciocínio de Paulo começa. Portanto, dirigindo-se a seus leitores, Paulo diz: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou.”

Paulo nos escreveu para que desfrutássemos dessa liberdade. Temos que exercer essa liberdade, do contrário, ela é sem valor. Lembre-se de que Gálatas 4.31 fala dos filhos da mulher livre, “Sara”, e nós, como filhos dela, devemos exercer a prerrogativa que isso nos confere. Em Cristo, nascemos livres, porque a verdadeira liberdade está em Cristo, que é o descendente de Abraão e Isaque [Sara] (Gl 3.16), de quem nascemos. Até 4.31 Paulo trabalha com Hagar e Sara, através de quem somos livres da escravidão, representada por Hagar. Somente em 5.1 é que Cristo entra na história como aquele que garantiu a libertação a nós. Lenski diz que Cristo, aqui, não nos é apresentado como um parente, mas como o nosso grande Libertador espiritual. A forma aoristo do verbo libertar serve para indicar um fato histórico.224 Jesus Cristo realmente libertou seu povo, fazendo o que ninguém poderia fazer. Essa obra era possível somente através de um Libertador do caráter de Cristo. Portanto, parece-nos que a intenção de Paulo, ao terminar a sua argumentação em 5.1, é que os cristãos não percam a oportunidade de exercer a liberdade. “Permanecei, pois, firmes e não vos submetais de novo a jugo de escravidão.”

O que Paulo queria é que os cristãos não voltassem à pratica de velhos ritos, perdendo, assim, a liberdade que lhes havia sido adquirida. Eles não deveriam voltar às coisas que escravizam. Não volte atrás para a prática de coisas de que Cristo o libertou! Mesmo que essas coisas sejam de caráter religioso, se você está em Cristo, não volte à pratica daquilo que está ultrapassado por coisas superiores reveladas por Cristo. Fique firme na liberdade de Cristo sem voltar às velhas práticas, que são um retrocesso 224. R. C. H. Lenski. The Interpretation of St. Paul´s Epistles to the Galatians, Ephesians and Philippians (Minneapolis: Augsburg Publishing Company, 1961), 251.

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espiritual que Paulo chama de escravidão. Certamente, Paulo se referia, no caso dos Gálatas, a rituais da lei judaica (não necessariamente à revelação divina do Antigo Testamento) que apontavam para a redenção através da guarda de alguns preceitos. Se os cristãos receberam a liberdade de Cristo, eles não devem mais entrar pelo regime da escravidão, que significa a guarda de todos os preceitos da lei sem exceção (Gl 5.3), para obter a salvação, caindo, assim, do método divino, que é o da graça, e voltando para o método antigo e escravizador, que é o da justificação nas obras da lei (Gl 5.4). Siga firme o seu caminho na liberdade que o Libertador lhe concedeu. Não volte os olhos para trás. Siga para a frente e para o alto, para as coisas da liberdade que pertencem a Jesus Cristo. Não vacile no caminho da liberdade. Desfrute-a!

B. USE DA LIBERDADE DADA PELO LIBERTADOR PARA FAZER O QUE É SANTO Análise de Texto Gálatas 5.13 – “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade: porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor.”

1. VOCÊ FOI CHAMADO PARA EXERCER LIBERDADE “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade.”

Paulo está dando uma espécie de explicação de todo o texto anterior. Ele está elucidando aos gálatas sobre o que havia acontecido com eles, corrigindo não somente a teoria de liberdade que eles possuíam, mas também a prática dela. Os gálatas agora eram livres. Chamando-os de “vós, irmãos”, Paulo os contrasta com os judaizantes da Galácia, que queriam que eles voltassem à prática das cousas escravizadoras (v. 12). Paulo queria deixar claro aos gálatas que eles eram homens e mulheres libertos por Jesus Cristo e deveriam manter essa liberdade. Certamente, Paulo faz referência a um tempo passado, em que essa “chamada à liberdade” aconteceu. Era uma realidade acontecida e que irrevogavelmente “incluía a aceitação do chamado. Quando a chamada do evangelho gracioso ganhou os gálatas para a fé, foi para a liberdade que ela os ganhou. A chamada em si era uma libertação e introdução para a mais plena liberdade”.225 Esse chamamento para a liberdade é um fato consumado e inescapável. Os cristãos da Galácia estavam sendo relembrados por Paulo do que havia acontecido na vida deles, e, que os exorta a exercerem esse chamado para a liberdade de modo responsável. 225. R. C. H. Lenski. The Interpretation of St. Paul´s Epistles to the Galatians, Ephesians and Philippians (Minneapolis: Augsburg Publishing Company, 1961), 274.

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Não se esqueça de que você também foi chamado à liberdade e que você deve usá-la de modo responsável. Você também é notificado por Paulo de sua nova posição. Você não está mais sob a obrigação de ter que guardar todos os preceitos da lei para a sua redenção. Você está livre pela graça libertadora de Jesus Cristo. Todavia, sendo lembrado disso, você não deve dizer: “Estou livre para fazer ‘o que der da telha’”, desprezando os princípios básicos estabelecidos para viver a vida cristã neste mundo.

2. VOCÊ FOI CHAMADO PARA EXERCER UMA LIBERDADE CONDICIONADA “porém, não useis da liberdade para dar ocasião à carne.”

Ao mesmo tempo em que Paulo diz aos Gálatas que eles são chamados à liberdade, ele mostra aos Gálatas o modo como eles devem exercer essa liberdade. Ele corrige a sua prática, já que havia anteriormente tratado sobre o que era a liberdade em si. Paulo está advertindo sobre um perigo que todos os “chamados” correm. Lenski diz que a “liberdade é como uma grande fortuna em dinheiro, ela pode ser uma grande bênção se ela for usada corretamente, ou uma maldição se ela for mal usada”.226 Quando os “chamados à liberdade” são introduzidos no mundo da liberdade, eles podem pensar que agora têm liberdade para fazer o que todos os seus impulsos sugerem. Contudo, Paulo barra esse tipo de raciocínio. Se os homens seguem os seus próprios impulsos pecaminosos, eles acabam perdendo a verdadeira liberdade, passando a exercer uma libertinagem ou uma liberdade licenciosa. Paulo, aqui, está reprovando a libertinagem. Você e eu não somos livres para fazermos as coisas todas que temos vontade de fazer, mas somos livres para fazer a vontade de Deus. Nunca devemos usar o que Paulo chama de “liberdade” para dar oportunidade à velha natureza, que ainda habita em nós. Quando somos regenerados e convertidos a Cristo, não somos livres de todas as nossas inclinações pecaminosas. Lenski diz que “o perigo não repousa no lado do espírito renascido no cristão, mas no lado de sua carne, o poder do pecado ainda deixado nele”.227 Você tem que tomar cuidado com a velha natureza que ainda habita em você para não trocar a liberdade de Cristo pela sua libertinagem. Além disso, a liberdade cristã está condicionada à obediência às leis divinas. Você não possui uma liberdade de independência da lei de Deus. A nossa ação é parte fundamental do exercício da liberdade. Todos os que são livres podem agir livremente. Contudo, dentro da esfera da liberdade dada por Cristo, agir livremente não significa agir independentemente das leis divinas. Não confunda liberdade 226. Ibid., 274. 227. Lenski, Ibid., 274.

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com independência. Jamais temos o direito de agir seguindo as leis do nosso coração pecaminoso, que Paulo chama de “carne”. O Libertador nos libertou para andarmos conforme a vontade de Deus. Ande assim e você será realmente um liberto de Cristo Jesus!

3. VOCÊ FOI CHAMADO PARA EXERCER UMA LIBERDADE DE SERVO “sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor.”

Lembre-se de que você não é independente de Deus, nem independente dos outros seres humanos. Você deve a Deus respeito por suas leis, e, além disso, você está sob a obrigação de estar a serviço de seus irmãos. Nenhuma pessoa escapa de ser servo. Cristo liberta você da servidão de Satanás, mas ele o coloca sob outra servidão. Todavia, essa servidão é de natureza bem diferente. Nela você é chamado para fazer o que todos os seres racionais sonham fazer: serem servos pelo amor. Todo o que ama é servo daquele que é amado, porque faz todas as coisas para agradar e para servir à pessoa amada. Nesse sentido, todos os que amam ficam escravos daqueles que são amados. Na verdade, Jesus serviu-nos com seu amor, e não há serviço mais belo e confortante do que amar como Jesus amou. Paulo nos chama para servirmos uns aos outros da mesma maneira como Cristo serviu – em amor. Contudo, somente os cristãos exercem a sua servidão em liberdade. Parece altamente contraditório que sejamos livres para ser escravos uns dos outros, mas isso está em perfeita harmonia com o modus operandi de Deus. Lenski diz que “a liberdade é o livre exercício do amor. Esse é o amor nascido da fé, um amor de entendimento e inteligência reais, casado com um alvo e um propósito correspondente”.228 Observe que somos servos de Cristo para servir outras pessoas, e, servindo aos outros exercitamos a nossa liberdade cristã. Sirva às outras pessoas como servo de Cristo que você é. Você é chamado para exercer uma liberdade de servo. Seu objetivo é agradar a quem o chamou e a quem você serve. Os outros são seus beneficiários e você é o benfeitor, porque você foi chamado para exercer sua liberdade em escravidão de amor. Parece contraditório, mas essa é a regra imposta pela legislação divina. Apenas obedeça ao mandamento de ser um servo livre ou o mandamento de um liberto para servir!

4. VOCÊ FOI CHAMADO PARA EXERCER UMA LIBERDADE EXPRESSA PELO AMOR “sêde, antes, servos uns dos outros, pelo amor.”

Talvez não haja maneira mais linda e preciosa de viver do que servir pelo 228. Lenski, ibid., 275.

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amor. Devemos aprender essa maneira de servir com o maior de todos os servos – Jesus Cristo. Ele veio para servir dando a sua vida em resgate por muitos, e esse seu gesto é prova do seu amor para com aqueles a quem veio servir. O Libertador ensina aos libertos o modo mais eficaz de servir. O raciocínio de Paulo continua nos versos seguintes, de maneira a aplicar o seu raciocínio teológico anterior. Ele ensinou que “toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (v. 14). Se queremos exercer a nossa liberdade de maneira plena, então temos que mostrar amor pelos nossos semelhantes. Se não mostramos amor, mas “nos mordemos e nos devoramos uns aos outros” (v. 15), então não estamos exercendo a nossa liberdade, mas a libertinagem, e isso está fora de questão para os verdadeiros servos do Libertador. Portanto, a melhor maneira de você exercer a sua liberdade é assumindo a função de servo, porque, se você não fizer isso, você se destruirá a si mesmo em sua libertinagem.

C. USE DA LIBERDADE DADA PELO LIBERTADOR PARA AGRADAR A DEUS A Confissão de Fé de Westminster, ao tratar da liberdade espiritual do redimido, diz algumas coisas que são muito importantes e que devem ser entendidas e praticadas: “O homem, em seu estado de inocência, tinha a liberdade e o poder de querer fazer aquilo que é bom e agradável a Deus... Quando Deus converte um pecador e o transfere para o estado de graça, ele o liberta de sua natural escravidão ao pecado, e, somente pela sua graça, habilita-o a querer e a fazer com toda a liberdade o que é espiritualmente bom, mas isso, de tal modo que, por causa da corrupção ainda nele existente, o pecador não faz o bem perfeitamente, nem deseja somente o que é bom, mas também o que é mau. É no estado de glória que a vontade do homem se torna perfeita e imutavelmente livre para o bem só... É no estado de glória que a vontade do homem se torna perfeita e imutavelmente livre para o bem só.”229

Na transcrição desse texto da CFW, você pode perceber algumas frases em itálico que apontam para o real sentido de liberdade, que é conhecida como liberdade espiritual ou, ainda, como livre-arbítrio (que é como os documentos de Westminster entendem essa palavra tão complexa e confusa na teologia cristã). Ser livre, portanto, de acordo com Westminster é: 1. Fazer o que é espiritualmente bom 2. Fazer o que é agradável a Deus 229. Confissão de Fé de Westminster, Capítulo IX, II.III.IV

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A Confissão de Fé de Westminster: a) reconhece que essas capacidades pertenceram ao homem original antes da queda; b) entende que essa liberdade não é exercida de modo perfeito pelos que são regenerados, pois eles ainda possuem inclinação para o mal; c) entende que a liberdade plena é desfrutada pelos remidos – que farão unicamente o bem – no estado de glória. Ser livre é ser servo de Deus para agradar a ele somente. Quando o agradamos é porque fazemos o que é espiritualmente bom e aceitável diante de Deus. Ore a Deus para que você possa entender o verdadeiro sentido de liberdade cristã, que é o ensinado em Gálatas 5.1, e para que você possa exercer essa liberdade amando os seus semelhantes de todo coração, cumprindo assim a lei divina, como expressão de sua condição de servo movido pelo amor. Certamente, um dia você haverá de ser completamente livre para fazer somente o bem, pois, a essa altura (na glória), você não mais sofrerá as conseqüências nefastas do pecado em sua vida.

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CAPÍTULO 4 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR

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o final do capítulo 2, que tratou da unipersonalidade do Redentor, os efeitos foram apenas mencionados. A partir deste capítulo, eles serão estudados separadamente. A primeira parte tem a ver com os efeitos importantes da unio personalis sobre a natureza humana do Redentor. Martin Chemnitz, um teólogo luterano do século 16, falando do Redentor divino-humano, refere-se a esses efeitos, dizendo que “a natureza humana nessa pessoa não somente tem e retém suas próprias propriedades naturais ou essenciais, mas da união hipostática com a deidade ela também recebe, acima e além de suas próprias propriedades essenciais, muitas prerrogativas preeminentes e maravilhosas e dignidades.”230

Essas “muitas prerrogativas preeminentes e maravilhosas dignidades” dizem respeito à comunicação da graça divina à natureza humana do Redentor, que é assumida pelo Logos na encarnação. Essas “muitas prerrogativas preeminentes e maravilhosas e dignidades” são produto da graça divina sobre o Redentor segundo a sua natureza humana, coisas essas que não pertencem à essência da natureza humana. Essa é a graça devida à unio personalis, que pode ser dividida teologicamente em gratia habitualis e gratia eminentiae.

A NATUREZA HUMANA RECEBEU GRAÇAS HABITUAIS Essas graças são conferidas pelo Espírito Santo à natureza humana de Cristo, e essas “graças habituais dizem respeito especificamente à natureza humana em si mesma e às propriedades da natureza humana”.231 Elas são dons do verdadeiro conhecimento de Deus, perseverança da vontade e grande poder de ação, além da capacidade natural dos seres humanos.232 Por causa de sua união com o Logos, a natureza humana do Redentor adquiriu superioridade sobre os outros indivíduos. 230. Martin Chemnitz, The Two Natures in Christ (Saint Louis: Concordia Publishing House, 1971), 157, 58 (itálico acrescentado). 231. Marvin P. Hoogland, Calvin´s Perspective on the Exaltation of Christ (Kampen, J. H. Kok N. V., 1966), 80. 232. Richard Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, 72.

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Em conseqüência da união hipostática, o Redentor veio a ser mais do que simplesmente um homem. Pelo fato de sua humanidade ter sido unida inseparavelmente à natureza divina do Redentor, a sua natureza humana foi revestida de uma honra que não foi dada a outros homens. Algumas coisas que outros homens nunca vieram a ter e nunca terão vieram a pertencer à natureza humana em virtude de estar unida ao Logos. É importante que tenhamos em mente, aqui, outra vez, a verdade que é repetida muitas vezes neste trabalho: estamos atribuindo essas coisas à natureza humana porque a natureza divina não carece delas coisas em virtude da sua co-essencialidade com a natureza das outras Pessoas da Divindade. Todavia, quando nos referimos à natureza humana, não podemos separá-la da Pessoa do Redentor. Não existe a natureza humana individualizada e separada da natureza divina, embora uma natureza seja distinta da outra. Quando a Escritura se refere a essas graças, ela se refere à Pessoa completa do Redentor, mas todos devemos saber que essas qualificações gloriosas foram acrescentadas a uma natureza humana que nunca as possuiria se não fosse através da unio personalis. Que graças habituais são essas?

A. O REDENTOR, SEGUNDO A NATUREZA HUMANA, RECEBEU DONS COMO NENHUMA OUTRA PESSOA HAVIA RECEBIDO Quando falamos dos dons que o Redentor recebeu segundo a sua natureza humana, devemos pensar nos dons que haveriam de servir para o exercício dos seus ofícios mediatoriais durante o seu estado de humilhação. Jesus Cristo, quanto à sua natureza humana, teve um desenvolvimento em graça como nenhum outro ser humano. Ele foi realmente abençoado com um quinhão ímpar, a fim de que pudesse exercer os seus ofícios mediatoriais. Por causa desses dons, ele pode exercer o seu ministério como ninguém antes e nem depois dele. Esses dons habituais, que estão ligados á unção do Espírito Santo (de que trataremos logo a seguir), não foram recebidos e exercidos de uma só vez, mas estavam sujeitos a um aumento e a um desenvolvimento. A unio personalis conduz à comunicação da gratia habitualis a partir do Logos para a natureza humana. Por meio disso, todas as potencialidades humanas são tornadas perfeitas em Jesus. Tudo o que a natureza humana veio a exercer em termos de dons, ela exerceu da maneira mais perfeita imaginável. Para ilustrar, mostraremos apenas um dom importante que o Redentor recebeu, segundo a sua natureza humana: ele recebeu o dom do verdadeiro conhecimento de Deus. Como nenhum outro homem, Jesus Cristo teve um conhecimento verdadeiro de Deus. Tudo o que a natureza humana veio a conhecer de Deus, está a cima da

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR 233 capacidade natural dos outros seres humanos, pelo menos no estado em que vivem hoje. Em virtude da unio personalis, a natureza humana do Redentor teve esse privilégio ímpar. Por isso é dito que ele crescia “em sabedoria e graça” diante de Deus e dos homens (Lc 2.40, 52). Ele foi crescendo grandemente em inteligência, mesmo quando ainda era menino (Lc 2.47); não posso dizer que ele era menino prodígio (pois outros meninos deste mundo também podem ter habilidades e faculdades prodigiosas), mas a prodigalidade de sua inteligência está vinculada à ação especial do Espírito de Deus nele, como conseqüência da união pessoal, e também para que ele pudesse exercer os seus ofícios mediatoriais. A sabedoria com que ele se conduzia era devida à graça habitual de Deus sobre ele, que o tornava mais sábio que os homens comuns e que seus próprios pais, que não entendiam os propósitos de Deus na vida do filho deles. Confira o que a Escritura diz dele: Lucas 2.47-50 – “E todos os que o ouviam muito se admiravam da sua inteligência e das suas respostas. Logo que seus pais o viram, ficaram maravilhados; e sua mãe lhe disse: Filho, por que fizeste assim conosco? Teu pai e eu, aflitos, estamos à tua procura. Ele lhes respondeu: Por que me procuráveis? Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai? Não compreenderam, porém, as palavras que lhes dissera.”

Ele era mais do que um menino prodígio. Ele não possuía somente inteligência em grau elevado, como alguns dos meninos gênios possuem, mas ele conhecia a Deus muito mais do que os genuínos crentes conhecem nessa idade. As suas respostas revelam uma ação do Espírito de Deus em sua vida, dando-lhe entendimento espiritual e compreensão espantosa do seu relacionamento filial com Deus. Essa compreensão, que não é comum nem entre adultos cristãos, deu-se na idade de doze anos. Qualquer pessoa de inteligência mediana e com um certo conhecimento da revelação da Escritura “pode comparar a natureza humana de Cristo com a nossa natureza humana e concluir que, nele, a natureza humana era exaltada muito acima da natureza de qualquer outra criatura”.233 Nenhum dos crentes em todas as épocas veio a conhecer Deus da maneira como Jesus conheceu. Essa superioridade do dom de conhecimento é devida à união pessoal, e, por isso, Jesus Cristo, segundo a sua natureza humana, foi honrado mais do que qualquer outro ser humano.

B. O REDENTOR, SEGUNDO A NATUREZA HUMANA, RECEBEU CAPACITAÇÃO COMO NENHUMA OUTRA PESSOA HAVIA RECEBIDO ANTES Diferentemente de outros seres humanos, Jesus Cristo, como homem, recebeu 233. Marvin P. Hoogland, Calvin´s Perspective on the Exaltation of Christ (Kampen, J. H. Kok N. V., 1966), 82.

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privilégios ímpares, além do conhecimento de Deus, já mencionado. Jesus Cristo, segundo a sua natureza humana, teve um desenvolvimento singular, muito acima de qualquer outro ser humano. Jesus foi cheio da medida de Deus de forma que a sua natureza humana foi plena de graças e de excelências que o distinguiram de outros com a mesma natureza humana, tudo em virtude de sua união pessoal. Foi por isso que o salmista, talvez sem compreender plenamente a messianidade da sua afirmação, citado pelo autor de Hebreus, disse: Hebreus 1.8 – “Amaste a justiça e odiaste a iniqüidade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo de alegria como a nenhum dos teus companheiros.”

Observe que, no contexto, o contraste é entre a superioridade de Jesus Cristo e a inferioridade dos anjos. Observe que o verso 5 trata da filiação divina de Jesus Cristo em relação ao Pai; que, no verso 6, o Primogênito (o Verbo ou Filho) é introduzido no mundo e adorado por anjos, o que aponta novamente para a sua divindade; que, no verso 8, sobre o Filho, o Pai diz: “o teu trono, ó Deus”, apontando novamente para a divindade. Jesus Cristo é superior aos anjos por causa da sua procedência divina. Observe, finalmente, que, no verso nove, falando ao Filho, o Pai diz: “Amaste a justiça e odiaste a iniqüidade”. O Pai ainda se refere ao Filho como divino, e, por causa da sua santidade (que “ama a justiça e odeia a iniqüidade”), ele recebe a maior unção que se já viu entre nós. Por causa da união pessoal, a humanidade de Jesus Cristo foi altamente privilegiada. Nenhum outro dos judeus ou dos cristãos teve o que coube a Cristo. Deus, o seu Deus (perceba que, se Jesus tem Deus [“o teu Deus”], ele está sendo visto aqui como um homem real que precisa de Deus) o ungiu com o óleo da alegria, que é um tipo do Espírito Santo, unção essa que nunca nenhum outro ser humano recebeu. Ninguém recebeu porção tão grande do Espírito para realizar o seu ministério como o Senhor Jesus Cristo. João, o evangelista, relata que “o enviado de Deus fala as palavras dele, porque Deus não dá o Espírito por medida” (Jo 3.34). Esse é o óleo de alegria que ele recebeu mais do que todos os seus companheiros de ministério, mesmo os mais destacados deles. A humanidade do Redentor foi altamente honrada por sua união à natureza divina do Verbo. Agora, esse Filho já está encarnado, e, por causa da sua santidade, ele recebe um dom preciosíssimo e maior do que todos os seres humanos já receberam. Nem mesmo os apóstolos, com todos os privilégios que haviam recebido, foram dotados pelo Pai como o Filho encarnado o foi. A natureza humana do Filho foi extremamente abençoada com a “unção do óleo da alegria”, que certamente foi a capacitação do Espírito Santo para ele exercer todo o seu ministério entre nós. Todos os membros do corpo de Cristo recebem dons, que dizem respeito à capacitação do Espírito, mas nenhum dos companheiros de Jesus recebeu capacitação como ele.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR 235 Jesus Cristo é a Pessoa divino-humana, mas a sua natureza humana é que foi agraciada com essa dotação divina, pois somente homens precisam dessa ação do Espírito sobre eles, e ele foi dotado como nenhum outro dos seus companheiros. Nisso está a sua superioridade sobre os outros indivíduos. Essa superioridade sobre os outros seres humanos, repetimos, diz respeito ao que, em teologia, chama-se gratia habitualis, ou seja, as graças habituais que se referem “à plenitude de dons que Cristo recebeu no mais alto grau que uma criatura é capaz de receber”.234 É importante, ainda, observar que essas graças habituais “não são, para ser exato, dons infinitos iguais às perfeições divinas, mas em Cristo elas são, não obstante, maiores do que em qualquer dos anjos ou santos, e, portanto, é dito dele que ele recebeu o Espírito sem medida (Jo 3.34). Essa graça, também, assim como as outras, vem para a natureza humana de Cristo por conta da união hipostática”.235

C. O REDENTOR, SEGUNDO A NATUREZA HUMANA, RECEBEU A GRAÇA DOS PODERES DE OFÍCIO Essa também é uma graça habitual, porque Jesus Cristo, segundo a sua natureza humana, passou a exercer os ofícios que haviam sido tipificados nos Antigo Testamento pelos profetas, sacerdotes e reis. Esses ofícios eram exercidos por seres humanos, mas agora eles são exercidos num grau de excelência pelo Mediador-Redentor segundo a sua humanidade. Há que se lembrar, entretanto, que esses ofícios são exercidos de uma maneira eminente por causa da unio personalis. Nenhum desses ofícios pode ser exercido dessa maneira unicamente pela natureza humana, mas pela pessoa completa do Redentor. Jesus Cristo é o Mediador entre Deus e os homens, e ele satisfaz a todas as exigências divinas no exercício dos ofícios porque ele os exerce de modo supremo, mas também ele abarca todos os ofícios em si mesmo, coisa que nunca aconteceu com os homens do passado nem do presente. Apenas a título de exemplo do exercício dos poderes de ofício, vamos nos reportar ao seu ofício real, mesmo durante a sua vida terrena. “De acordo com o desenvolvimento de sua humanidade, Cristo pode receber em sua natureza humana novos dons e perfeições, e, talvez, mesmo um novo poder ou autoridade que ele não possuía plenamente antes”,236 e esse é o caso do seu ofício real. Isso não significa que, antes de sua exaltação, ele não tivesse prerrogativas reais. O que acontece é que houve um 234. Marvin P. Hoogland, Calvin´s Perspective on the Exaltation of Christ (Kampen, J. H. Kok N. V., 1966), 80. 235. Ibid., 80. 236. Marvin P. Hoogland, Calvin´s Perspective on the Exaltation of Christ (Kampen, J. H. Kok N. V., 1966), 86.

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desenvolvimento no seu ministério a ponto dele crescer no exercício do seu domínio sobre o universo. Apenas a título de esclarecimento, cito aqui Hoogland, que estabelece um contraste entre o exercício de um ofício nos dois estados (humilhação e exaltação) e mostra um movimento de um período superior ao outro, mas ambos ligados ao fato de sua natureza humana estar unida inseparavelmente à sua natureza divina. “Diferentemente da graça de união, entretanto, a graça dos dons habituais não foi completada de uma vez por todas no começo da encarnação, mas foi sujeita ao aumento e ao desenvolvimento. Esse é o fato que abre o caminho para uma distinção essencial entre o estado de humilhação e o estado de exaltação, dando lugar a uma exaltação que envolve mais do que uma mera revelação e uso de propriedades previamente possuídas. O movimento de um estado para o outro, pareceria, pode legitimamente ser descrito como um movimento de glória para uma glória mais plena, de uma exaltação incompleta para uma exaltação completa.”237

Esse raciocínio elaborado por Hoogland tem em vista somente esse movimento de uma glória menor para uma glória maior que provém dos dons da graça habitual, que é um efeito da unio personalis. Entretanto, precisamos ter em mente que essas graças habituais, como o direito de governar, reinar, e exercer o senhorio no mundo, foram demonstradas de modo limitado no tempo da sua humilhação [mas que são e serão manifestadas de modo pleno desde a sua ascensão à direita de Deus]. Mas, ainda assim, esse direito que ele teve desde a unio personalis foi um aspecto glorioso que brilhou mesmo no estado de humilhação. Como Mediador que é entre Deus e os homens, a natureza humana de Jesus Cristo participa do ofício real de uma maneira ímpar como Senhor, Monarca, Rei e Juiz de todo o universo, fatos a que Mateus 28.18 se refere, ofício esse do qual nenhum ser humano jamais participou. Desse poder oficial a natureza humana desfrutou sobremaneira. Essa graça habitual do exercício dos ofícios diz respeito especialmente à natureza humana de Jesus Cristo, pois, quanto à sua divindade, ele sempre foi Senhor, Monarca, e Rei como co-essencial com seu Pai.

A NATUREZA HUMANA RECEBEU GRAÇAS EMINENCIAIS Essas graças são chamadas de eminenciais porque são graças desfrutadas pela humanidade de Cristo pelo fato dela estar ligada inseparável e imutavelmente à natureza divina do Redentor. Essas graças de que a natureza humana participa são 237. Ibid., 82.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR 237 privilégios, mas elas pertencem essencialmente à natureza divina dele. Como devemos estar sempre atentos ao que nos ensina a doutrina da comunicação de atributos, as qualidades que pertencem a qualquer uma das naturezas devem ser atribuídas à sua Pessoa completa. A terminologia gratia eminentiae (graça de eminência) “indica mais diretamente que a posição ou dignidade da natureza humana de Cristo sobrepuja a de todas as criaturas”.238 Ninguém jamais recebeu essas graças de maneira tão honrosa como Jesus Cristo, segundo a sua humanidade. Contudo, devemos ficar atentos para que essas graças eminenciais não nos façam pensar a respeito de uma deificação da natureza humana do Redentor. A crença nas graças eminenciais não deve comprometer a nossa crença na realidade e na perfeição da totalidade de sua natureza humana. “Longe de depreciar qualquer coisa da natureza humana de Cristo, o fato de que essa natureza humana subsiste somente no Logos, com a qual ela está unida, significa que ela subsiste muito mais nobremente do que a natureza humana de qualquer outra pessoa.”239 A natureza humana do Redentor é como a de qualquer homem, sem distinção alguma. A diferença é que, por causa da unio personalis, essa sua natureza humana participou de graças eminenciais das quais nenhum outro homem participou.

A. A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR ADQUIRIU UM NOME ACIMA DE TODO NOME A verdade é que o nome acima de todo nome foi dado à Pessoa de Jesus Cristo, e sua humanidade também participa da honra desse nome, em virtude da unio personalis. Esse nome exaltado que Cristo recebeu tem a ver com o nome mais solene e importante que Deus recebeu nas Escrituras. “O nome acima de todo nome, que é dado a Cristo em sua exaltação, diz Heidegger, é o nome Jehova, o nome divino”.240 Na verdade, esse nome é próprio da Divindade, e o Redentor o recebeu após a encarnação, enquanto estava entre nós. Todavia, somente após a sua exaltação foi que esse nome tomou um significado ainda mais honroso para a pessoa completa do Redentor, e, como sua humanidade nunca pode ser separada da sua divindade, ela participa da glória desse nome supremo. Embora esse nome venha a provocar a adoração, no tempo final, de todos os homens, porque todos haverão de dobrar os seus joelhos no céu e na terra e confessar que Jesus Cristo é Senhor, para a glória de Deus Pai, o seu nome terreno, que recebeu após a encarnação, é o nome Jesus, que é o nome típico de sua humanidade, também é cheio de honra. Veja o texto: 238. Marvin P. Hoogland, Calvin´s Perspective on the Exaltation of Christ (Kampen, J. H. Kok N. V., 1966), 76. 239. Ibid., 76-77; 240. J. H. Heidegger, Corpus Theologiae Christianae (Tiguri, 1700), II, 18.35, p. 55 apud Hoogland, Calvin´s Perspective on the Exaltation of Christ, 75.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Filipenses 2.8-11 – “... a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.”

Observe que Paulo está tratando da humilhação de Cristo que, nesse texto, culminou em sua morte. Depois, é dito que Deus o exaltou sobremaneira, dandolhe um nome superior, mediante o qual todos o haveriam de adorar. À primeira vista, poderíamos pensar que esse nome lhe tenha sido dado por causa da sua exaltação. Contudo, não é isso o que o texto diz. Esse nome, que é o nome Jesus, foi recebido quando houve a unio personalis. Esse é um nome comum entre os homens (um derivativo de Josué, no hebraico), mas que seria extremamente honrado depois da exaltação. A honra desse nome, contudo, está no fato da natureza humana de Jesus ter sido unida ao nome de Jeová Filho. Nesse sentido, o nome da humanidade de Jesus recebe a honra que nenhum outro homem na face da terra recebeu. Não se esqueça que Jesus é o nome da sua humanidade, embora ele se aplique à totalidade da sua Pessoa teantrópica. A eminência desse nome se verifica na adoração que os cristãos lhe prestaram não somente enquanto ele esteve neste mundo no seu estado de humilhação, mas o nosso Redentor possui esse nome que recebe adoração e a “permanente” reverência de todos os cristãos. No final dos tempos, certamente por ocasião da volta de Cristo, esse nome receberá a honra que jamais os habitantes deste mundo poderão imaginar que um dia venha a acontecer. Todos os homens, crentes e incrédulos, prestarão a honra e o louvor que ele merece, porque esse é o nome que representa entre nós o ser divino-humano. Os crentes haverão de glorificar esse nome de maneira alegre, pois é o nome no qual eles crêem e que os remiu. Os que são incrédulos haverão de capitular diante desse nome poderoso, dobrando os seus joelhos em reconhecimento do seu senhorio, ainda que não com a alegria que é típica dos crentes. Tudo isso acontecerá para a glória de Deus Pai. Esse reconhecimento de crentes e de incrédulos para com o nosso Redentor é uma graça de eminência da qual a sua natureza humana é o recipiente. Jamais qualquer ser humano terá um nome tão honrado como o de Jesus Cristo. O nome dele está acima de todo nome, em virtude da unio personalis.

B. A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR ADQUIRIU O PRIVILÉGIO DE SER CABEÇA SOBRE TODAS AS COISAS Através da união hipostática Jesus Cristo, segundo a sua natureza humana, ele não somente recebeu as graças acima mencionadas que o distinguiram de todos os outros homens, mas também, segundo a sua natureza humana, adquiriu o privilégio de se tornar o Cabeça de todas as criaturas.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR 239 Se olhássemos para o Redentor segundo a sua natureza divina, ele deveria ser chamado de “Senhor” (que é o termo neotestamentário equivalente a Jeová no Antigo Testamento), um título divino, mas, quando o olhamos segundo a sua natureza humana, ele é visto como cabeça de todas as criaturas. Essa posição honrosa e majestosa que a natureza humana de Jesus Cristo adquiriu é afirmada de vários modos:

1. CABEÇA SOBRE TODAS AS COISAS Efésios 1.22 – “E pôs todas as cousas debaixo dos seus pés e, para ser o cabeça sobre todas as cousas...”

Nos versos anteriores, Paulo trata da realeza de Cristo e de sua superioridade sobre todas as autoridades e poderes na esfera espiritual (que são os anjos) e na esfera física (que são os homens), em virtude de estar assentado “nos lugares celestiais”, que é uma expressão que revela a plenitude e superioridade de autoridade. Ser cabeça sobre todas as coisas significa ter autoridade sobre elas e governálas delas. Calvino diz que “a metáfora de uma cabeça denota a mais alta autoridade”.241 Do céu, onde se encontra, Jesus Cristo – segundo a sua natureza humana – tem o privilégio de administrar o universo que criou, já que, segundo a sua natureza divina, o Filho é Senhor sobre tudo desde que as coisas vieram a existir. A expressão “todas as coisas” é a tradução de pa/nta. A linguagem é a do Salmo 8, onde é dito que o homem (que o escritor de Hebreus interpreta como sendo Cristo), “por um pouco, menor do que Deus, foi coroado de glória e de honra” (v. 5). O domínio terreal que o homem tem é apenas uma sombra do domínio universal de Cristo. Esse Homem, do qual Hebreus 2.6-9 fala, recebeu domínio sobre todas as obras da mão de Deus, e sob seus pés tudo foi colocado. Então, menciona-se toda a criação sob a administração desse Homem. Portanto, o Redentor, segundo a sua natureza humana, adquiriu esse privilégio ser o Cabeça sobre toda a criação, administrando todas as coisas com poder e autoridade. É importante enfatizar que Deus o Pai colocou o Filho encarnado como “Cabeça sobre todas as coisas”. Deus não poderia colocar alguma coisa que já era, mas ele colocou o Redentor como cabeça (pondo todas as coisas debaixo dos seus pés), e só entendemos essa expressão quando vemos o Redentor segundo a sua natureza humana.

2. CABEÇA SOBRE OS ANJOS Colossenses 2.10 – “Ele é o cabeça de todo principado e potestade.”

O Redentor, segundo a sua natureza humana, por causa da unio personalis, passa a possuir domínio sobre os anjos, sejam eles bons ou maus. A sua função 241. John Calvin, Galatians and Ephesians (Grand Rapids: Eerdmans, 1948), 217.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

como cabeça dos anjos é diferente da sua função como Cabeça da Igreja, porque esta o obedece e o glorifica, e os anjos necessariamente não fazem isso. A sua função de Cabeça sobre “todo principado e potestade” é em virtude do seu governo como o supremo governador de tudo. Esse domínio do Criador sobre “todo principado e potestade” está no fato de ele ser especialmente divino em virtude dele ter sido o Criador de todos eles (ver Cl 1.16), mas a natureza humana adquire esse privilégio de dominar sobre esses seres espirituais porque nele (no Redentor) “habita corporalmente (relativo à sua humanidade) toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9). Como sua natureza humana está indissoluvelmente ligada à sua natureza divina pela unio personalis, o Redentor adquire (segundo a sua humanidade) a honra de ser administrador dos anjos. O domínio do Redentor sobre os anjos é de tal forma que, sem ele, “os anjos bons não podem ajudar, e por causa dele o mal não pode danificar os crentes”.242

3. CABEÇA SOBRE TODOS OS HOMENS 1 Coríntios 11.3 – “Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o cabeça de todo homem, e o homem o cabeça da mulher, e Deus o cabeça de Cristo.”

Paulo está ensinando aos crentes de Corinto a cadeia de comando existente. Por causa da Trindade econômica, o Pai está em autoridade funcional sobre o Filho; por causa da ordem da criação, o marido está em autoridade sobre a mulher; Jesus243 Cristo, segundo a sua natureza humana, por causa da sua unio personalis, está colocado numa posição de autoridade sobre todos os homens, sejam eles crentes ou não. Não se trata aqui da autoridade de Redentor, mas da autoridade do Filho encarnado exaltado, que tem domínio “no céu e na terra”, domínio esse que recebeu antes de subir ao céu, e que sua natureza humana passou a exercer. Cristo é o Cabeça de todo homem, embora nem todos o reconheçam agora como aquele que está em autoridade sobre eles. No presente estado de coisas, não conseguimos ver como todas as coisas estão sujeitas a ele (cf. Hb 2.8). Todavia, a Escritura assevera inequivocamente que chegará o dia em que “ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp 2.10, 11). A autoridade de Jesus Cristo será plenamente vista e os homens se prostrarão em reconhecimento de sua autoridade. É bom recordar que a natureza humana de Jesus Cristo, que está localizada no céu, adquiriu o privilégio de participar dessa honraria de ser Cabeça sobre todo homem. 242. William Hendriksen, Exposition of Colossians and Philemon (Grand Rapids: Baker Book House, 1979), 113. 243. Para outros significados do termo “cabeça”, veja o comentário de 1Coríntios 11.3 de Simon J. Kistemaker, 1Corinthians (Grand Rapids: Baker Book House, 1993), 365, 66.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR 241

4. CABEÇA SOBRE A IGREJA Efésios 5.23 – “Porque o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da Igreja, sendo este mesmo salvador do corpo.”

Esse texto de Paulo está dentro dum contexto de casamento, onde existe a cadeia de comando. Assim como um marido é cabeça da esposa, assim Cristo é o Cabeça da Igreja, que é a esposa do Cordeiro (Ap 21.9; 22.17). Não pode existir um real casamento sem que haja alguém que esteja no comando (não em posição de superioridade), em posição de direção, de autoridade sobre a contraparte. O casamento é sinônimo de unidade, e, se houvesse dois cabeças, não haveria uma unidade. Pior do que isso, se houvesse dois cabeças num casamento, haveria uma monstruosidade. Não pode haver dois cabeças num casamento, pois, ao invés de gerar unidade, gera desunião, desarmonia. Esse é o pensamento da Escritura. E Cristo é quem governa sua esposa, assim como reflexamente o marido deve governar a sua mulher. Não é uma questão de superioridade, mas do modus operandi das coisas no universo que Deus criou e dentro da própria Trindade econômica, na qual o Filho encarnado é sujeito ao Pai e o Espírito é sujeito ao Pai e ao Filho. A Igreja de Deus é a mais importante instituição divina sobre a terra, e Cristo tem a primazia sobre ela, sendo o seu Cabeça, e, como tal, deu a vida por ela para que a lavasse e a santificasse. Colossenses 1.18 – “Ele é o cabeça do corpo, da Igreja.”

Cristo é o presente que Deus deu ao corpo, que é a Igreja, que não existe sem o Cabeça. A Igreja é comparada na Escritura a um corpo, e, como tal, esse corpo não pode ser a)ke/fala (acéfalo), isto é, sem uma cabeça. A Igreja necessita de Alguém que a governe santa, poderosa, e sabiamente. Os seres humanos, homens e mulheres, que se submetem voluntária e desejosamente a Cristo são os que compõem a sua Igreja. Lembremo-nos de que não é o Verbo divino o Cabeça da Igreja, mas a Pessoa de Jesus Cristo, segundo a sua natureza humana, porque a relação é de um Salvador divino-humano com seres humanos da Igreja que ele redime. A natureza humana de Jesus Cristo, por causa da unio personalis, adquire a honra de ser Cabeça da Igreja. Essa participação extremamente honrosa da natureza humana de Jesus Cristo na adoração que homens e anjos lhe prestam é chamada de gratia eminentiae (graça de eminência). Essa graça eleva a humanidade de Jesus Cristo acima de todas as outras criaturas humanas. A natureza humana é exaltada em dignidade e honra, e até mesmo em poder, em relação a todas as outras criaturas inteligentes. Em virtude de sua união com a pessoa do Logos, a natureza humana de Cristo também participa da adoração que a Igreja presta ao seu Redentor. Contudo, recebendo essa graça de eminên-

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

cia, sendo exaltada sobre todas as coisas, a sua natureza humana permanece humana, mesmo depois do estado de exaltação. Os seus privilégios decorrem apenas do fato de ser unida ao Verbo divino, a segunda Pessoa da Trindade.

C. A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR PARTICIPOU DO PRIVILÉGIO DE SER CRIDA PELOS HOMENS Esse é um outro privilégio do qual a natureza humana participa. A fé é alguma coisa que devemos a Deus porque só ele é digno da nossa confiança. Jesus é o nosso Salvador, em quem devemos crer de todo o coração. Todavia, a natureza humana do Redentor participa desse privilégio que é devido à Divindade. Os atos de fé dos homens podem ser entendidos como aqueles atos nos quais eles confiam em Jesus Cristo como o Filho poderoso de Deus. Todavia, esse Filho poderoso de Deus está inseparavelmente ligado, após a encarnação, a uma natureza humana, com todas as propriedades de um homem. No entanto, sem fazer essa distinção teológica (porque àquele tempo não havia ainda sido formulada nenhuma doutrina a respeito da unio personalis), as pessoas se dirigiam a ele e lhe faziam orações e súplicas em favor dos seus queridos ou de suas próprias necessidades. Ele também foi crido pelos seus nas palavras que proferiu, e João escreveu o seu Evangelho para que crêssemos que aquele de quem ele falava era o Filho de Deus. Esse Filho de Deus não era somente um ser divino, mas possuía em sua constituição tudo o que pertence a um ser humano, exceto a sua pecaminosidade, e essa natureza humana foi também objeto das orações e expressões de confiança por parte dos seres humanos crentes. A natureza humana de Jesus Cristo, portanto, participou de todas as glórias (não dos atributos) que pertencem à natureza divina. Nenhum outro homem recebeu essa honra da adoração em virtude de serem todos eles apenas humanos. É por causa da unio personalis que a natureza humana participa dessa graça eminencial.

D. A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR PARTICIPOU DO PRIVILÉGIO DE SER ADORADA Ser adorado é uma propriedade da divindade. A natureza humana de Jesus Cristo não é o objeto da adoração pelo simples fato de ser uma criação que passou a existir no tempo. A natureza humana de Cristo não é adorável em si mesma, mas o Deus encarnado é. Nem essa natureza humana é adorada por alguma qualidade inerente a ela, mas, como essa natureza humana foi unida hipostaticamente à natureza divina, ela passou a participar da adoração. Portanto, em virtude da união hipostática, a natureza humana de Cristo, que está indissoluvelmente ligada à natureza divina, passa a ter o privilégio de participar da adoração que homens e anjos prestam à Pessoa do Redentor. Esse é um privilégio do qual a natureza humana desfruta, não por causa da sua humanidade, ainda que perfeita, mas por causa da unio personalis.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR 243 Essa adoração da qual a natureza humana de Jesus participa “não pode ser vista meramente em termos de propriedades naturais e sua similaridade à nossa natureza humana. Alguma coisa dada à natureza humana de Cristo que nunca é dada a qualquer outro homem é que o distingue como homem de todo outro homem”.244

Essa graça da adoração, portanto, em virtude da unio personalis, diz respeito à natureza humana e não meramente à Pessoa do Redentor. Conforme o ensino da fé Reformada, a Pessoa de Cristo é o objeto de adoração, mas não por causa da sua humanidade. Nunca a humanidade é objeto de adoração por si mesma, ela só se torna objeto de adoração por causa da união pessoal, e, por isso, a humanidade do Redentor participa dessa adoração que homens e anjos lhe prestam. Não obstante, quando dizemos que a natureza humana participa dos privilégios dessa adoração, não podemos pensar em qualquer mudança nas propriedades naturais ou qualidades da natureza humana em si mesma, e nem livrar a natureza humana de Jesus Cristo das conseqüências das enfermidades e sofrimentos do estado de humilhação em que a Pessoa divino-humana se encontrava.245 Em geral, os teólogos Reformados preferem dizer que a adoração da qual a natureza humana se torna objeto por causa da unio personalis é uma espécie de communio, ao invés de honra de adoração, porque eles querem evitar, com razão, a idéia da deificação da natureza humana do Redentor.246 A graça de honra ou de adoração é concedida a Cristo segundo a sua natureza humana, em virtude da unio personalis. Todavia, devemos deixar bem claro que “Cristo é o objeto de adoração em sua humanidade e com sua humanidade – sustenta a tradição Reformada - mas não por causa de sua humanidade. Sua humanidade não é objeto de adoração considerada em si mesma, mas somente quando ela é considerada em sua união com o Logos.”247

Essa adoração prestada a Cristo não deve ser entendida, em hipótese alguma, como a deificação de sua humanidade. A adoração é à Pessoa de Cristo, que possui as duas naturezas inseparavelmente unidas. Em virtude da unio personalis é que a sua natureza humana participa da adoração que lhe é prestada. “Em qualquer que seja o sentido de honra de adoração pertencente a Cristo como Deus, nesse mesmo sentido ela pertenceu a ele em sua 244. Marvin P. Hoogland, Calvin´s Perspective on the Exaltation of Christ (Kampen, J. H. Kok N. V., 1966), 74, 75. 245. Ibid., 80. 246. Ibid., 74. Não obstante essa observação no texto, ainda persistem muitos teólogos reformados que usam o termo graça de honra e adoração, sem, todavia, terem qualquer desejo de deificar a natureza humana de Cristo. 247. Ibid., 74.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR natureza humana já desde o começo da encarnação. Esse efeito da união indica, de acordo com os Reformados, um importante aspecto em que Cristo, como homem ou como theanthropos [Deus-homem], foi exaltado muito acima de todos os outros desde o começo da encarnação.”248

Esse tipo de honra de que a natureza humana de Jesus Cristo participa nunca foi dado a nenhum ser humano. Nisso ele também é distinto de todos os outros homens, mesmo daqueles que já foram e daqueles que ainda serão santificados plenamente.

1. ADORADA POR HOMENS Esse assunto é tratado em outra parte deste livro, mas é um assunto palpitante que merece uma nova consideração. Embora a natureza humana de Jesus Cristo não tenha compartilhado das propriedades da Divindade, todavia, por causa da unio personalis, ela acabou participando do privilégio de ser adorada por homens. Como não podia haver a separação das duas naturezas, os homens tiveram de curvar-se, de prostrar-se perante a pessoa completa de nosso Redentor, o que incluía a sua natureza humana. Várias vezes podemos ver, na Escritura, Jesus, também conforme a sua natureza humana, sendo abordado por homens que lhe prestaram adoração. Logo no início de sua existência humana entre nós, Jesus foi adorado pelos sábios do oriente (Mt 2.2, 11), sem que eles tivessem qualquer noção da união pessoal. Diante das múltiplas manifestações do seu poder, que ele realizou através das propriedades humanas da sua voz, da sua saliva, das suas mãos (Mt 8.2-3), e mesmo quando ele andou por sobre as ondas (Mt 14.33), ele foi adorado. Muitos outros exemplos de adoração da totalidade da pessoa podem ser encontrados nas Escrituras. A natureza humana de Jesus Cristo, embora possuísse unicamente as propriedades humanas de finitude, limitação espacial e temporal, participou de algo que pertence unicamente à Divindade, pelo maravilhoso fato dela estar inseparavelmente unida à natureza divina da Segunda Pessoa da Trindade.

2. ADORADA POR ANJOS A natureza humana do Redentor não somente participou da adoração que os homens lhe prestaram, mas também da adoração que os lhe anjos prestam. É preciso lembrar que, por causa da humilhação dos dias “da sua carne”, Jesus foi feito “por um pouco, menor do que os anjos” (Hb 2.7). O seu estado de humilhação fêlo parecer menor do que as criaturas gloriosas de Deus, que são os seres angélicos, mas, ainda assim, os anjos não são maiores do que ele. Mesmo no estado de humi248. Hoogland, Calvin´s Perspective on the Exaltation of Christ, 75, 76.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR 245 lhação, quando o seu esplendor ficou eclipsado, é dito que os anjos lhe serviam, prestavam-lhe obediência, e que o adoravam. Por essa razão, o mesmo escritor aos Hebreus disse: Hebreus 1.6 – “E, novamente, ao introduzir o Primogênito no mundo, diz: E todos os anjos de Deus o adorem.”

Os anjos sempre adoraram o Filho de Deus (o Verbo), antes da encarnação, em virtude da sua natureza divina. Desde que foram criados, os anjos adoram o Filho divino, mas, agora os anjos o adoram como o Filho encarnado. Não se esqueça de que o tempo referido do texto é o da encarnação, porque diz “ao introduzir o Primogênito no mundo”. Já nesse tempo, quando da sua humilhação, ele já era superior aos anjos. A superioridade fica evidente na adoração que os anjos prestam à pessoa completa de Jesus Cristo. Se os anjos devem adorá-lo, ele deve, portanto, ser maior do que eles. Portanto, a natureza humana do Redentor, por causa da unio personalis, participa da adoração que os seres angélicos lhe prestam. É importante frisar que a natureza humana do Redentor não é adorada por causa de algo que existe em si mesma, mas por causa da unio personalis, ela participa da adoração que homens e anjos lhe prestam.

A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR ADQUIRIU PERFEITA SANTIDADE Como resultado da unio personalis, o nosso Redentor, segundo a sua humanidade, veio a ser mais do que um homem comum em seu caráter moral. A sua natureza humana adquiriu uma qualidade ímpar, que nenhum outro ser humano adquiriu neste mundo, nem o poderá adquirir no porvir, quanto à sua forma e inalterabilidade. Nesta parte do capítulo não vamos fazer um tratado sobre a santidade da natureza divina do Redentor, que é uma santidade infinita, imutável, uma santidade essencial ao próprio Deus, sem a qual ele não pode ser Deus. Essa santidade o Redentor a possui quanto à sua natureza divina. Tudo o que se pode dizer da santidade do Pai pode também ser dito a respeito da santidade daquele que se encarnou. Todavia, nessa parte do capítulo, falaremos da santidade do Redentor quanto à sua natureza humana.

A. EM VIRTUDE DA UNIO PERSONALIS, A SANTIDADE DO REDENTOR É SUPERIOR À DOS HOMENS Na verdade, a fim de que a santidade da natureza humana do Redentor seja um pouco compreendida, temos que compará-la com a santidade das outras criaturas que vieram santas das mãos do Criador ou que são tornadas santas pelas Suas mãos.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

1. SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE A SANTIDADE DE JESUS CRISTO E A SANTIDADE DOS REMIDOS De um lado, a santidade do Redentor veio a ser igual a dos remidos; de outro, a sua santidade veio a ser mais do que a dos cristãos quando estiverem completamente redimidos. Há um sentido em que a santidade da natureza humana do Redentor é semelhante à nossa quando a nossa redenção se completar. É uma santidade derivada, porque é uma santidade que veio a existir por alguma ação do Espírito de Deus que ocorreu no tempo e na história. Essa santidade passou a existir, foi colocada, quando da concepção do Redentor. Essa não é uma santidade essencial à natureza humana, mas uma santidade que vem sobre a natureza humana em razão de uma ação divina. Todavia, há um sentido em que a santidade de Jesus é muito diferente da nossa futura e plena santidade. A santificação da natureza humana de Jesus Cristo é produto não de uma ação purificadora de quem já era pecador, como acontece com a santificação operada em nós. A santidade do Redentor, quanto à sua natureza humana, já veio com ele desde a sua encarnação. Foi necessária uma ação especial do Espírito Santo para que houvesse dentro de Maria “um ente santo”, isto é, um ente sem mancha, sem corrupção. A santidade da natureza humana do Redentor é não é aumentada como o é a dos outros seres humanos. A santidade destes é aperfeiçoada, enquanto que a santidade do Redentor é sempre a mesma. Nunca houve um tempo em que a sua natureza humana tenha sido menos santa. Na glória, a nossa santificação será completa; a de Cristo sempre foi completa. Nunca houve uma nódoa sequer em sua vida. Seremos semelhantes a Cristo na sua santidade no sentido de não mais pecarmos, mas essa santidade será uma obra da graça divina em nós. Todavia, a santidade de Cristo é uma obra da criação divina ao formar a Pessoa teantrópica.

2. SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE A SANTIDADE DE JESUS CRISTO E A SANTIDADE DE ADÃO NO ÉDEN Adão e Jesus Cristo são representantes, ou pessoas públicas, que agiram em favor daqueles a quem representavam. De ambos, a Escritura diz que eram santos. De Adão, a Escritura diz que “Deus criou o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias” (Ec 7.29). De Cristo, a Escritura diz que, desde a sua concepção, era um “ente santo” (Lc 1.35). Certamente há semelhanças e diferenças de santidade entre esses dois representantes de seres humanos. Afirmamos que, de um lado, a santidade do Redentor veio a ser igual à de Adão, quando de sua criação; e que, de outro lado, a santidade do Redentor veio a ser maior do que a do próprio Adão quando foi criado santo, no Éden de Deus, porque é uma santidade imutável, em virtude da unio personalis.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR 247 Há um sentido em que a santidade de Adão é semelhante à de Jesus Cristo quanto à sua humanidade. Adão veio santo das mãos do seu Criador. Jesus Cristo, quanto à sua natureza humana, também veio santo a este mundo. A semelhança também está no fato da santidade deles serem derivadas de Deus. A santidade da humanidade deles não é essencial, porque a santidade não é parte essencial das coisas criadas, e a natureza humana do Redentor foi criada e veio à existência. Há, todavia, um sentido em que a santidade de Jesus Cristo é diferente da santidade de Adão. A santidade do Redentor é produto da unio personalis, e, por causa dessa união indissolúvel, essa santidade nunca é manchada. A santidade de Adão foi passível de mudança. Ela foi perdida totalmente. A do Redentor nunca é perdida porque a união pessoal é inalterável e nunca a natureza divina pode ser manchada pela possibilidade de haver mancha na natureza humana dele. É a unio personalis que dá a inalterabilidade à santidade da natureza humana do Redentor.

B. EM VIRTUDE DA UNIO PERSONALIS, O REDENTOR FICOU LIVRE DA CULPA ORIGINAL E DA CORRUPÇÃO ORIGINAL A culpa e a corrupção estão intimamente ligadas. A corrupção é derivada da culpa. Alguém que não possui a culpa não pode ter corrupção. O Redentor, mesmo sendo humano, não foi contado por Deus como alguém que esteve em Adão. Diferentemente de Adão, que acabou pecando e recebendo a punição de morte, sendo chamado de “terreno” (que é sinônimo de impureza, pecado), Jesus Cristo é chamado de “celestial” (que é sinônimo de pureza, retidão, santidade – cf. 1Co 15.47, 48). O fato de ele ser chamado de “celestial” não significa que a sua natureza humana tenha vindo do céu (o que seria negar a sua verdadeira natureza humana), mas que ele era sem pecado, sem corrupção original. Nesse texto de 1Coríntios 15, Paulo virtualmente exclui de Jesus Cristo o pecado original e a sua conseqüente corrupção. Por causa da unio personalis, Deus livrou Jesus Cristo da maldição do pacto das obras. Ao invés de estar em Adão pelo pacto das obras, o Redentor veio para cumprir o pacto das obras a fim de tirar homens da maldição da transgressão do pacto. Jesus Cristo não poderia expiar os nossos pecado se ele não tivesse sido livre da culpa original. A culpa original vem não pelo fato de nos tornarmos pessoalmente pecadores, mas pelo fato de sermos contados como pecadores em Adão, que, por sua vez, tem a ver com a imputação de pecados do representante (Adão) nos representados (nós). Jesus não estava incluído no pacto por causa da unio personalis, para que pudesse ser o Redentor de culpados e corruptos. Como Redentor, ele se tornou o nosso representante e assumiu o nosso lugar na obra que veio fazer. Contudo, para que assim fizesse, ele teve de ficar livre da culpa e da corrupção do pecado. Para ser Redentor, ele tinha de ser santo, inculpável e separado dos pecadores, para que, assim, pudesse arrancar pessoas da maldição que estava sobre elas.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

É por essa razão que a Escritura diz uma coisa que poucos compreendem, e que tem a ver com a natureza humana santa de Jesus que sofreu a penalidade em nosso lugar. Análise de Texto Romanos 8.3 – “No que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito, condenou Deus, na carne, o pecado.”

A palavra santidade, nessa análise, é usada apenas para dar coerência à argumentação, porque ela não aparece no texto. Todavia, é por causa da santidade de Deus e da natureza humana de Jesus Cristo que a redenção de pecadores é possível.

1. VEJA A IMPOTÊNCIA DA SANTIDADE DA LEI “No que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne.”

O texto está partindo do ponto de vista de que os homens já são pecadores, em virtude de terem sido (em Adão) desobedientes à lei de Deus. A lei foi dada para ser obedecida. Quando ela é obedecida plenamente, ela pode produzir vida eterna, uma comunhão imperdível com Deus. Adão, embora possuísse uma vida natural de comunhão perfeita com Deus, não possuía a imperdibilidade dessa vida. A evidência disso foi que ele perdeu a comunhão com Deus e morreu. A lei pode dar vida, mas, uma vez que o homem peca, ele morre, e a lei é impotente para salvar pecadores. Por quê? Embora a lei seja “justa, santa e boa”, ela fica prejudicada em virtude da natureza pecaminosa do homem. Por essa razão, Paulo fala que ela “estava enferma pela carne”. “Carne”, aqui, é sinônimo de “natureza pecaminosa”, e “enfermidade” é sinônimo de impotência. A natureza humana não pode mais obedecer perfeitamente a lei, e, por causa disso, “é impossível à lei” salvar pecadores. É bom deixar claro que a lei de Deus continua sendo “justa, santa e boa”. A inadequação não está na lei, mas na natureza pecaminosa do homem, que não consegue guardar a lei de Deus. Por essa razão, a lei santa de Deus não pode fazer nada pelo pecador, senão mantê-lo debaixo da condenação por transgredi-la e por causa da impotência do homem de guardar toda a lei.

2. VEJA A SANTIDADE DO AMOR PROVIDENCIAL DE DEUS “isso fez Deus enviando o seu próprio Filho.”

Não agradou a Deus, em sua santidade amorosa, deixar os homens caídos, corruptos e condenados em seus pecados. A providência divina enviou a Segunda Pessoa da Trindade, que a si mesmo se ofereceu, para poder cancelar os nossos

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR 249 pecados. O coração divino moveu-se amorosamente em direção aos pecadores, mesmo sendo estes ofensores dele. A iniciativa da redenção é toda de Deus, e a prova dessa iniciativa está no fato dele enviar alguém de si mesmo para ser nossa redenção.

3. VEJA A SANTIDADE DA NATUREZA HUMANA DO REDENTOR “em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado.”

O Redentor, segundo a sua natureza humana, era santo. Contudo, quando o Verbo se encarnou, embora sem deixar de ser santo, ele assumiu a natureza humana com os resultados da queda, ou seja, sujeito a dores, enfermidades, aflições, tristezas, angústias, temores, etc. Esse é o sentido de “em semelhança de carne pecaminosa”. Exceto o pecado, todas as coisas que os seres humanos apresentam, Jesus Cristo apresentou. Ele foi chamado de “homem de dores e que sabe o que é padecer”. Todas as conseqüências do pecado vieram sobre ele, quanto à sua natureza humana. Deus tinha que condenar um homem no lugar de homens, e, por causa disso, o Verbo teve de ser tornar homem para poder ser Redentor. Essa parte do verso nunca pode ser entendida como significando algo pecaminoso que o Redentor possuía. A santidade de sua natureza humana (por causa da unio personalis) não impedia que o Redentor padecesse em nosso lugar. “Em semelhança de carne pecaminosa” significa que o Redentor sofreu tudo o que os seres humanos pecadores sofrem por causa do pecado. Os seres humanos sofrem porque são pessoalmente pecadores; Aquele sofre porque está substituindo os pecadores pelos quais veio sofrer e morrer. Os primeiros pagam os seus próprios pecados; este Último paga os pecados de outros.

4. VEJA A SANTIDADE DA JUSTIÇA DIVINA “e no tocante ao pecado; e, com efeito, condenou Deus, na carne, o pecado.”

A santa justiça de Deus não poderia ficar inerte diante das ofensas dos homens. A santidade de Deus exige que os pecados sejam necessariamente punidos, não necessariamente que os pecadores sejam punidos. Se houvesse a obrigatoriedade dos pecadores serem pessoalmente punidos, não haveria a possibilidade da substituição. Mas, como Deus não pode ter a sua santidade desonrada, ele tem de necessariamente punir homem. Por isso, ele enviou o seu Filho, “em semelhança de carne pecaminosa”, a fim de que pudesse “condenar, na carne, o pecado”. Quando o Verbo se fez carne, ele assumiu a nossa natureza humana caída. Esse é o sentido de “carne” nessa parte do texto. A fim de poder condenar os pecadores, Deus “arranjou” um homem, igual aos outros homens, tendo a natureza humana deles, e afeta-

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do pelas conseqüências do pecado, para sofrer a punição divina dos pecados. A santa justiça de Deus providenciou alguém como “carne”, isto é, alguém com natureza humana passível de ser condenada. Todavia, essa natureza humana era santa e inculpável, pois somente um Redentor “santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores” (Hb 7.26) poderia salvar culpados e corruptos.

C. EM VIRTUDE DA UNIO PERSONALIS O REDENTOR FICOU LIVRE DE QUALQUER PECADO PESSOAL Nas presentes condições de pós-queda, os pecados pessoais são necessariamente produto do fato de sermos, por natureza, pecadores em Adão. Pelo fato de estarmos em Adão e de termos a semente de Adão ainda em nós, pecamos pessoal e voluntariamente. Ainda no começo da história da Igreja, na patrística, o Concílio de Éfeso, em 431, afirmou um anátema sobre os que pensavam que Jesus Cristo pudesse ter tido algum pecado pessoal: “Se alguém assevera que Cristo se sacrificou por si mesmo, e não por nós unicamente – como Aquele que foi absolutamente livre do pecado, não teve necessidade de sacrifício – seja anátema.”249 Posteriormente, o Concílio de Calcedônia, em 451, seguindo a Escritura, disse, em seu Credo, que Jesus Cristo era “igual a nós em todas as coisas, exceto no pecado”. A Escritura tem abundante afirmação da santidade de Jesus, em virtude da qual ele não cometeu nenhum pecado pessoal. Apenas à guisa de ilustração, citamos um deles: Antes mesmo do “ente santo” ser gerado em Maria pela ação extraordinária do Espírito Santo, a Escritura já havia predito que ele “nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca” (Is 53.9), um verdadeiro varão perfeito, que soube dominar inclusive a sua língua, conforme o ensino de Tiago 3.2. Nenhum homem jamais se atreveu a desafiar seus acusadores de encontrarem pecado em sua vida, como Jesus fez. Ele sabia quem era e, por isso, desafiou os seus contemporâneos a acharem nele algum pecado. João registra que Jesus desafiou os seus algozes do seguinte modo: “Quem dentre vós me convence de pecado?” (Jo 8.46). A totalidade da vida de nosso Redentor entre nós foi de absoluta pureza e santidade de vida. Ele não teve qualquer pecado pessoal não somente porque não possuía natureza pecaminosa (Adão não possuía natureza pecaminosa, mas pecou), mas por causa da operação sobrenatural de Deus que provocou a unio personalis, gerando um Redentor divino-humano.

249. Concílio de Éfeso, 431 a.D., cânone 10.

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D. EM VIRTUDE DA UNIO PERSONALIS, A NATUREZA HUMANA DO REDENTOR TEVE UMA SANTIDADE INALTERÁVEL Não obstante ter sido “tentado em todas as coisas, semelhantemente a nós”, todavia, ele não pecou” (Hb 4.15). A inalterabilidade de sua santidade humana não é essencial a ela, mas é devida à sua união indissolúvel com a natureza divina do Verbo. A natureza humana do Redentor foi criada santa (assim como foi criada santa a natureza humana de nosso primeiro pai no Éden). Adão caiu mesmo sendo santo, mas o Redentor não pecou em sua humanidade, mantendo uma santidade inalterável em virtude dela estar unida inseparavelmente à sua divindade. A inalterabilidade da santidade de Deus é porque a santidade nele é essencial, e todos os atributos de Deus são imutáveis. Todavia, a natureza humana de Jesus Cristo não é imutável em si mesma, porque ela é parte da criação, e todas as coisas criadas são passíveis de mudança. Todavia, a inalterabilidade da santidade da natureza humana do Redentor é decorrente da unio personalis. Como nunca essa união vai se desfazer, então a santidade permanece inalterável.250

APLICAÇÃO A. OBSERVE QUÃO FORMOSO É O SEU REDENTOR É importante que você admire a formosura do caráter do seu Redentor. Todos os elementos do seu caráter são perfeitos e fascinantes. Eles constituem o nosso Redentor como uma pessoa singular na história do mundo. Ninguém, antes ou depois dele, veio a ser igual a ele nessa formosura em virtude da unio personalis. Nenhum nome se aproxima do seu nome, que está “acima de todo nome”. Jesus Cristo é tão formoso de caráter que o seu nome é de acordo com a santidade do seu caráter, o nome mais santo que uma boca humana pode pronunciar. Em comparação com o seu nome, nem mesmo os nomes das pessoas mais gloriosas deste mundo não se aproximam da beleza do nome e do caráter do Redentor. Todos os outros nomes ficam empalidecidos diante do nome e da formosura do seu Redentor. É como se comparássemos a formosura de uma vela com a formosura e grandeza do sol. Jesus Cristo tem sido o objeto de adoração universal, de homens e anjos, embora muitos hoje o adorem em ignorância e em insinceridade. Por essa razão, você deve prestar adoração a Jesus Cristo. A dignidade dele deve levá-lo a uma adoração sincera e ardente! Não obstante ele possuir a humanidade igual à sua, você não deve pensar que a honra dele é igual à dos homens mais dignos deste mundo. Por causa da unio personalis, ele permanece sozinho em sua altíssima dignidade. Ele é incansável 250. Esse assunto sobre a santidade inalterável do Redentor será estudado quase que exaustivamente no capítulo sobre a impecabilidade do Redentor.

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em sua benevolência, inalcançável em sua paciência, imaculado em sua retidão, impoluto em sua santidade, etc., e por essas razões você observar essa beleza que o deve conduzir a uma santa admiração e conseqüente adoração! Ninguém se assemelha à sua formosura. Salmo 27.4 – “Uma coisa peço ao Senhor, e a buscarei: que eu possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do Senhor, e meditar no seu templo.”

Se entendemos que o Senhor se revelava localmente, no templo, então vamos entender o significado desse desejo do salmista. Ele queria estar o tempo todo no lugar de revelação de Deus para contemplar a formosura do Senhor. Jesus Cristo é o Deus revelado, e ele expressa a beleza e a formosura da divindade. Quando contemplamos Jesus, contemplamos o Deus que Davi queria contemplar em todo seu esplendor e glória. Hoje temos mais luz do que Davi, porque Deus, o Filho, encarnou-se e reflete a beleza de Deus, sendo a expressão exata do seu ser. Todavia, Jesus Cristo, além de refletir a beleza de Deus, reflete a beleza de sua humanidade por estar vinculada à divindade. Quando temos isso em mente, como Davi, passamos a meditar sobre ele todos os dias de nossa vida. Isaías viu o Filho encarnado (embora o profeta não tivesse a luz da revelação completa que hoje temos!) como alguém que seria “exaltado e elevado, e que seria muito sublime” (Is 52.13). Ele haveria de refletir a elevação divina e a exaltação da humanidade imaculada, um Redentor agraciado com muitos dons e acrescido de muitas honras. Ele era todo formoso! Um poeta e músico sacro o descreveu desta maneira, e assim ele deve ser cantado na sua Igreja: Ó formoso Cristo, rei da natureza. Divino Ser, nascido aqui. Com glória e honra, quero exaltar-te Coroa e gozo achei em ti.

O que o salmista desejou para si é o que você também deve desejar. No Senhor, você pode ver a beleza que jamais pode ser vista em outro ser. Ele faz resplandecer a beleza divina e a beleza humana, aquela à qual todos os remidos vão se conformar. Não é assim que você vê Jesus Cristo? Se o seu desejo mais importante, como Davi, é o de ter comunhão com ele, então aprenda a apreciar a sua beleza e formosura, e aprenda a meditar em todas as coisas que você ouve e lê a respeito dele. Então, certamente, você haverá de lhe prestar a devida honra e a adoração que lhe é devida.

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B. OBSERVE, NO ENTANTO, QUE A SUA HUMANIDADE GLORIOSA SERÁ INFERIOR À HUMANIDADE GLORIOSA DO SEU REDENTOR A Escritura nos ensina que a nossa Redenção será tal que haveremos de ter toda a nossa natureza humana (corpo e alma) semelhante à de Jesus Cristo. Moralmente, seremos iguais a Cristo porque haveremos de ser limpos de nossos pecados e não mais pecaremos porque àquela altura teremos sido completamente santificados. Todavia, ainda que sejamos semelhantes a Cristo segundo a sua natureza humana, nunca teremos a mesma glória de sua natureza humana, porque a glória dela está no fato dela ser unidade inseparavelmente, imutavelmente, indivisivelmente à sua natureza divina. As graças de que a natureza humana de Cristo participa são ímpares em sua extensão e intensidade. Temos em alguma medida algumas dessas graças que pertencem à natureza humana redimida em si mesma, mas Cristo as tem de maneira eminente em virtude da unio personalis. Portanto, almeje ser como Cristo, tendo a beleza do seu caráter, mas lembre-se de que você será sempre e unicamente homem. Nada mais. O seu Redentor é Deushomem, e a unio personalis torna a sua perfeita humanidade altamente privilegiada e ímpar, como a de nenhum homem. Participe da natureza moral de Cristo, segundo a sua humanidade, e contente-se com essa alta honraria, mas saiba que Deus predestinou você para ser conforme a imagem do seu Filho segundo o que é próprio e exclusivo da sua humanidade. Você foi predestinado para refletir a imagem moral do seu Redentor, e até refletirá a beleza do seu corpo, mas você nunca terá as altas honrarias que o Redentor adquiriu segundo a sua humanidade em virtude da unio personalis.

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CAPÍTULO 5 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA DIVINA DO REDENTOR

N

a realidade, logo de início, temos que dizer que não houve qualquer mudança essencial na natureza divina do Redentor em virtude da unio personalis, porque essa natureza divina é imutável. As verdades de que vamos tratar nesta parte do capítulo dizem respeito a erros cometidos por teologias que tentam macular a divindade do Redentor, alegando mudanças em sua natureza divina em virtude da unio personalis. Há duas questões que serão tratadas neste capítulo que normalmente não recebem quase nenhum tratamento nas obras clássicas de teologia sistemática, em virtude da exigüidade de espaço. A primeira questão tem a ver com o problema causado pelo aparecimento das teorias kenóticas na teologia cristã, especialmente as que surgiram na teologia moderna do Luteranismo e do Calvinismo, quase todas elas relacionadas ao surgimento do liberalismo teológico nas principais escolas alemãs. A segunda questão tem a ver com o chamado extra-calvinisticum, uma querela entre luteranos e calvinistas sobre o que aconteceu à natureza divina de Cristo, especialmente no tempo do seu período como encarnado neste mundo. É bom lembrar que os luteranos não afirmam nenhuma mudança na natureza divina de Cristo. Eles é que acusam os calvinistas de ensinarem uma doutrina na qual a natureza divina de Cristo age fora e à parte de sua natureza humana. Feita essa introdução ao capítulo, passemos à análise do problema kenótico, e, posteriormente, ao problema do extra-calvinisticum.

A QUESTÃO DAS TEORIAS KENÓTICAS A questão das teorias kenóticas é levantada aqui porque, na concepção de muitos teólogos (especialmente os de tendência liberal), houve uma grande mudança na natureza divina de Jesus Cristo, porque o Verbo, ao encarnar-se, esvaziou-se (ao menos em algum sentido) de sua divindade. Como não haveremos de abordar esse assunto em outro lugar neste livro, fare-

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mo-lo aqui. Todavia, de antemão, reafirmamos que a unio personalis não trouxe mudança alguma na essência divina do Redentor. Na encarnação, o Verbo divino assumiu a natureza divina, e a Escritura dá evidências das duas naturezas agindo de maneira que qualquer coisa feita segundo uma das naturezas, é uma ação pertencente à totalidade da Pessoa do Redentor.

A. HISTÓRICO DA TEORIA KENÓTICA As origens do pensamento kenótico remontam o tempo imediatamente após a Reforma, com os socinianos, ainda que de uma forma velada. O socinianismo começou a fazer parte da Igreja cristã já na Reforma, mas o seu pensamento está de alguma forma relacionado ao antigo arianismo. Ele era unitário, crendo numa só Pessoa da Divindade, e muito comum entre os humanistas italianos. Em 1546, um grupo de reformadores racionalistas de uma confraternidade secreta se reuniu em Vicenza. Dois italianos de nascimento, Lélio Socino (1525-62), o tio, e Fausto Socino (1539-1604), o sobrinho, parecem ter sido os líderes. O primeiro elaborou um sistema de unitarismo em que ele considerava Jesus como concebido sobrenaturalmente e nascido de uma virgem, de forma que ele era verdadeiramente Filho de Deus, mas, com respeito à sua natureza, ele era considerado simplesmente como um homem a quem Deus deu revelações extraordinárias, exaltou-o ao céu após sua morte e entregou o governo da Igreja. Era, portanto, um homem com propriedades divinizadas. O primitivo socinianismo sustentava que Cristo recebeu o Espírito no batismo, e, visto que ele foi levado ao céu para receber instruções especiais, foi, portanto, adorado. O socinianismo posterior, sob a pressão do racionalismo, desenvolveu-se num deísmo e unitarismo, que, em suas formas liberais, considera Jesus Cristo como não mais do que um homem de caráter e de poder excepcional.251 Na verdade, o socinianismo acabou tirando de Jesus Cristo a sua natureza divina na encarnação. As origens do kenotismo mais influente deram-se principalmente nos debates gerados pelas duas maiores tradições do Protestantismo da pós-Reforma – luterana e calvinista. No contexto das controvérsias cristológicas dessas duas tradições, apareceu o problema do kenotismo, no qual ambas as tradições eram alvo de crítica, uma da outra: “o Luteranismo, portanto, era vulnerável à acusação de ter confundido as duas naturezas de Cristo, e a teologia reformada era acusada de ter dividido a sua pessoa.”252 Em outras palavras, a grosso modo, os luteranos eram acusados de eutiquianismo, enquanto os reformados eram acusados de nestorianismo. A doutrina da unio personalis, interpretada de modo diferente por luteranos e calvinistas, levou essas duas tradições a um grande debate cristológico, conhecido 251. Essas informações sobre o socinianismo são encontradas no site http://wesley.nnu.edu/HolinessTradition/Wiley/wiley-2-20.htm, consultado em julho de 2003. 252. David F. Wells. The Person of Christ (Westchester, Illinois: Crossway Books, 1990), 133.

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como a controvérsia da communicatio idiomatum (comunicação de atributos). Para resolver o problema da relação do divino com o humano no Redentor, os luteranos (diferentemente dos calvinistas) partiram para a tendência de fazer a natureza humana de Cristo participar dos atributos que pertenciam à sua natureza divina. Posteriormente, dentro da tradição luterana, já agora no século 19, o pêndulo mudou de lado. Ao invés do humano realizar as coisas do divino, alguns teólogos luteranos começaram a enfatizar a idéia do divino ser anulado na pessoa do Redentor, após a encarnação. Houve uma espécie de esvaziamento dos atributos divinos do Logos na encarnação.

B. A DEFINIÇÃO DA TEORIA KENÓTICA De um modo bem resumido, a teoria kenótica moderna, em seu sentido mais amplo, pode ser definida como a doutrina em que o Logos, na encarnação, foi despojado de alguns de seus atributos transitivos ou de todos eles, ou que os seus atributos foram reduzidos a uma mera potencialidade, e então, em união com a natureza humana, desenvolveram novamente numa pessoa divino-humana. MacIntosh, tratando das teorias kenóticas oriundas da união das Igrejas luterana e reformada na Alemanha, no começo do século 19, diz que essas teorias procuram “fazer justiça à verdade de que a encarnação do Filho envolveu uma real autolimitação de seu modo divino de existência”.253 Em geral, os defensores da teoria kenótica crêem que o Filho cessou temporariamente de ser o Filho a fim de tornar-se homem. Para eles, é muito difícil conciliar o fato de ambas as naturezas estarem juntas e de serem simultaneamente exemplificadas na mesma pessoa, seja ela o Filho eterno ou o homem Jesus Cristo. Dessa forma, os postulantes da teoria kenótica crêem que o Filho de Deus que andou neste mundo, quando de sua encarnação, deixou de ser o Filho eterno.

C. OS PRIMÓRDIOS DA TEORIA KENÓTICA As teorias posteriores do kenotismo, que ainda serão estudadas, tiveram como nascedouro as chamadas teorias anteriores da despontencialização (“Earlier Depontentiation Theories”). Elas se desenvolveram em duas escolas teológicas na Alemanha (Giessen e Tübingen) que tiveram posições diferentes com relação à natureza da humilhação. Começando a partir da comunicatio idiomatum como a base comum, ambas as escolas sustentavam que, desde o momento de sua concepção, Cristo possuía os atributos da onipresença, onisciência e onipotência, mas eles interpretaram a humilhação de modos diferentes. Os teólogos de Giessen sustentavam que houve uma kenosis (ou esvaziamento) dos atributos divinos durante 253. H. R. MacIntosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribner´s Sons, 1912), 265.

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a vida terrena de Cristo, e desde então foram conhecidos como kenotistas, enquanto os da escola de Tübingen sustentavam que os atributos foram somente ocultados, e, desde então, foram conhecidos como kriptistas.254 Os kenotistas, entretanto, fizeram uma distinção entre a posse dos atributos (kthsij), e o uso dos atributos (xrhsij), aplicando-se à kenosis somente ao último. Conseqüentemente, os kriptistas consideravam a glorificação como a primeira demonstração dos atributos divinos na vida de Cristo, enquanto os kenotistas viram-na como uma retomada deles. As teorias da despontencialização tomaram várias formas, mas houve um elemento comum em todas elas – elas criam que houve uma fusão literal da divindade de Cristo no Espírito do homem Cristo Jesus.255 Somente depois dessas teorias da despontencialização foi que apareceram as teorias propriamente chamadas de kenóticas.

D. O PROBLEMA QUE A TEORIA KENÓTICA TENTOU RESOLVER Os kenotistas sempre começaram a partir do Verbo divino e pré-existente. A sua tentativa era a de explicar como foi possível ter havido a encarnação. Havia duas saídas mais fáceis para os defensores do kenotismo: negar a pré-existência ou modificar a divindade do Verbo. Mas eles não fizeram nenhuma coisa nem outra. O preço advindo da crítica do mundo teológico seria muito alto. Ao mesmo tempo em que eles criam na divindade e na pré-existência do Verbo, eles também criam na plena humanidade e historicidade de Jesus Cristo. Para os kenotistas, segundo Wells, “a humanidade não era simplesmente uma vestimenta pela qual o divino poderia disfarçar-se como ser humano. A humanidade de Jesus era tão plena como qualquer outra expressão de humanidade, e também sujeita à mesma finitude e limitações”.256 Crendo na divindade do Verbo e na plena humanidade de Jesus, como poderiam eles explicar o divino no humano? A saída para os kenotistas foi dar mais importância aos atributos morais da divindade (especialmente o amor) do que aos atributos da infinidade, na pessoa do Redentor. Eles não negaram a divindade e a pré-existência do Verbo, mas na encarnação o Verbo se desvestiu dos atributos da infinidade para que os atributos morais pudessem estar plenamente presentes na humanidade do Redentor. Ao tentarem resolver o problema da coexistência do divino e do humano simultaneamente na mesma pessoa, eles acabaram negando o divino quando se deu a encarnação. 254. Do verbo grego kru/ptw = esconder, ocultar. 255. Informações obtidas no site http://wesley.nnu.edu/HolinessTradition/Wiley/wiley-2-22.htm, consultado em agosto de 2003. 256. David F. Wells. The Person of Christ (Westchester, Illinois: Crossway Books, 1990), 138.

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E. A BASE BÍBLICA USADA PELOS DEFENSORES DAS TEORIAS KENÓTICAS Os defensores das várias teorias kenóticas usam alguns textos da Escritura para justificar as suas posições. Filipenses 2.7 – “… antes a si mesmo se esvaziou (e)ke/nwsen), assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana…”

O termo kenosis é derivado do texto acima, que diz que Cristo “a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo”. O “esvaziamento” é entendido como sendo o despojamento de alguns (ou de todos) atributos da divindade por ocasião da encarnação. Obviamente, segundo o Cristianismo histórico, houve uma interpretação equivocada do verbo ekenosen que levou ao kenotismo. A interpretação errônea do verso acima levou à interpretação errônea do verso abaixo: 2 Coríntios 8.9 – “Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que pela sua pobreza vos tornásseis ricos.”

A pobreza é equivalente à humanidade, e a riqueza é equivalente à divindade. Se isso é verdade, então, por causa da obra de Cristo por nós, haveríamos de atingir a divindade da qual o Senhor se esvaziou, porque o texto diz que “pela sua pobreza vos tornásseis ricos”, mas obviamente isso é algo impossível. João 17.5 – “Glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti antes que houvesse mundo.”

Esse é um texto muito interessante e pode ser usado indevidamente pelos adeptos do kenotismo: Jesus Cristo, o Filho eterno, pede que a glória que possuía antes da fundação do mundo lhe seja trazida de volta. Aparentemente, esse verso parece favorecer a teoria kenótica, porque parece sugerir Cristo tinha deixado de ser glorioso na sua humilhação e deseja, agora, que essa glória possuída antes da encarnação seja reinstalada nele. Não podemos nos esquecer de que, se ele era Deus antes da encarnação, ele não pode mudar. Entretanto, será que Jesus realmente estava pedindo que se operasse uma mudança de volta nele? Ou será que ele estava pedindo para ter de novo a glória que anteriormente lhe pertencia, mas que agora não lhe pertence mais? Essas questões sugerem que a teoria kenótica pode ser verdadeira, isto é, que o Filho parou de ser o Filho e que, agora, deseja reconquistar aquilo de que ele havia se esvaziado. Todavia, o estudioso de Cristologia haverá de observar que o elemento que causa a confusão nessa matéria é a suposição em favor da teoria kenótica. A natu-

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reza humana de Jesus Cristo não é a mesma coisa que a natureza infinita da divindade. De acordo com a sua humanidade, Jesus Cristo experimentou tudo o que é próprio da natureza humana experimentar. Todavia, ao mesmo tempo em que ele existia segundo a sua natureza humana, em sua personalidade ímpar, ele também existia segundo a sua natureza divina, como o Filho eterno de Deus. Em João 17.5, Jesus Cristo, como o Filho eterno de Deus, está se expressando através de sua humanidade, e está anelando e desejando da forma como uma natureza humana se expressa. Ele não está pedindo que a glória infinita perdida seja trazida de volta, mas que a manifestação daquela glória anterior seja demonstrada agora também através de sua natureza humana. Isso não significa que o humano passe a ter o divino, mas que o humano participe conjuntamente (em virtude da união pessoal) daquilo que pertence exclusivamente ao divino, e que ele (como pessoa divina) havia experimentado antes da fundação do mundo (ou mesmo antes da encarnação), mas que havia deixado de usar por causa do seu estado de humilhação. A Pessoa do Filho sabe o que significa essa glória, pois ela lhe era peculiar. O que o Filho encarnado está pedindo não é que essa glória se seja trazida de volta, mas que ela seja manifesta no seu estado de encarnado, pois essa glória ficou eclipsada justamente por causa da sua humilhação. O pedido do Filho encarnado (que revela os seus desejos, segundo a sua natureza humana) é que a glória anterior seja manifesta agora da mesma forma em que ela se manifestava antes da encarnação. Perceba que Jesus Cristo não pede ao Pai para dar-lhe de volta os atributos divinos perdidos, mas a glória da manifestação deles. Ele não foi despojado dos seus atributos, mas deixou de fazer uso pleno deles como Deus que era. Nos versos mencionados acima não se ensina a despotencialização do Verbo total ou parcialmente, a fim de que ele fosse reduzido à humanidade somente. Ele nunca perdeu os traços da sua divindade na encarnação, pois esses traços aparecem, ainda que de forma velada, mas eles nunca foram plenamente escondidos, especialmente os atributos relativos à sua natureza moral. Os textos mencionados acima foram interpretados pelos defensores do kenotismo como significando o despojamento da natureza divina na encarnação e o revestimento unicamente da natureza humana, mas não é assim que eles devem ser entendidos.

F. AS VARIAÇÕES DA TEORIA KENÓTICA Não é correto falar de uma teoria kenótica, mas de várias. Houve uma grande variação do kenotismo na teologia cristã, especialmente a partir da segunda metade do século 19. Todavia, mencionaremos apenas uns poucos exemplos úteis para o nosso propósito.

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1. A TEORIA KENÓTICA DE THOMASIUS Alguns teólogos do Luteranismo moderno, da escola da Alemanha, crêem que Jesus não estava simultaneamente na terra como um ser humano e nos céus como Deus. Obviamente, o conceito prejudicado foi o da sua divindade, como é próprio das várias ênfases do liberalismo teológico. Os teólogos liberais só conseguiram encontrar um homem no Jesus de Nazaré. Na encarnação, segundo eles, Cristo abriu mão da divindade e de seus atributos, exceto os morais, e, assim, tornou-se um homem. O teólogo alemão que deu à doutrina kenótica um fundamento científico foi G. Thomasius de Erlangen (1802-1875). “Ele foi o advogado mais antigo do kenotismo moderno. Ele sustentava que o conceito luterano das duas naturezas exigia que o infinito fosse trazido para o finito, ou que o finito fosse levado ao infinito. Visto que a aceitação dessa última posição conduzia a dificuldades insuperáveis na teologia luterana, ele sustentou que a majestas deveria ser abandonada pela kenosis. De acordo com Thomasius, o Filho de Deus entrou numa forma de existência de uma personalidade de criatura, e fez-se a si mesmo o eu de um indivíduo humano. Sua consciência, portanto, tinha as mesmas condições e conteúdo que pertenciam a pessoas finitas”.257

Thomasius rompeu com a tradição exegética tradicional dos luteranos em relação ao texto de Filipenses 2, sustentando que o auto-esvaziamento tem relação com o Cristo pré-existente, não com o Filho encarnado.258 Ele escreve que o Logos “renunciou a plenitude do seu ser Divino em todas aquelas relações em que ele se revela ad extra, baixando-se a si mesmo para se tornar o substrato de uma real personalidade humana, mudando a sua consciência divina para uma que era humana, ou antes, divino-humana, e, assim, tornou-se capaz de formar o centro de uma única Vida pessoal. Além do mais, podemos construir essa Vida como experimentando um desenvolvimento verdadeiramente humano, visto que, como o Logos tinha voluntariamente contraído sua vida para as formas e dimensões da existência humana, submetendo-se às leis do crescimento humano e preservando seus poderes absolutos somente na medida em que eles eram essenciais para a sua obra redentora; e no final de sua carreira terrena ele resumiu uma vez mais a glória a glória que Ele havia colocado de lado.”259 257. Informações encontradas no site http://wesley.nnu.edu/HolinessTradition/Wiley/wiley-2-22.htm, acessado em agosto de 2003. 258. H. R. Mackintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribner´s Sons, 1912), 266 259. Citado por H. R. Mackintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribner´s Sons, 1912), 266

264

A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Thomasius afirma, segundo Berkhof, que o Logos Divino, “embora mantendo seus atributos morais ou imanentes de poder absoluto e liberdade, santidade, verdade e amor, temporariamente se desvestiu dos atributos relativos da onipotência, onipresença, e onisciência, mas após a sua ressurreição ele reassumiu esses atributos.”260

Somente dos atributos chamados comunicáveis (especialmente os atributos morais) Cristo não abriu mão, porque estes são essenciais à Divindade, independentemente de sua relação com o universo. Dos incomunicáveis, parece-me, é dito que ele deixou de lado, deles se esvaziando, porque estes (onipotência, onipresença, e onisciência) não eram essenciais à Divindade, senão em sua relação com o mundo, isto é, relativos às opera ad extra.261 Portanto, Thomasius “separou os atributos metafísicos como onipotência, onipresença e onisciência, dos atributos morais como amor e santidade”.262 Portanto, segundo o pensamento de Thomasius, fica descartado o problema da imutabilidade de Deus, pois Deus não se altera naquilo que é essencial a ele, e essenciais em Deus, para Thomasius, são os atributos morais. A razão disso é que Thomasius cria, de acordo mesmo com a cristologia tradicional luterana, que “não há nenhuma presença ou atividade do Filho encarnado fora da sua natureza humana; e ele argumenta que, pela adição do genus tapeinoticum – de acordo com o qual os atributos da humanidade foram transferidos para a divindade, e limites foram impostos sobre ela – a inteireza foi, pela primeira vez, dada à teoria mais antiga da communicatio idiomatum.”263

Essa teoria de Thomasius, além de insatisfatória, é parcial, segundo o entendimento geral da ortodoxia cristã. Como pode a divindade esvaziar-se de alguns atributos e de outros não? São alguns deles mais essenciais que outros? É exatamente essa a resposta de Thomasius. Por causa de sua resposta, “os principais princípios [de Thomasius] foram aceitos por luteranos como Kahnis, Luthardt, e Delitzsch, e por teólogos reformados como Ebrard e Godet, enquanto neste país [Inglaterra] eles obtiveram uma aprovação modificada de escritores como Fairbairn, Gore e Forrest.”264

A teoria kenótica de Thomasius, afirma, em resumo, que temporariamente Cristo abriu mão “dos atributos relativos da onipotência, onipresença e onisciência, mas 260. Louis Berkhof, History of Christian Doctrines (Grand Rapids: Baker, 1983), 121. 261. H. R. Mackintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ, 267. 262. Sinclair Ferguson e David F. Wright, org., New Dictionary of Theology (Downers Grove, Ill.: Inter Varsity Press, 1988), 364. 263. H. R. Mackintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ, 266, 267 264. Ibid., 267 (nota de rodapé 3).

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA DIVINA DO REDENTOR

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após a ressurreição ele reassumiu esses atributos”,265 embora ele também sustentasse que Jesus tenha mantido uma “consciência divina”, “mas não é claro, ao menos para mim, o que isso significa, ou como isso é possível”.266

2. A TEORIA KENÓTICA DE W. F. GESS W. F. Gess (1819-1891), um teólogo da Swabia, recebeu a influência de Bengel, Oetinger e Beck. Ele partiu de um pano-de-fundo do realismo bíblico teosófico, e levou a teoria kenótica a uma perspectiva ainda bem mais exagerada que a de seu predecessor, Thomasius. Ele afirmava que o Logos não somente esvaziou-se dos atributos relativos, mas se desvestiu também dos atributos essenciais. Portanto, houve uma real transformação do Logos numa alma humana. Essa teoria sustenta, além disso, que, conquanto Cristo tenha assumido sua carne do corpo da Virgem, sua alma não foi derivada assim, mas foi o resultado de uma kenosis voluntária.267 Gess foi influenciado por Thomasius, formulou uma teoria kenótica modificada, e foi ainda mais longe do que Thomasius, estendendo a kenosis aos atributos imanentes também.268 Gess desvestiu Jesus de qualquer dos atributos da Divindade e questionou o uso do termo “encarnação”.269 Berkhof diz que “a teoria de Gess, foi mais absoluta e consistente, e também mais popular, no sentido de que o Logos, na encarnação, literalmente cessou suas funções cósmicas e sua consciência eterna e reduziu-se absolutamente para as condições e limites da natureza humana, de forma que a sua consciência se tornou puramente a de uma alma humana.”270

Segundo o pensamento de Gess, Jesus Cristo “sofreu a extinção de sua autoconsciência eterna, para reconquistá-la após muitos meses como uma consciência humana variável, sujeita ao processo de desenvolvimento gradual, e, algumas vezes – como na infância, no sono e na morte – não envolvendo, de forma alguma, nenhuma autoconsciência. Passo a passo ele veio a saber quem realmente ele era.”271 265. Berkhof, History of Doctrine, 121. 266. Michael Bremmer, Kenotitic Theology, no site http://www.mbrem.com/jesus_Christ/keno.htm, consultado em agosto de 2003. 267. Informações obtidas no site http://wesley.nnu.edu/HolinessTradition/Wiley/wiley-2-22.htm , acessado em agosto de 2003. 268. H. R. Mackintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ, 267. 269. Sinclair Ferguson e David F. Wright, orgs., New Dictionary of Theology (Downers Grove, Ill.: Inter Varsity Press, 1988), 364. 270. Berkhof, The History of Christian Doctrines, 121. 271. H. R. Mackintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ, 267.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

Enquanto esteve aqui neste mundo, segundo o pensamento de Gess, as funções cósmicas do Filho foram interrompidas temporariamente.272 Quando objetado sobre o fato de Jesus possuir unicamente uma consciência humana, certamente Gess diria que “de qualquer forma, a experiência de Jesus transcende a de outros homens na medida em que ele está consciente de que já havia sido mais do que um homem e de que algum dia ele retornaria ao seu elevado estado anterior”. “É o paradoxo de sua consciência singular de que Aquele que existe como homem sabe de si mesmo ser Deus, e se lembra do tempo quando Ele exercia os atributos de poder e conhecimento que, por ora, ele havia deixado de lado.”273

3. A TEORIA KENÓTICA DE EBRARD J. H. A. Ebrard (1818-1888) foi um teólogo reformado que primeiramente desenvolveu a sua doutrina em conexão com a Santa Ceia. Ele concordava com Gess em relação ao Logos encarnado como tomando o lugar da alma humana, mas difere dele no sentido em que ele não sustentava esse evento como sendo uma despontencialização. Ele sustentava que os atributos da onipresença, onisciência e onipotência permaneciam, e, portanto, a humilhação era um disfarce da sua Divindade. A posição dele aborda de perto a ortodoxia mais antiga da Igreja Reformada.274 Esse teólogo reformado refletiu tendências kenóticas, mas de maneira diferente das dos teólogos luteranos. Segundo Berkhof, “Ebrard supôs uma vida dupla no Logos. De um lado, o Logos reduziu-se a si mesmo às dimensões de um homem e possuiu uma consciência puramente humana, mas, de outro lado, ele também reteve e exercitou suas perfeições divinas na vida trinitária sem qualquer interrupção. O ego eterno existe imediatamente na forma eterna e na forma temporal, infinita e finita.”275

Então, na concepção de Ebrard, o erro está em Cristo não possuir consciência infinita aqui neste mundo, mas somente nas relações da Trindade. Neste mundo, ele teve apenas uma consciência humana, desvestida de autoconsciência divina.

4. A TEORIA KENÓTICA DE KENNETH COPELAND Esse pregador contemporâneo não deve ser considerado um expoente da teologia cristã do final do século 20, mas é importante expor o seu pensamento cristológico pela influência que ele exerce nos meios neo-pentecostais, como um dos líde272. Ibid., 267-68 273. Ibid., 268. 274. Informações obtidas no site, http://wesley.nnu.edu/HolinessTradition/Wiley/wiley-2-22.htm , acessado em agosto de 2003. 275. Berkhof, The History of Christian Doctrines, 121.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA DIVINA DO REDENTOR

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res da Terceira Onda e do Faith Movement. Ele afirmou algumas coisas que demonstram a sua tendência kenótica: “Por que Jesus não proclamou a si mesmo abertamente como Deus durante os seus 33 anos sobre a terra? Por uma razão simples: ele não tinha vindo à terra como Deus, mas como homem.”276

Essa é uma maneira de falar do desvestir-se da Divindade na encarnação. O enviado do céu à terra não veio com atributos divinos, mas na encarnação ele mostrou somente a sua humanidade. “Esse Jesus-homem era a cópia carbono daquele que andava no Jardim do Éden”.277 Copeland não nega a divindade de Cristo, mas nega que ele não veio à terra como Deus. A razão do seu kenotismo é a seguinte: “Ele [Deus] tem de ter um homem igual ao primeiro. Tinha de ser um homem. Ele tinha de ser em tudo homem. Ele não pode ser um Deus e invadir aqui com atributos e dignidades que não são comuns ao homem. Ele não pode fazer isso. Não é legal.”278

Outras afirmações do seu kenotismo apareceram em 1988, num dos números da revista Believer´s Voice of Victory: “Jesus não teve de vir à terra como Deus; Ele veio como homem. Ele colocou de lado o seu poder divino e tomou a forma de um ser humano – com todas as suas limitações.” Segundo Copeland, Jesus viveu na terra “não como Deus mas como homem”. Ele também ensina que Jesus orou... “não como o Divino, que tinha autoridade como Deus, mas como homem...” e que Jesus “nunca viu a si mesmo como sendo o Deus Altíssimo”.279 Essas citações mostram que Copeland está andando em direção oposta à formulação cristã clássica da ortodoxia com relação a Cristo. Qualquer conceito de encarnação que provoque mudanças na natureza divina sugere que o Verbo cessa de ser Deus. Em outras palavras, é isso que Copeland faz, ainda que não o assevere de modo direto. Ele ainda diz que “(a maioria dos cristãos) erroneamente crê que Jesus era capaz de operar maravilhas, desempenhar milagres e viver acima do pecado porque ele possuía um poder divino que nós não temos. Assim, eles [os cristãos] nunca realmente aspiraram viver como ele viveu. Eles não percebem que, quando Jesus veio à terra, ele voluntariamente desistiu dessa vantagem, vivendo sua vida aqui não como Deus, mas como um homem. Ele não possuía quaisquer poderes sobrenaturais. 276. K. Copeland, Believer’s Voice of Victory magazine, 8 de agosto de 1988. p. 8. 277. K. Copeland, “Jesus our Lord of Glory”, Believer’s Voice of Victory, April 1982, p. 2. 278. K. Copeland, “What Happened From the Cross to the Throne” (audiotape). Fort Worth, Texas, K. Copeland Ministries, 1990 #02-0017 ou 00-0303. 279. Citações feitas por Moreno Dal Bello em seu artigo em 4 partes: Atonement Where? A Comprehensive Word/Faith Study, no site http://www.banner.org.uk/wof/moreno1.html , acessado em setembro de 2003.

268

A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Ele não tinha nenhuma capacidade de fazer milagres até que, posteriormente, foi ungido pelo Espírito Santo.”280

Para os defensores de qualquer teoria kenótica, embora creiam na divindade eterna do Filho de Deus, em sua onisciência e em outros atributos próprios da divindade, eles crêem também que, na encarnação, ele se esvaziou de sua glória para tomar a forma de servo. Isso parece sugerir que, ao tomar a forma de servo, ele se esvaziou das suas atribuições divinas e da sua própria divindade.

G. A RAZÃO DO APARECIMENTO DA TEORIA KENÓTICA A teoria kenótica moderna apareceu certamente como uma tentativa de solução para alguns problemas gerados pela união entre as duas naturezas: Para os seus defensores, a teoria kenótica faz justiça ao elemento divino em Cristo. Todavia, mesmo tentando fazer justiça ao elemento divino em Cristo, ela bate de frente com uma importante doutrina do Cristianismo histórico, que é a da imutabilidade de Deus. Por essa razão, devemos recusar essa doutrina no seio da Igreja cristã. Para os seus defensores, a teoria kenótica foi uma resposta para os problemas provocados pelas narrativas bíblicas que dizem respeito ao crescimento de Cristo em conhecimento e à sua aparente ignorância de certos fatos em sua existência terrena. Como a questão das teorias kenóticas surgiu mais nos círculos luteranos, os defensores dessas teorias acharam uma solução no despojamento de propriedades da natureza divina na união hipostática na encarnação. Todavia, nos círculos reformados, essa questão do conhecimento limitado de Cristo e do seu crescimento em conhecimento é resolvida pela doutrina da comunicação de atributos, que não se dá entre as naturezas em si, na comunicação de atributos das naturezas para a Pessoa. O aparecimento da teoria kenótica, especialmente no século 19, deu-se no contexto do ecumenismo reformado-luterano, onde ela foi vista como um meio de superar as diferenças históricas entre as duas tradições na área da Cristologia, e também como um meio de oferecer soluções potenciais para algumas das questões levantadas pela Cristologia que sustenta a doutrina das duas naturezas. Todavia, as diferenças entre as duas tradições, na realidade, não foram vencidas, e até hoje (ao menos nos círculos luteranos mais conservadores) elas permanecem como desde os primórdios das controvérsias cristológicas do período pós-Reforma.

H. A ATRAÇÃO DA TEORIA KENÓTICA A teoria kenótica tem produzido algum tipo de atração em alguns cristãos contemporâneos porque ela parece oferecer uma solução para o grande mistério do 280. Apud John MacArthur, Charismatic Chaos, 276.

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Deus infinito vir fazer morada junto à humanidade. A solução do kenotismo para esse mistério é fazer com que o Filho de Deus encarnado seja despojado de muitos de seus atributos divinos. Daí a explicação para a sua ignorância a respeito de certos segredos divinos, como é o caso do dia da segunda vinda. A tendência da aparição de alguma doutrina errônea com relação à Pessoa de Cristo quase sempre tem a ver com a explicação mais fácil que ela traz para um mistério inexplicável. Toda doutrina que explica o inexplicável atrai adeptos porque a tendência é partir para o que é intelectualmente mais racional e mais assimilável. Uma outra razão pela qual a teoria kenótica é atraente é o fato de ela aparentemente oferecer algum tipo de solução para a identificação de Deus com os seres humanos. Os defensores da teoria kenótica consideram a sua formulação como fazendo mais justiça à pessoa de Cristo do que o entendimento cristológico histórico.281

I. DIFICULDADES TEOLÓGICAS QUE A TEORIA KENÓTICA CRIOU Os defensores da teoria kenótica acabaram criando muitas dificuldades teológicas que são cruciais para o Cristianismo. Se a teoria kenótica for aceita, a fé cristã perde a sua força e o Redentor passa a ser unicamente humano e, como tal, ele deixa de ser o poderoso Redentor. Veja as dificuldades teológicas que a teoria kenótica apresenta:

1. A TEORIA KENÓTICA CRIA DIFICULDADES SOBRE O QUE É ESSENCIAL EM DEUS Alguns kenotistas freqüentemente dividem os atributos de Deus em essenciais e não-essenciais, imanentes e relativos, para poder resolver o problema do divino no humano. Essa divisão é definida de modo arbitrário, sendo, portanto, sem fundamento escriturístico. Não há qualquer evidência na Escritura de que alguns atributos sejam menos importantes em Deus do que outros. Os kenotistas, porém, por causa dos seus pressupostos cristológicos, acabaram considerando essencial na divindade aquilo que o humano pode ter: amor, bondade, santidade, etc., que são os atributos chamados comunicáveis. Desses atributos essenciais, o Filho encarnado não ficou desprovido. Os atributos historicamente cridos pela Igreja cristã como exclusivamente divinos (como onipotência, onipresença e onisciência) são descaracterizados como essenciais, passando à categoria de “não-essenciais” ou “dispensáveis” na Divindade. A pergunta que se deve fazer é: é essencial em Deus somente aquilo de que o homem pode participar? Nesse caso, o que realmente distingue Deus de nós? 281. Se o leitor quer uma apologia do kenotismo moderno, leia as observações feitas por Robert J. Borer, num chat no site http://www.ccir.ed.ac.uk/~jad/vantil-list/archive-Feb-2001/msg00089.html, consultado em 23 de abril d e 2003.

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“O único Deus de quem a Escritura fala é o Todo-Poderoso, o que conhece todas as coisas e que está em toda parte. Por definição, um deus que tem um poder e um conhecimento diminuídos não é o Deus da Bíblia.”282 Os atributos que mais distinguem Deus de nós são os chamados incomunicáveis, porque são atributos que pertencem exclusivamente à Divindade. Ora, se o Verbo, ao encarnar-se, é desvestido deles, ele deixa realmente de ser Deus, porque eles fazem parte da essência divina, como todos os demais.

2. A TEORIA KENÓTICA DÁ AO AMOR DE DEUS UMA IMPORTÂNCIA TÃO GRANDE A PONTO DE NEGLIGENCIAR OS SEUS OUTROS ATRIBUTOS O propósito principal dos kenotistas foi mostrar que o maior atributo moral de Deus – o amor – é supremo sobre os outros atributos. Embora o amor de Deus seja o atributo mais louvado mesmo entre os cristãos da ortodoxia (especialmente por causa dos efeitos desse atributo divino em nós), ele não deve ser colocado como o atributo supremo de Deus. Todos os atributos são igualmente essenciais em Deus, e Deus não pode ser o que é sem todos eles. Cada um deles é importante para a constituição do ser divino. Portanto, os defensores da ortodoxia e os da heterodoxia não têm o direito de colocar o amor como tendo supremacia sobre outros atributos. É uma impropriedade fazer essa distinção em virtude de criar dificuldades para um conceito correto da divindade.

3. A TEORIA KENÓTICA CRIA UMA RUPTURA NO CONCEITO DAS RELAÇÕES INTRATRINITÁRIAS Em linhas gerais, todas as teorias kenóticas acabam eliminando a autoconsciência divina do Redentor (ao menos no seu tempo de humilhação) por causa da despotencialização do Verbo, ao se encarnar. A ausência dessa autoconsciência divina provoca uma ruptura no conceito das relações intratrinitárias, pois, nesse caso, a autoconsciência divina, que é própria da Primeira e da Terceira Pessoas, não existe na Segunda Pessoa encarnada. É argumentado que “em muitas teorias kenóticas isso foi virtualmente admitido no grande papel que foi invariavelmente atribuído ao Espírito Santo no crescimento do Jesus humano. O Espírito se tornou o substituto para o Verbo extinto e despotencializado. Na prática, isso significou que, durante o período da encarnação, o sistema divino de circuitos foi rompido, e a Segunda Pessoa estava licenciada da Divindade, e a Trindade foi, na melhor das hipóteses, reduzida a uma ‘duodade’.”283

282. Wells, The Person of Christ, 138. 283. Wells, The Person of Christ, 138-39.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA DIVINA DO REDENTOR

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Duas observações sobre essa citação: a primeira observação é que, nesse caso, o Espírito Santo se torna o substituto da divindade do Redentor, dando-lhe a capacidade de fazer coisas que a Divindade faria. Se aceitarmos dessa forma, haveremos de negar também a função do Espírito como aquele que dá suporte ao ministério dos homens, e Jesus Cristo é homem. Por essa razão, ele teve que ter a assistência do Espírito, conforme a economia divina. A segunda observação diz respeito aos circuitos divinos rompidos. Se a citação reflete a verdade, verificamos que a despotencialização do Verbo na encarnação traz grandes prejuízos para as relações trinitárias, pois, quando há a perda de atributos divinos de uma das pessoas, toda a Trindade é afetada. Esse é um grande problema, que aponta plenamente para a ruptura da doutrina da Trindade, o grande pilar do Cristianismo histórico.

4. A TEORIA KENÓTICA APONTA PARA UMA CONVERSÃO DA DIVINDADE PARA A HUMANIDADE Um defensor de qualquer teoria kenótica não diria isso de uma forma axiomática e contundente. Todavia, quando analisamos o problema de maneira prática, percebemos que existe uma transmutação de substância divina para a substância humana, pois uma se converte na outra. O divino é absorvido e diluído no humano, de modo que as coisas próprias e exclusivas da divindade desaparecem na pessoa de Cristo, de acordo com a teoria kenótica. Portanto, a teoria kenótica bate de frente com a decisão de Nicéia de que o Filho não é sujeito à mudança. Mudar os atributos de uma substância é mudar a sua essência. Além disso, mudar uma essência para convertê-la em outra é mudar o que ela é. Todavia, a Escritura afirma categoricamente que Deus é imutável. Portanto, a sua essência não pode mudar (Ml 3.6). De acordo com a teoria kenótica, no Filho, a Divindade passa a viver na humanidade, sem as cousas que são próprias do ser divino. O elemento divino do Redentor fica reduzido a uma mera idéia potencializada (do divino), deixando de ser uma realidade.

5. A TEORIA KENÓTICA TORNA DESNECESSÁRIA A DOUTRINA DA UNIO PERSONALIS Se o divino se converte no humano, ou se o divino se dilui no humano, não há necessidade de se tratar da doutrina da unio personalis. Não há uma real união do divino com o humano, mas um “outrora-Deus” que se torna homem. Portanto, a teoria kenótica torna desnecessário o estudo da unio personalis porque ela realmente não existe. “Se o Logos foi reduzido às dimensões da humanidade, em junção com a humanidade, então há pouca razão para se falar da necessidade da unidade quando a possibilidade de não-unidade não mais está ali!

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR O Logos que se auto-reduziu e o centro humano do homem Jesus simplesmente se tornaram as coordenadas da mesma autoconsciência. Essa única pessoa nunca poderia ser um composto de elementos essencialmente contraditórios ou diferentes, e, portanto, dizer que Cristo era ‘um’ era tão comum como dizer que as pessoas hoje são ‘uma’. ”284

A grande luta do Cristianismo histórico é tentar dar alguma explicação às implicações misteriosas da unio personalis. Ao evitar essas implicações misteriosas, o kenotismo acaba destruindo a noção de unio personalis.

J. OBJEÇÕES À TEORIA KENÓTICA285 Além das explicações acima a respeito da negação da teoria kenótica e de suas dificuldades, vejamos algumas objeções que lhe são feitas:

1. A TEORIA KENÓTICA TEM UM SUPORTE BÍBLICO NUM ÚNICO TEXTO QUE É INTERPRETADO DE MODO ERRÔNEO O texto fundamental usado pelos defensores do kenotismo é o de Filipenses 2.5-11, especialmente os versos 6 e 7. Nesse texto, Paulo fala de Jesus Cristo “subsistindo em forma de Deus não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes a si mesmo se esvaziou...” Os kenotistas tomam a expressão “a si mesmo se esvaziou” e dizem que ele se esvaziou de seus atributos divinos que ele tinha com o Pai desde a eternidade, especialmente os atributos da onipotência, onipresença e onisciência. Aqui está o erro deles. O texto não diz de que ele se esvaziou de alguma coisa, mas diz que “a si mesmo se esvaziou”. Em nenhum lugar está afirmado o conteúdo do seu esvaziamento ou de quais atributos ele se esvaziou. O verbo ekenosen (esvaziou-se) é melhor entendido se traduzido por “anulou-se” ou “fez-se a si mesmo sem valor algum”. A idéia é a de que Jesus Cristo, sem nunca deixar seus atributos divinos, não fez uso da prerrogativa divina de exibir seus atributos divinos, mas considerou-se como se não fosse nada. Ele apenas se sujeitou à condição de servo diante das exigências divinas na redenção do pecador.

2. A TEORIA KENÓTICA TENTA SUSTENTAR A DIVINDADE DO REDENTOR À PARTE DE SEUS ATRIBUTOS DIVINOS A tentativa kenótica de sustentar a divindade a despeito da perda de vários dos seus atributos divinos parece-me uma grande inconsistência dos kenotistas. É a mesma inconsistência lógica de se manter a essencialidade de uma bola ainda que 284. Wells, The Person of Christ, 139. 285. Essas objeções são encontradas no artigo de Michael Bremmer, “Kenotic Theology” no site http:/ /www.mbrem.com/jesus_Christ/keno.htm.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA DIVINA DO REDENTOR

273

tirássemos dela o seu caráter redondo. Uma bola é uma bola, não porque a chamamos assim, mas por causa das suas características substanciais, que estão associadas àquilo que conhecemos como bola. A substância de algum objeto só é sustentada pelos seus atributos essenciais. Se os tiramos, ela perde a sua essencialidade. Todavia, não é importante se a bola é amarela ou azul, ou se ela é listrada ou lisa, ou se ela é de borracha ou de couro, ou ainda se a sua textura é delicada ou não. Essas coisas são acidentes duma bola. Se os acidentes forem mudados, a bola não deixa de ser bola. O que não podemos mudar são as características essenciais dela. O importante para a bola é que ela seja redonda. Isso é absolutamente essencial. Se tirarmos dela essa propriedade, ela não mais é bola. Semelhantemente, a sustentabilidade da divindade de Jesus Cristo está diretamente relacionada à posse da totalidade dos atributos divinos. Por exemplo, se tirarmos dele a sua onipresença (ou outro de seus atributos essenciais), ele não mais é o que dizemos que ele é: Deus. Se tirarmos (ainda que temporariamente) de Jesus Cristo alguns de seus atributos divinos, não podemos sustentar, em hipótese alguma, a sua divindade.

3. A TEORIA KENÓTICA É UM ABANDONO DA FÉ HISTÓRICA DO CRISTIANISMO Esse abandono da fé histórica da Igreja cristã deve ser olhado com enorme preocupação. Desde os seus primeiros concílios gerais (Nicéia, 325; Constantinopla, 381; Calcedônia, 451) até os seus conclaves específicos mais recentes (como é o caso da Assembléia de Westminster, 1643-48), a Igreja cristã tem afirmado inquestionavelmente tanto a plena divindade como a plena humanidade de Jesus Cristo. Acompanhando a fé histórica da Igreja cristã, quase todos os teólogos representativos da fé cristã que alcançaram proeminência nos círculos teológicos mundiais têm afirmado a mesma verdade, de um modo a não deixar dúvidas. De alguma forma e com alguma profundidade, eles possuem um capítulo sobre Cristologia, e nele concluíram que Cristo reteve para si todos os atributos divinos, incluindo os sua onipotência, onipresença e onisciência, enquanto esteve entre nós neste mundo. A fé histórica sempre afirmou que a nossa salvação depende inteiramente da crença na plena divindade e na plena humanidade de Jesus Cristo. Ele não poderia ser Salvador sem ser Deus e não poderia ser Salvador sem ser homem. Desde a unio personalis, passou a haver numa única pessoa, Jesus Cristo, um Redentor divino e humano. Em geral, a fé histórica da Igreja negou qualquer forma de teologia kenótica. Contudo, não podemos inferir que tudo o que a tradição da Igreja diz seja infalível, ou que tudo o que ela diz deva ser aceito acriticamente. Não obstante,

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

não precisamos romper com essa tradição cristã, mas estudar e avaliar tudo o que ela nos legou à luz da revelação total das Escrituras Sagradas.

K. NEGAÇÕES TEOLÓGICAS DO KENOTISMO Quando aceitamos os pressupostos cristológicos do kenotismo, acabamos (ainda que sem saber) aceitando alguns erros muito sérios que afetam a crença do Cristianismo histórico.

1. OS KENOTISTAS DESTRÓEM A INTEGRIDADE DA EXPIAÇÃO286 A redenção de toda a criação e de todos os que crêem em Cristo exigiu não somente um perfeito ser humano, mas também um sacrifício infinito do Deushomem. Paulo disse que “aprouve a Deus que nele residisse toda a plenitude, e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus” (Cl 1.19, 20). Todavia, se eles seguem a sua doutrina, eles têm que substituir a palavra “plenitude” pela palavra “parcial”, diminuindo a divindade de Cristo. Ora, quando eles diminuem a divindade do Redentor enquanto aqui na terra, eles diminuem o valor de sua obra redentora. A unio personalis aqui não é completa, porque alguns dos atributos da divindade não estão presentes na pessoa de Jesus. Limitando a divindade soberana de Cristo ou separando suas duas naturezas, os kenotistas destroem a integridade da expiação, e esta se torna uma expiação sem o poder que deve caracterizar a obra de um Redentor onipotente!

2. OS KENOTISTAS DISTORCEM A VISÃO CRISTÃ DA ENCARNAÇÃO A Escritura diz que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14), mas os kenotistas ensinam que o Deus que ficou desprovido do uso de seus atributos se tornou carne, ou que o Verbo permaneceu separado da carne. Ainda mais: a Escritura afirma que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Co 5.19), mas o pensamento kenótico sustenta que Deus, desprovido de onipotência, onisciência e onipresença, estava em Cristo, ou que Deus não estava verdadeiramente em Cristo. Ainda mais: a Escritura afirma que o Filho é “o unigênito de Deus” (Jo 3.16), possuindo a substância de Deus, sendo homoousios com o Pai. Todavia, os kenotistas ensinam uma espécie de mutação: Deus fez nascer um Filho que, na verdade, não possui a mesma essência do Pai, pois ele encarnou-se sem as qualificações divinas. Essas noções tendem a “causar ruptura na união hipostática das naturezas divina e humana de Cristo”.287 Se Jesus Cristo não possuía, enquanto 286. Ver artigo de Dan Musick, Kenosis, no site http://kenosis.info/index.htm, e artigo de Charles T. Buntin. Empty God no site http://www.bible.org/docs/theology/christ/kenosis.htm 287. John O’Connell, “The Human Knowledge of Christ.” The Catholic Faith (Março/Abril, 1997). Veja http://www.catholic.net/RCC/Periodicals/Faith/0304-97/christo2.html.

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no estado de humilhação, todos os seus atributos divinos, ele não era Deus. Se ele não fez uso dos seus atributos, ele não é soberano Senhor como a Escritura afirma. Se nele não habitava a “plenitude”, então ele não era o Verbo de João 1.1, e, portanto, nunca se fez carne. Todas essas questões kenotistas são uma negação da visão bíblica e histórica da encarnação, sustentada pelo Cristianismo.

3. OS KENOTISTAS NEGAM A IMUTABILIDADE DE DEUS A maioria das idéias kenóticas causa alguma mutação no Imutável. Ainda que não tenham essa mudança em mente, eles acabam destituindo o Filho dessa característica essencialmente divina. Portanto, as teorias kenóticas são contrárias à doutrina da imutabilidade de Deus, e a ortodoxia afirma a imutabilidade como uma doutrina inegociável. Os atributos essenciais de Deus nunca mudam. Tanto a Escritura como os símbolos de fé da Igreja cristã afirmam a imutabilidade de Deus.288 Se Deus é imutável, ele não pode parar ou cessar de ser Deus, ainda que temporariamente. A Escritura afirma de modo categórico a imutabilidade da Divindade em vários textos. De Jesus Cristo é dito ser “o mesmo ontem, hoje e eternamente” (Hb 13.8). R. C. Sproul diz que “se Deus colocou de lado um de seus atributos, o imutável sujeita-se a uma mutação, o infinito repentinamente para de ser infinito; seria o fim do universo”.289 Quando se nega a imutabilidade de Deus, vários outros de seus atributos acabam sendo negados: a independência, infinidade e eternidade, porque esses atributos estão intimamente entrelaçados e interdependentes.

4. OS KENOTISTAS MINAM O MONOTEÍSMO DA FÉ CRISTÃ O único modo de os kenotistas limitarem o uso dos atributos de uma das Pessoas da Trindade sem limitar os atributos das três Pessoas é dividir a Trindade em três seres. A única maneira de Jesus Cristo não ter a onipotência, onipresença ou onisciência enquanto o Pai e o Espírito a mantiveram é fazer com que Jesus Cristo seja não somente uma pessoa distinta, mas um ser distinto das outras duas Pessoas. Na ortodoxia histórica, o que uma Pessoa essencialmente tem, as outras também têm, porque existe a unidade na Trindade. O fato de haver um só Deus é claríssimo na Escritura. Essa é uma verdade de que o próprio Deus não abre mão. A fé cristã histórica sempre foi monoteísta, crendo na existência de um só Deus. Atanásio disse no seu Credo: “O Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; não há três deuses, mas um Deus... O Pai é onipotente, o Filho é onipotente e o 288. Ver Heber Carlos de Campos, O Ser de Deus e Seus Atributos, 2a. edição (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002), 188-200. 289. R.C. Sproul, “How Could Jesus Be Both Divine and Human?” at http://www.mbrem.com/ jesus_Christ/sproul.htm.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Espírito Santo é onipotente, mas não há três seres onipotentes, mas um Ser onipotente... Nós distinguimos as Pessoas, mas não dividimos a substância.”

Portanto, se o afirmarmos o kenotismo como verdadeiro, caímos no perigo de afirmar um triteísmo do qual toda a cristandade histórica tentou fugir e, além disso, fazemos uma afronta ao ensino geral das Escrituras sobre o único Deus! A crença do kenotismo tem sido vista pela ortodoxia cristã como apresentando sérias distorções da Escritura, e é nosso dever refutá-la para o benefício do Cristianismo e para fazermos justiça ao ensino da “fé que uma vez por todas foi entregue aos santos”.

L. A NEGAÇÃO DA TEORIA KENÓTICA PELA ORTODOXIA CRISTÃ O Filho de Deus não foi despojado de nenhum dos seus atributos divinos, e ele é o que sempre foi eternamente: Deus. Ele sempre será o que veio a ser desde a encarnação: Filho de Deus encarnado, Deus-homem. Todas as suas propriedades divinas foram mantidas (embora nem sempre manifestadas), assim como manifestou todos os seus atributos próprios da humanidade. Não houve nenhuma diminuição na glória do Encarnado. Quando Paulo disse que ele “se esvaziou a si mesmo”, não significa que ele deixou de ser o que sempre havia sido até a encarnação, mas significa que ele abriu mão de manifestar (em alguns casos) alguns de seus atributos divinos no estado de humilhação. Conforme o entendimento da fé reformada, o texto de Filipenses 2.6, 7 afirma ambas, a natureza divina do Filho e a natureza humana do Filho encarnado, pois o texto fala de forma de Deus e forma de servo (morf$= qeou= e morfh\n dou/lou). Paulo deixa muito claro que aquele que tinha a “forma de Deus” assumiu uma “forma de servo”. Após a encarnação, embora “a forma de Deus” não tenha se manifestado em todas as ocasiões, ela sempre esteve presente na mesma e única pessoa. A pessoa de Cristo manifesta as duas formas de existência do redentor: a divina e a humana. Portanto, não podemos aceitar a idéia kenótica de um cancelamento da divindade ou de um despojamento dela aqui neste mundo na pessoa de Jesus Cristo. O Filho de Deus não foi privado de sua divindade enquanto aqui neste mundo, como ensinam os kenotistas. Foi aqui nesse mundo que ele disse ser igual ao Pai, embora a glória da manifestação dos seus atributos divinos ficasse relativamente escondida durante o tempo da sua humilhação. Na sua humilhação, o Filho de Deus voluntariamente submeteu-se à lei que ele próprio havia criado e, voluntariamente como Rei que era, colocou-se na posição de servo obediente. Isso não significa ser despojado dos seus atributos divinos, mas significa colocar-se numa posição de humildade para poder sofrer todas as

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coisas que nós deveríamos sofrer. Ele teve que se portar como um homem obediente, mas a sua obediência perfeita e absoluta seria impossível nos termos em que o foi se não houvesse o amparo da natureza divina, que nunca o deixou. A fim de realizar a sua obra redentora, o Filho de Deus encarnado pôs de lado a manifestação gloriosa dos seus atributos divinos, sem deixar de ser Deus. A refulgente glória do Filho, ao tomar a forma de homem, ficou eclipsada, mas ele continuou Deus com todos os seus atributos na encarnação. Ele nunca parou de ser Deus, embora a natureza finita de sua humanidade não tenha permitido que, no estado de humilhação, a sua glória fosse manifesta. Alguns de seus atributos, como a onipresença, a onipotência e a onisciência, por exemplo, foram eclipsados durante o estado de humilhação, de forma que não pudemos percebê-los claramente, mas eles não ficaram totalmente escondidos. Há vislumbres deles nas páginas da Escritura.290 A manifestação do poder divino foi restrita no tempo da humilhação, assim como a manifestação de outros atributos, mas todos eles estavam presentes na Pessoa divino-humana do Redentor. Esse é o esvaziamento do qual a Escritura fala em Filipenses 2.7. Voluntariamente, o Redentor abriu mão, para propósitos redentores, do uso de todas as suas prerrogativas divinas, mas jamais abriu mão de sua divindade. Ele jamais cessou de ser o que sempre foi: Deus, o Filho. Todavia, a forma de servo fez com que a expressão gloriosa da filiação divina fosse limitada, mas isso não significa que ele tenha sido despojado da sua divindade. Ainda que nós enfatizemos a sua humanidade, permanece o fato de que, no estado de humilhação, a divindade não fica totalmente escondida por detrás de sua humanidade. Paulo afirma inequivocamente que, nele, no Verbo encarnado, “habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9). “Corporalmente” significa a natureza humana. Não existe ausência de divindade naquele que viveu em Nazaré da Galiléia. A personalidade divina do Filho de Deus se uniu à natureza humana. O resultado é que o Redentor é perfeitamente Deus e perfeitamente homem. Todos os atributos da divindade e da humanidade residem plena e simultaneamente em Jesus Cristo. Ele é infinito e finito, eterno e temporal, ilocalizado e localizado, etc.,291 conforme a sua divindade e conforme a sua humanidade, respectivamente.

A QUESTÃO DO EXTRA CALVINISTICUM Uma das grandes questões controversas entre luteranos e calvinistas foi a respeito da presença do Redentor em toda parte em sua natureza divina, controvérsia 290. Veja os capítulos sobre a divindade de Cristo em Heber Carlos de Campos, As Duas Naturezas do Redentor (São Paulo: Cultura Cristã, 2004). 291. Veja o capítulo sobre “As Naturezas do Redentor”, no livro de Heber Carlos de Campos, A Pessoa de Cristo e Suas Naturezas.

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essa que apareceu ligada à doutrina da unio personalis. Foi a luta da opinião luterana da ubiqüidade da natureza humana do Redentor contra a opinião calvinista de que a natureza divina de Cristo não estava encerrada em sua humanidade. Surgiu, então, a controvérsia sobre o que os luteranos chamaram de extra-calvinisticum. Essa batalha será exposta aqui de maneira a esclarecer esse assunto relegado a segundo plano na Cristologia dos nossos livros clássicos de teologia sistemática. A questão do extra calvinisticum, que diz respeito à unio personalis, não afetou em nada a doutrina da natureza divina de Jesus Cristo, mas convém que ela seja tratada aqui neste capítulo porque diz respeito a uma controvérsia relacionada à união das duas naturezas, porque os luteranos acusam os calvinistas de separarem as duas naturezas, pendendo para o nestorianismo. Nesta parte do capítulo vamos falar da presença da natureza divina de Cristo em toda parte, mesmo quando essa natureza está indissoluvelmente ligada à natureza humana, na unio personalis.

A. A ORIGEM DO TERMO EXTRA-CALVINISTICUM A distinção principal que devemos fazer aqui é entre o termo extra calvinisticum e a doutrina do extra calvinisticum. Esta última é muito mais ampla e está presente em alguns capítulos da teologia calvinista. O termo diz respeito mais especificamente aos debates cristológicos ocorridos já no século 16 entre os luteranos e reformados sobre a presença real de Cristo na ceia.292 É nesse último sentido que vamos usar a expressão extra-calvinisticum neste capítulo. Todavia, o termo em si mesmo, não é importante. “Ele [o termo] se torna significativo na medida em que ele veio a ser adotado como uma caracterização legítima de alguma coisa especial na teologia reformada. Uma vez aceito como legítimo, justificavelmente ou não, o termo ‘extra calvinisticum’ em si mesmo se tornou uma força motriz na teologia e na história da doutrina.”293

“A despeito da persistência com a qual o termo extra-calvinisticum é aplicado a um aspecto da teologia reformada, surpreendentemente, pouca coisa é conhecida a respeito de sua origem.”294 Provavelmente o termo extra-calvinisticum tenha sido cunhado nos círculos luteranos “para referir-se à insistência reformada sobre a transcendência absoluta que a Segunda Pessoa da Trindade tem sobre a natureza humana de Cristo em e durante a encarnação”.295 O conceito do extra-calvinisticum deve ter aparecido quando os teólogos luteranos começaram a perceber a 292. E. David Willis, Calvin´s Catholic Christology (Leiden: E. J. Brill, 1966), 6. 293. E. David Willis, Calvin´s Catholic Christology (Leiden: E. J. Brill, 1966), 9. 294. E. David Willis, Calvin´s Catholic Christology (Leiden: E. J. Brill, 1966), 5. 295. Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms (Grand Rapids: Baker, 1986), 111 (itálico acrescido).

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ênfase entre os calvinistas sobre a presença do Filho além da carne de Cristo (etiam extra carnem). Esse conceito de extra-calvinisticum, por sua vez, apareceu diante da ameaça da doutrina luterana do communicatio idiomatum, onde a natureza divina de Cristo estava encerrada e contida unicamente na natureza humana de Cristo. Como um termo, a expressão extra calvinisticum pode ter sido introduzida primeiramente por Theodore Thumm, em 1623. Um termo sinônimo, extra calvinianum, usado na obra de Balthazar Mentzer, apareceu mais cedo, em 1621.296 Ambos os termos foram cristalizados ao longo da controvérsia entre luteranos e calvinistas, mas o termo que mais prevaleceu foi o extra-calvinisticum.

B. A BASE FILOSÓFICA DO SIGNIFICADO DO EXTRA-CALVINISTICUM Tem havido tentativa de se mostrar que a expressão extra-calvinisticum foi o que motivou o pensamento total de Calvino, “e que o extra-calvinisticum é o produto de um esforço para explicar a encarnação em termos de não violar o princípio filosófico do finitum non capax infiniti, que é visto pelos críticos como determinando muita coisa da teologia Reformada”.297 Contudo, é bom recordar que a expressão finitum non est capax infiniti não ocorre nas obras de Calvino, mas é uma expressão usada na fé reformada pós-Calvino. O Calvinismo pode ter tido um desenvolvimento mais filosófico, especialmente no tempo do escolasticismo protestante, mas o ensino do extra-calvinisticum não é dependente desse axioma filosófico. G.C. Berkouwer diz que a preocupação de Calvino “não é uma teoria filosófica ou cosmológica na qual ele adapta a sua Cristologia, mas, do evangelho, ele aprendeu que as riquezas de Cristo consistiam no fato de que nos redimiu como um de nós”.298 O axioma filosófico foi acrescentado posteriormente como uma espécie de prova ou para reforçar o ensino que, na verdade, nunca dependeu em sua origem de qualquer princípio filosófico. Lembremo-nos de que os reformados defenderam ao mesmo tempo a transcendência da natureza divina e a localização da natureza humana. Em outras palavras, eles defenderam a onipresença da natureza divina e a presença localizada da natureza humana. Certamente alguns teólogos Reformados defenderam posteriormente o termo extra-calvinisticum aproveitando uma base filosófica que já existia, especialmente no século 17, no auge do escolasticismo protestante. A máxima filosófica entre reformados era finitum non capax infiniti (o finito é incapaz do infinito). Em outras palavras, a humanidade finita do Redentor não era capaz de receber, 296. E. David Willis, Calvin´s Catholic Christology , 23. 297. E. David Willis, Calvin´s Catholic Christology , 3-4. 298. Berkouwer, The Person of Christ (Grand Rapids: Eerdmans, 1954), 282.

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compreender e conter os atributos infinitos que eram próprios da natureza divina infinita, ou seja, a onipotência, a onisciência e a onipresença. Essa é uma dedução tanto lógica quanto epistemológica. É uma dedução epistemológica porque “significa a limitação da mente humana, mesmo a mente de Cristo, no conhecimento das coisas divinas”.299 A teologia da união (theologia unionis) que diz respeito à união das duas naturezas aponta claramente para a finitude da humanidade de Cristo. Nunca uma mente humana pode absorver algo que é próprio e exclusivo da mente divina, assim como um corpo humano não pode ter as propriedades de um ser eminentemente espiritual, que é o caso da natureza do Verbo divino. Logo, é uma questão epistemológica tratar do conhecimento das coisas divinas através da limitação mente humana. Essa é uma dedução lógica porque algumas propriedades do divino são incomunicáveis, e, portanto, uma natureza finita não pode absorvê-la. Ainda que consideremos que a natureza humana de Jesus Cristo tenha sido agraciada com dons extraordinários, esses dons são próprios da finitude da criação, e, portanto, adaptados à finitude da natureza humana de Cristo. Com essas coisas em mente, é importante que leiamos uma afirmação que mostra o aspecto metafísico presente na piedade suíça, que está relacionado aos conceitos de finitude e infinitude, dos quais falamos rapidamente acima. I. A. Dorner fez a seguinte afirmação: “Não é correto confinar o Criador, o Logos, dentro dos limites da natureza humana finita, ou expandir a humanidade de Cristo às dimensões do divino. O Logos está constantemente tanto fora quando dentro da carne: a Deidade Todo-Poderosa não pode ser enjaulada em sua natureza num ponto do mundo, nem mesmo àquele com a qual ele está pessoalmente unido. Além disso, a humanidade de Cristo não mais teria sido humanidade, tivesse ela tido por si própria os predicados da infinitude divina. Nesse caso, os seus predicados finitos desapareceriam, ou, em outras palavras, a sua natureza de criatura [estaria] perdida. Sua determinação fundamental, a finitude, que a distingue de Deus, sendo retirada, em si mesma seria aniquilada.”300

C. O SIGNIFICADO TEOLÓGICO DO EXTRA-CALVINISTICUM “O chamado extra-calvinisticum ensina que o Filho eterno de Deus, mesmo após a encarnação, foi unido a uma natureza humana para formar uma Pessoa, mas não estava restrito à carne.”301 Os calvinistas criam que, embora a natureza divina do Verbo estivesse em união plena com a natureza humana de modo indivisível, 299. Muller, Dictionary, 119. 300. I. A. Dorner, History of the Development of the Doctrine of the Person of Christ, II, 2 (Edimburgo: T&T Clark, 1866), 136, 37. 301. E. David Willis, Calvin´s Catholic Christology , 1.

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imutável, inseparável (como preceituava a Fórmula de Calcedônia), ela não estava contida, encerrada ou circunscrita pela natureza humana. Mesmo na encarnação, o Verbo deveria ser entendido como aquele que extrapola, como aquele está além da natureza humana. Mesmo depois da Unio Personalis, a natureza divina do Redentor permanece totalmente com as suas propriedades, e ela está presente extra carnem (ou natureza) humana. Embora o presente ensino seja uma bandeira de círculo calvinista, todavia, ele não é uma novidade calvinista. Rudimentos dele já foram mencionados nos primeiros séculos da Igreja cristã. Muller diz que “está claro que o chamado extra-calvinisticum não é uma invenção dos calvinistas, mas um conceito cristológico que salvaguarda tanto a transcendência da divindade de Cristo como a integridade da humanidade de Cristo, conhecido e usado pelos pais dos cinco primeiros séculos, incluindo Atanásio e Agostinho”.302

O termo foi usado somente no século 17, mas o conceito é muito mais antigo.

D. O USO DO CONCEITO PELOS CALVINISTAS Calvino afirmou que o Logos (ou o Verbo de Deus) estava plenamente encarnado no Jesus humano, mas não de tal modo que a Palavra de Deus ficasse circunscrita, limitada, ou exaurida pelo Jesus humano. Para a mente de Calvino, quando tratava do mistério eucarístico da ceia, ele quis fazer justiça à plena divindade de Jesus Cristo. Para Calvino, era absurdo que, aos sentidos físicos, o pão e o vinho claramente permanecessem pão e vinho, e ainda assim houvesse a presença do corpo de Cristo no lugar dos elementos, substituindo-os (Catolicismo), ou com, sob, e nos elementos (Luteranismo). Calvino cria na presença real de Cristo na Ceia, mas a sua ótica era diferente. Calvino entendeu mais corretamente do que os luteranos os perigos da idolatria quando percebeu o erro de não dar a cada uma das naturezas o que lhe era devido. A tentativa de confinar a Segunda Pessoa da Trindade às dimensões físicas da natureza humana era uma forma grosseira de limitação divina. Esse conceito luterano combatido por Calvino se aplicava diretamente à Ceia do Senhor. Foi nesse ponto que Calvino introduziu o seu conceito de “extra” da sua natureza divina. Ela não estava presa nem contida ou encerrada plenamente pelas dimensões da natureza humana. Para Calvino, as dimensões da natureza humana nunca podem estar além das medidas dadas pela própria natureza. “Como eu provei por testemunhos firmes e claros da Escritura, o corpo de Cristo estava circunscrito pela medida de um corpo humano. 302. Muller, Dictionary, 111.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Além disso, por sua ascensão ao céu, ele deixou claro que ele não está em todos os lugares, mas quando ele passa para um lugar, ele deixa o lugar anterior.”303

Se perdermos o conceito do “extra” relacionado à presença de Cristo fora da carne, haveremos de perder o conceito do que a Divindade significa. Para Calvino, era absurdo que o Verbo divino, ao se tornar encarnado, tivesse que ficar incluso unicamente na natureza humana do Redentor. Embora a essência ilimitada do Verbo estivesse unida com a natureza humana, essa essência divina não poderia ficar única e exclusivamente circundada pela carne. Para Calvino, o Filho de Deus desceu do céu para estar com os seus e para estar presente na ceia, sem nunca ter deixado o céu, em virtude da infinidade de sua essência divina. Agradou a esse Verbo ser concebido miraculosamente no ventre da virgem como Redentor, para viver na terra, ser dependurado na cruz, e, todavia, sempre encheu o mundo com sua presença, como aconteceu desde o princípio. Calvino ensinou sobre o communicatio idiomatum sem o conceito luterano da ubiqüidade da natureza humana do Redentor. Por isso Calvino disse: “Embora o Cristo total esteja em toda parte, todavia nem tudo o que está nele está em toda parte”.304 Se perdermos o conceito da finitude do corpo humano, perderemos a noção do que significa ser humano e perderemos a noção de finitude da natureza humana do Redentor. Por isso, Calvino disse que “o corpo de Cristo está limitado pelas características gerais de todos os corpos humanos e está contido no céu até que Cristo retorne no julgamento, assim, nós consideramos ilegítimo fazê-lo retroceder sob esses elementos corruptíveis ou imaginá-lo presente em toda parte.”305

No conceito de Calvino, se pensássemos que “a divindade deixou os céus a fim de confinar-se às câmaras do corpo de Cristo, ainda que ela enchesse todas as coisas, ela habitaria corporalmente exatamente na humanidade de Cristo, i.e., moraria ali tanto natural como inefavelmente”.306 Para Calvino, a presença da natureza divina do Redentor na Ceia era o elemento extra ausente nas outras teologias, porque o elemento humano permanecia no céu, por não poder deixar de ser humano. A presença da natureza humana era localizada à destra de Deus. Todavia, o divino estava em toda parte, especialmente na Ceia. Portanto, o relacionamento entre as duas naturezas de Cristo passou a ter uma perspectiva “extra” que não havia na teologia católica e nem na luterana. Foi nesse ponto da presença de Cristo que Calvino teve a sua grande diferença cristológica com Lutero. O elemento “extra” da teologia de Calvino – que dizia 303. João Calvino, Institutas da Religião Cristã, IV. xvii. 30. 304. Institutas, IV. xvii. 30. 305. Ibid., IV. xvii. 12. 306. Ibid., IV. xvii. 30.

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respeito à presença de Cristo na ceia do Senhor – foi que trouxe o desagrado ao partido luterano da Reforma. Os luteranos acusaram os calvinistas de nestorianismo por separarem tanto as duas naturezas, fazendo parecer haver dois Cristos, não um só. Todavia, a intenção dos calvinistas não era a de separar as duas naturezas a ponto de haver dois seres, mas a de distingui-las devidamente, e fazer justiça a cada uma delas. A relação entre as duas naturezas sempre foi uma grande dificuldade para todos. Se os reformadores, por causa da finitude de sua mente, não puderam captar todas as coisas relativas à relação das duas naturezas, Calvino não queria ser injusto com nenhuma delas. Ele queria que o humano fosse humano e o divino permanecesse divino no Redentor. A divindade de Jesus Cristo, no entendimento de Calvino, transcendia a sua natureza humana, e desse conceito ele não abriu mão na controvérsia com o Luteranismo. Por isso, diferentemente dos luteranos, os calvinistas não queriam dar à natureza humana do Redentor o que não lhe era devido (a ubiqüidade), nem retirar da natureza divina o que lhe pertencia (onipresença). Os documentos calvinistas que apareceram ainda no século 16 tratam do extra-calvinisticum sem usar o nome que foi cunhado posteriormente, como já vimos. O Catecismo de Heidelberg, por exemplo, fala claramente sobre as duas naturezas de Cristo, um ensino recheado do extra-calvinisticum em duas de suas perguntas. Veja o conteúdo delas: P. 47 – “Mas não está Cristo conosco até o fim do mundo, como nos prometeu?” R. – “Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem; quanto à sua natureza humana, agora já não está na terra; mas, quanto à sua divindade, majestade, graça e espírito, em nenhum momento está ausente de nós.”

Essa pergunta do Catecismo de Heidelberg ensina claramente a presença de Jesus Cristo ao mesmo tempo localizada e não-localizada. De um lado, quanto à sua natureza humana, é dito que “agora ela já não está na terra”. Isso significa que ela pode estar somente num determinado local, como é próprio das coisas criadas, que são temporais e finitas. De outro lado, a resposta à questão acima trata da presença da natureza divina de Cristo, que está em toda parte. A expressão usada significa que, embora Jesus Cristo (quanto à sua natureza humana) esteja localizado no céu, esse mesmo Jesus Cristo (quanto à sua natureza divina) “em nenhum momento está ausente de nós”. De modo semelhante, a questão 48 do Catecismo de Heidelberg trata do extra calvinisticum. P. 48 – “Se a sua humanidade não está onde quer que esteja a sua divindade, então não estão as duas naturezas de Cristo separadas uma da outra?”

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR R. – “Certamente não. Visto que a divindade não está limitada e está presente em toda parte, fica evidente que a divindade de Cristo está certamente além dos limites da humanidade que ele tomou, mas ao mesmo tempo sua divindade está em e pessoalmente permanece unida à sua humanidade.”

A pergunta 48 do Catecismo de Heidelberg tem em mente certamente a questão levantada pelo Luteranismo quanto ao extra-calvinisticum. No raciocínio dos luteranos, as duas naturezas têm de estar absolutamente juntas. Onde uma das naturezas está, a outra também deve estar localizada. Os luteranos criticam a teologia calvinista dizendo que “ambas as naturezas não estão realmente unidas porque o Logos não está totalmente em Cristo. Essa é a velha questão do finitum capax and finitum non capax infiniti”.307 A frase latina finitum non capax infiniti significa que o finito não é capaz de conter a natureza divina do Redentor em sua inteireza. Assim, desde a encarnação, há ainda a divindade do Redentor além da natureza humana de Cristo. A crítica feita pelos luteranos pode e deve ser rebatida da mesma forma. Segundo o pensamento reformado, o Logos está no Cristo total, mas a natureza divina do Logos extrapola os limites físicos da natureza humana. Obviamente, a saída, para os luteranos, foi a formulação do genus majestaticum, onde a natureza humana passa a exercer as prerrogativas da natureza divina (a da onipresença), estando portanto, em toda parte onde esta última se encontra. Para explicar a presença ubíqua da natureza humana, sem prejudicar a noção de união das naturezas, os luteranos sacrificam a essência da humanidade do Redentor, fazendo com que ela transcenda a noção de tempo e espaço. Todavia, a resposta dos reformados é diferente. A pergunta de Heidelberg provoca o assunto e responde de maneira muito inteligente. Ela afirma a presença de Jesus Cristo conforme as suas naturezas exigem. Heidelberg não faz com que certos atributos divinos passem a ser desfrutados pela humanidade do Redentor, e nem prende a divindade do Redentor aos limites da sua humanidade. A natureza humana do Redentor sempre estará localizada em virtude da essência da humanidade. A natureza divina não está encerrada pela fisicalidade do Redentor. Por isso, o texto de Heidelberg diz: “fica evidente que a divindade de Cristo está certamente além dos limites da humanidade que ele tomou”. Como é próprio da natureza divina, o Redentor mantém o atributo da onipresença. Todavia, Heidelberg não poderia deixar de afirmar categoricamente que “ao mesmo tempo sua divindade está em e pessoalmente permanece unida à sua humanidade”. A primeira coisa que os reformados sempre creram é que não existe rompimento da 307. Veja Ulrich Asendorf, no artigo “Luther´s Small Catechism and the Heldelberg Catechism – The Continuing Struggle: The Catechism´s Role as a Confessional Document in Lutheranism”, no site http:// www.wls.wels.net/library/Essays/Authors/A/AsendorfCatechism/AsendorfCatechism.rtf., acessado em 19/ 04/2004.

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união das duas naturezas. Depois da encarnação, nunca houve qualquer separação entre elas. Elas permanecem absolutamente unidas. Essa resposta de Heidelberg que trata da natureza divina de Cristo agindo fora dos limites de sua natureza humana é que os luteranos chamam de extra calvinisticum, pois vêem nisso uma contradição. Um crítico de Heidelberg, analisando a resposta à pergunta 48, diz: “De acordo com sua natureza divina, Cristo está presente em toda parte. Sua natureza divina existe fora da humanidade assumida na encarnação, mas não obstante ela existe dentro da natureza humana de acordo com a união pessoal. Uma perfeita contradição!”308

É curioso que os luteranos considerem o pensamento calvinista uma contradição, mas nunca pensem da genus idiomaticum como uma impossibilidade lógica! Além disso, a crítica vem direta a Calvino, nos seguintes termos: “Calvino pretende manter a via média em relação a Calcedônia. Mas ele se engana a si mesmo por meio do extra calvinisticum. O Catecismo de Heidelberg usa o mesmo caminho. Uma cristologia espiritualizada é o resultado.”309

O Calvinismo sempre enfatizou a união das duas naturezas, mas também enfatizou as propriedades exclusivas de cada natureza. Nunca uma natureza exerce as propriedades de outra. É por isso que, ao mesmo tempo, a natureza divina está unida à humana, sem, contudo, ficar encerrada nela. A Pessoa de Cristo está presente conosco aqui neste mundo segundo a sua natureza divina, enquanto que a mesma pessoa está no céu com respeito à sua natureza humana. O que é próprio de uma natureza sempre deve ser atribuído à Pessoa completa, como reza o ensino reformado sobre a comunhão de atributos.

E. A REJEIÇÃO DO EXTRA-CALVINISTICUM PELOS LUTERANOS A Cristologia luterana ensinada em Würtemberg, da qual Johann Bremz (14991570) era o líder, afirmava que “na união hipostática a humanidade [do Redentor] era tão unida ao Logos em sua totalidade que, subseqüentemente à encarnação, o Logos não mais tinha qualquer existência além da carne”.310 Por causa desse pensamento, os luteranos rejeitaram o conceito do extra-calvinisticum, ensinando a máxima logos non extra carnem. Isso quer dizer que, após a encarnação, nunca a 308. Vej Ulrich Asendorf, no artigo “Luther´s Small Catechism and the Heldelberg Catechism – The Continuing Struggle: The Catechism´s Role as a Confessional Document in Lutheranism”, no site http:// www.wls.wels.net/library/Essays/Authors/A/AsendorfCatechism/AsendorfCatechism.rtf., acessado em 19/ 04/2004. 309. Ulrich Asendorf, ibid. 310. E. David Willis, Calvin´s Catholic Christology (Leiden: E. J. Brill, 1966), 9.

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natureza divina do Verbo estará presente em qualquer lugar à parte da natureza humana. Nunca o Logos funcionará à parte da carne. A expressão latina acima apareceu no tempo da ortodoxia luterana do século 17 para se opor ao ensino calvinista do extra calvinisticum. Por essa razão, uma outra expressão era comum nos círculos luteranos: neque caro extra lo/gon neque lo/gon extra carnem (nem carne fora do Verbo, nem Verbo fora da carne). A reação dos luteranos aos calvinistas é devida ao conceito que os primeiros possuem da comunicatio idiomatum, especialmente quando eles trataram do genus maiestaticum. Nesse gênero, a natureza humana de Jesus Cristo recebe a comunicação das propriedades da Divindade. Ela passa a possuir as mesmas coisas que são ontologicamente propriedade da divindade, ou seja, a onisciência, onipotência e onipresença. A natureza humana passa a possuir a ubiqüidade, para acompanhar a presença do Verbo em toda parte. Muller argumentou que, na Cristologia dos luteranos, “não há nenhum lugar onde o Logos esteja onipresente e que não esteja unido à natureza humana. Visto que o Logos é onipresente, a natureza humana deve estar onipresente em toda parte com o Logos, que foi comunicado à natureza humana de acordo com o genus maiestaticum, e tem a natureza humana ilocalmente presente a ela em toda parte. Portanto, o Logos não está além ou fora da carne.”311

Por causa do conceito do extra-calvinisticum, a teologia reformada ficou rotulada nos círculos luteranos como possuindo uma tendência nestoriana. Em geral, os eruditos luteranos dizem que há nestorianismo não somente em Zwínglio, em sua controvérsia com Lutero em Marburg, mas também em Calvino e no Calvinismo subseqüente, que receberam alguma coisa da Cristologia do reformador de Zurique.

F. AS CONSEQUÊNCIAS DA NEGAÇÃO DO EXTRA-CALVINISTICUM 1. Se negarmos o conceito do extra-calvinisticum, o Logos ficará encerrado dentro da natureza humana finita de Cristo, e haveremos de negar a transcendência do divino e a localização do humano no céu. Certamente isso seria uma negação, ou, quando não, uma diminuição da divindade de Cristo, uma espécie de “divinização” da natureza humana, que receberá as propriedades da divindade. 2. Se negarmos o conceito do extra-calvinisticum, perderemos a ênfase reformada sobre o conceito in concreto de communicatio idiomatum, e aceitaremos o conceito luterano in abstrato de communicatio idiomatum. Quando digo que o conceito luterano de communicatio idiomatum é in abstrato, estou dizendo que, de fato, o humano nunca é capaz de desempenhar o papel do divino. Portanto, a co311. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, 180.

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municação de atributos não acontece realmente. Todavia, a comunicação de atributos na fé reformada é perfeitamente exeqüível e inteligível, sendo in concreto. 3. Se negarmos o conceito do extra-calvinisticum, teremos que aceitar o modo luterano de crer na presença real e ubíqua (embora ilocal) do corpo e do sangue de Cristo na Ceia, e abandonar a crença calvinista da presença real de Cristo (quanto à sua natureza divina) e da presença representada de Cristo com respeito ao seu corpo e sangue. 4. Se negarmos o conceito do extra-calvinisticum, a totalidade da Pessoa de Jesus Cristo estará única e exclusivamente à destra de Deus, pois o pensamento luterano diz que não há Logos sem sarkos (carne) ou corpo. Para escapar desse raciocínio, os luteranos ensinam a ubiqüidade do corpo de Cristo, e isso também os reformados têm que aceitar se eles negam o extra-calvinisticum. Do contrário, a Cristologia de todos eles sofre um grande dano, pois, para evitar os erros da Divindade localizada, crê-se na humanidade ubíqua. Portanto, como reformados (ainda que não usemos o termo extra-calvinisticum), cremos que, sem nunca deixar a Trindade, mesmo quando se encarnou, o Redentor está presente em toda parte, conforme a sua natureza divina, ainda que, quanto à sua humanidade, ele esteja localizado no céu, à destra do Pai, de onde há vir para julgar os vivos e mortos.

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CAPÍTULO 6 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS NA PESSOA DO REDENTOR

É

importante que o leitor perceba que não é mencionado aqui um título como “Os Efeitos da Unio Personalis na Natureza Divina do Redentor” porque não houve nenhum tipo de mudança ou efeito na natureza divina dele, em virtude da união pessoal. As mudanças acontecidas foram na natureza humana do Mediador, e essas mudanças têm a ver com a personalidade toda do Mediador. Como Redentor divino-humano, a pessoa do Verbo encarnado sofre alguns efeitos que a sua simples natureza divina não poderia receber. A unio personalis, portanto, produz alguns efeitos nessa Pessoa complexa:

A PESSOA COMPLETA DO REDENTOR TORNOU-SE OBJETO E SUJEITO DE ADORAÇÃO Por sujeito da adoração eu me refiro ao que adora, e por objeto da adoração eu me refiro ao que é adorado. Por exemplo: você presta culto a Deus. Logo, você o sujeito da adoração e Deus é o objeto da sua adoração. No caso da Pessoa divinohumana do Redentor, ela é, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto da adoração. Vejamos, primeiro, a parte que nos parece mais óbvia, porque para nós, Jesus Cristo é o Verbo encarnado e, como tal, deve ser adorado.

A. A PESSOA DO REDENTOR É O OBJETO DA ADORAÇÃO Por objeto de adoração eu me refiro ao fato de Cristo ser aquele a quem nós adoramos. Como um resultado da unio personalis, a Pessoa completa de Jesus Cristo passa a ser objeto de adoração. A natureza humana sozinha não podia ser objeto formal de adoração, em virtude das suas limitações e de tudo o que pertence a Deus e que ela não possui. A natureza humana do Redentor veio a existir no tempo e no espaço, sendo criada, e coisas criadas, temporais e finitas, em si mesmas, não podem ser objeto de adoração, porque elas não são divinas em si mesmas. O divino, por outro lado, tem a propriedade da infinitude, eternidade (atemporalidade). Mas, como a natureza humana do Redentor é unida à Pessoa divina do

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Logos (com natureza divina) de modo indissolúvel e inseparável, ela participa da adoração que homens e anjos prestam à pessoa do Redent (Fp 2.9, 10; Hb 1.6). Anjos e homens não aceitaram adoração, conforme registra a Escritura. No entanto, o nosso Redentor divino-humano aceitou a adoração que os outros seres criados lhe prestaram e sempre aceitará a adoração que vierem a lhe prestar. A natureza humana de Cristo, em si mesma, não é adorada, mas o Verbo encarnado é adorado. Contudo, a natureza humana participa desse privilégio em virtude dessa unio personalis. Como não podemos nunca separar as duas naturezas, então podemos dizer que a Pessoa completa do Redentor é objeto da nossa adoração.

1. A PESSOA DE CRISTO FOI OBJETO DA ADORAÇÃO NO ESTADO DE HUMILHAÇÃO Quando vivia entre nós, a Pessoa do Redentor já era objeto de adoração de muitas pessoas que verdadeiramente o conheceram.

a. Jesus Cristo foi objeto de adoração na sua infância Já no começo de sua vida terrena, quando ainda recém-nascido, Jesus foi objeto de culto dos reis que vieram de tão longe, do Oriente. É verdade que eles não sabiam muita coisa sobre o Messias, mas sentiram-se compelidos a adorá-lo em virtude da sua procedência divina. Eles sabiam que ele também era homem, porque havia nascido de uma mulher recentemente, e trouxeram presentes que seres humanos usam: ouro, incenso e mirra. Veja o que eles disseram: Mateus 2.2 – “Onde está o recém-nascido Rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no Oriente, e viemos para adorá-lo” (cf 2.11).

Os reis do Oriente não somente disseram que haviam vindo de longe para adorar o recém-nascido Rei dos judeus, mas, evidentemente, eles realmente vieram adorálo. Mateus registra que, quando entraram na estalagem onde o Menino-Deus dormia, “entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se o adoraram; e, abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra” (Mt 2.11). Como faríamos se estivéssemos na presença visível do Altíssimo, os magos prostraram-se reverentemente diante do Filho de Deus encarnado.

b. Jesus Cristo foi objeto de adoração na sua idade adulta Durante o seu ministério, já adulto, a Pessoa do Redentor foi adorada em diversas ocasiões: por aqueles que foram beneficiados com cura (Mt 8.2; 9.18; 15.25; Jo 9.38); por aqueles que se maravilhavam diante seus atributos divinos (Mt 14.33); pelos que reconheciam o seu poder (Mt 20.20). Diante da Pessoa do Redentor, os homens se curvavam e se prostravam, porque essa Pessoa era maravilhosa e os seus feitos entre os homens causavam grande assombro a ponto de reconhecerem

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nele alguém que era mais do que um carpinteiro. Naquele tempo ele já era o vere Deus e vere homo, embora essa noção teológica tenha aparecido na teologia somente mais tarde.

c. Jesus Cristo foi adorado pelos anjos Jesus Cristo foi objeto de adoração (no seu estado de encarnado) dos anjos, pois essa foi a ordenação de Deus para eles. Veja o que o autor de Hebreus disse: Hebreus 1.6 – “E, novamente, ao introduzir o Primogênito no mundo, diz: E todos os anjos de Deus o adorem.”

Como o Verbo é eterno e sempre “esteve com Deus e era Deus” (Jo 1.1), os anjos sempre lhe prestaram culto. Sempre o adoraram como Deus que era. Mas o texto acima está se referindo à encarnação do Verbo, porque ele fala de Deus “introduzindo o Primogênito no mundo”. Após a encarnação, a Pessoa completa do Redentor (que inclui a sua humanidade) é objeto de adoração dos anjos, porque o Redentor é mais alto do que os anjos e tornado superior a eles (esse é o argumento do capítulo 1 de Hb). A superioridade sobre os anjos acontece em virtude da unio personalis. Como homem, em si mesmo, ele não é superior aos anjos, mas, como a sua humanidade está ligada ao Logos, então o Redentor é superior aos anjos, dos quais ele recebeu a adoração já nos dias de sua existência entre nós. O Filho foi adorado como Deus no período anterior à encarnação e continuou a ser adorado pelos anjos como Deus-homem, após a encarnação, mesmo no estado de humilhação!

d. Jesus Cristo foi adorado até pelos demônios Jesus foi objeto de adoração até mesmo de espíritos malignos, que bem conheciam a sua natureza divina e certamente não se enganaram a respeito da Pessoa do Redentor. Era comum que eles se prostrassem perante o Filho de Deus encarnado e até manifestassem publicamente o seu reconhecimento da divindade dele. Marcos diz: “Também os espíritos imundos, quando o viam, prostravam-se diante dele e exclamavam: Tu és o Filho de Deus” (Mc 11.3). Esse prostrar-se não é necessariamente indicativo de adoração, mas o texto a seguir não deixa dúvidas da adoração que os demônios lhe prestaram enquanto o Redentor viveu entre nós no seu estado de humilhação. Marcos 5.6 – “Quando, de longe, viu Jesus, correu e o adorou.”

Os versos anteriores dessa passagem nos indicam que havia um homem possesso de espírito imundo (v. 2), e o seu procedimento ultrapassava os limites dos poderes humanos (v. 3-5). No entanto, ao ver Jesus, adorou-o. Na verdade, a adoração não é a de um homem, mas a do demônio que o tomava. Essa conclusão vem do verso 7 que diz: “Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conju-

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ro-te por Deus que não me atormentes.” Essa expressão é repetida em outros lugares, e se refere à manifestação de um anjo caído que se prostra perante o senhorio e a divindade do Filho de Deus que estava encarnado, vivendo entre nós, pois ele o chama de “Jesus” e de “Filho de Deus”.

2. A PESSOA DE CRISTO FOI OBJETO DE ADORAÇÃO NO ESTADO DE EXALTAÇÃO A pessoa do Redentor foi adorada no seu estado de Exaltação por aquelas pessoas que se regozijaram com a sua ressurreição (Mt 28.9). Jesus Cristo foi objeto de adoração de todos os seus discípulos enquanto se despedia deles e ia sendo elevado ao céu (Lc 24.53). Por essa razão, no seu estado de exaltação, todos os anjos, homens e seres viventes prestam culto a Jesus Cristo, dizendo: Apocalipse 5.12-14 – “Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor. Então ouvi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: Àquele que está assentado no trono, e ao cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos.”

No final, depois que a redenção se completar, todos os remidos, a uma só voz, cantarão louvores àquele que os redimiu, e todas as criaturas celestes atribuirão louvores e adoração Àquele que está assentado no trono e ao Cordeiro (Ap 7.911). Essa adoração vai continuar, certamente, por toda a eternidade, no novo céu e na nova terra, porque Aquele que está assentado o trono e o Cordeiro estarão tabernaculando conosco neste mundo renovado. Hoje e no futuro, a pessoa completa de Jesus Cristo é objeto da adoração do seu povo e de todo ser vivente por causa da unio personalis, isto é, porque houve uma união indissolúvel entre o divino e o humano, de forma que a natureza humana também participa da adoração que é prestada ao Cordeiro, porque não existe Cordeiro sem a sua humanidade.

B. A PESSOA DO REDENTOR É O SUJEITO DA ADORAÇÃO Se, por ser objeto da adoração Cristo se tornou adorado, por sujeito da adoração eu quero dizer que Jesus Cristo se tornou também um adorador de Deus. Essa parte é estranha a muitos cristãos, porque quase nunca eles vêem Jesus Cristo como um verdadeiro homem. A tendência entre os cristãos evangélicos da ortodoxia é ver Jesus Cristo mais como Deus do que como homem. Vê-lo fazendo as cousas próprias da sua humanidade parece um pouco estranho aos seus olhos. Adorar é um gesto próprio de seres racionais finitos. No entanto, não podemos nos

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esquecer de que Jesus Cristo era ambas as coisas, racional e finito, como humano que era. Portanto, ele é o sujeito da adoração por causa da sua humanidade. Vejamos como o argumento se segue. Como um resultado da unio personalis, a Pessoa do Redentor passa a ser também o sujeito da adoração. Como a natureza divina está inseparavelmente unida à natureza humana, a Pessoa de Jesus Cristo passa a ser também um adorador. Não há sentido em o Verbo não-encarnado possuir o gesto de adoração, pois ele é o próprio Deus, o Filho. Deus não adora Deus. Todavia, como o Verbo se encarnou, assumindo a natureza humana, agora ele é não somente vere Deus, mas também vere homo. Como tal, o Redentor tem de prestar culto, porque ele também é homem. Portanto, não há como negar que a Pessoa completa do Redentor também é uma adoradora de Deus, por causa da sua natureza humana.

1. NO ESTADO DE HUMILHAÇÃO, A PESSOA DE CRISTO É O SUJEITO DA ADORAÇÃO Certa feita, ele foi tentado, pelo próprio diabo, a prestar-lhe culto. Satanás sabia que Jesus Cristo era homem, e, com tal, tinha o dever de prestar culto. Quando houve a insinuação de Satanás, imediatamente Jesus Cristo se adiantou e lhe repetiu o ensino do Antigo Testamento: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto” (Mt 4.10). Se havia alguém a quem ele haveria de prestar culto seria a Deus, o seu Pai. Esse foi o genuíno reconhecimento do Filho do Homem. Não é muito comum, mas há exemplos da Escritura em que a Pessoa de Jesus Cristo entrou no templo para adorar, enquanto viveu entre nós. A Escritura diz que ele constantemente ensinava no templo (Lc 19.47; 21.37), mas ele não ia ao templo com a finalidade de ser adorado, pois isso seria um escândalo para muitos judeus. Não pense o leitor que ele ia ao templo somente para ensinar, mas ele ia para cantar louvores a Deus, como os seus irmãos cantavam. O Deus de seus irmãos também era o Deus dele. Veja o que o mesmo Salmo diz dessa atitude do Messias: “A ti [Deus] me entreguei desde o meu nascimento; desde o ventre da minha mãe tu és o meu Deus” (Sl 22.10). O Messias haveria de ser o sujeito da adoração porque o nosso Deus também era o Deus dele. Como bom judeu que era, homem como outros homens tementes a Deus, ele também participava da adoração. Como homem que era, ele reconheceu a necessidade de adorar ao seu Deus.

2. NO ESTADO DE EXALTAÇÃO, A PESSOA DE CRISTO É O SUJEITO DA ADORAÇÃO Mesmo depois de ter completado a redenção dos pecadores, é dito que Jesus Cristo continua a exercer sua função de adorador, pois a sua natureza humana nunca foi e nunca será divinizada. Como homem, ele presta culto ao seu Deus e Pai. Veja um texto ilustrativo dessa verdade:

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Hebreus 2.11, 12 – “Pois, tanto o que santifica, como os que são santificados, todos vêm de um só. Por isso é que ele não se envergonha de lhes chamar irmãos, dizendo: A meus irmãos declararei o teu nome, cantar-te-ei louvores no meio da congregação.”

O autor de Hebreus está citando uma passagem do Antigo Testamento que mostra o Santificador dos filhos de Deus como alguém que é sujeito da adoração. O autor está citando o Salmo 22, que é, por excelência, messiânico, e mostra a atitude de adorador que o Messias teria quando da sua vida entre nós. Jesus cantou louvores no meio da congregação enquanto viveu sua vida terrena, como já afirmamos acima. Todavia, o texto de Hebreus mostra uma atividade constante de Jesus Cristo ainda hoje. Certamente Jesus Cristo canta louvores no meio da congregação celestial. Ali, na sua glória, como homem que é, rende louvores a Deus juntamente com os outros remidos que ali estão. Não há qualquer problema em pensar dessa maneira, pois ele está presente no céu segundo a sua humanidade. Todavia, a questão fica mais difícil para nós, calvinistas, entendermos como ele canta louvores no meio da congregação aqui na terra, após a sua ascensão, quando a sua natureza humana está presente somente no céu, até que ele volte para buscar seu povo que está aqui na terra. Portanto, o texto de Hebreus, que é uma citação do Antigo Testamento, deve ser entendido primordialmente como uma referência à sua adoração aqui na terra, e, secundariamente, como uma adoração que ele faz no céu, após a sua ascensão. Ele só pode adorar como pessoa onde está a sua natureza humana. É verdade que o próprio Jesus disse que estaria conosco todos os dias até a consumação dos séculos, e que, onde estivessem dois ou três reunidos em seu nome, ele estaria no meio deles. Por que ele estaria em nosso meio? Para ser simplesmente objeto de nosso culto? Por que a expressão “reunidos em meu nome”? Porque o culto que nós prestamos é aceito por Deus por causa dele. A sua presença divina entre nós é que autoriza o nosso culto a Deus, e tudo o que fazemos no culto tem a “chancela” da presença de Cristo, que, juntamente conosco, adora (segundo a sua humanidade) a Deus Pai. Portanto, não é errado dizer que a Pessoa de Jesus Cristo, que é objeto do nosso culto, também é o sujeito do culto, porque ele é da mesma natureza nossa, com necessidade de prestar culto a Deus.

A PESSOA DO REDENTOR TORNOU-SE OBJETO E SUJEITO DA ORAÇÃO A conseqüência de Cristo ser objeto da adoração é que pessoas comuns fizeram-lhe orações. De modo semelhante, assim como ele foi o sujeito da adoração,

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ele passa também a ser o sujeito da oração. A oração é uma das expressões do nosso culto público a Deus. Como o Redentor é divino, ele é o objeto das orações; e como ele também é humano, ele é o sujeito das orações. Em outras palavras, ele recebe orações e faz orações. Todavia, ao invés de ficar fazendo as separações entre o divino e o humano em Cristo, é melhor dizer que a Pessoa de Jesus Cristo é, portanto, ao mesmo tempo, o objeto da oração e o sujeito dela.

A. A PESSOA DO REDENTOR É O OBJETO DA ORAÇÃO Por causa da unio personalis, a Pessoa do Redentor é objeto da oração. É óbvio que a natureza divina que foi reconhecida pelos seus discípulos é foi o que os levou a fazer orações ao Filho encarnado. É interessante observar que, neste argumento, vemos a natureza humana sendo participante das coisas relacionadas à adoração do Redentor. Todavia, é mais aconselhável pensar na Pessoa total do Redentor como sendo objeto das nossas orações.

1. VEJA EXEMPLOS DE ORAÇÃO AO SENHOR Perceba que as orações feitas a Jesus Cristo dizem respeito à totalidade da sua Pessoa, esteja essa Pessoa aqui neste mundo nos dias em que viveu conosco ou no céu depois de glorificado.

a. Orações no estado de humilhação Enquanto esteve entre nós, nos dias de sua carne, muitas pessoas fizeram súplicas a Jesus Cristo que devem ser consideradas como verdadeiras orações. Eles oraram a Cristo como oravam a Deus. Embora a noção da divindade de Cristo não tivesse sido ainda elaborada, a sua presença, que refletia a imagem do seu Pai em virtude de sua natureza divina, despertava arroubos de oração do coração daqueles que eram confrontados com a santa Pessoa do Redentor divino-humano. Citarei apenas dois dos vários exemplos que os evangelhos nos apresentam. Observe o caso dos cegos de Jericó. Eles suplicaram a Jesus Cristo, dizendo: “Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de nós” (Mt 20.30). Perceba que o título “Filho de Davi” (um título messiânico) é acompanhado do uso da palavra “Senhor”, que, na Escritura, quando usado a respeito de Cristo, aponta para a sua divindade. No entanto, a Pessoa completa do Redentor, o que inclui a sua humanidade, é objeto da oração dos homens. Observe o caso de um leproso: “E eis que um leproso, tendo-se aproximado, adorou-o, dizendo: Senhor, se quiseres, podes purificar-me” (Mt 8.2). O evangelista reconhece que a oração feita pelo leproso é um ato de adoração. Esse é um reconhecimento, pelo menos segundo a interpretação do narrador, de que o lepro-

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so via em Jesus Cristo a divindade, e toda a Pessoa do Redentor foi objeto da oração.

b. Orações no estado de exaltação Depois que subiu ao céu, Jesus Cristo também tem sido objeto das orações dos filhos de Deus, embora as orações dirigidas a ele não sejam muito comuns, em virtude do fato dele ter ensinado aos discípulos a orarem ao Pai, em nome dele. Para ilustração do que acabamos de dizer, daremos apenas dois textos. O primeiro é a oração que Estevão fez quando estava para morrer. Atos 7.59, 60 – “E apedrejavam a Estevão, que invocava e dizia: Senhor Jesus, recebe o meu espírito! Então, ajoelhando-se, clamou em alta voz: Senhor, não lhes imputes este pecado. Com estas palavras adormeceu.”

Jesus já havia subido ao céu quando Estevão entrou em cena. A Igreja sofria atroz perseguição, e Estevão foi apedrejado por causa do seu testemunho público. No meio da dor do apedrejamento, ele suplicou a Jesus duas coisas: uma por si mesmo (“recebe o meu espírito”) e outra pelos seus algozes (“não lhes imputes este pecado”). Essa passagem mostra que a Pessoa completa do Redentor foi objeto da oração dos crentes no seu estado de exaltação. O outro exemplo é o de Paulo. Ele também orou a Jesus, quando este estava na glória. 2 Coríntios 12.8 – “Por causa disto três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim.”

Paulo está tratando das visões e revelações que ele havia recebido do Senhor, que aqui é Jesus Cristo, pois em outro lugar Paulo comenta que “o evangelho que eu recebi não o recebi de homem nenhum, mas mediante revelação de Jesus Cristo” (Gl 1.11, 12). Portanto, ao receber as revelações de Jesus Cristo exaltado, a fim de que Paulo não se ensoberbecesse, foi lhe dado um espinho na carne. Paulo certamente sofreu com esse espinho, e orou três vezes a Jesus Cristo para que ele retirasse esse espinho, no que não foi atendido do modo como pediu. Simplesmente recebeu a graça para suportá-lo. Essa narrativa de 2 Coríntios 12.1-10 mostra que a Pessoa completa do Redentor foi e é objeto de nossas orações no estado de exaltação.

2. VEJA QUE OS CRENTES DEVEM ORAR AO SENHOR JESUS Paulo diz que “todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (Rm 1.3). Paulo está se referindo a Jesus Cristo como Aquele a quem as pessoas devem se dirigir em matéria de salvação. Da mesma forma, Paulo se refere aos crentes de Corinto como aqueles que “em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus

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Cristo, Senhor deles e nosso” (1Co 1.2). Era uma prática comum dos crentes do século 1º a oração feita ao Senhor Jesus. Era tão comum essa prática que as autoridades judaicas tinham “autorização dos principais sacerdotes para prender a todos os que invocam o teu nome” (At 8.14), que é uma referência clara a Jesus, como mostra o verso 17.

B. A PESSOA DO REDENTOR É O SUJEITO DA ORAÇÃO Muito comumente prestamos atenção às orações dos grandes heróis da fé, mas freqüentemente nos esquecemos de que o nosso Redentor também fez oração, especialmente em virtude de sua humanidade adquirida na encarnação. Há cerca de dez ocasiões nas quais a Escritura registra Jesus fazendo oração nos mais variados lugares e situações. Não sabemos detalhes da vida de oração de Jesus Cristo, mas imagino que, como um judeu que era, ele seguia as prescrições bíblicas sobre a oração. Ele não poderia fugir às determinações da lei. Um fiel israelita orava ao nascer do sol, ao meio dia e no poente todos os dias (Sl 55.17; Dn 6.10). Sabemos que Jesus Cristo nasceu e cresceu num lar piedoso e temente a Deus, onde as prescrições de Deus eram observadas. Além disso, Jesus Cristo, o Deus-homem, não poderia deixar de cumprir qualquer preceito importante da lei. Por essa razão, podemos pressupor que ele era um homem devotado à oração, assim como era devotado à leitura da Escritura (Lc 4.16). Não foi à toa que ele chamou o templo de Jerusalém de “casa de oração”, pois ali ele se dirigia ao seu Pai constantemente (Mc 11.17 cf. Is 56.7). Jesus Cristo foi encontrado orando várias vezes, o que, na verdade, é parte da sua adoração a Deus. Ele orou nas mais variadas circunstâncias da sua vida. As perguntas que se levantam freqüentemente são: possuía Jesus Cristo necessidades pessoais? Quais os motivos das suas orações? Ele precisava orar?

1. VEJA O AMBIENTE DAS ORAÇÕES DE JESUS Mateus 14.23 – “Despedidas as multidões, subiu ao monte, a fim de orar sozinho. Em caindo a tarde, lá estava ele, só.”

Jesus gostava de orar em quietude e solidão. O seu costume de ir ao monte para orar era nada mais nada menos do que a sua necessidade de estar sozinho a fim de manter profunda comunhão com o seu Pai. Ir ao monte não possuía qualquer sentido místico que hoje vemos em alguns círculos evangélicos, mas significava simplesmente a quietude de que precisava para o desenvolvimento de sua vida devocional, para refrescar o seu doce relacionamento com seu Pai. Freqüentemente ele fugia do burburinho das multidões ao seu redor e, então, refugiava-se nos lugares quietos e solitários, especialmente quando o dia declinava, que era hora das pessoas voltarem para casa.

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2. VEJA AS ORAÇÕES INTERCESSÓRIAS DE JESUS a. Nas orações, Jesus intercedia por suas próprias necessidades As orações intercessórias revelam a humanidade do Redentor e, por conseguinte, as suas necessidades. Veja as suas necessidades expostas.

(1) Veja que Jesus orou pedindo orientação para as suas decisões Lucas 6.12 – “Naqueles dias retirou-se para o monte a fim de orar, e passou a noite orando a Deus.”

Com que propósito foi Jesus orar a noite toda? Não era ele suficientemente poderoso para tomar a decisão de escolher os seus apóstolos sem precisar da orientação de Deus, o Pai? Eu não posso responder todas as perguntas de modo absolutamente claro, mas tenho que respondê-las de acordo com as informações que a Escritura me apresenta. Jesus orou intensamente durante uma longa noite para poder escolher os seus discípulos que seriam apóstolos. Certamente as suas orações não eram simplesmente de louvor ao seu Pai. Havia uma grande decisão a ser tomada pelo Redentor. Todavia, não podemos nos esquecer de que ele também era homem, e, como tal, tinha de pedir orientação sobre os seus procedimentos. Nem sempre a sua natureza divina agia de maneira inequívoca sobre a Sua natureza humana, de modo a deixar todas as coisas claras. Era parte da economia da Divindade que o Redentor, com sua natureza humana, suplicasse ao Pai celestial as orientações para as decisões certas, ao invés disso ser feito diretamente pela influência de sua natureza divina.

(2) Veja que Jesus orou preparando-se para enfrentar a ira divina O tempo da ira divina se manifestar na Pessoa do Redentor estava para chegar de modo supremo. Ninguém haveria de receber o que Jesus recebeu em nosso lugar. Ninguém pode aquilatar o peso da ira divina sobre o Filho de Deus encarnado. Por essa razão, Ele faz uma oração que revela as suas dores, angústias, tristezas e temores, que estão registradas nos textos paralelos ao texto analisado abaixo. A fim de estar pronto para receber a manifestação final da ira divina, ele fez a seguinte oração: Análise de Texto Lucas 22.39-46 – “E, saindo, foi, como de costume, para o Monte das Oliveiras: e os discípulos o acompanharam. Chegando ao lugar escolhido, Jesus lhes disse: Orai, para que não entreis em tentação. Ele, por sua vez, se afastou cerca de um tiro de pedra, e, de joelhos, orava, dizendo: Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, e, sim, a tua [então lhe apareceu um anjo do céu

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que o confortava. E, estando em agonia, orava mais intensamente. E aconteceu que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra.] Levantando-se da oração, foi ter com os discípulos e os achou dormindo de tristeza, e disse-lhes: Por que estais dormindo? Levantai-vos, e orai, para que não entreis em tentação.”

(3) Veja o bom costume de orar que Jesus tinha “E, saindo, foi, como de costume, para o Monte das Oliveiras: e os discípulos o acompanharam” (v. 39).

Orar era um bom costume que o nosso Redentor possuía. Orar era habitual para o nosso Salvador, mas um hábito consciente, não meramente mecânico ou ritualista como o de alguns de nós. Mais do que todos nós ele entendeu que a vida de comunhão com seu Pai era fundamental para a sua saúde espiritual, como homem que também era.

(4) Veja a ordenação aos seus discípulos para que orassem “Chegando ao lugar escolhido, Jesus lhes disse: Orai, para que não entreis em tentação” (v. 40).

Jesus entendeu que os seus discípulos deveriam cuidar de sua saúde espiritual, a fim de não serem atacados espiritualmente pelo Maligno. Essa ordem revela a preocupação de Jesus Cristo com o bem-estar espiritual dos seus irmãos mais novos. Ele não queria vê-los colhidos pela tentação em fraqueza. Ele queria vê-los fortalecidos em sua fé. Daí a ordem para que orassem incessantemente. Ao mesmo tempo em que Jesus pediu que os discípulos orassem para que não entrassem em tentação, Jesus pediu-lhes o apoio porque ele se encontrava em grande tristeza de alma (veja o texto paralelo de Mt 26.38).

(5) Veja que Jesus se apartou deles para orar sozinho (v. 41) “Ele, por sua vez, se afastou cerca de um tiro de pedra, e, de joelhos, orava” (v. 41).

Acima já mencionamos essa característica relativa ao ambiente em que Jesus Cristo gostava de orar. Ele sempre preferiu a quietude para comungar com Seu Pai. Por essa razão, ele “afastou-se cerca de um tiro de pedra”. Além disso, ele gostava de tratar sozinho com seu Pai de suas necessidades. Há um sentido (no que diz respeito a nós) em que orar sozinho é muito melhor do que em grupo, porque a solidão nos torna mais íntimos e somos mais sinceros do que nas orações feitas em público. Obviamente, a insinceridade nunca foi um problema de Cristo, mas ficar a sós com Deus significava muito para o bom andamento do relacionamento com seu Pai, pois algumas coisas eram um segredo entre o Pai e Ele.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

(6) Veja a postura de Jesus na oração “Ele, por sua vez, se afastou cerca de um tiro de pedra, e, de joelhos, orava” (v. 41).

O fato de Jesus Cristo orar “de joelhos” sugere algumas coisas: primeiro, sugere sua aflição que faz com que sua alma suplicemente se lance diante de seu Pai; segundo, sugere a plena submissão à vontade de seu Pai; terceiro, sugere que ninguém poderia tratar daqueles problemas tão difíceis com seu Pai senão Ele somente.

(7) Veja o conteúdo da oração de Jesus “Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, e, sim, a tua” (v. 42).

Esse verso mostra duas vontades: a divina e a humana.312 A vontade divina está expressa no fato do Filho encarnado ser entregue à morte e a todos os sofrimentos que a precederam. A vontade humana revela o temor do sofrimento a ponto de ele suplicar que fosse passado dele aquele sofrimento. Todavia, como obediente que é à vontade soberana do seu Pai, ele aquiesce diante dela (cf. Mt 26.39, 42, 44).

(8) Veja a perseverança de Jesus na oração “[então lhe apareceu um anjo do céu que o confortava. E, estando em agonia, orava mais intensamente. E aconteceu que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra.]” (vs. 43, 44).

A agonia de Jesus Cristo era imensurável. Talvez nenhum ser humano jamais venha a compreendê-la, porque é agonia de alguém totalmente santo que estava levando a iniqüidade de muitos, mas essa agonia não o fazia desanimar. O nosso Redentor era também um homem de uma grande fibra, porque nada o fazia esmorecer. Quanto mais sofrimento recebia, mas intensamente ele orava, a ponto de sofrimento fazer com que saísse sangue pelos seus poros. No entanto, ao invés de fazer como muitos de nós, seus discípulos, que desanimamos e lamuriamos em nossos sofrimentos, mais ele se apegou ao seu Pai, evidenciando a sua perseverança em oração.

(9) Veja a calma de Jesus após a oração “Levantando-se da oração, foi ter com os discípulos e os achou dormindo de tristeza” (v. 45).

Ele volta do seu lugar solitário (de “cerca de um tiro de pedra”) com a certeza 312. Sobre as duas vontades, a divina e a humana, em Jesus Cristo, veja o capítulo “A Unipersonalidade do Mediador”.

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de ter feito o que devia. Havia orado o suficiente para o cumprimento dos propósitos divinos, e, agora, encontra os seus discípulos sem perseverança, cansados e abatidos de tristeza, a ponto de dormirem no meio da oração. Ele não perdeu a estribeira, como alguns de nós perderíamos após pedir várias vezes que eles vigiassem. Ele portou-se calmamente, mesmo sabendo de todas as coisas que estavam por lhe acontecer.

(10) Veja a reafirmação da ordem para a oração “e disse-lhes: Por que estais dormindo? Levantai-vos, e orai, para que não entreis em tentação” (v. 46). Agora a reafirmação da ordem é para que eles continuem a orar, mas não mais ali. Que o fizessem enquanto estivessem andando pelos caminhos, enquanto estivessem fazendo qualquer outra coisa. A necessidade era a oração vigilante em todo tempo, a fim de que não caíssem em tentação. Quando nos esquecemos de orar constantemente, costumamos ser mais suscetíveis aos ataques do que quando estamos vigilantes. A constância e a perseverança na oração nos previnem de sermos presas fáceis do inimigo de nossas almas.

b. Nas orações, Jesus intercedeu pelas necessidades de outras pessoas Abaixo estão relacionados apenas uns poucos exemplos para ilustrar as orações de Jesus pelas necessidades do seu povo. Jesus Cristo pediu por muitas pessoas e por muitas coisas ao seu Pai. Jesus orou por necessidades específicas de seus discípulos (Lc 22.31, 32), assim como por suas necessidades gerais, mas com conotação redentora e gloriosa (Jo 17). Jesus orou pela unidade dos crentes (Jo 17.11, 21, 23); Jesus orou para que eles tivessem gozo em si mesmos (Jo 17.13); Jesus orou para que eles fossem guardados do mal (Jo 17.15); Jesus orou para que eles fossem santificados (Jo 17.17); Jesus orou para que o mundo cresse que ele é o enviado do Pai (Jo 17.21); Jesus orou para que o mundo soubesse do seu amor por eles (Jo 17.23); Jesus orou para que os seus estivessem com ele onde ele estivesse (Jo 17.24); Jesus orou para que os seus pudessem ver a sua glória (Jo 17.24). Jesus intercedeu por suas próprias necessidades e pelas necessidades de outros em virtude da sua humanidade e da sua obediência, além da sua subordinação ao Pai na Trindade econômica.

3. VEJA AS ORAÇÕES DE AÇÃO DE GRAÇAS DE JESUS AO PAI Mateus 11.25-26 – “ Por aquele tempo, exclamou Jesus: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado.”

Jesus deu graças pelo modo como seu Pai administrava a sua revelação salvadora. Aliás, todos nós deveríamos aprender a dar graças pelas mesmas razões de Jesus. Ele agradeceu ao Pai tanto por revelar a sua verdade salvadora aos pequeninos como por ocultar essas mesmas verdades ao grupo de sábios e entendidos. Não é comum vermos crentes agradecendo a Deus por sua maneira soberana de administrar suas graças. João 11.41, 42 – “Tiraram, então, a pedra. E Jesus, levantando os olhos para o céu, disse: Pai, graças de dou porque me ouviste. Aliás, eu sabia que sempre me ouves, mas assim falei por causa da multidão presente, para que creiam que tu me enviaste.”

A ação de graças, aqui, revela o reconhecimento que Jesus Cristo, como Redentor divino-humano, tinha da vontade de seu Pai, que é sempre feita. Quando ele diz “graças de te dou porque me ouviste”, podemos perceber sua humanidade claramente, porque o Pai ouviu a oração que Cristo havua feito na ressurreição de Lázaro. Todavia, quando ele acrescenta “aliás eu sabia que sempre me ouves, mas assim falei por causa da multidão presente”, podemos perceber nele traços da sua divindade, mostrando a sua onisciência e o reconhecimento de alguém que sempre viveu com seu Pai, mesmo antes da encarnação. A expressão “para que creiam que tu me enviaste” aponta para o seu estado pré-encarnado. Portanto, a ação de graças de Jesus nesses versos mostra, ao mesmo tempo, a sua humanidade e a sua divindade. A oração é própria da humanidade, mas o reconhecimento do poder de ouvir orações e do conhecimento do Redentor é típico de sua divindade. No entanto, a ação de graças é atribuída à Pessoa do Redentor. Perceba que essa oração, como as outras mencionadas acima, foi feita pela Pessoa do Redentor, não por sua natureza humana. Todavia, não podemos nos esquecer de que oração é algo próprio de quem é humano. Deus não faz orações, mas o homem faz. Portanto, as orações de Jesus Cristo têm a ver com a sua humanidade, que está inseparavelmente unida à sua divindade. Por essa razão, é dito que a Pessoa do Redentor faz orações.

A PESSOA DO REDENTOR TORNOU-SE OBJETO DA FÉ E SUJEITO DA FÉ É maravilhoso ver como a Pessoa do Redentor, ao mesmo tempo em que é distante de nós por causa de sua Divindade, está próxima de nós por causa da sua humanidade. Estamos acostumados a ouvir que nós temos que crer em Jesus, mas poucos de nós pensamos que ele é também um crente, que ele tem fé no seu Deus. É isso que o torna próximo de Deus, e, ao mesmo tempo, o que nos desafia a sermos tão crentes quanto ele.

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A. A PESSOA DO REDENTOR COMO OBJETO DA FÉ Não obstante o fato de haver essa distância e essa proximidade entre o Redentor e nós, o que nos importa é a relação de fé que temos de ter para com a sua Pessoa completa. Ela é o objeto da nossa fé. A fé dos cristãos tem de ser em Cristo Jesus, para a sua salvação. A Pessoa do Redentor divino-humano deve ser o objeto da fé deles. A Escritura é absolutamente inequívoca quando trata dessa matéria. Apenas um exemplo como ilustração: João 3.36 – “Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas somente ele permanece a ira de Deus.”

A fé em Jesus Cristo tem a ver com a sua natureza divina. Por isso é dito que os homens têm de crer no Filho de Deus. Se ele não fosse Deus, ele não poderia ser objeto de nossa fé. Só podemos confiar em quem é poderoso, verdadeiro, e fiel. Embora a natureza humana de Jesus Cristo participe como objeto da fé por estar inseparavelmente unida à natureza divina do Redentor, a sua Pessoa completa é o objeto da fé. A expressão “crer no Filho” deve ser entendida como crer na Pessoa do Redentor, e não simplesmente crer em sua natureza divina. Esse assunto é pacífico entre os estudiosos de teologia e entre os crentes em geral. Diferentemente, o assunto a seguir não é muito conhecido deles, e até soa-lhes estranho.

B. A PESSOA DO REDENTOR COMO SUJEITO DA FÉ Hebreus 2.13 – “Eu porei nele a minha confiança. E ainda: Eis aqui estou eu, e os filhos que Deus me deu.”

Ao mesmo tempo em que Jesus Cristo é o objeto da nossa fé, porque ele é divino, ele também é aquele que possui fé em Deus, em razão da sua humanidade. O contexto desse verso mostra que Jesus Cristo é irmão dos filhos que Deus lhe havia dado, em favor dos quais ele fez uma grande obra de redenção. Certamente a intenção do escritor sacro é provar que ele era real e verdadeiramente um com os filhos que lhe foram trazidos. Como eles, ele creu em Deus, porque era da mesma natureza deles. Com certeza essa não era uma fé para a salvação, mas uma confiança na obra providencial de Deus na sua vida para que ele pudesse fazer todas as coisas com relação aos que ele chamou de “meus irmãos”. Owen diz que “em todas as aflições e dificuldades com as quais ele tinha de lutar, ele colocou a sua confiança em Deus, e isso evidencia que ele foi verdadeira e realmente um dos filhos – seus irmãos, e que era seu dever, não menos do que o deles, depender de Deus nas aflições e sofrimentos”.313 Jesus creu em Deus, e nós também devemos crer nele de todo o coração. 313. John Owen, Hebrews – The Epistle of Warning (Grand Rapids: Kregel Publications, 1973), 30.

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MacArthur diz que é “maravilhoso perceber que, quando somos chamados para andar pela fé, para nos submetermos a Deus e para vivermos na dependência total dele, somos chamados para seguir o caminho que Jesus trilhou”.314 Jesus creu em seu Deus, que é o nosso Deus. Esse caminho, você e eu devemos seguir. O caminho da fé é o caminho proposto por Deus para nós, porque foi o caminho que a pessoa do Filho encarnado trilhou em razão de sua humanidade. O quadro ilustrativo abaixo indica, de modo gráfico, aquilo que é próprio da natureza humana, mas que, por causa da unio personalis, afetam toda a pessoa do Redentor. A Pessoa do Redentor Em sua simples natureza humana

Todavia, por causa da unio personalis

Só poderia adorar, mas não poderia receber adoração

A pessoa completa de Cristo pode adorar e receber adoração

Só poderia orar, mas não podia ser objeto de oração

A pessoa completa de Cristo pode orar e pode ser objeto de oração

Só poderia crer, mas não podia ser objeto de fé

A pessoa completa de Cristo pode tanto crer como ser objeto de fé

A PESSOA DO REDENTOR ADQUIRIU A IMPECABILIDADE Uma outra conseqüência da união das duas naturezas é que a Pessoa de Jesus Cristo adquiriu não somente a santidade, mas a propriedade da impecabilidade,315 mesmo a despeito da sua tentabilidade.316 Por impecabilidade, aqui, entenda-se a capacidade de não pecar, não a capacidade da imutabilidade, que é própria unicamente da natureza divina do Redentor. A ênfase sobre a impecabilidade do Redentor é justamente porque a Escritura afirma que Deus não pode ser tentado, como a ninguém tenta. Portanto, a natureza divina não somente é impecável como é intentável (Tg 1.13). Pecar é uma impossibilidade para Deus (Hb 6.18). Diferentemente da natureza divina, a natureza humana é tanto tentável quanto pecável. Todavia, quando as duas naturezas são unidas do modo como o foram, na Pessoa teantrópica do Redentor, o Redentor se 314. John MacArthur, New Testament Commentary – Hebrews (Chicago: Moody Press, 1983), 69. 315. É curioso que nem todos os teólogos reformados admitam a impecabilidade de Jesus Cristo. Charles Hodge, na sua Systematic Theology, nega-a de modo claro. Ele diz: “A impecabilidade de nosso Senhor não conta como sendo uma impecabilidade absoluta. Ela não era uma non potest peccare”. Segundo ele, a tentação implica necessariamente na possibilidade de pecar. “Se, pela constituição de sua Pessoa, era impossível para Cristo pecar, então sua tentação é irreal e sem efeito, e ele não pode simpatizar-se com o seu povo” (volume II, 457). 316. A questão da tentabilidade é um aspecto que você poderá ver em capítulo separado, como um efeito da unio personalis sobre a Pessoa do Redentor.

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torna tentável por causa da sua humanidade, mas ao mesmo tempo se torna isento da possibilidade de queda por causa da unio personalis. É nesse sentido que se diz da natureza humana que ela possui a impecabilidade. Contudo, é mais próprio dizer que a impecabilidade pertence à Pessoa do Redentor, e não à sua natureza humana. Por se tratar de um assunto bastante complexo e debatido entre os cristãos, o assunto da impecabilidade será tratado num capítulo especial ainda neste livro.

A PESSOA DO REDENTOR ADQUIRIU TENTABILIDADE A pessoa do Verbo, ou do Filho, não era tentável porque era uma pessoa divina, e a Escritura diz que Deus não pode ser tentado (Tg 1.13). Se não tivesse havido a encarnação do Verbo, nunca ele teria sido passível de tentação. Contudo, por causa da unio personalis, a Pessoa de Jesus Cristo, o Verbo encarnado, passou a ser passível de tentação,317 isto é, ele pôde ser tentado porque assumiu a natureza humana. Portanto, a pessoa do Verbo, após a encarnação, por causa da união das duas naturezas, veio a ser passível de ser tentada. Não obstante a sua impecabilidade, pelo fato de sua natureza humana ser inseparavelmente unida à natureza divina, Jesus Cristo foi uma Pessoa passível de tentação, justamente por causa de sua humanidade adquirida. Também por causa da importância do assunto, a tentabilidade será tratada num capítulo especial.

A PESSOA DO REDENTOR PASSOU POSSUIR A COMUNICAÇÃO DE ATRIBUTOS Quando as duas naturezas foram unidas na Pessoa do Mediador, as virtudes de ambas as naturezas passaram a ser atribuídas à Pessoa total do Mediador. A comunicação de atributos não trata dos atributos de uma natureza que passam a pertencer ou a serem usados por outra natureza, seja da humana para a divina ou da divina para a humana. Não cremos que haja uma transmutação de capacidades de uma natureza para outra. Para exemplificar, diremos que o que é próprio de uma natureza não pode vir a pertencer ou a ser usado por outra natureza. Dessa forma, a onisciência não pode ser um atributo comunicado à natureza humana, e o mesmo acontece com a onipotência, com a onipresença, com a eternidade e também com a asseidade e com a independência. Da mesma forma, aquilo que é próprio da natureza humana, como a limitação de pensamento, o cansaço ou a fome, não pode ser atribuído à natureza divina. Como esse assunto é de importância especial na história da Igreja desde a Reforma, reservamos um capítulo à parte para o estudo desse efeito na Pessoa do Redentor como resultado da unio personalis, ainda neste livro. 317. Como o assunto é relativamente mais complexo, dedicamos um capítulo em separado neste livro, ainda que seja menor do que os outros sobre os efeitos da unio personalis.

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CAPÍTULO 7 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS NOS CRISTÃOS

E

ste último capítulo sobre os efeitos da unio personalis é apenas uma tentativa de aplicar, de maneira prática, as relações do Redentor divino-humano com os redimidos. Certamente a unio personalis não causa em nós direta e essencialmente nenhuma mudança. Apenas veremos os efeitos causados em nós pela obra do Redentor divino-humano em nós e por nós e pelo nosso relacionamento com ele.

UMA UNIÃO ESPIRITUAL COM CRISTO O fato de o Verbo ter se encarnado e feito o que fez causou uma união entre ele e nós. Por essa razão, é muito freqüentemente dito que os crentes estão “em Cristo”. Deus se agradou em nos unir a Cristo Jesus em tudo o que ele é e fez. Todas as coisas que Deus nos dá são devidas a essa unio personalis, na qual o Redentor assumiu o nosso lugar, tornando-se nosso representante. Fomos colocados em Cristo quando o Verbo se encarnou e assumiu o nosso lugar. Obviamente, essa nossa união com Cristo é mística, e não se trata de uma união de naturezas, como é o caso de Cristo. Ficamos espiritualmente ligados a Cristo, de forma que o que é de Cristo passa a ser nosso. Somos filhos de Deus porque somos colocados na posição de irmãos de Cristo quando o irmão mais velho assumiu a nossa humanidade. Essa união espiritual com Cristo é tão grande que a Escritura chega a dizer que “somos membros do seu corpo”, carne da carne de Cristo e ossos dos ossos de Cristo. É claro que essa é uma maneira figurada de dizer as coisas, mas, espiritualmente, essa é a nossa união com Cristo. Essa união fica ainda mais patente quando a Escritura diz que somos “co-participantes da natureza divina” (2Pe 1.4) pelo fato de estarmos unidos a Cristo, o Deus conosco. Se estamos unidos a Cristo, então, participamos espiritualmente de alguma coisa que pertence a Deus. Os crentes certamente estão unidos gloriosamente a Cristo de um modo indissolúvel, de forma que eles nunca mais serão separados dele. Não é uma união pessoal, mas uma união espiritual e mística.

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A. ESSA UNIÃO COM CRISTO É REAL, NÃO IMAGINÁRIA Por causa da unio personalis, os cristãos são unidos com Deus em Cristo. Estar “em Cristo” é estar unido a Deus. Isso é o que chamamos em teologia de união mística ou espiritual. Na unio personalis, aprouve ao Deus Filho unir-se a uma natureza humana; na união mística ou espiritual, aprouve a Deus unir-nos à pessoa do Filho de Deus encarnado. Há um sentido em que o nosso corpos e a nossa alma estão realmente ligados a Cristo de forma que ninguém mais nos separa dele. Ele é o Cabeça, e nós somos os membros de seu corpo. Cada um dos crentes é membro do seu corpo e carne da sua carne. Este é o ensino de Paulo: “Porque ninguém jamais odiou a sua própria canre, antes a alimente e dela cuida, como também Cristo o faz com a igreja; porque somos membros do seu corpo” (Ef 5.29, 30). Essa união é feita em relação à natureza humana de nosso Redentor. Todavia, como essa natureza humana está ligada inseparavelmente à natureza divina, é dito também que somos “co-participantes da natureza divina” (1Pe 1.4). Nunca mais o crente poderá se separar dessa relação com Cristo porque ele está indissoluvelmente unido à Pessoa gloriosa do Filho de Deus encarnado. Por essa razão, essa união espiritual (ou mística) é uma união real, não uma união imaginária.

B. ESSA UNIÃO COM CRISTO É ÍNTIMA, NÃO DISTANTE Pelo fato da unio personalis, podemos ter um relacionamento bem íntimo com nosso Senhor Jesus Cristo. Essa união com Cristo é de tal natureza que nos torna bem próximos de nosso Redentor. Estamos tão ligados e presos a ele que nada neste mundo pode ilustrar com perfeição esse tipo de união com ele. Todavia, a Escritura usa algumas figuras para nos ajudar: veja o ensino sobre a relação entre marido e mulher (Ef 5); veja o ensino sobre a vara e os ramos (Jo 15); veja o ensino sobre as pedras vivas e a Pedra viva (1Pe 2); veja o ensino sobre os membros e a cabeça (Ef 1). A união entre Cristo e seu povo é ainda mais profunda e mais íntima do que todas essas figuras usadas pela Escritura. Nenhuma dessas figuras ilustra com perfeição o fato de nós estarmos em Cristo e de Cristo estar em nós. Nenhum dos relacionamentos de coisas deste mundo é capaz de esgotar o significado do maior mistério que existe (e no qual estamos corporativamente envolvidos), que é o relacionamento entre Cristo e a Igreja. Essa união é tão íntima a ponto de Paulo dizer: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive me mim” (Gl 2.20). A união é tão grande e tão íntima que Paulo percebe que a vida dele não é mais dele, mas de Cristo nele. Somos absorvidos em Cristo, sem, contudo, deixarmos de ser o que somos, irmãos de Cristo, e filhos do mesmo Pai celeste. Essa união íntima não significa fusão ou mistura, mas uma proximidade muito grande e uma identificação muito grande com Cristo, assim como a união de Cristo com seu Pai é muitíssimo íntima.

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Exatamente por causa da unio personalis, onde Cristo homoousios (mesma essência) com seu Pai de acordo com a sua natureza divina, tornou-se também homoousios (mesma essência) conosco com respeito à sua natureza humana. Como existe uma união pessoal no Redentor, essa união pode causar uma união que nos traz bem próximos e íntimos com aquele que tanto nos amou.

C. ESSA UNIÃO COM CRISTO É TOTAL, NÃO PARCIAL O envolvimento de Cristo conosco não é parcial, mas total. Estamos unidos à totalidade da Pessoa do Redentor, não apenas à sua natureza humana, porque a Pessoa do Redentor está unida inseparavelmente à sua natureza humana. Estamos unidos a Cristo com seu corpo, com sua alma, com seu nome, com suas preciosas promessas, etc. Nada de Cristo está fora dessa união conosco, ainda que não possamos desfrutar de todas as coisas dessa união agora. Como resultado disso, a vida dele passa a ser nossa, e tudo o que pertence a ele passa a ser nosso. Por causa dessa união conosco, que é produto da unio personalis, passamos a ser herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo. Essa união é total e chega a ponto de, um dia, sermos semelhantes a ele em tudo, exceto em sua divindade, mas, ainda assim, nunca estaremos separados dessa sua natureza divina, que é também parte essencial de nosso Redentor. Quando a redenção trazida por esse Cristo se completar em nós, refletiremos perfeitamente a sua imagem. Seremos tornados como ele é. Assim como o Filho reflete perfeitamente a imagem do Pai, sendo a imagem expressa dele, assim também refletiremos a imagem de Cristo, segundo a sua humanidade.

D. ESSA UNIÃO COM CRISTO É INSEPARÁVEL E INQUEBRANTÁVEL As uniões que os homens constroem, freqüentemente, são desfeitas. Todavia, a união que Deus promove dura por toda a eternidade. A unio personalis, uma vez iniciada na encarnação, durará para sempre. Ora, a nossa união com Cristo também durará para sempre em virtude da fonte dessa união mística. As coisas promovidas por Deus duram para sempre. Veja o que ele diz no Antigo Testamento: “Farei com eles aliança eterna, segundo a qual não deixarei de lhes fazer o bem; e porei o meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de mim” (Jr 32.40). Somos guardados para sempre no amor de Deus. Paulo faz uma longa pergunta: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?”. Então ele responde de maneira convicta: “Porque nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem cousas do presente, nem do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

nosso Senhor” (Rm 8.35, 38, 39). Não existe desenlace nessa união. Ela não é como a união de um casamento que existe até que a morte os separe, porque nunca mais haverá nada que nos afaste do Amado de nossa alma.

UMA COMUNHÃO ESPIRITUAL COM DEUS EM CRISTO Esse é um segundo efeito da unio personalis. Não somente somos unidos a Cristo, mas também temos comunhão com Deus através de Cristo. Olhando por uma outra perspectiva, o fato de sermos unidos a Cristo causa uma comunhão nossa com Deus. Por “comunhão”, nesse caso, eu quero dizer relacionamento. Como nossa união com Cristo é uma união vital, após termos a vida de Cristo, então mantemos comunhão com Deus. Não é possível manter uma comunhão com Deus à parte de Jesus Cristo. Por causa de nossa união com ele é que temos relacionamento com o Pai, ou acesso a ele. Trata-se de uma espécie de perichoresis, da qual já tratamos neste livro.

APLICAÇÃO Lembre-se de que Cristo, ao mesmo tempo, possuía as duas naturezas: a divina e a humana. Mesmo sendo divino-humano, ele viveu uma vida de dependência de Deus em oração, em adoração e em fé.

A. COMO DEPENDENTE DE DEUS, ORE COMO CRISTO Como Deus que era, Jesus Cristo era objeto de oração de seus discípulos. Nesse sentido, você não pode ser igual a Cristo. Jamais você possuirá a natureza divina a ponto de ser objeto de oração das criaturas redimidas. Uma vez que fomos criados finitos e que somos simplesmente finitos, nunca chegaremos a ser como o nosso Redentor no que respeita à sua divindade. Todavia, você pode imitar a Cristo orando ao seu Pai celestial, pois, como homem que era, ele orou por suas próprias necessidades e pelas necessidades de seus irmãos mais novos. Paulo era um imitador de Cristo nisso também. Ele orava incessantemente em favor da Igreja, dos seus membros. Sem cessar, ele levantava os seus olhos para céu em súplicas, orações, intercessões, ação de graças. Ele fazia exatamente como o seu Senhor. Seja um imitador de Paulo e do Senhor de Paulo! Isso você pode e deve fazer. Ore como Jesus por si mesmo, pelos seus irmãos na fé, pelos que estão em necessidade; ore para que a sua Igreja seja viva e o Cristo, na prática, seja reconhecido por ela como o Senhor dela.

OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS NOS CRISTÃOS

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B. COMO CRIATURA DE DEUS, ADORE COMO CRISTO318 Você jamais será objeto de culto dos seus semelhantes, pois você nunca poderá ser igual a Deus. Nesse sentido, você também nunca será igual ao seu Senhor. Podemos e devemos ser iguais a Cristo no respeita à sua humanidade, mas nunca seremos como Cristo naquilo que diz respeito à sua divindade. Você nunca haverá de ser exaltado num culto, pois isso é devido somente Àquele que é divino. O lugar da criatura é o da adoração ao Deus supremo. Todavia, à semelhança de Jesus Cristo, você pode se sentar ao lado de seus irmãos e do seu Irmão mais velho, Jesus Cristo, em culto público, e adorar ao Deus único e verdadeiro. Como homem que era, Jesus Cristo se colocou no lugar de um adorador e, até hoje, de um modo secretamente maravilhoso, ele faz isso juntamente conosco, conforme vimos acima. Como remido que você é, coloque ao lado de Jesus Cristo para cultuar ao Deus e Pai dele e seu.

C. COMO UM SEGUIDOR DE CRISTO, CONFIE, COMO ELE, EM DEUS Nós nunca seremos objeto de confiança com respeito às coisas espirituais e nem mesmo com respeito às coisas deste mundo material porque nós somos mutáveis, e, portanto, instáveis. Decepcionamos as pessoas que confiam em nós, mas o Senhor Jesus Cristo nunca causa decapção porque ele é sempre o mesmo, ontem, hoje, e eternamente. A sua natureza humana finita está unida à sua natureza divina, o que faz com que o Redentor seja inalterável nas suas promessas. Portanto, ele é confiável e devemos depositar toda a nossa confiança nele.319

318. O capítulo final deste livro tratará da adoração de Cristo como um dever do crente. 319. O capítulo final deste livro tratará sobre o assunto de nossa fé em Cristo Jesus como um dever.

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OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS NOS CRISTÃOS

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CAPÍTULO 8 A COMUNICAÇÃO DE ATRIBUTOS

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or se tratar de um assunto mais longo e mais controverso, o assunto da communication idiomatum será tratado mais demoradamente neste capítulo. Ele deveria fazer parte de um dos capítulos anteriores, porque diz respeito aos efeitos da unio personalis na Pessoa do Redentor, mas aqui ele será tratado mais detidamente porque ele ocupou um lugar muito importante durante a Reforma na vida e nas controvérsias das duas grandes tradições protestantes, a luterana e a reformada. A expressão latina communicatio idiomatum, que é clássica, deve ser traduzida como comunicação de atributos ou comunicação de propriedades. Há uma expressão grega equivalente à expressão latina, que é koinonia idiomatum (comunhão de atributos). Seja qual for o entendimento que grupos cristãos venham a ter dessa expressão, o objetivo é a tentativa de explicar a relação que existe entre a Pessoa do Redentor e os atributos das duas naturezas de Cristo e a relação que existe entre os atributos de uma natureza com os atributos da outra. Como já vimos anteriormente, cada natureza possui os seus próprios atributos essenciais. A questão é: por causa da unio personalis pode uma natureza desfrutar dos atributos da outra? Talvez não haja doutrina que tanto tenha causado divisões no tempo da Reforma entre calvinistas e luteranos como a da comunicação de atributos. O século 16 foi recheado de controvérsias entre os reformadores, mas a da comunicação de atributos foi uma das mais amargas (embora não a mais extensa) entre essas duas maiores tradições religiosas da Reforma. Antes de tratarmos de problemas controversos do século 16, não nos esqueçamos de recordar que “atributo” é uma qualidade, aspecto ou característica essencial de alguma coisa que faz com que ela seja o que é. Não pode haver, em um mesmo ser com a mesma natureza, atributos que se contradigam ou que se choquem. Todavia, no Redentor, há atributos afirmados e negados, ao mesmo tempo e no mesmo ser, porque essa Pessoa possui singularmente duas naturezas. Por exemplo, na Pessoa do Redentor existe a eternidade e a temporalidade, a infinitude e a finitude, o visível e o invisível, o mortal e o imortal. Esses atributos existem na mesma

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Pessoa por causa da unio personalis, pela qual o Redentor sempre foi considerado como vere Deus e vere homo, possuindo perfeitamente todas as propriedades divinas e todas as propriedades humanas. Nunca um outro ser veio a ter ou terá tais atributos numa mesma pessoa. Por essa razão, é muito complexa a Pessoa do Redentor. Essa complexidade da Pessoa do Redentor trouxe enormes controvérsias entre as duas maiores tradições da Reforma, a luterana e a reformada. Os pais da Igreja e outros antigos na fé, quando trataram da relação entre as duas naturezas, falaram de koinonia (que no latim chamamos tanto communio como communicatio, ainda que communio seja um termo mais adequado).320 No entanto, precisamos ter em mente que o significado dessa expressão variou no decorrer da história. Nem todos os teólogos a entenderam do mesmo modo. A palavra grega xoinwni/a (“comunicação” ou”comunhão”) não significa necessariamente mistura ou equação, pois a Escritura fala de “comunhão” do Espírito Santo com o crente sem que haja necessariamente qualquer comunicação de alguma propriedade do Espírito para o crente (2Co 13.14). Portanto, biblicamente a palavra koinonia não autoriza a idéia de fazer com que uma propriedade de um objeto seja comunicada a outro, ainda que as propriedades de ambas permaneçam as mesmas.

A. A NECESSIDADE DA COMUNHÃO DE ATRIBUTOS Nem luteranos nem calvinistas questionaram a necessidade da comunhão de atributos como uma evidência clara da unio personalis. Desde o começo da Reforma, os estudiosos já se preocupavam com essa matéria. Sempre houve, na história da Igreja, aqueles que, de alguma forma, negaram que houvesse qualquer comunhão de atributos entre as duas naturezas do Redentor. “Embora reivindicasse crer na união [hipostática], Nestório foi condenado porque negou a comunhão ou comunicação que resultou da união.”.321 É uma tolice aceitar a união, e, todavia, negar que haja qualquer comunhão entre as duas naturezas. Chemnitz pensa que “aquele que imagina uma união sem tal comunhão engana tanto a si próprio como a outros”.322 Mueller afirma que “todos os que negam a comunicação dos atributos vêem-se necessitados de negar também a união pessoal, ou o supremo mistério de que o Verbo se fez carne”.323

B. A IMPORTÂNCIA DA COMUNHÃO DE ATRIBUTOS Alguns teólogos luteranos, levados pela paixão da controvérsia do século 16, 320. Martin Chemnitz, The Two Natures in Christ (Saint Louis: Concordia Publishing House, 1971), 158. 321. Ibid., 158. 322. Ibid., 158. 323. Juan T. Mueller, Doctrina Cristiana (San Luís, Missouri: Editorial Concordia, 1973), 181.

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como Lutero, Brentz e Chemnitz, acharam que a doutrina da comunhão de atributos era a excelência coroadora da Fórmula de Concórdia, enquanto que outros, mesmo nos círculos luteranos, achavam que essa doutrina era o seu ponto mais fraco e mais atacável. Certamente, para eles, não era sábio, como a história tem mostrado, introduzir as sutilezas escolásticas da teologia metafísica numa pública confissão de fé.324 Citamos, a seguir, dois exemplos, um de cada lado dos luteranos, de atitudes em relação à doutrina. Um apaixonado por essa doutrina, escrevendo a um amigo, disse: “A doutrina da Pessoa de Cristo apresentada na Fórmula de Concórdia repousa sobre a série mais sublime de induções na história da doutrina cristã. Em toda a história confessional não há nada a ser comparado com ela na combinação de exegese exata, de habilidade dogmática, e de fidelidade ao desenvolvimento histórico. Quinze séculos de pensamento cristão culminam nela.”325

O exemplo do lado oposto mostra um teólogo importante admitindo, ao menos, a construção artificial da Fórmula de Concórdia e sua inconsistência com a realidade histórica da descrição de Cristo nos Evangelhos.326 Todos os seguidores de Melanchton, que viviam na Saxônia Eleitoral, também rejeitavam a doutrina da onipresença (que eles chamavam de ubiqüidade) da natureza humana de Cristo.327 Embora não houvesse plena harmonia entre os próprios luteranos quanto à Pessoa de Cristo, a doutrina da comunhão de atributos é de importância muito grande e especial para os luteranos, porque o entendimento que eles têm dessa doutrina vai determinar a sua crença sobre a Ceia do Senhor, já que a doutrina da presença real de Cristo está vinculada à ubiqüidade da natureza humana de Cristo, isto é, à sua presença em toda parte. Portanto, para os luteranos, quem não crê realmente nessa doutrina da real comunicação de atributos “engana-se a si mesmo e a outros”.328 Para os calvinistas, essa doutrina não possui a mesma importância que possui para os luteranos, pois, para os primeiros, ela serve apenas para explicar os textos difíceis da Escritura e para clarear algumas passagens, sem que isso importe numa real comunicação de atributos, como crêem os luteranos.

324. Philip Schaff, The Creeds of Christendom, vol. I (Grand Rapids: Baker Book House, edição 1990), 318. 325. Citado por Schaff, The Creeds of Christendom, vol. I, 318, nota de rodapé 1. 326. Veja The Creeds of Christendom, vol. I, 318, nota de rodapé 2, onde ele menciona vários teólogos luteranos que discordam veementemente de algumas posições com respeito à comunicação de atributos. 327. Bente, Historical Introductions to the Book of Concord, 183. 328. Martin Chemnitz, The Two Natures in Christ, 158.

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C. ERROS A SEREM EVITADOS NO ENTENDIMENTO DE COMUNHÃO DE ATRIBUTOS No estudo dessa matéria tem havido alguns mal-entendidos por parte de muitos cristãos. Nem luteranos nem calvinistas, como veremos posteriormente, podem ser honestamente acusados dos erros que aparecem abaixo. – Comunhão de atributos não significa que a propriedade de uma natureza passa a ser parte essencial de outra natureza. A mortalidade de um homem não pode ser atribuída a Deus, nem a eternidade de Deus pode ser atributo de um homem. – Comunhão de atributos não significa que haja uma transmutação das naturezas. A união pessoal não faz com que as duas naturezas se mudem substancialmente, mas cada uma delas retém as suas próprias qualidades essenciais dos atributos que lhe são naturais.

D. A CONTROVÉRSIA SOBRE A COMUNHÃO DE ATRIBUTOS A grande controvérsia entre luteranos e calvinistas no século 16 é sobre se, nessa Pessoa, Jesus Cristo, uma natureza recebia as propriedades de outra. Vejamos os dois pontos-de-vista divergentes, já desde o início da Reforma protestante. A controvérsia pode ser vista por dois prismas: a controvérsia dentro do círculo luterano e controvérsia fora do círculo luterano.

1. CONTROVÉRSIA ENTRE OS PRÓPRIOS LUTERANOS A controvérsia entre os próprios luteranos se deu com maior força na região de Bremen e do Palatinado, onde os luteranos perderam terreno. De um lado da controvérsia, Brenz, Martin Chemnitz, Farrago e outros foram os campeões da ortodoxia luterana, defendendo firmemente as idéias de Lutero com respeito à ubiqüidade da natureza humana de Cristo. Do outro lado da controvérsia estavam Melanchton, que pendeu para o conceito calvinista da presença de Cristo na ceia, e outros teólogos, chamados philipistas, que eram os seus seguidores. Além desses, houve outros luteranos que protestaram contra a doutrina da comunicação de atributos. Todos eles foram maldosamente apelidados de cripto-calvinistas, ou calvinistas escondidos. Melanchton foi considerado um dos inimigos mais desleais do Luteranismo estrito na Alemanha. Juntamente com outros, Melanchton foi chamado de criptocalvinista. A deslealdade dos discípulos de Melanchton é narrada da seguinte maneira por Bente: “Eles foram chamados cripto-calvinistas (calvinistas secretos ou mascarados) porque, enquanto eles subscreviam à Confissão de Augsbur-

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go, reivindicavam lealdade aos luteranos, e ocupavam posições muito importantes na Igreja Luterana, eles, na realidade, eram propagandistas do Calvinismo, zelosamente esforçando-se para suprimir os livros e as doutrinas de Lutero para substituí-las pelas idéias de Calvino. Na verdade, Calvino alegou, tanto privada como publicamente, que Melanchton e ele próprio eram aliados.”329

Na verdade, Melanchton, que havia escrito a Confissão de Augsburgo em 1530, acabou se inclinando para o pensamento de Calvino quanto à ceia e alterou algumas coisas do artigo sobre ela na edição da Confissão de Augsburgo feita em 1540, que passou a chamar-se Variata. Essa versão da Confissão foi assinada por Calvino, que, por algum tempo, foi conhecido como luterano. Em 1547, o luterano Albert Rizaeus, de Hardenberg (que foi considerado pelos luteranos radicais como um calvinista secreto, mas decidido330), nascido em 1510, na Holanda, inclinou-se para os lados do pensamento de Zwínglio e de Calvino no que respeita à Ceia do Senhor porque objetava à onipresença da natureza humana de Cristo. Em sua obra Summaria Doctrina, Hardenberg ensinou: “Santo Agostinho e muitos outros Pais escrevem que o corpo de Cristo está circunscrito em um determinando espaço no céu, e eu considero isso como a verdadeira doutrina da Igreja.”331 A luta e a desconfiança entre eles foi triste e dolorida. Era muito importante para os luteranos radicais a onipresença de Cristo, por isso eles não pouparam esforços para combater os inimigos internos e externos.

2. CONTROVÉRSIAS ENTRE LUTERANOS E CALVINISTAS Os campeões da ortodoxia luterana eram Hesshusius e Joachim Westphall, e, do outro lado, estavam Calvino, Bullinger, Ochino e Beza, que foi o mais violento oponente do Luteranismo. Calvino cria que a natureza humana de Cristo não poderia estar em toda parte, e, de um modo especial, na Ceia. Ele pensava que o corpo de Cristo “sendo finito e contido no céu, como num lugar, deve ser necessariamente separado de nós por uma grande distância, como o céu está distante da terra”.332 Esse ensino contrariava os postulados luteranos, que afirmavam a presença do corpo de Jesus ubiqüamente, isto é, a sua presença dele em toda parte, de acordo com a sua natureza humana. Os calvinistas estavam dando trabalho para os luteranos, pois começaram a influenciar muito alguns redutos luteranos. Calvino e Bullinger haviam se tornado seguidores de Zwínglio no respeita à presença de Cristo na Ceia, e Calvino formu329. Bente, Historical Introductions, 175. 330. Bente, Historical Introductions, 180. 331. Ibid., 184. 332. Apud Bente, Ibid., 175.

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lou um documento chamado Consensus Tigurinos (Consenso de Zurique) sobre a Ceia. Foram feitos muitos esforços pelos calvinistas e reformados (seguidores de Zwínglio) em toda parte para tornar o Consensus Tigurinus a base de uma união pan-protestante, e a bandeira sob a qual poderiam conquistar todos os países protestantes, inclusive a Alemanha protestante, para o pensamento zwingliniano.333 Essa era uma ameaça muito forte aos luteranos para ficar sem reação. Em virtude da influência do pensamento calvinista, ainda no tempo da composição dos seus documentos que vieram a ser tornar oficiais, os luteranos acrescentaram dois artigos à Formula de Concórdia, VII e VIII (sobre a Ceia e sobre a Pessoa de Cristo), “a fim de purificar a Igreja Luterana de erros reformados com respeito à Ceia do Senhor e à Pessoa de Cristo, que, após a morte de Lutero, havia penetrado no caminho deles e em algumas das escolas deles, especialmente da região da Saxônia Eleitoral, e para tornar a igreja imune contra a infecção do Calvinismo (cripto-calvinismo).”334

A ênfase na doutrina da real comunicação de atributos (que era a comunicação dos atributos da natureza divina à natureza humana) serviria para fortalecer a doutrina da presença real de Cristo na Ceia. A Fórmula de Concórdia era a solução para esse problema e para conter a grande invasão calvinista nos territórios luteranos. A aversão dos luteranos pelos ensinos calvinistas,335 e vice-versa, estava se tornando alguma coisa muito grande, e o fervor das discussões e debates, às vezes, amargavam a vida da Igreja da Reforma, que tinha ainda poucas décadas. A seguir analisaremos como calvinistas e luteranos vêem a doutrina da comunicação de atributos.

CONCEPÇÃO CALVINISTA DE COMMUNICATIO IDIOMATUM Os luteranos insistem que natureza humana de Jesus Cristo participa dos atributos divinos sem perder sua própria idiomata (propriedades), e não pode conferir as suas propriedades humanas, que são finitas, à natureza divina. Se é assim, existe uma inconsistência em chamar essa doutrina de comunhão de atributos, pois não existe realmente uma comunhão de naturezas, não existe uma interpenetração delas. Segundo os luteranos, somente a natureza humana recebe a capacidade de apresentar atos próprios da divindade, mas a natureza divina não pode apresentar atos próprios da humanidade. Contra essa tendência dupla a teologia calvinista vai se insurgir. 333. Ibid., 178. 334. Ibid., 173. 335. Certa vez, Calvino, que admirava muito Lutero, por causa da controvérsia com os luteranos a respeito da ceia, disse: “Estou freqüentemente acostumado a dizer que, mesmo se ele [Lutero] me chama de diabo, eu concederia a ele a honra de reconhecê-lo como um eminente servo de Deus” (apud Bente, Historical Introductions, 174).

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A. SIGNIFICADO DE COMMUNICATIO IDIOMATUM De acordo com o pensamento calvinista, a comunicação de atributos diz respeito unicamente à Pessoa de Jesus Cristo, e não a uma interpenetração de naturezas em Cristo. A Pessoa de Jesus Cristo possuía todos os atributos da divindade, assim como todos os atributos da humanidade, mas cada uma das naturezas permanece distinta. A natureza humana de Cristo sempre permaneceu humana e a divina sempre permaneceu divina. Nunca uma natureza foi capaz de agir segundo a outra natureza. Os predicados do corpo e da alma permaneceram próprios da natureza humana, assim como os predicados da onipresença, onisciência e onipotência permaneceram próprios da natureza divina. Havia comunicação de atributos no que respeita à Pessoa de Jesus Cristo. Ora a Pessoa agia de acordo com a natureza divina, ora de acordo com a natureza humana, mas nunca o humano agiu como divino ou o divino como humano.

1. CALVINO SOBRE A COMUNHÃO DOS ATRIBUTOS Por causa da união das duas naturezas, a divina e a humana na Pessoa do Mediador, existe uma comunicação de atributos, que Calvino explica nos seguintes termos: “Elas [as Escrituras] algumas vezes atribuem a ele (Cristo) o que deve ser referido somente à sua humanidade, e algumas vezes o que pertence unicamente à sua divindade, e, algumas vezes, o que abrange ambas as naturezas, mas não se encaixa em nenhuma sozinha... Essa figura de linguagem é chamada pelos escritores antigos de ‘comunicação de propriedades’.”336

Essa idéia exposta por Calvino combina com o genus idiomaticum, exposto no pensamento luterano. Calvino aceita o termo histórico da comunhão dos atributos, embora rejeite a formulação de Lutero da Comunicação de atributos. Não obstante rejeitando o pensamento de Lutero, ele admite essa doutrina e a explica, exemplificando-a.337

2. CONFISSÕES REFORMADAS SOBRE A COMUNHÃO DE ATRIBUTOS a. Segunda Confissão Helvética (1566) “De modo nenhum ensinamos... que Cristo em sua natureza humana ainda está neste mundo e também em toda parte. Pois nem pensamos nem ensinamos que a realidade do corpo de Cristo cessou depois de 336. Calvino, Institutes, II, 14,1. 337. Ibid., II, 14.2.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR sua glorificação, ou que foi deificada de tal modo que ele tenha deposto as suas propriedades com respeito ao corpo e à alma, e estes se tenham mudado inteiramente em uma natureza divina e passado a ser uma substância una” (capítulo XI). “Aceitamos e aplicamos, pia e respeitosamente, a comunicação de propriedades [communicatio idiomatum] de linguagem derivada da Escritura e usada por toda a antiguidade para explicar e reconciliar passagens aparentemente contraditórias” (capítulo XI).

b. Confissão de Fé de Westminster (1647) “Cristo, na obra de mediação, age de conformidade com as suas duas naturezas, fazendo cada natureza o que lhe é próprio. Contudo, em razão da unidade da pessoa, o que é próprio de uma natureza é, às vezes, na Escritura, atribuído à pessoa denominada pela outra natureza” (capítulo XIII.7).

Essas duas confissões reformadas dão as diretrizes em gérmen sobre as quais os teólogos reformados vieram a elaborar a sua doutrina sobre o communicatio idiomatum. Elas falam de duas coisas importantes sobre este delicado assunto: 1) elas tratam da “linguagem derivada da Escritura e usada por toda a antiguidade para explicar e reconciliar passagens aparentemente contraditórias”; 2) elas tratam daquilo que é, “às vezes, na Escritura, atribuído à pessoa denominada pela outra natureza”.

3. HODGE SOBRE A COMUNHÃO DE ATRIBUTOS Seguindo a tradição Calvinista, Hodge nega que “uma natureza participe dos atributos de outra, mas simplesmente que a pessoa é a koinwno/j ou participante dos atributos de ambas as naturezas, de forma que o quer que possa ser afirmado de qualquer uma das naturezas pode ser afirmado da pessoa. Como, de um homem pode ser afirmado o que é verdadeiro de seu corpo e o que é verdadeiro de sua alma, assim, de Cristo, pode ser afirmado o que quer que seja verdadeiro de sua natureza humana e de sua natureza divina.”338

B. FUNDAMENTO BÍBLICO PARA A COMMUNICATIO IDIOMATUM Há muitas passagens na Escritura que tratam, de forma indireta, da unio personalis. Elas precisam ser analisadas de maneira honesta, a fim de que não façamos injustiça ao texto e tenhamos as explicações deles conforme a hermenêutica reformada histórica. 338. Charles Hodge, Systematic Theology, vol. 2 (Grand Rapids: Eerdmans, edição 1981), 392 (cf. Hodge, Teologia Sistemática [São Paulo: Hagnos Editora, 2003], 774)

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1. PASSAGENS EM QUE O PREDICADO PERTENCE À PESSOA COMPLETA Há inúmeras passagens da Escritura que ilustram esse ponto. Todas as vezes que a Escritura fala de Cristo como sendo nosso Redentor, Senhor, Rei, Profeta, Salvador, etc., todas essas coisas são verdadeiras sobre ele, não como Logos, ou a Segunda Pessoa da Trindade, ou como o homem Jesus, mas como o Verbo encarnado, o Deus-homem, a Pessoa teantrópica (divina-humana), Jesus Cristo. O mesmo pode ser dito das passagens que falam de Cristo como sendo humilhado, dando-se a si mesmo por nós, ou sendo o Cabeça da Igreja, ou sendo nossa vida, etc. Isso é verdadeiro sobre a Pessoa completa do Mediador, não apenas sobre sua natureza divina ou sobre sua natureza humana. O mesmo ainda pode ser dito das passagens que falam de Cristo como sendo exaltado acima dos céus, sentado à destra do Todo-Poderoso, ou ainda voltando em glória. Essas coisas são características da Pessoa completa, não da Pessoa conforme uma de suas naturezas. O que foi dito acima não exaure o conceito de comunicação de atributos. Berkhof diz que “as propriedades das duas naturezas, a humana e a divina, são da Pessoa, e, portanto, atribuem-se à Pessoa. A Pessoa pode considerar-se Todo-Poderosa, onisciente, onipresente, etc., mas também pode chamar-se um homem de dores, de conhecimento e poder limitados, e sujeita às necessidades e misérias humanas.”339

Por essa razão, Hodge afirma, de modo feliz, concluindo a sua argumentação sobre a comunhão de atributos, que “É instrutivo observar, aqui, quão fácil e naturalmente os escritores sacros afirmam de nosso Senhor os atributos humanos e os divinos, qualquer que seja a denominação de sua Pessoa. Chamam-no Senhor, ou Filho, e atribuem-lhe, às vezes na mesma oração, o que procede dele somente como Deus com o que é verdade só no que diz respeito à sua humanidade, e o que é verdade só no que diz respeito a ele como o Deus-homem”.340

Segue-se então, em Hodge, uma análise rápida do texto de Hebreus 1.1, que segue mais ou menos esse raciocínio, para justificar a afirmação acima. Hebreus 1.2-4 – “Nestes últimos dias nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo. Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu ser, 339. Berkhof, Teologia Sistematica, edição em espanhol, 384. 340. Charles Hodge, Teologia Sistemática (São Paulo: Hagnos, 2001), 776.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da majestade nas alturas, tendo-se tornado tão superior aos anjos, quanto herdou mais excelente nome do que eles.”

Analisemos algumas expressões e verifiquemos que o predicado pertence à Pessoa completa de Jesus, e não a apenas uma de suas naturezas, embora algumas coisas reflitam o que é próprio apenas de uma natureza. “Nestes últimos dias nos falou pelo Filho” – O Filho, nessa frase, é o Verbo já encarnado que veio para revelar quem era o seu Pai. O Verbo não era conhecido antes da revelação de João afirmar que ele se “se fez carne, habitando entre nós”. Somente após a encarnação foi que o Encarnado nos falou como enviado de Deus. “Pelo qual também fez o universo”. Perceba que o autor está falando da Pessoa do Filho, mas, nesse caso, ele não pode sestar falando do Filho encarnado, pois a criação foi executada pelo Verbo quando ainda nada existia. Todavia, a designação é dada à Pessoa completa. Quem fez o universo? O Verbo ainda não-encarnado, que aqui é visto como a Pessoa completa, Jesus Cristo. “Ele é o resplendor da glória, e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as coisas pela palavra de seu poder” – Novamente essa expressão revela somente a natureza divina do Verbo, porque somente Deus pode refletir perfeita e essencialmente quem Deus é. Somente alguém com natureza divina pode sustentar o universo que ele próprio criou. Todavia, posso perguntar: Quem é a expressão exata do ser divino? Quem é o esplendor da glória? Quem é o sustentador do universo? A resposta é: Jesus Cristo, a Pessoa completa. O que é dito de uma natureza deve ser entendido como sendo dito de uma Pessoa. “Depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade” – Obviamente, está em vista aqui a natureza humana de Jesus Cristo, sem a qual não poderia haver sacrifício, nem morte. Após ter purificado, pela expiação, os pecados do seu povo, ele assentou-se à direita da Majestade. É próprio da humanidade assentar-se à destra do Pai, mas isso tudo é verdadeiro a respeito do Verbo Encarnado, do Deus-Homem. Todos os textos que falam a respeito da redenção operada pelo Redentor, ou das funções do Mediador, ou ainda das libertações do Libertador, referem-se à Pessoa completa, não apenas obras do Redentor segundo uma das naturezas.

2. PASSAGENS EM QUE O PREDICADO PERTENCE SOMENTE À NATUREZA DIVINA, MAS NAS QUAIS A PESSOA É O SUJEITO. Há vários textos na Escritura que apontam para uma qualidade pertencente unicamente à natureza divina, mas a qualidade é atribuída à Pessoa do Redentor. Veja alguns exemplos:

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João 8.58 – “Em verdade, em verdade vos digo: antes que Abraão existisse, EU SOU.”

Depois da encarnação, conversando com seus adversários, Jesus lhes disse: “Em verdade, em verdade eu vos digo: Antes que Abraão existisse, eu sou”. O verso acima está apontando para a pré-existência ou para a eternidade de Jesus Cristo. Todavia, a eternidade é um atributo exclusivo da Divindade. Calvino disse que idéia desse verso deve ser “removida [para] muito distante de sua humanidade”.341 Longe da sua humanidade esteja a noção de eternidade. Calvino ainda diz: “Visto que ele (Jesus Cristo) claramente distingue o dia de sua manifestação de sua essência eterna e expressamente comenda sua própria autoridade como excedendo em antiguidade a Abraão, não há dúvida de que ele está reivindicando para si o que é próprio de sua divindade.”342

Obviamente, dessa existência eterna não pode ser dito que ela pertence à natureza humana de Jesus Cristo. Sua natureza humana foi criada no tempo da encarnação, “na plenitude dos tempos”, num tempo histórico em que vivia Maria. No texto acima, o que é próprio da natureza divina deve ser atribuído à Pessoa do Mediador. Mesmo o atributo da eternidade sendo pertencente à natureza divina do Redentor, esse atributo foi mencionado em relação à Pessoa, quando ele disse: “Antes que Abraão existisse, Eu [pessoa] sou.” Nesse caso, a comunicação de atributos não é de natureza para natureza, mas de uma natureza para a Pessoa. Um outro texto de natureza relativamente semelhante é o de João 17.5 – “Glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti antes que houvesse mundo.

Em sua oração sacerdotal, conversando com seu Pai celestial, Jesus disse as palavras acima. Quando fez essa oração, ele estava na posição de Verbo encarnado. Contudo, as glórias a que ele se refere não podem ser ditas como pertencentes à natureza humana, porque elas dizem respeito à eternidade, ou seja, antes que houvesse mundo. A natureza humana do Redentor havia vindo à existência apenas algumas décadas antes do evento narrado nessa passagem. É evidente que a glória que ele teve com o Pai já existia no seu estado pré-encarnado, quando havia somente a Segunda Pessoa divina com a natureza divina em comunicação com a Primeira Pessoa divina, o Pai, também com natureza divina. Portanto, é prerrogativa da natureza divina ter o que ele teve antes que houvesse mundo, mas aqui, nesse verso, ele usa o pronome pessoal “eu”, apontando para a sua Pessoa. Novamente, não é uma comunicação de atributos de uma natureza para outra, mas sim a comunicação de atribu341. Calvino, Institutes, II, 14.2. 342. Calvino, Institutes, II, 14,2.

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tos de uma natureza [a divina] para a Pessoa do Redentor. O que pertence a uma natureza é dito pertencer à Pessoa. Tratando da excelência e da pessoa de Cristo, num tom de triunfo, Paulo diz: Colossenses 1.15-17 – “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; pois nele foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele tudo subsiste.”

Com toda a certeza, as qualidades ou propriedades que Paulo menciona como sendo de Jesus Cristo (ou seja, “ser imagem do Deus invisível”, “o primogênito de toda criação”, “ele é antes de todas as coisas”, “nele tudo subsiste”) são próprias somente da natureza divina de Cristo. A maior parte das coisas mencionadas nesses versos diz respeito ao estado pré-encarnado do Redentor, especialmente quando o texto fala da criação de tudo por meio dele. A ênfase, aqui, é sobre a Pessoa de Cristo, não a sua natureza divina. No entanto, o que pertence a uma natureza [no caso aqui é a divina] deve ser atribuído à Pessoa do Redentor.

3. PASSAGENS EM QUE O PREDICADO PERTENCE SOMENTE À NATUREZA HUMANA, MAS NAS QUAIS A PESSOA É O SUJEITO Os textos que vêm logo a seguir tratam do mesmo tipo de comunicação de atributos, só que, agora, a comunicação é dos atributos da natureza humana para a Pessoa do Redentor. Por causa da união pessoal, quando a Escritura dizque Jesus faz alguma coisa que é própria da natureza humana, é dito que a Pessoa do Mediador a faz. João 19.28 – “Depois, vendo Jesus que tudo já estava consumado, para se cumprir a Escritura, disse: Tenho sede.”

Nada é tão básico para a subsistência das criaturas como a água. Não se esqueça de que a natureza humana de nosso Redentor foi criada, vindo à existência logo que a sombra do onipotente envolveu a Maria, gerando ali o Redentor com propriedades humanas, além das divinas que já possuía. Portanto, esse Redentor com natureza humana, após algumas horas de sofrimento no Calvário, pediu água. É propriedade da natureza humana beber água em virtude de ser finita, carente de algo que a mantenha viva. Somente alguém que possui um corpo poderia necessitar de água. Seres eminentemente espirituais, como os anjos, por exemplo, não precisam de água, embora sejam criaturas finitas. Portanto, é próprio da humanidade ter sede. No entanto, é dito que a Pessoa do Redentor pediu água, por causa do sofrimento e da perda de sangue na cruz. Observe novamente que a comunicação de atributos não é de uma natureza para outra, mas sim de uma natureza [no caso aqui a humana] para a Pessoa.

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Mateus 26.37, 38 – “... (Jesus) começou a entristecer-se e a angustiarse. Então lhes disse: A minha alma está profundamente triste até a morte; ficai aqui e vigiai comigo.”

Essa angústia e essa tristeza de morte, conforme mencionadas aqui, são próprias de um ser humano em profunda agonia. A necessidade de amparo (“ficai e vigiai comigo”) também é própria de alguém em fraqueza (embora não em pecado). Todas essas qualidades de limitação de alguém que está sob o juizo divino podem expressar essa dependência. Deus não precisaria de apoio de ninguém, nem ficaria profundamente triste até à morte. Essas cousas são próprias de quem é humano. O texto, contudo, atribui essas coisas à Pessoa do Redentor. Perceba novamente que não se trata de uma comunicação de atributos de uma natureza para outra, mas de uma natureza [no caso a humana] para a Pessoa, pois ele disse: “Eu estou triste para morte, eu preciso de conforto”. João 11. 35 – “Jesus chorou.”

Chorar é uma propriedade da humanidade. Se ler os versos que antecedem o verso acima, você perceberá que Jesus Cristo “agitou-se no espírito e comoveuse”. O “espírito” aqui não é o Verbo, e muito menos o Espírito Santo. Essa agitação se deu na sua alma humana. Não há como negar isso. Além do mais, para haver choro chorar é necessário haver um corpo com as devidas partes físicas de expressão de tristeza. Contudo, é dito que a Pessoa do Mediador chorou. Essa sua atitude de choro foi pública, vista por todos os circunstantes. Ela é parte do ensino sobre a comunicação de atributos de que a Escritura fala: o que pertence unicamente à natureza humana é atribuído à Pessoa do Redentor.

4. PASSAGENS ONDE OS ATRIBUTOS DA NATUREZA HUMANA SÃO ATRIBUÍDOS À PESSOA DO MEDIADOR, DESIGNADA POR UM TÍTULO DIVINO A argumentação a seguir tem uma conotação diferente da argumentação das duas partes anteriores. Aqui trataremos de textos nos quais as qualidades da natureza humana são atribuídas à Pessoa do Redentor, mas essa Pessoa é designada por um título divino. Marcos 13.32 – “Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão somente o Pai.”

Por uma questão de essência, Deus não pode se esquecer de nada, nem pode conhecer mais do que já conhece. Ele é infinito no seu conhecimento. Deus é onisciente. No que respeita à sua divindade, o Redentor também era onisciente, já que, em essência, ele é um com seu Pai. Embora tenha escondido em alguma medida alguns atributos de sua divindade, não fazendo uso deles, enquanto esteve no

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estado de humilhação, a Pessoa do Redentor ainda possuía as mesmas propriedades divinas. Contudo, também é próprio da humanidade não conhecer todas as coisas. A onisciência não é um atributo próprio de quem possui natureza humana. O dia e a hora mencionados no texto não são conhecidos do Redentor segundo a sua humanidade. Se houvessem sido revelados a ela, certamente ele poderia saber, mas essas verdades ficaram escondidas na divindade. Por que é dito que o Filho não sabe a respeito daquele dia ou hora? A resposta é que o conhecimento dessa verdade foi negado à natureza humana do Redentor. Não conhecer o dia e a hora da vinda de Cristo é próprio da humanidade de Cristo. Todavia, essa ignorância do dia final é atribuída à Pessoa do Redentor. É dito que a Pessoa do Filho [encarnado] não sabe o dia e a hora de sua vinda porque, nesse caso, Jesus Cristo estava falando como o Encarnado (isto é, o Redentor com natureza humana). Além do mais, essa pessoa, no caso é mencionada com um título divino, que é Filho. Para dizer de outra forma: A ignorância da Pessoa do Redentor está vinculada à sua humanidade, mas essa pessoa, aqui, recebe um nome divino. Essa é uma outra maneira de tratar da comunicação de atributos. É uma comunicação de atributos de uma natureza para a Pessoa que aqui toma um nome divino. Foi exatamente esse ensino que a Confissão de Fé de Westminster trouxe na frase a seguir: “Contudo, em razão da unidade da pessoa, o que é próprio de uma natureza [a humana aqui neste caso] é às vezes, na Escritura atribuído à pessoa denominada pela outra natureza [a divina neste caso]”.343 Comentando sobre esse texto de Marcos 13.32 (além de outros do mesmo gênero), Calvino diz que “todas essas coisas se referem somente à humanidade de Cristo. Como ele é Deus, ele não pode aumentar em qualquer coisa, e faz todas as coisas em seu próprio nome; nada é escondido dele; ele faz todas as coisas de acordo com a decisão da sua vontade, e não pode ser visto ou manuseado. Todavia, ele não atribui essas qualidades somente à sua natureza humana, mas toma-as sobre si mesmo como estando em harmonia com a pessoa do Mediador.”344

No caso do texto de Marcos 13.32, a comunicação de atributos é vista no fato do Filho ignorar o que é próprio da humanidade, mas o predicado é atribuído à Pessoa, que recebe um nome divino. Um outro texto que mostra o mesmo ponto é usado por Paulo: “Atendei por vós, e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue” (At 20.28). 343. Ver Confissão de Fé de Westminster, cap. VIII.vii, sobre a Pessoa do Mediador, 344. Calvino, Institutes, II, 14.2.

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A menção de sangue aponta inequivocamente para um atributo humano, porque é próprio de quem tem corpo para derramar sangue. Somente o sacrifício de um ser com natureza humana pode ser entendido aqui como derramando sangue. Certamente a referência aqui é ao Redentor, que derramou seu sangue. Não há dúvida a respeito dessa verdade. Contudo, aquele comprou a Igreja com o seu próprio sangue é chamado por um título divino: Deus. A comunicação de atributos é da natureza humana para a Pessoa do Redentor, que aqui recebe um nome divino. Um outro texto que mostra essa verdade é o que foi registrado por Paulo: “Sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória” (1Co 2.8).

A crucificação só é possível se há um ser com um real corpo humano. Somente uma pessoa com natureza humana poderia ser crucificada. Portanto, é uma qualidade da natureza humana ser crucificada. Contudo, entendemos que foi a Pessoa de Jesus Cristo que foi crucificada. Não poderia haver a crucificação do Senhor da glória se ele não se encarnasse. “Senhor da glória” é um título divino que bem poderia ser dito do Verbo antes de se encarnar. Antes de se encarnar, ele estava habitando na glória e era Senhor dela. Todavia, o texto diz que o “Senhor da Glória” foi crucificado, sendo, na verdade, a crucificação de Jesus Cristo. A expressão do texto aponta para a Pessoa total do Redentor, embora use um título divino – “Senhor da Glória”. Perceba que aquilo que é próprio de uma natureza (a humana) é atribuído à Pessoa completa que, nesse caso, recebe um nome divino (“Senhor da glória”). “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco” (Mt 1.23).

Parece um contra-senso essa afirmação citada do Antigo Testamento. Aquele que nasceu de Maria, que possui a natureza humana e os atributos humanos recebidos de Maria, é chamado de Emanuel, um título divino. Na verdade, aquele que nasceu de Maria é Filho de Deus encarnado, a Pessoa completa do Redentor. Nesse sentido, Maria é o theotokos, a portadora de Deus, mas o Emanuel está agora com natureza humana acrescida a si. O título usado é divino, a propriedade de ser concebido pertence aos humanos, mas a referência é à Pessoa completa do Salvador. “Dessarte matastes o Autor da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, do que nós somos testemunhas” (At 3.15).

A morte só pode acontecer a alguém que veio à existência, a seres criados, ou a seres com características temporais; a ressurreição só pode acontecer a quem morreu. Essas coisas são próprias de seres racionais finitos. Nesse caso, a morte é própria somente de alguém com natureza humana, que tem o seu corpo separado

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temporariamente de sua alma. Quem morre, nesse texto, na verdade, é a Pessoa do Redentor. Todavia, o título usado no verso acima para designar a Pessoa do Redentor é um título eminentemente divino “o Autor da vida”. “Eis que conceberás e darás à luz um filho a quem chamarás pelo nome de Jesus. Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor lhe dará o trono de Davi, seu pai” (Lc 1.31, 32).

Novamente vemos um título divino sendo aplicado à Pessoa do Redentor numa circunstância em que estão envolvidas coisas próprias da humanidade dele. O título divino é “Filho do Altíssimo” (isso ele já era antes de ser concebido de Maria); “conceber”, “ser dado à luz” e “herdar o trono de Davi, seu pai” são coisas próprias de quem vem à existência neste mundo, coisas próprias da humanidade do Redentor. Todavia, a Pessoa completa do Redentor, que o texto tem em vista, é aquele que foi concebido e nascido, e que recebe a designação “Filho do Altíssimo”, um título divino. Em todos os textos acima, aplica-se o que diz Westminster: “Contudo, em razão da unidade da pessoa, o que é próprio de uma natureza [a humana no caso] é às vezes, na Escritura atribuído à pessoa denominada pela outra natureza [a divina no caso]”.

5. PASSAGENS ONDE OS ATRIBUTOS DA NATUREZA DIVINA SÃO ATRIBUÍDOS À PESSOA DO MEDIADOR, DESIGNADA POR UM TÍTULO HUMANO. A argumentação a seguir é exatamente oposta à argumentação anterior. A Pessoa é a do Redentor, o atributo é da natureza divina, no entanto, o título é humano. João 6.62 – “Que será, pois, se virdes o Filho do homem subir para o lugar onde primeiro estava?”

Antes da encarnação, o Verbo estava com Deus, porque ele era Deus. É próprio da Divindade não-encarnada estar no céu antes do evento descrito pelos evangelistas, no entanto, o texto descreve um atributo divino que é atribuído à Pessoa completa do Redentor, mas que recebe uma designação humana. Quem estava no “lugar onde primeira estava” era o Verbo. É atributo da Divindade estar especialmente no céu antes da encarnação. No entanto, o que está em foco aqui é a Pessoa do Mediador, embora o título usado para designá-lo seja um título humano – “Filho do homem”. Romanos 9.5 – “deles (os israelitas) são os patriarcas e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém.”

Tratando dos privilégios dos membros da nação judaica, Paulo diz que o Cristo descende deles, mas acresce que esse “Cristo segundo a carne” é “o Deus bendi-

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to para todo sempre”. Obviamente, quando se fala de “Cristo, o Deus bendito”, é perfeitamente compreensível que esteja se falando da Divindade ou da natureza divina de Redentor. Ser “Deus bendito eternamente” é propriedade do Logos. Contudo, o texto diz que esse Cristo, o Deus bendito, vem da descendência dos judeus. Literalmente isso é uma impropriedade, mas a doutrina da unio personalis torna possível essa doutrina da comunicação de atributos. Nessa comunicação, o que pertence a uma natureza (no caso a divina – “Deus bendito”) é atribuído à Pessoa Completa, mas essa Pessoa é chamada por um título humano, Cristo, o ungido. O texto tem em vista a Pessoa do Mediador, embora use um título humano, “Cristo, segundo a carne”. Apocalipse 5.14 – “Àquele que está assentado no trono, e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio, pelos séculos dos séculos.”

Essa adoração, domínio e coisas próprias da soberania, das quais o texto fala, pertencem à Divindade, tanto ao Pai (que está no trono) quanto ao Filho que está ao seu lado, mas o texto usa um título humano, “Cordeiro”, o que sofreu e padeceu no Calvário, como o objeto dessa honra. O que o texto tem em vista é a Pessoa do Mediador, Jesus Cristo, como sendo objeto de coisas próprias da Divindade. Em todos os textos do ponto acima, aplica-se o que Westminster diz: “Contudo, em razão da unidade da Pessoa, o que é próprio de uma natureza [a divina no caso] é às vezes, na Escritura atribuído à pessoa denominada pela outra natureza [a humana no caso]”.

C. COMMUNICATIO APOTELESMATICUM Por causa da união das duas naturezas na Pessoa do Verbo, passa a existir no Redentor uma comunicação de operações, que, na linguagem do latim teológico, é chamada de communicatio apotelesmatum (comunicação das operações mediatoriais por causa da obra da salvação). Conforme Muller, um teólogo e historiador calvinista contemporâneo, o gênero apotelesmaticum indica “a cooperação das duas naturezas na união da pessoa para a finalidade de completamento da obra do Mediador. Nada é cumprido pelas naturezas que não seja em comunhão ou cooperação de uma natureza com a outra, incluindo os atos que são peculiares às naturezas consideradas em e de si mesmas. Assim, a natureza divina, embora não sofra, permanece em comunhão com a natureza humana através dos sofrimentos de Cristo e suporta e sustenta a humanidade através de suas provações.”345 345. Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, 74.

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Essa comunicação de operações “ é um termo usado pelos reformados para indicar a obra comum das duas naturezas de Cristo, cada uma fazendo o que lhe é próprio, segundo seus próprios atributos”.346 É a “obra redentora de Cristo, e particularmente o resultado final dela, a apotelesma, que tem uma caráter divino-humano”.347 A ação duas naturezas concorre para a realização de uma obra que, quando feita, é atribuida à Pessoa do Redentor. Segundo Jerônimo Zanchi, Reformador calvinista do século 16, “Cristo, o Mediador, nunca fez ou faz qualquer coisa de acordo com a sua humanidade, na qual a divindade também não cooperou ou coopera, e não realizou nada de acordo com a sua Divindade, que sua humanidade não tenha auxiliado ou concordado.”348

Tudo o que é próprio de uma das naturezas pode ser dito como sendo próprio da Pessoa completa, o Deus-homem. Distintamente dos luteranos, os reformados insistem em uma “comunicatio apotelesmatum de acordo com a qual as operações distintas de ambas as naturezas são trazidas a um completamento na obra de Cristo. Assim, o ensino luterano é uma communicatio real, enquanto que o ensino reformado, permanecendo no nível de uma communicatio in concreto somente, é bem acuradamente chamado antidosis onomaton (anti\d\osij o/noma\twn) , uma troca mútua ou recíproca de nomes, em vez de uma transferência ou comunicação de propriedades. ”349

Distintamente dos luteranos, os reformados não fazem com que a communicatio apotelesmatum dependa da genus majestaticum, onde uma natureza realmente recebe as propriedades de outra, mas fazem com que a communicatio apotelesmatum (operação compartilhada) seja separada de cada natureza. No fundo, a idéia reformada é uma espécie “de koinonia idiomatum kata synecdochen (koinwni\a i/diwma\twn kata sunekdoxh\n), uma comunhão de propriedades por sinédoque. Visto que sinédoque é uma figura pela qual o todo é visto por uma de suas partes, esta communio não é meramente uma invenção humana mas uma praedicatio vera, um verdadeiro predicado dos atributos, mas de uma pessoa somente e não entre as naturezas.”350

Na communicatio apotelesmaticum não há diferença maior entre as duas maiores tradições protestantes. Não é motivo de contenda esse tipo de comunicação. 346. Ibid., 74. 347. Berkhof, p. 385. 348. Apud Donald Macleod, The Person of Christ, 195. 349. Muller, Dictionary, p. 74. 350. Ibid., 74.

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CONCEPÇÃO LUTERANA DE COMMUNICATIO IDIOMATUM Enquanto os luteranos crêem que seja possível uma comunhão de atributos entre as duas naturezas do Mediador, os reformados discordam disso, por causa do conceito de comunhão de atributos que eles sustentam. Por comunhão de naturezas (ou de atributos), os luteranos entendem a mesma coisa que união pessoal,351 e nessa união pessoal existe a idéia de a natureza humana passar a realizar atos que são propriedade da natureza divina. Nesse sentido, os reformados acham que seja impossível a comunhão das duas naturezas. Os reformados crêem que seja possível a comunhão de cada uma das naturezas com a pessoa do Filho de Deus,352 mas não a comunhão do divino com o humano a ponto de a natureza humana passar a fazer coisas próprias da natureza divina. Portanto, a idéia luterana de comunicação de atributos difere frontalmente da idéia da tradição reformada. Os luteranos fazem com que a “unidade das duas naturezas na pessoa de Cristo exija uma real comunicação ou o compartilhamento de atributos”.353 Embora, a princípio, houvesse uma troca mútua de atributos ou uma interpenetração de duas naturezas (ou seja, os atributos da Divindade eram comunicados à natureza humana e vice-versa), posteriormente, a ênfase recaiu mais sobre a comunicação dos atributos da natureza divina sobre a natureza humana, e não mais da humana para a divina. Foi à luz dessa interpenetração das naturezas que a ortodoxia luterana elaborou e desenvolveu uma extensa doutrina da comunicação de atributos e descreveu três gêneros de comunicação de atributos: genus idiomaticum, genus apotelesmaticum e o genus majestaticum.

A. GENUS IDIOMATICUM Esse gênero ensina que o predicado das qualidades ou atributos de ambas as naturezas da pessoa do Mediador, de forma que do Deus-homem, como uma pessoa, pode ser dito que ele sofre e morre, mas também que governa e sustenta toda a criação. As qualidades de cada natureza pertencem à Pessoa de Cristo, mas cada natureza retém a sua própria idiomata, de forma que as qualidades de uma natureza não se tornam qualidades de outra natureza, segundo o genus idiomaticum.354 Literalmente, Holaz, teólogo luterano, diz que “o primeiro gênero da comunicação dos atributos consiste nisto: aquelas propriedades que são peculiares à natureza divina ou à natureza 351. Francis. Pieper, Christian Dogmatics, vol. II (Saint Louis: Concordia Publishing House, 1951), 118. 352. Ibid., 119. 353. Muller, Dictionary, p. 73. 354. Muller, Dictionary, p. 73.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR humana, se atribuem verdadeira e realmente à Pessoa total de Cristo, não importa se se fale de uma de suas naturezas ou de ambas.”355

Esse tipo de gênero não traz nenhum problema para a Fé Reformada, pois a doutrina da comunicatio idiomatum dos reformados afirma exatamente esse primeiro gênero da teologia luterana.

1. A IMPORTÂNCIA DESSE GÊNERO NA TEOLOGIA LUTERANA Mueller, teólogo luterano, argumenta de modo interessante, dizendo que esse gênero é importante porque deriva “da falsa interpretação que certos teólogos têm a dado passagens bíblicas que atribuem peculiaridades humanas ou divinas a toda a Pessoa de Cristo”.356 O foco da crítica de Mueller é dirigido a Zwínglio, que, também no meu entender, comete erros, porque, ao tentar explicar o que é próprio de cada natureza, ele acaba quase que separando as duas naturezas e enfraquecendo a união pessoal. Veja a crítica feita por Mueller ao reformador da Suíça alemã: “Zwínglio recorreu a uma figura retórica para excluir o Filho de Deus da paixão e morte de Cristo. Segundo Zwínglio, a expressão ‘Cristo padeceu’ quer dizer: ‘a natureza humana padeceu’. E a expressão ‘minha carne é verdadeira comida’ quer dizer: ‘minha natureza divina é verdadeira comida’.”357

Não é aconselhável, segundo o meu entendimento, esse tipo de separação das duas naturezas, porque caímos no perigo de dicotomizar a pessoa de Cristo, quando na verdade deveríamos enfatizar a união das duas naturezas.

2. TEXTOS USADOS PELA TEOLOGIA LUTERANA PARA PROVAR ESSE GÊNERO Há alguns exemplos de textos que os luteranos usam para ilustrar a idéia do primeiro gênero, que é o genus idiomaticum: 1 Coríntios 2.8 – “sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória.” Atos 3.15 – “Dessarte matastes o Autor da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, do que nós somos testemunhas.”

Os dois versos acima falam da morte do Redentor. Morrer é próprio de quem possui natureza humana, não da Divindade. Todavia, o que é próprio de uma natu355. Apud Juan T. Mueller, Doctrina Cristiana (San Luís, Missouri: Editorial Concordia, 1973), 181. 356. Ibid., 181. 357. Ibid., 182.

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reza é atribuído à Pessoa total. Por essa razão, é dito que o Autor da vida, ou o Senhor da glória – Jesus Cristo – morreu. Hebreus 13.8 – “Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre.” João 8.58 – “Em verdade, em verdade eu vos digo: Antes que Abraão existisse, em sou.”

Os dois versos acima falam da eternidade do Redentor. Todavia, a eternidade ou a constância ou a existência eterna e continuada é própria da natureza divina. No entanto, a Escritura atribui o que pertence à Divindade à totalidade da Pessoa. Portanto, os textos acima e outras passagens da Escritura com a mesma idéia, mostram que o que pertence a uma das naturezas, seja a divina ou a humana, é dito ser um ato da Pessoa completa. Os reformados não teriam qualquer problema com os luteranos se eles permanecem somente nesse genus. É assim que os reformados também crêem, como vimos anteriormente.

B. GENUS APOTELESMATICUM Na verdade, o gênero apotelesmaticum é o terceiro categorizado pela teologia luterana, mas coloquei-o em segundo lugar apenas para propósitos didáticos neste trabalho, e porque o segundo gênero (o majestaticum), conforme o ensino da teologia luterana, é o que se choca fortemente com a teologia calvinista, e, portanto, merece um tratamento mais extenso. Adiantando a conclusão, e dependendo da ênfase luterana, os reformados não possuem qualquer problema com o gênero apotelesmaticum de per se, quando ele não é visto da perspectiva do gênero majestaticum.

1. O SIGNIFICADO DO TERMO DO GENUS APOTELESMATICUM O termo apotelesmaticum deriva da palavra grega a)potele/smata (oficiais), onde o Redentor age na execução dos seus atos oficiais. “Por atos oficiais entendemos todas as funções que Cristo, como o Salvador de todos os homens, desempenhou no estado de humilhação e ainda desempenha no seu estado de exaltação, tais como morrer pelos pecados do mundo, destruir as obras do diabo, estar presente com a sua Igreja, governá-la e protegê-la.”358

Martin Chemnitz assevera sobre o gênero apostesmaticum: 358. T. Mueller, Doctrina Cristiana (San Luís, Missouri: Editorial Concordia, 1973), 189.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR “Essa união da majestade real com o sacerdócio do Messias se deu para efetuar a redenção, para o nosso bem e para a nossa salvação. Mas, como eram necessários o sofrimento e a morte para levar a cabo a redenção, era necessária uma natureza humana, de modo que agradou a Deus, para nosso consolo, empregar também a natureza humana nos ofícios de Cristo como Rei, Sacerdote e Senhor, e operar assim, com e por meio das duas naturezas os atos [oficiais = a)potele/smata] dos ofícios de Cristo.”359

Conforme a descrição citada por Mueller, o genus apotelesmaticum “da comunicação dos atributos é aquele segundo o qual, no desempenho da função messiânica, cada natureza opera o que é peculiar a si mesma, com a participação, todavia, da outra”.360

2. A IMPORTÂNCIA DO GÊNERO APOTELESMATICUM A importância desse gênero está no fato de podermos entender como o Redentor pode realizar a sua obra de redenção. Ela é possível porque, no Redentor, as duas naturezas cooperaram na execução de tudo o que ele fez. O Redentor não poderia fazer o que fez sem que as duas naturezas estivessem juntas.

3. TEXTOS BÍBLICOS USADOS PELOS LUTERANOS 1 Coríntios 15.3 – “Antes de tudo vos entreguei o que também recebi; que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras.” Gálatas 1.4 – “O qual [o Senhor Jesus Cristo]se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai.” Efésios 5.2 – “Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará.”

Para exercer as funções sacerdotais e para morrer expiatoriamente, como os textos acima mostram, o Redentor teve que fazer uso das duas naturezas. Um Redentor que fosse somente homem poderia morrer tão somente no lugar de um homem. Vida por vida. No entanto, foi necessário que o Redentor também fosse Deus para que pudesse morrer no lugar de muitos. Sem as duas naturezas ele não poderia ter feito o que fez. Os reformados também não possuem qualquer problema com a idéia trazida pelo genus apotelesmaticum, pois eles também crêem nessa cooperação das duas naturezas para que toda a função messiânica de Jesus fosse efetuada. Segundo os 359. Apud Juan T. Mueller, ibid., 188-89. 360. Juan T. Mueller, Doctrina Cristiana, 188.

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calvinistas, para que pudesse fazer a obra da redenção, o Redentor tinha de ser divino e humano.361 O problema que os reformados vêem é no entendimento do genus majestaticum defendido pelos luteranos, que examinamos a seguir. Esse genus é totalmente rejeitado pelos calvinistas.

C. GENUS MAJESTATICUM A doutrina da comunicação de atributos assume um tom mais polêmico quando passa ao estudo do terceiro gênero apresentado pelos luteranos, chamado genus majestaticum, que causa o mais violento ponto de choque entre as duas maiores tradições da Reforma, a luterana e a calvinista. “Em suas várias publicações contra os calvinistas, Brenz, apelando para Lutero, ensinou, a respeito da majestade, que, em razão da união pessoal, a humanidade de Cristo não é somente onipotente e onisciente, mas também onipresente, e que a natureza humana de Cristo recebeu estes e outros atributos divinos desde o primeiro momento da encarnação do Logos.”362

Por causa da unio personalis, a natureza humana passa a compartilhar de algumas propriedades da natureza divina, como a onipotência, onisciência e onipresença, que revelam o caráter majestático de Deus. Trata-se de uma comunicação de propriedades de uma natureza para outra. Brenz vai a ponto de dizer que o “homem Cristo era onipotente, todo-poderoso e onisciente enquanto estava deitado na manjedoura”.363 Essas afirmações luteranas causaram muita estranheza nos círculos calvinistas. O genus majestático é o ponto de discórdia entre as duas tradições na doutrina da comunicação de atributos. Segundo o Luteranismo, esse genus indica “a relação hipostática (ou pessoal) da natureza humana dentro dessa união. Visto que a natureza humana não tem subsistência independente, mas subsiste enipostaticamente na pessoa divina que a assumiu, ela participa dos atributos divinos”.364 A teologia luterana afirma ser absolutamente escriturística essa doutrina. Francis Pieper, teólogo luterano, diz que “a comunicação das propriedades divinas à natureza humana é claramente ensina361. Mueller faz uma observação bastante infeliz com respeito aos calvinistas, dizendo que o gênero apostelesmaticum é importante para os luteranos porque “os calvinistas ensinam que as duas naturezas desempenham solas sua incumbência, sem que uma natureza participe nas obras da outra”. (Mueller, Doctrina Cristiana, 189). Na verdade, os calvinistas não concordam com o genus majestaticum (onde o humano faz o que é próprio do divino), mas incontestemente eles crêem que as duas naturezas cooperam juntamente para o exercício das obras oficiais de Jesus Cristo. 362. F. Bente, Historical Introductions to the Book of Concord (Saint Louis: Concordia Publishing House, 1965), 183 (itálico acrescido). 363. Bente, Historical Introductions, 184. 364. Muller, Dictionary, p. 73.

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da na Escritura”.365 Os poderes divinos, assim como o conhecimento divino e a onipresença divina, são atributos comunicados pela natureza divina à natureza humana. Desde a encarnação, a natureza humana já recebeu essas qualidades por causa da unio personalis.

1. HISTÓRIA DO GENUS MAJESTATICUM Os luteranos, bem cedo na sua história, já trataram do problema da comunicação de atributos. Uma das primeiras confissões de tradição luterana, a Confissão de Stuttgart, elaborada em 1559, basicamente a obra de John Brenz, mostra as suas idéias anti-melanchtonianas. Essa confissão de Stuttgart afirmava a ubiqüidade [presença em toda parte] da humanidade de Cristo como básica para a doutrina luterana da consubstanciação. Essa ubiqüidade apela para o fato da humanidade de Cristo adquirir propriedades da Divindade onipresente, que é parte da communicatio idiomatum. Brentz ensina na Confissão de Stuttgart, ao tratar da presença real de Cristo na ceia, que “Cristo, em razão da união pessoal, está onipresente também de acordo com a sua natureza humana, e, portanto, bem capaz de realizar a promessa que ele fez na instituição da Santa Ceia”.366 A Fórmula de Concórdia, um dos principais documentos luteranos, também atribui à Escritura a doutrina da comunicação de atributos da natureza divina para a humana. “O que a Santa Escritura testifica que Cristo recebeu no tempo ele recebeu não segundo a natureza divina (segundo a qual ele tem todas as coisas desde a eternidade), mas a Pessoa a recebeu no tempo, isto é, por meio da e com respeito à natureza humana.”367

Há alguns textos que os luteranos usam para indicar a comunicação do genus majestaticum à natureza humana de Cristo, especialmente no que diz respeito aos três atributos divinos que enfatizam a ação majestosa de Cristo. Mateus 11.27 e Lucas 10.22 dizem: “Tudo me foi entregue por meu Pai...”. Sobre estes dois textos paralelos, Pieper diz: “Visto que Deus não pode receber nada ou ser exaltado em nada, essas passagens manifestamente expressam a comunicação de atributos divinos à natureza humana. Se essa distinção não for observada, essas passagens desprovariam a verdadeira divindade de Cristo, e nada permaneceria além de uma criatura ariana ou um governador sociniano do mundo”.368 365. Francis Pieper, Christian Dogmatics, vol.2 (Saint Louis, MO: Concordia Publishing House, 1951), p. 157. 366. F. Bent, Historical Introductions to the Book of Concord (Saint Louis: Concordia Publishing House, 1965), 183. 367. Formula of Concord, Solid Declaration, VIII, 57 (Book of Concord, p. 602). 368. Pieper, Christian Dogmatics, vol. II, 157.

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Vejamos, portanto, a análise de textos segundo o ponto de vista luterano, acompanhada de crítica do ponto de vista calvinista. Esses textos tratam da comunicação de atributos de uma natureza para outra. Em todos os casos, a interpretação luterana ensina que a comunicação de atributos é de uma natureza para outra, segundo o genero mejestático.

2. TEXTOS SOBRE A ONIPOTÊNCIA USADOS PELOS LUTERANOS Segundo a teologia luterana, a natureza humana de Jesus Cristo recebe a comunicação da onipotência, um atributo que é próprio da Divindade, mas que é também partilhado pela sua humanidade, em virtude da comunhão de naturezas (unio personalis).

a. Poder de governar o universo Mateus 28.18 – “Toda autoridade me foi dada no céu e na terra.”

Pieper disse que “todo o poder no céu e na terra, contudo, é dado a Cristo aqui, no tempo, não segundo a sua natureza divina, mas segundo a sua natureza humana”.369 Hebreus 2.8 – “Todas as coisas sujeitaste debaixo dos seus pés. Ora, desde que lhe sujeitou todas as coisas, nada deixou fora do seu domínio...” (cf. 1 Co 15.27)

Segundo o pensamento luterano, duas coisas estão afirmadas no texto acima: “Primeira, o poder dado a Cristo é descrito não como poder limitado, mas como onipotência divina ou como o governo de Cristo sobre todo o universo... Segunda, à medida que estudamos o verso 8 à luz dos versos 7-9, aprendemos que a onipotência foi dada a Cristo após sua humilhação precedente, e assim no tempo, segundo a sua natureza humana.”370

Resposta Reformada Os dois versos acima não estão tratando da natureza humana de Jesus Cristo, mas do poder de que ele fez uso no seu estado de exaltação, poder esse que ele não usou enquanto estava na condição de servo (mesmo sendo Senhor) e de sujeito à lei (mesmo sendo o legislador). Além disso, se a tese luterana estivesse certa, esse poder que é dado no tempo teria que ter sido dado na sua encarnação (que foi quando a unio personalis se deu), não na sua glorificação. Todavia, o propósito desses dois textos não é o de mostrar a comunicação da onipotência à natureza humana, mas o direito de uso do poder que era próprio da 369. Ibid., 172. 370. Ibid., 159.

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Pessoa do Redentor no tempo de sua exaltação. Os reformados crêem na comunicação de atributos de uma natureza para a Pessoa, mas não de natureza para natureza.

b. Poder de julgar João 5.27 – “E lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do Homem.”

Citando o teólogo Meyer, Pieper diz que “ssta autoridade [a de executar juízo] o Pai lhe deu porque ele é um filho de homem, isto é, porque ele é homem e, por conseguinte, não pode, de si mesmo, ter autoridade para exercer julgamento; nem o teria tido se não lhe tivesse sido dada pelo Pai”.371 Resposta Reformada Essa autoridade de julgar Deus deu ao Redentor, que possuía as duas naturezas, e não à natureza humana. O título Filho do Homem é um título dado à Pessoa completa do Mediador, como o é o título Filho de Deus. Esse título não é designativo de uma natureza separada. Portanto, não se pode dizer que foi a natureza humana que recebeu a autoridade de julgar, mas que o Verbo Encarnado recebeu o direito de julgar. A natureza humana sempre permanece humana, e, por estar unida inseparavelmente à natureza divina, ela participa no poder de julgamento dos homens, como anjos e homens também participam desse tipo de julgamento, sem, contudo, receberem qualquer comunicação de atributo divino.

c. Poder de morrer e de viver João 10.18 – “Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavêla. Este mandato recebi de meu Pai.”

O poder de morrer e de viver novamente “pertenceu a Cristo de acordo com a sua natureza humana [poder que é auto-evidente], visto que o sofrimento, morte e ressurreição não podem ser atribuídos a Cristo de acordo com a sua natureza divina”.372 Resposta Reformada Essa capacidade de poder morrer e de poder ressuscitar foi dada à Pessoa do Redentor. Não houve uma interpenetração de natureza de forma que a humana tenha feito algo próprio da natureza divina. Quem morreu foi o Redentor, e quem ressuscitou foi Redentor. Não se pode dizer que a natureza humana tenha sido capacitada a morrer e a ressuscitar. A autoridade da qual o texto fala é a autoridade para entregar-se à morte (como se daria o pagamento se não fosse a morte?) e para 371. Ibid., 160. 372. Ibid., 162.

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ressuscitar (como haveria a consumação da redenção se ele ficasse morto?). Essa autoridade recebida de Deus é para as duas ações: a de se deixar morrer e a de voltar a viver. Ele exerceu ambas como Redentor divino-humano que é. Jamais esse poder pode ser próprio da natureza humana. Nem mesmo é próprio dizer que Jesus Cristo morreu porque era humano e ressuscitou porque era divino. Na verdade, o poder de morrer e o poder de viver novamente são típicos da Pessoa completa do Redentor. Quem morreu na cruz foi o Redentor e quem ressuscitou foi o Redentor. Não é próprio dicotomizar a Pessoa do Redentor para explicar a interpenetração das naturezas. Na verdade, essa interpenetração de naturezas é uma estrada de mão única na teologia luterana. Nunca há a interpenetração da natureza humana na divina. É estranho que os luteranos chamem a comunicação de atributos de interpenetração de naturezas quando a estrada é de mão única, isto é, só atributos da Divindade comunicados á humanidade, e não vive versa!

d. Poder de operar milagres Os próprios “milagres de Cristo provam que a onipotência divina por comunicação é propriedade de sua natureza humana”.373 Segundo a teologia luterana, Cristo operou milagres de um modo diferente do que fizeram os profetas e apóstolos. Estes últimos operaram milagres pelo poder de Cristo, enquanto Cristo operou milagres por sua própria onipotência.374 Resposta Reformada Hodge rebate a posição luterana dizendo que “a natureza humana de Cristo não é mais onisciente ou todo-poderosa do que o operador de um milagre é onipotente”.375 O poder da natureza humana era poder de homem. Uma natureza nunca pode apresentar algo que não lhe pertence por natureza. Seria mais próprio dizer que a natureza divina operava poderosamente através da natureza humana, mas a melhor maneira de expressar isso é dizer que a Pessoa divino-humana, Jesus Cristo, operava milagres. Se foi a natureza humana quem operou milagres porque lhe havia comunicado este poder, qual é o papel da natureza divina na operação de milagres? Nesse sentido, então, nunca houve a manifestação da natureza divina de Cristo, pois a humana havia sido capacitada a realizar milagres. Se a natureza humana recebeu a onipotência, então não havia nenhuma necessidade de haver a manifestação do poder da natureza divina. Esta acaba sendo eclipsada pela natureza humana “deificada” (embora os luteranos nunca diriam algo parecido).

373. Ibid., 160. 374. Ibid., 162. 375. Charles Hodge, Systematic Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1981), vol. II, 417.

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3. TEXTOS SOBRE A ONISCIÊNCIA USADOS PELOS LUTERANOS Esse é o segundo grande atributo que a natureza divina comunica à humana por causa da comunhão de naturezas (ou unio personalis), na teologia luterana. Segundo os teólogos luteranos, “a Santa Escritura atribui a Cristo não meramente um conhecimento humano excepcional, mas também um conhecimento divino, ou onisciência”.376 Na verdade, esse conhecimento divino é dado à natureza humana do Redentor. Esta passa a possuir o que é próprio da natureza divina. A força dos textos sobre a onisciência da natureza humana de Jesus Cristo é menor do que os da onipotência dele. Os textos usados para a argumentação dos luteranos são: João 1.48, 49 – “Perguntou-lhe Natanael: Donde me conheces? Respondeu-lhe Jesus: Antes de Filipe te chamar, eu te vi, quando estavas debaixo da figueira. Então exclamou Natanael: Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és Rei de Israel!”

Martin Chemnitz diz desse texto que “a alma de Cristo não vê, nem conhece, nem entende todas as coisas de si mesma ou através ou de acordo consigo mesma, separadamente e à parte do Logos, mas ela tem todas estas coisas porque esta está pessoalmente unida com a natureza divina do Logos, que é sabedoria em si mesma, e em razão da união, ela considera, vê, conhece, e entende todas as coisas.”377

Resposta Reformada Essa atribuição de conhecimento divino da alma humana (por ela estar unida ao Logos) não deve ser entendida como uma real comunicação de atributos (como entendem os luteranos) do divino para o humano, mas sim uma atribuição da Divindade que deve ser vista como pertencendo à Pessoa, embora o nome aplicado a essa Pessoa seja Filho de Deus, um título divino. Um outro texto usado pelos luteranos é o de João 2.25, aplicando o mesmo raciocínio usado no texto de João 1.48, 49. João 2.25 – “E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza humana.”

Resposta Reformada Obviamente, quando João disse essas palavras a respeito de Cristo, ele já era o Verbo encarnado. Essa verdade de que ele conhecia a natureza humana poderia ser dita de si mesmo antes de se encarnar, porque ele era divino e a sua onisciência lhe 376. Pieper, Christian Dogmatics, vol. II, 162. 377. Martin Chemnitz, The Two Natures in Christ, 330.

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permite conhecer essas coisas. Todavia, o conhecimento que ele possuía da natureza humana também era experimental, segundo a sua experiência de homem. Nesse caso, não há onisciência, pois trata-se é uma experiência de alguém que possuía a mesma natureza que seus semelhantes possuíam.

a. Conhecimento das coisas celestiais João 3.31-34 – “Quem vem das alturas certamente está acima de todos; quem vem da terra é terreno e fala da terra; quem veio do céu está acima de todos e testifica o que tem visto e ouvido; contudo, ninguém aceita o seu testemunho. Quem, todavia, lhe aceita o testemunho, por sua vez, certifica que Deus é verdadeiro. Pois o enviado de Deus fala as palavras de dele, porque Deus não dá o Espírito por medida.”

A explicação luterana para esses textos sobre o conhecimento divino que a natureza humana recebeu dá-se nos seguintes termos: “Visto que o ensino de Cristo aconteceu em e através da natureza humana, sua natureza humana claramente compartilhou do conhecimento divino”.378 Uma explicação ainda mais estranha e forçada é dada pelo autor luterano com relação a João 3.34, do seguinte modo: “De acordo com o contexto, a expressão ‘dom do Espírito sem medida’, designa o atributo divino do conhecimento comunicado. Ainda mais, que Cristo, segundo a sua natureza humana, usou o conhecimento divino, é evidente do fato de que, como a Escritura ensina, ‘Ele conhecia os corações dos homens’, que certamente é prerrogativa de Deus.”379

Resposta Reformada Certamente Cristo está contrastando a sabedoria divina com a humana, quando fala do que é celestial e do que é terreno. Quem veio do céu certamente é o Filho que se encarnou, pois os versos 32 e 33 indicam que é a respeito do Filho que o texto trata. Contudo, a expressão “quem vem da terra é terreno e fala da terra” (v. 31b) não se deve aplicar à natureza humana de Jesus Cristo, pois “terreno” aqui é sinônimo do que não é verdadeiro. Não se pode atribuir qualquer inverdade à natureza humana de Cristo, que é santa e pura. Não há problema em entender que a natureza divina passou revelacionalmente à natureza humana muitos segredos do céu, mas é muito diferente dizer que a natureza humana passou a possuir o atributo da onisciência. Se isso fosse verdadeiro, nunca poderia ser dito de Jesus que ele não conhecia o dia do fim do mundo. 378. Pieper, Christian Dogmatics, vol. II, 163. 379. Ibid., 163.

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Se a natureza humana de Jesus Cristo já era onipresente, como veremos adiante, desde a encarnação do Verbo, por que, então, a sua natureza humana não possuía (por causa da unio personalis) o conhecimento de todas as coisas, inclusive do dia final? Se a natureza humana passou a ter as propriedades divinas per communicationem, qual é a razão da sua ignorância? A penetração de uma natureza na outra só acontece em ocasiões especiais? Mais contraditório ainda é que os luteranos dizem que, “juntamente com esse conhecimento divino de Cristo, que em seu estado de humilhação ele teve de acordo com a sua natureza humana, a Escritura lhe atribui um conhecimento limitado”.380 Se ele teve esse conhecimento divino em seu estado de humilhação, por que, então, em seu estado de humilhação, a natureza humana desconhecia o dia da volta, o último dia?381 Os próprios luteranos reconhecem que essa comunicação de onisciência é muito complicada. Não há como estabelecer essa penetração da natureza divina na natureza humana com respeito ao conhecimento. É mais prudente afirmar que o conteúdo de conhecimento das coisas celestiais é comunicado pela Pessoa divina do Redentor à sua natureza humana, quando isso lhe apraz. Foi por essa razão que, enquanto em seu estado de humilhação, Jesus Cristo não sabia algumas coisas do fim: a sua natureza humana não recebeu a comunicação desse conhecimento. Todavia, não é correto dizer, como fazem os luteranos, que a natureza humana passa a possuir onisciência. É sem sentido falar de uma mente finita (como era a mente humana do Redentor) tendo onisciência, que é própria e exclusiva da mente divina.

4. TEXTOS SOBRE A ONIPRESENÇA USADOS PELOS LUTERANOS O grande e maior ponto da controvérsia entre luteranos e calvinistas está no atributo da onipresença, que propiciou argumentos para a controvérsia sacramentária, isto é, sobre o significado da presença real de Cristo na ceia. Segundo a teologia luterana, o corpo de Cristo está presente em toda parte do universo. Essa é a característica da ubiqüidade, ou da qualidade de estar presente em todo lugar. Não se abre mão, em hipótese alguma, da noção de que “onde está a deidade, também está a humanidade de Cristo”. “Nós não atribuímos a Cristo muitos e vários corpos, nem atribuímos ao seu corpo extensão local ou difusão; mas nós o exaltamos além deste mundo corpóreo, fora de toda criatura e lugar, e o 380. Ibid., 163 (grifos meus). 381. Pieper tenta encontrar uma resposta para essas preocupações e acaba afirmando: “Em Cristologia, estamos tratando com o conhecimento divino dormente da natureza humana de Cristo. O Conhecimento divino, naturalmente, não pode ser concebido como dormente, mas deve ser considerado como funcionando sem interrupção (actus purissimus). Mas, a essa altura, contudo, não estamos tratando do conhecimento divino per se, mas com o conhecimento divino na medida que ele é comunicado à natureza humana de Cristo e foi, como a onipotência, tanto ativa como inativa, como o desempenho do seu ofício exigia.” (Pieper, Christian Dogmatics, vol. II, 165).

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colocamos de acordo com a condição da união hipostática na majestade celestial...”.382 Os documentos luteranos ensinam a onipresença da natureza humana de Cristo. A Formula de Concórdia “ensina claramente que, em virtude da união pessoal por sua encarnação, Cristo, de acordo com a sua natureza humana, possui também o atributo divino da onipresença, e que ele pode estar e está presente onde quer que queira”.383 A Solid Declaration, um outro documento oficial dos Luteranos, declara que Cristo “verdadeiramente enche todas as coisas, e, estando presente em todo lugar, não somente como Deus, mas também como homem, governa de mar a mar e até os confins da terra.”384 Há alguns textos bíblicos usados pelos Luteranos para provar o seu ponto:

a. Onipresença da natureza humana na vida dos cristãos Mateus 28.20 – “Eis que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos.”

Esse texto deve ser entendido, segundo Pieper, como se referindo a Cristo com a sua natureza humana.385 Da mesma forma que o poder divino é dado à natureza humana, no tempo, observa Pieper, “assim também a promessa da onipresença deve pertencer a Cristo, de acordo com sua natureza humana”.386 Martin Chemitz interpreta essa passagem da seguinte forma: “É manifesto além de questão que isso pertence à natureza humana assumida por Cristo... Certamente não há nenhuma razão porque nesta mais doce promessa da presença de Cristo na Igreja, nós separemos, desjuntemos, e excluamos sua natureza (humana) assumida, segundo a qual ele é conhecido de nós e é nosso Irmão, e nós somos os membros do seu corpo e da sua carne e ossos, visto que ele, nessa promessa, indica e descreve por muitas circunstâncias sua natureza assumida.”387

Resposta Reformada Se a natureza humana de Jesus Cristo está presente juntamente conosco em nossas reuniões, então o conceito de natureza humana está totalmente destruído, porque não podemos ver nada, não podemos apalpar nada, e não podemos sentir nada de sua humanidade. Nesse sentido, a Cristologia passa a ter tons altamente 382. Bente, Historical Introductions, 183. 383. Ibid., 184. 384. Bente, Historical Introductions, 184. 385. Pieper, p. 172. 386. Pieper, p. 172. 387. Veja o comentário dessa passagem de Mt 28.20 em Martin Chemitz, The Two Natures in Christ (Saint Louis: Concordia Publishing House, edição 1971), p. 448-450.

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docéticos, isto é, uma torna-se uma Cristologia na qual os elementos característicos da humanidade estão ausentes. O que é humano perde as suas propriedades essenciais, pois as limitações espaciais e temporais, que são próprias da natureza humana, são perdidas. A fisicalidade do corpo de Cristo é totalmente desprezada. Nem mesmo o elemento imaterial da natureza humana, que é a alma, pode estar presente simultaneamente em todos os lugares onde Jesus Cristo está, pois a alma humana é um espírito finito que não pode possuir onipresença, pois é próprio dos espíritos finitos estarem presentes em um só local. Nessa doutrina luterana, a noção sobre a presença humana de Jesus Cristo com o seu povo pode até trazer consolo, mas a sua verdadeira humanidade fica totalmente prejudicada, pois ela assume o que é próprio da Divindade. A onipresença da natureza humana destrói totalmente o conceito do que é humano em Cristo. Não podemos sacrificar os atributos da natureza humana de Cristo dando-lhe qualidades divinas como infinidade, por exemplo. Cristo Jesus está presente conosco no que respeita à sua divindade. Contudo, o texto da Escritura se refere à Pessoa de Cristo, não à sua natureza divina. Portanto, é correto dizer que o que é próprio de uma natureza é dito ser uma atividade da Pessoa completa.

b. Onipresença da natureza humana no universo Efésios 1.20-23 – “...a qual é o seu corpo [igreja], a plenitude daquele que a tudo enche em todas as cousas.”

Esse verso de Paulo que fala de Cristo “enchendo todas as coisas” mostra, segundo Pieper, “o predicado da onipresença da natureza humana de Cristo, tanto na Igreja quanto no universo”.388 Então, Pieper passa a raciocinar com o texto, partindo de um pressuposto da onipresença da natureza humana de Cristo. Ele argumenta que o apóstolo Paulo está tratando da humanidade de Jesus, e que isso está evidente das palavras de Paulo: “o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitandoo dentre os mortos, e fazendo-o sentar à sua direita nos lugares celestiais” (v. 20). Então, vem a conclusão lógica de Pieper: “a onipresença da natureza humana de Cristo no universo é afirmada nestas palavras: ‘acima de todo principado, e potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que se possa referir não só no presente século, mas também no vindouro. E pôs todas as coisas debaixo dos seus pés’ (vs. 21, 22a), e a onipresença da natureza humana de Cristo na Igreja é ensinada nestas palavras: ‘e, para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à Igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as cousas’ (vs. 22b, 23).”389 388. Pieper, Christian Dogmatics, vol. II, 170, 171. 389. Ibid., 171 (itálico acrescido).

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A onipresença da humanidade de Cristo é uma questão absolutamente indiscutível na teologia luterana. Esse texto de Efésios é a pedra de toque dos luteranos. Analisando esse texto, Martin Chemitz afirma de modo admirável a soberania da natureza humana de Cristo por estar unida ao Logos. Chemitz contrasta a soberania de Cristo com a dos reis terrenos que governam os seus territórios in absentia, enquanto, enquanto Cristo, de acordo com a sua natureza humana exaltada, está presente em todas as partes do seu domínio. Ele afirma: “A humanidade de Cristo governa no lo/goj e com ele sobre todas as coisas, não de uma distância ou separado por um espaço imensurável, como é o modo dos reis quando o seu governo se estende sobre países muito distantes, mas como ela (a natureza humana de Cristo) existe no lo/goj, assim, por causa de sua união pessoal com o lo/goj, ela tem todas as coisas presentes diante de si.”390

Aqui, também, Chemitz e outros teólogos luteranos enfatizam a ubiqüidade da natureza humana de Cristo. Ela governa o universo porque está presente em toda parte, sem estar separada por uma distância dos limites do seu território. Resposta Reformada O que foi dito a respeito da presença da natureza humana de Cristo na Igreja, pode ser dito de sua presença no universo. Se o corpo de Jesus Cristo é onipresente, sua humanidade está totalmente perdida, pois um corpo pode ocupar somente um espaço, e não todos os espaços simultaneamente. A sua natureza humana pode ir a toda parte, onde quer que o Redentor queira, mas ela não pode estar presente no universo todo ao mesmo tempo. A crença na onipresença da humanidade de Cristo é a anulação das leis que o próprio Deus estabeleceu. Todavia, o que podemos dizer é que Cristo enche todo o espaço, e isso é um atributo de sua divindade, que deve ser visto como uma ação da Pessoa.

c. Onipresença da natureza humana na esfera da transcendência Efésios 4.10 – “Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas.”

A interpretação luterana deste verso está expressa fielmente no pensamento de Pieper: “Cristo ascendeu muito acima de todos os céus. Portanto, nenhum dos céus criados de forma alguma pode ser o lugar para onde Cristo foi pela ascensão. Por essa razão é imediatamente acrescentado que Cristo ascendeu para além dos céus, que ele poderia encher todas as coisas, certamente não somente sua Igreja, mas todas as coisas... com 390. Martin Chemitz, De Duabus Naturis, c.30, p.m. 205 (apud Pieper, p. 171).

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR seu corpo, no qual ele ascendeu aos céus, que ele pode poderosamente e por Sua presença imediata governar todas as coisas.”391

Esse texto é usado pelos luteranos para mostrar a ubiqüidade do corpo de Cristo, ou seja, a presença da sua natureza humana em toda parte. Criticando os reformados que não aceitavam que a natureza humana de Cristo estivesse em toda parte, os teólogos luteranos costumavam dizer “que a negação da onipresença divina na natureza humana de Cristo deve ser considerado um suicídio teológico”.392 Pieper, citando um outro teólogo luterano (Balthasar Mentzer), diz: “Aqueles que dizem que o lo/goj, após a encarnação, é ou existe fora de sua humanidade (extra suam carnem), não importa como eles descrevam esse estado, dissolvem a união hipostática, no que lhes diz respeito, porque eles destroem sua verdadeira essência (definitionem). Se de fato a união hipostática é a habitação da plenitude da divindade do lo/goj, na suposta carne... então a união pessoal é dissolvida tão logo o lo/goj seja apresentado como estando fora de sua carne.”393

Resposta Reformada Cristo não “enche os céus” com a sua natureza humana, como diz a teologia luterana.394 Se há algo que enche os céus, ou seja, tudo o que se refere à transcendência divina, é a natureza divina do Redentor. Contudo, quando dizemos isso, damos margem à crítica luterana que diz que a natureza divina “existe fora de sua humanidade (extra suam carnem)”, numa espécie de dissolução da unio personalis. Longe esteja dos Reformados fazer isso. Por isso, é preferível dizer (como é próprio de uma teologia reformada sadia) que é a Pessoa do Redentor que enche os céus, não simplesmente a sua natureza divina. O que é próprio de uma natureza (no caso, a divina) é dito pertencer à Pessoa completa. Aquele que desceu e subiu e enche os céus. Embora seja próprio da natureza divina fazer isso, o texto se refere à Pessoa do Redentor.

d. Onipresença da natureza humana na Ceia É esse aspecto da onipresença que fornece elementos para a doutrina luterana da presença real da natureza humana de Cristo no sacramento da eucaristia. Lutero e seus sucessores (com exceção de Melanchton e seus seguidores, por volta de 1540), interpretaram literalmente o texto da instituição da Ceia que diz: 391. Pieper, Christian Dogmatics, vol. II, 169. 392. Ibid., 166 393. Ibid., 126. 394. Pieper insiste que “a passagem [Ef 4.10] fala de Cristo não conforme a sua natureza divina, mas conforme a sua natureza humana” (Christian Dogmatics, vol. II, 168).

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Mateus 26.26 – “Isto é o meu corpo.”

Jesus Cristo exerce o seu poder em toda parte, como onipresente que é, de acordo com a sua natureza humana. O documento oficial do Luteranismo, a Fórmula de Concórdia, diz: “Portanto, ele é capaz e é fácil para ele comunicar a nós seu verdadeiro corpo e sangue que estão presentes na Santa Ceia, não de acordo com o modo ou propriedade da natureza humana, mas de acordo com o modo e propriedade da mão direita de Deus, como Dr. Lutero diz com base de nossa fé cristã, como a ensinamos aos nossos filhos.”395

Resposta Reformada Quando se atribui onipresença à natureza humana de Cristo para justificar a presença real dela na Ceia, comete-se o mesmo erro já afirmado acima: o esvaziamento do conceito de natureza humana por dar ao que é físico as atribuições da infinidade. A natureza humana é caracterizada pelo corpo e pela alma. O corpo como a alma não podem estar presentes em todo lugar, porque eles ocupam espaço, mesmo que de maneiras diferentes. O corpo usa o espaço circunscritivamente, e a alma ocupa o espaço como os outros espíritos finitos ocupam.396 Vendo a impossibilidade de fugir desse assunto, a Fórmula de Concórdia acabou inventando um modo de explicar a onipresença do corpo de Jesus Cristo, dizendo que “ela não é de acordo com o modo ou propriedade da natureza humana, mas de acordo com o modo e propriedade da mão direita de Deus”.397 Essa é uma maneira inútil de evitar o problema, criando um modo inusitado da matéria existir da matéria (ou de qualquer coisa finita, incluindo a alma) em toda parte. Como reformado, creio que a natureza completa do Redentor está presente na Ceia, pois cremos na presença real de Cristo na Ceia. Quando Cristo disse que “isto é o meu corpo”, ele estava se referindo à natureza sua humana, sem dúvida. Contudo, cremos que o Cristo todo está presente na Ceia, de uma forma diferente da dos luteranos. A sua natureza divina está presente, como é próprio dela ser onipresente, e a sua natureza humana está também presente, representada pelo pão e pelo vinho. Não podemos cair no erro de dizer que a natureza humana está presente espiritualmente. Com isso estaríamos descaracterizando a natureza humana, destituindo-a de seus elementos próprios. Portanto, foi necessário o uso dos elementos que simbolizam ou representam a natureza humana. A Pessoa total do Redentor está presente na Ceia: sua natureza divina está presente por ser onipresente; 395. Formula of Concord, VIII, 17 (Book of Concord, 489). [grifos meus]. 396. Ver Heber Carlos de Campos, O Ser de Deus e Seus Atributos (São Paulo: Cultura Cristã, 1999), 205. No céu, a alma humana ocupa espaço da mesma forma que os espíritos finitos o ocupam. As almas se locomovem como os espíritos se locomovem. Elas não podem estar em todos os lugares simultaneamente, mesmo no estado desincorporado em que se encontram. 397. Tappert, org., Book of Concord (Formula of Concord, Epitome, art. 8), 489.

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sua natureza humana, limitada pelo espaço, está representada pelos elementos. É por isso que somos abençoados com a presença do Redentor. Não é sem razão que a Ceia é um dos meios pelos quais a graça de Deus vem sobre nós.

e. Explicação dada pelos luteranos Claramente Mueller disse que “de acordo com a Escritura sustentamos, pois, que, mediante a união pessoal, a natureza humana de Cristo veio a possuir todos os atributos divinos do Logos, não essencialmente (formaliter), mas por comunicação (per communicationem)”.398 Então, passando a justificar o seu pensamento, Mueller prossegue: “Há que se distinguir entre a posse (kthsij) e o uso (xrhsij) dos atributos divinos comunicados à natureza humana”,399 para não entrar em contradição com o seu pensamento correto de que os atributos de uma natureza não passam a pertencer a outra. Todavia, como pode uma natureza usar um atributo quando este não lhe pertence? Como pode a natureza humana fazer aquilo que não lhe é próprio? É nesse gênero da comunicação da onipresença à natureza humana que reside a grande diferença entre luteranos e calvinistas.

RESUMO DA DOUTRINA DA COMUNICAÇÃO DE ATRIBUTOS A. NO PENSAMENTO LUTERANO Há três estágios de desenvolvimento da doutrina da comunicação de atributos na teologia luterana, com tendência eutiquiana. Estágio 1 – o ensino da comunicação de atributos de ambos os lados, de uma natureza para outra. Era o ensino da interpenetração das naturezas. Estágio 2 – o ensino da comunicação de todos os atributos da divina natureza para a natureza humana somente. Esse foi um desenvolvimento posterior, pois percebeu-se que a comunicação de atributos da natureza humana para a divina não encontrou guarida nos círculos luteranos. Estágio 3 – o ensino da comunicação de somente 3 atributos da natureza divina (onipotência, onisciência e onipresença) à natureza humana. De um modo geral, a comunicação de outros atributos divinos à natureza humana não é mencionada na teologia luterana. 398. Juan T. Mueller, Doctrina Cristiana (San Luís, Missouri: Editorial Concordia, 1973), 183. 399. Ibid., 183.

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B. NO PENSAMENTO REFORMADO No pensamento reformado, a ênfase é na comunicação de atributos de ambas as naturezas à Pessoa do Mediador. Portanto, a natureza divina, embora inseparável e indivisivelmente unida a uma pessoa, existe e se manifesta além dos limites da humanidade. Os luteranos chamam o pensamento calvinista sobre a comunicação de atributos de “extra calvinisticum”. Seria mais acurado chamá-lo “extrahumanun”. A natureza humana de Cristo está sempre localizada no céu, nas presentes condições. O ponto-chave da diferença entre luteranos e calvinistas na comunicação de atributos é o seguinte: os luteranos vêem a comunicação real de atributos de uma natureza para a outra, enquanto que os calvinistas vêem apenas a comunicação dos atributos de ambas as naturezas para a Pessoa de Redentor.

C. CRÍTICA DOS CALVINISTAS AOS LUTERANOS Os calvinistas têm algumas críticas ao pensamento luterano sobre a communicatio idiomatum, especialmente quando eles tratam do genus majestaticum. Macleod faz as seguintes observações críticas que são úteis para o leitor aprender a distinguir uma doutrina que pode trazer conseqüências sérias para a Cristologia. “É também difícil evitar a conclusão de que a doutrina luterana envolve a destruição da natureza humana. A humanidade que tem atributos divinos não é humanidade de espécie alguma. Por exemplo, atribuir onisciência à natureza humana de Jesus é desastroso para a sua humanidade não somente porque isso o exclui de nossa experiência humana de aprender e conhecer, mas também porque isso muda completamente a sua vida emocional e volitiva. Ambos, os nossos sentimentos e as nossas escolhas, estão condicionados pela finitude de nosso conhecimento, e eliminar isso é eliminar totalmente a psicologia humana. A humanidade que possuísse as propriedades divinas representaria não uma encarnação (que é o assumir da natureza humana pelo Filho de Deus), mas uma conversão (de humanidade para divindade).”400

Além da observação acima, uma outra observação crítica de Macleod é que... essa teoria luterana é inconsistente com a doutrina da glorificação de Cristo, ensinada no Novo Testamento. De acordo com o Luteranismo, a natureza humana de Cristo é glorificada na união pessoal: desde o início da concepção ele possui a majestade do divino. É suficiente responder a isso que a sua natureza humana, longe de ser divinamente glorificada, era mortal. Mas além e acima disto, o Novo Testamento claramente mostra que Cristo foi glorificado somente naquele ato com400. Donald Macleod, The Person of Christ, 197-98.

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plexo da exaltação que incluiu a ressurreição, a ascensão e a sessão celestial. Ele próprio, enquanto aqui na terra, orava pedindo por essa glorificação (João 17.1), e o Novo Testamento atribui especificamente essa glorificação a ele, dizendo-nos, na verdade, que ele foi “exaltado sobremaneira” (Fp 2.9). Tal glorificação teria sido impossível se a natureza humana de Cristo já estivesse em posse da majestade divina em virtude da própria encarnação.401

Por essas razões afirmadas acima, temos que rejeitar o conceito luterano de comunicação de atributos, especialmente quando o genus majestaticum está em pauta. Cremos numa comunicação de atributos das naturezas para a Pessoa do Redentor, e não de uma natureza para outra.

APLICAÇÃO Não há como fazer aplicação para nós sobre este assunto que é altamente teórico, embora nos ajude a compreender uma porção de textos difíceis sobre a relação entre a Divindade e a humanidade no Redentor. As únicas sugestões que lhe faço, caro leitor, a essa altura, é que você faça algumas coisas:

A. PROCURE CONHECER UM POUCO MAIS DA COMUNICAÇÃO DE ATRIBUTOS Com toda probabilidade você nunca havia estudado sobre esse assunto em sua igreja por essa perspectiva. É possível que ninguém jamais tenha questionado as coisas que estudamos nesse capítulo, mas uma hora ou outra você será confrontado pela dificuldade que alguns textos bíblicos apresentam, ou pelas objeções que a teologia levanta sobre a comunicação real de atributos da natureza divina para a natureza humana. Todavia, nunca se esqueça de que a comunicação de atributos é das naturezas para a Pessoa do Redentor, e nunca de natureza para natureza. Conheça um pouco mais sobre essa doutrina e reestude esse material para que você se assenhoreie melhor do que acontece nas relações das naturezas com a Pessoa do Redentor. Nunca será debalde você estudar mais de uma vez um assunto. Quanto mais você estuda, mais as idéias se encaixam na sua mente, especialmente em assuntos difíceis e complexos como esse. Aceite o desafio de conhecer, especialmente se você exerce o dom de ensino e tem de passar para a frente aquilo que você aprendeu. Nunca será debalde o trabalho de estudar com afinco sobre a Pessoa do seu Redentor no que concerne à comunicação de atributos.

401. Ibid., 198.

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B. APROFUNDE-SE MAIS NO ESTUDO DA PESSOA DE CRISTO A exortação da Escritura é para que cresçamos “na graça e no conhecimento de Cristo” (1Pe). Nunca houve tempo em que esse crescimento em conhecimento de Cristo tenha sido tão necessário. A Pessoa e a obra de Cristo são o cerne da fé cristã, e, por essa razão, elas são constante alvo de ataque dos inimigos da cruz de Cristo. Portanto, é-nos necessário estudar com mais profundidade a Pessoa de nosso Redentor. Ao mesmo tempo em que é uma tarefa necessária e cheia de mistério, essa tarefa é maravilhosa porque nos leva a estudar algumas coisas sobre ele que ainda não sabemos, a nos espantarmos com algumas coisas maravilhosas sobre ele que não conhecíamos e a nos encantarmos com a beleza e a singularidade dessa Pessoa.

C. SAIBA COMO RESPONDER QUESTÕES SOBRE O SEU REDENTOR Há muitos de nós que não conseguimos ter uma palavra sensata sobre a Pessoa do Redentor além das coisas corriqueiras que ouvimos a respeito dele desde que começamos a participar das reuniões da igreja. É importante que saibamos dar “razão da esperança que há em nós”, isto é, precisamos saber dizer por que cremos, em quem cremos e por que rejeitamos tais e tais coisas. Muitas heresias já foram ditas a respeito de Jesus Cristo na história da Igreja. Não podemos nos conformar com o fato de haver muitos crentes ignorantes da doutrina de Cristo. À medida que o tempo passa, mais dúvidas vão surgir sobre Cristo porque os homens sempre haverão de levantar questões para anular o pensamento cristão, usando raciocínios falazes. Nós, os cristãos, temos que estar preparados para dar razão daquilo em que cremos, e você também é chamado para dar respostas, pois todos os que são filhos de Deus têm de conhecer o seu Pai e o Irmão mais velho, o Redentor.

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CAPÍTULO 9 A IMPECABILIDADE DO REDENTOR

A

impecabilidade do Redentor é um dos efeitos da unio personalis na Pessoa do Redentor. Neste capítulo, portanto, vamos defender a impecabilidade de Cristo, mas trataremos também do ensino sobre a pecabilidade de Cristo que é defendida em vários círculos evangélicos, mesmo dentro de alguns círculos reformados. Algumas pessoas pensam que tanto faz ou que faz pouca diferença crer na pecabilidade ou na impecabilidade de Cristo. O que importa é que ele não pecou. É uma pena que essas pessoas não consigam enxergar a grande diferença que faz crer em uma coisa ou em outra. A diferença está entre a heresia e a verdade. A nossa opinião sobre esse assunto determina o conceito que temos da Pessoa de Cristo. Portanto, há razões lógicas, bíblicas e teológicas para se tomar uma definição, e a opinião do autor deste livro vai pender totalmente para a impecabilidade de nosso Redentor porque essa posição faz jus ao ensino geral da Escritura e da teologia cristã sobre a matéria.

RAZÕES LÓGICAS PARA O ESTUDO DESSA MATÉRIA 1. A primeira razão pela qual devemos estudar esta matéria é o fato de tentar conhecer melhor a Pessoa complexa de nosso Redentor, a fim de que possamos entender pelo menos um pouquinho da sua grande redenção. Antes de estudarmos a Pessoa do Redentor, temos de dar uma olhada no seu estado pré-encarnado e, então, você entenderá melhor o que significa que o Filho de Deus (que veio a ser o nosso Redentor) ser o mesmo ontem, hoje e eternamente. 2. A segunda razão pela qual devemos estudar essa matéria é que há muitos cristãos que crêem que a argumentação sobre a pecabilidade de Jesus Cristo vai ter um impacto direto sobre a sua humanidade. Eles argumentam contra a impecabilidade dizendo que se ele não poderia pecar, como avaliaremos a sua real humanidade? Essa questão pode levar à conclusão errônea de que a pecabilidade tem algo necessariamente a ver com a humanidade, o que não é verdade. Na verdade, o fato dele ter impecabilidade não afeta em nada a sua verdadeira humanidade. A humanidade de uma pessoa não está vinculada à sua capacidade ou possibilidade de pecar. Chegará o dia em que nunca mais haveremos de pecar, e, todavia, continuaremos a ser perfeitamente seres humanos.

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3. A terceira razão pela qual devemos estudar essa matéria é que a doutrina da impecabilidade de Jesus Cristo vai influenciar a nossa teologia sobre o nascimento virginal, a encarnação e o nosso pensamento sobre a união hipostática. Se quisermos entender corretamente essas doutrinas e ver os erros cometidos nelas, teremos de estudar o assunto da impecabilidade/pecabilidade de Jesus Cristo. 4. A quarta razão pela qual devemos estudar essa matéria é que podemos entender um pouco melhor a doutrina dos anjos, especialmente de Satanás, pois ele tem muito a ver com as tentações relacionadas diretamente a Jesus Cristo. Ao examinarmos as tentações de Cristo por Satanás, poderemos ver quão forte e pertinaz ele é na sua tentativa de derrubar os filhos de Deus, os seguidores de Jesus Cristo. 5. A quinta razão pela qual devemos estudar essa matéria tem a ver com a inerrância e infalibilidade da Escritura. Se é verdade que Jesus poderia cair, então podemos por em risco a veracidade e a integridade das Escrituras. Nesse caso, podemos afirmar que as Escrituras não estão corretas com respeito às informações que ela dá sobre a Pessoa santa de Jesus Cristo.

RAZÕES BÍBLICAS PARA O ESTUDO DA MATÉRIA Em virtude da unio personalis, algumas coisas importantes aconteceram na Pessoa Redentor, como já vimos anteriormente. Uma das mais importantes e também uma das mais complicadas é a impecabilidade, que é o que vamos defender neste capítulo. Todavia, à guisa de introdução a este capítulo, antes de tratar da impecabilidade, vamos mostrar algumas coisas que são óbvias e possuem uma base bíblica bastante abundante:

A. JESUS CRISTO FOI LIVRE DO PECADO ORIGINAL Como conseqüência da união pessoal, o Redentor foi liberto do pecado original, que é a porção de todo descendente de Adão. A todos os descendentes de Adão, o pecado original é imputado, mas, ao ser concebido, o Redentor não recebeu a imputação do pecado, porque ele não foi contado como aquele que esteve em Adão, embora tenha sido descendente dele, pois a Escritura diz que Ele era “filho de Adão”. Em virtude da união pessoal, portanto, o Redentor recebeu também uma dignidade singular: a de ser eminentemente santo. Quando falo de santidade, aqui, não estou me referindo à santidade da divindade de Cristo, mas à perfeição moral que a sua natureza humana adquiriu em virtude da unio personalis. Normalmente, qualquer ser humano da descendência de Adão teria sido concebido em pecado, mas, por causa da sobrenaturalidade dessa união operada pelo Espírito Santo, o Redentor foi livre dessa maldita herança de todos os filhos dos homens. Essa corrupção que todos os filhos dos homens possuem é devida à sua culpabilidade em Adão.

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Jesus Cristo foi chamado de o Segundo Adão, em contraste com o primeiro Adão. Porque não ter sido contado com o primeiro Adão é que ele foi aceito por Deus como o Segundo Adão, o representante de pecadores por quem morreu. Adão e todos os seus descendentes são chamados na Escritura de “terreno” e “terrenos”, assim como Cristo e os que estão nele são chamados de “celestial” e “celestiais” (1Co 15.47, 48). Quanto aos primeiros, eles são chamados de terrenos por causa da sua contaminação em virtude da imputação da culpa do “terreno” sobre os “terrenos”. Quanto aos últimos, eles são chamados de “celestiais” não porque vieram do céu, mas por causa da purificação que procede daquele que é celestial. Jesus Cristo é “celestial” não porque a sua humanidade tenha vindo do céu, mas porque céu, aqui, é sinônimo de não-corrupção, de pureza. Jesus Cristo é puro, sem qualquer nódoa moral, porque ele foi livre da imputação do pecado. Por essa razão, o anjo testificou da sua perfeição moral, dizendo que ele era um “ser santo” já desde o ventre materno (Lc 1.35);

B. JESUS CRISTO FOI LIVRE DO DESEJO DE PECAR Com respeito às tentações internas, que procedem da inclinação pecaminosa, o Redentor foi muito diferente dos seres humanos, que eram como ele, mas eram pecadores. O Redentor foi livre do desejo de pecar. Jesus Cristo não possuía nenhuma inclinação para o pecado – que é conseqüência de uma natureza humana corrompida –, o que o levou sempre a querer coisas santas em sua vida quando esteve entre nós, mesmo vivendo num ambiente permeado de pecaminosidade. Jesus Cristo foi desafiado várias vezes (por Satanás e pelos homens) a desejar alguma coisa que fosse impura, mas ele não foi maculado pelas tentações porque reagiu negativamente a elas. Não havia em Cristo nenhum desejo concupiscente, nenhum desejo que não fosse perfeitamente santo. Ele desafiou os homens a encontrarem nele qualquer coisa pecaminosa, mas nunca os homens puderam ver nele um vestígio sequer de desejos concupiscentes.

C. JESUS CRISTO FOI LIVRE DA PRÁTICA DO PECADO Não somente Jesus Cristo não tinha qualquer inclinação de desejos pecaminosos, mas ele nunca cedeu às tentações externas. Jesus Cristo é sempre apresentado nas Escrituras como aquele que nunca pecou. Há inúmeras passagens que tratam da santidade moral de Jesus Cristo. Há vários testemunhos de seu estado de vida sem pecado:

1. TESTEMUNHO DE ISAÍAS SOBRE A SANTIDADE DE CRISTO Cerca de sete séculos antes do Redentor ser concebido como um dos membros

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da raça humana, o profeta Isaías testificou de antemão da santidade do Servo sofredor, dizendo: “Posto que nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca” (Is 53.9b).

A primeira expressão diz que ele não cometeria nenhuma injustiça. Isso quer dizer que ele não tropeçaria em preceito algum da lei de Deus. Ele seria puro no seu proceder e andaria em retidão absoluta. A segunda expressão, “nem dolo algum se achou em sua boca”, é ainda mais significativa, pois ela aponta para a perfeição do linguajar de Jesus, e que ele não tropeçaria no falar, o que aponta para o fato dele ser varão perfeito. Tiago diz que nenhum homem é capaz de domar a sua língua, que ela é mal incontido, carregado de veneno mortífero (Tg 3.8). Mas Jesus domou a sua própria língua. Eis a razão: “se alguém não tropeça do falar é varão perfeito, capaz de refrear também todo o seu corpo” (Tg 3.2). Jesus é esse tipo de varão perfeito, e a sua perfeição varonil foi vaticinada por profecia do Espírito Santo, setecentos anos antes de sua concepção.

2. TESTEMUNHO DE JOÃO SOBRE A SANTIDADE DE CRISTO O apóstolo João testificou de santidade de Jesus Cristo de maneira inequívoca. “Todo aquele que pratica o pecado, também transgride a lei: porque o pecado é a transgressão da lei. Sabeis também que ele se manifestou para tirar os pecados, e nele não existe pecado” (1Jo 3.4, 5).

João dá a melhor definição de pecado que existe, dizendo que “pecado é a transgressão da lei”, e, nisso, todos nós, os que fomos qualificados como estando em Adão, somos transgressores da lei de Deus. João acrescenta, ainda, que Jesus veio para nos livrar desses pecados dos quais todos participam, mas João faz uma maravilhosa ressalva: todos os homens, exceto Jesus – “e nele não existe pecado”. De onde veio essa convicção de João? Certamente, o que João disse é uma revelação divina, mas ele havia vivido com Jesus alguns anos e sabia perfeitamente quem ele era. Ele havia convivido com Jesus por longos três anos e testemunhado a perfeição absoluta do caráter do seu Redentor. Mais do que todos os outros discípulos, ele havia partilhado da vida íntima do nosso Redentor e comprovado a lisura e a inteireza do seu caráter.

3. TESTEMUNHO DE PAULO SOBRE A SANTIDADE DE CRISTO O apóstolo Paulo testificou da santidade de Jesus, quando disse: “Àquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2Co 5.21).

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A expressão “não conheceu pecado” pode nos levar a um duplo entendimento: O verbo conhecer, no grego, pode conotar não somente a idéia de saber alguma coisa a respeito de algo ou de alguém: pode conotar também a idéia de experiência, e também pode conotar o envolvimento de amor com alguma coisa ou com alguém. O que o Paulo provavelmente está querendo dizer é que Cristo não somente não experimentou o pecado, mas que ele não teve qualquer envolvimento de amor com ele ou não teve qualquer desejo dele, embora soubesse muita coisa a respeito dele. Jesus não desejou o pecado, não teve qualquer sentimento concupiscente em sua santa alma, ainda que soubesse todas as coisas concernentes ao pecado e aos pecadores. A sua pureza com relação ao pecado mostra que ele veio ao mundo para que, por intermédio de sua pessoa e obra, nós pudéssemos não somente ser justificados, mas também pudéssemos um dia andar em retidão de vida, que é o sentido de “para que nele fôssemos feitos justiça de Deus”. Ele foi tratado como pecador (“Deus o fez pecado por nós”) para que pudéssemos ser vistos por Deus como justificados e como aqueles que um dia haveriam de se portar como justos.

4. TESTEMUNHO DE PEDRO SOBRE A SANTIDADE DE CRISTO O apóstolo Pedro também apresenta Jesus com santidade perfeita de uma maneira inequívoca, em dois lugares de suas cartas. “... sabendo que não foi mediante cousas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo” (1Pe 1.18, 19).

No texto acima Pedro nos ensina algumas coisas: (1) que os nossos pecados são resultado de uma herança que recebemos de nossos pais; (2) que não podemos ser resgatados dessa herança maldita por cousas corruptíveis, como prata ou ouro; (3) que somente alguma cousa incorruptível, ou seja, com sangue de Alguém que é absolutamente puro, sem mancha ou defeito, é que pode livrar-nos da maldição divina e trazer-nos purificação. Essa última referência certamente Pedro retirou do seu conhecimento do Antigo Testamento. Ele se reportou ao tipo de Cristo na instituição da primeira páscoa judaica. Nessa instituição pascal, Deus diz que o cordeiro a ser sacrificado para a libertação do povo do anjo da morte deveria ser sem defeito [físico] qualquer (Êx 12.5). Deus nunca aceitou que os sacerdotes oferecessem um sacrifício de alguma coisa que não fosse perfeita (Ml 1.8-11). Esse cordeiro sem defeito físico é tipo do Cordeiro de Deus, que é sem mácula, sem defeito, e essa qualificação é de caráter moral. O segundo texto de Pedro aponta para a santidade de Cristo que deve ser seguida pelos discípulos dele.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR “Porquanto para isso mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos, o qual não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua boca, pois ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje, quando maltratado não fazia ameaças, mas entregava-se àquele que julga retamente, carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos aos pecados, vivamos para a justiça; por suas chagas fostes sarados” (1Pe 2.21-25).

Esse texto de Pedro aponta para Cristo como modelo dos crentes. Estes devem ser como Aquele. Esse é o ensino dos versos precedentes. Somos chamados para sermos co-participantes dos sofrimentos de Cristo, pois ele sofreu por ser justo. Ele foi esbofeteado e suportou pacientemente (vs. 18-20). Os que seguirem as pegadas de Jesus Cristo também haverão de ser perseguidos, esbofeteados, e devem aprender a se portar como o seu Mestre se portou. Nem mesmo nos procedimentos com relação à perseguição dos incrédulos ele não cometeu pecados. Jesus Cristo é o sinete da perfeição. O texto diz ainda que “nem dolo algum se achou em sua boca”. Essa é uma citação de Isaías 53, que Pedro usa para reforçar a sua idéia da santidade de Jesus Cristo. O verso 23 dá exemplos dos pecados que ele não cometeu: “Quando ultrajado, não revidava com ultraje, quando maltratado, não fazia ameaças”. Ele tinha direito de fazer ameaças, pois era também Deus, mas, mesmo quando ele tinha direito de abrir a sua boca contra a leviandade dos homens, ele preferiu calar-se para não dizer nada que pudesse conotar injustiça. A sua mansidão ficou patente quando foi dito que ele “entregava-se àquele que julga retamente”.

5. TESTEMUNHO DO AUTOR DE HEBREUS SOBRE A AANTIDADE DE CRISTO O escritor aos Hebreus talvez seja o mais pródigo na afirmação da santidade de Jesus Cristo, pois usa o método do contrate para ensinar suas lições sobre a santidade de Jesus Cristo. “Tendo, pois, a Jesus, o Filho de Deus, como grande sumo sacerdote que penetrou os céus, conservemos firmes a nossa confissão. Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, antes foi ele tentado em todas as cousas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.14, 15).

O testemunho desse autor sacro é visto quando ele contrasta a falibilidade e a pecaminosidade dos sacerdotes terrenos e a infalibilidade e a santidade daquele que havia vindo de Deus. Os sacerdotes da antiga dispensação compadeciam-se das fraquezas dos homens, mas nada se compara ao sentimento que Jesus Cristo teve por nós. O autor

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sacro o chama de “grande sumo sacerdote”, elevando-o a uma posição muito superior aos sacerdotes unicamente humanos. O nosso grande sumo sacerdote é chamado de “Filho de Deus” e fez muito mais do que penetrar o véu do lugar santíssimo. Ele penetrou os céus e faz intercessão por nós. A distinção do “grande sumo sacerdote” é que ele se compadece extremamente de nós em virtude de ter experimentado as tentações e é poderoso “para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18). Em tudo ele é semelhante a nós, possuindo tudo o que é próprio e essencial de um ser humano. Todavia, diferentemente de nós, ele é sem pecado. É isso o que o torna o grande sumo sacerdote, pois é o Filho de Deus – o que o difere enormemente dos outros sumo sacerdotes, falíveis e impuros. Jesus Cristo é cheio dos sentimentos de nossas dores de modo que ninguém mais pode ser. Nenhum sacerdote humano pode condoer-se por nós como Jesus. Ele suportou as aflições todas que um ser pecador pode suportar, e o fez por sua compaixão por pecadores como nós, simpatizando-se com as nossas aflições. O que mais me admira é que ele soube ser compassivo sendo sem pecado. Portanto, é possível viver uma vida limpa e, ainda, ter compaixão de pecadores e compadecerse deles nas suas fraquezas. “Portanto, se o sangue de bode e de touros, e a cinza de uma novilha, aspergida sobre os contaminados os santifica, quando à purificação da carne, muito mais o sangue de Cristo que, pelo Espírito Eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas para servirmos ao Deus vivo!” (Hb 9.13, 14).

Aqui, o autor de Hebreus faz um contraste entre o que é passageiro e o que é eterno, entre o que é das coisas mortas e o que é das coisas das coisas vivas, entre o que é da adoração externa e o da adoração interna. O autor de Hebreus, nesse texto, fala dos rituais de purificação estabelecidos no Antigo Testamento, quando o sangue de bodes e de touros (assim como a cinza da novilha) era aspergido sobre os imundos, visando a sua purificação cerimonial. O que o autor está contrastando é o seguinte: se existe purificação nas coisas terrenas, passageiras, e cerimoniais, muito mais purificação haverá quando Aquele que é absolutamente santo se oferece sem mácula para a purificação das consciências, a fim de que elas venham adorar o Deus vivo! Essa é novamente uma referência indireta ao texto de Êxodo 12, onde há a referência ao cordeiro sem mácula, o tipo perfeito do perfeito Cordeiro. “Assim também Cristo, tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação” (Hb 10.28).

O contraste aqui é com a transitoriedade e com a multiplicidade dos sacrifícios oferecidos pelos sumo sacerdotes.

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Jesus Cristo, o Sumo Sacerdote, não teve de fazer sacrifícios muitas vezes, ano após ano, como faziam os outros sumo sacerdotes (v. 25). Ele ofereceu sacrifício de uma vez por todas, para aniquilar o pecado pelo sacrifício do Cordeiro, que era ele próprio (v. 26). Todos os homens de quem Cristo não levou os pecados terão de enfrentar a morte por uma questão do decreto divino, pois “está ordenado aos homens morrerem uma só vez” (v. 27), mas aqueles por quem Jesus Cristo morreu não enfrentam a morte como pagamento de penalidade de seus pecados, pois a morte de Cristo foi “para tirar os pecados de muitos”. Esse que tirou os pecados de muitos vai aparecer novamente, nas nuvens do céu, do mesmo jeito que subiu, em santidade, e vai voltar em santidade, isto é, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação. A santidade de Jesus Cristo será vista plenamente pelos seus quando a redenção deles se completar, e será vista plenamente pelos outros quando a condenação deles se efetivar na sua vinda.

6. TESTEMUNHO DO PRÓPRIO CRISTO SOBRE SUA SANTIDADE O próprio Jesus claramente testificou de sua vida sem a mancha de pecado:

a. Reivindicação de santidade perante os homens Jesus reivindicou sua santidade perante os homens que queriam encontrar nele alguma pedra de tropeço. “Quem dentre vós me convence de pecado? Se vos digo a verdade, por que razão não me credes?” (Jo 8.46).

Os escribas e fariseus eram os inimigos mais impertinentes que Jesus possuía. Eles sempre estavam à espreita para pegar Jesus em alguma falta. Os judeus alegavam que Deus era o Pai deles, mas odiavam Jesus, que dizia ter vindo de Deus (v. 42). Eles eram incapazes espiritualmente de compreender os ensinos de Jesus (v. 43), que os acusava de serem filhos do diabo e de obedecerem a ele (v. 44). Embora o texto não registre, é provável que os judeus tivessem dito que Jesus Cristo é mentiroso e que ele era pecador (como disseram dele em João 9.24), mas Jesus desafiou-os a encontrarem nele alguma coisa relativa ao pecado. Esse verso acima mostra a irrazoabilidade da incredulidade dos judeus. Se Jesus tivesse pecado, eles teriam razão de não crer, mas eles não tinham condição de convencê-lo de pecado. Portanto, pela lógica, eles deveriam crer em Jesus. Um pregador de falsas doutrinas seria descoberto logo em seus erros (Dt 13.2), ou em virtude de seu comportamento falho. Na verdade, os judeus chamaram Jesus de comilão, glutão, beberrão, blasfemo, mas eles nunca puderam convencer ninguém desses erros de Jesus, porque este era realmente santo, e eles eram totalmente injustos nas suas alegações contra Jesus. Eles simplesmente não podiam encontrar qualquer pecado em Jesus porque ele era realmente impoluto.

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O pecado que eles queriam provar em Jesus era o de que ele ensinava uma doutrina inconsistente. Jesus os desafiou a mostrar qualquer inconsistência em seu ensino, e eles não conseguiram. Jesus não tem o pecado da inconsistência lógica, moral ou espiritual. Portanto, não encontrando nenhuma inconsistência em Jesus por causa de sua santidade, eles deveriam crer nele, mas, por causa da sua morte espiritual, eles não podiam crer. Essa era uma capacidade que lhes faltava (v. 4143). Portanto, diante dos homens, Jesus tinha passado no teste da santidade. Agora faltava mostrar aos homens que, diante de Satanás, ele também passaria. Veja o texto abaixo.

b. Reivindicação de santidade em relação ao diabo No verso a seguir, Jesus Cristo tem consciência muito clara de que uma batalha estava por acontecer entre si e Satanás. “Já não falarei muito convosco, porque aí vem o príncipe do mundo; e ele nada tem em mim” (Jo 14.30).

No começo dos evangelhos de Mateus e Lucas há a narrativa da tentação de Jesus. Depois de Jesus vencer a tentação, o evangelista diz que o diabo o deixou por um pouco de tempo. Agora, Jesus antevê Satanás voltando à carga. “Aí vem o príncipe deste mundo”. Ele não abandonou Jesus Cristo para sempre. Deu apenas uma pausa na tentação, e agora voltaria a investir toda sua força contra a santidade do Redentor. É como se Cristo dissesse: “Mas agora eu o vejo se arregimentando novamente, preparando-se para fazer uma investida furiosa, e, assim, tentar ganhar pelos terrores aquilo que ele não pode ganhar pela sedução”.402 Deve ser observado também que Jesus vaticina a sua vitória sobre a investida de Satanás, e a sua vitória está ligada à sua santidade. Nada do que Satanás pudesse lhe fazer daria dividendos a Satanás, porque a santidade de Jesus elimina essa possibilidade. Jesus disse: “Ele nada tem em mim”. Se me é permitido o uso de expressões populares, eu interpretaria o que Jesus disse da seguinte maneira: “Ele não pode tirar farinha comigo”. Isto é, a impiedade e a mentira não poderiam fazer nada contra a piedade e a verdade. Nesse verso, Jesus Cristo está dizendo que não havia comunhão ou harmonia entre o modo de Satanás trabalhar e o modo de Jesus trabalhar. Um era da mentira e o outro era da verdade. O procedimento de Jesus Cristo é sempre de acordo com a santidade de sua humana que é derivada (não comunicada) da natureza divina por causa da união com ela.

402. Matthew Henry, An Exposition of the New Testament, vol. II (Londres: James Nisbet and Co., 1857), 275.

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D. JESUS CRISTO PODERIA TER PECADO? Embora haja afirmações claríssimas como as que foram ditas acima sobre a santidade de Jesus Cristo, ainda permanece a pergunta: Todos os evangélicos, sem exceção, crêem que Jesus Cristo não pecou, mas a pergunta que incomoda a academia evangélica é: era ele passível de pecado? Haveria a possibilidade de que ele pecasse? Com respeito a essa pergunta, tem havido duas posições básicas e antagônicas na história da Igreja: (1) uns afirmam que Jesus Cristo era passível de pecar e (2) outros afirmam que ele não era passível de pecar. A posição da pecabilidade de Jesus Cristo parece ter apoio na frase latina posit non peccare (podia não pecar), dependendo de quem a interpreta. Como veremos adiante, alguns teólogos de certa proeminência no cenário teológico adotaram essa posição. Todavia, a posição deste autor é que, com base no ensino geral das Escrituras com relação à pessoa do Redentor, Jesus Cristo não era passível de cometer pecado. Ele, portanto, possuía a impecabilidade, que é expressa na frase latina non posit peccare (não podia pecar). Como já foi ventilado rapidamente acima, trataremos da impossibilidade do Redentor pecar porque ele possui uma natureza divina. Essa Pessoa teve acrescida sobre si uma natureza humana (que, se pudesse estar isolada e independente da outra natureza, concederia possibilidade de pecado em Jesus Cristo). Todavia, essa Pessoa não somente não era manchada pelo pecado, como não poderia ser manchada por ele. Portanto, a natureza humana de Jesus Cristo, que o torna sujeito à tentação, não traz a possibilidade de ele ser sujeito ao pecado. Essa Pessoa não poderia pecar em hipótese alguma. Aquele que não conheceu pecado não poderia conhecer o pecado. Ele nada tinha a ver com o príncipe deste mundo, que o tentou sobremaneira. Não havia algo, dentro ou fora de Jesus, que pudesse levá-lo a pecar. Deus não deu a Jesus Cristo o que havia dado ao primeiro Adão, a saber, a possibilidade de agir de forma contrária à sua natureza santa. Se o fizesse, Deus daria a Cristo a possibilidade de deixar de ser aquilo que desde o ventre materno ele foi: um ente santo (Lc 1.35), e ele não poderia ser o objeto de nossa santa adoração. Afirmamos a importância desse assunto, que devemos estudar com bastante profundidade. É de vital importância para a nossa teologia que Jesus Cristo tenha vivido neste mundo sem pecado, pois somente essa condição poderia fazer com que a morte de Jesus pudesse ser aceita como a nossa morte ou que ele pudesse ser o nosso substituto, cumprindo, assim, o plano redentor de Deus para os seres humanos que ele decidiu salvar. A importância de Jesus ter vivido sem pecado é que, se isso não acontecesse, ele não poderia ser aceito por Deus. Se Jesus tivesse morrido também pelos seus próprios pecados, ele não poderia morrer no lugar de ninguém mais. Não haveria expiação vicária. Ele estaria apenas pagando a sua própria penalidade.

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Todavia, não é bastante afirmar que Jesus Cristo tenha vivido sem pecado. A Bíblia é absolutamente clara a respeito desse assunto. A grande questão debatida entre os teólogos é se ele poderia ter pecado se quisesse. Essa posição é chamada de pecabilidade de Jesus Cristo. Do lado contrário, estão aqueles que defendem a impecabilidade dele, isto é, aqueles que crêem de forma nenhuma ele poderia pecar. Esses dois pontos de vista são defendidos por estudiosos importantes no cenário teológico evangélico. O autor deste livro esposa com toda a convicção a segunda teoria, como veremos adiante, por julgá-la melhor fundamentada no ensino geral das Escrituras.

RAZÕES TEOLÓGICAS ALEGADAS PELOS DEFENSORES DA PECABILIDADE DE CRISTO Este livro não seria razoável se não analisássemos os argumentos daqueles que se posicionam contrariamente à impecabilidade de Jesus Cristo, que defendemos nestas páginas. Os defensores da pecabilidade de Cristo crêem que ele não pecou, mas que ele poderia pecar se quisesse. Vejamos, portanto, alguns dos argumentos, vindos dos mais variados círculos teológicos dentro do Cristianismo.

A. A PECABILIDADE DE JESUS CRISTO ERA POSSÍVEL POR CAUSA DAS TENTAÇÕES A doutrina da pecabilidade de Jesus Cristo tem os seus defensores até mesmo dentro dos círculos reformados. O grande teólogo presbiteriano de Princeton, Charles Hodge, tem sido considerado como aquele que sumariza o pensamento sobre a pecabilidade de Jesus Cristo, sendo um defensor dela: Em sua Systematic Theology, Hodge nega de modo claro a impecabilidade do Redentor. Ele diz: “A impecabilidade de nosso Senhor não conta como sendo uma impecabilidade absoluta. Ela não era uma non potest peccare. Segundo ele a tentação implica necessariamente na possibilidade de pecar. Se da constituição de sua pessoa era impossível para Cristo pecar, então sua tentação é irreal e sem efeito, e ele não pode simpatizar-se com o seu povo”403

O raciocínio dos defensores da pecabilidade de Jesus é o seguinte: Se uma pessoa não possui susceptibilidade ao pecado ou se o pecado não tem nenhum apelo à pessoa, então a tentação é uma farsa. Portanto, se Jesus não era capaz de cair em pecado, então ele não era verdadei403. Systematic Theology, vol. II, 457.

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ramente humano, porque tanto a tentabilidade como a pecabilidade são parte do ser humano enquanto aqui neste mundo.404 A Bíblia afirma claramente que Jesus foi levado pelo Espírito para ser tentado pelo Diabo. Ele ficou durante 40 dias e 40 noites sujeito às várias tentações. Será que as tentações de Jesus foram tentações reais? O argumento dos defensores da pecabilidade de Jesus é: “Se era impossível para Jesus pecar, então as tentações não foram reais. Elas foram apenas simulacro de tentações”. Freqüentemente os defensores da pecabilidade usam o texto de Hebreus 4.15 – “... antes foi ele tentado em todas as cousas, à nossa semelhança, mas sem pecado”. Para eles, a veracidade da tentação levanta a possibilidade de se cair na tentação. Se ele foi tentado em todas as cousas (como todos os outros seres humanos), embora ele não tenha pecado, certamente ele poderia pecar, se quisesse. Na conta deles, é uma farsa alguém ser tentado e não poder pecar! Um outro texto usado pelos defensores da pecabilidade é o de Hebreus 2.18, que diz que “ele mesmo sofreu, tendo sido tentado”. A experiência de sofrimento de Jesus Cristo na tentação seria invalidada se ele não tivesse a possibilidade de ceder à tentação. Como poderia Cristo ter sofrido na tentação se ele não poderia cair debaixo de tentação? Na conta deles, o sofrimento na tentação só é possível quando se tem a possibilidade de cair. Aqueles que insistem na doutrina da impecabilidade, na conta deles, não podem tratar dos textos mencionados logo acima. Nosso Senhor não pode ajudar alguém que é tentado se ele não é passível de cair. A força do argumento está na vitória sobre o pecado quando ele poderia cair diante da tentação. Uma tentação somente é verdadeira quando existe a possibilidade de pecar. Ser tentado a fazer algo que é errado indica para a possibilidade do pecado ser feito. Ser “tentado” a fazer algo que é impossível de ser feito é uma espécie de farsa, diriam os defensores da pecabilidade de Jesus Cristo. Uma outra faceta que é levada em conta pelos defensores da pecabilidade de Jesus Cristo é a inteligência de Satanás. Satanás não seria estúpido em tentar Jesus sabendo que ele não poderia pecar. Satanás o tentou porque sabia que ele poderia cair. Ficaria sem sentido a tentação de Satanás se Jesus não pudesse cair do seu estado de santidade. Satanás não gastaria tempo se soubesse que Jesus não poderia atender aos seus apelos. Ele sabia que Cristo poderia fazer as coisas que ele sugeriu. Do contrário, não faz sentido tudo o que Satanás sugeriu durante toda a vida de Jesus Cristo.

404. Sobre a tentabilidade, veja o capítulo especial.

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B. A PECABILIDADE EM JESUS É POSSÍVEL POR CAUSA DE SUA HUMANIDADE Esse segundo argumento, que supostamente dá apoio à pecabilidade de Jesus Cristo, repousa sobre o fato dele ser humano. Na verdade, há duas falácias nesse argumento. A primeira falácia é que ela falha em reconhecer que, conquanto Jesus fosse um verdadeiro homem, ele também era verdadeiro Deus. Havia a união das naturezas na unio personalis. Todavia, mesmo sendo um homem, Jesus nunca deixou nenhum dos seus atributos divinos, mas os reteve a todos, mesmo enquanto esteve entre nós. Ele nunca ficou desprovido de um só deles, embora nem sempre possamos vê-lo manifestando-os, pois ele abriu mão de usá-los de maneira abundante enquanto estava aqui no seu estado de humilhação. Apenas à guisa de recapitulação, vou repetir o argumento: ele seria passível de pecar porque era um homem real. A sua humanidade é que realmente tornaria possível o pecado. A contra-argumentação seria a seguinte: se isso é verdade, então devemos fazer uma pergunta: é Jesus Cristo ainda um homem real hoje? Sim, seria a resposta de todos os cristãos. O seu estado glorioso atual retira dele a sua humanidade? Certamente que não. Portanto, eu poderia dizer que ainda é possível que ele venha a pecar. Obviamente, nenhum defensor da humanidade de Jesus Cristo concordaria com essa argumentação, mas apenas fiz uso do raciocínio lógico e autorizado pela Escritura. Como decorrência, podemos ver que a capacidade para pecar não é uma parte necessária da humanidade do Redentor. Provavelmente as pessoas argumentam assim porque, quando é dito que ele é um homem real, elas querem dizer que ele é igual a nós, inclusive na capacidade de pecar. Embora a Escritura diga que ele seja um homem real, ela elimina a possibilidade de que ele peque. Ele não é um homem caído. Além disso, a sua natureza humana é inseparável da sua natureza divina, e isto inviabiliza o pecado. Jesus era homem como qualquer um de nós, naquilo que o ser humano tem de essencial. Em sua divindade, ele era tão pleno nos atributos quanto seu Pai. Todavia, não podemos nos esquecer de que ele era uma só personalidade, uma personalidade com duas naturezas unidas inseparavelmente. A segunda falácia do argumento acima falha em ver que o Redentor era primeiramente Deus, a Segunda Pessoa da Trindade, que assumiu a natureza humana. Ao se fazer carne, o Verbo não diminuiu a sua divindade, mas teve acrescida sobre si uma natureza humana. Embora tenha sido perfeitamente homem, ele manteve o seu atributo divino da santidade. Esse atributo o fazia forte bastante para assegurar não somente que ele poderia evitar e o pecado, mas também para assegurar que ele nunca poderia pecar. A vontade divina pertencente a Cristo é que era determinante. A natureza santa e a vontade do Verbo impediam que o Redentor pudesse pecar.

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C. A PECABILIDADE EM JESUS É POSSÍVEL POR CAUSA DA SUA LIVRE ESCOLHA Esse argumento possui um ranço de libertarismo. Alguns crêem que Cristo não pecou simplesmente porque ele fez as escolhas certas. Essa é uma tentativa de se refutar a doutrina da depravação total, especialmente o aspecto da transmissão hereditária da corrupção do pecado. Jesus Cristo não seria em nada diferente do que nós somos. Ele simplesmente resolveu exercer o seu livre arbítrio não pecando. O poder de escolha dele, exercido de maneira correta, foi que o levou a não errar. Diferentemente, os outros homens não exerceram esse poder corretamente, e, por isso, pecaram. Ao colocar os nossos primeiros pais no paraíso, Deus os fez à sua imagem e semelhança (Gn 1.26), e uma das características dessa imagem é capacidade de escolher fazer o certo ou o errado. Essa capacidade de escolha (livre), que comumente é chamada de livre-arbítrio, é uma capacidade essencial do homem. Sem ela, o homem não pode ser o que é. Portanto, se Jesus Cristo era perfeitamente homem, ele tinha de ter a mesma característica essencial com que o primeiro Adão foi dotado. Segundo esse raciocínio, as crianças e os débeis mentais que não podem exercer o seu livre-arbítrio, não são considerados responsáveis diante de Deus por suas ações ou pela ausência delas. Como um homem que era, Jesus Cristo poderia pecar, se ele quisesse. Mesmo os libertários concedem que Cristo possuía duas naturezas, uma oposta a outra. Uma suscetível ao pecado e a outra não. Então, como poderiam as duas naturezas coexistir sem que a divina anule a liberdade da outra? Se a natureza divina impedisse o pecado, como ela não infringiria a liberdade da natureza humana de fazer algo? Se a natureza divina impedisse o pecado, ela estaria negando a humanidade e tirando a liberdade de escolha. Eles admitem que Cristo não pecou, mas ele se portou assim porque ele resolveu não pecar, porque, se ele resolvesse, ele poderia fazê-lo, pois era livre para isso.

D. A PECABILIDADE EM JESUS É POSSÍVEL PORQUE A PRESCIÊNCIA DE DEUS NÃO DETERMINA A IMPECABILIDADE Quando os adversários da impecabilidade de Cristo examinam a doutrina da pecabilidade de Cristo, logo surge a questão da presciência divina. Por presciência divina, eles entendem a capacidade que Deus tem de ver todas as coisas antes que elas aconteçam. Por essa razão, Deus não é pego de surpresa em nada do que acontece neste mundo. Todavia, a presciência nada tem a ver com o decreto divino para que as coisas aconteçam. A presciência não faz com que certamente as coisas venham a acontecer. Deus já sabia que o seu Filho encarnado não haveria de pecar, mas essa pres-

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ciência não determinou o fato de Cristo não pecar. A presciência, para alguns libertários, é o mero conhecimento que Deus tem das coisas antecipadamente, mas esse conhecimento não impediria ou determinaria a ação de Jesus Cristo. Todas as pessoas, inclusive Jesus Cristo, tomam as suas próprias decisões, e o conhecimento antecipado que Deus tem delas não as afeta de modo algum. Os que sustentam esse pensamento para justificar a sua crença na pecabilidade de Jesus Cristo não levam em conta que Deus sabe todas as coisas que certamente vão acontecer porque ele determinou que elas aconteçam. A presciência tem fundamento no seu decreto. A presciência não pode vir à parte do decreto, que os libertários não aceitam. Todavia, alguns deles afirmam a pecabilidade de Jesus Cristo com base numa presciência divina que não afetou em nada as decisões livres que Jesus Cristo tomou de não pecar. Segundo eles, ao invés de não ser capaz de pecar, Cristo resistiu à tentação e a venceu! Ele mostrou o que todos nós podemos fazer quando usamos devidamente o nosso livre-arbítrio. Nós não precisamos pecar se não quisermos. Ele é o exemplo a ser seguido. Nesse sentido, não há diferença alguma entre ele e nós. Deus também sabe antecipadamente todas as nossas decisões, mas essa sua presciência não determina em nada o que vamos fazer. Como Cristo, podemos exercer o nosso livre-arbítrio e não pecar. Como poderíamos seguir a Cristo se ele não é suscetível ao pecado? Porque ele é suscetível ao pecado, embora não o tenha feito, poderemos seguir ao seu exemplo. Nunca poderíamos ser seus seguidores se ele tivesse a capacidade da impecabilidade. Nós, os defensores da impecabilidade de Jesus Cristo, afirmamos não somente que ele possuía a capacidade de não pecar, mas que ele foi tentado como nós e teve lutas e dores nas suas tentações. As suas tentações foram reais e lhe causaram sofrimento (Hb 2.18). Todavia, ele suportou todas as coisas para que pudesse nos socorrer em nossas tentações. Ora, se ele nos socorre, então isso significa que podemos ser vitoriosos no meio da tentação, e um dia não mais pecaremos. Nós nunca poderemos ter a capacidade da impecabilidade, porque não somos divinos como ele, e temos apenas uma natureza – a humana. Todavia, podemos seguir, sim, ao exemplo, andar como ele andou, obedecer como ele obedeceu. Não é a sua pecabilidade que nos torna capazes de imita-lo, mas sim a nossa natureza moral transformada pelo Espírito de Deus. Nas condições atuais, é praticamente uma impossibilidade vivermos sem pecado, mas, quando a restauração terminar, haveremos de obedecer perfeitamente às leis de Deus.

E. A PECABILIDADE EM JESUS CRISTO É POSSÍVEL POR CAUSA DE SEU RELACIONAMENTO COM O PRIMEIRO ADÃO É a sua similaridade relacional ao primeiro Adão que o torna passível de pecar. Ele foi comparado na Escritura ao primeiro Adão. Este exerceu o seu livre-arbítrio

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e pecou. Se Jesus Cristo foi o segundo Adão, ele também teve todas as qualidades e características do primeiro Adão. Os proponentes desse argumento concluem que o segundo Adão também teve a capacidade de pecar. Portanto, Cristo, que é igual a Adão em sua natureza, também poderia ter pecado, se quisesse. Não havia nada na natureza essencial de Jesus Cristo que o impedia de agir como o primeiro Adão agiu. Os defensores desse ponto de vista acima que Cristo, embora fosse um descendente de Adão através de sua mãe, não portou o pecado, a culpa e a natureza má de Adão porque Deus é o seu Pai. Desde o princípio, Deus estabeleceu as coisas de forma que uma pessoa herda as ações do seu pai (Adão). Assim, como Adão pecou e todos os seus “descendentes” pecaram com ele, mas visto que Adão não é o pai de Cristo, o Senhor Jesus não herdou a culpa de Adão. Em suma, Jesus nasceu com uma natureza humana semelhante à de Adão antes da queda.405 Nesse sentido, portanto, por causa da relação entre o primeiro e o segundo Adão, este último tinha exatamente a mesma capacidade de pecar como de não pecar, como o primeiro Adão. Assim como o primeiro Adão recebeu a capacidade de fazer escolhas entre o bem e o mal, assim também o segundo Adão. A diferença entre eles é que o primeiro fez as escolhas erradas, enquanto que o segundo fez as coisas do começo ao fim do seu ministério.

F. A PECABILIDADE DE CRISTO É POSSÍVEL PARA ELE PODER SER O SOCORREDOR DOS QUE SÃO TENTADOS Provavelmente este ponto está ligado ao texto de Hebreus 2.18. No raciocínio dos defensores da pecabilidade de Cristo, se ele não pudesse pecar, ele não seria capaz de identificar-se com os que são tentados. Eles têm receio de que a impecabilidade atribuída a Cristo (especialmente pelos reformados) diminua a humanidade de Cristo porque a possibilidade de pecar é que o torna mais humano. Provavelmente, esse entendimento tem o seu ponto de partida no texto de Hebreus 4.15, onde o escritor diz: “Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, antes foi ele tentado em todas as cousas, à nossa semelhança, mas sem pecado.” No raciocínio dos defensores da pecabilidade de Jesus, esse verso parece sugerir que Jesus experimentou a força da tentação do mesmo modo que nós a experimentamos, sendo inclusive sujeito ao pecado. Todavia, esse verso não está dizendo que Jesus poderia pecar, mas que as suas tentações em tudo foram iguais às dos outros homens. Elas foram reais, e, por causa disso, trouxeram sofrimento ao nosso Redentor. Jesus, sofrendo as coisas que nós sofremos (e muito mais até, porque ele era santo!), foi preparado para ser 405. Esses aspectos podem ser vistos com mais detalhes na obra de Timothy S. Morton, More Than Forgiven (Sutton, WV: Morton Publications).

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o socorredor dos que são tentados, mas isso não significa que ele fosse sujeito à queda, como os outros homens. A impecabilidade de Jesus não elimina o seu preparo para poder socorrer outras pessoas. O fato de ele sentir que as tentações eram fortes (e muito fortes!) não significa que ele tivesse a possibilidade de pecar. Um sumo sacerdote como Jesus, não precisava ser suscetível ao pecado para poder aprender pelo sofrimento a como socorrer os que são tentados. A luta que ele teve com Satanás não faz dele alguém sujeito a cair, embora nunca tenha caído. A força da tentação não depende da susceptibilidade à queda. O nosso sumo sacerdote, embora suscetível à tentação em razão da sua humanidade, teve de aprender a socorrer tentados, mas isso não o torna suscetível ou vulnerável ao pecado. Ele possuía uma resistência infinita ao pecado por causa da sua natureza humana. Deus seja louvado porque ele é o grande sumo sacerdote, socorredor de nossa alma! Por ser um homem perfeito, ele estave sujeito à tentação, mas, por ser ele também um Deus perfeito, ele não estava sujeito à queda. Por causa da união das duas naturezas, o Redentor possuía uma força moral infinita e não podia pecar. Por isso, tornou-se poderoso para socorrer os que são tentados!

G. A PECABILIDADE DE CRISTO É POSSÍVEL PORQUE ELE PRÓPRIO A AFIRMOU Em seu livro The Person of Christ, Berkouwer escreveu um capítulo intitulado “The Sinlessness of Christ” (que poderia ser entendido como a idéia de Jesus não ter tido pecado). Nesse capítulo ele parece apresentar três argumentos em favor da pecabilidade de Jesus.406 É provável que esses argumentos sejam exclusivos de Berkouwer, pois não os li em nenhum outro livro sobre Cristologia. Abaixo segue uma forma resumida desses três argumentos de Berkouwer em favor da pecabilidade de Cristo, e sua respectiva base bíblica.407

1. O PRIMEIRO ARGUMENTO DE BERKOUWER O primeiro argumento centra-se nas palavras de Jesus Cristo, onde ele próprio teria dito alguma coisa que lembrava a sua possibilidade de pecar. Em Lucas 18.19 Jesus diz: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um só, que é Deus” (cf. Mc 18.19 e texto similar de Mt 19.17). No entendimento de Berkouwer, a pecabilidade de Cristo está mostrada nessae texto, porque “as pessoas haviam inferido que o próprio Cristo não partiu de sua 406. Não se esqueça de que Berkouwer também é um escritor reformado, mas do continente, da Holanda, que tendeu, mais no final de sua vida, para uma espécie de neo-barthianismo. Ele tem vários bons livros na área de teologia sistemática que ainda não foram traduzidos para a nossa língua, que são muito úteis para os estudiosos de teologia dogmática. 407. O resumo acima é retirado do livro de G.C. Berkouwer, The Person of Christ (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1954), 242-267.

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absoluta impecabilidade (sinlessness) ou santidade, mas colocou-se na posição de seres humanos pecaminosos”.408 Certamente esse argumento observado por Berkouwer é muito pobre. Jesus não estava defendendo a sua impecabilidade aqui, mas estava questionando o elogio “bom mestre”, porque ele sabia que os judeus (inclusive o moço rico) não o consideravam como sendo o próprio Deus. Além disso, o título “bom” não deveria ser usado de modo indiscriminado e fortuito, especialmente por aqueles que se aproximavam de Jesus descrendo de sua divindade. Por isso, ele disse que somente Deus era bom.

2. O SEGUNDO ARGUMENTO DE BERKOUWER Um outro texto onde as palavras de Jesus, no entendimento de Berkouwer, parecem sugerir a possibilidade de Jesus poder ter pecado é o registro de se seu batismo. Na narrativa que Mateus faz do incidente, João Batista reconhece a santidade de Cristo e tenta evitar batizá-lo, mas Jesus o convence (Mt 3.15).409 Daí o segundo argumento é inferido. Veja o raciocínio: se Jesus possuía o atributo da impecabilidade, por que ele quereria ser batizado no batismo de arrependimento pregado por João?410 Na verdade, para Berkouwer, Jesus submeteu-se ao batismo de João unicamente para obedecer aos preceitos da lei divina. Para Berkouwer, Jesus Cristo “em nada foi distinto de outras crianças do seu povo. Ele foi nascido de uma mulher, e nascido debaixo da lei”.411 Em outras palavras, Jesus estava apenas sendo um bom judeu, como outros judeus do seu tempo. Ele estava, ao ser batizado, apenas observando preceitos e regras. Berkouwer crê que Jesus não pecou, mas deixa aberta a porta para a possibilidade de que ele pecasse, por isso aceitou ser batizado como qualquer outro judeu, obedecendo as regras da religião judaica. Se não obedecesse a esses preceitos, poderia ser condenado pelos judeus e banido de suas funções. Entretanto, podemos ficar certos de que o batismo pelo qual Jesus passou nada tem a ver com a sua possibilidade de pecar.

3. O TERCEIRO ARGUMENTO DE BERKOUWER A terceira abordagem singular de Berkouwer sobre a pecabilidade de Jesus está baseada em Hebreus 5.7, 8. Nessa passagem lemos que “Jesus aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu”. 408. Ibid., 242. 409. O diálogo entre Jesus e João Batista em Mateus (Mt 3.15) não é registrado na narrativass de Marcos ou Lucas. 410. Berkouwer, The Person of Christ, 244. 411. Ibid., 245.

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Conforme o pensamento de Berkouwer, algumas pessoas têm sido levadas a questionar se houve “um estágio no qual Cristo não havia sido ainda obediente... um estágio ante-datando a obediência de Cristo.”412 Para Berkouwer, Cristo foi obediente no sentido em que ele aceitou a vontade divina e aceitou a vontade do Pai. Essa passagem não diz respeito à totalidade da vida de Cristo, mas simplesmente diz respeito a um episódio. Portanto, ela não pode ser indicativa da teoria da pecabilidade de Jesus Cristo. Em suma, podemos concluir, de forma resumida, os argumentos usados pelos defensores da pecabilidade de Jesus, da seguinte forma: 1) Por ter uma verdadeira natureza humana Jesus tinha de ser capaz de pecar; 2) Por ter sido realmente tentado como o homem é tentado, Jesus tinha de ser capaz de pecar; 3) A tentabilidade exige a susceptibilidade ao pecado; 4) Se Jesus foi um verdadeiro homem, ele tem que ter sido capaz de pecar, porque pecar é parte da condição humana; 5) Se Jesus foi realmente um segundo Adão, ele tem que ter sido capaz de pecar; 6) A afirmação em Lucas 18.19, em Marcos 10.18 e em Mateus 19.17 (“Ninguém é bom senão um, que é Deus”) sugere que Jesus teria sido capaz de pecar; 7) Que o batismo de Jesus, feito por João, sugere que Jesus era capaz de pecar; 8) Que a passagem bíblica de Hebreus 5.7, 8 sugere que Jesus não tenha sido sempre obediente, e, portanto, era capaz de pecar. Portanto, podemos concluir que não há qualquer argumento forte na Escritura que dê base para a a crença na pecabilidade de nosso Redentor. Passamos, a seguir, às objeções feitas aos argumentos dos defensores da pecabilidade de Jesus Cristo.

OBJEÇÕES À DOUTRINA DA PECABILIDADE DE CRISTO Não obstante os argumentos apresentados pelos defensores da pecabilidade de Cristo, há algumas objeções sérias que podem e devem ser analisadas:

A. AQUELES QUE ENSINAM A PECABILIDADE DE CRISTO DIZEM QUE ELE É MENOS DO QUE DEUS Aqueles que reivindicam a pecabilidade de Jesus Cristo são forçados a admitir que Jesus Cristo é menos do que Deus, pois a Escritura afirma categoricamente que Deus não pode pecar, e que nem pode sequer ser tentado. Quando foi tentado por causa da sua humanidade, Jesus Cristo apelou para a Escritura e disse: “Não 412. The Person of Christ, 247.

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tentarás ao Senhor teu Deus” (Lc 4.). Ele apelou para a Escritura porque considerou-se Deus, e em nenhum sentido menor do que Deus, mesmo quando encarnado. Deus não pode pecar. O pensamento de que ele era capaz de pecar é um atentado à sua grandeza. Como Deus que é, ele não pode ser induzido a fazer o que seja contrário aos atributos que revelam o seu caráter santo. A natureza humana de Jesus Cristo nunca existiu à parte de sua união com a Pessoa divina do Filho eterno. Se Jesus Cristo tivesse a capacidade de pecar, a Pessoa divina teria a capacidade de pecar. A natureza humana do Filho de Deus unida à sua natureza divina elimina qualquer conceito de pecabilidade (Lc 1.35).413

B. AQUELES QUE AFIRMAM A PECABILIDADE DE CRISTO AFIRMAM A POSSIBILIDADE DE CONFLITO ENTRE AS SUAS DUAS NATUREZAS SANTAS Por causa da unio personalis, Jesus Cristo possuía duas naturezas: a divina e a humana. Segundo a Escritura, as duas naturezas são santas. A natureza divina possui uma santidade essencial que é imutável em sua natureza; a natureza humana teve de ser santa para estar unida à natureza divina, e, como conseqüência, jamais poderia conflitar com a natureza divina. É uma santidade derivada da primeira. Todavia, os que ensinam a pecabilidade levantam a possibilidade desse conflito em Cristo. Em tudo Cristo foi feito “à semelhança dos homens” (Fp 2.7), mas nunca é dito que ele tenha tido qualquer inclinação para o pecado, pois a sua natureza humana não havia herdado a natureza pecaminosa, nem a sua natureza humana poderia fazer qualquer coisa contrária à santidade em virtude de sua união com a santidade essencial da sua natureza divina. Portanto, e, Cristo, a pecabilidade não é possível.

C. AQUELES QUE ENSINAM A PECABILIDADE DE CRISTO PREGAM UM OUTRO CRISTO Muitas pessoas, no passado e no presente, não possuem uma visão correta do Cristo ensinado nas Escrituras, porque a sua teologia vem carregada de pressupostos que são contrários ao ensino geral das Escrituras sobre a Pessoa do Redentor. Em seu tempo, Paulo já lutava contra erros cristológicos dos crentes de Corinto. Veja o que ele disse: “Porque zelo por vós com zelo de Deus; visto que vos tenho preparado para vos apresentar como virgem pura a um só esposo, que é Cristo. Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim também sejam corrompidas as vossas mentes, e se apar413. W. E. Best, Christ Could Not Be Tempted (Houston, Tx: South Belt Grace Church, 1985), 14.

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tem da simplicidade e pureza devidas a Cristo. Se, na verdade, vindo alguém prega outro Jesus que não temos pregado, ou se aceitais espírito diferente que não tendes recebido, ou evangelho diferente que não tendes abraçado, a esses de boa mente o tolerais” (2Co 11.2-4).

Um ensino corrompido a respeito da Pessoa de Cristo pode afetar grandemente a mente dos homens. Quando isso acontece, os homens podem se apartar das verdades. Paulo menciona a “simplicidade e pureza devidas a Cristo”. De que está Paulo falando? Paulo está falando do ensino de falsos mestres em Corinto, que, à semelhança da serpente, andavam enganando a igreja, corrompendo a mente dos crentes, ensinando-lhes coisas errôneas sobre Cristo. Uma das coisas perniciosas é que eles não davam a Cristo a devida pureza. A palavra grega usada no texto é a(gno/thtoj, que significa “pureza” ou “retidão de vida”. Em outras palavras, Paulo aqui advertiu aos coríntios sobre a pregação de um Cristo apenas humano, sujeito não somente à tentação (o que não é errado), mas também sujeito à queda. Esse ensino apresenta um Cristo falso, e, nesse sentido, podemos dizer que é um ensino de anticristo, pois ensina um conceito falso sobre Jesus Cristo. Sempre houve, na Igreja de Cristo, aqueles que ensinaram falsamente sobre possibilidade de Jesus pecar, isto é, não atribuem a ele a devida pureza ou a incapacidade pecar que lhe é devida em virtude da unio personalis. Os crentes de Corinto estavam sendo enganados sobre esse assunto. Os falsos mestres estavam pregando “um outro Jesus” que não era o Jesus que “nós temos pregado”, argumenta Paulo. Isso acontecia porque os crentes de Corinto facilmente recebiam um “espírito diferente” e “um evangelho diferente”. Essas duas coisas causam o surgimento de um Cristo diferente. Portanto, eu posso deduzir que os mestres que ensinam a pecabilidade de Jesus Cristo ensinam um Jesus diferente do que é apresentado nas Escrituras Sagradas. Entretanto, os mestres da Palavra de Deus não podem comprometer a mensagem a respeito de Jesus Cristo, porque ela é fundamental para a compreensão de todo o processo da salvação. O ensino sobre a pecabilidade de Cristo enfraquece a noção da realeza, do poder e da divindade de nosso Redentor.

D. AQUELES QUE ENSINAM A PECABILIDADE DE CRISTO FACILITAM O APARECIMENTO DE OUTRAS HERESIAS Os defensores da pecabilidade de Cristo freqüentemente (não absolutamente) têm ensinos que são contrários aos ensinos da Santa Escritura. Geralmente um erro não vem sozinho, mas vem acompanhado de outros, pelo simples fato da doutrina ter de possuir coerência. Se errarmos num ponto, teremos de errar em outros para poder haver consistência no que ensinamos. Aqueles que ensinam a pecabilidade têm de crer que Jesus seria capaz de uma escolha contrária à sua natureza. Ele era santo e, para que pecasse, teria de agir de

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modo contrário ao que ele era. Portanto, a pecabilidade em Jesus Cristo obriga o pensamento do livre arbítrio em Cristo, se por livre arbítrio eu quero dizer a capacidade de escolher algo que é contrário à santidade. Todavia, essa capacidade de escolha contrária, o próprio Deus não tem, e ele o deu somente aos anjos (que não eram eleitos) e aos nossos primeiros pais, e a ninguém mais. Aqueles que ensinam a pecabilidade podem estar ensinando a possibilidade de haver em Cristo algum tipo de inclinação para o pecado, que ele venceu. Se é assim, temos de aceitar a idéia de que ele possuía uma espécie de combustível para o pecado em sua natureza (que, nesse caso, não mais seria absolutamente santa). Aqueles que ensinam a pecabilidade de Cristo, para mostrar que Cristo era mais simpático a nós nas suas dores, têm de acrescentar à sua natureza santa uma disposição de pecar, contra a qual ele teve de lutar. Todavia, sabemos que os sofrimentos de Cristo não foram por causa de uma inclinação contra a qual teria lutado, mas pelo fato do santo ser exposto à miséria da tentação. Aqueles que ensinam a pecabilidade de Cristo dizem que, para que ele realmente fosse testado, a tentação teria que realmente apelar para à sua inclinação ao pecado. Se não houvesse essa inclinação, não seria uma prova real. Para justificar a realidade da tentação, eles têm de colocar algum tipo de fraqueza em Cristo, o que o tornaria apenas e unicamente humano. Aqueles que ensinam a pecabilidade de Cristo precisam tornar Cristo mais humano (ainda que ele não tenha cedido à tentação), a fim de que ele possa compadecer-se melhor de nós no meio da tentação. Embora o nosso Redentor seja humano (e disto não podemos abrir mão), temos de lembrar que a Pessoa do Redentor não foi criada, não veio à existência, mas é eterna e imutável. Ela não poderia pecar em hipótese alguma, porque não havia duas pessoas no Redentor, mas uma só, e esta pessoa não se altera, ainda que esteja ligada a uma natureza humana (criada e que, se pudesse existir só e independente, seria) teoricamente passível de mudança. Adão era sujeito à mudança porque ele era criatura de Deus, portanto, mutável por causa de sua finitude. Jesus Cristo não era sujeito à mudança porque ele não é simplesmente um homem. Ele é o Deus que se encarnou. A criação da humanidade de Jesus Cristo está vinculada à encarnação do Verbo, e a sua humanidade não é independente da encarnação. Por causa da sua natureza humana, Jesus Cristo era sujeito à tentação, mas, por causa da unio personalis, o Redentor não poderia pecar. A seguir passamos a analisar as razões teológicas usadas para demonstrar a impecabilidade de Jesus Cristo.

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RAZÕES TEOLÓGICAS PARA A IMPECABILIDADE DE CRISTO Tendo visto as razões alegadas para se mostrar a pecabilidade de Jesus Cristo, partiremos para as evidências bíblicas e teológicas que apontam para a impossibilidade de Jesus pecar, ou seja, defenderemos a impecabilidade de nosso Redentor. Nos círculos reformados, em geral,414 Jesus Cristo é visto como aquele que não somente não pecou, mas que não poderia pecar. O Redentor foi passível de tentação porque possuía natureza humana, mas não podia pecar porque possuía a natureza divina. Non potuit peccare é a frase de Agostinho que caracterizava a existência de Jesus Cristo entre nós. A impecabilidade da natureza humana da Pessoa do Redentor é deduzida de alguns argumentos teológicos e bíblicos:

A. A IMPECABILIDADE DE JESUS É DEVIDA À SUA NATUREZA DIVINA Jesus Cristo foi semelhante a Adão no sentido em que, à semelhança do primeiro Adão, o segundo Adão também foi um representante de indivíduos, uma pessoa pública. Todavia, não se pode dizer que Jesus Cristo tenha sido semelhante em tudo a Adão. Embora o primeiro Adão tenha sido criado puro, ele foi criado mutável, de tal forma que pudesse cair do estado que havia sido criado.415 A mutabilidade é uma propriedade de seres simplesmente criados, de seres que um dia vieram à existência, quando antes não existiam. Mudar é propriedade das coisas criadas, e Adão era uma dessas criaturas. Como Jesus Cristo, Adão era uma pessoa, mas a diferença entre o primeiro Adão e o segundo Adão é que o segundo era uma Pessoa divina, antes de assumir a natureza humana. Essa Pessoa já existia antes de todas as coisas existirem. Nunca houve um tempo em que essa Pessoa não tenha existido. Essa pessoa é o Verbo divino, com natureza divina. Jesus Cristo, por causa de sua natureza divina, era inalteravelmente Deus. Por isso não poderia mudar qualquer coisa que viesse a manchar a sua natureza eterna de pureza. A divindade de Jesus Cristo certamente impedia que a pessoa do Redentor pudesse pecar. O conceito que admite a pecabilidade em Cristo é contraditado pelo conceito histórico da imutabilidade de Deus. Era impossível para Cristo a possibilidade de pecar, porque isso contrariaria qualquer noção da divindade dentro da fé cristã. 414. Já mencionamos que nem todos os reformados creram na doutrina da impecabilidade de Jesus Cristo. Como exemplo, podemos citar Charles Hodge e alguma tendência dessa negação em Berkouwer. 415. Termos usados a respeito de Adão na Confissão de Fé de Westminster, no capítulo sobre o Livre Arbítrio.

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Se Cristo pudesse pecar, haveria alteração essencial nos atributos divinos que lhe eram próprios, como a imutabilidade, por exemplo. Contudo, a Escritura diz que “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e eternamente” (Hb 13.8). Além disso, a possibilidade de pecado em Cristo fere o atributo da eternidade, pois a Escritura diz que ele é desde sempre e vive para sempre (Hb 1.11, 12). Se é impossível que o Verbo tenha pecado na eternidade passada, é também impossível que o Verbo encarnado pudesse pecar no tempo presente. A suscetibilidade à tentação que o Verbo encarnado possui não o torna passível de pecar. Se admitirmos a possibilidade de Jesus pecar, haveremos de roubar dele a sua natureza imutável. Portanto, é impossível que, por causa de sua natureza divina, o Verbo encarnado pudesse ter a possibilidade de pecar.

B. A IMPECABILIDADE DE JESUS É DEVIDA À SUA NATUREZA SANTA 1. A SANTIDADE DA NATUREZA HUMANA DE JESUS CRISTO A santidade de Jesus Cristo é mais do que simplesmente o fato dele ter vivido sem pecado. Há alguma coisa mais profunda que caracteriza a sua santidade. O segundo Adão difere do primeiro Adão (antes da queda) pelo fato possuir a capacidade de não poder pecar. Por causa da união das duas naturezas, a sua natureza humana adquiriu a capacidade de non posse peccare. Os argumentos usados pelos defensores da impecabilidade do Redentor estão fortemente embasados na unio personalis. A impecabilidade é uma conseqüência dessa união sobrenatural e maravilhosamente misteriosa. Contudo, essa sua capacidade de non posse peccare é diferente da dos homens redimidos depois da ressurreição, no estado de glória. Estes últimos não poderão pecar por obra da graça, que os preservará sem pecado, em plena santidade. Se não fora a operação preservadora da graça, a santidade dos homens seria mutável, porque toda criatura tem a propriedade de ser mutável, mesmo em sua santidade. Foi exatamente o que aconteceu no Éden. Adão era santo e, contudo, caiu em pecado. De modo semelhante, os anjos eleitos não pecam mais, mas essa condição em que vivem é produto da eleição que os faz permanecer em santidade. Entretanto, a santidade da natureza humana de Jesus Cristo está vinculada diretamente à unio personalis, como veremos logo à frente.

2. A SANTIDADE DA NATUREZA DIVINA DE JESUS CRISTO Todavia, a santidade de Jesus é diferente da santidade das demais criaturas. A santidade da natureza divina é essencial e imutável por sua própria natureza infinita. A imutabilidade de todos os atributos da divindade também afeta a santidade do Filho de Deus, que é um dos atributos mais característicos da natureza divina.

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Shedd diz que “se o Deus-homem, como Adão, tivesse tido uma santidade que fosse mutável e pudesse ser perdida, seria impróprio falar dele em termos que são aplicáveis somente à santidade imutável de Deus. Ele não seria ‘santo, inculpável, sem mácula, ontem, hoje, e para sempre’.”416 A santidade da natureza humana de Jesus Cristo é derivada, mas ela é inalterável em virtude da unio personalis. Porque a sua natureza humana está unida inseparavelmente à sua natureza divina, ela não pode ser vencida pelo pecado. Por isso, a Pessoa do Redentor possui a capacidade da impecabilidade. A santidade do Redentor é mais do que mera santidade que não pecou, ela é santidade que não deixa pecar.

C. A IMPECABILIDADE DE JESUS É DEVIDA À SUA UNIÃO HIPOSTÁTICA A Pessoa singular de Jesus possui o predicado da impecabilidade por causa da singularidade que a união hipostática (ou união pessoal) lhe traz. Aqueles que tentam mostrar a pecabilidade de Jesus Cristo não dão o devido valor ou ignoram a importância da união das duas naturezas. Quando isolamos uma natureza da outra, abrimos a porta para a entrada do erro. Chafer colocou este assunto de um modo bem claro: “Se isolada e só, alega-se que a humanidade de Cristo, por ser sem apoio, poderia ter pecado contra Deus como fez o primeiro Adão. A falácia enganosa é que a humanidade de Cristo jamais poderia permanecer isolada e sem o suporte de sua divindade. Como em Adão havia apenas uma natureza, ela não poderia permanecer de outra maneira senão isolada e sem suporte. A humanidade de Cristo não estava só, nem poderia estar divorciada de sua divindade, nem poderia jamais estar numa posição de responsabilidade sem envolvimento.”417

Não podemos cometer o erro de isolar as duas naturezas, como se elas agissem independentemente. Fazendo assim, cometemos injustiças e heresias em nossa Cristologia. Temos de acentuar a importância da união das duas naturezas, como veremos adiante, para que façamos justiça ao ensino geral da Escritura sobre a Pessoa teantrópica e singular de Cristo. “A união hipostática deu ao mundo uma Pessoa impecável. Esse atributo de Cristo, observe, não é somente anamartesia, mas impecabilidade. Não é apenas uma matéria de posse non peccare, mas de non posse peccare. Não é suficiente dizer que Cristo não pecou; deve ser declarado inequivocamente que ele não poderia pecar.”418 416. W.G.T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. II, 331. 417. Lewis Sperry Chafer, Teologia Sistemática, vol. I (São Paulo: Hagnos Editora, 2003), 401. 418. Charles Lee Feinberg, Bibliotheca Sacra, XCII, 422, 23.

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Além disso, não podemos pensar que, na união das duas naturezas (a divina e a humana), ambas controlam igualmente o Redentor. É característica da fé reformada crer que a natureza divina de Jesus Cristo comanda e é dominante em sua pessoa, pois a natureza divina é precedente à humana, e a Pessoa divina do Verbo com a sua natureza divina são eternas. Todas as faculdades da alma humana de Jesus Cristo, ou seja, a sua inteligência humana, as suas afeições humanas e a sua vontade humana, são sujeitas à mente divina, às afeições divinas e à vontade divina. Elas nunca agem de modo independente das contrapartes divinas. Todavia, ambas as naturezas do Redentor são colocadas juntas de uma forma inescrutável, inseparável e imutável formando uma única personalidade. Na união pessoal é importante ser lembrado que não foi a natureza humana que assumiu a natureza divina. Esta última tem precedência porque foi a Segunda Pessoa da Trindade, com natureza divina, que assumiu a natureza humana. A Escritura diz que “o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1.14). Há uma enorme diferença entre as duas naturezas do Redentor. O Verbo era eterno e não veio a existir a partir da Maria. Ele manteve-se a mesma pessoa ao encarnar-se. A humanidade veio a fazer parte dessa Pessoa divina após a encarnação. Essa é a união hipostática miraculosa que torna impossível em Jesus Cristo a possibilidade de pecado. Foi o Filho eterno, em co-igualdade, em co-eternidade e em co-existência que assumiu a nossa semelhança em todas as coisas, inclusive na possibilidade de ser tentado. Todavia, por causa da Divindade e da união hipostática, embora pudesse ser tentado, havia a impossibilidade de haver a queda de nosso Redentor. Era a natureza humana de Jesus Cristo que era conforme a semente de Davi, por isso Paulo diz que “com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi” (Rm 1.3). O reverso seria impossível. Não haveria modo algum de um homem, da descendência de Davi, ter se tornado Filho de Deus. Ele já era Filho de Deus, pois este é eterno, e poderia, portanto, por causa da encarnação, tornar-se a semente de Davi segundo a carne. Na união dessas duas naturezas foi que Deus, o Filho, tornou-se homem, em vez de um homem ter se tornado Deus (Fp 2.5-8). Deus foi manifesto em carne, não o homem manifesto em Deus (1Tm 3.16). Essa manifestação divina aconteceu na união das duas naturezas, formando a Pessoa complexamente maravilhosa de Jesus Cristo. Por essa razão, Jesus Cristo não poderia pecar. Como poderia aquele em quem “habitava corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9) ter a possibilidade de pecar? Todas as perfeições divinas lhe pertenciam. Como poderia ele ser passível de pecado? A natureza humana de Jesus Cristo nunca poderia pecar porque ela nunca pode ser separada da natureza divina. A união das duas naturezas é imutável, inseparável, indivisível. Por isso, o Redentor divino-humano não poderia pecar.

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D. A IMPECABILIDADE É DEVIDA À CONSTITUIÇÃO SINGULAR DA PESSOA DO REDENTOR Se Cristo possuísse somente a natureza humana, ele seria não somente tentável, mas seria capaz de pecar. Porque essa natureza humana está indissoluvelmente unida à natureza divina, o Redentor não poderia pecar. O que seria possível à natureza humana sozinha não é possível com a união das duas naturezas. Como o Logos é a base da Pessoa do Redentor, a natureza humana acrescida a ele não pode fazer o que é contrário a ele. Portanto, a pessoa teantrópica não pode pecar. Mesmo sendo a base da personalidade do Redentor, a natureza divina não poderia desamparar a humana com respeito à possibilidade de pecar. Ela abandonou com respeito ao conhecimento, porque, ao mesmo tempo, o Salvador era ignorante e onisciente, impotente e onipotente, finito e infinito. Essas coisas são inocentes em si mesmas. Não é imoral ser ignorante do dia final; não é imoral ter a fraqueza de uma enfermidade ou do sofrimento; não é imoral pensar de Cristo como tendo propriedades finitas, mas é altamente comprometedor falar da possibilidade de manchas morais nele. A natureza divina poderia desamparar a natureza humana para que a Pessoa completa pudesse sofrer, mas não para que pudesse pecar. Portanto, a Pessoa do Redentor não poderia ser sujeita ao pecado (por causa da natureza humana) e, ao mesmo tempo, não sujeita ao pecado (por causa da natureza divina). Essa é a única ocasião em que a natureza humana não poderia ser desamparada pela natureza divina, porque implicaria numa mancha na natureza divina, indissoluvelmente unida à humana. Nesse caso, a personalidade toda do Redentor seria culpada de pecado. Por isso, a natureza divina dá total suporte à natureza humana do Redentor.

E. A IMPECABILIDADE É DEVIDA À OBRA MISTERIOSA E SOBRENATURAL DA ENCARNAÇÃO Satanás não poderia, de forma alguma incitar Jesus Cristo à cobiça ou a outro pecado qualquer porque Jesus não poderia ser tentado por alguma coisa pecaminosa que houvesse dentro dele. A natureza pecaminosa não fazia parte, mesmo que temporária, da humanidade de Jesus Cristo, porque ele (embora tenha sofrido as penas judiciais de nossos pecados) não teve imputada sobre si a culpa de Adão. Portanto, ele não possuía a natureza corrupta, que era fruto da imputação da culpa. Satanás não poderia acusá-lo de nada, nem incitá-lo ao pecado. Veja o que Jesus disse de Satanás: “Já não falarei muito convosco, porque aí vem o príncipe do mundo; e ele nada tem em mim” (Jo 14.30). Se Jesus Cristo tivesse a possibilidade de ser levado a fazer algo errado em virtude de uma pré-disposição, então Satanás teria alguma coisa nele com a qual poderia trabalhar e chegar eficaz em sua ação. Ele poderia apelar para a concupiscência de Jesus, mas Jesus não a possuía. Se-

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gundo Tiago, “cada um é tentado por sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz” (Tg 1.14), mas Jesus não possuía esse “calcanhar de Aquiles” que poderia ser usado por Satanás. Satanás não tinha nada com que trabalhar, porque ele não possuía nada de Jesus. A obra da encarnação, que envolveu uma operação sobrenatural do Espírito Santo na vida de Maria, foi tão perfeita que livrou Jesus Cristo de qualquer coisa pecaminosa. Embora o Redentor tenha recebido a sua natureza humana de Maria, ele não recebeu nada corrupto, porque ele não foi contado como culpado em Adão. Embora ele seja descendente de Adão (porque a ascendência dele procede de Adão – Lc 3.38), a conexão entre ele e Adão é humana, mas não pecaminosa. Ele é o descendente direto da mulher (e não curiosamente de homem!). O fato da encarnação miraculosa livrou a sua natureza pecaminosa não somente do pecado, mas da possibilidade de pecar, pois a unio personalis é extraordinariamente maravilhosa e misteriosa, unindo inseparavelmente o divino com o humano. Quando houve a encarnação, o anjo disse a Maria: “Descerá sobre ti o Espírito Santo e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso também o ente santo que há de nascer, será chamado Filho de Deus” (Lc 1.35), o Emanuel, o Deus presente entre os homens (Is 7.14). A encarnação impede a possibilidade de Jesus pecar porque ele veio a ser o Deus-homem, e nunca mais deixará de sê-lo. Por esta razão, nunca o Filho de Deus encarnado poderia sequer pensar em pecar. Se assim pudesse, negaria a si mesmo. Aquele que é absolutamente santo e perfeito não poderia dar lugar ao pecado, em hipótese alguma. Aquele que é separado dos pecadores e feito mais alto que os céus nunca poderia sequer imaginar ter pensamentos pecaminosos ou mesmo executá-los. Isso seria contra não somente contra a sua natureza santa, mas contra a sua natureza divina.

F. A IMPECABILIDADE É DEVIDA À MISSÃO DO REDENTOR Um outro ponto que devemos em apoio à impossibilidade de Jesus pecar é o fato dele ter vindo ao mundo para fazer a vontade de seu Pai, o que ele afirmou claramente: “Eu vim fazer a vontade de meu Pai”.419 A vontade onipotente de Jesus Cristo é questionada quando duvidamos dos seus propósitos imutáveis. O propósito de Jesus Cristo ao vir ao mundo era simplesmente executar a vontade de seu Pai celestial, que é a vontade divina. Como Cristo era Deus também, ele estava, portanto, fazendo a vontade que lhe era própria, embora (como já vimos) a sua vontade humana também seja conhecida. Todavia, sua vontade humana sempre esteve submissa à sua vontade divina. A realização da vontade divina em Jesus Cristo era um decreto divino que não 419. Cf. João 4.34; 5.30; 6.38-40.

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poderia deixar de ser executado. Veja o que é colocado nos lábios de Jesus Cristo pelo escritor sacro: “Eis aqui estou (no rolo do livro está escrito a meu respeito), para fazer, ó Deus, a tua vontade” (Hb 10.7). A vontade de Deus teria de ser feita em Jesus Cristo. Um decreto divino, de antemão revelado, certamente é cumprido, pois o Rei do universo falou e tudo vem certamente a acontecer. A missão do Redentor não poderia falhar, pois ele havia vindo exatamente para cumpri-la. Por essa razão podemos afirmar com certeza que Jesus não poderia pecar. O decreto divino é infalível. Do contrário nenhum pecador seria salvo. Jesus não poderia falhar no cumprimento dos salvadores propósitos divinos. Se houvesse a possibilidade de Jesus Cristo pecar, todo o plano de Deus se perderia irremediavelmente, pois Deus não poderia salvar pecadores se Jesus falhasse. Não existiria a possibilidade de salvação se Jesus pudesse pecar, mas os textos citados mostram que o propósito de Jesus era realizar a vontade de seu Pai, não perdendo nenhum daqueles que o Pai lhe havia dado. Se Jesus Cristo tivesse a possibilidade de pecar, Deus estaria pondo em risco toda a obra de redenção. Por essa razão, ele fez com que o Redentor fosse divinohumano. Se ele fosse somente humano, mesmo que perfeito, poderia falhar, pois é próprio de seres criados mudarem o seu estado original, porque todas as coisas de natureza finita podem falhar. Certamente Deus não poderia por em risco o seu plano eterno de redenção de pecadores. Por isso Jesus Cristo não tinha a possibilidade de pecar em sua missão de salvar pecadores. Todavia, se ele fosse simples e unicamente um homem, então todo o plano estaria sujeito a ser desfeito. Mas Deus enviou o seu próprio Filho, o Deus Filho, o Emanuel, para encarnar-se e realizar a missão redentora. Para isso ele possuía a impecabilidade, para que não pudesse falhar em sua missão.

G. A IMPECABILIDADE É DEVIDA AOS ATRIBUTOS DA PESSOA DO REDENTOR Há alguns atributos próprios e exclusivos da divindade, dos quais a Pessoa do Redentor compartilha, que a levam a ter o atributo da impecabilidade.

1. A IMPECABILIDADE PROVÉM DA SUA IMUTABILIDADE Porque Jesus Cristo é divino, ele possui o atributo da imutabilidade. Se, contudo, ele não possui a imutabilidade, ele não é Deus. Portanto, é o fato dele ser uma Pessoa com uma natureza divina imutável – e a sua natureza humana está indissoluvelmente unida à pessoa do Verbo com natureza divina – que faz com que ele não seja capaz de pecar. É importante lembrar que a imutabilidade não é própria da natureza humana, mas da divina. A natureza humana não adquire a imutabilidade, mas ela não vai mudar justamente por causa de sua união indissolúvel e imutável, que é a unio personalis.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Hebreus 13.8 – “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e eternamente.”

Com isso, o autor bíblico está afirmando que nele não há mudança alguma. A sua natureza constante e imutável é uma característica permanente. Todas as coisas criadas podem mudar, mas o Primogênito não muda. Ele permanece, como é próprio da Divindade, sempre o mesmo. Esse é um dos atributos que tornam o nosso Redentor singular entre todos os que vieram a existir (não se esqueça de que, embora eterno, Jesus Cristo é temporal, porque ele veio a existir no tempo, segundo a sua natureza humana). Os anjos caíram, os homens também, mas Jesus é singular na sua permanência de pureza. Ser criatura é equivalente a alterar-se, porque todas as coisas mudam. Então, você pergunta: “Mas a humanidade de Cristo não foi criada, e não veio a existir no tempo?”. É verdade, mas ele não peca porque é imutável e porque a sua natureza humana (que veio à existência no tempo) está inseparavelmente unida à sua natureza divina (que é eterna). Jesus Cristo permanece ontem, hoje e sempre o mesmo. Ele não pode pecar porque ele é imutável, devido à sua Divindade. Jesus Cristo não poderia pecar ontem, não pode pecar hoje e nunca poderá pecar amanhã. Ele é o mesmo sempre. A sua impecabilidade provém do seu atributo divino da imutabilidade. Ele não é suscetível de mudança em seu comportamento moral. Esse atributo da imutabilidade é aplicável às três Pessoas da Trindade, e não pode, em hipótese alguma ser retirado de nenhuma delas. O Salmo 102 fala da imutabilidade de Deus, que é aplicada inquestionavelmente ao Filho pelo autor sacro em Hebreus 1.10-12. Ali diz do Filho: “Tu permaneces... tu és sempre o mesmo e os teus anos jamais terão fim”. Não houve um tempo em que Jesus Cristo podia ser vulnerável aos ataques de Satanás para desviá-lo de seus propósitos redentores. A imutabilidade de Jesus Cristo o torna uma Pessoa com o atributo da impecabilidade e exige que isso seja assim. Bendito seja Deus, que nos deu um Salvador tão perfeitamente imutável!

2. A IMPECABILIDADE PROVÉM DE SUA ONIPOTÊNCIA Visto que Jesus Cristo era Deus, o atributo da onipotência é parte da Segunda Pessoa encarnada. Visto que Jesus Cristo possuía a onipotência, mesmo que não a tenha exercido de maneira plena enquanto aqui neste mundo, ela certamente garantiu a sua impecabilidade. A pecabilidade invariavelmente é sinônima de fraqueza daquele que é tentado. Jesus certamente foi tentado, mas a fraqueza da sua humanidade não é separada da onipotência de sua divindade. Está fora de questão a fraqueza com respeito ao pecado na Pessoa divino-humana do Redentor. Um mero homem pode ser vencido pela tentação, mas o Deus-homem não. Mesmo uma natureza santa, como a de Adão antes da queda, poderia ser vencida pelo pecado, como o foi, mas uma natureza santa unida a uma natureza divina não pode pecar. A força dessa natureza humana vem de sua união com a divina.

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“A onipotência do Logos preserva a natureza finita de cair, não importa quão grande possa ser a ênfase da tentação à qual essa natureza finita é exposta. Conseqüentemente, Cristo, mesmo possuindo uma natureza humana passível de pecar em sua constituição, foi uma pessoa passível de impecabilidade. A impecabilidade caracteriza o Deushomem como uma totalidade, enquanto a pecabilidade é uma propriedade de sua humanidade”.420

Como a natureza humana está indissolúvel e imutavelmente unida à divina, a humana não pode pecar. Sua força deriva-se de sua união com a natureza divina. Os seres criados não possuem esse poder: 1) os anjos, por exemplo, quando foram criados, possuíam santidade, mas, como todo ser criado possui a limitação da mutabilidade, alguns deles caíram, abandonando o seu estado original, sem mesmo terem sido tentados por algo externo, e, muito menos, por algo pecaminoso dentro deles. Eles simplesmente mudaram de condição, abandonando o seu estado original, exercendo a capacidade de livre-arbítrio que possuíam, isto é, a capacidade de fazer alguma coisa contrária à sua natureza. Os outros anjos, os que não caíram, permaneceram no estado de santidade em que foram criados não porque tivessem a propriedade da impecabilidade, mas porque foram eleitos por Deus para permanecer no estado de santidade em que foram originalmente criados; 2) os homens eleitos por Deus, depois do término da sua redenção, na nova terra, não mais pecarão, não somente porque não haverá mais tentador externo, nem porque terão adquirido a capacidade da impecabilidade, mas não pecarão mais em virtude da graça preservadora que os manterá livres do pecado para sempre. O poder tanto dos anjos quanto dos homens para não pecar vem de Deus, mas não é inerente a eles. É devido à graça de Deus. O poder da Pessoa do Redentor de não pecar não é da graça divina sobre ele, mas é da natureza divina do próprio Redentor, à qual a sua natureza humana está inseparavelmente unida. É a união hipostática que preserva a natureza humana tentável de Jesus do pecado. De forma curiosa, Shedd diz que “o Logos anteriormente à encarnação não poderia ser tentado. A natureza humana foi a avenida para a tentação, mas a natureza divina fortaleceu e atuou tanto na humana, a vontade divina fortaleceu tanto a vontade humana, que nenhuma ênfase concebível de tentação poderia vencer Jesus Cristo e causar a apostasia do segundo Adão.”421

Portanto, o fato de Jesus Cristo possuir a impecabilidade provém do fato dele ser onipotente. Durante os dias de sua humilhação, embora não tenha feito uso constante e aberto de sua onipotência, ele não conseguiu esconder o seu poder sobre todas as coisas. Veja a ilustração do poder de Jesus: 420. W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. II, 333. 421. Ibid., 337.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR João 5.19, 21 – “Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz... Pois assim como o Pai ressuscita e vivifica os mortos, assim também o Filho vivifica aqueles a quem quer.”

Veja, no verso 19, que o poder com que Cristo age é o mesmo poder de seu Pai. A idéia não é que ele recebe o poder por não possuí-lo anteriormente, mas que ele só faz o que o Pai faz. Para colocar isso em outras palavras, o Filho é um imitador do Pai na manifestação de sua onipotência. O verso 21 ilustra uma forma pela qual Jesus Cristo exerce a sua onipotência. Esse exemplo mostra como o ser divino age, e no ser divino há três Pessoas agindo igualmente em poder. Essa capacidade de agir onipotentemente não foi adquirida pela unção do Espírito Santo sobre ele, mas pertence ao Filho desde a eternidade, por causa de sua divindade. Ela lhe é inerente e é pessoal, porque a onipotência é atributo das três Pessoas. A união com a natureza humana não fez com que ele perdesse a onipotência. É impossível para nós pensarmos num Redentor divino-humano onipotente que venha a ceder ao pecado. Toda tentação procede de um ser criado, daí a tentação possuir um poder finito. Todavia, é uma impossibilidade aquele com poder infinito ser vencido por um poder finito – o da tentação.

3. A IMPECABILIDADE PROVÉM DE SUA ONISCIÊNCIA É freqüente perceber, na argumentação dos defensores da pecabilidade, que Jesus poderia pecar por causa da sua ignorância. Todavia, ao mesmo tempo em que entendemos que Jesus possuía uma mente finita, por causa da sua humanidade, ele também possuía uma mente infinita por causa da sua divindade. Cristo possuía onisciência, e isso é provado em vários casos, nos quais ele sabia de tudo o que estava se passando ao seu redor, e também na mente das pessoas que o cercavam. Era impossível para uma mente onisciente cometer algum ato que viesse manchar para sempre a natureza da Divindade. Era uma impossibilidade o pecado para aquele que é o próprio Juiz das maldades dos homens. Ele já sabia, desde os tempos em que esteve conosco (para não falar desde a eternidade), que haveria de julgar os atos maus dos homens. Ele tinha conhecimento, como Deus que era, de todas as coisas, e, por isso, não poderia pecar. Como haveria de julgar o mundo em ira se ele próprio estava sujeito à queda? A onisciência é um outro atributo que impede a possibilidade de Jesus Cristo pecar. Tendo, portanto, o infinito conhecimento de que o pecado é contra a sua própria lei, vendo o pecado em sua verdadeira natureza e tendo o poder para resisti-lo, é impossível que Jesus Cristo pudesse pecar. Portanto, o atributo da onisciência resulta na impecabilidade.

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4. A IMPECABILIDADE PROVÉM DE SUA SANTIDADE ESSENCIAL A santidade do Verbo encarnado não é derivada, mas constitucional (ou essencial), e, portanto, imutável. Quando lemos a Escritura podemos perceber os serafins diante do trono dizendo: “Santo, Santo, Santo, é o Senhor dos Exércitos” (Is 6). Esse único Deus, Senhor dos Exércitos, chamado três vezes “santo”, subsiste trinitariamente e as afirmações de santidade em Isaías 6 não dizem respeito unicamente à primeira Pessoa da Trindade. O Verbo, ou a segunda Pessoa, é santo essencialmente. Embora fosse tentável por causa da sua humanidade, o Redentor não podia pecar porque a santidade essencial de sua natureza divina (que se ligou indissoluvelmente à humanidade) não podia estar sujeita à mudança. O Redentor não pecou porque simplesmente era obediente à lei de Deus, mas porque ele era Deus santo e não poderia, em hipótese alguma, cometer algum ato contrário à sua natureza santa, que lhe era essencial. A essencialidade da santidade do Redentor se evidencia na afirmação do escritor de Hebreus: “Amaste a justiça e odiaste a iniqüidade” (Hb 1.8). Somente pode ter esse ódio à injustiça quem é essencialmente santo. O pecado jamais poderia oferecer qualquer apelo a Jesus. A tentação, embora tenha causado dores a Jesus Cristo, não chamava a atenção dele nem o inclinava a qualquer coisa indevida por causa da sua santidade plena. Perceba que o primeiro Adão, no Éden, não tinha pecado. Era santo. Todavia, a santidade nele não era essencial. Por essa razão, ele poderia pecar, e foi isso o que realmente aconteceu. O segundo Adão, Cristo, por causa da sua Divindade, era santo essencialmente, e, mesmo tendo natureza humana tentável, não poderia pecar porque essa natureza humana estava ligada indissoluvelmente à sua natureza divina, que era imutavelmente santa.

H. A IMPECABILIDADE É DEVIDA À PREORDENAÇÃO DIVINA Todas as coisas que Deus preordenou, certamente vão acontecer. Nada do decreto divino deixa de ser realizado. Essa é uma afirmação lógica consistente com a Divindade. Jesus não poderia pecar pelas razões demonstradas acima, mas, além disso, ele não poderia pecar porque foi ordenado de antemão que o Cordeiro seria sem mancha e sem defeito, desde a fundação do mundo (veja o que Pedro disse em 1Pe 1.18-20). Como o nosso Redentor, sendo sem mancha e sem defeito, como preceitua Êxodo 12.5 desde a instituição pascal, foi sacrificado como nosso Cordeiro pascal (1Co 5.7), ele não poderia ser tentado com a possibilidade de pecar. A fim de poder tirar o pecado do mundo, o Cordeiro pascal (Jo 1.29) tinha de ser completo em sua perfeição, infinitamente santo em sua santidade e totalmente livre de pecado em sua impecabilidade.

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Jesus Cristo foi o Servo sofredor e justo que jamais poderia pecar, porque está predito que “ao Senhor agradou moê-lo... (Is 53.10-12)”. Como poderia ele levar sobre si a penalidade de nossos pecados se houvesse nele a possibilidade de pecar? Como poderia sua obra ser o meio de nossa justificação se ele pudesse ter pecado? O Pai determinou de antemão que ele seria santo e sem defeito. Por isso, o Cordeiro de Deus disse aos seus adversários: “Daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, dizeis: Tu blasfemas; porque declarei: Sou Filho de Deus?” (Jo 10.36). Ele afirma, no verso acima, que o Pai já havia realizado o que dantes decretara. Ele era santo porque, mesmo em sua humanidade, o Pai já o havia feito santo. Por causa da preordenação eterna e por causa da realização histórica da santidade de Cristo, ele não poderia pecar.

I. A IMPECABILIDADE ESTÁ RELACIONADA À AÇÃO SOBREPUJANTE DO ESPÍRITO Hebreus 1.9 – “Amaste a justiça e odiaste a iniqüidade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo de alegria como a nenhum dos teus companheiros.”

Deus, pelo Espírito Santo, agiu em Jesus Cristo de tal modo que ele amou a justiça e odiou a impiedade. Ninguém foi dessa maneira trabalhado pelo Espírito Santo. A ação do Espírito de Deus nunca foi tão forte e abrangente como na Pessoa do Redentor. Toda a sua vida, desde o início até o final, foi permeada pela ação do Espírito. Por isso, o escritor de Hebreus cita o salmista, que fala profeticamente a respeito de Jesus Cristo no Salmo 45.7. Por causa da santidade de Cristo, que é imutável, pois ele “amou a injustiça e odiou a iniqüidade”, ele recebeu a unção da alegria, que é a ação do Espírito em sua vida, como nenhuma outra pessoa recebeu. Em João 3.34, a Escritura diz que Deus deu a Jesus Cristo o Espírito sem medida. Essa plenitude da ação do Espírito no Filho de Deus encarnado confirmou a sua impecabilidade. CONCLUSÃO O resumo de toda essa seção pode ser feito da seguinte maneira: 1. O fato de Jesus Cristo ser Deus, o que equivale a ser santo, torna-o absolutamente impecável, pois o pecado aponta para o fato de ele poder alterar a sua natureza, o que o deixa na nossa posição de criaturas passíveis de mudança. Nesse caso, Deus já não mais é Deus. 2. O fato de Jesus Cristo ser onisciente, o que aponta diretamente para a sua Divindade, aponta também para a sua impecabilidade, pois a onisciência o livra de pecar. 3. O fato de Jesus Cristo ser onipotente aponta para o fato dele ser Deus. Sendo Deus, é impossível que Jesus Cristo pudesse pecar.

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4. O fato de Jesus Cristo ser onipresente aponta para o fato dele ser Deus. Sendo Deus onipresente, ele não pode ser passível de pecar. 5. O fato de Jesus Cristo ser uma Pessoa singular que tem um desejo onipotente de fazer a vontade que é própria da Divindade implica que ele é impecável. 6. O fato de que Jesus foi enviado para ser a oferta e sacrifício no lugar dos homens implica que ele é impecável. 7. As próprias afirmações que Jesus fez de si mesmo apontam para a sua impecabilidade. Por isso tudo, concluímos que o nosso Redentor não somente não pecou, mas que ele não poderia pecar, em virtude de quem ele é e do que ele veio fazer.

OBJEÇÕES À DOUTRINA DA IMPECABILIDADE A. A DOUTRINA DA IMPECABILIDADE É INCONSISTENTE COM A TENTABILIDADE DE CRISTO. Este foi o argumento usado por Charles Hodge, teólogo presbiteriano da Antiga Princeton: “A impecabilidade de nosso Senhor não conta como sendo uma impecabilidade absoluta. Ela não era uma non potest peccare. Segundo ele a tentação implica necessariamente na possibilidade de pecar. Se da constituição de sua pessoa era impossível para Cristo pecar, então sua tentação é irreal e sem efeito, e ele não pode simpatizar-se com o seu povo.”422

Se é objetado que a impecabilidade de Cristo é inconsistente com a sua tentabilidade, portanto, uma pessoa que não pode pecar, argumenta-se, não pode ser tentada a pecar. Todavia, W. G. T. Shedd contra-argumenta da seguinte maneira: “A tentabilidade depende da susceptibilidade constitucional, enquanto que a impecabilidade depende da vontade. No que respeita à sua susceptibilidade natural, tanto física quanto mental, Jesus Cristo era aberto a todas as formas de tentação humana, excetuando aquelas que vinham da luxúria ou da corrupção da natureza, mas a sua pecabilidade, ou a possibilidade de ser vencido por essas tentações, dependeria da quantia de resistência voluntária que ele era capaz de mostrar para suportá-las. Essas tentações foram muito fortes, mas se a auto-determinação de sua santa vontade era mais forte do que elas, então elas não poderiam induzi-lo a pecar, e ele seria impecável. E ainda assim Ele claramente seria tentável.”423

422. Charles Hodge, Systematic Theology, vol. II, 457. 423. W.G.T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. II, 336.

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Portanto, o fato de uma pessoa ter a impossibilidade de pecar não subtrai a sua tentabilidade.

B. O ARGUMENTO É QUE, SE UMA PESSOA NÃO PODE PECAR, ELA TAMBÉM NÃO PODE SER TENTADA PELO PECADO. Esse argumento é um tanto pueril, porque mesmo pessoas que acabam não pecando podem ser tentadas. A impecabilidade não evita que uma pessoa seja tentada, já que a tentabilidade de Jesus Cristo está ligada á sua humanidade. Shedd responde a essa objeção dizendo: Isso não é correto. Não seria mais correto do que dizer que, porque um exército não pode ser conquistado, ele não pode ser atacado. A tentabilidade depende da suscetibilidade constitucional, enquanto que a impecabilidade depende da vontade.424

A tentabilidade de Cristo depende do fato de sua natureza humana ter sido criada e ser de constituição finita. Todo ser criado é suscetível de ser tentado, porque é suscetível de mudança. “A tentabilidade é uma das limitações necessárias do espírito finito.”425 A natureza humana de Jesus Cristo possuía um espírito finito. O Redentor também é finito, logo é tentável. A vontade de Cristo não tem qualquer inclinação para o mal. A vontade de Adão também não possuía essa inclinação, mas caiu. A de Cristo não é somente santa, mas a vontade de sua natureza humana está ligada à vontade de sua natureza divina. Portanto, a impecabilidade de Cristo está ligada ao fato de sua natureza humana estar imutavelmente ligada e unida à sua natureza divina.

C. O ARGUMENTO É QUE, PARA QUE A TENTAÇÃO SEJA GENUÍNA, TEM DE HAVER A POSSIBILIDADE DO PECADO Não há dúvidas quaisquer de que o Redentor tenha sido tentado. Nesse caso, a dúvida que paira é se as tentações foram genuínas, pois a genuinidade delas, segundo o argumento, depende da possibilidade da queda. Contrariamente, se o Redentor não podia pecar, então a tentação não era genuína. Portanto, a genuinidade da tentação é definida ou autenticada pela pecabilidade. A resposta que damos a esse argumento é que as Escrituras dizem que o Redentor foi realmente tentado e que ele realmente sofreu por causa das tentações (Hb 2.18). Não somos nós que determinamos a genuinidade da tentação pelo argumento da pecabilidade. Jesus, de fato, foi colocado sob prova, e em todas as circunstâncias provou ser impecável. As tentações, embora reais, não provocaram 424. Ibid., 336. 425. Ibid., 336.

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nele desejos de maldade, pois a santidade de sua humanidade era inalterável em virtude da unio personalis. O fato de o Redentor ser impecável não torna a tentação irreal, e, além disso, a tentação para o pecado não exige necessariamente a susceptibilidade ao pecado. Walvoord diz que “a idéia de que a tentabilidade implica numa susceptibilidade não é sadia. Conquanto a tentação possa ser real, pode haver um poder infinito para resistir a essa tentação, e, se esse poder é infinito, a pessoa é impecável”.426

D. O ARGUMENTO DA IMPECABILIDADE REVELA UMA ESPÉCIE DE DOCETISMO RELACIONADO Á PESSOA DE CRISTO. É preciso lembrar que o docetismo diz respeito a toda e qualquer negação da plena humanidade de Jesus Cristo. Segundo os defensores da pecabilidade de Cristo, os que defendem a impecabilidade retiram de Cristo a plenitude de sua humanidade, porque retiram dele a possibilidade de pecar. A resposta que damos a essa objeção é a seguinte: Na verdade, há várias formas de docetismo, mas, em geral, nenhum defensor da impecabilidade tem qualquer noção docética em mente. O docetismo foi combatido na Escritura desde o princípio da Igreja cristã, quando é dito que “muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne: assim é o enganador e o anticristo” (2Jo 7; cf. 1Jo 4.2, 3). Cristo realmente possuía uma natureza humana com um elemento material e outro imaterial. Ele era homem com todas as suas propriedades. O fato de não ser passível de pecar não era devido à sua humanidade (docética), mas à da união de sua natureza humana com a natureza divina. Não diminuímos o humano, mas valorizamos de modo sobre-excelente a união pessoal. Além disso, o docetismo é a proclamação de um Cristo incapaz de ser o Mediador entre Deus e os homens porque ele não seria o “Cristo Jesus homem” [a)/nqrwpoj Xristo\j Ihsou=j] (1Tm 2.5). Qualquer tendência docética tiraria de Jesus a possibilidade de ser nosso representante, porque a representação só pode ser feita por quem é igual, membro da mesma raça. Todos os defensores da impecabilidade, pelo menos de linha reformada, crêem com todas as forças na verdadeira e plena humanidade de Jesus Cristo.

APLICAÇÃO Quão importante é a impecabilidade de Cristo para nós? Tem ela alguma aplicabilidade prática? Deixe-me sugerir-lhe algumas coisas importantes da impecabilidade de Cristo relacionadas à nossa vida: 426. John F. Walvoord, Jesus Christ Our Lord (Chicago: Moody Press, 1976), 147.

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1. Quando viermos a perceber quão detestável o pecado é – tão detestável que fez o Pai levar o Filho encarnado à cruz – então seremos capazes de avaliar que insulto significa para Deus a sugestão de Jesus ser capaz de pecar ou de ter a possibilidade de desejar o pecado. Qualquer tentativa de ligar Jesus Cristo à possibilidade de pecar mostra que não temos compreensão devida de nenhuma das duas coisas, nem de Jesus nem do pecado. 2. Crer na possibilidade de Jesus ter desejado o pecado (embora isso não tenha acontecido) pode ser apenas uma desculpa para nos sentirmos mais confortáveis a respeito das nossas próprias luxúrias, ainda que não as pratiquemos. 3. Crer na possibilidade de Jesus poder pecar nos leva a concluir que o plano total de redenção que Deus fez estava, e ainda está, correndo risco. Se havia possibilidade dele pecar naquela época, ainda hoje ele corre esse risco, porque ele continua a ser homem da mesma maneira. Isso pode significar que a nossa redenção poderia ter falhado e que Deus poderia ter sido afetado pelo pecado de um membro da Trindade, já que as duas naturezas estão unidas inseparavelmente. A nossa fé em Jesus Cristo está inteiramente relacionada à impossibilidade de haver pecado em Cristo. Todavia, se é possível o pecado nele, então não podemos ter certeza de que ele seja confiável. 4. Aqueles que sugerem a possibilidade do pecado em Cristo não possuem muita força no encorajamento para que não pequemos. O raciocínio que teríamos é o seguinte: “Se ele, que é o nosso Salvador, estava sujeito a pecar, por que eu não posso continuar para sempre sujeito a pecar? Afinal de contas, ele era igual a nós”. Na verdade, quando estamos sendo tentados, o que mais precisamos é de alguém que não somente venceu a tentação, mas de alguém que não pode ser vencido pela tentação, como Jesus Cristo realmente é! A crença na possibilidade de Jesus pecar poderia nos enfraquecer, porque haveríamos de ver um Salvador sujeito às mesmas fraquezas. 5. Crer na possibilidade de Cristo poder pecar pode afetar profundamente a nossa vida cristã (cf. 2Co 3.18). Uma noção diminuída de Cristo pode inevitavelmente influenciar-nos de modo negativo em nossa vida e diminuir o nosso senso de adoração. 6. Crer na possibilidade de Jesus poder pecar pode levar-nos a não ter desejos de defender prontamente Aquele a quem tanto amamos. Se é possível que ele caia, não podemos ter certeza que ele não vá cair, e não poderemos defender Aquele que morreu por nós. Nunca o pecado poderá vencê-lo! Afinal de contas, ele é o nosso Redentor onipotente!

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CAPÍTULO 10 A TENTABILIDADE DO REDENTOR

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á tratamos, no capítulo anterior, da imutabilidade (que tem a ver com a impecabilidade) da Pessoa divina que se encarnou, mas, quando tratamos da tentabilidade de Jesus Cristo, logo vem à mente o questionamento da mutabilidade de Deus. Se Deus não pode ser tentado, como, então, Jesus Cristo, que é divino, foi tentado? A resposta é relativamente simples. Deus não pode ser tentado porque assim a Bíblia o diz (Tg 1.13). Não há nada que faça Deus desejar o que é contrário à sua natureza. Contudo, quando Deus o Filho se encarnou, o Deus encarnado passou a ter experiências diferentes que, por si só, na eternidade (quando ainda não havia encarnação) Deus não experimentou. Deus conhecia as experiências dos homens pela sua onisciência, mas nunca Deus havia experimentado pessoalmente coisas que são próprias dos homens. Como o Verbo se fez carne, e isso significa que ele se fez homem (sem deixar de ser Deus), essa Pessoa divino-humana passou a uma esfera de ação e de experiências diferentes. Donald MacLeod coloca essa situação de uma maneira muito feliz. Ele diz: “Não obstante, há uma mudança real: mudança no sentido de que, em Cristo, Deus entra numa esfera totalmente nova de experiências e relacionamentos. Ele experimenta a vida num corpo e numa alma humanos. Ele experimenta a dor humana e as tentações humanas; ele experimenta pobreza, solidão e humilhação; ele experimenta a morte; ele se torna filho para Maria e José, irmão de Tiago, amigo de Pedro e João, vizinho dos residentes de Nazaré, adversário dos fariseus. Antes e à parte da encarnação, Deus conhecia tais coisas pela observação. Mas a observação, ainda quando pertence à onisciência, carece de uma experiência pessoal. Foi isso o que a encarnação tornou possível para Deus: a experiência real e pessoal de ser humano.”427

Portanto, a tentabilidade do Redentor é um dos efeitos da unio personalis, e fez com que o Deus encarnado passasse a experimentar o que Deus Filho (antes da encarnação) nunca havia experimentado pessoalmente. Não houve uma mudança essencial no Filho, mas a aquisição de uma nova experiência. 427. Donald Macleod. The Person of Christ (Downers Grove, Ill.: Inter Varsity Press, 1998), 186.

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Quando tratamos da Pessoa do Redentor, torna-se quase impossível não tratar da sua relação com a tentabilidade e com a impossibilidade ou com a possibilidade do pecado. Tem havido lutas em alguns setores da Igreja cristã sobre esse assunto. Portanto, um capítulo especial sobre esse assunto é dedicado aqui. A nossa intenção é esclarecer o leitor sobre esse tão delicado assunto. Esperamos em Deus que as explicações apresentadas aqui ajudem o leitor a ter uma posição firmada à luz da totalidade da revelação das Escrituras. Primeiramente trataremos sobre a tentabilidade de Jesus Cristo, e, então, sobre a possibilidade ou impossibilidade dele pecar. Porém, antes de tratarmos propriamente do foco principal desse capítulo, faremos uma comparação entre a Pessoa divina do Verbo, a pessoa humana comum e a Pessoa divino-humana do Redentor em relação à tentação e ao pecado.

A INTENTABILIDADE E A IMPECABILIDADE DA PESSOA DIVINA DO VERBO A pessoa do Verbo, ou do Filho, antes da encarnação, não era passível de ser tentada porque era unicamente divina, e a Escritura diz que Deus não pode ser tentado. O Verbo Divino não possuía somente o atributo da impecabilidade, mas também o atributo da intentabilidade. Esse ensino vem diretamente da Palavra de Deus: “Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e ele mesmo a ninguém tenta” (Tg 1.13).

Portanto, por ser da mesma essência do Pai e do Espírito, antes de ter acrescentada sobre si a natureza humana, o Filho de Deus não-encarnado não podia ser tentado pelo mal e muito menos pecar, por causa de algumas propriedades que lhe são essenciais:

A. PORQUE DEUS É IMUTÁVEL João diz que o “Verbo era Deus” (João 1.1). A imutabilidade é um atributo da Divindade toda, não simplesmente de Deus o Pai. A finalidade da tentação do mal é que uma pessoa venha a ter um comportamento diferente do seu comportamento essencial, fazendo com que ela venha a mudar ou alterar o seu modo de ver e de fazer as coisas. Ser tentado para o mal é violar a natureza moral de uma pessoa, tornando-a suscetível de mudança. Ser tentado pelo mal sugere que Deus venha a ter algo que não possui em essência. O bem é essencial em Deus, e ser induzido a fazer o mal é contrário à natureza imutável de Deus. Ele é o Sumo Bem e não pode passar a fazer coisas que

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são contrárias ao que ele é essencialmente. Por isso, o Verbo não poderia ser tentado e nem poderia, conseqüentemente, pecar.

B. PORQUE DEUS É SANTO ESSENCIALMENTE O Verbo divino possuía o mesmo atributo da santidade essencial do Pai. Assim como o Pai não pode fazer nada contrário à sua santidade, que é o atributo pelo qual Deus jura fazer todas as coisas, pois esse atributo é o selo da sua imutabilidade, o Filho também não podia ser tentado nem pecar. A santidade é essencial em Deus, e esse atributo o impede de ser tentado pelo simples fato da sua santidade ser imutável. A sua santidade majestosa impede que alguma coisa diferente de sua natureza lhe seja sugerida. O Verbo ainda não-encarnado possuía esse mesmo atributo divino, o que o impedia de ser tentado e de pecar.

C. PORQUE DEUS É AUTO-SUFICIENTE O Verbo Divino possuía o mesmo atributo divino da auto-suficiência ou da independência. Assim como Deus, o Pai, nunca poderia ser tentado a querer nada porque possuía tudo, sendo absolutamente independente, também o Filho, como Deus que era, não poderia ser tentado a ter alguma coisa porque ele era autosuficiente. Querer alguma coisa que não possui é uma impossibilidade para Deus, pois ele é dono de tudo o que existe. O Verbo divino possuía essa mesma qualidade exclusiva da Divindade, não podendo, portanto, ser tentado ou pecar.

D. PORQUE DEUS É INFINITO O Verbo divino possuía o mesmo atributo de seu Pai: o da infinidade. A infinidade de Deus pode ser concebida como “aquela perfeição por meio da qual ele fica livre de todas as limitações... A infinidade não confunde a identidade de Deus com a soma total das coisas existentes, nem exclui a coexistência das coisas derivadas e finitas com as quais Deus mantém relação”.428 Esse é um atributo de toda a Divindade, não somente do Pai. Deus (seja qual foi a Pessoa da Divindade) não pode ser tentado porque o maior não pode ser induzido pelo menor a fazer alguma coisa contrária à sua natureza infinita. Ele está sobre todas as coisas espacial e temporalmente, estando além de todas as coisas que foram criadas. O Verbo, portanto, possuindo essa qualidade da infinidade, não pode ser tentado ou pecar. Na verdade, todos os atributos incomunicáveis e os atributos morais de Deus, de certa forma, são um impedimento para que ele seja tentado e para que ele peque. Portanto, o Verbo divino, por causa de seus atributos divinos, possuía a capacidade da intentabilidade e da impecabilidade. 428. Louis Berkhof, Teologia Sistematica (edição espanhola), 69.

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A TENTABILIDADE E A PECABILIDADE DA NATUREZA HUMANA Aqui vamos tratar dos seres humanos como você e eu, possuindo somente a natureza humana. Todavia, quando tratamos de nosso Redentor, há uma distância infinita e qualitativa entre o Verbo antes da encarnação e nós, os seres humanos.Tudo o que o Verbo possuía deve ser negado em nós. Depois da encarnação, ou seja, depois da unio personalis, ainda existe uma grande diferença entre o nosso Redentor (com duas naturezas) e nós, com apenas a natureza humana. É sobre essa natureza humana em nós que vamos trabalhar mais nesta parte do capítulo. Logo depois, trataremos da possibilidade de pecado na natureza humana de Jesus Cristo e de sua impecabilidade.

A. POR CAUSA DA FINITUDE A tentabilidade e a possibilidade de pecar estão diretamente vinculadas à finitude de nossa humanidade. Diferentemente de Deus, que é eterno, os seres humanos são criaturas que vieram à existência no tempo e no espaço. Eles são concebidos e nascidos de criaturas finitas e possuem a finitude, possuindo, portanto, todas as coisas que vêm ligadas a ela. Já vimos acima que Deus não pode ser tentado por causa da sua infinidade, porque o menor não pode tentar o maior. Deus é intentável porque ele não pode ser levado a desejar nada que ele próprio não tenha. Não há maneira de fazer Deus cobiçar algo (lembre-se de que a tentação sempre está ligada à cobiça) porque ele é o Senhor e Dono de todas as coisas. Entretanto, isso não é o que tem acontecido com os seres humanos. A experiência, desde o início do mundo, é que eles são constantemente tentados a possuir o que não possuíam, contrariando, assim, as coisas que lhe estão proibidas, mas que eles acabam desejando. A tentabilidade e a pecabilidade são coisas próprias de seres que possuem uma natureza finita, de seres que são limitados nas coisas que possuem. Geralmente a tentação e a queda têm a ver com o querer alguma coisa que não se possui ainda. A tentação de Satanás era com o propósito de que Adão desejasse ter algo que ele não possuía originalmente – a capacidade de ser conhecedor do bem e do mal para poder se igualar a Deus (esta foi a sugestão de Satanás), e esse tipo de tentação é possível por causa da finitude do homem. Satanás sugeriu a nossos primeiros pais que eles viessem a possuir algo que não possuíam, e esse veneno lançado pelas insinuações malignas, de um modo misterioso e fora dos padrões estabelecidos por Deus para a natureza santa de Adão, encontraram guarida no coração de Eva e Adão.

B. POR CAUSA DA MUTABILIDADE Os seres humanos não são somente finitos. Além disso, Deus os fez mutáveis, porque a mutabilidade é uma característica vinculada à finitude. Somente o Infini-

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to é imutável. Todos os seres finitos são passíveis de mudança. A tentabilidade e pecabilidade dizem respeito à mudança que lhes é própria. Adão, ainda que santo (santidade derivada, não essencial), por ser finito e capaz de agir de modo contrário à sua natureza, foi tentado e pecou. A Confissão de Fé de Westminster diz que “o homem, em seu estado de inocência, tinha a liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é bom e agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que pudesse decair dessa liberdade e poder”(IX, II).

A santidade de Adão era mutável porque era a santidade de um ser criado. Quando formos completamente redimidos não mudaremos mais, não porque teremos adquirido imutabilidade, mas porque a graça divina estará sobre nós guardando-nos no estado de santidade. A mutabilidade sempre será característica potencial de todos os seres criados, embora por ação de Deus sobre eles de modo ativo, e por não lhes dar a capacidade de agir contrariamente à sua natureza (de modo negativo), os manterá em santidade permanentemente, em glória. O atributo da mutabilidade está vinculado diretamente ao atributo da finitude. Como o homem é finito, ele é mutável. Só podem ser tentados e sujeitos a mudança os seres criados e finitos. Foi assim com os anjos e foi assim com os seres humanos. Portanto, o ser humano é tanto passível da tentabilidade como de pecabilidade. Do estado de santidade em que eles haviam sido criados, eles mudaram, passando para o estado de pecado após cederem às tentações. A tentabilidade não leva necessariamente à mudança, mas a mudança é produto da propriedade de mutabilidade dos seres finitos.

C. POR CAUSA DA NATUREZA HUMANA CAÍDA Além do problema da finitude e da mutabilidade que os seres humanos possuem pelo fato de serem criados, há um fator moral que dificulta ainda mais o problema da tentabilidade e da pecabilidade: é o da natureza já caída do homem. A tentação encontra menor resistência quando o homem já é um ser caído. Com muito mais facilidade, o homem é induzido ao pecado pela tentação, porque a tentação externa excita as potencialidades internas por causa da inclinação para o pecado que o homem agora possui. Portanto, a tentabilidade e a pecabilidade dos seres humanos em geral são intensificadas pela presente natureza pecaminosa do homem. Somente a plenitude da santificação (no estado de glória) é que retira do homem a possibilidade de tentação e de queda pelas seguintes razões: (1) àquela altura não haverá mais tentador externo (porque o diabo terá sido lançado na condenação do lago de fogo); (2) àquela altura não haverá mais tentação interna porque a inclinação pecaminosa terá sido erradicada de nós; (3) àquela altura Deus não mais dará ao homem a capacidade de escolha contrária que ele havia dado aos

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anjos e aos nossos primeiros pais. Por essas razões ele não mais será tentado e não mais pecará. Todavia, ele não adquirirá a impecabilidade que é própria somente de Deus, que é um ser imutável, ou de Jesus Cristo, conforme veremos adiante. Todavia, antes que estas coisas aconteçam, a tentabilidade e a pecabilidade no homem são coisas patentes e inquestionáveis.

A TENTABILIDADE E A IMPECABILIDADE DO REDENTOR Nesse ponto vamos tratar especificamente do Verbo encarnado, Jesus Cristo. A despeito da sua natureza divina, o nosso Redentor Jesus Cristo foi tentado. Como pode Deus ser tentado? Acontece que o nosso Redentor não é somente Deus. Não existe Redentor apenas divino. Ele se torna Redentor também por causa da sua humanidade. O que torna possível a tentação do Redentor? É o fato da Pessoa divina do Verbo, possuindo a natureza divina, ter sido unida a uma natureza humana. Em outras palavras, o Redentor pode ser tentado por causa da sua humanidade adquirida na unio personalis. A Pessoa completa de Jesus Cristo, o Verbo encarnado, passou a ser passível de tentação por causa da sua natureza humana. Não obstante a sua tentabilidade, a impecabilidade do Redentor é uma realidade da qual não podemos deixar de tratar. Esta advém do fato de sua natureza humana ter sido inseparavelmente unida à sua natureza divina. Por essa razão, Jesus Cristo foi uma Pessoa passível de tentação, justamente por causa de sua humanidade, mas com impecabilidade por causa da unio personalis. Esse é o assunto que vamos desenvolver nas próximas páginas.

A NATUREZA DA TENTABILIDADE DO REDENTOR A fim de entendermos a questão da tentabilidade, vamos examinar a natureza dela. Se a tentabilidade for “geralmente entendida como uma atração de uma pessoa para cometer pecado através da oferta de algo aparentemente sedutor”, então Jesus Cristo era não somente impecável como também intentável. Como Jesus possuía os atributos da Divindade, ele não poderia ser atraído ao pecado, portanto, não podendo ser tentado. Entretanto, se por tentabilidade entende-se a exposição aos ataques de Satanás, que sugere fazer coisas que são passíveis de serem feitas, então Jesus Cristo realmente foi tentado. Teoricamente, todas as coisas sugeridas por Satanás eram passíveis de serem feitas.

A. AS TENTAÇÕES DE QUE JESUS ERA PASSÍVEL As tentações das quais Jesus era passível eram as tentações externas, vindas de

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Satanás. A natureza dessas tentações foi o fato de ele ter sido tentado a fazer coisas que ele poderia ter feito porque não havia nada de imoral nelas, embora ele não as devesse fazer. Satanás foi tão astuto que pediu que Cristo fizesse uma coisa muito inocente: transformar pedras em pães, que era algo possível ao Deus encarnado. Afinal de contas, ele faria coisas muito mais poderosas. Na segunda tentação, foi-lhe sugerido confiar na providência divina, o que em si mesmo não é mal; na terceira tentação, então, Satanás perdeu as estribeiras e sugeriu que Jesus o adorasse em troca de todas as riquezas e poder. Como as coisas sugeridas por Satanás eram perfeitamente factíveis, então as tentações foram reais. Além disso, a natureza das tentações de Jesus foi diferente da dos outros homens. Ele foi provado como nenhum outro o foi. Além da realidade das tentações, havia o fato de Jesus ser muito mais sensível à tentação do que todos os outros homens em virtude da situação de privação em que se encontrava e pela santidade de sua inclinação santa. Quanto mais santa é a pessoa tentada, mais ela é sensível ao sofrimento que a tentação traz. Por isso, para ele, as tentações foram muito mais severas do que para nós. No Getsêmani, Jesus foi tentado a abandonar o plano de Deus ao pedir que o cálice fosse tirado dele (Mt 26.39). Com toda certeza, Jesus experimentou tentações muito mais fortemente do que nós em virtude da sua sensibilidade diante de todas as coisas que estavam acontecendo com ele. Ele foi tentado em todas as faculdades de sua alma e do seu corpo. Cristo foi tentado em cada parte do seu ser como qualquer outra pessoa é tentado em cada parte de sua humanidade.

B. AS TENTAÇÕES DE QUE JESUS NÃO ERA PASSÍVEL As tentações das quais Jesus não era passível eram as tentações internas. Estas são nascidas num coração pecaminoso, e este Jesus não possuía. Portanto, ele não foi tentado por sua própria cobiça, de que Tiago fala (Tg 1.14, 15). Existe uma grande diferença entre a tentação que vem de fora e a que vem de dentro. Quanto à primeira, Jesus Cristo era tentável, mas, quanto à segunda, ele era intentável. Jesus Cristo foi tentado por Satanás a fazer coisas que, em si mesmas, não eram más (exceto a tentação da adoração a ele), mas às quais ele não deveria ceder, pois, se as obedecesse, ele faria a vontade de Satanás, e não a vontade de seu Pai Celestial, mas ele nunca foi tentado por sua própria cobiça.

A FINALIDADE DA TENTABILIDADE DO REDENTOR O Redentor tinha um ministério a cumprir entre o seu povo, e, como já vimos em um livro recentemente publicado, ele teve que ser preparado aqui neste mundo para essa tarefa. Além do que já dissemos, Cristo teve que aprender mais uma

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coisa na sua tarefa de Redentor: a socorrer seus discípulos e a servir de exemplo para eles, sendo a tentação uma parte integrante do seu tempo de humilhação.

A. SOCORRER OS QUE SÃO TENTADOS Ninguém pode negar os sofrimentos que a tentação lhe causava. O Redentor tinha que passar pelo teste da tentação, por ser homem, para que pudesse realizar eficazmente a obra da redenção. Segundo o autor de Hebreus, ele teve que passar por isso para que pudesse socorrer os que são tentados. Hebreus 2.18 – “Pois naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados.”

O sofrimento causado pela tentação advém do fato dele, sendo absolutamente santo, ser exposto a ponto de se sugerir que ele adorasse o diabo ao invés de Deus, a quem mais ele amava e de quem havia vindo. Se ele não fosse tentado, não seria vitorioso sobre o pecado e não poderia dar vitória aos filhos de Deus, seus irmãos. A tentabilidade de Cristo o expôs à tentação a fim de que pudesse ser ajudador dos outros tentados. Se não fosse tentado não poderia ser o salvador vitorioso do seu povo. Portanto, ele teve que ser tentado necessariamente, como homem que também era, para poder ser o irmão vencedor sobre as tentações e pudesse, assim, socorrer os que são tentados. Pela dureza das tentações, mesmo que inocentes (como veremos abaixo), é que o texto da Escritura diz que Jesus Cristo resistiu até o sangue na sua luta contra o pecado (Hb 12.4) e literalmente diz que Jesus Cristo “nos dias da sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte, e tendo sido ouvido por causa da sua piedade” (Hb 5.7), tão grande foi a sua luta. Portanto, as tentações servem para tornar Cristo apto para socorrer os que são tentados. A base bíblica disso está em Hebreus 2.18, como foi visto acima. Cristo teve que ser aperfeiçoado, como homem que era, para exercer a sua função redentora (Hb 2.10). Esse aperfeiçoamento nada tem a ver com imperfeição em Cristo, mas com um equipamento e preparação que vem somente através do sofrimento. Somente através dos sofrimentos (também causados pelas tentações) é que Cristo pode ter simpatia com os outros sofredores por causa da tentação. Quando Cristo passou pelas tentações e as venceu, ele veio a ser qualificado experimentalmente para prestar socorro aos seus irmãos que passam pelas tentações, em grande sofrimento. Além disso, por causa da união das duas naturezas numa só personalidade, a do Filho, houve outros efeitos na Pessoa do Mediador que são muito importantes, e que não podem ser esquecidos, num estudo como esse.

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B. SERVIR DE EXEMPLO AOS SEUS DISCÍPULOS As tentações de Jesus servem de exemplo aos seus discípulos de, forma que, como Cristo, eles aprendam a resistir à tentação e a obedecer a Deus. É nesse sentido também que somos encorajados a olhar para Jesus que “em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia” e “suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo” (Hb 12.2, 3). Cristo passou por provas duras e resistiu a todas as tentações, padecendo sofrimentos. É nesse sentido que devemos imitá-lo. O fato de Cristo vencer tudo não significa que foi fácil, pois a sua vitória teve o derramamento de sangue e lágrimas. Como servo que foi, ele sofreu muito, a ponto de seu rosto ficar desfigurado mais do que o de qualquer homem (Is 52.14). Com o seu sofrimento e a conseqüente vitória, as tentações que o Redentor sofreu nos estimulam a sermos vitoriosos. Essa é uma realidade perfeitamente possível. João, escrevendo aos jovens cristãos do seu tempo (e de todos os tempos), disse: “Jovens, eu vos escrevi, porque sois fortes, e a palavra de Deus permanece em vós, e tendes vencido o maligno” (1Jo 2.14).

C. FAZER PARTE DA HUMILHAÇÃO DE JESUS CRISTO A tentação pode ser considerada como humilhação porque envolve sofrimento (Hb 2.18). Não existe tentação sem algum tipo de sofrimento, e o sofrimento em Jesus Cristo foi bem maior do que o sofrimento que os outros seres humanos possuem por causa da sua natureza santa. Ser tentado a desobedecer a Deus é algo muito duro para Jesus Cristo. Essa é uma das razões para crermos seriamente que, depois do completamento da redenção, não haverá mais tentação. Embora continuemos sendo seres humanos mutáveis, para livrar-nos de quaisquer sofrimentos Deus não permitirá que sejamos tentados. Por essa razão, ele lançará o tentador na segunda morte. Nunca mais ele assediará os filhos de Deus, impingindo-lhes sofrimentos através das tentações. Mas Cristo teve que passar por elas, a fim de que pudesse nos livrar delas depois da completamento da salvação.

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CAPÍTULO 11 ENSINO GERAL SOBRE A TENTAÇÃO DO REDENTOR

O

assunto da impecabilidade de Jesus Cristo não pode ser estudado separado do assunto de Sua tentabilidade. Como isso já foi feito nos capítulos anteriores, a questão a ser levantada agora é sobre a realidade da tentação pela qual ele passou. Parte desta matéria já foi tratada no capítulo sobre a impecabilidade de Jesus Cristo. Todavia, neste capítulo, trataremos da tentação em geral, e, posteriormente, em outro capítulo, trataremos da tentação específica a que nosso Senhor foi submetido.

O SENTIDO DE TENTAÇÃO Há uma certa confusão na mente de muitos cristãos a respeito do significado de tentação. Alguns deles confundem tentação com provação. As duas palavras, no grego, embora possuam a mesma raiz, não significam a mesma coisa, ainda que a tentação seja uma provação, mas nem toda provação seja tentação. O caso típico dessa dificuldade está claro na Carta de Tiago. Veja a dificuldade: Tiago 1.2, 3 – “Meus irmãos, tende por motivo de toda a alegria o passardes por várias provações, sabendo que a provação da vossa fé, uma vez confirmada, produz perseverança.”

No verso 2, aparece o substantivo grego peirasmoi=j (peirasmois) que é traduzido como provações. No verso 3, a palavra portuguesa provação vem de outra palavra grega, doki/mion (dokimion), que também significa “provar”, “testar”.429 Logo abaixo, no mesmo capítulo Tiago fala: Tiago 1.12-14 – “Bem-aventurado o homem que suporta com perseverança a provação; porque, depois de ter sido aprovado, receberá a coroa da vida, a qual o Senhor prometeu aos que o amam. Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser 429. Ver Joseph Henry Thayer, Greek-English Lexicon of the New Testament (Grand Rapids: Zondervan, 1973), 155.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR tentado pelo mal, e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quanto esta o atrai e seduz.”

Vejamos o significado dessas palavras usadas na língua grega: No verso 12, aparece a palavra grega peirasmo/n (peirasmón), que é traduzida como provação. No verso 13, aparece o verbo grego peirazo/menoj (peirazomenos), que é trazido como ser tentado, e a peira/zomai (peirazomai), que é traduzido como sou tentado. Então, aparece a)pei/rastoj (apeirastos), que é a qualidade divina de não ser tentável. Finalmente, nesse verso, aparece o verbo peira/zei (peirazei), que é traduzido como tenta, referindo-se ao que Deus não faz. No verso 14, aparece novamente o verbo peira/zetai (peirazetai), que é traduzido como é tentado. Sem muita necessidade de conhecimento do grego é possível perceber que peira/smon (provação) e peirasmoi=j (provações) e todas as outras formas do verbo peira/zw (peirazo, tentar) possuem a mesma raiz, mas possuem significados bem diferentes. Além do sentido de tentar, de incitar ao mal, o verbo grego peira/zw também pode significar “testar”, “provar”.430 Todavia, há mais um sentido que a palavra grega peira/zw (tentar) indica: ela pode referir-se à tentativa humana de provocar ou desafiar Deus (veja exemplos disso em Sl 95.9; 106.14; 1Co 10.9), especialmente com referência a Deus. Tanto o substantivo como o verbo podem, portanto, ser usados num sentido bom (provar ou testar), num sentido proibido (provocar, desafiar) ou num sentido mau (tentar). Façamos algumas comparações importantes entre o homem, Deus e o Deushomem no que respeita às provações e às tentações.

A. A PROVAÇÃO E A TENTAÇÃO COM RELAÇÃO AO HOMEM 1. O HOMEM PODE TESTAR PESSOAS, E TAMBÉM PODE TENTAR PESSOAS A Escritura mostra que crentes podem colocar pessoas sob provas para verificar a fidelidade delas. Jesus Cristo tem uma palavra de aprovação para os crentes da igreja de Éfeso, que colocou sob prova alguns homens que se declaravam com autoridade apostólica dentro da igreja. Veja o que Jesus diz ao líder da igreja: Apocalipse 2.2 – “Conheço as tuas obras, assim o teu labor como a tua perseverança, e que não podes suportar homens maus, e que puseste à prova (e)pei/rasaj) os que a si mesmos se declaram apóstolos e não são, e os achaste mentirosos.” 430. Ver Joseph Henry Thayer, Greek-English Lexicon of the New Testament (Grand Rapids: Zondervan, 1973), 498.

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É possível a qualquer um de nós colocar pessoas sob provas a fim de verificar a sua fidelidade ou lealdade à fé ou à Cristo ou mesmo a qualquer causa. Veja que o verbo usado (peira/zw) tem o significado de testar, provar. Geralmente os que possuem dons de mestres são colocados à prova para que evidenciem a sua fidelidade à verdade de Deus, e também estes podem por à prova aqueles que de forma sutil infiltram heresias dentro da Igreja. Foi o caso dos mestres de Éfeso que despacharam os falsos apóstolos do meio da igreja porque os puseram à prova, e estes últimos foram reprovados nela. Além de poder (e às vezes isso é um dever dele) colocar pessoas à prova, o homem também pode (embora não deva) também tentar uma outra pessoa, como infelizmente tem sido muito comum, mesmo entre os filhos de Deus, induzindo-a ao erro. Pedro tentou Jesus (Mt 16.21-23; cf. Mc 8.31-33), tentando-o induzir a fugir da sua trajetória redentora, a ponto de Jesus Cristo chamá-lo de “Satanás”, porque ele estava fazendo o que era próprio do Maligno. Nesse sentido, os homens provocam à ira uns aos outros. Certa vez, alguns fariseus, abordando Jesus, “tentando-o (peira/zontej), pediram-lhe que lhes mostrasse um sinal do céu” (Mt 16.1). Nesse caso, o verbo usado pode ser entendido nos dois sentidos: provar e tentar. Eles poderiam estar querendo testar se Jesus era de fato o que os seus discípulos diziam que ele era, mas também o verbo (que é traduzido como tentar), aqui, pode indicar a intenção deles de induzir Jesus Cristo a fazer alguma coisa que ele não devia, pois o intento deles sempre foi o de encontrar em Jesus alguma pedra de tropeço (veja Jo 8.6). Portanto, os homens (cristãos ou não) podem tanto testar como tentar uma outra pessoa, porque ambas as coisas são possíveis aos homens.

2. O HOMEM PODE SER PROVADO E PODE SER TENTADO Essa situação inversa também é verdadeira em relação ao homem. Essa é uma conclusão simplesmente lógica, embora possa ser provada escrituristicamente com muita facilidade. Se ele pode provar outros homens, significa que outros homens podem prová-lo. Além de serem provados, podemos com certeza dizer que, em virtude de sua natureza finita (e, sobretudo, por causa de sua natureza pecaminosa) e por serem criaturas mutáveis, eles também podem ser tentados. Esse ponto é o mais fácil de ser verificado em nossa experiência diária. Portanto, nem sequer usaremos textos da Escritura para mostrar o que está muitíssimo óbvio.

3. O HOMEM PODE INDUZIR À TENTAÇÃO E INDUZIR AO MAL Uma outra dedução lógica que nesse sentido é decorrente da conclusão anterior, a de que o homem pode induzir uma pessoa para que ela seja tentada, isto é, pode (embora não deva) expô-la à tentação. Semelhantemente, ela pode também

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levar uma pessoa a fazer o mal (embora não deva). Exemplos dessa natureza estão abundantes na história da Igreja. Quando um cônjuge não cuida do outro com respeito às necessidades físicas, sexuais e emocionais, então aquele que não recebe a devida assistência fica (com mais facilidade) exposto à tentação. Por isso, Paulo fala aos casados: “Não vos priveis um ao outro, salvo talvez por mútuo consentimento, por algum tempo, para vos dedicardes à oração e novamente vos ajuntardes, para que Satanás não vos tente por causa da incontinência” (1Co 7.5). Nós induzimos ao mal quando provocamos uma pessoa a fazer o que ela não deve fazer. Não somente uma pessoa é capaz de colocar outra debaixo de tentação, mas ela pode também induzir uma outra ao pecado: quando pais provocam seus filhos à ira, eles os estão induzindo a pecar, fazendo o que é proibido pela Escritura (Cl 3.21).

B. A PROVAÇÃO E A TENTAÇÃO COM RELAÇÃO A DEUS 1. DEUS PODE PROVAR OU TESTAR PESSOAS, MAS NÃO PODE TENTAR PESSOAS Podemos dizer que é prerrogativa divina (embora não exclusiva dele) colocar pessoas sob provação. As tentações (provas) que Deus envia aos homens têm o propósito de apurar o caráter de uma pessoa, mas os testes de Deus nunca possuem o caráter de uma solicitação para o mal. Não se esqueça de que a palavra provação, no grego, tem a mesma raiz da palavra tentação. Embora Deus possa provar os seres humanos, ele não pode tentá-los. Essa impossibilidade não é devida à falta de poder de Deus, mas ao fato de essa atitude ser contrária à sua natureza, como o texto de Tiago 1.13 deixa claro. Deus prova, mas não tenta. A palavra é a mesma nos dois casos, e quem decide o sentido exato da palavra grega é o contexto. Vejamos o exemplo de Deus em relação a Abraão. Hebreus 11.17 – Pela fé Abraão, quando posto à prova (peirazo/menoj), ofereceu Isaque; estava mesmo para sacrificar o seu unigênito aquele que acolheu alegremente as promessas (cf. Gn 22.1).”

Perceba que Deus colocou Abraão sob prova e o verbo é peira/zw, que aqui é traduzido como “provar”, mas não pode ser dito de Deus que ele tentou Abraão, isto é, que ele o tenha induzido ao mal, porque tentar é uma impossibilidade na essência divina. O texto de Tiago diz que ele “a ninguém tenta”. Essa impossibilidade de Deus tentar é constitucional do seu Ser.

2. DEUS PODE SER PROVADO, MAS NÃO PODE SER TENTADO Por outro lado, podemos dizer que Deus pode ser provado. A tradução da Bí-

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blia em português cai nas mesmas dificuldades que as Bíblias inglesas na hora de traduzir o verbo peira/zw. Elas freqüentemente o traduzem como tentar (ao invés de provar ou testar), e aplicam a Deus, trazendo algum tipo de dificuldade de entendimento para o leitor incauto. Já vimos que a palavra grega com a mesma raiz pode ter os significados acima. Portanto, é o contexto que define qual significado fica melhor. Quando o contexto não ajuda, então é bom apelarmos para outros textos da Bíblia que afirmam a impossibilidade de Deus ser tentado e da possibilidade dele ser provado, mas a palavra usada tem a mesma raiz. Vejamos alguns exemplos dessas dificuldades que, na verdade, dizem respeito ao fato de Deus ser posto à prova: Êxodo 17.2 – “Contendeu, pois, o povo com Moisés, e disse: Dá-nos água para beber. Respondeu-lhes Moisés. Por que contendeis comigo? Por que tentais ao Senhor? (cf. v. 7)”.431

A palavra tentar, no hebraico (hsn), é comumente a mesma palavra equivalente ao verbo grego peira/zw, pois é assim que freqüentemente a LXX o traduz.432 Entretanto, o verbo peira/zw também pode ser entendido como desafiado, provocado. É esse o sentido em vários outros lugares. Freqüentemente os homens o desafiam e o insultam. Além disso, Deus mesmo diz: “fazei prova de mim” (Ml 3.10). Em outras palavras, “eu quero que vocês me testem”, mas jamais podemos dizer que ele pode ser tentado ou ser solicitado para o mal, porque isso é uma impossibilidade em virtude de sua santidade imutável. Deus pode ser provado (colocado sob teste), mas não pode ser tentado pelo mal, também porque o Infinito não pode ser tentado pelo finito.

3. DEUS PODE ATÉ INDUZIR À TENTAÇÃO, MAS NÃO PODE TENTAR Deus pode colocar pessoas a fim de que elas sejam tentadas, embora ele não possa tentar pelas razões acima mencionadas. Conquanto ele não possa tentar, ele pode colocar as pessoas sob tentação para que outros a tentem. Quanto a essa primeira possibilidade, podemos dizer que Deus colocou seu próprio Filho para ser tentado. Um dos verbos que vamos analisar mais adiante é traduzido como “impelir”, o que mostra uma certa compulsão quando Deus botou Jesus para ser tentado. 431. Veja também textos como os textos de Salmos 78.18, 41, 56; 95.9 onde o verbo hebraico é traduzido como tentar, seriam melhor entendidos se fossem traduzidos como provar, pois evitaria a contradição com a idéia de que Deus não pode ser tentado, pois a palavra tentar significa, em geral, para nós, induzir ao mal ou ao erro. Confira alguns versos do Antigo Testamento citados no Novo Testamento onde ora a tradução é “tentar”, ora é “provar” quando a raiz do verbo grego é a mesma. Veja Hebreus 3.8-9; 1Coríntios 10.9, 13 432. Veja Joseph Henry Thayer, Greek-English Lexicon of the New Testament (Grand Rapids: Zondervan, 1973), 498. A LXX é uma versão grega do Antigo Testamento, feita possivelmente dois séculos antes de Cristo.

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Quando fazemos a oração do Senhor, dizemos: “E não nos deixes cair em tentação” (Mt 6.13). Geralmente entendemos essa frase da seguinte maneira: “Senhor, quando somos tentados, não nos deixes ceder à tentação”, que é certamente uma oração que devemos fazer, pois Deus pode perfeitamente nos fortalecer na hora da tentação, mas não é esse o sentido da oração. O verbo usado por Jesus Cristo dá a entender: “não nos induzas à tentação” ou “não nos exponhas à tentação”, ou ainda, “não nos entregues à tentação”. Essa é uma prerrogativa divina, certamente com santos propósitos de tornar os seus filhos fortalecidos e amadurecidos nas lutas contra o mal.

C. A TENTAÇÃO E A PROVAÇÃO COM RELAÇÃO AO DEUS-HOMEM 1. JESUS CRISTO PODE PROVAR PESSOAS, MAS NÃO PODE TENTÁ-LAS Nesse sentido, ele é absolutamente igual ao seu Pai, mesmo sendo o Filho que se encarnou. A natureza divino-humana de Jesus Cristo lhe permite testar pessoas, mas o fato de ser Deus unido a uma natureza humana o impede de tentar pessoas. Ele colocou Pedro sob prova e testou vários de seus discípulos, provando a fidelidade deles, mas a santidade essencial de Jesus Cristo, de acordo com a sua divindade, o impede de tentar pessoas. É contra a sua natureza divina (ainda que unida à natureza humana) levar alguém a pecar.

2. JESUS CRISTO PODE SER PROVADO, MAS PODE TAMBÉM SER TENTADO Nesse sentido, ele é diferente de seu Pai na segunda parte da assertiva. Deus, o Pai, pode ser provado, mas não pode ser tentado, pelas razões já vistas. No entanto, Jesus Cristo foi tanto provado quanto tentado. Foi provado porque isso é permitido à Divindade, e foi tentado por causa da sua humanidade. A unio personalis permite que a Pessoa do Redentor seja tentada. Ele foi colocado debaixo de prova em aflições, em virtude de ser servo, e também experimentou tentação em virtude de sua humanidade. Entretanto, todas essas coisas vistas acima a respeito de Deus, do homem, e de Jesus Cristo, o Deus-homem, dizem respeito somente às tentações externas, não internas – assunto que será explanado logo abaixo.

OS TIPOS DE TENTAÇÃO Vejamos, nesta parte do capítulo, os dois tipos de tentação que existem e a relação deles com os seres humanos e com o Redentor divino-humano: as tentações externas e as internas.

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A. TENTAÇÃO EXTERNA A tentação externa é aquela que vem de fora, da parte dos homens ou do próprio Tentador, mas nunca de Deus ou do Redentor. Nesse sentido, podemos falar com certeza que a Pessoa do Redentor foi tentada. Várias vezes ele foi objeto dessa tentação externa.

1. EXEMPLOS DE TENTAÇÃO EXTERNA A Escritura mostra exemplos sem conta de tentações externas que vieram aos homens. A tentação externa pode ter apenas duas fontes: a que procede do homem e a que procede do próprio Tentador.

a. Tentação externa da parte dos homens (1) Jesus foi tentado por Pedro Análise de Texto Mateus 16.23 – “Mas Jesus, voltando-se, disse a Pedro: Arreda! Satanás; tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das cousas de Deus, e, si, das dos homens.”

Cristo começava a anunciar a sua necessidade de trilhar o caminho do sofrimento e da morte e da conseqüente ressurreição. Pedro não gostou desse caminho proposto por Jesus. Além de pedir que Jesus tivesse compaixão de si mesmo, Pedro asseverou taxativamente: “isso de modo algum de acontecerá” (v. 22). Isso quer dizer que Pedro estava disposto a tudo – inclusive à violência – para impedir que Jesus trilhasse aquele caminho. (a) Jesus chamou Pedro de “Satanás” Foi aí que Jesus voltou-se para Pedro e o chamou de “Satanás”. Essa foi a resposta imediata de Jesus à tentação de Pedro. Justamente agora, que Jesus tinha acabado de elogiar Pedro, “Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai que está nos céus” (v. 17), Jesus o chama de “Satanás”. Que triste contraste! De um “bem-aventurado” para Satanás. Que queda de opinião! Na verdade, Pedro não era Satanás, mas portou-se como Satanás, pois quis desviar Jesus do seu propósito redentor. Satanás sempre tentou desviar Jesus dos planos de Deus e levá-lo à obediência a si próprio. Devemos notar, na tentação de Pedro, a sutileza de Satanás em usar instrumentos familiares para concretizar seus propósitos. Satanás usou uma pessoa aparentemente insuspeita, um homem que amava profundamente Jesus e que sabia quem

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ele era. Matthew Henry disse que “assim Satanás atacou Adão através de Eva; Jó através de sua esposa; e Cristo através de seu amado Pedro”.433 Pedro não era Satanás, mas instrumento através do qual Jesus Cristo viu Satanás agindo. (b) Jesus repeliu Pedro “Arreda! Satanás.”

Essa expressão significa: “Longe mim. Eu não tenho nada contigo e nem tu tens comigo”. Jesus sempre vai repelir aqueles que não se preocupam com as coisas de Deus primeiro, aqueles que não prestam atenção às prioridades de Deus. Jesus teve coragem de repreender um amigo muito próximo quando ele estava errado. Isso quer dizer que também devemos ter a devida santa coragem de advertir alguém que não esteja se preocupando com as coisas de Deus, mas deste mundo. O que Jesus fez com Pedro deve ser seguido por nós, a fim de que o reino de Deus seja ampliado em nosso meio, e as coisas de Deus possam ser priorizadas. Jesus repeliu Pedro porque ele era “pedra de tropeço” para Jesus. Isso quer dizer que Pedro era um empecilho para Jesus cumprir a sua obra. Pedro estava tentando impedir, ou, no mínimo, desencorajar Jesus a concretizar seu plano redentor. Jesus repeliu Pedro porque ele não havia compreendido realmente a sua missão. Pedro não teve más intenções ao repreender Jesus. Ele queria o bem de Jesus (não seu sofrimento e morte), mas ele não havia entendido a real missão do Messias. Todavia, Jesus preferiu executar o plano da nossa salvação ao plano de Pedro sobre a sua própria segurança. Cristo não agradou a si mesmo, mas sofreu por agradar-se de nós. Era isso que Pedro ainda não havia entendido. Por isso Jesus o repeliu violentamente. (c) Jesus disse a Pedro que ele fazia o ministério de Satanás “Tu cogitas das coisas dos homens, não das de Deus.”

Pedro passou da condição de “bem-aventurado” para a condição de obediente a “Satanás”. Isso quer dizer que um bom cristão pode ser repentinamente o instrumento para a tentação de uma outra pessoa. Isso quer dizer que mesmo uma pessoa crente pode ser usada para cumprir os propósitos malignos de Satanás. Por essa razão, devemos ter cuidado para não cairmos na mesma armadilha de Satanás. Quando não damos ouvidos á verdade de Deus, acabamos caindo na mentira de Satanás e somos usados por ele. Quando os nossos maiores interesses são as coisas deste mundo – e não as coisas de Deus, acabamos cumprindo o ministério de Satanás. 433. Matthew Henry, Exposition of the New Testament, vol 1 (London: James Nisbet and Co., 1857), 236.

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Lembre-se de que essa tentação de Jesus veio de fora, de uma outra pessoa. Jesus nunca foi tentado internamente.

(2) Jesus foi tentado pelos escribas e fariseus João 8.6 – “Isto diziam eles tentando-o, para terem de que o acusar. Mas Jesus inclinando-se, escrevia na terra com o dedo.”

O contexto é o da mulher que foi pega em flagrante adultério. Jesus estava no templo. Os escribas e fariseus trazem uma mulher pecadora e a expõem publicamente à vergonha, esperando o veredicto de Jesus. Na verdade, eles não queriam saber realmente qual era a opinião de Jesus. Aquilo era uma armadilha. Eles estavam esperando uma ocasião para pegar Jesus nalgum erro. Por essa razão, o evangelista diz que eles faziam aquilo “tentando-o, para terem de que o acusar”. O verbo tentar aqui é o mesmo usado em outros lugares: peira/zontej. O sentido aqui não é o de “provar” ou “testar”, ou ainda “desafiar”. Eles estavam tentando induzir Jesus a um erro. Foi uma tentativa de fazê-lo cair em contradição com a lei para terem alguma coisa que pudessem testemunhar contra ele. Mas Jesus é sábio, e por causa da insistência deles na pergunta, prepara-lhes uma das armadilhas mais inteligentes de que a história tem notícia (leia v. 7-11). Jesus foi tentado por eles de fora, sem que houvesse qualquer solicitação na alma de Cristo que o levasse a fazer o que não devia.

(3) Jesus foi tentado pelos transeuntes Marcos 15.30 – “Salva-te a ti mesmo, descendo da cruz.... desça agora da cruz o Cristo, o rei de Israel, para que vejamos e creiamos” (cf. Mt 27.40-42).

Está evidente que eles zombavam do poder de Jesus, porque ele havia dito que veio salvar os homens, mas não podia salvar a si mesmo. Estavam zombando da sua messianidade e da sua realeza. O propósito deles não era de ver o poder de Jesus, e, muito menos, o de crer nele. Estavam apenas fazendo o que muitos faziam àquela altura: zombaria. Mas, sem o saber, eles estavam novamente sendo instrumentos do Maligno (como o foi Pedro), tentando desviar Jesus no ponto crucial da redenção. Essa era a última cartada do Maligno, dada através das pessoas curiosas que por ali passavam. Os transeuntes não tinham consciência nem da real obra messiânica de Cristo nem da possibilidade de estarem tentando Jesus, para que este abandonasse a sua função redentora descendo da cruz. Observe novamente que Jesus não estava inclinado a descer, a fugir do objetivo divino, mas a tentação que ele recebeu foi externa.

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b. Tentação externa da parte de Satanás Essa tentação será estudada extensivamente no capítulo específico sobre a tentação de Jesus.434

2. A FORÇA DA TENTAÇÃO EXTERNA A força da tentação externa depende da condição da natureza moral de quem está sendo tentado. Certamente uma tentação externa terá mais força sobre uma pessoa irregenerada do que sobre uma pessoa regenerada, embora esta última ainda possua a inclinação para o pecado que é produto de sua natureza pecaminosa que não foi erradicada. Os nossos primeiros pais foram tentados externamente por Satanás, embora tivessem natureza santa, perfeita, sem defeito de criação. A tentabilidade deles está vinculada à sua humanidade, mas a tentação externa não é determinante para a queda de pessoas santas. Elas até podem cair sem que sejam tentadas externamente, como é o caso dos anjos “que não guardaram o seu estado original” (Jd 6). Adão e Eva foram tentados, mas não podemos dizer simplesmente que eles caíram por causa da força da tentação externa. Eles caíram, primeiramente, porque isso era parte de um plano divino que está fora do nosso pleno entendimento; em segundo lugar, eles caíram porque lhes foi dada a capacidade de fazer alguma coisa que fosse contrária à natureza santa com a qual haviam sido criados; em terceiro lugar, eles caíram porque estavam sujeitos à mudança, pois seres criados estão sempre sujeitos à mudança; em quarto lugar, eles caíram também porque foram tentados por Satanás. No entanto, Jesus Cristo, quanto à tentabilidade era semelhante tanto dos anjos como aos nossos primeiros pais, ainda que ele seja chamado de Segundo Adão, por possuir uma plena humanidade e por ser finito, porque ele não seria tentável se não fosse finito por causa da sua humanidade. Uma coisa deveria ficar clara neste ponto: uma tentação externa só tem poder quando a natureza interior do ser tentado é inclinada ao pecado, mas não tem poder sobre uma natureza santa, perfeita, e, além de tudo, Jesus Cristo era um ser divinohumano. Embora tentável por causa da sua humanidade, Jesus Cristo não era inclinado para nada que não fosse santo, porque a sua natureza não era corrompida pelo pecado. Portanto, nesse sentido, com respeito às tentações externas, Jesus nunca se sentiu tentado (inclinado) a pecar, porque as tentações externas não podem provocar nele nenhum desejo de pecar. Dizer que Jesus Cristo, por causa da sua tentabilidade, estava sujeito a pecar é uma espécie de ignorância da Pessoa do Redentor e de desconsideração para com ela. 434. Veja o próximo capítulo sobre o “Ensino Específico sobre a Tentação do Redentor”.

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As tentações de Cristo foram todas sem pecado, mas a maioria das tentações dos homens caídos é pecaminosa, como veremos adiante. Essas tentações são nascidas em desejos ímpios e proibidos que os homens possuem.

3. A INOCÊNCIA DA TENTAÇÃO EXTERNA a. A inocência da tentação externa no caso dos homens em geral É altamente desconfortável estar debaixo da tentação. Freqüentemente os que amam Deus sentem-se sujos sob tentação. As coisas comumente sugeridas pelas tentações externas nos causam mal-estar. Há alguma coisa que precisa ser aprendida nessas situações: ser tentado de fora, ou externamente, não é pecado. Satanás (ou outra pessoa qualquer) pode nos tentar a fazer as coisas mais vis, ou pode nos sugerir os pensamentos mais impuros em nossa mente, mas nós podemos rejeitar todas essas sugestões e induções pela atuação da maravilhosa graça de Deus. Devemos ter em mente um dito que foi atribuído a Lutero: “Você não pode impedir que um passarinho voe sobre sua cabeça, mas você pode impedir que ele faça um ninho sobre ela.” Isso quer dizer que não podemos impedir que uma tentação venha sobre nós, mas podemos impedir que ela seja abrigada dentro de nós. Nesse sentido, ser tentado não consiste em pecado.

b. A inocência da tentação externa no caso de Jesus Há semelhança e dessemelhança entre as tentações que Jesus sofreu e as que os homens sofrem. A semelhança está no fato das tentações serem reais e fortes; a dessemelhança está no fato de Jesus não ter tentação vindo da cobiça. As tentações de Cristo foram todas inocentes, isto é, sem qualquer conotação pecaminosa, mas a grande maioria das tentações que sofremos tem um caráter pecaminoso, porque elas são nascidas em nossa inclinação pecaminosa, com desejos ímpios e proibidos. Foi exatamente isso que Tiago nos ensinou: “Ao contrário, cada um é tentado por sua própria cobiça (e)piqumi/aj), quando esta o atrai e seduz. Então a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte” (Tg 1.13, 14).

Essas tentações, portanto, já possuem em seu bojo um aspecto pecaminoso, porque vêm de fonte pecaminosa dentro do coração humano. A palavra grega e)piqumi/aj indica luxúria ou cobiça. Todavia, Jesus não é tentado pecaminosamente. Ele não possui a natureza pecaminosa. Ele foi tentado de fora, do diabo, mas os dardos lançados por Satanás tinham a ver com aspectos inocentes de Jesus Cristo. O fato de uma tentação não ser pecaminosa não implica que ela não seja forte. Shedd diz que “uma tentação

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inocente pode ser maior em sua força do que uma tentação pecaminosa. Cristo foi solicitado por uma tentação sem pecado mais fortemente do que qualquer homem jamais foi por sua tentação pecaminosa”.435 Deixe-me ilustrar o que acabei de falar usando o caso da primeira tentação de Jesus: Por exemplo, ele foi tentado a respeito do pão, quando estava há muitos dias sem comer. Comer era um apetite natural para Cristo. “Um apetite natural pode ser mais forte e mais difícil de controlar do que um apetite vicioso e anatural.”.436 Nesse sentido, as tentações foram muito fortes para ele. Contudo, ele não cedeu a elas. “Além disso, as tentações inocentes de Cristo foram tornadas mais rigorosas e poderosas, em razão da pronta resistência que ele ofereceu a elas. Tentações que são acompanhadas de lutas e oposição contra elas são mais violentas do que aquelas que não o são.”437 Nosso Redentor não foi tentado por paixões pecaminosas do orgulho, da vaidade, do ciúme, da inveja, do ódio, da malícia, ou de outro pecado qualquer. Suas tentações não atingiram nenhum ponto de inclinação para o mal, pois ele era santo. Por essa razão, Satanás apelou para os seus apetites naturais, que não eram pecaminosos em si mesmos. As tentações que ele recebeu eram fortes, mas não tinham conotação de desobediência moral, como as nossas tentações interiores têm. Cristo foi mais tentado por Satanás do que qualquer dos filhos dos homens, mas nunca foi tentado por sua própria cobiça. Por essa razão, somos inclinados a crer que todas as suas tentações são inocentes, sem estimular qualquer maldade nele. Há uma grande diferença entre os apetites naturais por comida e a glutonaria. A glutonaria não é mera nem somente um apetite físico, mas contém um elemento mental e voluntário. O glutão pensa na comida com prazer, e calcula para isso. Mas Jesus não tinha o apetite da glutonaria, simplesmente o apetite natural por comida da qual dependia para viver. A tentação de transformar as pedras em pães não era em si mesma pecaminosa, porque apela para os apetites naturais, não para os apetites desregrados de Jesus, porque ele não os tinha. A glutonaria é uma parte do nosso pecado. Ela expressa a corrupção da natureza humana com respeito ao corpo, mas Jesus não possuía esse tipo de apetite. Por essa razão, também as suas tentações externas não foram pecaminosas. Nosso Senhor Jesus não foi tentado pelos desejos pecaminosos de orgulho, ambição, inveja, malícia, ódio, ira, ciúme, avareza, volúpia, bebedice, ou qualquer outra espécie de “concupiscência”. Ele nunca teve apetite por essas coisas, que são comuns nos homens caídos. O apelo de Satanás da última das três tentações teria um grande efeito sobre os homens caídos, mas encontrou total resistência em Je435. W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. II, 340. 436. Ibid., 340. 437. Ibid., 341.

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sus, porque Jesus não possuía nenhum apetite pecaminoso que pudesse ser despertado, e porque Jesus não possuía nenhuma ligação com o Príncipe deste mundo (Jo 14.30). Se essa tentação externa fosse pecaminosa, Jesus Cristo teria cometido pecado. Todas as tentações de Jesus foram externas, e, em nenhuma delas, ele foi tentado a fazer coisas impuras, mas tanto Satanás como os homens tentaram Jesus na esfera das suas limitações físicas, ou para que ele fizesse alguma coisa boa, mas nunca as tentações externas em Jesus despertaram nele qualquer sentimento pecaminoso. Todos sabemos que Jesus foi tentado várias vezes e de muitas maneiras, mas nunca pecou, porque as tentações externas com relação a ele foram todas sem pecado em si mesmas. Pecaminosas eram as intenções de Satanás e a dos homens que o tentaram.

B. TENTAÇÃO INTERNA A tentação interna tem a ver com a condição pecaminosa do coração do homem. Essa tentação, que procede da inclinação pecaminosa, é uma solicitação para fazer alguma coisa errada, contrária à Palavra de Deus.

1. A PECAMINOSIDADE DA TENTAÇÃO INTERNA Diferentemente das tentações internas a tentação interna em si mesma já é pecaminosa, porque ela procede de um coração pecaminoso. Isso significa que a pessoa tenta a si mesma. É exatamente isso o que Tiago fala em sua Carta: Tiago 1.13, 14 – “Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então a cobiça, depois de haver concebido dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte.”

O verso 12 trata da tentação que vem ao homem, que é a tentação externa. Esta pode vir de várias fontes: de Satanás, dos homens irregenerados e dos próprios homens regenerados, mas jamais ela pode vir de Deus, segundo a afirmação do verso 12. Todavia, no verso 13 Tiago está mencionando a tentação interna, a que vem de dentro, do coração pecaminoso, de onde procede todo o catálogo de pecados que Jesus Cristo menciona em Marcos 7.21-23. O que Tiago está afirmando é que os nossos desejos impuros não procedem de Deus. Por isso ele diz “ao contrário”, isto é, as tentações que ele tem vêm de si mesmo, da sua natureza caída. Mesmos os cristãos genuínos ainda pecam por causa dessa inclinação que lhes amarga a vida cristã. Nem podem os homens culpar o diabo por essas tentações, por que ele não pode introduzi-las dentro deles. Ele pode somente atiçar os nossos impulsos malignos que já estão latentes em nós.

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2. OS PASSOS SEQÜENCIAIS DA TENTAÇÃO INTERNA O texto de Tiago trata muito bem do problema da tentação interna e precisa ser analisado com cuidado, a fim de que este assunto importantíssimo, mas freqüentemente negligenciado, possa ser melhor compreendido. Análise de Texto Tiago 1.13, 14 – “Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então a cobiça, depois de haver concebido dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte.”

a. A tentação interna vem do coração O coração é o órgão central da personalidade humana. Nós somos aquilo que o nosso coração é (Pv 27.19), portanto, o que fazemos, dizemos ou pensamos reflete a nossa natureza interior. Você já reparou que nós não planejamos ter um pensamento impuro? A vontade de praticar alguma coisa impura simplesmente vem de uma esfera mais profunda de nosso ser, que é o coração manchado pela nossa disposição pecaminosa. As inclinações morais do homem estão profundamente afetadas pela maldição da queda e nós somos tentados pelo nosso próprio interior a dizer e a fazer coisas que são contrárias à lei de Deus e que o desagradam. Somos tentados ao pecado em todos os níveis, instigados pela nossa própria pecaminosidade. Jesus, que é a autoridade suprema nessa matéria, disse que “de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura: Ora, todos estes males vêm de dentro e contaminam o homem” (Mc 7.21-23).

Portanto, todos os homens pós-queda possuem essa inclinação para o pecado. Todavia, nunca pode ser dito de Jesus Cristo que ele possuía esse tipo de inclinação pecaminosa ou disposição de pecar, porque ele era “um ente santo” desde o ventre materno (Lc 1.35). Observe duas coisas: que a santidade de sua natureza divina é eterna, imutável, portanto, essencial; que a santidade de sua natureza humana é histórica, mutável, não-essencial. Todavia, Jesus Cristo, segundo a sua natureza humana, nunca pecou, porque essa sua natureza humana foi santificada pela ação do Espírito Santo na concepção e porque ela estava ligada indissoluvelmente à natureza divina. Ele não possuía inclinação pecaminosa porque ele era “um ente” santo em ambas as naturezas.

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b. A tentação interna é chamada de cobiça A palavra grega usada por Tiago para cobiça é e)piqumi/aj (epithumias), que significa “o desejo pelo que é proibido”, “concupiscência”.438 Essa concupiscência internalizada no coração, em si mesma, é pecaminosa. João fala da “concupiscência (epithumias) da carne” (1Jo 2.16) que procede do mundo, isto é, do ambiente pecaminoso em que ainda vivemos. Essa cobiça (ou concupiscência) é pecaminosa, e, em muitos casos, leva o homem a pecar efetivamente. Os impulsos que procedem dessa natureza pecaminosa não são o pecado consumado, mas o combustível pecaminoso para que o pecado possa ser consumado. Portanto, essa cobiça é o elemento tentador que vem de dentro de nós, pois o texto diz que “somos tentados pela nossa própria cobiça”.

c. A tentação interna atrai e seduz Como toda tentação, a sua finalidade é induzir as pessoas ao pecado, atraindoas e seduzindo-as. Todas as tentações são enganosas para persuadir o homem a fazer o que é errado. As tentações internas são especialmente enganosas. A Escritura diz claramente que o lugar de onde essas tentações procedem é desconhecido, desesperadamente corrupto e profundamente enganoso. Veja o que diz o profeta: “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto, quem o conhecerá?” (Jr 17.9). Ora, os males que vêm de dentro (segundo Jesus), procedem de maneira a nos iludir. No fundo, somos enganados por nós próprios, porque somos aquilo que o nosso coração é. Por essa razão, aquilo que nós somos interiormente (concupiscência ou cobiça) nos atrai e seduz. Somos iludidos pela nossa própria natureza pecaminosa, sendo atraídos pelas armadilhas que ela própria nos arma. “Atrai e seduz” – Esses são dois verbos importantes que têm de ser analisados. A atração tem o propósito de sedução. Não existe sedução sem a atração. Como veremos logo abaixo, Davi foi primeiramente atraído pela visão da mulher formosa e enganado por sua própria cobiça. Portanto, essas duas palavras são colocadas de forma perfeita nesse texto. Elas refletem duas facetas muitíssimo ligadas às coisas da natureza pecaminosa em nós e às tentações que procedem de fora. Todas elas apelam primeiramente para os nossos sentidos, atraindo-nos e, então, seduzindo-nos. Jesus Cristo experimentou o sofrimento da tentação externa, mas jamais poderia ter sido “atraído” e “seduzido” por seu próprio coração, que era absolutamente puro e santo. Nunca o seu coração foi enganoso, e, muito menos, desesperadamente corrupto. Portanto, de dentro de seu coração, não poderia vir nada para atraí-lo e para seduzi-lo a fazer o que era contrário à sua inclinação santa. 438. Thayer, Greek-English Lexicon of the New Testament, 238.

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d. A tentação interna pode “conceber” e “dar à luz” o pecado Como eu disse acima, a tentação interna (sendo em si mesma pecaminosa) não é o pecado propriamente. A finalidade dela é gerar e dar à luz o pecado. Perceba que os verbos usados no grego seguem a ordem natural das coisas: primeiro vem a geração, e, depois, o dar à luz, isto é, o pecado é primeiramente concebido no coração, e, então, manifesto externamente. Há os adultérios do coração (quando desejamos alguém que não nos pertence) e os adultérios cometidos fisicamente. Eva (sendo iludida) concebeu o pecado de comer do fruto, e o pecado de cometer o fruto (que é desobediência propriamente dita) foi dado à luz, isto é, é manifesto, quando ela comeu do fruto. Mas de Jesus jamais pode ser dito que cometeu pecado, porque ele não pode ser enganado. O pecado não encontra guarida no coração de Jesus Cristo em virtude da sua natureza divina, que é imutavelmente santa, e da sua natureza humana, que é santa e que não pode pecar em virtude da unio personalis.

e. A tentação interna consumada no pecado gera a morte Quando os homens são atraídos e seduzidos pela sua natureza pecaminosa concupiscente, então eles acabam consumando o pecado e ocasionando a morte. A morte é conseqüência do pecado, que em nós já é nato. É essa natureza pecaminosa que nos mata pelo que nós somos em Adão. O grande problema do homem sob a queda não é a tentação externa, mas a disposição interna, que é sempre inclinada ao pecado, que, uma vez consumado, gera a morte. Jesus Cristo morreu, mas não por causa do pecado cometido em função da atração e da sedução do pecado que veio de sua natureza inclinadamente pecaminosa. Ele morreu por causa do pecado de outros. A morte de Jesus Cristo é judicial, uma morte de Substituto, não por causa da sua natureza pecaminosa, porque ele não a tinha. Jesus nunca foi morto espiritualmente, coisa essa que é comum a todos os descendentes de Adão. Ele não foi contado em Adão, embora tenha sido descendente dele. A sua morte foi o pagamento da penalidade de outros, e não dívida de si mesmo.

3. EXEMPLOS DE TENTAÇÃO INTERNA Essa tentação interna é uma impossibilidade em Jesus Cristo porque Jesus Cristo era santo, e esse tipo de tentação pressupõe um coração pecaminoso, e, por causa disso, essas tentações em si mesmas são pecaminosas. Ele pode ser tentado externamente porque sofrer as tentações externas não excita nenhuma paixão indevida nele, mas ser tentado internamente é pecaminoso, e Jesus não tinha um coração pecaminoso. Todavia, todos os outros homens são passíveis de tentação interna. O texto de

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Tiago fornece a base teológica para se tratar das tentações internas, e os textos abaixo fornecem as provas de que os pecados vêm da esfera mais profunda do ser humano, que está contaminada pelo pecado. Marcos 7.21-23 – “Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura: ora, todos estes males vêm de dentro e contaminam o homem.

O coração é a sede do pecado humano. Esse coração foi poluído do pecado. Nele está o nascedouro de todos os nossos pecados reais. Todas as tentações internas procedem desse coração pecaminoso, que é a parte mais interior de nosso ser. O coração é o centro da personalidade humana, e esse centro determina todas as nossas afeições, pensamentos e volições. A cobiça vem de dentro do coração, concebe e dá à luz ao pecado. Portanto, um homem é tentado por si mesmo a fazer todas essas coisas listadas por Jesus, lista essa que abarca praticamente todos os pecados. Mateus 12.34 – “Raça de víboras, como podeis falar cousas boas, sendo maus? Porque a boca fala do que está cheio o coração.”

Novamente Jesus localiza o centro de toda a tentação. A tentação dos pecados da língua tem nascedouro também no coração. A menos que uma pessoa seja hipócrita, o que ela fala é produto das sugestões do coração. As palavras da boca espelham o coração. Na verdade, o homem é aquilo que é o seu coração. As palavras não são nada menos do que a externalização daquilo que está enrustido no seu interior. As nossas tentações internas são o resultado da corrupção do coração e dali elas brotam, e, então, pensamos coisas más, falamos coisas más, e, por fim, fazemos as coisas más.

4. A FORÇA DA TENTAÇÃO INTERNA A força da tentação interna está vinculada também à tentação externa, embora a primeira não dependa da última. Porque a tentação interna em si mesma já é pecaminosa, porque parte do coração do próprio homem, ele está mais propenso a ser vencido por si mesmo. Quando a tentação vem de fora, se o homem está fortalecido interiormente (a nutrição devida do novo homem), as tentações externas não possuem muita eficácia sobre ele, mas, quando o homem é tentado por sua própria cobiça, ele tem mais dificuldades para vencê-la. Em todas as tentações, sejam externas ou internas, geralmente, o homem é tentado a fazer as coisas erradas nas áreas onde ele é mais fraco. Satanás, que observa os homens há milênios, conhece o ponto vulnerável das pessoas e as ataca no seu calcanhar de Aquiles delas. A astúcia do inimigo é vista no modo como ele

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ataca as pessoas. Sem ser onisciente (que é uma prerrogativa divina), Satanás geralmente se dirige ao ponto onde a pessoa é mais suscetível à queda. Satanás é habilidosíssimo nessas investidas. Todavia, a nossa natureza pecaminosa (o nosso coração pecaminoso) também nos envia impulsos pecaminosos na área em que somos comumente mais fracos. Isso ela faz de um modo inexplicável. O coração envia impulsos pecaminosos para que o próprio homem concretize um pecado. Se o homem não está firmado na verdade de Deus, com maior facilidade ele será vencido por sua própria tentação. Então acontece a concepção e o nascimento do pecado, conforme o ensino de Tiago. Há um sentido em que é muito mais fácil lutar contra as tentações externas do que contra as internas. Para ter sucesso, as tentações internas geralmente têm de encontrar disponibilidade no coração para que o homem peque. Se o homem está fortalecido interiormente, se o seu coração está cheio da Palavra de Deus, com grande probabilidade ele não vai pecar contra Deus (Sl 119.11). Entretanto, quando as tentações internas são nascidas naquele que tem disposição para pecar, a luta se torna mais difícil e a força da tentação é maior porque essa tentação é gerada na própria pessoa que tende a pecar. Jesus Cristo não enfrentou esse tipo de tentação, como já vimos. Ele foi realmente tentado, mas não como os homens caídos o são. Ele não foi tentado por sua própria cobiça. Ele não experimentou o desejo de querer pecar. As tentações que Cristo sofreu, embora fortes, não foram pecaminosas em sua fonte e em sua natureza. As tentações provenientes dos desejos maus têm qualidades morais diferentes daquelas apresentadas através dos desejos inocentes. As tentações de Cristo vieram de fora, externas, mas os homens caídos são tentados por si mesmos, e, para eles, essa tentação é forte devido à sua própria fraqueza.

5. COMO SABER SE A TENTAÇÃO É INTERNA OU EXTERNA? Ás vezes é difícil distinguir entre as sugestões de Satanás e os apelos que partem do nosso coração. Todavia, vamos tentar estabelecer duas diferenças: 1. Os impulsos para o mal que procedem de nosso próprio coração brotam em nossos pensamentos mais pausadamente, vagarosamente, por degraus. Então, o pecado é planejado em nossos pensamentos; antes dele ser aprovado pela nossa razão, ele já foi trabalhado secretamente. O impulso que vem de fora, de Satanás, é mais facilmente reconhecido pela sua rapidez e precipitação. A tentação de Satanás é comparada a um dardo inflamado (Ef 6.16), porque ela vem abruptamente, e tenta nos pegar de surpresa. 2. Quando você recebe um dardo inflamado do Maligno, você logo tem a tendência de se desviar dele e de rejeitá-lo, e mantém o escudo sempre empunhado para se defender dele. Você foge mais facilmente da tentação que vem de fora do que daquela que vem de dentro. A esta última você freqüentemente dá boas-vin-

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das, porque ela parte de você mesmo, até que ela se aninha em você e quebra qualquer pensamento contrário que você possa oferecer. Somos mais vencidos pelas tentações internas do que pelas externas. A grande dificuldade, contudo, acontece quando os dardos inflamados do Maligno vêm ao encontro dos nossos desejos pecaminosos nascidos no coração. Nesse caso, Deus tem que intervir especialmente, fortalecendo a nossa nova natureza para não cairmos em pecado. Veremos logo abaixo um exemplo do que acabamos de afirmar.

6. TENTAÇÃO EXTERNA E TENTAÇÃO INTERNA COMBINADAS Segundo o meu entendimento, um tipo de combinação dos dois tipos de tentação é o que aconteceu a Davi, quando ele saiu a passear pelo seu palácio e avistou uma bela mulher, Bate-Seba, banhando-se nos aposentos ao lado do seu palácio. Vejamos o exemplo de maneira mais detalhada: Análise de Texto O texto que narra o exemplo de Davi e Bate-Seba é o de 2 Samuel 11.1-5. “Decorrido um ano, no tempo em que os reis costumam sair para a guerra, enviou Davi a Joabe, e a seus servos com ele, e a todo o Israel, que destruíram os filhos de Amom, e sitiaram a Rabá; porém Davi ficou em Jerusalém. Uma tarde, levantou-se Davi do seu leito, e andava passeando no terraço da casa real; daí viu uma mulher que estava tomando banho; era ela mui formosa. Davi mandou perguntar quem era. Disseram-lhe: é Bate-Seba, filha de Eliã, e mulher de Urias, o heteu. Então enviou Davi mensageiros, que a trouxessem; ela veio, e ele se deitou com ela. Tendo-se ela purificado da sua imundícia, voltou para sua casa. A mulher concebeu e mandou dizer a Davi: Estou grávida.”

Há alguns pontos nesse texto que deviam ser levados em conta ao considerarmos essa matéria da combinação da tentação externa com a interna.

a. A tentação externa veio a Davi quando ele estava fora do seu dever “Decorrido um ano, no tempo em que os reis costumam sair para a guerra, enviou Davi a Joabe, e a seus servos com ele, e a todo o Israel, que destruíram os filhos de Amom, e sitiaram a Rabá; porém Davi ficou em Jerusalém.”

Era dever dos reis ir à frente das batalhas, chefiar o exército e dar exemplo de coragem. O front era o lugar dos reis naquele tempo, segundo o texto. Era dever de Davi empunhar a espada e liderar os exércitos de Israel contra os inimigos. Davi tinha sido assim em toda a sua carreira militar, pois ele havia sido um grande soldado, e fôra alçado à posição de comandante das forças de Israel. Ele estava

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acostumado a grandes batalhas e nunca fugia delas. Mas, dessa vez, passou-se um ano e Davi não saiu à guerra. Ao contrário, Davi mandou Joabe e o seu exército para a batalha, porém Davi ficou em Jerusalém. Um homem corre perigo quando está fora do seu dever.

b. A tentação externa veio a Davi quando ele estava inativo “Uma tarde, levantou-se Davi do seu leito, e andava passeando no terraço da casa real; daí viu uma mulher que estava tomando banho; era ela mui formosa.”

“Uma tarde, levantou-se Davi do seu leito”. Isso indica que Davi não estava exercendo devidamente as suas atividades reais. Certamente um rei tem muitas coisas para fazer: muita gente com quem falar, muitas entrevistas com chefes de estado, muitos documentos para verificar e assinar e tarefas administrativas que cabem a ele somente. Todavia, parece que o rei Davi estava inativo em muitos dos seus deveres. O texto diz que ele estava dormindo durante a tarde. É possível que aquele fosse um tempo de folga depois de tantas atividades, mas não parece ser isso o que o texto transmite. O texto dá a entender que Davi, já fora do seu dever de Rei-soldado, não estava enfronhado nas múltiplas atividades da realeza. É possível que essa inatividade se tenha tornado um costume. Todos nós sabemos que a inatividade predispõe uma pessoa a coisas que não edificam, pois torna a mente desocupada e indisposta, em geral, para cousas boas, e geralmente mentes desocupadas podem vir a ser oficina do diabo. Pois foi o que aconteceu. “... E andava passeando no terraço da casa real.” Não há nada de mal em um rei passear nos jardins de sua casa. Não podemos julgar Davi tão severamente. No entanto, o propósito da narrativa é mostrar como a tentação encontrou Davi. Ele estava folgado, provavelmente vestido em trajes mais íntimos, próprios de quem acabou de se levantar da cama. Quando um homem se levanta da cama, especialmente numa tarde de preguiça, freqüentemente ele está propício a atividades de sua vida íntima. E Davi estava passeando... E, nesse caso, certo é o ditado popular que diz que “mente desocupada é oficina do diabo”. “... daí viu uma mulher que estava tomando banho.” Por razões que não podemos tratar aqui, a tentação externa foi essa mulher [certamente despida] a banharse. Imagine um homem [provavelmente em trajes de dormir] observando uma mulher a se banhar. Perceba que a tentação é externa. Não podemos afirmar categoricamente que a mulher estivesse propositalmente se banhando ali para chamar a atenção do rei, mas, de qualquer forma, foi uma tentação para um homem como Davi prestar muita atenção a ela.

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c. A tentação externa despertou a tentação interna Um homem ainda jovem, que não vivia às mil maravilhas com sua esposa, após uma cochilo durante a tarde, pode facilmente estar predisposto ao que não deve. Para agravar a situação de Davi, para despertar mais ainda a sua cobiça (que é a função da tentação externa), veja a seguinte observação do texto: “... era ela mui formosa.”. Não havia necessidade de um binóculo para ver a formosura da mulher. A beleza da que se banhava aguçou ainda mais as disposições pecaminosas de Davi, que havia se levantado da cama depois de uma tarde de preguiça. O despertamento que a tentação externa causou nas inclinações internas de Davi está visualizado no seu interesse imediato por aquela mulher. “Davi mandou perguntar quem era. Disseram-lhe: é Bate-Seba, filha de Eliã, e mulher de Urias, o heteu.”

Davi tomou todas as precauções necessárias, mandou um informante saber quem ela era. Nesses procedimentos ele evidencia as suas disposições interiores de ceder aos impulsos internos causados pela tentação externa que lhe havia chegado pelo sentido da visão. A sua cobiça ficou patente na sua disposição de levar a cabo as suas intenções pecaminosas com Bate-Seba.

d. O pecado de Davi pela combinação das duas tentações “Então enviou Davi mensageiros, que a trouxessem; ela veio, e ele se deitou com ela.”

Novamente, os funcionários públicos de confiança de Davi entraram em cena para trazê-la para o palácio, sem que isso provocasse escândalo. Sua intenção não era simplesmente saber quem ela era, mas possuí-la, mas de uma forma relativamente secreta, usando de “suas prerrogativas reais”, como diriam os adeptos da realeza. Esses são os pecados escondidos do povo e conhecidos apenas das pessoas de confiança que freqüentemente [por interesse sórdido, como a manutenção de privilégios] fazem vistas grossas aos pecados dos governantes. Davi acabou dando vazão à sua pecaminosidade interna despertada por uma tentação externa. Para usar uma linguagem bem chã e popular, a combinação desses dois tipos de tentação é “juntar a fome com a vontade de comer”. Isso significa que, quanto mais você está com fome, mais apetitosa se torna a comida que lhe é oferecida. Foi o que aconteceu com Davi. As suas disposições internas para o pecado já estavam latentes. Apenas tornaram-se patentes quando houve o estímulo da tentação externa. Por causa da santidade das suas duas naturezas, a divina e a humana, jamais uma tentação externa poderia despertar qualquer desejo impuro em Jesus, pois o seu interior não possuía nenhuma disposição para o pecado, pelas razões já mencionadas acima.

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A REALIDADE E A SEVERIDADE DA TENTAÇÃO PARA O REDENTOR A tentação que o Redentor sofreu não foi uma farsa, mas foi absolutamente real e severa. O teste pelo qual passou foi mais severo do que o do primeiro Adão. As tentações pelas quais passou lhe causaram dores e sofrimentos. É o autor de Hebreus quem argumenta de duas maneiras: Hebreus 4.15 – “Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, antes foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado.”

A. AS TENTAÇÕES FORAM REAIS A palavra “tentação” implica no fato de que Jesus foi realmente provado, testado, que intencionalmente Satanás tentou o impossível, mesmo sabendo que não teria sucesso. Todavia, o fato da impecabilidade de Jesus Cristo não indica que as tentações não tenham sido reais. Cristo sofreu muito por causa da tentação. O escritor aos Hebreus menciona isso: “Pois naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18). Somente as tentações reais podem causar sofrimento. O sofrimento da tentação está relacionado tanto à sua força como à sensibilidade santa do Redentor. Cristo enfrentou desafios reais que verdadeiramente apelaram para as suas necessidades, especialmente quando envolviam alguma carência ou dor. Os desafios lhe foram feitos no deserto, no jardim do Getsêmani e no Calvário, lugares onde ele demonstrou o seu poder sobre eles a despeito de sofrer por causa deles.

B. AS TENTAÇÕES FORAM SEVERAS Se o Salvador era forte, fortes tiveram que ser as tentações. As agonias da tentação eram fortes por causa da extrema situação de dor e miséria em que se encontrava quando abandonado por Deus na cruz. Ainda que Jesus não tivesse uma natureza pecaminosa que o inclinasse para coisas más, ele teve necessidades físicas que precisavam ser satisfeitas. As suas necessidades apelavam interiormente, pois a fome é uma coisa muito forte, especialmente na circunstância em que Jesus estava. Quando estava sob profunda angústia no Getsêmani e dor no Calvário, ele foi tentado não por suas inclinações pecaminosas, mas foi tentado externamente a escapar da dor. “Desce da cruz”, os homens gritavam, mas ele soube escolher as prioridades do plano de Deus ao invés de satisfazer as suas próprias necessidades. Jesus foi tentado em cada sentido do termo com muita força, porque Satanás, sempre que pôde, procurou atacar as fraquezas da humanidade de Jesus, que estava

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sob os efeitos da queda. As suas tentações foram reais e verdadeiras, embora diferentes das que experimentamos, pois levamos conosco o fardo de nossa natureza pecaminosa, que nos inclina à desobediência a Deus e a obediência a Satanás. Não obstante essa diferença, as tentações de Jesus não foram menos reais do que as nossas. Se há alguma coisa muito clara nos Escritos do Novo Testamento é a realidade da tentação de Jesus Cristo. Nenhum de nós pode duvidar da realidade e da severidade das tentações pelas quais ele passou.

OS PROPÓSITOS DA TENTAÇÃO Os propósitos mencionados abaixo são os de Deus, não os de Satanás. Não é sem razão que Deus permite que sejamos tentados. Certamente ele poderia nos livrar de todas as tentações no momento em que nos tornamos cristãos, se assim ele quisesse. Na verdade, é exatamente isso o que ele vai fazer quando completar a nossa redenção, mas não é isso o que ele está fazendo até que a nossa redenção se complete. Ele tem propósitos a realizar em nós através das tentações. Somos soldados de Jesus Cristo, e as tentações são um meio pelo qual Deus nos fortalece para lutarmos na linha-de-frente das batalhas contra as forças espirituais do mal. Dentre os muitos propósitos, vamos destacar alguns:

A. A TENTAÇÃO SERVE PARA REVELAR A SUA REAL CONDIÇÃO ESPIRITUAL É através da tentação que você fica sabendo da sua real condição espiritual. O modo como você reage à tentação revela a sua vulnerabilidade ou a sua força, revela se você está ou não usando a armadura de Deus. A resposta que você dá à tentação prova a genuinidade do seu relacionamento com Deus. Se você é temente a Deus e crê nele de todo o seu coração, você gastará toda a sua vida lutando para vencer as tentações. Se você não é um cristão genuíno, você gastará sua vida alimentando a sua natureza pecaminosa. A tentação detecta o nosso grau de vulnerabilidade. Ela nos ajuda a revelar os pontos fracos nos quais devemos nos fortalecer. Ela é um indicador para nos ajudar a ver-nos a nós mesmos de um modo mais claro. Ela nos ajuda a detectar os pontos em que somos mais atacáveis e vulneráveis, se estamos fracos, se somos imaturos, e, até, se somos ovelhas ou bodes.

B. A TENTAÇÃO SERVE PARA CONFIRMAR A SUA FÉ E EXALTAR O CRISTÃO Análise de Texto 1 Pedro 1.6, 7 – “Nisso exultais, embora, no presente, por breve tem-

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR po, se necessário, sejais contristados por várias provações (peirasmoi=j), para que o valor da vossa fé, uma fez confirmado, muito mais precioso do que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo, redunde em louvor, gloria e honra na revelação de Jesus Cristo.”

1. OBSERVE A EXULTAÇÃO PELA SALVAÇÃO “Nisso exultais…”

A exultação da qual os “eleitos e forasteiros da dispersão” estavam desfrutando diz respeito à obra de Cristo conquistada por sua ressurreição (v. 3), que os preparava para uma herança incorruptível que haveriam de desfrutar no céu (v. 4), pois eram guardados pelo poder de Deus, mediante a fé – que era uma salvação que deveria ser manifestada plenamente no último tempo (v. 5). O conhecimento a respeito dessa herança e a sua santidade eram a razão da sua exultação celestial. A exultação deles recebe aqui a vinculação com herança, por duas razões: (1) uma herança nunca é obtida pela ação dos próprios indivíduos a quem ela é prometida, mas pela livre concessão de uma outra pessoa. Nesse caso, a herança que eles recebem é por causa de um outro que a mereceu. A vida eterna é um dom gratuito de Deus, através de Jesus Cristo (Ef 2.5). Portanto, a exultação nessa herança vem do fato dela ser uma doação de Cristo; (2) a herança, quando usada em referência à bem-aventurança celestial, é a segurança de que ela será recebida. Nenhum direito é mais inalterável do que o direito da herança. A alegria celestial daqueles eleitos e forasteiros, seja como um dom de Deus ou como um legado do Filho, é a certeza do seu recebimento.

2. OBSERVE A TRISTEZA PELAS VÁRIAS TENTAÇÕES “Se necessário, sejais contristados por várias provações.”

Todavia, a expectativa do recebimento da herança que os enchia de exultação não os livrava de tempos angustiosos aqui neste mundo, enquanto a esperança não havia ainda sido obtida. As provações (peirasmoi=j), que podem ser entendidas perfeitamente como tentações, pois o contexto o permite, sempre estavam presentes na vida desses homens que vibravam de alegria pela expectativa das coisas que ainda estavam por vir. Vemos na expressão em itálico, acima, um grande contraste entre as coisas que estão por acontecer e as coisas que já são presentes. A antecipação de uma é a alegria, e percepção da outra é a tristeza. Por essa razão, a alegria deles neste mundo era misturada com momentos de tristeza. Ao mesmo tempo, podemos perceber a alegria da expectativa da glória a ser revelada e a tristeza pela presença de alguma coisa que nos incomoda tanto: as tentações (ou provações). Lembre-se de que as tentações são provas nas quais Deus nos coloca, e, ao mesmo tempo, são induções ao erro que Satanás nos coloca.

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Os cristãos, neste mundo, não estão livres dessas provações que causam tristeza. Há muitas coisas neste tempo presente que nos deixam contristados: pobreza, doença, desapontamento, dor, morte, etc., mas o que mais importuna os santos de Deus é ainda conviverem com a tentação e com a possibilidade constante do pecado. Estar debaixo desse tipo de prova é extremamente angustiante. Não é sem razão que o Santo de Deus tenha tido sofrimento por causa das tentações (Hb 2.18). Em medida menor, também somos contristados por causa das tentações.

3. OBSERVE O TEMPO DAS TENTAÇÕES “no presente, por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provações.”

As tentações podem vir para nos provar a fim de melhorar o nosso comportamento cristão, com o fim de nos aperfeiçoar o caráter e para fortalecer-nos, mas o tempo dessas tentações é somente neste mundo. Ainda bem que Deus limitou o tempo das tentações (ou provações) ao tempo presente, isto é, ao tempo em que vivemos neste mundo. Todavia, no estado final, haveremos de ter unicamente a alegria do Alto, a alegria celestial, porque ali não haverá nenhum tipo de aflição, dor, morte, ou mesmo a tentação. Tendo cessado o propósito das provações, estas cessarão no tempo presente, e nada permanecerá, exceto, o seu resultado glorioso.

4. OBSERVE A BREVIDADE DAS TENTAÇÕES “no presente, por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provaçõe.”

Outra notícia boa é que, mesmo no tempo presente, as aflições não são contínuas, sem sucessão de continuidade. Não somos tentados (ou provados) incessantemente. A expressão usada pelo apóstolo indica que as tentações não duram a vida inteira, ou todos os momentos dela, mas que existem, no mínimo, intervalos entre elas. Passamos muitos momentos livres delas, tempo em que o nosso inimigo nos deixa por um pouco de tempo (freqüentemente depois de uma resistência a ele), como aconteceu com Jesus Cristo. Da mesma forma, o que chamamos de provações (outros sofrimentos), nós as temos por um breve tempo. Não sofremos angústias a vida inteira, mas temos bons momentos de alegria na vida que não trocamos por nada. Graças a Deus as tentações (ou provações) nos acontecem “por breve tempo”. O salmista disse que “ao anoitecer pode vir o choro, mas alegria vem pela manhã” (Sl 30.5) e assim a alegria permanece até que a tristeza volte pela noite. A vida do cristão é entremeada de alegrias e de tristezas, mas somos contristados sempre por breve tempo.

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5. OBSERVE A MULTIPLICIDADE DAS TENTAÇÕES “sejais contristados por várias provações.”

A palavra grega poiki/loij (poikilois) que foi traduzida por “várias”, será melhor traduzida se usarmos a palavra “múltiplas”. Deus usa muitas coisas para nos fazer crescer. A multiplicidade inclusive nas próprias tentações. A necessidade de crescimento exige que sejamos provados em todas as áreas, porque não podemos crescer num só departamento de nossa vida. Quando queremos desenvolver o nosso corpo, temos que exercitar todos os músculos do corpo, e para isso temos de fazer exercícios diferentes para as múltiplas partes dele, assim também na esfera espiritual. A multiplicidade das provações nos faz desenvolver por inteiro, harmonicamente, sem que fiquemos desenvolvidos apenas em algumas partes, o que nos tornaria pessoas estranhas, fortes em umas áreas, mas que ao mesmo tempo caem com facilidade em outras áreas. As múltiplas provações servem para fazer-nos desenvolvidos harmonicamente.

6. OBSERVE O OBJETIVO DAS TENTAÇÕES “para que o valor da vossa fé, uma fez confirmado, muito mais precioso do que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo...”

Ampliando o que foi dito a cima sobre o crescimento harmônico do cristão pelas várias provações, podemos acrescer que esse crescimento não acontecerá sem que o valor de nossa fé seja confirmado. A confirmação do valor da fé será obtida pela passagem através das múltiplas tentações (provações). A figura que o autor sacro usa para ilustrar a provação da fé é a idéia do ouro sendo refinado pelo fogo, embora a confirmação da fé seja muito mais preciosa do que o objeto a que ela é comparada – o ouro depurado. “A provação pelo fogo melhora a qualidade do ouro; o fogo livra o ouro de todas as impurezas, mas ele não o torna indestrutível. Refine o ouro como você quiser, afinal de contas, ele é uma cousa perecível. Mas a provação da fé do cristão tem um resultado mais nobre. Purificada e fortalecida pelas provações, ela é exposta sob a influência do Espírito Santo... com todas as graças que advém dela, e sobrevive à destruição de todas as coisas materiais...”439

Essa fé é confirmada com as tentações (provações), que vê aos cristãos, e nesse sentido, o cristão tem que dar graças a Deus pelas provas através das quais ele passa. 439. John Brown, Expository Discourses on the First Epistle of Peter, vol. I (Evansville, Indiana: The Sovereign Grace Book Club, 1958), 73.

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7. OBSERVE O RESULTADO DAS TENTAÇÕES “redunde em louvor, gloria e honra na revelação de Jesus Cristo.”

As tentações (ou provações) vêm sobre os cristãos servem para um resultado final importantíssimo na vida deles. Elas redundam em “louvor, glória e honra” para eles próprios porque, no final do tempo, eles serão tornados parecidos com Jesus Cristo, refletindo perfeitamente a sua imagem, que é a expressão das três coisas mencionadas acima. É altamente louvável, honroso e glorioso ser igual à perfeição de Jesus quanto à sua humanidade, e essa manifestação de louvor, honra e glória dos remidos acontecerá exatamente no tempo em que nosso Senhor se revelar no dia final. A glorificação dos remidos se dará com a ressurreição dos que tiverem morrido antes da volta do Senhor e da transformação daqueles que estiverem vivos na sua volta. Esse é o propósito final das provações na vida dos cristãos.

C. A TENTAÇÃO SERVE PARA TORNAR VOCÊ CO-PARTICIPANTE DOS SOFRIMENTOS DE DEUS Análise de Texto 1 Pedro 4.12, 13 – “Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos (peirasmo\n u(mi=n), como se alguma cousa extraordinária vos estivesse acontecendo; pelo contrário, alegraivos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo, para que também na revelação de sua glória vos alegreis exultando.”

Novamente é bom lembrar aos leitores que a palavra grega peirasmos pode ser traduzida como provação ou tentação. A definição do significado depende do contexto e de quem envia a envia. Se Deus a envia, é uma provação (com a finalidade de nos testar); se é o diabo, é uma tentação (com a finalidade de nos levar à desobediência a Deus, a pecar contra ele ou contra a sua Lei).

1. OBSERVE A SEVERIDADE DA TENTAÇÃO “Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós.”

As aflições que sobrevinham aos cristãos no tempo de Pedro eram fortes, e comparadas a um “fogo ardente”. A referência a “fogo ardente” é “uma alusão ao intenso calor da fornalha do refinador, em que ele testa a genuinidade e melhora a pureza dos metais preciosos. A representação figurativa é obviamente designada para indicar imediatamente a grande severidade e os propósitos importantes das aflições que os aguarda, com as quais os cristãos podem contar com certeza.”440 As 440. John Brown, Expository Discourses on the First Epistle of the Apostle Peter, vol. III (Evansville, Indiana: The Sovereign Grace Book Club, 1958), 135.

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provas que nos são mandadas são comparáveis não ao calor do fogo comum, mas ao calor da fornalha usada pelo refinador para purificar os metais. Em geral, essa fornalha é muito mais aquecida do que a do fogo comum. Quando maior é o calor, mais impurezas incrustadas ela tira do metal, purificando-o. Basta ler a história dos mártires para ver como eles sofreram. A estória do martírio começou já no tempo da igreja do Novo Testamento. Grande parte dos apóstolos sofreu o martírio em grande medida, e eles foram provados pelo fogo. A história dos heróis da fé em Hebreus 11.36-38 é uma pequena amostra de como Deus lhes enviou provações e de como Satanás os tentou. Foi por prova de fogo que eles passaram. Por essa razão, Pedro chama essa grande aflição de pu/rwsij (fogo ardente).

2. OBSERVE O ESTRANHAMENTO INDEVIDO DIANTE DA TENTAÇÃO SEVERA “Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós.”

Sabedor dessa grande possibilidade de sofrimento, Pedro prepara os seus leitores, dizendo-lhes: “Não estranheis o fogo ardente”. Não seria novidade para os cristãos estar debaixo de grande aflição, seja pelo envio de provas da parte de Deus, seja pelos dardos inflamados do maligno. Essas duas coisas deveriam vir sobre todos os cristãos (embora não na mesma medida para cada um deles), e os destinatários de Pedro são exortados a não “estranhar” o que lhes estava acontecendo. O fato de eles serem filhos do Altíssimo, o fato de eles receberem o amor de Deus, o fato de eles serem tratados de um modo diferente dos demais homens não lhes eliminaria o sofrimento. A filiação divina e os benefícios que dela advêm não isentam os cristãos das aflições. Estas foram vaticinadas por Jesus Cristo como algo certo: “No mundo tereis aflições; tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33). Se Jesus passou pelo caminho das tentações e provações, por que não Seus irmãos mais novos? Em virtude disso, Ele disse: “Não é o servo maior do que o seu senhor. Se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós” (Jo 15.20). Por tudo isso, os cristãos eleitos da dispersão não poderiam estranhar o que estava acontecendo, como se fosse alguma coisa inusitada. Nenhum espanto eles deveriam ter pelas coisas que lhes estavam acontecendo.

3. OBSERVE OS OBJETOS DA TENTAÇÃO “Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós.”

Todas as pessoas do mundo, sejam elas cristãs ou não passam por sofrimentos, mas os que Pedro menciona aqui são de natureza diferente. Eles são provados (ou tentados) pelo fato deles pertencerem a Cristo Jesus. Todavia, desses Jesus Cristo disse: “Se vós fosseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário dele vos escolhi, por isso o mundo vos odeia”

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(Jo 15.19). Não é de estranhar que os filhos de Deus sejam objetos da tentação de Satanás, e da perseguição da parte dos filhos das trevas. Seria estranho se estes filhos das trevas não os odiasse, ou que Satanás não lhes importunasse com suas tentações. Afinal de contas, os filhos de Deus são estranhos neste mundo nas circunstâncias em que ele se encontra. Quando Deus é a causa do sofrimento deles, então é para prová-los a fim de torná-los amadurecidos. Portanto, os objetos da tentação aqui são os filhos de Deus, a quem Pedro chamada de amados.

4. OBSERVE O SIGNIFICADO DA TENTAÇÃO “alegrai-vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo.”

Eu não posso deixar de pensar no fato de a tentação de Cristo ser um sofrimento para Ele (Hb 2.18). Neste verso, os cristãos são chamados a ser “co-participantes dos sofrimentos de Cristo”. Ora, há um sentido em que as tentações que nos sobrevêm são um elemento que nos torna um pouco parecidos com Cristo (se bem que Cristo foi tentado para poder nos livrar um dia da tentação e nos socorrer no meio dela). Quando um cristão é tentado a cair, ele está passando (em grau bem menor) pelos mesmos sofrimentos de Cristo Jesus, sendo co-participante dos sofrimentos dele. Então peirasmos aqui também pode significar tentação, e não somente sofrimentos produzidos pela perseguição dos filhos das trevas, ou ainda provas enviadas diretamente por Deus.

5. OBSERVE A ATITUDE DIANTE DA TENTAÇÃO “alegrai-vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo, para que também na revelação de sua glória vos alegreis exultando.”

Há duas palavras que expressão a atitude diante da provação: alegria e exultação.

a. Alegria no tempo presente “alegrai-vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo.”

Os cristãos devem se alegrar pelo privilégio de poderem sofrer juntamente com Cristo neste tempo presente. Quando os cristãos sofrem por causa de Cristo, eles devem se alegrar porque estão seguindo nas pegadas do seu Redentor, que foi um varão de dores e tristezas. Quando os cristãos sofrem por amor de Cristo (ou porque não querem desobedecer e desonrar a Cristo), eles são chamados por Pedro de “bem-aventurados” ().

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Quando os cristãos são confrontados com a tentação de não seguirem a verdade de Deus; quando são induzidos a fugir de seus deveres; quando eles são incitados por Satanás a não fazer a vontade de Deus, eles sofrem. Eles sofrem porque sabem que não é para isto que Deus os chamou das trevas para a luz. Portanto, quando eles estão debaixo do sofrimento da tentação, eles devem se alegrar porque estão sendo dignos de participar dos sofrimentos de Cristo. É uma felicidade (ou bem-aventurança) ser participante neste mundo dos sofrimentos de Cristo. Paulo disse uma frase muito interessante sobre os nossos sofrimentos: “Agora me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja” (Cl 1.24). Que sofrimento é esse? Tem alguma conotação de expiação? Absolutamente, não. Esse pertence a Cristo somente, a ninguém mais. O significado do sofrimento do cristão por amor à igreja e a Cristo, dos quais Paulo fala é: “Eu estou tão ligado a Cristo, que Ele considera aqueles sofrimentos suportados por mim em sua causa, como Seus sofrimentos em meu corpo. Eu sei que há uma certa medida de tais sofrimentos repartidos comigo, como a todo cristão. Eu já passei uma parte desses sofrimentos, e nos sofrimentos que eu ainda vou passar por causa de vós, tessalonicenses, uma parte do Seu corpo, eu me regozijo em pensar que eu estou preenchendo o que resta dos sofrimentos que me foram designados, e que eu me regozijo em pensar deles como sendo os sofrimentos de Cristo no meu corpo.”441

É por esse tipo de sofrimento que você deve se alegrar neste mundo, porque nele você segue as pegadas de Jesus Cristo, sendo co-participante dos sofrimentos Dele. Ao invés dos sofrimentos produzirem tristeza, eles devem provocar em nós uma alegria interior, ainda que esta alegria seja ainda misturada com tristezas.

b. Alegria de exultação no tempo futuro “para que também na revelação de sua glória vos alegreis exultando.”

Os sofrimentos do tempo presente redundam em grande alegria no tempo por vir. E a alegria vista no ponto anterior é aumentada em grau superlativo em relação à alegria do tempo futuro. Quando Jesus Cristo se manifestar gloriosamente no último dia, os cristãos que hoje sofrem por causa Dele, haverão de experimentar uma alegria que nunca experimentaram antes. Essa alegria será quantitativa e qualitativamente superior à deste presente tempo. Será superior porque não mais contará com a tristeza e pecado que ainda permeiam este mundo, e porque a nossa 441. John Brown, Expository Discourses on the First Epistle of the Apostle Peter, vol. III (Evansville, Indiana: The Sovereign Grace Book Club, 1958), 143 [itálico acrescido].

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natureza será transformada plenamente. Será a alegria celestial, uma alegria pura, uma alegria de exultação. Esta é uma alegria num grau de excelência. É a alegria maior, a alegria incomparável! Quando houve a vitória completa sobre a tentação e a provação, então saberemos o que significa possuir em plenitude a “alegria da salvação”, a alegria da libertação de todo sofrimento e tentação, quando estivermos afastados completamente de tudo o que hoje nos traz algum tipo de amargor. Portanto, o mandamento é: “alegrai-vos hoje (no meio das tentações e provações) para que possais ter a alegria de exultação na manifestação de Jesus Cristo”.

APLICAÇÕES GERAIS Na tentativa de aplicar o assunto da tentação tratado em todo o capítulo, fazemos algumas sugestões aos leitores, que certamente são tentados, a reagir de modo correto diante das tentações. Observe as atitudes que os crentes devem ter em relação às tentações, especialmente se eles estiverem ligados a Jesus Cristo e baseados nas reações que ele teve às suas tentações. São estratégias que podem e devem ser desenvolvidas para que o crente possa ser vitorioso. Eis algumas delas:

A. FUJA DAS TENTAÇÕES 1 Timóteo 6.11 – “Tu, porém, homem de Deus foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão.”

Paulo está sugerindo a Timóteo fugir da tentação de algumas coisas que poderiam trazer dissabores para a sua vida espiritual. Os versos 9 e 10 estão falando da tentação da riqueza, que gera concupiscência, que trazem ruína e perdição. Se formos para outros textos, então haveremos de ver muitas tentações das quais temos de fugir. A fuga das coisas pecaminosas implica numa caminhada noutra direção. Paulo sugere o caminho oposto que é o da justiça, da piedade, da fé, do amor, da constância e da mansidão. Se há alguma coisa sobre a qual o cristão tem de ter uma posição de “covardia” é a das coisas relacionadas ao pecado. Não há nenhum demérito do cristão em fugir daquilo que Deus manda fugir. Nesse caso a fuga é uma estratégia sábia.

1. A FUGA É NECESSÁRIA POR CAUSA DA FORÇA DA SAGACIDADE DO INIMIGO Deus conhece perfeitamente o Inimigo de nossas almas. Desde o princípio do mundo ele vem atacando os homens com grande astúcia. Os seres espirituais an-

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gélicos, bons ou maus, são seres superiores a nós em inteligência por causa da natureza com que foram criados. Não é uma cousa prudente argumentar contra o diabo quando ele está querendo entabular conversa conosco. Não é prudente fazer como Eva fez, porque ela foi enganada pela astúcia da antiga Serpente. Se nós não fugirmos das tentações, caminhando para o lado oposto, poderemos cair nas mesmas armadilhas feitas por Satanás. Indiretamente, ele é chamado na Escritura de passarinheiro. O salmista diz que Deus “nos livrará do laço do passarinheiro” (Sl 91.3; cf. 124.7). O passarinheiro arma emboscadas para pegar seus pássaros de modo que estes só percebem quando estão presos pelo laço. Satanás atrai e seduz (da mesma forma que as tentações internas fazem). Dessa forma, o passarinheiro de nossas almas com sua astúcia, arma laços e muitos têm caído nele, mesmo bons cristãos. Esta figura aponta para a sua sagacidade. E Deus quer que nós fujamos da sagacidade dele. Temos que fugir da tentação por causa da astúcia de Satanás. Ele é mais inteligente que nós, e não é prudente enfrentá-lo cara a cara. Não tenha medo de fugir das tentações. Quando você foge delas, isso significa que você está pendendo para as coisas de Deus. Fugir da tentação é caminhar em direção à verdade de Deus.

2. A FUGA É NECESSÁRIA POR CAUSA DA FRAQUEZA DE NOSSA NATUREZA PECAMINOSA Além da astúcia e da sagacidade de Satanás, Deus sabe que nós somos fracos. Ele conhece a nossa natureza ainda inclina para o mal. Ele ainda não terminou a obra de despoluição em nós. Ele ainda não retirou de nós aquilo que nos faz pecar, que é a nossa natureza corrupta. Portanto, a fuga da tentação é alguma coisa altamente recomendável em virtude da nossa fraqueza. Porque não estamos imunes ao pecado não convém brincar com a tentação. Quem brinca com fogo certamente acaba se queimando. Se andarmos no terreno da tentação a probabilidade de cair certamente será muito maior. Por isso, é altamente recomendável que fujamos das tentações. Muitos cristãos que confiaram na sua própria capacidade, que brincaram com o pecado, acabaram desgraçando a sua família, a sua igreja e a sua própria reputação. Eles não levaram em conta a natureza pecaminosa que neles ainda era forte. Enquanto estivermos neste mundo, a melhor coisa é fugir do terreno da tentação, pois o velho homem sempre nos predispõe a pecar. Não confie nas suas próprias forças. Você haverá de ficar decepcionado consigo mesmo, mas aí poderá ser tarde demais.

3. A FUGA É NECESSÁRIA PARA SE CONSEGUIR A VITÓRIA A vitória não se alcança simplesmente pelo ataque ao inimigo. Ele pode ser

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vencido pela inteligência de nossa estratégia. Em muitas batalhas a melhor maneira de se vencer o inimigo é fugindo dele. Na batalha espiritual a fuga da tentação implica no caminho de direção oposta que está ligado às coisas santas de Deus. Esta é a estratégia sábia. Veja os conselhos da Escritura sobre essa estratégia sábia, a fim de conseguir vitória: 1 Coríntios 6.18 – “Fugi da impureza! Qualquer outro pecado que uma pessoa cometer, é fora do corpo; mas aquele que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo.”

Os membros do corpo de Cristo não poderiam dar lugar ao diabo, praticando imoralidade de espécie alguma. A imoralidade mencionada acima é sexual. Conhecendo a astúcia de Satanás, e a fraqueza da natureza pecaminosa, a Palavra de Deus nos diz para fugirmos da imoralidade. “O imperativo presente do verbo grego indica a idéia de fugir continuamente, e manter-se em fuga até que o perigo passe. Quando estamos em perigo de tal imoralidade, não devemos argumentar, debater, ou explicar, e certamente não devemos racionalizar. Não devemos considerar a tentação como um desafio espiritual a ser enfrentado, mas uma armadilha espiritual da qual devemos fugir. Devemos fugir o mais rápido que podemos.”442 Portanto, a melhor maneira de ser vitorioso sobre a tentação é fugir dela! 1 Coríntios 10.14 – “Portanto, meus amados, fugi da idolatria.”

É importante você observar que este verso está diretamente relacionado ao contexto que trata das tentações sobre a imoralidade, murmuração e idolatria. Todos os homens são tentados a ter esses pecados. O verso imediatamente anterior que trata claramente da tentação (1Co 10.12-13). Se você quiser ser vencedor sobre a tentação você tem que fugir dela. As tentações mencionadas logo acima não devem sequer ser recebidas e acolhidas pelos cristãos. Eles devem fugir delas, especialmente da idolatria, que é um pecado extremamente abominável ao Senhor. A falsa adoração era um perigo a que os cristãos de Corinto estavam constantemente expostos. Pois o conselho de Paulo era para fugir dessa espécie de tentação, pois o ambiente ali favorecia o aparecimento dela na igreja. A melhor maneira de vencer a tentação de uma adoração errônea (como ensinam os versos subseqüentes) seria fugir dela. Se você quer ser vitorioso da vida cristã aprenda esta estratégia, pois não somente Satanás é astuto como você também é fraco. 2 Timóteo 2.22 – “Foge, outrossim, das paixões da mocidade. Segue a justiça, a fé, o amor e a paz com os que, de coração puro, invocam o Senhor.”

442. John MacArthur, The MacArthur New Testament Commentary – 1Corinthians (Chicago: Moody Press, 1984), 151.

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As “paixões da mocidade” freqüentemente são acompanhadas de fortes tentações da carne. A palavra grega é epithumia, que pode ser um desejo forte num sentido bom ou mal, legítimo (cf. Lc 22.15) ou pecaminoso (cf.1Ts 4.5). A palavra paixões de qualquer modo indica “desejos fortes”. O sentido aqui no texto é de um desejo pecaminoso. Esta ordem é significativa porque o obreiro a quem Paulo se dirige era também jovem. Timóteo não devia permitir-se à exposição de desejos fortes da mocidade. Ele deveria fugir de tudo quanto pudesse ser pecaminoso. A sua atitude deveria ser a de percorrer o caminho contrário, que é o caminho da justiça, da fé, etc., o caminho da vitória sobre a tentação. A melhor maneira de se vencer o mal é fugir dele. 2 Timóteo 3.4, 5 – “... traidores, atrevidos, enfatuados, antes amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negandolhe, entretanto, o poder. Foge também destes.”

Nestes versos Paul está estimulando Timóteo a fugir das más companhias. Estes, via de regra, são veículos de tentação para muitos jovens. As paixões da mocidade em geral são instigadas pelas más companhias “que corrompem os bons costumes”. Como “bom ministro de Cristo Jesus”, Timóteo deveria fugir dessas más companhias, o que indiretamente significa fugir das tentações, a fim de você vitorioso sobre as paixões da mocidade. A vitória sobre a tentação não vem com o enfrentamento dela, mas com a fuga dela. Não pise em terreno perigoso, a fim de que você não seja traído por ele. Se você quiser permanecer uma pessoa limpa, e viver vitoriosamente, procure fugir das coisas em que você pode sentir-se tentado.

B. PEÇA PARA DEUS NÃO O INDUZIR À TENTAÇÃO Mateus 6.13 – E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal.”

A melhor tradução para a expressão “e não nos deixes cair em tentação” é “não nos exponhas à tentação”, ou ainda, “não nos traga para sermos tentados”, ou ainda “não nos induzas à tentação”. Atente para o fato de que induzir à tentação não é a mesma coisa que induzir ao pecado. Essa oração é para Deus não faça conosco o que Ele fez com o seu próprio Filho encarnado. A Escritura diz que Jesus Cristo foi levado pelo Espírito para ser tentado no deserto (Mt 4.1). Essa petição não é uma tentativa de intromissão nos negócios divinos dizendo a Ele o que Ele deve fazer, mas um pedido a Ele para que, “se estiver de acordo com a Tua santa vontade, Ele não nos coloque em posições onde possamos ser facilmente tentados, e onde sejamos passíveis de queda. Ela significa que devemos pedir a Ele para nos preservar disto, e não nos conduzir desse modo.”443 Ele 443. Martin Lloyd-Jones, Studies in the Sermon on the Mount, vol. II (Grand Rapids: Eerdmans, 1960), 77.

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tem o direito de nos conduzir à tentação, porque todas as suas decisões possuem santos propósitos, mas também Ele nos faculta o privilégio de Lhe pedir que não faça desse modo. Além disso, Jesus Cristo ensinou a esses mesmos discípulos, no finalzinho dos seus dias entre nós, no jardim do Getsêmani, “vigiai e orai, para que não entreis em tentação” (Mc 14.38). Evitar ser tentado é melhor do que ter de passar pela tentação. Esse o sentido da petição. Todavia, é prerrogativa de Deus levar-nos para sermos tentados, expor-nos aos dardos inflamados do Maligno ou de outros tentadores. Essa petição é para que sejamos livres das dores e incômodos que as tentações produzem. Jesus sofreu muito por causa da tentação, em virtude de Sua santidade. Nós não sofremos como Ele porque somos pecadores, mas a tentação sempre implica em sofrimento. E essa petição é para que Deus nos livre da tentação para evitar as suas conseqüências, ainda que não pequemos. Quando você fizer esta oração, lembre-se de que é a maneira correta de orar, pois Jesus a ensinou como um modelo de oração. Nessa oração modelo sempre existirá o pedido para Deus não induzir você à tentação.

C. VIGIE E ORE PARA NÃO ENTRAR EM TENTAÇÃO Marcos 14.38 – “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca” (Lc 22.40, 46).

Essas palavras de Jesus apelam para a fraqueza física dos seus discípulos. Por três vezes Jesus os havia encontrado dormindo (vs. 37, 40, 41). Afinal de contas, já passava da meia-noite. É natural para homens comuns, depois de um longo dia de experiência com Cristo (Mc 14.17-31), que estivessem cansados. Não obstante, para Jesus, aquele momento é de extrema importância, e os discípulos deveriam estar vigiando. Se estivessem em oração pedindo forças, eles poderiam estar alertas, vigiando, porque os pecadores e o traidor estavam para chegar e levar Jesus. Todavia, Jesus não está pensando somente no suporte que as orações deles Lhe dariam, mas pensa no próprio bem-estar deles. “Vigiai e orai para que não entreis em tentação”. Trata-se não simplesmente de estar acordado e alerta fisicamente, mas trata-se especialmente de ficar alerta espiritualmente, de estar vigiando e espreitando os movimentos do inimigo, a fim de que não cair na cilada do inimigo. Se o próprio Jesus sentiu cansaço e precisou orar pedindo forças, quanto mais os discípulos, que eram além de limitados, pecadores. Por causa disso eram muito suscetíveis ao pecado que a tentação conduz. Quando o texto fala que “o espírito está pronto”, deve ser entendido que a nossa natureza nova está pronta, que é aquela parte de nós que se relaciona com Deus. Quando o texto fala da “carne que é fraca”, deve ser entendido como a natureza pecaminosa que ainda permanece em nós. Não entenda este texto como

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significando a parte imaterial (“espírito”) e a parte material (“carne”) do homem, porque essa interpretação não faz sentido neste texto, porque nesse caso, a fraqueza está no físico e não no espírito, o que é uma falácia. A palavra de Jesus é: “fiquem alertas e em oração porque não obstante vocês terem uma nova natureza, vocês ainda possuem a velha natureza que é sujeita à queda. Não dêem lugar ao diabo em suas vidas”. Esta é a idéia do texto. A mesma advertência serve para nós, os que vivemos muito tempo depois. A despeito de já possuirmos a nova natureza implantada pela regeneração, ainda temos a velha natureza que não foi erradicada e que nos torna suscetíveis à queda. Portanto, é necessário que você e eu estejamos sempre alerta e em oração, a fim de não sermos vencidos pela tentação.

D. GUARDE-SE DA TENTAÇÃO Gálatas 6.1 – “Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o, com espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado.”

Paulo está escrevendo aos irmãos na Galácia. Havia alguns deles que eram mais maduros (os “espirituais”), os mais eminentes na igreja por causa da graça divina, que deviam corrigir com espírito de brandura os faltosos. Àquele que era “espiritual”, Paulo tem uma palavra de advertência: “guarda-te para que não sejas também tentado”. Em outras palavras, é como se Paulo dissesse aos oficiais da igreja: “Tu que tomas para ti o ofício de reprovar outros, olha para ti mesmo”.444 Paulo está advertindo os mais maduros da igreja a terem cuidado de si mesmos, para que também não sejam vítimas das tentações. Geralmente há aqueles que, por estarem numa posição de autoridade, pensam que estão imunes às tentações. É uma advertência a todos de nós que estamos na direção da igreja para estarmos atentos aos movimentos do inimigo, pois ele tem derrubado muitos ministros, pois ele não sossega enquanto não derruba alguém, justamente porque ele “é como leão que ruge procurando alguém que possa tragar” (1Pe 5.8-9). As pessoas que são espirituais devem ter a mesma ação de vigiar (como todos os outros irmãos), pois elas também são passíveis de pecar, e quando acontece a queda dos “espirituais”, o escândalo é ainda muito maior. É uma grande prudência que você se guarde, se proteja, se precavenha, a fim de que você, como um espiritual que é, não se exponha à tentação e seja vencido por ela. Uma ilustração desse “guardar-se da tentação” se estende aos casados no que diz respeito à vida sexual deles. O ensino de Paulo fala da necessidade dos casais 444. John Calvin. Commentaries on the Epistles of Paul to the Galatians and Ephesians (Grand Rapids: Eerdmans, 1948), 172.

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serem pessoas satisfeitas sexualmente a fim de não serem passíveis da tentação de procurar cama alheia. Se os casais cristãos se privam de um bom relacionamento sexual, eles podem ser presa fácil do inimigo por causa da incontinência. Veja literalmente as palavras de Paulo: “Não vos priveis um ao outro, salvo talvez por mútuo consentimento, por algum tempo, para vos dedicardes à oração e novamente vos ajuntardes, para que Satanás não vos tente por causa da incontinência” (1Co 7.5).

E. CONFORTE-SE NA BONDADE DE DEUS EM RELAÇÃO À TENTAÇÃO Análise de Texto 1 Coríntios 10.13 – “Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel, e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar.”

Há algumas lições que esse verso nos pode trazer sobre a benevolência divina para conosco quando somos confrontados com a tentação, que faz parte dos propósitos Dele em nossa vida.

1. A TENTAÇÃO PERMITIDA QUE NOS VEM É PERMITIDA POR DEUS Deus não tenta, mas Ele nos expõe à tentação. O Espírito de Deus conduziu Jesus Cristo para ser tentado (Mt 4.1). Fica evidente que Deus e Satanás estavam com seus diferentes propósitos na tentação de Jesus. Deus colocou o Seu Filho encarnado sob teste a fim de provar a sua retidão, enquanto que Satanás tinha como propósito que o Filho pecasse contra Deus. Nem Jesus Cristo, nem os cristãos são tentados à parte do propósito divino. Quando o texto diz que Deus “permite que sejamos tentados” deve ser entendido que isso é parte dos propósitos divinos para nós (veja o caso de Jó, que é típico de todas as tentações que nos sobrevêm no que respeita ao propósito de Satanás e ao propósito de Deus). Todavia, no contexto que estamos estudando, a palavra grega peirasmo/j aqui pode também significar “provação”, “teste”. Na verdade, o real significado dessa palavra grega aqui neste texto vai depender de nossa resposta a ela. “Se nós a resistimos no poder de Deus, ela é um teste que prova a nossa fidelidade. Se não a resistimos, ela se torna uma solicitação para o pecado. A Bíblia usa o termo de ambos os modos, e eu creio que Paulo tem ambos os significados em mente aqui.”445 445. John MacArthur, MacArthur New Testament Commentary – 1Corinthians (Chicago: Moody Press, 1984), 227.

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2. A TENTAÇÃO QUE NOS VEM É DE CARÁTER FINITO “Não vos sobreveio tentação que não fosse humana.”

Seja qual for o real significado da palavra grega neste texto, devemos entender que esse peirasmo/j (tentação ou provação) à qual ele nos submete, ou permite que venha sobre nós, tem um caráter finito. Peirasmós é tentação (ou provação) que seres humanos como nós podem suportar. Primeiramente, a tentação é finita porque só pode partir de seres finitos, como Satanás ou outros seres humanos. Em segundo lugar, ela é finita porque o texto fala em tentação apropriada para homens. A expressão “humana” é a tradução da palavra grega usada no texto, anthropinos (a)nqrw/pinoj), e significa “o que é humano, característica da raça humana ou pertencente a ela”.446 Na tentação que nos sobrevém não há nada que seja sobrenatural. A tentação está sempre ligada a coisas que pertencem à nossa raça. As tentações sofridas são experiências próprias dos homens. De ninguém mais. Satanás nunca foi tentado. Simplesmente ele resolveu desobedecer, sem que houvesse um tentador. Ele recebeu a capacidade de agir contra a sua própria natureza que era santa. Por isso é dito que anjos “abandonaram o seu estado original” (Jd 6). Adão e Eva, embora tivessem sido capacitados a agir de forma contrária á natureza santa deles, eles foram tentados de fora. Somente seres humanos são tentados. Por isso, o texto base fala sobre “tentação humana”. O próprio Jesus Cristo foi tentado em todas as coisas semelhantemente a nós (Hb 4.15). Foi por causa da sua humanidade que Ele foi tentado. Dele também pode ser dito que somente recebeu tentação humana. Conforte-se no fato da bondade de Deus em não lhe enviar coisas sobrenaturais contra as quais você tem de lutar. Ele permite que sejamos tentados a respeito de coisas que pertencem à nossa esfera, à nossa humanidade.

3. A TENTAÇÃO QUE NOS VEM É DE ACORDO COM AS NOSSAS FORÇAS “... e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças.”

Há ainda um outro aspecto no qual você pode confortar-se. Além de enviar somente tentações humanos, Deus “permite que sejamos tentados” somente a ponto de das nossas forças. Quando você for tentado, primeiro se lembre de que a tentação é parte dos propósitos de Deus para o nosso crescimento na dependência dele. Esse propósito divino é cumprido através da Sua bondade em permitir que sejamos testados numa 446. Ibid., 228.

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esfera plenamente suportável, porque a tentação é regulada por Deus de forma que não sejamos tentados além das nossas forças. Nenhum cristão poderá alegar que foi tentado além do que podia suportar. Ninguém poderá dizer: “Eu pequei porque o diabo me fez pecar. Estava além das minhas forças.” Mesmo os incrédulos jamais poderão alegar que pecaram porque as tentações foram sobre-humanas. Não existe tentação sobre-humana, por que elas não são permitidas por Deus. As pessoas pecam porque querem pecar, e caem mais facilmente porque elas estão despreparadas para tratar com as tentações, mas as tentações que nos vêm são apenas humanas e passíveis de serem suportadas. Isto deveria nos trazer imensa consolação!

4. A TENTAÇÃO QUE NOS VEM PODE SER SUPORTADA “... de sorte que a possais suportar.”

Esse é o propósito das tentações serem humanas e delas não serem acima das nossas forças. Deus quer que nós as suportemos, isto é, que nós sejamos vitoriosos sobre elas. A expressão “de sorte que” indica o objetivo final de Deus que é a possibilidade da tentação ser vencida. “Possais suportar” combina perfeitamente com o ensino de Jesus Cristo na oração do Senhor. Ali o texto diz: “Não nos conduza à tentação, mas livra-nos do mal”. Isto quer dizer que Deus não nos deixa passar por qualquer teste que não sejamos capazes de suportar. Quando aparecem provas que não somos capazes de suportar, Deus não deixa que passemos por elas. Deus impede que sejamos provados por elas, porque certamente haveríamos de falhar. Jesus livrou os discípulos de serem presos quando se interpôs e disse: “Se é a mim, pois que buscais, deixai ir estes” (Jo 18.8). Os discípulos não estavam ainda prontos para tal teste. Se eles tivessem sido presos, eles teriam ficado devastados, mas Jesus não permitiria.”447 Mais tarde, todos esses discípulos já estavam amadurecidos e nesse tipo de teste eles foram aprovados, pois quase todos eles morreram como mártires, sem blasfemar e sem que ficassem devastados. Deus nos permite passar por provas ou tentações quando podemos suportá-las. Você deveria ficar confortado nessa manifestação da bondade divina conosco. Se Deus permitir que você seja tentado ou provado, fique certo de que você será capaz de suportá-lo, porque nunca você será provado além da sua força.

5. A TENTAÇÃO QUE NOS VEM É ACOMPANHADA DO LIVRAMENTO “... pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento.” 447. Ibid., 229.

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Lembre-se novamente que a palavra peirasmos pode significar provação ou tentação. Um teste de Deus para nos aperfeiçoar ou uma indução de Satanás para que pratiquemos o mal. Lembre-se ainda que o sentido da palavra é definido pelo contexto ou pela resposta que você dá a ela. A expressão “pelo contrário”, indica que há somente um caminho que você deve seguir: vencer a tentação. Deus sempre proporciona um modo de sair vencedor sobre a tentação. Esse “livramento” não significa que Deus não permite que você seja tentado, o que ele livre de você ser tentado. Ao contrário, juntamente com a tentação permitida por Ele, Ele nos dá um modo de escapar, ou de sair vitorioso dela. “Seja o fato de termos um teste da parte de Deus para provar a nossa retidão ou um teste da parte de Satanás para induzir ao pecado, há somente um caminho para se passar no teste. Nós vencemos a tentação não por cair fora dela, mas por passar através dela. Deus não nos retira dela; Ele nos vê vencedores por fazer-nos capazes de suportá-la.”448

6. A TENTAÇÃO QUE NOS VEM PODE SER VENCIDA PORQUE DEUS É FIEL “... mas Deus é fiel...”

A fidelidade de Deus se manifesta no fato dele não nos desamparar no meio das tentações. A sua fidelidade é em razão dele não poder negar-se a Si mesmo. A fidelidade de Deus é a nossa única fonte de segurança, e isto é mais do que suficiente para nós. O significado desta expressão, segundo o entendimento de Barnes, “não é que Deus os guardaria sem qualquer esforço da parte deles; nem que Ele os seguraria se eles mergulhassem na tentação; mas que se eles usassem os meios próprios, se eles resistissem a tentação, e procurassem Sua ajuda, e dependessem de suas promessas, então Ele seria fiel.”449 Embora esse autor citado tenha razão no começo da citação, quando diz que devemos usar todos os meios disponíveis para vencer a tentação, todavia, a fidelidade de Deus no texto é incondicional. Ela está ligada ao fato dele não permitir que sejamos tentados além das nossas forças, e que Ele provê livramento (os recursos devidos) para que possamos suportar as tentações. A fidelidade de Deus não depende da nossa fidelidade, pois “ainda que sejamos infiéis, ele permanece fiel, porque não pode negar-se a si mesmo”. A fidelidade neste texto é incondicional. Kistemaker diz que “a fidelidade de Deus ao seu povo é perfeita, ainda que a infidelidade do homem a Ele seja imperfeita. A Escritura prova que não é Deus, mas o homem que é um violador do pacto.”450 448. Ibid., 229. 449. Albert Barnes, Notes on the New Testament – 1Corinthians (Grand Rapids: Baker Book House, 1949), 188. 450. Simon J. Kistemaker, New Testament Commentary – 1Corinthians (Grand Rapids: Baker Book House, 1993), 336.

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Deveríamos nos consolar com este ato da bondade de Deus em manifestar a sua fidelidade incondicional para conosco, não nos desamparando no meio da tentação.

F. GASTE TEMPO A SÓS COM DEUS O fato de Jesus ficar 40 dias no deserto a sós com Deus não significa que esse foi o único período que Ele gastou com Seu Pai. Esse era o Seu hábito. Jesus Cristo vivia em constante comunhão com Deus. Por isso, ele gastava horas do seu dia a sós em todas as suas grandes decisões em seu ministério. O tempo gasto a sós com Deus pode ser um tempo especial em que você se aproxima dele com confiança, e o lugar de Deus é chamado de “trono da graça” (Hb 4.16), pois você precisa dela a fim de ser vencedor na tentação. O tempo que você gasta com Deus não impede que as tentações venham (como aconteceu com Jesus), mas fortalece você quando elas chega. Se você constantemente gasta tempo com Deus na meditação da sua Palavra e na oração, você será fortalecido e hábil na percepção das armadilhas de Satanás.

G. PROCURE A PLENITUDE DO ESPÍRITO SANTO Quando veio do batismo no Jordão para o deserto, Jesus foi conduzido pelo Espírito Santo (Mt 4.1), mas Lucas acrescenta que Jesus estava cheio do Espírito Santo (Lc 4.1). A plenitude do Espírito não impede que você seja tentado pelo diabo, mas se você anda no Espírito, você jamais vai satisfazer os desejos da carne (Gl 1.16). Diferentemente de Jesus, que era santo nos seus desejos, nós (por causa de nossa natureza ainda pecaminosa) temos desejos impuros, mas quando estamos cheios do Espírito Santo, temos força para lutar contra os nossos próprios desejos. O fato de ser cheio do Espírito não significa que os desejos impuros sejam eliminados, mas que somos fortalecidos para satisfazer somente a vontade de Deus e não da carne. Significa que cada dia devemos viver na dependência não de nós próprios, mas do Espírito de Deus. Se Jesus que era santo dependeu do Espírito para vencer as tentações, por que nós não fazemos o mesmo? Mais do que Jesus, em sua humanidade, precisamos desesperadamente da assistência preciosa do Espírito. Por isso vem a Palavra e nos diz: “enchei-vos do Espírito Santo, falando entre vós com salmos, entoando e louvando de coração ao Senhor, com hinos e cânticos espirituais, dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo” (Ef 5.18-21).

H. ESTEJA SEMPRE CHEIO DA PALAVRA DE DEUS Toda vez que Jesus Cristo foi atacado por Satanás, Ele sempre teve uma res-

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posta baseada na Escritura, especialmente no livro de Deuteronômio, que tratava não somente da repetição, mas da interpretação da lei. Isso significa que Jesus Cristo guardava na memória e no coração as palavras de Deus que fluíam constantemente na sua boca. Por isso as suas palavras eram sempre “palavras de graça que lhe saíam dos lábios” (Lc 4.22). A recomendação de Paulo a nós é: “Habite ricamente em vós a Palavra de Cristo” (Cl 3.16). Quando o nosso coração estiver cheio da Palavra de Deus, as palavras Dele fluirão naturalmente de nossos lábios quando os ataques aparecerem, sejam eles vindos diretamente de Satanás ou daqueles com quem convivemos que também nos tentam. A Palavra guardada no coração é como escudo contra as tentações e nos protegem. Por isso, precisamos guardá-la apropriadamente no coração para que possamos fazer uso apropriado dela na hora do ataque. Todavia, não se esqueça de que Satanás também usa as Escrituras para os seus propósitos malignos. Por isso é necessário que você conheça bem e saiba usar a Escritura devidamente, como Jesus fez. Tenha cuidado em interpretar bem as Escrituras a fim de que você não seja pego no contrapé. Alguns têm citado a Escritura erroneamente e têm caído no ridículo. Não seja assim. Você não pode aplicar as Escrituras corretamente se você não a conhece e nem a interpreta corretamente. Conheça bem as Escrituras e as tenha no coração!

I. ESTEJA PREPARADO PARA SER TENTADO NOVAMENTE Nunca pense que, porque você uma vez venceu a tentação, que Satanás vai desistir de você. Ele não desistiu nem de Jesus Cristo após três investidas, apenas deixou-o por algum tempo, para depois voltar à carga. Veja o que Lucas diz: “Passadas que foram as tentações de toda sorte, apartou-se dele o diabo, até momento oportuno” (Lc 4.13). A vitória de Jesus sobre Satanás não foi final ali no deserto. Você pode ter uma vitória hoje, mas o inimigo voltará num outro dia, especialmente se você estiver desatento e abrir a guarda. Se Satanás tentou Jesus várias vezes depois das tentações chamadas clássicas registradas pelos evangelistas, certamente você deve esperar que ele venha tentá-lo muitas vezes mais. Alguém disse que “as tentações são como as oportunidades; elas sempre vão dar a vocês algumas segundas chances”. Esteja alerta e vigilante, porque o “diabo, vosso adversário... procura alguém para tragar”. Resista ao diabo e ele fugirá de você, mas a fuga dele não será para sempre. Ele voltará a investir contra a sua vida. Quando mais forte você se tornar numa área, ele vai tentar você noutra área. Não importa a área, o que ele quer é derrubar você, portanto, esteja pronto para ser tentado novamente. A batalha com Satanás (e com a sua própria natureza pecaminosa) não termina enquanto a nossa redenção não terminar.

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PALAVRA FINAL DO CAPÍTULO: Nunca confie na sua própria força. Siga a instruções acima e lembre-se de que somente Jesus Cristo pode vencer Satanás por você. Eu li uma estória de que alguém perguntou a uma garotinha se ela já havia sido tentada a fazer alguma coisa errada. Ela respondeu que sim, “mas quando Satanás bate à porta do meu coração, eu apenas peço, ‘Senhor Jesus, por favor, vá atender a porta por mim!” “O que acontece, então”, lhe perguntaram. “Oh, tudo fica bem. Cada vez que Satanás vê Jesus, ele foge.” Essa é apenas uma estória, e não sei se ela foi verdadeira, mas ilustra o que acabamos de ensinar neste capítulo: o cristão por mais forte que seja, ele não pode vencer o inimigo à parte da graça de Cristo. Cristo venceu o príncipe deste mundo nos dias em que esteve entre nós, e Ele ainda está preparado para fazer muito por nós quando lhe pedimos socorro. Afinal de contas, ele é especialista em vitória sobre a tentação, e pode perfeitamente socorrer os que são tentados, os que se achegam confiadamente diante do seu trono de graça.

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CAPÍTULO 12 ENSINO ESPECÍFICO SOBRE A TENTAÇÃO DO REDENTOR

E

ste capítulo tratará do ensino específico sobre a tentação de Jesus numa análise do texto de Mateus 4.1-11, que é o texto clássico que trata das três investidas de Satanás contra Jesus. Os outros textos paralelos serão mencionados, mas, nesse capítulo, seguiremos a ordem das tentações apresentadas por Mateus.

A PREPARAÇÃO PARA A TENTAÇÃO Antes de Jesus entrar no ministério propriamente, ele tinha de ser equipado e depois testado. O equipamento se deu no batismo e na plenitude do Espírito. Somente após esse equipamento (ou preparação) foi que Jesus foi submetido à prova.

A. O BATISMO DE JESUS Nos três Evangelhos que narram a tentação de Jesus (Mateus, Marcos e Lucas), todos eles fazem referência ao batismo como o cerimonial religioso como antecedente à tentação. O batismo de Jesus, como o nosso batismo, tem a idéia da introdução pública do cristão no ministério, o que envolve a nossa consagração solene a Deus e ao seu reino, instrumentos de justiça (Rm 6.13). O batismo foi o ritual público presidido humanamente por João Batista, mas foi um evento no qual a Tri-unidade estava presente, ocasionando um fabuloso testemunho do Pai a respeito do Filho, que era anunciado publicamente como “Filho amado em que me comprazo”. Nenhum testemunho de Cristo é maior do que este. Juntamente com esse testemunho, a terceira Pessoa desceu sobre a segunda Pessoa encarnada e pousou sobre ela em forma corpórea como pomba. Essa foi uma experiência ímpar para João Batista e para todos os presentes. O Redentor dos filhos de Deus teve declarada, publicamente, a sua divindade, e a sua humanidade estava ali, patente diante de todos. Doravante, publicamente, ele se comprometeria totalmente com a obra da redenção. O batismo foi uma preparação formal para toda a sua longa e dolorosa tarefa.

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1. O BATISMO DE JESUS TEM A VER DIRETAMENTE COM A SUA CAPACITAÇÃO Veja o que Pedro diz dele:

a. Capacitação para obras miraculosas Atos 10.38 – “Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e poder; o qual andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus era com ele.”

A essa altura, Jesus já havia crescido em “sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens”. Agora ele precisava de capacitação para exercer o seu ministério, e isso ele faria com a assistência do Espírito Santo. Ele recebeu o Espírito de poder e iniciou o seu ministério realizando feitos poderosos como cura e libertação dos oprimidos do diabo. Deus, o Espírito, estava por detrás de toda capacitação do Redentor divino-humano.

b. Capacitação para o exercício dos seus dons espirituais A descida do Espírito Santo sobre ele remonta ao texto messiânico de Isaías, que diz: Isaías 11.1, 2 – “Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes um renovo: Repousará sobre ele o Espírito do Senhor, o Espírito de sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor.”

Esse texto claramente é uma referência ao batismo de Jesus, quando o Espírito repousou sobre Ele. Esse Espírito comunicou a ele alguns dons espirituais, com os quais o Redentor trabalhou por toda a sua vida entre nós: no seu ministério ele exerceu o dom da sabedoria e o do discernimento; o dom de aconselhamento e de fortalecimento das pessoas sofridas e abatidas; o dom do conhecimento. Todos esses dons estão ligados á Palavra de Deus, que Jesus exerceu com maestria. Isso tudo é produto da ação do Espírito, que se deu sobre ele no batismo. Os seus ofícios mediatoriais foram levados a efeito com o exercício desses dons.

c. Capacitação para pregar o evangelho Após o batismo, então, Jesus começa o seu ministério de pregação (cf. Lc 4.14-15). Ele chega à sinagoga, abre a Escritura em Isaías e lê um texto que lhe diz respeito, sobre a ação do Espírito em sua vida, mas a referência do verso a seguir é à experiência do batismo que o havia capacitado: Lucas 4.18, 19 – “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar aos pobres; enviou-me para proclamar liber-

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tação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e apregoar o ano aceitável do Senhor.”

Jesus Cristo haveria de ser o maior anunciador da redenção que ele próprio haveria de executar. O evangelho seria pregado aos afetados pelo pecado, que aqui são chamados de “pobres”, “cativos”, e “cegos”. A unção do Espírito Santo veio sobre ele de forma extraordinária, e ele cumpriu todas essas funções perfeitamente. A capacitação para o exercício do seu ministério veio antes que ele fosse testado. George Smeaton diz que “Essa descida do Espírito [no batismo] foi pretendida para confirmar e encorajar o Senhor Jesus antes de entrar na sua árdua tarefa; ela aconteceu naquela reunião pública de pessoas que se reunia para ouvir João Batista, e tornou-se a ocasião de sua introdução pública no ofício.”451

Todas as manifestações poderosas de Jesus Cristo estão vinculadas a esse ato inicial do batismo, que é um batismo de capacitação. Antes de ser tentado pelo diabo e começar o seu ministério publicamente, ele recebeu a unção divina. Se ele não tivesse essa unção divina, seria apenas como mais um dos profetas, sem poder desempenhar as coisas próprias do Messias.

2. O BATISMO DE JESUS TEM A VER DIRETAMENTE COM A SUA DOTAÇÃO ESPIRITUAL João 1.33 – “Eu não o conhecia; aquele, porém, que me enviou a batizar com água, me disse: Aquele sobre quem vires descer e pousar o Espírito, esse é o que batiza com o Espírito Santo.”

A cerimônia do batismo é preparatória para o que viria a acontecer posteriormente. Ela não só o capacitaria a enfrentar a tentação, mas sobretudo para conceder o Espírito Santo ao povo de Deus. A descida do Espírito sobre ele (que é a unção) o capacita a enviar e a derramar o Espírito (que é o batismo) sobre todos os filhos de Deus. Ele recebe o Espírito sobre si o preparar para ser o doador do Espírito.

3. O BATISMO DE JESUS TEM A VER DIRETAMENTE COM A FORMALIZAÇÃO DE SUA MESSIANIDADE Aos trinta anos, Jesus Cristo entra no cenário público da sua sociedade para assumir, de maneira formal, aquilo que ele sempre havia sido, desde que o Verbo se encarnou – a messianidade. Foi a experiência do Jordão que primordialmente capacitou Jesus a exercer os dons sobrenaturais com que havia sido dotado para os seus ofícios mediatoriais. 451. George Smeaton, The Doctrine of the Holy Spirit (Edimburgo: The Banner of Truth Trust, edição de 1980), 135.

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Quando o Espírito Santo desceu sobre ele, no batismo, houve o anúncio formal de sua messianidade. Essa unção do Espírito Santo é o credenciamento para que pudesse exercer publicamente com autoridade o seu ministério.

B. A PLENITUDE DO ESPÍRITO EM JESUS Lucas 4.1 – Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e foi guiado pelo mesmo Espírito, no deserto.”

Um outro elemento importante e preparador de Jesus para que ele entrasse em tentação foi a ação sobrepujante do Espírito Santo em sua vida terrena. Lembremo-nos de que o Redentor era homem, e, como tal, precisava da ação do Espírito para capacitá-lo a enfrentar os embates com o Maligno que teria pela frente. A essa altura Jesus tinha 30 anos. Ele acabara de ser aclamado publicamente Filho de Deus pelo próprio Deus. Jesus já sabia que teria de enfrentar, até o final de sua estada entre nós, muita oposição e resistência, que culminariam no seu tormento e morte. Qual era o recurso que Deus lhe havia preparado para ser vencedor em todos esses embates? Como deveria ele começar o seu ministério? “Cheio do Espírito Santo”. Deus o preparou sobremaneira para que ele cumprisse o que estava determinado que ele fizesse e para que ele recebesse o que estava determinado sobre si. Cheio do Espírito Santo Jesus foi levado para a solidão do deserto e ficou longe de todos os seus queridos por quase de seis semanas. Esse seu preparo foi necessário para as longas semanas de solidão, semanas de tentação nas circunstâncias mais duras. O ambiente era hostil, e não havia o que comer. A plenitude do Espírito era necessária para que ele não fosse escravizado a nada neste mundo, exceto a Deus. Somente por causa do equipamento recebido é que ele foi capaz de vencer as tentações. Quando não estamos cheios do Espírito de Deus, ficamos enfraquecidos a um grau em que não conseguimos dizer não aos nossos apetites físicos. Os apetites físicos não são pecaminosos em si mesmos. Jesus os teve. Mas quando eles são capazes de minar as forças do seu espírito, então você certamente cairá. O nosso homem interior deve estar devidamente preparado para poder vencer os apetites naturais quando estes não puderem ser legitimamente satisfeitos. Por essa razão, no meio das suas lutas por purificação interior, Paulo disse: “Eu esmurro o meu corpo, e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado” (1Co 9.27). Por quarenta dias, Jesus Cristo esmurrou o seu próprio corpo, isto é, ele disse não aos apetites físicos (legítimos) para demonstrar que o seu apetite por comida e por bebida era menor que seu apetite pela Palavra que sai da boca de Deus. Afinal de contas, a sua comida e a sua bebida era fazer a vontade de seu Pai, que o havia enviado (Jo 4.34).

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Por causa da qualificação recebida do Espírito e por causa da plenitude do Espírito, Jesus foi capaz de dizer não mesmo quando o seu organismo desesperadamente pedia por comida. É esse o resultado de estar cheio do Espírito Santo. Quem está cheio do Espírito Santo está cheio de Deus, e, quando isso acontece, nem mesmo os nossos apetites físicos mais fortes podem nos vencer ou nos controlar (cf. Ef 5.18). Vença os seus apetites físicos por ser cheio do Espírito Santo. Não há outra maneira melhor de você se preparar para as batalhas contra o inimigo e para exercer com autoridade o ministério que Deus lhe confiou. Jesus não somente foi conduzido pelo Espírito ao deserto, mas veio do batismo cheio do Espírito para poder se conduzir convenientemente no deserto, sendo vitorioso sobre as tentações.

O LUGAR DA TENTAÇÃO O Espírito Santo levou Jesus Cristo para um lugar no qual era abundante a tarefa do Maligno, pois os espíritos imundos freqüentemente estavam em lugares áridos. Marcos 1.11, 12 – “E logo o Espírito o impeliu para o deserto onde permaneceu quarenta dias, sendo tentado por Satanás...”

A. O DESERTO É UM LUGAR DE SOLIDÃO As grandes batalhas são travadas nos lugares desertos, nos lugares solitários, assim como os grandes empreendimentos. Quando devia manter grande intimidade com Deus, um lugar de reflexão, Paulo, ao invés de ir para Jerusalém, foi para o deserto da Arábia (Gl 1.17). Quando Deus quis aprontar Cristo para o exercício de seu ministério redentor, ele o colocou num lugar deserto para enfrentar a grande batalha sozinho. Há quem diga que o grande deserto para o qual Jesus foi levado pelo Espírito seja o da Arábia,452 o mesmo em que Paulo ficou. Não sabemos com certeza qual deserto foi, mas sabemos que aquela região, especialmente ao sul da Palestina, é totalmente desértica. Num desses lugares, extremamente solitário, a pessoa divino-humana do Redentor esteve por quarenta dias. Era grande a sua batalha porque era grande o seu empreendimento! Satanás desferiu todos os seus golpes para derrubar o Redentor divino-humano naquele lugar solitário designado pelo Santo Espírito de Deus.

B. NO DESERTO, JESUS FICOU EM SOLIDÃO Ninguém esteve com Jesus durante os quarenta dias. Marcos menciona que havia feras naquele lugar, mas não sabemos o que elas faziam. Certamente elas 452. Veja Thomas Manton, Temptation of Christ (Scotland: Christian Focus Publication, 1996), 26.

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não eram companhia confortadora para ele. Não havia nenhum discípulo para ajudá-lo em oração ou mesmo para tomar providências quanto à sua fome. Somente após o término dos quarenta dias de tentação é que os anjos vieram servi-lo (Mc 1.13). Era propósito divino que o Redentor ficasse só, e, só, vencesse a batalha. Algumas vezes é bom estar num lugar solitário e em solidão, mas não quando atacado pelo Maligno. É duro estar solitário, sem alguém que possa nos trazer conforto e suprir nossas necessidades. A fim de que possamos vencer as investidas do Maligno quando estamos sós, é necessário que os nossos pensamentos estejam cheios dos pensamentos de Deus, e a nossa alma seja fortalecida pelos santos exercícios espirituais. Somente assim poderemos dizer como Jesus Cristo disse nas vésperas de sua maior provação: “Eu não estou só porque o Pai está comigo” (Jo 16.32). Para ficar sozinho em um lugar deserto é necessário ter muita força e muita tenacidade. Isso teve o nosso Redentor naquele lugar solitário, onde ele lutou só contra o inimigo de nossas almas, e o seu grande inimigo.

A DURAÇÃO DA TENTAÇÃO Mateus 4.2 – “.. durante quarenta dias, sendo tentado pelo diabo. Nada comeu naqueles dias, ao fim dos quais teve fome.”

A idéia de “quarenta dias” na Escritura é muito comum. Logo nos vêm à mente o tempo passado por Moisés no monte Horebe (Êx 34.2, 28; Dt 9.9, 18) e o tempo passado por Elias em sua jornada para o mesmo lugar (1Rs 19.8). Todavia, o período em que Jesus Cristo foi tentado foi muito diferente dos dois exemplos mencionados. Em comparação com Elias, ele era mais do que um profeta; em comparação com Moisés, ele era mais do que um libertador físico e mais do que um profeta. Foi singular a sua situação como aquele que estava para ser o Redentor, no sentido mais pleno, daqueles que o Pai lhe havia entregue. Os seus “quarenta dias” são singulares. Todavia, como devemos entender esse período? Há diferentes interpretações sobre a duração da tentação em si.

A. A TENTAÇÃO DIRETA DURANTE QUARENTA DIAS DE JEJUM Alguns entendem que Jesus Cristo foi tentado ao longo dos quarenta dias, e que isso o fez esquecer da comida, e que esse período não foi um retiro para ter comunhão com Deus. Lenski baseia essa sua tese, em grande medida, no uso do particípio presente peirazomenos em Marcos 1.13 e Lucas 4.2, interpretando esse verbo como que significando que Jesus estava sendo tentado durante todo o período dos quarenta dias.453 Vários comentaristas optam por essa opinião.454 453. Leia essas observações em William Hendriksen, Mateus, vol. 1 (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001 – nota de rodapé 229), 314. 454. Veja a lista deles em Hendriksen, ibid., 314.

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Nesse ponto de vista, as “três” tentações relatadas pelos evangelistas vieram como uma espécie de clímax de uma série muito mais longa de tentações. Segundo essa corrente, foram quarenta longos dias de intensa tentação.

B. A TENTAÇÃO QUE VEM DEPOIS DE UM LONGO PERÍODO DE JEJUM Outros entendem que Jesus Cristo passou aqueles quarenta dias se preparando em jejum para a tentação que viria. Nesse ponto de vista, podemos ver a seguinte ordem: (1) Jesus é levado pelo Espírito ao deserto com o propósito de ser provado; (2) ele permanece ali quarenta dias, durante os quais jejua; (3) no final desse período, sente muita fome; e (4) o diabo aproveitou essa oportunidade (a fome e a condição debilitada de Cristo) para tentá-lo. Segundo Hendricksen, essa maneira de ver as coisas também “faz plena justiça ao sentido do particípio presente. O relato de Mateus, lido separadamente, não sugere que Jesus tenha sido tentado durante todo o período de quarenta dias”.455 Parece-nos que João Calvino adotou essa segunda idéia. Ele foi levado para o deserto para ser provado, e, então, depois do longo tempo de jejum, foi tentado pelo diabo. Comentando Mateus 4.1, 2, Calvino diz: “Houve duas razões pelas quais Cristo se retirou para o deserto: Primeiro, para que, após um jejum de quarenta dias, pudesse ele surgir como um novo homem, ou, antes, como um homem celestial, para desincumbir-se de seu ofício; segundo, para que pudesse ser provado pela tentação e passar por um aprendizado antes de empreender uma tarefa tão árdua e tão sublime.”456 A prova física pela qual Jesus passou era um elemento teoricamente facilitador para que ele caísse nas tentações de Satanás. Seja qual for a interpretação que se tome, o ponto importante é que esse período pelo qual Jesus Cristo passou é extremamente longo para os padrões humanos sob as condições mais adversas possíveis. Grande foi a provação em extensão de tempo e também grande foi a tentação em questão de intensidade. Se tiver que optar por uma das duas correntes, fico com a segunda.

A INDUÇÃO À TENTAÇÃO Analisaremos rapidamente os três textos nos quai se diz que Jesus Cristo foi levado para ser tentado. Mateus diz que Jesus Cristo “foi levado (a)nh/xqh) pelo Espírito, ao deserto, para ser tentado” (Mt 4.1). Lucas diz que Jesus “foi guiado (h)/) geto) pelo mesmo Espírito, no deserto” (Lc 4.1). Marcos diz que “logo o Espírito o impeliu (e)kba/llei) para o deserto” (Mc 1.12). Essas são três palavras diferentes tanto no português como no grego. Elas têm 455. Ibid., 314, 15 (nota de rodapé 229). 456. João Calvino (grifos meus).

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nuanças ligeiramente diferentes, embora se refiram à mesma ação do Espírito em relação a Jesus. A perspectiva de cada escritor está delineada aqui nesses textos. A ação do Espírito de levar, guiar, e impelir mostra a soberania do Espírito ao colocar Jesus sob tentação. Essa ação pode significar algumas coisas:

A. SER TENTADO NÃO FOI OPÇÃO VOLUNTÁRIA DO FILHO ENCARNADO Jesus não foi voluntariamente ao deserto para ser tentado. Nenhum ser com natureza tentável se exporia voluntariamente à tentação por uma razão muitíssimo simples: ele não escolheria ir ao deserto porque a tentação implica em sofrimento. Ser tentado implica em profunda dor, especialmente para aquele que tem natureza perfeitamente santa. Ele sabia que seria posto à prova debaixo de duras circunstâncias. Quando ele foi cheio do Espírito Santo no batismo, ele sabia que era para enfrentar uma dura prova. Nesse caso, o verbo peira/zw combina com ambas as idéias: tanto ser provado como ser induzido a fazer o mal. Deus o provou quando o colocou numa situação de fraqueza física após um longo período de jejum e Satanás o tentou ao mal, tentando tirar vantagem da sua situação de fraqueza física com necessidades profundas. Se Jesus pudesse escolher, certamente ele não iria para o deserto. É natural a um homem querer fugir da dor e do sofrimento. Isso aconteceu no Getsêmani, quando ele pediu ao Pai para passar dele aquele cálice. Se fosse opção de Jesus, ele não passaria pelo Calvário, mas ele tinha plena consciência messiânica de ter de passar tanto pelo Calvário como pelo começo desse calvário na tentação. Ele foi ao deserto porque essa era a designação divina para Ele. Tudo isso era parte do propósito divino para prepará-lo para a execução de sua função redentora-mediatorial. Não se esqueça de que Jesus era homem como nós, sujeito à tentação como nós o somos. Não é pecado ser tentado. Todavia, não podemos dizer que Jesus Cristo voluntariamente passaria pela tentação do deserto. Ele aceitou passar por ela porque ele conhecia de antemão os propósitos redentores de Deus e essa prova fazia parte de todo o processo. Além disso, lembremo-nos de que o verbo usado por Marcos (ekballo = impelir) é muito mais forte que os verbos usados por Mateus e Lucas, e aponta para uma atitude do Espirito Santo, que é mais do que levar ou guiar. Esse verbo dá a idéia de uma obrigatoriedade de ação, a ponto de parecer quase uma compulsão. Era necessário que ele fosse levado ao deserto. Uma obra de preparo do Redentor precisava ser realizada, mas não sem o período de tentação.

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B. O ESPÍRITO COLOCOU O FILHO ENCARNADO EXPOSTO À TENTAÇÃO Essa é uma verdade incontestável. Deus expõe todos os seus filhos à tentação para fazê-los crescer e amadurecer. As provas pelas quais eles passam testam a sua força ou a sua fraqueza e os ajudam a ver a sua real situação. Deus colocou Pedro sob a mira de Satanás, para que este tentasse e levasse Pedro a fazer o que veio a fazer com relação a Cristo. Jesus disse a Pedro: “Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo” (Lc 22.31). Há uma concessão divina dentro de uma limitação. A seguir, Jesus disse que orou por Pedro para que “a fé dele não desfalecesse” (v. 32), ou seja para que ele não cedesse à tentação de fazer o que veio fazer. Por fim, o fortalecimento veio após o seu amargo arrependimento. Até que Deus nos exponha à tentação, Satanás não pode tocar-nos indiscriminadamente. O tentador fica à mercê da autorização divina, amarrado pelas cadeias da providência divina, para poder tocar nos filhos de Deus. Ele não tem autonomia para fazer tudo o que quiser. Quando ele age num filho de Deus, ele o faz sob a ação restringente do próprio Deus. Isso não é diferente quando tratamos do Filho por excelência. As ações do Maligno sobre os seres humanos e sobre Jesus esbarram na majestosa soberania divina sobre o tentador. Essas coisas deveriam consolar os filhos de Deus, que estão sendo colocados debaixo da prova da tentação externa. Essa é a experiência de Pedro e de Jó, que vem mencionada no ponto logo a seguir. Ora, se Deus faz isso com todos os seus filhos adotivos, por que ele não faria com o Filho encarnado? Esse é que teria de ser o supremo vencedor para que os outros irmãos também pudessem ser vencedores diante das tentações.

C. O ESPÍRITO É SOBERANO NESSE TIPO DE INDUÇÃO À TENTAÇÃO As tentações, sejam elas quais forem, não são algo fortuito. Não existe acaso nas tentações, porque todas elas têm um propósito definido. Elas podem vir de Satanás, dos homens ímpios, dos homens cristãos, mas, de qualquer forma, não podemos fugir do fato de que, soberanamente, o Espírito de Deus nos induz à tentação, para que alguns de seus muitos propósitos em nossa vida sejam cumpridos. Isso Deus faz para a sua glória e para o nosso próprio benefício, para o nosso amadurecimento na dependência dele. As provas e as tentações a que Deus nos expõe não somente são induzidas por ele, mas estão sob o controle total dele. Veja o diálogo entre Deus e Satanás, com relação a Jó: “Estende, porém, a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face! Disse o Senhor a Satanás: Eis tudo quanto ele tem está em teu poder; somente contra ele não estendas a tua mão. E Satanás saiu da presença do Senhor” (Jó 1.11, 12).

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No verso 11 Satanás reconhece que Deus é quem tem o poder de tocar no homem para prová-lo, e, no verso 12, Deus aponta Satanás como o instrumento da provação. Deus está no controle do total de tudo o que acontece na vida dos homens, incluindo a tentação de Deus a quem ele induziu à tentação. Uma vez que pertencemos a Deus por direito de criação e por direito de redenção, uma vez que somos entregues a Deus, não mais pertencemos a nós mesmos e nem controlamos a nossa vida, mas devemos ser guiados pelo Espírito de Deus mesmo nas aflições, provas e tentações, porque todas elas são destinadas por Deus para o nosso bem.

D. APLICAÇÃO Freqüentemente somos instados a orar da forma que Jesus Cristo nos ensinou. Parte dessa oração diz: “Não nos deixes cair em tentação”. A tradução melhor para essa frase da Oração do Senhor não é como comumente a conhecemos. Alguns tradutores, também movidos por questões teológicas – não lingüísticas – querem dar a idéia de “não permitas que eu caia ao ser tentado”. A idéia, todavia, não é de “ao ser tentado, não permitas que eu ceda à tentação”, mas “não me induzas à tentação” ou “não me exponhas à tentação”. ou ainda “não me tragas para ser tentado”. O verbo grego usado – ei)sene/gkhj – vem de eisfe/rw (eisfero), que significa “trazer (ou levar) para dentro de uma situação”. Estamos à mercê de Deus e devemos lhe pedir para que não nos exponha à tentação, mas que nos livre do mal (ou do Maligno). Deus é quem tem a prerrogativa de nos induzir ou de nos levar à tentação a fim de nos provar. Deus é quem nos prova e Satanás é o que nos tenta. Se Deus nos traz para que sejamos tentados, então o pedido é lógico: “ao ser levado para ser tentado, livra-me de cometer o mal (ou livra-me do Maligno)”. Se Deus resolver expor você à tentação, você tem que pedir para que Deus o livre de cometer o mal ou que o livre do Maligno. Você deve orar a Deus com essas idéias em mente. Mas, se Deus o colocar sob tentação, conforte-se no fato de que Deus tem o tentador nas mãos, e que nada acontece sem que isso seja parte do plano dele ou separado da sua ação providencial.

OS ACONTECIMENTOS DEPOIS DA RESISTÊNCIA À TENTAÇÃO Como afirmei acima, todos os atos providenciais de Deus, inclusive as tentações a que ele nos submete, são para o proveito de nossa vida interior, e certamente ela traz resultados preciosos. Jesus Cristo foi conduzido pelo Espírito para ser tentado. Todavia, não foi em vão o que aconteceu ali no deserto. A despeito da prova física (que foi ficar sem comer 40 dias inteiros) e da prova emocional, o Salvador não saiu abatido, desgas-

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tado, ferido pelas tentações. Ao contrário, a Escritura registra que o Senhor Jesus, terminado o período da tentação, saiu tremendamente fortalecido em sua vida de relacionamento com seu Pai celestial, que era também o seu Deus.

A. FOI ABANDONADO PELO DIABO Mateus 4.11 – “Com isto o deixou o diabo, e eis que vieram anjos, e o serviam.”

A tentação terminou por causa da tenaz resistência de Jesus, e Deus fez com que Satanás o deixasse. A sua obra tentadora terminou porque ele percebeu que não poderia fazer com que o Redentor cedesse às suas investidas. Jesus Cristo não abriu mão dos princípios estabelecidos pela Escritura com relação à tentação. Ele foi um bom intérprete das Escrituras e fez frente às investidas do inimigo. Ele resistiu a Satanás. Certamente, baseado nesse princípio foi que Tiago disse: “resisti ao Diabo e ele fugirá de vós” (Tg 4.7). Certamente ele aprendeu isso com Cristo, que resistiu valorosamente ao grande inimigo, que fugiu dele. Satanás não é onipotente. Ele é limitado em suas forças e na persistência na tentação. Ele não suporta muito tempo a resistência feita pelos filhos de Deus. É da natureza dele não ter condições de enfrentar a verdade de Deus e nem a santidade resoluta dos crentes. No caso de Jesus Cristo, a reação do diabo é sintomática. Ele percebeu que não podia vencer, mesmo naquela circunstância, o Filho de Deus encarnado. Satanás foi forçado por um santo poder a abandonar a Jesus Cristo. Ele fez uma retirada vergonhosa e inglória, deixando-o. Todavia, quando Satanás deixou Jesus, esa retirada não foi definitiva, foi apenas uma pausa até que uma outra oportunidade se apresentasse. Por isso Lucas registra: “... apartou-se dele o diabo, até momento oportuno” (Lc 4.13). Hendriksen diz que Satanás “deve ter compreendido que ele tinha sido totalmente derrotado. Isso o irritou ainda mais. Portanto, estava mais do que nunca decidido a atacar Jesus e sua causa, e a fazê-lo na primeira oportunidade que tivesse”.457 Certamente, depois do episódio das tentações do deserto, muitas outras vezes Jesus Cristo foi tentado (Lc 22.28) por Satanás e por instrumentos de Satanás (cf. Mt 16.23). Satanás fugiu de Cristo porque encontrou nele a verdadeira resistência, que os cristãos também podem (e devem) apresentar sob o poder do Espírito Santo neles.

B. FOI SERVIDO PELOS ANJOS Mateus 4.11 – “Com isto o deixou o diabo, e eis que vieram anjos, e o serviam.” 457. William Hendriksen, Lucas, vol. 1 (São Paulo: Cultura Cristã, 2003), 329.

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Essa é a primeira das duas vezes onde é dito que Jesus Cristo foi servido por anjos. A outra ocasião se deu no Jardim do Getsêmani, quando, sob forte tensão, a ponto de verter suor como de sangue, ele foi confortado por um anjo. Os anjos sempre foram espíritos ministradores que servem aos que vão herdar a salvação (Hb 1.14). No caso em pauta, Jesus não é o herdeiro da salvação, mas aquele que estava se preparando para executar a salvação desses herdeiros. Após o desgaste da tentação, ele foi servido por anjos. A palavra grega usada para “servir” usada neste texto é derivada do verbo diakone/w, que significa “prestar assistência”. Praticamente nada conhecemos da natureza dessa assistência, pois o texto silencia sobre ela. Todavia, num sentido geral e amplo, podemos dizer algumas coisas: 1) é provável que os anjos tivessem descido para se congratular com Jesus por sua vitória sobre Satanás e se regozijaram com ele; 2) é provável que os anjos tenham servido Jesus com comida; 3) é provável que os anjos tenham trazido todas as coisas das quais Jesus necessitava para remediar a fadiga que lhe veio com a tentação. Por isso, diz Hendriksen, “os anjos foram enviados pelo Pai para providenciar tudo quanto o Filho necessitasse. Parece razoável concluir que isso também incluía a alimentação corporal”.458 Afinal de contas, Jesus esteve em fraqueza quando foi tentado; esteve sob os ataques dos Príncipe das trevas, e passou por grandes tempestades. Todavia, após a fraqueza, veio a força; após as trevas, luz; após a tempestade, bonança, e os anjos participaram desse serviço precioso ao Redentor, que se preparava para a grande hora de enfrentar a ira do seu Pai, para nos redimir. É importante observar que os anjos não vieram socorrer Jesus para que ele vencesse as tentações, mas vieram servi-lo após ele ter as ter vencido. Enquanto Jesus Cristo estava sendo tentado, ninguém veio em seu socorro. Ele teve que experimentar sozinho o sofrimento advindo da tentação. Nessa hora, os anjos permaneceram distantes dele. Essa era uma batalha que o Redentor tinha de travar solitariamente. Observe também que Deus pode fazer-nos passar por provações e tentações. Todavia, à semelhança do que fez com Jesus Cristo, podemos receber de seus santos anjos a assistência de que tanto carecemos. No nosso caso, somos fortalecidos no meio da tentação, e não somente depois dela, como foi o caso de Jesus. Certamente Deus suprirá todas as nossas necessidades para que os poderes do inferno não sejam vencedores sobre nós. É por isso que oramos para que ele nos livre do mal ou do Maligno. Freqüentemente, “os seus anjos acampam-se ao redor daqueles que o temem e os livra”. Bendito seja Deus por esse conforto!

C. FOI CHEIO DO PODER DO ESPÍRITO Lucas 4.14 – Então Jesus, no poder do Espírito, regressou para a Galiléia, e a sua fama correu por toda a circunvizinhança.” 458. William Hendriksen, Mateus, vol. 1 (São Paulo: Cultura Cristã, 2001), 328.

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O texto bíblico diz que, após seu batismo, Jesus, “cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e foi guiado pelo mesmo Espírito, no deserto” (Lc 4.1). Mesmo durante os seus dias de fraqueza física, ele conseguiu vencer todas as tentações porque ele estava cheio do Espírito. Quando as tentações terminaram, ele foi servido por anjos e saiu do deserto em direção à Galiléia “no poder do Espírito”. Jesus entrou para o deserto cheio do Espírito e saiu do deserto no poder desse mesmo Espírito. A presença do Espírito dentro dele e o poder do Espírito com ele eram coisas necessárias ao Redentor em virtude da sua união pessoal. Por ser o Redentor também um homem, ele precisou dessa assistência do Espírito. A sua humanidade exigiu essa ação divina.459 Certamente “o poder do Espírito” com o qual Jesus foi dotado diz respeito à sua ação na pregação e no ensino, causando grande espanto às multidões que o ouviam. A ação do Espírito Santo nele causava enorme impacto no exercício de seu ministério, a ponto “de sua fama correr por toda a circunvizinhança”. Somente um Redentor com características humanas poderia ter essa necessidade de ser revestido do poder do Espírito para exercer as suas funções ministeriais e de impactar poderosamente seus ouvintes.

O OBJETIVO DE SATANÁS NA TENTAÇÃO O homem natural é dominado por sua natureza pecaminosa de forma que ele é escravo de Satanás antes de sua regeneração, mas, após a ação regeneradora de Deus, começa a haver uma guerra interior com relação ao pecado, porque, a partir dessa ação divina, a nova natureza faz frente à velha natureza. É isto que Paulo diz: “Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que porventura seja do vosso querer” (Gl 5.17). Essa batalha no cristão é inevitável e é necessária para que o cristão comece a desfrutar a vitória espiritual sobre o pecado em sua vida. Sem a ação do Espírito nunca há essa luta no coração do homem. Como já foi visto, Jesus não possuía a mesma natureza pecaminosa que nós, e, por essa razão, a batalha de Jesus na tentação foi diferente. A sua natureza interior não era pecaminosa como a nossa, onde o diabo freqüentemente encontra uma trilha propícia, um caminho pavimentado para o mal. A tentação em nós encontra uma trilha favorável que pode nos levar (e freqüentemente nos leva) ao pecado. Com Jesus era diferente. Ele disse de si mesmo: “O príncipe deste mundo não tem nada em mim” (Jo 14.30). Nunca Satanás haveria de encontrar um caminho favorável na alma de Jesus para fazê-lo pecar. O objetivo de Satanás na tentação do deserto foi uma empreitada de construir 459. Sobre esse assunto, veja meu livro, As Duas Naturezas do Redentor (São Paulo: Cultura Cristã, 2004), 470-489.

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uma cabeça-de-ponte numa tentativa de conseguir de Jesus uma concessão que o haveria de forçar a um tropeço ou fracasso. Deixe-me ilustrar isso com um exemplo de nossa familiaridade. Se um político aceita um suborno de uma grande companhia para fazer lobby para aprovar um projeto da câmara federal, esse político vai ficar sob o controle da companhia, sob a ameaça de botar a boca no trombone; ou se um cientista oferece informações confidenciais de sua pesquisa a um país inimigo, ele acaba ficando prisioneiro desse ato. Eles se comprometeram. Foi exatamente o que Satanás tentou fazer com Jesus: ele queria que Jesus fizesse alguma concessão ou que ele transigisse em alguma coisa. As tentações de Satanás tiveram esse propósito, e nós vamos estudar posteriormente como Satanás tentou fazer Jesus transigir.

PRIMEIRA TENTAÇÃO: A DA FOME A. ANÁLISE DA PRIMEIRA TENTAÇÃO Análise de Texto Mateus 4.2-4 – “E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome. Então o tentador, aproximando-se, lhe disse: Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães. Jesus, porém, lhe respondeu: Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.”

1. OBSERVE A OCASIÃO DA PRIMEIRA TENTAÇÃO “E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites.”

Esse longo período de jejum não é uma impossibilidade humana. Não pensemos simplesmente que Jesus suportou esse tempo todo porque ele também era Deus. Moisés (sem possuir a natureza divina) jejuou esse período quando estava para receber a lei, e ainda é dito que ele nem sequer bebeu água (Êx 34.28), quando de Jesus é dito apenas que não comeu. Contudo, esse período sem comer pode levar a grandes dores e a provas duras para um ser humano. Jesus era tão humano como qualquer outro, e suas necessidades físicas eram iguais às dos outros da raça. Nosso Senhor certamente sofreu muito esse período de provação e de privação. A primeira tentação narrada no texto começou após ele estar em um estado de profunda fome. O texto diz: “E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome. Então o tentador, aproximando-se, lhe disse: Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães.”. A abordagem de Satanás foi após um período de grande privação física.

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2. OBSERVE A PROFUNDA NECESSIDADE FÍSICA DE JESUS “E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome.”

Poucos de nós temos noção do que fome significa. Alguns de nós ficamos por algum tempo sem comer e logo as dores de cabeça, de estômago, tontura, etc., começam a aparecer. Jesus impôs a si mesmo um jejum extremamente longo. Se ele ficasse ainda mais tempo sem comer, ele enfrentaria problemas muito mais sérios ainda, de desespero e morte. Você não pode se esquecer de que ele era homem, e, como tal, a alimentação era algo extremamente fundamental para a sua sobrevivência. Essa tentação de Satanás atacou um ponto da natureza humana de Jesus Cristo em relação às necessidades físicas. Todavia, essa tentação veio por meio ilegítimo e cruel.

3. OBSERVE A ABORDAGEM DE SATANÁS “E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome. Então o tentador, aproximando-se, lhe disse:”

O verso começa com a expressão “então”, isto é, após a afirmação do jejum de quarenta dias. Essa abordagem de Satanás evidencia a sua sagacidade para fazer Jesus transigir em sua conduta a partir de uma necessidade absolutamente natural e premente dele. Quando o diabo se aproximou, ele estava sem comer havia “quarenta dias e quarenta noites”. A tentação foi muito forte para Jesus porque a sua alternativa era andar ainda muitos quilômetros para alcançar o primeiro vilarejo ou aceitar a proposta de Satanás. As condições físicas de Jesus eram bastante delicadas. Verificando as condições físicas de Jesus, Satanás tomou vantagem e lhe ofereceu uma solução rápida e fácil. Era pegar ou largar! Era só Jesus exercer o seu poder divino (que Satanás sabia que ele tinha), e o problema da fome seria solucionado. O Espírito Santo colocou Jesus em condições físicas tais que favoreciam as tentações de Satanás. A tentação de comer não seria grande se a fome não fosse grande. Satanás esperou 40 dias para poder abordar Jesus de uma maneira sagaz. Satanás sempre espera a hora certa de lançar o laço. Ele é inteligente suficientemente para esperar o tempo próprio, o tempo quando as pessoas estão em grandes necessidades e têm grandes desejos, que é o caso de Jesus Cristo. Não é errado pensar que Jesus teve grande desejo de comer pão naquela hora, e esses desejos são perfeitamente naturais. Querer satisfazer a fome naquela hora não era pecaminoso, mas é importante que vejamos aqui a sagacidade da abordagem da antiga serpente, que sabe o tempo exato do bote. Essa serpente age de acordo com as circunstâncias, e tudo favorecia o seu ataque a Jesus.

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Satanás, um observador astuto dos homens pecadores, sabe a hora de puxar a corda da arapuca. Quando os homens estão satisfeitos, ele os tenta para serem orgulhosos e se esquecerem de Deus; quando eles estão sem nada, ele os tenta a não confiarem em Deus; quando eles são cobiçosos, ele lhes oferece ouro; quando eles estão em carência afetiva, ele lhes oferece ocasião para traírem suas famílias. Ele sempre arranja uma boa oportunidade para atacar. E, assim, pacientemente, ele esperou pelas carências e necessidades de Jesus, após quarenta dias e quarenta noites de jejum. Além disso, temos que verificar se a abordagem de Satanás deve ser considerada uma visão de êxtase para Jesus ou como algo que envolveu uma presença real e histórica e uma aparência de Satanás a Cristo. Eu opto por essa última opção pela seguinte razão: após terminar o período da tentação, é dito no texto que “com isto Satanás o deixou” (Mt 4.11). Isso implica numa aparência de Satanás e numa deslocação ou movimento físico de um lado para outro. Tudo aponta para uma manifestação visível de Satanás, que tomou forma e dialogou com Cristo, pois o levou até outros lugares para fora do deserto (vs. 5, 8).

4. OBSERVE O VENENO LANÇADO POR SATANÁS SOBRE A DIVINDADE DE JESUS “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães.”

O que Satanás está efetivamente dizendo aqui é: “Você pode não ser o Filho de Deus. Prove, então, que você é fazendo um milagre transformando as pedras em pães.”. Lembre-se de que Jesus estava apenas começando o Seu ministério. Ele não havia feito nenhum milagre ainda e nem sequer havia começado o seu ofício profético. Quando estamos iniciando a nossa vida profissional, sempre nos sentimos inseguros nas primeiras tarefas. Por certo, Satanás estava contando com a inexperiência de Jesus para lançar contra ele dúvidas sobre sua própria messianidade. Quando surgem dúvidas sobre as nossas capacidades, então somos tentados a provar que somos capazes diante do desafio. E, então, somos tentados ao orgulho, a provarmos aos outros quem somos, e a evidenciarmos para nós mesmos a nossa própria insegurança. Era exatamente isso que Satanás queria de Jesus Cristo: que ele transigisse e aceitasse a sua sugestão maligna. Além disso, essa mesma expressão, “se és Filho de Deus”, veio da boca de pessoas maldosas que, passando ao lado da cruz, meneando a cabeça, disseram: “Salva-te a ti mesmo, se és Filho de Deus! E desce da cruz!” (Mt 27.48). Essa é uma expressão para causar dúvida que parte das profundezas do inferno, para levantar dúvidas da divindade de nosso Redentor!

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5. OBSERVE A SUGESTÃO MALDOSA DE SATANÁS “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães.”

Toda tentação que vem de Satanás é com intuito mau. Não há nenhuma sugestão boa que possa vir de sua boca. As cousas que vêm dele podem até parecer boas aos olhos dos desatentos, mas as suas intenções são más. Mas onde está a maldade dessa tentação de tentar prover pão para Jesus? Onde está a maldade se, com a ação miraculosa de Jesus, ele haveria de dar um atestado comprobatório da sua divindade? Afinal de contas, essa era uma providência extraordinária necessária. Há algumas coisas que mostram a maldade da abordagem da primeira tentação elaborada por Satanás: Se Jesus desse ouvidos a Satanás, ele quebraria o jejum previamente estabelecido; se Jesus desse ouvidos a Satanás, ele estaria dando ouvidos às sugestões de Satanás, e o soberano passaria a ser outro; se Jesus desse ouvidos a Satanás, ele deixaria de confiar nas providências de seu Pai para sua vida, pois, na hora certa, próprio o Pai haveria de alimentá-lo (como o fez com o serviço que os anjos lhe prestaram de uma forma extraordinária); se ele desse ouvidos a Satanás, ele daria crédito à dúvida que Satanás sugeriu sobre a sua própria filiação divina; se Jesus desse ouvidos a Satanás, ele teria feito o milagre da transformação das pedras em pães e, com isso, teria feito um exibicionismo de poder perante Satanás. A proposta de Satanás a Jesus era uma grande armadilha para Jesus, fosse qual fosse a sua resposta. Aí está a sua inteligência maldosa. Se Jesus aceitasse a proposta de Jesus, era sinal de que Jesus tinha pensado sobre a possibilidade de não ser realmente o Filho de Deus, e então resolveu provar, ou, ainda, ele desconfiaria das provisões divinas para a sua situação imediata. Se Jesus não aceitasse a proposta de Satanás, poderia estar sujeito a ser visto como alguém que não é capaz de transformar pedras em pães. De qualquer modo, a maldade da tentação aparentemente inocente de Satanás fica evidente quando estudamos as intenções do inteligente inimigo de nossa alma!

B. A RESPOSTA DE JESUS À PRIMEIRA TENTAÇÃO Mateus 4.4 – “Jesus, porém, lhe respondeu: Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.”

1. MOSTRA A AUTORIDADE DA ESCRITURA PARA JESUS Na primeira tentação, Satanás não usa a Escritura, mas se aproveita da fraqueza física de nosso Senhor após 40 dias de jejum. Não obstante isso, Jesus, na sua resposta a Satanás, apela para a autoridade da Escritura, quando diz: “Está escrito”.

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Jesus aceita a autoridade da Escritura como ninguém porque Ele próprio é o Autor das Escrituras. Elas são chamadas por Paulo de “Palavra de Cristo”, que deviam habitar ricamente nos crentes (Cl 3.16). Em outras palavras, nessa batalha contra Satanás, Cristo apela para as suas próprias palavras como fonte de autoridade. Todavia, ele não as chama de“sua palavra”, mas “palavra que sai da boca de Deus”. Toda “palavra que sai da boca de Deus” tem uma característica de normatividade e de autoridade que os seres criados não podem contestar, pela simples razão dela proceder da boca de quem procede. Deus é que dá autoridade à sua palavra. A expressão “está escrito” é uma expressão técnica usada para denotar a autoridade da palavra inspirada, que é a Escritura Sagrada, consagrada em autoridade desde os tempos do Antigo Testamento. Jesus usa a mesma expressão que outros autores do Novo Testamento usaram quando se referiram à Palavra do Antigo Testamento.

2. MOSTRA O CONHECIMENTO QUE JESUS TINHA DA ESCRITURA Quando Jesus, de pronto, faz a citação de Deuteronômio 8.3, fica evidente o conhecimento que ele possuía da revelação divina registrada na Escritura. Ele não precisou usar uma chave bíblica para localizar a passagem e nem de um léxico para ver o sentido correto das palavras no texto, mas citou de memória aquilo que ele, como homem que era, havia aprendido com seus pais desde a tenra infância. Além de ter sido um menino educado na verdade de Deus, esse menino, desde que foi concebido, era mais do que um menino. Era o Deus-menino. Sua mente conseguia assimilar as verdades de Deus e dos negócios do seu Pai de uma forma espantosa. Por isso é dito que “todos que o ouviam muito se admiravam da sua inteligência e das suas respostas” (Lc 2.47). Não podemos fugir desse resultado maravilhoso da unio personalis. Se é dito de Timóteo que, desde a infância, havia aprendido de sua mãe e avó as sagradas letras, quanto mais não se pode dizer daquele que é maior do que Timóteo, não simplesmente por sua inteligência, mas também pela assistência do Espírito, e especialmente pelo fato de ser Deus-homem. O conhecimento que Jesus tinha das Escrituras é admirável, e, nisso, em alguma medida, também podemos imitá-lo, porque somos chamados a sondar as Escrituras, pois elas testificam desse a quem tanto admiramos e em quem tanto cremos!

3. MOSTRA A BOA HERMENÊUTICA APLICADA POR JESUS O uso correto que Jesus faz da Escritura é uma grande lição para nós, que queremos ter vitórias sobre as investidas de Satanás. A hermenêutica de Jesus é correta porque ele toma um texto de Deuteronômio 8.3, onde a porção tratada diz respeito às providências que Deus havia dado ao povo de Israel no deserto. Nessa passagem, Moisés estava repreendendo o povo, fazendo-o lembrar de como Deus

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havia sido abençoado nos anos passados, a fim de que o povo pudesse entrar na terra da promissão. Então Moisés começa a repreensão: “Recordar-te-ás de todo caminho, pelo qual o Senhor teu Deus te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar, para te provar, para saber o que estava no teu coração, se guardarias ou não os seus mandamentos. Ele te humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não conheceste, nem teus pais o conheceram, para te dar a entender que não só de pão viverá o homem, mas de tudo o que procede da boca do Senhor, disso viverá o homem” (Dt 8.3, 4).

Jesus não tirou uma sentença do seu contexto para rebater Satanás, mas usou a Escritura de maneira exata, mostrando não a Satanás, mas a nós, como devemos fazer a fim de não usarmos a Escritura indevidamente, como tantos têm feito de maneira a ridicularizar a Palavra de Deus.

C. LIÇÕES DA PRIMEIRA TENTAÇÃO 1. FREQÜENTEMENTE DEUS DEIXA SEUS FILHOS PASSAREM POR GRANDES DIFICULDADES Se Deus permitiu que seu Filho amado passasse por grandes dificuldades e grande fome, não há como duvidar que ele também nos expõe a cousas semelhantes. É um engano pensar que Deus evita que os seus filhos passem por dificuldades. Há inúmeros exemplos na Escritura de filhos de Deus que passaram por grandes dificuldades, lutas, e mesmo fome. Escrevendo a seus irmãos em tribulações, Paulo diz: “Como sois participantes dos sofrimentos, assim o sereis da consolação. Porque não queremos, irmãos, que ignoreis a natureza da tribulação que nos sobreveio na Ásia, porquanto foi acima das nossas forças, a ponto de nos desesperarmos da própria vida” (2Co 1.7, 8). Paulo, juntamente com seus companheiros de viagem, passou catorze dias na voragem do mar, com fome e sede (At 27.33, 34). Essas coisas acontecem para que os homens possam reconhecer a sua dependência de Deus e para fortalecer a fé daqueles que já são cristãos. Essa é uma das provações a que somos sujeitos pelo próprio Deus que, direta ou indiretamente, aperfeiçoa-nos no cadinho das aflições. Portanto, não se esqueça de que você está sujeito a passar por grandes dificuldades, mas cuidado para que você não blasfeme diante delas. Antes, tenha os olhos voltados para o alto, “para que não confiemos em nós, e, sim, no Deus que ressuscita os mortos” (2Co 1.9b).

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2. SATANÁS SEMPRE QUER TIRAR VANTAGENS DE NOSSAS DIFICULDADES Satanás sempre aparece no meio de nossas dificuldades para tirar vantagem da situação de dor, de miséria ou de aflição em que nos encontramos. Paulo deixou esse ensino bem claro: “Para que Satanás não alcance vantagem sobre nós, pois não lhe ignoramos os desígnios” (2Co 2.11). Foi assim que ele fez com Jesus. Ele nos tenta usando meios ilícitos para satisfazer-nos em nossas dificuldades. Se ele fez isso com Cristo, que era guardado e guiado pelo Espírito no deserto, certamente ele fará o mesmo conosco, a quem também o Espírito guia. A direção do Espírito não nos isenta das investidas interesseiras de Satanás. A pobreza e a fome podem ser uma grande oportunidade para Satanás tirar vantagens. O Pregador, sabedor dessa realidade, disse: “Não me dês pobreza, nem a riqueza; dá-me o pão que me for necessário; para não suceder que, estando eu farto te negue e diga: Quem é o Senhor? Ou que, empobrecido, não venha a furtar, e profane o nome de Deus” (Pv 30.8, 9). Essas duas coisas, riqueza ou pobreza, podem nos colocar como presas fáceis dessas investidas maldosas de Satanás. Fique atento sempre, especialmente quando você estiver passando por dificuldades, para que você não caia nas malhas traiçoeiras da tentação. Todavia, ao mesmo tempo, lembre-se de que a necessidade não é a entrada certa para o pecado. Nenhuma necessidade pode tornar certa a entrada da maldade em nossa vida. Basta não se esquecer que Satanás está de olho nas suas necessidades para fazer propostas indecentes, mas com cara de coisa boa! Cuide-se, pois ele pode tirar vantagem da sua situação! Cristo tinha o poder de fazer exatamente o que Satanás sugeriu, mas ele percebeu as armadilhas por detrás das ofertas de Satanás. Peça olhos abertos para você poder perceber que, por detrás das investidas de Satanás, há uma armadilha montada para que você acabe perdendo, Deus seja desonrado, e ele se ufane de sua maldosa inteligência.

3. SATANÁS SEMPRE OFERECE VANTAGENS PARA MELHORAR A NOSSA VIDA NO MEIO DE NOSSAS DIFICULDADES Não somente Satanás quer tirar vantagem da sua situação, mas ele pode oferecer-lhe vantagens a fim de que a vontade dele seja feita na sua vida. Freqüentemente ele faz uma barganha. Para tirar vantagens, ele oferece vantagens. Satanás pareceu tremendamente interessado em ajudar Jesus ao sugerir um meio fantástico para matar a fome de Jesus, a fim de ele fosse manifesto como Filho de Deus e ficasse satisfeito. Satanás, quais vendedores de produtos baratos, sempre oferece vantagens enormes para os filhos dos homens, e freqüentemente eles caem em suas armadilhas. Via de regra, para enganar com vantagens excelentes, ele se apresenta como “anjo

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de luz. Não é muito, pois, que os seus próprios ministros se transformem em ministros de justiça” (2Co 11.14, 15). Satanás se apresenta bonzinho, querendo fazer o bem, oferecer vantagens. Você se lembra o que ele fez com Eva lá no Éden: Ele sugeriu para ela que os primeiros pais poderiam ser iguais a Deus se comessem do fruto (ver Gn 3.5). Tenha cuidado com as vantagens que o mal lhe oferece, pois a ganância de ter vantagem pode arrastá-lo a desgraças ainda maiores (cf. Pv 1.15-19). As arapucas armadas por Satanás, como sábio passarinheiro que é, sempre vêm cobertas com coisas atraentes e bonitas, com promessas de vantagens espetaculares! Tenha cuidado com a aparência do bem daquele que é maligno! Peça sabedoria a Deus para poder enxergar o que está por trás das investidas do maligno.

4. AS PRIMEIRAS TENTAÇÕES DE SATANÁS SÃO SEMPRE PLAUSÍVEIS Satanás não mostra as unhas logo de cara. Ele primeiro se apresenta de maneiras inocentes, com sugestões aparentemente boas, para que não desconfiemos das suas reais intenções. Perceba que a narrativa de Mateus é progressiva em gravidade de investidas. A primeira tentação apresenta cousas muito plausíveis, na segunda ele mostra mais suas intenções e, na terceira, ele realmente mostra onde, desde o início, queria chegar: pede adoração. Não há limite para os intentos malignos, mas ele sempre começa com sugestões inocentes. A princípio ele parecia querer simplesmente o bem de Cristo – saciar sua fome, e ver manifesta a sua glória e honra no desempenho de milagres, o que apontaria para a sua Divindade. Há uma tentação que é explícita, e outra que é implícita. Essa primeira foi implícita, disfarçada, aparentemente despretensiosa. Esse é o tipo de tentação na qual as pessoas caem mais facilmente por causa da sutileza do engano, e elas são perigosas. Tenha cuidado com o assédio de Satanás onde ele não parece maligno. Esteja atento àquele que pode “transformar-se em anjo de luz”, para que você não seja pego no contrapé. Se você não se cuidar, a sua queda pode ser feia e lhe trará muito desapontamento espiritual.

5. O ÚNICO MODO DE DERROTAR SATANÁS É TER UMA FIRME CONFIANÇA UNICAMENTE EM DEUS E SUA PALAVRA Não dê ouvidos às sugestões da bíblia do Maligno: freqüentemente ele sussurra aos nossos ouvidos as coisas da sua cartilha. Não lhe dê ouvidos, porque ele é muito sagaz no seu raciocínio. Não lhe dê ouvidos, mesmo quando ele sugere a você textos da Bíblia verdadeira para levá-lo a fazer o que ele quer que você faça.

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Não confie na sua própria capacidade de vencer Satanás, porque ele é mais inteligente do que você. Ele é um ser superior aos homens. Ele é extremamente astuto e sagaz, e sabe tirar vantagens das nossas situações. Também não confie nas coisas materiais como o pão, porque não vivemos dele somente. Confie unicamente na verdade da Palavra de Deus, que é imutável e permanece para sempre. É dela que você vai viver. Use devidamente as Escrituras, como fez Jesus, para ser vencedor diante das investidas de Satanás. Confie no Inspirador e Autor último das Palavras da Bíblia, que é Deus. Ele conhece as suas reais necessidades e é o único capaz de livrá-lo de suas aflições, além de livrá-lo do meio das tentações.

SEGUNDA TENTAÇÃO: A DA AVENTURA E DA FAMA Mateus 4.5-7 – “Então o diabo o levou à cidade santa, colocou-o sobre o pináculo do templo. E lhe disse: Se és Filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito; que te aguardem; e: Ele te susterão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra. Respondeu-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus.”

Em alguma medida, todos nós já tivemos tentações com respeito a fazer coisas que nos levam à fama, seja no trabalho, na escola ou nos nossos relacionamentos. Eu creio que o objetivo de Satanás, na segunda tentação, tem a ver com a intenção de despertar em Jesus algum espírito aventureiro que lhe desse fama e popularidade, a fim de que Jesus obedecesse à sugestão de Satanás, e colocasse dúvida sobre a sua intensidade. Eu disse que esse foi o objetivo de Satanás, não que Jesus tivesse qualquer inclinação para isso.

A. O LUGAR DA TENTAÇÃO “Então o diabo o levou à cidade santa, colocou-o sobre o pináculo do templo.”

Lembre-se de que Satanás e Jesus estavam no deserto, e agora o texto diz que o lugar de confronto foi a “cidade santa”, que é uma referência a Jerusalém (cf. Is 52.1; 58.2). A santidade da cidade está relacionada ao lugar do culto divino, o lugar onde Deus se revelava de modo especial, o lugar onde estava localizado o templo. Foi exatamente para o templo que Satanás levou Jesus. Para ser exato, para o lugar mais alto do templo, que é o pináculo. Não sabemos exatamente como Satanás e Jesus foram até esse lugar, partindo do deserto, porque não sabemos a que distância eles estavam do templo. Há a sugestão de que Jesus tenha andado até como era próprio de sua humanidade, e Satanás o tenha conduzido (ver Lucas 4.9).

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Há, ainda, a idéia de que Satanás o tenha carregado pelo ar, sem lhe causar nenhum dano, e o tenha colocado nessa posição alta. De qualquer forma, qualquer dogmatização nessa matéria seria imprudente, pois não temos elementos suficientes para isso. O que podemos saber com certeza é que houve um transporte, uma deslocação de um lado para outro, e não apenas uma narrativa de algo imaginário que tenha acontecido inteiramente na subjetividade de Jesus. Thomas Manton diz que esse transporte do deserto para o pináculo do templo “não deve ser atribuído à força de Satanás, mas ao seu atrevimento. Cristo não o obedeceu, mas submeteuse à dispensação divina, e lutaria com ele não só no deserto, mas na cidade santa”.460 O novo lugar era mais visível, e, além disso, público, e Jesus poderia ser contemplado pelas pessoas e tirar vantagem a fim de ser conhecido e ficar famoso se ele se submetesse às sugestões malignas de Satanás. O templo de Jerusalém era muito familiar para Jesus Cristo, e, ali, ele se sentiria na sua própria casa, aliás, na Casa de seu Pai, a Casa de Oração para todos os povos. Ali seria o melhor lugar para ele se mostrar. Na verdade, o templo era o lugar onde profeticamente é dito que o Senhor se encontraria. O profeta Malaquias, ao introduzir o precursor – João Batista – diz: “De repente virá ao seu templo o Senhor a quem vós buscais, o Anjo da aliança a quem vós desejais; eis que ele vem, diz o Senhor dos exércitos” (Ml 3.1). O templo era o lugar próprio do Messias, e essa poderia ser a oportunidade ímpar para que ele se manifestasse poderosamente. O novo lugar da tentação era o mais propício para propósitos propagandistas. Se Jesus Cristo cedesse às sugestões de Satanás, ele certamente exibiria o seu poder, mas pecaria em fazer a vontade de Satanás, o que inviabilizaria a sua manifestação genuinamente messiânica. Mas o Filho de Deus encarnado não poderia tornar-se conhecido do mundo através dos métodos de Satanás. Seria a glória fracassada do Redentor, porque seria vanglória. Ele havia vindo ao mundo não para receber esse tipo de glória, mas em humildade. A sua exaltação viria mais tarde, com o próprio Pai. Satanás levou Jesus para o melhor lugar – um santo lugar – com um propósito aparentemente bom – tornar Jesus conhecido e apreciado pelos outros homens, sem trazer nenhum dano físico a Jesus – os anjos o acolheriam. Todavia, a malignidade das palavras do tentador são evidentes aos que possuem olhos para ver.

B. A MUDANÇA DE TENTAÇÃO “E lhe disse: Se és Filho de Deus, atira-te abaixo.”

A sugestão da tentação está evidente em três fatos: (1) que Jesus provasse sua filiação divina. Novamente Satanás vem com a cláusula “se és filho de Deus”, insinuando que ele não era divino, a fim de que ele pudesse provar que era divino. 460. Thomas Manton, Temptation of Christ, 59.

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(2) que, se Jesus saltasse, ele seria aclamado como Messias, porque o milagre da ação extraordinária divina, através dos anjos, seria manifesta. Toda a cidade de Jerusalém poderia vê-lo saltando do pináculo; (3) que Jesus deveria confiar na providência divina. Se Jesus saltasse, caísse e morresse na queda, certamente ele não seria o Messias, nem seria aclamado, e o os judeus o teriam considerado um falsário. Entretanto, se Jesus sobrevivesse no salto, ele teria sido submisso aos métodos de Satanás, aceitando a sua insinuação de que ele não era divino. “... atira-te abaixo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito; que te aguardem; e: Eles te susterão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra.”

A mudança de tentação é vista na passagem de uma tentação absolutamente inocente, que foi a de transformar as pedras em pães, para uma tentação de ser honrado pela assistência angelical. Deus haveria de colocar os anjos para a sustentação do corpo de Jesus, e ele não sofreria nenhum dano físico. Jesus foi tentado a confiar na providência divina, e o erro está no fato de Satanás submeter Jesus à obediência da sua sugestão. Essa segunda tentação foi mais forte que a primeira, pois veio velada debaixo de uma citação bíblica. Satanás tentou Jesus para que ele confiasse na promessa de Deus, quando Deus não exigiu isso dele. Satanás queria apenas a obediência de Jesus à sua maligna sugestão.

C. O USO QUE SATANÁS FAZ DA ESCRITURA NA TENTAÇÃO “porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito; que te aguardem; e: Eles te susterão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra.”

A fim de justificar a sua insinuação, Satanás apelou para a Escritura. Satanás citou para Jesus o Salmo 91.11, 12. A sugestão de Satanás é de que Jesus, ao saltar do pináculo do templo (uma espécie do moderno bungee jump), não sofreria qualquer dano físico, porque seria amparado por anjos, com base nas promessas divinas.

1. SATANÁS APELA PARA A AUTORIDADE DA ESCRITURA: “Porque está escrito:”. Essa expressão aponta para a autoridade da Escritura. Quando um autor queria salientar a autoridade da Escritura, ele dizia: “Está escrito”.461 Satanás apelou para aquilo pelo que Jesus Cristo tinha grande admiração e 461. Praticamente todos os escritores do Novo Testamento usaram a expressão “está escrito” não somente para apontar para uma verdade específica, mas também para mostrar a autoridade do assunto sobre o qual estavam tratando.

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respeito – a verdade de Deus. Nunca Jesus poderia negar-se a fazer algo que está escrito na fonte normativa de vida para todos os homens. Ele era um deles, e sempre esteve disposto a fazer a vontade de seu Pai. Sabedor disso, Satanás o tentou com o que Cristo mais amava: a verdade de Deus. Portanto, ao tentar derrubar Jesus Cristo, o tentador apelou para a fonte maior de autoridade em que Jesus Cristo cria piamente e a qual ele usava freqüentemente. Todavia, Satanás agiu assim de maneira tendenciosa, porque ele queria levar Jesus a pecar contra a própria Escritura, e usou a Escritura fora do seu contexto. Esse uso hermenêutico errôneo tem sido praticado por muitos falsos profetas e mestres, que aprenderam a usá-lo com o pai da mentira.

2. SATANÁS EVIDENCIA SAGACIDADE NA CITAÇÃO DA ESCRITURA Satanás faz todas as suas coisas com muita sagacidade, e essa sagacidade é vista de maneira muito clara nas suas intenções malignas desde o princípio (Gn 3.1). Para usar um ditado popular, Satanás “não dá ponto se nó”. Isso quer dizer que ele procura usar a verdade de Deus para tirar vantagem dela, mas de um modo sutil e enganoso. Não é sem razão que a Escritura diz que ele “se transforma em anjo de luz” (2Co 11.14), e que seus comparsas se apresentam como “ministros de justiça” (v. 15). Nessa proposta feita a Jesus Cristo podemos ver “as profundezas de Satanás” (Ap 2.24) por trás de tudo o que ele faz. Ele torna a verdade em mentira, e propõe que Jesus reverencie a mentira, que ele cuidadosamente apresenta com cara de verdade. Ele usa o que ele mais odeia (a santa Palavra de Deus) como se ele a reverenciasse e apresenta as suas intenções malignas de um modo impressionantemente sagaz.

3. SATANÁS MOSTRA OS SEUS PROPÓSITOS MALIGNOS NA CITAÇÃO DA ESCRITURA Há várias pessoas na Igreja de Cristo que têm um pensamento como o que segue: “Se a religião fala de Deus é boa” ou “se a pregação cita a Bíblia é boa”. Sabedor disso, Satanás se tem mostrado um dos mais hábeis citadores da Bíblia. Sua hermenêutica bíblica certamente é errônea, mas, por sua extrema sagacidade, ele consegue enganar as pessoas. Satanás é capaz de usar o que há de mais sagrado neste mundo – a Palavra de Deus – com um propósito sujo: fazer Jesus Cristo cair de seu estado de santidade. As piores ações de Satanás vieram embrulhadas nas melhores palavras que ele poderia usar – as palavras de Deus. O seu intento ao fazer isso é colocar o Deus encarnado contra o seu próprio Pai. É como se Satanás disse a Cristo: “Se você é Filho de Deus, e você sempre foi

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fiel à Palavra de Deus, sempre honrou a essa Palavra, qual é o problema de você lançar-se daqui do pináculo do templo, para comprovar a veracidade dessa Palavra?”. Na verdade, Satanás não estava querendo que Jesus mostrasse sua obediência à Palavra, mas que Jesus o obedecesse. Ele estava provocando Jesus Cristo a uma atitude que Jesus não poderia e nem deveria fazer.

D. O USO QUE JESUS FAZ DA ESCRITURA NA RESPOSTA A SATANÁS Satanás cita para Jesus o texto do Salmo 91.11, 12. A sugestão de Satanás é que, se Jesus saltasse do pináculo do templo, ele não seria ferido por causa da assistência providencial de Deus através dos anjos. Os anjos chegariam primeiro e aparariam Jesus Cristo – numa espécie de bungee jump celestial. Eles seriam lançados do céu para suster Jesus Cristo. Esse evento seria contemplado por muitos e seria considerada um milagre, essa intervenção divina. Jesus teria o reconhecimento público, a fama e o aplauso dos homens. Ao invés disso, Jesus escolheu o caminho da humildade porque ele escolheu o caminho de ser Servo. Ele não veio para ser aplaudido e receber a honra dos homens, mas veio para fazer a vontade de seu Pai. Por isso, ele deu a resposta clara à investida de Satanás, usando a mesma Escritura: Análise de Texto “Também está escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus”(Dt 6.6).

1. A PRONTIDÃO DA RESPOSTA DE JESUS À TENTAÇÃO DE SATANÁS “Também está escrito.”

O fundamento da resposta que Jesus usou foi a própria Escritura. Ele fez exatamente o que tinha feito na primeira resposta. Por isso disse: “também está escrito”. Assim como, no passado, Deus não deveria ser tentado, também o seu Filho, que tem a mesma natureza, não deve ser tentado. É esse o ensino das Escrituras. Quando Jesus disse “também está escrito”, ele estava se contrapondo à citação da Escritura feita de um modo errôneo por Satanás. Para que se possa responder à citação da Escritura é necessário conhecer a Escritura, e Jesus a conhecia bem. Por essa razão, Jesus comparou Escritura com Escritura, aplicando o princípio hermenêutico da “analogia scripturae” (analogia ou comparação da Escritura). Esse princípio ensina que a Escritura não contradiz a Escritura; antes, os textos se completam e se explicam mutuamente. Jesus sabia disso, por isso prontamente respondeu à investida de Satanás.

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2. O SENTIDO EM QUE DEUS É O DEUS DE SATANÁS “Não tentarás ao Senhor teu Deus.”

Jesus citou o texto de Deuteronômio, que trata das relações do povo de Israel e Deus, à Satanás. Em que sentido Deus é Deus de Satanás? No sentido em que Satanás (a) está sob o domínio pleno de Deus, (b) obedece a Deus; e (c) crê em Deus. (a) Começando a análise pela ordem inversa, pode parecer estranho, mas Satanás (assim como todos os anjos caídos) crê em um Deus e estremece (Tg 2.19). Ele acredita que tudo o que Deus diz é verdadeiro, embora ele sempre tente dizer aos homens que Deus não é verdadeiro. Nenhum de nós, seres humanos, conhece a Deus da forma que Satanás o conhece. Este último viveu junto de Deus, no céu, até que foi lançado de lá de cima para este mundo. Ele participou, de alguma forma, da corte celeste, e contemplou as glórias do Deus que o criou, até que abandonou o seu estado original (Jd 6). Portanto, não há nenhum absurdo em dizer que Deus é “teu Deus”, referindo-se a Satanás, pois ele crê em Deus, embora essa fé não tenha nenhuma conotação salvadora. (b) Satanás (assim como as suas hostes) obedece a Deus cumprindo os seus decretos e obedecendo suas ordens. Há vários textos nos quais os anjos caídos fazem exatamente o que Deus ordenou que eles fizessem. Satanás cumpriu todas as determinações divinas quanto a Jó, sem fugir a nenhuma delas. Outros anjos caídos obedeceram as ordens de Jesus enquanto ele estava conosco aqui neste mundo. Nesse sentido, também, Deus é o Deus deles. Ainda que de má vontade, eles obedecem a Deus, por isso Deus é o Deus deles. (c) Satanás está sob o controle absoluto de Deus em tudo o que faz. Por isso também podemos afirmar categoricamente que Deus é o Deus dele. Embora Satanás odeie a santidade de Deus, porque contrasta com a sua maldade, ele sabe que há somente um Deus que realmente é Senhor de todas as coisas criadas, inclusive dele próprio. Por essa razão é que ele comparece diante do Senhor, depois de passear pela terra, para pedir ordens para fazer as coisas que ele quer fazer com os homens, e as faz somente quando recebe a autorização divina.

3. O SENTIDO DE “TENTAR DEUS” “Não tentarás ao Senhor teu Deus.”

A idéia dessa citação é: “Não colocarás Deus sob prova”, ou “não colocarás Deus sob prova para ver se ele é o que diz ser”, ou “não provocarás Deus”, ou “não desafiarás Deus”. Em outras palavras, Jesus estava dizendo a Satanás que ele não deveria colocar Deus na mesma situação que os israelitas o colocaram no tempo da caminhada pelo deserto, em Massá. Eles provocaram Deus à ira quando disseram:

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“Está o Senhor entre nós ou não?”. A idéia era que, se Deus estava no meio do povo, ele deveria provar isso, dando-lhe água. Nisso há uma espécie de incredulidade. Tomé teve uma atitude semelhante no encontro seguinte ao aparecimento de Jesus aos discípulos, quando disse: “Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali não puser o meu dedo, e não puser a minha mão no seu lado, de modo algum acreditarei” (Jo 20.25). Jesus disse para Satanás não tentar Deus, isto é, não colocá-lo sob prova, porque isso é condenável. A citação que Jesus faz é autorizada, normativa, uma citação para a qual Satanás não tem resposta. Jesus cita a Escritura com propriedade, sem qualquer intenção impura no coração, fazendo exatamente o oposto de Satanás.

4. OS MODOS DE “TENTAR DEUS” É importante observar que, em todos os textos onde aparece a palavra “tentar” com referência a Deus, o verbo no grego é peira/zw (peirazo ou equivalente no hebraico), que nada tem a ver com a idéia impossível de induzir Deus ao erro, mas tem a ver com a idéia de provocá-lo, desafiá-lo, prová-lo, ou experimentá-lo.

a. Há o modo de tentar a Deus que é ordenado por ele Deus chamou os judeus do tempo do profeta Malaquias para prová-lo no que respeitava à sua fidelidade. Malaquias 3.10 – “Trazei todos os dízimos à casa do tesouro, par que haja mantimento em minha casa, e provai-me nisto, diz o Senhor dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu , e não derramar sobre vós bênção sem medida.”

Deus aceita que os homens o ponham à prova em algumas circunstâncias, para mostrar que ele é verdadeiro em tudo o que fala. Os homens podem experimentálo quanto à veracidade de suas promessas. Nesse sentido, podemos fazer prova de Deus e das promessas de sua Palavra (Sl 18.30) todos os dias de nossa vida, e, cada vez que fazemos isso, temos comprovada a fidelidade de Deus e a veracidade de suas promessas.

b. Há o modo de tentar a Deus que é permitido por ele Há alguns casos especiais em que Deus nos permite que o provemos, porque, nessas ocasiões, não sabemos exatamente o que convém fazer, e, então, ele nos autoriza a fazer prova Dele. Eu não chamaria isso de um mandamento, mas de uma concessão divina. A Gideão foi concedida a ocasião de estabelecer a prova do novelo de lã em duas situações: quando o novelo estivesse molhado e ao redor seco, e quando o novelo estivesse seco e ao redor todo molhado (Jz 6.36-40). Esse pedido de Gideão foi

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produto de sua fraqueza de fé e do senso de grande necessidade naquela circunstância, que afetaria a vida de todo o povo hebreu. Esse tipo de provação de Deus só pode ser permitido como evidência da nossa humildade perante Deus e quando estamos numa situação de grande importância em que esteja em jogo a vida da Igreja de Deus. Não se deve aplicar a necessidades particulares esse tipo de prova. A Tomé, que estava para ser apóstolo de toda a Igreja de Deus, foi permitida uma espécie de prova, quando disse que creria somente se visse o sinal dos cravos nas mãos e no lado de Jesus. Mesmo assim, esse tipo de prova foi permitido, mas não sem uma repreensão da parte de Cristo, que disse: “Não sejas incrédulo, mas crente” (Jo 20.25-27). Creio eu que esses tipos de tentações só são permitidas por Deus em ocasiões especialíssimas, quando alguma cousa muito importante da fé está em jogo. Não devemos, todavia, brincar de provar Deus em todas coisas em que temos dúvida.

c. Há o modo de tentar a Deus que é proibido por ele (1) A tentação é proibida quando ela significa provocação Vejamos alguns exemplos de homens tentando Deus de maneira aberta e de maneira velada, mas que mostram uma provocação: Salmo 95.9 – “Vossos pais me tentaram, pondo-me à prova, não obstante terem visto as minhas obras.”

Perceba que essa tentação foi aberta, declarada, e foi uma tentação feita por pessoas que haviam sido remidas do cativeiro, que eram chamadas de “povo do seu pasto, e ovelhas de sua mão” (v. 7). Salmo 78.17, 18 – “Mas, ainda assim, prosseguiram em pecar contra ele, e se rebelaram, no deserto, contra o Altíssimo. Tentaram a Deus nos seus corações, pedindo alimento que lhes fosse do gosto.”

Veladamente praticamente todos os Israelitas provocaram e desafiaram Deus, duvidando se o que ele lhes dava era o melhor. Deus havia lhes dado alimento de modo sobrenatural. Contudo, o alimento que Deus lhes dava não era do gosto deles, e, por isso, eles se rebelaram no deserto, provocando Deus. Ao sugerir que Jesus se jogasse do alto do pináculo do templo, a fim de que os anjos o sustentassem, Satanás estava provocando Deus, desafiando-o a provar alguma verdade escrita na Palavra, quando, em toda a história, Deus provou ser um Deus providente. Somos proibidos de provocar Deus, por isso se aplica também a nós a expressão: “Não tentarás ao Senhor teu Deus.”

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(2) A tentação é proibida quando ela significa desconfiança Não satisfeitos com o que Deus tem feito no nosso meio para nos dar fé, às vezes, arranjamos os nossos próprios meios para fazer as coisas que queremos. Os filhos de Israel fizeram exatamente isso. Veja o que diz a Escritura: Êxodo 17.7 – “E chamou o nome daquele lugar Massa e Meribá, por causa da contenda dos filhos de Israel, e porque tentaram ao Senhor, dizendo: Está o Senhor no meio de nós, ou não?”

Deus havia feito tudo por eles, operado maravilhas no meio deles, e os havia livrado dos egípcios e de outros povos no deserto. Eles tinham visto a coluna de nuvem durante o dia e a de fogo durante a noite. Deus estava na retaguarda e na vanguarda do seu povo em toda peregrinação. Todavia, eles ainda mostraram a sua desconfiança nos atos providenciais de Deus para com eles: “Está o Senhor no meio de nós, ou não?”. Da mesma forma, os fariseus e saduceus, no tempo de Cristo, depois de haverem visto tudo o que Jesus já havia feito, ainda “tentando-o, lhe pediram que lhes mostrasse um sinal vindo do céu” (Mt 16.1). Todos os sinais feitos até então eram sinais vindos do céu, da divindade, e eles ainda duvidavam de Cristo. Somos proibidos por Deus de submetê-lo à prova em razão de nossa desconfiança. A isso a Escritura se aplica: “Não tentarás ao Senhor teu Deus”.

(3) A tentação é proibida quando ela significa presunção O pecado está no fato de contarmos com os atos providenciais de Deus sem o uso dos meios comuns. Jesus Cristo não saltaria do pináculo do templo porque ele podia descer pelas escadas. Saltar do pináculo do templo, no caso de Jesus, é abusar dos atos providenciais de Deus quando existem meios naturais e próprios para se fazer uma coisa. Cristo, que, por causa dos seus poderes divinos, podia andar sobre o mar, muitas vezes tomou o barco para cruzar o mar da Galiléia. Seria presunção nossa querer que Deus nos ampare com sua ação providencial sobrenatural quando há meios naturais de sermos protegidos. Quem despreza os meios ordinários e apela para os extraordinários, mostra presunção, tenta Deus. Manton diz com toda clareza que “Deus é capaz de tirar água da rocha, quando não há nada senão rocha e pedra; mas quando podemos esperar encontrar uma fonte de água, nós devemos cavar para encontrá-la. Deus pode fazer chover maná do céu; mas quando o solo pode produzir milho, devemos cultivá-lo.”462

Nós exibimos uma fé cheia de presunção quando podemos usar meios naturais e pedimos que Deus aja sobrenaturalmente. A onipotência de Deus não está à nos462. Thomas Manton, Temptation of Christ, 90.

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sa disposição para que exibamos a nossa confiança presunçosa. “Desdenhar os meios ordinários e esperar o extraordinário é como se um homem tirasse a sua roupa, e, então esperasse que Deus o livrasse do frio.”.463 Tentamos Deus quando agimos dessa maneira, e isso nos é proibido.

5. A HEDIONDEZ DO PECADO DE TENTAR DEUS a. É revelada na incredulidade do poder de Deus Salmo 78.18, 19 – “Tentaram a Deus nos seus corações, pedindo alimento que lhes fosse do gosto. Falaram contra Deus, dizendo: Pode, acaso, Deus preparar-nos mesa no deserto?”

Os israelitas duvidaram interiormente do que Deus era capaz de fazer. Eles dependiam de Deus, mas não confiavam no seu poder. Por anos, Deus já havia mostrado o seu poder libertador, quando os tirou maravilhosa e assombrosamente do Egito, enviando as pragas e desbaratando posteriormente os exércitos inimigos, e agora eles questionavam se Deus era capaz de lhes preparar mesa no deserto! Ser incrédulo com respeito ao poder de Deus é tentá-lo! Nós mostramos incredulidade pondo Deus à prova quando não confiamos nele, quando desconfiamos de Sua ajuda e quando não descansamos nas suas providências. A idéia de “mesa no deserto” aponta para os grandes festivais que eles tinham no Egito e queriam que Deus repetisse ali no deserto, mas eles duvidavam de que Deus fosse capaz disso. Nesse mesmo Salmo, o e escritor sacro registra: “Ouvindo isto, o Senhor ficou indignado; acendeu-se fogo contra Jacó, e também se levantou o seu furor contra Israel; porque não creram em Deus, nem confiaram na sua salvação” (v. 21, 22). O grande pecado da tentação deles está, portanto, vinculado ao fato deles não crerem naquele que já tinha mostrado tantas vezes o seu poder no meio deles.

b. É revelada na insatisfação com as coisas que Deus dá Salmo 78.20 – “Com efeito feriu ele a rocha, e dela manaram águas, transbordaram caudais. Pode ele dar-nos pão também?”

Reafirmando o que disse logo acima, Deus havia demonstrado muitas vezes a sua bondade com eles de formas miraculosas, e, ainda assim, eles se mostravam insatisfeitos. Nós colocamos Deus à prova quando não ficamos satisfeitos com as coisas que ele nos dá, ou com o modo como ele manifesta a sua bondade ou o seu poder. A insatisfação deles era: “Se Deus deu água, por que ele também não nos dá 463. Ibid., 91.

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pão?”. Na verdade, desde que entraram no deserto, Deus lhes havia dado pão do céu, mas o problema é que esse pão do céu não era do gosto deles, “porque pediam alimento que lhes fosse do gosto” (v. 18). Eles não estavam satisfeitos com as providências divinas. Era como se o que Deus tinha feito não valesse nada. Eles tinham as suas próprias predileções, e o que Deus lhe proporcionara não lhes bastava nem lhes satisfazia. A hediondez do pecado da tentação é que eles se mostram insatisfeitos com as providências divinas, e Deus se aborrece com isso, porque ele não suporta que os homens diminuam a importância do que ele faz, ou que seus feitos sejam esquecidos e desprezados por eles.

c. É revelada na desconsideração pelo que ele faz Salmo 106.12-14 – “Então creram nas suas palavras, e lhe cantaram louvor. Cedo, porém, se esqueceram das suas obras, e não lhe aguardaram os desígnios; entregaram-se à cobiça, no deserto; e tentaram a Deus na solidão.”

Um povo de coração inconstante procede da forma que os versos acima apresentam. Num determinado momento eles crêem no que Deus diz, e a sua fé é manifesta em louvores; quando os problemas começam a aparecer, eles se esquecem do que Deus havia feito no meio deles, e não mais esperam em Deus. Então ficam desejando as coisas que tinham lá no Egito, ficam desejando voltar para o lugar de escravidão, onde tinham as panelas de carne, onde tinham os seus apetites saciados. Olham para trás, cobiçando as velhas cousas. Agora, no deserto, eles não tinham essa oportunidade, e provocavam o Senhor com sua atitude ímpia. A fim de satisfazer os seus apetites, eles querem que Deus lhes faça um milagre, não para suprir suas necessidades básicas, mas para satisfazer as predileções do seu paladar. Isso é uma provocação a Deus, e o pecado deles se manifesta nessa desconsideração pela ação passada de Deus.

d. É revelada na grande punição que eles merecem A hediondez da tentação a Deus é mostrada no modo como Deus trata aqueles que o tentam. No texto do Salmo 78.18-20, depois de falar da provocação da tentação, o verso 21 diz que Deus “ficou indignado; acendeu-se fogo contra Jacó e também se levantou o seu furor contra Israel”. Deus não deixa impunes os homens que o provocam. Quando os homens no deserto tentaram a Deus cerca de dez vezes, não obedecendo à sua voz, a sentença divina veio sobre eles da seguinte forma: “nenhum deles verá a terra que com juramento prometi a seus pais, sim, nenhum daqueles que me desprezaram, a verá” (Nm 14.23).

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Quando, no começo da Igreja cristã, Ananias e Safira “tentaram o Espírito Santo” (At 5.9), é dito que Deus puniu com a morte não só marido, mas também a esposa. Paulo adverte aos crentes de Corinto quanto a por o Senhor à prova, a fim de que os castigos de Deus não venham sobre o povo. Eis suas palavras: “Não ponhamos o Senhor à prova, como alguns deles já fizeram, e pereceram pelas mordeduras das serpentes” (1Co 10.9). Paulo acrescenta que esses castigos servem como exemplos para aqueles que vivem “nos fins dos séculos” (v. 12), que é o tempo em que vivemos. Tenhamos cuidado para não poder Deus à prova, provocando-o ou desafiando-o. Esse pecado certamente será punido de alguma forma, ainda que não seja da mesma maneira que ele fez no deserto.

E. LIÇÕES DA SEGUNDA TENTAÇÃO 1. SATANÁS NUNCA DESISTE NA PRIMEIRA TENTAÇÃO Quando Jesus Cristo venceu a primeira tentação, logo a seguir Satanás voltou à carga. Essa maneira de Satanás trabalhar com Jesus é a mesma que ele aplica às nossas vidas. Ele só fugirá de nós quando persistentemente o vencermos. Satanás como aquele pernilongo que volta a zunir sobre a nossa orelha mesmo quando da primeira vez o espantamos. Ele é insistente nos seus propósitos de nos demover do caminho santo. Quando ele não tem sucesso na primeira vez, ele tenta a segunda. Foi exatamente isso o que ele fez no caso de Jó. Lembre-se de que, quando Jó não blasfemou, ele tentou uma segunda vez, e a terceira vez. Ele não dá sossego ao cristão até que ele percebe a sua firmeza inabalável. A Escritura nos diz que o diabo “é como leão que ruge procurando quem possa tragar” (1Pe 5.8), e, para isso, ele faz várias investidas, e nessa sua insistência ele tem conseguido derrubar vários irmãos na fé espalhados pelo mundo. Somos atacados por Satanás durante a vida inteira. Quando ele desiste numa área após várias tentativas, ele ataca outra área de nossa vida. A nossa luta é uma luta que dura a vida inteira, e não teremos vitória plena sobre ele até que Deus nos tire dessa presente existência. Essa primeira lição é para que você esteja atento: se você venceu na primeira vez, espere que outras investidas certamente virão. Satanás não se dá por vencido na primeira vez.

2. DEUS PODE ENTREGAR VOCÊ, A QUEM ELE AMA, PARA QUE SATANÁS TENHA ALGUM PODER SOBRE SUA VIDA Deus entregou algumas pessoas a Satanás para que, por um determinado tempo e em algum grau, ele tivesse poder sobre as vidas delas. Deus fez assim com o

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seu servo Jó, quando o entregou nas mãos de Satanás para que este exercesse sobre aquele, em certa medida, o seu poder. Sob a autorização divina, Satanás afligiu Jó com a perda de sua família, com as úlceras (cf. Sl 41.8) e com outras dores mais. Satanás, por vezes, é o instrumento de Deus para testar a nossa vida. O fato de Deus nos amar não nos isenta da dura experiência da provação. Na sua administração, Deus tem caminhos que nos parecem estranhos: ele usa o nosso maior inimigo para nos provar e nos tentar. Por razões que nos são desconhecidas, Deus autoriza o trabalho de Satanás para nos importunar e nos entrega a ele. Veja um exemplo típico disso: “Disse o Senhor a Satanás: Eis que ele está em teu poder; mas poupalhe a vida. Então saiu Satanás da presença do Senhor, e feriu a Jó de tumores malignos, desde a planta dos pés até ao alto da cabeça” (Jó 2.6, 7).

Jesus Cristo foi entregue por Deus para ser tentado por Satanás. Você e eu somos expostos à tentação, e, às vezes, somos entregues para que Satanás e seus anjos tenham algum poder sobre a nossa vida ou sobre as nossas posses (cf. Sl 78.49), sendo que a extensão desse poder é rigorosamente delimitada por Deus. Portanto, quando afligido por Deus pela instrumentalidade do maligno, tenha os seguintes comportamentos: a) Fique humildemente paciente diante do sofrimento, esperando o tempo da libertação que Deus vai trazer. Se ele dá a ferida, só ele vai curar. Espere pacientemente pelo tempo de Deus. b) Conforte-se no fato de Deus estar sobre Satanás. Este está sob Aquele. Maior é o que está dentro de você do que aquele que azucrina você. Ele não pode ir além do que está rigorosamente delimitado por Deus (cf. Jó 2.6). c) Não se exaspere a fim de que Satanás não tire vantagem da sua aflição. Não caia no precipício da tentação do maligno: não faça a vontade dele, não blasfeme, não murmure contra Deus. Assim como Deus dá poderes a Satanás sobre você, ele também concede graça a você a fim de que você se mantenha firme nas suas bondosas mãos. Satanás quer tirar proveito da aflição para fazer você pecar contra Deus, porque a provação é um teste, mas Deus não permite que a tentação (ou a provação) seja além das suas forças. Juntamente com ela, ele provê livramento (1Co 10.13).

3. LEMBRE-SE DE QUE QUANDO SATANÁS SUGERE A SUA EXALTAÇÃO ELE CERTAMENTE ESTÁ PENSANDO NA SUA HUMILHAÇÃO Freqüentemente Satanás surge com uma idéia de nos colocar numa posição exaltada. Ele quis fazer assim com Jesus Cristo quando o levou para o pináculo do

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templo e sugeriu quie ele saltasse dali para ser apreciado pelos homens, pelo fato dele ser amparado pelos anjos. Na verdade, Satanás não queria elevar Jesus a uma posição de honra, mas queria que ele fosse humilhado na obediência à vontade maligna. Assim como Satanás caiu do céu (Lc 10.18), ele quis que Jesus Cristo também fosse lançado para baixo, isto é, para uma condição de desonra, ainda que ele tenha prometido honra e exaltação. Cuidado, ele pode fazer o mesmo com você, quando uma vida de privilégios e honras lhe é oferecida. É curioso que a metodologia divina é exatamente oposta à metodologia satânica. Quando Deus quer exaltar alguém, ele primeiramente o humilha (ele fez assim com seu Filho, Jesus Cristo). Olhe a máxima divina: “Quem a si mesmo se exaltar será humilhado; e quem a si mesmo se humilhar será exaltado” (Mt 22.12) ou “humilhai-vos na presença do Senhor, e ele vos exaltará” (Tg 4.10). De modo exatamente oposto age Satanás: quando ele quer humilhar uma pessoa, ele primeiramente a exalta. Nesse ponto, aplica-se o texto do Salmo 49.20 – “O homem, revestido de honrarias, mas sem entendimento, é antes como os animais, que perecem.”. Satanás o coloca nas nuvens e depois o joga para baixo. Ele fez isso com os nossos primeiros pais. Ele insinuou que eles seriam considerados como Deus se comessem da árvore. Eles aceitaram a insinuação e foram jogados na humilhação da separação de Deus. Tenha cuidado quando honrarias lhe são prometidas. Pode ser armação de Satanás para derrubar você, humilhando-o profundamente. Ele não tem caráter e pode fazer isso de modo muito claro e descarado. Certamente, ele não vai pedir desculpas a você quando você estiver na humilhação. Esteja atento para os laços que o passarinheiro lhe arma.

4. A TENTAÇÃO NEM SEMPRE VEM COM A MESMA ROUPAGEM Satanás possui uma capacidade enorme de variar as tentações. Ele não usa o mesmo anzol nem a mesma isca para pescar as pessoas. Ele adapta sempre as suas armadilhas ao tipo de pessoas que ele está tentando pegar. Satanás age como um hábil passarinheiro. Ele adapta um tipo diferente de armadilha para cada animal que ele quer caçar. Ele é extremamente criativo nessa tarefa. Lembre-se de que, mesmo com Jesus Cristo, ele armou arapucas de modos diferentes. Ele não bateu na mesma tecla. Ele usou motivações diferentes e necessidades diferentes. Com você, ele continua criativo no estabelecimento das armadilhas. Ele sempre vai aparecer com roupagens diferentes. Via de regra, ele vai atacá-lo nas partes mais vulneráveis. Daí a armação de arapucas diferentes, dependendo dos seus interesses no momento. Esteja atento com ele. Não espere que ele venha sempre com a mesma roupa-

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gem. Ele certamente vai alterar o modo de abordar você para seduzi-lo e enganálo. Não duvide disso.

5. A CITAÇÃO DAS ESCRITURAS NEM SEMPRE TORNA VERDADEIRO O DISCURSO DE UMA PESSOA Todos os hereges da história da Igreja, via de regra, citaram as Escrituras para firmarem uma doutrina. Satanás, que está por detrás das doutrinas dos hereges, não é diferente. A fim de enganar as pessoas, ele começa citando Deus. Uma das coisas que ele comumente sugere na mente das pessoas é aquele velho ditado: “Toda religião que fala de Deus é boa”. Isso não é verdade. Ele vai atacar você usando uma verdade de Deus, mas de um modo impróprio, fora de contexto e com intenções indevidas. Portanto, o simples fato de alguém citar ou mencionar a Escritura não torna verdadeiro o seu discurso. Verifique se a citação está dentro do contexto; verifique se não há intenção maligna em quem cita as Escrituras para você; verifique se a aplicação do texto não é injusta. Certamente, a intenção de Satanás é perverter o significado da Escritura, desonrar a Palavra de Deus e desonrar você. Quando consegue desonrar você, certamente Deus é zombado entre os homens por sua causa. Portanto, cuide de entender corretamente as Escrituras para que, quando elas forem citadas, você saiba detectar as más intenções de quem as cita.

6. DEUS NÃO SOMENTE LIMITA OS PODERES DO MALIGNO NA TENTAÇÃO, MAS ESTABELECE ANJOS PARA O NOSSO SOCORRO Não tenha medo de ser tomado plenamente pelo maligno. Deus tem um controle total sobre as ações dele. Aquele que pertence a Deus deve ter essa idéia muito clara em sua mente. Ao mesmo tempo em que os anjos maus podem ser instrumentos de Deus para cumprir os seus propósitos em nossa vida, lembremo-nos de que os santos anjos também são ministros de Deus “enviados para serviço a favor dos que hão de herdar a salvação” (Hb 1.14). A função deles é socorrer-nos em nossas aflições e serão usados certamente para a nossa proteção. Os anjos estão a serviço de Deus e para o nosso benefício. Isso deve nos consolar imensamente. A Escritura diz que “o anjo do Senhor se acampa ao redor daqueles que O temem e os livra” (Sl 34.7). Eles agem sobre nós, cumprindo desígnios divinos de preservação da nossa vida (Sl 103.21). Os cristãos possuem anjos que os assistem e estes estão constantemente perante a face de Deus (Mt 18.10). Satanás conhecia essa função dos anjos, e, por isso, citou o texto de Salmo 91.11, 12, embora o tenha feito com más intenções e indevidamente. Satanás conhece a função angelical, pois ele é um dos anjos (embora caído). Ele sabe que os anjos são “espíritos ministradores” que Deus proporcionou para o nosso bem.

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Deus envia os seus anjos por causa do seu amor por nós. Enquanto os anjos malignos são usados para a provação de nossa fé, os anjos santos são enviados diretamente por Deus para preservar-nos em nossa integridade a fim de que Satanás não ultrapasse aos seus limites. Portanto, no meio das provações, lembre-se de que a ação de Satanás é controlada pelos decretos divinos, e lembre-se também de que Deus estabeleceu outros anjos para ministrarem em seu favor.

TERCEIRA TENTAÇÃO: A DA RIQUEZA E DA GLÓRIA Análise de Texto Mateus 4.8-11 – “Levou-o ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles, e lhe disse: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares. Então Jesus lhe ordenou: Retira-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto. Com isto o deixou o diabo, e eis que vieram anjos, e o serviam.”

A. O LUGAR DA TENTAÇÃO “Levou-o ainda o diabo a um monte muito alto.”

Novamente o lugar da tentação é alterado. Agora é um lugar muito alto. O pináculo do templo de Jerusalém não era alto o suficientemente para dali se ver muita coisa, pois Jerusalém é cercada de montanhas (Sl 125.1, 2) que impediriam qualquer visão mais alongada. Esse “monte muito alto” certamente era um lugar de onde se podia ver um horizonte bem distante. Há algumas montanhas altas em Israel, mas o texto não menciona qual delas. O fato é que, dali, do alto da montanha, muitas coisas podiam ser vistas como ilustrativas da grandeza e da glória dos reinos do mundo.

B. O APELO DA TENTAÇÃO “mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles.”

O diabo fez com Jesus Cristo aquilo que Deus havia feito com Moisés, antes dele morrer, a fim de que ele visse toda a terra que o Senhor daria a Israel, como havia prometido aos pais (Dt 34.1-4). Até nesse procedimento Satanás tenta se apossar da idéia de que ele é Deus, imitando o que Deus havia feito com Moisés, como se ele fosse o rei deste mundo. A visão que se tem de uma montanha muito alta é estonteante, pois ela nos delineia a grandeza e a glória das coisas que Deus fez. Dali Cristo viu os vales,

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montanhas, palácios, cidades e outras coisas que a vista pode limitadamente alcançar. Satanás sabia do impacto dessa visão sobre os homens. Ele tentou causar o mesmo impacto em Jesus, o Mediador homem. Deve ficar óbvio, desse verso, que o que Cristo viu do alto da montanha é uma amostra das glórias da criação. Não existe possibilidade alguma de se ver, mesmo do Everest, o ponto mais alto da terra, um horizonte que ultrapasse mais do que algumas centenas de quilômetros. Portanto, esse verso deve ser entendido como ilustrativo e representativo das glórias dos reinos que o mundo de Deus oferece. Satanás sempre nos eleva às posições mais altas e nos oferece coisas desse tipo, com as quais muitos dos filhos dos homens se encantam.

C. A JACTÂNCIA DA TENTAÇÃO “e lhe disse: Tudo isto te darei.”

Quando Satanás disse: “tudo isto te darei”, ele estava se colocando na posição de Deus, como se os reinos deste mundo pertencessem a ele. Na verdade, os reinos deste mundo pertencem a Deus e são dados a Cristo Jesus, quando ele assume a realeza. A Escritura diz que “o reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Ap 12.15; cf. Sl 2.8). É verdade que Deus deu a Satanás alguma autoridade sobre os homens que estão sob a ira divina e que existe um império de trevas sob os quais os homens estão presos (Cl 1.13), ainda que esse domínio sobre os homens seja limitado e absolutamente controlado. Todavia, não é verdade que Deus tenha dado a Satanás o domínio do mundo físico com todas as suas belezas e esplendores. “Ao Senhor pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam” (Sl 24.1). Ao Filho Deus concedeu “todo poder no céu e na terra” (Mt 28.18), não ao diabo. Essa tentação feita por Satanás aponta para a jactância de um reino que não lhe pertence. Na narrativa de Lucas há ainda mais um detalhe importante: “Dar-te-ei toda esta autoridade e a glória destes reinos, porque ela me foi entregue, e a dou a quem eu quiser” (Lc 4.6). Essa é uma mentira de Satanás. Nunca os reinos deste mundo foram dados a ele. Isso pode ser chamado de apropriação indébita. Esse é o reino de usurpação de Satanás. Ele se apropria indevidamente do que é de Deus para os seus propósitos sujos de levar Jesus a desejar o que já lhe pertence. Ele tentou enganar Jesus Cristo com o seu reino de usurpação. Foi a jactância de Satanás que o levou a fazer essa proposta tão indecente.

D. A SUTILEZA DA TENTAÇÃO Observe que Satanás mostrou a Cristo somente as glórias dos reinos deste mundo, as belezas da criação, as construções, as cidades, mas não mostrou os

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fardos, os labores, as preocupações, os perigos, as violências, as traições, os pecados dos homens em geral, suas invejas e porfias, coisas que evidenciam que este mundo ainda está sob os efeitos da queda, e sob a maldição divina. Satanás apontou as belezas e os esplendores deste mundo para impactar Cristo e levá-lo a desejar (o que já lhe pertencia por direito de divindade) o que ele não precisava desejar. Quando as pessoas nos querem vender alguma coisa, elas sempre mostram o lado melhor dela. Elas escondem os defeitos potenciais e as coisas desagradáveis que o objeto já oferece. Essa terceira tentação é sutil e habilidosa porque ela leva alguém a querer o que é belo, a despeito dos defeitos e males que não são mostrados. Quando o inimigo lhe oferecer coisas que agradam aos olhos e satisfazem ao coração, peça a Deus o que o Salmista pediu: “Desvia os meus olhos para que eu não veja a vaidade, e vivifica-me no teu caminho” (Sl 119.37). Se os nossos sentidos ficarem sem proteção, certamente eles serão a porta aberta para que a tentação penetre em nosso interior e seremos vencidos por ela. Lembre-se de que Eva foi atacada pelos sentidos da visão, pois o texto diz: “Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento...” (Gn 3.6). Mais do que todas as coisas, somos primeiramente atraídos pelos olhos, e, então, os outros sentidos começam a se por a caminho. Perceba que os sentidos são o caminho para a internalização da tentação. Cuide-se para não se deixar levar pelas sensações. Peça a Deus graça para não olhar para a vaidade.

E. O PROPÓSITO E A AMBIÇÃO DA TENTAÇÃO “Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares.”

Satanás mostrou a isca para depois fazer a oferta. Ele mostrou a glória antes de oferecer a Cristo a cousa desejável. Satanás apelou para os sentidos de Jesus a fim de que os sentidos o movessem ao desejo das coisas oferecidas. Então, o diabo mostrou as suas reais intenções: ele queria para si aquilo que era próprio e exclusivo de Deus. Ele queria que Jesus Cristo o adorasse. Ele quis que Cristo fizesse com ele o que ele e todas as outras criaturas do mundo, no céu, na terra e debaixo da terra, vão fazer: dobrar os seus joelhos diante de Jesus Cristo e reconhecê-lo como Rei e Senhor para a glória de Deus Pai (Fp 2.11). Satanás ofereceu grandes coisas a Cristo (“todos os reinos deste mundo”) em troca de uma coisa ainda maior: ser adorado por Jesus. Essa seria a maior glória que Satanás poderia receber. Acontece que essa glória Deus não reparte com ninguém. Ser adorado prerrogativa exclusiva dele. Esse propósito sujo é o último e o mais vil. Nas duas primeiras tentações, o diabo sugeriu a obediência de Jesus às suas insinuações. Ele queria primeiro um

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Cristo obediente, para depois mostrar as suas reais intenções, que era a de ser não somente obedecido, mas reverenciado por Jesus de joelho em terra. Em última instância, ele queria ser Deus. A sugestão de ser Deus começou lá no Éden. Ele sugeriu que os nossos primeiros pais pudessem fazer competição com Deus; ele colocará na mente do homem da iniqüidade o ímpeto de se colocar no santuário de Deus para se posicionar no lugar de Deus (2Ts 2.4). Sempre foi intenção de Satanás que Deus perdesse o seu trono e que outro tomasse o seu lugar, especialmente o próprio Satanás, pois o seu pecado é o da soberba (1Tm 3.6).

F. A RESPOSTA DE JESUS A SATANÁS Análise de Texto “Então Jesus lhe ordenou: Retira-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto” (Mt 4.10).

1. A ORDEM DE JESUS A SATANÁS “Então Jesus lhe ordenou: Retira-te, Satanás.”

Jesus nunca teve dificuldade de repreender os homens ou Satanás em suas ousadas assertivas. Ordem similar Jesus Cristo deu a Pedro, quando este o tentava dissuadi-lo de ir para a cruz: “Arreda, Satanás! tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das cousas de Deus, e, sim, das dos homens” (Mt 16.23). Esse tipo de repreensão mostra o desprezo que Jesus Cristo tem sobre homens e anjos que agem de modo indevido. Jesus percebeu as intenções malignas claras de Satanás e o expulsou da sua presença. Isso mostra também a autoridade que Jesus tem sobre homens e anjos. Todo comportamento blasfemo deve ser reprovado de modo enérgico. Era petulância demais Satanás sugerir que Jesus se prostrasse diante dele e o adorasse. Jesus esperou a hora própria para agir com energia, a hora em que Satanás mostrou a sua intenção indecente. Quando a hora chegou, ele não titubeou. Nessa hora não havia como ser delicado e manso. Jesus mostrou firmeza e o expulsou da sua presença.

2. O ARGUMENTO DA ESCRITURA USADO POR JESUS “Retira-te, Satanás, porque está escrito.”

O fundamento para o qual Jesus apela novamente é a Escritura Sagrada. A Palavra de Deus, para Jesus, Cristo é intocável. Ela é o fórum final de decisão. Afinal de contas, o próprio Deus Filho tem participação nessa Palavra inspirada, pois, referindo-se aos profetas do Antigo Testamento, Pedro diz que “o Espírito de

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Cristo neles estava” (1Pe 1.10, 11), e por isso eles produziram os seus escritos. Portanto, ele conhecia a força e a autoridade dessa Escritura. Espanta-me que vezes muitos pregadores, hoje, não usem a Escritura como a sua autoridade final. Jesus Cristo nunca hesitou em citar a Escritura como sua norma de vida e comportamento. Além disso, a Escritura é a corte final de apelo. Ela é a verdade última e definitiva na qual devemos nos fundamentar. Jesus sempre apelou para a verdade absoluta e inquestionável. Ao dizer “está escrito”, ele (ou qualquer outra pessoa) apela para uma autoridade indiscutível. A Palavra de Deus é a palavra final. Além disso, a citação que Jesus Cristo faz das Escrituras mostra que ele tinha a Palavra de Deus guardada no seu coração. A Palavra de Deus habitava ricamente em seu coração. Dele poderia ser dito o que está escrito nos Salmos: “Dentro em meu coração está a tua lei”. Literalmente, ele pode dizer mais do que nenhum outro as seguintes palavras: “Guardo no coração as tuas palavras para não pecar contra ti” (Sl 119.11). A Palavra de Deus estava entremeada no coração de Jesus Cristo de forma que ela brotava naturalmente em qualquer situação em que ele fosse colocado e que exigia uma resposta.

3. O CONTEÚDO DO ARGUMENTO USADO POR JESUS “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto.”

O argumento citado por Jesus se localiza em Deuteronômio 6.13. Várias das afirmações que Jesus fez do Antigo Testamento estão firmadas nesse livro da Lei. Jesus arrancou das profundezas desse livro a resposta certa para a investida descarada de Satanás.

a. O argumento de Jesus indica que não há outro Deus A palavra grega traduzida como “só a ele” é mon%= (mono), que indica a idéia exclusiva de unicidade. O mandamento de Deuteronômio é: “O Senhor teu Deus temerás, a ele servirás, e pelo seu nome jurarás. Não seguirás outros deuses, nenhum dos deuses dos povos que houver à roda de ti” (Dt 6.13, 14). No entanto, Jesus acrescenta e enfatiza a idéia de “só a ele”, ao invés de dizer como Moisés disse. Ele deixou bem claro que não existe outro Deus a quem os homens devem adorar.

b. O argumento de Jesus indica que não há outro para se adorar Desde os primórdios, o mandamento do Senhor aponta para uma adoração do único Deus. Nenhum outro deus deveria ser adorado pelo povo de Deus. Isso foi dito diversas vezes na Escritura. Samuel disse ao povo: “tirai dentre vós os deuses estranhos e os Astarotes e preparai o vosso coração ao Senhor, e servi [adorai] a ele só, e ele vos livrará da mão dos filisteus” (1Sm 7.3).

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Quando você observar no texto da Escritura a palavra “servi ao Senhor com alegria” ou “serviram ao Senhor”, lembre-se de que essa palavra está vinculada à idéia de adoração, e não à de prestação de algum tipo de serviço ou ajuda. No Novo Testamento várias vezes vemos a tradução do verbo grego latre/uw, que deve ser traduzido como cultuar [ou adorar] e não como prestar serviço, como comumente acontece em nossas traduções.464 Jesus usa duas palavras que estão intimamente relacionadas: proskinh/seij (“adorarás”) e latreu/seij (“prestarás culto”). Na verdade Jesus está respondendo à solicitação de Satanás de “prostrar-se e adorar”, do verso anterior. Portanto, o verbo proskine/w aqui será melhor traduzido como “prostrar-se, fazer reverência” (o que pode apontar para a adoração) e o outro verbo, latre/uw, como adoração propriamente dita. Por outro lado, podemos também entender que os dois verbos podem ser uma maneira costumeira de o judeu enfatizar um ensino por meio de repetição de uma mesma idéia usando duas palavras diferentes, que se chama paralelismo hebraico, já que Jesus tinha mente de um hebreu.

c. O argumento de Jesus indica que só Jeová é Deus No grego e no português, a ênfase de Jesus não aparece tanto como no hebraico. No texto hebraico, a ênfase é no nome de Deus, que é Jeová. A idéia do texto é que somente Jeová é Deus, e, portanto, ele é o único merecedor de adoração. Quaisquer gestos de reverência ou de adoração a outros seres são proibidos na Escritura, porque não há nenhum outro Deus, e Deus é somente Jeová. Quando confrontados com essa verdade no Antigo Testamento, Josué e sua família disseram: “Eu eu minha casa serviremos ao Senhor [Jeová]”. Um caso ainda mais claro aconteceu no tempo de Elias quando diante da adoração do verdadeiro Deus e de Baal, os homens responderam: “Só o Senhor [Jeová] é Deus!”.Foi exatamente isso o que Jesus quis dizer a Satanás. Ninguém é Deus, exceto Jeová. Só a ele “adorarás e prestarás culto”.

G. A VITÓRIA DE JESUS SOBRE SATANÁS Mateus 4.11 – “Com isto o deixou o diabo, e eis que vieram anjos, e o serviam.”

1. UMA VITÓRIA PARCIAL Quando falo de vitória parcial, estou me referindo ao fato de que esta não foi a última tentativa de Satanás. Jesus ainda teve de lutar contra as suas investidas 464. Confira textos no grego onde o verbo latre/uw e seus derivados aparecem traduzidos como servir e derivados, ao invés de serem traduzidos como adorar ou cultuar, que é o sentido mais correto (cf. At 7.7; 24.14; 26.7; 2Tm 1.3; Hb 12.28, etc.).

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diretas ou indiretas posteriormente. Quem nos dá essa informação é Lucas: “Passadas que foram as tentações de toda sorte, apartou-se dele o diabo, até momento oportuno” (Lc 4.13). A luta não tinha terminado ali, faltavam ainda vários rounds, mas parcialmente o inimigo fora vencido. Por parcial quero dizer que o inimigo ainda não tinha sido derrotado de um modo cabal. Foram apenas vitória contra as investidas dele, não uma vitória que desse um golpe final em sua cabeça. Não foi um ataque de Jesus a Satanás, mas uma defesa extraordinária onde o Redentor tornou sem efeito a investida dele.

2. MAS UMA VITÓRIA REAL Por uma vitória real eu quero dizer que Jesus Cristo afastou o inimigo, pelo menos temporariamente. Por algum tempo ele não mais o importunou. O inimigo ficou desarmado, porque as armas que ele possuía foram mostradas como sendo ineficientes contra o poderio de defesa de nosso Redentor. Ele não apenas estava bem escudado Palavra de seu Pai, mas a sua santidade o impedia de ser um perdedor. Jamais poderia o inimigo vencê-lo. Ninguém tem poder para vencer Jesus Cristo em qualquer batalha moral. Satanás, o maior de todos os adversários, o leão que ruge, foi desbaratado em sua tentativa de vencê-lo. Satanás fugiu de Jesus Cristo porque não teve poder sobre ele, e o deixou como que dizendo: “Não tem jeito. Esse não dá para vencer. Ele é forte demais. Eu tentei tudo. Gastei toda a minha munição momentânea e não acertei um tiro sequer. Mas isto não significa que não vou importuná-lo novamente. Mais tarde volto a atacá-lo”. A vitória de Jesus foi muito real porque ele não perdeu um só round. Ele venceu na defensiva, apenas desviando-se dos golpes inflamados do maligno. O ataque real de Jesus a Satanás haveria de ser dado um pouco mais tarde, quando Ele haveria de expor à vergonha e ignomínia o diabo, e vencê-lo na cruz.

3. UMA VITÓRIA QUE TAMBÉM PODE SER NOSSA Embora sejamos diferentes de Jesus porque não temos a impecabilidade, pela graça de Deus, podemos também ser vencedores. Quando resistimos às tentações do Maligno firmados na palavra de Deus, então Satanás se afasta de nós. A Escritura nos ordena o seguinte:

a. O primeiro passo é a sobriedade e a vigilância 1 Pedro 5.8, 9 – “Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão que ruge procurando alguém para devorar...”

Várias vezes Jesus Cristo nos disse para vigiar. Quando estava para ir á cruz

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Jesus foi orar com seus discípulos no jardim do Getsêmani. Lá chegando, também exortou aos discípulos: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação”. Ser sóbrio é estar com todas as faculdades alertas. É o contrário de estar bêbado, quando se perde todo o senso do que está ocorrendo ao redor. Ser sóbrio é estar atento para todos os movimentos do inimigo. Ele é um adversário astuto, e os seus ataques são sutis e enganosos. A sua estratégia é de guerrilha, por nem sempre sabemos onde está o inimigo e nem com que aparência ele vem. O exército inimigo não vem fardado, não é um inimigo sempre declarado que está à nossa frente de maneira inconfundível. Às vezes ele se confunde com os nossos queridos, com os que convivem conosco, e nos arma ciladas. Daí a necessidade de “estar sóbrio e ser vigilante”.

b. O segundo passo é a resistência a Satanás Tiago 4.7 – “Resisti ao diabo, e ele fugirá de vós.”

Esta é a primeira verdade que nos ensina sobre a possibilidade de termos vitória sobre o nosso adversário. Ele não é invencível, onipotente. Além disso, temos de contar com a graça divina para sermos vitoriosos sobre ele, porque Deus não permite que sejamos tentados além das nossas forças (1Co 10.13). Por isso, é possível ter vitória sobre as tentações dele, porque juntamente com as tentações, “Deus nos provê livramento, de sorte que a possamos suportar”. Aqui está a sua graça sobre nós.

c. O terceiro passo é a resistência firmado na fé “... resisti-lhe firmes na fé...” (1Pe 5.8, 9).

A mera resistência não é suficiente. Se fizermos resistência sem termos em que nos firmar, logo um rombo será feito em nossa resistência e toda a nossa fortaleza vem abaixo. A única maneira de ficarmos firmes em nossas trincheiras é ter a verdade de Deus como escudo. O escudo da fé de que Paulo fala em Efésios 4 nada mais é do que o escudo da Palavra de Deus. O termo “fé” em muitos lugares, inclusivo em 1Pedro 5.9 tem o sentido de “conjunto de verdades reveladas”, o “conjunto das coisas em que cremos”. Portanto, quando a nossa resistência estiver firmada na Palavra, os dardos do maligno não poderão nos atingir. O escudo da fé (que é a Palavra de Deus) é que nos protege das investidas de Satanás. Jesus fez assim, e, nesse sentido, também podemos ser imitadores dele. Quando resistimos ao diabo, certamente ele fugirá de nós, porque ele não tem poder para vencer a resistência oferecida pela Palavra de Deus. O poder não está em nós, mas no escudo que nos protege dos dardos inflamados que ele joga contra nós.

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H. LIÇÕES DA TERCEIRA TENTAÇÃO 1. A DURAÇÃO DA TENTAÇÃO DO POVO DE DEUS NÃO SERÁ PARA SEMPRE O cristão sempre passará por provações e por tentações, mas isso não significa que essas coisas nunca terão fim. A Escritura diz que “muitas são as aflições do justo, mas o Senhor de todas o livra” (Sl 34.19). Deus nos dá algumas folgas depois de grandes lutas, mas não podemos nos esquecer de que essas folgas da aflição são temporárias. Ele nos livra de cada uma das tentações e provações que vem sobre nós, mas não assegura que não mais as teremos neste presente tempo. Isso não deve fazer-nos desesperar. Há um escape para o problema das tentações. O escape primeiro acontece na nossa morte. Quando morrermos, não mais seremos expostos à tentação. Até nesse sentido a morte “é o descanso das fadigas desta vida”, por isso seremos chamados de “bem-aventurados” (Ap 14.13), pois não mais seremos atribulados pelo tentador nem por nossa natureza pecaminosa. O escape definitivo acontece quando a redenção for completada, haveremos de ser livres para sempre de todo tipo de provação e de tentação, porque àquela altura teremos sido aperfeiçoados (porque este é o objetivo das provações) e santificados. Deus nos livrará eternamente da tentação. Nunca mais haveremos de ter tentações externas ou internas. Àquela altura o diabo e seus anjos já terão sido lançados no lago de fogo, e a nossa natureza pecaminosa já terá sido erradicada. Somente a partir daí viveremos para sempre livres de tudo isso que hoje ainda nos tortura e entristece.

2. A VITÓRIA SOBRE A TENTAÇÃO VIRÁ CERTAMENTE PARA O POVO DE DEUS “Por que Deus é misericordioso.”

Deus dará um final feliz a esta experiência terrível da constante tentação. A compaixão divina se acende sobre nós e a vitória sobre o inimigo acontece. Tiago escreve: “Irmãos, tomai por modelo no sofrimento e na paciência os profetas, os quais falaram em nome do Senhor. Eis que temos por felizes aos que perseveraram firmes. Tendes ouvido da paciência de Jó, e vistes que fim o Senhor lhe deu; porque o Senhor é cheio de terna misericórdia, e compassivo” (Tg 5.10, 11).

Os profetas e Jó venceram em virtude da manifestação divina que colocou o coração na miséria deles por causa das aflições que experimentaram. Deus se compadeceu deles e os tornou vitoriosos.

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Deus também vai dar um final feliz a essas batalhas espirituais e aflições. Quando ainda estivermos sob as aflições não devemos medi-las pelas dores que elas nos trazem, mas pelo final delas. Deus sempre vem ao nosso socorro por causa das suas ternas misericórdias que nos são renovadas cada manhã. “Porque Deus é fiel.”

A fidelidade de Deus é a outra razão pela qual ele nos dá a vitória. Não estamos nas mãos do diabo, mas nas mãos de Deus. Somos tentados somente à medida que ele permite, e a Escritura diz que Deus é fiel e não nos permite que sejamos tentados além de nossas forças, mas que juntamente com as tentações, Ele provê livramento, de sorte que a possamos suportar (1Co 10.13).

3. A VITÓRIA VEM DO SENHOR PORQUE ELE OLHA PARA A NOSSA FRAGILIDADE O Senhor se compadece de nós em sua fidelidade porque ele nos vê em nossa fragilidade. Isso é tudo o que somos. Não há força alguma em nós mesmos. “Em vê a nossa fragilidade natural.”

O Senhor não nos deixa para sempre debaixo da sua ira “pois ele conhece a nossa estrutura e sabe que somos pó” (Sl 103.14). Essa é uma linguagem poética para falar de nossa fragilidade natural. Por fragilidade natural eu quero dizer a fragilidade de nossa constituição. Essa não é necessariamente uma questão de pecado, mas de constituição. Deus nos fez frágeis e sujeitos a intempéries da natureza e impotentes contra muitas coisas neste mundo, inclusive impotentes contra as tentações, quando não contamos com a ajuda do Senhor. Por causa de nossa fragilidade natural, da finitude da nossa constituição, não podemos ficar muito tempo sob pressão e tensão. A nossa estrutura é muitíssimo débil, e por isso precisamos das misericórdias do fiel Senhor. “Em vê a nossa fragilidade espiritual.”

Mesmo os cristãos mais fortes estão sujeitos às maiores enfermidades. Eles não estão imunes à tentação, nem à queda. No assunto da tentação, o fato de sermos ainda pecadores torna o problema da nossa finitude muito maior. A nossa pecaminosidade torna-nos ainda mais sujeitos à queda. A enfermidade de nossa carne nos torna ainda mais vulneráveis aos ataques do maligno. A nossa natureza pecaminosa mina as nossas forças porque existe uma luta dentro de nós, do espírito contra a carne, e assim dificulta em nós o fazer o que devemos (Gl 5.17). Essa luta nos desgasta e nos fragiliza. Por isso precisamos constantemente que Deus nos olhe com misericórdia e compaixão. Só então podemos ter vitória sobre a tentação.

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4. DEUS NOS DÁ A VITÓRIA PORQUE ELE LIMITA A AÇÃO DE SATANÁS SOBRE NÓS O livro de Apocalipse foi escrito para trazer conforto a uma Igreja perseguida pelos inimigos da fé, instigados por Satanás, que “opera nos filhos da desobediência” (Ef 2.2). Por isso, Jesus diz à igreja de Esmirna: “Não temas as coisas que tens de sofrer. Eis que o diabo está para lançar em prisão alguns dentre vós, para serdes postos à prova, e tereis tribulações de dez dias. Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida” (Ap 2.10). O texto também indica que essa perseguição à igreja de Esmirna não atingiria a todos necessariamente, porque diz que “alguns dentre vós”, não “todos”, seriam aprisionados, a fim de serem provados. Isso mostra que Deus tem controle sobre as ações do diabo porque ele é o instrumento de Deus para “provar” os seus filhos. Deus não somente limita o tempo da provação, mas também a sua intensidade. O diabo não pode nos provar interminavelmente, nem nos matar (a menos que ele receba autorização para isso – veja o caso dos filhos de Jó, em que foi permitida sua a morte,e o caso do próprio Jó, em que a morte não foi permitida). As mais terríveis aflições que possam vir sobre nós, sejam elas para a simples provação ou para a tentação em si, não poderão ultrapassar os limites estabelecidos por Deus, porque elas têm fim. Deus modera a esfera de ação de Satanás e sua influência sobre os homens, especialmente sobre os filhos de Deus. Deus está no controle de todas as ações dos seus instrumentos, e Satanás é um deles.

5. A VITÓRIA VEM QUANDO APRENDEMOS A RESISTIR AO MALIGNO QUE FUGIRÁ DE NÓS Dois dos apóstolos nos ensinam uma lição muito clara a respeito de nossa resistência a Satanás, o que nos trará a vitória. Tiago 4.7 – “Sujeitai-vos, portanto, a Deus; mas resisti ao diabo, e ele fugirá de vós.”

Tiago nos ensina que a única maneira de ter vitória é resistir ao diabo. Todavia, a receita para resistir ao diabo não é enfrentá-lo cara a cara, porque ele é mais inteligente e astuto do que nós. Ele é um ser espiritual perigoso e sagaz. Desde o princípio da criação ele vem agindo com astúcia e extrema inteligência. O segredo de nossa resistência a ele está no fato de “nos sujeitarmos a Deus”. Quando estamos sujeitos a Deus, isto é, quando obedecemos aos princípios da Palavra de Deus, nós fazemos resistência ao nosso inimigo, e saímos vitoriosos porque ele nos deixa (ao menos temporariamente, como fez com Jesus Cristo). Se continuarmos seguindo o raciocínio do texto, veremos que a proteção contra as investidas do diabo é viver vida santa (Tg 4.8-11). Contra fatos não há argumentos. Quando Satanás nos vê achegados a Deus, limpos, humilhados perante Deus, ele fuge de nós, porque percebe que estamos protegidos pela graça bondosa de Deus.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR 1 Pedro 5.8, 9 – “Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão que ruge procurando alguém para devorar; resisti-lhe firmes na fé, certos de que sofrimentos iguais aos vossos estão se cumprindo na vossa irmandade espalhada pelo mundo.”

Eu creio que Pedro, aqui, completa o ensino de Tiago a respeito da vitória sobre Satanás. Tiago fala da “sujeição a Deus”. Pedro explica que essa sujeição a Deus está vinculada à Palavra de Deus. Pedro nos ensina o segredo da resistência: “Resisti-lhe firmes na fé”. Isso significa que nós devemos ter firmeza na Palavra de Deus. Isso significa que, se você permanecer no terreno da verdade de Deus, Satanás não tem como vencê-lo. Essa foi a atitude de Jesus Cristo, que resistiu firmemente a Satanás. Dessa forma, nós, cristãos, devemos agir quando Satanás nos aborda. Nesse conflito espiritual, Satanás tem somente armas ofensivas, lançando dardos inflamados, mas não tem uma arma defensiva. Todavia, o crente possui os dois tipos de armas: as defensivas (couraça da justiça, capacete da salvação, sandália da preparação do evangelho da paz, escudo da fé) e as ofensivas (espada do Espírito, que é a Palavra de Deus). Por isso é possível vencer Satanás, resistindo-lhe firme na fé, atacando-o com a Palavra, ocasionando a sua fuga. Jesus usou com maestria a espada do Espírito, que é a arma de ataque, e abriu profundos buracos em Satanás, que não esperava tamanho poder ofensivo de nosso Redentor.

6. PARA NOS DAR A VITÓRIA, DEUS SEMPRE USA OS SEUS ANJOS COMO INSTRUMENTOS Ele usou os anjos para confortar Jesus naquela situação de luta. Após a luta extenuante contra Satanás, o texto diz que “os anjos o serviram” (Lc 4.13). Com respeito a nós, a Escritura diz que “o anjo do Senhor acampa-se ao redor dos que o temem e os livra” (Sl 34.7), porque eles são “espíritos ministradores enviados para serviço, a favor dos que hão de herdar a salvação” (Hb 1.14). Além daquilo que nós devemos fazer, que é “resistir ao diabo firmados na fé” (que é obra nossa), reconhecemos que somente o nosso trabalho precisa da assistência divina através dos anjos. Nessa luta contra o maligno há uma espécie de cooperação entre o que Deus faz e o que fazemos com a ajuda dele. Via de regra, os anjos são os instrumentos divinos para nos ajudar na vitória contra as hostes espirituais do mal. As hostes do mal são numerosas, mas maiores são os exércitos do Senhor (Sl 68.16, 17; cf. Ef 3.10), assim como maior é Aquele que está dentro de nós do que aquele que está fora de nós. A batalha nas regiões celestiais é grande (Ap 12.7), mas os exércitos do Senhor sempre haverão de vencer quando as batalhas forem decisivas. Os anjos do Senhor lutam contra as forças do mal e defendem os justos dos ímpios em seus perigos extremos.

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Essa crença deveria nos trazer extrema consolação. A consciência de que não estamos sós nesta batalha, mas que Deus luta por nós através dos seus ministros, deveria nos trazer grande ânimo para continuarmos fiéis até à morte, quando haveremos de receber a coroa da vida das mãos do Redentor. Pensando nesse constante conforto que recebemos de Deus, o salmista exclama: “Bendito seja o Senhor que, dia a dia, leva o nosso fardo: Deus é a nossa salvação. O nosso Deus é o Deus libertador; com Deus, o Senhor, está o escaparmos da morte!” (Sl 68.19, 20).

LIÇÕES GERAIS SOBRE AS TRÊS TENTAÇÕES A. SATANÁS QUER QUE VOCÊ PRIORIZE OS DESEJOS DA CARNE, AINDA QUE LÍCITOS Na primeira tentação, Satanás atacou Jesus na área em que ele estava vulnerável fisicamente. Essa tentação veio após 40 dias de jejum. Sem dúvida, ele estava tremendamente faminto. Satanás sempre apelou para as áreas onde estamos mais vulneráveis, e ele quer que nós satisfaçamos os nossos desejos na hora de nossa vulnerabilidade. Ao citar como resposta o texto “não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4.4. cf. Dt 8.3), Jesus havia entendido que aquela tentação dizia respeito às prioridades de satisfazer os desejos físicos que Satanás queria que ele tivesse. Não havia nada de errado em Jesus querer comer numa hora como aquela. Todavia, ele entendeu que obedecer a Deus era mais importante que obedecer a Satanás, por isso ele já havia dito que a sua comida e a sua bebida era fazer a vontade daquele que o havia enviado (Jo 4.34). Nada havia de errado em Jesus transformar as pedras em pães. Ele haveria de fazer mais do que isso, mas o erro estaria em fazer essa transformação na hora errada com os motivos errados. Tempo viria em que ele seria alimentado. Os anjos haveriam de servi-lo, isto é, haveriam de alimentá-lo (Mt 4.11). No tempo do deserto, na hora própria, Deus alimentou o povo sobrenaturalmente com Maná. Nos dias de Elias, Deus enviou corvos e anjos para alimentá-lo. Assim, também, os anjos haveriam de alimentar Jesus. Todavia, Jesus entendeu que aquela tentação era uma questão de prioridade. A prioridade de Jesus naquele momento era confiar na provisão divina que viria posteriormente, ao invés de compartilhar das prioridades sugeridas por Satanás, que era a de satisfazer imediatamente a sua fome em virtude da fraqueza física. Numa tentação há sempre uma luta entre as inclinações do seu físico e as da sua natureza interior, ou da sua mente. Esta última sabe o que você precisa fazer, mas aquela o tenta a agira de modo contrário. Um exemplo muito claro disso fica

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evidente quando você está à mesa: você comeu o suficiente para o seu abastecimento, e você sabe que está satisfeito, mas, como a comida é boa, o seu corpo freqüentemente lhe diz: “Coma mais um pouquinho.”. Trata-se do prazer de comer. Essa é uma luta sutil, e, muito freqüentemente, os apetites físicos ganham a batalha porque não temos domínio sobre as reais prioridades. Por essa razão, algumas vezes temos que nos recolher em oração, meditação e jejum para acalmar os nossos próprios desejos incontidos numa situação comum, mas, quando você deixa de lado alguns dos meios de graça, então a batalha começa a ser perdida. Lembre-se de que Satanás sempre vai encontrar onde está a sua fraqueza, e as suas inclinações para as prioridades da carne. Ele não é onisciente, mas ele está acostumado a trabalhar com seres humanos pecadores há milênios. Portanto, cuide-se para que você não saia perdedor nesta luta. Nosso Redentor venceu as tentações das coisas lícitas. Ele estava fraco fisicamente, mas o seu espírito estava firme, consciente e forte o suficientemente para dizer não às próprias necessidades imediatas. Sem dúvida, outras prioridades espirituais podem fazer parte de sua vida, mas elas também podem ser negligenciadas por causa dos desejos da carne, que Satanás usa para nos desviar dos principais objetivos de nossa vida. Lembre-se de que sempre “a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1Jo 2.16) estarão diante [e dentro] de você na tentativa de afastá-lo dos santos propósitos. O inimigo de sua alma vai atacá-lo onde você é mais vulnerável. Ele não vai tentar derrubá-lo onde ele sabe que você é forte. Jesus foi atacado numa ocasião de debilidade física por estar 40 dias sem comer. Diferentemente de nós, ele não possuía natureza pecaminosa, a despeito da sua tentabilidade. No nosso caso, a possibilidade de queda é grande. Por isso precisamos estar atentos para o ataque e nos fortalecer nas áreas de fraqueza para que não sejamos assaltados pelo inimigo nos flancos descobertos. Essa deve ser a sua primeira preocupação, se você quiser vencer as tentações. Portanto, não priorize as necessidades de sua carne se elas baterem de frente com a violação de algum princípio de Deus.

B. SATANÁS QUER QUE VOCÊ REAVALIE AS CAPACIDADES DE DEUS Na primeira tentação, Jesus preferiu confiar na providência divina que viria posteriormente para alimentá-lo. Aqui, na segunda tentação, de modo muito astuto, Satanás o tentou a confiar nas providências divinas que haveriam de ampará-lo se ele saltasse do pináculo do templo, mas ele se recusou a obedecer as sugestões satânicas. O pináculo do templo era um lugar suficientemente alto para despedaçar alguém que dali se lançasse. Seria como se você estivesse no alto de um grande

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penhasco ou de um edifício com muitos andares. Essa seria uma boa ocasião para Jesus confiar na sustentação divina através dos anjos, como sugere Satanás, citando o Salmo 91.11, 12. Satanás estimulou Jesus a mostrar a sua messianidade, pois o Salmo 91.11, 12 apontou para essa possibilidade. “Se tu és o Filho de Deus” – essa frase indica um ataque à pessoa e posição de Jesus. É como se ele tivesse dito: “Se você é Filho de Deus – embora eu não ache que você seja – por que você não prova isso para mim? Salte. Não lhe vai acontecer nada. Você será protegido pelas providências divinas. Não duvide do que Deus vai fazer. Dê um salto de fé e prove para você mesmo quem você é”. De um lado, que visão espantosa seria Jesus, diante da vista de toda Jerusalém, saltar majestosamente do alto do templo e ser amparado miraculosamente por seres celestiais imediatamente antes de se chocar contra o solo. Para usar uma linguagem moderna, haveríamos de ver todos os canais de televisão, milhares de câmeras tirando fotos e todos aclamando aquela sua confiança na providência divina. Seria a manifestação da sua grandeza e da sua fé em Deus! Por outro lado, posso imaginar que tristeza, que desaponto e que desastre seria para todos nós se Jesus houvesse praticado aquela espécie de bungee jump e tivesse caído na armadilha de Satanás. Mas, graças a Deus, ele nos enviou um Salvador poderoso bastante para ser invencível nas tentações! Assim como seria absolutamente errado Jesus descer da cruz (como sugeriram seus algozes), porque ele não completaria a nossa redenção, também seria errado ele saltar do pináculo do templo porque ele seria impedido, pelo Pai, de continuar sua obra em virtude da sua fraqueza. Um Redentor que não é poderoso o suficiente para ser invencível não serve aos propósitos do Eterno, mas a Divindade enviou um Redentor onipotente, que não poderia ser vencido nem mesmo pelas sugestões mais sutis, como essa da segunda tentação! Satanás vai tentar colocá-lo numa posição em que ele sugerirá que você ponha Deus sob prova, o que a Escritura condena (Dt 6.16). Depois das numerosas manifestações do poder redentor de Deus ao tirá-los do Egito com mão poderosa, eles caminharam pelo deserto e começaram a tentar Deus, reclamando das águas amargas (Êx 15.22-27), mas Deus purificou as águas. Reclamaram de não ter comida, e Deus providenciou o maná (Êx 16.22-35). Então eles disseram novamente: “Dá-nos água para beber. Respondeu-lhes Moisés. Por que contendeis comigo? Por que tentais ao Senhor” (Êx 17.2). Os israelitas tentaram Deus por exigir água de Moisés como prova de que Deus estava realmente entre eles (Êx 17.7), ao invés de confiarem realmente em Deus. Eles queriam que Deus provasse que era fiel, quando ele já havia se mostrado fiel muitas vezes. Nós tentamos Deus quando, ao invés de disciplinarmos os nossos filhos, supomos que Deus vai supri-los com obediência. Tentamos Deus quando negligenciamos os nossos corpos, não fazendo exercícios regulares, esperando que Deus nos

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dê saúde. Tentamos Deus quando não nos dedicamos ao nosso trabalho, mas esperamos sempre ter as nossas necessidades supridas, apenas para que Deus mostre uma vez mais que é Deus providente. Nós tentamos Deus quando pedimos sinais miraculosos da orientação divina, mas negligenciamos a sua Palavra. Jesus Cristo foi tentado a tentar Deus para que mostrasse sua obra providencial na sustentação do seu corpo, para que seu corpo não estourasse no chão quando Jesus saltasse do pináculo. Todavia, Jesus também disse não a essa tentação. “Não tentarás ao Senhor teu Deus”. Tenha cuidado, porque Satanás quer você reavalie as capacidades de Deus quando ele já tem provado muitas vezes o que pode fazer e o que tem feito.

C. SATANÁS QUER QUE VOCÊ REPENSE A SUA ADORAÇÃO Na terceira tentação, Satanás não foi sutil como nas duas primeiras registradas por Mateus. Ele abriu o jogo e revelou o sonho que acalentou desde quando se rebelou contra Deus e desde quando insinuou que os nossos primeiros pais também desejassem: ser igual a Deus. “Darei isto tudo se prostrado me adorares”. Após levar Jesus para um alto monte, como um vendedor, ele mostrou todas as coisas bonitas que podia mostrar – as glórias dos reinos deste mundo – como se elas lhe pertencessem, e sugeriu que o Redentor dos filhos homens fizesse o impossível: que o adorasse. A essa altura é possível perceber que ele estava em desespero, pois não havia meios de Jesus cair na sua armadilha. Então, ele resolve abrir o jogo, pedindo que Jesus o considerasse Deus, prestando-lhe culto. A tentação foi para que Cristo pudesse reavaliar a adoração de Deus. Em troca de “favores”, Cristo tributaria a Satanás a concessão em matéria de adoração. Na década de sessenta, houve alguns teólogos que tentaram impingir na mente de muitos estudantes que Deus estava morto, seguindo os velhos trilhos de Nietzsche. Então, eles criaram a teologia da morte de Deus. Satanás quer que nós tomemos o caminho da morte de Deus para que ele possa ser adorado. Adorar Satanás significa matar Deus em nossa vida, porque só existe um Deus. Se adorarmos Satanás, mataremos Deus. Esse foi o caminho que Satanás propôs a Cristo. Se eu fosse Jesus Cristo, certamente eu daria a seguinte resposta: “Olha Satanás, eu sei que o que você prometeu é uma mentira, porque eu criei todas as coisas e tudo me pertence. Na verdade, é você que precisa me adorar, e não eu a você.”. Ele teria todo o direito de responder assim, mas não o fez. Simplesmente ele não seguiu o raciocínio de Satanás, mas tomou a Escritura e respondeu: “Ao Senhor Deus adorarás, e só a ele darás culto” (Mt 4.10; cf. Dt 6.13). Jesus não fez rodeios, não fez discursos sobre a adoração, mas cortou logo o raciocínio de Satanás com a Escritura. A Escritura é o grande veículo que Deus nos dá para que tenhamos a atitude

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certa diante das investidas de Satanás. Quando ele sugerir que você viole um princípio na adoração a Deus, busque socorro na verdade de Deus, tendo-a bem guardada no coração, a fim de não pecar contra Deus (Sl 119.11). Você pode usar a Escritura corretamente nas horas de tentação, mas lembre-se de que você também precisa do próprio Jesus Cristo para ser vencedor, porque a Escritura registra que Jesus Cristo foi tentado “para poder socorrer os que são tentados” (Hb 2.18). Ele é poderoso para lhe ajudar na hora da tentação porque ele a experimentou em medida ainda maior do que você, devido à sua santidade. Ele é suficiente para nos ajudar em nossas tentações porque “não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, antes foi ele tentado em todas as cousas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15), a fim de ser o nosso ajudador. Como podemos clamar pelo socorro de Jesus Cristo? O verso seguinte de Hebreus nos aponta o caminho: “Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna” (Hb 4.16). Aproxime-se cheio de confiança diante do trono da graça e você receberá socorro de Jesus. A nossa intimidade com Jesus será a avenida para essa ajuda. Essa proximidade dele não é desenvolvida da noite para o dia, assim como a intimidade de um casamento não é um ato, mas um processo que deve ser cultivado. Cultive esse relacionamento com Jesus de forma que você possa se aproximar dele com confiança e buscar socorro em tempo oportuno.

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CAPÍTULO 13 A PERFEIÇÃO DO REDENTOR DIVINO-HUMANO

O

Redentor divino-humano é um dom precioso da Trindade para todos os remidos. A sua perfeição nos encanta ao mesmo tempo em que nos impacta de maneira extraordinária, sendo, em todas as coisas, padrão daquilo que um dia haveremos de ser, no que respeita à sua humanidade. Neste capítulo, vamos tratar da perfeição da humanidade do nosso Redentor como resultado da unio personalis. Quando o Deus triúno fez o primeiro homem, Adão, ele o fez de maneira perfeita. Não havia nenhuma impropriedade ou imperfeição no homem que Deus colocou no Jardim do Éden. Ele refletia perfeitamente a imagem daquele Deus que o havia criado, em todas as suas características. Adão veio impecavelmente belo e impoluto das mãos do Criador. Contudo, o homem não ficou para sempre perfeito, do modo como havia vindo das mãos do seu Criador. Deus, que é justo e verdadeiro, aplicou a sentença de morte que havia prometido em sua conversa pactual com Adão. Ele havia dito a Adão: “No dia em dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17). Paulo certificou-nos claramente que “o salário do pecado é a morte” (Rm 6.23) e que o aguilhão do pecado é a morte” (1Co 15.56). Deus, de fato, mostrou a sua santidade e justiça, mostrando-se verdadeiro em tudo que fala, evidenciando a perfeição do seu caráter. Quando houve a queda, portanto, a perfeição original foi retirada de Adão, e ele caiu em um estado no qual se tornaram salientes a impureza e a imundície, trazidas pela maldição divina por causa da sua culpa. Ele ficou alienado do Criador, perdendo todas as características relacionais com Deus, ou seja, ele perdeu a capacidade de conhecer a Deus, perdeu a sua justiça e a sua santidade. A imperfeição tomou conta do primeiro Adão. Por conseguinte, todos os descendentes do primeiro Adão passaram a refletir a natureza corrupta do seu ancestral e representante. Toda a raça humana veio a participar da herança deixada por Adão, em conseqüência da culpa que Deus imputou a todos os que ele representou. Assim como a maldição divina veio através de um homem, também a redenção divina teria de vir através de um homem. A iniciativa da redenção dos pecadores

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tinha de ser uma iniciativa divina, porque somente Deus poderia providenciar um outro Adão, semelhante em representatividade ao primeiro Adão e sendo perfeito como ele, todavia, sem a possibilidade de cair como o primeiro Adão caiu. Para que isso acontecesse, esse Redentor teve que ser ao mesmo tempo Deus e Homem. Falar da perfeição divina é desnecessário, mas, no que respeita à sua humanidade, temos que qualificá-la. Esse Redentor teria de ser perfeito em sua humanidade, absolutamente imaculado. Por essa razão, de Jesus Cristo é dito que ele era “santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores, e feito mais alto do que os céus, que não tem necessidade, como os sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, primeiro por sues próprios pecados, depois pelos do povo” (Heb. 7.26, 27). A iniciativa da redenção perfeita através de um Redentor perfeito começou na eternidade, como vimos no capítulo que tratou do conselho eterno de Deus.465 Na plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho para que assumisse uma humanidade perfeita, ainda que a assumisse com os resultados da queda, para poder nos redimir de todos os efeitos da dela. Deus efetivamente realizou seu propósito na encarnação de seu Filho. Se Deus não tomasse a iniciativa de nos redimir através de um Redentor divino e perfeitamente humano, não haveria remédio para o problema do pecado humano e a restauração do ser humano seria uma impossibilidade. Todavia, nunca pense que Deus tinha obrigação de proporcionar essa redenção aos pecadores. Ele nunca se torna devedor dos pecadores! Quando Deus resolveu redimir pecadores através de um perfeito Redentor, ele o fez movido por seu grande amor e compaixão, em sintonia com o seu caráter bondoso. Ele providenciou um perfeito Redentor por causa da sua própria natureza, que é a de fazer coisas perfeitas. A única maneira de Deus, ao mesmo tempo, poder manifestar a sua santa justiça e a sua amorosa misericórdia para com o homem caído, foi providenciar uma redenção-expiação através de um perfeito Redentor divino-humano. Uma outra forma qualquer de redenção seria impossível, pois somente o amaldiçoador é que poderia ser o abençoador, em Cristo Jesus. Somente aquele que teve a sua santidade desafiada é que poderia derramar-se em amor perdoador pelos pecadores. Somente Deus poderia libertar os que haviam se tornado cativos de seus pecados através daquele que enfrentou a ira divina sem ficar cativo às conseqüências do pecado – Jesus Cristo. Somente um Redentor divino-humano perfeito poderia salvar pecadores de suas desgraças. Somente um Redentor divino poderia tratar do problema criado pelo pecado, porque somente um Redentor com características essencialmente humanas é que poderia morrer. Essa é a grande maravilha da unio personalis. Para poder expressar simultaneamente a sua justiça e o seu amor perdoador, para remediar o problema humano, o Mediador teve que ser, ao mesmo tempo, Deus e homem, perfeito em ambas as essências. A fim de livrar o homem da do465. Veja o meu livro As Duas Naturezas do Redentor (São Paulo: Cultura Cristã, 2003).

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minação do diabo, ao qual ele havia sido submetido pela Justiça, o Redentor fez uma obra mediatorial para trazer satisfação a ambas as partes. Como divino, ele satisfez todas as exigências da justiça divina; como humano, ele satisfez todas as necessidades da miséria humana. Para que houvesse um remédio perfeito para a cura dos males interiores do ser humano, restaurando-o, o perfeito Redentor teve de ser perfeito Deus e perfeito homem. Perfeito Deus para satisfazer o Pai e perfeito homem para satisfazer os seus irmãos. A perfeição do Redentor está vista nessa capacidade de ser homoousious (da mesma essência) com ambos: com a divindade e com a humanidade. Os atributos da divindade e da humanidade estão absolutamente unidos na mesma Pessoa do Redentor, e, através de tudo o que o Redentor é, ele veio a ser um perfeito Redentor. Todavia, à vista de alguns, Deus demorou muito a enviar o seu Filho para redimir o seu povo, já que ele havia de antemão determinado redimi-lo. Ele resolveu mostrar o seu amor cheio de bondade quando essa sua ação cumpriu os seus decretos. Não há outra resposta. Deus não se atrasou nem enviou o Filho fora de hora, mas na “plenitude dos tempos” (Gl 4.4), no tempo exato, no tempo devido, no dia da oportunidade! Deus sabia o que estava fazendo, ainda que o sangue do Cordeiro tenha sido conhecido “antes da fundação do mundo”. Aliás, todas as coisas relativas a nós foram decididas antes da fundação do mundo (Ef 1.4; Hb 4.3; Ap 13.8 e 1Pe 1.20), mas Deus só resolveu torná-las efetivas no tempo determinado por si mesmo. E, por causa disso, os homens tiveram de esperar milênios para que suas promessas fossem realizadas. Deus poderia ter colocado, historicamente, a cruz bem ao lado dos portões do Éden. Todavia, Deus não fez assim. Ele quis preparar o seu povo para esse tempo de Redenção, quando um Redentor perfeito haveria de agir na história dos pecadores. Só nesse tempo o descendente da mulher esmagou a cabeça do descendente da serpente (Gn 3.15). Os seres humanos que ele veio redimir precisavam aprender muita coisa a respeito das conseqüências dos seus próprios pecados, a respeito da sua própria incapacidade de resolver os distúrbios resultados do pecado, a respeito da profundeza do pecado na sua natureza, a respeito da extensão de sua maldade e do desprazer que Deus tinha com tudo isso. Os homens precisavam aprender sobre quem Deus é, aprender sobre alguns de seus atributos, a ver a necessidade de se cumprir a lei, e, ao mesmo tempo, aprender a impotência da lei para salvar criaturas tão impuras e depravadas. Somente depois disso foi que ele enviou o Redentor perfeito para efetuar a salvação pela graça. Veja, a seguir, algumas coisas relacionadas à perfeição do Redentor:

PERFEITO EM SUA EXISTÊNCIA DIVINO-HUMANA Primeiramente temos de nos lembrar que não haveria Redentor se não houvesse a unio personalis. O verbo não-encarnado não poderia exercer o papel de Redentor dos pecados, porque faltaria alguém com natureza humana para levar a

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penalidade dos pecadores. Em segundo lugar, só podemos entender o Redentor em sua existência divino-humana após a encarnação. Em terceiro lugar, quando o Verbo se fez carne, ele tomou o lugar daqueles que haveriam de se tornar filhos de Deus e fez uma obra em favor deles para resgatá-los do estado de pecado em que se encontravam como descendentes de Adão. Ele foi o segundo Adão, o Redentor da obediência, para livrar os membros da raça da maldição divina vinda por causa da desobediência do primeiro Adão (Rm 5.12-21; 1Co 15.22). O primeiro Adão veio perfeito da mão do seu Criador, mas, por razões desconhecidas por nós, ele foi feito sujeito à queda. Todavia, o segundo Adão não era somente um homem perfeito (com todas as propriedades de um ser humano), mas também, em função da unio personalis, um Redentor perfeito, porque ele era um ser divino-humano, que não tinha a possibilidade de cair. Nesse sentido, o Redentor refletiu a perfeição do seu Pai. Todos os seres humanos subseqüentes a Adão recebem vida de um pai e de uma mãe, pelo processo natural de concepção e nascimento. O nosso Redentor não passou exatamente pelo mesmo processo ao ser gerado, mas isso não o torna menos humano, porque ele foi “nascido de mulher” (Gl 4.4) e veio da semente (spe/rmatoj) da mulher, remontando sua origem a Adão. Por isso também, ele pode perfeitamente ser chamado de “segundo Adão” (1Co 15.47). Jesus Cristo, foi o segundo (ou último) Adão, isto é, o segundo homem a ser nascido com a capacidade de ser representante do povo, e que também veio diretamente das mãos do Criador, procedendo do Pai (Jo 8.42). Portanto, quando a unio personalis aconteceu, houve a formação de um Redentor absolutamente perfeito em sua humanidade, assim como sempre o foi na sua divindade. O segundo Adão, como o primeiro, veio das mãos de Deus, e ambos eram perfeitos, mas o último Adão era mais-que-perfeito por causa da unio personalis, de forma que ele nunca poderia cair do estado em que ele criado segundo a sua natureza humana. O Redentor era a divindade filial encarnada. Ele era Deus e se encarnou, assumindo a nossa humanidade, sem nunca deixar de ser Deus. Foi a obra divina na encarnação que tornou perfeita a unio personalis no ventre de Maria. De um modo sobrenatural, Deus fez a provisão dos elementos que deveriam ser providenciados da parte de um pai humano, fazendo com que todos esses elementos estivessem presentes de um modo perfeito. De qualquer modo, aquele que foi concebido em Maria e nascido dela é um perfeito Redentor em sua existência divino-humana. Não há a necessidade absoluta de o Redentor possuir um pai humano para que seja um perfeito Redentor divino-humano. Certamente José não foi o pai genético de Jesus Cristo. Todavia, Jesus tinha que pertencer à raça, e isso aconteceu pelo fato dele ter sido concebido da semente (spermatos) da mulher na ação sobrenatural do Espírito, que a envolveu com seu poder. O Redentor foi concebido de modo sobrenatural pela ação do Espírito, e essa ação do Espí-

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rito foi que o tornou perfeito em todos os aspectos que envolvem a sua humanidade e a unio personalis.

PERFEITO EM SEU RELACIONAMENTO VERTICAL O nosso Redentor mostrou perfeição não somente na constituição do seu ser (que era divino-humano), mas também no relacionamento com o seu Pai celestial, quer como Deus ou como homem que era. A sua unio personalis, que o tornou um Redentor com duas naturezas, permitiu-lhe dois tipos de relacionamento com Deus. Um relacionamento de igual para igual, que é o relacionamento do Verbo encarnado com a primeira Pessoa, segundo a sua divindade; o outro relacionamento é o de sua humanidade com a primeira Pessoa da Trindade, a quem ele chama carinhosa e respeitosamente de Pai. O relacionamento duplo do Redentor com seu Pai é determinado pela condição essencial e moral de suas duas naturezas.

A. RELACIONAMENTO DO REDENTOR DE ACORDO COM A SUA NATUREZA DIVINA O nosso Redentor, segundo a sua natureza divina, possuía um relacionamento perfeito com seu Pai por duas razões: A primeira razão é que ele possuía a mesma essência numérica e essencial de seu Pai. Esse relacionamento já era perfeito desde a eternidade, pois sempre foi perfeito o relacionamento intratrinitário. Quando o Verbo se encarnou, esse relacionamento entre duas Pessoas da mesma essência não foi alterado. A segunda razão do relacionamento perfeito está vinculada à mesma natureza moral que ele possuía com seu Pai. Nunca houve uma quebra desse relacionamento, porque nunca poderia ter havido qualquer mancha na natureza divina, mesmo após a encarnação do Redentor. A humilhação a que a Pessoa do Redentor se submeteu não lhe trouxe nenhuma alteração na natureza moral de sua divindade. Conforme o registro dos Evangelhos, em todo tempo em que o Redentor viveu entre nós, não podemos perceber qualquer imperfeição no relacionamento do Redentor divino com o Pai. Todas as vezes em que há menção de algum diálogo entre eles, sempre podemos perceber amor mútuo, respeito mútuo e palavras elogiosas de um para com o outro.

B. RELACIONAMENTO DO REDENTOR DE ACORDO COM A SUA NATUREZA HUMANA O relacionamento do Redentor, segundo a sua humanidade, com seu Pai era perfeito. Não se pode dizer de Jesus Cristo que ele foi concebido e nascido “em

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delitos e pecados” (Ef 2.1, 5), como é dito de todos os outros membros da raça humana (exceto Adão quando criado). Todos os homens chamados “naturais” vêm ao mundo contaminados pelo pecado e sem comunhão vertical, isto é, sem relacionamento com Deus. Todos eles já nascem mortos, separados de Deus. Todavia, o Redentor foi livre de toda contaminação do pecado, e, diferentemente de todos os outros homens, ele não experimentou a morte que classicamente conhecemos como morte espiritual. A ação sobrenatural do Espírito na concepção do Redentor fez com que ele fosse livre de qualquer mancha do pecado que obstasse o seu relacionamento vertical. Portanto, reafirmamos que ele não foi nascido morto espiritualmente, como os demais membros da humanidade. Ele foi livre da morte espiritual, não vindo, portanto, a participar da descendência espiritual de Adão nem da sua corrupção moral. Outros seres humanos mortos em delitos e pecados podem ser libertos dessa morte pela ação regeneradora do Espírito Santo, mas Cristo foi livre de passar por essa morte. Portanto, ele possuía um perfeito relacionamento com seu Pai celestial. Não havia nada em sua constituição moral que obstasse essa doce comunhão com seu Deus e Pai. A perfeição do seu relacionamento vertical se evidencia pelas vezes em que ele fala em fazer a vontade de seu Pai, que é a sua comida e a sua bebida. Nada na vida de Jesus Cristo quebrou a sua comunhão vital com Deus. Ele sempre cumpriu os preceitos que os homens deveriam cumprir. Ele fez exatamente o que os outros homens não fizeram: obediência plena. Fazendo isso, ele conseguiu vida eterna para outros homens, vida essa que ele teve desde a sua concepção.

PERFEITO EM SEU RELACIONAMENTO HORIZONTAL Esse relacionamento diz respeito a Jesus e aos demais seres humanos. Os nossos relacionamentos neste mundo são freqüentemente quebrados por causa dos pecados que cometemos uns contra os outros em virtude da natureza pecaminosa, que é parte de nosso ser nesta presente existência. Todavia, não vemos qualquer referência de uma quebra de comunhão de Jesus com os seus semelhantes. Não havia qualquer mancha no caráter moral de Jesus Cristo. Ele nunca se separou dos seus companheiros de ministério, nem de qualquer outro membro da sociedade em que vivia. É verdade que muitos do seu tempo não gostavam dele, mas não por causa de alguma transgressão que ele houvesse cometido contra eles. A indisposição deles para com Jesus Cristo era por causa da doutrina que ele pregava, com a qual eles não concordavam, e também por causa da santidade de sua ética. Eles romperam o seu relacionamento com Jesus por causa da de sua própria indisposição contra o seu ensino, não por causa de alguma falha moral do Redentor. Ao contrário, a santidade e a integridade do seu caráter incomodavam muito os religiosos hipócritas do seu tempo.

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Veja o exemplo encontrado no Evangelho de João. É dito ali que, após ensinar sobre a corrupção da natureza humana e sobre o pão do céu, os discípulos acharam aquele discurso muito “difícil de ouvir” (Jo 6.60). Então, após ensinar um pouco mais sobre a incapacidade humana de vir a Cristo, João registra que “muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam mais com ele” (Jo 6.66). Não houve aqui uma quebra de relacionamento horizontal por causa de uma atitude de Jesus Cristo com relação a eles, mas uma indisposição deles contra as crenças de Jesus. Não poderia haver nenhuma imperfeição relacional da parte de Jesus Cristo porque ele era santo. Ninguém podia encontrar nele qualquer pedra de tropeço, embora muitos tenham tropeçado nele por causa das suas próprias indisposições, não por qualquer falha moral dele. Ele sempre desafiou os homens a encontrarem nele qualquer motivo de tropeço porque ele tinha consciência plena da perfeição da perfeição moral da sua natureza humana. Jesus Cristo não tropeçou num só preceito da lei, e, por causa disso, teve uma perfeita vida relacional no plano horizontal.

PERFEITO EM SUAS AÇÕES SACERDOTAIS O ofício exercido pelo Redentor sobre o qual temos uma porção de detalhes é o sacerdotal. Nessas informações podemos perceber a lisura com a qual ele exerceu magistralmente esse ofício. Não houve quebra de lei no exercício de seu ofício sacerdotal. Vejamos algumas coisas que apontam para a perfeição de suas ações sacerdotais.

A. SUA PERFEIÇÃO COMO OFERTOR POR CAUSA DO PECADO Ele agia como um sumo sacerdote perfeito, pois ofertava de maneira perfeita, muito diferente da maneira como os outros sumos sacerdotes ofertavam. A sua perfeição fica evidenciada no comentário que o autor de Hebreus faz: Hebreus 7.28 – “Porque a lei constitui sumos sacerdotes a homens sujeitos à fraqueza, mas a palavra do juramento, que foi posterior à lei, constitui o Filho, perfeito para sempre”.

Depois de falar das qualidades únicas do Redentor divino-humano em relação aos outros sumos sacerdotes, o autor de Hebreus fala do sumo sacerdote por excelência, a quem ele chama de “perfeito para sempre”. A sua perfeição consiste não somente na constituição de sua pessoa divinohumana, mas na maneira como ele age como sumo sacerdote, o ofertor. Nisso ele também foi singular e incomparável! A singularidade desse ofertor perfeito está no fato de ele não pertencer a uma

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tribo levita, mas à tribo Judá; está no fato de ele oferecer nada além de si próprio; está no fato de ele oferecer um sacrifício único, por sua suficiência; está no fato de ele ser um sacerdote definitivo, para sempre, em contraste com a temporalidade dos outros.

B. SUA PERFEIÇÃO COMO OFERTA PELO PECADO A perfeição do Redentor não é somente como aquele que apresenta a oferta, mas como a própria oferta. Como oferta pelo pecado, ele é chamado de Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (Jo 1.29). A perfeição dessa oferta é assinalada por Pedro, quando diz: 1 Pedro 1.19, 20 – “... mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo, conhecido, com efeito, antes da fundado mundo, mas manifestado no fim dos tempos por amor de vós...”

A oferta proporcionada pelo ofertor é absolutamente perfeita, sendo “sem defeito e sem mácula”. A expressão “Cordeiro” no texto é uma metáfora de Cristo como aquele que é sacrificado pelos pecados. Desde o período do Antigo Testamento, é exigência que o cordeiro do sacrifício seja perfeito (Êx 12), e Jesus, como o antítipo, é mais perfeito do que os próprios tipos, em virtude do fato dos sacrifícios dos tipos não serem eficazes para aquilo que eles significavam. O sacrifício deles não tirava realmente o pecado das pessoas, mas, quando o real Cordeiro veio, então os pecados do povo foram tirados por causa da perfeição da oferta. Jesus Cristo é a oferta perfeita. Nada melhor do que ele poderia ser oferecido. Por essa razão, Cristo deu a si mesmo pelos nossos pecados. Quando falamos da perfeição da oferta, não podemos nos esquecer de algumas outras coisas importantes que estão contidas nessa idéia principal: a perfeição do Cordeiro oferecido, a perfeição do sacrifício preordenado, a perfeição do sangue derramado, a perfeição da eficácia do sacrifício, a perfeição do sacrifício poderoso.

1. A PERFEIÇÃO DO CORDEIRO OFERECIDO Nos tempos do Antigo Testamento, Deus aceitou os sacrifícios que eram, ao mesmo tempo, tipo e símbolo, apontando para um sacrifício futuro que haveria de vir. A tônica colocada pelo escritor do Pentateuco era a de perfeição do tipo. Veja as referências ao tipo: Êxodo 12.5 – “O cordeiro será sem defeito, macho de um ano... Levítico 22.21 – “Quando alguém oferecer algum sacrifício pacífico ao Senhor, quer em cumprimento de voto ou como oferta voluntária, do gado ou do rebanho, o animal deve ser sem defeito para ser aceitável; nele, não haverá defeito nenhum.”

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Embora houvesse as exigências para os tipos, eles não eram perfeitos como o Antítipo. Ainda que tivessem as características básicas da perfeição exigidas nos textos transcritos acima, a perfeição só veio a ser concretizada com a vinda do real Cordeiro de Deus. Quando o nosso Redentor apresentou-se neste mundo como Deus-homem, ele se apresentou inculpável, perfeito, sem mácula, para oferecer-se a Deus como sacrifício em nosso lugar. Em tudo ele foi tentado, mas a sua perfeição prevaleceu, sendo sem pecado algum. Em virtude da unio personalis, o Redentor foi concebido perfeito e permaneceu perfeito até o final. Não houve nele qualquer coisa que pudesse denotar impureza ou qualquer outro tipo de imperfeição. Ele apresentou-se perfeito e permaneceu perfeito até o final.

2. A PERFEIÇÃO DO SACRIFÍCIO PREORDENADO Jesus foi o Cordeiro de Deus apontado para o sacrifício desde antes da fundação do mundo. Ele não veio para cá para resolver um problema de última hora. Ele não veio ao mundo para “consertar a história” que Deus havia escrito e que os homens haviam estragado, mas para cumprir a história. Ele veio realizar os planos que a Tri-unidade havia preparado desde antes da fundação do mundo. A cruz não frustrou os planos de Deus, ela os cumpriu cabalmente. O Cordeiro de Deus veio ao mundo para cumprir propósitos de antemão indicados na própria revelação das Escrituras. Por essa razão, Pedro fala do “precioso sangue, como de um cordeiro sem defeito e sem mancha, o sangue de Cristo, o qual, na verdade, foi conhecido ainda antes da fundação do mundo, mas manifesto no fim dos tempos por amor de vós” (1Pe 1.19, 20). Esse sacrifício preordenado foi perfeito porque o Cordeiro era perfeito. Nada houve nesse sacrifício que não tenha saído de acordo com as prescrições de antemão estabelecidas por Deus. Esse Cordeiro que foi prometido “antes dos tempos eternos” (1Pe 1.19, 20), vaticinado nas Escrituras do Antigo Testamento (Is 53.12), na história do povo de Israel, é manifestado neste mundo e reconhecido por João Batista como “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29), cerca de setecentos anos depois. Portanto, muito antes da história humana começar a existir, o Cordeiro perfeito de Deus foi preordenado para que realizasse uma oferta perfeita de si mesmo, para que ele fosse “entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus” (At 2.23).

3. A PERFEIÇÃO DO SANGUE DERRAMADO Não somente a oferta é perfeita, mas o que ela oferece também é perfeito. Pedro, escrevendo sobre o sangue que o Cordeiro derramou, diz que ele é “precioso” (1Pe 1.19). A preciosidade desse sangue diz respeito à sua perfeição. O sangue derramado é perfeito pelo fato de Deus aceitar o seu derramamento para remissão de pecados daqueles por quem ele morreu. Deus não aceitaria sangue que não

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fosse precioso, isto é, cheio de valor em virtude da sua pureza (ou perfeição). Deus jamais poderia rejeitar uma oferta tão preciosa oferecida pelo Filho. Essa oferta foi produto de um acordo, por isso o sangue é chamado de “sangue do pacto” (Mt 26.26). A preciosidade do sangue está no fato de ele “purificar de todo pecado” (1Jo 1.7). A perfeição do sangue de Jesus Cristo, o Cordeiro perfeito, é que nos traz santificação e faz com que Deus nos perdoe. A preciosidade do sangue está no fato de ele estar sempre diante de Deus, de forma que Deus nunca mais nos olha como devedores. A preciosidade do sangue está no custo da nossa salvação, porque o sangue significa a vida de Cristo, que nos foi dada. Quando percebemos esse custo, então começamos a entender um pouco a preciosidade do sangue que nos comprou tão grande salvação.

PERFEITO NO EXERCÍCIO DOS SEUS DONS ESPIRITUAIS Os dons espirituais que Cristo deu à Igreja, especialmente os relacionados com a palavra, ele os exerceu de maneira magistralmente perfeita. Se você tomar os dons ligados com a exposição da verdade divina, ninguém sobrepuja Jesus Cristo. Veja os dons mencionados por Paulo, que foram dons concedidos aos homens, e verifique que Cristo foi perfeito em todos eles.

A. PERFEITO COMO APÓSTOLO Dos enviados de Deus, Cristo foi o mais importante. Ele foi enviado ao mundo para exercer uma missão entre os homens. Ele foi o maior Missionário que este mundo já conheceu em virtude da magnitude e da importância da sua missão. A Escritura diz que ele foi Apóstolo de Deus. Hebreus 3.1-3 – “Por isso, santos irmãos, que participais da vocação celestial, considerai atentamente o Apóstolo e Sumo sacerdote da nossa confissão, Jesus, o que é fiel àquele que o constituiu, como também o era Moisés em toda a casa de Jesus. Jesus, todavia, tem sido considerado digno de tanto maior glória do que Moisés, quanto maior honra do que a casa tem aquele que a estabeleceu.”

Todos os apóstolos da Escritura são chamados “apóstolos do Cordeiro” (Ap 21.14) porque foram chamados e enviados especialmente por Cristo. Todavia, Cristo foi enviado pelo seu Pai. A honra de Jesus Cristo como Apóstolo de Deus é maior do que a de todos os apóstolos juntos. Ele é maior do que Moisés, o supra-sumo dentre os judeus. A glória do Apóstolo de Deus é maior do que a glória de todos os apóstolos que ele próprio chamou e enviou. Ele é o apóstolo anunciador das grandes maravilhas de Deus. Ele trouxe as maravilhas de Deus a este mundo, sendo ele próprio a maior delas, ou ainda, a maravilha personalizada.

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Sua obra de apostolado foi perfeita porque a sua natureza divina e a sua natureza humana eram perfeitamente combinadas numa única e santa pessoa. Ele foi o perfeito embaixador de Deus que falou em nome de Deus proclamando aos homens a verdade de Deus. Ele exerceu com perfeição o seu dom (e ao mesmo tempo o seu ofício) apostólico. Como um enviado de Deus, ele executou de maneira perfeita todas as funções para não somente revelar quem Deus era, mas também para realizar historicamente a redenção antes concebida pela triunidade eterna.

B. PERFEITO COMO PROFETA Jesus foi perfeito como um profeta. Nenhum homem jamais falou como ele. Os seus ouvintes, mesmo os adversários, ficavam pasmos e surpresos pela maneira como ele dizia as verdades de Deus. Como ninguém, Jesus Cristo foi profeta. Ele revelou os segredos de Deus aos homens (Mt 13.35). Ele foi perfeito nessa obra a ponto dos profetas do Antigo Testamento serem tidos como sombras do verdadeiro e supremo profeta. Os judeus do seu tempo o compararam às maiores vozes proféticas de Israel: Elias e João Batista. Na verdade, Jesus era maior do que todos eles juntos, porque foi o inspirador de todos eles e esteve na boca de todos os profetas do Antigo Testamento (1Pe 1.10, 11). Jesus é maior do que Jonas (Mt 12.41), e foi considerado o profeta por excelência. Depois de um dos seus grandes feitos, o povo dizia dele: “Grande Profeta se levantou entre nós, e: Deus visitou o seu povo” (Lc 7.16), e ainda: “um varão profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo” (Lc 24.19). Ele foi reconhecido como “o profeta” que estava para vir ao mundo (Jo 6.14; 7.40), provavelmente como cumprimento do vaticínio de Moisés a seu respeito (Dt 18.15-18). Ele era o perfeito profeta, o profeta modelar que todos esperavam. A despeito da perfeição da sua função profética, ele foi rejeitado pelo povo, como alguns dos verdadeiros profetas de Deus, ficando sem honra na sua própria terra (Mt 13.57), embora fosse reconhecido como profeta pelo povo (Mt 21.11, 46), e mesmo reconhecido como estando na galeria dos maiores profetas (Mc 8.28).

C. PERFEITO COMO EVANGELISTA Ninguém foi um perfeito evangelista, como Jesus Cristo o foi. Ele confrontava os pecadores consigo e os levava de maneira suasória e sobrenatural ao conhecimento de si mesmo. Ele aguçava o desejo das pessoas por si mesmo. Certa vez, ao ser questionado pela mulher samaritana sobre pedir água do poço de Jacó, ele despertou o desejo dela, dizendo-lhe: “Se conheceras o dom de Deus e quem é o que te pede: dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva” (Jo 4.10). Ele conduziu o restante da conversa e a mulher acabou voltando para casa sem a água do poço, mas cheia da “água da vida”.

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Jesus Cristo se envolvia no meio de homens carentes de sua graça e se misturava com eles para poder lhes falar da graça redentora. A Escritura diz que ele “comia com publicanos e pecadores” (Lc 15.1, 2). Isso quer dizer que ele se “fazia judeu” (sem fazer as coisas próprias deles) para poder lhes falar da salvação. Foi assim que ele se comunicou com um famoso publicano, Zaqueu. Ele trouxe salvação a Zaqueu e a toda a sua casa. Jesus Cristo conversou com gente importante como Nicodemos, membro do Sinédrio. Ele lhe falou claramente da necessidade de ser um homem nascido de novo. Ele não teve rodeios e mexeu na ferida daquele religioso sério. Certamente Nicodemos viu a luz e creu no Redentor, ainda que o tenha seguido muito timidamente, até que, no final, ele teve a ousadia de assumir o seu Cristianismo, preocupando-se com o corpo de Jesus Cristo. Jesus Cristo foi perfeito não somente na sua metodologia evangelística, mas perfeito no conteúdo do que pregava. Na verdade, ele foi perfeito porque não pregava sobre ninguém, a não ser a si mesmo. Ele era o pregador e o conteúdo da pregação. A fé que instava os outros a possuir era a fé no Filho de Deus que a si mesmo se dava por pecadores.

D. PERFEITO COMO PASTOR O Redentor era um homem cheio de compaixão. Ninguém foi tão pastor como Jesus Cristo, exercendo esse dom divino tão benéfico para a nossa alma. Freqüentemente a Escritura narra que o seu coração cheio de ternura se derramava em tristezas quando via multidões esfomeadas e desorientadas “como ovelhas que não têm pastor”. Mais do que ninguém, ele demonstrou possuir, de maneira incontestável, a alma de um pastor que sofre por causa das ovelhas que vivem em aflição. Com o coração angustiado pela dor de outros, ele dizia com ternura: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11.28-30).

Sua alma pastoral foi evidenciada nas muitas vezes em que ele socorreu os corações afligidos pela maldade humana, pela injustiça social, ou por causa dos próprios pecados dos aflitos. Ninguém neste mundo pode exercer com perfeição o pastoreio, não somente em virtude de suas limitações, mas também por causa dos próprios pecados. Jesus também teve aflições, mas aflições impostas penalmente. Nenhuma delas veio por causa de seus pecados, pois ele possuía perfeição moral. Por essa razão, ele exerceu com perfeição a sua obra pastoral. Ninguém foi um pastor tão perfeito como Jesus Cristo, por isso a Escritura diz,

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como de nenhum outro, que ele é o “Supremo pastor” de nossa alma. Outros cristãos podem ser pastores, mas não no mesmo grau em que ele o foi, e ainda é. No dia final, quando “o Supremo Pastor se manifestar”, as suas ovelhas haverão de receber a “imarcessível coroa de glória”. (1Pe 5.4). Ele virá buscar as suas ovelhas e livrá-las, de uma vez por todas, de todas as aflições e tribulações que este mundo lhes impinge, enchendo-as de pleno gozo e colocando-as num lugar plenamente glorioso.

E. PERFEITO COMO MESTRE As várias facetas do exercício do dom espiritual do ensino estão evidentes no ministério de Jesus Cristo. Talvez esse seu ministério tenha sido o mais evidente em virtude da importância do seu ensino.

1. COMO MESTRE, JESUS FOI PERFEITO EM SUA DIDÁTICA Ele usava o método comum de ensino no seu tempo, e mesmo no tempo do Antigo Testamento, que era o de parábolas, para comunicar verdades espirituais.Ele sabia distribuir o material de ensino “conforme o permitia a capacidade dos seus ouvintes” (Mc 4.33). Ele usava as coisas comuns da vida diária dos seus ouvintes para lhes explicar as coisas do reino de Deus. Ele sabia distribuir o material do seu ensino de modo equilibrado para que seus ouvintes pudessem acompanhar o seu raciocínio.

2. COMO UM MESTRE, JESUS FOI PERFEITO EM SUA AUTORIDADE Além disso, sua perfeição é vista no modo como ele ensinava: como quem tem autoridade, e não como os mestres do seu tempo. Isso significa que as pessoas prestavam atenção ao seu ensino, que as impactava. Por isso, Lucas registra que as pessoas “se maravilhavam da sua doutrina, porque a sua palavra tinha autoridade” (Lc 4.32). Ninguém ousava discordar dele em virtude da inteligência e da sabedoria de suas respostas. Quando Jesus terminou a sua fala como Mestre, no final do mais importante dos seus ensinos, o evangelista observa: “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; porque ele as ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas” (Mt 7.28, 29; cf. Mc 1.22). Certa vez, alguns enviados das autoridades vieram para prender Jesus. Quando o ouviram falar, ficaram boquiabertos, porque, segundo eles mesmos, “jamais alguém falou como este homem” (Jo 7.46). Sua autoridade dele estava ligada à singularidade do seu ensino, além dela estar ligada à perfeição do seu caráter.

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3. COMO MESTRE, JESUS FOI PERFEITO NA INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS DO ANTIGO TESTAMENTO Jesus Cristo freqüentemente conferia as Escrituras com as próprias Escrituras. Ele aplicou essa regra hermenêutica que nós todos deveríamos aprender a aplicar. Como ninguém, Jesus Cristo conhecia perfeitamente as Sagradas Escrituras do Antigo Testamento e arrancava lições através de uma interpretação perfeita. Observe apenas um exemplo para ilustrar o que acabo de dizer: Marcos 12.35-37 – “Jesus, ensinando no templo, perguntou: Como dizem os escribas que o Cristo é filho de Davi? O próprio Davi falou, pelo Espírito Santo: Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés. O mesmo Davi chama-lhe Senhor; como, pois, é ele seu filho? E a grande multidão o ouvia com prazer.”

Todo mestre tem de ter um livro texto como base do seu ensino. Nesse sentido, Jesus também não foi diferente. As Escrituras do Antigo Testamento eram a base dos seus ensinos. Ele aprofundou muitos ensinos do Antigo Testamento e trouxe ainda outras revelações novas, mas, o que ele interpretou, ele o fez com a capacidade de um mestre sábio. Quando ele terminava a sua magistral interpretação, diz o texto que “a grande multidão o ouvia com prazer”. A multidão se deleitava na perfeição hermenêutica do raciocínio de Jesus Cristo. Ele superou todos os outros, os que vieram antes e os que vieram depois, na interpretação da Lei, dos Profetas e dos Escritos. Todavia, se você é um mestre da Palavra de Deus, você tem de seguir os exemplos daqueles que imitaram a Jesus Cristo, como é o caso de Paulo. Observe que, ao dirigir-se aos coríntios, Paulo lhes diz: “A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana; e, sim, no poder de Deus” (1Co 2.4, 5). Ensine e pregue com a sabedoria divina, não com a humana, a fim de que os seus ouvintes entendam e experimentem o poder de Deus na vida deles!

4. COMO MESTRE, JESUS FOI PERFEITO NO PREPARO DOS SEUS DISCÍPULOS Eu conheci alguns professores que tinham um conhecimento espantoso. Eram pessoas inteligentes como poucos, mas falharam nessa tarefa preciosa de formar discípulos. Quando o mestre é perfeito na tarefa de fazer discípulos bem preparados, estes acabam amando seus ensinos e ao seu mestre. Nesse ponto, Jesus foi inigualável. Dentre todos os seus ouvintes, ele selecionou alguns e investiu neles o seu tempo e a sua sabedoria. Ele ficou com eles até que eles fossem capazes de,

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posteriormente, exercer o ofício apostólico e desempenhar os seus dons espirituais, incluindo o do ensino. É espantoso ver como ele separou os doze e, dentre o doze, como ele se concentrou em três deles (Pedro, Tiago e João). Quando examinamos mais a fundo o preparo de seus discípulos, vemos que o supremo Mestre se dedicou mais especialmente a um deles, João, a fim de que ele pudesse dar um testemunho ímpar do seu pensamento, de forma que, hoje, ainda podemos perceber a riqueza do ensino de Jesus pelos escritos que esses discípulos nos deixaram, especialmente João, o discípulo amado.

PERFEITO EM SUA CONDUTA MORAL Nunca alguém viveu tão perfeitamente como Jesus Cristo! Ele possuía um perfeito relacionamento com seu Pai celestial, e a conseqüência desse relacionamento vertical é o seu perfeito relacionamento horizontal. A conduta moral do Redentor é produto da sua condição espiritual. Essa perfeita condição espiritual deu-lhe condições de viver limpa e perfeitamente a sua vida entre os homens. Ele foi “varão perfeito” em todas as suas obras aqui neste mundo. Jesus Cristo não possuía qualquer propensão para o pecado, como todos os filhos de Adão possuem. A inclinação para o pecado não era parte da sua existência entre nós. Ele não possuía o que Paulo chamou de “o pendor da carne” (Rm 8.5, 6). A sua perfeição de conduta moral se deve à santidade absoluta do seu caráter, em virtude da unio personalis. Jesus Cristo, de acordo com a sua humanidade, exerceu seu ministério de maneira perfeita, sendo obediente em todas as coisas ao seu Pai celestial. Embora ele fosse Deus e homem simultaneamente, ele não agia simultaneamente como Deus e homem. A ação da Pessoa do Redentor, de acordo com a sua humanidade, todavia, era sempre ligada ao fato da unio personalis. Nunca ele pode agir separadamente dessa união. O aspecto seu relacional neste mundo esteve sempre vinculado ao fato de ele andar obedientemente às leis divinas como Redentor divino-humano. Embora nunca agisse segundo as duas naturezas simultaneamente, ele nunca poderia agir com uma natureza à parte da unio personalis. Embora a sua natureza divina nunca tivesse sido influenciada por sua natureza humana, todavia a sua natureza humana nunca atuou à parte da base divina da sua personalidade. “Embora Jesus pudesse ser Deus e homem ao mesmo tempo, ele não poderia funcionar como Deus e funcionar como homem ao mesmo tempo. Ele não poderia portar-se como Deus e portar-se como homem simultaneamente. Isso é porque ele ‘se esvaziou’ (Fp 2.7) das prerrogativas da função divina, determinando não exercer essas capacidades divinas independentemente. A fim de se tornar plenamente homem, ele teve de se tornar funcionalmente subordinado e, assim,

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR para funcionar, agir e portar-se como um homem, que por derivação receptiva e dependência permitiria a que o Pai e o Espírito funcionassem como Deus no homem.”466

Todavia, o esvaziamento nunca pode ser entendido como alguma coisa que rompesse a unio personalis. Embora nunca agisse simultaneamente como Deus e como homem, nunca a sua natureza humana agiu independentemente da unio personalis. Portanto, os padrões de conduta perfeita do Redentor estão vinculados ao fato dele ser divino-humano, fato esse que nunca deve ser deixado de lado no estudo da Cristologia. Se o nosso padrão de conduta deve estar sempre baseado na natureza moral de Deus, Jesus Cristo, que era Deus-homem, agiu de modo moralmente perfeito em razão dessa maravilhosa unio personalis. A conduta moral de nosso Redentor (que deveria ser hoje a nossa conduta, que certamente não o é, mas o será no completamento de nossa redenção!), diferentemente da conduta dos homens comuns, está atrelada à união das duas naturezas. Não podemos fugir dessa questão, ainda que queiramos, mesmo que isso dificulte o entendimento da Cristologia. A conduta moral de Jesus Cristo é modelo para a nossa conduta, mas nunca haveremos de, neste mundo, ter a sua conduta moral até que sejamos completamente redimidos. Ainda assim, na nova terra, haveremos de ter a graça divina para permanecermos impolutos na vida moral. Todavia, Jesus Cristo não precisou dessa “ação graciosa” de Deus (que é somente para pessoas com a qualidade de mutabilidade), porque a unio personalis faz com que ele seja imutável na sua conduta moral, o que não diminui o mérito da sua conduta. Nesse sentido, difiro de Fowler, que, citando W. Ian Thomas, diz: “Não é uma explicação sugerir que, embora tentado, o Senhor Jesus Cristo não foi tentado com o mal... porque a afirmação ‘todavia, sem pecado’ claramente indica que a natureza da tentação foi tal que ela teria conduzido ao pecado não tivesse sido resistida... inerente à sua disposição de ser feito homem, estava à disposição do Senhor Jesus Cristo de ser feito sujeito à tentação... inerente na capacidade do homem de ser piedoso está a capacidade que o homem tem para o pecado.”467

A grande diferença entre os teólogos sobre esse assunto, como já foi visto em capítulo anterior, é sobre a pecabilidade ou a impecabilidade de Jesus Cristo. A impecabilidade é sustentada neste trabalho com base na ação moral de Cristo, segundo a sua humanidade, em virtude da unio personalis, que faz com que Jesus Cristo não possa pecar. Foi nesse sentido, especialmente, que ele foi perfeito e sem a 466. James A. Fowler, The Perfect Man, no site http://www.christinyou.net/pages/perfman.html, acessado em 28/07/2003. 467. Thomas, W. Ian, The Mystery of Godliness. (Grand Rapids: Zondervan Publishing Co., 1964), 48, 49 (apud James A. Fowler, The Perfect Man, no site http://www.christinyou.net/pages/perfman.html, acessado em 28/07/2003.

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possibilidade de mudança em sua conduta moral. Os versos citados na nota de rodapé abaixo devem ser entendidos à luz desse último conceito, que é defendido nesta obra.468 A perfeita conduta do Redentor está em sua perfeição, e sua perfeição está vinculada diretamente ao fato da unio personalis. Se ele fosse simples e unicamente um homem ou simples e unicamente Deus, ele não poderia ser um perfeito Redentor.

PERFEITO NOS BENEFÍCIOS QUE PROPORCIONOU Através do Cordeiro perfeito, recebemos de Deus muitos benefícios perfeitos para que a nossa redenção fosse plena. As conseqüências da morte de Jesus Cristo para o seu povo são cheias de benefícios que Deus nos concede por causa da perfeição da obra redentora.

A. A JUSTIÇA QUE ELE PROPORCIONOU É PERFEITA 2 Coríntios 5.21 – “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus.”

O nosso Redentor, que é perfeito em seu ser, perfeito em todas as suas qualificações, assim como perfeito na sua conduta, também nos fez receber benefícios perfeitos. Aquele que é justo foi tratado como injusto para que nós injustos sejamos tratados como se fôramos justos. Por essa razão, “Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus” (1Pe 3.18). A justiça de Cristo, que nos é imputada, é uma justiça perfeita porque, através dela, Deus nos aceita na sua presença e nada mais é requerido de nós. Jesus Cristo foi tratado como malfeitor para que nós, malfeitores, fôssemos tratados como santos. Deus não fez qualquer observação negativa com respeito à obra substitutiva de Cristo. Ele a aceitou inquestionavelmente em virtude da perfeição dela. Portanto, a justiça que pertencia a Cristo agora nos pertence. Essa justiça diz respeito ao modo como Deus nos trata hoje. Além disso, a retidão de Jesus Cristo será um dia também a nossa retidão pessoal.

B. A VIDA QUE ELE PROPORCIONOU É PERFEITA Deus nos vivificou quando nós ainda andávamos mortos em delitos e pecados. Todos os herdeiros de Adão são chamados de “filhos da desobediência” (Ef 2.2; 5.6) porque Adão resolveu desobedecer (Rm 5.19), e todos os que estão em Adão têm a mesma natureza moral caída que ele passou a possuir. “O primeiro homem, formado da terra, é terreno... Como foi o primeiro homem, o terreno, tais são tam468. Todos os textos a seguir, Hebreus 4.15; 1João 3.5; 2Coríntios 5.21; 1Pedro 2.2; João 8.46; Hebreus 7.26 e 9.14; 1Pedro 1.19, apontam para a impecabilidade de Jesus, que é produto da unio personalis, e não da sua simples opção de não pecar quando tinha a possibilidade da queda, como querem alguns.

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bém os demais homens, terrenos” (1Co 15.47, 48). De modo oposto ao primeiro homem, Adão, há o chamado “segundo Adão”. A diferença entre os dois não é a constituição da sua humanidade, pois ambos são verdadeiramente homens, mas a diferença é de qualidade moral. O segundo Adão é chamado de “celestial” em virtude da sua incorruptibilidade. Portanto, todos os que estão em Cristo também são chamados de “celestiais”, puros (1Co 15.47-49). Com a sua obediência ativa, o segundo Homem produziu a justificação que nos traz vida (Rm 5.17, 18) porque Cristo, diferentemente do primeiro Adão, que trouxe morte por sua desobediência, resolveu obedecer, e sua obediência nos trouxe uma vida perfeita. A perfeição dessa vida se evidencia pelo fato de nunca poder ser perdida. Ainda que nós pequemos nesta vida, a vida que recebemos de Cristo não pode ser perdida. A vida de Cristo tornou-se a nossa vida. Essa vida é chamada de “vida eterna” porque ela nunca pode ser perdida. Adão, antes da queda, embora perfeito na sua constituição, não possuía a vida eterna. Se a possuísse, não a perderia. Deus o criou com a possibilidade (que se tornou realidade) de perder essa vida. Quando somos criados em Cristo Jesus (Ef 2.10), recebemos a vida perfeita, que é resultado da obediência ativa de Cristo (e essa vida eterna é uma comunhão imarcessível), que permanece para sempre em nós. A perfeição dessa vida pode ser percebida à medida que nos santificamos e chegamos ao completamento da nossa salvação. Quando essa salvação se completar, então saberemos o real significado dessa perfeição de vida. Somente aí entenderemos o que significa “vida em abundância”, porque nada dessa presente vida nos afetará mais. Desfrutaremos não somente da perenidade da vida, mas da plenitude dela. Essa perfeição de vida nós teremos claramente manifesta na manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo, quando se dará o completamento de nossa redenção.

APLICAÇÃO A perfeição de Jesus Cristo trouxe perfeição para aqueles por quem ele morreu. O fato de estarmos em Cristo nos torna aperfeiçoados. Portanto:

A. A NOSSA PERFEIÇÃO FINAL É RESULTADO DA OBRA DE JESUS CRISTO Cristo Jesus morreu para que fôssemos perfeitos. A nossa perfeição é resultado daquilo que ele efetuou no calvário. Veja o que o escritor de Hebreus disse: Hebreus 10.10, 14 – “Nessa vontade é que temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas... Porque com uma única oferta aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados.”

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O grande segredo do nosso aperfeiçoamento, para que cheguemos à semelhança de Cristo, segundo a sua humanidade perfeita, está escondido na própria obra de Jesus Cristo por nós e em nós. A obra de Jesus por nós diz respeito ao fato de ele padecer na cruz na oferta de si mesmo a Deus e de Deus ter aceito o seu sacrifício substitutivo e de nos ter visto como santificados em razão do que Cristo fez. Essa é uma obra feita extra nos (fora de nós), uma obra que nos torna perfeitos aos olhos de Deus. A obra de Jesus em nós diz respeito ao que ele está fazendo dentro de nós, operando a santificação progressiva em nós, limpando-nos de nossas impurezas e imperfeições. Essa obra é feita intra nos (dentro de nós), cujos efeitos são percebidos no modo como andamos, falamos e pensamos. Nunca essa obra é conseguida por nós, mas é feita em nós pela ação do Espírito de Cristo. Essa obra de Cristo é conseguida através de um sacrifício feito de uma vez por todas, e o resultado dessa obra é a perfeição permanente daqueles em quem Deus ainda continua trabalhando. Essa obra garante o tratamento bondoso de Deus para conosco e tem um efeito duradouro. Embora Deus nos veja e nos trate como aperfeiçoados em virtude da obra de Cristo, já realizada e terminada, ele ainda está operando o aperfeiçoamento dia após dia, até que o aperfeiçoamento seja completado. Estamos sendo amadurecidos (aperfeiçoados) em cada estágio do nosso desenvolvimento.

B. A NOSSA PERFEIÇÃO FINAL É TAMBÉM RESULTADO DO NOSSO RELACIONAMENTO COM JESUS A nossa perfeição também tem a ver com o nosso relacionamento com Jesus Cristo. A grande perfeição conseguida por Cristo nunca é à parte de nosso vínculo relacional com ele. O trabalho que Deus está fazendo em nós hoje está vinculado ao modo como vivemos nosso relacionamento com o Redentor. Nossa perfeição advém de nossa intimidade com Jesus Cristo. Quanto mais íntimos, mais nos parecemos com ele, e mais a nossa perfeição se acentua. Essa intimidade é vista pelo gosto que passamos a ter pelas coisas de Jesus. Passamos a amar as coisas que ele ama; a obedecer como ele obedece; a fazer as coisas que ele faz. O ditado popular “diga-me com quem andas e dir-te-ei quem és” torna-se uma realidade porque Cristo é refletido em nós quando andamos em companhia com ele. O amor que Cristo nos dedicou na cruz é um amor que continua no seu relacionamento conosco, e esse amor nos constrange. Seu amor provoca em nós uma resposta de amor, e esse seu amor produz em nós alegria, encorajamento, inspiração e motivação para uma comunhão cada vez maior com ele, o Cabeça do corpo, e com os membros do seu corpo, que é a Igreja.

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Sem esse relacionamento com Jesus Cristo, nunca poderíamos conhecer a vontade do Pai e nem saber se o agradamos. É a comunhão com Cristo que nos faz conhecer mais intimamente quem Deus é. Essa comunhão com Cristo nos aperfeiçoa. Não é possível o aperfeiçoamento sem a comunhão com Cristo, sem a experiência relacional com Jesus Cristo, que é a expressão exata do seu Pai. Não há como chegar ao conhecimento do Pai sem que se tenha um conhecimento do Filho, porque este é quem revela aquele. Portanto, o nosso aperfeiçoamento na vida com Deus está intimamente ligado ao nosso relacionamento com o seu Filho, e o nosso aperfeiçoamento em relação aos nossos irmãos também está ligado ao relacionamento com o nosso Irmão mais velho. Como Cristo vive em nós, temos relacionamento com ele, e isso nos faz seres humanos aperfeiçoados. Todavia, essa comunhão relacional é produto da obra de Cristo na cruz, feita uma vez por todas. Não poderia haver comunhão com Cristo à parte da participação de Cristo nas conseqüências dos nossos pecados. Por isso ele foi feito pecado por nós, para que fôssemos feitos justiça de Deus (2Co 5.21). Todavia, o povo de Deus, historicamente, tem se contentado com uma comunhão muito pequena com Jesus Cristo. Por séculos, muitos membros da Igreja têm sido cristãos nominais sem o elemento relacional que os poderia tornar maduros em Cristo. Na verdade, muitos dos cristãos confessionais nominais não passam de indivíduos irregenerados, que não possuem qualquer relacionamento com Jesus Cristo. Por essa razão, a Igreja cristã tem se tornado muito fraca e destituída do poder de impactar a sociedade na qual está inserida. O outro elemento complicador é a fraqueza doutrinária da Igreja, que não dá segurança aos que estão ligados a ela. Muitos líderes da Igreja e teólogos perderam a riqueza da fé cristã bíblica e possuem uma comunhão relacional muito tênue com Cristo. Isso produz uma Igreja longe de ser madura, isto é, aperfeiçoada em Cristo, porque tem se tornado uma Igreja escravizada simplesmente a uma religião externa, sem a doçura da comunhão aperfeiçoadora de Cristo. Todavia, quando os cristãos estão num relacionamento íntimo com Jesus Cristo, eles podem desenvolver algumas perfeições que são típicas de Cristo. Por essa razão, podemos exortar o leitor a ter os mesmos padrões.

1. SEJA PERFEITO NO AMOR, COMO JESUS CRISTO Precisamos aprender a amar como Jesus, porque ele não tem medo de nos perder em virtude do seu amor por nós ser perfeito. Aperfeiçoe o seu amor através do relacionamento com Jesus. Viver com Cristo é o melhor meio para se aprender como amar. O nosso amor, tanto por Deus como pelos nossos irmãos, tem sido imperfeito porque não sabemos amar como convém. Tem sido um amor imaturo, possessivo, um amor que vive com muitos temores. Todavia, veja o que a Escritura nos ensina sobre o amor:

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1 João 4.18 – “No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança for a o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor.”

Jesus amou dessa forma, possuindo um perfeito amor, além do entendimento”, porque é um amor por criaturas não-amáveis, um amor desinteressado, um amor que nada recebeu em troca. Esse é o perfeito amor com que todos nós devemos amar. Esse amor perfeito pode colocá-lo bem acima das leis morais de Deus e dos códigos da Igreja porque o amor perfeito está acima disso tudo. Na verdade, o amor perfeito por Deus é o primeiro e o grande mandamento, e tudo o mais está encerrado por ele.

2. SEJA PERFEITO NO FALAR, COMO JESUS CRISTO Da boca de Jesus Cristo só saíam palavras de graça. Veja o que Lucas observa de Jesus Cristo: “Todos lhe davam testemunho e se maravilhavam das palavras de graça que lhe saiam dos lábios...” (Lc 4.22). Jesus enriquecia interiormente as pessoas com as suas santas palavras. Nesse ponto, nós podemos ser imitadores de Jesus Cristo, pois é o que Deus quer de nós. Paulo insta aos crentes de Éfeso a terem um padrão de sãs palavras, de santa conversação, dizendo: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, e, sim, unicamente a que for boa para edificação, e assim transmita graça aos que ouvem” (Ef 4.29). Jesus nunca tropeçou no falar e de sua boca só saia o que era verdadeiro e puro. Você precisa ser como Jesus Cristo, não tropeçando em palavra alguma, sendo varão perfeito (Tg 3.2). Jesus nunca foi motivo de escândalo no falar porque as suas palavras eram “palavras de graça”. Imite Jesus Cristo em sua perfeição de conversação, não usando palavras impróprias, indevidas, ou mesmo impuras. Honre a Deus, imitando Aquele que honra ao seu Pai celestial, falando aquilo que traz edificação.

3. SEJA PERFEITO EM SUA MATURIDADE, COMO JESUS CRISTO Efésios 4.13 – “... até que cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo.”

Jesus Cristo foi o maior varão de todos os tempos. Além disso, a sua varonilidade foi perfeita. A estatura moral e espiritual do Redentor divino-humano foi a mais elevada de todas. Paulo, então, está tentando levar seus leitores a pensarem de modo elevado. Está tentando impingir neles o desejo de chegar à “estatura da varonilidade de Jesus Cristo”. A “perfeita varonilidade” pode ser entendida como perfeição de maturidade. A

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Igreja de Cristo tem sido composta de homens e mulheres imaturos, cheios de dúvida, cheios de questionamentos e procedimentos infantis, homens e mulheres que são velhos na idade, mas meninos no entendimento. Veja o propósito estabelecido por Paulo de se chegar à “estatura da plenitude de Cristo”: Efésios 4.14 – “para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro.”

Você e eu precisamos ser maduros, aperfeiçoados em todas as coisas importantes da vida. Deixar de ser menino é um imperativo divino. Por “meninos”, aqui, entenda-se “infantis”. Precisamos ser crianças em outras coisas (como ensinou nosso Senhor), mas não podemos ser infantis em nossa vida cristã, sendo inconstantes, cheios de “vontades”, como meninos pirracentos, nem devemos viver cheios de dúvidas, como aqueles que nunca crescem. Para que essa imaturidade (ou imperfeição) não continue, precisamos do apoio e do ministério daqueles que exercem devidamente os seus dons espirituais. Seja perfeito como o seu Redentor. Essa não é uma impossibilidade, porque, na verdade, fomos “predestinados por Deus para sermos conformes à imagem de seu Filho” (Rm 8.29). Você certamente será conformado à imagem de Jesus na glória, porque isso é decreto divino, mas eu estou sugerindo a você que peça a graça divina para andar em conformidade com a Palavra de Deus aqui e agora, a fim de que os outros possam ver refletida em você, ainda neste mundo, a imagem do seu Redentor!

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CAPÍTULO 14 A HONRA E A ADORAÇÃO QUE DEVEMOS AO REDENTOR

O

s cristãos, em virtude daquilo que o Redentor lhes fez, têm alguns deveres em relação a Jesus Cristo. Há muitos deveres nossos para com ele. Todavia, analisaremos, neste e nos próximos três capítulos, apenas alguns desses deveres, que consideramos mais importantes para o desenvolvimento de nossa fé e para o engrandecimento da pessoa do Redentor entre os outros homens. Devido às excelências infinitas da Pessoa do Redentor, os cristãos devem a ela honra e adoração. Afinal de contas, o nosso Redentor é divino, e, como tal, a sua Pessoa merece a nossa adoração, e, se ele merece, sendo credor de nossa adoração, somos devedores dessa atitude para com ele, pois a sua Pessoa é Deus bendito para todo sempre. A Pessoa completa de nosso Redentor, o “Deus manifestado em carne”, sempre será objeto de nossa adoração, em virtude de sua natureza divina. Mesmo quando se fez carne, ele nunca deixou de ser Deus. Existiu historicamente em forma de homem, mas desde sempre já existia em forma de Deus. Por isso, todos os seus irmãos lhe devem a devida honra e adoração.

A HONRA DEVIDA AO REDENTOR A honra ao Filho encarnado, ordenada pelo Pai, está claramente afirmada nas Escrituras: Análise de Texto João 5.23 – “A fim de que todos honrem o Filho, do modo por que honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou.”

O verso transcrito acima diz respeito ao dever que os homens têm para com o Filho em virtude do Filho encarnado receber do Pai a tarefa de ser juiz do mundo. Em João 5.22, é dito que o Pai “confiou ao Filho todo julgamento”, e o propósito disso é que o Filho seja honrado por causa de sua dignidade.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

A. DE QUE CONSISTE ESSA HONRA AO FILHO? Essa honra está descrita e ilustrada nos versos anteriores. Ela diz respeito às coisas que o Pai faz e que o Filho faz semelhantemente (v. 20). João fornece dois exemplos, um no qual o Filho faz o que o Pai faz e outro no qual o Filho faz o que o Pai não faz. Confira. No verso 21 é dito que o Pai “ressuscita e vivifica os mortos”, e também concedeu ao Filho a mesma capacidade de “ressuscitar aqueles a quem quer”. No segundo exemplo o Pai concede ao Filho uma honra que Ele próprio não desfruta – a honra de julgar o mundo, que é atribuída ao Filho. Nessas obras semelhantes às do Pai, que o Filho haveria de fazer, Ele seria honrado pelos homens. O Pai sempre quis que os seus filhos vissem em Jesus Cristo alguém mais do que um homem; quis que os homens o vissem como Ele realmente era: como o Deus encarnado. Essa era a honra final que os homens haveriam de dar-lhe em reconhecimento pelos seus feitos.

B. A HONRA DEVIDA AO FILHO DEVE SER DA MESMA NATUREZA DA DO PAI A igualdade ontológica das pessoas faz com que as pessoas produzam as mesmas obras e, por conseguinte, recebam a mesma honra. Portanto, a mesma natureza da honra é devida à mesma essência das pessoas honradas. Porque Jesus Cristo é homoousios com seu Pai, ele tem direito à mesma honra das criaturas. Se Jesus Cristo não possui a mesma natureza do Pai, as criaturas prestam honra a alguém que não é Deus sendo, portanto, idólatras. A honra que se presta a Deus é devida às suas excelências, suas qualidades infinitas, qualidades essas que não são encontradas em nenhuma criatura. Se o Filho recebesse uma honra menor, Ele seria inferior ao Pai. Lenski diz “que o Pai se negaria a si mesmo se ele tivesse um propósito inferior com relação ao Filho. A Sua verdade exige que onde as Pessoas e a obra são iguais, a honra deve ser igual.”469 Na verdade, a honra é devida à co-essencialidade do Filho ao Pai e não ao fato do Filho ser submisso ao Pai nas suas funções. Não se trata das funções da trindade econômica aqui, mas das relações ontológicas da Trindade, onde cada pessoa é honrada devido à sua identidade divina. Os seres racionais devem a essas duas pessoas da Trindade a mesma honra que é sagrada, religiosa e suprema.

C. A HONRA DEVIDA AO FILHO DEVE SER DA MESMA MANEIRA QUE É DADA AO PAI “A fim de que todos honrem o Filho, do modo por que honram o Pai.” 469. R.C. H. Lenski, The Interpretation of St. John´s Gospel (Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1961), 387.

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Assim como amamos, o temos em altíssima consideração, da mesma forma devemos ter a mesma atitude para com o Filho encarnado. A expressão “do modo por que...”, pode ser entendida como “da mesma maneira por que”. Deus não compartilha a sua honra com nenhum outro indivíduo. Deus diz de si mesmo: “Eu sou o Senhor, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem” (Is 42.8). Todavia, Deus a repartiu com o Filho encarnado, mas esse Filho não é outro, senão o próprio Deus. Essa honra só é repartida com dentro da existência trinitária. Ela é compartilhada pelo Pai e pelo Filho de uma maneira especial. Assim como em nada difere a honra deles, também o modo como honramos as mesmas Pessoas divinas deve ser o mesmo. Todavia, os judeus tinham dificuldade enorme em aceitar Jesus Cristo como sendo da mesma essência do Pai e, por causa disso, não lhe prestavam a mesma honra divina. Os versos que antecedem o nosso texto analisado mostram isso. Veja os versículos 17-18. Eles até podiam honrar Jesus, mas o modo de honra seria apenas o modo como se honra um homem, um profeta, ou um operador de milagres, mas os judeus abominavam a idéia de prestar a Jesus a honra que se presta a Deus. Não obstante, a ordem da Escritura é para que honremos ao Filho do mesmo modo como honramos o Pai.

D. A HONRA DEVIDA AO FILHO DEVE SER DADA POR TODOS “A fim de que todos honrem o Filho.”

A honra deve ser dada por Deus a Cristo pelo simples fato dele ser divino como seu Pai. Pai e Filho devem ser honrados porque possuem a mesma essência. O que um faz, o outro faz também. Não há nenhuma criatura neste mundo que não honrou, que não honra, ou que não venha honrar ao Filho. Mesmo os mais incrédulos haverão de prestar honra ao Filho, porque assim o Pai determinou. Veja o que o Paulo disse: “Pelo que Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp 2.9-11). As criaturas mencionadas no texto certamente se referem a seres humanos que já estão na glória (“nos céus”), que ainda estão neste mundo (“na terra”), e daqueles que estão sob condenação (“debaixo da terra”). Todas elas numa ocasião manifestam honra a Jesus Cristo chamando-lhe de “Senhor”, dobrando seus joelhos diante dele. Quando houver a confissão de Jesus Cristo como Senhor, o Pai levará a glória dessa afirmação, pois foi Ele quem o enviou ao mundo. Nenhuma criatura racional (inclusive os anjos) escapará da honra devida ao Filho encarnado. Mesmo os demônios já se prostraram perante Jesus quando ele ainda estava entre nós. É inescapável essa honra ao Filho por causa desse decreto divino.

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E. A HONRA NEGLIGENCIADA AO FILHO ENCARNADO É DESONRA AO PAI “Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou.”

Esta honra distinta devida ao Filho é uma ordenança do Pai. Devemos obediência ao Pai celeste que ordena que o Seu Filho amado seja honrado, especialmente pelos seus irmãos, mas todo homem é chamado para prestar honra ao Filho. A desobediência a essa ordem do Pai é uma desonra ao próprio Pai. Aqueles que, querendo honrar somente o Pai não honrando ao Filho, desonram aquele a quem querem honrar. A desobediência a Ele é uma desonra para Ele. Não está afirmado no texto “quem desonra o Filho”, “desonra ao Pai” aquele que não honra o Filho. Quando os homens desconsideram o Filho, eles desonram ao Pai, e desconsiderar o Filho é um erro fatal, porque mostram desconsideração pelo Pai que O enviou. Houve vários casos em que os homens pensavam que estavam honrando a Deus, mas acabaram desonrando-o. Um deles se deu quando alguns judeus brigaram com Jesus pela guarda do sábado. Fazendo assim, eles estavam roubando de Deus o direito de honra de fazer do sábado algo de utilidade para o homem. Deus é desonrado quando não prestamos a devida honra a seu Filho. Portanto, honremos a Deus o Pai honrando ao Filho Redentor!

A ADORAÇÃO DEVIDA AO REDENTOR A honra devida ao Redentor é especificada em forma de adoração. Porque o Redentor é Deus e faz as cousas próprias de Deus, devemos adorá-lo.

A. DEFINIÇÃO DE ADORAÇÃO John Owen define a adoração ao Redentor como “a prostração da alma perante ele como Deus, no reconhecimento de suas excelências divinas e da atribuição delas a ele.”470 Há várias palavras usadas na Escritura para expressar a idéia de adoração. O Novo Testamento usa a palavra proskune/w (proskineo), que significa prostrar-se numa atitude reverente de adoração. A adoração traz consigo duas posturas do adorador:

1. A ADORAÇÃO SUGERE UMA POSTURA FÍSICA Geralmente, sempre que vemos a adoração dos crentes no Antigo Testamento, podemos ver uma manifestação física dela, ou um sinal externo dela. Há alguns exemplos na Bíblia desse gesto externo: 470. The Works of John Owen, vol. 1 (Londres: The Banner of Truth Trust, 1987), 107.

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Gênesis 24.26 – “Então se inclinou o homem e adorou ao Senhor.”

a. Postura física natural Por postura física natural, eu quero dizer os gestos espontâneos que todo adorador tem para com Deus em virtude da sua grandeza e da sua majestade, aquelas posturas que não dependem de uma ordenação divina, mas são evidenciadas nos adoradores em virtude da sua pequenez diante da grandeza da Divindade. Essas posturas físicas são próprias da religiosidade de todos os homens, não simplesmente da adoração dos cristãos. Elas são produtos do semen religionis e do sensus divinitatis, coisas de que Calvino tanto fala nas suas Institutas. Os gestos naturais de uma postura física de adoração são levantar os olhos para o céu, levantar as mãos para o céu, ou o jogar-se integralmente no chão. Muitos homens do tempo de Jesus Cristo tiveram esses tipos de posturas diante da majestade os Seus atos e da sabedoria de suas palavras, ainda que não tenham manifestado uma fé salvadora nele.

b. Postura física instituída Por postura física instituída, eu me refiro às posturas ordenadas na Santa Escritura, que, em alguns sentidos, são iguais às posturas naturais de todo adorador. A Escritura recomenda diante do Senhor algumas posturas, como os textos abaixo mostram: Salmo 95.6 – “Vinde, adoremos e prostremo-nos; ajoelhemos diante do Senhor que nos criou.”

O texto acima apresenta duas posturas: o prostrar-se e o ajoelhar-se. Ambas as posturas são uma ordenança da Palavra de Deus aos homens que se aproximam de Deus. São posturas que apontam para uma grande reverência. O que é devido à Divindade foi devido à Jesus Cristo, em virtude de sua divindade. Os homens demonstraram essas posturas externas quando adoraram Jesus Cristo. Em Mateus, é dito que os magos “se prostraram” na adoração ao Menino-Deus (Mt 2.11). A palavra grega para prostrar-se aqui é peso/ntej (pesontes), que dá a idéia de “cair”, ou de botar o rosto em terra. A adoração “de joelhos”471 é uma atitude muito comum dos cristãos com referência a Cristo, que implica numa atitude súplice diante dele, e em reconhecimento diante de seu poder e majestade. Portanto, Jesus Cristo, o nosso Redentor, deve ser o objeto da nossa adoração com esses elementos externos, que devem expressar a verdadeira adoração do co471. Numa determinada ocasião, um soldado, numa atitude de zombaria, fez o que todos os crentes tinham de fazer em reconhecimento da majestade da pessoa divino-humana de Jesus Cristo. Quando os soldados vestiram Jesus de púrpura, cuspiram nele e, “pondo-se de joelhos, o adoravam” (Mc 15.19). Os soldados fizeram em zombaria o que outros já haviam feito como expressão de verdadeira adoração.

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ração. Através dessas posturas externas, solenemente nós expressamos a nossa adoração ao nosso Redentor. Ele é credor de nossa adoração e nós devedores dela, em virtude do que ele é e do que fez.

2. A ADORAÇÃO SUGERE UMA POSTURA ESPIRITUAL Todavia, o gesto mais importante da adoração é a atitude interna que é produto da verdadeira adoração ou da verdadeira prontidão em adorar. Podemos ter os sinais externos da adoração sem, todavia, possuir os sinais internos. Esses últimos é que dão real significado aos primeiros. Daí a ênfase que Jesus deu à adoração do coração, não apenas com as manifestações externas dela, quando criticou os seus contemporâneos: “Este povo honra-me com os lábios [manifestação externa da adoração], mas o seu coração está longe de mim [manifestação interna da adoração].” (Mt 15.8). A postura espiritual é absolutamente necessária para que haja uma verdadeira adoração de Jesus Cristo.

B. A ATITUDE DE ADORAÇÃO A adoração é uma atitude da integralidade do ser humano. Este deve adorar de corpo e alma. Primeiramente, a adoração é uma atitude do coração. É a prostração do homem interior perante Deus quando este reconhece todas as excelências do ser divino. Em segundo lugar, a adoração também é uma atitude do corpo. Nós nos prostramos perante a divindade, dobrando os nossos joelhos (e com o rosto em terra) como é próprio da adoração registrada nas Escrituras. Pode haver esta atitude do corpo, sem haver a atitude da alma, o que vem a ser hipocrisia altamente condenada por Deus. Em caso de verdadeira adoração, a atitude interna geralmente vem acompanhada da atitude externa. É esse tipo de adorador que Deus procura para si, conforme o ensino do próprio Jesus Cristo (Jo 4). Quando existe a atitude externa como produto da atitude interna, existe realmente um verdadeiro reconhecimento da grandeza e majestade da Pessoa adorada assim como da pequenez e da insignificância do adorador. Análise de Texto O texto a ser analisado é o de Apocalipse 5.6-14. Este texto fala de maneira muito clara de algumas coisas que são necessárias na honra de adoração que devemos prestar a Cristo. Esse texto nos dá algumas informações que nos ajudam em nossa tarefa de adoradores comuns dele.

C. O OBJETO DA ADORAÇÃO Há basicamente duas pessoas que são objetos de adoração nos capítulos 4 e 5

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do Apocalipse: Aquele que está assentado no trono (Deus, o Pai) e ao Cordeiro (Deus, o Filho encarnado). Essa adoração ao Filho encarnado significa que ele possui a mesma identidade essencial do seu Pai. Tudo o que é atribuído ao Pai é também atribuído ao Filho. Este e o objeto mais específico da adoração dos coadjuvantes do cenário em foco. Por objeto da adoração eu me refiro ao que é adorado. Juntamente com seu Pai, ele é adorado na consumação de todas as coisas, devido à mesma essencialidade de natureza deles. Todavia, a ênfase neste texto, é a adoração ao Filho, que é o Cordeiro. Quando o Cordeiro, que havia sido morto entre nós, “veio, pois, e tomou o livro da mão direita daquele que estava sentado no trono [o Pai]” (v. 6), “os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro...” (v. 8)

O gesto de “prostrar-se” é claramente o de adoração. Jesus Cristo é o objeto de adoração de todas as criaturas. Por causa da sua co-essencialidade com o Pai, Ele recebe a mesma adoração que o Pai recebe. Ele é uma pessoa distinta do Pai, mas consubstancial com o Pai e, por isso, é objeto da nossa adoração. No texto sob análise, Jesus é visto como alguém que já completou a sua obra mediatorial neste mundo como Cordeiro que já havia sido morto. Ele já não mais funciona como Cordeiro, manso e passivo, mas Ele agora está exaltado na glória de seu Pai, que também é a sua glória, pois é dito que Ele tomou o livro “da mão direita daquele que estava sentado no trono”. O céu é o lugar do trono a essa altura. E Jesus está sentado ao lado do trono, que ele chama de “meu trono” (Ap 3.21). Os cristãos e todos os habitantes do céu, àquela altura, adoração a Jesus Cristo, o Redentor dos filhos dos homens.

D. O MODO DA ADORAÇÃO “os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro... também os anciãos prostraram-se e adoraram” (vs. 8, 14).

Como vimos acima, a prostração é uma atitude solene que os muitíssimos adoradores tiveram para com Jesus Cristo. A palavra “prostrarem-se” usada no texto original é e)/pesan (epesan), tem a idéia de “cair”, de colocar o rosto em terra, numa demonstração de capitulação impotente diante da majestade do Senhor. Daí, a idéia de prostração. O modo como alguém se aproximar de Deus pode indicar os verdadeiros sentimentos do coração. A prostração do corpo nem sempre indica a prostração da alma, mas certamente a verdadeira prostração da alma perante o Senhor leva o

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adorador a curvar-se diante do Adorado. Ninguém irá se aproximar com verdadeira reverência do Redentor glorioso sem que mostre este tipo de adoração: uma adoração com gestos externos de humildade e reconhecimento de impotência diante da Majestade de Jesus Cristo. O modo como nos apresentamos diante de Deus para adorá-lo pode ser indicativo do reconhecimento que temos de Sua majestade. Portanto, qualquer pessoa que esteja diante de um ser tão glorioso, haverá de fazer como os 24 anciãos fizeram. É por isso que a Escritura diz que, no final, “ao nome de Jesus, se dobre todo joelho, nos céus, na terra, e debaixo da terra...” (Fp 2.10). Essa atitude de toda criatura no final dos tempos é semelhante ao prostrar-se. É verdade que nem todos terão uma adoração que envolva um coração amante de Jesus Cristo, mas certamente implica em reconhecimento de sua majestade. A superioridade da qualidade da adoração registrada no Apocalipse está no fato dos adoradores reconhecerem a grande redenção de Jesus Cristo, pois a ênfase é no Cordeiro, o que havia sido morto. A prostração tem a ver com o reconhecimento dessas criaturas pela majestosa obra de redenção e pela autoridade que ele tinha nas mãos de revelar o destino dos homens no livro que estava para abrir.

E. OS ELEMENTOS DA ADORAÇÃO “... prostraram-se diante do Cordeiro, tendo cada um deles uma harpa e taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos, e entoavam novo cântico...” (vs. 8, 9).

Vários elementos serão usados na adoração a Jesus Cristo, no tempo da restauração de todas as coisas. Este texto menciona alguns elementos externos:

1. A MÚSICA TOCADA FOI APRESENTADA “tendo cada um deles uma harpa” (v. 8).

As harpas (ou liras) eram instrumentos de adoração desde os tempos primeiros do louvor entre os hebreus.472 Na verdade, a celebração do nome do Senhor com harpa era uma ordenação divina: “Celebrai o Senhor com harpa” (Sl 33.2), e o salmista fazia questão de louvá-lo com a harpa (Sl 43.4). De todos os instrumentos usados para a adoração divina que são usados na terra, apenas a harpa é mencionada como representante deles, no tempo da adoração gloriosa de Jesus Cristo. Perceba que o texto em foco diz que cada um dos 24 anciãos tem uma harpa nas mãos. É um conjunto de 24 harpas nessa adoração. É significativo que esse mesmo instrumento será tocado por todos os vitoriosos sobre a besta. Note que ali se menciona que essas harpas são de Deus (cf. 15.2), 472. Sl 149; 150.

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que serão usadas para acompanhar o cântico de Moisés e o cântico do Cordeiro (cf. 15.3). Os instrumentos sempre fizeram parte do louvor ao Senhor. “No louvor e na adoração mais diretos a Jeová que foi feito pelos antigos, a harpa parece mais freqüentemente empregada do que qualquer outro instrumento musical, por causa da sua rara combinação de notas solenes, fortes ou suaves, que eram tiradas por um tocador habilidoso.”473

O livro de Salmos insta ao louvor com os instrumentos ordenados por Deus para o louvor do seu nome (cf. Sl 150). A harpa (ou lira) é um dos mais doces dentre eles, e, com especificidade, ela será usada no louvor a Jesus Cristo, por ocasião da restauração de todas as coisas.

2. A MÚSICA CANTADA FOI APRESENTADA “e entoavam novo cântico” (v. 9).

Geralmente, a música tocada é para o acompanhamento da música cantada no meio do povo de Deus, quer neste mundo (Sl 43.4), quer no porvir (cf. Ap 15.2, 3). A música cantada sempre haverá de fazer parte da adoração ao Deus verdadeiro. Deus nunca dispensará o canto humano, pois a vox humana é o instrumento mais perfeito para a adoração do Eterno. Como várias outras expressões do Apocalipse, a expressão “novo cântico” também vem do Antigo Testamento.474 A idéia de “novo” permeia todo o livro do Apocalipse. Observe que João fala do “novo nome (2.17), da nova Jerusalém (3.12; 21.2), do novo céu e da nova terra (21.1) e do espantoso fato de Deus fazer todas as coisas novas (21.5). A palavra grega usada aqui para “novo” é kainos (não neos), e está mais preocupada com a qualidade daquilo que está sendo cantado, do que com a ocasião do canto.475 Provavelmente, a idéia do adjetivo “novo”, aqui, tenha a ver com o modo de cantar dos cristãos, que será novo no sentido de não conter impureza, novo no sentido de não conter falsidade, novo no sentido de jamais ter havido algo semelhante. Certamente, a qualidade do canto e dos cantores é que está em vista no texto. Todavia, não podemos nos esquecer de que o “novo cântico” tem a ver com a redenção consumada. Até àquela altura, nunca esse cântico havia sido cantado, porque a sua redenção não havia ainda sido terminada. Mas, agora, com a redenção completada, o cântico é “novo” porque nunca foi cantado de modo igual! 473. Walter Scott, Exposition of the Revelation of Jesus Christ (Londres: Pickering & Inglis Ltd.), 137. 474. Exemplos: Sl 33.3; 40.3; 96.1; 144.9; 149.1; Is 42.10. 475. Ver Leon Morris, The Revelation of St. John (Tyndale New Testament Commentaries, Grand Rapids: Eerdmans, 1979), 98.

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Todos os cristãos haverão de entoar um novo cântico, e a sua voz soará para sempre em adoração àquele que os remiu de uma vez por todas!

3. AS ORAÇÕES FORAM APRESENTADAS Os vinte e quatro anciãos, como parte da sua adoração, apresentaram perante o Cordeiro “... taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos...” (v. 8).

Essas “taças de ouro cheias de incenso” são lembranças dos tipos do culto do Antigo Testamento (cf. 2Cr 4.22), que eram os incensários, exalando muitos perfumes. Essas taças eram vasilhames ricos que serviam para riquíssimos propósitos: a adoração do Eterno. Agora, esses mesmos instrumentos são parte da adoração dos santos ao Cordeiro no tempo glorioso. O incenso “são as orações dos santos” (cf. Sl 141.2). Scott diz que “as orações na terra eram incenso no céu. Algumas vezes achamos que as nossas orações são sem valor, mas nos enganamos quando pensamos assim. Deus, em seu próprio modo inimitável e em sua rica graça, valoriza os nossos clamores e intercessões, e eles ascendem a ele como incenso”.476 Morris diz que, “na terra, os santos são desprezados e considerados sem importância. No céu, as suas orações são preciosas, sendo trazidas à presença do próprio Deus ao mesmo tempo em que as taças em que elas são oferecidas são de ouro”.477 Certamente, Jesus Cristo considera as orações dos santos aqui da terra como algo muito importante no culto do seu nome, pois esse culto é evidência da sua plena divindade, e desse culto toda a sua Pessoa é objeto. As orações dos santos sempre foram parte do culto a Deus. O texto aponta para o fato de Jesus ser adorado nas orações que os santos lhe fazem, e essa adoração é simbolizada nas “taças de ouro cheias de incenso”. Essas taças, assim como as harpas, são usadas pelos seres humanos, não pelos outros seres viventes.

F. A DIGNIDADE DO ADORADO O cântico dos cristãos começa afirmando a dignidade do Adorado. Veja essa dignidade cantada: “Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação, e para o nosso Deus os constituíste reino 476. Walter Scott, Exposition of the Revelation of Jesus Christ (Londres: Pickering & Inglis Ltd.), 138. 477. Leon Morris, The Revelation of St. John (Tyndale New Testament Commentaries, Grand Rapids: Eerdmans, 1979), 98.

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e sacerdotes; e reinarão sobre a terra... Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor” (vs. 9, 10, 12).

Na honra que as criaturas todas prestavam ao Leão de Judá, a tônica caiu sobre a dignidade do Cordeiro, aquele que realizou a redenção. Das três vezes em que as criaturas cantam, em duas delas aparece a expressão “digno és” (v. 9) e “digno é o Cordeiro” (v. 12). As dignidades mencionadas abaixo são o motivo do “novo cântico” ao Cordeiro:

1. DIGNIDADE PARA TOMAR O LIVRO “Digno és de tomar o livro.”

O Cordeiro achado digno tomou o livro da mão daquele que está assentado no trono (Ap 5.6). Quando aconteceu esse ato, foi que os anciãos cantaram a dignidade do Cordeiro. Pelo que fez, o Verbo encarnado, o Cordeiro, adquiriu o direito de tomar o livro. Aquele que havia sofrido e sido humilhado, agora, adquire a honra de tomar o livro que trata dos destinos homens. Da humilhação, ele é elevado à exaltação de ser Senhor de todos, apontando o destino de todos.

2. DIGNIDADE PARA ABRIR-LHE OS SELOS “Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos.”

Uma pergunta significativa foi feita pelo anjo: “Quem é digno de abrir o livro e de desatar-lhe os selos?” (v. 2). Não havia no céu alguém que tivesse essa dignidade. Não havia sequer alguém que pudesse olhar para o livro (v. 3). João sentiuse desesperado por causa da falta de dignidade das pessoas em abrir o livro, e, por causa disso, ele chorava muito (v. 4). Todavia, João recebeu o consolo de um dos anciãos, que lhe apontou o único que podia abri-lo: o Leão de Judá, vencedor, que era o Cordeiro de Deus (v. 5). Somente o Cordeiro de Deus tinha competência para abrir os selos. Nenhuma criatura quer no céu ou na terra tinha tal competência. Esse livro era “escrito por dentro e por fora, de todo selado com sete selos” (v. 1).478 O livro estava hermeticamente selado, e esses selos apontam para a perfeição dos mistérios de Deus escondidos até o tempo próprio da abertura deles. O livro tinha de ser aberto somente pelo Cordeiro digno, para que os propósitos divinos da história fossem revelados.

478. Esses selos são abertos, e os capítulos subseqüentes de Apocalipse mostram a abertura deles.

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3. DIGNIDADE POR CAUSA DA MORTE “Digno és... porque foste morto.”

Os motivos da adoração ao Filho encarnado (o Cordeiro) são diferentes dos motivos da adoração ao Pai. Geralmente, este é adorado por causa da excelência de sua obra criadora, pois estas manifestam a sua glória. Em Apocalipse 4.11 está claramente afirmado: “Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, porque todas as cousas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas.”.479 O Pai também é adorado por causa do seu amor (por ter enviado o Filho), por causa da sua bondade, por causa da sua graça, e de todas as bênçãos espirituais que se efetivaram em Cristo Jesus (Ef 1.4-5). Por essas coisas, Paulo diz: “Bendito seja o Deus e Pai e nosso Senhor Jesus Cristo...” (Ef 1.3). A adoração do Cordeiro é a mesma, em conteúdo, que a adoração do Pai. Compare as palavras usadas em Apocalipse 4.11 e 5.13, que são as mesmas. Todavia, a diferença entre a adoração de ambos está nos motivos. Na adoração do Cordeiro há outros motivos especiais, motivos que são tipicamente encontrados somente no Cordeiro. Eles estão todos ligados diretamente à sua obra redentora. A dignidade para abrir os selos não era apenas uma questão de dignidade moral, porque também havia anjos santos (sem qualquer impureza) para abrir os selos. A dignidade estava ligada ao mérito do Cordeiro de morrer por causa do seu povo. A dignidade é uma questão de obras dele. Nenhum outro ser poderia ter a dignidade que ele teve, porque ninguém fez o que ele fez. A morte do Cordeiro é lembrada várias vezes pelos santos remidos no Apocalipse como sendo a maior obra que alguém jamais poderia fazer. É a morte vicária da pessoa do Redentor que lhe dá a dignidade de “tomar o livro e de abrir os selos”.

4. DIGNIDADE POR CAUSA DA REDENÇÃO “Digno és... porque com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação.”

A redenção aqui mencionada é o resultado da morte vicária do Cordeiro. Essa redenção é vista em termos comerciais. O Cordeiro “comprou para Deus” gente de toda parte, proporcionando uma redenção de caráter universal! É muitíssimo significativo que você entenda que a compra feita por Cristo é paga ao próprio Deus, não ao diabo. Cristo não comprou o direito de posse das 479. Todavia, não podemos nos esquecer de que todas as três Pessoas da Trindade participaram da criação, especialmente Jesus Cristo, que é o agente dela. No entanto, a obra da criação aqui é mais comumente atribuída a Deus Pai, apenas para fins didáticos.

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pessoas. Elas sempre pertenceram a Deus. A compra foi o pagamento feito por Cristo à justiça divina. Quando o pagamento foi efetuado, pessoas de todas as partes do mundo foram redimidas, isto é, foram livres de ter de pagar as suas próprias penas. Foi a morte do Cordeiro é que libertou pessoas de todas as regiões, e é que lhes garante a vida eterna e a salvação. Jesus Cristo é digno de abrir os selos dos desígnios do mundo e das pessoas por causa da sua morte e do resultado dela, que é a redenção do seu povo.

5. DIGNIDADE DO CORDEIRO QUE CAUSA A DIGNIDADE DOS REMIDOS “Digno és... e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes; e reinarão sobre a terra.”

A dignidade do Cordeiro acaba conferindo algum tipo de dignidade àqueles que foram comprados. Por causa da morte meritória de Cristo, os remidos recebem privilégios especiais de dignidade que dizem respeito ao seu governo sobre o que se passa sobre a terra. Enquanto não há a criação da nova terra, aqueles que morreram em Cristo governam sobre a terra a partir de sua companhia com Cristo no céu. Após o estabelecimento da nova terra, certamente, eles terão um grande domínio sobre a terra, exatamente como Deus havia ordenado que Adão governasse a terra e a subjugasse. Na redenção final, os remidos é que farão a tarefa de dominar a terra plenamente, como co-regentes de Cristo.

6. DIGNIDADE DE RECEBER TUDO O QUE É PRÓPRIO DE DEUS “Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor” (v. 12).

Como Deus-homem (Cordeiro), o Redentor passa a receber toda a honra e adoração que são devidas a Deus. Perceba que há um crescente de adoração. Primeiramente, os seres viventes e os 24 anciãos (v. 8, 9); agora, toda as criaturas que existem no céu e debaixo do céu, na terra e no mar (v. 12). Preste atenção nas palavras usadas para honrar e adorar a Deus no verso 12. Verifique que elas são exatamente as mesmas palavras dirigidas àquele que está assentado no trono. Essas duas Pessoas, objetos da adoração, por causa de sua divindade, recebem a mesma adoração. Contudo, observe que agora não é somente o Verbo eterno que é adorado, mas é a Pessoa completa de Jesus Cristo (o Cordeiro que foi morto) que passa a ser o objeto dessa digna adoração.

G. OS SUJEITOS DA ADORAÇÃO Por “sujeitos da adoração” eu me refiro aos que adoram ao Redentor.

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR “Vi, e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos... Então ouvi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo... também os anciãos prostraram-se e adoraram” (vs. 11, 13, 14).

Esses sujeitos da adoração são todas as criaturas racionais existentes no universo de Deus, pois só estas podem prestar culto a Deus, porque culto é uma expressão que pressupõe inteligência.

1. ADORAÇÃO PRESTADA PELOS ANJOS “Vi, e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono” (v. 11).

É possível que nem todos os anjos estivessem presentes ao redor do trono, mas o texto menciona que os que estavam presentes “eram muitos”. Parece-me que esses anjos são seres santos, pois se regozijam na redenção de pecadores e no sangue do Cordeiro, o que não é próprio de anjos caídos. Barnes diz que os “anjos são apresentados aqui, como em toda parte das Escrituras, como tendo um profundo interesse em tudo o que pertence à redenção dos homens, e não é de se surpreender que eles sejam aqui descritos como se unindo aos representantes da Igreja na prestação de honra ao Cordeiro de Deus.”480

2. ADORAÇÃO PRESTADA PELOS SERES VIVENTES “Vi, e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos” (vs. 11, 14).

Algumas dessas criaturas racionais mencionadas são seres estranhos a nós, especialmente os “seres viventes”, que possuem formas de animais (Ez 1.10; Ap 4.6, 7), e que são seres mencionados por Ezequiel já no seu primeiro capítulo. Suas formas fogem totalmente aos padrões que conhecemos, mas eles são muito citados nas Escrituras. Esses seres viventes participam ativamente da adoração àquele que está assentado no trono (Ap 4.8) e da adoração a Jesus Cristo (Ap 5.11, 12). Embora não possuam praticamente nenhum contato conosco, estão ativos nas regiões celestes.

3. ADORAÇÃO PRESTADA PELOS ANCIÃOS Estes são os representantes do remidos, porque eles são remidos também. João 480. Albert Barnes, Notes on the New Testament – Revelation (Grand Rapids: Baker Book House, 1949), 129.

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menciona, em Apocalipse, que esses 24 anciãos (em tronos de 12 patriarcas e 12 apóstolos – cf. 21.12-14) estão em pé, diante do trono, prestando honra para sempre e sempre a Jesus Cristo. Dentre as criaturas, os anciãos são as mais importantes, porque, por eles, Jesus Cristo morreu, e, como conseqüência, eles prestam adoração ao seu Redentor de maneira constante, honrando também Aquele que está assentado no trono.

4. ADORAÇÃO PRESTADA POR TODA CRIATURA “Então vi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, que estavam dizendo...” (v. 13).

“Toda criatura”, aqui, deve incluir os moradores da terra, os seres racionais que são capazes de adorar a Deus. Certamente, o texto não trata dos animais, pois estes não possuem a capacidade de adorar. Não sabemos aqui se os ímpios estão inclusos nessa adoração. Provavelmente, não. Ainda que eles venham a ser convencidos da majestade de Deus, diante de quem haverão de dobrar os seus joelhos, reconhecendo seu senhorio, para a glória de Deus Pai, a adoração em foco aqui tem a ver com a vitória do sangue do Cordeiro, da qual eles não participarão e nem por causa dela se regozijarão.

H. O NÚMERO DOS ADORADORES “Vi e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos cujo número era de milhões de milhões e milhares de milhares” (v. 11b). “Então vi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, que estavam dizendo...” (v. 13a).

Os seres celestiais e os seres terrenos se uniram para prestar adoração ao Cordeiro. Verifique que todos cantavam numa só voz. Eles cantavam em uníssono, entoando um cântico cantado pelo maior coral de que jamais se terá notícia, misturando vozes angelicais e vozes humanas para louvar ao que está assentado no trono e ao Cordeiro. O desígnio dessa adoração de bilhões de seres é mostrar a harmonia do universo em torno do Adorado. Todos reconhecem a grande obra daquele que é considerado Digno. Primeiramente, no verso 11b, o louvor dos bilhões é mostrado como se dando ao redor do trono, um louvor de caráter celestial. Posteriormente, no verso 13a, o louvor se dá nas duas esferas, no céu e na terra, e o autor nem sequer menciona o número. Se o número de adoradores já era elevado só com os que cantavam nos céus (onde havia apenas 24 anciãos), a segunda menção do louvor inclui os de cima mais os bilhões que estão sobre a terra e o mar. É uma visão indescritível de adoração ao Cordeiro digno!

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I. AS PRERROGATIVAS DO ADORADO Algumas prerrogativas da adoração ao Redentor, que vêm mencionadas abaixo, são produto especialmente (ainda que não exclusivamente) da sua própria natureza divina (v. 13); outras lhe são devidas como reconhecimento de sua obra redentora (v. 12), embora seja difícil distinguir uma coisa da outra. Cabe unicamente ao Adorado, em virtude da sua natureza, receber algumas honrarias, em virtude da sua dignidade: “Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor” (v. 12). “Àquele que está sentado no trono, e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos” (v. 13b).

Perceba que praticamente o mesmo conteúdo de palavras atribuídas ao Deus Pai (Ap 7.12) é atribuído ao Deus Filho encarnado, o Cordeiro, o que aponta para a mesma identidade essencial de ambas as pessoas, o que as torna dignas de adoração. 1. Conforme o verso 12, no cântico dos 24 anciãos e dos seres celestiais, as prerrogativas do Cordeiro são:

1. RECEBER O PODER Obviamente, trata-se do poder (ou autoridade) para governar todas as coisas. É importante lembrar que esse poder que o Cordeiro recebe diz respeito á totalidade da sua Pessoa, não à sua natureza divina. Esta não recebe nada, porque não precisa de algo além daquilo que já possui. É a Pessoa completa do Redentor-Cordeiro que recebe esse poder, pelo qual governa todo o universo. Por aquilo que o Cordeiro fez, ele recebeu a dignidade do governo do universo, que é a honra própria da divindade. Certamente, esse tipo de honra ao Cordeiro também está ligado às outras honras mencionadas abaixo, e, às vezes, é difícil distinguir uma da outra.

2. RECEBER RIQUEZA O que é que Deus não tenha que ele precise receber? O verso 12 não está falando da dignidade do Cordeiro. Como Deus-homem, ele passa a ter a abundância (ou riqueza) de tudo. A natureza humana de nosso Redentor passa a participar de coisas que nenhum ser humano jamais participou em termos gloriosos. O Cordeiro passa a ser reconhecido como aquele que é dono de tudo e diante do qual todos devem se dobrar, porque dependem dele inteiramente. Quando o Redentor se humilhou, embora sendo rico, ele se fez pobre, isto é, ele abriu mão do uso de toda riqueza. Agora, no estado glorioso, ele recebe dos 24 anciãos e seres celestiais o reconhecimento da imensidão da sua abundância.

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3. RECEBER SABEDORIA Quando escreveu sua carta ao crentes de Colossos, Paulo disse que em Cristo “estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Cl 2.3). Ali, na glória, essa sabedoria está plenamente revelada e é reconhecida de todas as criaturas. Ali ele é visto como aquele que recebe toda a plenitude da sabedoria. É importante lembrar que a natureza humana passa a desfrutar do privilégio da sabedoria que é dada ao Cordeiro. Na verdade, essa sabedoria é recebida segundo a sua natureza humana, mas é melhor dizer que a Pessoa toda do Redentor foi contemplada com ela. Barnes diz que essa sabedoria do Cordeiro é “manifesta no enfrentamento dos males da queda; na honra da lei; na mostra de que a misericórdia é consistente com a justiça; e na adaptação do plano total ao caráter e necessidades do homem”.481 Essa sabedoria nenhuma criatura possuiu, mas ela é concedida ao Redentor quando de sua encarnação, e as criaturas reconhecessem, na glória, essa sua sabedoria.

4. RECEBER FORÇA A força da qual o texto fala refere-se possivelmente ao poder de cumprir todos os seus propósitos. Ele não somente tem sabedoria para elaborar os planos, mas força suficiente para executá-los. Nada daquilo que foi planejado pela Divindade pode deixar de ser feito. Jesus Cristo é o executor de todos os planos redentores e julgadores decretados desde a eternidade. Essa força (ou poder) é mostrada no seu domínio sobre todos os elementos da natureza (controle sobre os ventos, sobre o mar, tempestades); essa força é mostrada na sua luta contra as conseqüências últimas do pecado sobre o corpo humano e sobre a alma humana (as doenças e a corrupção); essa força é manifesta na vitória plena que ele tem sobre todos os seus inimigos (a Besta, o Falso Profeta, Satanás e todos os opositores do bem), e no triunfo sobre a sua própria morte. É importante recordar que essa força do Cordeiro lhe é dada para a realização da obra da redenção, e dela a sua humanidade participa, a fim de que todas as coisas sejam feitas pelo Redentor divino-humano.

5. RECEBER GLÓRIA Essa é uma palavra difícil de definir e de ser explicada porque a glória é um dos atributos da Divindade, mas a glória mencionada no verso acima é atribuída ao Cordeiro. Isso, então, quer dizer que o Cordeiro a recebe para (e por causa da) a obra redentora. Barnes diz que essa palavra “é uma atribuição mais elevada de 481. Albert Barnes, Notes on the New Testament – Revelation (Grand Rapids: Baker Book House, 1949), 130.

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louvor do que a palavra honra”,482 que aparece no verso 13, já que as duas palavras ali aparecem juntas.

6. RECEBER LOUVOR A palavra “louvor” (eulogia) significa a mesma coisa que “bendizer” ou “falar bem” a alguém ou a respeito de alguém. Por causa daquilo que o Cordeiro é e fez, ele sempre deverá receber o louvor de todas as criaturas, mas especialmente dos remidos, que são os beneficiários de sua obra. De todos os privilégios mencionados acima, desfrutados pelo Redentor, a sua humanidade também participou. 2. Conforme o verso 13, na adoração de todas as criaturas que existem no céu e na terra, há duas Pessoas da Trindade mencionadas nos versos em destaque. A elas Seja o louvor Seja a honra, Seja a glória, Seja o domínio eterno!

482. Albert Barnes, Notes on the New Testament – Revelation (Grand Rapids: Baker Book House, 1949), 130.

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CAPÍTULO 15 A FÉ QUE DEVEMOS AO REDENTOR

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ma das atitudes do coração humano que mais honra traz a Jesus Cristo, o Redentor, é a confiança nele. John Owen diz que “a fé tem sido o fundamento de toda religião aceitável no mundo desde a entrada do pecado”.483 Não há meio melhor para o pecador trazer honra ao Salvador como a fé nele. Na verdade, ninguém vai adorar ou prestar qualquer tipo de honra ao Redentor se não tiver confiança nele. Portanto, a fé é o elemento indispensável para se ter qualquer relacionamento de dever para com o Redentor, pois a fé é o ponto de partida para qualquer coisa que façamos para agradar a Deus.

A. A FÉ É UM DEVER HUMANO A fé, ainda que seja uma expressão da graça divina no pecador, é um dos deveres mais importantes que um homem tem em relação a Deus. É provável que nenhum outro dever supere o dever da fé, em virtude das bênçãos que advêm dela e das maldições que vêm com a ausência dela. A razão da supremacia da fé é que todos os outros deveres ficam sem sentido se não forem feitos com produto de nossa confiança naquilo que Deus diz e faz. Freqüentemente somos chamados à fé “em Cristo” e em “em seu nome”. Num tom de consolo e, ao mesmo tempo, impondo a sua autoridade sobre os seus discípulos, Jesus lhes disse: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim” (Jo 14.1). Ele ordenou a seus discípulos que cressem nele, assim como haviam crido no seu Pai. A fé dos discípulos é requerida em ambos, no Pai e no Filho, já que essas duas pessoas possuem a mesma essência. O apóstolo João reafirmou o dever de crer em Cristo porser este é um mandamento de Deus: 1 João 3.23 – “Ora, o seu mandamento é este, que creiamos em o nome de seu Filho Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, segundo o mandamento que nos ordenou.”

As duas virtudes gêmeas aqui são consideradas como um mandamento explí483. Owen, The Works of John Owen, vol 1 (Londres: The Banner of Truth Trust, 1987), 120.

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cito de Deus. Nesse texto, a primeira virtude, a fé, é um mandamento em relação a Jesus Cristo; a segunda, o amor, é um mandamento em relação aos irmãos. Para os nossos propósitos, analisaremos somente o mandamento da fé. “João assevera que Deus o Pai dá o mandamento e que Deus inequivocamente nos diz para crer no nome de seu Filho, Jesus Cristo. A ordem é para começar e continuar a crer no nome, a saber, a plena revelação do divino Filho de Deus.”484 Portanto, você e eu temos a responsabilidade de crer em Jesus Cristo, porque ela está baseada numa ordenação divina. Não há como fugir desse mandamento de Deus em relação a Jesus.

B. AS ATITUDES DA FÉ Análise de Texto Crer no Filho de Deus como um dever é um alívio para nossa alma em todas as horas de tribulação. Essa fé não é um mero assentimento da mente, mas, sobretudo, uma confiança do coração. É desse tipo de fé de que Jesus se agrada. Veja a conversa entre Jesus e Marta: João 11.25-27 – “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim, não morrerá, eternamente. Crês isto? Sim, Senhor, respondeu ela, eu tenho crido que tu és o Cristo, o Filho de Deus que devia vir ao mundo.”

1. A FÉ ASSEGURA A VIDA MESMO NA MORTE “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.”

A fé não impede que haja a chamada “morte física”. Esta acontece a todos os homens. A diferença para o que crê, no entanto, é que, mesmo morrendo, ele tem vida. Essa frase de Cristo pode se referir a uma de duas coisas: 1) Pode se referir à ressurreição do crente que morre. Se esse é o caso, Jesus está pensando na morte de Lázaro, que haveria de ressuscitar. Segundo esse conceito, a expressão “viverá” indica que a morte não reterá o crente em seu poder, mas ele será ressuscitado para uma vida verdadeira e de bem-aventurança. Os crentes podem sofrer a morte física, mas serão trazidos a uma vida perfeita de corpo e espírito;485 2) Pode referir-se ao desfrutar da vida com Deus na glória, pois a morte, para o crente, é a porta para a vida plena, na glória. Quem morre como um crente desfruta da comunhão perene com Deus. Creio que essa interpretação é preferível. Certamente, a expressão acima não trata simples e unicamente de Lázaro, mas 484. Simon Kistemaker, James, I-III John (Grand Rapids: Baker, 1986), 318. 485. Alvah Hovey. Comentario sobre el Evangelio de Juan (El Paso, Texas: Casa Bautista de Publicaciones), 291.

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de todos os que morrem no Senhor. Estes desfrutam da bem-aventurança da vida, que é a comunhão imperdível com Deus sem as conseqüências do pecado, que estão presentes nesta existência terrena.

2. A FÉ GARANTE VIDA SEM MORRER NUNCA “... e todo o que vive e crê em mim, não morrerá, eternamente.”

Aquele que, enquanto vive neste mundo, crê em Jesus Cristo não vai experimentar a perda da vida. Quem crê em Jesus Cristo não morrerá jamais, isto é, nunca perderá a vida que adquiriu de Jesus Cristo, que é a ressurreição e a vida. O que vive crendo em Cristo neste mundo nunca haverá de sofrer a separação de Deus, isto é, a morte. Essa morte é a antítese da verdadeira vida. Enquanto a primeira é a separação de Deus, esta última é a comunhão com Deus. A expressão “não morrerá, para sempre” pode ter uma conotação ambígua. Ela pode ser entendida de duas maneiras: 1) Aquele que vive crente neste mundo não morre para sempre, mas vem a viver. Hovey colocou essa idéia de uma outra maneira: “O que vive (fisicamente) e crê em mim, não morrerá (fisicamente) para sempre – a saber, será ressuscitado”.486 Todavia, essa interpretação não é a melhor, porque, todas as vezes em que essa expressão ocorre,487 ela é equivalente a “nunca morrerá”.488 2) A não ocorrência da morte espiritual para o que vive em fé aqui neste mundo. Ainda que um crente passe pela morte física, ele nunca (eternamente) será separada de Deus. Essa é a vida eterna adquirida pela regeneração e o conseqüente novo nascimento, sendo desfrutada conscientemente por todo aquele que crê em Cristo.

3. A FÉ CONFESSA QUEM É JESUS “Crês isto? Sim, Senhor, respondeu ela, eu tenho crido que tu és o Cristo, o Filho de Deus que devia vir ao mundo.”

Depois da explicação, Cristo perguntou a Marta: “Crês isto?”. Nessa pergunta está a preocupação de Cristo de que todos os seus venham a crer nele e em suas verdades. Marta não teve como escapar de uma resposta positiva à pergunta de Jesus. Então, ela faz uma confissão de sua fé de quatro maneiras:

a. Marta confessa o senhorio de Jesus “Crês isto? Sim, Senhor, respondeu ela.”

Mesmo numa situação de extrema dificuldade para a sua família, Marta diri486. Alvah Hovey. Comentario sobre el Evangelio de Juan, 291. 487. Veja João 4.14; 8.51, 52; 10.28; 13.8. 488. Alvah Hovey. Comentario sobre el Evangelio de Juan, 291.

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giu-se a Jesus chamando-o de kurios (Senhor). Essa palavra pode ser usada de várias maneiras, mas aqui ela se aplica ao real senhorio de Jesus Cristo, pois Marta havia dito: “Se estiveras aqui o meu irmão não teria morrido” (v. 21), apontando para o domínio de Jesus Cristo sobre a vida e a morte. Ela sabia quem o amigo da família era.

b. Marta confessa a messianidade de Jesus “eu tenho crido que tu és o Cristo.”

Além do que foi dito acima, a fé de Marta em Cristo levou-a a ver uma outra faceta do amigo da família. Ela teve luz para enxergar nesse amigo da família, o esperado de muitas gerações – o Messias prometido, o ungido de Deus. A palavra Cristo é a versão grega do messias hebraico. Ela não pestanejou em dizer: “Tu és o Cristo”. Ela tinha certeza absoluta da sua messianidade, coisa que muitos do seu tempo duvidaram, ainda que algumas colunas da Igreja o tenham confessado.489

c. Marta confessa a divindade de Jesus “eu tenho crido que tu és o Cristo, o Filho de Deus.”

Depois das duas afirmações acima (do Senhorio e da Messianidade), agora Marta acrescenta mais uma confissão a respeito do amigo da família: ela confessa a sua divindade. Ela o chama de “Filho de Deus”, o que equivale a chamá-lo de Deus. Isso é extraordinário! Não é pouca coisa reconhecer num “amigo mais chegado que um irmão” a sua divindade. É somente por graça divina, por adquirir olhos espirituais, que alguém é capaz de fazer declaração tão clara da divindade de Jesus Cristo!

d. Marta confessa a necessidade da encarnação do Filho “O Filho de Deus que devia vir ao mundo.”

Marta revela um conhecimento dos planos revelados de Deus porque certamente conhecia as Escrituras. Ela sabia que o Filho de Deus deveria vir ao mundo porque, desde o princípio da revelação salvadora, Deus vaticinou a chegada do Messias. Se o Filho de Deus “devia vir ao mundo”, é porque Marta conhecia a necessidade da encarnação, ainda que não soubesse declarar essas coisas usando um vocabulário de precisão teológica. Todavia, ela declarou a necessidade da encarnação do Verbo para a redenção e vida dos homens que estavam mortos. A situação de morte e tristeza do quadro de João 11 indica a visão teológica (mas não enfatizada pelos comentadores) que Marta possuía em virtude de sua fé no Filho de Deus. 489. Cf. André (Jo 1.41) e Pedro (Mt 16.16).

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Marta confessa uma fé constante. Ela não fez uma descoberta daquele momento de dificuldade. Ela já vinha acompanhando a vida daquele amigo por alguns anos. Ela já o havia ouvido em outros pronunciamentos, em outras operações miraculosas, e, além disso, ela o conhecia na intimidade da sua família. Ela conhecia o seu procedimento dele e a majestade da sua personalidade. Por essa razão, ela professa uma fé continuada, uma fé que já havia nascido há muito tempo na sua alma. Não foi sem razão que ela disse “tenho crido”, uma expressão que aponta para uma fé amadurecida, e, portanto, inabalável no Filho de Deus encarnado.

C. A BASE DA FÉ NO REDENTOR É A IGUALDADE DE NATUREZA DELE COM SEU PAI Jesus Cristo apela aos seus discípulos para crerem nele tomando como base a igualdade de natureza que existe entre o Pai e o Filho. Análise de Texto João 14.9-11 – “Disse-lhe Jesus: Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim, vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai que permanece em mim, faz as suas obras. Crede-me que estou no Pai, e o Pai em mim; crede ao menos por causa das mesmas obras.”

A fé como um dever pode ser vista no diálogo entre Jesus Cristo e Filipe, onde este último é chamado a crer, no verso 11. A base dessa chamada à fé no Pai e no Filho está afirmada nos pontos a seguir:

1. A IGUALDADE DE NATUREZA ENTRE ELES “Quem me vê a mim, vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?”

A linguagem usada por Jesus Cristo aqui “é totalmente inconsistente com a sua concepção como um mero ser humano ou como um embaixador sobre-humano de Deus”.490 Obviamente, Jesus não está falando aqui da sua aparência exterior nem da sua natureza humana, porque é exatamente nas coisas próprias da humanidade é que ele difere de seu Pai. Jesus está se referindo à sua natureza divina e ao modo divino como ele se portava, e que Filipe bem conhecia. A natureza divina do Filho poderia ser percebida pelos pensamentos de Deus que ele tinha, por sua sabedoria inigualável, por sua compaixão infinita. Filipe tinha vivido com ele por quase três anos, mas ele 490. Lyman Abbott, Illustrated Commentary on the Gospel According to St. John (Nova York: A. S. Barnes & Company, 1888), 175.

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ainda estava cego para essas coisas. O que Jesus estava tentando dizer a Filipe é que o seu próprio modo de vida refletia o modo de Deus. Ele era o espelho ou a reflexão daquele a quem Filipe queria ver. Ele era a expressão exata do ser de Deus (Hb 1.3). Quando Filipe estava vendo Cristo, ele deveria ver Deus, porque ambos, o Pai e o Filho, são da mesma natureza essencial. É impressionante como as pessoas não conseguem ver a luz quando ela está claramente brilhando junto a elas! O problema do ser humano é a cegueira interna que o impede de ver a realidade. Essa realidade mostra que a revelação divina não faz com que, necessariamente, as pessoas discirnam Deus. É necessária uma obra do Espírito de Deus para que as pessoas possam compreender as realidades de Deus. Filipe precisava das graciosas lentes espirituais para poder discernir a divindade do Filho, ou a sua identidade essencial com seu Pai. Muitos daquele tempo padeciam do mesmo mal de Filipe, mas essa ignorância não isenta os homens do dever de crerem no Filho de Deus. O que Jesus disse a Filipe era que ele deveria crer no Filho como cria no Pai exatamente porque o Filho refletia perfeitamente a essência do seu Pai. A fé na primeira Pessoa implica necessariamente na fé na segunda, em virtude da igualdade de natureza entre elas.

2. A IGUALDADE DE PALAVRAS E DE OBRAS “As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai que permanece em mim, faz as suas obras. Crede-me que estou no Pai, e o Pai em mim; crede ao menos por causa das mesmas obras.”

As mesmas obras são o resultado evidente da mesma essencialidade do Filho com seu Pai. O argumento de Jesus mostra o óbvio. Disse-lhe Jesus: “Crede-me ao menos por causa das mesmas obras”. É como se Jesus tivesse dito: “Se você não entende conceitualmente a minha identidade essencial com meu Pai, pelo menos creia pelos resultados. O que eu faço é exatamente o que ele faz. Não existe diferença entre mim e meu Pai. Creia em mim ao menos com base na observação das mesmas obras. É só você olhar para o passado, ver o que meu Pai fez, e olhar para o que eu faço hoje”. O argumento implícito de Jesus tem a ver também com as suas palavras: as palavras de Jesus eram as palavras de Deus. Não havia qualquer diferença nos conceitos que ambos tinham das mesmas coisas. Conversar com um era a mesma coisa que conversar com o outro. De ambos vinha o mesmo conteúdo santo, sábio e justo. Todavia, Filipe tinha dificuldades para compreender essa realidade. Ainda assim, ele tinha o dever de crer em Cristo, ao menos por causa das mesmas palavras, assim como ele dizia crer no Pai. Esse foi o raciocínio de nosso Redentor, e não podemos pensar sobre a necessidade da fé menos do que o nosso Redentor!

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3. A HABITAÇÃO MÚTUA “Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai que permanece em mim, faz as suas obras.”

Filipe precisava crer nessa grande verdade, pois ele ainda não cria. Por essa razão, Jesus lhe perguntou: “Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?”. Essa habitação mútua entre Pai e Filho está além de nossa compreensão. Hendriksen diz que “a razão não pode penetrar esses mistérios. O monoteísmo judaico se nega a aceitar a possibilidade de que a essência divina possa se manifestar em mais de uma pessoa divina. Só a fé cristã pode crer assim”.491 Como judeu, certamente essa verdade Filipe nunca compreenderia. Daí a razão da explicação a seguir: “As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai que permanece em mim, faz as suas obras...”. A expressão eu estou no Pai e que o Pai está em mim só faz sentido se ambas as pessoas possuem a mesma essência. Não pode haver uma habitação de interpenetração de Pessoas quando ambas são essencialmente diferentes. Somente a identidade essencial é que permite que esse mistério seja realizado. O Pai e o Filho “não existem à parte como indivíduos ou entidades, como o são os indivíduos humanos, mas um no outro e um por meio do outro, como momentos de uma única vida divina auto-consciente”.492 Ainda que essa verdade seja um mistério para a razão humana, é dever do homem crer que o Pai e o Filho exerçam essa habitação mútua, em virtude da mesma identidade essencial deles. Em resumo, na passagem acima de João 14.9-11 é como se Jesus tivesse dito aos seus discípulos: “Se vocês crêem no Pai, por que não crêem em mim? Somos da mesma natureza. O que vocês devem a ele, vocês devem a mim.”. Não é uma fé dupla, mas a mesma fé num mesmo Deus.

D. A FÉ DEVE SER COLOCADA NO ENVIADO DE DEUS No Antigo Testamento, a fé em Deus era exemplificada na fé que se tinha na palavra profética. Os israelitas eram encorajados a crer em Moisés, pois ele era o enviado de Deus, o que falava as palavras de Deus. Por isso é dito que o povo “confiou em Deus, e em Moisés, seu servo” (Êx 14.31). Os profetas antigos eram objeto da confiança do povo, pois eles eram os porta-vozes de Deus (cf. 2Cr 20.20). Crer nos profetas de Deus era a mesma coisa que crer em Deus. Na verdade, a fé não era nos profetas em si mesmos, mas nas palavras que eles diziam da parte de 491. Guillermo Hendriksen. El Evangelio Segun San Juan (Grand Rapids: Subcomision Literatura Cristiana, 1981), 543. 492. Ibid., 543.

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Deus. Em razão disso, Paulo perguntou ao rei Agripa: “Crês tu nos profetas?” (At 26.27). Paulo cria que os profetas eram enviados de Deus, e que as palavras dos profetas eram palavras de Deus. Assim, Jesus Cristo, sendo o maior e o mais importante dos enviados de Deus, deve ser objeto da nossa fé. Damos honra a Deus quando ouvimos o maior dos seus profetas. Crer em Cristo é crer no máximo que podemos conhecer de Deus porque ele veio revelar quem era o seu Pai, sendo a expressão exata dele.

APLICAÇÃO GERAL A. VEJA QUEM SÃO OS QUE NÃO CRÊEM NO REDENTOR Muitos são chamados pela pregação da Palavra, mas poucos recebem Cristo como o seu Redentor. João (seguido de Paulo) é o escritor que mais trata do elemento fé em Cristo na Escritura. Os textos que vamos comentar abaixo são retirados do Evangelho de João. A fé em Cristo Jesus é um elemento fundamental na “teologia” do apóstolo. Na verdade, todas as coisas que foram registradas por ele foram registradas para que os homens creiam que Jesus é o Filho de Deus, e, crendo, tenham vida no seu nome (cf. Jo 20.31). Por essa razão, o elemento incredulidade também é parte importante das advertências de João. Esse escritor sagrado é o único que, corajosamente, fornece as razões porque muitas pessoas não crêem no Redentor. Há várias razões mencionadas na Escritura pelas quais das quais nem todos os pecadores vêm a Cristo.

1. OS QUE NÃO DÃO OUVIDOS ÀS ESCRITURAS Um dos grandes problemas do tempo em que vivemos é que o Cristianismo em geral não enfatizou a necessidade de crer nas palavras de Cristo. É muito comum vermos personagens famosos afirmarem que crêem em Cristo, mas eles não têm nenhuma disposição de crer em suas palavras. Essa é uma parte da pregação que precisa ser trazida de volta para o cristianismo contemporâneo. É importante que as pessoas saibam que não é possível crer em Jesus Cristo sem crer naquilo que as Escrituras dizem a respeito dele. Observe o que Jesus Cristo diz do testemunho que a Escritura dá sobre ele: João 5.46, 47 – “Porque se de fato crêsseis em Moisés, também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito. Se, porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?”

Os judeus, na tentativa de desautorizar Jesus Cristo, sempre apelavam para Moisés, o maior dos profetas, segundo eles. Jesus, em sua sabedoria invencível, usou o próprio Moisés para argumentar sobre a fé nele. Se os judeus cressem de

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fato em Moisés, certamente eles haveriam de crer em Cristo, porque Moisés foi um dos principais do Antigo Testamento a testificar do Messias, “um profeta semelhante a mim. Quem nele crer não será confundido” (Dt 18). Se os judeus dessem crédito às Escrituras, eles também creriam em Jesus. Portanto, é clara a afirmação de que quem não crê nas Escrituras não pode crer em Jesus Cristo, por causa da impossibilidade de crer nas palavras de Cristo. A descrença nas Escrituras é a descrença em Cristo. Por isso, muitos não crêem realmente em Cristo. Perceba que o próprio Jesus conecta a crença nele e em seu Pai com a crença nas Escrituras: João 5.38, 39 – “Também não tendes a sua palavra permanente em vós, porque não credes naquele a quem ele enviou. Examinais as Escrituras porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim.”

O verso 38 afirma explicitamente que não cremos em Jesus Cristo porque não temos a palavra de Deus em nós. Deus o Pai, que enviou Jesus Cristo, testifica em suas palavras quem o Filho é que atitude os homens devem ter para com ele. O verso 39 afirma categoricamente que as Escrituras é que testificam de Jesus Cristo. Não podemos colher qualquer informação confiável sobre Jesus Cristo fora das Escrituras do Antigo e do Novo Testamento. A fé em Cristo implica na fé no testemunho que Deus dá, em sua Palavra, de Jesus Cristo. Portanto, não crêem em Jesus Cristo aqueles que não aceitam a Palavra de Deus. A única maneira de se apossar da vida eterna é crendo nas palavras de Deus que testificam de Jesus Cristo. Fora dessa fé não há possibilidade de se crer verdadeiramente em Jesus Cristo. Não é possível crer numa pessoa quando não se crê nas suas palavras. Logo, quem não crê no que as Escrituras dizem sobre Jesus Cristo e no próprio testemunho que Jesus Cristo deu de si mesmo na Escritura certamente não crê nele.

2. OS QUE NÃO POSSUEM O AMOR A DEUS João 5. 42-44 – “Sei, entretanto, que não tendes em vós o amor de Deus. Eu vim em nome de meu Pai e não me recebeis; se outro vier em seu próprio nome, certamente o recebereis.”

Recorde-se de que, nos versos anteriores, Jesus estava falando do testemunho das Escrituras (vs. 38, 39). Agora, ele afirma de maneira clara que aqueles que não recebem o testemunho de Deus são os que querem a glória dos homens, mas não a glória que vem do Deus único. A razão para eles não quererem o testemunho que vem de Deus e de não quererem a glória de Deus é porque eles não têm em si mesmos o amor de Deus. Na verdade, esse “amor de Deus” deve ser traduzido como “amor a Deus”, “pois o contexto que se segue claramente mostra que se trata

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de um genitivo objetivo (‘em vós’)”.493 A ausência do amor a Deus neles fez com que eles não recebessem (ou “não cressem”) naquele que vinha em nome do Pai. Porque eles não possuíam amor pelo Pai, eles não criam no Filho. Só quem ama o Pai crê no Redentor. “A falta de amor sempre produz cegueira. Não foi falta de evidência, mas falta de amor que fez com que esses homens recusassem a Cristo”.494 Se você não tem um amor real por Deus, você não crerá no Filho de Deus, o Redentor. A ausência do amor a Deus é uma impossibilidade para a fé em Cristo. Como em todas as gerações, há muitos que não recebem a Cristo porque, na verdade, não têm amor por Aquele que o enviou. Eles recebem uma outra pessoa, que é enviada por homens, mas não recebem aquele que é enviado do Pai. A falta de amor a um é a razão da ausência de fé no outro.

3. OS QUE PROCURAM A GLÓRIA DOS HOMENS João 5.44 – “Como podereis crer, vós os que aceitais glória uns dos outros, e contudo não procurais a glória que vem do Deus único?”

A idéia geral do verso não é simplesmente que muitos dos judeus não criam, mas, sobretudo, que eles não podiam crer. Havia neles uma impossibilidade de fé no Redentor. Ela está ligada à atitude que os incrédulos têm em virtude do seu amor à opinião dos homens a respeito deles. “Um espírito egoísta que bebe da taça dos aplausos humanos e nela sempre quer beber mais abundantemente não estará disposto a se ajoelhar diante de Cristo nem aceitará a verdadeira vida dele. ‘O temor ao homem armará ciladas’ [Pv 29.25], e o amor ou louvor humano faz o mesmo.”495 Essas pessoas são condenáveis porque aceitavam o testemunho de homens, mas não o testemunho de Deus, procuravam a glória dos homens e não a glória de Deus. Na verdade, a glória de Deus de que o texto fala é Jesus Cristo. Por essa razão, eles não poderiam crer: porque eles procuravam a glória humana. O verso anterior diz que os judeus costumavam receber pessoas que vinham a mandado de outras pessoas, mas não aquele que vinha da parte de Deus. Essa impossibilidade de fé está relacionada ao ponto anterior, que é a falta de amor por Deus. Quem não o ama, não aceita a glória que vem dele. Você tem de procurar a glória que vem do Deus único. Essa glória é Jesus Cristo. Se você não quer a glória que vem do Pai, você não poderá crer em Jesus.

4. OS QUE NÃO PERTENCEM A DEUS Em pelo menos dois textos o próprio Jesus dá a razão para a incredulidade de 493. Guillermo Hendriksen, El Evangelio Segun San Juan (Grand Rapids: Subcomisión de Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1981), 223. 494. Ibid., 224. 495. Alvah Hovey, Comentario sobre el Evangelio de Juan, 187.

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alguns daqueles que escutavam a sua pregação e o seu ensino. Se Jesus cria assim, assim também devemos crer. João 8.45-47 – “Mas, porque vos digo a verdade, não me credes. Quem dentre vós me convence de pecado: se vos digo a verdade, por que razão não me credes? Quem é de Deus ouve as palavras de Deus; por isso não me dais ouvidos, porque não sois de Deus.”

Jesus sempre falou a verdade àqueles que o seguiam. Muitos o seguiam pelas mais variadas razões, mas nem todos criam nele, ainda que eles soubessem que as palavras de Jesus eram a verdade de Deus. Jesus sempre pregou a verdade, somente a verdade, e nada mais do que a verdade. Não havia dúvida nos seus ouvintes sobre a clareza da linguagem verdadeira de Jesus. “Se estava tudo claro, por que nem todos os homens crêem em Jesus Cristo? A simples inteligência faria essa pergunta, que foi feita pelo próprio Jesus, para esclarecer a atitude dos seus ouvintes em relação a si mesmo. Foi uma pergunta feita que exigia uma resposta clara e inequívoca: ‘Por que razão não me credes?’”. Sem fazer rodeios e sem dar explicações das razões últimas das coisas que vai falar, Jesus lhes disse face a face da razão da incredulidade deles: eles não davam ouvidos a Jesus porque eles não pertenciam a Deus. A simples apresentação da verdade não torna uma pessoa capaz de crer. A fé em Cristo exige algumas atitudes e ações prévias de Deus. Primeiramente, a pessoa que está para crer precisa pertencer ao povo de Deus, fazer parte daqueles a quem Deus propôs salvar. Eu sei que isso é contestado por muita gente do círculo evangélico, mas é uma realidade inegável. O próprio Jesus tratou desse assunto logo a seguir. Veja o que ele disse: “Mas vós não credes porque não sois das minhas ovelhas” (Jo 10.26). A fim de que creiam, as pessoas precisam pertencer ao rebanho de Deus. Todavia, tanto em João 8 como em João 10, é mencionada a razão pela qual uma pessoa ouve a palavra de Cristo e crê: João 8.47, diz: “quem é de Deus, ouve as palavras de Deus; por essa razão não me dais ouvidos, porque não sois de Deus.” A fé vem para aqueles que pertencem a Deus, ou, para colocar essa matéria com palavras diferentes, segundo João 10.28, a fé vem para aqueles que pertencem ao rebanho de nosso Senhor Jesus Cristo, porque, segundo ele, “as minhas ovelhas ouvem a minha voz”. Portanto, uma pessoa não se torna parte do rebanho por crer, mas crê porque é parte do rebanho. Esse ensino é incontestável. Só não enxerga quem não tem olhos para ver, ou quem ainda não foi iluminado pela graça para entender esta parte da verdade sobre a incredulidade. Não estranhe o fato de que muitos que escutam a pregação verdadeira não venham a crer. É verdade que essas pessoas são pecadoras, e que elas carecem da ação do Espírito Santo para que venham ao entendimento e à fé na verdade. Todavia, o Espírito Santo concede essas coisas às “suas ovelhas” e aos que “pertencem a Deus”.

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Pondere sobre esse assunto com santa humildade e reverência e levante as mãos para o céu porque você crê em Jesus Cristo em virtude do fato de você ser parte do rebanho do Senhor e de pertencer a Deus.

5. AQUELES QUE ANDAM COM ELE, MAS NÃO ACEITAM SUA DOUTRINA João 6.66 – “À vista disso, muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele.”

A fim de entendermos esse verso, precisamos dar uma boa olhada nos versos anteriores. Em todo o capítulo 6, Jesus está tratando de algumas doutrinas fundamentais da soterologia e da antropologia. No ensino soterológico, ele fala diversas vezes sobre ser ele o pão do céu e da necessidade de comer do seu corpo e beber do seu sangue (vs. 31-59). Esse assunto soterológico era estranho para os seus discípulos. A salvação, para eles, tinha uma outra conotação, provavelmente a salvação pelo mérito, vinculada com as boas obras, mas Jesus contesta esse tipo de ensino e atribui a salvação a uma apropriação pela fé. O ensino de Jesus sobre a salvação não caiu bem aos ouvidos deles. Por essa razão, quando Jesus acabou de tratar dessa matéria dessa matéria, “muitos dos seus discípulos, tendo ouvido tais palavras, disseram: Duro é este discurso, quem o pode ouvir?” (v. 60). No ensino antropológico, o ensino foi ainda mais forte. Várias vezes, em João 6, Jesus fala da incapacidade humana de vir a ele (cf. 6.44, 45, 65) e que o homem vem a Cristo (o mesmo que crer nele) somente quando é trazido pelo Pai (cf. 6.37). Quando Jesus terminou o seu ensino sobre a condição humana, pasmem os meus leitores, os seus próprios discípulos reagiram à sua antropologia. Eles não concordaram com a sua doutrina sobre a corrupção humana e sua incapacidade. Portanto, não concordaram com o ensino de Jesus Cristo que mais tarde foi conhecido na história da Igreja como “agostinianismo” e, ainda mais tarde, como “calvinismo”. “À vista disso, muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele”. Eles rejeitaram Cristo, porque rejeitaram a sua verdade. A fé em Cristo pressupõe fé na sua doutrina. Quem não concorda com as palavras de Jesus Cristo não crê nele. Aliás, nessa matéria, “nem mesmo os seus irmãos criam nele” (Jo 7.5). Nesse ponto, é importante alertar aos leitores que mesmo um discípulo pode rejeitar a verdade por não concordar teologicamente com ela. Portanto, peçam a Deus a graça de poderem crer em Cristo crendo na sua santa doutrina.

6. OS QUE ESTÃO INCAPACITADOS ESPIRITUALMENTE João 12.37-40 – “E embora tivesse feito tantos sinais na sua presença, não creram nele; para se cumprir a palavra do profeta Isaías, que diz:

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‘Senhor, quem creu em nossa pregação? Por isso não podiam crer, porque Isaías disse ainda: Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos nem entendam com o coração, e se convertam e sejam por mim curados.”

Essa é outra passagem que bate de frente contra os que sustentam pensamentos libertários nos homens. Há duas coisas importantes que devem ser analisadas com respeito à incredulidade dos homens:

a. Incapacidade de crer diante da manifestação miraculosa João 12.37 – “E embora tivesse feito tantos sinais na sua presença, não creram nele.”

No texto em questão, Jesus Cristo estava tratando primeiramente dos sinais que ele havia feito na presença deles, mas esses sinais não os levaram à fé. Em si mesmos e de si mesmos, os milagres nunca causam fé nas pessoas. Veja o que Moisés disse da parte de Deus ao povo que havia contemplado todas as manifestações miraculosas e reveladoras de Deus: “Tendes visto tudo quanto o Senhor fez na terra do Egito, perante vós, a Faraó, e a todos os seus servos, e a toda a sua terra; as grandes provas que os vossos olhos viram, os sinais e grandes maravilhas; porém o Senhor não vos deu coração para entender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir, até o dia de hoje” (Dt 29.2-4). Os homens do tempo de Moisés, a despeito de serem parte do povo de Israel, não tiveram a capacidade de crer nas manifestações espetaculares de Deus. Não pensem os meus leitores que os milagres do Novo Testamento possam levar alguém à fé, embora Jesus Cristo tenha feito os milagres para que as pessoas cressem nele (Jo 20.30, 31). O verbo “crer” está no imperfeito, e deveria ser melhor traduzido como “não criam”, o que indica uma falta de vontade constante e progressiva porque, mesmo vendo tudo o que viram Cristo fazer, não tinham nenhuma disposição de crer. Todavia, sabemos que, por detrás da incredulidade dos homens, está uma incapacidade causada pela cegueira dos olhos e pela dureza de coração. Por essa razão, muitos, hoje, ainda que vejam sinais e maravilhas, não virão a Cristo para a salvação de sua vida. Eles podem gostar e achar maravilhosos os sinais, como aconteceu com a multiplicação dos pães, e podem se interessar por Jesus por causa dos benefícios imediatos, mas os sinais em si mesmos não geram fé porque a indisposição espiritual dos homens para com Jesus Cristo é incapacitadora.

b. Incapacidade de crer diante da pregação João 12.38-40 – “... para se cumprir a palavra do profeta Isaías, que diz: ‘Senhor, quem creu em nossa pregação? ... Por isso não podiam

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR crer porque Isaías disse ainda: Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos nem entendam com o coração, e se convertam e sejam por mim curados

A incapacidade dos homens não era somente a de crer nos milagres, mas também a de crer na pregação de Jesus. Jesus toma o texto de Isaías 6 e o aplica ao tempo da sua pregação. Lembre-se de que, nos tempos do Antigo Testamento, a incapacidade é a mesma dos tempos do Novo Testamento. A impotência humana fica evidente pelas razões apresentadas no verso 40. Jesus afirma a impossibilidade de fé naqueles que ouviam a palavra da pregação, pois ele diz: “por isso não podiam crer”. Quais as razões pelas quais eles não podiam crer, segundo o texto em estudo? As incapacidades mencionadas abaixo são da mesma natureza. São duas maneiras de dizer da mesma verdade:

(1) Eles tinham cegueira espiritual Quando Jesus usa o texto de Isaías, ele muda os imperativos de Isaías (cf. Isaías 6.9, 10) para o modo indicativo passado, “cegou-lhes os olhos”, porque a profecia de Isaías havia alcançado o tempo do seu cumprimento na profecia messiânica.496 Certamente a expressão “cegou-lhes os olhos” aponta mais para os milagres do que para a pregação. Eles tiveram olhos para ver aquilo que Jesus fazia. “A cegueira dos olhos tinha como propósito que o povo não pudesse ver as ações poderosas de Cristo como os sinais, os quais apontavam para ele como o Filho de Deus, o Cristo. Tal como nos tempos de Isaías, assim também agora o Senhor havia endurecido o coração do povo, como este propósito em mente, a saber, para que não pudessem perceber o significado de sua pregação.”497 Os olhos deles estavam cegados à verdade tanto dos milagres como da própria pregação. Eles não conseguiam ver em Jesus o Messias, o Cristo. Portanto, eles eram incapazes de crer naquela pessoa a quem contemplavam e ouviam. A venda não foi retirada deles, e, assim, eles permaneceram como que cegos sem a possibilidade de ver a realidade espiritual.

(2) Eles tinham indisposição espiritual Os incrédulos não somente tinham os seus olhos cegados, mas também os seus corações endurecidos. Para Deus endurecer o coração dos homens, ele não precisa fazer alguma coisa neles. Simplesmente ele deixa de agir neles, deixando de lhes dar a graça regeneradora e iluminadora. Os homens são endurecidos quando Deus os entrega a si mesmos, quando Deus os abandona sem amaciar-lhes o coração. Essas pessoas nunca vão ser saradas de suas enfermidades espirituais, porque essas coisas são prerrogativas de divinas no homem. Isso significa que, quando Deus 496. Guillermo Hendriksen, El Evangelho Segun San Juan, 483. 497. Hendriksen, Ibid., 483.

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não retira a insensibilidade deles, eles permanecem não somente nos seus pecados, mas ficam indispostos para as coisas espirituais. Quando Deus não opera, os homens ficam sem qualquer condição de crer. Esse é um ensino que humilha muito as pessoas e causa revolta nelas, especialmente naqueles que foram educados na teologia que ensina a liberdade absoluta que o homem tem de crer, e de que a fé não é um dom de Deus. No entanto, esse ensino é profundamente bíblico, e, para se ter uma idéia, o texto que Jesus citou de Isaías é o texto do Antigo Testamento mais citado no Novo Testamento, cerca de seis vezes. Jesus não tinha qualquer constrangimento em ensinar que a graça regeneradora que predispõe os homens à fé é um dom divino. Por razões escondidas de nós, Deus resolveu não se movimentar em relação a algumas pessoas, deixando-as sem a graça regeneradora e iluminadora, quando elas ouvem a pregação do Evangelho. Essa é a razão pela qual muitos não crêem. Eles não adquirem a disposição espiritual para crer, e, quando Deus não opera sobrenaturalmente neles, eles ficam impotentes espiritualmente. Essas coisas nos deveriam levar a refletir na graça divina que recebemos para crer nas coisas espirituais que Deus nos apresenta.

B. VEJA AS CONSEQUÊNCIAS PARA OS QUE NÃO CUMPREM O DEVER DE CRER NO REDENTOR Há algumas conseqüências terríveis para aqueles que não crêem em Jesus Cristo. Citaremos apenas algumas delas e somente estas já são suficientes para que uma pessoa pense a respeito de sua situação espiritual.

1. QUEM NÃO CRÊ EM CRISTO JÁ ESTÁ JULGADO João 3.18 – “Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.”

A fé em Cristo, que é um dever do homem, tem a ver com o não passar pelo julgamento. Esse ensino de Jesus Cristo está claro em outras partes do Evangelho de João. Veja: “Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (Jo 5.24). Para o Redentor dos filhos de Deus, crer no Filho implica crer naquele que o enviou, e a fé quer em sua Palavra, ou em ambas as Pessoas da Trindade, faz com que uma pessoa seja livre de passar por julgamento. Por que isto é assim? Porque aquele que confia em Cristo já tem os seus pecados pagos, e já tem o seu julgamento feito no julgamento do Substituto, que é Cristo. A única saída para o pecador é crer em Cristo. Nicodemos entendeu que é pela fé somente que um pecador escapa do juízo de Deus, pois o texto diz que “quem nele crê não é julgado”. Todavia, exatamente o oposto acontece com aquele que não crê. Lenski diz que

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR “a ausência de fé é uma força destrutiva desde o começo, porque o tempo do verbo está no perfeito, ‘está julgado’, e assim permanece agora como alguém que já está julgado. Isto explica por que Deus não precisava enviar seu Filho para julgar o mundo. Por enviar o seu Filho para salvar o mundo, o julgamento ocorre por si mesmo. Os crentes não precisam de julgamento. Sendo salvos, eles pertencem a Deus como sendo os seus. Ele não instituirá um processo judicial contra eles, como se ele tivesse que decidir o caso a favor ou contra eles agora ou em qualquer tempo, incluindo o último dia. Isso também é verdadeiro com respeito aos não-crentes. A recusa deles em crer já os julga; eles já tem o seu veredicto que, como o perfeito ke/kritai mostra, permanece indefinidamente.”498

Isso significa que a sentença de condenação já está sobre o incrédulo. Não há possibilidade de salvação para aquele que não tem fé. Entretanto, devemos entender que não é a incredulidade que o condena (pois os motivos de sua condenação são a sua natureza pecaminosa e os pecados que comete), mas é a incredulidade que faz com que ele permaneça debaixo do julgamento divino, o que significa que o incrédulo já tenha sobre si a sentença divina que permanece indefinidamente sobre ele. O ensino desse texto diz que o crente não é julgado, enquanto o incrédulo já está julgado. Em outras palavras, aquele que crê é alvo e o que não crê não é salvo. De que lado você está? Você será julgado ou já está livre de condenação?

2. QUEM NÃO CRÊ EM CRISTO PERMANECE CONDENADO O texto abaixo é tem praticamente a mesma conotação do verso estudado acima: João 3.36 – “Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus.”

Como afirmei na argumentação acima, uma pessoa não é condenada por sua incredulidade, mas pelos seus pecados, pois Deus é justo. Todavia, ele seria injusto se condenasse alguém pela incredulidade, pois cremos que a fé é dom de Deus. Ele não poderia condenar alguém por alguma coisa que ele próprio não dá. A condenação é confirmada quando acontece a incredulidade. O texto não diz que a ira de Deus virá sobre o incrédulo, mas que ela permanece sobre ele. É verdade que existirá a manifestação futura da ira divina (pois dela Jesus livra os seus – cf. 1Ts 1.10), mas esta ira já está colocada sobre os pecadores, pelo fato de eles serem pecadores. A Escritura diz que somos nascidos já debaixo dessa ira divina, por isso Paulo diz que os homens são “por natureza filhos da ira” (Ef 2.3). 498. R. C. H. Lenski. The Interpretation of St.John´s Gospel (Minneapolis: Augusburg Publishing House, 1961), 268.

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Todavia, ele reconhece que somos libertos dessa ira quando pela graça cremos (Ef 2.4, 5, 8). Esse é o ensino de Jesus. Entretanto, se uma pessoa não crê, ela permanece debaixo dessa ira. Permanecer debaixo da ira significa não ser objeto da salvação divina, não ser persuadido pelo Filho. Certamente, aquele que não crê que já está condenado, permanecendo sob a ira divina, também receberá a manifestação da ira vindoura (cf.Mc 16.16). Você ainda é um incrédulo? Então, você está debaixo da ira divina. Essa é uma declaração muito forte para não darmos importância a ela. Se você for levado pela graça divina à compreensão dessa verdade sobre você, suplique-lhe que ele liberte você da ira vindoura dando-lhe a fé viva no Senhor vivo!

3. QUEM NÃO CRÊ EM CRISTO PERMANECE MORTO EM SEUS PECADOS João 8.24 – “Por isso eu vos disse que morrereis nos vossos pecados; porque se não crerdes que eu sou morrereis nos vossos pecados.”

Todos os homens nascem mortos espiritualmente, isto é, separados de Deus, sem comunhão vital com ele. Por causa das inclinações pecaminosas e dos pecados que delas advêm, se não houver fé da parte dos pecadores, eles permanecerão mortos espiritualmente, e haverão de receber a punição da morte (chamada física e eterna) por toda a eternidade. A única maneira de escaparem dessa morte é crer em Jesus Cristo. Mas os que se rebelam contra o Filho de Deus, não crendo em seu nome, acabarão debaixo da ira final de Deus. A idéia de Jesus Cristo é: a menos que você venha a crer em Jesus, você morrerá nos seus pecados. Você é um natimorto e precisa da vida de Deus para sair desse estado de morte. A fé naquele que tem existência própria (o “Eu Sou”) é conditio sine qua non para se escapar da morte por causa dos pecados. O sentido de “não crerdes que eu sou” diz respeito à procedência divina do Redentor, um Redentor que não era um arranjo dos homens, mas de Deus. Recorde-se de que, no verso 23, Jesus disse: “Vós sois cá debaixo, eu sou lá de cima; vos sois deste mundo, eu deste mundo não sou”. A fé tinha de ser num Redentor de procedência divina. O que Jesus quis dizer com isso é que não podemos confiar numa pessoa que tem procedência simplesmente humana, mas devemos confiar naquela que tem procedência celestial. Em que tipo de Redentor você crê? É ele divino? Porque se você não crê num Redentor de procedência divina, você haverá de morrer em seus pecados. Essa também é uma afirmação muitíssimo séria para ser desconsiderada. Creia no Filho de Deus para escapar da morte, permanecendo em seus próprios pecados. Como você quer ser visto: como aquele que desfruta pela fé da vida de Cristo ou como aquele que já, condenado, morre debaixo de condenação?

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C. VEJA AS BÊNÇÃOS PARA OS QUE CUMPREM O DEVER DE CRER NO REDENTOR Há uma série de bênçãos prometidas nas Escrituras para os que cumprem o mandamento estabelecido por Deus de crer em Jesus Cristo.

1. TOMAM POSSE DA VIDA ETERNA João 3.15-16 – “... para o que todo o que nele crê tenha a vida eterna...” João 6.40 – “...todo homem que vir o Filho e nele crer, tenha a vida eterna...”

Os versos acima apontam para a posse da vida eterna. A vida eterna mencionada muitas vezes por João deve ser entendida como a comunhão imperdível conseguida por Cristo Jesus que uma pessoa passa a desfrutar conscientemente com Deus quando crê. Essa vida espiritual não é retirada de nós quando cometemos algum pecado (diferentemente da vida natural perfeita que Adão possuía antes da queda, mas que foi perdida por causa da queda), porque foi uma vida conquistada pela obediência ativa de Jesus Cristo (quando cumpriu todos os preceitos que deveria como homem que era) e pela obra renovadora do Espírito Santo que nos regenera, ou seja, que implanta essa vida em nós. A vida eterna da qual os textos acima falam é a mesma coisa que a vida espiritual que recebemos e que não perdemos nunca mais. Os pecados que cometemos, certamente, tiram toda a alegria da vida cristã, mas não a vida propriamente. Mesmo quando em pecado, mantemos comunhão com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. Todavia, essa vida só é desfrutada conscientemente quando a pessoa crê em Jesus Cristo. A fé é o instrumento que Deus nos dá para que tomemos posse conscientemente dessa vida que nos foi tornada possível pela ação divina em nós. A fé, nesse caso, é uma causa instrumental ou órgão de apropriação daquilo que nos é concedido por Deus. A fé não é a causa da vida que recebemos, mas o instrumento pelo qual desfrutamos conscientemente da vida nesta presente existência. Você, que lê essas coisas, se é um cristão, é porque já tomou posse da vida eterna que lhe foi outorgada pela ação divina. Desfrute belamente dessa vida quantitativa e qualitativamente, pois ela é sua e você não a perderá nunca, porque a vida que Deus lhe dá é eterna.

2. RECEBEM REMISSÃO DE PECADOS Atos 10.43 – “Dele todos os profetas dão testemunho de que, por meio de seu nome, todo o que nele crê recebe remissão de pecados.”

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As coisas que recebemos, das quais vamos falar abaixo, estão associadas à fé. No texto de Atos 10, Pedro está discorrendo sobre Jesus Cristo e as coisas que Deus estava fazendo por causa dele e através dele. No último verso do discurso, o verso 43, Pedro diz todos os profetas testemunham dessa verdade maravilhosa: existe remissão de pecados através do nome de Cristo para todo aquele que crê nele. A palavra grega usada para remissão é a)/fesin (afesin), e pode ser traduzida igualmente como perdão. “A remissão de pecados lança o fundamento para todos os outros favores e bênçãos, por retirar do caminho aquilo que as impede. Se o pecado é perdoado, tudo fica bem, e terminará eternamente bem.”.499 A remissão de pecados significa que você não precisa pagar nada porque os seus pecados foram perdoados. Em outras palavras, a remissão significa que, porque Alguém pagou as suas dívidas, você está livre de pagar. A expressão “todo aquele” aponta para a universalidade da obra salvadora de Deus, isto é, ela inclui judeus e gentios que crêem. Os judeus estão livres de praticar as cerimônias sangrentas de limpeza e purificação e não mais precisam oferecer sacrifícios expiatórios aos seus deuses. Ambos, judeus e gentios, remidos pelo sangue de Cristo, tomam posse dessa remissão pela fé nele. A fé une todas as raças num só corpo em Cristo. Ela nivela todos na mesma plana. Todos os que crêem, judeus ou não judeus, recebem remissão de seus pecados. Você não é tratado como pecador porque alguém já tratou dos seus pecados com Deus. Você é remido, a saber, perdoado das suas dúvidas.

3. RECEBEM JUSTIFICAÇÃO A justificação que recebemos tem uma conotação forense com a qual a remissão dos pecados está ligada. O perdão e justificação andam juntos. Deus perdoa (ou redime de) nossos pecados porque Jesus Cristo assume a nossa conta. Quando isso acontece, somos declarados justos perante o tribunal divino. Esse é o ensino de várias passagens da Escritura. Tomemos alguns exemplos: Atos 13.38, 39 – “Tomai, pois, irmãos conhecimento de que se vos anuncia remissão de pecados por intermédio deste; e por meio dele todo o que crê é justificado de todas as cousas das quais vós não pudestes ser justificados pela lei de Moisés.”

Deu para perceber, no texto acima, que as duas coisas andam juntas: remissão de pecados, que é anunciada por causa de Cristo, e justificação que também vem por causa de Jesus. Semelhantemente à remissão, uma pessoa toma posse da justificação somente pela fé no Filho de Deus. 499. Matthew Henry. An Exposition of the New Testament, vol. II (Londres: James Nisbet and Co., 1857), 528.

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Somente a fé em Cristo é justificante. Não há como ser justificado através do cumprimento das obras prescritas por Moisés. O homem não pode pagar a sua própria conta. Somente Jesus pode livrar o homem desse pagamento. Esses aos quais ele livra, sejam eles judeus ou gentios (pois o texto novamente fala “todo o que crê”), em razão do que Cristo fez por eles e no lugar deles, são declarados como sem débito perante a justiça pelo tribunal divino e saem livres da sua dívida, e são tratados como se nunca fossem culpados. Paulo é especialista no assunto sobre a justificação pela fé. Veja apenas algumas menções que ele faz: Romanos 4.3 – “Pois, que diz a Escritura? Abraão Creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça.”

A palavra “imputar”, aqui, tem o sentido de “atribuir a”, “colocar sobre”. Isso significa que Deus atribuiu a Abraão a justiça que vem da fé. Abraão não foi justificado por suas obras (v. 2), mas por sua fé. Romanos 4.4 – “Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e, sim, como dívida.”

Quando alguém é justificado por obras, no raciocínio de Paulo, essa pessoa recebe o pagamento daquilo que lhe é devido. Na verdade, o pagamento é uma dívida que Deus tem com o pecador (cf. Rm 4.4). As obras tornam os homens credores de Deus e Deus devedores dos homens. Entretanto, Paulo rechaça essa idéia de Deus como devedor e o homem como credor. No verso 4, mencionado acima, Paulo afirma que a idéia de favor fica eliminada do conceito de obras. A justificação pela fé é produto do favor de Deus, não das obras. Referindo-se a Paulo, Murray diz que “sua menção à graça, no versículo 4, visava negar que a recompensa de quem trabalha ocorre de acordo com a graça”. Portanto, a antítese é com a idéia de compensação: quem não trabalha pode somente esperar na graça”.500 A gratuidade da justificação está no fato de Deus justificar a ímpios! O Apóstolo reafirma o ensino do verso 3 no verso 5: Romanos 4.5 – “Mas ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça.”

O que isso significa? Isso significa que Deus considerou a fé que Abraão possuía como justiça. Paulo toma o texto de Gênesis 15.6 (que, literalmente, diz: “Ele creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça”) e o aplica a seu tempo. A justificação não é uma recompensa decorrente da fé. Todavia, por meio da fé, o crente recebe a justificação. Na verdade, a justiça de Cristo é imputada a ele por 500. John Murray. Romanos (São Paulo: Editora Fiel, 2003), 159.

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meio da sua fé. A fé aqui, novamente, a fé é um órgão de apropriação daquilo que foi feito por nós e em nosso lugar por Jesus Cristo. A fé de Abraão é uma fé que Deus leva em conta para declarar um homem justo, em razão daquilo que Cristo fez. Resumamos a ordem das coisas no processo restaurador de Deus: todo aquele por quem Cristo morreu recebe a obra regeneradora do Espírito Santo que, por sua vez, habilita o homem a crer e, como conseqüência este é justificado por sua fé, possuindo conscientemente as bênçãos dessa justificação. Quando você crê em Cristo, Deus coloca sobre você aquilo que Cristo fez por você. A fé é um meio pelo qual Deus dá a você o privilégio de você pode desfrutar conscientemente, neste mundo, das coisas que ele preparou para você “em Cristo”.

4. RECEBEM A FILIAÇÃO DIVINA João 1.12, 13 – “Mas a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; a saber: aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.”

A filiação é um ato judicial divino na vara da família. Isso significa que você, que perdeu os direitos filiais por causa dos seus pecados, é agora adotado judicialmente na família de Deus como resultado da obra do Espírito de Deus, em virtude da obra de Cristo. A adoção que Deus faz dos homens como seus filhos tem duas etapas: A primeira etapa tem a ver com a adoção de você olhada do ponto de vista de sua natureza imaterial – que é a sua alma. Esta se dá no começo de sua salvação. Isso está afirmado no texto acima. Quando Deus faz você nascer do novo pela ação da sua vontade, então ele habilita você a crer em Jesus Cristo. Isso acontecendo, você recebe o poder dado por Deus de ser feito filho de Deus. A sua filiação vem de Deus, mas você toma consciência de que é gerado espiritualmente por Deus através de sua fé em Jesus. Lembre-se de que essa primeira etapa se dá tão logo você seja nascido de novo. A segunda etapa, que é a sua adoção olhada do ponto de vista de sua natureza material – que é o seu corpo, se dá exatamente no final da sua redenção, que é o dia da ressurreição. O texto que dá suporte a essa idéia está registrado em Romanos 8.23, que diz: “E não somente ela [a criação] mas também nós que temos as primícias do Espírito [acontecida no começo da nossa redenção pessoal], igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo.” Mesmo enquanto estamos na glória celestial, esperamos muito ansiosamente o tempo em que Deus nos dê um novo corpo, que é o completamento da nossa redenção. A adoção nossa que termina com a concretização de nossas esperanças tem o seu início em nossa fé, quando do tempo quando fomos nascidos do Alto. Pela fé Deus dá o poder aos homens deles serem feitos filhos de Deus. Este é o início da nossa caminhada de filhos de Deus.

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5. RECEBEM O ALIMENTO PARA A ALMA João 6.35 – “Declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim, jamais terá fome; e o que crê em mim, jamais terá sede.”

Nesse texto, como em outros lugares, podemos ver palavras que são sinônimas entre si. Em João 6.35 as expressões “vir a mim” e “crer em mim” são sinônimos. O sentido de fé sobre o qual Jesus está falando nesse texto diz respeito ao “apropriar-se” dele. Comer de Cristo ou beber dele significa que devemos crer nele. A idéia de Jesus Cristo na afirmação do verso 35 é que comer e beber dele elimina a idéia de insatisfação. Quem se apropria pela fé de Jesus Cristo está plenamente satisfeito com ele, ou que não precisa de nenhuma outra coisa mais. Quem se alimenta de Cristo pela fé, comendo e bebendo dele, vive eternamente. A idéia de comer e de beber de Cristo são muito claramente expostas pelo próprio Jesus: sobre o comer dele, diz: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo, é a minha carne” (Jo 6.51); sobre o beber dele, diz: “Aquele, porém, que beber da água que eu lhe der, nunca mais terá sede, para sempre; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna” (Jo 4.14; cf. Jo 7.37, 38). Quer se refira ao comer quer se refira ao beber, Jesus Cristo está falando de crer nele, e aquele que nele crê, ou que dele se apropria, é alimentado eternamente. Você crê nisso? Então coma e beba dele. Somente assim você poderá receber o alimento de que tanto necessita!

D. VEJA O QUE A FÉ NO REDENTOR PRODUZ A fé no Redentor, certamente, produz muitas coisas. Vejamos apenas algumas delas para que isso o estimule a ter uma fé cada vez mais viva e mais produtiva.

1. A FÉ NO REDENTOR PRODUZ ADORAÇÃO João 9.35-38 – “Ouvindo Jesus que o tinham expulsado, encontrando-o, lhe perguntou: Crês tu no Filho do homem? Ele respondeu, e disse: Quem é, Senhor, para que eu nele creia? E Jesus lhe disse: Já o tens visto e é o que fala contigo. Então afirmou ele: Creio, Senhor; e o adorou.”

O texto de João 9 trata do cego de nascença. Depois das suas discussões com os líderes religiosos, Jesus o encontra e lhe faz uma pergunta decisiva: “Crês tu no Filho do homem?”. Ainda que soubesse que era Jesus quem o havia curado, ele não tinha visto Jesus ainda, pois os seus olhos foram abertos quando não estava presença de Jesus. O ex-cego lhe diz: “Quem é [o Filho do homem], Senhor, para que eu nele creia?”. Certamente já havia uma predisposição para a fé naquele

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homem, em virtude de uma obra de Jesus feita nele. Então, de uma forma singelamente extraordinária, Jesus se revela a ele dizendo que era o Filho do homem. “Consciente, agora, de forma total, do fato de que aquele que lhe havia falado é o mesmo que o curou, a saber, Jesus, em quem, com surpresa total, põe o seu olhar de fé (que privilégio é poder ver!), e reconhecendo em Jesus o Messias, o mesmo que Filho do homem, que é também Filho de Deus, e, por conseguinte, o objeto próprio de adoração, o homem cai de joelhos e presta adoração religiosa (não somente ou reverência inclusa) a seu Benfeitor.”501 O ex-cego creu nele, e, geralmente, o primeiro resultado da fé é a adoração. O verbo grego usado para adorar é proskinei=n (proskinein), que significa evidenciar prostração e adoração, e aqui é usado no sentido religioso pleno de adoração devida a Deus. A idéia que o verbo dá é a de que o ex-cego caiu aos pés de Jesus como reconhecido da messianidade e da divindade dele. Quanto mais cremos em Jesus Cristo, mais desejos temos de adorá-lo, por causa da sua divindade. Dessa nossa adoração ao Redentor, por causa da unio personalis, também a sua natureza humana participa. É dever nosso prestar adoração ao nosso Redentor por causa da nossa cura espiritual, que ele já está fazendo em nós, e pela cura física definitiva, que ele ainda vai fazer em nós. Ele é o nosso Deus Salvador. A nossa fé nele deve fazer-nos adoradores dele!

2. A FÉ NO REDENTOR PRODUZ OBEDIÊNCIA Romanos 1.5 – “[Jesus Cristo nosso Senhor] por intermédio de quem viemos a receber graça e apostolado por amor do seu nome, para a obediência por fé, entre todos os gentios.”

A fé, como já vimos antes, é um resultado da obediência nossa, pois quando cremos estamos obedecendo a um mandamento de Deus (pois está afirmado em 1Jo 3.23 – “Ora, o seu mandamento é este, que creiamos em o nome de seu Filho Jesus Cristo....”). A fé em Jesus é um ato da nossa obediência. Todavia, quando cremos, essa fé deve produzir obediência ao Redentor. É interessante notar que obediência é tanto o que vem antes como o que vem depois da fé. Num certo sentido podemos dizer que a obediência é tanto a “causa” da fé como o resultado dela. Talvez a tradução melhor do texto seja “obediência da fé” ao invés de “obediência por fé”. Hendriksen diz que “o propósito para o qual Paulo foi designado, foi para conduzir à obediência de fé. Tal obediência está baseada na fé e emana da fé. De fato, tão estreitamente fé e obediência estão conectadas, que podem ser comparadas a gêmeos idênticos inseparáveis. Quando você vê um, vê o outro. Uma pessoa não pode possuir uma fé genuína sem possuir obediência, nem vice-versa”.502 501. Guillermo Hendriksen, El Evangelio Segun San Juan, 360. 502. William Hendriksen, Romanos (São Paulo: Cultura Cristã, 2001), 62.

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A fé produz obediência, porque quem crê no Filho o obedece. Opostamente, a recusa em obedecer é a recusa em crer. Lenski diz que “a divina grandeza do Filho faz com que a nossa fé redunde em obediência da fé, e a recusa em confiar é o desafio mais desesperado ao caráter do Filho e de suas palavras. Essa desobediência de incredulidade é o crime dos crimes”.503 Você certamente já provou em sua vida que a fé viva em Cristo Jesus produz obediência. Afinal de contas, se você é um cristão real, você se encontra entre aqueles que são chamados por Pedro de “filhos da obediência”. Por tanto, “como filhos da obediência, não vos amoldeis às paixões que tínheis antes na vossa ignorância...sede santos” (1Pe 1.13-16). A fé genuína em Jesus Cristo faz-nos obedientes. Não lute contra essa verdade. Ao contrário, torne evidente o fruto mais precioso da fé, que é a obediência ao Senhor.

3. A FÉ NO REDENTOR PRODUZ LIBERTAÇÃO DAS TREVAS João 12.46 – “Eu vim como luz para o mundo, a fim de que todo aquele que crê em mim, não permaneça nas trevas.”

Embora as trevas não façam parte da essência do homem, porque o pecado também não é parte essencial dos seres humanos, todos os homens já são nascidos em pecado, e por isso todos eles estão mortos. Um sinônimo para morte espiritual é escuridão, ou trevas. Eles não são colocados nas trevas depois que pecam conscientemente porque não crêem, mas já são concebidos neste mundo em trevas. Por isso é que se eles não crêem permanecem em trevas, e não caem em trevas. Portanto, o Redentor veio ao mundo para tirar seres humanos dessa condição de trevas a fim de que não mais permaneçam em trevas. Todos os homens que não estão em Cristo Jesus estão em trevas. A ausência de Cristo na vida deles é sinal de escuridão neles. Quando uma pessoa crê em Cristo, ela passa a desfrutar da luz, não mais permanecendo no estado de trevas. A expressão latina famosa que descreve essa mudança é pos tenebras lux – luz após trevas. “Essas trevas são mais do que simplesmente ausência de luz, mas o poder maligno da ignorância, do erro, da falsidade, e do engano mortal.”.504 A única maneira de escapar dessa condição muitíssimo triste é crer na Luz que foi enviada. Jesus Cristo é a luz do mundo, e ele veio para trazer luz aos homens, ou melhor, para botar os homens na luz. Na verdade, quando os homens crêem, eles passam a enxergar a luz e a desfrutar dela, pois as trevas em que eles vivem são trevas interiores. Por natureza, eles são cegos. Todavia, quando eles crêem em Cristo, eles passam a ver a luz. Crêem para poder ver! Nesse sentido, a fé é algo decisivo, porque a fé recebe a Luz, que é Cristo, e assim, se desfaz das trevas. 503. R. C. H. Lenski. The Interpretation of St.John´s Gospel, 294 504. Lenski, The Interpretation of John´s Gospel, 895.

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A luz causa um impacto maior do que as trevas. Todavia, se você não tem olhos para ver, você permanece nas trevas. A fé em Cristo é uma evidência de que você, agora, tem olhos para ver. Se você tem olhos para ver as realidades espirituais, então, certamente você está na Luz e vê a Luz que veio ao mundo.

4. A FÉ NO REDENTOR PRODUZ OBRAS MAIORES DO QUE AS FEITAS POR ELE João 14.12 – “Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim, fará também as obras que eu faço, e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai.”

Essa é uma promessa espantosa feita por Jesus. Todavia, ela tem de ser entendida corretamente. Ele não está falando da qualidade das obras, porque ninguém pode fazê-las tão perfeitamente quanto ele. Ele também não está falando da quantidade de obras, porque nenhum indivíduo nesta vida fará tantas coisas maravilhosas e tão graciosamente variadas quanto ele. Certamente ele está falando de coisas que viriam a ser feitas no decorrer da história pela Igreja como um todo e que excederiam em número ao que ele pessoalmente fez. É possível que um indivíduo possa, exercendo o seu ministério, de acordo com seus dons, fazer alguma coisa específica que seja quantitativamente maior do que o que Jesus fez, porque ele teve pouco tempo entre nós antes de “ir para o Pai”. Por exemplo, Deus dotou algumas pessoas com dons espirituais, como o dom de evangelista. Essas pessoas, durante o seu longo ministério, trouxeram muitas pessoas ao conhecimento da salvação, mais do que Jesus Cristo em sua vida terrena entre nós. Imagine essas coisas com outros dons espirituais que podem ser exercidos durante uma vida inteira! Você, que crê em Jesus, poderá fazer uma obra maior do que as que Jesus fez. Certamente você terá tempo para, exercitando os seus dons, fazer alguma coisa a mais do que o seu Salvador. Essa é promessa para aqueles que crêem. Não é uma promessa condicional, mas uma afirmação categórica de que isso pode ser uma grande realidade em sua vida. Você já imaginou que você poder ser “firme, inabalável e sempre abundante na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o seu trabalho não é vão?” (cf. 1Co 15.58). Deus quer que, pela fé, façamos grandes obras pelo seu reino. Você estaria disposto a pensar e a fazer alguma coisa maior do que o seu Redentor fez?

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CAPÍTULO 16 A OBEDIÊNCIA QUE DEVEMOS AO REDENTOR

A

obediência é uma virtude altamente apreciada por Deus na vida dos seus filhos. Jesus Cristo, o irmão mais velho, também deve ser objeto da obediência. Esse dever de obediência dos cristãos para com o seu Redentor advém do fato dele ter feito uma grande obra em favor e no lugar deles.

A. MOTIVAÇÕES DE OBEDIÊNCIA A CRISTO Há várias motivações para a obediência das pessoas ao Pai e ao Filho Jesus Cristo. Algumas delas serão examinadas rapidamente nesta parte do capítulo.

1. OBEDIÊNCIA MOTIVADA PELO TEMOR Há algumas pessoas que obedecem as autoridades apenas no nível do temor. Elas têm medo do que lhes pode acontecer em caso de desobediência. Portanto, a obediência delas está motivada pelo medo das conseqüências da desobediência. Acontece a mesma coisa com respeito aos deveres que temos de obedecer a palavra de Cristo. Alguns obedecem porque têm medo de ser encontrados como “filhos da desobediência” Efésios 5.5-7 – “Sabei, pois isto: nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento, que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus. Ninguém vos engane com palavras vãs: porque por estas cousas vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência.”

Alguns obedecem apenas com medo de serem punidos pela ira divina e serem lançados na condenação eterna. Eles não querem sofrer a punição eterna. Eles têm temor da ira. Essa é a razão básica para eles não desobedecerem. Freqüentemente os nossos filhos nos obedecem por medo de serem castigados, ao invés de obedecerem pelo preceito correto. Todavia, há três sentido em que somos ordenados a “temer ao Senhor”. 1. É o temor a Deus que nos motiva o começo da volta para Deus (At 10.1, 2, 34, 35);

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2. É o temor a Deus que nos leva ao arrependimento quando desobedecemos a Deus (cf. Hb 10.26-31). 3. É o temor a Deus que nos motiva o desenvolvimento de nossa salvação (Fp 2.12). Além disso, o Senhor nos mostra que o relacionamento de obediência para com ele deve ir além do temor que temos dele. Jesus deseja que o nosso relacionamento com ele seja íntimo e cheio de amor (Jo 15.15). Todavia, o nosso relacionamento com ele não é um relacionamento baseado na relação Senhor-escravo, mas um relacionamento de amizade. O temor, conquanto próprio em seu devido lugar, pode roubar-nos da real alegria que Deus quer que nós experimentemos quando o obedecemos. A motivação dessa obediência é o amor aperfeiçoado, e não o que no amor cheio de temor (cf. Jo 4.18). Portanto, seja a sua obediência ao Senhor motivada pela intimidade de amor, e não pelo medo da punição.

2. OBEDIÊNCIA MOTIVADA PELO INTERESSE Outras pessoas são motivadas à obediência por interesses pessoais que possam vir a satisfazer. Elas não conseguem admitir que Deus não lhes dê, como retorno, alguma coisa que a sua atitude de obediência tenha merecido. Veja o exemplo de obediência por interesse na vida de Pedro: Mateus 19.27 – Então lhe falou Pedro: Eis que nós tudo deixamos e te seguimos: que será, pois, de nós?”

A resposta à pergunta de Pedro parecia óbvia, pois Jesus já havia ensinado que os que deixassem tudo por causa dele haveriam de ter um tesouro no céu. Todavia, Pedro, ao seguir Jesus Cristo, fez essa pergunta, que revela uma de duas coisas: ou era realmente ignorante em relação à resposta ou estava esperando algo mais em retorno, ou mesmo alguma coisa especial para ele. Embora essa seja uma postura comum à grande maioria dos seres humanos, inclusive aos cristãos, ela não é correta. Os filhos, às vezes, aparecem com a idéia de obedecer aos pais na expectativa de receberem alguma recompensa em troca. Eles não obedecem pela sua própria condição de filiação, mas tendo algum interesse em vista. Ao mesmo tempo em que alguns filhos obedecem por causa do temor de receberem a disciplina, eles também obedecem por terem alguma retorno em vista, que é parte certa do seu egoísmo. O grande desapontamento é que alguns filhos de Deus obedecem ao Senhor pela mesma razão. É triste admitir que, muitas vezes, quando não recebemos o esperado pela obediência, reivindicamos “direitos” que na verdade não temos. Deus

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não está debaixo da obrigação de nos recompensar em nossa obediência. Se ele o faz é por causa da fidelidade que ele tem com a sua promessa, mas nunca como uma obrigação para conosco. Ele se obriga para consigo mesmo, mas nunca para conosco. Nunca obedeça a Deus para obter alguma coisa dele. Ele não deve nada a você nem a mim. As recompensas divinas estão baseadas no seu amor pactual conosco, não nos méritos de nossa obediência. Nunca exija de Deus o que ele não lhe deve. Não seja interesseiro no seu relacionamento com Deus. Se você quer obedecê-lo, faça-o com a motivação certa, ou com a melhor das motivações. Há um nível bem mais alto de obediência que será analisado a seguir.

3. OBEDIÊNCIA MOTIVADA PELO AMOR Quando obedecermos a Deus porque o amamos, então teremos chegado ao nível mais alto de obediência. Quando obedecemos a Cristo por amor a ele, então nós continuaremos a obedecê-lo em quaisquer circunstâncias que possam aparecer. Esse é o nível de obediência que Jesus quer de nós. Nele, nós aprendemos a fazer a vontade de Deus. A obediência de amor não é somente o mais alto nível de obediência, mas o segredo para obedecer é o amor. Quem ama obedece.

a. A obediência motivada pelo amor ordenada no Antigo Testamento No Antigo Testamento, a Escritura afirma que a obediência é conseqüência do amor que o povo tem por Deus. Deuteronômio 7.9 – “Saberás, pois, que o Senhor teu Deus é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil gerações aos que o amam e cumprem os seus mandamentos.”

O cumprimento da lei santa de Deus deve partir unicamente daqueles que têm o seu coração no Senhor. É uma impossibilidade esse tipo de obediência àqueles que não amam a Deus. Deus se agrada imensamente da obediência de amor, a ponto de mostrar de maneira inequívoca a sua fidelidade para com eles, mostrando-lhes misericórdia sem fim. A obediência é a melhor maneira do povo de Deus mostrar o amor. Os filhos que amam seus pais os obedecem. É esse tipo de obediência que o povo de Deus deve a Deus. Veja mais alguns textos que falam da obediência produto do amor por Deus: Deuteronômio 10.12, 13 – “Agora, pois, ó Israel, que é que o Senhor requer de ti? Não é que temas o Senhor teu Deus, andes em todos os seus caminhos, e o ames, e sirvas ao Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma, para guardares os mandamentos do Senhor, e os seus estatutos, que hoje te ordeno, para o teu bem?”

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As ordenações de Deus para o povo são expressas em alguns verbos: temer ao Senhor; andar nos seus caminhos; servir ao Senhor; e amar ao Senhor... tendo um único propósito – guardar os seus mandamentos. A obediência à Palavra de Deus é resultado do amor a ele, indubitavelmente! Podemos (e devemos!) medir o nosso amor por Deus pela quantia de nossa obediência a ele! Deuteronômio 11.1 – “Amarás, pois, ao Senhor teu Deus, e todos os dias guardarás os seus preceitos, os seus estatutos, os seus juízos, e os seus mandamentos.”

A obediência de amor nesse verso é requerida para a totalidade dos dias de nossa vida. Quando amamos a Deus devemos ter um amor que não termine nunca. Essa é a única maneira de obedecê-lo todos os dias de nossa vida.

b. A obediência motivada pelo amor confirmada no Novo Testamento No Novo Testamento, Jesus Cristo aponta para o fato de os seus discípulos obedecerem as suas palavras por amor a ele. Jesus veio não somente para cumprir a lei em todos os seus aspectos, mas também veio para confirmar o primeiro e grande mandamento que é o amor a Deus sobre todas as coisas. O resultado óbvio do amor ao Senhor (Pai, Filho ou Espírito) é a obediência: João 14.15, 21, 23, 24 – “Se me amais, guardareis os meus mandamentos... Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama... Se alguém me ama, guardará a minha palavra; ... Quem não me ama, não guarda as minhas palavras...”

No capítulo 14 de João, Jesus contrasta o amor e o ódio daqueles que são seus seguidores. O amor é detectado pela obediência e o ódio detectado pela desobediência. Quanto a este último, Lenski diz que “a plena gravidade da falta de amor por Jesus e de sua desconsideração de sua Palavra como evidência dessa falta [de amor] é produzida por mostrar uma vez mais a conexão de Jesus e sua Palavra com o Pai: ‘A Palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai que me enviou’”.505 Isso significa que a desobediência à Palavra de Cristo é desobediência à Palavra do Pai, apontando para a mesma essência de ambos comprovada pelo conteúdo da mesma Palavra (cf. Jo 7.16). Quanto ao primeiro, o amor e a consequênte obediência, podemos dizer que a detecção do amor dos discípulos não é verificada pelas juras de amor, nem pela admiração pelo que Jesus faz ou diz, mas pela obediência deles aos seus mandamentos (cf. 1Jo 5.2; 2Jo 6). O cristão é conhecido por sua obediência de amor. Não existe exceção a essa regra. O amor em vista aqui não é simplesmente uma questão de palavras, mas de atitude de obediência. 505. R.C. H. Lenski. The Interpretation of St. John´s Gospel (Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1961), 1011.

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O cristão deve obediência a Jesus Cristo, mas essa obediência só terá real valor de agradar a Deus quando ela for produto de nosso santo amor por ele. Enquanto a nossa obediência for por causa do medo de punição ou motivada pelo interesse, ela não será uma obediência que traz agrado ao Redentor. Somente a obediência de amor é uma obediência com uma motivação certa. Se quisermos começar a desfrutar alguma vislumbre da verdadeira “vida abundante”, nós precisaremos aprender a obedecer como resultado de nosso amor por ele. Isso quer dizer que quanto mais o amarmos, mais o obedeceremos; quanto mais o obedecermos, mais permaneceremos nele; e quanto mais permanecermos nele, mais frutos produziremos; e quanto mais frutos produzirmos, mais desejaremos experimentar verdadeiramente a “vida abundante”.

B. COROLÁRIOS DA OBEDIÊNCIA DE AMOR 1. OS QUE OBEDECEM A CRISTO MOSTRAM A SUA AMIZADE POR ELE João 15.14 – “Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando.”

A amizade com Deus e com seu Filho Jesus Cristo é alguma coisa da qual o ser humano precisa desesperadamente. É impensável ter essas duas honrosas Pessoas como inimigas. A maneira de mostrar a nossa amizade com elas é obedecer. Jesus Cristo demonstra, no verso acima, que a amizade com ele é demonstrada pela obediência. Ele se mostrou amigo de pecadores como você e eu, mas a amizade de que falo aqui é sua para com ele. Essa amizade é uma questão de necessidade para nós. Nós é que precisamos dele e não ele de nós! Todavia, é mandamento dele que mostremos amor por ele, obedecendo-o. Mesmo quando cremos nele (que é essencial para o gozo da nossa salvação – cf. At 16.31), a nossa fé não pode estar dissociada da obediência, porque a fé deve se expressar conjuntamente com a obediência. Uma fé que não mostra obediência a Cristo é uma fé morta, o que aponta para o fato de não sermos amigos de Cristo. Tiago disse que “uma fé sem obras é morta” (Tg 2.26), mas a fé genuína é acompanhada pela obediência. O nosso amor por Cristo, que é um ingrediente indispensável de nossa parte, deve também se expressar em obediência. “Se me amais, guardareis os meus mandamentos”, disse Jesus. Essa é uma constatação que muitos cristãos não têm percebido, e essa falta de percepção tem deixado muitos cristãos imaturos e faltos nos seus mais altos deveres para com o seu Redentor.

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2. OS QUE OBEDECEM A CRISTO MOSTRAM QUE O CONHECEM Análise de Texto 1 João 2.3, 4 – “Ora, sabemos que o temos conhecido por isto: se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz: eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade.”

Esses versos podem ser úteis para entendermos mais uma das verdades a respeito da obediência que devemos a Jesus Cristo e pela qual mostramos que conhecemos realmente a Cristo.

a. Conhecimento é sinônimo de comunhão Parece que João está usando a expressão “conhecer” o Senhor como equivalente a ter comunhão com ele (1Jo 1.3, 6, 7, 9). Kistemaker diz que “como um sinônimo do termo comunhão, ele introduz o conceito de conhecer Deus”.506 A equivalência dessas duas expressões é alguma coisa que não devemos desprezar. “A comunhão com Deus e o conhecimento de Deus são as duas faces da mesma moeda. O conhecimento de que uma pessoa tem com Deus pode variar de uma familiaridade casual à comunhão íntima. Mas Deus não está interessado num relacionamento que é casual e sem significado. Ele deseja que venhamos a conhecê-lo intimamente.”507 Se Kistemaker está certo – e creio que está – podemos concluir que esse conhecimento íntimo é um conhecimento relacional, que aponta para uma grande intimidade com o Senhor, a ponto de João identificar esse conhecimento com comunhão.

b. Conhecimento sem obediência é mentira Um conhecimento que não produz obediência consiste apenas de noções que podemos ter do Senhor, noções que não implicam num envolvimento relacional. Portanto, não podemos, biblicamente, alegar que conhecemos verdadeiramente o Senhor se nós recusamos a guardar os seus mandamentos. São tachados de mentirosos aqueles que dizem conhecer Deus sem a conseqüente obediência. Anda na mentira aquele diz uma coisa e faz outra (cf. 1Jo 4.20 com Tt 1.16). Kistemaker diz que “a palavra mentiroso descreve o caráter do homem cuja conduta total é oposta á verdade”.508 Além disso, aquele que diz conhecer a Deus e não obedece a sua verdade, também não possui a verdade. 506. Simon J. Kistemaker. James and I-III John (Grand Rapides: Baker Book House, 1986), 255. 507. Ibid. 508. Ibid., 256.

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c. Conhecimento verdadeiro implica em obediência A palavra conhecimento, aqui em João e em outros lugares da Escritura, é muito mais profunda do que “ter a noção de alguma coisa”. Ela carrega consigo a idéia de um envolvimento relacional com uma outra pessoa. Quando a Escritura diz que Deus “conhece os seus” (2Tm 2.19), ela não está dizendo que ele sabe algumas (ou muitas) coisas a respeito deles, mas que se envolve amorosamente com eles. Esse é um uso hebraísta do verbo conhecer. Nesse texto, o verdadeiro conhecimento, que é um envolvimento de amor do cristão com o Senhor, implica em obediência. Na mesma carta, João fala de uma maneira enfática que “nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus, quando amamos a Deus e praticamos os seus mandamentos” (1Jo 5.2). A idéia pode ser: pelo conhecimento relacional podemos ter certeza que amamos os cristãos porque quando fazemos isto estamos mostrando que amamos a Deus quando obedecemos aos seus mandamentos. A obediência ao Senhor é produto de nosso conhecimento relacional dele, e é nosso dever conhecer ao Senhor dessa maneira, a fim de que esse conhecimento redunde em obediência de amor. A obediência mostra que nós conhecemos relacionalmente o Senhor.

3. OS QUE OBEDECEM A CRISTO MOSTRAM QUE PERMANECEM NELE João 15.10 – “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; assim como também eu tenho guardado os mandamentos do meu Pai, e no seu amor permaneço.”

Esse verso mostra dois tipos de obediência: a obediência que devemos aos mandamentos de Jesus Cristo e a obediência de Cristo aos mandamentos do seu Pai. Não devemos estranhar que Jesus Cristo deva obediência ao seu Pai, pois ele também é homem, e, como tal, tem de exercitar todos os seus deveres perante a lei de Deus. Ele teve de cumprir todos os mandamentos para nos livrar da obrigação de cumpri-los para a obtenção da vida eterna, por isso ele obedeceu perfeitamente todos os mandamentos. Contudo, a nossa obediência, que é uma obediência de amor e gratidão para com aquele que nos remiu, torna-se um dever para nós. Quando obedecemos aos mandamentos de Cristo damos evidência de que estamos no amor de Cristo. Em outras palavras, quando obedecemos aos seus mandamentos, damos prova de que Cristo realmente nos ama, assim como a obediência de Cristo ao Pai mostra que ele permanecia no amor do Pai. Na verdade, em última instância, a nossa obediência está vinculada ao amor de Cristo por nós. Não haveria, de forma alguma, obediência da nossa parte se não houvesse da parte dele o amor por nós. Esse amor de

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Cristo por nós é um amor “que antecede o nosso amor, acompanha o nosso amor, segue o nosso amor, e no próprio processo de fazê-lo, cria mais amor dele em nosso coração, de forma que, por assim dizer, começa outro ciclo de amor, o qual é, todavia, melhor que o primeiro. Dessa forma, o crente se sente atraído sempre mais intimamente a Deus em Cristo”.509 Essa obediência é produto desse amor e ao mesmo tempo é dita ser a resposta de Cristo à nossa obediência. Por isso, o seu amor também é dito ser permanente em nós. Da mesma forma, o Filho encarnado obedeceu todos os mandamentos do seu Pai em virtude do amor do Pai por ele, amor esse no qual ele permaneceu. Quando os cristãos obedecem ao seu Redentor, eles dão evidência clara do amor de Cristo por eles e de que eles continuam a desfrutar desse amor permanecendo nele. Quanto mais os cristãos obedecem a Cristo, mais o amor de Cristo é aperfeiçoado neles. Pelo menos foi isso o que João disse: “Aquele, entretanto, que guarda a sua palavra, nele verdadeiramente tem sido aperfeiçoado o amor de Deus. Nisto sabemos que estamos nele: aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou” (1Jo 2.5, 6).

4. OS QUE OBEDECEM A CRISTO MOSTRAM QUE CRÊEM NELE Romanos 1.5 – “... por intermédio de quem [Jesus Cristo] viemos a receber graça e apostolado por amor do seu nome, para a obediência por fé (u(pakoh\n pi/stewj), entre todos os gentios.”

O verso acima traduz obediência por “fé”. Como o genitivo usado no grego não define o sentido a ser dado à expressão, prefiro traduzir o verso como “obediência de fé” ou “obediência através da fé”, o que o genitivo grego também permite. Leenhardt diz que “a expressão não é explícita. Pode, pois, designar a obediência do crente quanto ao que é o conteúdo da fé objetiva que lhe é pregada ou a obediência do crente, que se entende por fé, ou, ainda, a obediência que leva à fé”.510 Todavia, prefiro pensar na obediência que torna evidente a fé, e não na obediência que conduz à fé, pois creio que este pensamento está mais de acordo com o ensino da totalidade das Escrituras. A obediência que devemos a Cristo não pode estar desconectada da fé, assim como não deve estar desconectada do nosso amor por ele. Hendriksen diz que “tal obediência está baseada na fé e emana da fé. De fato, tão estreitamente fé e obediência estão conectadas, que podem ser comparadas a gêmeos idênticos inseparáveis. Quando você vê um, vê o outro. Uma pessoa não pode possuir fé genuína sem possuir obediência, nem vice-versa”.511 Os crentes da igreja de Roma eram conhe509. William Hendricksen. El Evangelio Segun San Juan (Grand Rapids: Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1981), 576. 510. Franz J. Leenhardt. Epístola aos Romanos: Comentário Exegético (São Paulo: ASTE, 1957), 37. 511. William Hendriksen, Romanos (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001), 62.

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cidos e tinham fama por causa da sua obediência de fé (cf. Rm 1.8;16.19, 26). Calvino disse que “sobre essa passagem é preciso também notar a natureza da fé, adornada com o título de obediência, porque o Senhor nos chama pelo Evangelho, e pela fé respondemos. De modo contrário, a incredulidade é o cúmulo da rebelião contra Deus”.512 Quando obedecemos ao Senhor Jesus, portanto, mostramos que cremos nele assim como mostram a sua descrença aqueles que o desobedecem.

5. OS QUE OBEDECEM A CRISTO MOSTRAM QUE SÃO ELEITOS DE DEUS 1 Pedro 1.2 – “... eleitos, segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo: graça e paz vos sejam multiplicadas.”

A eleição tem vínculo com a obra trinitária da Divindade. Ela está vinculada à presciência de Deus Pai, que diz respeito ao amor de antemão que Deus dedicou a eles. Confira essa idéia no texto de Romanos 8.29, onde o verbo “conhecer” deve ser entendido hebraisticamente, isto é, no sentido de envolvimento de amor. Da mesma forma ele deve ser entendido aqui em Pedro. A presciência de Deus Pai, aqui, nada tem a ver com as coisas que Deus sabia de antemão que haveriam de acontecer no futuro, mas tem a ver com o amor de antemão que Deus tem por seus eleitos. Na verdade, eles são eleitos com base nesse amor de antemão (“presciência”). A eleição também está vinculada à obra da santificação do Espírito. A eleição não pode estar dissociada da santificação, porque somos eleitos para que um dia a santidade passe a ser nossa, uma santidade como a de Cristo segundo a sua humanidade. Paulo afirma que Deus nos escolheu em Cristo para sermos santos e irrepreensíveis perante ele” (Ef 1.4). Portanto, nunca separe a eleição da nossa santificação operada pelo Espírito Santo. A eleição também está vinculada à obra de Jesus Cristo. Os eleitos de Deus são beneficiários da obra expiatória de Cristo. O texto diz que eles são eleitos “para a aspersão do sangue de Cristo”. Todos os eleitos de Deus morrem sob o castigo de Deus quando eles são contados em Cristo, na sua morte de sangue. Todavia, além de todas essas coisas, a eleição também está vinculada à nossa obediência. Atenção: fomos eleitos na eternidade não por causa da nossa futura obediência na história, mas para que fôssemos obedientes, ou eleitos para a obediência. Essa obediência deve ser produto do nosso amor por Cristo, produto de nossa fé em Cristo, mas, antes de tudo isso, a nossa obediência é evidência de que somos eleitos em Cristo. “Quando Israel se tornou o povo peculiar de Deus, ele, 512. Juan Calvino. Epistola a los Romanos (Grand Rapids: Subcomision Literatura Cristiana da Iglesia Cristiana Reformada, 1977), 29.

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por sua seleção de acordo com a sua vontade soberana, externamente os separou para si, para que fossem sujeitos às suas leis. Da mesma forma, quando os indivíduos são selecionados por Deus para formar uma parte de seu povo peculiar sob uma economia melhor, de acordo com a sua presciência, e são espiritualmente separados, é para que eles possam obedecer sua lei – para que possam crer no evangelho...”.513 Portanto, quando obedecemos a Cristo, damos prova de que somos eleitos de Deus, confirmando, portanto, a nossa “vocação e eleição” (2Pe 1.10).

C. OS RESULTADOS DA OBEDIÊNCIA DE AMOR 1. BEM-AVENTURANÇA Lucas 11.27, 28 – “Ora, aconteceu que, ao dizer Jesus estas palavras, uma mulher, que estava entre a multidão, exclamou e disse-lhe: Bemaventurada aquela que te concebeu e os seios que te amamentaram! Ele, porém, respondeu: Antes bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!”

Esses versos apontam para as pessoas que se alegram pelas coisas que não são importantes. Em virtude do ensino maravilhoso de Jesus, mencionado nos versos anteriores, a mulher do texto considerou bem-aventurada Maria, que havia concebido Jesus em seu ventre, e bem-aventurados os seus seios, porque haviam amamentado esse Redentor tão maravilhoso. Então, Jesus corrigiu o enfoque dela. Jesus lhe mostrou que há coisas mais importantes pelas quais uma pessoa pode ser mais bem-aventurada! A bem-aventurança maior mencionada por Cristo pode ser dividida em duas partes:

a. Bem-aventurança de ouvir “Antes bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus...”

Muitos no passado quiseram ouvir as palavras de graça que saíram da boca de Jesus Cristo, mas morreram sem poder ouvi-las. Alguns saudaram de longe as palavras do Messias, mas não puderam ouvi-las. O próprio Jesus disse: “Bemaventurados os olhos que vêem as cousas que vós vedes. Pois eu vos afirmo que muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes, e não viram, e ouvir o que ouvis, e não o ouviram” (Lc 10.23, 24). A mulher deveria entender que o só ouvir as boasnovas pregadas por Cristo e a sabedoria de suas palavras no seu ensino geral já era uma bem-aventurança maior do que a que Maria teve ao conceber Jesus! Com isso 513. John Brown. Expository Discourses on the First Epistle of Peter, vol. 1 (Evansville, Indiana: The Sovereign Grace Book Club, 1958), 22.

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quero dizer que há cousas prioritárias na vida que devem ser ouvidas e, por causa delas, nós nos tornamos bem-aventurados.

b. Bem-aventurança de obedecer “Antes bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!”

A bem-aventurança maior ainda do que a de simplesmente ouvir o que os profetas e reis quiseram ver e ouvir é o fato de ser obediente à Palavra de Cristo. Matthew Henry disse que “embora seja um grande privilégio ouvir a palavra de Deus, todavia, são verdadeiramente abençoados, benditos de Deus, os que a ouvem e a guardam, guardando-a na memória, e guardando-a no modo de vida deles e como regra de vida deles”.514 A bem-aventurança de “guardar” a Palavra de Deus é que ela fica num lugar que ninguém pode arrancá-la: o coração. Por isso, o Salmista disse: “Guardo no coração as tuas palavras”. Além disso, quando guardamos no coração as palavras de Deus, “não pecamos contra ele” (Sl 119.11). Guardar aqui é sinônimo de obediência! Feliz é o cristão que guarda a Palavra do Senhor!

2. PURIFICAÇÃO DA ALMA 1 Pedro 1.22 – “Tendo purificado as vossas almas pela vossa obediência à verdade, tendo em vista o amor fraternal não fingido, amaivos de coração uns aos outros ardentemente, pois fostes regenerados, não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente.”

Por natureza, a alma humana é impura. Se entregue a si mesma, a alma humana fará somente o que desagrada a Deus. Para que ela faça alguma coisa diferente é necessária uma operação divina mediada pela Palavra da verdade. O aspecto fundamental desse verso é que o amor ao fraternal, que deve ser exercitado de modo ardente, tem nascedouro somente na alma purificada pela verdade. A capacidade moral para amar da maneira exigida por Deus vem somente pela ação divina através da palavra de Deus que é viva e permanente! É impossível mostrar esse tipo de amor sem essa capacitação moral, que se constitui na purificação da alma. Brown diz que “a alma não purificada devastada pela lepra asquerosa da impiedade, mundanidade, egoísmo e malignidade, era moralmente incapaz de funções sadias de sua natureza afável. Ela não poderia amar Cristo, o Cristianismo ou os cristãos”.515 A capacidade moral perdida no Éden é restaurada somente quando o homem é nascido do Alto pela instrumentalidade da palavra de Deus. Essa 514. Matthew Henry. Exposition of the New Testament – Matthew to Luke, vol. I (Londres: James Nisbet and Co., 1857), 699. 515. Expository Discourses on the First Epistle of Peter, vol. 1 (Evansville, Indiana: The Sovereign Grace Book Club, 1958), 178.

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capacidade moral de amar o que é realmente amável é trazida à existência novamente. O que estava perdido foi encontrada pela ação divina. Na seqüência da vida cristã, sua vida é crescida moralmente quando ele é santificado constantemente por essa bendita Palavra da Verdade. A verdade da qual o texto fala deve ser entendida como sendo a “revelação do caráter de Deus; a grande realidade, na pessoa e obra de seu Filho, contida no evangelho”.516 A obediência a essa verdade é dar lugar à sua influência. “Aquele que se recusa a atender, a considerar e a crer nessa verdade, rebela-se contra ela, e não pode se submeter à sua influência. Por outro lado, aquele que a atende, que a considera e que crê nela não pode senão ceder à sua influência.”.517 A obediência de amor à verdade com a qual o cristão se oferece a Cristo traz purificação da alma. Por isso, Pedro fala que os seus leitores haviam purificado a [sua] alma pela vossa obediência à verdade tendo em vista o amor fraternal. Portanto, é uma impossibilidade o genuíno amor espiritual-fraternal sem a purificação da alma operada pela Palavra da verdade!

3. GLORIFICAÇÃO A DEUS Análise de texto 2 Coríntios 9.12, 13 – “Porque o serviço (diakoni/a) desta assistência (leitourgi/aj) não só supre a necessidade dos santos, mas também redunda em muitas graças a Deus, visto como, na prova desta ministração (diakoni/aj), glorificam a Deus pela obediência da vossa confissão quanto ao evangelho de Cristo, e pela liberalidade com que contribuís para eles e para todos.”

Durante todo o capítulo 9 dessa carta Paulo está tratando da contribuição e do socorro a igrejas mais pobres, e ele instrui os cristãos de Corinto sobre a necessidade de contribuir de maneira correta. Paulo considera a contribuição cristã como uma ação diaconal onde os cristãos ministram (ou servem) uns aos outros nas suas necessidades. Os versos 12 e13 mostram algumas coisas importantes que precisam ser enfatizadas:

a. O verdadeiro Cristianismo se evidencia em obediência ao evangelho de Cristo. O Evangelho de Cristo contém muitos preceitos. Um deles trata da assistência aos santos. Quando os cristãos contribuem de maneira correta e de maneira liberal, eles demonstram obediência ao evangelho de Cristo, o que significa uma obediên516. Ibid., 179. 517. Ibid., 179.

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cia ao próprio Cristo, obediência essa que eles lhe devem. Eles são ministros (diáconos) de Cristo para prestarem assistência (leitourgia) aos santos. Os cristãos contemporâneos possuem muitas oportunidades para evidenciar a sua obediência a Cristo no serviço aos santos. Uma boa teologia cristã produz uma boa prática cristã, e essa prática da assistência aos santos é incentivada e ordenada muitas vezes na Escritura como um ato de obediência a Jesus Cristo.

b. O verdadeiro Cristianismo mostra sua obediência em diaconia, redundando em muitas graças a Deus A obediência dos verdadeiros cristãos é mostrada em atitudes e atos deles para com os que estão em necessidade. É dever dos que têm sido muito abençoados repartir com os que têm menos. Aqui não se trata do exercício do dom diaconal (cf. Rm 12.7 “ministério”, i.e., diaconia) que alguns cristãos possuem no corpo de Cristo, mas trata-se de um dever que os cristãos mais abastados têm para com os mais necessitados. A nossa obediência a Cristo deve ser evidenciada em obras de caridade cristã. Se houvesse uma obediência real da Igreja de Cristo nessa área, não haveria nenhum necessitado no seu Corpo. Quando os cristãos exercitam esse dever, muitas ações de graça são elevadas ao Senhor dos céus.

c. O verdadeiro Cristianismo de obediência dá crédito à sua confissão, trazendo glória a Deus pelo serviço prestado Quando os cristãos obedecem ao mandamento de Cristo de socorrer os necessitados, algumas coisas acontecem: (1) a profissão de fé que os cristãos fazem recebe crédito, porque as obras confirmam a confissão. Não se trata de uma confissão esvaziada de significado prático, mas de uma confissão comprovada por atitudes; (2) o nome de Deus é exaltado pela confissão dos cristãos e pela maneira liberal como eles contribuem para os que estão necessitados. A glorificação do nome de Deus se dá entre os homens que vêem “as vossas boas obras e glorificam a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.16). Essa glorificação não aumenta a glória que existe inerentemente em Deus, mas faz com que os homens tenham Deus em mais alta conta, dando exaltação ao seu nome.

D. A OBEDIÊNCIA DE CRISTO E A NOSSA Hebreus 5.8, 9 – “... Embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas cousas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem.”

Esses versos falam de duas obediências: a de Cristo ao Pai e a nossa a ele. É dessas duas obediências que vamos tratar a seguir.

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A obediência é uma das coisas mais importantes que Deus nos ensinou. Talvez ele a tenha ensinado tanto porque ela é tão difícil. A fim de que a obediência seja agradável a Deus, ela tem de ser fruto da operação do Espírito Santo em nós mediante a própria Palavra de Deus. Foi a não-obediência que levou o povo do passado a perder a manifestação da bondade de Deus. Faz parte da economia divina que somente pela obediência podemos ser restaurados ao favor divino. Nesse caso, a obediência tem de ter um caráter meritório. Todavia, não podemos mais praticar esse tipo de obediência. Essa obediência só pode ser cumprida por alguém absolutamente santo, que não recebeu a mancha nem a contaminação do pecado. Nenhum de nós se encontra nesse estado de oferecer qualquer ato de obediência para alcançar a vida eterna perdida no Éden. Antes de pecar, Adão poderia conseguir a imperdibilidade de sua vida de comunhão com Deus pela obediência aos mandamentos de Deus. Afinal de contas, os mandamentos de Deus foram feitos para se obter vida eterna (cf. Rm 10.5), mas, com o pecado entrando no mundo, aqueles que foram afetados por ele já não podem obedecer da forma exigida por Deus. É exatamente nesse ponto que nós precisamos entender a necessidade da obediência de Cristo. O Verbo encarnou-se, tornando-se o Redentor divino-humano, Jesus Cristo, para fazer precisamente o que o primeiro Adão não fez: obedecer. Jesus Cristo, o Deus-homem, teve de “aprender a obediência pelas coisas que sofreu” (Hb 5.8) para que pudesse se tornar pronto, amadurecido, aperfeiçoado, a fim de poder tornar-se o Autor da salvação eterna daqueles que o obedecem (Hb 5.9). Sem essa obediência meritória de Cristo ele não poderia ser o Autor da Salvação e se não obedecesse ele também se tornaria um carente de salvação. Todavia, a fim de salvar e dar vida eterna àqueles por quem veio morrer e em lugar de quem veio obedecer, ele trilhou os caminhos da obediência aos preceitos de seu Pai. Por isso Jesus disse: “... assim como eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai, e no seu amor permaneço” (Jo 15.10). Não haveria outro meio para ele permanecer no amor do Pai a não ser pela obediência. A obediência caracterizava a vida moral e relacional de Jesus Cristo. Nesse sentido, temos de imitá-lo, porque temos a mesma natureza humana dele. Ele teve a atitude de obediência segundo a sua natureza humana, e, por isso, continuou no amor do Pai. Igualmente, devemos permanecer no amor do Pai pela mesma atitude de obediência. Devemos guardar os mandamentos de Cristo porque eles são o caminho da nossa obediência. Essa nossa obediência a Cristo, que é o produto do nosso amor por ele e de nossa fé nele, é chamada de obediência da fé (Rom. 1:5; 16:26). Nada há que impulsione o homem aqui neste mundo como a fé. É ela que leva o ser humano a aventuras espirituais fantásticas! A fé move uma pessoa à obediência. A Escritura diz que Abraão, quando chamado, obedeceu pela fé (Hb 11.8). As nossas realizações neste mundo são proporcionais à nossa fé. Essa fé em Cristo é que nos move à obediência.

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O Verbo teve de encarnar-se para poder obedecer como um homem idealmente deve obedecer. O Redentor divino humano aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e veio a tornar-se o autor da salvação eterna deles (Hb 5.8, 9). Esse é o grande laço de unidade entre Jesus e seu povo. A obediência de Jesus deve ser o alvo da nossa obediência ao mesmo tempo em que é o fruto dela. Jesus Cristo foi obediente ao seu Pai e nós, os seus irmãos, devemos ser obedientes a ele. São dois tipos de obediência: a de Jesus Cristo é meritória, a nossa é obediência de amor, gratidão e fé. A obediência de Jesus nos dá vida eterna e torna Jesus Cristo aceitável para morrer pelos nossos pecados. A nossa conseqüente obediência é sem mérito, mas necessária para que permaneçamos no amor de Cristo. Como servos de Cristo, devemos-lhe obediência. “A ele ouvi”, disse o seu Pai aos outros filhos seus a respeito do Filho Amado. Portanto, como ordenação divina, obedecer ao Filho como o Filho sempre foi obedecer ao seu Pai. A obediência é o elo de ligação entre o Filho e outros filhos de Deus. É nosso dever pedir ao Pai celestial forças para uma vida de obediência ao Filho, a fim de que possamos trazer honra ao Filho e ao Pai que o enviou. Quanto mais obedientes somos a Cristo, mais conhecemos a sua vontade. A experiência da obediência nos torna maduros e parecidos com aquele a quem obedecemos. Os filhos de Deus que obedecem ao Filho de Deus provarão a grande alegria que a obediência produz. A obediência nos une cada vez mais a Cristo e a ao nosso Pai celestial, produzindo sempre boa vontade de Deus para conosco, fortalecendo nossa vida espiritual e trazendo bênçãos celestiais sobre o nosso coração. Portanto, façamos sempre o que é certo e seremos benditos de Deus!

E. APLICAÇÃO 1. NÃO TORNE A SUA OBEDIÊNCIA MENOR DO QUE A DE TODA A CRIAÇÃO Toda a criação presta obediência a Jesus. Porque não nós? Veja como a criação e as criaturas não humanas obedecem a Jesus Cristo ainda que nem todas com consciência e nem todas o fazem de coração.

a. Os ventos lhe obedecem Mateus 8.27 – “E maravilhavam-se os homens, dizendo: Quem é este que até os ventos e o mar lhe obedecem?”

Jesus possuía autoridade sobre toda a criação porque ele é o Criador de todas as coisas. A sua autoridade se evidencia nas suas ordens aos elementos da natureza. Obviamente, a obediência dos elementos da natureza não é uma obediência consciente, porque a criação é inanimada.

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O espanto dos “homens” era, na verdade, o espanto dos próprios discípulos que estavam com ele no barco. “Esses homens estão perplexos. Começam a compreender que Jesus é muito maior do haviam previamente imaginado. Ele exerce controle não só sobre os ouvintes, os enfermos e os demônios, mas até mesmo sobre os ventos e as ondas”.518 A criação inanimada obedece a Jesus: atendendo às suas ordens, os ventos se acalmam e as ondas desaparecem. Ora, se a criação inanimada obedece a Jesus, por que nós, criaturas inteligentes e responsáveis, não fazemos o mesmo? Será que haveremos de obedecer menos do que a criação inanimada? Você e eu temos o dever de obedecer mais e de forma voluntária e alegre às ordenanças de Jesus.

b. Os espíritos maus o obedecem Marcos 1.27 – “Todos se admiraram, a ponto de perguntarem entre si: Que vem a ser isto? Uma nova doutrina! Com autoridade ele ordena aos espíritos imundos e eles lhe obedecem.”

Obviamente, a obediência deles não é uma obediência de amor nem de gratidão nem uma obediência forçada, mas uma obediência que mostra a capitulação deles diante do poder de Jesus Cristo. Eles não conseguem se impor sobre o Senhor dos senhores, aquele que tem domínio sobre tudo. Então, servilmente eles se curvam diante da palavra poderosa de Jesus Cristo. Na verdade, a força dessa passagem está mais na autoridade de Jesus do que na obediência dos demônios. Todavia, não podemos deixar de lado a obediência deles. Isso mostra que temos um dever ainda maior do que eles. Somos filhos de Deus, e, como resultado da ação renovadora do Espírito Santo em nós, somos ainda mais devedores da obediência. Ora, se os demônios obedecem a Jesus (ainda que pela capitulação perante o poder de Jesus), não temos nós muito mais razões que os demônios para obedecer ao Senhor Jesus? Em que sentido você pensa que essas verdades influenciam a sua maneira de ver Jesus e como você pode também obedecer a Jesus no sentido melhor ainda do que os exemplos mencionados da criação e dos demônios? Há umas poucas coisas que devem ser ditas no final desta seção. Diferentemente da obediência da criação e da obediência dos demônios:

(1) A sua obediência deve ser voluntária Na obediência voluntária, você deve se distinguir da obediência da criação, e, num certo sentido, da obediência dos demônios. A voluntariedade a que me refiro 518. William Hendricksen, Mateus, vol. 1 (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001), 582.

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aqui é a capacidade de obedecer interiormente motivado por uma mudança do coração que altera a nossa maneira de querer as coisas. Quando uma pessoa voluntariamente obedece ao Senhor, é porque ela foi movida pelas suas disposições interiores que afetam a sua vontade. Logo, essas disposições do coração despertam os mecanismos volitivos que desejam obedecer.

(2) A sua obediência deve ser de amor Diferentemente da obediência dos demônios, que é produto de uma capitulação diante do poder maior, que é Jesus Cristo, a sua obediência deve ser produto do seu amor por Jesus. Porque você foi atingido pelo amor dele numa determinada ocasião de sua vida, você responde às ordens dele pelo amor que você adquiriu por ele. A sua obediência deve superar em muito a obediência dos demônios, porque jamais eles obedecem por amor a Jesus. Afinal de contas, Jesus deu a sua vida por você, não por eles. Portanto, você deve a Jesus obediência de amor. Nesse sentido, também não torne a sua obediência menor do que a obediência da criação.

(3) A sua obediência deve ser de gratidão Diferentemente dos elementos da natureza e dos demônios, você pode obedecer a Jesus Cristo como gratidão do coração pelas muitas coisas que ele lhe tem feito. A gratidão não é parte dos elementos da natureza por causa da irracionalidade deles; a gratidão não é parte dos demônios por causa da sua revolta interior contra o Senhor. Eles não são redimidos e, portanto, não devem obediência de gratidão, mas você deve. Nesse sentido, também, não torne a sua obediência menor do que a da criação.

2. NÃO TORNE A OBEDIÊNCIA A CRISTO NUMA QUESTÃO DE OPÇÃO Lucas 6.46-49 – “Por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando?...”

Na presente evangelização, tem sido afirmado que uma pessoa pode aceitar Jesus sem o compromisso de uma obediência incondicional a ele. Essa uma evangelização barateada, na qual a obediência se torna algo opcional. É por essa razão que muitos que entram pela porta do batismo numa evangelização empobrecida acabam saindo logo depois por outra porta. Eles não possuem compromisso com o Cristo dos Evangelhos. Eles não são ensinados a obedecer aos ensinamentos do Senhor para permanecerem no amor de Deus. São ensinados que a graça de Deus dispensa qualquer obrigação evangélica. Eles não se submetem às leis de Cristo como Senhor, embora insistam na necessidade de aceitar a pessoa de Cristo. O “aceitar”, na linguagem deles, não passa de um assentimento, às vezes acompa-

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nhado de emoção. Nada mais! E assim aprendem que é possível aceitar Cristo sem qualquer compromisso com as leis do seu Senhorio. Uma evangelização que não torna o evangelizando comprometido com a obediência da lei de Cristo não produz pessoas cristãs maduras, que apresentem a varonilidade de Jesus Cristo. Sem a santidade da obediência, ninguém verá o Senhor (Hb 12.14), pois a obediência resulta numa vida de piedade progressiva. Se uma pessoa alega pertencer a Cristo, ela tem de mostrar um forte senso de obediência a ele, expresso numa grande sede da Palavra de Deus, num crescente ódio pelo pecado e num desejo claro de crescimento espiritual, sempre velando para ficar firme na fé (2Cr 13.5). A obediência a Cristo, portanto, não é uma matéria de opção, mas uma grande necessidade que mostra a evidência do nosso próprio cristianismo. Se Jesus Cristo é o nosso Senhor, então nós lhe devemos obediência. Aliás, no ensino do Sermão do Monte, Jesus lhes perguntou: “Por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando?” (Lc 6.46). Isso quer dizer que a nossa relação com Jesus implica em obediência, se ele é considerado o nosso Senhor. Ficamos na posição de devedores de obediência a ele, se somos seus servos. Então Jesus lhes ensina a parábola dos dois fundamentos, que trata de dois tipos de homens: os que ouvem e não praticam e os ouvem e praticam a sua palavra. O fundamento é a obediência ao ensino de Jesus. O homem que não construiu sobre o fundamento ouviu o ensino, concordou com ele, mas faltou com a obediência a ele. Mas aquele que ouve e não obedece a Cristo, não é realmente servo de Cristo, e acaba perdendo tudo o que construiu (Lc 6.47-49). Veja as razões519 pelas quais você não pode tornar a obediência a Cristo uma questão de opção.

a. A obediência a Cristo não é opcional porque ele está no fundamento da vida cristã Algumas pessoas crêem que o fundamento do Cristianismo é unicamente a fé em Cristo, mas esta não é a totalidade da verdade. Somos salvos pela graça, mediante a fé. A fé salvadora é muito importante para que desfrutemos das bênçãos espirituais que recebemos como resultado da obediência passiva de Cristo e também desfrutamos da vida eterna, que advém da obediência ativa de Cristo. Com isso em mente, algumas pessoas poderiam achar simplesmente a fé suficiente, independentemente da obediência a Cristo. É verdade que somos salvos pela graça através da fé, mas o texto de Paulo continua dizendo que devemos praticar as boas obras que Deus de antemão preparou para que andássemos nelas (cf. Ef 2.8-10). A obediência não pode ser deixada de lado nessas questões espirituais. Ela é parte do fundamento de nossa vida cristã. 519. O que vem a seguir é uma adaptação de um estudo feito por Steven J. Cole, pastor da Flagstaff Christian Fellowship, no estado do Arizona, que se encontra no site http://www.fcfonline.org/80998.htm

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Os cristãos que citam João 3.16 falham em não prestar atenção a João 3.36, que trata daquele que mostra rebeldia ou da não-obediência ao Filho permanecendo sobre si a ira divina. Fé e obediência não devem e não podem estar dissociados, porque muitos textos do Novo Testamento equalizam a fé salvadora com obediência e a incredulidade com a desobediência, porque a conexão entre essas coisas é inseparável.520 Se uma pessoa crê realmente, ela estará em submissão a Cristo, ainda que a submissão não seja demonstrada de forma plena neste mundo porque a redenção ainda não foi completada. Todavia, o cristão comprometido com Cristo tem santos desejos de obediência e ama Jesus Cristo de todo o seu coração. A fé genuína não é apenas um assentimento, mas ela evidencia-se numa obediência de amor da parte do cristão, ocasionando uma santidade progressiva nele. A obediência, portanto, está no core na vida cristã. Não pode haver real vida cristã se um forte senso de obediência. Por isso, ela não é opcional. Numa análise do texto de Lucas 6.46-49, podemos ver as razões pelas quais a obediência não é algo opcional.

b. A obediência a Cristo não é opcional porque ela é o teste verdadeiro da profissão de fé em Cristo Lucas 6.46 – Por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando?”

Observe que Jesus Cristo, nesse verso, arroga para si o título Senhor, pelo fato de exigir obediência dos seus discípulos. É como se ele tivesse dito a eles: “Não me chamem Senhor se não me obedecem!”. O verso acima autoriza-nos a pensar na plena realeza ou senhorio de Cristo sobre os homens. Ele governa a totalidade da vida e toda forma dela, incluindo os pensamentos dos homens. A obediência a esse Senhor não deve ser considerada como alguma coisa opcional de nossa parte, mas um compromisso que temos como servos diante do nosso Senhor. Há muitos que fazem uma profissão do senhorio de Cristo, mas vivem como se ele não existisse. Isso está claro na afirmação do próprio Senhor a respeito de alguns de seus supostos discípulos: “Nem todo que me diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7.21). Essas pessoas são hipócritas, porque apresentam a aparência de cristãos. Exteriormente elas se mostram cristãs, mas a sua profissão não é seguida de uma submissão incondicional ao Senhor. É de extrema importância que a nossa profissão do senhorio de Cristo deva obrigatoriamente vir acompanhada da verdadeira obediência a ele. Somente assim a nossa profissão do seu senhorio será verdadeira e crível. 520. Cf. textos como At 5.32; 6.7; Rm 1.5; 2.4-10; 6.16; 10.16, 21; 15.18; 16.19, 26; 2Ts 1.8; Hb 3.18, 19; 5.9; 11.8, 31; 1Pe 1.2, 22; 2.8; 4.17.

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Ainda que muitos cristãos professos possam enganar outras pessoas, eles não podem enganar Deus, que conhece o coração deles. A obediência exterior não é suficiente. Deus sabe quando queremos realmente obedecer a Cristo, porque ele conhece as intenções do nosso coração. Se professamos a Cristo como Senhor, isto é, se o temos nos lábios, temos de tê-lo também em nossas boas obras, ou seja, numa vida de obediência às suas palavras. A nossa profissão de fé nele tem de ultrapassar o nível do pensamento. Ela deve se exteriorizar nas palavras e nas ações. Essa é a verdadeira e eficaz profissão de fé. A força do verso acima é que ele apresenta uma grande advertência de Jesus Cristo para todos os cristãos. Se não entendermos essa advertência, então teremos perdido a intenção de Jesus Cristo. Os seus ouvintes estavam acostumados a ouvir as profissões das pessoas sem se preocuparem com a honestidade e seriedade delas. Jesus está se dirigindo aos que professavam o senhorio dele sem se darem conta da seriedade da afirmação que faziam. Eram pessoas com boas palavras na boca, cheias de expressões de louvor nos lábios, mas que não haviam pesado a importância do que falavam. Estavam sendo condenadas por suas próprias palavras. Um dia, essas pessoas vão ouvir de Jesus as seguintes palavras: “Apartai-vos de mim...”. Serão condenadas porque a profissão delas nunca foi acompanhada da obediência a Cristo (cf. Mt 25.41-46). A parábola de Jesus em Lucas 6.47-49 tem como objetivo mostrar que o grande problema dos seus ouvintes era uma profissão falsa e superficial. Essa advertência de Jesus aos seus discípulos serve muito para todos nós, que vivemos muitos séculos depois. Diante dela, os cristãos devem se examinar a si mesmos para verificar se realmente estão na fé, se realmente Jesus Cristo é Senhor deles. Submeta-se ao crivo das Escrituras para ver se você se encontra entre aqueles que obedecem a Jesus como seus servos. Não viva em desobediência a Jesus se você professa que ele é o seu Senhor e Salvador. Seja a sua vida coerente com a sua profissão de fé. Portanto, a obediência a Jesus Cristo não é uma questão opcional, mas uma característica obrigatória da verdadeira vida cristã. Ela é o teste para provar a sua a genuinidade ou falsidade da sua confissão.

c. A obediência a Cristo não é opcional porque ela é o fundamento que resiste os testes desta vida Lucas 6.47, 48 – “Todo aquele que vem a mim e ouve as minhas palavras e as pratica, eu vos mostrarei a quem é semelhante. É semelhante a um homem que edificando uma casa, cavou, abriu profunda vala e lançou o alicerce sobre a rocha; e, vindo a enchente, arrojou-se o rio contra aquela casa, e não a pode abalar, por ter sido bem construída.”

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O texto acima apresenta dois construtores. O primeiro deles é apresentado como quem não somente ouve as palavras de Jesus, mas também as pratica. É o típico construtor obediente, que segue os padrões estabelecidos para uma boa construção. Finca os alicerces sobre a rocha e constrói uma casa em lugar sólido, que suporta a batida forte dos ventos e da enxurrada. A casa construída é indicativa de nossa vida. A grande questão é se estamos construindo a nossa vida sobre o grande princípio da obediência às palavras de Cristo ou sobre o desastroso princípio da profissão sem a obediência. Construir uma vida leva tempo e custa muito. Por essa razão, devemos fazer com que a construção de nossa vida seja sobre fundamento sólido. O fundamento da obediência não é opcional na construção de uma vida segura. A obediência é fundamental para que a vida não seja destruída pelas tempestades que a açoitam. Não adianta enfeitar a vida com uma série de ornamentos se a obediência a Cristo não é a espinha dorsal dela. Todas as outras coisas gastas na construção de uma vida serão desperdiçadas se não estiverem amarradas ao fundamento da obediência. Quando construímos nossa casa devemos ter o cuidado para que a construção resista todos os ventos e possíveis enchentes que a região possa enfrentar, especialmente em lugares onde enchentes aparecem de modo rápido como é próprio de alguns bairros de grandes metrópoles em nosso país. Os ventos e as enchentes são figuras para expressar os embates e provações que nossa vida enfrenta. Uma pessoa que constrói a sua vida sobre a obediência a Jesus tem uma vida bem solidificada que pode suportar todos os ataques e permanecer inabalável. De modo contrário, aquele que professa ser cristão mas não constrói a sua vida na obediência de amor a Cristo terá a sua vida destruída e arruinada, e sofrerá dano no juízo de Deus. Nessa parábola há somente dois resultados: a casa permanece firme em pé ou cai. Não há uma outra possibilidade entre essas duas. Só há dois destinos mencionados na Escritura: céu ou condenação. Aqueles que constroem sua vida no fundamento da fé cheia de obediência desfrutam da redenção, mas aqueles que professam fé sem obediência recebem a condenação (Tt 1.16). Ninguém pode perceber diferença nas duas construções antes dos ventos e da enchente chegarem. Elas se parecem muito, mas a diferença se vê na provação. Uma permanece firme e a outra desaba. A diferença está na parte escondida no solo, que é o fundamento. Os alicerces, em geral, não são bonitos, enfeitados, mas eles são absolutamente essenciais se o que queremos é a solidez das coisas que construímos. Portanto, a solidez de uma vida deve estar repousada na obediência a Cristo Jesus, que faz com que todas as coisas sejam suportadas firmemente. A obediência a Jesus Cristo não é uma opção que você tem, se você é cristão. Ela é fundamental para a segurança da sua vida aqui neste mundo, e, por fim, no porvir. Somente uma vida de obediência pode passar nos testes que Deus nos faz passar nesta vida.

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Por isso é altamente recomendável que a nossa profissão de Cristo seja acompanhada da nossa obediência a ele, pois a obediência é o único fundamento que deixa a nossa vida estável no meio deste mundo cheio de tempestades.

d. A obediência a Cristo não é opcional porque aqueles que não obedecem Cristo enfrentam uma destruição repentina e final Lucas 6.49 – “Mas o que ouve e não pratica é semelhante a um homem que edificou uma casa sobre a terra sem alicerces, e arrojandose o rio contra ela, logo desabou; e aconteceu que foi grande a ruína daquela casa.”

Por que um homem faria uma coisa tão estúpida como edificar sobre a areia sem alicerces? Poderíamos considerar diversas razões: 1. Primeiramente, a construção exigiria que ele gastasse tempo e energia no trabalho de escavar para o fundamento. Portanto, para ele, seria muito mais fácil erigir a casa sem o incômodo de providenciar um alicerce devido. Assim, esse homem preferiu o caminho mais fácil, o caminho que exigia menos dele. Esse é o comportamento mais comum quando enfrentamos grandes tarefas. Preferimos o meio mais fácil, embora saibamos que não seja o mais correto. Somente mais tarde, com o correr do tempo, é que percebemos que deveríamos ter percorrido o caminho mais difícil e mais trabalhoso, porque as os caminhos mais curtos, às vezes, nos trazem conseqüências mais danosas. Na verdade, o caminho mais fácil, freqüentemente, significa o caminho da desobediência. Esse caminho o leva para onde você quer, e não para o lugar que você deve ir. Ir para Tarsis era mais cômodo do que ir para Nínive, no pensamento de Jonas, e o é na mente de muitos cristãos. A fuga é mais cômoda do que a obediência, porque o caminho da obediência é mais difícil e mais penoso. Obedecer, às vezes, custa muito: custa sacrifício, custa tempo, esforço, e mesmo dor. O homem que edificou a sua casa sem o alicerce preferiu o caminho da desobediência, da facilidade, do comodismo. Ele não pensou nas conseqüências do seu ato, ele não pensou nos dias de tempestade quando as chuvas chegassem. Apenas pensou no conforto de morar logo na casa feita às pressas e da maneira mais fácil. 2. Uma segunda razão que levou o homem a construir uma casa sem o alicerce é que ele queria benefícios imediatos sem gastar muito tempo, dinheiro, nem energia. Para ele, bastava ter uma cobertura sobre a sua cabeça, ainda que um telhado sem o suporte de paredes bem alicerçadas. O que importava era se esconder do sol causticante e da brisa que certamente lhe incomodava. No reino espiritual, muitas pessoas querem Jesus apenas para se beneficiar do que ele pode oferecer, sem se preocuparem com a obediência a Cristo, arrependendo-se de seus pecados. Eles querem desfrutar das bênçãos sem passar pelo esforço da obediência ao Senhor. O edifício espiritual deles está construído sobre o entretenimento espiritual e sobre a

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vida cristã fácil, sem as exigências do labor cristão. O fundamento da obediência não faz parte da construção espiritual deles. Sobre esses, certamente virá o julgamento de Deus, e a construção espiritual deles facilmente desabará. 3. Uma terceira razão pela qual ele preferiu construir a casa sem um fundamento devido é porque ele possui uma visão muito míope. Ele vive somente para o aqui e o agora, sem pensar no futuro. Enquanto o homem estava construindo a casa, não estava chovendo nem ventando forte. Ele pensou que seria sempre assim. Ele não pensou na possível tempestade, nem na enchente que o rio poderia trazer, transbordando em suas margens. Uma enchente não estava nos planos desse homem. Ele apenas queria levantar a casa, entrar sob seu teto e viver regaladamente os confortos que ela proporcionava. Infelizes são as pessoas que vivem pensando que nada pode acontecer de diferente daquilo que elas imaginaram, infelizes são os que não pensam na possibilidade das intempéries quando constroem as suas casas, mesmo as espirituais. O julgamento de Deus sempre vem. Disso não devemos nos esquecer. Se você é um cristão, não pense somente nas cousas boas que Deus pode mandar, mas também nas tempestades que podem vir sobre a sua casa. Tudo o que você construir poderá vir a cair quando o tempo da destruição chegar. É importante, portanto, que as suas construções não sejam sem fundamento. Se você quer que Deus seja glorificado nas coisas que você constrói, faça as suas construções bem alicerçadas, de modo que elas suportem todas as provações que certamente aparecerão.

F. CONCLUSÃO Não construa sobre a areia da desobediência, mas sobre a rocha da obediência. Veja como você pode trilhar o caminho da obediência na construção da sua vida: Análise de Texto Lucas 6.47 – “Todo aquele que vem a mim e ouve as minhas palavras e as pratica, eu vos mostrarei a quem é semelhante.”

Portanto, Jesus mencionada três verbos importantes no verso acima: vir a Jesus, ouvir suas palavras, e praticar suas palavras.

1. VOCÊ PRECISA VIR A JESUS Vir a Jesus, aqui, pode significar tanto se aproximar dele para ouvir alguma coisa como também a idéia de um relacionamento com ele. Aqueles que são desobedientes a Cristo não possuem um real relacionamento com ele, embora façam algumas coisas externamente para que se pareçam com os cristãos. Com esses Jesus não possui qualquer relacionamento de amor (cf. Mt 7.23 onde o verbo “conhecer” deve ser entendimento hebraisticamente como não possuir relacionamento de amor).

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Você, leitor, já veio a Jesus? Isto é, você já tem relacionamento amoroso com Jesus Cristo, desejando ardentemente ouvir as suas palavras? O Cristianismo é, fundamentalmente, um relacionamento pessoal com o Cristo redivivo! Pelo sangue do Redentor divino-humano, os cristãos são reconciliados com Deus e mantém comunhão com seu Filho Jesus Cristo. Esse é o significado mais profundo de “vir a Cristo”. Relacione-se com ele e, desse modo, você terá pleno acesso ao Pai, já que, sem vir a ele, ninguém vem ao Pai!

2. VOCÊ PRECISA OUVIR AS PALAVRAS DE JESUS “Ouvir as palavras de Jesus” significa mais do que o exercício dos ouvidos. Significa crescer no conhecimento e no entendimento do seu ensino, que hoje está disponibilizado na Escritura Sagrada. Se você “não ouve” constantemente a Palavra de Deus, aprendendo dela sobre o modo como o Redentor quer que você viva, você certamente haverá de obedecer aos ditames da sua inclinação pecaminosa. Não somente o mundo pressiona você a agir segundo a carne, mas também as suas próprias disposições interiores. Portanto, o conselho do Redentor é que você “ouça” as Palavras de vida que saem da sua boca, a fim de que você possa ser vitorioso na sua vida cristã. Os dois primeiros e maiores mandamentos ensinam duas verdades indispensáveis que você deve ouvir de Jesus: (1) você deve amar a Deus de todo o seu coração, mente, entendimento e forças, e você deve amar o próximo como a si mesmo. Em outras palavras, a Escritura está ensinando você a relacionar-se de modo próprio com Deus e com o seu semelhante. À medida que você ouve as palavras de Jesus, você não somente passa a conhecer mais sobre a natureza de Deus e de seu Filho Jesus Cristo, mas você também agrada a Deus e por amá-lo e por amar aos outros conforme os seus mandamentos. Ouça, portanto, as palavras do seu Redentor!

3. VOCÊ PRECISA PRATICAR AS PALAVRAS DE JESUS Aqui está a reta final do ensino de Lucas 6.47 – a obediência às palavras de Jesus. Esse verso ensina que não há qualquer vantagem em relacionar-se com Jesus, ouvir suas palavras e não praticá-las. Certamente, não creio que seja possível relacionar-se com Jesus, ouvir suas palavras e não praticá-las, porque os dois primeiros verbos são determinantes para a ação do terceiro. Esta última ação torna-se impossível sem as duas primeiras, ao mesmo tempo em que – creio – as duas primeiras têm a tonalidade de eficácia, em vez da simples tentativa. A prática das palavras de Jesus é que torna doce a vida cristã. Uma pessoa que obedece aos ensinamentos de Jesus Cristo é uma pessoa feliz. Por essa razão, Tiago diz: “Mas aquele que considera atentamente na lei perfeita, lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte negligente, mas operoso praticante, esse será bem-aventurado no que realizar” (Tg 1.25), e, nos dois versos subseqüentes, Tiago

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ilustra como praticar a palavra de Cristo, falando sobre o uso devido da língua e do exercício da religião pura. Praticar as palavras de Jesus não é uma opção que o cristão tem, mas uma ordenação divina, além de ser necessária para o crescimento em graça. Certamente as tempestades haverão de açoitar a vida dos crentes, mas, se eles forem praticantes das palavras de Cristo, nada os derrubará. O firme fundamento da vida cristã é a obediência. Se você, leitor, quiser ter uma vida bem alicerçada, use o caminho da obediência às palavras de Jesus. Essa é a única maneira de você ser semelhante a uma pessoa prudente, isto é, uma pessoa que constrói sobre a rocha!

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CAPÍTULO 17 O AMOR QUE DEVEMOS AO REDENTOR

O

amor pelo nosso Redentor é demonstravelmente um dever de todo cristão, pelo qual todos os outros deveres são conduzidos. O amor a Cristo é parte do mandamento de obediência a ele. Todavia, inversamente, o amor é que nos motiva ao dever de obediência, de fé, de honra e adoração.

A. A POSSÍVEL FALSIDADE DO AMOR A CRISTO Há muitos, no meio da Igreja cristã, que não possuem um amor genuíno por Jesus Cristo, e isso também pode ser verificado pela experiência e pelo testemunho das Escrituras. Essas pessoas professam um amor que nunca realmente tiveram por Jesus Cristo. Há alguns pontos que podem provar a afirmação acima:

1. A FALSIDADE NO AMOR É MOSTRADA PELA HIPOCRISIA Sempre haverá os hipócritas na Igreja cristã, e a demonstração de hipocrisia freqüentemente se manifesta num falso amor. “A pretensão falsa de amor é [parte] da forma essencial de hipocrisia.”521 Quem demonstrou esse tipo de amor falso foi Judas. Ele sempre tratou Jesus Cristo muito bem: ele o saudou e o beijou. Entretanto, os seus atos em relação a Jesus não eram expressão de um amor sincero. Ele não possuía amor no coração pelo Redentor dos filhos de Deus. O amor de Judas era cheio de dissimulação e de traição no coração. Alguns que vivem no nosso meio, professando amor por Jesus Cristo, na verdade, são inimigos da cruz de Cristo. Paulo sofreu e chorou por causa deles. Veja o que ele diz deles: “Pois muitos andam entre nós, dos quais repetidas vezes eu vos dizia e agora vos digo até chorando, que são inimigos da cruz de Cristo” (Fp 3.18). O amor que os cristãos precisam demonstrar a Jesus Cristo deve ser um amor do coração, um amor cheio de honestidade interior. Por isso, Paulo diz: “A graça seja com todos os que amam sinceramente a nosso Senhor” (Ef 6.24). O amor sincero é um amor sem dissimulação, sem interesses excusos, sem mistura de afei521. John Owen. The Works of John Owen, vol. I, 140.

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ções corruptas. É isso que a Escritura requer dos irmãos mais novos com relação a Jesus. O verso acima diz que a graça divina é abundante sobre aqueles que amam sinceramente a Cristo, mas a maldição vem para aqueles que amam somente de palavra e de língua, mas não de fato e de verdade. A ira divina virá sobre os que não amam sinceramente Jesus Cristo. Eles ouvirão de Jesus Cristo a seguinte frase: “Apartai-vos de mim, vós os que praticais a iniqüidade”. O amor de profissão, mas não o amor do coração é condenado na Escritura Sagrada, especialmente quando se refere aos irmãos e ao Senhor.

2. A FALSIDADE NO AMOR É MOSTRADA QUANDO NÃO HÁ FÉ NO CORAÇÃO O amor insincero é concomitante com a ausência de genuína fé no coração. Essas duas virtudes gêmeas sempre andam juntas no ensino da Escritura. Aqueles que não crêem sinceramente em Cristo Jesus nunca poderão amá-lo sinceramente. Não há amor sem fé, e nem fé sem amor. Nesse sentido, a fé opera conjuntamente com o amor, ou melhor, a fé opera pelo amor em relação a Cristo e a todos os que são cristãos. “Se, portanto, alguém não crê com essa fé que os une a Cristo, que purifica o coração interiormente, e é externamente eficaz nos deveres de obediência, qualquer coisa que eles façam para se persuadirem a si mesmos a respeito do amor para com Cristo, é apenas um puro engano. Onde a fé dos homens está morta, o amor deles não será vivo e sincero.”522

3. A FALSIDADE DO AMOR SE MANIFESTA NAQUELES QUE POSSUEM UMA RELIGIÃO EXTERNA A religiosidade desses falsos amantes de Cristo é composta de atos exteriores, sem os sentimentos interiores. A religião deles é formal e destituída da interioridade exigida pelas Santas Escrituras. Quando eles se referem a Cristo, eles apontam para falsos conceitos e imagens dele, que são produto da sua própria mente, mas não se referem ao um Cristo verdadeiro a quem eles verdadeiramente adoram. Eles não possuem a verdadeira religião, que se manifesta num amor genuíno ao Redentor dos filhos de Deus. Eles possuem falsas noções sobre Jesus e não conseguem amar a Cristo, o Filho de Deus encarnado. O Cristo que eles dizem amar é produto da imaginação deles, porque eles também não crêem nas informações que a Escritura fornece sobre ele e do nosso dever para com ele. Quando um Cristo é apresentado falsamente, sem refletir perfeitamente as suas duas naturezas inseparavelmente unidas, essa noção não desperta um verdadeiro amor, porque o objeto do amor não é verdadeiro. Quando as noções sobre Jesus Cristo são falsas, então o 522. John Owen. The Works of John Owen, vol. I, 141.

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amor também será falso, porque não será pela pessoa correta. O amor deles não é pelo Jesus Cristo da Escritura, mas pelo Cristo que eles criam em sua imaginação. Na verdade, alguns até podem ter uma idéia correta sobre ele, mas não são verdadeiros amantes dele. Esses honram a Jesus Cristo com os lábios, mas o coração deles está longe dele. Essa foi a queixa de Jesus em relação aos que o amavam falsamente. Todavia, todos nós somos chamados por Jesus para amar Jesus Cristo não somente de todo o coração, mas para amar o Jesus Cristo que a Escritura apresenta, e amá-lo com a interioridade do nosso ser. Por essa razão, somos exortados a amar a divindade “de todo o nosso coração, de toda a nossa alma, e com todo o nosso entendimento”. Um amor sem essas características interiores, não é um amor verdadeiro.

4. A FALSIDADE DO AMOR PODE ACONTECER NUMA MANEIRA IMPRÓPRIA DE AMAR Esses falsos amantes de Cristo podem estar pensando que amam a pessoa certa e de um modo certo, e que o amam mais do que os apóstolos do passado amaram. Na conta deles, o amor que eles têm por Cristo excede ao amor exigido pelas Escrituras. Essa é a grande presunção deles. Além disso, eles possuem entusiasmo por Cristo, pelo qual eles pensam que amam Cristo, mas o amor nosso por Cristo tem de ser orientado pelas Escrituras. Qualquer coisa que extrapole as Escrituras, mesmo em matéria de amor, é produto da imaginação dos homens. Todos nós haveremos de ser julgados pelas palavras das Escrituras em tudo o que fazemos. O julgamento não vem da Igreja, mas da Palavra que gerou a Igreja. As Escrituras estão acima da Igreja, e elas é que definirão a realidade, a quantidade e a sinceridade do nosso amor. O amor pela pessoa de Cristo é o que a Escritura prescreve e autoriza, como sendo o nosso dever: amá-lo com todas as faculdades do nosso ser. Tudo o que Deus exige de nós é que nós o amemos de todo o coração, e que tenhamos senso de obediência e de sincera devoção para com ele. Nosso objetivo não é amá-lo mais do que outras pessoas o amam, mas obedecê-lo de tal forma que, pelas nossas obras, mostremos a sinceridade do nosso amor.

B. A MALDIÇÃO QUE VEM SOBRE OS QUE NÃO EXERCEM O DEVER DE AMAR JESUS 1 Coríntios 16.22 – “Se alguém não ama ao Senhor, seja anátema. Maranata!”

O termo para “amar” que Paulo usa no texto acima é phileo, que significa “possuir uma terna afeição”. Certamente esse verbo grego não é tão forte quanto o

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verbo agapao (de onde vem o substantivo ágape), que significa “amar supremamente”, que é o amor com que Deus nos ama. Todavia, ainda que sejamos ordenados a ter agape por Deus, nunca a Escritura ordena que os seres humanos possuam por ele o amor de phileo, que significa “possuir terna afeição”. MacArthur diz que “uma implicação desse verso, entretanto, é que tal afeição mínima é um elemento do amor que é aceitável a Deus. Quando Jesus perguntou a Pedro pela terceira vez se ele o amava, ele usou phileo. Quando Pedro respondeu positivamente, Jesus aceitou esse amor. Pedro não reivindicou ágape, mas mesmo sua espécie de afeição evidenciou sua confiança em Jesus. A escolha que Paulo fez de palavras nessa passagem fluiu de sua ênfase sobre a afeição”.523 O que Paulo estava sugerindo sobre os homens em geral era que eles tivessem uma afeição cheia de ternura por Jesus Cristo. Ele nem pediu ágape, mas uma afeição da qual Jesus Cristo é merecedor, mesmo daqueles a quem ele não salvou. Se uma pessoa não tem nenhum amor de afeição por ele, muito menos terá um amor supremo, e isso aponta para o fato dessa pessoa não pertencer a ele. Há, portanto, uma ameaça da ira divina sobre as pessoas que não amam Jesus Cristo. A palavra “anátema” quer dizer “maldito”. É curioso que ,quando o Antigo Testamento falava das maldições divinas, sempre o povo tinha de dizer “amém” a elas (cf. Dt 27.14-26). Era um dever do povo confirmar com o “amém” todas as ameaças da ira divina. O Novo Testamento confirma os ensinos sobre a maldição do Antigo Testamento. Essa maldição certamente virá sobre muitas pessoas, porque há muitas delas que não amam Jesus. Se elas não amam Jesus é porque não pertencem a ele. O que Paulo estava constatando é que, na Igreja de Corinto, havia pessoas que não tinham nenhum afeto por Jesus Cristo. O que foi verdadeiro da Igreja de Corinto também é verdadeiro da Igreja contemporânea. Temos muitas pessoas que cultuam conosco, mas elas não possuem ternas afeições pelo Redentor dos filhos de Deus. Todas essas pessoas são passíveis da condenação divina. Quem não possui essa terna afeição por Jesus Cristo é passível da maldição divina e está destinado à destruição eterna. A expressão final do verso, maranatha, está ligada à vinda do Senhor Jesus. Portanto, a maldição sobre os que não o amam tem a ver com a condenação final.

C. A GRAÇA SOBRE OS QUE EXERCEM O DEVER DE AMAR A JESUS CRISTO De modo exatamente oposto ao da maldição, a Escritura do Novo Testamento diz que existe benção sobre os que exercem o dever de amar a Jesus Cristo.

523. John MacArthur Jr., 1Corinthians (Chicago: Moody Pres, 1984), 488.

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Análise de Texto “A graça seja sobre todos os que amam sinceramente a nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 6.24).

Chamo essa bênção de apostólica porque ela foi proferida pelo apóstolo Paulo. Ela está mais alongadamente escrita em 2 Coríntios 13.13, mas aqui ela está de forma resumida ensinando algumas verdades sobre o amor a Cristo de maneira muito simples:

1. A BÊNÇÃO APOSTÓLICA ENSINA SOBRE A GRAÇA VINDA AOS QUE AMAM O termo graça, aqui, significa o favor divino que vem sobre aqueles que possuem amor por Jesus Cristo. O favor divino é o que dá significado à nossa vida. Seria impossível uma comunhão vital com o Senhor sem essa graça constante sobre nós. Ao mesmo tempo em que o amor a Cristo é resultado de uma graça divina (e todos nós sabemos disso porque o verso anterior fala “do amor com fé, da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo”), essa graça vem abundantemente sobre aqueles que exercitam amor para com o Senhor Jesus.

2. A BÊNÇÃO APOSTÓLICA ENSINA SOBRE O MODO QUE SE DEVE AMAR Comentando Efésios 6.24, Calvino diz que a palavra grega usada por Paulo significando o amor com sinceridade (e)n a)fqarsi/a), literalmente significa um amor sem corrupção. Com isso Paulo quis dizer que quando o coração do homem está livre de toda hipocrisia, ele será livre de toda corrupção. Isso quer dizer que o único modo que temos para desfrutar da graça divina é ter amor de sinceridade para com o Filho de Deus.524 Essa palavra de Paulo, portanto, encoraja-nos a uma vida de amor sincero para com o nosso Redentor. Isso deveria fazer-nos ficar em espírito de oração para que nunca sejamos falsos na demonstração do nosso amor por Deus. Deus aborrece a insinceridade. Ele a condenou muitas vezes quando se referiu ao culto hipócrita que muitos judeus lhe prestavam. Da mesma forma, Deus se indispõe conosco quando somos insinceros no amor a Jesus Cristo. Longe de nós esteja qualquer tipo de hipocrisia, especialmente a hipocrisia ligada ao amor a Cristo. Nunca, num culto público, pratiquemos qualquer ato para que os homens vejam o nosso amor para com Jesus Cristo e nos apreciem por esse ato de amor (eu digo em público porque falsidade só é mostrada em público, nunca em particular). Nunca seremos hipócritas nas nossas orações ou devoções pessoais, porque não temos para quem 524. John Calvin, Commentaries on the Epistles of Paul to the Galatians and Ephesians (Grand Rapids: Eerdmans, 1948), 344.

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mostrar as coisas que queremos que as outras pessoas pensem de nós. Portanto, quando você demonstrar qualquer ato de amor por Jesus Cristo, faça-o em sinceridade de coração.

3. A BÊNÇÃO APOSTÓLICA ENSINA SOBRE QUEM SE DEVE AMAR Essa bênção apostólica nos aponta a Pessoa a quem devemos mostrar amor sincero: “nosso Senhor Jesus Cristo”. Veja que essa Pessoa a quem devemos amar é chamada de “Senhor”, “Jesus” e “Cristo”. O primeiro título diz respeito à sua soberania; o segundo ao seu nome como o Verbo encarnado; o terceiro, como o esperado de todos os antigos, ao Messias. Essa pessoa é merecedora total do nosso amor. Nosso amor deve ser dirigido a um Objeto digno. Diferentemente, o amor dele por nós é por objetos indignos. Por isso, você deve amá-lo, porque é um amor de mérito dele, e de dívida que você tem para com ele. Ainda que digamos que amamos Deus, mas não amamos o seu Filho, nunca será verdadeiro o nosso amor para com Deus. Quem não ama o Filho, não tem amor pelo Pai, assim como quem não crê no Filho também não crê no Pai. O amor pelo Filho aponta para o amor que temos pelo Pai celestial. O amor ao Filho é a glorificação da sua pessoa. Deus enviou seu Filho para que ele fosse glorificado por todas as coisas neste mundo, e uma forma de tornar o seu nome glorioso entre os homens é ter amor sincero por ele. Você tem esse dever de glorificar ao seu Redentor. Portanto, ame nosso Senhor de todo o seu coração.

D. A PESSOA DO REDENTOR É O PRINCIPAL OBJETO DO AMOR DO PAI A pessoa do Filho é o principal objeto do amor do Pai. Ninguém é tão amado do Pai quanto o próprio Filho. A pessoa do Redentor divino-humano é o objeto especial e peculiar do amor do Pai. De acordo com a sua natureza divina, o Redentor é objeto do amor ad intra, um ato necessário do Pai em relação à subsistência pessoa do Filho. De acordo com a sua natureza divina, o Redentor é objeto do amor ad extra do Pai, um ato necessário em virtude da unio personalis. Quando o Pai declarou o seu amor pelo Filho encarnado em Mateus 3.17 (cf. 17.5), ele estava declarando seu amor à Pessoa completa do Filho. Era desejo de Deus que nós soubéssemos do seu amor pelo Filho, pois a sua voz veio do céu não por causa do Filho, mas para que nós ficássemos cônscios deste amor divino, a fim de que crêssemos no Filho! Há várias razões pelas quais o Filho é o principal objeto do amor do Pai.

1. É UM AMOR POR ALGUÉM DA MESMA ESSÊNCIA O amor do Pai pelo Filho é amor por alguém da mesma essência. A Escritura

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diz que o Verbo que se encarnou veio do “seio do Pai” (Jo 1.18). Não é estranho que o Pai tenha amado seu Filho a ponto de chamá-lo de “Filho amado”. Sempre houve uma relação de essência entre as pessoas da Trindade, mormente entre o Pai e o Filho, que é um amor intratrinitário. É o amor do Divino para o Divino. É um amor que se manifesta de uma pessoa da outra, de uma subsistência para outra, sem que se aparte da mesma essência. O Pai não pode senão amar sua própria essência, que é Aquele que é não somente o resplendor da glória, mas a imagem expressa do seu Ser (cf. Hb 1.2, 3). É o amor do igual pelo igual, de um Santo para ou Santo!

2. É UM AMOR ETERNO João 17.24 – “... para que vejam a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo.”

A eternidade do amor está firmada na natureza de quem ama e da pessoa amada. Os dois seres, o Pai e o Filho, que possuem a mesma natureza, podem se amar de acordo com a natureza. É verdade que Deus também nos amou desde antes da fundação do mundo, mas ele pode demonstrar esse amor somente na história, e especialmente quando viemos à existência, mas o amor do Pai pelo Filho foi realmente demonstrado antes que todas as coisas existissem. O amor do Pai pelo Filho, e vice-versa, é um amor eterno na sua plena expressão. Antes de haver mundo já havia o amor intratrinitário, um amor ímpar em sua existência atemporal, um amor que nenhum outro ser desfrutou porque nada existia ainda quando Deus amou seu Filho. A glória de Jesus perante os seus discípulos está no fato de ele ser amado antes da fundação do mundo. Essa foi uma glória conferida a Jesus na presença dos discípulos para que Jesus fosse honrado como ninguém jamais será honrado, porque de ninguém mais será dito que foi amado antes da fundação do mundo, porque existe desde antes da fundação do mundo.

3. É UM AMOR NECESSÁRIO Deus resolveu amar os seres humanos, mas ele não estava debaixo de qualquer obrigação de fazê-lo. Deus amou os homens porque resolveu exercer esse seu atributo. Nesse sentido, podemos dizer que o amor de Deus pelos homens é livre, isto é, produto de sua vontade. Todavia, quando nos referimos ao amor do Pai pelo Filho, não podemos exercer o mesmo raciocínio. Deus é essencial e eternamente amor. Por causa da coessencialidade de ambos e da mesma essência numérica que ambos possuem, pois essas duas Pessoas são um só ser, o amor do Pai pelo Filho (e vice-versa) é um amor necessário. O Pai não poderia deixar de amar ao Filho, porque, nesse caso,

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Deus deixaria de amar a si mesmo, e, assim, o princípio de amar a si mesmo (que ele tanto ensinou) seria quebrado. Qualquer manifestação do amor de Deus fora do ser divino é livre (isto é, dependente de um gesto de sua vontade), mas o amor manifesto dentro da Trindade é necessário. Deus, o Pai, não resolveu amar Deus, o Filho, porque esse amor é desfrutado pela mesma essência numérica, portanto um amor necessário.

4. É UM AMOR DE MÉRITO Deus não é atraído ao amor por nós em virtude de alguma coisa que nos torne amáveis. Ao contrário, seríamos objeto da sua ira se ele olhasse para os nossos pensamentos, imaginações ou ações. O seu amor por nós é um amor gracioso que não olha para o que somos, que não nos ama pelo que somos, mas nos ama a despeito do que somos. Contudo, quando o Pai ama o Filho, ele está amando alguém que faz jus ao seu amor. O Pai ama o Filho porque o Filho é amável, ou seja, digno do seu amor. O Filho merece o amor do Pai por tudo o que ele é e por tudo o que veio a fazer na redenção do pecador. Por isso o Pai disse: “Este é o meu Filho amado em quem me comprazo”. O amor do Pai é um amor merecido pelo Filho João 10.17 – “Por isso o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir.”

O Pai ama o Filho pelo seu poder sobre a própria morte. Embora esse poder ele tenha recebido de seu Pai (v. 18), o seu poder divino sobre a morte é algo que faz o Pai se encantar nele, e dedicar seu amor a ele.

5. É UM AMOR DE CONFIANÇA João 3.35 – “O Pai ama ao Filho, e todas as cousas tem confiado às suas mãos.”

O amor de confiança do Pai no Filho a ponto de lhe entregar todas as coisas é nascido na relação essencial entre essas duas Pessoas. O Pai entregou tudo ao Filho sabendo de suas capacidades e poderes, uma relação de confiança absoluta em virtude da co-essencialidade deles. Hendriksen disse que “depois de haver presenciado a descida da pomba e de haver ouvido a voz do Pai que falou do céu, João Batista compreendeu que a relação filial de Jesus como Mediador repousava em sua filiação trinitária. Por isso, também, a doação de todas as coisas resulta da relação eterna de amor entre o Pai e o Filho”.525

525. Hendriksen, El Evangelio Segun San Juan, 161.

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6. É UM AMOR DE INTIMIDADE João 5.20 – “Porque o Pai ama ao Filho e lhe mostra tudo o que faz, e maiores obras do que estas lhe mostrará, para que vos maravilheis.”

Obviamente, o fato de o Pai mostrar ao Filho tudo o que ele faz não se refere simples e unicamente à natureza divina, porque não há nada escondido dela, mas é uma referência ao Filho encarnado, que haveria de ver todas as obras da redenção sendo realizadas para o cumprimento do pacto eterno da redenção. O Redentor, segundo a sua natureza humana, haveria de ver todas as obras divinas e ainda as obras futuras que haveriam de acontecer na consumação da redenção. O fato de o Pai lhe mostrar todas essas coisas está firmado no fato do Pai amar ao Filho encarnado. Isso aponta para a intimidade entre o Pai e o Filho, que veio ao mundo assumindo a natureza humana. Nada seria escondido dele em termos de obras. A intimidade entre ambas as pessoas é vista nesse verso. Nada do plano redentor de Deus para o mundo seria escondido do Filho encarnado por causa do amor do Pai por ele.

7. É UM AMOR DE CORRESPONDÊNCIA O amor do Pai pelo Filho não é um amor unilateral.Existe mutualidade nesse amor porque é um amor de correspondência. Sempre houve uma declaração mútua de amor. Jesus referiu-se ao seu amor pelo Pai João 14.31 – “... contudo, assim procedo para que o mundo saiba que eu amo o Pai e que faço como o Pai me ordenou.”

Esse amor foi declarado abertamente para que as pessoas soubessem. Jesus nunca escondeu sua profunda afeição pelo seu Pai. Da mesma forma, o Pai falou abertamente do amor pelo Filho referindo-se a ele como o “Filho amado”, e a Escritura se refere a esse amor várias vezes. Numa delas, Jesus diz: João 15.9 – “ Como o Pai me amou, também eu vos amei; permanecei no meu amor.”

Nos dois versos acima há a mostra da reciprocidade ou correspondência de amor entre as Pessoas da Divindade. A correspondência não é um amor de resposta. O Filho ama o Pai não porque o Pai o amou primeiro, mas porque é da natureza de ambos o amor. A mutualidade ou reciprocidade ou correspondência de amor é devida à natureza essencial do Pai e do Filho. “Deus é amor”. Ora, se o Pai e o Filho são da mesma essência, então amar é parte da essência deles.

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E. A PESSOA DO REDENTOR DEVE SER O PRINCIPAL OBJETO DO NOSSO AMOR Originariamente, o amor está em Deus, pois “Deus é amor” (1Jo 4.8). Deus é a fonte e o protótipo de todo amor. Esse amor é eterno e necessário nele, pois o amor é essencial nele. Todavia, o amor não é essencial em nós (pelo menos esse tipo de amor divino), mas ele nos é dado e somos capacitados a amar de maneira graciosa. Todas as nossas manifestações de amor são emanações do amor de Deus e são efeitos dele em nós. Temos o dever de manifestar amor por Jesus Cristo porque fomos atingidos pelo amor de Deus. O nosso Redentor deve ser o principal objeto de nosso amor neste mundo. Eis algumas razões dessa verdade:

1. PORQUE É AMOR PELA MESMA ESSÊNCIA Assim como o amor do Pai pelo Filho é amor pela mesma essência, pois ambas as Pessoas da Trindade possuem a mesma essência, assim também o nosso amor por Jesus Cristo é um amor pela mesma essência. Não podemos nos esquecer de que Jesus Cristo é homoousios (da mesma essência) com o Pai de acordo com a sua natureza divina e homoousios conosco de acordo com a sua natureza humana. Quando amamos o nosso Redentor, não estamos amando simplesmente Deus, mas também Aquele que possui a mesma essência nossa – porque ele é um homem como nós. Quando amamos Cristo Jesus, estamos amando não somente o “Deus Forte e Pai da Eternidade”, mas um membro da raça humana, concebido e nascido de mulher, embora a sua natureza divina remonte à eternidade. O nosso amor por Cristo reflete o fato de estarmos sendo renovados à sua imagem. Quanto mais amarmos esse que possui a mesma essência nossa, mais haveremos de ser parecidos com ele, refletindo dia a dia a imagem daquele que nos criou.

2. PORQUE ELE É EXIGENTE NO SEU AMOR Deus não se contenta com um amor pequeno de nossa parte. Ele quer tudo de Deus. Por essa razão Jesus ordenou: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e com todas as tuas forças”. Deus quer que o amemos com a integridade do nosso ser. O Filho encarnado não exige menos de seus discípulos. Todos os que queriam segui-lo foram alertados sobre a importância do amor a Jesus Cristo. Ele exige um amor maior do que o nosso amor aos parentes: Mateus 10.37 – “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim, não é digno de mim.”

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Jesus estava ensinando sobre os adversários dos discípulos dentro de sua própria família na esfera do relacionamento por causa do evangelho. Nesse contexto, Jesus disse, em outras palavras, que nenhum relacionamento de amor é maior do que o dos seus discípulos com ele próprio. Nem o relacionamento com pai e mãe ou filhos é mais importante do que a ligação de amor com Jesus. Ele não está ensinando o desamor para com os parentes, mas que o amor a eles está sob o amor dos seus discípulos por ele. Por essa razão, devemos amar muito o Senhor Jesus, que deve ser o principal objeto do nosso amor. Hendriksen afirmou a importância desse dever de amar o Redentor: “Pertencer a Cristo é um privilégio tão inestimável que nenhuma outra relação pode substituí-lo. É um dever tão imperativo que nenhuma outra obrigação é mais obrigatória.”.526 Jesus Cristo é exigente no seu amor que afirma categoricamente que um discípulo que não ama dessa forma não é digno dele. O nosso amor pelo Redentor tem de estar acima de todos os outros nossos amores.

3. PORQUE É UM AMOR QUE EXIGE RESPOSTA 1 João 4.19 – “Nós amamos porque ele nos amou primeiro.”

O amor primeiro é tanto do Pai quanto do Filho ou do Espírito Santo em relação a nós. Não poderíamos amar sem que o Pai eletivamente nos amasse (Ef 1.4, 5), sem que o Filho redentoramente nos amasse (Gl 2.20) ou sem que o amor do Espírito Santo fosse derramado em nosso coração (Rm 5.5). Quando somos objetos do amor do Deus triúno, então temos não somente o dever de resposta, mas somos compelidos interiormente ao amor a ele. Essa compulsão não significa que somos forçados a amar, mas significa que somos impelidos por alguma coisa dentro de nós próprios, por causa da inclinação ao amor que o amor de Deus causa em nós. Por causa do amor poderoso do Deus derramado em nosso coração, sentimonos no dever de amar Jesus Cristo, que tanto nos amou. Quando o amor de Deus atinge o nosso coração, então, como resposta, amamos Deus e a seu Filho Jesus Cristo. Sentimo-nos no dever desse amor, mas nunca coagidos a amá-lo. Porque o amor dele agiu em nós ele nos impulsiona ao amor a Jesus Cristo. Quando o amor de Deus nos atinge interiormente, Jesus Cristo passa a ser o objeto mais importante do nosso amor, um amor nascido no amor de Deus. Deus dotou os homens em geral com a capacidade de amar, porque toda manifestação de amor tem nascedouro em Deus. João diz que devemos amar uns aos outros “porque o amor procede de Deus” (1Jo 4.7). Os seres humanos amam os seus pais, irmãos, cônjuges, filhos, etc. Há uma capacidade inata de amor, porque essa capacidade ainda reflete (embora de maneira imperfeita) a imagem de Deus 526. William Hendriksen. Mateus, vol. 1 (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001), 673.

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neles. Em todas as esferas da horizontalidade, o ser humano é dotado de capacidade para amar. É exatamente a isso que João se refere quando fala do amor às coisas que podem ser vistas (1Jo 5.20). Todos os homens têm a potencialidade de amar as coisas desta presente esfera, a esfera das coisas visíveis, as pessoas do nosso relacionamento horizontal. Os seres humanos não podem entender o amor, exceto pelas coisas visíveis e sensíveis, pelas quais podemos sentir o gozo natural. Todavia, a capacidade de amar verticalmente, isto é, a capacidade de amar Deus e seu Filho Jesus Cristo, assim como as coisas espirituais, é resultado do amor de Deus que é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo (Rm 5.5). Em 1João 4.7 é dito que o amor procede de Deus, e ainda diz que “todo aquele que ama é nascido de Deus, e conhece a Deus”. Obviamente, esse amor tem um sentido de verticalidade, porque fala do amor nascido naquele que é nascido de Deus, que se torna capaz de amar a Deus e os nascidos dele. Amamos a Jesus Cristo porque fomos atingidos pela ação renovadora e regeneradora do Espírito Santo (Tt 3.5). O amor às coisas invisíveis (como Deus, por exemplo) é uma impossibilidade para aquele que não foi atingido pelo amor renovador de Deus. John Owen diz: “Porque as coisas invisíveis, especialmente as que são eternas e infinitas, [os homens] supõem ter uma veneração por elas, um respeito religioso, uma adoração devota; mas, como eles devem amá-las, eles não podem entender. E o apóstolo admite que há uma dificuldade maior em amar as coisas que não podem ser vistas, em relação às coisas que estão sempre visivelmente diante de nós”.527 Por essa razão, diz João, nós o “amamos porque ele nos amou primeiro”. Se amamos Jesus Cristo, o Redentor, é porque antes fomos atingidos pelo seu amor por nós. Dessa verdade não podemos abrir mão, porque ela é fundamental para o verdadeiro entendimento das coisas que têm acontecido em nossas vidas.

a. O nosso amor é uma resposta de obrigação Quando somos atingidos pelo amor de Deus, que nos amou primeiro, e quando recebemos o tipo de amor do Deus triúno, então começamos a sentir um senso de obrigação para com aquele que tanto nos amou enquanto esteve aqui e que ainda nos ama. O senso de obrigação aumenta ainda mais quando entendemos que o amor de Deus por nós aconteceu quando éramos opositores, inimigos dele. Portanto, ele nos amou deliberadamente. Não houve algo em nós que o convidasse ao amor, mas ele nos amou a despeito do que somos. O senso de obrigação, naturalmente, vem de forma sobrenatural a nós. Não é algo que nós precisemos criar. É o próprio Deus triúno que infunde em nós esse senso de obrigaçãom que é, na verdade, um forte senso de dívida que temos para 527. John Owen. Works of John Owen, vol. 1 (Londres: The Banner of Truth Trust, 1987 ), 150.

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com Deus. O nosso amor pelo Senhor é uma resposta que envolve um profundo senso de dívida por quem tanto nos amou.

b. O nosso amor é uma resposta de apreciação Todavia, o nosso amor não é simplesmente uma resposta de obrigação pelo senso de dívida que temos. Juntamente com esse senso de dívida, aparece em nós um senso de profunda apreciação. Essa apreciação surge em nosso coração porque nós passamos a entender quem é aquele que nos amou e quem são os objetos do seu amor. É altamente apreciável o amor que Deus teve por nós. Não há como não apreciar essa demonstração de amor de um ser tão superior por criaturas tão inferiores, e, além disso, ingratas e ofensoras dele. O nosso amor de apreciação surge quando nos comparamos ao Redentor, porque ele viveu todo o tempo entre nós e nunca pecou, e, no entanto, nós, os objetos do seu amor, não ficamos um dia sequer sem pecado. Respondemos com amor cheios de apreciação pelo que ele fez por nós.

c. O nosso amor é uma resposta de comprometimento O nosso amor por Jesus Cristo não é simplesmente um amor pelo senso de obrigação, nem somente pelo senso de apreciação, mas o amamos porque queremos nos comprometer com ele, porque ele se comprometeu conosco, amando-nos para sempre. A nossa resposta vem num crescente de amadurecimento de amor. De dever passamos a encantamento, e de encantamento a comprometimento. O nosso amor por Jesus Cristo vai ficando cada vez mais parecido com o amor dele por nós, embora nunca o amemos com a qualidade do seu amor. Quanto mais percebemos o seu amor por nós, mais nós jogamos tudo o que temos nele. Após sermos impactados pelo seu amor, somos capazes de dizer: “Eu quero gastar o resto da minha vida contigo, Senhor, e eu quero continuar a crescer contigo. Eu desejo muito te amar a ponto de confiar-me a ti até o final da minha vida neste mundo. Eu quero gastar-me nas coisas que te agradam.”. O nosso amor de resposta ao seu amor deve crescer a esse ponto. Quem ama se dá. Portanto, quanto mais viermos a amar Jesus Cristo, mais nos daremos ao serviço do seu reino. Então, nós entramos num pacto de casamento com ele, como produto de seu amor por nós. Primeiramente, demonstramos um senso de obrigação em nosso amor a ele, pois devemos muito a ele; em segundo lugar, somos movidos a um grande senso de apreciação e de gratidão que lhe devemos; então, em terceiro lugar, dedicamo-nos a ele de todo o nosso coração, prestando-lhe um serviço com todas as forças do nosso coração. Esse é um pacto de amor que é demonstrado paulatinamente, e que culmina na mais alta forma de amor que um ser humano pode dar: a da entrega total. Assim é um pacto de casamento, por isso Deus compa-

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ra o relacionamento de amor entre Cristo e seu povo a uma união de casamento com esse tipo de amor da parte dele por nós e de nossa correspondente resposta de amor a ele.

F. OS DEVERES DO NOSSO AMOR AO REDENTOR O amor faz com que os amantes se comprometam com a pessoa amada. Não existe verdadeiro amor sem deveres de agradar à pessoa que se ama. Portanto, é uma inconsistência falar de amor por Cristo sem que esse amor se evidencie em deveres para com ele.

1. A OBEDIÊNCIA COMO UM DEVER DO AMOR O amor é um dever do cristão para com a pessoa do seu Redentor. Todavia, o amor do cristão não é um mero sentimento. Ele pode ser mostrado de várias maneiras. Uma delas é a obediência. Na verdade, a prova do amor é a obediência, como já vimos anteriormente, pois Jesus Cristo disse: João 14.15 – “Se me amais, guardareis os meus mandamentos.”

Jesus Cristo está falando com discípulos de quem ele esperava amor. Jesus se refere a algo que é mais do que uma afeição, porque ele usa o verbo a)gapa/w (agapao), que tem um significado muito profundo. Se você quiser verificar o seu amor por Jesus Cristo, basta você dar uma verificada na sua obediência. Ela é o termômetro que mede o seu amor pelo Redentor. Isso quer dizer que o fundamento da obediência é o amor. A verdadeira obediência é nascida no amor. Por esse motivo, Jesus, na continuação do seu ensino, diz que “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; ... e quem não me ama, não guarda as minhas palavras...” (Jo 14.23, 24).

Provavelmente, ele estava observando que alguns de seus discípulos só mostravam amor de “palavra e de língua, mas não amor de fato e de verdade”. Por essa razão, ele questiona o amor sem a obediência. Esses discípulos provavelmente andavam dizendo do seu amor a Cristo, mas não estavam andando segundo os seus preceitos. João 14.23, 24 é uma constatação de Jesus no meio dos seus discípulos, e ele “joga duro” com eles dizendo da necessidade da obediência como fruto do amor. Quem não tem esse fruto, certamente não tem amor por ele. Essa verdade ensinada por Jesus Cristo é um axioma sem exceção. Nunca haverá um verdadeiro amor que não redunde em obediência, ou verdadeira obediência que não proceda do amor. Ninguém pode obedecer a Jesus Cristo se não obedecer às suas palavras. Elas são a norma de comportamento para os cristãos, e estes devem tê-las em alta conta a ponto de prestar obediência a elas. As palavras de Cristo são as palavras de Deus, e elas devem ser cridas e obedecidas. A desobediência às palavras de Cristo

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é uma prova de que não há amor por ele. Como já disse acima, amor não é um mero sentimento, mas é uma atitude que se manifesta em gestos, e um dos gestos mais importantes é o espírito de obediência.

2. O SERVIÇO NO CORPO COMO UM DEVER DO AMOR Jesus Cristo é o Redentor do seu corpo, a Igreja. Esta é composta de muitos membros, e todos eles carecem desesperadamente um dos outros. Somos dotados por Deus com dons espirituais com os quais devemos servir uns aos outros (1Pe 4.10). A ordenação do Senhor é para que sirvamos uns aos outros. Servir uns aos outros é uma das maneiras de mostrar obediência ao Redentor. O amor aos irmãos e o serviço a eles não é somente um dever, mas uma obrigação que o Redentor nos impõe, e que devemos aceitar alegremente porque fomos amados e porque fomos servidos por ele. Lembre-se da conversa de Jesus com Pedro. Por três vezes Jesus lhe perguntou se ele o amava. Pedro respondeu positivamente a elas (ainda que meio irritado na última vez), e as três recomendações de Jesus para que Pedro mostrasse o seu amor por ele foram: “apascenta os meus cordeiros” (Jo 21.15-17). Servir uns aos outros é um dever que o Senhor nos impôs como prova de nosso amor por ele. Sem o amor por Jesus Cristo não há possibilidade de amor pelos seus. Você mede o seu amor por Jesus pelo amor que você tem pelos irmãos mais novos dele. Se você ama Jesus Cristo, você tem o dever de amar aqueles que são dele. Não há como amar aquele a quem não vemos se não amamos aqueles a quem vemos. Esse foi o ensino de Jesus Cristo a João e devemos prestar atenção a essa verdade (1Jo 4.19-21).

G. AS QUALIDADES DO NOSSO AMOR PELO REDENTOR As qualidades de nosso amor pelo Redentor devem ser as mesmas do amor do Pai mostrado ao Filho e vice-versa. Embora devamos reconhecer as limitações do nosso amor, ainda não podemos exigir menos de nós mesmos com respeito ao nosso dever para com o Redentor. Ele disse que devemos amar como ele amou. Portanto, as qualidades do nosso amor devem refletir as qualidades do amor divino.

1. DEVE SER UM AMOR SUPERIOR AOS OUTROS AMORES Lucas 14.26 – “Se alguém vem a mim, e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo.”

A palavra aborrecer não é um termo absoluto, mas relativo. É a palavra usada para mostrar o lado contrário do amor. O que Jesus está querendo fazer é uma espécie de comparação de amores. Ele está dizendo, em outras palavras: “Se você

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não me ama mais do que a seu pai, mãe, esposa, irmãos e irmãs, e mesmo a sua própria vida, você não é digno de mim.” Você pode (e deve) amar todas essas pessoas e a você mesmo, mas esse amor por eles e por você não pode ser superior ao amor que você deve (e pode) demonstrar ao seu Redentor. Jesus está dizendo que você deve amá-lo antes e mais do que todos. Temos que colocar o nosso amor por Cristo no primeiro lugar, e dar a ele um amor maior do que o amor aos outros. Isso é o que ele exige de nós. Veja que o amor maior que ele exige de nós ele exigiu de Pedro. Certa vez ele perguntou a Pedro: “Amas-me [a)/gapaj me] mais do que estes outros?” (Jo 21.15). Quem são “estes outros”? Provavelmente os outros discípulos que estavam com ele. Cristo exigiu de Pedro um amor maior do que os outros discipulos tinham por ele, ou, como também pode ser entendido, um amor maior do que o que Pedro tinha por eles. O nosso amor ao Redentor deve vir em primeiro lugar. O nosso Redentor não se conforma com menos do que o primeiro lugar em nosso amor. A pergunta que Jesus fez a ele, ele a faz a nós outros. O padrão exigido de Pedro é o mesmo padrão que ele exige de nós. Embora não tenhamos a mesma responsabilidade de “apascentar as ovelhas” da mesma maneira que Pedro, temos a mesma responsabilidade de mostrar a Jesus Cristo a primazia que tem o nosso amor por ele. Ele deve ser a primeira preocupação de nossa vida, e o nosso amor primeiro. Deus espera que nós amemos todos os nossos queridos com profunda afeição, mas que o nosso amor cheio de afeição para com Jesus seja superior aos outros amores. Pode ser sustentável que a fé em Cristo seja a substância do Cristianismo, que a esperança nos proporcione uma grande meta em direção aos nossos principais esforços, e que o amor seja a mola propulsora das boas obras. De qualquer forma, todas as coisas que fazemos por Cristo devem ser temperadas com o nosso grande amor por ele. Fazemos boas coisas para Cristo porque nós o amamos. Isso não é diferente com respeito ao amor que temos por outras criaturas. É o amor que determina o que fazemos pelas pessoas. Jesus Cristo é a pessoa igual a nós mais importante. Por isso, o nosso amor por ele deve sobrepujar todos os outros nossos amores. É dessa forma que você deve amar ao seu Redentor!

2. DEVE SER UM AMOR DE AMIZADE O verdadeiro amor implica necessariamente em amizade. O amor divino por nós foi um amor de amizade. Lembre-se de que o relacionamento que Deus estabeleceu conosco foi demonstrado em amizade por nós. Desde o princípio, Deus mostrou dedicação às pessoas, e, como resposta, as pessoas objeto do seu amor deveriam tratá-lo com amizade. Não foi sem razão que Deus chamou Abraão de seu amigo (Is 41.8), e Tiago, no Novo Testamento, confirmou esse dito de Isaías (Tg 2.23). Depois que os homens recebem o maravilhoso gesto de amizade da parte de

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Deus, eles também devem se mostrar amigos dele. Então, quando se dá esse relacionamento de amizade “a intimidade do Senhor é para os que o temem, aos quais ele dará a conhecer a sua aliança” (Sl 25.4). Jesus Cristo trata os seus não como servos “porque o servo não sabe o que faz o seu senhor”, mas trata-os como amigos, porque “porque tudo quanto ouve de seu Pai, ele lhes dá a conhecer” (ver Jo 15.15). O Redentor mostra sua amizade aos seus amigos comunicando-lhes os segredos, ou a intimidade do Senhor. Nós devemos mostrar amizade para com nosso Redentor, confiando a ele todos os nossos cuidados e preocupações, lançando sobre ele todas as nossas aflições e ansiedades, como amigos que confiam no “Amigo mais chegado que irmão”. A nossa amizade para com ele pode ser mostrada na conversa constante que temos com ele em todas as horas. A Escritura diz que “o amigo ama em todo tempo” (Pv 17.17), e uma das maneiras de mostrar o nosso amor de amizade é estar em constante relacionamento verbal com Jesus Cristo, a ponto de chegarmos a ter “a mente de Cristo” (1Co 2.16).

H. A MOTIVAÇÃO DO NOSSO AMOR AO REDENTOR Deus não precisou de motivos para nos amar. O amor essencial em Deus não encontra (nem precisa de) razão alguma para manifestar o seu amor às suas criaturas caídas. Não há nada nelas de que Deus se agrade. Todavia, Deus nos ama a despeito do que somos. Se há razões para o amor dele por nós, elas estão escondidas nele. Nunca ele as revelou. Conosco, entretanto, o amor funciona de uma forma diferente. Nós, via de regra, pelo menos nesse estado em que vivemos, precisamos de motivação para amar. Portanto, podemos enumerar várias coisas que nos motivam ao amor a Jesus Cristo.

1. O NOSSO AMOR AO REDENTOR É MOTIVADO PELAS PERFEIÇÕES DELE Nós o amamos, especialmente, por causa de algumas coisas que vemos nele. Nesse sentido, o amor que temos por ele é um amor de mérito, um amor por um ser perfeito em suas qualidades. Jesus Cristo nos encanta com suas perfeições. A nossa alma se derrete em amor por ele pela qualidade das coisas que ele possui e que ele demonstra. Nós temos o hábito de amar as qualidades num grau excelente, e ninguém mostrou tanta excelência em suas perfeições como Jesus Cristo! Toda a terra e céu se curvam diante das perfeições do Redentor, eles não podem demonstrar amor porque essa capacidade é dada somente a seres racionais. Os homens não-redimidos são capazes até de ter admiração pelas perfeições divinas, mas estas causam nos remidos um motivo muito grande para o amor a ele. Os remidos se curvam cheios de admiração, mas também cheios de amor pelas perfei-

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ções que o nosso Redentor apresenta. Os remidos se regozijam nas misericórdias, na bondade, nos favores graciosos e na paciência de Cristo, além dos outros atributos que são exclusivos da Divindade.Então, eles se dirigem a ele em ferventes orações, exaltando as suas perfeições e mostrando o seu amor de admiração por ele em virtude delas. Eles têm alegria nos atributos que Jesus manifesta, via de regra, em favor deles. Nesse sentido, os seres humanos têm um amor de gratidão pelas perfeições demonstradas.

2. O NOSSO AMOR AO REDENTOR É MOTIVADO PELA SUA BELEZA Por beleza de Cristo eu me refiro às suas qualidades de caráter. Jesus Cristo é formoso, belo, indescritivelmente atraente. O que temos por ele, em virtude de sua beleza, é mais do que santa admiração, é amor de admiração. É algo extremamente doce ouvir de Jesus, falar de Jesus e contemplar Jesus. Isso parece soar místico, mas a fé cristã nos permite misticamente contemplar (ainda que não seja hoje como os nossos olhos físicos), através da nossa imaginação (seja por contraste com a nossa fealdade moral ou pela revelação divina sobre a pureza do seu caráter), quão belo ele é. Jesus Cristo é apresentado na Escritura em toda a sua beleza, ainda que essa beleza não possa ser abarcada plenamente por nossos olhos nus de pureza. Certamente a beleza de Cristo transcende a nossa presente capacidade de observação, mas ele é belo em seu caráter. Hoje vemos como que por espelho, ainda não claramente, vemos como sombras, não nitidamente. Amanhã, quando a redenção se completar, então veremos clara e nitidamente quão belo é Jesus Cristo. Entretanto, mesmo agora, em nossas presentes condições, já temos um amor de encantamento pela beleza de Jesus Cristo, pois podemos contemplar sua beleza através dos olhos da fé. A unio personalis fez de Jesus Cristo um ser único e belo como ninguém. Ele é semelhante ao seu Pai porque tem a mesma natureza moral dele, e ele é moralmente semelhante àquilo que ele vai fazer em nós. De longe, avistamos a beleza de Cristo que será refletida em nós. Não é sem razão que um velho cântico costumava ser entoado pelos cristãos (que muitos perderam de vista em virtude do consumismo litúrgico de nosso tempo) e que deveria ser cantado novamente, diz: “Que a beleza de Cristo se veja em mim; toda a sua admirável pureza e amor; ó tu, Chama divina, todo o meu ser refina, até que a beleza de Cristo se veja em mim.”

Por isso nós o amamos desde já e a sua beleza nos motiva ao amor a ele. Depois que recebemos o amor de Cristo derramado em nosso coração, passamos a ter olhos para ver Jesus na sua beleza. Não há criatura remida que não se encante e não ame a Cristo por sua formosura!

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3. O NOSSO AMOR AO REDENTOR É MOTIVADO PELO RESPEITO RELIGIOSO QUE ELE IMPÕE Por causa da unio personalis, nosso Redentor também é uma pessoa religiosa, com deveres religiosos e com um sobre-excelente relacionamento com Deus. Ele não era somente Deus, mas também homem, e, como tal, manifestou atos de profundo senso religioso. Ele confiou em Deus, ele orou a Deus, ele obedeceu a Deus em absolutamente todas as coisas. Não houve nada desejável que ele não tenha feito em sua relação vertical com Deus. Como é amável ver Jesus se relacionando tão intimamente com Deus. Ele o chama corretamente de Pai porque é da mesma natureza divina dele, mas ele o chama de “meu Deus” porque ele é da mesma natureza nossa, e com seu Deus e Pai ele se relaciona maravilhosamente. O que ele quer que seus irmãos mais novos façam é que mantenham comunhão consigo e com o Pai, a fim de que a vida desses irmãos seja abundante e proveitosa. O nosso amor por esse Redentor é motivado pelo tipo de manifestação religiosa que ele tem e quer que tenhamos com Deus Pai. Quando olhamos para Jesus em suas expressões de adoração, somos motivados a amá-lo, e cada vez mais ele deve se tornar objeto de nossas santas afeições, que devem ser exercitadas especial e primariamente para com ele. As nossas santas afeições para com o nosso Redentor satisfazem a nossa alma. Por isso, somos ordenados a amar o Senhor de todo coração, fixando nossas afeições nele.

4. O NOSSO AMOR AO REDENTOR É MOTIVADO PELO QUE ELE É E PELO QUE FEZ POR NÓS Consideremos primeiro a motivação de nosso amor pelo que o Redentor divino-humano é em si mesmo. Essa parte é uma das mais difíceis de se descrever, porque não conseguimos penetrar em profundidade sobre a matéria dele. Não há discurso que possa esgotar a idéia da sua personalidade. Como já dissemos em capítulos anteriores, a personalidade com dupla natureza é altamente complexa, ímpar, e nossas capacidades de apreensão se tornam diminuídas quando tentamos compreender coisas tão profundas como as que ele revela. É altamente significativo que haja revelação, embora não se possa compreender com muita clareza o que está revelado. Essa grandeza de caráter e singularidade pessoal nos faz admiradores e amantes dele. Nem sequer somos capazes de meditar na Pessoa do Redentor. Todavia, somos chamados a refletir nas suas palavras e a obedecê-las. A dificuldade de compreensão desse tema e mistério da unio personalis é como, por causa dessa união, podemos ver atributos das duas naturezas sem que essas se confundam, se misturem, se separarem ou se sobreponham. Tudo o que Deus tem o Redentor tem, e tudo o que nós, seres humanos, temos, ele tem (exceto o pecado). Nunca houve alguém assim, e esse é o nosso Redentor. Por isso existe uma motivação nessa maravilhosa pessoa que nos impulsiona a amá-lo de todo o nosso coração.

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A motivação do nosso amor por Jesus Cristo não é somente pelo que ele é, mas pelo que ele fez por nós. As poucas linhas desta parte do capítulo não são suficientes para descrever tão grande obra de redenção. Todavia, queríamos apenas lembrar, ainda que de forma sucinta, o que ele fez por nós. Jesus Cristo exerceu magistralmente os seus ofícios mediatoriais em nosso lugar e a nosso favor, desde que ele se encarnou até sua morte, ressurreição, ascensão e sessão nos céus. Em toda a sua existência depois da unio personalis, o nosso Redentor vem agindo majestosa e bondosamente em nosso lugar (como um sumo sacerdote que oferece um sacrifício em nosso lugar, e, no caso de Cristo, ele ofereceu-se a si mesmo, e ainda intercede por nós) e em nosso favor (agindo como um rei que governa para o nosso bem e como profeta que nos traz as palavras de Deus). Ele nos comprou com o seu próprio sangue, livrando-nos das mãos de Deus, que, com justeza, estava irado conosco por causa de nossos pecados. Ele pagou um alto preço para pagar o nosso débito, e, além disso, vive para santificar nossa vida, até que ele venha ou ele nos leve para junto de si. Essas coisas nos deveriam motivar ao amor a ele, porque o que ele fez é extremamente importante e absolutamente fundamental para a nossa redenção. Se nós crêssemos em todas essas coisas, certamente teríamos amor por ele. Não há ninguém que, crendo nessas coisas todas que ele fez, possa ficar sem esse amor por ele. Não há ninguém consciente no coração de toda a obra da redenção que não prorrompa em louvores, como fez o salmista: “bendize, ó minha alma ao Senhor, e não te esqueças de nem um só de seus benefícios. Ele é quem perdoa todas as tuas iniqüidades; quem sara todas as tuas enfermidades; quem da cova redime a tua vida, e te coroa de graça e misericórdia; quem farta de bens a tua velhice, de sorte que a tua mocidade se renova como a da águia” (Sl 103.2-5). Isso é um cântico que fala em termos poéticos e teológicos da redenção do pecador. Esse é um grande cântico de amor e gratidão composto por alguém que entendeu e experimentou a redenção, ainda que tenha recebido menos luz do que os que viveram sob a revelação do Novo Testamento. Com muito maior razão, podemos hoje ter motivação de amor, porque aquilo que era somente esperança no Antigo Testamento tornou-se realidade na vinda do Redentor. Se Davi pode cantar assim, por que não podemos mostrar também o nosso amor pelo Redentor, nós, os que já conhecemos toda a história, e que já sabemos, por revelação divina, qual será o fim da história? Olhando retrospectivamente tudo o que Jesus Cristo fez, conhecendo todos os seus santos preceitos, o exemplo santo de sua vida e a doação de si mesmo “em resgate por muitos” (incluindo você) na sua morte expiatória, você não tem o seu coração afetado com ardente amor para com essa pessoa maravilhosa? Lembre-se de que onde não há amor por Jesus Cristo é sinal de que não há nenhuma fé nele, e se não há fé acompanhada de amor, não há como se possa desfrutar da salvação que ele providenciou para os seus irmãos!

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5. O NOSSO AMOR AO REDENTOR É MOTIVADO PELO SEU AMOR POR NÓS Tudo o que Jesus Cristo fez por nós está fundado no seu amor por nós. Ninguém faz o que ele fez sem amor. Toda a sua obra mediatorial foi baseada em seu amor de entrega e de auto-sacrifício. A consideração daquilo que Jesus Cristo fez por nós está diretamente relacionada com o que recebemos dele. Provavelmente pensando nessas coisas, Paulo disse que vivia pela fé “no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2.20). Quando Paulo contemplava toda a obra redentora sobre a qual escreveu muito, ele prorrompia em cânticos de adoração ao seu Redentor, cantando o amor de Cristo por ele. É próprio de nossa natureza humana (e também devido ao fato dela não ser ainda plenamente redimida) amar uma pessoa em virtude do que ela faz por nós. Portanto, não há ninguém que nos tenha amado tanto como Jesus Cristo. Logo, isso nos motiva intensamente ao amor de retribuição a ele. O amor do Pai pelo Filho e do Filho pelo Pai é um amor de mutualidade, mas ambas as manifestações de amor são merecidas. Contudo, esse não é o caso do nosso amor por Jesus Cristo. O nosso amor por ele é a resposta de um amor imerecido para um amor merecido. Nós o amamos porque ele nos amou primeiro. Este último é um amor imerecido, e o primeiro é um amor merecido. Esta é uma grande motivação para o nosso amor a ele. Os seres humanos podem chegar a um alto grau de amor por outras pessoas, a ponto de uma pessoa morrer por outra, porque a primeira possui uma admiração e um respeito profundo pela última, porque esta é digna do seu amor. Paulo, quando tratou do amor de Cristo, admitiu esta possibilidade: “Dificilmente alguém morreria por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém se anime a morrer” (Rm 5.7). Há muitas pessoas boas e amáveis. Todavia, ele toma o amor divino e o contrasta com o nosso, dizendo: “Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). Perceba que o nosso amor é por seres merecedores, mas não o de Cristo por nós. Éramos pessoas não amáveis, mas o amor de Cristo é nascido nele, e não em nossas virtudes. Essa é a profundidade e o comprimento e a largura do amor de Jesus Cristo por nós. Isso deve certamente motivar-nos ao amor a Jesus Cristo, porque ele nos amou quando ainda éramos ofensores dele. O amor de Cristo pela Igreja possui uma característica singular porque ele produz um amor reflexo no coração daqueles a quem ele amou. Como seu amor é eficaz, então ele motiva eficazmente o amor de seu povo a ele. Os recipientes do seu amor possuem afeições recíprocas que eles manifestam quando experimentam e tomam consciência do seu amor redentor. Nenhum ser humano é capaz de amar eficazmente a ponto de motivar eficazmente outras pessoas a terem um amor de retorno, um amor que provoca infalivelmente uma resposta, que nos impulsiona e

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que nos motiva eficientemente a amá-lo. Tratando desse assunto, a seu modo, Paulo fala do poder do amor de Cristo, que nos “constrange” (2Co 5.14 – sune/kei). O verbo grego usado por Paulo é sune/kw, que tem a idéia de “impelir”, “compelir”, “obrigar a”, denotando que o amor de Cristo nos impulsiona a uma atitude de amor para ele. Na verdade, é mais do que motivação. É um impulso para que o amemos em retorno. Nenhum retorno apropriado existe para o amor senão o próprio amor. Se uma pessoa pudesse dar o mundo como recompensa pelo amor recebido, sem amor, essa recompensa seria desprezível. Portanto, retorne com amor ao amor que você recebeu.

I. OS RESULTADOS DO AMOR DO REDENTOR Toda manifestação de amor redentor nasce em Deus e é derramada sobre nós. Todavia, o amor de Deus (que é trinitário) não se manifesta somente no início de nossa redenção. Ele caminha até o final dela e prossegue para sempre e sempre. O nosso amor é um amor de resposta, e, quando respondemos ao seu amor, mais amor ainda recebemos. Pelo menos é isso o que a Escritura nos ensina.

1. POR AMARMOS O REDENTOR RECEBEMOS O AMOR DO PAI João 16.27 – “Porque o próprio Pai vos ama, visto que me tendes amado e tendes crido que eu vim da parte de Deus.”

Tanto o amor do Pai pelos discípulos como o dos discípulos pelo Redentor tem a idéia de uma profunda afeição. O verbo usado por Jesus Cristo em ambos os casos é file/w (phileo). Após tornarem-se discípulos (pela fé em Cristo Jesus), o contato diário deles com Jesus se desenvolveu numa simpatia íntima e numa afeição tão cheia de ternura por ele que nada podia perturbá-las. Por causa dessa afeição, o Pai, por sua vez, tem afeição por eles. A nossa afeição por Jesus inspira o amor do Pai pelos discípulos.528 Quanto mais crescia a afeição deles por Jesus Cristo através do seu contato com ele, mais eles criam na origem divina de Jesus Cristo, e mais o Pai lhes dava amor de retorno. Nesse caso, aqui o nosso amor pelo Redentor é recompensado pelo amor do Pai por nós. Todas as respostas às nossas orações mostram essa recompensa. A lei da recompensa é uma lei natural no universo de Deus. Qualquer pai humano ama aqueles que amam os seus filhos. Se é assim conosco, que ainda somos maus, muito mais o Pai celestial ama aqueles que amam seu Filho. Não é amor de mérito o do Pai por nós, mas é um amor motivado pelo nosso amor ao seu Filho. Quando os discípulos obedecem às palavras de Jesus, eles provam que amam Jesus. Quando eles dão essa prova de amor, eles recebem o amor 528. Ver R. C. H. Lenski, The Interpretation of St. John´s Gospel (Minneapolis: Augusburg Publishing House, 1961), 1104, 5.

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do Pai. Essa idéia está clareada inequivocamente em João 14.23, como palavras diretas de Jesus: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará e viremos para ele e faremos nele morada.”

Quem pode avaliar, que coração pode conceber, ou que língua pode expressar a glória dessa promessa de Jesus de ser amado pelo Pai? Quem pode compreender a condescendência divina em seu amor expressa nessas palavras de Cristo? Compreendemos tão pouco dessas promessas divinas! Essas promessas são peculiarmente dadas para aqueles que amam a Cristo e exercitam esse amor através da obediência. Ser amado do Pai é extremamente honroso nesse sentido porque isso significa que temos a aprovação dele no amor obediente que demonstramos ao seu Filho amado.

2. POR AMARMOS O REDENTOR, RECEBEMOS O SEU AMOR João 14.21 – “Aquele que tem os mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama, será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me manifestarei a ele.”

O amor dos discípulos a Cristo é evidenciado pela sua obediência a ele e às suas palavras (v. 15). Todavia, não podemos pensar que o amor conseqüente de Jesus pelos discípulos é um amor causado pelo amor deles. Longe disso. O amor de retorno de Jesus aos seus discípulos é para confortá-los e para que soubessem que nunca haveriam de ser deixados sós. Não somente o Pai os haveria de amar, mas também o próprio Cristo, e, além do mais, Cristo haveria de se manifestar a eles (o que se daria nas aparições pós-ressurreição e na sua presença constante com todos os que se reúnem em seu nome). É maravilhoso saber que sempre haveremos de ser amados pelo Redentor e que sempre ele haverá de se manifestar a nós, consolando-nos sempre em nossas aflições. O amor de Deus pelos discípulos e o amor de Jesus Cristo por eles não somente precedem o amor dos discípulos pelo Filho, mas sucedem esse amor. Por que o amor divino não pode preceder nem suceder ao amor humano? Esse é um maravilhoso arranjo divino. O amor do Pai e do Filho vem antes e depois do amor dos discípulos por eles.

CONCLUSÕES GERAIS Há muitas coisas mais que podem ser ditas do amor ao Redentor. É só procurarmos nas Escrituras sobre o nosso amor a ele e encontraremos muitas sugestões. Todavia, para terminar esse último capítulo do livro, sugiro apenas duas coisas que você pode fazer para melhorar o relacionamento de amor de você para com o seu Redentor.

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A. CONFORME-SE À PESSOA DO REDENTOR Há duas coisas que podemos fazer para nos conformarmos à Pessoa do Redentor. A primeira tem a ver com o caráter interno dele, que diz respeito à sua santidade, e a segunda tem a ver com a exterioridade dessa conformidade, que diz respeito à nossa obediência em imitação à dele.

1. COMO EXPRESSÃO DO SEU AMOR A CRISTO, ESFORCE-SE PARA SER PARECIDO COM ELE NA SANTIDADE DO SEU CARÁTER Eu me lembro de que, quando criança, eu queria ser igual ou imitar aquelas pessoas por quem eu tinha um grande amor e uma grande admiração. Isso não é diferente nas coisas espirituais. Quando você se esforça para refletir o caráter do seu Redentor, você está mostrando o quanto você o ama, porque sempre haveremos de querer ser iguais àqueles a quem amamos. Quando o homem pecou no Éden, ele perdeu a beleza do caráter daquele que o havia criado. A imagem de Deus ficou desfigurada e o homem passou a não mais refletir perfeitamente o seu Criador. Quando Deus enviou ao mundo seu Filho, que haveria de ser chamado de “segundo Adão” ou “último Adão” (1Co 15), deu a ele uma natureza humana que ficou inseparavelmente unida à natureza divina, que ele já eternamente possuía. Esse Filho encarnado, portanto, com natureza humana, refletia perfeitamente o Deus que havia criado o homem, e a sua finalidade neste mundo foi a de restaurar a imagem moral de Deus, que havia sido altamente prejudicada na vida de todos os descendentes do primeiro Adão. Portanto, Jesus Cristo foi exatamente o que o primeiro Adão deveria ter sido: um reflexo perfeita Criador. Ele é a imagem perfeita que todos nós deveremos ser um dia. Seja um cidade celestial como ele é (cf. 1Co 15.47,-49). Por “celestial” entenda puro, incorruptível, sem mácula. Jesus é assim. Conforme-se ao caráter santo e puro. Você tem que crer de todo o coração que Deus “nos predestinou para sermos conformes à imagem do seu Filho, a fim de que seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29), refletindo perfeitamente a sua santidade, que foi perdida no Éden. Se fomos predestinados para isso, certamente o ato predestinador de Deus será cumprido. Todavia, Deus predestina os fins e os meios. Cristo é o grande instrumento divino para nos fazer parecidos com ele. Cristo morreu e ressuscitou para restaurar em nós a imagem daquele que nos criou, e essa imagem que ele restaura em nós nada mais é do que ele próprio em nós, porque ele é o reflexo de Deus é. Aposse-se de todos os meios de graça que Deus concede para que os seus santos propósitos sejam cumpridos em nossa vida. Deus nos deu a vida de Cristo a fim de que pudéssemos crer nele e amá-lo. Se nós cremos nele e o amamos, é nosso

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dever querer ser parecidos com ele. Você e eu precisamos ter esse alvo na vida. É nossa responsabilidade como cristãos amantes de Cristo sermos parecidos com ele. A santidade que devemos almejar é a santidade que o Redentor teve segundo a sua natureza humana. Nunca seremos santos, imutável e essencialmente como Deus é, porque não podemos ter as coisas essenciais e imutáveis de Deus. Todavia, podemos ser santos como o nosso Redentor é. Essa é uma responsabilidade que Deus nos deu. Somente pela graça divina podemos nos desincumbir dela. Portanto, é necessário que você peça força a Deus e lute com a graça recebida para se conformar à imagem do Filho de Deus encarnado. Seja santo como ele é, segundo a sua humanidade. Você, então, terá uma santidade derivada, uma santidade que, após completada a redenção, nunca mais será mudada, não porque terá adquirido a imutabilidade, mas porque graciosamente Deus livrará você de cair outra vez. Esforce-se por querer ser parecido com aquele que você tanto ama e admira!

2. COMO EXPRESSÃO DO SEU AMOR A CRISTO, APRENDA A OBEDECER COMO ELE OBEDECEU Uma das expressões da santidade do caráter de Jesus Cristo é a sua obediência inquestionável ao seu Pai. Portanto, uma das maneiras de você se conformar ao seu Redentor é obedecer como ele obedeceu. João 4.34 – “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra.”

A Escritura acima diz que a comida de Jesus Cristo era fazer a vontade do seu Pai celestial. Jesus se satisfazia nisso. Esse era o seu alimento dia e noite. Enquanto você não tiver essa mente de Cristo, você não terá o desejo de fazer a vontade do Pai celeste como sendo sua comida e bebida. Para obedecer a seu Pai, ele negou-se a si mesmo. Ele abriu mão de coisas sobre as quais tinha direito e submeteu-se aos ditames do Pai para a sua vida. Algumas vezes você tem direitos a algumas coisas que são lícitas, mas, por causa da sua obediência a Deus e por amor a seus irmãos, você faz como Cristo, você obedece a lei das coisas que são excelentes, não apenas as coisas boas ou aceitáveis. Para obedecer a seu Pai, Jesus foi pacientemente para o sofrimento e para a cruz. É fundamental para os discípulos de Jesus fazerem como ele faz. Somos chamados a uma vida de obediência ao mandamento de fazer como ele fez. Assim como ele tomou a cruz, somos chamados a tomar a nossa cruz e a segui-lo. Pedro diz: “Porquanto para isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos o exemplo para seguirdes os seus passos” (1Pe 2.21). Siga os passos do Redentor, conformando-se a ele. Faça isso por amor ao seu Redentor. Paulo afirma categoricamente: “Tende em vós o mesmo sentimento que

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houve também em Cristo Jesus” (Fp 2.5). Ele teve o senso de obediência de humilhação. Faça o mesmo, por amor a quem tanto o amou! Para obedecer a seu Pai, Jesus Cristo teve de agir mansamente. Ele suportou muitas coisas dos seus contemporâneos, quando ele tinha o direito de exercer punição sobre eles. Ele foi tratado com violência, mas não revidou; ele foi tratado com injustiça, mas ficou calado diante de seus algozes; ele foi odiado, ainda que sem causa, mas a sua mansidão ficou mais do que evidente. A mansidão é alguma coisa que nós devemos desenvolver em nossa vida de conformidade com Jesus Cristo. Ele era manso e humilde de coração, e nós somos chamados a ser mansos e humildes como ele, em obediência ao Pai. Seja manso como ele, porque você o ama e porque ele quer que você seja assim. Faça da obediência a Cristo a sua comida e a sua bebida, e, assim, você será conformado àquele que é conforme à imagem de seu Pai.

B. OLHE PARA A PESSOA DO REDENTOR 1. QUANDO OLHAMOS PARA A PESSOA DO REDENTOR, ACABAMOS CONHECENDO A NOSSA PECAMINOSIDADE E A NOSSA REDENÇÃO Olhar para Jesus significa ter fé nele, que é o grande dom que Deus nos deu para que vivamos a redenção dele neste presente mundo.

a. Quando olhamos para Jesus, nós descobrimos a malignidade do nosso pecado Temos uma péssima tendência de olhar para nós próprios e tomarmos nós mesmos como padrão. Quando fazemos isso, nós vemos sempre muito lenientemente, nós nos permitimos ser e fazer muitas coisas. Todavia, quando temos os nossos olhos voltados para Jesus Cristo, o padrão muda. Então, passamos a nos ver como realmente somos. O contemplar da pessoa do Redentor nos coloca na perspectiva correta, fazendo-nos enxergar a realidade sobre nós próprios. A única maneira de termos uma visão correta da nossa pecaminosidade é olhar para a santidade de Jesus Cristo. Houve alguns movimentos na história da Igreja que não tiveram uma idéia correta de pecado. Os arianos (desde o século IV) e os socinianos (do séc. XVI) tiveram concepções muito superficiais a respeito da realidade da natureza pecaminosa dos homens. Eles nunca se viram como merecedores da justíssima ira de Deus e nem se preocuparam com ela, com relação aos seus pecados. Existe um problema muito sério dentro do Catolicismo romano com respeito ao pecado: como os católicos olham mais para Maria do que para Jesus Cristo, a

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noção do pecado é diminuída em nome da atitude “mãezona” de Maria para com eles. Em geral, eles não sentem a verdadeira natureza do pecado, o rigor da lei divina ou o terror do juízo divino. A razão disso é que eles olham para os vários intercessores que possuem e não se vêem à luz de Jesus Cristo. Eles não olham para ele como aquele que foi maldito de Deus no lugar do pecador. Por essa razão, alguns desses movimentos da Igreja cristã não tiveram uma boa doutrina da salvação. Quando as pessoas não se vêem tão pecadoras como realmente são, elas nunca haverão de ver a si mesmas como desesperadamente carentes de salvação. Todavia, quando Deus começa a acordar os católicos para que eles olhem firmemente para Jesus Cristo, o autor e consumador da fé, então eles se deparam com um profundo senso de pecado, sendo realmente convertidos a Cristo. Quando isso acontece, eles percebem quão insatisfatórias foram as práticas religiosas que tiveram durante toda a sua vida. Quando a real conversão acontece, eles começam a se ver como realmente são: pecadores. Então, eles se põem à busca do remédio que é encontrado somente em Cristo Jesus. Na verdade, essa é a história de todos aqueles a quem Deus traz para si. É em Cristo que vemos o abismo de nossos pecados e a grande perdição de que ele nos tirou. Quando olhamos para Cristo, vemos todos os nossos atos de desobediência e vemos o ato de obediência de Cristo sobreposto. Esse ato de obediência encobriu os nossos pecados e Deus passou a olhar para nós em Cristo. Nenhum outro ser poderia fazer por nós o que Jesus Cristo fez, porque nenhum outro poderia ser nosso substituto. Somente Jesus Cristo pode tratar com seu Pai a respeito dos nossos pecados em virtude de sua natureza dupla – divina e humana. Precisamos olhar para Jesus a fim de que nunca nos esqueçamos de onde ele nos tirou. O abismo do pecado não poderia ser cruzado por ninguém, exceto por Jesus. Olhar para Jesus é recordar o profundo abismo da condenação do pecado do qual fomos livres. Jesus não quer que nos esqueçamos do que ele fez. Por isso, ao instituir a ceia, ele disse: “Fazei isto em memória de mim.”. Ele quer que tenhamos sempre presente na mente o que ele fez. Olhar para Jesus é uma necessidade premente de todo crente a fim de que ele tenha sempre fixa na mente a verdade de redenção da malignidade do seu pecado. Olhe para Jesus para que você nunca se esqueça de que o Agente Criador de todas as coisas desceu a este mundo para cumprir todas a exigências do seu Pai para nos remir. Ele pagou até o último centavo para nos resgatar da malignidade do pecado. Ele sabe avaliar corretamente o preço da sua ação redentora, e ele não quer que nos esqueçamos disso. Por isso, temos de olhar para Jesus!

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b. Quando olhamos para Jesus, descobrimos as riquezas da graça divina O pecador em quem Deus começa a trabalhar logo reconhece que não há para apelar senão para a graça divina em Jesus. Quando ele reconhece isso, é sinal de que a própria graça trabalhando nele. Quando o pecador olha para Jesus, descobre que as suas dificuldades acumuladas parecem ser tornar em impossibilidades, mas que essas impossibilidades, pela graça divina se tornam em possibilidades. A alma ansiosa e cheia de dúvidas pergunta-se: “Como poderei vencer todas essas barreiras?”. Essa é a pergunta daquele que olha para dentro de si mesmo. Os abismos se tornam incontornáveis e as barreiras intransponíveis, mas, quando temos os nossos olhos fixos em Jesus Cristo, as impossibilidades se tornam possibilidades. Quando olhamos para Aquele que vive, começamos a vislumbrar a possibilidade de vitória sobre as dificuldades. Foi olhando para o seu Redentor que vive que Jó conseguiu ter vitórias sobre as suas grandes aflições. Somente quando contemplou o futuro em Cristo é que pode ser mais que vencedor (Jó 19.25-27). Não há como cruzar o impossível sem que tenhamos os nossos olhos voltados para Cristo. Quando retiramos dele os nossos olhos e olhamos para a força da tempestade, começamos a afundar no mar encapelado de nossa existência. Pelo menos essa foi a experiência de Pedro (Mt 14.30)! Não tire os olhos do seu Redentor, a fim de que você seja vitorioso nas experiências de sua vida. Quando estiver em aflição, “olhe firmemente para o autor e consumador da sua fé, Jesus” (Hb 12.2). Lance-se aos seus pés, lançando sobre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem preocupação por você. As riquezas da graça divina se abrem para aqueles que ficam na dependência de Cristo e buscam nele socorro. Olhe para Cristo porque ele compreende experimentalmente as suas angústias. Ele também as sofreu porque ele era homem como você. Embora não tenha tido pecado, as suas angústias e dores foram como as de um pecador, porque ele tomou o lugar de pecadores e sofreu como pecador, fazendo-se pecado em nosso lugar. Portanto, ele vai entender os seus lamentos e as suas lágrimas. Olhe firmemente para ele, para que ele leve a sua fé firme até o final.

2. QUANDO OLHAMOS PARA A PESSOA DO REDENTOR, PODEMOS VER A ENORMIDADE DO NOSSO PECADO E A ENORMIDADE DA NOSSA REDENÇÃO Quando visitamos algumas regiões montanhosas em nosso país, não temos idéias de outras regiões com cordilheiras como a dos Andes e dos Alpes. Visitando certa vez os Alpes, eu percebi quão grande é a diferença deles em relação às nossas elevações por aqui. As montanhas ali são pontiagudas e altíssimas.

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De um modo análogo, podemos dizer que quem viu o pecado em si mesmo apenas na nossa esfera, não viu realmente o tamanho dele. Você só pode contemplar a enormidade do pecado quando olha para a cruz e vê o que aconteceu a Jesus Cristo por causa dele. O pecado é visto nas suas reais proporções quando se mede a ira de Deus vinda sobre Jesus Cristo. Por essa razão é que a Escritura chama a salvação de “grande salvação”. A grandeza da salvação é relativamente proporcional à enormidade do pecado. Na verdade, a salvação é maior do que o pecado porque “onde abundou o pecado, superabundou a graça de Deus (Rm 5). Para que nós pecadores tivéssemos a paz de alma, o Redentor teve de ter os laços de morte que o cercaram e cordas do inferno se apoderando de si, que o fizeram cair em tribulação e tristeza (Sl 116). O pecado não é pouca coisa, como estamos acostumados a ver em nossa esfera. Para que possamos contemplar a enormidade do pecado é necessário atravessar a fronteira do tempo e contemplar Jesus na cruz. Nossa grande perdição exige uma grande salvação! Alguns corolários de se olhar para a cruz: 1. Quando olho para Jesus Cristo na cruz, eu tenho de confessar a minha natureza pecaminosa, sabendo que, à semelhança de Davi, fui “nascido em iniqüidade e concebido em pecado” (Sl 51.5). Ao mesmo tempo, quando olho para Jesus Cristo na cruz, eu vejo o “ente santo” (Lc 1.35) sendo castigado por causa da minha natureza adâmica. Ali o Redentor tomou o meu (e o seu) lugar não somente para que eu fosse declarado santo no tribunal de Deus, mas para realmente garantir a minha santidade pessoal. 2. Quando eu olho para Jesus Cristo na cruz, eu tenho de confessar os pecados da minha infância. Aquele menino que “crescia e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria, e [sobre quem] a graça de Deus estava” (Lc 2.40) pagou a penalidade dos meus pecados de menino, e os da sua meninice também. Agora, Deus trata comigo como se eu nunca tivesse cometido pecados porque o Redentor divinohumano pagou as minhas penas. Assim, eu posso me apresentar diante de Deus livre de qualquer temor, porque os meus terrores e aflições, Cristo os enfrentou por causa da enormidade dos pecados da minha infância. 3. Quando eu olho para Jesus Cristo na cruz, eu tenho de confessar os pecados da mocidade. Fui ensinado constantemente pela Escritura que eu devia fugir dos pecados da mocidade (2Tm 2.22). Eu envergonhei tanto ao meu Redentor com palavras, ações e, sobretudo, pensamentos, que não posso olhar para Jesus sem confessar todos esses meus pecados. Ao mesmo tempo em que o olho na cruz, eu vejo quão “bondoso amigo é Cristo”, levando toda a minha dor. 4. Quando eu olho para Jesus Cristo na cruz, eu tenho de confessar os pecados da maturidade. Muitos homens de Deus têm pecado já na idade madura, quando deviam ser maduros no entendimento, no amor, na fé e na pureza, desde os dias da

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mocidade. Ao mesmo tempo, quando contemplo o Redentor, eu vejo um homem com plena varonilidade suportando tudo por amor de mim, pecador maduro e cheio de imaturidade espiritual. 5. Quando eu olho para Jesus Cristo na cruz, eu tenho de confessar os pecados da minha velhice. À altura da publicação deste livro não sou ainda velho, mas eu serei dentro de pouco tempo. Até lá ainda terei pecados pelos quais ainda hei de chorar de tristeza na contemplação da cruz. Todavia, ainda lá o meu Redentor vai me provar o seu grande amor redentor por mim! 6. Quando eu olho para Jesus Cristo na cruz, eu tenho de confessar os meus pensamentos e imaginações. A Escritura me diz que é “continuamente mau todo desígnio do [meu] coração” (Gn 6.5). Essa é a parte mais feia da minha vida. É o lado escondido que ninguém vê, somente aquele que estava pregado na cruz. Ele conhece todas as coisas, e eu não posso me furtar a pedir perdão pelos pensamentos e imaginações do meu coração, ainda que já regenerado. Deus não extirpou de mim a velha natureza, e ela (que sou “eu”) me faz pensar e imaginar coisas das quais tenho vergonha de que os outros venham a saber. Todavia, Jesus Cristo é compassivo comigo e com você (que certamente tem problemas semelhantes ao meu), porque as suas compaixões se acendem cada dia e sou beneficiário delas. 7. Quando eu olho para Jesus Cristo na cruz, eu tenho de confessar as minhas palavras mal ditas. Por palavras mal ditas me refiro às palavras certas ditas de modo indevido e na hora errada; palavras ditas imprudentemente; palavras ditas maldosamente; palavras de crítica; palavras de depreciação; palavras impróprias para a boca de um cristão, que são palavras torpes; palavras pelas quais eu vou ter que dar conta no dia do juízo (Mt 12.36). Ao mesmo tempo, quando olho para a cruz, eu sei que o Redentor me perdoa e que um dia eu serei livre de todas essas palavras mal ditas e malditas, porque nesse dia eu serei uma criatura remida completamente e falarei somente coisas de novidade de vida, porque plenamente a “tua lei vai estar dentro do meu coração” (Sl 40.8). Nesse dia, como Cristo, só falarei aquilo que for para a edificação, palavras de graça (Lc 4.22; cf. Sl 45.2b). 8. Quando eu olho para Jesus Cristo na cruz, eu tenho de confessar os pecados dos deveres mal feitos. Eles são enormes, e estão em todas as esferas da minha vida. Aqui me refiro mais especialmente quando me lembro dos pecadores na hora da adoração, que revelam a minha indelicadeza para com Deus. Todavia, quando contemplo Jesus na cruz, vejo que adora junto comigo e santifica a minha adoração, e Deus recebe o que eu faço porque Jesus faz uma adoração perfeita como homem verdadeiro e santo que é. Deus me aceita na adoração por causa da adoração de Cristo, meu substituto. Ele canta louvores no meio da congregação junto de seus irmãos, e isso me conforta, porque os meus desafinos cúlticos são encobertos pela harmonia do culto que Jesus presta ao seu Deus e Pai. Todas as manifestações cúlticas de Jesus: os seus cânticos, as suas orações, as suas leituras da Escritura,

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enfim, tudo, Deus põe na minha conta, e sou perdoado pelos erros que fiz. Grande é a minha salvação porque grande é a minha perdição!

3. QUANDO OLHAMOS PARA A PESSOA DO REDENTOR, SOMOS LEVADOS A SER PROMOTORES DA PAZ QUE EXCEDE TODO ENTENDIMENTO Desde o tempo da queda de nossos pais, sabemos que o pecado retira a paz da alma. Mesmo um só pecado é suficiente para retirar essa doce sensação de nosso ser interior. O pecado do assassinato cometido por Caim tirou a paz da família de Adão; o pecado do roubo da capa cometido por Acã tirou a paz do povo de Israel, causando um grande temor entre toda a nação; o pecado cometido por Davi causou instabilidade e derramamento de sangue em toda a sua posteridade. Cada pecado cometido é um santo motivo para Deus turbar o coração dos filhos dos homens. É líquido e certo que o pecado rouba a paz do coração humano. O pecado desperta a ira divina e torna a vida do pecador cada vez mais amarga e desesperadora, dependendo do grau do seu descontentamento que Deus faz vir aos homens. Ele é santo demais para deixar os homens ilesos. Se ele fizesse isso, ele negaria a si mesmo. Deus faz a consciência do homem arder por causa dos seus pecados. É por essa razão que a Escritura diz que “os ímpios não têm paz”. Todavia, Deus não deixou todos os homens nesse estado de intranqüilidade, de angústia, de temor e de outros sentimentos absolutamente desconfortáveis. Deus fez provisões maravilhosas para aqueles em quem ele colocou o seu coração. Deus providenciou um meio para que a paz entre si e os homens fosse estabelecida. Ele colocou o seu próprio Filho divino-humano sob a sua ira, a fim de que a sua ira para com os filhos dos homens fosse desviada deles. Cristo Jesus pregado na cruz é um grande sinal de que Deus quer paz com os homens, pois a morte de Cristo é símbolo de que Deus nada mais tem contra nós. A morte do Redentor é um grande indicativo da atitude pacificadora de Deus no meio de um universo ainda sob a sua maldição. Ele amaldiçoou o seu próprio Filho encarnado para poder reiniciar historicamente o processo da redenção desse universo todo, incluindo o estabelecimento da paz com os homens. Quando o Verbo se fez carne, os anjos cantaram “paz na terra” anunciando o intento divino de atrair os homens para si. Quando Jesus Cristo foi para a cruz, ele o foi voluntariamente, sabendo que essa era a única provisão divina para estabelecer a paz entre Deus e os homens. Cristo pregado na cruz é indicativo da iniciativa do Pai e do Filho encarnado. Jesus Cristo é a nossa paz, não somente por causa da sua morte, mas também por causa da sua obediência, que nos foi imputada. Sua obediência, portanto, tornou-se a nossa obediência. Por essa razão, temos razão de sobejo para promover “a paz de Deus que excede todo o entendimento” (Fp 4.7).

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A Escritura diz que Deus promoveu a nossa paz através de Jesus Cristo. O texto de Efésios 2 diz que “estávamos sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo. Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. Porque ele é a nossa paz...” (Ef 2.12-14).

Não existe paz com Deus à parte do derramamento de sangue de Cristo e da ação voluntária dele na cruz. Ele nos uniu a Deus, quando estávamos separados dele. Não existe paz à parte de Jesus. Foi exatamente isso que Paulo disse aos da Igreja de Filipos: “E a paz de Deus, que excede todo entendimento, guardará os vossos corações e as vossas mente em Cristo Jesus” (Fp 4.7). Tudo o que recebemos de Deus é em Cristo Jesus. Jesus é a nossa paz, o Jeová Shalom (Jz 6.24). Portanto, quando olhamos para Jesus Cristo, somos levados a ser promotores da paz. Não há como olharmos para Jesus e ficarmos sem uma atitude de promoção da paz divina, anunciando o conselho divino do estabelecimento da paz. Quanto mais temos os olhos fixos em Jesus Cristo, mais entendemos a nossa necessidade de sermos pacificadores. Quando uma pessoa não olha para Jesus Cristo é porque ela ainda não percebeu o significado da obra do supremo Pacificador. As responsabilidades que a paz de Deus nos impõe:

a. A responsabilidade de viver em paz com os irmãos O texto de 1 João 2.8-11 mostra que nós, os crentes na nova dispensação, temos uma luz superior aos crentes da antiga dispensação, as trevas se dissiparam e a luz de Cristo agora brilha. Em outras palavras, João está dizendo que, no tempo de agora, temos muito mais luz do que no tempo do Antigo Testamento. Por isso temos um “novo mandamento”. Essa nova luz, que produz um novo mandamento, aumenta em nós o dever da obediência em relação aos nossos irmãos. Essa nova luz, trazida por Cristo crucificado, obriga-nos a uma vida de paz com nossos irmãos. Por isso, João diz que “aquele que ama a seu irmão, permanece na luz e nele não há nenhum tropeço” (v. 10). Se recebemos a paz de Deus através do o que Cristo fez, temos a obrigação de, olhando para Jesus, fazer exatamente o que ele fez. João é duro na sua observação para os desobedientes que não olham para Jesus para imitá-lo. Veja as palavras fortes do apóstolo: “Aquele, porém, que odeia a seu irmão, está nas trevas, e anda nas trevas, e não sabe para onde vai, porque as trevas lhe cegaram os olhos” (v. 11). Você e eu, como cristãos que observam o que Cristo fez, temos o dever de viver em paz com os irmãos. A desobediência a esse dever traz angústia, insatisfação e tristeza de alma, o que nos leva a crer que ainda estamos em trevas.

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Certamente, se isso foi verdade nos tempos do apóstolo, a verdade permanece para hoje, porque a verdade estatuída na Palavra de Deus é uma verdade que não muda. Portanto, busque estabelecer a paz com os seus irmãos, se é que você está na luz!

b. A responsabilidade dos que tem paz é viver em comunhão com Cristo Todos os cristãos que recebem a paz trazida por Cristo têm que mostrar que estão em comunhão vital com Jesus Cristo. Quando você tem a paz de Cristo, que excede todo entendimento, isso significa que você está olhando para Cristo e que os outros estão vendo Cristo em você, pelo modo como você desfruta da companhia dele. Se você tem a paz de Cristo você tem de mostrar a sua semelhança a ele, que advém da comunhão com ele.

c. A responsabilidade dos que têm paz é viver em pureza Quando você desfruta da comunhão com Cristo em sua paz, essa paz deverá caracterizada pela pureza (como todas as coisas que procedem do Alto – Tg 3.17), e todas as coisas relativas a essa paz cheia de pureza devem ser o produto de termos os olhos fixos em Jesus Cristo, o Deus encarnado. Quem tem os olhos voltados para Jesus Cristo haverá de refletir a sua pureza porque não é natural estar ligado a Jesus e em Jesus e, ainda, viver simultaneamente em pecado. Todavia, há aqueles que crêem em Cristo e que tentam buscar uma paz por seus próprios esforços mas não procuram uma vida de pureza. É uma impossibilidade estar em paz, e, todavia, ao mesmo tempo andar sem a comunhão com Cristo que nos purifica. Somente o Jeová Shalom pode estabelecer uma verdadeira paz acompanhada de uma vida de pureza, que é uma conseqüência de uma vida de comunhão com Cristo. Aquele que tem a paz de Cristo tem os olhos fixos nele e não pode desfrutar a paz tirando os olhos dele. Somente quando o nosso pensamento se ocupa com “tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama”, é que temos a doce companhia “do Deus da paz” (Fp 2.8, 9) conosco. Se você, caro leitor, estiver peregrinando longe desses santos caminhos, será bom você voltar os seus olhos para Jesus Cristo, porque isto o fará repensar os caminhos de impureza que você anda trilhando. Não olhe mais para as coisas do mundo e suas concupiscências. Elas trazem um prazer passageiro, trazem uma paz que o mundo dá. Afaste os olhos dessas coisas. Olhe somente para Jesus, a fim de que você venha novamente a sentir o gozo da paz de Deus através da graça de Jesus, andando em novidade de vida.

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d. A responsabilidade dos que têm paz é promover a paz entre os irmãos Aquilo que recebemos de graça, de graça temos que dar. Recebemos a paz do Deus da paz. Recebemos a paz como um dom, pois a paz é um dos maiores legados de Jesus: “Deixo-vos a paz” (Jo 14.27), disse ele. Seja um bem-aventurado de Deus exercendo a função de um pacificador. Essa é a bem-aventurança daqueles que vêm a ser chamados filhos de Deus (Mt 5.9). Hendriksen disse que “os pacificadores genuínos são todos aqueles cujo líder é o Deus da paz (1Co 14.33; Ef 6.15; 1Ts 5.23), que aspiram a viver em paz com todos os homens (Rm 12.18; Hb 12.14), que proclamam o evangelho da paz (Ef 6.15) e modelam sua vida em harmonia com o Príncipe da Paz (Lc 19.10; Jo 13.12-15; cf. Mt 10.8)”.529 Todavia, sempre há em nosso meio aqueles que semeiam contendas e promovem a divisão no meio dos irmãos. Eles semeiam a divisão porque não possuem o Espírito de Deus, que é de paz (Jd 19). É responsabilidade dos que possuem a paz serem promotores dela. Tiago fala daqueles que, semeando o fruto da justiça, são os que promovem a paz: “Ora, é em paz que se semeia o fruto da justiça, para os que promovem a paz” (Tg 3.18). Devemos promover a paz entre os irmãos, empenhando-nos alcançá-la (1Pe 3.11). É nossa tarefa ter os nossos olhos fixos em Jesus Cristo, o doador da paz, para que nunca nos esqueçamos de sermos promotores da paz.

4. QUANDO OLHAMOS PARA A PESSOA DO REDENTOR, TENDEMOS A DESENVOLVER SANTIDADE NA ALMA Objetivamente, Jesus Cristo foi pregado na cruz para remir, e a remissão inclui a santificação. Na verdade, antes mesmo da cruz, ele intercedeu por nós, orando ao Pai: “Santifica-os na verdade”. A preocupação de Jesus Cristo era ver-nos absolutamente santificados pelo derramamento do seu sangue. Não é sem razão que João enfatiza “que o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7). Subjetivamente, somos santificados como resultado da obra de Cristo, mas, nesse processo santificador, Deus usa algumas coisas que ele mesmo implanta em nós para que esse processo tenha continuidade. Deus desperta o nosso senso de dever e mantém uma gratidão e um amor agradecido dentro de nós. Se esses santos sentimentos não existem em nosso interior, a nossa vida espiritual se torna árida e não temos reações positivas ao que Cristo fez por nós. Sem esses santos sentimentos, não há resposta positiva de nossa alma ao que foi feito objetivamente por nós. Portanto, não percebemos o que é feito em nós, porque o nosso coração não pulsa freneticamente diante das ações divinas – o que é muito desolador! 529. William Hendriksen, Mateus, vol. 1 (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001), 389.

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A santidade em nós é algo crescente. Pedro disse: “Crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Pe 3.18). Quando, pela bondade de Deus, respondemos ao que foi feito por nós, então passamos a desenvolver a nossa redenção crescendo na conformidade de vida a Jesus Cristo. A idéia de olhar para Jesus é a de buscar santidade na dependência dele, e, então, tornamo-nos refrescantes como a primavera, e de nós passa a fluir a calma que é própria daqueles que estão repousando na dependência de Jesus, mas com um espírito obediente e agradecido. Quando, então, olhamos para Jesus Cristo, tendemos a desenvolver a santidade de nossa alma de três modos: (1) pela comunhão com ele; (2) pela percepção de sua vida em nós; (3) pela conformação de nossa alma à sua semelhança, imitando-o.

a. Quando olhamos para Jesus Cristo, desenvolvemos santidade na alma em comunhão com ele O anelo dos verdadeiros cristãos é ter a alma santificada no relacionamento com Jesus Cristo. Talvez não haja nenhum genuíno cristão que não queira comungar com Jesus. Essa idéia faz o coração dos cristãos arder porque ele é a sua esperança definitiva e plena! Eles são discípulos que gostam de estar ao lado do seu Mestre, servos que gostam de estar sentados aos pés do seu Senhor, remidos que amam o seu Redentor, ouvindo as suas palavras e desfrutando do conforto que ele dá. Quando olhamos para Jesus Cristo, nós nos vemos transformados em nossa vida a ponto de nos parecermos mais com ele. Paulo diz que “todos nós com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (2Co 3.18). A contemplação do Senhor produz efeitos maravilhosos em nossa vida, fazendo-nos cada dia mais parecidos com o nosso Redentor, que é o que significa ser transformado “à sua imagem”. A santidade de nossa alma cresce quando cresce a nossa conformação com Jesus. Esse olhar para Cristo é uma espécie de comunhão com ele que devemos preservar sempre. A idéia é: não tire os olhos de Jesus Cristo a fim de que você seja cada vez mais santificado interiormente. Segundo o ensinamento da Escritura, a comunhão do cristão é “com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1Jo 1.3). Jesus Cristo é o noivo da Igreja, e, como tal, devemos ter os nossos olhos fixos nele vendo nele a sua santidade e devemos espelhar em nossa vida a santidade dele. Como amantes de Jesus Cristo, fixemos nele o nosso olhar. Quem ama não se cansa de olhar para a pessoa amada. Se você olhar para o Amante de nossa alma você terá comunhão com ele, e se, juntos, fizermos assim constantemente, haveremos de ter aumentada a santidade de nossa alma!

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b. Quando olhamos para Jesus Cristo, desenvolvemos santidade na alma pela percepção de sua vida por nós e em nós Jesus deu sua vida por nós e vive em nós. Quando falo de sua vida vida por nós, refiro-me à sua obra expiatória substitutiva. Quando falo de sua vida em nós, refiro-me à sua obra presente em nossa vida. Jesus Cristo continua sendo bondoso para conosco em suas ternas misericórdias. Essas duas realidades devem estar patentes em nossa fé. Essa Pessoa maravilhosa terminou sua obra expiatória, mas continua agindo na vida daqueles por quem morreu. Você e eu precisamos ter os olhos fixos nesse Redentor para que, percebendo constantemente essas duas verdades, tenhamos a santidade desenvolvida em nossa alma. Em tudo o que fez, pensou, sentiu, sofreu e experimentou, ele o fez como um Redentor divino-humano que tem grande preocupação por nossas almas. O seu amor por nós é intenso mesmo agora, enquanto no céu, porque ele continua a interceder por nós. A sua dedicação no céu em nosso favor é a mesma que ele teve na terra. Ele continua a cuidar dos ramos da sua videira. A sua graça tem sido abundante sobre todos do seu povo. Ele já não bebe da mesma taça, porque o amargor de sua obra terminou, mas não a sua preocupação pelos remidos. Ele se mantém alerta conosco e toma conta de nós como um irmão mais velho cuida dos seus irmãos menores. Por isso, ele deve ser contemplado amorosamente por todos os que são beneficiários desse seu amor. Quando o contemplamos, nós nos lembramos de tudo o que ele fez no passado e ainda faz em nossa vida, e, como conseqüência, temos a nossa santidade crescida inclusive no conhecimento dele. Quando era menino, eu cantava em minha igreja um cântico que tem estas palavras: Pensa em mim Jesus, lá na excelsa luz! Já mostrou na cruz, amor sem fim. Satisfeito estou, sem medo vou. Cristo pensa em mim! Esse cântico me lembrava de que, no céu, Jesus Cristo ainda continua a mostrar o seu amor pelos seus irmãos. Na verdade, Jesus Cristo tem o coração nos filhos de Deus, pois a estes ele continua declarar o nome de seu Pai (cf. Hb 2.12), e deles nunca se esquece. Ele se lembra de como estávamos prestes a sucumbir quando ele nos segurou a mão, de como tratou as nossas feridas e nos fortaleceu. No passado, ele apagou os nossos pecados, e os efeitos de sua obra ainda vigoram em nossa existência cristã. A roupagem da justiça que recebemos de Cristo nunca será tirada de nós. Ela sempre nos cobrirá e fará com que Deus nos veja como se fôssemos seu próprio Filho, pois ele nos vê em Cristo. Mesmo o inferno nunca mais poderá nada contra nós por causa dos méritos da justiça de Cristo que fez com que nossos pecados nunca mais pudessem ser lançados contra nós.

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A grande verdade é que o Redentor continua a operar em nossa vida. Essas coisas não pertencem simplesmente ao passado, mas são presentes. Jesus Cristo é a nossa vida, e, como conseqüência, a nossa religião nunca se torna ultrapassada. Tudo se torna novo. Por isso, nós não podemos tirar os olhos daquele que tanto nos amou e que ainda nos ama. Lembre-se sempre dessas verdades e você terá a sua vida santificada, porque, quando você olha para essas coisas em Jesus, você o ama cada vez mais! Quando Jesus Cristo subiu ao céu, “levou cativo o cativeiro; recebeu homens como dádivas, até mesmo rebeldes, para que o Senhor Deus habitasse no meio deles. Bendito seja o Senhor que, dia a dia, leva o nosso fardo: Deus é a nossa salvação” (Sl 68.18, 19). Olhe para o Senhor fazendo essas coisas e você crescerá em amor por ele e terá a sua vida aumentada em santidade.

c. Quando olhamos para Jesus Cristo desenvolvemos santidade na alma pela conformação de nossa alma à sua semelhança, imitando-o O assunto da imitação de Cristo já tem sido alvo de estudo ao longo dos séculos na Igreja cristã. Não precisamos somente olhar para os feitos de Jesus no passado, como as suas chagas, por exemplo. Precisamos olhar também para o modo como Jesus se portou, a fim de seguir os seus passos. Sobre seguir os passos de Jesus outros escreveram. Não se limite ao conhecimento dessas obras. A imitação de Cristo deve ser uma meta não só de estudo, mas de vivência. A imitação de Cristo é o segredo de uma vida vitoriosa. Peça ao Espírito de Jesus Cristo que o ajude a reconhecer os passos de Jesus a fim de ser um imitador dele. Quando temos os nossos olhos fixos em Jesus Cristo, nós aprendemos a nos portar como ele se portou. O aprendizado vem pela observação. Ponha os seus olhos no seu Redentor divino-humano e aprenda a fazer as coisas que ele faz segundo a sua humanidade. Quando olhamos para Jesus Cristo, aprendemos a ver como ele pensa. Quando assimilamos os seus pensamentos é porque já começamos a ter formada em nós “a mente de Cristo” (1Co 2.16) da qual Paulo falou. Então, os nossos pensamentos começam a ser iguais ao do Redentor, segundo a sua humanidade. Nunca haveremos de raciocinar conforme Deus porque “os meus pensamentos são mais altos do que os vossos pensamentos” (Is 55.8, 9), mas haveremos de pensar como a mente santa que Jesus tem. Quando temos os olhos fixos em Jesus Cristo, começamos a sentir e a desejar as coisas que Cristo sente e deseja. Somos ordenados a ter os mesmos sentimentos que houve em Cristo Jesus (Fp 2.5), sentimentos de humildade, de submissão, de entrega ao Pai, de abrir mão das coisas de que se pode abrir mão para o bem daqueles que convivem conosco. Por essa razão, Paulo fala que “a paz de Deus,

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que excede todo entendimento, guardará os vossos corações e as vossas mentes em Cristo Jesus” (Fp 4.7). A única maneira de reproduzir as coisas próprias da santa humanidade de Cristo é ser guardado nele. A única maneira de sermos atraentes como Cristo é produzir as mesmas coisas que ele produziu, seguindo os seus passos, imitando-o. Temos sido chamados para seguir os passos de nosso Redentor (1Pe 2.21) naquilo em que ele é imitável – isto é, na sua vida de santidade e no seu comportamento moral (1Pe 2.22-24). A tendência de imitar uma pessoa a quem amamos e com quem nos relacionamos constantemente estende-se aos sentimentos e afeições. Aprendemos a imitá-la nos sentimentos mais variados, como tristeza ou alegria. Quando temos os nossos olhos fixos em Jesus Cristo, aprendemos a nos portar sentimentalmente como ele: aprendemos a sofrer como ele sofre pelas mesmas razões; aprendemos a nos alegrar pelas mesmas coisas que ele se alegra; aprendemos a ter simpatia pelas mesmas coisas que ele se simpatiza. Nunca poderemos imitar Jesus naquilo em que ele é singular, como por exemplo, na sua capacidade de receber a maldição divina no lugar de muitos. Isso é típico e exclusivo do Redentor divino-humano, mas devemos imitá-lo naquilo em que ele pode (e deve) ser imitado. Por exemplo, uma alma que tem os olhos fixos em Jesus pode sofrer as dores e sofrimentos ao contemplar a vida corrupta dos outros seres humanos, e, ao mesmo tempo, ser vítima da maldade deles (cf. Sl 55.1-6). Sofrer pelas tristezas e misérias dos outros (Jo 11.33) é alguma coisa que podemos aprender de Cristo por termos os nossos olhos fixos nele. Podemos também sofrer numa imitação de Cristo ao vermos os pecadores se perdendo sem se darem conta disso, pois Jesus sofreu e chorou por causa dos habitantes de Jerusalém (Lc 19.41-42). Nesse sentido, todos nós podemos ser “homens de dores”, tendo o conhecimento do que realmente significa padecimento. Você também pode imitar Jesus na sua alegria. Embora tenha sido um homem de dores, ele teve as alegrias mais lindas de que a história humana tem notícia. Ele aprendeu a se alegrar na redenção de pecadores e pela maneira soberana que seu Pai administrou as coisas da salvação e da reprovação (Lc 10.21). Nós, os irmãos mais novos de Jesus, deveríamos ter alegria pelas mesmas coisas que alegravam Jesus. Uma outra alegria e satisfação de Jesus era a de fazer a vontade do seu Pai (Jo 4.34); uma outra alegria de Cristo é o fato do seu Pai sempre estar ao seu lado (At 2.25, 26); uma outra alegria de Jesus está no fato da conversão de pecadores (Lc 15); uma outra alegria de Jesus que você deve imitar é a alegria na demonstração de fé que outros possam ter (Mt 8.10); uma última alegria em que você pode ser imitador de Cristo é, tendo a alegria da recompensa, trocá-la pela vergonha do sofrimento por amor de simpatia para com seus irmãos (Hb 12.2). Nessas coisas, certamente, nós podemos imitá-lo, e isso nos trará um grande crescimento em santidade. Siga as pegadas do seu Redentor para trilhar os mesmos caminhos dele. Ande com o Redentor gracioso e você também aprenderá a ser gracioso; ande com o Redentor sábio, e você aprenderá a ser sábio; ande com o

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Redentor santo, e você aprenderá a ser santo; ande com o Redentor misericordioso, e você aprenderá o caminho da misericórdia no tratamento com os que estão em miséria. Portanto, se você tiver os olhos fixos em Cristo no afã de imitá-lo, certamente você crescerá em santidade, e esse deve ser o alvo supremo de sua vida!

5. QUANDO OLHAMOS PARA A PESSOA DO REDENTOR, TEMOS AFETADOS OS NOSSOS CONCEITOS SOBRE A MORTE E SOBRE O MINISTÉRIO Quando você tem os olhos fixos em Jesus Cristo, uma outra gostosa sensação você passa a sentir. Ao mesmo tempo, você quer ficar para imitar todas as coisas que ele fez para o serviço dos santos e quer partir para estar com Cristo, o que é uma vantagem muito maior, porque a sua noção de esperança escatológica se modifica radicalmente. Paulo possuía esse “dilema” em sua existência terrena. Veja as suas palavras: “Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro. Entretanto, se o viver na carne traz fruto para o meu trabalho, já não sei o que hei de escolher. Ora, de um e outro lado estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor. Mas, por vossa causa, é mais necessário permanecer na carne” (Fp 1.2124).

Não é natural desejar morrer, mas a motivação subjacente de estar com Cristo passa a ser uma excelente possibilidade por causa da segurança que a esperança cristã traz. Para aquele que tem os olhos em Cristo, a morte não o atemoriza, porque para ele a morte não é punição, mas a porta de entrada para estar com o Senhor. Esse é o alvo do cristão. Nenhuma outra religião prefere morrer por uma razão tão nobre: estar com Cristo. Essa é a doce esperança que Cristo traz. Quando temos os olhos fixos em Jesus queremos estar onde ele está! Paulo ponderou sobre a melhor coisa que lhe poderia acontecer. Ele julgou que ficar neste mundo seria melhor para os seus irmãos, mas, quando pensou nos benefícios próprios, estar com Cristo seria a melhor solução. É verdade que não está em nossas mãos escolher viver neste mundo ou morrer. Tanto viver como morrer depende de uma ação divina em nós. É Deus quem nos faz permanecer neste mundo ou sair dele pela morte, mas Paulo estava raciocinando sobre suposições perfeitamente válidas. Quando temos os olhos fixos sobre Jesus podemos ficar no “dilema” de Paulo, porque as duas possibilidades são boas: a de ficar neste mundo é boa para os semelhantes porque exercemos mais tempo o nosso ministério entre eles; a de sair deste mundo é melhor para nós porque significa estar na presença de Cristo. Olhar para Cristo nos faz enxergar claramente as grandes possibilidades que temos pela frente. Qualquer uma delas será benéfica para o reino de Deus

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porque sempre haverá benefício. Na verdade, os nossos conceitos de escatologia individual são afetados profundamente quando fixamos os olhos sobre Jesus porque, ao mesmo tempo em que passamos a não temer a morte, também temos o nosso senso de ministério mais aperfeiçoado, entre os irmãos. Olhar para Jesus faz com que pensemos mais e melhor no bem dos outros do que em nosso próprio bem.

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O AMOR QUE DEVEMOS AO REDENTOR

ÍNDICE DE ASSUNTOS Alexandria Anhypostasia Antioquia Arianismo Arianos Atributos Cristologia Calcedônia Cirilo Comunicatio apotelesmaticum Comunicatio idiomaticum Confissão de Fé de Westminster Cordeiro Credo de Calcedônica Credo Niceno Éfeso Enhypostasia Eutiquianismo Extra calvinisticum

Libertador Logos Mediador Mistério Monofisismo Monotelismo Naturae Natureza divina Natureza humana Nestorianismo Nicéia Pecabilidade Persona Redentor Sacrifício Salvador Segunda Confissão Helvética

Fórmula de Concórdia Gregório de Nazianzo Gregório de Nissa Hipóstase Impecabilidade Imutabilidade

Theotokos Tentabilidade Tentação Teorias kenóticas Trindade União com Cristo União hipostática Unipersonalidade

Kenosis Vontade

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

ÍNDICE REMISSIVO

ÍNDICE DE NOMES Abbott, Lymann Anders, Peter D. Apolinário Ário Asendorf, Ulrich Atanásio Barnes, Albert Berkhof, Louis Berkouwer, G. C. Best, W. E. Bonsall, H. Brash Buis, Harry Brown, John Bruce, F. F. Campos, Heber Carlos de Calvino Carey, G. L. Chafer, Lewis Sperry Chemnitz, Martin Copelan, K. Crabtree, A. R. Damasco, João de Dorner, I. A. Douglas, J. D. Êutico Erickson, Millard Ferguson, Sinclair F. Feinberg, Charles Fee Francis, Turretin Grillmeier, Alloys

Hagglund, Bengt Harnack, Adolf von Heidegger, J. H. Hendriksen, William Henry, Matthew Hodge, Charles Hoogland, Martin P. Hovey, Alvah Keith, G. A. Kistemacker, Simon Leão I Leenhardt, Franz Lenski, R. C. H. Lloyd-Jones, Martin Lockyer, Hebert MacArthur, John, Jr. Macintosh, H. R. Macleod, Donald Manton, Thomas Maria Morris, Leon Mueller, Juan T. Muller, Richard Murray, John Nestório Neve, J. L. Noble, T. A. O’Connell, John Owen, John

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A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Thayer, Joseph Henry Toon, Peter

Ridderbos, Herman Schaff, Philip Scott, Walter Shedd, W. G. T. Sproul, R. C.

Walvoord, John Wells, David Willis, E. David Wright, David F.

ÍNDICE REMISSIVO

ÍNDICE DE TEXTOS BÍBLICOS Gênesis 6.5 3.15 1.26 3.5 3.1 2.17 24.26 3.6 22.1 2.17 17 Êxodo 12 34.25, 26 19.6 21.28-30 1.15, 16 2.10 2.11-14 12 12.5 14.31 34.2, 28 34.28 17.7 15.22-27 16.22-35 17.2 12.5 24.8 Levítico 24 25

22.21 Números 18.15 14.23 Deuteronômio 8.15-18 21.23 13.2 34.1-4 6.13 6.13, 14 8.3 6.16 9.9, 18 8.3, 4 18 6.13 18.15-18 27.14-26 29.2-4 7.9 10.12, 13 11.1 29.1, 9 Juízes 6.24 6.36-40 Rute 4.4 1Samuel 2.5

659

660 7.3 2Samuel 11.1-5 1Reis 19.8 2Crônicas 19.2 13.5 4.22 20.20 Jó 23.8, 9 19.25-27 2.6, 7 2.6 1.11, 12 Salmos 27.4 95.6 22 119.11 55.17 49.7 49.7-9 49.7, 8 5.5 2.6 103.2-5 116 51.5 40.8 45.2b 68.18, 19 55.1-6 106.14 95.9 78.18, 41, 56 119.11 30.5 91.3

A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR 124.7 91.11, 12 18.30 78.17, 18 78.18, 19 78.10 106.12-14 78.18-20 41.8 78.49 34.7 103.21 91.11, 12 125.1, 2 2.8 24.1 119.37 119.11 34.19 103.14 34.7 68.16, 17 68.19, 20 25.4 33.2 43.4 150 33.3 40.3 96.1 144.9 149.1 141.2 45.7 22.10 103 Provérbios 17.17 29.25 1.15-19 Eclesiastes 7.29

ÍNDICE REMISSIVO Isaías 52.13 56.7 53 33.14-16 55.8a 59.20, 21 53 7.14 9.6 45.21, 22 1.2-4 59.20 55.8, 9 59.20, 21 28.16 53.9 62.11 53.12 10.15 59.21 6.9, 10 41.18 42.8 42.10 53.12 11.1, 2 52.1 58.2 53.9b 7.14 53.10-12 52.14 61.1-3 Jeremias 6.14 32.40 17.9 31.31-34 Ezequiel 1.10 18.23 33.11

18.32 Daniel 6.10 Oséias 11.1 Habacuque 1.13 Zacarias 2.10, 11 9.9 Malaquias 3.1 1.8-11 3.10 Mateus 23.3, 4 12.34 16.23 2.15 2.16 12.24 12.22 12.31, 32 27.22 26.26 8.27 7.21 25.41-46 7.23 3.17 17.5 10.37 19.17 5.16 26.26 13.35 13.37 21.11, 46 11.28-30

661

662 7.28, 29 2.11 15.8 16.16 4.1-11 4.2 4.1, 2 4.11 16.23 27.48 4.4 16.1 4.5-7 22.12 18.10 28.18 4.11 4.4 4.10 26.26 19.17 3.15 26.39 16.21-23 16.1 6.13 26.40-42 6.13 4.1 14.30 12.36 5.9 10.8 8.10 26.28 9.36 14.14 26.39 20.28 7.12 12.34 7.15 1.23 2.2 2.11

A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR 8.2 9.18 15.25 14.33 20.20 28.9 4.10 8.2 14.23 26.39, 42, 44 11.25, 26 2.2, 11 8.2, 3 14.33 1.21 26.37, 38 12.41 11.27 28.18 28.20 Marcos 13.32 11.3 18.19 10.18 8.31-33 15.30 7.21-23 14.38 14.17-31 1.11, 12 1.13 1.12 15.19 8.28 4.33 1.22 12.35-37 16.16 1.27 5.6 11.17 7.6-9

ÍNDICE REMISSIVO Lucas 24.19 4.25 4.38 4.17, 18 14.26 1.34 4.13 22.31 4.2 1.35 6.46-49 6.46 22.15 22.40, 46 4.1 4.22 6.47-49 6.47, 48 6.49 6.47 11.27, 28 10.23, 24 4.22 7.16 24.19 15.1, 2 4.32 10.18 4.6 4.13 4.14, 15 4.18, 19 4.1 4.13 22.28 4.14 2.47 4.9 4.13 1.35 18.19 1.35 2.40 4.22

19.41, 42 10.21 15 7.13 2.47 2.40, 52 2.11 19.10 2.47-50 24.53 19.10 19.47 21.37 4.16 6.12 22.39-46 1.31, 32 10.22 João 8.58 16.27 14.23 14.21 4.34 11.33 14.27 13.12-15 8.6 14.30 15.20 18.18 17.1 8.46 9.24 5.30 5.19, 21 6.38-40 1.29 14.30 10.36 1.14 1.1 1.33 20.25

663

664 20.25-27 5.22 4 4.14 11.25-27 8.51, 52 10.28 13.8 1.41 14.9-11 20.31 5.46, 47 5.38, 39 5.42-44 5.44 8.45-47 10.26 8.47 10.28 6.44, 45, 65 6.37 7.5 12.37-40 12.37 8.42 6.60 1.29 6.14 7.40 4.10 7.46 8.46 15.10 3.36 1.18 17.24 10.17 3.35 5.20 14.31 15.9 14.15 14.23, 24 21.15-17 21.15

A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR 15.15 20.30, 31 12.38-40 3.18 5.24 3.36 8.24 3.15, 16 6.40 1.12, 13 6.35 6.51 4.14 7.37, 38 9.35-38 12.46 14.12 15.15 4.18 14.15, 21, 23, 24 7.16 15.14 15.10 1.12 17.5 8.58 1.14 17.5 19.28 6.62 8.58 5.27 10.18 1.48, 49 2.25 3.31-34 11.35 5.27 8.34-36 17.15 3.34 3.16 1.1 9.38 17

ÍNDICE REMISSIVO 17.5 17.17 17.21 17.23 17.24 8.46 7.24 1.4 10.18 6.66 15 11.33 5.30 14.31 10.17, 18 8.36 12.32, 33 17 18.36 1.11 1.12 4.22 8.32, 34 14.10 12.49 17.17 Atos 20.28 17.11 7.21, 22 7.23-27 7.25 7.27 3.15 7.59, 60 8.14 11.41, 42 3.36 3.28 17.31 4.12 3.20, 21 4.12 2.25, 26

7.7 24.14 26.7 10.18 16.31 5.9 2.23 26.27 10.43 13.38, 39 27.33, 34 10.1, 2, 34, 35 16.31 5.32 16.30 Romanos 6.12, 14 5.5 5.12-21 8.23 13.11 11.34 5.10 8.34 1.30 8.4 5.5 12.1, 2 8.29 5.9, 10 8.21 8.21-24 1.17 1.7, 15 1.3 8.3 1.18, 25 3.23-25 16.17, 18 6.16, 17 7.12 5.1 6.14 5.20

665

666 3.20 7.6 15.24, 28 1.3 8.35, 38, 39 4.3 4.4 4.5 8.23 1.5 1.8 16.19, 26 12.7 10.5 16.26 2.4-10 6.16 10.16, 21 15.18 16.19, 26 5.5 6.23 8.5, 6 5.19 5.17, 18 8.29 6.13 1.3 5.7 5.8 12.18 8.29 9.5 1Coríntios 2.8 15.27 15.3 1.2 5.7 15.50 2.16 15 15.47-49

A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR 14.33 5.7 10.9 7.5 10.9, 13 6.18 10.14 10.12, 13 10.13 9.27 10.9 15.47, 48 11.3 15.47, 48 15 6.11 5.21 2.7 1.22 2.8 2.16b 2.11 6.20 7.22, 23 5.6 1.18 15.51 15.50-52 15.22 15.47 2.4, 5 15.47, 48 15.47-49 15.56 15.58 16.22 15.52b 5.5 1.7, 8 10.1-11 15.52 2Coríntios 11.13 11.4

ÍNDICE REMISSIVO 11.2, 3 8.9 5.14 3.18 5.21 3.18 1.7, 8 11.2-4 1.9b 2.11 11.14, 15 5.21 11.14 5.19 12.8 12.1-10 13.14 13.11 Gálatas 2.20 1.4 1.11, 12 1.3, 4 5.1, 13, 14 5.18 2.16, 19 3.23-25 5.1 5.2 5.3 5.4 4.31 3.16 3.13 6.1 2.20 4.4 5.17 1.16 5.9 3.19 2.1 2.11-14 1.6

1.7 1.9 4.4, 5 4.2 3.10, 11 3.13 3.20 Efésios 4.30 1.7 2.1, 5 2.8-10 6.24 1.4, 5 2.3 2.4, 5, 8 5.5-7 4.29 1.4 4.13 4.14 1.3 2.2 5.18 6.16 5.18-21 2.12-14 6.15 1.13, 14 1.14 1.4 2.10 2.2 5.6 5.18-21 4.10 3.10 4.30 3.12 5.11 5.29, 30 2.15 1.22 5.23

667

668 5 1.20-23 5.2 Filipenses 2.7 2.9 2.10 2.12 2.5-11 2.6, 7 2.9, 10 1.21-24 2.5 4.7 2.8, 9 2.5 2.5-8 2.11 2.9-11 3.18 1.23 2.8-11 2.10, 11 2.6-8 2.6 4.7 4.13 3.21 2.1 2.5 3.21 1.6 2.10 2.6-8 3.20, 21 1.10 3.20 2.7 2.12 Colossenses 1.13, 14 1.13 3.16

A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR 2.9 2.3 1.24 3.16 3.2 2.9 3.16 1.13 2.14-17 2.20, 21 2.10 1.16 2.9 1.18 1.19, 20 1.15-17 1Tessalonicenses 1.10 4.5 5.23 4.16, 17 2Tessalonicenses 3.14, 15 1.8 2.4 3.6 1Timóteo 1.8-10 1.12 3.6 1.20 6.3-5 2.5 3.16 3.6 2.5 6.11 2 2Timóteo 1.9, 10 2.19

ÍNDICE REMISSIVO 2.23-25 2.15-18 4.2 1.3 3.4, 5 2.22 Tito 2.13, 14 3.5 1.13, 14 1.16 3.5 3.10 Hebreus 13.8 2.18 12.145.8 2.12 5.9 2.8 7.27b 4.3 7.28 10.1 2.6-9 1.8 8.8-10 2.8 2.7 1.6 4.15 13.8 2.11, 12 2.13 6.18 1.3 7.26 4.15 2.17 13.8 1.3 2.17, 18 9.22

5.13, 14 2.14 11.24 11.25 11.26 11.24, 25 10.19-22 10.30, 31 7.25 12.24 11.1 9.24 10.10 10.14 12.2 4.14, 15 2.18 9.13, 14 4.15 5.7 1.11, 12 10.7 13.8 1.10-12 1.9 2.18 12.4 5.7 2.10 12.2, 3 11.17 3.8, 9 1.8 1.14 12.28 1.3 4.16 7.26, 27 3.1-3 7.26 9.14 10.10, 14 11.8 12.14 3.18, 19

669

670 5.9 11.8, 31 1.2, 3 10.26-31 5.8, 9 10.28 3.14 7.22 Tiago 1.13 1.14, 15 3.2 1.2, 3 2.26 1.12-14 1.13, 14 2.19 3.18 4.10 3.17 3.8 3.2 1.14 4.7 5.10, 11 4.8-11 4.7 3.2 1.25 2.23 2.10

1Pedro 2.6 1.18, 19 1.1, 2 1.4 1.13-16 1.2 1.22 1.2, 22 2.8 4.17

A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR 1.20 1.19, 20 5.8 1.19 1.10, 11 5.4 2.2 1.19 3.18 4.10 5.8 5.8, 9 2.21-25 1.18-20 2.21 5.8, 9 1.10, 11 3.11 2.22-24 2 2Pedro 3.16, 17 3.18 1.10 2.1 1João 3.2 3.23 3.1, 2 3.23 2.16 4.2, 3 5.2 1.3, 6, 7, 9 4.20 5.2 2.5, 6 4.8 4.19 4.7 5.20 3.5 4.19-21

ÍNDICE REMISSIVO 1.7 4.18 2.16 3.4, 5 2.14 2.16 1.7 2.8-11 1.3 1.1 2João 10, 11 7-11 6 7 3João 9 Judas 3 6 19 Apocalipse 21.1, 5 1.5, 6 1.19, 20 5.9 14.3, 4 5.9, 10

5.12-14 7.9-11 21.8 22.4 22.3 21.9 22.17 22.18 3.21 15.2, 3 2.17 13.12 21.2 21.1 21.5 5.6 4.11 5.13 4.6, 7 4.8 5.11, 12 21.12-14 7.12 13.8 21.14 12.15 14.13 2.10 12.7 2.24 2.2

671

672

A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR

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