Gerald Bray - História Da Interpretação Bíblica.pdf

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VIDA NOVA

H ISTO R IA DA INTERPRETAÇÃO

BÍBLICA GERALD BRAY

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Bray, Gerald História da interpretação bíblica / Gerald Bray ; tradução de Daniel Hubert Kxoker. - São Paulo: Vida Nova, 2017. 624 p. Bibliografia ISBN 978-85-275-0757-8 Título original: B ib lica l in terp reta tio n :p a st a n d p r esen t

1. Bíblia - Interpretação 2. Hermenêutica I. Título II. Kroker, Daniel Hubert 17-0719

CDD 220.601

índices para catálogo sistemático: 1. Bíblia - Interpretação

VIDA NOVA

HISTORIA DA INTERPRETAÇÃO

BÍBLICA TRADUÇÃO DANIEL KROKER

GERALD BRAY

®1996, de Gerald Bray Título do original: Biblical interpretation:past andpresent, edição publicada pela IVP A c a d e m i c , uma divisão da I n t e r V a r s i t y P r e s s (Downers Grove, Illinois, EUA). Todos os direitos em língua portuguesa reservados por S o c ie d a d e R e li g io s a E d iç õ e s V id a N o v a

Rua Antônio Carlos Tacconi, 75, São Paulo, SP, 04810-020 vidanova.com.br |[email protected] l . a edição: 2017 Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação da fonte. Impresso no Brasil / P rin ted in Brazil Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram extraídas da Almeida Século 21. As citações bíblicas com indicação da versão in loco foram extraídas da Nova Versão Internacional (NVI). Citações bíblicas com a sigla TA se referem a traduções feitas pelo autor a partir do original grego/hebraico.

D ir e ç ã o e x e c u t iv a

Kenneth Lee Davis G e r ê n c ia e d it o r ia l

Fabiano Silveira Medeiros E d iç ã o d e t e x t o

Robinson Malkomes R

e v is ã o d a t r a d u ç ã o e

PREPARAÇÃ O D E TE X T O

Valdemar Kroker R e v is ã o d e p ro v a s

Gustavo N. Bonifácio G e r ê n c ia d e p r o d u ç ã o

Sérgio Siqueira Moura D ia g r a m a ç ã o

Sandra Reis Oliveira A d a p ta ç ã o d a cap a

Wesley Mendonça

SUMÁRIO

A grad ecim en tos ................................................................................................ 7 Introdução: o propósito e o método deste liv ro ...........................................9 1

A Bíblia e sua interpretação: princípios e definições................................. 15

P rimeira parte: Antes da crítica h istó rica ......................................................45 2 Os primórdios da interpretação bíblica...................................................... 47 3 A interpretação patrística.............................................................................77 4 A interpretação medieval............................................................................ 129 5 O Renascimento e a Reforma.....................................................................165 S egunda parte: O método histórico-crítico................................................. 221 6 O início do método histórico-crítico.........................................................225 O século 19 (18 0 0 -1 9 1 8 ).................................................................................. 271 7 O Antigo Testamento: de De Wette a Wellhausen.................................277 8 O Novo Testamento: de Schleiermacher a Schweitzer............................323 Meados do século 20 (19 18 -19 7 5 ).................................. ................................ 379 9 A crítica do Antigo Testamento depois de Wellhausen...........................383 10 A crítica do Novo Testamento depois de Schweitzer..............................425 T erceira parte: O cenário contem porâneo................................................. 465 11 Tendências acadêmicas na interpretação................................................... 471 12 Tendências sociais na interpretação...........................................................513 13 Tendências evangélicas na interpretação................................................... 545 Conclusão............................................................................................................ 591

B ibliografia g era l .......................................................................................... 595 ín d ice de passagens bíblicas ........................................................................... 599 ín d ice rem issivo ............................................................................................ 607

AGRADECIMENTOS

Escrever um livro deste tipo exige uma quantidade enorme de dados de pes­ quisa, grande parte dos quais felizmente está disponível na biblioteca daTyndale House, em Cambridge, onde a parte principal do manuscrito foi concluída no outono de 1992. Devo agradecimentos especiais ao diretor daTyndale House, o rev. dr. Bruce W inter, e ao bibliotecário de então, o dr. Andrew Clarke, que me prestou todo o auxílio para escrever. Também devo inúmeros agradecimentos a uma multidão de leitores que forneceram dados adicionais e correções valiosas. Em primeiro lugar, preciso mencionar o dr. Graham Davies, de Cambridge, que se interessou pelo projeto desde o início e me encorajou durante os anos em que lecionei sobre o assunto na Oak H ill College em Londres, e o dr. Hugh W illiam son, professor emérito de hebraico na Universidade de Oxford, que me prestou grande ajuda com o material do Antigo Testamento. Devo um agrade­ cimento semelhante ao professor I. Howard M arshall, de Aberdeen. Também sou grato a David W right, da New College, em Edimburgo, e a M ark Elliott, do W hitefield Institute, de Oxford, pelo auxílio prestado em muitos pontos. Tanto o dr. M artin Selman, da Spurgeons College, de Londres, como o dr. Bruce W inter, da Tyndale House, de Cambridge, leram o capítulo 13 sobre a interpretação evangélica e deram muitas sugestões úteis para melhorá-lo. Em relação aos estágios finais da obra, devo gratidão especial aos bibliote­ cários da Samford University, em Birmingham, no estado norte-americano do Alabama, que diligentemente pesquisaram uma enorme quantidade de infor­ mações bibliográficas e outras, e também a meus colegas na Beeson Divinity School, dr. Frank Thielman e o dr. Kenneth M athews, que leram partes do manuscrito com grande cuidado e sugeriram uma série de alterações que pron­ tamente inseri no texto. Por fim, devo um agradecimento especial a mais um colega e amigo, o dr. Christopher Metress, cuja rara combinação de gênio literá­ rio e paciência de Jó para ler o último rascunho permitiu que eu oferecesse um livro apresentável a leitores dos dois lados do Atlântico. Pax tibi, C hristum fe r e n s am ice [Paz seja contigo, amigo cristão].

INTRODUÇÃO: O PROPÓSITO E O MÉTODO DESTE LIVRO

Os últimos anos do século 20 assistiram a uma explosão de livros sobre a Bíblia e sobre os modos de interpretá-la. O estudo da hermenêutica, como é chamada a interpretação bíblica, tornou-se uma importante atividade em rápido cresci­ mento, bem distante do fluxo interminável de comentários e estudos eruditos que continuam sendo publicados. M as embora hoje exista uma grande quanti­ dade de material disponível, boa parte dele é inacessível para não especialistas e confusa para os alunos. Uma alta porcentagem do trabalho acadêmico atualmente em produção tem pouca relação com a vida da igreja e está longe dos interesses do cristão comum. Em uma época em que os fiéis querem ouvir uma palavra clara de Deus, os acadêmicos parecem estar confundindo questões e turvando as águas do estudo bíblico a ponto de até mesmo teólogos profissionais acharem difícil compreender o que os acadêmicos estão dizendo. Publicações recentes também indicam que cada vez mais estudiosos estão impondo ao texto bíblico pautas relativamente bem definidas, procurando extrair dele as ideias que, na verdade, lhe estão sendo impostas. Ignoram-se séculos de tradição cristã, a não ser que seja possível usá-la para defender o que normalmen­ te seria uma opinião radicalmente nova, e há pouco interesse em encontrar uma estrutura hermenêutica geral para nela situar as últimas descobertas da crítica acadêmica. Novos métodos de interpretação do texto estão sendo constante­ mente explorados, mas sem que se mostre muito interesse em sua viabilidade duradoura como princípios para guiar a interpretação. Enquanto isso, a pregação e o ensino dirigidos à igreja recebem cada vez menos influência do mundo da erudição bíblica. Demasiadas vezes o resultado é um cristianismo fraco e baseado em emoções, com pouco conteúdo intelectual e nenhum poder duradouro. Em meio a essa confusão, a igreja precisa refletir novamente sobre todo o processo de interpretação bíblica, principalmente sobre o modo como ele moldou as doutrinas e a vida cristã ao longo dos séculos. Em uma área tão central para a fé cristã quanto essa, é impossível ser completamente objetivo. A imensidão de dados exige seletividade, e esta, por sua vez, demanda um princípio racional que possa justificar escolhas específicas. A principal diretriz para este livro foi a convicção

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de que a Bíblia cristã pertence à igreja, que, por excelência, é o lugar em que ela é lida e usada. Obviamente é possível lê-la fora dessa esfera, e cristãos precisam estar prontos para ouvir intérpretes que não compartilham de suas pressuposições. M as a verdade é que a Bíblia não ocuparia o lugar que ocupa na cultura ocidental se não fosse o texto sagrado do cristianismo, e nenhum historiador secular ou crítico literário pode ignorar esse fato. Nada moldou a vida da igreja tanto quanto a Bíblia, e os cristãos de hoje são produtos da história de sua interpretação. Fora da comunidade da fé, a Bíblia perde sua natureza essencial e, portanto, também fica destituída de grande parte de seu significado. Simplesmente por essa razão, é nesse contexto que escolhemos situar o presente estudo.

O conteúdo do livro A estrutura deste livro é direta e pode ser facilmente explicada. O primeiro ca­ pítulo lida com os conceitos básicos na interpretação bíblica, que permanecem constantes em todas as épocas e em todas as situações hermenêuticas. Nesse capítulo estão incluídas questões como a revelação divina, a natureza do cânon, a relação do texto escrito com a vida da igreja cristã (ou das igrejas cristãs) e as ten­ sões permanentes que surgem sempre que se tenta fazer uma exposição bíblica. O restante do livro se divide em três partes. A primeira delas abrange o período que vai da Antiguidade até o início dos estudos bíblicos críticos. Ela se subdivide em quatro capítulos, dos quais o primeiro (cap. 2) lida com os métodos hermenêuticos praticados nos tempos bíblicos. Esse é um assunto importante sobre o qual se escreveu muito em anos recentes, assunto que nos ajuda a com­ preender como os autores do Novo Testamento compreendiam a si mesmos e como enxergavam sua tarefa. No entanto, também é um assunto complexo, visto que é fácil depender de teorias modernas que ditam o que autores antigos pensavam e ignorar as afirmações deles mesmos. Na análise desse período, a exigência fundamental para o aluno de hoje é aprender a distinguir um fato histórico de uma hipótese atual, atribuindo a cada um a importância adequada. O capítulo 3 trata do período da Patrística, que para nossos propósitos se estende do fim do Novo Testamento (c. 100 d.C.) até a época de Gregório, o Grande (m. 604). Essa foi a grande época de definições teológicas, que depen­ deu fortemente da exegese bíblica. Foi nas controvérsias dessa época que se estabeleceram detalhadamente as doutrinas cristãs definitivas da Trindade e da encarnação de Cristo. Visto que estudiosos contemporâneos têm muitas vezes questionado a afirmação da igreja de que essas doutrinas se baseiam na Bíblia, é

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essencial que compreendamos como as Escrituras eram interpretadas na defesa desses ensinamentos centrais. O capítulo 4 abrange a Idade M édia da época de Gregório, o Grande, até a de Erasmo. Esse período muitas vezes é negligenciado, sobretudo por historiadores protestantes, que tendem a vê-lo como uma época de deterioração cada vez maior, atenuada apenas na época da Reforma. No entanto, muitas das instituições mais importantes de nossa sociedade amadureceram durante esses dias — o domínio da lei, o Parlamento e as universidades, por exemplo —, e a estrutura da igreja foi permanentemente moldada pelo sistema paroquial, pela estrutura diocesana e pelo espírito monástico que permearam a vida eclesiástica medieval. Não se trata de os reformadores terem simplesmente rejeitado a interpretação bíblica que herdaram; seu objetivo era depurá-la e sistematizá-la. Como a pesquisa moderna está demonstrando com clareza cada vez maior, Lutero e Calvino seguiram certas tendências do pensamento medieval, e em diversos aspectos é melhor compreendê-los como herdeiros, em vez de oponentes, dessa tradição anterior. O capítulo 5 examina o impacto do humanismo renascentista e da Reforma na exegese bíblica. Pela primeira vez, realizou-se uma tentativa séria de sistema­ tizar a doutrina cristã sobre um fundamento exclusivamente bíblico. A Bíblia passou a ocupar um lugar muito mais central na vida do cristão comum e sua interpretação se tornou uma questão de grande importância social e política. Os princípios que os reformadores haviam estabelecido moldaram tradições de ex­ posição que continuam guiando as principais igrejas protestantes e que tiveram muito mais impacto no catolicismo romano do que geralmente se reconhece. Além disso, foi da exegese da Reforma, e muitas vezes em uma relação explícita com ela, que nasceu o estudo crítico moderno, de modo que esse período é de importância fundamental para desenvolvimentos posteriores. A segunda parte abrange o surgimento da moderna interpretação crítica da Bíblia, começando no final do século 17. O capítulo 6 analisa por que e como a crítica histórica derivou de discussões do final da Reforma e examina as prin­ cipais linhas que os primeiros críticos modernos exploraram na busca de uma compreensão mais verdadeira das Escrituras. Eles não somente estabeleceram a pauta para os estudiosos que viriam depois; também provocaram uma reação às suas teorias que definiu o modo como se conduziu o debate subsequente entre “liberais” e “conservadores”. Os capítulos 7 e 8 tratam do século 19. Pela primeira vez na história cristã, a especialização atingiu um ponto em que os estudos dos Testamentos foram separados, o que fez com que muitos estudiosos questionassem se era possível

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estudar adequadamente o Antigo Testamento como Escritura cristã. Um avan­ ço rápido e difuso na filologia e depois na arqueologia serviu para arrefecer as fantasias mais extravagantes de alguns críticos anteriores, mas estava claro que havia surgido um novo tipo de interpretação bíblica que se apresentava como puramente “científico” e que haviam sido lançados os alicerces das principais hipóteses críticas que hoje conhecemos. Os capítulos 9 e 10 continuam contando a história de cada Testamento nas pesquisas do século 20, que se caracterizaram sobretudo por uma explosão de informações que ameaça fazer submergir a disciplina por completo. Em decorrên­ cia dessa explosão, houve uma fragmentação em que a atenção de estudiosos a detalhes está fazendo com que seja cada vez mais difícil alcançar algum tipo de consenso ou construir uma síntese de dados que desfrute de aceitação geral. A erudição contemporânea viu-se na estranha condição de precisar afirmar que a Bíblia tem unidade suficiente para justificar a disciplina de “estudos bíblicos”; no entanto, ao mesmo tempo, ela é tão diversa que sempre há lugar para mais uma tese de doutorado que poderá causar reviravoltas nas opiniões correntes! Cada vez mais se questiona se essa tensão é viável a longo prazo, e muitos agora acreditam que o método histórico-crítico de interpretação dos séculos 18 e 19 se esgotou e não pode mais oferecer soluções criativas para problemas hermenêuticos. A terceira parte analisa tendências atuais na interpretação bíblica que tentam oferecer alternativas à escola dominante da crítica histórica. A primeira delas (ana­ lisada no cap. 11) vem do próprio mundo acadêmico e afirma a necessidade de uma nova hermenêutica que viabilize a compreensão do texto bíblico. Essa nova hermenêutica se fundamenta em categorias literárias e filosóficas, muitas das quais são obscuras para o principiante. No entanto, não pode haver nenhuma dúvida de que a “hermenêutica” está hoje amplamente identificada com esse tipo de pensa­ mento, e a igreja está se vendo cada vez mais desafiada a examinar até que ponto pode absorver as percepções dos métodos que essa escola de pensamento adotou. A segunda dessas alternativas (assunto do cap. 12) resulta do ministério pastoral e evangelístico da igreja dirigido aos que estão às margens da sociedade próspera no Ocidente. Por causa disso, a “opressão” experimentada pelos po­ bres, por grupos minoritários e por povos indígenas em todo o mundo passou a desempenhar um papel proeminente na interpretação bíblica. Alguns afirmam que essa realidade de opressão exige uma abordagem radicalmente nova das Escrituras, que, no entanto, está mais em sintonia com seu contexto e propósito originais e não tanto com a exposição marcada por características acadêmicas do mundo universitário ocidental.

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A terceira alternativa (cap. 13) é proposta por grupos conservadores na igre­ ja, liderados por evangélicos protestantes, cujo interesse na Bíblia é regido por sua autoridade e suficiência como fonte do ensino cristão e pela fé da Reforma. Os evangélicos continuam crendo que a Bíblia precisa ser seu próprio intérprete e que ela deve estabelecer a pauta de discussões na igreja. Eles podem até acei­ tar que percepções válidas sejam derivadas de outros métodos e disciplinas, e podem ser sensíveis às queixas de grupos que sentem que seus interesses foram marginalizados no passado, mas de modo geral não permitem que essas consi­ derações se tornem a motivação dominante no estudo da Bíblia. O último capítulo analisa se esses debates atuais vão resultar na predominân­ cia de alguma dessas três alternativas ou se produzirão um “livre mercado” nos estudos bíblicos, em que se permita um pluralismo genuíno. A li, resumiremos a situação presente e tentaremos sugerir modos de desenvolver a interpretação das Escrituras em um futuro previsível. Como podemos observar, a abordagem do assunto é basicamente cronoló­ gica. De modo geral, exegetas e intérpretes são listados na ordem de sua data de falecimento (quando conhecida), embora haja algumas exceções nos casos em que a morte muito prematura (ou bem tardia) justifica uma ordem diferente. Pessoas que estavam vivas na época em que o livro foi impresso normalmente são listadas segundo a data de nascimento. Também há uma ou duas exceções principais a essa regra que exigem uma explicação. Filo de Alexandria, por exemplo, é incluído com os pais da igreja do período de Orígenes (c. 200-325 d.C.), porque embora tenha sido um judeu que viveu na época de Jesus, seus escritos sempre estiveram às margens do judaísmo, mas foram muito influentes entre cristãos do final do segundo século em diante. Considerações semelhantes causaram o deslocamento de João Cassiano, monge do quarto século que influenciou principalmente a Idade M édia.

O form ato de cada parte e capítulo Cada parte traz uma breve introdução que apresenta um resumo do conteúdo e a razão da sua importância para o assunto como um todo. Cada capítulo em cada uma das três partes contém várias subseções organi­ zadas de modo tal que forneçam o máximo de auxílio ao leitor, pois este precisa compreender as questões do modo mais rápido e claro possível. A primeira subseção traz um esboço do período ou assunto, fornecendo os principais fatos que o leitor deve ter em mente ao examinar o aspecto da interpretação bíblica

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em questão. A isso se segue um breve resumo da vida dos principais autores e de suas obras mais importantes, seguido por uma seção que trata das principais questões críticas, doutrinárias e hermenêuticas que precisam ser compreendidas naquele capítulo. Depois disso, são analisados os principais métodos herme­ nêuticos relevantes para o período, com exemplos extraídos dos textos bíblicos, seguidos de ilustrações das interpretações rivais. Por último, no final de cada capítulo há um exame individualizado de livros ou passagens bíblicas que desempenharam um papel decisivo nos estudos bíbli­ cos do período em questão. Em diferentes momentos na história, e em distintas escolas de interpretação, partes específicas das Escrituras receberam proeminência especial, e isso coloriu o modo como a Bíblia tem sido lida. Em alguns casos, foram produzidas interpretações “clássicas” que sobreviveram ao teste do tempo, mesmo que hoje muitas vezes sirvam de tiro ao alvo para estudiosos. No entanto, muitas vezes é na análise desses textos-chave que podemos chegar a uma compreensão mais profunda das tendências que moldaram o uso da Bíblia pela igreja e que continuam nos instruindo e desafiando ainda hoje.

Nota sobre a bibliografia Dada a enorme quantidade de material disponível, é impossível listar mais do que uma seleção representativa de obras. Livros que tratam do assunto da inter­ pretação como um todo aparecem na “Bibliografia geral”, no fim deste volume; aqueles de interesse mais especializado estão em destaque no fim da subseção ou do capítulo. Citações no texto principal são extraídas de livros listados nas bibliografias dos capítulos. Visto que o principal objetivo delas é fornecer uma prévia das ideias e abordagens do assunto segundo aquele autor, elas não aparecem em no­ tas de rodapé precisas, mas é possível encontrar a maioria delas no início ou final da obra em destaque. Observações sobre versículos específicos das Escrituras normalmente estão na parte correspondente ao comentário citado.

Mais duas observações Termos e nomes mais importantes são indicados em negrito na abertura de parágrafos e em v e r s a l e t e no corpo do parágrafo. A abreviação “fl.” (do latim flo r u it, “floresceu”), que aparecerá a preceder datas, denota o período em que uma pessoa, escola ou movimento esteve em atividade ou florescendo.

1 A BIBLIA E SUA INTERPRETAÇÃO: PRINCÍPIOS E DEFINIÇÕES

O conceito de revelação A tradição religiosa judeu-cristã, que até certo ponto inclui o islamismo, distingue-se das grandes religiões da humanidade por duas características fun­ damentais. Em primeiro lugar, ela é monoteísta e crê haver um único Deus, criador de todo o universo e soberano sobre toda a ordem criada. Em segundo lugar, ela é bíblica e crê que esse Deus revelou a si mesmo e seus propósitos em um texto escrito que pode ser lido, estudado e aplicado por aqueles que creem nele [em Deus], Para os cristãos, ter a Bíblia é um hábito tão arraigado, que nem sempre percebem que na Antiguidade a afirmação de possuir uma revelação divina em forma escrita era única e peculiar a Israel, e até mesmo hoje é encontrada somente nas religiões que de certo modo são influenciadas pela experiência israelita. A doutrina cristã de Deus afirma que os cristãos têm uma experiência pessoal viva com ele. Quem viabiliza esse relacionamento é Jesus Cristo, o Filho de Deus, que se fez homem a fim de morrer na cruz por nossos pecados. Por meio de sua ressurreição, ele venceu o poder do pecado e da morte e legou a seus se­ guidores uma herança de vida eterna. Essa realidade é experimentada por meio da presença interior do Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade sagrada, que vem habitar em nosso coração e dá testemunho de que fomos adotados como filhos de Deus, concedendo-nos força para clamar em oração “Aba, Pai”, segundo as palavras de Jesus (cf. G14.6). A fé cristã, portanto, não é fundamen­ talmente uma doutrina intelectual ou acadêmica, mas uma experiência viva de Deus, indispensável e à disposição de qualquer pessoa, independentemente de habilidades intelectuais ou realizações acadêmicas. Nesse sentido, é correto dizer que a fé cristã é essencialmente uma co­ munhão mística do indivíduo com Deus, que fala a nosso coração por seu

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Espírito. Esse testemunho interior do Espírito Santo é fundamental em todo o cristianismo verdadeiro, mas não lhe é exclusivo. Precisamos reconhecer que o misticismo às vezes adquiriu uma reputação negativa graças à tendência de en­ fatizar a experiência individual, até mesmo a ponto de criar uma elite espiritual na igreja, em detrimento de fatores objetivos e coletivos (ou “corporativos”) igualmente importantes. Esses fatores estão presentes no texto das Escrituras e na vida comum da igreja, que procura integrar o indivíduo a um todo maior que transcende até os limites impostos por tempo e espaço. Como cristãos, nunca devemos negar que Deus fala com indivíduos, mas o que ele diz está em harmonia com o que já disse para a igreja como um todo. Os indivíduos por meio de quem essa revelação foi concedida foram especialmente escolhidos e tinham uma autoridade que não pode ser reivindicada por nenhum cristão hoje. Além disso, eles atuavam dentro de uma tradição com sua própria expe­ riência colegiada, de modo que suas palavras faziam parte de uma mensagem maior e mais objetiva. Cada cristão, portanto, precisa testar sua experiência à luz do testemunho comum e se submeter a essa autoridade. Fomos advertidos da presença de for­ ças espirituais que operam tentando distorcer a verdade, de modo que seremos preservados do erro somente se reformarmos nossas opiniões segundo o teste­ munho coletivo. A existência desse testemunho, assim, torna-se uma questão de importância suprema para a saúde espiritual de cristãos e da comunidade à qual pertencem. No Israel antigo, o que fornecia esse testemunho era uma sucessão de profetas, sacerdotes e reis a quem Deus confiava sua revelação. Esse processo atin­ giu o ápice na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o grande e último profeta, sacerdote e rei. O seu legado é uma compilação de documentos que chamamos de Bíblia (com o sentido de “livro”) ou Escrituras (com o sentido de “escritos”). A escrita como principal meio de revelação divina foi aceita ao menos já na época de M oisés, quando somos informados de que ele recebeu os Dez Mandamentos em tábuas de pedra, gravadas pelo próprio dedo de Deus (Êx 31.18). H á evidências que sugerem que grande parte dos dados em Gênesis se baseava em fontes escritas anteriores, mas a escrita não desfrutava do cará­ ter sagrado que iria adquirir no monte Sinai. Esse caráter fica bem evidente no Novo Testamento, em que Jesus muitas vezes se refere às Escrituras (“está escrito”) como Palavra de Deus imbuída de autoridade e chega a usá-la para confrontar o Diabo (M t 4.3ss.). Por certo, o fato de que um texto pode fun­ cionar desse modo na batalha espiritual constitui prova suficiente do caráter especial que se atribuía a ele.

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O melhor modo de compreender a lógica e as limitações de uma revela­ ção escrita é tomar o relacionamento pessoal com Deus como nosso ponto de partida. Relacionamentos pessoais têm o caráter singular de ser plenamente compreensíveis e profundamente misteriosos ao mesmo tempo. Encontramos novas pessoas, passamos a conhecer como elas são e talvez até cheguemos a prever suas reações a determinadas situações, mas ao mesmo tempo elas sempre podem nos surpreender, e nunca afirmaríamos conhecê-las exaustivamente — nem a nós mesmos. Além disso, aprendemos rapidamente a submeter nossa avaliação de outras pessoas ao que elas mesmas nos dizem — não de modo in ­ questionável, é óbvio, mas o suficiente para permitir que falem por si mesmas e para que possamos compartilhar parte de seu processo mental e de suas perspec­ tivas. Se não o fizermos, o relacionamento logo desmoronará, porque não haverá comunicação entre nós. A autorrevelação, em outras palavras, desempenha um papel vital em nossos relacionamentos pessoais, e o único modo de realmente descobrir sua credibilidade é testá-la na experiência cotidiana. O que se aplica aos relacionamentos pessoais entre seres humanos também se aplica a nosso relacionamento com Deus, com a diferença de que ele nos compreende, bem como a si mesmo, de um modo impossível às suas criaturas. O que ele nos conta sobré si mesmo não é exaustivo — e há muito sobre ele que permanece oculto aos nossos olhos —, mas é correto e, portanto, “verdadeiro” no âmbito do relacionamento. É necessário acrescentar essa últim a qualifica­ ção, visto que muitas coisas que um cristão pode dizer sobre Deus podem não ser verdadeiras para outra pessoa. Por exemplo, Deus pode ser “misericordioso” para conosco, porque prometeu cuidar de nós, seus filhos, mas pode não ser misericordioso do mesmo modo para com aqueles que o rejeitam. Essa distin­ ção é importante, pois, sem o contexto relacionai, é possível concluir que Deus é misericordioso por natureza e, portanto, mostrará a todos sua misericórdia independentemente de crerem nele. Fundamental para qualquer relacionamento pessoal é a comunicação, e a forma mais básica de comunicação é a fala [discurso, comunicação verbal]. A comunicação não verbal também é possível e com frequência muito importante, mas é notável o número de vezes em que é descrita como forma de “linguagem” — a “linguagem corporal” é o exemplo mais conhecido. A fala também é co­ mum em todos os tipos de relacionamento — com pais, cônjuge, filhos, amigos e outros. Portanto, faz pleno sentido que ela desempenhe o papel principal em nosso relacionamento com Deus. De acordo com a Bíblia, Deus criou o mundo falando, e o mesmo verbo é usado para descrever o envio de seu Filho (Hb 1.2).

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Não por acaso sua revelação é vista como sua Palavra; não por acaso também essa Palavra é identificada com o próprio Deus (Jo 1.1). M as um relacionamento também é uma comunicação de duas vias, o que implica que a fala de Deus faz parte de um discurso inteligível com seres huma­ nos. Para que isso seja possível, os seres humanos precisam compreender com suficiente clareza o que Deus está dizendo para então oferecer uma resposta coerente. Isso, por sua vez, significa que Deus precisa falar conosco de um modo que acima de tudo viabilize a compreensão. Se Deus e os seres humanos não pu­ dessem se comunicar, a revelação seria impossível e a fé cristã não faria sentido. M uitas objeções ao cristianismo se baseiam na ideia de que a linguagem sobre Deus é sem sentido, porque Deus não é um conceito que a mente humana possa compreender. Obviamente, é verdade que a natureza de Deus é bem distinta da nossa, mas não é com base nisso que alegamos ter um relacionamento com ele. Nosso relacionamento com Deus está fundamentado na pessoalidade compar­ tilhada, que é uma categoria espiritual e não material. A Bíblia nos diz que os seres humanos, exclusivamente eles na criação material, são feitos à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26), o que significa que nós na verdade temos algo em comum com ele. A fala é o meio mais eficiente de comunicação entre as pessoas, e foi assim que Deus escolheu se revelar a nós. A escrita é uma forma específica de fala, que tanto amplia quanto restringe o meio fundamental de comunicação de Deus conosco. A escrita amplia a fala porque é uma evolução de um modo de comunicação para outro e permanece sem alteração no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo, ela também restringe a fala, visto que, se algo está escrito, adquire uma permanência que faz com que seja difícil mudá-lo ou negá-lo. É verdade que a escrita está sujeita a muitos dos mes­ mos problemas que a palavra oral; ela pode ser corrompida; pode ser ambígua; pode ser mal interpretada. A ausência de inflexão de voz e linguagem corporal pode reduzir ou distorcer seriamente a compreensão. M as esses problemas, talvez com a exceção do último, são, em princípio, corrigíveis, desde que adotadas as ha­ bilidades de interpretação corretas, e as muitas vantagens da comunicação escrita certamente são bem maiores do que essas dificuldades. A escrita permanece a mesma, não importa aonde seja enviada nem quanto tempo dure. Pode haver compreensões equivocadas em virtude das diferen­ ças lingüísticas e culturais, mas normalmente é possível superá-las. A escrita também está menos suscetível a distorções por intérpretes que podem ouvir coisas de um modo não pretendido originalmente. Um relato oral não pode ser facilmente conferido, mas um documento escrito pode ser verificado por

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diversas testemunhas, e é possível divulgar e discutir divergências a respeito da interpretação. A escrita, além disso, assegura que a mesma mensagem seja comu­ nicada a todos. Nem todos os que a recebem necessariamente a compreenderão igualmente bem, mas essa já é outra questão. A escrita mantém o princípio da igualdade de maneira mais eficaz do que a comunicação oral, e isso inclui o princípio da imparcialidade. Todos temos a oportunidade de ler e compreender o que está sendo dito, e se um grupo de elite (como alguns clérigos medievais ou alguns estudiosos modernos) tentar privatizar o significado de um texto por interesses próprios, a comunidade mais ampla pode protestar. Isso evidente­ mente não é verdadeiro com respeito a revelação puramente falada ou “oracular”, altamente sujeita a ser manipulada por aqueles encarregados dela. O caráter público de uma revelação escrita também significa que ela pode ser usada para constituir a base de uma comunidade de cristãos que está tanto aberta a uma expressão individual quanto comprometida com um testemunho comum. Indivíduos sempre podem ler e interpretar uma revelação escrita de seu próprio modo, e isso é o que de fato acontece na vida das igrejas. Não há duas pessoas que vejam as coisas exatamente do mesmo modo, e, em épocas distintas, pessoas dotadas com percepções especiais contribuíram para o desenvolvimento de uma tradição de interpretação que está disponível como recurso para a igreja como um todo. Ao mesmo tempo, há um ponto de referência central que es­ tabelece limites para os tipos de reflexão e experiência espirituais possíveis. Por exemplo, as Escrituras claramente excluem qualquer sugestão de que cristãos possam derivar algum benefício espiritual da adoração de ídolos, e isso serve para neutralizar tendências sincréticas que, de outro modo, poderiam surgir. Isso também serve de lembrete para cada geração de intérpretes de que, depois que suas teorias tiverem aparecido e desaparecido, o próprio texto continuará intacto, pronto para falar à geração seguinte com a mesma novidade com que falou no passado. Uma revelação escrita, desse modo, serve à dupla finalidade de fornecer aos membros da comunidade de cristãos um foco comum e de excluir elementos que não pertencem à comunidade. Ao estabelecer normas que devem ser aceitas, uma revelação escrita define o caráter do Deus a quem adoramos e fecha a porta para qualquer coisa incompatível com isso. Essa dupla finalidade é uma das marcas distintivas fundamentais de qualquer religião baseada em escrituras, e o cristianismo não é exceção a essa regra. A igreja ensina que sua revelação escrita estabelece o equilíbrio entre a experiência individual e a confissão comum que é a marca registrada especial do relacionamento do cristão com Deus.

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B ibliografia B a il l ie , J.

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A natureza das Escrituras A fé cristã sustenta que a Bíblia é o testemunho comum e normativo da verdade espiritual revelada à igreja. Não há nenhuma outra fonte comparável a ela e nenhuma autoridade humana que possa superá-la ou contradizê-la. Nem mes­ mo a Igreja Católica Romana, que concede ao bispo de Roma autoridade para pronunciamentos infalíveis em questões de fé e moral, nega esse ponto funda­ mental. Na teologia católica, o papa não passa de um intérprete das Escrituras revestido de autoridade; ele não tem o poder de negá-las (ainda que muitos não católicos romanos acreditem que ele já as tenha negado apenas por alegar isso). Quando passamos a decidir qual é a natureza desse “testemunho normativo e coletivo”, descobrimos a existência de profundas divergências de princípios na comunidade cristã. De modo geral, há três posições principais, que podem ser assim resumidas: 1. A B íblia é um a com pilação de docum entos escritos p o r pessoas em épocas d i­ fe r e n te s p a ra d escrever sua ex periência com Deus. Essa experiência lhes forneceu

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a inspiração para escrever, mas ela naturalmente varia de pessoa para pessoa e também sofreu consideráveis mudanças ao longo dos séculos. Portanto, pode­ mos reconhecer a existência de uma tradição de fé comum contida na Bíblia, mas sua consistência interna está sujeita às realidades de um desenvolvimento es­ piritual. Isso produz “contradições” se tentarmos harmonizar uma parte do texto com outra sem levar em consideração fatores históricos e culturais. As mais notórias dessas “contradições” são o contraste entre o Deus da justiça (Antigo Testamento) e o Deus da misericórdia (Novo Testamento) e o contraste entre a salvação pela fé (Paulo) e a salvação por obras (Tiago). 2. A B íblia é um registro feito p o r pessoas que ou viram D eus lh esfa la r e registra­ ram o que com preenderam . A autorrevelação de Deus foi perfeita e infalível em si mesma, mas a compreensão humana é falha. A Bíblia fala sobre um conheci­ mento inspirado de um Deus perfeito, mas, por continuar sendo um documento humano, não é um testemunho perfeito. Representantes mais conservadores podem argumentar que o próprio Deus fez isso e, portanto, “ajustou-se” às lim i­ tações da compreensão humana. O resultado é um texto que, apesar dos erros e imprecisões nele contidos, continua sendo um registro basicamente fiel de uma experiência real da qual ainda hoje somos chamados a desfrutar. De modo prá­ tico, isso significa que discrepâncias nas narrativas da Paixão nos Evangelhos, por exemplo, não devem fazer com que neguemos a realidade da morte e ressurreição de Cristo, que podem ser ainda mais críveis quando percebemos que os autores dos Evangelhos não estavam simplesmente copiando uns dos outros, mas redi­ gindo obras independentes que dão testemunho de um acontecimento comum. 3. A Bíblia é uma P alavra p ro v en ien te de D eus m ediada p o r agentes humanos. Deus falou a seres humanos com palavras que estes podiam compreender, mas, ao conduzi-los a escrever, muitas vezes lhes concedeu mensagens misteriosas. Esse é o caso principalmente da profecia preditiva e da literatura apocalíptica, mas de modo geral se aplica a todo o texto. O Antigo Testamento prenuncia a vinda de Cristo, ainda que nenhum de seus autores originais o compreen­ desse plenamente, do mesmo modo que o Novo Testamento fala sobre um futuro glorioso quando Cristo voltará, que também não compreendemos plenamente. Na prática, isso significa que não há discrepâncias ou contradições no texto das Escrituras, talvez com a exceção de algumas que se infiltraram por causa dos erros de copistas em tempos posteriores. Em princípio, é possível detectar esses erros e eliminá-los, para que se possa recuperar um texto perfeito. Esse texto original (ou “autógrafo”) é verbalmente inspirado — a fala do próprio Deus — e, portanto, é infalível e inerrante, ao menos no contexto do que está tentando afirmar. Quando

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confrontados com os exemplos de contradição e discrepância fornecidos acima, defensores dessa posição insistem que as supostas contradições na realidade são somente paradoxos que podem ser resolvidos. Na opinião deles, a divisão dos dois Testamentos em “justiça” e “misericórdia” é simplista demais, visto que cada um desses temas pode ser encontrado em ambos. Do mesmo modo, a divisão entre fé em Paulo e obras em Tiago se baseia em um equívoco, visto que tanto Paulo como Tiago criam que a fé é a base essencial das obras, as quais, por sua vez, precisam se seguir na vida do cristão se sua fé for genuína. A primeira dessas posições é típica do que muitas vezes é chamado de “teo­ logia liberal”. “Liberalismo” é um termo vago e fluido, que pode não ser aceitável para os que assim são acusados. Em sua origem, referia-se a uma escola espe­ cífica de pensamento cético radical, que atingiu seu auge no século 19 e agora já nem existe. No entanto, no sentido de que estudiosos desse tipo e os liberais clássicos do século 19 concordam que o estudo das Escrituras é o estudo de um documento humano, e não de uma revelação divina (que poderia restringir a liberdade de tal estudo), há uma continuidade de abordagem entre eles facil­ mente reconhecida por quem não compartilha de suas pressuposições. Desse modo podemos afirmar que esse tipo de teologia existe, ainda que em muitas variedades e com inconsistências e divergências freqüentes. O ponto forte dessa abordagem é sua abertura a ideias novas e sua disposi­ ção (ao menos em princípio) para descartar teorias que se provam indefensáveis. Livre das restrições impostas pela autoridade da igreja ou da devoção popular, ela pode buscar a verdade sem se preocupar com fatores secundários que pode­ riam distorcer as conclusões de uma pesquisa “científica”. Justamente por isso, o grande ponto fraco dessa abordagem é sua instabilidade. É impossível dizer com certeza se uma teoria específica é verdadeira e, por causa da natureza da pesquisa acadêmica, quase sempre haverá divergências a respeito de quase tudo. Não há alvo mais atraente para um aluno de doutorado do que um “resultado seguro” de crítica moderna! Cristãos nas igrejas com razão reclamam de que sua fé não pode se tornar um campo de batalha interno da academia, e muitas vezes consideram a erudição desse tipo algo repulsivo — ou então totalmente incompreensível. A segunda dessas posições foi defendida (em sua forma conservadora) por muitos dos grandes intérpretes da igreja primitiva, especialmente Orígenes e seus seguidores. Os reformadores protestantes a abandonaram, por crerem que o sentido literal e gramatical do texto era a Palavra de Deus inspirada, sem neces­ sidade alguma de oferecer desculpas pela presença de afirmações “inaceitáveis”;

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mas ela reapareceu (geralmente em sua forma menos conservadora) entre muitos católicos romanos e protestantes, em geral conservadores da atualidade. No contexto atual, ela representa um desejo de fundir o estudo bíblico crítico (posição 1) com a teologia ortodoxa cristã clássica. Provavelmente não estare­ mos exagerando se afirmarmos que a maioria das pessoas que defendem essa posição cresceu em uma atmosfera espiritual em que a posição 3 predominava, e até certo ponto ainda pode estar emocionalmente comprometida com isso, mas sua formação intelectual ocorreu debaixo da influência da posição 1. Elas, portanto, criam uma atmosfera intermediária em que conseguem resolver essa tensão que trazem consigo. Se isso é uma síntese criativa que pode produzir uma apologética cristã robusta no mundo atual (como seus defensores naturalmente afirmam) ou se é uma confusão insatisfatória que acabará ruindo por causa de suas próprias inconsistências (como os detratores dos dois lados defendem) é uma questão de debate que somente o futuro resolverá com certeza. O grande ponto forte dessa posição é que ela consegue transitar no mundo acadêmico, bem como no mundo da piedade, sem ruptura indevida com nenhum deles. Portanto, ela pode exercer uma influência moderadora em ambos os mun­ dos, restringindo os exageros mais extravagantes de alguns estudiosos, ao mesmo tempo que ajuda a igreja a evitar um conservadorismo irrefletido. O principal ponto fraco é que ela está propensa a uma compartimentalização, no sentido de que uma pessoa que defende essa visão pode agir como crítico radical na compa­ nhia dos defensores da posição 1, mas ao mesmo tempo se portar como o mais tradicional dos cristãos quando está junto dos que defendem a posição 3. Pessoas conscientes dessa tensão sempre haverão de questionar a integridade dos defenso­ res dessa posição. Embora possa parecer injusto, isso aponta para uma incoerência básica que pode levar defensores da posição 2 a se sentir desencorajados a aplicar seus estudos à fé e à vida. Talvez não surpreenda o fato de que muitas vezes é nesse grupo que se encontra a maior resistência à teologia sistemática. A terceira dessas posições é a visão protestante (e em grande medida “pancristã”) ortodoxa, que seus detratores tendem a chamar de “fundamentalista”. O termo é menos útil ainda do que “liberal”, porque seu uso pode dar a en­ tender que os assim acusados são incultos e meramente preconceituosos em suas objeções à erudição crítica, o que não é, de modo algum, sempre verdade. No entanto, certamente há um espectro de continuidade entre estudiosos e teólogos que defendem essa posição e cristãos conservadores menos instruídos, que às vezes é justificada pelos que a defendem com base na declaração de que não se deve considerar a fé dos simples inferior à fé dos eruditos nem pensar

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que haja uma essência distinta entre elas. A chamada “tirania dos especialis­ tas”, que muitas vezes não passa de uma forma de esnobismo intelectual, não pode dominar a vida da igreja, mesmo que as contribuições que os estudiosos precisam prestar devam ser honradas e aceitas. Para os defensores da posição 3, o testemunho interior do Espírito Santo é extremamente importante, pois é ele que fala por meio do texto ao coração e aplica o texto à vida. Essa posição só pode ser de fato defendida no contexto da adoração e do culto, porque seus defensores farão isso somente como parte de seu compromisso mais profundo com um relacionamento vivo com Deus. É por essa razão que pessoas de fora a consideram “tendenciosa” ou “predeterminada” de um modo que lhes parece “não erudito”. M as os defensores dessa posição argumentam que eles podem usar o rigor acadêmico e intelectual tanto quanto qualquer outra pessoa e que as visões de seus oponentes são tão tendenciosas quanto as suas, ainda que em uma direção diferente. O grande ponto forte dessa posição é que é a mais próxima da percepção espiritual da igreja ao longo dos séculos. A comunhão dos santos é mais impor­ tante do que a crítica de estudiosos e constitui uma das razões pelas quais essa posição permanece quase inalterada de uma geração para outra. Teorias críticas aparecem e desaparecem com uma rapidez desconcertante, mas os defensores dessa posição mantêm a mesma postura, não importando o que aconteça. A sua apologética muitas vezes é praticamente a mesma dos grandes reformadores e com frequência remete a épocas bem antigas. Por exemplo, não há dúvida de que muitos cristãos primitivos defenderam o que hoje seriam chamadas de teorias da inspiração “do ditado”; eles consideravam os autores bíblicos como instru­ mentos de sopro, tocados pelo sopro do Espírito Santo. Mesmo que poucos defensores atuais dessa posição cheguem tão longe (e a maioria enfatiza que Deus usou, e não suplantou, as habilidades naturais e o caráter de cada autor das Escrituras), no entanto, eles nos lembram de que o próprio Novo Testamento diz que as Escrituras foram escritas por pessoas santas movidas pelo Espírito Santo (2Pe 1.21) e que como um todo são inspiradas por Deus (2Tm 3.16), deixando claro que não somente os autores, mas também o texto, exibem o selo da autoridade de Deus. O principal ponto fraco dessa posição é a sua tendência a um conservadorismo cego e dogmático, que se agarra a padrões de pensamento de uma era passada e não fala aos interesses da presente época. M uitas vezes, aqueles que defendem essa posição têm um problema de credibilidade quando tentam transmitir suas opiniões a um mundo mais amplo. Isso não ocorre necessariamente porque sua

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posição seja indefensável (como seus críticos argumentariam), mas porque não estão dispostos a adaptar sua linguagem e apresentação a uma nova situação. É reconhecidamente muito difícil atualizar a doutrina sem distorcê-la de um modo ou de outro, mas, ao mesmo tempo, nunca se pode permitir que a ver­ dade cristã pareça antiquada e irrelevante. O grande desafio para os adeptos dessa posição é fazer com que sua ortodoxia clássica seja atraente e convincente na maneira de lidar com os problemas da presente época e demonstre que sua força duradoura se deve ao seu valor intrínseco e não simplesmente a uma inércia histórica. No clima atual do debate teológico, todos que embarcam no estudo da Bíblia serão atraídos por uma dessas três posições, não importa se isso aconte­ ce com resistência ou sem que seja percebido em um nível consciente. Com o risco de uma simplificação excessiva, podemos dizer que as posições 1 e 2 estão amplamente representadas no mundo da erudição acadêmica, em que normal­ mente os defensores da posição 2 são considerados “conservadores”. Na igreja, em contrapartida, são as posições 2 e 3 que tendem a ser mais representadas, e nesse contexto os defensores da posição 2 são mais facilmente considerados “liberais”. Esse é o melhor modo de compreender que a posição 2 age como uma ponte entre 1 e 3, que muitas vezes parecem opostos polêmicos, como indica o uso excessivo de termos preconceituosos como “liberal” e “fimdamentalista”. B ibliografia R. The n ature a n d au thority o f the B ible (London: James Clarke, 1958). A b r a h a m , W . J. The d iv in e inspiration o f H oly S cripture (Oxford: Oxford University Press, 1981). A c h t e m e ie r , P. J. The inspiration o f S cripture: p rob lem s a n d p rop osa ls (Philadelphia: Fortress, 1980). B a r r ,J . The sem antics o f 'biblicallanguage (Oxford: Oxford University Press, 1961). B eegle , D. M . Scripture, tradition andinfallibility (Grand Rapids: Eerdmans, 1973). B o e t t n e r , L. The inspiration o ft h e Scriptures (Grand Rapids: Eerdmans, 1940). ______ . A inspiração das E scrituras (Lisboa: Papelaria Fernandes, s. d.).Tradução de: The inspiration of the Scripture. C a r s o n , D. A ., org. S cripture a n d tru th (Grand Rapids: Zondervan, 1983). C o n n , H. M ., org. In erra n cy a n d herm eneutic: a tradition, a challenge, a debate (Grand Rapids: Baker, 1988). D a v i s , S. T. The debate about the B ible (Philadelphia: Westminster, 1977). A

bba,

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O cânon das Escrituras O termo cânon, que significa “regra” ou padrão de medida, aplica-se à lista de livros que devem ser incluídos nas Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Uma coisa é dizer que a Bíblia é o testemunho normativo e comum da revelação de Deus, mas outra coisa bem diferente é decidir o que pertence à Bíblia e o que não pertence a ela. Essa questão exigiu a participação tanto de autores judaicos como de cristãos em épocas antigas, embora provavelmente não tanto quanto às vezes se pressupõe hoje. Não há nenhuma evidência de que cristãos alguma vez tomaram uma decisão formal sobre os limites do cânon; eles parecem ter adotado o Antigo Testamento do judaísmo sem muito questio­ namento e acrescentado o Novo Testamento quase como um desenvolvimento natural. Havia discussões sobre alguns livros e até mesmo debates sobre a vali­ dade de continuar reconhecendo o Antigo Testamento, mas até onde sabemos o princípio de um cânon bíblico nunca foi questionado. Visto que a definição dos cânones do Antigo e do Novo Testamento aconteceu de maneira independente, examinaremos os dois processos em separado.

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Antigo Testamento Ao que tudo indica, a autoridade para definir o cânon residia no sacerdócio do Antigo Testamento, ao menos à medida que um dos critérios principais de inclusão parece ter sido a presença do livro no Templo de Jerusalém como parte do depósito sagrado do judaísmo. Para se qualificar, aparentemente o livro precisava proceder de um profeta, sacerdote ou rei, cada um dos quais ocupava uma posição especial na aliança israelita. Em muitos casos, os livros do Antigo Testamento podem não ter sido trabalho de um só autor, mas produto de muitas mãos que cuidadosamente compilaram e editaram o material. Pelo que sabemos, esse trabalho se concentrava ou na corte real em Jerusalém, que esteve em gran­ de atividade sob Davi, Salomão, Ezequias e Josias, ou nos sacerdotes do templo que continuaram ativos depois da queda da monarquia e da volta do Exílio. Também parece que na época de Judas M acabeu (164-160 a.C .), sacerdote que se autoproclamou rei, havia um sentimento geral de que já não surgiria ne­ nhum livro canônico. E nessa época que encontramos livros secundários, como Eclesiástico, que conscientemente se referem às Escrituras com autoridade de uma época anterior. A extensão exata do cânon do Antigo Testamento ainda é debatida. O cânon hebraico hoje aceito pelos judeus consiste em vinte e quatro livros (às vezes reagrupados em somente vinte e dois, para corresponder ao número de letras do alfabeto hebraico), que se dividem em L ei (Torá), Profetas e Escritos (Hagiógrafos). O cristianismo protestante adotou esse cânon, embora siga a ordem e as divisões da tradução grega conhecida como Septuaginta (chamada assim por causa dos setenta estudiosos que supostamente a traduziram e, por isso, abreviada como LXX). Esse trabalho teve como resultado 39 livros, os quais estão em uma ordem em que a distinção entre os Profetas e os Escritos não é nítida. O cânon do Antigo Testamento das igrejas Católica Romana e Ortodoxa Oriental segue a Septuaginta, produzida em Alexandria por volta de 200 a.C. Além da ordem diferente em que os livros se encontram, a Septuaginta contém diversos livros que não estão no cânon hebraico e que podem nunca ter existido em hebraico. Na época da Reforma, esses livros foram eliminados do cânon pro­ testante e situados no fim, onde normalmente são designados A pócrifos (“ocultos”) ou, mais corretamente, D euterocanônicos (“de importância secundária”). É possí­ vel encontrar uma lista ainda maior em fontes coptas, hoje preservada na igreja etíope. Porém, visto que o conceito de “canonicidade” é mais fraco ali do que em outras partes da cristandade, é difícil saber como lidar com isso.

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A autoridade dos chamados Apócrifos sempre foi uma importante fonte de divergência entre protestantes e católicos romanos, embora o espírito ecumê­ nico de anos recentes os tenha aproximado um pouco. Hoje, protestantes de modo geral estão mais conscientes da importância da literatura judaica intertestamentária para nossa compreensão do Novo Testamento, enquanto católicos romanos estão mais dispostos a admitir que os Livros Deuterocanônicos não devem ser usados para estabelecer doutrinas. Isso permitiu que estudiosos das duas tradições publicassem traduções comuns do Antigo Testamento, em que o cânon hebraico (seguindo a ordem da Septuaginta) vem primeiro, seguido pelos Apócrifos, muitas vezes omitidos nas Bíblias protestantes. O processo de formação do cânon hebraico tem sido objeto de estudo cui­ dadoso por mais de dois séculos. A visão clássica é que a Bíblia hebraica passou por três estágios na formação do cânon, e estes correspondem às três divisões clássicas: a Lei (Torá), os Profetas e os Escritos (Hagiógrafos). A datação desse processo varia muito de estudioso para estudioso, embora todos concordem de modo geral que o cânon dos Escritos ainda estava indefinido na época do Novo Testamento. M ais polêmico é o fato de que alguns defendem que a descoberta de Deuteronômio no Templo em 621 a.C. deu início ao processo que resultou na sua canonização. Atualmente, no entanto, a maioria dos estudiosos reconhece que Deuteronômio e a maior parte da Lei mosaica necessariamente exerceram autoridade bem antes dessa data, embora também aceitem que há uma distinção importante entre a autoridade de um livro e sua canonização. O argumento é que um livro, ou ao menos uma compilação de escritos, pode exercer autori­ dade em determinada comunidade antes de chegar à forma literária final. A canonização ocorre quando a forma literária está fixa. No caso da Torá, há uma divergência comum a respeito de quando isso ocorreu, variando desde a visão tradicional de que se deu na própria época de Moisés (séculos 15 a 13 a.C.) até a teoria de que o processo foi concluído somente durante o Exílio e logo depois dele (sexto século a.C.). O cânon hebraico que agora conhecemos foi descrito como representante da tradição farisaica, que não era universalmente compartilhada no judaísmo. Os samaritanos tinham somente os cinco livros da Torá (Pentateuco). Em Alexandria, o cânon aceito incluiu o que agora temos na Septuaginta, enquanto a comunidade de Qumran (autora dos famosos Manuscritos do M ar Morto) pode ter acrescentado outras obras que todas as principais tradições rejeitaram como pseudepigráficos. Nesse esquema canônico, o conteúdo da Torá e dos Profetas é geralmente indiscutível, e a única exceção é que algumas escolas rabínicas (de tendências

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farisaicas) tinham dúvidas a respeito de Ezequiel, com base no argumento de que o livro contém contradições internas de impossível resolução. No entanto, essa objeção nunca foi generalizada, e podemos pressupor que praticamente todos aceitavam a canonicidade desses livros. A ordem da Torá é constante, por causa do desenvolvimento histórico óbvio nela contido, e o mesmo se aplica a Josué, Juizes, Samuel e Reis, que quase invariavelmente seguem a Torá nessa ordem. A ordem dos profetas posteriores é uma questão mais confusa, embora haja consenso quan­ to ao conteúdo. O primeiro livro muitas vezes é Jeremias, seguido por Ezequiel e Isaías, embora os três costumem ser trocados de lugar. Com maior regularidade, os doze profetas menores são situados no fim e considerados um só livro. Quando passamos aos Escritos, as reais dificuldades começam. A abordagem tradicional do cânon afirma que essa parte do Antigo Testamento permaneceu mui­ to tempo “em aberto”, e a decisão final de fechar o cânon foi tomada no Concilio de Jâmnia (Jabneh), em 90 d.C., quando se chegou ao consenso a respeito do presente número de livros. Além disso, a maioria dos estudiosos aceita que houve várias disputas entre os judeus sobre quais livros deveriam ser incluídos, envolvendo prin­ cipalmente Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Ester e Provérbios. Considerava-se que esses livros continham dificuldades exegéticas graves e às vezes apresentavam um tom muito “secular”, mas parece que essas objeções estavam restritas aos fari­ seus. Há alguns indícios de que a comunidade de Qumran não aceitava Ester, visto que não usava esse livro, mas as razões dessa suposta rejeição são um tanto obscuras e não afetam a condição canônica do livro no judaísmo com um todo. M ais sérios são os acréscimos a Daniel e Ester, e diversos outros livros que agora são classificados juntos como Apócrifos. Historiadores católicos às vezes defendem que, em sua origem, esses livros faziam parte do cânon hebraico (pales­ tino), mas atualmente a maioria das pessoas aceita que eles entraram no Antigo Testamento por terem sido incluídos na Septuaginta, desse modo formando um cânon alexandrino separado que se tornou padrão no mundo greco-romano, que tinha na Septuaginta seu texto veterotestamentário principal. Podemos encon­ trar uma defesa dessa posição no Novo Testamento, que extrai da Septuaginta a maioria de suas citações do Antigo Testamento, embora seja necessário lembrar que o Novo Testamento não cita diretamente o que hoje classificamos como Apócrifos. No entanto, o uso apostólico da Septuaginta foi suficiente para levar Agostinho (354-430) a argumentar que ela deveria ser aceita como plenamente canônica, em oposição a Jerônimo (340-420), que defendia que somente o câ­ non hebraico (■hebraica veritas) deveria ser aceito. Os reformadores colocaram-se ao lado de Jerônimo e, assim, romperam com a tradição católica medieval.

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Em anos recentes, essa explicação quase clássica da formação do cânon passou a ser atacada com grande força e persistência. A teoria de Jâmnia, desenvolvida pela primeira vez por Heinrich Graetz em 1871, foi completamente derrubada pelas pesquisas de J. P. Lewis (1964) e S. Z. Leiman (1976). Eles mostraram que chamar uma reunião de anciãos de “concilio” é conferir ao evento uma impor­ tância exagerada. A data da reunião também é incerta, e ela pode ter ocorrido em qualquer momento entre 75 d.C. e 117 d.C. De todo modo, eles afirmam, os anciãos de Jâm nia discutiram apenas a canonicidade de Eclesiastes (e provavel­ mente de Cântico dos Cânticos também), sem chegar a uma decisão definitiva, visto que a mesma discussão continuou em outro lugar em data posterior. O conceito de um cânon alexandrino distinto foi profundamente atacado por A. C. Sundberg (1964), que defendeu que não havia nenhuma diferença digna de nota entre Alexandria e Palestina nessa questão. Sundberg pensava que a extensão do cânon havia permanecido extremamente vaga nos dois lugares, mas isso foi desafiado com competência por R. T. Beckwith (1985), que, seguindo Leiman, data a conclusão do cânon hebraico em cerca de 164 a.C. (na época de Judas Macabeu), e nesse momento os Profetas e os Escritos, que até então estavam mis­ turados sem uma ordem fixa, foram separados em dois grupos distintos. A ordem dos livros nesses grupos continuou variando até a invenção da imprensa, quando a padronização se tornou importante, mas essa ordem tem pouca importância e em algumas regiões ainda hoje não foi finalmente estabelecida. A partir do que vimos acima, podemos concluir que na época de Jesus ha­ via amplo consenso a respeito do cânon do Antigo Testamento, embora entre os fariseus as disputas tenham continuado. O texto estava razoavelmente definido (ainda que as descobertas de Qumran tenham revelado mais variedade do que se pensava), mas a ordem dos livros não — uma situação mantida até tempos recen­ tes e que ainda se reflete nas diferentes ordens encontradas entre judeus e cristãos.

Novo Testamento O cânon do Novo Testamento é padrão em todas as igrejas cristãs, exceto na igreja etíope. Ele consiste nos 27 livros normalmente encontrados em nossa Bíblia, e a ordem costuma ser a mesma, embora Bíblias luteranas de vez em quando publiquem as Epístolas Gerais em uma ordem distinta daquela aceita como padrão em outras partes do cristianismo. A igreja etíope tem um cânon maior com sete livros a mais, além de um cânon menor idêntico ao nosso, em­ bora a tradição dessa igreja, que durante muito tempo esteve isolada do corpo

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principal de cristãos em todo o mundo, deva ser considerada uma anomalia nesse aspecto. A história do cânon do Novo Testamento, portanto, é mais simples do que a do Antigo Testamento, e também é possível seguir mais de perto o seu desen­ volvimento. Os apóstolos evidentemente tinham consciência da posse de uma autoridade de ensino na igreja que lhes fora concedida pelo próprio Jesus (E f 2.20; G1 1.8,9; 2Co 11 e 12). Gerações posteriores acataram essa realidade a ponto de restringirem a aceitação no cânon àqueles livros que comprovadamente haviam sido recebidos na igreja como apostólicos, ou por terem sido escritos por um apóstolo, ou por terem sido redigidos sob a direção de um apóstolo. Com respeito ao Antigo Testamento, tudo indica que os autores do Novo Testamento partiam da premissa de que ele estava concluído e possuía autori­ dade normativa singular para eles e para os demais judeus. De vez em quando os autores do Novo Testamento se sentiam livres para citar trechos de obras apócrifas, como podemos observar em Judas. No entanto, não há nenhuma in­ dicação de que as considerassem canônicas. Eles se referem às Escrituras come cumpridas, mas não abandonadas! H á certa indicação de que também reconhe­ cessem os escritos dos apóstolos como Escrituras (cf. 2Pe 3.15,16), embora se discuta exatamente quando isso teve início, visto que às vezes 2Pedro é consi­ derada uma obra pseudônima de meados do segundo século. Nessa época, havia claros sinais de que certos livros possuíam autoridade canônica na igreja. Tais evidências se encontram em Papias de Hierápolis (c. 70-140 d.C.), que descreve como os textos escritos estavam gradualmente superando a tradição oral (que ele mesmo preferia) e nos informa algo sobre a composição dos Evangelhos de Mateus e Marcos. M ais uma fonte importante é Policarpo de Esmirna (c. 70156 d.C .), que alude a cerca de metade dos livros do Novo Testamento, embora não diga nada sobre a sua autoridade canônica na igreja. O principal impulso para o desenvolvimento de um cânon escrito do Novo Testamento parece ter vindo da ascensão de grupos rivais que ou contestavam a autoridade de certos livros ou ofereciam outros textos como Escrituras nor­ mativas e imbuídas de autoridade. Ireneu de Lião (m. c. 200 d.C.), escrevendo perto do fim do segundo século, defendeu a formação de um cânon como uma arma a ser usada contra os hereges. O primeiro e mais notório deles foi Marcião de Sinope (m. c. 160), condenado em Roma em 144 d.C. por negar o Antigo Testamento e expurgar o Novo de influências judaicas. Marcião considerava canônicos somente Lucas-Atos e as epístolas paulinas, e o fato de ele ter sido condenado revela que essa posição era contrária à prática que predominava

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na igreja como um todo. M ais ou menos na mesma época, um sírio chama­ do Taciano (c. 160), escrevendo em Roma, redigiu uma harmonia dos quatro Evangelhos (intitulada D iatessaron), que indica que os quatro desfrutavam de autoridade especial na igreja nessa época. Algum tempo depois (após 170 d.C.), o desafio dos montanistas, que produziram o que chamaram de uma “nova pro­ fecia”, obrigou a igreja a concluir que, em princípio, o cânon estava fechado, embora algumas disputas a respeito de certos livros tenham persistido. Quando exatamente começaram a aparecer listas canônicas é uma questão bastante debatida. O pensamento tradicional era que o chamado Fragmento Muratoriano, que inclui livros ausentes no cânon atual (como Sabedoria de Salomão) e omite outros que fazem parte dele (como Hebreus), teve origem em Roma no final do segundo século, mas essa posição foi recentemente questionada por G. M . Hahneman (1992), que o considera um documento do quarto século de origem oriental. Hahneman fornece detalhes de outras quinze listas da mesma época, porém a mais antiga que corresponde exatamente ao nosso cânon é a lista de Atanásio (c. 297-373) incluída em sua trigésima nona Epístola Pascal, de 367 d.C. Escrevendo no início do quarto século d.C., Eusébio de Cesareia (c. 265-c. 339) nos informa que havia disputas a respeito de alguns livros, especialmente Tiago, 2Pedro, 2 e 3João, Judas e Apocalipse. O primeiro [grupo] deles ele cha­ mou de antilegom ena (“disputado”), em oposição a outros que eram hom ologoum ena (“de consenso geral”). Parece que eram questionados principalmente por causa de dúvidas quanto à autoria. Apocalipse estava em uma categoria à parte; deveria ter sido incluído entre os antilegom ena, mas, por alguma razão desconhecida, Eusébio o relegou a uma terceira categoria, a de livros “rejeitados” (notha), que incluíam vários outros escritos, como O pastor, de Hermas, a Epístola de B arnabé e outros. Apesar das hesitações de Eusébio e da data bem tardia das principais listas canônicas, é certo que o núcleo do Novo Testamento já era aceito como tal no fim do primeiro século, e as disputas que continuaram depois disso esta­ vam relativamente limitadas a certos locais. A questão de Marcião, no mínimo, despertou a igreja para a importância do problema, e não deve ter ficado sem resposta durante muito tempo. Certamente, na época em que os montanistas apareceram com sua “nova profecia”, a igreja tinha consciência de que o cânon estava fechado e era necessário rejeitar qualquer nova “revelação”. Uma vez que isso aconteceu, livros não canônicos foram privados de qualquer autoridade e muitos foram considerados heréticos. Mesmo assim, muitos conse­ guiram sobreviver até nossos dias. Além dos Apócrifos do Antigo Testamento, há diversos, chamados Pseudepigráficos (“falsos escritos”), que incluem

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apocalipses atribuídos a Adão, Abraão, Elias, Sofonias, Esdras e Daniel. Também há “Testamentos” supostamente escritos por Jó, Abraão, Isaque, Jacó e cada um de seus doze filhos. A eles é possível acrescentar os Apócrifos ou Pseudepigráficos do Novo Testamento (a distinção é irrelevante, visto que não há nenhum cânon secundário de livros do Novo Testamento). Eles incluem diversos evangelhos, Atos e livros apocalípticos, embora relativamente poucas epístolas. Veja em Evans (1992) uma lista completa dessas obras e outras relacionadas. Às vezes se pergunta se ainda é possível acrescentar algo ao cânon. Argu^ menta-se que talvez um dia seja descoberta uma carta do apóstolo Paulo (por exemplo) no deserto do Egito, e se isso acontecesse, deveria ela ser acrescentada às Escrituras canônicas? Fora o fato de que seria quase impossível autenticar tal descoberta, é necessário lembrar que nem todas as epístolas paulinas foram con­ sideradas canônicas na igreja primitiva. Sabemos que ele escreveu cartas a outros lugares, como Laodiceia, que não foram preservadas, supostamente porque não deveriam ser usadas com o propósito de ensino geral. Canonicidade não é me­ ramente uma questão de autoria, mas também de acolhimento e uso na vida da igreja. Um livro descoberto agora não cumpriria essa condição importante, mesmo que tivesse autenticidade apostólica. Nesse sentido, precisamos lembrar que hereges na igreja primitiva muitas vezes afirmaram possuir livros desse tipo e acusaram o corpo principal de cristãos de havê-los suprimido. M as hoje não é possível aceitar a ideia de que há um evangelho “secreto”, oculto da grande maioria dos cristãos, assim como essa mesma ideia não foi aceita naquela época. O cânon do Novo Testamento é, por definição, um bem público que sempre pertenceu a toda a igreja desde a primeira geração. Outra possibilidade muitas vezes mencionada é a redução do cânon. Os reformadores conseguiram excluir os Apócrifos do Antigo Testamento, embora houvesse um precedente amplo para isso, e assim não se deve descartar com­ pletamente o desaparecimento de outros livros. M artinho Lutero pensava que Tiago era uma “epístola de palha” porque para ele não parecia pregar o evan­ gelho da justificação pela fé somente, e é provável que ele não teria lamentado seu desaparecimento do cânon. Em tempos mais recentes, às vezes se diz que afirmar que livros como Colossenses ou as Epístolas Pastorais não têm origem paulina significa que esses livros não devem estar no cânon. Alguns estudiosos afirmam haver um “cânon no cânon”, e com isso eles querem dizer que há um núcleo de livros detentores de autoridade incontestável, ao passo que outros são efetivamente deuterocanônicos. A dificuldade com essa ideia é que os limites desse cânon menor podem ser definidos somente no âmbito de cada estudioso, e

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tais limites certamente serão contestados pelos outros. A verdade é que o cânon do Novo Testamento desenvolveu-se sem nenhuma decisão formal, e do mesmo modo também não há nenhum grupo cuja competência para fazer esse tipo de alteração seja reconhecida por todos. Quer gostemos disso, quer não, o cânon está estabelecido em sua forma atual, e qualquer teoria de interpretação bíblica precisa partir dessa premissa. Talvez o problema mais sério e comum na igreja seja o perigo de negligen­ ciarmos partes do cânon a ponto de, na prática, elas se tornarem não canônicas, mesmo que presentes em nossa Bíblia. Muitos diriam que isso aconteceu com Cântico dos Cânticos e com Levítico, e igrejas e cristãos têm cada um seu modo de mudar a lista, mesmo que seja concentrando-se em seus livros “preferidos” e ignorando os restantes. Afirmar a autoridade viva de todo o cânon é uma das tarefas mais árduas da igreja e tem muito mais implicações práticas do que a mera questão teórica da possibilidade de oficialmente acrescentar e descartar livros. Uma das principais tarefas da interpretação bíblica é mostrar a coerência interna e a relevância espiritual de todo o texto — uma questão para a qual precisamos voltar nossa atenção agora. B ibliografia B e c k w i t h , R. T.

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O cânon e a interpretação bíblica Nos últimos tempos houve uma grande renovação do interesse pelo processo de canonização, em especial nos estudos do Antigo Testamento. Durante muito tempo, simplesmente se partiu do princípio de que o cânon não passava de uma compilação de livros realizada no decorrer da história israelita sem muito planejamento. No entanto, a descoberta de um conjunto relativamente grande de obras literárias não canônicas do judaísmo e o entendimento de que é pro­ vável que os livros do Antigo Testamento tenham passado por um processo de redação que pode ter durado várias gerações abriram uma nova perspectiva. Agora se compreende melhor que a seleção de material para canonização deve necessariamente ter envolvido algum tipo de juízo teológico. A formação do cânon, portanto, deve ser considerada um ato de interpretação bíblica, visto que o conteúdo incluído (ou excluído) foi decidido de acordo com princípios her­ menêuticos que precisam ser redescobertos. Ao elaborar as implicações dessa dinâmica, a maioria dos estudiosos agora aceita a visão clássica de que a Torá desempenha um papel fundamental no cânon do Antigo Testamento. E o fundamento teológico sobre o qual se assenta todo o edifício da religião israelita. H á um consenso de que a identidade de Israel foi moldada em primeiro lugar por seu chamado para ser um povo espe­ cial e adorar o único Deus, Yahweh, com quem estava unido em uma relação de aliança. O princípio da aliança, portanto, é básico no Antigo Testamento, e é na Torá que essa aliança é revelada e explicada ao povo. Em uma interpretação conservadora, essa revelação ocorreu na época de Moisés e do Êxodo do Egito, e foi transmitida apenas com mínimas modificações às gerações seguintes. Outros

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acreditam que o conceito de aliança original foi submetido a um processo con­ tínuo de reavaliação hermenêutica, enquanto Israel tateava em busca de sua identidade nas areias inconstantes de sua experiência histórica. Foi somente depois da grande crise do Exílio que o povo conseguiu encontrar alguma forma de consenso, e a essa altura grande parte do que estava na Torá já tinha perdido sua relevância histórica. Na verdade, parece que a canonização como princípio teológico ganha vi­ da no momento em que se pode demonstrar que um texto, como documento com autoridade normativa, sobreviveu à situação histórica em que foi redigido. O fato de que foi preservado e “reciclado” para uso posterior indica que era considerado detentor de autoridade normativa que ia além das circunstâncias imediatas de sua composição. Por razões não totalmente claras, que podem ter variado de caso para caso, escritos específicos foram reconhecidos como de­ tentores de autoridade espiritual duradoura e canonizados, ou seja, preservados para o uso e a instrução de gerações futuras. Surge então a pergunta: “Cada um dos livros foi simplesmente acrescentado a uma compilação existente, centrada na Torá, ou editado com o alvo específico de canonização?”. A primeira dessas visões é a mais conservadora, pois reconhece que o que agora temos é uma série de textos basicamente originais; a segunda pressupõe que houve uma medida de edição, possivelmente bastante considerável em certos casos, que produziu livros que “se encaixam” em um padrão hermenêutico geral. O principal expoente dessa segunda visão é Brevard Childs, cujas obras In trodu ction to the O ld T estam ent as S cripture [Introdução ao Antigo Testamento como Escritura] (1979), The N ew T estam ent as canon: an introduction [O Novo Testamento como cânon: uma introdução] (1984) e mais recentemente B iblical th eology o f the O ld a n d N ew Testam ents [Teologia bíblica do Antigo e do Novo Testamentos] (1992) são afirmações clássicas dessa teoria. A obra de Childs tem o grande mérito de tentar chegar a uma síntese entre a erudição crítica moderna e as afirmações teológicas clássicas que faça justiça às duas posições, embora seus críticos naturalmente reclamem de que ele acaba ficando entre as duas e produz uma teoria insatisfatória para qualquer um dos lados. Seu maior ponto fraco provavelmente é a convicção de que a história do cânon se divide em duas fases bem distintas. Na primeira fase, a que Childs chama de “pré-estabilização”, o texto estava nas mãos da comunidade religiosa, que conti­ nuou a moldá-lo de acordo com sua compreensão teológica. Na segunda fase, a da “pós-estabilização”, a comunidade se submeteu à autoridade do texto, desse modo invertendo a relação anterior entre eles. Uma mudança tão dramática

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parece, no mínimo, improvável e é contrária à noção da “autoridade” do texto na fase da pré-estabilização. M as, apesar dessas reservas, certamente Childs abriu um importante campo de discussão para a intepretação bíblica, e no futuro será necessário levar o papel da formação do cânon mais a sério do que no passado. B ibliografia B a r r , J.

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Autoridade normativa e interpretação bíblica O ressurgimento do cânon como fator na interpretação bíblica inevitavelmente levanta a questão maior da autoridade normativa para a compreensão do signifi­ cado do texto. Se aceitarmos a tese de Childs e outros, fica claro que dependemos da teologia dos editores das Escrituras canônicas para nosso conhecimento dos documentos originais. Até mesmo naqueles casos em que talvez fosse possível reconstruir um texto mais antigo, é pouco provável que ele algum dia substitua o cânon oficial. Independentemente de qualquer outra coisa, a simples dificuldade de obter um consenso acadêmico amplo o bastante para permitir uma modi­ ficação do cânon existente se revelaria insuperável, sem mencionar as muitas objeções que viriam da igreja e de outras fontes teológicas. Esse fato nos faz perceber que há forças atuantes que garantirão a preser­ vação do cânon em sua presente forma. Essas forças, pela própria natureza,

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inevitavelmente reivindicam exercer autoridade sobre o reconhecimento do texto e, portanto, sobre sua interpretação. A mais importante entre elas é a au­ toridade reivindicada pela igreja para exercer controle sobre o modo pelo qual as Escrituras são compreendidas. Cada igreja tem alguma coisa para dizer sobre esse assunto, embora o modo como o controle é exercido varie consideravel­ mente de uma denominação para outra. A afirmação mais clara de autoridade interpretativa vem da Igreja Católica Romana. De acordo com a definição do Concilio Vaticano I (1870), o bispo de Roma, quando fala de modo oficial (ex cathedra), tem autoridade para fazer declarações infalíveis em questões de fé e moral. E necessário enfatizar que não se considera essa autoridade uma prerrogativa pessoal do papa; antes, ele é visto como o porta-voz do que se chama o m agistério da igreja, ou sua autoridade de ensino. Isso consiste na tradição reconhecida da igreja, nas declarações de sínodos e concílios oficiais e nas opiniões coletivas dos bispos, todas as quais devem refletir o que se chama o consensus fid eliu m (“consenso dos fiéis”). H á um exército de estudiosos da Bíblia e teólogos trabalhando para o m agistério, cuja tarefa é informar o papa e guiar sua tomada de decisões. Esse conselho não precisa ser seguido, obviamente, mas de modo geral serve para impor con­ troles e limites ao exercício da autoridade papal na prática. A erudição bíblica na Igreja Católica Romana está bem mais livre do que anteriormente, graças à permissão concedida na encíclica papal D ivin o afflan te Spiritu (Pelo sopro do E spírito D ivin o), para examinar as Escrituras Sagradas usando métodos críticos modernos quando apropriados. As igrejas ortodoxas orientais são fiéis às decisões tomadas nos primeiros sete concílios ecumênicos (o último dos quais ocorreu em 787) e não têm ne­ nhum mecanismo eficaz, exceto o peso da tradição, para controlar mudanças posteriores. Essa realidade trouxe como conseqüência o desestímulo a quaisquer inovações e a transformação do estudo bíblico contemporâneo em algo alta­ mente suspeito. Leigos ortodoxos são relativamente livres para estudar a Bíblia usando qualquer método crítico que decidam escolher, mas os resultados de seus estudos têm pouco ou nenhum impacto sobre a vida da igreja. O cenário protestante é muito mais complicado. Na teoria, as principais denominações protestantes históricas defendem uma posição confessional que, na maioria dos casos, foi estabelecida no início da Reforma. Essas con­ fissões geralmente definem e declaram as Escrituras Sagradas como Palavra de Deus inspirada, com tudo que isso implica. A interpretação das Escrituras é obra do Espírito Santo, que fala ao coração do cristão por meio do que é

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chamado “testemunho interno” (testim on iu m in tern u m S piritus S ancti). Essa é uma experiência espiritual que os verdadeiros cristãos conhecem, mas é no­ toriamente difícil traduzi-la por declarações confessionais ou afirmações que comprometam os fiéis com a obediência a elas. Na prática, a maioria dessas igrejas já não impõe disciplina confessional a seus membros, e, certamente, também não a impõe aos estudiosos da Bíblia de suas fileiras. Os últimos ju l­ gamentos de acusados por heresia ocorreram nos Estados Unidos na década de 1920, época na qual a maioria das igrejas europeias já havia abandonado essas .iniciativas. Os conflitos da década de 1920 e de anos anteriores eventualmente produziram divisões de igrejas, quando os membros mais conservadores de uma denominação saíam para formar uma nova igreja que m anteria intactos os padrões confessionais. Em alguns casos, os resultados foram melhores que em outros, mas é entre esses grupos que hoje é mais fácil haver conflitos a respeito da infalibilidade da Bíblia. Grupos eclesiásticos mais antigos abrigam um amplo espectro, do mais conservador ao mais liberal, e, contanto que uma questão específica não afete a ordem eclesiástica (como a ordenação de mulheres, por exemplo), geralmente há um espírito de tolerância mútua, quando não de aceitação. Uma conseqüência disso é praticamente já não existir coesão denominacional. Os conservadores se unem cruzando limites denominacionais, e os liberais cooperam de boa vontade em uma base ecumênica, sem grandes preocupações com divisões tradicionais. Nessa situação, os conservadores estão propensos a formular novas declarações de precisão doutrinária, cujo objetivo é complementar as confissões da Reforma e fazer valer sua importância nos mais diversos âmbitos denominacionais. Os exemplos que mais se destacam são a D eclaração de Chicago sobre a inerrância da B íblia (1979) e a D eclaração de C hicago sobre h erm enêutica bíblica (1982). Os liberais, por definição, evitam fazer declarações confessionais de qual­ quer espécie e preferem um consenso acadêmico mais palpável no que diz respeito aos métodos do que aos resultados. Assim, geralmente se aceita que os princípios da crítica histórica, desenvolvidos desde a metade do século 18, continuem válidos como base do estudo bíblico hoje. Isso não exclui uma ampla variedade de conclusões que podem ser extraídas do uso desses métodos, e deve-se admitir que “os resultados consensuais da crítica moderna” são poucos. Em anos recentes, o domínio do método hisstórico-crítico foi questionado por novas abordagens, algumas das quais fizeram avanços consideráveis em círculos acadêmicos. Não sabemos ainda se alguma dessas abordagens conseguirá des­ tronar o agora clássico método histórico.

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Tensões permanentes na interpretação bíblica No estudo da interpretação bíblica, é importante ter em mente que há certos fatores que reaparecem em todas as gerações, não importam os métodos usados. Eles podem ser descritos como tensões permanentes, e qualquer pessoa que queira se envolver com a interpretação das Escrituras precisa reconhecê-las.

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A primeira entre elas é a tensão entre a interpretação sistemática e acadêmica e o emprego assistemático, muitas vezes popular, do texto bíblico. O primeiro tipo de interpretação configura a atividade de estudiosos e teólogos, que partem do princípio de que é nisso que consiste a interpretação bíblica. Ela envolve uma comparação cuidadosa de textos e tradições, na tentativa de encaixá-los de um modo coerente e significativo. Em contrapartida, o que muitos cristãos comuns praticam rotineiramente é um tratamento assistemático do texto, e isso muitas vezes incomoda os especialistas. No nível mais básico, esse tratamento pode con­ sistir em tirar versículos do contexto e usá-los com propósitos originariamente .não pretendidos. Por exemplo, o uso freqüente de Apocalipse 3.20 (“... estou à porta e bato...”) como apelo evangelístico é um emprego equivocado do texto, mas sempre foi tão eficaz que descartá-lo sem mais nem menos significaria correr o risco de minar a fé das pessoas. Em um nível mais sofisticado, artistas, escritores e músicos têm usado ao longo dos séculos temas da Bíblia e nem sempre submetem sua criatividade ao controle do texto. Às vezes, isso teve grande impacto sobre a consciência coletiva da igreja, como, por exemplo, na descrição do inferno, de Dante, ou da queda do homem e de Satanás, de M ilton. M uitas pessoas implicitamente aceitam a cristologia veterotestamentária do M essias, de Handel, sem nunca se preocupar em levar em conta o contexto dos versículos usados. Além disso, a intepretação alegórica, rejeitada por estudiosos desde o início do século 19, está muito viva nos hinos conhecidos como n egro spirituals. Por mais que isso seja indesejável e vá contra a natureza das coisas, os estudiosos precisam aceitar que a Bíblia fala com pessoas de modos que escapam do controle da exegese sistemática e que essa abordagem não sofisticada pode fazer muito mais para moldar a consciência co­ letiva das futuras gerações do que uma quantidade enorme de teses de doutorado. M ais uma tensão, fortemente relacionada à primeira, é a tensão entre a exe­ gese (extrair [significado] do texto) e a eisegese (impor [significado] ao texto). Até mesmo os estudiosos mais cuidadosos estão sujeitos a extrair conclusões não autorizadas pelas evidências, muitas vezes porque têm uma pauta prede­ terminada que os leva a estudar um aspecto específico da Bíblia. Um exemplo clássico é a rejeição moderna do conceito de “ira” em Romanos. O texto usa a palavra claramente e, portanto, antes de aparecerem teólogos que rejeitassem a ideia, ela causava poucas dificuldades. No entanto, uma vez que, por razões teológicas, tornou-se desejável rejeitar a “ira” como conceito, ela desapareceu da Bíblia, sendo descartada por vários artifícios, alguns mais convincentes que outros. Ê possível dizer o mesmo sobre outras passagens desconfortáveis, como

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a referência ao batismo pelos mortos em ICoríntios 15.29, em que o significado óbvio incomoda os teólogos hoje, ou os vários textos que lidam com a submissão de mulheres à autoridade dos homens (IC o 11.3; lT m 2.11-15). É necessária uma autodisciplina enorme para evitar esse perigo, como bem sabem os que ouvem (ou preparam) sermões semanalmente. Basta observar de­ clarações eclesiásticas com citações bíblicas sobre várias questões para perceber com que frequência a exegese pode ser sacrificada às exigências do momento. Essa tendência, que nada mais é que ornamentar nossas opiniões com textos bíblicos que deem sustentação à nossa autoridade, é um dos maiores perigos da pregação e uma das causas mais óbvias de seu descrédito cada vez maior. Além dessas, devemos reconhecer também a tensão entre a unidade e a diver­ sidade das Escrituras. A erudição, por natureza, tende a ser analítica e, portanto, propensa à diversidade. Ela procura fontes, construções, pistas da pré-história do texto que agora temos. Ao fazer isso, corre o risco de dar uma ênfase descabida a qualquer coisa que pareça diferente ou contraditória no texto bíblico. A repetição da história da criação em Gênesis 2, por exemplo, será automaticamente vista como evidência de uma fonte distinta e examinada em suas minúcias em busca de provas de uma teologia diferente. Nem mesmo se cogitará a possibilidade de que dois relatos talvez sejam apenas um artifício literário para descrever um fe­ nômeno extremamente complexo. No entanto, antes do surgimento da erudição crítica, ninguém percebeu que havia duas histórias da criação em Gênesis: sim­ plesmente ninguém se deu conta dessa “dificuldade”. Isso não acontecia por uma deferência exagerada pelo texto, pois havia muitos outros problemas dos quais os antigos estavam conscientes. Antes, trata-se de uma conseqüência do método de investigação usado, um método que busca a diversidade acima da unidade. Os teólogos, em contrapartida, precisam de unidade para que sua disciplina possa funcionar. Não é possível escrever um livro sobre a doutrina bíblica de Deus se a Bíblia contiver apenas impressões do divino, colhidas de fontes distin­ tas, que revelam níveis profundamente variados de desenvolvimento conceituai. Se a Bíblia não tem um tema comum, não pode haver religião organizada que nela se fundamente. Durante séculos sempre se partiu do princípio de que a Bíblia falava com uma única voz teológica; se ocorriam problemas de harmo­ nização, soluções como a alegoria eram adotadas para superar a dificuldade. Nos últimos tempos, a teologia tem ficado cada vez mais desligada da Bíblia e buscado seu princípio sistemático em uma estrutura filosófica. Basta comparar a In stitu tio christianae religion is \As institutas o u A in stituição da religiã o cristã], de Calvino, com a obra Church dogm atics [Dogmática eclesiástica], de Karl Barth,

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para perceber a veracidade dessa afirmação. Barth, que afirmava ser um teólogo bíblico, cita ou usa as Escrituras com bastante parcimônia em sua grande obra, ao passo que Calvino vê uma íntima relação entre sua teologia sistemática e toda a sua prática de exegese bíblica. Um dos grandes pontos fracos do estudo crítico moderno da Bíblia está na perda de unidade, na impossibilidade de encontrar uma síntese adequada de seus resultados. Ê esse fator, acima de todos os outros, que levou alguns estudiosos a concluir que a crítica histórica das Escrituras chegou a um im passe do qual não há escapatória e que se deve abandoná-lo em favor de outros princípios, como o de uma unidade literária baseada em uma tradição comum de “mito”, de acordo com Northrop Frye em Words w ith p o w e r [Palavras com poder]. Por fim, precisamos mencionar a tensão entre texto e contexto. O estudo histórico do texto bíblico é indispensável para nossa compreensão de seu cená­ rio e uso originais. A possibilidade de recuperar a intenção original do autor é algo que precisa permanecer incerto, visto que se ele não a revelar, temos pouco com que avançar. Do mesmo modo, não há muito sentido em tentar conceber a reação dos primeiros ouvintes, mesmo partindo da pressuposição duvidosa de que houve somente uma reação. Um estudo cuidadoso do contexto e do fundo histórico e cultural em que um livro foi escrito pode nos ajudar a compreendê-lo melhor, mas nunca pode ser o critério final de interpretação. Precisamos lembrar de que parte da realidade da canonização é que o texto em questão sobreviveu ao desparecimento de seu contexto original e, portanto, seu significado deve ser mais profundo do que isso. Ao mesmo tempo, precisamos tomar cuidado para não submergir o texto em nosso próprio contexto a fim de usá-lo com objetivos que teriam sido bastante es­ tranhos para seu autor, que provavelmente os teria rejeitado. H á um perigo especial em relação a certos livros do Antigo Testamento, sobretudo Êxodo e Amós, que recentemente foram usados para justificar movimentos revolucionários entre povos oprimidos em diferentes partes do mundo. Não importa o quanto simpatizemos com esses povos, precisamos insistir na preservação da integridade do texto bíblico. Ele nunca pode ser contextualizado a ponto de perder sua autoridade transcenden­ te. O desafio da mensagem bíblica sempre virá de fora de nossa situação e falará conosco com uma voz que não está limitada pelo tempo e espaço — a voz do próprio Deus. Se perdermos isso, tudo estará perdido. A igreja hoje precisa lembrar que o texto das Escrituras permanece em tensão criativa com o contexto do mundo em que foi produzido e ao qual agora fala. Somente desse modo é provável que sua mensagem seja ouvida em nossa época, assim como foi ouvida no passado.

Primeira parte ANTES DA CRÍTICA HISTÓRICA

Os quatro capítulos nesta divisão abrangem a história da exegese bíblica desde antes dos primórdios do cristianismo até a última parte do século 17. Hoje esse enorme período é em grande parte ignorado pelo fato de que seus métodos e pressuposições de interpretação bíblica em geral têm sido considerados obsole­ tos desde o início da crítica histórica. De certo modo, isso é compreensível, visto que até o século 18 pouco se fez pela recuperação do conhecimento de sociedades e culturas antigas que tanto contribuíram para aumentar nossa compreensão da Bíblia. Até mesmo em épo­ cas mais remotas, o estudo do hebraico geralmente era negligenciado pela igreja, e logo se perdeu o contato com as raízes judaicas do cristianismo. M ais tarde, o grego também se tornou uma língua desconhecida no Oeste europeu, de modo que durante aproximadamente mil anos foi quase impossível para estudiosos do Ocidente lerem as fontes originais, mesmo que tivessem acesso a elas. A recuperação desse material necessariamente causaria um impacto considerável nos estudos bíblicos. Não é de surpreender que, quando isso aconteceu, muitas convicções de épocas passadas tenham sido questionadas e abandonadas. No entanto, os primeiros dezessete séculos de exegese bíblica não podem ser rejeitados tão prontamente como alguns estudiosos modernos pensam. Foi nesse período que os textos canônicos surgiram e adquiriram a autoridade que agora possuem. Também foi durante essa época que se definiu a estrutura dou­ trinária que os cristãos até hoje consideram normativa para sua fé. Pelo fato de que isso aconteceu em um contexto específico de interpretação bíblica, é de extrema importância conhecer tal contexto. Críticos modernos às vezes atacam a exegese antiga das Escrituras como um modo de desacreditar formulações doutrinárias ortodoxas, e é essencial que compreendamos aquela exegese se qui­ sermos manter a autoridade das doutrinas. Por fim, as realizações desse período continuaram exercendo grande fascí­ nio nas gerações que vieram em seguida. A espiritualidade da igreja atual seria muito diferente sem as obras devocionais e hinos baseados na interpretação

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da Bíblia prevalecentes antes do início da crítica histórica. A religião popular continua usando temas míticos e poéticos absorvidos e desenvolvidos pela cons­ ciência coletiva da igreja ao longo de muitas gerações. Se não compreendermos o que originalmente estava por trás disso, desconheceremos algo de importância básica para nós. Nem mesmo expoentes das teorias críticas mais recentes po­ dem ignorar o passado, e nos últimos tempos os estudiosos ganharam maior consciência de como a interação com uma tradição estabelecida — ou a reação a ela — moldou suas ideias. Talvez o mais surpreendente de tudo seja o modo como elementos dessa tradição agora estão sendo recuperados e usados como armas no ataque atual à crítica histórica. Talvez seja muito cedo para dizer se houve um ciclo completo, mas interpre­ tações da Bíblia comuns nos séculos que antecedem o início da crítica histórica teriam sido inconcebíveis uma geração atrás. Por todas essas razões, portanto, é essencial obter uma sólida compreensão desse período e do mundo de que ele é testemunha.

2 OS PRIMÓRDIOS DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA O período e o tema A interpretação bíblica como a entendemos começou no período entre os dois Testamentos. E verdade que em alguns textos posteriores ao Antigo Testamento há tentativas de interpretar escritos canônicos anteriores. Isso fica bem evidente na literatura pós-exílica, que enfrentou a tarefa desanimadora de explicar o que tinha dado errado nas promessas que Deus havia feito a Israel. M as até mes­ mo antes disso, há um sentido em que se pode afirmar que Deuteronômio é o primeiro exemplo de interpretação bíblica, e sua presença na Torá conserva o princípio da hermenêutica no mais básico de todos os documentos bíblicos. Ao mesmo tempo, precisamos lembrar que os autores do Antigo Testamento esta­ vam trabalhando em uma tradição que ainda estava em processo de formação, e que gerações futuras, incluindo os autores do Novo Testamento, conferiram às suas interpretações uma autoridade igual à dos textos anteriores. É a partir de 400 d.C. que começam a aparecer escritos que pressupõem a existência de um conjunto de Escrituras imbuídas de autoridade. Esses escritos não pretendem ser contribuições à literatura sagrada, mas comentários sobre ela. Eles refletem um ambiente em que o estudo regular e erudito dos textos que haviam se tornado sagrados era um aspecto aceito da vida religiosa. Mesmo que nem todos os livros que hoje fazem parte do cânon do Antigo Testamento tenham sido escritos ou editados e concluídos nessa época, a transição do período anterior e criativo de atividade literária para uma fase mais reflexiva estava claramente em andamento. Essa transição recebeu um grande impulso das conquistas de Alexandre, o Grande (m. 323 d.C.), e do subsequente estabelecimento de reinos helenistas em todo o Oriente Médio. Embora os judeus tenham conquistado a liberdade em cerca de 165 d.C. e mantido seu reino como um estado romano vassalo até o início da época do Novo Testamento, o ambiente cultural em que viviam era profundamente marcado pelo espírito grego. E possível observar esse aspecto no

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uso do idioma grego, que na época de Jesus era comum a té mesmo na Palestina. O hebraico continuou sendo usado em certa medida, embora o idioma cotidiano fosse o aramaico, que tem uma forte relação com o hebraico. M as os textos em hebraico ou aramaico se restringiam a um público local, ao passo que a literatura grega estava presente em todo o mundo mediterrâneo. Por volta de 200 a.C ., foi necessário produzir uma tradução grega do Antigo Testamento para judeus que haviam esquecido sua língua materna, e depois disso não houve mais volta. Na época em que o cristianismo surgiu, o uso do grego era plenamente aceito pela maioria dos judeus, e pareceu perfeitamente natural que o Novo Testamento fosse escrito nesse idioma. Foi durante os séculos de dominação helenista que o judaísmo surgiu como religião semelhante à sua forma atual. Esse é o período em que a sinagoga e o rabino passaram a predominar, embora o Templo de Jerusalém tenha mantido sua importância até ser destruído em 70 d.C. O judaísmo se caracterizava por diversas escolas de pensamento, que variavam em suas abordagens do Antigo Testamento e nas posturas para com o mundo grego e sua cultura. Por um tempo pensou-se que o uso do grego era um bom indicador de atitudes positivas para com esse mundo mais amplo, mas as pesquisas mostram que essa visão é insustentável. Não há dúvidas de que os defensores do helenismo estavam mais inclinados a usar o grego, mas não há nenhum indício de que seus oponentes preferissem o uso do hebraico ou aramaico. Além disso, a literatura hebraica e aramaica que sobreviveu revela muitos traços da influência cultural helenista, de modo que os que escre­ viam nos idiomas locais não estavam tentando se isolar do mundo de fala grega. A igreja cristã das páginas do Novo Testamento ainda era um grupo majoritariamente judaico. Acusações de que ela foi indevidamente influenciada pelo helenismo não resistem a uma investigação séria; caso a influência grega tivesse sido decisiva na separação entre a igreja e a sinagoga, poderíamos es­ perar a ocorrência de um cisma ainda maior entre os seguidores de Filo (c. 20 a.C .-c. 50 d.C .), que era muito mais helenizado do que qualquer autor do Novo Testamento. Os apóstolos eram judeus, e as questões religiosas com que precisavam lidar diziam respeito à relação entre o novo movimento messiânico e o restante do mundo judaico. A dispersão dos judeus depois da destruição de Jerusalém e a separação subsequente (ou conseqüente?) entre a igreja e o grupo principal do judaísmo foram os fatores que colocaram fim a esse período de interpretação bíblica. Depois de 70 d.C., as hermenêuticas cristã e judaica seguiriam caminhos distintos, que se cruzariam somente de forma ocasional e esporádica até o século 20.

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Em resumo, a interpretação bíblica em sua fase inicial era um empreen­ dimento quase exclusivamente judaico, e as variações que continha, incluindo aquelas apresentadas por autores cristãos, devem ser entendidas no contexto do judaísmo de então. Somente quando a igreja se afastou de suas raízes judaicas é que surgiu um modelo diferente de interpretação.

Os intérpretes e sua obra Nessa fase inicial da interpretação bíblica, geralmente é mais apropriado falar de “escolas” de pensamento ligadas a movimentos distintos no judaísmo em vez de falar de indivíduos, embora certamente existam rabinos que se sobressaíram e deixaram sua marca em hermenêuticas posteriores. Entre os muitos grupos no judaísmo palestino, os dois mais importantes foram os fariseus, que eram os principais guardiães do que agora se conhece como tradição “dos escribas”, e seus arqui-inimigos, os saduceus. Relativamente afastados havia os essênios, com quem normalmente são associados os Manuscritos do M ar Morto, descobertos em Qumran em 1947. Eles também pertencem à estrutura geral da tradição “dos escribas”, embora os documentos de Qumran representem uma variação bastante original e um tanto primitiva disso. Formando um grupo mais afastado, estavam os samaritanos, que não eram de forma alguma aceitos como judeus pelos outros grupos. Por fim, havia os judeus da Diáspora, ou Dispersão, que normalmente falavam grego e cujo grande centro intelectual era Alexandria. Não eram um grupo tão pronta e facilmente identificado como os outros grupos, e entre eles havia elementos próximos aos fariseus — dos quais Saulo de Tarso é o exemplo mais conhecido. A esses grupos é necessário acrescentar a primeira ge­ ração de cristãos, ligada sobretudo aos fariseus, mas que desde o início constituía um elemento distinto e fundamentalmente incompatível no mundo judaico. Os fariseus. E o mais conhecido de todos os grupos judaicos por causa das fortes acusações de hipocrisia que Jesus dirigiu contra eles. Normalmente se pensa que os fariseus eram muito numerosos e altamente influentes entre as classes inferiores da população. E provável que no passado esse retrato tenha sido exagerado, e a pesquisa recente tende a minimizar o poder dos fariseus, sem tirá-los de sua importante posição no centro do judaísmo palestino. A interpretação bíblica farisaica concentrava-se em uma postura para com a Torá que fazia distinção entre dois tipos de leis. O primeiro estava escrito na própria Torá; o segundo era um conjunto de tradições interpretativas transmi­ tido por gerações do passado. Se essas tradições eram inteiramente orais ou em parte escritas é um assunto polêmico. De qualquer forma, todas as testemunhas

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concordam com a ideia de que os fariseus interpretavam a Torá da perspectiva de suas próprias tradições distintas, o que muitas vezes resultava na negação do significado claro do texto escrito. A reputação de “legalistas” que os fariseus carregavam parecia ter como base uma preocupação com a pureza ritual, grande parte da qual estava associada a leis alimentares. Para buscar seu ideal, os fariseus se separaram do grupo prin­ cipal do povo judaico, que não conseguia viver à altura dos elevados padrões farisaicos. Parece provável que grande parte da influência dos fariseus se devia a sentimentos de culpa induzidos pela incapacidade sentida por aqueles que não atingiam o nível desejado de “obediência” à Lei. As tradições rabínicas de exegese bíblica são associadas acima de tudo com os fariseus, embora eles constituíssem somente o mais destacado dos vários grupos que praticavam essa exegese “dos escribas” com vários pontos de semelhança. A história da exegese rabínica costuma ser dividida em duas fases: a dos Tanaim e a dos Amoraim. É possível identificar a primeira pouco antes do nascimento de Jesus, quando havia duas escolas de pensamento rivais entre os rabinos. A mais conservadora era liderada por S h a m m a i (fl. c. 20 a. C .-c. 15 d. C.) e a mais liberal por H il l e l (tb. fl. c. 20 a.C.-c. 15 d. C.). Foi a escola de H illel que acabou triunfando e deixando sua marca na exegese judaica posterior. Também desse período são os Targumim, traduções aramaicas das Escrituras hebraicas lidas em paralelo com o texto sagrado e usadas para interpretá-lo para as pessoas. A da­ tação dos Targumim é muito debatida, mas a maioria dos estudiosos afirma que eles contêm material muito antigo, de modo que não é impossível considerá-los como típicos da exegese do período tanaítico. Pesquisas recentes mostram que houve diversos desenvolvimentos nas técnicas exegéticas depois de 70 d.C., e a ausência delas em muitos Targumim pode auxiliar em uma datação mais correta. No período amoraíta, iniciado em cerca de 200 d.C., o grande conjunto de tradições orais (e parcialmente escritas) foi coligido e veio a se tornar a base do judaísmo moderno. Esse material se divide em H alacá, que abrange questões de comportamento e conduta, e H agadá, que tem o propósito de ilustrar textos das Escrituras e edificar o leitor, embora nem sempre se mantenha essa distinção na prática. A H alacá foi coligida pela primeira vez pelo rabino Judá Ha-Nasi (“o Príncipe”), que se acredita ter nascido em 135 d.C. Esse material é conhe­ cido como M is h n á e contém dados tanto exegéticos quanto não exegéticos. A M ishná mais tarde foi acrescentada aTosEFTÁ (“acréscimo”), atribuída ao rabi­ no Hiyya, discípulo de Judá Ha-Nasi. Depois vieram as G u e m a r á s (“ensinos”), que procuram fazer uma relação entre as declarações da M ishná e as Escrituras.

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Também datam do período amoraíta, mas com grande incorporação de ma­ terial tanaítico, os M i d r a s h i m , cujo foco principal é a exegese das Escrituras. Eles têm um conteúdo que em grande parte é da H alacá. Esse material acabou sendo reunido e complementado por comentários posteriores nos T a l m u d i m , produzidos separadamente em Jerusalém e na Babilônia perto do fim do perío­ do amoraíta (c. 500 d.C.). A datação é um dos grandes problemas em todo esse material. As compilações foram relativamente tardias, mas em uma sociedade altamente tradicionalista não há dúvida de que grande parte do conteúdo reme­ te à época do Novo Testamento ou a um período anterior. A dificuldade é distinguir entre o que pode ter datação antiga e o que não pode. Em alguns casos, o material está diretamente ligado ao nome de rabinos, o que auxilia até certo ponto, mas de modo geral é impossível ter certeza, visto que muitos rabinos meramente repetiam o que outros haviam dito; assim, parte do material pode ser erroneamente atribuída a alguma pessoa ou época. Em contra­ partida, é mais seguro arriscar uma datação antiga e não mais recente, por causa da tendência tradicionalista já mencionada. M ichael Fishbane (1985) demonstrou que é possível encontrar no próprio cânon hebraico muitas técnicas conhecidas na exegese rabínica e sugere que os rabinos podem ser os herdeiros de tradições que remontam a mil anos antes, à época da monarquia de Davi. Ele reconhece que a falta de evidências torna impossível traçar uma continuidade ou dependência durante um período tão longo, mas as semelhanças estão ali e apontam para uma unidade de abordagem que sobreviveu relativamente intacta à passagem do tempo. Os saduceus. Em termos gerais, os saduceus são considerados mais aristo­ cratas do que os fariseus, mais próximos do sacerdócio do Templo e, de modo geral, mais profundamente influenciados pelo helenismo do que seus rivais. Isso pode ter sido verdade até certo ponto, mas não podemos dizer que essas coi­ sas eram importantes o suficiente para fazer distinção entre os saduceus como grupo e outros elementos no judaísmo da época. Parece, no entanto, que eles eram relativamente elitistas e não desfrutavam do apoio da massa da população. Depois da queda de Jerusalém em 70 d.C., é possível que tenham desaparecido, embora muitas pessoas pensem que referências tardias a um grupo chamado “betusianos” indicam elementos saduceus que sobreviveram à catástrofe com uma aparência um pouco diferente. Os saduceus negavam o conceito da ressurreição e da vida depois da morte, pelo que foram censurados por Jesus (M c 12.18-23s.). Parece provável que isso fazia parte de uma rejeição maior da tradição oral, à qual estava ligada uma insistência na interpretação mais literal do Antigo Testamento. Nossas fontes

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também nos dizem que eles divergiam dos fariseus em relação a muitos deta­ lhes, notadamente em sua compreensão da pureza ritual. M as como não temos praticamente nenhum conhecimento de primeira mão sobre o grupo, é impossí­ vel ter certeza sobre sua verdadeira posição. Os essênios e Qumran. Os essênios eram um grupo meio dissidente que vivia à margem da sociedade judaica. Normalmente se afirma terem sido eles que estabeleceram a comunidade de Qumran, mas, nesse caso, é provável que a comunidade representasse uma ala relativamente extremista do movimento essênio. Os manuscritos de Qumran contêm um grande número de opiniões anteriormente desconhecidas, que expandiram bastante nosso conhecimento da diversidade do pensamento judaico na época do Novo Testamento. O mais difícil é decidir até que ponto essas ideias eram de fato representativas. Caso seja verdade, como muitos pesquisadores concluem, que se tratava de membros da classe sacerdotal que fundaram a comunidade de Qumran, é possível que as opiniões expressas nos manuscritos tenham sido mais representativas entre os judeus da comunidade maior do que normalmente se pensa. Uma característica dos documentos é que eles contêm muitas informações da tradição escrita, o que conduziu a um questionamento maior da pressuposição de que tradições farisaicas, por exemplo, tenham sido principalmente orais. As relações com o Templo de Jerusalém parecem ter variado de acordo com as circunstâncias, embora houvesse certa tendência “espiritualizante” que considerava o templo como relativamente corrupto e, em contrapartida, a comunidade de Qumran como “pura”. Os manuscritos também contêm uma grande quantidade de informações sobre a escatologia judaica da época, com seus fortes elementos apocalípticos e messiânicos. Os samaritanos. A origem desse grupo é relativamente obscura, e é impos­ sível afirmar com exatidão quando ele se afastou do judaísmo predominante. Os samaritanos consideravam o judaísmo do templo uma corrupção da antiga reli­ gião israelita, esta preservada em sua forma pura somente por eles. Os judeus de modo geral acreditavam que os samaritanos descendiam dos colonizadores assí­ rios introduzidos no Reino do Norte depois da queda de Samaria em 722 a.C., que adotaram os costumes judaicos de modo sincretista. Estudiosos modernos tendem a supor um cisma no judaísmo que pode ter ocorrido sob o governo persa, ou na época de Alexandre, o Grande, ou ainda mais tarde — até mesmo no início do período macabeu. O consenso geral é que um fator fundamental foi o estabelecimento de um centro religioso no monte Gerizim, que rivalizava com o Templo de Jerusalém. É significativo o fato de ser essa a questão levantada pela mulher samaritana que falou com Jesus (Jo 4.20).

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Parece que os samaritanos eram uma variante local do judaísmo, e não um cisma, visto não haver evidência alguma de que o sacerdócio no monte Gerizim derivasse do sacerdócio de Jerusalém. No final do segundo século a.C., eles haviam produzido seu próprio Pentateuco, editado de um modo que justificava suas rei­ vindicações em oposição ao establishm ent de Jerusalém. As tensões produzidas por essa iniciativa foram tão grandes que impediram que o grupo fosse reconhecido como judaico, apesar de suas próprias reivindicações. Com respeito a esse aspecto, os primeiros cristãos, embora nutrissem maior simpatia pelos samaritanos como ■indivíduos, seguiram a postura dos judeus na rejeição do grupo como um todo. 'H á certas evidências, que remontam a tempos antigos, de que os samari­ tanos tinham sua própria versão grega do Pentateuco, mas esta se perdeu, e as tentativas de recuperar fragmentos dela não alcançaram êxito. A Diáspora judaica. Ao menos desde a época da queda de Jerusalém (586 a.C.), e possivelmente até antes, havia grandes comunidades judaicas que viviam fora da Palestina. As mais proeminentes e sólidas estavam na Mesopotâmia e no Egito. A comunidade na Mesopotâmia (geralmente chamada “babilônica”) foi se destacando cada vez mais depois de 70 d.C., talvez por estar fora do Império Romano e, portanto, imune à perseguição. Em séculos posteriores, a Babilônia seria um centro incomparável de cultura judaica, onde primeiro a M ishná e de­ pois o Talmude adquiriram sua forma clássica. Na época do Novo Testamento, no entanto, o grande centro de atividade intelectual da Diáspora era Alexandria, onde se havia traduzido o Antigo Testamento para o grego e onde os judeus estavam profundamente imersos na civilização helenista. O grande monumento hermenêutico dessa Diáspora está nas obras de Filo (c. 20 a.C.-c. 50 d.C.), judeu que viveu e trabalhou em Alexandria na época de Jesus. A larga produção de Filo foi o que, durante muitos séculos, a maioria dos cristãos conhecia sobre exegese bíblica judaica, e sua influência sobre os cristãos foi enorme, embora entre os judeus tenha permanecido como uma espécie de intruso. Por essa razão, analisaremos sua obra e influência no próximo capítulo. Em uma categoria à parte está o grande historiador judeu F lá v io J o sefo (c. 37 d.C.-c. 100), cuja obra A ntiguidades dos ju d eu s é uma das principais fontes para nosso conhecimento da postura judaica em relação à tradição do Antigo Testamento na época do Novo Testamento. E temos também os cristãos, que nesse período ainda eram essencialmente judeus. Para eles, o intérprete principal das Escrituras era o próprio J e su s ( c . 4 a.C .-30 d.C .), fato que hoje nem sempre é valorizado pelos cristãos. Jesus era aceito pelos fariseus como um rabino, embora os criticasse severamente de

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diversos modos. Ele também se distanciou dos saduceus e dos samaritanos, em­ bora mostrasse um grau de simpatia e compaixão incomum para com os últimos. Sabemos menos sobre suas ligações com os essênios, embora haja semelhanças entre sua escatologia e a dos manuscritos de Qumran. Até onde é possível saber, seus contatos com o judaísmo da Diáspora foram mínimos. No entanto, Jesus se destaca de todos esses grupos pela natureza radical de seu ensino. Ele afirmava ser a interpretação das Escrituras e que tudo no Antigo Testamento apontava para ele e sua obra. Durante sua vida, bem poucas pessoas parecem ter crido nis­ so ou até mesmo compreendido o que ele queria dizer, mas sua ressurreição dos mortos mudou tudo. Foi principalmente esse acontecimento que justificou suas afirmações hermenêuticas e gerou um grupo distinto de cristãos, cujo evangelho se provaria inaceitável para o judaísmo rabínico dominante. A origem do seguidor mais proeminente de Jesus, o apóstolo Pa u l o ( c . 5 - c. 67 d.C.), era a Diáspora, embora ele também fosse um dos mais rigorosos fari­ seus e tivesse recebido sua formação em Jerusalém. A interpretação que Paulo faz do Antigo Testamento é notável por se concentrar na aliança feita com Abraão, cujo cumprimento ele afirma ser Jesus Cristo. Outros intérpretes importantes do Antigo Testamento foram os apóstolos J oão (c. 5-c. 9 8 d.C.) e M a t e u s (fl. c 30-70 d.C.), os evangeÜstas M a r c o s (fl. c. 30-70 d.C.) e L u c a s (fl. c. 40-70 d.C.) e o desconhecido autor da famosa Epístola aos H ebre us ( c . 60 d.C.), o primeiro ensaio abrangente sobre interpretação bíblica produzido pelas mãos de um cristão.

As questões Apesar da grande variedade de escolas de interpretação, havia consenso entre todos os judeus da época do Novo Testamento a respeito de algumas ques­ tões básicas. Ninguém questionava a inspiração das Escrituras, que se estendia às próprias palavras, que eram ditadas, escritas e editadas pelo Espírito Santo. Afirmava-se que os textos tornavam as mãos impuras, um sinal de que eram san­ tos em si mesmos. Os agentes humanos dessa revelação eram profetas; quando a profecia cessou (c. 400 a.C.), também cessou a composição das Escrituras. Além disso, a convicção universal era que a Torá continha toda a revelação necessária para estabelecer e explicar a relação entre Deus e a humanidade. Por causa dessa convicção, também se concordava que a Torá implicava certas coisas que não afirmava abertamente: dos intérpretes era a responsabilidade de explicar que coisas eram essas. Por último, era consenso que o Antigo Testamento precisava ser aplicado à situação contemporânea — uma questão nem sempre fácil ou

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direta. Mantendo em mente esses pontos de convergência, as questões de que a interpretação bíblica precisou tratar em sua fase inicial podem ser formuladas de modo relativamente conciso, conforme vemos a seguir: 1. Era necessário dem on strar com o um texto a n tigo p o d ia con tin u ar fu n cio n a n d o com o lei suprem a p a ra o p o v o ju d e u , visto que em alguns lugares ela não era mais plenamente compreensível e em muitos outros não era mais diretamente aplicá­ vel ã situação contemporânea. Esse objetivo foi o impulso fundamental por trás ■da composição de grande parte da literatura rabínica de exegese. 2. Era necessário d eterm in a r quais eram os lim ites do ju daísm o. A pressão de grupos heréticos como os samaritanos, e ainda maior do mundo helenista, tor­ nou essencial aos judeus a tarefa de explicar por que não podiam aceitar essas influências e qual era o modo mais eficaz de resistir a elas. Ao mesmo tempo, passou-se a perguntar se o Antigo Testamento tinha uma mensagem também para os gentios, assim como para os judeus. Pessoas como Filo claramente acre­ ditavam que sim, enquanto os cristãos levaram isso às últimas conseqüências, incorporando gentios em um “Israel espiritual” não mais sujeito à Lei de Moisés. No entanto, essa mudança foi resultado de muito esforço, conforme provam Gálatas e Atos 15, e não devemos subestimar a importância dessa questão para os judeus na época do Novo Testamento. 3. Era necessário d efen d er as afirm ações do ju d a ísm o diante dos riva is, espe­ cialmente diante da religião helenista (representada por Homero) e da filosofia helenista (representada por Platão e seus sucessores). Uma das principais tarefas que Filo enfrentou foi demonstrar que o judaísmo era superior ao helenismo tanto como religião quanto como filosofia, tarefa que ele cumpriu dizendo que Platão havia roubado todas suas melhores ideias de Moisés. É interessante observar que essa questão vem à tona somente de vez em quando no Novo Testamento, que nunca lhe oferece um tratamento sistemático. Em contrapartida, os primeiros cristãos estavam envolvidos pela necessidade de provar a superioridade de suas convicções em relação às do judaísmo tradicional, um forte indício de que eles não continuariam por muito tempo dentro dos limites da religião judaica. 4. Era necessário d eterm in a r o lu ga r da tradição (prin cipalm ente oral) em relação às Escrituras. Nesse ponto, as posturas vão desde o farisaísmo extremo, em que a tradição praticamente excluía o texto escrito, até o saduceísmo (e cristianismo), em que as tradições dos anciãos eram rejeitadas a favor da suficiência do texto escrito. Em grande medida, essa questão, acima de qualquer outra, definiu o alinhamento das diferentes forças do judaísmo na época de Jesus. É significativo

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que o judaísmo pós-bíblico tenha avançado cada vez mais para uma compilação da tradição que praticamente substituiu a Torá, enquanto o cristianismo pro­ duziu novas Escrituras que tiveram basicamente o mesmo efeito. Em ambos os casos, por mais que a Torá fosse honrada, sua inadequação prática foi reconhe­ cida e tomaram-se providências para lidar com esse problema. 5. Era necessário decidir o que as prom essas do A ntigo Testamento dirigidas a Israel sign ificavam em relação a seu cum prim ento fu tu ro. Esse era um dos pontos de maior interesse na época do Novo Testamento e constitui um dos principais temas do próprio ensino de Jesus. Muitos judeus acreditavam estar vivendo no fim dos tempos, e o fervor apocalíptico parece ter alcançado seu ápice nos anos que pre­ cederam a destruição de Jerusalém em 70 d.C. Havia um sentimento comum de que o Messias viria para corrigir as injustiças cometidas contra Israel, restaurar o trono de Davi e estabelecer paz universal e justiça na terra. Jesus transformou essas esperanças em um credo espiritual, cujo cumprimento físico aguarda a segunda vinda em data futura desconhecida. Os cristãos, assim, absorveram a escatologia da época e, ao mesmo tempo, a eliminaram da esfera da política cotidiana.

Os métodos de interpretação Dos escribas (principalmente dos fariseus) A interpretação bíblica nesse período era dominada pelo conceito de M idrash (“interpretação”) na tradição dos escribas, que envolvia o estudo de um tex­ to, incluindo seu conteúdo e propósito. Os rabinos que praticavam o M idrash pensavam que as Escrituras precisavam ser totalmente coerentes consigo mes­ mas e inerrantes. Portanto, era possível interpretar uma parte do texto à luz de qualquer outra e harmonizar as duas, de modo que quaisquer contradições eram aparentes, não reais. À medida que o tempo passou, os rabinos passaram a acreditar que as Escrituras continham diferentes níveis de significado, de modo que a mesma passagem podia significar várias coisas ao mesmo tempo. M as no período tanaítico, sobretudo antes de 70 d.C., essa ideia era rejeitada porque as Escrituras, sendo essencialmente um documento legal, eram de todo claras. Sem dúvida, o que os escribas consideravam o significado “óbvio” de determinado texto às vezes podia ser bem diferente do que um estudioso moderno aceitaria como intenção original do autor bíblico. No período amoraíta, aumentou a distinção entre o peshat, ou sentido literal das Escrituras, e o derash, a interpretação delas derivada. Essa distinção não era feita no período tanaítico, em que os rabinos afirmavam que seus Midrashim

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meramente explicavam o verdadeiro significado literal do texto. É óbvio que, na realidade, grande parte do que eles diziam estava mais próximo de derash do que dcp esh a t, e sempre havia um espectro de interpretações de difícil classificação. O M idrash rabínico, no afã de extrair o “significado mais profundo” do texto, explicar seus pontos obscuros e dificuldades e aplicá-lo à situação contemporânea, estava disposto a adotar métodos de interpretação que iam muito além do que o texto dizia, mas os rabinos pensavam estar apenas extraindo seu “significado claro”. Eles alcançavam esse resultado em parte porque liam as Escrituras como um documento legal, o que possibilitava extrair exemplos de comportamento do, contexto e fazer com que suas aplicações fossem muito além do que o texto na verdade dizia. Um exemplo disso pode ser encontrado em 2Samuel 1.1, que relata que Davi ficou em Ziclague durante dois dias, sem cercar a cidade, antes de ir até Hebrom para ser coroado. Shammai transformou esse detalhe histórico em lei, que considerava o comportamento de Davi um precedente legal para a necessidade de pedir paz durante dois dias antes de iniciar qualquer cerco. Essa abordagem “nomológica” leva a uma interpretação “ultraliteral”, em que palavras são tiradas do contexto e passam a significar algo totalmente contrário ao significado claro do texto. Por exemplo, uma prova para a existência de uma Torá tanto oral quanto escrita foi derivada de Êxodo 24.12, por meio de uma se­ paração artificial das palavras “escrevi” e “para que ensines a eles” (uma atividade oral) na frase: "... os mandamentos que escrevi, para que ensines a eles”. A abordagem nomológica das Escrituras era a forma mais comum de exe­ gese rabínica na época de Jesus, e é nesse contexto que precisamos compreender as disputas entre a escola de H illel (Beth H illel) e a escola de Shammai (Beth Shammai). Também dentro desse cenário precisamos interpretar as críticas ao farisaísmo legalista encontradas nas páginas do Novo Testamento. O único gru­ po que divergiu disso foram os saduceus, que adotaram o que mais tarde seria chamado de uma exegese estritamente p esh a t e podem ter usado as técnicas helenistas de raciocínio lógico para dar sustentação à sua interpretação. Visto que os rabinos não podiam aceitar mais de uma forma textual válida das Escrituras, eles fizeram um grande esforço para estabilizar o texto escrito e fornecer regras para sua interpretação. Eles também acabaram desenvolvendo um sistema de vocalização (M assorá) que é usado até hoje. Geralmente não há nenhuma dificuldade nesse aspecto, mas de vez em quando há palavras que podem ter uma vocalização diferente e produzir uma leitura variante: essa é a razão da importância da vocalização massorética para a interpretação. Os rabi­ nos também corrigiam o texto inserindo os chamados Q ere (“leia-se”) à margem

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quando uma palavra no texto (K etiv , “escrito”) não fazia sentido. Isso também não representa um problema, mas às vezes há casos em que se pode interpretar o K e tiv de forma diferente. Os rabinos também discutiam o significado de palavras incomuns no texto — um grande problema por causa da ausência de textos hebraicos extrabíblicos. Em épocas mais recentes, discussões desse tipo têm sido complementadas com técnicas da filologia comparada, mas as dificuldades continuam. Na literatura rabínica, há diversos exemplos de interpretação literal do Antigo Testamento, a maioria vinculada a questões de aplicação prática. Os rabinos tinham interesse especial em distinguir entre profecias cumpridas e não cumpridas, uma tarefa importante em vista da natureza (muitas vezes) política da questão. O aspecto mais característico da interpretação rabínica, no entanto, é sua de­ voção ao Midrash. O principal alvo por trás do Midrash era o desejo de produzir novas leis religiosas (H alacot) e ampliar a aplicação das que já existiam. Com essa finalidade surgiram diversos princípios de interpretação, conhecidos como m iddot (“cânones”). Eles tiveram um processo de evolução, tendo passado das sete regras de H illel (que quase certamente não foram derivadas dele) para as treze regras do rabino Ishmael ben Elisha (fl. c. 110-130 d.C.) até chegar às 32 regras do rabino Eliezer ben Jose ha-Galili (fl. c. 130-160 d.C.). No entanto, as sete regras básicas são suficientes para nos dar o sabor geral da exegese rabínica. 1. Q al w a-h om er. o que se aplica em casos menos importantes também se aplicará nos mais importantes. 2. Gezerah shawah'. o uso da mesma palavra em contextos diferentes significa que as mesmas considerações se aplicam a cada contexto. 3. B inyan ab mikathub 'e had: a repetição de uma expressão significa que ideias associadas a ela são aplicáveis em todos os contextos. 4. B inyan ab m ishene kethubim: pode-se estabelecer um princípio relacionan­ do-se dois textos entre si; esse princípio pode então ser aplicado a outros textos. 5. K ela l upheraP. em certos casos, um princípio geral pode ser limitado em sua aplicação por certas restrições que lhe sejam impostas, e, inversamente, re­ gras específicas podem ser generalizadas por razões semelhantes. 6. K ayoze bo bem aqom ‘a her. uma dificuldade em um texto pode ser resolvida pela comparação com outra passagem semelhante, embora correspondências verbais não sejam necessárias. 7. D abarhalam ed m e 'inyano: o significado pode ser estabelecido pelo contexto.

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Para o leitor de hoje, essas regras fazem mais sentido à medida que a lista avança. Concordaríamos com as duas últimas sem muitas reservas, mas en­ contraríamos uma dificuldade bem maior nas três primeiras, em especial pela generalização que a formulação dessas regras implica. O quarto e o quinto m iddot estão em situação intermediária e podem ser aceitáveis hoje com certas qualifi­ cações importantes. Os rabinos aplicavam esses princípios começando com uma meditação so­ bre a Bíblia e passando a uma análise dos contextos homilético e litúrgico em ^que os textos eram usados. Eles faziam uma análise detalhada de cada texto, a ,fim de solucionar incertezas de significado. Depois disso, procuravam descobrir os princípios legais por trás do texto com a intenção de aplicá-los à sua própria situação (H alacá) ou descobrir o verdadeiro significado de eventos descritos nos textos (H agadá). Em qualquer caso, a motivação fundamental era tornar a Palavra de Deus relevante para a situação do momento. M ais um método comum na exegese midráshica era o m ashal (“comparação” ou “parábola”). O propósito do m ashal era transmitir uma mensagem usando uma situação fictícia para ilustrar uma situação da vida real. O m ashal se originou em contextos orais e a eles deve sua estrutura bem padronizada. Foi um artifício especialmente comum no ensino de Jesus, e por isso o conhecemos melhor.

De Qumratt A exegese da comunidade de Qumran ficava à margem do judaísmo da época, mas adquiriu grande importância desde a descoberta dos Manuscritos do M ar Morto em 1947. Um exame desses manuscritos revela que os exegetas de Qumran conheciam e usavam muitas técnicas da tradição dos escribas, embora tivessem métodos de interpretação próprios, às vezes bastante diferentes. Em especial, acre­ ditavam ser possível interpretar as Escrituras sem levar em conta o contexto; criam também que as Escrituras possuíam significados secundários e independentes de seu significado claro e que textos variantes não deixavam de ser formas válidas de Escrituras. Essas convicções, muitas delas compartilhadas por Filo, constituem o que se chamou de abordagem “inspirativa” das Escrituras, em contraste com a abordagem nomológica acima descrita. Na época do Novo Testamento, parece que esses dois tipos de exegese se desenvolveram em paralelo como sistemas de pensamento autônomos e, portanto, mutuamente excludentes. Foi somente de­ pois de 70 d.C., quando a comunidade de Qumran havia desaparecido, que os dois tipos de exegese se encontraram e se mesclaram nas academias rabínicas.

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Assim como os escribas, os exegetas de Qumran tinham um grande inte­ resse em estabelecer o texto bíblico correto, e é graças à sua biblioteca que temos alguma noção da grandeza dessa tarefa. Eles também faziam uso considerável do sentido literal do texto, embora também se preocupassem em descobrir seu significado “oculto”, no qual se revelava a ideologia especial da comunidade de Qumran. Na opinião desses exegetas, a interpretação correta das Escrituras propiciava um meio de salvação e a compreensão dos propósitos de Deus na história. Esse conceito não era desconhecido em outros lugares (cf. Jo 5.39,40), mas foi desenvolvido sobretudo em Qumran, em que o meio de salvação era confiado ao M estre da Justiça, que exercia um tipo de autoridade papal sobre a comunidade. Em especial, Qumran tinha um conceito de revelação divina contínua que complementava a Torá com outras profecias. Em consonância com a tendência geral da época, a Torá deu lugar a essa forma de interpretação profética, a verdadeira marca registrada de Qumran. Hoje essa forma de interpretação é conhecida como p esh er (“solução”), por­ que pretendia explicar o significado escatológico do texto bíblico. Ela estava enraizada principalmente nos profetas e sempre tinha uma natureza carismática e reveladora. Esse pensamento se devia à premissa de que o texto bíblico era um mistério {raz) que exigia uma interpretação (pesher) realizada pelo M estre da Justiça. O modelo por excelência desse tipo de exegese se encontrava no livro de Daniel, em que a palavra p esh er ocorre nada menos do que trinta vezes. O texto de Daniel 9.24-27, em que o arcanjo Gabriel reinterpreta a profecia de Jeremias, pode ser considerado um exemplo característico do método. Embora Deus houvesse transmitido o raz, não era possível compreendê-lo sem o p esh er, este confiado ao Mestre. Para a comunidade de Qumran, portanto, a exegese p esh er não era somente um método entre outros, mas a chave hermenêutica que deveria desvendar o texto como um todo.

Samaritano Em geral, a exegese samaritana se assemelhava à da tradição dos escribas, embo­ ra fosse mais conservadora. Os samaritanos acreditavam que a Torá era perfeita em todos os detalhes e, portanto, podia e devia ser interpretada literalmente. No entanto, os samaritanos eram conhecidos pelo uso de métodos alegóricos que visavam evitar o incômodo causado por antropomorfismos divinos e coisas do gênero. Esse conservadorismo extremo e a tendência ao literalismo impediram o desenvolvimento de uma tradição exegética alinhada com a Mishná.

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De Jesus Foi nessa atmosfera mental e espiritual que Jesus e seus seguidores apareceram. Os evangelhos refletem uma situação em que os fariseus dominavam, e é fato conhecido que Jesus os criticou severamente. Talvez não seja muito levado em conta o fato de que suas críticas se concentravam em questões de interpretação bíblica, para as quais ele propôs respostas singulares e extremamente inquietantes. Até certo ponto, a maioria das questões que envolvem Jesus são objeto de debate, e é impossível descrever sua vida e obra sem adotar uma das muitas posições admissíveis em relação a isso. O conteúdo a seguir parte do princípio de que os Evangelhos não são relatos tendenciosos (historicamente falsifica­ dos) da igreja primitiva, mas um registro fidedigno do que Jesus de fato disse e ensinou. É altamente improvável que seus seguidores tenham atribuído a ele inovações tão radicais, não fosse ele mesmo a fonte dessas inovações. Na verda­ de, é quase inconcebível que os discípulos tenham chegado a essas conclusões por conta própria, visto serem elas tão diferentes de qualquer coisa existente no judaísmo da época. Assim como seus contemporâneos, Jesus reconhecia que a Torá era a Palavra de Deus no sentido mais pleno do termo, e sua autoridade era fundacional para o ensino de Jesus. Ao mesmo tempo, contudo, ele relativizou o texto bíblico de diversos modos. Em primeiro lugar, ele exaltou Abraão e sua fé como arquétipos da verdadeira religião de Israel. Moisés, mesmo tão influente e divinamente inspirado como de fato era, dependia, não obstante, dessa tradição mais antiga e não escrita. A Torá é apresentada como uma concessão divina à fraqueza hu­ mana, um sinal de que Deus não deixará seu povo se esquecer da aliança, e não um guia totalmente perfeito para as realidades no céu e na terra. Em segundo lugar, Jesus declarou ser superior até mesmo a Abraão e que, na verdade, este o havia conhecido e aguardado sua vinda. Assim, a totalidade da religião israelita estava aguardando a revelação de Deus no próprio Jesus, e se os fariseus não conseguiam perceber isso era porque haviam ficado presos aos detalhes da Torá. Por fim, Jesus reivindicou a autoridade para interpretar a Torá de tal modo que tornou muitas de suas prescrições redundantes, visto que se haviam cumprido nele. Em outros casos, Jesus estendeu as prescrições da Torá e as modificou substancialmente, como em sua famosa reformulação dos Dez Mandamentos no Sermão do M onte (M t 5.21-30). Ao argumentar com seus contemporâneos, Jesus às vezes se apresenta usando os métodos exegéticos deles. Isso pode ser visto, por exemplo, em sua

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interação com os saduceus, cuja interpretação literalista da Torá fazia com que negassem a vida depois da morte. Sendo igualmente literalista, Jesus cita Êxodo 3.6 (“... Eu sou [...] o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó”...) como evidência de que nossa relação pessoal com Deus continua depois da morte (M c 12.26). De maneira semelhante, ao lidar com os fariseus, Jesus mui­ tas vezes usou o princípio de H illel do qal w a -h om er, argumentando a partir de um princípio menor para um maior. Um exemplo óbvio é sua defesa da cura no sábado, que ele justificou com base no fato de que Moisés permitiu que o sábado fosse violado com o propósito menor de uma circuncisão (Jo 7.23). Um exemplo ainda mais extraordinário da mesma aplicação é seu tratamento de Salmos 82.6 em João 10.34-36, quando argumenta que se as Escrituras chamam homens comuns de “deuses”, por terem recebido a Palavra de Deus, por que alguém deveria fazer objeção ao fato de ele se chamar o Filho de Deus? Ao tentar avaliar o significado disso, é essencial lembrar que casos desse tipo de exegese ocorrem apenas no contexto de argumentos a d hom inem reali­ zados durante o debate com judeus. Jesus estava evidentemente preparado para derrotá-los no terreno deles, mas isso não significava que ele defendia aqueles princípios exegéticos como tais. A sua própria exegese parece refletir muito mais o tipo pesher, concentrando o foco muito claramente no cumprimento de profe­ cias. Esse, por exemplo, é o tema de seu primeiro discurso público na sinagoga de Nazaré (Lc 4.16-21), onde ele lê Isaías 61 e então anuncia que as Escrituras se haviam cumprido em sua pessoa. Uma ênfase semelhante marca sua exegese em muitas ocasiões diferentes (c£, e.g., M t 11.10; 13.14; 15.8s.; M c 12.10ss.; 14.27; Lc 22.37; Jo 6.45; 13.18). Além disso, todo seu emprego de termos tipológicos como “Filho do Homem”, “Servo do Senhor”, “dia do Senhor” para se referir a si mesmo e a seu ministério aponta para um tipo de interpretação basicamente pesher. Sua singularidade reside no fato de que Jesus se apresenta como a chave abrangente, e também única, para a compreensão das Escrituras.

Cristão (da igreja primitiva) Uma das características curiosas da interpretação das Escrituras feita por Jesus é que ele afirma expressamente que sua palavra não é a últim a sobre o tema (Jo 16.12). A razão disso não é que Jesus pensava haver algo além dele mesmo que os discípulos precisavam compreender, mas ele sabia que enquanto sua missão na terra não estivesse cumprida e enquanto o Espírito Santo não viesse os discí­ pulos não seriam capazes de compreender as plenas implicações de seu ensino.

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É por isso que ele diz que depois de sua partida o Espírito continuaria a guiar seus seguidores “em toda a verdade”. É possível entender o pleno significado disso nas páginas do Novo Testamento, em que as implicações da interpretação que Jesus faz das Escrituras são continua­ mente desenvolvidas. Em relação ao ministério terreno de Jesus, praticamente todos os detalhes são até certo ponto controversos, obrigando-nos a adotar uma abordagem específica dos textos e de seu valor como fontes. Como já indicamos acima, a abordagem aqui adotada é que os documentos que temos são testemu­ nhos fidedignos do que de fato ocorreu e é nessa condição que são usados. Segundo o Novo Testamento, o próprio Jesus, depois de sua ressurreição, dirigiu a atenção dos discípulos àquelas passagens do Antigo Testamento que falavam sobre ele. Isso é expresso no relato do encontro no caminho de Emaús (Lc 24.27) e novamente depois no mesmo capítulo (v. 45). Atos 1.3 e João 21.15-17 são outras evidências de que o ministério de Jesus, com duração de quarenta dias após a ressurreição, foi importante para a compreensão das Escrituras por parte dos discípulos. Isso tem sido muito debatido, obviamenf mas o Novo Testamento usa o Antigo de modo tão criativo e original que parece bem provável que somente Jesus poderia ter iniciado essa abordagem. Os autores do Novo Testamento compartilham a mesma estrutura conceituai do judaísmo da época, como podemos observar em seus escritos. Todos eles acre­ ditavam em uma solidariedade corporativa, expressa por meio de um só indivíduo. Essa era uma antiga ideia semítica, como podemos observar no uso do termo “Israel”, que era tanto um nome pessoal concedido a Jacó como o nome de um grupo de tribos (cada uma das quais também levava o nome de um dos filhos de Jacó). O Novo Testamento dá um tratamento semelhante à figura de Jesus Cristo, afirmando que os cristãos se encontram “nele” ou são membros de seu corpo. Os primeiros cristãos também acreditavam haver um padrão na história isra­ elita, e este se repetiu na vida de Cristo, que resumiu essa história em sua pessoa e obra. Eles, portanto, se sentiam à vontade para usar o Antigo Testamento sob uma perspectiva tipológica e nele procurar correspondências como ilustra­ ções que tinham o propósito de prenunciar acontecimentos na vida de Jesus. Ligado a isso estava o conceito de cumprimento escatológico. Os autores do Novo Testamento partiam do princípio de que estavam vivendo no fim dos tempos e de que a morte e a ressurreição de Jesus constituíam o ato final da história da redenção. Todos eles criam que Cristo ainda estava presente na co­ munidade, habitando em cada coração por seu Espírito. Essa certeza se tornou um fator determinante na exegese desses autores e significava que o Antigo

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Testamento deveria ser interpretado de uma perspectiva cristológica. Tudo no Antigo Testamento de certo modo apontava para ele e nele se cumpriu. A partir das evidências de Atos, parece que as citações bíblicas eram usa­ das principalmente em diálogos com os judeus. Isso era natural, no sentido de que os judeus conheciam e respeitavam o texto sagrado, ao passo que entre os gentios o impacto não seria o mesmo. H á uma forte ênfase na interpretação literal, como podemos observar no relato que Estêvão faz da história de Israel (At 7). A versão dessa história que Estêvão apresenta certamente não é a mesma defendida pela maioria dos judeus — nenhum judeu teria se referido a Arão como idólatra (At 7.40,41) —, mas ainda assim é um relato literalista simples e direto. Elementos midráshicos também podem ser encontrados, como, por exemplo, na forma como Pedro (At 2.25,34) combina Salmos 16.8-11 e 110.1 para defender a ressurreição de Jesus com base na expressão “à minha direita”, presente em ambas as passagens. Esse é um exemplo claro do uso de analogia {gezerah shaw ah). Do mesmo modo, Paulo (At 13.34,35) associa Isaías 55.3 e Salmos 16.10 pelo fato de que as duas passagens contêm o adjetivo èosios, que pode significar “decretos divinos” (ta hosia), como em Isaías 55.3, ou “santo” (ho hosios), como em Salmos 16.10. Em face da postura cristã em relação a Jesus como cumprimento da profecia do Antigo Testamento, é natural que a exegese p esh er encontrasse um lugar na pregação cristã primitiva. Assim,por exemplo, a morte de Cristo “...pelos nossos pecados...” e sua ressurreição "... ao terceiro dia...” vieram a ser consideradas “... segundo as Escrituras” (IC o 15.3-5); são interpretações p esh er de Isaías 53.5-12 e Oseias 6.2, respectivamente. A pregação e o ensino de Pedro estão especial­ mente repletos de exegest pesher, como podemos observar no uso de J12.28-32 em Atos 2.17-21, de Salmos 118.22 tanto em Atos 4.11 como em lPedro 2.7, além da citação de Isaías 40.6-8 em lPedro 1.24s., entre outros casos. Quando passamos a considerar se os primeiros cristãos tinham algum siste­ ma de exegese, fica claro que eles não podem ser associados a uma única escola de pensamento judaico de seus dias. O uso que faziam da interpretação pesher, embora seja extenso, está subordinado ao objetivo deles, que era provar que Cristo é o cumprimento das Escrituras. A avaliação que Richard Longenecker faz desse fenômeno o resume muito bem. Em B iblical exegesis in the apostolic p eriod \ Exegese bíblica no período apostólico], p. 103, ele escreve: Na pregação dos primeiros cristãos [...], procura-se quase em vão alguma consciência clara do emprego dos vários métodos de interpretação nas citações

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do Antigo Testamento. Para propósitos de análise, podemos (acertadamente, penso) catalogar seus métodos e delinear os respectivos padrões. Mas os pri­ meiros pregadores cristãos não parecem ter feito nenhuma distinção acentuada entre tratamentos literalistas do texto, exegese Midrash, interpretação pesher e a aplicação de profecias preditivas aceitas. Todos esses métodos eram empre­ gados, e às vezes há uma fusão e um entrelaçamento entre eles. No entanto, os cristãos tinham a consciência de interpretar as Escrituras de uma perspectiva cristocêntrica, em conformidade com o ensino e o exemplo exegético de Jesus e em consonância com uma tradição cristológica. Em sua exegese há uma in­ teração entre pressuposições e práticas judaicas, de um lado, e compromissos e perspectivas cristãos, do outro, o que produziu uma interpretação distintiva do Antigo Testamento.

Quando passamos a cada um dos autores do Novo Testamento, não nos surpreendemos ao descobrir que se repete toda a variedade de possibilidades interpretativas. Isso se aplica especialmente ao apóstolo Paulo, cuja interpreta­ ção e teologia bíblicas muitas vezes são consideradas normativas para o Novo Testamento como um todo. Longenecker lista 83 citações diretas do Antigo Testamento no corpus paulino, ao qual também é necessário acrescentar diversas alusões. M ais de metade dessas citações (45) estão na Epístola aos Romanos, em que Paulo esboça sua teologia da aliança da graça e a relação da igreja com Israel. Também há dez citações em Gálatas, que é um tratamento menor do mesmo tema. Um aspecto curioso dessas citações é sua natureza eclética: pouco mais da metade vem da Septuaginta (LXX), e há quatro que concordam com o Texto Massorético hebraico, divergindo da LXX, mas o restante das citações diverge das duas tradições em maior ou menor grau. É claro que Paulo se sentia à vontade para usar versões diferentes quando isso servia aos seus propósitos, característica que o distancia do farisaísmo contemporâneo e o liga ao método inspirativo de Qumran e de Filo. A exegese literalista desempenha uma função muito importante em Paulo e exige poucos comentários. E possível encontrar exemplos em Romanos 7.7 (Êx 20.12-17), ICoríntios 6.16 (Gn 2.24) e 2Coríntios 13.1 (Dt 19.15). O mesmo se aplica a seu tratamento de Abraão, a quem considera o protótipo da história da salvação (Rm 4.17s.; 9.7-9; G1 3.8,16). A exegese M idrash está presente, muitas vezes na forma de um encadeamento de passagens no estilo “colar de pérolas”, isto é, a compilação de passagens de diferentes trechos das Escrituras para defender um argumento específico e desse modo demonstrar a unidade essencial do texto bíblico. Essa característica se destaca principalmente

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em Romanos 3.10-18; 9.12-19 e 10.18-21. Gálatas 3.10-13 constitui mais um exemplo conhecido. Os m iddot de H illel (veja p. 58) estão muitas vezes representados, como se pode observar na lista seguinte: R egra 1 R egra 2 R egra 5 R egra 6 R egra 7

Romanos 5.15-21; 11.12 e 2Coríntios 3.7-18 Romanos 4.1-12 Romanos 13.8-10 Gálatas 3.8ss. (combinando Gn 12.3 e Gn 22.18) Romanos 4.10; Gálatas 3.17

A interpretação que Paulo faz da travessia do mar Vermelho como um ba­ tismo (IC o 10.1-4) reflete a tradição rabínica de que o Êxodo foi um batismo, e sua alusão à “rocha” que acompanhou os israelitas no deserto pode refletir uma combinação de Números 21.17 e Deuteronômio 32.1ss. H á até mesmo três passagens (Rm 10.6-8; G1 3.16 e E f 4.8) em que Paulo cita as Escrituras fora de contexto, um hábito rabínico que ele normalmente evita. Comentaristas demonstram que, na primeira ocorrência, Paulo provavelmente esteja aludindo a um texto do Antigo Testamento, Deuteronômio 30.12-14, em vez de citá-lo diretamente. Na segunda ocorrência, sua restrição do “descendente” de Abraão a Cristo é um exemplo claro da interpretação cristológica comum emprega­ da entre os cristãos em geral, tendo por objetivo indicar que somente Cristo cumpriu todas as exigências necessárias para ser herdeiro e sucessor digno de Abraão. Na terceira ocorrência, em que o verbo “deu” substitui o “recebeste” de Salmos 68.18, é possível que ele estivesse empregando uma interpretação diferente, atestada nos Targumim, e não de fato distorcendo a passagem para atender a seus objetivos teológicos. A interpretação alegórica ocorre duas vezes em Paulo, uma em ICoríntios 9.9s., em um acréscimo ao sentido literal, e novamente em Gálatas 4.21-31, em que Hagar e Sara são citadas para revelar um simbolismo oculto no sentido literal do texto original. No entanto, deve-se ter em mente que o uso de alegoria por parte de Paulo está subordinado a seu raciocínio principal e o ilustra; a argumentação não depende desse artifício exegético específico. Poderíamos esperar que a interpretação p esh er desempenhasse uma fun­ ção importante em Paulo, mas não é isso o que acontece. H á somente poucas ocorrências, associadas principalmente ao termo raz (que o grego traduz por m isterion). Os exemplos se encontram em Romanos 16.25-27, Colossenses

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1.26s. e Efésios 3.1-11. É difícil dizer o porquê do baixo número de ocorrên­ cias; talvez a educação que Paulo recebeu do rabino Gamaliel (At 22.3), cuja interpretação tinha um sentido mais nomológico, o tenha afastado desse tipo de exegese. A função que as citações do Antigo Testamento desempenham nos Evangelhos pode ser resumida com certa brevidade. Elas ocorrem principal­ mente em comentários editoriais e apoiam a convicção de que em Cristo as Escrituras foram cumpridas. Em M ateus, os exemplos estão em 1.23; 2.15; 2.18; 2.23; 3.3; 4.15; 8.17; 12.18-21; 13.35; 21.5 e 27.9. Em João, encontram-se em 2,17; 12.15; 12.38; 12.40; 19.24; 19.36; 19.37. Marcos tem somente uma ocorrência desse tipo (1.2) e Lucas, apenas três, todas na narrativa do nascimento (2.23; 2.24; 3.4-6). Ê difícil estabelecer claramente o emprego que Marcos faz do Antigo Testamento, e até mesmo já se questionou se o tema do cumprimento, tão carac­ terístico no Novo Testamento em geral, pode ser encontrado em seu Evangelho. Lucas também é econômico em seu uso do tema do cumprimento, embora a narrativa do nascimento certamente deva ser interpretada sob essa perspecti­ va. E em M ateus e João que encontramos o emprego mais extenso do Antigo Testamento, e para eles agora nos voltamos. Mateus em especial usa o Antigo Testamento para demonstrar o tema do cumprimento e vai muito além do que se poderia obter imediatamente do sen­ tido literal do texto. Ele até mesmo consegue ligar o Êxodo à promessa do Messias vindouro (M t 2.15) e afirma que a matança de inocentes realizada por Herodes é cumprimento da referência de Jeremias a Raquel chorando por seus filhos (M t 2.18). Provavelmente o único modo satisfatório de compreender a hermenêutica de M ateus seja admitindo que ele praticamente transfere para a vida de Jesus a experiência de Israel como nação — o cumprimento tipológico supremo. Assim como Israel, Jesus vai para o deserto para ser testado, e seus doze discípulos representam as doze tribos (cf. M t 4.18ss.) enviadas para con­ quistar a terra (M t lO .lss.). É claro que uma interpretação desse tipo é bastante realçada pelo emprego livre da exegese pesh er, e há uma semelhança notável entre o uso que ele faz do texto do Antigo Testamento e o que se vê no comentário de Habacuque da comunidade de Qumran. As interpretações de Mateus geralmente são mais comedidas do que as do exegeta de Qumran, mas o tema geral do cumprimento escatológico, que força o significado literal do texto e muitas vezes depende de formas incomuns, é notável o suficiente para nos lembrar das técnicas p esh er de

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Qumran. Mateus certamente está mais próximo delas do que, por exemplo, da tradição nomológica dos escribas. A exemplo do que vemos também em Lucas, a narrativa do nascimento inclina-se bastante a esse tipo de tratamento; verifique, por exemplo, a aplicação de Isaías 7.14 ao nascimento virginal de Jesus (1.22,23). Passando por fim a João, constatamos que o Evangelho liga a vida de Jesus mais ao calendário cíclico de festas judaicas do que ao desenvolvimento histórico de Israel, embora a identificação tipológica de Jesus com a tradição do Antigo Testamento seja igualmente forte. A ligação com a Páscoa tem destaque especial, e é nesse contexto que Jesus se apresenta como o “pão do céu” (Jo 6), o antítipo neotestamentário do maná no deserto. A tipologia é muito proeminente em João; Jesus é o verdadeiro templo (2.18-22), o antítipo da serpente de bronze (3.14), a verdadeira rocha da qual jorra água (7.37-39), a verdadeira coluna de fogo (8.12), o Moisés escatológico e a nova Torá (5.39-47) e o verdadeiro sacrifício pascal (1.29). Em outros aspectos, o uso que João faz do Antigo Testamento é muito semelhante ao de Mateus, embora João costume ser mais contido no emprego dos textos bíblicos. Mesmo assim, a ênfast p esh er no cumprimento escatológico nunca está longe do pensamento do Evangelista, conforme podemos observar nas próprias citações: 2.17 (SI 69.9); 12.15 (Zc 9.9); 12.38 (Is 53.1); 12.40 (Is 6.9); 19.24 (SI 22.18); 19.36 (SI 34.20) e 19.37 (Zc 12.10). A predominância da exegese p esh er em Mateus e João, em contraste com sua relativa ausência em Marcos e Lucas, levanta a interessante questão da relação dos autores com Jesus. Tanto M ateus como João foram seus discípulos, ao con­ trário de Marcos e Lucas, o que pode ser mais uma evidência da probabilidade histórica de que o método de interpretação bíblica do próprio Jesus era mais influenciado pelo modo p esh er, aplicado diretamente a ele mesmo. Em relação ao restante dos livros do Novo Testamento, o padrão acima se repete com bastante fidelidade. Deixando de lado a Epístola aos Hebreus, à qual daremos atenção especial logo adiante, podemos dizer que a exegesç, p esh er é proeminente em lPedro, e tanto 2Pedro como Judas mostram semelhanças notáveis com o mundo de pensamento de Qumran, fato que pode influenciar uma revisão das datas bem tardias geralmente atribuída a esses escritos. Por outro lado, Tiago e as epístolas joaninas evitam a exegese p esh er e, em geral, preferem uma abordagem literalista. Apocalipse está em uma categoria à parte, ao menos no Novo Testamento. Ele pertence a um gênero de literatura que tem recebido muita atenção nos últi­ mos tempos, mas era praticamente desconhecido antes das descobertas modernas de manuscritos da literatura extrabíblica. Certamente, jamais se interpretou um

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livro do Novo Testamento de tantos modos diferentes e (como agora sabemos) com tão poucos motivos. Em relação ao uso que faz das Escrituras, Apocalipse nunca faz citações diretas, mas isso pouco importa, visto que 278 de seus 404 versículos contêm alusões ao texto sagrado que dificilmente podem ser ignoradas. Em Apocalipse, a exegest p esh er atinge seu estágio máximo de desenvolvimento, pelo fato de que o Antigo Testamento como um todo se torna tipo da vida futura no céu. A interpretação cristológica do Antigo Testamento é retirada da história e situada com firmeza na eternidade; o Cordeiro que foi morto antes da fundação do mundo (Ap 13.8) agora está assentado no trono do Todo-Poderoso, e nele o ceu e. a terra estão eternamente reconciliados. B ibliografia R. “M idrash”. In: G re e n , W . S., org. A pproaches to a n cien t Ju daism : theory a n d p ra ctice (Missoula: Scholars Press, 1978). B o w k e r , J. The Targums a n d R abbinic literatu re (Cambridge: Cambridge University Press, 1969). B r e w e r , D . I. Techniques a n d assum ptions in J ew ish exegesis before 70 CE (Tübingen: Mohr, 1992). B r o o k , G. S. Exegesis a t Q umran (Sheffield: JSO T Press, 1983). B r o w n l e e , W. H. The M idrash P esher ofH abbakuk (Missoula: Scholars Press, 1979). B u c h a n a n , G. W . “The use of rabbinic literature for New Testament research”. B iblicalT heology B ulletin 7 (1977): 110-22. C a r s o n , D. A.; W il l ia m s o n , H. G. M ., orgs. I t is w ritten : S cripture citin g Scripture. Essays in hon ou r ofB a rn ab as Lindars, SSF (Cambridge: Cambridge University Press, 1988). D a v i e s , W . D . P aul a n d R abbinic Ju daism (London: SPCK, 1948). D o e v e , J. W . J ew ish herm eneutics in the S ynoptic Gospels a n d Acts (Assen: Van Gorcum, 1954). E l l is , E . E. PauVs use o f the O ld T estam ent (Edinburgh: Oliver and Boyd, 1957). E v a n s , C. A. N on -can on ical w ritin g s a n d N ew T estam ent in terpretation (Peabody: Hendrickson, 1992). _______ ; S t in e s p r in g , W . F., orgs. E arly J ew ish a n d Ghristia?i exegesis (Atlanta: Scholars Press, 1987). F is h b a n e , M . B ib lica l in terpretation in a n cien t Israel (Oxford: Oxford University Press, 1985). B lo ch ,

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ESTUDO DE CASO: A EPÍSTOLA AOS HEBREUS Não importa o critério que se adote, a Epístola aos Hebreus ocupa um lugar singular no cânon do Novo Testamento. Ela não somente é o único livro sem a designação de seu autor, mas toda a sua abordagem das Escrituras e da men­ sagem de Jesus é bem diferente de qualquer outra coisa nos textos canônicos. E óbvio que isso não significa que a epístola seja incompatível com os outros livros. Sua teologia é distintamente paulina, e o uso de métodos exegéticos judaicos junto com pressupostos cristãos encontra paralelos na maior parte do restante do Novo Testamento. No entanto, apesar disso, Hebreus está em uma categoria totalmente à parte, pois, mesmo se encontrando no ambiente social e cultural em que foi escrito o restante do Novo Testamento, não deriva completamente dele. Essa singularidade se reflete na grande variedade de opiniões propostas a respeito da origem e do propósito do livro. O excelente grego em que está escrito e o fato de que somente a Septuaginta é usada nas citações bíblicas passam a impressão de que a carta vem de uma fonte judaica helenizada, mas o profun­ do interesse em angelologia, a descrição do Templo como um tabernáculo e a exaltação de Melquisedeque são todos elementos que indicam um contexto

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judaico sectário semelhante ao da comunidade de Qumran. Seguindo Yigael Yadin (1958), muitos estudiosos adotaram a visão de que Qumran, ou algo mui­ to parecido, está por trás da composição de Hebreus, mas W illiam Lane (1991) mostrou que essa análise é simples demais. Outras sugestões de influências sec­ tárias ou gnósticas estão igualmente sujeitas a objeções. Parece que Hebreus tem afinidades com todas essas coisas, mas não depende de nenhuma delas. A forma e o propósito da epístola são igualmente polêmicos. Ela não é uma “carta” no sentido comum do termo, e há sugestões de que se trata mais de um sermão dirigido a um grupo de cristãos judeus sem firmeza em suas convicções. O estilo homilético pode ser claramente visto nas exortações, que se repetem em intervalos freqüentes, e a exatidão das advertências do autor não deixa ne­ nhuma dúvida de que ele tem em mente pessoas específicas. Ao mesmo tempo, a epístola faz uma coisa que nenhum outro escrito do Novo Testamento tenta fazer: ela apresenta um estudo sistemático e abrangente de interpretação bíblica e deve ser considerada o primeiro ensaio sobre hermenêutica escrito de uma perspectiva judeu-cristã. Isso não é necessariamente incompatível com um pro­ pósito homilético; os dois devem ser vistos como complementares e como parte de um todo. Os destinatários da carta precisavam claramente de uma razão para perseverar na fé cristã, apesar dos problemas que ela estava causando, e somente uma hermenêutica das Escrituras empregada e demonstrada com clareza tinha condições de fornecer tal razão. O autor de Hebreus baseia sua exposição principalmente em material do Pentateuco e de Salmos. É notável a importância deste último para a cristologia e para o desenvolvimento da argumentação ao longo do livro. Salmos 2.7; 8.4-6; 95.7-11 e 110.4 servem para estabelecer temas fundamentais do livro como um todo; do restante do Antigo Testamento, somente Jeremias 31.31-34 tem im ­ portância semelhante. Isso pode refletir o uso bem difundido de Salmos como hinário da sinagoga, mas a interpretação escatológica e centrada em Cristo que os salmos recebem em Hebreus é completamente singular. Hebreus difere de outros livros do Novo Testamento no modo pelo qual o autor inclui suas referências ao Antigo Testamento. A muitas dessas passagens ele só faz alusões, mas de tal modo que demonstra profunda familiaridade com o texto. M uitas dessas passagens são citadas em intervalos repetidos, como se ele quisesse reforçar a ideia que está tentando provar. Esses fatores tornam muito difícil determinar quantas citações do Antigo Testamento há na epístola; as estimativas variam de 29 a 38. Lane afirma que, além de 31 citações claras, há quatro citações indiretas, 37 alusões, noventa resumos de material do Antigo

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Testamento e mais treze citações sem contexto específico, totalizando 104 re­ ferências, encaixadas em somente 302 versículos! Ao fazer citações diretas do Antigo Testamento, o autor evita se referir a ele como “escrito”; em vez disso, prefere dizer que Deus “disse/falou” sua palavra — uma ênfase na natureza oral da comunicação, que pode refletir uma tradição farisaica conservadora, bem como o formato homilético do livro. A manifestação suprema e final da palavra divina é o Filho (1.1-3), afirmação esta que fornece uma clara ligação com as primeiras linhas do Evangelho de João. As técnicas exegéticas encontradas no livro refletem ampla familiaridade com a prática judaica da época, embora hoje não seja mais possível manter a visão tradicional de que o autor tinha para com Filo uma grande dívida. Filo era um platonista que alegorizava o Antigo Testamento, mas o autor de Hebreus fugia de alegorias (não históricas) e bem possivelmente também evitava tipologias (históri­ cas). Assim como em outros escritos do Novo Testamento, a essência da mensagem de Hebreus está relacionada com o cumprimento escatológico das profecias do Antigo Testamento na vinda de Cristo, ideia bastante estranha a Filo. Evidências extraídas de práticas rabínicas, especialmente do judaísmo da Diáspora, indicam ser com elas que o autor de Hebreus tem maior afinidade. E possível perceber essa afinidade quando se comparam os princípios dados por D. Cohn-Sherbock (1982) com o texto de Hebreus. Cohn-Sherbock afirma que os rabinos costumavam esclarecer versículos das Escrituras que pudessem causar confusão. Um exemplo pode ser encontrado em Hebreus 2.8,9, em que o autor está comentando Salmos 8.4-6. O texto do Antigo Testamento pode não deixar claro como Deus sujeitou todas as coisas, segundo diz o salmista, mas como cristãos vemos Jesus, coroado com glória e honra, e assim sabemos que a sujeição suprema de todas as coisas está em suas mãos. Cohn-Sherbock também menciona a prática rabínica do “reforço”, por meio da qual o autor intensificava suas exortações fundamentando-as com referências bíblicas. Hebreus 10.19-39, por exemplo, exorta os leitores a permanecerem fiéis à sua confissão batismal, usando Isaías 26.20 e Habacuque 2.3,4 para de­ fender esse pensamento. Também era costume rabínico elaborar as implicações de textos bíblicos nas pregações, e Hebreus faz isso (8.8-13) em seu tratamento de Jeremias 31.31-34. O apelo rabínico ao sentido literal de uma palavra ou expressão específica na Bíblia é bem atestado em Hebreus, como, por exemplo, no apelo repetido à palavra “hoje” (3.7—4.13). Os m id dotàç. H illel também estão em evidência em diferentes pontos. O qal w a -h o m er é encontrado em vários lugares, como, por exemplo, quando o autor

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argumenta que se Deus puniu os que rejeitaram a Lei mosaica, punirá muito mais os que rejeitam o evangelho (2.2-4). Podemos observar recurso semelhante (o que se aplica ao menos importante também se aplica ao mais importante) em 9.13,14; 10.28,29 e 12.25. O gez era h sh aw ah (analogia) pode ser encontrado em Hebreus 4.1-11 e 5.5,6. No primeiro caso, o autor desenvolve o salmo 95 em sua referência a Gênesis 2.2 e ao “descanso do sábado” de Deus. No segundo caso, Salmos 2.7 e 110.4 são ligados de um modo que associa a análise de Jesus como Filho com a análise de Jesus como sacerdote, ligação fundamental na epístola como um todo. Hebreus também contém exemplos de encadeamento de passagens como se fosse um “colar de pérolas”, conforme vemos, por exemplo, em Hebreus 1.5-13, que situa as referências ao Antigo Testamento uma depois da outra, com bem poucos comentários intercalados. As palavras de ligação são “Filho” e “anjos”, bem como o pronome pessoal “teu”. O hábito rabínico de apresentar listas de exemplos aos leitores, que em sua origem pode ter sido derivado de uma prática helenista, está amplamente representado em Hebreus 11, em que grande parte do Antigo Testamento é recapitulada. Se Hebreus faz uso de tipologia é discutível e depende até certo ponto do que esse termo significa. Nos últimos tempos, a definição tradicional de tipo­ logia como reconhecimento de prefigurações planejadas por Deus tem dado lugar à ideia de que, na verdade, tipologia é a identificação de correspondências históricas reconhecidas em retrospectiva como coerentes com a atividade reden­ tora de Deus. É nesse segundo sentido que se pode identificar a tipologia em Hebreus, onde desempenha uma função importante. Isso transparece de forma mais nítida na parte central do livro (8.1—10.18), em que o contraste entre os santuários terreno e celestial é usado como um modo de apresentar a relação tipológica entre a antiga e a nova aliança. O autor emprega o ritual do tabernáculo para descortinar a teologia da salvação revelada em Cristo. Ao fazê-lo, ele afirma que o tipo levítico era inadequado e precisava ser substituído por um sacrifício novo e com significado escatológico, o sacrifício de Cristo. A estrutura geral do livro representa uma abordagem particular do texto bíblico. O autor começa com Deus e seus modos de falar à humanidade. Os primeiros versículos nos apresentam uma compreensão da revelação, de acor­ do com a qual o Antigo Testamento é uma manifestação variada e parcial dos propósitos de Deus, que agora nos foram claramente revelados no Filho. Esse Filho é um ser mais elevado que qualquer criatura, espiritual ou material, e tudo no céu e na terra está sujeito a ele. Nenhum ser pode reivindicar essa autoridade,

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exceto o próprio Deus; portanto, resta-nos concluir: o Filho é Deus. Os pri­ meiros capítulos são uma clara defesa ontológica da divindade de Cristo; antes de considerar o que o Filho fez, é essencial reconhecer quem ele é. A erudição bíblica moderna geralmente evita reconhecer os fundamentos ontológicos da proclamação bíblica, e alguns teólogos até mesmo afirmam que Jesus foi um homem que de certo modo se tornou o Messias e foi adotado como “Filho de Deus” ao longo de sua vida, morte e ressurreição. M as a Epístola aos Hebreus não chega nem perto disso; o Filho é Deus desde a eternidade, criador junto com o Pai e Senhor tanto de anjos como de seres humanos (cf. Jo 1.1-3). Uma vez firmada essa ideia, o autor passa ao sistema sacrifidal estabeleci­ do sob a Lei mosaica. Esse sistema estava no cerne do Antigo Testamento e das práticas cultuais centradas no Templo de Jerusalém e em seu sacerdócio. Era um sistema que não reunia as condições necessárias para tirar o pecado humano, pois até o sumo sacerdote era um pecador que precisava do sacrifício de expiação. Somente o Filho, rebaixando-se a um nível inferior ao dos anjos e tornando-se humano, pôde realizar o sacrifício que seria válido eternamente. Ele fez isso por meio de sua morte na cruz, um acontecimento que tornou desnecessários o sacerdócio levítico e seus sacrifícios. A verdadeira correspondência não é entre Jesus e Arão, mas entre Jesus e Melquisedeque, o sacerdote que não teve antepassados nem sucessores. Abraão, o pai de Israel, deu o dízimo a Melquisedeque como sinal de que reconhecia o simbolismo de seu sacerdócio, que não estava ligado a nenhuma tradição huma­ na. E, obviamente, Levi, antepassado de Arão, também fez esse sacrifício, pois estava presente em Abraão, seu pai. Em outras palavras, toda a nação de Israel e seu sacerdócio prestaram tributo a Melquisedeque, o sacerdote divinamente designado. Foi desse modelo que Jesus se apropriou, não do modelo de Arão, e assim o sacrifício cristão tem uma natureza eterna e divinamente designada que não se encontra no judaísmo tradicional. O que na superfície parece uma divagação bastante estranha sobre um acontecimento obscuro na vida de Abraão é, na verdade, um elemento central para toda a argumentação da epístola, porque dela dependem tanto a natureza do sacerdócio de Cristo quanto o conseqüente cancelamento da tradição levítica. A últim a parte da epístola (de 10.19 até o fim) elabora as conseqüências do sacrifício sacerdotal de Cristo por nós. Porque temos um sacrifício capaz de realizar expiação permanente pelo pecado, agora somos chamados a viver de um modo novo e melhor. Os cristãos devem formar uma comunidade mais unida que a antiga comunidade de Israel, visto que ela é unida pela experiência comum

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da fé. Todos os exemplos dos patriarcas e profetas apontam para isso. O cristão, que em Cristo tem acesso ao trono de Deus, está numa posição mais vantajosa até mesmo em comparação com os grandes santos do Antigo Testamento, que precisaram aguardar a revelação do Filho para então poder fruir as promessas que lhes foram feitas. A disciplina e a perseverança agora exigidas dos cristãos sempre fizeram parte da vida de homens e mulheres de fé e foram a experiência pessoal do próprio Jesus durante sua vida na terra. Todo o Antigo Testamento, portanto, aponta para a vida da fé como uma luta espiritual, e é sob essa pers­ pectiva que agora devemos interpretá-la. No contexto de sua época, a Epístola aos Hebreus apresentou à igreja o modo pelo qual o ministério de Cristo deve ser entendido com base no Antigo Testamento. Ela ensinou os cristãos a situar Jesus no mundo de anjos e poderes espirituais, elementos que constituíam uma grande parte da literatura apocalíp­ tica da época, mostrando como somente ele podia realizar a tarefa necessária à salvação. Para atingir esse propósito, o autor da epístola precisou desenvolver uma hermenêutica que reconhecesse a autoridade do cânon do Antigo Testamento como Escrituras, mas ao mesmo tempo demonstrasse que seus ensinos centrais haviam sido superados por uma nova revelação. A Epístola aos Hebreus deixou claro que a igreja não podia mais se con­ siderar judaica no mesmo sentido em que outros grupos judaicos viam a si mesmos. Para os cristãos, a Torá já não possuía autoridade absoluta, mesmo que plenamente inspirada. O Deus que falou pelos profetas agora havia falado em seu Filho, e isso mudava tudo. Uma hermenêutica que não fosse cristocêntrica não teria valor algum, não importa quais métodos fossem usados. O autor de Hebreus formulou uma rejeição abrangente do judaísmo da época, mesmo fazendo uso de elementos desse sistema. A epístola sobreviveu ao fim do cristianismo judaico e tornou-se uma das principais bases para os polemistas patrísticos que lutaram para provar e definir a divindade de Cristo. B ibliografia Veja uma bibliografia completa e mais recente sobre o tema em P. Ellingworth, The E pistle to the H ebrew s (Grand Rapids Carlisle: Eerdmans Paternoster, 1994). C . K. “The eschatology of the Epistle to the Hebrews”. In: D a v ie s , W . D .; D a u b e , D ., orgs. The back ground o f th e N ew T estam ent a n d its escha­ tology (Cambridge: Cambridge University Press, 1954).

Barrett,

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Ba r t h , M .

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3 A INTERPRETAÇÃO PATRÍSTICA O período e o tema O período patrístico é o período dos pais da igreja, assim chamados por terem sido eles que estabeleceram a estrutura doutrinária do cristianismo. O início do período pode ser datado em cerca de 100 d.C., estendendo-se pelo menos até o Concilio de Calcedônia (451). Depois disso, houve um longo período de transição para a Idade M édia, concluído apenas com a coroação de Carlos M agno como imperador do Ocidente (800). Este capítulo relata a história da exegese bíblica até a época do papa Gregório, o Grande (m. 604), muitas vezes considerado o último teólogo antigo e o primeiro teólogo medieval. O período patrístico se caracterizou por debates sobre a Trindade e sobre a pessoa de Cristo. Durante esses séculos foi elaborado o vocabulário técnico do discurso teológico cristão, e surgiram duas grandes tradições de pensamento. A primeira delas foi a chamada tradição “oriental” ou “grega”, fortemente influen­ ciada por conceitos filosóficos neoplatônicos e por uma abordagem mística da vida espiritual. A segunda foi a tradição “ocidental” ou “latina”, moldada por con­ ceitos do direito romano, embora também tenha experimentado a influência do neoplatonismo. Grego e latim eram as principais línguas dos textos teológicos, embora também houvesse um importante corpus literário em siríaco (aramaico). Escritos em outras línguas como copta ou armênio tinham importância peri­ férica, embora em alguns casos essas línguas preservem traduções de obras em grego hoje perdidas (isso também se aplica a algumas traduções para o siríaco e o latim). A história da interpretação bíblica patrística pode ser subdividida nos se­ guintes períodos: 1. Um estágio inicial\ que com eça na época do N ovo Testam ento e se estende a té cerca de 200. Nessa época, a igreja ainda experimentava um contato direto com os apóstolos. Autores cristãos muitas vezes continuavam seguindo a prática

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apostólica de escrever cartas a congregações locais, que então davam a elas uma circulação mais ampla. H á poucas citações diretas do Novo Testamento nessas cartas, embora haja várias alusões a ele, e há poucas indicações de que seus livros eram considerados Escrituras canônicas. M uitos escritos desse período revelam que a igreja, de modo geral, considerava as Escrituras judaicas como proféticas em relação a Cristo, que nelas aparecia sob o disfarce de vários “tipos”. Pode-se encontrar essa espécie de interpretação, por exemplo, na E pístola de B arn abé (segundo século d.C.) e em M elitão de Sardes (fl. c. 150). Ao mesmo tempo, as evidências de heresias contemporâneas mostram que a igreja estava batalhando pelo cânon com grande empenho. Marcião (m. c. 144) tentou descartar o Antigo Testamento e uma grande parte do Novo, que ele considerava judaicos demais. Taciano (fl. c. 150) tentou mesclar os quatro Evangelhos canônicos em um só texto. E diversos hereges propuseram um tipo de hermenêutica que via as Escrituras como um enigma, apontando para uma realidade mais elevada que podia ser identificada somente por aqueles que pos­ suíam um tipo especial de iluminação. Essa abordagem superespiritual é agora classificada como “gnosticismo”, termo desenvolvido no século 19 para descrever uma série de movimentos diferentes que tinham pouca ligação uns com os ou­ tros, com exceção de uma abordagem semelhante das questões hermenêuticas. 2. O estágio “origen ista ”, que com eça em cerca de 200 e se esten de a té o P rim eiro C oncilio de N iceia em 325. Nesse período, a exegese bíblica foi dominada pela mente privilegiada de Orígenes (c. 185-c. 254), o primeiro a tentar dar à inter­ pretação bíblica cristã um fundamento sistemático, com comentários dedicados a livros bíblicos específicos. Orígenes inspirou-se profundamente nos escritos de Filo de Alexandria (m. c. 50), judeu platônico cujas ideias ganharam vi­ da própria nesse período. Sabemos hoje que Filo foi um exegeta judeu com ideias flagrantemente excêntricas, mas isso acabou não ficando tão nítido para Orígenes e seus contemporâneos, que conseguiram encontrar em seus escritos paralelos e prefigurações de ensinos cristãos posteriores — a exemplo dos en­ sinos sobre a Trindade. A influência de Orígenes continuou a se fazer sentir durante todo o período antigo, mas os pontos fracos de algumas de suas posturas foram gradualmente expostos. Eles atingiram o ápice na crise ariana, que se tornou o tópico principal do Primeiro Concilio de Niceia, em que se fez uma tentativa de definir a pessoa e as naturezas de Cristo. 3. O g ra n d e estágio conciliar, que com eçou no P rim eiro C oncilio de N iceia e se estendeu a té o C oncilio de C alcedônia (451). Essa foi a época de ouro da exege­ se patrística, em que duas das principais escolas de pensamento disputaram a

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influência. Uma delas estava fortemente associada com a igreja de Alexandria, e de modo geral seguia uma exegese platônica associada a Filo e Orígenes. A outra estava enraizada na escola teológica de Antioquia, que oferecia um tipo contrastante de exegese, mais literal e mais condizente com o que hoje conside­ raríamos “cientifico”. Nas batalhas travadas entre essas escolas, a primeira saiu vitoriosa. M uitos escritos antioquenos foram proibidos, embora alguns ainda existam em fragmentos ou traduções preservadas fora do Império Romano. A principal exceção foi a obra exegética e homilética de João Crisóstomo (m. 407), que, apesar de suas inclinações antioquenas, sempre foi considerado plenamente ortodoxo e altamente estimado na igreja oriental. 4. O estágio conciliar fin a l ou posterior, desde o Concilio d e Calcedônia a té a época de Gregório, o Grande (m. 604), ou chegando a té os dias de Carlos M agn o (c. 800). H á bem poucos comentários de livros bíblicos desse período, marcado por in­ tensas controvérsias teológicas no Oriente e por rupturas sociais e políticas no Ocidente. Durante essa época, foi tomando forma um cânon patrístico, e nele certas interpretações padronizadas das Escrituras se tornaram norma aceita. No final do período, era importante citar a autoridade interpretativa dos pais tanto quanto citar o próprio cânon bíblico. No Quinto Concilio Ecumênico, o Segundo Concilio de Constantinopla (553), foram condenados diversos estudiosos bíblicos antigos, entre eles até os maiores representantes da igreja alexandrina (Orígenes, Dídimo, o Cego), bem como da escola de Antioquia (Diodoro de Tarso, Teodoro de Mopsuéstia). Em decorrência disso, a maior parte de seu trabalho se perdeu, embora trechos tenham sido recuperados recen­ temente em siríaco e em outras versões. Foi durante essa época que o Oriente e o Ocidente começaram a se distanciar, embora a igreja romana tenha permane­ cido como uma espécie de ponte entre os dois, de modo que seu afastamento do Oriente foi um processo lento.

Os intérpretes e suas obras Seguindo a periodização adotada na seção anterior, descrevemos a seguir os principais intérpretes e suas obras:

Antes de 200 Marcião (m. c. 144). Ele acreditava que o Deus do Antigo Testamento era uma divindade inferior ao Pai de Jesus Cristo, porque era o criador (“demiurgo”) da matéria intrinsecamente má. Era necessário, portanto, purificar a revelação

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cristã de seus elementos judaicos primitivos e indignos da verdadeira religião. Na opinião de A dolf von Harnack (1851-1930), Marcião foi um restaurador da teologia paulina em face de tendências judaizantes, mas essa ideia nunca foi am­ plamente aceita. A base filosófica da rejeição radical do Deus criador defendido por Marcião estava no platonismo, que considerava a matéria má e sustentava que a salvação consistia na separação entre a alma e a matéria. Seu programa de “purificação” radical do Novo Testamento reduziu o texto canônico a LucasAtos e às epístolas paulinas, mas nem mesmo estas podiam ser compreendidas fora de seu contexto judaico, precisando ser purificadas. O projeto hermenêutico de Marcião praticamente destruiu o Novo Testamento junto com o Antigo, e a igreja nunca se sentiu tentada a seguir seu exemplo, por mais que ela possa ter alegorizado e até mesmo ignorado as Escrituras judaicas. Os gnósticos. Eram um grupo confuso de mestres pseudofilosóficos, os quais compartilhavam uma cosmovisão, mas não constituía uma seita unida. Os seus nomes (Valentino, Basílides, Hermógenes etc.) são conhecidos por causa de seus seguidores e adversários, mas é difícil distinguir quem eles foram, onde e quando viveram ou até mesmo o que ensinaram. O fenômeno gnóstico pode ter estado presente em círculos judaicos até mesmo antes do início do cristianismo, mas as principais evidências gnósticas vêm da época do Novo Testamento e depois dela. A sua convicção básica era que Deus era totalmente distinto de sua criação e que conhecê-lo implicava uma transformação mental e espiritual ao alcance somente dos eleitos, que possuíam um conhecimento superior {gnõsis). Textos do gnosticismo, muitos dos quais funcionavam como “Escrituras” nos círculos gnósticos, foram recuperados em décadas recentes, em especial em Nag Hammadi no Egito (1946). Tentou-se demonstrar que eles representam uma forma alternativa (e até mais autêntica) de cristianismo que acabou sendo proibida pela igreja dominante, mas essa análise não resiste a uma investigação séria. Seus ensinos eram secretos e estranhos, mas, apesar da considerável atração que evidentemente exerceram em alguns lugares, não apresentaram nenhuma ameaça a longo prazo para os textos públicos e acessíveis da revelação cristã dominante. Justino M ártir (m. 156). Escreveu três tratados que ainda existem: um so­ bre o rabino judeu Trifão (é possível que deva ser identificado com certo Tarfão mencionado na M ishná) e duas apologias. Ao escrever contra conceitos pagãos equivocados a respeito do cristianismo, Justino defendeu a antiguidade da re­ velação do Antigo Testamento, que profetizou a vinda de Cristo. Ele também afirmou que Platão e os filósofos gregos haviam lido Moisés, de quem obti­ veram suas melhores ideias. Escrevendo contra os judeus, Justino adotou uma

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linha um tanto diferente. Os profetas eram sua principal linha de defesa, mas ele argumenta que a interpretação judaica, que ele parece conhecer bastante, era insípida e “carnal”. Os cristãos, em contrapartida, praticavam uma interpretação “espiritual” e cristocêntrica das Escrituras. Essa postura o levou a usar um pouco de tipologia, embora nunca tenha abandonado o significado histórico do texto bíblico. Fez distinção entre os typ oi (tipos), que se aplicavam aos acontecimentos em que o Espírito Santo retratava uma realidade do futuro, e os logoi, profecias verbais de acontecimentos futuros. M elitão de Sardes (fl. c. 170). Bispo de Sardes, M elitão foi tido em alta estima em sua própria época como defensor da ortodoxia cristã contra vários movimentos heréticos. De seus muitos escritos, somente um foi preservado, sua homilia pascal. No entanto, ele é conhecido por ter escrito seis livros sobre a Lei e os Profetas do Antigo Testamento. Um fragmento de sua obra contém a mais antiga lista conhecida de livros do Antigo Testamento. Ireneu (m. c. 200). Sua famosa polêmica contra os hereges (Adversus om nes haereses [ Contra as heresias]) apresenta-nos com clareza uma ideia do modo como ele pensava que a Bíblia devia ser lida. Ireneu inspirou-se na distinção de Justino entre typoi e logoi e a ampliou, integrando ambos em seu mais importante princípio de interpretação, a doutrina da recapitulação, que controlava sua visão da história. Desde a Queda de Adão e Eva até a vinda de Cristo, o mundo se afundou cada vez mais no pecado. Por fim, Deus enviou seu Filho (o novo Adão) para nascer de uma mulher (a nova Eva), e por meio deles colocou a raça humana no caminho da salvação e da vida eterna. O que tinha dado errado sob o Antigo Testamento estava agora sendo corrigido sob o Novo. No fim dos tempos, o universo voltaria à sua perfeição original, e a obra salvífica de Cristo seria plenamente concretizada. Nesse contexto, Ireneu mostrou-se disposto a aceitar que Deus se revelava em estágios, de acordo com a capacidade humana para absorver as verdades espiritu­ ais, e que algumas partes das Escrituras, portanto, haviam se tornado obsoletas ao longo do tempo. Sua visão cíclica da história excluía a ideia de que a humanidade avançou de um estágio inferior para um estágio superior de consciência religiosa, e, em vez disso, ele afirmava que a revelação tinha o objetivo de levar as pessoas de volta ao conhecimento de Deus que Adão desfrutava antes da Queda. T ertuliano (fl. c. 196-c. 212). Atacou diferentes hereges da linha gnóstica, bem como Marcião, e, em sua grande obra apologética acerca das prescrições sobre os hereges (D e pra escrip tion e haereticorum [A prescrição dos hereges]), defendeu a visão de que somente os cristãos tinham condições de compreender o verdadeiro significado das Escrituras, pois apenas eles estavam em sintonia

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com Deus, seu autor. Em contraste com Ireneu, sua hermenêutica se baseava em uma visão linear da história, de acordo com a qual o Antigo Testamento, ou a revelação de Deus Pai, havia sido dado aos profetas, e o Novo Testamento, ou a revelação de Deus Filho, aos apóstolos. A revelação do Espírito Santo estava con­ tida na chamada “nova profecia”, concedida a certo Montano e seus seguidores (c. 171).Tertuliano foi mais cauteloso do que normalmente se imagina na atribuição de condição canônica às profecias montanistas, mas a lógica de seu pensamento é clara o bastante. Tertuliano se opunha fortemente ao platonismo e, portanto, achava difícil aceitar a exegese alegórica das Escrituras. Seu método de interpre­ tação, de modo geral, era literalista, mas ele precisou admitir que não era possível interpretar todas as coisas dessa perspectiva. Ele considerava o Novo Testamento uma nova lei (n ova lex) a ser cumprida pelos cristãos com um rigor espiritual desconhecido pelos escribas e fariseus, considerados dissolutos e hipócritas. A exegese desse período culminou em comentários do Antigo Testamento, normalmente atribuídos a H ip ó l it o (fl. c. 200), sobre Daniel, Cântico dos Cânticos e partes do Pentateuco. Essas obras representam a transição para a composição escrita de comentários, que na época eram um novo tipo de in­ terpretação bíblica. Em sua técnica hermenêutica, Hipólito geralmente seguia Ireneu, embora sua ênfase teológica fosse mais cristológica do que escatológica.

De 200 a 325 F ilo de A lexandria (m. c. 50). Embora tenha vivido e escrito bem antes do terceiro século e não fosse cristão, mas judeu, Filo exerceu sua principal influên­ cia desse período em diante, e assim é mais apropriado tratar dele aqui. Sendo platônico, Filo acreditava que Platão obteve suas melhores ideias de Moisés e que, portanto, o judaísmo podia se apresentar como a verdadeira filosofia. Ele também tinha ligações com os estoicos. Seguindo métodos de interpretação platônicos empregados na análise de poemas homéricos, Filo adaptou técnicas alegóricas para seus comentários sobre o Pentateuco. A essência da alegoria é a convicção de que acima e além do significado literal de um texto há um sen­ tido mais elevado (ou talvez vários sentidos mais elevados). Usando a alegoria, Filo conseguia solucionar dificuldades ou afirmações desagradáveis no Antigo Testamento, declarando que continham um significado oculto de valor espiri­ tual, mesmo que o sentido literal fosse inaceitável para a maioria das pessoas. Não sabemos se Filo conhecia hebraico, nem podemos afirmar até que ponto estava familiarizado com desenvolvimentos hermenêuticos entre os rabinos na

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Palestina da época. H á afinidades entre seu tipo de exegese e a de Qumran, embora não pareça que ele tenha tido contato direto com essa comunidade. Hoje, as pesquisas tendem a dar maior ênfase à sua condição como judeu, mas isso não deve ocultar o fato de que ele era um judeu bastante helenizado que escrevia principalmente para outros como ele. Filo era um modelo natural para exegetas cristãos que, como ele, haviam sido instruídos em teorias platônicas de análise literária. A redescoberta de Filo e a aceitação de seus métodos herme­ nêuticos entre os cristãos levou a um desenvolvimento da exegese alegórica que ultrapassou outras práticas na igreja antes de 200 d.C. » Clem ente de A lexandria (fl. c. 200). Acima de qualquer outro mestre cristão, Clemente foi responsável por introduzir na igreja uma exegese baseada em Filo. Essa iniciativa fazia parte de um plano geral que visava basear a fé cristã em um fundamento científico sólido. Suas razões eram evangelísticas; Clemente queria mostrar para o mundo helênico que o cristianismo era o cumprimento tanto da filosofia grega quanto do Antigo Testamento. A exemplo de Filo e Justino antes dele, Clemente defendia que Platão obteve suas melhores ideias de Moisés, de modo que o platonismo tinha origem bíblica. Em Strom ata (ou Strom ateis [Miscelânea]), ele esboçou o papel da verdadeira gn õsis cristã, a qual, em contras­ te acentuado com a dos hereges, continha uma exigência de perfeição moral, bem como intelectual. Orígenes (c. 185-c. 254). Não importa o critério que se adote, Orígenes foi o maior estudioso bíblico da antiguidade. Ele compôs uma Hexapla (seis versões) do Antigo Testamento, em que dispôs em colunas paralelas o texto hebraico, sua transliteração em letras gregas, a Septuaginta e três outras versões gregas (as de Áquila, de Símaco e de Teodócio, todas do segundo século d.C.). Foi um dos raros estudiosos de hebraico da igreja e procurou estabelecer o sentido literal do texto bíblico como base para o desenvolvimento de sua exegese alegórica. No entanto, Orígenes considerava o texto das Escrituras uma forma externa e perecível que tanto ocultava como revelava verdades espirituais eternas. Uma separação funda­ mental entre a palavra e o espírito caracterizava sua interpretação e a distinguia radicalmente tanto da tradição rabínica como da tradição do Novo Testamento. Seguindo o exemplo de Filo, Orígenes escreveu comentários sobre livros bíbli­ cos, o primeiro cristão a fazê-lo. A maior parte de sua obra foi destruída no quinto século, quando caiu em desgraça perante a igreja e foi condenado por heresia, mas ainda existem fragmentos de seus comentários de Cântico dos Cânticos, Mateus, João e Romanos. Além destes, escreveu muitas notas exegéticas breves (Scholia) sobre Exodo, Levítico, Isaías, Salmos 1— 15, Eclesiastes e o Evangelho de João,

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algumas das quais estão parcialmente preservadas em outras obras. Além disso, há também 574 sermões (homilias), dos quais 186 foram preservados principalmente em traduções para o latim feitas por Rufino ou Jerônimo no final do quarto século. Elas são de grande valor, porque nos mostram que a interpretação das Escrituras feita por Orígenes era guiada por um profundo interesse espiritual que não se percebe de imediato em seus escritos mais teóricos. A sua mais importante obra de interpretação bíblica é o livro sobre os primeiros princípios (De prin cipü s ou P eri archón [Osprincípios^), em que desenvolve suas teorias alegóricas. D ionísio de A lexandria (fl. c. 230-265). Discípulo de Orígenes, Dionísio é sob muitos aspectos um caso à parte na exegese antiga. Ele não rejeitou a exegese alegórica, mas esta desempenhou uma função relativamente secundária em sua obra. Ele tinha muito mais interesse em questões históricas e literá­ rias, e hoje é lembrado principalmente por negar que João, autor do Evangelho, também foi autor do livro de Apocalipse. O último livro da Bíblia ainda era alvo de muitos debates na igreja oriental (embora relativamente bem aceito no Ocidente), e Dionísio ajudou a manter viva essa disputa durante um século ou mais depois disso.

De 325 a 451 O melhor modo de classificar os autores desse período é subdividindo-os em alexandrinos e antioquenos (falantes de grego), ocidentais (falantes de latim) e orientais (falantes de siríaco e armênio).

Alexandrinos Á rio (c. 256-c. 336). Embora muitas vezes seja considerado antioqueno por ter negado a divindade de Cristo, Ario foi sacerdote da igreja alexandrina e acabou sendo visto como seu “arqui-herege”. Ele afirmava que Jesus era uma criatura divina que surgiu no tempo, embora não na mesma estrutura tempo­ ral e espacial do restante da criação. Ele fundamentou sua visão em diversas passagens bíblicas, em especial Provérbios 8.22ss., que na sua opinião era uma profecia que apontava para Cristo. A plausibilidade dessa interpretação muito literalista o tornou bastante perigoso para o grupo “ortodoxo” na igreja, e Ário se revelou extremamente difícil de ser derrotado. No entanto, sua convicção de que Cristo era um ser temporal que surgiu fora da estrutura normal de tempo e espaço foi considerada autocontraditória e rejeitada pela igreja dominante. Ele também usou o método de interpretação bíblica que veio a ser conhecido como

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o método dos “textos de prova”, insatisfatório porque expunha versículos fora do contexto e distorcia seu verdadeiro significado. O que Ário não compreendia era o sentido subjacente das Escrituras, que não podia ser reduzido às declarações verbais de certos textos isolados. Atanásio de Alexandria (c. 296-373). Teólogo supremo da igreja alexandrina e grande defensor da ortodoxia contra os arianos, Atanásio desenvolveu uma her­ menêutica sofisticada para responder à ameaça apresentada por Ário. Ele queria que a igreja compreendesse toda a extensão da história redentora, que ele tratava de forma mais histórica do que Filo ou Orígenes. Ao mesmo tempo, estava con­ vencido de que havia elementos da revelação de Deus em Cristo que não podiam ser interpretados literalmente: por exemplo, a afirmação de Jesus na cruz de que estava com sede ou sua admissão de ignorância sobre a data da segunda vinda. Como Jesus era Deus, Atanásio acreditava que ele não poderia ter sido limitado de modo tão humano e disse que o Filho se adequou à compreensão humana. Os antioquenos questionaram essa visão bastante insatisfatória da humanidade de Cristo, mas a questão nunca foi plenamente resolvida na igreja antiga. Hoje existem somente fragmentos de suas obras exegéticas, mas é possível obter uma boa noção dessa abordagem a partir dos três discursos contra os arianos (O rationes contra A rianos [Discursos contra os arianos]), que contêm seus principais argu­ mentos contra o método dos “textos de prova” de Ário. Dídimo, o Cego (319-398) foi o mais prolífico comentarista da escola de Alexandria. Assim como Atanásio, Dídimo foi mais reservado do que Orígenes no uso de alegorias, mas não rejeitou o método completamente. Seu comentário de Gênesis está preservado por inteiro; há também fragmentos de comentários de Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Isaías, Oseias, Zacarias, João e Atos, mas outros se perderam. Ele foi um forte defensor de Orígenes em uma época em que as ideias deste estavam sendo atacadas, e ele mesmo foi condenado pelo Quinto Concilio Ecumênico (Constantinopla, 553). Por essa razão, a maioria de suas obras não foi preservada. Cirilo de Alexandria (m. 444) foi um prolífico comentarista das Escrituras e polemista teológico nos moldes de Atanásio. Ele costumava seguir a tradição alexandrina em seus comentários do Antigo Testamento, mas era menos deter­ minado do que Orígenes na busca de um significado cristológico em todos os textos. Seus comentários do Novo Testamento são mais literalistas, mas assim mesmo fracos no aspecto da análise histórica e filológica. Entre seus comentá­ rios preservados encontram-se Isaías, Profetas Menores, Lucas e João. Ainda há fragmentos mais extensos de comentários de Reis, Salmos, Provérbios, Cântico

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dos Cânticos, Jeremias, Ezequiel e Daniel. Também muito importante é seu livro sobre a adoração a Deus em espírito e em verdade (D e adoratione et cultu in spiritu et verita te [A adoração e o culto em espírito e em verdade]), em que fornece uma exegese alegórica e tipológica de passagens aleatórias do Antigo Testamento, a fim de demonstrar que a lei foi abolida na letra, mas não em espírito. Evágrio do Ponto (345-399). Monge cujos escritos espirituais foram de enor­ me influência no misticismo cristão oriental. Escreveu comentários de Jó, Salmos e Provérbios, preservados em fragmentos. Também há partes de um comentário perdido de Lucas, e, ao que tudo indica, também escreveu sobre Números, Reis e Cântico dos Cânticos. Seus métodos exegéticos sofreram grande influência de Orígenes; foi condenado juntamente com Dídimo e Orígenes em 553. Gregório de Nissa (330-c. 395). Irmão de Basílio de Cesareia (veja adiante em exegetas “antioquenos”) e um dos grandes pais capadócios, Gregório não era realmente alexandrino, mas sua interpretação bíblica deve mais a essa escola de exe­ gese do que a qualquer outra. Duas exceções são suas obras sobre a criação, escritas a pedido de outro irmão, Pedro de Sebaste. A primeira delas (D e opificio hom inis \Sobre a criação do homem\) tem o objetivo de ser a continuação da obra de seu irmão Basílio sobre os seis dias da Criação (veja abaixo), e a segunda (Explicatio apologetica in hexaemeron [Comentário apologético sobre os seis dias da Criação]) igualmente almejava elucidar a obra de Basílio. Nas duas, ele segue a exegese literalista de seu irmão e evita a alegorização que costumava usar livremente em outros textos.

Antioquenos Eusébio de Cesareia (c. 263-c. 340). Grande estudioso da Bíblia, Eusébio foi res­ ponsável, juntamente com seu amigo Panfílio, por preparar uma edição crítica da Septuaginta de Orígenes e outra do Novo Testamento. Muitos dos manuscritos bíblicos preservados remetem aos códices que eles prepararam. Eusébio também foi pioneiro dos estudos dos Evangelhos. Embora não tenha sido o primeiro a tentar uma harmonia dos Evangelhos, foi de longe o mais sistemático estudioso da Bíblia que o mundo antigo produziu. Começando pelo pressuposto de que Mateus era o Evangelho mais antigo, ele os dividiu de acordo com as passagens comuns aos quatro, passagens comuns aos Sinóticos, passagens comuns a dois dos Sinóticos e a João, passagens comuns a somente dois Evangelhos e passagens únicas em cada Evangelho. Seu sistema, os chamados cânones eusebianos ou seções eusebianas, foi traduzido tanto para o siríaco como para o latim e adotado por Jerônimo. Além disso, Eusébio escreveu sobre os profetas e o livro de Salmos,

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e também redigiu dois livros que tratavam de discrepâncias aparentes nos relatos do nascimento e da ressurreição de Jesus nos Evangelhos. Somente fragmentos desses textos foram preservados, mas não há dúvida de que esses livros prestaram uma grande contribuição para a crítica bíblica. Eusébio também preparou um O nom asticon, ou dicionário geográfico de locais bíblicos, que descreve todos os lugares mencionados na Bíblia. Ele foi traduzido para o latim e corrigido por Jerônimo, e ainda é a mais importante fonte para nosso conhecimento da topografia palestina. Em sua origem, fazia parte de uma obra maior, que tratava de outros aspectos da geografia bíblica, mas essa obra não existe mais. Entretanto, há dois comentários muito extensos, um de Salmos e outro de Isaías. Grande parte do primeiro foi reconstruída a partir de fragmentos preservados, mas não há nenhum manuscrito completo. Antes de 1934, eram conhecidos somente fragmentos do comentário de Isaías, mas uma cópia completa foi descoberta e publicada. Fica nítido que Eusébio seguia Orígenes muito de perto, e isso surpreende um pouco, visto que ele estava muito mais interessado em detalhes históricos e críticos do que Orígenes. Diodoro de Tarso (m. c. 394). Não importa o critério que se adote, Diodoro foi um dos maiores estudiosos e mestres da escola de exegese antioquena. Foi tido em altíssima estima durante sua própria vida, mas condenado em Constantinopla em 449 como aquele que deu origem ao nestorianismo. Ao que parece, escreveu comentários sobre todo o Antigo Testamento e também sobre a maior parte do Novo, se não sobre todo ele. Com exceção de fragmentos, todos esses textos se perderam. Como exegeta, Diodoro rejeitou a alegorização prati­ cada em Alexandria e se limitou ao método histórico-gramatical. Seu principal interesse era expor o sentido que o autor original tinha em mente, em vez de encontrar significados ocultos no texto. Teodoro de Mopsuéstia (m. 428). Discípulo de Diodoro, Teodoro foi igualmente condenado por nestorianismo (que ensinava que as duas naturezas de Cristo eram autônomas e tinham uma ligação apenas superficial na pessoa de Cristo), embora isso não tenha ocorrido antes de 553. Seus escritos esti­ veram perdidos durante muito tempo no mundo ocidental, mas vários foram descobertos nos últimos tempos em manuscritos orientais. A igreja nestoriana sempre o venerou como seu principal expoente das Escrituras. Ele escreveu co­ mentários de quase todos os livros da Bíblia, que se destacam por suas ousadas investigações críticas de autoria e data. Sua abordagem de questões lingüísticas e históricas é altamente científica e pode ser comparada com comentários moder­ nos. Além disso, ele foi o primeiro estudioso da Bíblia a usar técnicas de crítica

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literária na exegese. Sua abordagem geral era literalista e antialegórica, embora ele desse algum valor à tipologia. O único comentário do Antigo Testamento de Teodoro preservado em gre­ go é o dos Profetas Menores, provavelmente por não conter nada controverso. No entanto, hoje também existem um trecho substancial de seu comentário de Gênesis em uma tradução siríaca e uma versão siríaca quase completa de seu comentário de Salmos. Quanto ao Novo Testamento, temos fragmentos subs­ tanciais de seu comentário das quatro principais epístolas paulinas (Romanos, 1 e 2Coríntios e Hebreus) e uma versão latina completa de seu comentário sobre o restante dos textos paulinos. Também existe hoje uma versão siríaca completa de seu comentário de João. João Crisóstomo (c. 347-407). Dentre todos os membros da escola antioquena, João foi o único cuja reputação sobreviveu à crise nestoriana. Além disso, ele sempre foi o mais famoso dos pais gregos, constantemente lido e elogiado desde seu tempo até a presente época. É possível encontrar sua obra exegética principal no grande número de homilias preservadas. Elas são singulares pelo modo notável como ele detecta o sentido espiritual no texto bíblico em seu significado literal, em vez de alegórico, e por conseguir aplicá-lo às necessidades espirituais imediatas de seu rebanho. A profundidade de sua compreensão e a solidez de sua exposição são singulares e sobreviveram à passagem do tempo, de modo que ainda hoje sua leitura é proveitosa. A série de sermões preservados abrange Gênesis, Salmos e Isaías, no Antigo Testamento, e M ateus, João, Atos e as epístolas paulinas (incluindo Hebreus) no Novo. Teodoreto de Cirro (c. 393-c. 466). Último dos grandes exegetas antioquenos, Teodoreto viveu para assistir à condenação de Nestório em Calcedônia, em 451, acontecimento do qual participou contra sua vontade. Continuou sendo reconhecido como ortodoxo durante a vida, mas alguns de seus escritos foram condenados em 553. Em relação a seus antecessores, Teodoreto adota uma espécie de posição intermediária entre Antioquia e Alexandria. Sua ênfase interpretativa principal é literalista, mas ele faz concessões a explicações tipológicas ou alegóricas quando estas parecem preferíveis. Seus escritos exegéticos sobrevivem em grande parte e consistem em um comentário estilo “perguntas e respostas” do Octateuco (Pentateuco, Josué, Juizes e Rute) bem como mais um comentário de Reis no mesmo estilo (incluindo Samuel) e Crônicas. Ainda há comentários de Salmos, Cântico dos Cânticos, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Profetas Menores e das catorze epístolas paulinas (incluindo Hebreus). Seu co­ mentário de Isaías se destaca pela excelência e revela um uso mais moderado

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da exegese alegórica na interpretação de passagens messiânicas. Ele mostra seu lado mais alegórico no comentário de Cântico dos Cânticos, que ele interpreta associando os elementos a Cristo e à igreja. Basílio de Cesareia (329-379). Embora não fosse estritamente antioqueno, a ligação mais forte da obra de Basílio é com a escola de Antioquia. Ele não escreveu comentários bíblicos, e sua exegese é conhecida principalmente por meio de suas homilias, das quais nove delas sobre os seis dias Criação (In hexaemeron [Sobre os seis dias da Criação]) são sua obra-prima. Também foram preservadas oito homilias sobre Salmos. Um comentário de Isaías que era atribuído a ele é hoje considerado espúrio. Basílio evitava todo tipo de exegese alegórica e prestou atenção especial ao pensamento científico contemporâneo em sua exposição de Gênesis. Embora agora estejam cientificamente desatualizadas, suas homilias for­ necem um modelo de exposição ainda acessível aos que hoje estudam as Escrituras. Outros exegetas antioquenos, cujas obras foram preservadas somente em fragmentos, são A c á c io de C e s a r e ia , E u sé b io de E m e s a e A p o l in á r io de L a o d ic e ia , autores que escreveram em c. 340-c. 360. Eles parecem ter se con­ centrado principalmente no Pentateuco.

Ocidentais (latim) Durante os anos de ouro dos concílios, a igreja ocidental apresentou um retrato bem diferente da igreja oriental. A li havia bem menos centros de atividade teo­ lógica e menos teólogos ou estudiosos da Bíblia. Antes do Primeiro Concilio de Éfeso (431), o Ocidente não se envolvia nas decisões da igreja no mesmo nível que o Oriente, e esse envolvimento não foi uma experiência exatamente venturosa. Dois séculos depois, Máximo, o Confessor, que falava grego, ainda lamentava o fato de que o latim não era uma língua bem adaptada para a argu­ mentação teológica. O que lhe faltava em quantidade, no entanto, o Ocidente se empenhou para compensar em qualidade. Um fator muito positivo foi o fato de seu pri­ meiro teólogo ter sido um homem da estatura de Tertuliano. Apesar de suas relações difíceis com a igreja, Tertuliano e seus escritos continuaram inspirando as gerações seguintes; embora a certa altura tenha sido condenado por heresia, ninguém se importou muito com isso. Sua obra e seu método teológico continu­ aram estabelecendo um padrão que poucos na igreja ocidental desejaram rejeitar. Na verdade, a exegese em latim começa com V it o r in o de P e t t a u (m. 304), que escreveu sobre Gênesis e Apocalipse, e R e t íc io de A u t u n (fl. c. 400), que

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escreveu sobre Cântico dos Cânticos. Esses dois homens tendiam ao literalismo e foram pouco influenciados por Orígenes. Influências orientais, no entanto, foram proeminentes, em especial em au­ tores latinos que tinham contato próximo com autores gregos. Assim foi, por exemplo, no caso de H il á r io d e P o it ie r s (fl. c. 350-367), cujo comentário de Salmos, preservado até hoje, evidencia a influência alegorizante de Orígenes. O mesmo aconteceu com A m b r ó s io d e M il ã o ( c . 337-397), que seguiu a ten­ dência alegorizante de Orígenes e seus defensores, embora com forte ênfase nos aspectos tipológicos e morais da alegoria. De suas vinte ou mais obras exegéticas, metade delas trata de diferentes episódios em Gênesis. A maioria parece ter origem homilética e se concentra em denúncias contra vários hereges e imorais. O restante, em sua maioria, trata de outros temas do Antigo Testamento e tam­ bém tem uma forte tendência moral. Somente uma obra diz respeito ao Novo Testamento: um comentário de Lucas mais fiel ao texto do que normalmente acontece em Ambrósio. No entanto, a interpretação alegórica tem grande proeminência até mesmo nessa obra. Bem diferente deles foi M á r io V it o r in o (fl. c. 350-360), que escreveu co­ mentários rigorosamente literais sobre as epístolas paulinas. Esses comentários apresentam uma inclinação nitidamente antijudaica e mostram que o conheci­ mento que ele tinha do Antigo Testamento era rudimentar. No entanto, ele foi amplamente responsável pelo renascimento dos estudos paulinos no mundo de língua latina. Ambrosiastro (fl. c. 370). Desde a época de Erasmo, esse nome foi atribuído a um autor desconhecido de um comentário das epístolas paulinas que havia si­ do preservado sob o nome de Ambrósio de Milão. Ê um texto exegético de alto nível, que evita a alegoria em favor do sentido literal e histórico do texto, embora permita certo grau de tipologia. Também foi atribuída a Ambrosiastro uma obra que trata de dificuldades no Antigo e no Novo Testamentos, preservada entre as obras de Agostinho. Ticônio (fl. c. 370-400). Ticônio foi uma espécie de excêntrico, um adepto da seita donatista no norte da África que rompeu com ela sem se tornar parte da igre­ ja dominante. Ele redigiu um famoso comentário sobre Apocalipse, fragmentos do qual foram preservados. Sua abordagem é completamente alegórica e associa as imagens do livro à relação entre Cristo e a igreja. Desse modo, ele rompeu com a interpretação milenarista comum antes de sua época e estabeleceu o que se tornaria a interpretação medieval comum. É conhecido principalmente por seu L iber regularum (ou L iber de septem regulis [Livro das sete regras]), preservado

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intacto, aparentemente o primeiro manual sobre hermenêutica bíblica escrito no Ocidente. Até mesmo Agostinho, que não tinha simpatia alguma pelos donatistas e deve ter considerado a eclesiologia de Ticônio difícil de digerir, valorizava esse livro e o elogiou. O livro oferece sete regras segundo as quais as Escrituras devem ser lidas e, embora não seja predominantemente alegórico, permite o uso de alego­ rias em casos em que é útil para edificar o leitor, que, de outra forma, poderia ser confrontado com uma passagem difícil ou ambígua das Escrituras. Jerônim o (c. 347-419). Foi certamente o maior estudioso da Bíblia na igreja latina. Com seu amigo Rufino, traduziu um grande número de obras teológicas do grego para o latim, começando com a própria Bíblia. Versões em latim da Bíblia (conhecidas coletivamente como Vetus, latina, a A ntiga Latina) circula­ vam já havia algum tempo, mas eram insatisfatórias. A pedido de Dâmaso, bispo de Roma, Jerônimo realizou uma nova tradução baseada no texto hebraico do Antigo Testamento e na Hexapla de Orígenes. O resultado foi uma tradução magistral que, junto com os livros deuterocanônicos depois acrescentados, ficou conhecida como Popular ou “Vulgata”. A Vulgata se consolidou como a principal versão das Escrituras em latim, e durante mais de m il anos foi o texto-padrão da igreja ocidental. Sua autoridade não foi seriamente questionada antes da época de Erasmo. Além disso, Jerônimo também preparou uma tradução de Salmos, que correspondia mais à Septuaginta do que ao hebraico. Essa versão foi adap­ tada para o uso litúrgico na Gália carolíngia, e assim ficou conhecida como O saltério gaulês. Ela continuou sendo usada na igreja católica até 1950, quando foi dada a permissão para o uso de uma versão em latim mais recente. Sob a influência de Gregório de Nazianzo, Jerônimo começou a tradu­ zir diversas homilias de Orígenes sobre os profetas e duas sobre Cântico dos Cânticos. M as, à medida que aumentava o conhecimento que Jerônimo tinha de hebraico e exegese judaica, também diminuía sua atração por Orígenes. Quando começou a controvérsia sobre as obras de Orígenes (c. 393), Jerônimo se posi­ cionou a favor dos antiorigenistas e rompeu com a tradição alegórica, ao menos teoricamente. Isso também levou a um rompimento de relações com Rufino, que nessa época começou a traduzir as obras de Orígenes para o latim. A obra exegética de Jerônimo reflete a mudança de seu pensamento e eviden­ cia seu afastamento de Orígenes e sua volta para o hebraico. Seus comentários de Eclesiastes e Salmos pertencem à sua fase origenista, ao passo que o de Gênesis marca a transição. Sua obra posterior sobre os Profetas Menores pertence à sua fase antiorigenista, mas é impressionante como ele já estava preparado para adap­ tar o material origenista à sua exposição espiritual do texto. Seus comentários do

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Novo Testamento também refletem um antiorigenismo, sobretudo em questões doutrinárias, embora, repetindo, sua rejeição da alegoria tenha sido mais aparente do que real. Apesar do que afirma, Jerônimo permaneceu proximamente ligado aos métodos de Orígenes. H á um comentário de Mateus, outro das epístolas paulinas e um de Apocalipse. Este último é, na verdade, pouco mais que uma reformulação de um comentário anterior de Vitorino de Pettau, embora tenha atualizado o comentário anterior ao se referir a Ticônio. Pelágio (fl. c. 384-c. 420). Hoje conhecido como um dos maiores hereges da igreja primitiva, Pelágio foi um monge britânico que lecionou em Roma de 384 até 410. Suas posições sobre graça e salvação atraíram a atenção de Agostinho de Hipona, que começou a atacá-las em cerca de 412. Seu comentário das epís­ tolas paulinas, que deve muito a Ambrosiastro, foi preservado sob os nomes de Jerônimo e Primásio de adrumeto. Agostinho de Hipona (354-430). Como o maior dos pais latinos, a reputa­ ção de Agostinho se fundamenta em suas obras teológicas e não nas exegéticas. Ele se opôs ao fato de Jerônimo usar o texto hebraico, e não a Septuaginta, por­ que considerava isso uma postura judaizante. Os apóstolos muitas vezes usavam a Septuaginta em suas citações do Novo Testamento, o que levou Agostinho a afirmar que a tradução grega tinha a qualidade de Escrituras inspiradas, em pé de igualdade com o texto hebraico. Essa visão triunfou na igreja ocidental, e foi somente na época da Reforma que a posição de Jerônimo foi vindicada. Sua extensa produção literária inclui catorze obras exegéticas de diferentes tipos. Agostinho escreveu um tratado sobre a doutrina cristã (D e doctrina christiana \_Adoutrina cristãj), que contém sua teoria da interpretação bíblica. Em sua essência, esse tratado é uma ampliação do pensamento de Ticônio, a quem ele considerava simplista demais. Essa obra também nos fornece sua teoria do cânon, a qual dizia que a autoridade dos livros bíblicos é derivada de sua aceitação pelas sés apostólicas. Quanto maior a aceitação, maior era a autoridade de um livro específico. Agostinho escreveu comentários de livros do Antigo Testamento, em par­ ticular de Gênesis, a princípio interpretado alegoricamente e depois de modo “literal”. Ele também escreveu sobre as passagens difíceis nos primeiros sete livros do Antigo Testamento, e mais tarde sobre oito passagens selecionadas do texto como um todo. Também há um livro de notas sobre Jó, reunidas por alguns de seus discípulos, e outro livro bastante extenso sobre Salmos (E narrationes in Psalm os [C om entário aos Salmos\), que consiste principalmente em homilias alegóricas. Assim como Jerônimo, Agostinho rejeitou o método alegórico na teoria, mas continuou a usá-lo na prática.

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Os comentários de Agostinho sobre o Novo Testamento incluem dois livros sobre o Sermão do M onte, duas obras sobre Romanos e uma sobre Gálatas. Os comentários dos livros de Paulo seguem uma exegese literalista, mas (talvez surpreendentemente) nunca foram muito lidos. Também havia um comentário sobre Tiago, que depois se perdeu. M ais importantes são seus escritos sobre os Evangelhos, num total de sete livros. Quatro deles tratam especificamente do problema de discrepâncias nas narrativas dos Evangelhos, e normalmente são reunidas como uma só obra, D e consensu eva n gelista ru m [H arm onia dos Evangelhos]. Agostinho geralmente enfrentava os problemas He uma perspectiva literalista, embora muitas vezes também tenha escorregado para a alegoria, sobretudo ao lidar com milagres e parábolas.

Orientais (síríaco e armênio) O quarto século testemunhou um florescimento notável de literatura em siríaco, dialeto do aramaico, que era a língua que Jesus falava. Infelizmente, as traduções siríacas do Novo Testamento (P eshitta) refletem o texto grego mais do que o aramaico original de Jesus. O mesmo é parcialmente verdadeiro a respeito do Antigo Testamento, grande parte do qual parece ser uma tradução da Septuaginta. No entanto, ficou demonstrado que pelo menos o Pentateuco, como possivelmente também o Saltério, dependem de uma tradição targúm ica e, portanto, têm ligação direta com a exegese rabínica. A literatura exegética siríaca está principalmente associada com E f r é m , o S ír io (306-373), que escreveu comentários no estilo literalista de Antioquia. E m siríaco, há comen­ tários de Gênesis e Êxodo, enquanto suas outras obras, sobre o D iatessaron de Taciano, sobre Atos e sobre as epístolas paulinas, estão preservadas em traduções armênias. Na Armênia, o grande expositor bíblico nativo foi M e sr o b ( M e s r o p ) (m. 440), que conduziu a tradução de um grande número de obras do grego para o siríaco. Ele também patrocinou, embora provavelmente não tenha escrito, co­ mentários de Josué e Juizes. Durante as controvérsias cristológicas do quinto século, as igrejas da Síria e Armênia estavam separadas das igrejas de Roma e Constantinopla e acabaram se tornando o que agora chamamos de “monofisistas”, por causa de sua convic­ ção de que o Cristo encarnado tinha somente uma natureza (divina), e não duas naturezas, como o Concilio de Calcedônia (451) havia afirmado. Sua interpreta­ ção bíblica permaneceu congelada nos textos clássicos desde essa época.

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Hi s t ó r ia da in t e r p r e t a ç ã o b íb l ic a

De 451 a 604 A ú ltim a fase d a exegese p atrístic a se caracteriza p rin c ip a lm en te p o r u m a re la tiva p ob reza. H á som en te n o ve co m en tá rio s p reservad o s d o p e río d o e n tre os séculos d o C o n c ilio de C a lc e d ô n ia

(451) e do S eg u n d o C o n c ilio de N iceia (787), apesar

do in te n so d ebate teo ló g ico que caracterizo u esse p e río d o , e n e n h u m deles tem v a lo r real. T od o s m en o s u m (de A to s ) se co n c e n tram em u m a das três áreas fa vo ritas d a exegese bíb lica: a lite ra tu ra sapiencial, os E van g elh os e A p o c a lip se , que d u ra n te esse p e río d o fo i p le n a m en te aceita nas igrejas de fa la g reg a p ela p rim e ira vez. P o r exem p lo, G

r e g ó r io de

A

g r ig e n t o

(fl. c.

575) escreveu u m

c o m en tá rio lite ra lista sobre E clesiastes, que, no en tan to , estava to d o e n tre te cid o com tip o lo g ia cristológica. D e A p o c a lip se , h á co m en tá rio s de E c u m ê n io (fl. c.

580) e de A n d ré

de

C

e s a r e ia

(fl. c.

620). O s dois são e x tre m a m e n te alegóricos,

m as o p rim eiro é m ais cristológ ico e am ilen arista, en q u a n to o segundo se lim ita

In trodu ction to the Sacred Scriptures [In trod u ção às E scritu ras Sagradas] de certo A d r ia n o (fl. c. 525), n o

a u m a ab o rd agem m ais escatológica. T am b ém h á u m a

m ais descon hecido. E ssa b reve o b ra te n ta exp licar as características peculiares da lin g u ag em b íb lica, a m a io ria das quais ele atrib u i a p rin c íp io s hebraicos de estilo e com posição. O d e se n vo lv im e n to m ais fru tífe ro desse p e río d o fo i o su r­ g im e n to das ch am ad as

C atenae (corren tes, colares), com p ilações de e x tratos de

au tores relacio n ad o s a livro s específicos da B íb lia — u m a espécie de com p ilação de com en tário s. S u p o stam e n te, P r o c ó pio m e ira delas. A s

de

G a z a (m . c.

526) p ro d u ziu a p ri­

C atenae tê m v a lo r especial p o rq u e p re se rv am gran d es trech o s de

co m en tá rio s que com o u m to d o se p erd eram . N o O cid en te latino , P r ó spe r o A g o s tin h o sobre Salm os; J u s t o

de

de

q u it â n e a

U rgel (fl. c.

cristológico de C â n tic o dos C â n tico s; A (fl. c.

A

(fl. c.

400) re fo rm u lo u

550) p ro d u ziu u m com en tário B e ja (fl. c. 550) e P r im á s io

pr ín g io de

650) seguiram T ic ô n io sobre A p o calip se, e V e re cu n d o

de

J u n ce (fl. c.

520) escreveu sobre n o ve cânticos do A n tig o T estam en to, ap lican d o sua m e n ­ sagem aos p rob lem as de sua época. O s com en tário s de C a s sio d o r o (fl. c. 550) e G r e g ó r io , o G r an d e ( c . 540-604), m erecem m en ção especial. C assio d o ro d em o n stro u b o m d o m ín io d a exegese p atrística grega, e seu com en tá rio de S alm o s se to rn o u u m clássico. G re g ó rio se especializou em u m a fo rm a de alego­ ria m o ralizan te, em b o ra tivesse consciência dos excessos aos quais essa p o stu ra p o d eria le v a r e ad vertiu c o n tra eles. P ara G re g ó rio , a edificação m o ra l pessoal é o p ro p ósito fu n d am e n tal d a le itu ra d a B íblia, e fo i p ara esse fim que ele dedicou sua o b ra exegética. A m a io r p arte d o que h o je tem o s consiste em com en tário s de

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Reis, Jó e Ezequiel, bem como de quarenta seleções dos Evangelhos. Sua M oralia in J o b [Lições morais de Jó], rapidamente se tornou — e continua sendo — sua obra mais admirada. Auxílios exegéticos eram populares no Ocidente latino, como podemos observar nos tratados de E u q u é r i o d e L iã o (fl. c. 434-455), que estabeleceram regras precisas para a prática da alegoria. Relativamente mais ambiciosa foi a obra de Q u o d v u l t d e u s (fl. c. 440), que examinou as passagens proféticas das Escrituras com o propósito de explicar seus aspectos mais obscuros.

As questões A exegese bíblica patrística se desenvolveu em uma época em que a igreja estava enfrentando diversos problema cruciais que precisava resolver, e a interpretação da Bíblia desempenhou um papel fundamental nisso. As questões principais enfrentadas pelos pais da igreja podem ser expostas da seguinte maneira: 1. Era necessário que eles distin gu issem o cristia nism o do ju d a ísm o. A igre­ ja primitiva precisava explicar por que rejeitava o judaísmo, sem abandonar as Escrituras judaicas. Em um extremo, estavam pessoas como Marcião, que queriam rejeitar a herança judaica por completo, mas descobriram que isso era praticamente impossível. No outro, estavam pessoas como Tertuliano, para quem o cristianismo era um legalismo mais profundo e radical do que qualquer coisa que os judeus haviam tentado. A igreja cristã dominante não podia aceitar nenhuma dessas posições, mas precisava encontrar uma interpretação viável do Antigo Testamento como Escritura cristã. Essa tarefa recebeu tanta prioridade em todo esse período que a história da exegese da época pode ser escrita sob a perspectiva dessa questão. 2. Era necessário que eles distinguissem o cristianism o das religiões de m istério p a gã s e dafilosofia helenista. O perigo de sincretismo sempre foi muito real, como mostrou a recente descoberta de apócrifos do Novo Testamento. Nunca faltaram pregadores e charlatães preparados para se apossar dos elementos sobrenaturais da mensagem cristã, como o nascimento virginal de Cristo ou sua ressurreição, e criar uma nova religião a partir deles. A tendência de restringir esse novo co­ nhecimento a um círculo interno de iniciados também foi poderosa, sobretudo durante os séculos em que o próprio cristianismo era uma seita proibida. Depois do fim da perseguição, o principal perigo passou a vir da filosofia contemporâ­ nea, especialmente o neoplatonismo, cuja semelhança com muitos aspectos do

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cristianismo muitas vezes foi uma armadilha para os incautos. O cristianismo nunca poderia ser uma filosofia entre outras, nem poderia naturalmente se fun­ dir com o platonismo, por mais atraente que este pudesse parecer. Apesar de toda a alegorização das Escrituras, o platonismo cristão continuou sendo uma impossibilidade, em virtude do ensino bíblico sobre a bondade essencial da ma­ téria. Duas doutrinas expressavam isso do modo mais claro possível: a Criação divina a partir do nada e a ressurreição da carne, que sublinhava a convicção cristã de que tanto a matéria como o espírito seriam redimidos. 3. Era necessário que eles definissem o D eus cristão e a n atureza d e Cristo. Agora sabemos que a resposta a esse problema seria que Deus é três pessoas em uma natureza e que Cristo é uma só pessoa (divina) manifestada em duas naturezas (uma divina e uma humana). M as foram necessários vários séculos para chegar a essa conclusão, e, mesmo então, a doutrina de Cristo proclamada em Calcedônia não foi aceita por um grande setor da igreja oriental. Argumentos extraídos das Escrituras desempenharam uma função importante em tudo isso, e não foi por coincidência que diferentes cristologias foram associadas a diferentes escolas de exegese bíblica. 4. Era necessário que eles dem onstrassem com o a B íblia p od eria e d everia ser aplicada à vid a cristã. Esse talvez tenha sido o propósito mais importante por trás da produção de comentários das Escrituras, um propósito que foi ganhan­ do cada vez mais importância. Era necessário superar a estranheza do Antigo Testamento e de grande parte do Novo, e isso levou ao desenvolvimento da exegese alegórica. Embora desprezada e rejeitada hoje, a alegoria realizou uma tarefa importante na igreja primitiva porque forneceu um meio pelo qual um texto antigo e essencialmente estranho podia ser aplicado aos interesses práticos da vida cotidiana. Isso, por sua vez, fez com que cristãos comuns ganhassem mais consciência da relevância da Bíblia para sua experiência espiritual e lhes concedeu um desejo maior de ouvir e aprender do texto. 5. Era necessário que eles m antivessem a unidade da igreja como testem unho v iv o da unidade da verda de m anifestada em Cristo. Isso significava que eles precisavam for­ necer um só texto das Escrituras, imbuído de autoridade e que pudesse ser aceito por todos, como prelúdio para a formulação de uma só interpretação doutrinária das Escrituras (e que, na prática, fosse igualmente imbuída de autoridade). Todos os grandes estudiosos da Bíblia da época estavam preocupados com esse proble­ ma, desde Taciano, passando por Orígenes, a Eusébio, Jerônimo e até Mesrob. A definição de uma doutrina fixa nos grandes credos foi realizada em paralelo com o estabelecimento de um texto canônico fixo, que apoiava essa doutrina.

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Os métodos de interpretação Ao analisar os métodos de interpretação bíblica mais comumente usados na época patrística, também é conveniente seguir a periodização adotada acima.

Antes de 200 O período até cerca de 200 d.C. se caracteriza pelo que podemos chamar de exegese pré-sistemática. Antes da época de Orígenes não surgiram comentários das Escrituras, e pouco se fez para tentar oferecer uma exposição metódica de seu conteúdo. Os que chegaram mais perto dessa realização foram pessoas como Marcião, que não conseguiu fazer mais do que rejeitar a maior parte do texto sagrado porque este não se encaixava em sua hermenêutica. O tipo mais comum de literatura exegética durante esse período foi a homilia, ou sermão, um modo de discurso que existe até hoje e que foi popular em toda a época patrística. Entre os que interpretavam o texto de acordo com seu sentido óbvio, predo­ minava uma interpretação essencialmente literalista, embora o estilo de sermão se prestasse à alegoria, sobretudo do tipo moralizante. A abordagem literalis­ ta reflete a influência do Novo Testamento, que interpretava o Antigo sob a perspectiva do cumprimento da profecia em Jesus Cristo e por meio dele. Esse tema rapidamente se tornou a marca característica de toda a exegese cristã. Sem Cristo, as Escrituras eram incompreensíveis, e assim era lícito encontrar referên­ cias a ele de todos os modos possíveis. A inclinação cristocêntrica desse período inicial produziu tendências de exegese tipológica e alegórica, mas de modo não sistemático. M uitos autores provavelmente não sabiam o que estavam fazendo, visto que tentavam relacionar a Cristo todas as passagens das Escrituras de to­ dos os modos possíveis. Portanto, é errado dizer que a tipologia ou a alegoria constituíam a base de sua hermenêutica. O fator que dava unidade à sua exegese era a pessoa e a obra de Cristo. O fato de que o judaísmo tinha sua própria interpretação das Escrituras, mas que os judeus rejeitavam Cristo, foi explicado dizendo-se que o judaísmo interpretava o texto de acordo com a letra, e não de acordo com o Espírito. A advertência de Paulo em 2Coríntios 3.6 (“a letra mata, mas o Espírito dá vida”) se tornou um axioma para os pais da igreja primitiva. Para eles, o que Paulo queria dizer era que a exegese literalista das Escrituras praticada pelos rabinos era mortal. Somente a interpretação espiritual, que eles compreendiam como radicalmente cristológica, era verdadeira. Definir isso se tornou a princi­ pal tarefa da exegese patrística, e diferentes escolas de exegese produziram suas

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próprias versões. M as havia o consenso de que uma interpretação espiritual era essencial e de que interpretar as Escrituras de modo meramente literal era recair no judaísmo e na escravidão espiritual. Estava bastante claro, no entanto, que interpretações gnósticas não podiam ser consideradas compatíveis com a exegese cristã. Em primeiro lugar, elas não eram cristocêntricas. Para os gnósticos, Cristo era, na melhor das hipóteses, o meio para um fim e, na pior, irrelevante; ele não era um fim em si mesmo. Em segundo lugar, eles criaram uma divisão radical entre Criação e redenção, elementos que o evangelho cristão mantinha unidos em Cristo. Essa é a im ­ portância de João 1.1-3 e Colossenses 1.15-17, que falam sobre Cristo como Criador junto com o Pai. A ênfase cristã na Criação (e também na encarnação de Cristo, que foi a entrada de Deus na criação) se deveu, ao menos parcial­ mente, às tentativas gnósticas e platônicas de negar a bondade da matéria e a soberania absoluta do Deus cristão. Já vimos que uma característica desse período é o interesse pela história salvífica. Esta poderia ser desenvolvida de forma linear, como em Tertuliano, ou recapitulada, como em Ireneu. Em qualquer dos casos, prestava-se prontamente à tipologia. No esquema linear, cada uma das três eras da história humana ti­ nha sua própria lógica, e esta era reproduzida em um nível mais elevado na era seguinte. Na primeira era, que correspondia ao Antigo Testamento, Deus se revelou de maneira imperfeita na Lei e nos sacrifícios. Quando Cristo veio, esse padrão de revelação foi substituído por uma nova lei (as exigências morais de Cristo) e por um novo sacrifício (a morte de Cristo na cruz). Na terceira era, o reino pós-pentecostal do Espírito Santo, os cristãos são chamados a avançar até a perfeição plena. Tertuliano acreditava que muitas provisões do Novo Testamento, como a permissão concedida às viúvas para que se casassem de novo, ou a liberdade de não jejuar quando o noivo estava presente, na verdade eram concessões à fraqueza da carne. Jesus permitiu essas coisas porque a plenitude da perfeição ainda não havia chegado, mas elas não faziam parte de seu plano ideal. Ele mesmo reconheceu as limitações do que era possível durante esta vida, visto que prometeu que, quando o Espírito viesse, ele faria coisas maiores e guiaria o povo de Deus a toda verdade. Além disso, à medida que o tempo passava, a segunda vinda de Cristo se aproximava inevitavelmente, e os cristãos não tinham tempo a perder. É um grande equívoco imaginar que essa esperança da parúsia, como a espera da segunda vinda muitas vezes é chamada, diminuiu no final da época do Novo Testamento. Todas as evidências mostram que ela aumentou, uma vez

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que o evangelho se espalhou até os confins da terra e a perseguição se tornou mais intensa — duas características de que o fim estava se aproximando. O resultado disso foi que o princípio neotestamentário de uma vida de perfeição sem pecado semelhante à de Cristo anulou muitas práticas do Novo Testamento que estavam aquém desse ideal. A visão da história como recapitulação era significativamente diferente da visão linear, pelo fato de que a nova dispensação não tinha o objetivo de substituir a antiga, mas reparar suas deficiências. E esse aspecto de reparo e res­ tauração que fornece à visão cíclica um impulso universalista, porque, no fim dos tempos, todas as coisas, boas e más, serão reconciliadas em Cristo. A visão linear, em contrapartida, rejeitava o antigo completamente e aguardava algo novo que substituiria, e não reconciliaria, a realidade anterior. E possível explicar muitas diferenças posteriores entre o Ocidente e o Oriente apelando ao fato de que o Ocidente adotou uma visão linear da história e o Oriente, uma visão cíclica, e cada um deles lia a Bíblia de acordo com essa postura.

De 200 a 325 A partir de cerca de 200, o estilo exegético de comentário introduziu um grau de maior sistematização na interpretação bíblica cristã. A forma de comentário surgiu no período intertestamentário, entre os críticos literários helenistas de Alexandria, e em sua origem foi aplicada aos clássicos da literatura grega, que eles interpretavam de uma perspectiva alegórica. Pouco depois, houve muitos judeus que adaptaram essa tradição à interpretação das Escrituras. Assim, Filo herdou suas ideias de fontes diferentes, e grande parte do que escreveu foi uma compilação de material anterior. Por causa dele, a composição de comentários foi primeiro associada com a exegese alegórica, e os pais da igreja nunca se libertaram plenamente dessa tradição. Filo herdou a maioria de suas teorias de fontes estoicas e platônicas. Dos estoicos, obteve a ideia de que a filosofia se dividia em três partes: lógica, físi­ ca e ética, em ordem crescente de importância. Para ele, a teologia tinha uma forte ligação com a ética, incluindo o conhecimento do Criador bem como o comportamento correto ao qual esse conhecimento inevitavelmente conduziria. Dos platônicos, Filo herdou a convicção de que havia um contraste fundamental entre o mundo externo de sensação e desordem transitórias e o mundo interno de razão e harmonia imutáveis. Essa era uma distinção básica que caracterizou não somente sua exegese, mas também a exegese de toda a tradição alegórica.

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Filo considerava as Escrituras um livro codificado que fornecia uma linguagem simbólica para guiar os mais habilitados a interpretá-la e assim conduzir à sua verdade eterna e espiritual. Ele rejeitava totalmente o sentido literal das passagens bíblicas que descreviam a Deus em termos humanos. Ele também rejeitava qualquer coisa que insinuasse uma diminuição da glória de Deus. Isso significava que qualquer texto bíblico que parecesse carecer de sen­ tido, fosse imoral ou somente trivial era automaticamente reinterpretado pelas lentes da alegoria. Filo acreditava que a totalidade das Escrituras, incluindo a Torá, era profecia, que Deus havia inspirado ao possuir seus profetas e m en­ sageiros escolhidos e falar por meio deles. Era por isso que elas muitas vezes pareciam irracionais, tornando necessária a exegese alegórica. Obviamente, segundo seu modo de pensar, a interpretação espiritual das Escrituras também era inspirada, e nessa esfera ele se considerava um canal usado por Deus para se comunicar. O senso de inspiração que Filo possuía se estendia à Septuaginta, que ele acreditava ter sido concedida por Deus, e sua própria liberdade para citar o texto talvez se deva a seu sentimento de ele mesmo também ser inspirado. É possível ter alguma noção de seu método pela observação de sua exposição de Gênesis 14 (em D e A brahamo [Sobre Abraão], p. 232-44):

Ele reuniu seus servos [...] fez chamada deles [...] e os distribuiu em centúrias e avançou com três batalhões [...] Seu sobrinho, ele trouxe de volta [...] com todos os cavalos da cavalaria. E isso o que encontramos nas Escrituras lidas literalmente, mas aqueles que podem contemplar fatos destituídos de corpo e despidos em realidade, aqueles que vivem com a alma e não com o corpo, dirão que, desses nove reis, quatro são o poder exercido em nós pelas quatro paixões — prazer, desejo, medo e aflição; e cinco são os cinco sentidos — visão, audição, paladar, olfato e tato. Pois esses nove, por certo, estão investidos com soberania e são nossos reis e governantes, embora não todos do mesmo modo. Pois os cinco estão sujeitos aos quatro [...] Aflições e prazeres e medos e desejos nascem do que podemos ver ou ouvir ou cheirar ou experimentar ou tocar... Há muita verdade filosófica em dizer que, dos cinco reis, dois caíram nos poços e três fugiram (v. 10). Pois o tato e o paladar descem aos recônditos mais íntimos do corpo e transmitem às suas partes internas aquilo com que podem lidar de modo adequado; mas olhos e ouvidos e olfato geralmente acontecem fora e escapam de ser escravizados pelo corpo...

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Essa passagem fascinante nos fornece a essência da alegoria de Filo. O sen­ tido literal do texto é mencionado, mas depois ignorado. Se o acontecimento descrito ocorreu de fato é algo completamente irrelevante; a história não tem nenhum papel para desempenhar na alegoria, em absoluto contraste com sua função na tipologia. Os “fatos” são o que pode ser apreendido quando a capa das palavras e dos acontecimentos é retirada para revelar a verdade “nua”. O que estamos de fato fazendo aqui é lidar com as paixões e os sentidos do ser humano como indivíduo, e o comentário rapidamente passa para a exortação moral. Observe-se que o que Filo está dizendo não é falso em si mesmo. A difi­ culdade com a alegoria não é que ela seja moral ou espiritualmente enganosa, mas ela baseia as reflexões morais e espirituais em uma leitura falsa do texto. A passagem de Gênesis não está dizendo o que Filo quer que diga, e, mesmo que o que ele diz seja verdadeiro em si mesmo, isso não tem relação com o texto que ele deveria estar expondo. Pode-se comparar a alegoria com a astrologia, em que se liga uma ciência (astronomia) à psicologia intuitiva sem nenhum vínculo lógico entre elas. A primeira vez que os cristãos recorreram à alegoria em larga escala foi para defender o Antigo Testamento contra Marcião. Quando este acusou os judeus de adorarem um Deus moral que exigia sacrifícios e ordenava a seu povo que matasse seus inimigos sem misericórdia, seus oponentes cristãos se refugiaram em uma interpretação que ligava um significado secreto e espiritual a algo igual­ mente inaceitável para eles. O alvo dos comentaristas cristãos era chegar a uma harmonia entre os dois Testamentos, e foi para essa iniciativa que a alegoria teve sua maior utilidade. Clemente de Alexandria realizou uma tentativa parcial de sistematizar esse procedimento com base em uma distinção básica entre o sen­ tido externo e o sentido interno das Escrituras, mas foi Orígenes quem acabou desenvolvendo uma teoria abrangente {De p rin cip iis [O sprincípios] 4:1-23). Orígenes defendeu que a autoridade do Antigo Testamento é confirma­ da por Cristo, de modo que toda a interpretação precisa ser essencialmente cristocêntrica. Ele acrescentou que as Escrituras têm um sentido tríplice, que corresponde a corpo, alma e espírito. Essa divisão em três partes se baseia em uma antropologia diferente da antropologia de Filo, que identificava a alma com o espírito — uma opção não disponível para o cristão, para quem a alma e o espírito eram divididos pela espada de dois gumes da Palavra de Deus (Hb 4.12). O primeiro sentido é o literal, destinado à mente não intelectualizada, mas necessário como base para a identificação dos outros sentidos. O segun­ do é o sentido moral, que corresponde à vida da alma. O terceiro é o sentido

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espiritual, o mais elevado e mais importante de todos. Orígenes deu a ele um nome especial: theoria (visão), pois ele podia ser compreendido somente pela revelação. Para ele, era necessário que o leitor cristão da Bíblia avançasse do sentido literal para os sentidos mais elevados, aos quais se referiu como “anagógicos” (conducentes), porque conduziam o cristão para mais perto de Cristo. Orígenes considerava a Bíblia uma revelação divina oculta em forma huma­ na. Os mandamentos de Deus são eternos e absolutos, em consonância com sua natureza, mas nossas circunstâncias são relativas. É por isso que as Escrituras, que ocultam a lei de Deus em acontecimentos humanos, são por vezes ambíguas e confusas para nós. Somente o testemunho interno do Espirito Santo, por meio dos dons da erudição bíblica, pode fazer uso da chave das Escrituras e torná-la passível de ser compreendida pela igreja. A primeira regra de interpretação é que as partes mais claras das Escrituras são a base para a compreensão das partes mais difíceis. É interessante observar que esse princípio sobreviveu à prova do tempo e é amplamente aplicado hoje, ainda que a exegese alegórica tenha sido há muito tempo rejeitada. Em sua interpretação das Escrituras, Orígenes normalmente interpretava o sentido literal de acordo com seu significado óbvio. Ele não quis reduzir os milagres de Jesus e outros acontecimentos sobrenaturais à condição de alegoria, porque cria que Deus havia de fato interferido na história humana. Nesses ca­ sos, ele considerava o sentido espiritual um acréscimo ao sentido literal, e não seu substituto. No entanto, em outras ocasiões ele rejeitou o sentido literal; por exemplo, ele não aceitou que as três árvores no jardim do Éden eram objetos reais, nem acreditava que Jesus foi de fato levado a um monte pelo Diabo. Às vezes, não fica claro se ele aceitava o sentido literal, como nos primeiros ca­ pítulos de Gênesis ou na história da purificação do templo por Jesus (que ele enxergava como uma alegoria da purificação da alma). Nesses casos, o sentido alegórico certamente era o que importava, qualquer que fosse o valor atribuído ao sentido literal. Orígenes não gostava do conceito de história como uma série entrelaçada de causas e efeitos, e, na verdade, ele mal sabia o que pensar dela. Ele afirmou cla­ ramente que não se devem considerar os acontecimentos históricos como tipos de outros acontecimentos históricos, mas como tipos de realidades espirituais (■C om m entary on Joh n [Comentário de João] 10.18). É isso que o distancia dos tipologistas anteriores e que é característico da alegoria. Especialmente suscetí­ veis à interpretação alegórica eram os nomes próprios, que sabidamente tinham um significado mais profundo. Plantas, animais e lugares geográficos também

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recebiam esse tipo de tratamento, do mesmo modo que os números, que de qualquer forma muitas vezes eram claramente simbólicos. Às vezes, Orígenes usava os três sentidos na mesma passagem, como, por exemplo, em sua exposição da história de Ló (Gn 19). Ele aceitava os fatos como históricos, mas continua e diz que espiritualmente eles ilustram a relação de Israel com a Lei. Por fim, ele extrai a dimensão moral, de acordo com a qual as personagens na narrativa representam virtudes e vícios. M uitas vezes, no en­ tanto, o sentido espiritual prevalecia sobre o moral, ou os dois eram combinados. Às vezes, era possível haver mais de um sentido espiritual, como em Cântico dos Cânticos, em que o noivo e a noiva podem se referir tanto a Cristo e à igreja como à Palavra de Deus e à alma do indivíduo. A autoridade de Orígenes como expositor da Bíblia era tal que seus mé­ todos permaneceram incontestes durante cento e cinqüenta anos. Na época em que se começou a suspeitar de sua teologia e ele precisou enfrentar a con­ denação, a influência de seus métodos exegéticos era grande demais para ser ignorada. Até mesmo Jerônimo, seu opositor mordaz, foi compelido a tomar emprestados grandes trechos da hermenêutica de Orígenes e adaptá-los às suas próprias exigências. Podemos resumir a alegoria, tanto positiva quanto negativamente, da seguin­ te forma: no lado positivo, ela enfatiza que as Escrituras precisam ser abordadas espiritualmente e aplicadas de modo prático à vida do cristão. A Bíblia precisa ser um livro vivo na experiência da igreja e não um registro histórico morto. A alegoria também permitiu que a igreja se apropriasse de passagens bastante obscuras da Bíblia, que de outro modo ficariam sem utilidade. Não podemos esquecer que os antigos não tinham a mesma compreensão do contexto históri­ co do Antigo Testamento que temos agora, e assim muitas coisas que hoje para nós são fáceis de compreender eram misteriosas para eles. Também devemos lembrar que grande parte da arte cristã e segmentos da literatura cristã têm forte dependência da alegoria na busca de seus temas. Sem a alegoria, a iconografia não teria sido possível, e tampouco teríamos hoje os grandes monumentos lite­ rários de Dante, M ilton ou Bunyan. No lado negativo, a alegoria extrai o texto da história, e isso vai contra a principal ênfase da religião cristã. A alegoria incentiva um uso irresponsável do texto bíblico, permitindo interpretações fantasiosas, mesmo que espiritualmente mais úteis do que prejudiciais. Na época moderna, uma hermenêutica essen­ cialmente alegórica permitiu que a igreja romana proclamasse dogmas como a imaculada conceição de M aria, sua ascensão física ao céu e a infalibilidade papal,

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com pouca base bíblica além de uma interpretação alegórica de textos que não têm vínculo algum com esses temas.

De 325 a 451 A era de ouro da exegese patrística é marcada por uma divisão fundamental en­ tre os tipos alexandrino e antioqueno de interpretação. A igreja oriental sentiu a influência de ambos, em diferentes graus, e os capadócios foram praticamente obrigados a escolher entre eles. As igrejas orientais da Síria e da Armênia eram extensões geográficas de Antioquia, mas sofreram uma profunda influência ale­ xandrina em um estágio posterior.

A exegese alexandrina Essa exegese foi caracterizada pela fidelidade à tradição origenista de exegese alegórica, embora tenha passado por uma gradação cuidadosa e cada vez maior ao longo do tempo. Em especial, acreditava-se que a doutrina oficial deve es­ tar baseada somente no sentido literal, que permitia que ele fosse claramente identificado. Não se devia exigir de ninguém que aceitasse uma interpretação que não fosse clara para todos. Em conseqüência disso, os grandes debates doutrinários do quarto e quinto séculos foram conduzidos essencialmente no nível da exegese literal, matizada por uma interpretação cristológica do Antigo Testamento. Assim, por exemplo, Provérbios 8.22ss. foi considerado por todos os lados da controvérsia ariana como uma prefiguração de Cristo, já que, uma vez que o consenso era que as Escrituras, em todas as suas partes, se referiam a ele, a interpretação cristológica parecia “literal” o suficiente! No terceiro século, Dionísio de Alexandria afirmou que as experiências humanas de Cristo devem ser interpretadas literalmente, por causa da reali­ dade histórica da encarnação e de sua humanidade legítima. Atanásio usou e desenvolveu essa ideia, considerando a encarnação a chave para a compreensão das Escrituras, apesar das dificuldades que ele tinha para aceitar as limitações da humanidade de Jesus. Para ele, a Bíblia não era meramente uma estrutura lingüística, por trás da qual era possível identificar verdades teológicas inefáveis, mas a própria Palavra de Deus em seu sentido literal (“encarnado”). Atanásio, portanto, rejeitava a divisão platônica (e origenista) entre o material e o espiri­ tual e acreditava que ambas as realidades estavam em harmonia entre si. Para Atanásio, a inspiração das Escrituras correspondia diretamente à encarnação de

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Cristo, e a relação entre Palavra e Espírito era a mesma para ambos. Assim co­ mo Jesus, a Bíblia era plenamente humana (mas sem erro) e plenamente divina. Ao afirmar assim essa doutrina, Atanásio conseguiu ligar a antiga interpretação cristocêntrica das Escrituras com a mais recente afirmação dogmática das duas naturezas de Cristo. No decorrer de seus argumentos contra o método de interpretação atomista dos arianos, baseado em textos-prova, Atanásio disse que não era suficiente ba­ sear a interpretação de um texto bíblico somente na exegese. Toda interpretação precisa ocorrer em um contexto, e, para o cristão, esse contexto era a vida e a experiência espiritual da igreja. A igreja, tanto quanto a Bíblia, dava testemunho da divindade de Cristo, e, portanto, é necessário interpretar as Escrituras de um modo que seja coerente com esse testemunho. Esse princípio o levou a adotar uma alegorização cristológica de Salmos. Eles não eram meramente poemas antigos, mas o hinário vivo da igreja, que os usava para louvar e adorar o Deus trino e uno. Atanásio foi o primeiro exegeta cristão a situar a igreja com grande firmeza no centro de sua hermenêutica, e ainda hoje essa abordagem continua sendo a característica marcante tanto da interpretação católica romana quanto da ortodoxa oriental. Uma vez que a doutrina da igreja estava estabelecida nos credos, era possível usá-los como regras para controlar a interpretação alegórica. As partes mais difíceis das Escrituras eram consideradas textos que apresentam a verdade cristã conhecida de modo alegórico, e o dever do exegeta era demonstrar isso. Esse desenvolvimento fez pouco para refrear os excessos da alegoria, mas ao menos tornou as conclusões mais previsíveis e aceitáveis para a igreja como um todo. M ais uma vez, estamos diante do dilema perene da alegoria: as conclusões podem ser corretas, mas os meios pelos quais são extraídas são totalmente inaceitáveis. Dídimo, o Cego, seguiu as linhas traçadas por Atanásio e as desenvolveu. Ele reafirmou o valor do sentido literal do Antigo Testamento, dizendo que, embora abolido em Cristo, ele havia servido plenamente como Palavra de Deus. Portanto, era perfeitamente natural que os judeus rejeitassem a interpretação alegórica de suas Escrituras, que se tornou necessária somente depois da vinda de Cristo. Dídimo enfatizou que não se devia compreender o Antigo Testamento como um véu de verdades eternas tão válidas quanto as do Novo Testamento, mas como um ensino preparatório, que indica para os antigos israelitas a futura vinda de Cristo. Em outras palavras, mesmo uma leitura alegórica do Antigo Testamento nunca poderia revelar a plenitude do evangelho, que se tornou ple­ no somente no momento da encarnação do Verbo de Deus.

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A exegese antioquena Competindo com a abordagem alexandrina, e de muitos modos profundamente oposta a ela, estava a exegese da escola teológica de Antioquia. Para os represen­ tantes dessa escola, o sentido espiritual (theoria) das Escrituras não era alegórico, mas devia ser buscado no próprio sentido literal. Esse tipo de exegese corres­ pondia à sua cristologia, que sublinhava que a humanidade de Cristo não era modificada de modo algum por sua divindade. O maior representante da escola antioquena foi Teodoro de Mopsuéstia, que censurou os alegoristas por causa da tendência de caírem em fábulas muito distantes dos fatos históricos. O que mais incomodou Teodoro foi essa questão da história, porque ele reconhecia que um tratamento alegórico de Adão, por exemplo, enfraqueceria a afirmação de que Cristo é o novo Adão. Se a Queda da humanidade era meramente uma fábula, como então a redenção poderia ter algum valor? Quando lhe pediram que expli­ casse o uso que Paulo faz do termo “alegoria” (G1 4.24), Teodoro simplesmente afirmou que Paulo estava usando a palavra em outro sentido, o de correspondên­ cia histórica, ou como tipologia — uma explicação bem aceita até os dias atuais. Ainda mais notável foi o uso literalista que Teodoro fez de Salmos. Só de vez em quando ele se permitia uma interpretação cristológica, como em Salmos 16.10. Na maior parte do tempo, ele enfatizava que os salmos se referiam ou a Davi ou à história israelita antes da vinda de Cristo. Teodoro não questionou a autoria davídica do Saltério, mas sua posição deixa claro que ele estava disposto a aceitar que o Saltério havia sido redigido muitos séculos depois da época de Davi. Em relação ao uso que Cristo fez de Salmos em referência a si mesmo, Teodoro explica que Jesus se encontrava em circunstâncias análogas às de Davi, e assim era natural que ele “tomasse emprestado” alguns sentimentos de Davi. Outros autores antioquenos continuaram nessa linha e chegaram até a re­ jeitar a ideia de que todo o Antigo Testamento se referia diretamente a Cristo. Impor a textos um padrão cristológico que não lhes cabia só afastava os pagãos e os cegava para aquelas passagens que profetizavam a vinda do Messias. Essa era a visão de I sid o r o de P elú sio ( c. 360-435), como podemos observar em sua correspondência sobre o assunto (2,195). Outro autor antioqueno, S e ve r ian o de G a b a l a (fl. c. 400-410), que praticava uma forma extrema de exegese literalista, enfatizou que uma coisa é preservar o sentido histórico e acrescentar-lhe o sentido espiritual, mas confundir o sentido histórico pelo uso da alegoria é outra coisa bem diferente. Assim como o próprio Cristo, as Escrituras tinham duas naturezas que não podiam ser confundidas, misturadas ou distorcidas de modo algum.

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Da perspectiva moderna, certamente a exegese antioquena é a mais atrati­ va das duas grandes escolas da antiguidade e, portanto, ficamos decepcionados quando descobrimos que mais tarde a igreja condenou muitos de seus grandes representantes. Isso aconteceu porque eles não conseguiram desenvolver uma cristologia satisfatória, que unisse as duas naturezas de Cristo em uma união real e pessoal. O estreito vínculo entre cristologia e exegese bíblica significava que a condenação de uma produziria inevitavelmente a rejeição da outra. Para ser justo, no entanto, é necessário dizer que aqueles antioquenos cuja cristologia não provocou suspeitas não sofreram, e suas obras se tornaram os comentários mais conhecidos de todos. Certamente foi assim com João Crisóstomo, e em grande medida também comTeodoreto de Cirro. Também não devemos esque­ cer que Orígenes foi condenado e que a igreja rejeitou sua alegorização filosófica juntamente com o literalismo de Antioquia.

A exegese ocidental (latina) A exegese da igreja ocidental mostra uma forte influência de tendências orientais, mas isso não é algo fora do comum. Muitos exegetas foram atraídos por métodos alexandrinos, conforme se pode observar em Hilário de Poitiers, Ambrósio de Milão e no jovem Jerônimo. A exegese antioquena fez menos avanços, mas o mun­ do latino teve sua própria tradição literalista que remetia a Tertuliano. No quarto século, essa tradição foi sistematizada por Ticônio em suas famosas sete regras, que forneceram a Agostinho sua estrutura exegética. As sete regras são as seguintes: 1. D e D om ino et corpore eius (do Senhor e de seu corpo). Essa regra afirma que as Escrituras não distinguem entre a pessoa de Cristo e seu corpo, que é a igreja. Assim, por exemplo, quando Daniel 2.34 fala sobre a pedra que destrói os reinos do mundo, ele está profetizando sobre a vinda de Cristo, porém, quando essa pedra depois se transforma em uma montanha que enche toda a terra, o que está em vista não é mais Cristo, mas a igreja. As Escrituras passam de um sentido ao outro sem hesitação ou distinção. 2. D e D om ini corpore bipartito (do corpo dúplice de Cristo). O corpo de Cristo tem duas partes, ambas boas e ruins. Não há uma igreja pura, antes, o trigo e o joio crescem juntos até a colheita. É por essa razão que a noiva em Cântico dos Cânticos 1.5 diz: “Estou morena, mas sou bela”. 3. D ep rom issis et leg e (das promessas e da Lei). Essa regra tem a intenção de esclarecer as passagens em Romanos e Gálatas que apresentam a Lei ora

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positivamente, ora de modo negativo. A explicação desse fato diz respeito à natureza preparatória da Lei; ela era boa em sua época, mas inadequada como meio de salvação eterna. 4. D e specie et g en ere (do particular e do universal). Essa regra explica que as Escrituras às vezes passam do particular para o geral, e vice-versa. Assim, os profetas do Antigo Testamento mencionam cidades que são figuras da igreja, ou de todo o corpo de Cristo, ou às vezes somente de parte dele. Um bom exemplo é o tratamento de Jonas em relação a Nínive, que é salva (toda a igreja) apesar de sua perversidade (parte da igreja). Essa regra é relativamente semelhante à quinta regra de H illel, K ela l upherat, embora nada indique que Ticônio tivesse conhecimento dela. 5. D e tem poribus (dos tempos). Essa regra procura resolver problemas cro­ nológicos nas Escrituras e afirma que, às vezes, parte do tempo é usado em referência ao todo, e vice-versa. Assim, “os 400 anos de opressão” que Israel suportou no Egito, previstos em Gênesis 15.13 e mencionados novamente em Êxodo 12.40, não significam que Israel foi oprimido durante cada um desses anos, mas que o povo viveu como peregrino no Egito durante esse período e que no final foi oprimido. 6. D e recapitulatione (da abreviação). Essa regra explica por que às vezes as Escrituras reduzem a um só momento um conceito que, na realidade, é muito mais amplo. Assim, as advertências escatológicas de Mateus 25.15-18 e Lucas 17.30ss. são válidas não somente para a segunda vinda de Cristo, mas para todas as épocas. 7. D e D iabolo et corpore eius (do Diabo e de seu corpo). Essa regra corres­ ponde exatamente à primeira. Quando as Escrituras se referem ao Diabo, elas também incluem aqueles que pertencem a ele, isto é, os perversos nesta terra. Assim, quando Isaías descreve a queda de Lúcifer (19.12), é possível interpretar a menção a reis e povos como referência ao corpo do Diabo. Na prática, a exegese de Ticônio era dirigida pelo fato de ele ser dissidente dos donatistas. A convicção donatista básica era de que a igreja era imaculada, e Ticônio passou grande parte de seu tempo provando o contrário. De acordo com ele, a presença de corrupção na igreja não significava que ela não era o cor­ po de Cristo, mas sublinhava o fato de que Cristo era verdadeiramente humano. Como mostra um trecho da parte preservada de seu comentário de Apocalipse, ele estava preparado para fazer amplo uso da alegoria. No entanto, é provável que seja injusto julgá-lo com base nesse único exemplo, visto que Apocalipse claramente se presta a esse tipo de abordagem.

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Agostinho adotou as regras de Ticônio e fez grande uso delas, sobretudo da primeira, mas também tinha consciência de suas deficiências. Para tentar compensá-las, acrescentou os pontos importantes a seguir: 1. A autoridade das Escrituras está fundamentada na autoridade da igre­ ja. À medida que a igreja recebe o texto sagrado, este adquire a autoridade eclesiástica, de modo que livros com menos reconhecimento universal têm, pro­ porcionalmente, menos autoridade. Quando fez essa afirmação, Agostinho por certo estava pensando no fortalecimento da autoridade das Escrituras e não em enfraquecê-la. Somente muito mais tarde essa doutrina foi invertida e se voltou contra si mesma, para ser usada pela igreja romana como justificativa para suas alegações de controle da leitura e da interpretação da Bíblia. 2. Os pontos obscuros das Escrituras foram nelas colocados por Deus e podem ser interpretados com base em muitas passagens claras. Essa doutrina, que reproduz a visão de Orígenes em um contexto não alegórico, continua fun­ cionando até hoje como princípio fundamental da exegese bíblica. 3. Quando as Escrituras são ambíguas, é possível usar a regra da fé para interpretá-las. Agostinho mencionou como exemplo a difícil pontuação de João 1.1,2. Seria possível interpretar essa passagem como se ela dissesse: “... e havia Deus. Esse verbo estava no início com Deus”, apresentando assim uma inter­ pretação ariana de Cristo. M as não podemos fazer essa interpretação, pois a fé da igreja diz outra coisa. A verdadeira interpretação é “e o verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus”. 4. Passagens figuradas não devem ser compreendidas literalmente. No de­ bate a respeito do literalismo, é necessário prestar atenção na forma literária de cada texto. Obviamente, Agostinho tinha seu próprio modo de decidir o que era figurado, e isso traz algumas dificuldades para leitores modernos. Em sua opinião, qualquer coisa que não parecesse conduzir ao bom comportamento ou à fé verdadeira era “figurada”. Isso também se aplicava a qualquer coisa má ou indigna atribuída a Deus ou aos santos; porém, em alguns casos, os costumes mudaram, de modo que não devemos necessariamente enxergar a poligamia do Antigo Testamento sob essa perspectiva. 5. Uma figura não precisa sempre ter somente um significado. O significado pode variar com o contexto, a exemplo da palavra “escudo”, que significa tanto o beneplácito de Deus (SI 5.12) como a fé (E f 6.16). Agostinho continua dizendo que uma figura pode ter vários significados e, portanto, é possível interpretá-la de um modo que o autor não tinha em mente, mas que está de acordo com o que

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pode ser encontrado em outras partes das Escrituras. Agostino cria que o Espírito Santo já havia aberto essa possibilidade e legitimado esse tipo de uso do texto. 6. Qualquer significado possível que um texto possa ter é legítimo, quer o autor o conhecesse, quer não. Agostinho defendeu que era possível apreender a verdade em muitos níveis diferentes, e era errado lim itar um texto bíblico a somente um significado. Esse foi o argumento que ele usou para justificar um amplo uso da interpretação figurada (alegórica). Sua abordagem da multiplicação dos pães e peixes para cinco m il pessoas é um bom exemplo. Agostinho começa dizendo que milagres têm o objetivo de nos lembrar que o universo todo é um milagre e que a organização da ordem criada pela providência de Deus é um milagre muito maior do que simples­ mente distribuir cinco pães e dois peixinhos para cinco mil pessoas. A própria história contém uma riqueza de detalhes que têm o propósito de nos conduzir a Cristo. O fato de que ele está no monte nos lembra que a Palavra está no alto. Os cinco pães são o Pentateuco, e são de cevada, porque assim como é difícil descascar o grão de cevada, também é difícil identificar a mensagem do Antigo Testamento por trás de seu simbolismo externo. O menino representa Israel, que possuía o alimento divino, mas não se alimentava dele. Os cinco mil homens significam Israel sob a Lei; eles se reclinam sobre a grama porque seus pensamentos são carnais, e toda carne é grama. Os doze cestos com as sobras são os muitos ensinos que as pessoas não conseguiram receber. Eles foram confiados aos apóstolos, cujo dever era usá-los para alimentar as pessoas em data posterior.

De 451 a 604 No final do período patrístico, métodos exegéticos haviam sido estabelecidos de forma relativamente segura. A interpretação alegórica, desbastada dos extremos alegóricos de Orígenes, era a norma em quase todos os casos. A influência de Agostinho no Ocidente era onipresente, e sua autoridade era aceita sem questio­ namentos. Exegetas posteriores fizeram pouco mais do que repetir os clássicos, muitas vezes abreviando-os, e limitaram a originalidade às suas próprias especu­ lações sobre o significado de palavras e expressões obscuras e às peculiaridades do estilo bíblico. O único autor verdadeiramente criativo foi Gregório, o Grande, que insistiu na necessidade de preservar o sentido histórico ou literal como fun­ damento para a elaboração da tipologia e da alegoria moral. Com esses princípios em mente, ele estudou a vasta riqueza da exegese patrística e reteve apenas os ele­ mentos que considerava de valor permanente. De certo modo, Gregório realizou

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uma seleção canônica da exegese patrística para benefício de gerações futuras. Sua própria contribuição para o desenvolvimento da exegese repousa principal­ mente em sua convicção de que as Escrituras são um espelho da alma. Ao ler a Bíblia, o cristão aprende, com base no modo como Deus lidou com os santos, como ele lida conosco. Os exemplos que as Escrituras nos apresentam estão ali para nos ensinar quais são nossas qualidades e defeitos, de modo que possamos crescer em fé e amor, em humildade e em segurança espiritual. Esse tom pesso­ al foi uma das características fundamentais da espiritualidade medieval. Com Gregório, chegamos ao fim do mundo antigo e ao início de uma nova era em que p s contornos do mundo moderno começavam a aparecer. B ibliografia

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ESTUDO DE CASO: GÊNESIS 1 De grande importância no período patrístico foi a necessidade de estabelecer uma cosmovisão cristã (judeu-cristã, para ser mais exato) em face das muitas e diferentes religiões e filosofias com que a igreja precisava concorrer. A questão fundamental nesse conflito foi a doutrina da Criação, que por muitas razões era incompatível com concepções pagãs do universo. Judeus e cristãos enfrentavam um clima inte­ lectual em que a maioria das pessoas acreditava que o mundo material era eterno, caótico e mau. Elas não conseguiam enxergar vínculo algum entre a matéria e o espírito, mas somente uma oposição radical que os colocava em confronto. Pela visão judeu-cristã, em contrapartida, a matéria havia sido criada boa, por um Deus bom, que a ordenou de acordo com seus propósitos. Independentemente de outras possíveis concessões ao helenismo, nesse aspecto não podia haver concessão algu­ ma. A questão era ainda mais importante para cristãos do que para judeus, visto que dela dependia a credibilidade da encarnação do Filho de Deus. Aqui examinaremos três diferentes abordagens dessa questão. Em primeiro lugar, temos a alegoria de Filo adotada pela tradição alexandrina. A ela se segue a interpretação literalista de Basílio de Cesareia, complementada por Gregório de Nissa, que pode representar a abordagem antioquena do problema, contudo, devemos sempre lembrar que nenhum desses homens era tipicamente antioqueno, e sobretudo Gregório mostra-se alexandrino em suas outras obras. Por fim, analisaremos Agostinho, que combinou essas duas abordagens em uma síntese que deixaria sua marca no pensamento medieval do Ocidente.

Filo O ensino de Filo sobre o assunto se encontra em seu famoso D e opificio m u n di [Da criação do m undo], um tratado com 61 seções. No início, causa surpresa o fato de que ele pouco se aventura nos extremos da alegoria; em geral, parece que Filo está satisfeito em desenvolver um relato relativamente literalista da questão.

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O aspecto mais curioso é sua predileção pela numerologia, segundo a qual ele explica o significado dos seis dias. M as o leitor logo descobre que Filo reserva seu tratamento alegórico para a segunda parte do tratado, em que o desenvolve muito claramente. Além disso, essa segunda parte dá origem a mais uma obra, Legum allegoria [Da alegoria das leis], em que ele expõe Gênesis 2 e 3 de modo totalmente alegórico. Filo começa elogiando a beleza do relato de Moisés (seção 1) e, então, con­ tinua esboçando sua originalidade como pensador. Ao contrário dos pagãos, que iihaginavam que o universo material era eterno, Moisés reconhecia que somente as realidades mais elevadas e espirituais podiam afirmar essa distinção (2). O mundo material estava em constante fluxo e, portanto, não podia ser eterno. M as o que não é eterno precisa vir de algum lugar, e Moisés revelou que o mundo havia sido criado por Deus, a quem também chama de Pai desse mundo. Essa criação, segundo o relato, ocorreu em seis dias, mas Filo nos adverte de que eles não devem ser interpretados literalmente. Os seis dias são uma estrutura em que se situa a obra da Criação. Filo defende esse esquema específico dizendo que seis é o número ideal para representar a perfeição da criação, pois três é o número da masculinidade, dois é o número da feminilidade e seis é o resultado da multiplicação de um pelo outro. Seis, portanto, é o número produzido quando o macho e a fêmea coabitam, de modo que a atividade procriadora humana é vista como paradigma da obra de criação de Deus. Filo então mostra que o primeiro dia é distinto dos outros pelo fato de que nele nada foi criado, e também observa que não é chamado de primeiro dia, mas simplesmente de “um”. Filo, então, segue expondo o significado desse primeiro dia (4). Ele afirma que nesse dia Deus criou os mundos mentais e espirituais, antes do surgimento da matéria. Desse modo, Filo afirmava que o universo espiritual fazia parte da ordem criada e era superior à parte material da criação. Quando consideramos que a maioria dos gregos da época pensava que o mundo espiritual era uma parte eterna do divino e que a matéria também era eterna (porém má), podemos perceber como é significativa a reorganização que Filo deu a essas coisas. Em contrapartida, ele segue a noção platônica de que o universo começou como uma ideia na mente de Deus, que então foi trazido à existência segundo seu plano preconcebido (5). A criação que Deus fez era boa (6), e isso representava mais um ataque às ideias filosóficas gregas. Sua bondade não era a bondade absoluta de Deus, ob­ viamente, mas uma bondade relativa, adequada à sua natureza. A manifestação mais elevada dessa criação era o homem, criado à imagem de Deus e, portanto,

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participante da bondade divina. Ao contrário dos platônicos, Filo relativiza a noção de bem, tornando-a dependente daquilo que é observado. Desse modo, ele conseguiu elogiar a bondade de coisas finitas — uma contradição lógica para a mente platônica. Na seção 7 , Filo afirma que Deus criou o céu e a terra no princípio e define “princípio” como uma referência à ordem da Criação, e não a uma seqüência no tempo. Ele diz que o tempo foi criado juntam ente com o mundo, pois ele não poderia existir sem o espaço e a possibilidade de movimento. Mesmo que toda a criação tenha sido criada simultaneamente, defende Filo, isso não exclui o fato de que possui uma ordem interna, e ele se empenha em destacar esse aspecto. Nas seções 8 e 9, Filo continua descrevendo a separação entre luz e trevas, que ele compreende como a exclusão do caos pela luz divina. Uma vez feito isso, tudo está pronto para a criação do mundo material, começando com os “céus”. Essa é a parte da matéria mais parecida com o mundo espiritual, motivo pelo qual a Bíblia a emprega para simbolizá-lo (10). As seções seguintes (11-13) são dedicadas ao terceiro dia, e Filo explica como Deus ordenou os padrões cíclicos de reprodução como parte de sua obra da Criação. Em sua análise do quarto dia (14-19), Filo retorna à sua numerologia a fim de explicar por que a ordenação do céu vem depois da ordenação da terra. O quarto dia, ele afirma, é o mais apropriado para isso, porque o número quatro contém uma promessa de perfeição, que é representada por dez. Dez é o re­ sultado da soma dos primeiros quatro números; logo, o quarto dia era aquele reservado para o provimento do céu. O sol e a lua são luzes para o intelecto, tan­ to quanto para os olhos, e representam a presença da razão no mundo material, bem como no domínio espiritual do dia “um”. A criação das criaturas começa no quinto dia (20-22) e culmina na criação da criatura mais elevada, o homem (23-29). Filo faz questão de enfatizar que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus, e essa é sua característica mais importante. Ao contrário de exegetas cristãos posteriores, ele trata a im a­ gem e semelhança como uma só coisa e a identifica com a mente humana, que é uma imagem da mente de Deus. O aspecto mais curioso do relato da criação do homem na compreensão de Filo é a forma plural da exortação: “Façamos o homem à nossa im agem ...”. Filo afirma que, em princípio, Deus é o único criador, mas, obviamente, tudo o que ele faz é bom. O problema é que o homem é parcialmente bom e parcialmente mau. Por essa razão, diz Filo, Moisés pre­ cisou ressaltar que Deus teve a participação de outros seres celestiais quando o

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homem foi criado, para que ele pudesse ser considerado responsável pela parte boa do homem e responsabilizasse os demais pela parte má. Filo também se empenhou em tentar explicar por que o homem foi criado por último, embora fosse a mais elevada das criaturas, mas isso não era muito difícil de compreender. Deus obviamente queria que o homem desfrutasse o melhor que a criação tinha para oferecer e, assim, criou todo o restante primeiro, em preparação para a chegada do homem. Nas seções 30-43, ele chega ao sétimo dia, que associa com a perfeição por causa do número sete. Sua análise do signi­ ficado desse número é extremamente longa e detalhada, e parece bem peculiar para qualquer pessoa sem familiaridade com a numerologia. O contraste com o restante da exposição é especialmente notável, e o leitor atual é capaz de pensar que essas seções poderiam ser omitidas sem grande perda. M as é óbvio que, para Filo, todos os elementos no relato dos seis dias são somente uma preparação para o sétimo dia, em que podemos contemplar a perfeição extraordinária do plano de Deus. Sua análise matemática tem o objetivo de testemunhar essa perfeição racional, e é por essa razão que Filo gasta tanto tempo a elaborá-la. O que ocupa a maior parte do restante do tratado (44-60) é a análise que Filo empreende de Gênesis 2.5-25, que ele considera uma recapitulação do que veio antes. E nesse momento que nos é apresentado o significado alegórico do que já lemos. Filo considera Gênesis 2 um resumo alegórico de Gênesis 1, que nunca teve a intenção de ter sentido literal. Por exemplo, ele interpreta a menção de “erva do campo” em Gênesis 2.5 como uma referência a uma realidade espiritual que existia antes da criação da imagem material. Como ele diz: “Antes de a terra fazer brotar seus brotos verdes, havia um viçoso verdor, ele nos diz, na natureza das coisas, sem forma material, e antes de a erva brotar na terra, existia uma erva invisível” (44). O mais chocante de tudo, para nosso modo de ver as coisas, é sua afirmação (46) de que o homem formado do barro da terra em Gênesis 2.7 de modo algum é o mesmo homem formado à imagem de Deus em Gênesis 1.26. O homem da terra é o Adão que caiu, mas o homem à imagem de Deus é um ser espiritual que permanece em seu estado não caído. Ao contrário de muitos de seus contemporâneos para quem a ideia de um homem celestial exercia forte atração, Filo não dá destaque a esse homem. Em vez disso, ele concentra a atenção no homem terreno, a quem descreve como uma criatura excelente, formada pela união de corpo e alma, nos quais é implantada a razão divina. Esse Adão é superior a nós, seus descendentes, não por causa de sua ausência de pecado, mas por ter sido criado primeiro; ao longo do tempo, esse modelo se desgastou e se deteriorou.

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Assim como tantos exegetas antes dele, Filo considerava a criação da mu­ lher o início dos problemas para Adão (53). A mulher representa tudo o que é sensual, e foi isso que fragilizou o homem, um ser mais racional. No entanto, é importante lembrar que ele não culpa a mulher pela Queda. Esta foi conse­ qüência de uma escolha deliberada do homem, e é ele que precisa levar a culpa por isso. Não há nele sinais da profunda misoginia encontrada em Tertuliano, por exemplo, para quem a mulher era a grande tentadora e fonte de todo o mal. É necessário situar em seu contexto a atitude de Filo em relação à mulher; em comparação com outros de sua época, ele era quase um feminista. Filo resume seu relato da Criação com cinco pontos teológicos. Aprendemos em Gênesis 1 que Deus é eterno; Deus é Um; o mundo foi criado; o mundo é um universo singular, do mesmo modo que seu Criador é uno — não há nenhum dualismo na Criação; e Deus governa o mundo por um ordenamento providencial. Aqui estamos em terreno mais conhecido. Independentemente do que venhamos a pensar sobre as tendências alegóricas de Filo, ou sobre sua numerologia, podemos concordar que doutrinariamente ele está unido com a igreja em todas as épocas. Seus métodos para explicar essas coisas podem ser antiquados, mas suas conclusões são válidas tanto hoje quanto na época em que foram tiradas pela primeira vez.

Basílio de Cesareia e Gregário de Nissa A grande obra de Basílio sobre a criação é seu H exaem eron (H examerão ou Os seis dias da Criação), que consiste em uma seqüência de nove sermões, abran­ gendo Gênesis 1.1-26. Basílio menciona brevemente a criação do homem, defeito mais tarde corrigido por seu irmão Gregório de Nissa, que manteve a exegese literalista de Basílio. O H exaem eron é escrito em estilo homilético, o que explica grande parte de sua exuberância bem como da natureza direta das aplicações. A posição de Basílio em relação à alegoria é muito clara. Ele diz: Eu conheço as leis da alegoria, embora nem tanto por mim mesmo, mas pelas obras de outros. Há aqueles que não admitem o sentido comum das Escrituras, para quem água não é água, mas outra coisa, que enxergam em uma planta, em um peixe, o que a sua fantasia deseja, que alteram a natureza de répteis e de animais selvagens para a adequarem às suas alegorias, à semelhança dos intérpretes de sonhos que explicam visões no sono para que sirvam a seus próprios fins. Para mim, erva do campo é erva do campo — planta, peixe, animal selvagem, animal doméstico, compreendo todos eles em seu sentido literal. Pois não me envergonho do evangelho (Rm 1.16) (9,1).

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E adiante na mesma seção: Acaso preferirei a sabedoria insensata aos oráculos do Espírito Santo? Por que não exaltarei aquele que, não desejando encher nossa mente com essas futilidades, regulou toda a economia das Escrituras com vistas à edificação e ao aperfeiçoa­ mento de nossa alma? Em minha opinião, é isso que não compreenderam aqueles que se entregaram ao significado distorcido da alegoria e se empenharam em dar às Escrituras uma majestade que eles mesmos inventaram. Consideram-se mais sábios do que o Espírito Santo e apresentam ideias próprias sob o pretexto t de exegese. Ouçamos as Escrituras como elas foram escritas. Os nove sermões de Basílio são assim divididos: 1. No p rin cíp io D eus criou o céu e a terra. Nesse sermão, ele começa comparando a beleza do relato da criação com a beleza de seu autor humano, Moisés. Isso pode parecer estranho e extravagante para nós, mas Basílio está comparando o texto com seu autor humano, enquanto Filo o comparou somente com Deus. Obviamente, Basílio acreditava que Moisés era inspirado pelo Espírito Santo, mas a mudança de ênfase é notável e significativa. Ele então relata várias teorias pagãs de cosmologia, incluindo a teoria atômica de Demócrito, para demonstrar que elas são fracas e contraditórias quando comparadas com o relato de Gênesis. Basílio não adota a ciência contemporânea para dar sustentação à sua exegese; pelo contrário, ele usa sua exegese para contradizer o melhor que a ciência da época tinha para oferecer. Ele postula uma visão linear do tempo e lhe dá um início real e um fim. Filo evidentemente não fez isso; ele considerava o “princípio” como figurado. M as Basílio segue a extensão da salvação na história e presta atenção tanto no juízo final quanto na Criação. Ele concorda com Filo sobre a existência de uma ordem das coisas na mente do Criador antes no início do mundo, mas considera isso um mistério cuja profundidade não pode ser sondada. No entanto, ele reco­ nhece que criaturas espirituais foram criadas fora do tempo e existiam antes da criação do mundo material. Basílio menciona em seguida os elementos da ordem criada, mas diz que estes não são mencionados nas Escrituras. Deus não quer que nos ocupemos com teorias científicas, mas com verdades espirituais. Teorias da natureza da matéria são muitas e diversas, e grande parte da criação é um mistério além de nossa compreensão. As Escrituras falam sobre essas coisas de modo poético, a fim de suscitar em nós um espírito de reverência e admiração. E, portanto,

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um grande erro impor significado à poesia bíblica que não está presente ali. A verdadeira atitude cristã é de adorar o Criador, e não de dissecar a criação, e é a essa postura que Basílio nos chama em suas observações finais. 2 .A terra era in v isív el e inacabada. Essa é a tradução que a Septuaginta dá à expressão “sem forma e vazia”, e é inevitável que o uso do termo “invisível” afete a interpretação de Basílio. Ele não está disposto a aceitar que a terra era uma ideia espiritual; para Basílio, “invisível” significa que estava oculta, ou debaixo da água, ou debaixo de uma nuvem de ar denso. Ele critica fortemente a escola alegórica, que naturalmente compreendia o termo “invisível”no sentido platôni­ co. Ele também faz fortes críticas aos que dizem que o Criador meramente deu forma a uma matéria já existente; para Basílio, a Criação vem do nada (ex nihilo). Na mesma linha, ele ataca aqueles que interpretam “luz” e “trevas” em um sen­ tido espiritual; para ele, essas realidades são puramente materiais, acessíveis ao exame dos sentidos. Qualquer sugestão de que o mal poderia ter origem em Deus é rejeitada com firmeza. O mal é resultado da desobediência humana, não parte do plano divino, e não pode ser encontrado na criação material. Ao tratar do espírito que era sustentado sobre a face das águas (LXX), Basílio considera a possibilidade de que se tenha em mente um tipo de vento, mas acaba se posicionando a favor da visão de que se trata de uma referência ao Espírito Santo, como até então sempre havia sido a interpretação da igreja. No entanto, para essa interpretação, ele depende de um autor siríaco (possivelmente Eusébio de Samosata) que alegou haver uma expressão desse tipo na língua siríaca, a qual, estando mais próxima do hebraico original, era provavelmente a mais correta. Basílio adota essa interpretação e diz que o texto significa que o Espírito “acariciava a natureza das águas como uma ave cobre seus ovos”, uma interpretação que não é estranha para leitores modernos. Basílio conclui com um discurso sobre a criação da luz e sobre a separação entre luz e trevas que fez surgir o dia e a noite. Sua interpretação é totalmente literal, sobretudo no fim, em que analisa por que o primeiro dia é chamado “um”. A visão de Basílio é que Deus quis estabelecer a relação desse dia, que era arquetípico do tempo, com a eternidade. O dia é um movimento cíclico, assim como a semana ou o ano. Portanto, essa unidade de tempo, repetida na eternidade, é o que Gênesis está sublinhando aqui, e não uma esfera espiritual acima e além da material. 3. D o firm a m en to. Aqui Basílio passa aos prodígios do segundo dia. Ele começa novamente se referindo à natureza fluida da narrativa, que considera evidência de sua veracidade. Basílio pondera que não era necessário que Deus

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proferisse as suas ordens, visto que facilmente poderia ter criado o firmamento em silêncio. O fato de que ele não faz isso indica que deveria estar falando com alguém; obviamente com o Filho, que é criador junto com o Pai. Ele passa então a relatar várias teorias pagãs, as quais rejeita, antes de voltar ao tema do firma­ mento em meio às águas. Basílio interpreta isso como a ordenação do universo por Deus de tal modo que ele mantenha sua estabilidade até o fim dos tempos. Ele compreende as águas acima do firmamento como referência à chuva e ao or­ valho que caem do céu, e a sugestão de que acima há mais um mundo, superior a este, é completamente condenada. Basílio termina exaltando a beleza e a bondade da criação, que vêm direta­ mente da mão do Criador e Artista da matéria. 4. A respeito do aju n tam en to das águas. Basílio usa esse versículo para de­ senvolver uma teoria sobre o movimento das águas. Água que está espalhada por todo canto está estagnada, ele diz; somente quando concentrada em um só lugar é que ela começa a fluir. Basílio considera impossível interpretar as pala­ vras “num só lugar” de modo absolutamente literal, mas argumenta que Deus está delimitando as águas para que possa surgir terra seca. Tanto a água como a terra seca são boas aos olhos de Deus, e as duas são igualmente necessárias para a vida humana. 5. A germ in a çã o da terra. Esse sermão é uma descrição detalhada da flora, livre de interpretação alegórica. Basílio demonstra grande conhecimento desse tema em seu sermão e tem prazer em compartilhar esse conhecimento com seus ouvintes, que certamente também tinham familiaridade com o solo. 6 .A criação de corpos lum inosos. Aqui Basílio passa ao quarto dia, mas não há sinal algum da numerologia de Filo. O Sol e a Lua foram criados para serem condutores de luz, como um lembrete para nós de que, apesar das aparências, eles não são a fonte da luz. Ele tira proveito desse versículo para fazer um forte ataque à astrologia, que ele considera um completo absurdo. O Sol, a Lua e as estrelas são sinais, não de nosso destino espiritual, mas do ordenamento provi­ dencial que Deus faz do universo. 7 .A criação de seres que se m ovem . Basílio aproveita a oportunidade para falar detalhadamente das criaturas aquáticas, sobre as quais tem grande conhecimen­ to. Sua descrição da natureza é extremamente vivida e memorável. Perto do fim do sermão, há uma curiosa digressão sobre o assunto do casamento, em que Basílio exorta casais infelizes a permanecerem juntos assim como uma víbora se une com uma lampreia marítima! Como Basílio diz: “O que isso significa? Por mais severo, por mais furioso que um marido possa ficar, a mulher deve

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permanecer com ele e não desejar encontrar algum pretexto para romper a união. Ele te ataca, mas é teu marido. Ele é um bêbado, mas está unido a ti por natureza. Ele é bruto e rabugento, mas doravante é um de teus membros, e o mais precioso de todos”. S. A criação de a ves e anim ais aquáticos. Esse sermão é a continuação do an­ terior, com uma atenção semelhante a detalhes. No meio dele, Basílio passa à expressão “Produza a terra almas viventes” e conclui que criaturas sem razão têm uma alma que faz parte de sua carne e sangue e que perece com elas. Essa é uma observação importante, que ele promete aplicar à humanidade em um estágio posterior, mas a série de sermões é interrompida antes disso. A maior parte do sermão se dedica a uma explicação detalhada das aves, em que Basílio demonstra sua capacidade de observação e seu profundo interesse pela natureza. 9.A criação de anim ais terrestres. Nesse sermão, Basílio trata das fantasias dos alegoristas (veja as citações acima) antes de continuar descrevendo os animais que vagam sobre a face da terra. No fim do sermão, Basílio chega à criação da humanidade. Ele naturalmente associa o plural (“Façamos o homem [...]”) ao Pai e ao Filho, que trabalham juntos. Para Basílio, o fato de que a humanidade é criada “à nossa imagem” é o que exclui a possibilidade de que Deus estivesse falando com anjos; somos criados à imagem do Filho, e assim fica claro que o Pai só pode estar falando com ele. Basílio tinha a intenção de seguir e expor a criação da humanidade com mais detalhes, mas esse sermão acabou sendo o último da série, que é interrompida neste ponto. O H exaemeron de Basílio foi concluído em data posterior por seu irmão, Gregório de Nissa, que escreveu um tratado em trinta capítulos intitulado D e opificio hom inis [Sobre a criação do homeni\. Não é um sermão, mas uma obra de filosofia, com um estilo bem diferente do estilo de Basílio. No entanto, o método exegético é o mesmo método adotado por Basílio, e nesse aspecto difere grandemente das outras obras hermenêuticas de Gregório, que são essencialmente alegóricas. Depois de um resumo introdutório da obra de Basílio, Gregório continua analisando a criação da humanidade com riqueza de detalhes. Assim como Filo, ele acredita que a humanidade foi criada por último porque Deus queria preparar o mundo e deixá-lo pronto para ser habitado pelo homem. Gregório exalta a humanidade como a glória suprema da criação e se estende com alguns detalhes a todos os aspectos de sua existência. Ele tende a assimilar a imagem de Deus ao domínio que homens e mulheres receberam sobre as criaturas, embora isso esteja implícito em vez de claramente afirmado. Ele considera a mente um acréscimo à imagem (9), para fazê-la refletir mais plenamente a natureza de Deus.

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Depois de uma longa análise da mente e de sua relação com a alma, Gregório volta ao problema da imagem divina (16). Gregório observa que as Escrituras dizem que a imagem divina abarca tanto o masculino como o feminino, o que é um afastamento do protótipo, visto que em Jesus Cristo não há homem nem mulher (G13.28). Gregório conclui a partir disso que a natureza humana é uma combinação do racional e do irracional. O aspecto racional é o elemento divino, que não admite a distinção de masculino e feminino; o irracional está estrei­ tamente ligado à nossa sexualidade e à nossa natureza animal. Naturalmente, Gregório prefere o primeiro e no restante do tratado se dedica a nos convencer de que a vida em Deus é muito melhor que o prazer sexual ou outras formas de indulgência carnal. Quando chega à Queda, Gregório repete a convicção comum de que o casal foi seduzido por seus sentidos, mas, assim como Filo, não culpa a mulher por isso. De acordo com Gregório, tanto o homem como a mulher são enganados pelo fruto da árvore; ele não tenta retratar a mulher como uma tentadora má. O restante do tratado é uma análise da ressurreição, incluindo o que significa afirmar que o corpo ressuscitará. O foco está inteiramente no fim dos tempos, no juízo final e na vida dos redimidos no céu — uma dimensão escatológica característica do cristianismo e que não pode ser ignorada, visto que explica o propósito da criação. Em contraste acentuado com Filo, tanto Basílio como Gregório fixam os olhos no fim, bem como no início, e sua teologia está soli­ damente enraizada no plano eterno de Deus para a salvação da raça humana.

Agostinho Agostinho era fascinado pelo relato da Criação em Gênesis e escreveu detalha­ damente sobre o assunto. No início de sua trajetória, ele adotou uma abordagem alegórica do texto e a usou para combater os maniqueístas. M ais tarde, escreveu um longo comentário sobre a mesma passagem, em que a tratou de acordo com seu sentido literal. Nos últimos três livros de Confissões (escrito por volta de 400), ele combinou as duas abordagens, e é esse tratamento que examinaremos brevemente aqui. Agostinho dedicou a maior parte do Livro 11 e todo o Livro 12 ao primeiro versículo: “No princípio, Deus criou os céus e a terra”. É possível subdividir esse tratamento especialmente longo de um só versículo em três aspectos principais: a relação entre tempo e eternidade; a relação entre a criação invisível e a visível; e a interpretação adequada das Escrituras.

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Em primeiro lugar, Agostinho tentou explicar como um Deus eterno po­ de agir no tempo. Ele tinha consciência da dificuldade de definir o tempo e confessou ignorância em relação a uma atuação de Deus nas duas dimensões ao mesmo tempo. Ele estava fortemente tentado a interpretar a expressão “no princípio” como uma metáfora que significava “em primeiro lugar” (12.29), mas se recusou a afirmar categoricamente que essa era a única interpretação possível. Em segundo lugar, ele defendeu que, caso se interpretasse a expressão de modo figurado, seria necessário interpretar “os céus e a terra” como “os mundos invisí­ veis e visíveis”, porque de outro modo o restante do capítulo seria uma repetição do que já havia ocorrido. No entanto, Agostinho reconheceu que o primeiro versículo talvez fosse uma espécie de título, ou introdução, resumindo o que viria a seguir, de modo que sua interpretação preferida não era a única possível. Acima de tudo, Agostinho tinha interesse em evitar uma discussão fútil so­ bre o significado “correto”, quando muitos outros significados eram igualmente possíveis. Ele fez essa observação com bastante ênfase em 12.30,31: Também honremos Moisés, teu servo, que entregou tuas Escrituras a nós e estava cheio de teu Espírito, crendo que quando escreveu essas palavras, por tua inspiração seus pensamentos foram dirigidos para todo sentido que emite a mais plena luz de verdade e nos permite tirar o melhor proveito. Por essa razão, embora eu ouça pessoas dizendo “Moisés quis dizer isso” ou “Moisés quis dizer aquilo”, penso ser mais religioso dizer “Por que razão ele não teria os dois significados em mente, se os dois são verdadeiros?”. E se outros enxergam nas mesmas palavras um terceiro ou quarto ou qualquer número de significados verdadeiros, por que não devemos acreditar que Moisés enxergou todos eles? Há somente um Deus, que fez com que Moisés escrevesse as Escrituras Sagradas do modo mais adequado à mente de grande número de homens, e nelas todos enxergariam verdades, embora não as mesmas verdades em cada caso. Críticos literários modernos não aceitariam a ideia de que Moisés conhecia todos os significados possíveis do texto, mas de modo geral simpatizam com a convicção de Agostinho de que diferentes níveis de significado são possíveis e que é errado lim itar o texto a uma só interpretação. No livro 13 de Confissões, Agostinho tratou mais brevemente do restante do capítulo, aplicando sua teoria dos diferentes níveis de significado à medida que avançava no trabalho. Aqui fica evidente que o sentido literal deu lugar a um significado espiritual na maioria dos casos. Agostinho interpretou a famosa ordem “H aja luz” como algo aplicável somente ao domínio espiritual (13.3), porque ela já existia quando a ordem foi dada. A luz concedida a seres espirituais

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era o meio pelo qual poderiam se voltar para Deus e adorá-lo como seu Criador. M ais adiante, ele identifica o firmamento com as Escrituras (13.15): E quem, senão tu, nosso Deus, estendeu sobre nós um firmamento de autori­ dade, da tua divina Escritura? O céu se dobrará como um livro, e agora ele se estende sobre nós como um pergaminho. [...] Há outras águas, creio eu, sobre esse firmamento: águas imortais e isentas da corrupção terrena. Que elas lou­ vem teu nome! Que os povos celestes de teus anjos te bendigam, pois não têm necessidade de olhar esse firmamento, nem de ler para aprenderem a conhecer tua palavra! Porém, a característica mais notável no Livro 13 é o modo como Agostinho encontra o Espírito Santo atuando nele. Não é de surpreender que ele tenha vinculado o Espírito de Gênesis 1.2 ao Espírito Santo ou que tenha pensado em Deus principalmente como o Pai. M as é incomum, para dizer o mínimo, encontrar o Filho na palavra “princípio” — mais um exemplo da quantidade de significados diferentes que poderiam ser impostos a um texto (13.5). A automanifestação suprema de Deus como Trindade na unidade e unidade na Trindade é encontrada na criação da humanidade (13.22): Eis por que, depois de falar no plural “Façamos o homem”, se diz, no singular, “E Deus criou o homem”. Depois do plural “à nossa imagem”, este singular: “à imagem de Deus”. Assim o homem “se renova pelo conhecimento de Deus, à imagem de seu criador”. Agostinho continuou desenvolvendo a ideia de que a humanidade foi criada à imagem da Trindade, mostrando que a mente humana possui ser, conheci­ mento e vontade, assim como Deus também os possui. Sob esse aspecto, sua interpretação de Gênesis 1.26 foi singular entre os pais da igreja, e seu foco na interação de forças na mente humana foi um dos fatores que acabaram produ­ zindo o desenvolvimento da psicologia moderna. B ib l io g r a f ia

C onfessions (London: Penguin, 1961). _______ [A g o st in h o ]. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos; Ambrósio de Pina (São Paulo: Nova Cultural, 1996). Tradução de: Confessions. B a s i l of C a e s a r e a . H exaemeron. In: S c h a f f , P. Library of Nicene and PostNicene Fathers.2. série (New York: Christian Literature Publishing, 1895). vol. 8. p. 51-107.

A

u g u s t in e .

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r e g o r y of

4 A INTERPRETAÇÃO MEDIEVAL O período e o tema <►-

O período medieval de interpretação bíblica é um dos mais complexos e difíceis, e não recebeu de teólogos e estudiosos da Bíblia a atenção que merece. A maior parte do trabalho nesse campo foi realizada por medievalistas, que não podem escapar do papel onipresente que a Bíblia desempenhou durante esses séculos. M as os medievalistas têm interesses próprios e o acesso imediato à sua obra nem sempre é possível para o teólogo. Também há o fato de que séculos de treinamento tornaram os estudiosos protestantes especialmente cautelosos com o período medieval, que eles costumam enxergar como uma era de escuridão. Como os mais recentes estudiosos da Bíblia em sua maioria são protestantes, esse preconceito contribuiu para a relativa negligência da exegese medieval. A transição do mundo antigo para a Idade M édia durou muitos séculos e ocorreu em uma velocidade inconstante. O processo começou com a queda do Império Romano ocidental (476), mas a real ruptura com o passado veio no século oitavo, depois de o norte da África, Egito, Síria e a maior parte da Espanha terem sido conquistados pelo Islã. Como conseqüência das conquistas árabes, a antiga cultura mediterrânea se fragmentou, juntamente com as ligações tradicionais entre Roma e o Oriente. Depois de 750, Roma passou a buscar cada vez mais o apoio do reino franco da Gália, e, no dia de Natal de 800, o papa Leão III coroou seu governante, Carlos Magno, imperador do Ocidente. Carlos M agno promoveu um renascimento do aprendizado, o que reconhecia oficial­ mente que o mundo antigo havia desaparecido. Agora era necessário aprender o latim como língua estrangeira, até mesmo na Itália, e, em 812, sacerdotes re­ ceberam permissão para pregar no vernáculo (lin gu a rústica), um acontecimento que prenunciou o início das línguas românicas modernas. No entanto, o latim continuou sendo a língua da cultura da Europa ociden­ tal, um desenvolvimento que foi reforçado por um grupo de teólogos do século nono, que proclamaram o que ficou conhecido no Oriente como a “heresia das

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três línguas”. Eles afirmavam ser possível adorar a Deus somente em três línguas — hebraico, grego e latim. Porém, o hebraico havia caído em desuso por causa da apostasia dos judeus, e os gregos eram propensos a heresias. Somente o latim continuava puro e, portanto, somente nessa língua era possível adorar a Deus. Assim, toda a cristandade ocidental passou a adorar a Deus em uma língua estrangeira, fato que causaria uma crise no século 16. Entretanto, uma língua comum tinha suas vantagens, obviamente, e a Europa medieval era uma única região da perspectiva cultural. Em especial, Inglaterra e França tiveram um forte vínculo durante muito tempo, e estudiosos ingleses prestaram uma contribuição notável à vida intelectual parisiense. Sendo obrigados a trabalhar usando uma língua estrangeira, os estudiosos também foram obrigados a realizar um estudo cuidadoso dela, e nenhum período em nosso panorama foi mais sensível à natureza e às possibilidades da língua. Isso teve grande influência sobre a interpretação bíblica, que somente agora está começando a ser apreciada. A exegese gramatical, uma espécie de luxo na era patrística, havia se tornado uma necessidade, e era amplamente praticada apesar da predominância geral da alegoria. Conhecimento de grego foi raro até o século 15, mas um número surpreendente de exegetas medievais conhecia um pouco de hebraico e conseguiu fazer uso da interpretação bíblica judaica. A Idade M édia também se caracterizou pela necessidade geral de recorrer à autoridade antiga. Agostinho de Hipona era a fonte comum para quase tudo, e seus métodos de interpretação bíblica, esboçados em D e doctrina christiana \A doutrin a cristã], tornaram-se universais. Em tempos antigos, a Bíblia havia sido um livro entre muitos, mas agora se tornava o único livro sobre o qual muitas pessoas tinham conhecimento. A sociedade medieval criou uma cultura cristã em todos os aspectos, e não meramente em suas observâncias religiosas. Leis seculares e governamentais foram reformuladas de acordo com o Antigo Testamento. Temas, alusões e terminologia bíblicos permeavam a arte, a literatu­ ra e a música. M uitas vezes, isso significava batizar o passado pagão e reciclá-lo com uma nova aparência, mas o simples fato de isso ser feito revela a extensão do alcance do cristianismo na cultura europeia da época. A Bíblia, embora lida somente por estudiosos, tornou-se a única fonte e guia de toda a civilização. Essa nova condição do texto das Escrituras significava que elas precisavam ser cuidadosamente supervisionadas e controladas. Para que a sociedade perma­ necesse coesa, era necessário haver uma compreensão comum de seu documento básico, para que não houvesse quaisquer leituras ou interpretações divergentes. Pregadores que as interpretavam para si mesmos corriam o risco de provocar

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uma revolução política, bem como religiosa, conforme aconteceu em várias oca­ siões. O Estado e a igreja tinham interesse de suprimir uma reforma baseada na Bíblia, como John W ycliffe e seu discípulo João Huss descobriram pagando um alto preço. O árbitro dessa sociedade era o papado, instituição que na Idade M édia se desenvolveu e passou de um ofício puramente eclesiástico para um grandioso poder mundial. Desde a época das Reformas Cluníacas em 1059, que tornaram as eleições papais livres do poder secular, até o chamado “cativeiro babilônico”do papa de Avinhão (1305-1376), o papado praticamente governou a Europa ocidental. Em geral, ele tolerava um razoável grau de liberdade acadê­ mica, mas quando tomava uma decisão, esperava ser obedecido. A igreja, e não a argumentação racional, era a autoridade suprema em questões de controvérsia. Na Idade M édia, a maioria dos estudiosos e teólogos voltou o olhar para uma era de ouro que havia desaparecido, era que eles tentavam preservar e expli­ car à sua própria geração. Paradoxalmente, foi esse desejo que fez com que eles buscassem novos modos pelos quais isso pudesse ser feito e, no decurso dessa busca, descobrissem que, no final das contas, as tradições que haviam herdado não eram perfeitas. Essa compreensão demorou a aparecer, e não apareceu em todos os lugares ao mesmo tempo, mas, quando ocorreu, a sociedade medieval foi abalada em seus alicerces e deu lugar a uma cultura nova e mais secular. Classificar a Idade M édia por períodos é difícil, por causa do peso do tradicionalismo e do ritmo lento das mudanças. Mesmo assim, é possível distinguir quatro períodos principais: O p eríod o a té 800. Esse foi um período de transição em relação ao mundo 1. antigo, em que a maioria das pessoas não aceitava a permanência das mudanças que haviam ocorrido desde o quinto século. Teoricamente, o Império Romano continuou existindo, com um imperador em Constantinopla, que um dia rei­ vindicaria todos os territórios que seus antepassados haviam governado. Isso parece um sonho fantasioso para nós, mas é o que a maioria das pessoas na época acreditava, uma realidade que afetou profundamente suas perspectivas. A vida intelectual durante esse período permaneceu vigorosa no Oriente, mas contro­ vérsias teológicas cada vez maiores geraram quase uma proibição de qualquer interpretação bíblica nova (no Concilio de Trullo, 692). O estudo erudito tam­ bém desfrutou de um florescimento notável nas ilhas britânicas, em que monges irlandeses e depois anglo-saxões deram continuidade às tradições da antiguidade. Em outros lugares, no entanto, esse período ficou conhecido como a “Idade das Trevas”, em virtude de seus baixos padrões de conhecimento em termos gerais.

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2. 0 p erío d o d e 800 a té cerca d e 1150. Esse foi o período da Idade M édia A ntiga, quando a Europa ocidental começou a criar uma cultura e civilização novas. Depois do ano 1000, aproximadamente, houve uma estabilidade cada vez maior, e centros de saber se desenvolveram. U m a nova erudição surgiu nos mosteiros e foram estabelecidas importantes escolas em que a exegese bíblica era ensinada. Essas escolas estavam ligadas a mosteiros e, mais tarde, a catedrais. Inicialm ente, houve pouca originalidade em tudo isso, mas ela também surgiu ao longo do tempo. Por volta de 1150, a Europa ocidental estava pronta para uma decolagem intelectual, e a era de ouro conhecida como A lta Idade M édia começou. 3. O p eríod o d e cerca de 1150 a té cerca de 1300. Esse foi o período da Alta Idade M édia, a época de um papado poderoso, de cavaleiros com armadura lustrosas e do amor cortês. Também foi a época em que surgiram as univer­ sidades, das quais as mais famosas eram Paris, Oxford, Cambridge e Colônia. Esse período também assistiu ao maior florescimento da filosofia, teologia e escrita mística medievais. O mundo medieval recebeu o primeiro golpe intelec­ tual com a tradução de Aristóteles (do árabe, não do grego!) no século 12. Esse fato foi considerado uma ameaça tão grande à ordem existente que o estudo de Aristóteles foi continuamente proibido — a última e mais famosa ocasião dessa proibição foi a condenação de suas obras pela Sorbonne em 1277. Nessa época, no entanto, Aristóteles havia sido absorvido pelo sistema teológico da igreja, graças à obra de Tomás de Aquino (1226-1274), e seus escritos já não eram um perigo tão grande para a ordem existente. 4. O p eríod o de cerca de 1300 a t é 1500. Pode-se chamar esse período de Idade M édia Tardia. Durante essa época, a Europa foi devastada pela Peste Negra, e a cristandade oriental (excluída a Rússia) caiu debaixo do controle turco muçul­ mano. A igreja sobreviveu ao exílio do papa em Avinhão (1305-1376) e ao cisma que veio depois (1378-1417), mas no século 15 novos movimentos intelectuais começavam novamente a aparecer, e dessa vez demonstravam ser incontroláveis. O sistema escolástico de Tomás de Aquino ruiu, e não houve substituto de acei­ tação geral. Os estudiosos passaram a seguir cada vez mais seu próprio caminho e questionaram as autoridades que haviam aceitado no passado. Documentos antigos foram redescobertos, e procurou-se popularizar o novo saber, sobretudo o conhecimento da Bíblia, que ainda era considerada indispensável. Surgiu tam­ bém o nacionalismo, e a consciência de pertencer a uma só civilização começou a decair. Literaturas nacionais agora começavam a aparecer e, com a invenção da imprensa, foi inaugurado um vasto e novo mercado de livros.

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A Bíblia estava no centro de tudo isso e tanto tradução como interpretação adquiram uma nova urgência. Estudiosos gregos chegaram do Oriente, fugindo de uma Bizâncio em ruínas, e trouxeram consigo um saber cristão desconhecido até então. Estudiosos mais uma vez começaram a estudar as línguas bíblicas e descobriram que a Vulgata latina não era perfeita. Eles também descobriram que muitas tradições antigas, como a convicção de que o papa havia recebido sua autoridade do imperador Constantino, eram falsas. A igreja não soube lidar com uma ameaça tão grande à sua autoridade, e, por volta de 1500, estava perdendo o controle da interpretação bíblica, que agora estava firmemente nas mãos da nova classe de estudiosos da Renascença. M ais do que qualquer outra coisa, foi isso que marcou o fim da ordem medieval e o início de um novo estágio na vida cultural da cristandade ocidental.

Os intérpretes e sua obra Visto que a Bíblia era o livro central da cultura medieval, não é nenhuma sur­ presa que praticamente todos os autores do período tenham escrito sobre ela de um modo ou de outro. Um alto número de manuscritos, muitos deles não editados, sobreviveram para comprovar isso. Os nomes a seguir representam so­ mente uma seleção dos intérpretes da Bíblia mais expressivos do período. Com base na classificação em períodos acima, podemos distinguir os estágios a seguir.

Antes de 800 João Cassiano (360-435). M onge origenista que viveu e trabalhou durante a era de ouro da teologia patrística, Cassiano não se destacou em sua própria época. No entanto, ele se tornou amplamente popular na Idade M édia Antiga, graças ao elogio que recebeu de Gregório, o Grande, e de Cassiodoro; portanto, pertence a esta época e não a sua própria. Cassiano foi responsável por uma classificação diferente dos sentidos da interpretação, que se tornou comum na escrita medie­ val. Aos três sentidos de Orígenes ele acrescentou um quarto, o chamado sentido “mistagógico” ou místico, que logo se tornou o mais importante de todos. Junílio (fl. c. 550). Oficial que falava latim na corte de Justiniano em Constantinopla, Junílio escreveu uma breve introdução à Bíblia (Instituía re­ gu la ria d iv in a e legis [Regras da lei divina]), na qual se inspirou extensamente em Teodoro de Mopsuéstia. A obra sobreviveu à condenação de Teodoro e foi amplamente lida no Ocidente, onde teve influência na manutenção do sentido literal das Escrituras.

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Isidoro de Sevilha (m. 636). Escreveu introduções a vários livros bíblicos, mas, ainda mais importante, deixou uma enciclopédia (a E timologias) de nomes, núme­ ros, datas e acontecimentos, que ele selecionou de exegetas anteriores, especialmente Jerônimo. Essa obra transformou-se em referência comum na Idade Média. M áximo, o Confessor (580-662). Foi um dos maiores teólogos bizantinos, cuja síntese notável de neoplatonismo e cristianismo se tornou um tema de grande fascínio entre estudiosos em anos recentes. Ele não escreveu comentá­ rios bíblicos, mas em Q uaestiones a d lhalassium [Questões aTalássio], tratou de 65 dificuldades que seu amigo Talássio encontrou ao ler as Escrituras. Máximo acreditava haver uma harmonia perfeita entre a revelação que Deus faz de si mesmo na natureza e sua Palavra nas Escrituras, as quais encontravam seu sig­ nificado e cumprimento em Cristo. Para desfrutar de Cristo plenamente, era necessário dominar até mesmo as partes mais difíceis da Bíblia, que ocultavam os mistérios mais profundos do universo. M áximo desempenhou um papel proeminente no desenvolvimento dos sentidos alegóricos da interpretação, e seu sistema mais tarde se tornou comum na igreja oriental. Ambrósio Autperto (m. 781). Escreveu um extenso comentário de Apocalipse em que analisou o mistério da história e o destino tanto da igreja como da alma do indivíduo. M ais tarde, essa obra foi especialmente importante para a mariologia por causa de seu tratamento alegórico da mulher grávida (Ap 12). Beato de Liébana (c. 750-c. 798). Clérigo espanhol que viveu uma geração após a conquista muçulmana da península e estava profundamente comprome­ tido com as lutas contra o Islã e contra o adocionismo espanhol. Ele é lembrado hoje principalmente por seu comentário de Apocalipse, que permaneceu entre os mais consultados na Espanha mesmo bem depois de esquecido seu propósito polêmico original. De importância principal nesse período foram as escolas estabelecidas e compostas por monges irlandeses e, mais tarde, por anglo-saxões. Não conhe­ cemos muitos deles pelo nome, mas há indicações de que eram atraídos pela exegese antioquena mais do que era comum no Ocidente na época. Os mais importantes entre os que conhecemos são os seguintes: Adelmo de M alm esbury (c. 640-709). Pupilo de Teodoro de Tarso, terceiro arcebispo de Cantuária e admirador de Teodoro de Mopsuéstia, Adelmo pode ter derivado sua predileção pelo senso comum e pelas interpretações literalistas de Teodoro, ou de Junílio, a quem cita. Uma alternativa é que ele talvez deva sua abordagem a uma fonte irlandesa, possivelmente Columbano. Seu nome está associado à versão em inglês do Saltério de Paris, que segue o Saltério “Gálio”,

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baseado no hebraico, e não a versão latina (o Saltério “Romano”, baseado na Septuaginta), paralelo a ele no manuscrito. Beda (672-735). Principalmente conhecido por sua famosa E cclesiastical h istory [H istória eclesiástica], Beda escreveu diversas obras exegéticas, que se destacam por seu uso restrito de alegoria e pela atenção que dedicou a deta­ lhes científicos. Suas obras bíblicas estavam entre as mais populares durante a Idade M édia, embora tenham sido amplamente esquecidas desde então. Sob alguns aspectos, Beda foi o “último dos pais”, mas ele foi claramente “medieval” >em seus métodos didáticos. Beda foi um forte defensor da visão de Jerônimo acerca do Antigo Testamento e um veículo de transmissão de grande parte de seu saber bíblico para a Idade M édia Tardia. A editora Cistercian Press (em Kalamazoo, estado norte-americano de M ichigan) recentemente se encarre­ gou de publicar traduções para o inglês de seus escritos bíblicos. Até agora foram publicados os comentários de Atos (1990) e das Epístolas Católicas (1985), bem como uma edição de dois volumes de suas H om ilies on th e Gospels [Homilias sobre os Evangelhos] (1991). M ais volumes estão em preparação.

De 800 a cerca de 1150 Alcuíno de Iorque (fl. c. 796-c. 804). Monge inglês que se tornou o principal conselheiro educacional de Carlos Magno, Alcuíno foi uma das principais figuras do Renascimento carolíngio do início do nono século. Escreveu comentários e fez uma revisão da Vulgata, que se tornou a versão comum usada até o século 16. Cláudio de Turim (m. c. 827). Espanhol a serviço de Carlos M agno, tornou-se Bispo de Turim em cerca de 816. Ele depois foi acusado de defender a heresia adocionista que havia assolado a Espanha durante sua juventude, mas a acusação não foi sustentada. No entanto, foi um opositor declarado da venera­ ção dos santos e da ideia da supremacia papal na igreja. Escreveu comentários de Gênesis, Levítico, Josué, Juizes, 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis, M ateus, Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses e Filemom. Também é provável que te­ nha escrito comentários de Exodo, Números, Deuteronômio e Hebreus, que se perderam. Sua exegese das Escrituras não foi original e dependeu amplamente de seus predecessores, especialmente de Gregório, o Grande, mas em sua época foi muito admirado por seu saber. Haim o de Auxerre (m. c. 855). Escreveu comentários de Cânticos dos Cânticos, dos Doze Profetas Menores, das epístolas paulinas e de Apocalipse, que até recentemente foram erroneamente atribuídos a seu homônimo, Haimo

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de Halberstadt (m. 853). Assim como a maioria de seus contemporâneos, sua obra dependeu quase inteiramente de seus antepassados patrísticos. Rábano M auro (c. 776-856). Pupilo de Alcuíno, foi um autor prodigioso que produziu comentários de Gênesis a Rute, Crônicas, Provérbios, Jeremias, Ezequiel, Sabedoria de Salomão, Macabeus, M ateus e das epístolas paulinas. Sua obra não foi original e dependeu quase inteiramente de fontes anteriores, sobretudo de Orígenes. No entanto, ele foi muito popular em seus dias e consi­ derado o fundador dos estudos eruditos alemães. Pascásio Radberto (m. 865). Seguindo a iniciativa de Euquério de Lião (m. 449), Pascásio acrescentou um elemento de análise teológica a seus comentários, uma prática que iria se expandir grandemente em séculos seguintes. Sua obra mostra uma originalidade muitas vezes ausente em seus contemporâneos. Ele também foi o primeiro a afirmar a doutrina da transubstanciação, que se tornou ensino oficial da igreja em 1215. João Escoto Erígena (m. c. 877). O mais atípico dos carolíngios, João foi um irlandês cujo conhecimento de grego foi suficiente para permitir que consultasse obras escritas nessa língua. Ao fazer isso, ele percebeu diversas discrepâncias entre o que os pais gregos haviam ensinado e o que era aceito de modo geral em sua época. Isso o levou a questionar as autoridades estabelecidas, e ele até admitiu que os pais, que podiam contradizer uns aos outros, estavam em um nível inferior às Escrituras, que não podiam ser autocontraditórias. Remígio de Auxerre (m. 908). Seu objetivo foi escrever comentários curtos e claros, sem se perder em análises teológicas. Suas referências à sociedade contem­ porânea em seu comentário de Salmos demonstravam seu interesse em aplicá-las a necessidades pastorais. Ele foi uma espécie de linguista e pode ter conhecido o hebraico bem como o grego. Foi o primeiro autor medieval que poderia ser corretamente chamado de estudioso da Bíblia na acepção atual do termo. Fulberto de Chartres (m. 1028). Parece responsável por um renascimento do interesse em estudos bíblicos, após um hiato de mais de um século. Seus métodos parecem ter sido o de “glosa”, um tipo de comentário contínuo do texto bíblico. Bruno de W ürzburg (c. 1005-1045). Foi autor de um conhecido comentá­ rio de Salmos que reflete a exegese cristológica comum do período. Pedro Damião (m. 1072). Usou as Escrituras como arma em suas iniciativas para reformar tanto a igreja como as ordens monásticas. Ele também as usou para decidir pontos de controvérsia doutrinária, comparando um texto com ou­ tro para produzir consenso. Sua exegese bíblica foi extremamente alegórica e

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concentrou-se muito em Cânticos dos Cânticos como padrão da união da alma com Deus. Otlo de Santo Emerão (m. c. 1073). Considerava as Escrituras a fonte de um ideal espiritual que ele recomendava aos monges e ao clero. Fez uma forte defesa da leitura devocional da Bíblia como modo de promover reformas pessoais de cunho moral e espiritual. Bérengar de Tours (m. 1088). Foi pupilo de Fulberto e, aparentemente o mais proeminente em uma escola de glosadores que se desenvolveu no final do século 11. Entre seus colegas e imitadores estavam Lanfranco de Bec (m. 1089), o primeiro normando a se tomar arcebispo de Cantuária (1070). Bruno Cartuxo (c. 1030-1101). Fundador da ordem dos cartuxos, escreveu comentários de Salmos e, provavelmente, também das epístolas paulinas. Sua obra reflete a exegese alegórica da época e foi extremamente valorizada por seu conteúdo devocional. Anselmo (m. 1117) e R alf (m. 1134 ou 1136) de Laon. Esses dois irmãos realizaram grandes avanços desenvolvendo uma forma sistemática de estudo bíblico, que veio a ser a ancestral direta da escolástica do século 13. Inspirandose em mestres anteriores, eles começaram a produzir uma glosa de todo o texto das Escrituras. Não concluíram essa obra, mas depois outras mãos a assumiram e acabaram publicando a Glosa ordinaria [ Glosa com um ] (c. 1135), que se tornou obra normativa nessa categoria. Bruno de A sti ou Segni (m. 1123). Escreveu comentários de vários li­ vros do Antigo Testamento (Josué, Jó, Salmos, Cântico dos Cânticos, Isaías) e Apocalipse. Fez com que o estudo das Escrituras desempenhasse um papel proeminente no renascimento monástico do século 12. Também foi um dos primeiros representantes da exegese “política”, relacionando as Escrituras às reivindicações imperiais do papado. Guiberto deNogent (1053-1124). Embora tenha vivido e trabalhado uma ge­ ração antes das grandes mudanças na exegese bíblica que ocorreram depois de 1150, Guiberto as anunciou, pertencendo a este período mais do que ao seu próprio. Ele afirmou que, se a teologia fosse bem ensinada, a alegoria se tornaria desnecessária, e, assim, foi um dos primeiros representantes da volta ao sentido literal das Escrituras. Ruperto de D eutz (1070-c. 1129). Escreveu várias obras de teologia bíblica, de forte tom alegórico e claramente influenciadas por Orígenes. Ele foi um dos primeiros a conceder uma interpretação mariana a Cântico dos Cânticos. Hugo de São V ítor (c. 1096-1141). M estre da exposição simples, Hugo fundou uma tradição de estudo erudito no mosteiro parisiense de São Vítor, que

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produziria frutos na geração seguinte. Hugo queria reunir todo o conhecimento dentro da estrutura de estudos bíblicos. Seu ideal era um sistema em que a ciência secular serviria à interpretação literal das Escrituras, enquanto a teologia ensinaria o significado alegórico. Desse modo, ele pensou, era possível mesclar a vida do estudioso e a do monge em uma síntese mais elevada. Pedro Abelardo (1079-1142). Desenvolveu uma distinção entre o tema (m atéria) de um texto e a sua intenção (sensus), que permitiu que ele procurasse um sentido figurado no sentido literal das Escrituras, não necessariamente além dele. Seu comentário de Romanos fala sobre o Filho de Deus se tornando ho­ mem a fim de se estabelecer como exemplo de vida para nós. Abelardo era muito sensível aos pais da igreja com seus diferentes modos de falar e escrever, e tentou interpretar cada um no seu contexto. Ele estava aberto à ideia de que eles pudessem estar errados e até mesmo sugeriu que isso pudesse ser verdadeiro a respeito de profetas e apóstolos. Eles não eram mentirosos, obviamente, mas meros seres humanos com uma compreensão incompleta da verdade. Guilherme de Saint-Thierry (c. 1085-1148). Discípulo de Bernardo de Claraval, tornou-se o mais veemente opositor de Abelardo depois de ler seu co­ mentário de Romanos. Em seu próprio comentário do mesmo livro, Guilherme se esforçou para mostrar que não havia reais contradições entre os vários pais da igreja, apesar das aparências. Zacarias de Besançon (fl. c. 1150). Esse importante estudioso monástico redigiu uma harmonia dos Evangelhos, sobre a qual escreveu um comentário. Durante suas pesquisas, ele consultou obras anteriores, algumas tão antigas que remontavam a Taciano. Bernardo de Claraval (1090-1153). Líder da reforma monástica. Os textos em que sua espiritualidade mais se manifestou foram os de sua longa série de sermões sobre Cânticos dos Cânticos, a qual teve uma enorme influência em épocas posteriores e que agora é a única obra de exegese medieval ainda ampla­ mente publicada e lida. G ilbertdelaPorrée (c. 1076-1154). Discípulo da escola de Laon, Gilbert am­ pliou sua obra e escreveu diversos comentários bíblicos que ainda estão acessíveis. Foi condenado em 1148 por convicções supostamente não ortodoxas da Trindade. Pedro Lombardo (c. 1100-1160). O maior dos glosadores, reconheceu as inadequações da Glossa ordinaria e tentou complementá-la com sua própria obra exegética. Ele conferiu importância especial ao contexto envolvendo a autoria e a composição de vários livros da Bíblia, e pensava que a intenção original do autor era essencial para a compreensão do significado do texto. S en tentiae [Sentenças]

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foi sua tentativa de sistematizar esse saber sobre um fundamento teológico, e ela se tornou o manual teológico comum para o restante do período medieval. Grande parte da formação dos reformadores do século 16 dependeu dele, que foi considerado o representante clássico da teologia medieval. Roberto de M elun (m. 1167). Figura de transição ao estágio de desenvol­ vimento seguinte. Roberto de M elun escreveu um comentário das epístolas paulinas em que as questões teológicas se tornam mais importantes do que a exposição paralela do texto. Isso foi um prelúdio à fase seguinte, em que a teo­ logia seria completamente divorciada do texto e emergiria como uma disciplina bem distinta da exegese bíblica. Exegetas judaicos medievais. Hugo de São Vítor e sua escola conseguiram tirar proveito da erudição judaica, que passava por um grande renascimento durante a vida de Hugo. Os nomes mais proeminentes associados a isso são R a s h i (1040-1105), I bn E z r a (1089-1164), M a im ô n id e s (1135-1204) e D a v id K im c h i ( c. 1160-c. 1235). Rashi foi além da distinção talmúdica entre interpretação da H alacá e da H agadá e acrescentou a terceira possibilidade: a exegese literal direta. Ele desenvolveu um grande interesse em filologia, história e geografia comparadas, mas não abandonou inteiramente a tradição midráshica. Isso ocorreu aos poucos, parcialmente por meio de seu pupilo J o se ph K a r a (m. c. 1130) e de forma mais ampla por meio de seus discípulos, todos vivos e ativos durante a vida de Hugo. Estão incluídos aí o neto de Rashi chamado S a m u e l ben M e ir (R a s h b a m ) ( c. 1080-1158), E l ie z e r de B e a u g e n c y (fl. c. 1150) e J o se ph B ek h o r S h o r de O r l e a n s (fl. c. 1150). Foram eles e seus colegas que transmitiram o judaísmo contemporâneo a André de São Vítor (veja abaixo). Ibn Ezra é hoje conhecido por sua abordagem crítica do Pentateuco e de Isaías. Diversos estudiosos cristãos a conheciam, mas foi somente quando Espinoza a reapresentou ao mundo cristão no final do século 17 que suas teorias se tornaram influentes entre os cristãos.

De cerca de 1150 a 1350 Os vitorinos. Pupilos de Hugo de São Vítor, os vitorinos representaram uma linha distinta de exegese bíblica. Teoricamente, tentaram manter a ênfase dupla de seu mestre na vida do estudioso e na do monge, mas na prática essa ênfase se rompeu sob a pressão da especialização. Por volta de 1200, São Vítor estava se afastando de interesses seculares, e as escolas de Paris estavam desenvolven­ do uma teologia independente da exegese bíblica. Os principais representantes

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da abordagem vitorina foram A c h a r d (fl. c. 1155-1171), A n d r é (m. 1175), R ic a r d o (m. 1173) e W a l t e r (fl. c. 1150-1160). Ricardo de São Vítor foi um proeminente teólogo místico, mas, graças ao exemplo de seu mestre Hugo, também fez algumas contribuições para estudos bíblicos. O verdadeiro erudito de São Vítor, no entanto, foi André, monge inglês que apresentou métodos de exegese completamente novos. André pensava ser necessário buscar o significado de um texto no próprio texto, e não em autorida­ des externas, por mais veneráveis que pudessem ser. Ele tinha forte preferência pelo sentido literal das Escrituras e acreditava que Moisés usou fontes anterio­ res ao escrever o Pentateuco (em oposição à convicção geral de que ele havia sido diretamente inspirado). A maior originalidade de André, no entanto, foi a sua disposição em fazer uso da exegese contemporânea judaica. Ele acreditava que os judeus estavam mais próximos da atmosfera da época bíblica do que os cristãos de sua época e que a interpretação judaica do Antigo Testamento oferecia uma melhor percep­ ção do significado original. É possível que ele mesmo tenha estudado o idioma hebraico, mas é mais provável que tenha adquirido o seu conhecimento do texto original com base em estudiosos judeus de seu círculo de amigos. De todo mo­ do, seus muitos comentários do Antigo Testamento revelam uma consciência do hebraico quase única na Idade M édia. Seus contemporâneos acusaram André de ser “judaizante”, tão grande era seu amor pelo sentido literal do Antigo Testamento hebraico, mas ele não hesitou em criticar a exegese judaica quando ela pendia para a alegoria. O mais extraordinário pupilo de André foi seu compatriota inglês, H e r be r to d e B o s h a m (fl. c. 1160-1170), membro do séquito de Tomás Becket. Herberto deixou um comentário sobre o Saltério hebraico de Jerônimo que demonstra um profundo conhecimento de hebraico e dos métodos interpretativos de Rashi. Herberto estava preparado até para admitir que as passagens citadas no Novo Testamento como messiânicas podem não ter tido esse sentido para o autor original. Ele também parece ter sido o primeiro estudioso cristão a usar um dicionário hebraico. Infelizmente, sua obra nunca circulou e ficou perdida até ser descoberta por acidente em 1950. T am b ém n a ó rb ita v ito rin a , e m b o ra não fo ssem m em b ros d o m o steiro , esta­ v a m P ed ro C o m e s t o r

o u M anducator

assim p o r causa de seu ap etite p ela P ala vra de D e u s, P ed ro e S t e ph e n L a n g t o n (m .

1179), ch am ad o C a n t o r (m . 1197)

(“o C o m e d o r”) (m .

1228).T od o s eles tra b a lh a ra m p ara d ifu n d ir ideias v i-

to rin as, e, com o resu ltad o de seus esforços, a in te rp re ta çã o lite ra l das E scritu ras

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recuperou seu lugar como fundamento correto da exposição espiritual do texto. Pedro Cantor tinha um interesse especial pela pregação e escreveu um manual sobre o tema. Junto com Stephen Langton, parece ter sido amplamente respon­ sável pela divisão dos livros bíblicos em capítulos, padronizada em Paris logo depois de 1200. Joaquim de Fiore (m. 1204). Escreveu uma harmonia dos dois Testamentos e comentários de Salmos, dos Evangelhos e de Apocalipse, em que seu principal alvo foi profetizar acontecimentos históricos futuros. Sua prontidão em identifi­ car profecia bíblica com história contemporânea permaneceu muito popular em círculos não acadêmicos, mas sua natureza subversiva fez com que logo caísse no esquecimento. Tomás de Chobham (fl. c. 1190-1210). Foi discípulo de Pedro Cantor e, em seu livro Sum m a de a rtep ra ed ica toria [M anual sobre a pregação], defendeu que a pregação era a forma mais elevada de exegese bíblica. Pode-se considerar sua exposição da arte da pregação um modelo para sua época. Guilherme de Auvergne (fl. c. 1220-1228). Escreveu diversos comentários sobre a literatura de sabedoria do Antigo Testamento, os quais se concentravam na interpretação espiritual. No entanto, ele não hesitou em trazer suas próprias percepções filosóficas para acrescentar ao texto, o que lhe fornece uma origina­ lidade ausente em muitos outros de sua época. Hugo de São Cher (fl. c. 1230-1135). Foi um dos mais importantes co­ mentaristas medievais. Organizou um movimento de frades pregadores e lhes forneceu um comentário que abrangia toda a Bíblia. Modificou a glosa tradi­ cional para algo mais substancial, a que chamou dep ostilla . A origem da palavra é obscura, mas ela logo substituiu a palavra “glosa” no sentido de “comentário”. Suas postilas continuaram sendo publicadas até o século 17 e foram amplamente estudadas e admiradas. Robert Grosseteste (m. 1253). Ensinou em Paris e Oxford e deu continui­ dade à tradição do pensamento vitorino que havia herdado de Stephen Langton. Foi um cientista perspicaz e escreveu diversos comentários das Escrituras, com destaque para um sobre os seis dias da Criação, em que revelou seu conheci­ mento científico. Ele fez o máximo para promover estudos bíblicos, ajudando a criar uma escola inglesa de interpretação das Escrituras que produziu uma atmosfera favorável à obra posterior de John W ycliffe e dos lolardos. Tomás de Aquino (1226-1274). Foi o maior teólogo medieval. Também escreveu comentários sobre exegese bíblica. Seguindo o método aristotélico, Aquino defendeu que a unidade do corpo e da alma na pessoa humana implicava

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uma unidade similar de letra e espírito nas Escrituras, de modo que não era pos­ sível separar essas duas coisas como havia sido o costume na exegese alegórica. Boaventura (1221-1274). Foi contemporâneo de Aquino, mas se opôs ao método aristotélico. Sua abordagem muito mais tradicional reflete os vitorinos do século anterior mais do que a sua própria época, embora haja concessões ao novo saber em sua obra. Sua postila sobre Eclesiastes se tornou um clássico medieval. Roger Bacon (c. 1214-1292). Proeminente cientista inglês do mesmo nível de Robert Grosseteste, mas com uma perspectiva mais secular. No entanto, de­ fendeu a importância do estudo de grego e hebraico e não hesitou em reabrir questões de crítica textual. M eister (M estre) Johannes Eckhart (c. 1260-c. 1328). Frade dominicano de origem alemã, Eckhart se tornou um dos mais famosos místicos da Idade M édia. Escreveu em alemão, bem como em latim, e prestou contribuições subs­ tanciais para o desenvolvimento de seu idioma nativo como meio literário. Hoje é reconhecido principalmente por sua doutrina da união mística com Deus, que foi condenada pelo papa em Avinhão em 1329, pouco depois da morte de Eckhart. Suas obras bíblicas são diferentes em estilo e tom, refletindo a influên­ cia escolástica de Tomás de Aquino. Eckhart escreveu comentários de Gênesis, Êxodo, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico e do Evangelho de João. Ele tam­ bém nos deixou mais de cem sermões, principalmente sobre temas bíblicos. Nicolau de L ira (c. 1270-1340). Conhecia comentários hebraicos e judaicos do período, mas não sabia grego. Seu principal alvo era estabelecer o sentido literal das Escrituras e rejeitar a alegoria. Nesse ponto, seguia André de São Vítor e diversos exegetas inferiores e muitas vezes anônimos, um dos quais es­ creveu um comentário literal de Cânticos dos Cânticos em cerca de 1300. Suas postilas foram o primeiro comentário bíblico impresso, e ele continuou famoso até grande parte do século 16. Roberto Holcot (m. c. 1349). Ensinou em Oxford e possivelmente em Cambridge. Escreveu comentários de Sabedoria de Salomão, Eclesiástico e dos Doze Profetas Menores e foi acusado de “pelagianismo” (literalismo).

De cerca de 1350 a cerca de 1500 João Wycliffe (c. 1329-1384). Um dos mais proeminentes estudiosos da Bíblia de sua época, Wycliffe normalmente é aclamado como a “estrela da manhã” da Reforma. Escreveu postilas sobre toda a Bíblia, cuja autoridade defendeu com veemência contra a igreja. Depois de um período inicial de ceticismo, Wycliffe

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ficou convencido da verdade absoluta do sentido literal da Bíblia, posição que de­ fendeu em sua grande obra D e verita te sacrae Scripturae [Da verdade das Escrituras Sagradas], 1378. Encarregou-se de traduzir a Bíblia para o inglês pela primeira vez desde a época do rei Alfredo. Embora não tivesse interesse em começar seu próprio movimento, foi seguido por diversos pregadores itinerantes leigos, que vieram a ser conhecidos como lolardos por causa de seu suposto balbuciar ou sussurrar. Wycliffe também exerceu grande influência sobre o reformador tcheco J oão H u s s ( c. 1369-1415), que acabou martirizado por causa de suas convicções. João Gérson (1363-1429). De muitos modos, foi a resposta da igreja [roma­ na] Wycliffe. Seus comentários alegorizantes sobre o M agnificat e Cântico dos Cânticos exerceram grande influência sobre o jovem M artinho Lutero e sobre diversas figuras da Contrarreforma. Pablo de Santa Maria (Paulo de Burgos) (c. 1351-1435). Compilou acrés­ cimos à Glossa O rdinaria, posteriormente impressos com ela e muitas vezes citados, por exemplo, por Lutero. João de Ragusa (m. c. 1443). Alcançou um lugar de destaque no Concilio de Basiléia (1431), em que formulou diversas regras para a interpretação bíblica. Sua posição é intermediária entre tradição e inovação, e suas regras fornecem uma boa descrição do estado da exegese perto do fim da Idade M édia.

As questões É possível esboçar brevemente as questões que caracterizaram a interpretação bíblica medieval como um todo do seguinte modo: 1. Era necessário d eterm in a r tanto o sen tido exato das E scrituras quanto sua interpretação correta. As diferentes versões recebidas da Antiguidade eram inquietantes em um texto divinamente inspirado e podiam ser perigosas se usadas umas contra as outras. Do mesmo modo, era necessário explicar e de algum mo­ do harmonizar as aparentes contradições nas interpretações clássicas dos pais. 2. Era necessário h a v er um a autoridade consensual p a ra m ediar as questões em disputa. Quando estudiosos divergiam uns dos outros, alguém precisava fornecer uma resposta que resolvesse a dificuldade e permitisse que a igreja continuasse vivendo em paz. No entanto, a própria questão de quem ou qual era essa au­ toridade foi alvo de disputas. Em um extremo, estavam aqueles que defendiam somente as Escrituras (sola Scripturà). Por serem a Palavra de Deus, as Escrituras não podiam estar sujeitas a qualquer interpretação humana, mas precisavam

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comunicar seu próprio significado ao leitor. Não se devia impor ao texto o que não era possível extrair dele. No outro extremo, estavam aqueles que defendiam que a mente humana era a medida de todas as coisas e que a razão podia decidir qualquer questão, mesmo que fosse contra o testemunho das Escrituras. Essa visão não foi comum na Idade M édia, mas surgiu em casos relativamente isola­ dos. Entre esses extremos, havia uma variedade de posições que davam maior ou menor proeminência à igreja. No princípio, “a igreja” significava o testemunho comum dos pais e concílios ecumênicos, mas, na prática, durante a Idade M édia o papado reivindicou e adquiriu o direito de interpretar a Bíblia de um modo que não permitia recursos adicionais. 3. E ra necessário edificar a igreja com o ensino bíblico. A Bíblia nunca poderia ser da exclusividade de estudiosos; ela também precisava servir às necessida­ des do cristão comum. Como Palavra de Deus, ela tinha o poder de nutrir a alma com alimento espiritual, e, se isso fosse negligenciado, a igreja sofreria as conseqüências. Nesse sentido, a Bíblia era diferente de qualquer outro livro. Estudiosos medievais divergiam enormemente a respeito de como se deveria compreender o sentido espiritual das Escrituras, mas havia o consenso de que ele estava ali e importava mais do que qualquer outro aspecto do texto. 4. Era necessário relacion ar o ensino bíblico com outros ram os do conhecim ento. Para a mente medieval, a verdade era uma unidade e, portanto, não podia haver nenhuma discrepância real entre o que a Bíblia ensinava e o que as leis dos registros históricos revelavam. De modo geral, a pressuposição era que a Bíblia estava correta em todas as questões científicas desse tipo, mas muitas vezes se reconhecia que o seu texto de certo modo estava “errado”, ou porque havia sido corrompido no processo de transmissão, ou porque o autor bíblico tinha outras intenções quando escreveu e, portanto, distorceu a realidade por uma razão ou outra. M as essas dificuldades eram problemas a ser resolvidos; havia um senti­ mento quase consensual de que era possível encontrar algum tipo de harmonia.

Os métodos de interpretação Os métodos empregados na interpretação bíblica medieval eram ao mesmo tempo extremamente simples e extremamente complexos. Eles eram simples porque seguiam a tradição estabelecida pela exegese patrística; de fato, durante muito tempo, afastar-se disso seria considerado quase uma heresia. Portanto, em certo nível, é possível afirmar que a exegese medieval tem pouco com que contri­ buir para a história dos estudos bíblicos. M as essa conclusão seria extremamente

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enganosa visto que, na tradição estabelecida pelos pais, os exegetas medievais foram muito ativos e, com o passar do tempo, também criativos. Foi durante esses séculos, na verdade, que se assentou a base da forma que a interpretação das Escrituras adquiriu desde então. Ao analisar esse tema, começaremos com algumas considerações gerais váli­ das para o período como um todo e, depois, examinaremos os desenvolvimentos específicos mais atentamente, seguindo a classificação em períodos que adotamos.

Observações gerais A autoridade das Escrituras como revelação divina permaneceu intacta durante a Idade M édia. Normalmente isso significava que se considerava o texto me­ canicamente inspirado, de modo que seus autores receberam o que de fato foi um ditado do Espírito Santo. As vezes, isso fazia com que alguns comentaristas mais audaciosos questionassem os motivos do Espírito Santo, como, por exem­ plo, quando ele supostamente ditava erros aos profetas; mas, na prática, isso não os levava a negar a inspiração. Além disso, a inspiração era “verbal” no sentido mais estrito do termo, de modo que era bem possível tirar palavras e expressões do contexto e usá-las como “Palavra de Deus”. Pensava-se que a Bíblia tinha a forma que tem por causa da Queda da hu­ manidade. A Queda rompeu a comunicação entre Deus e os seres humanos, os quais, por conseqüência, ficaram espiritualmente cegos. Era necessário, portanto, que Deus se ajustasse à fraqueza humana a fim de se comunicar com os homens. Por essa razão, a revelação de Deus na Bíblia é concedida de um modo que pessoas caídas podem compreender. M as, pela mesma razão, a letra do texto bíblico é inadequada como guia para a vida espiritual. Para a mente medieval, a iluminação era concedida não a estudiosos, mas a monges. O estudo erudito servia somente à forma externa do texto, a parte que os não regenerados podiam compreender. Aqueles que haviam nascido de novo pelo Espírito Santo a leriam de modo diferente como fonte de alimento espiritual. Havia muitos lugares em que o texto literal não poderia oferecer esse alimento, e para obter qualquer coisa valiosa dele era necessário recorrer a algum tipo de interpretação figurada. Beda expressou a questão muito bem no prólogo a seu comentário dos livros de Samuel: Se tentarmos seguir somente a letra das Escrituras, do modo judaico, o que en­ contraremos para corrigir nossos pecados, para nos consolar ou instruir, quando abrirmos o livro do bem-aventurado Samuel e lermos que Elcana tinha duas esposas; especialmente nós que somos clérigos celibatários, se não soubermos

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extrair o significado alegórico de afirmações desse tipo, que nos aviva interna­ mente, corrigindo, ensinando, consolando? Beda revela aqui um fato importante sobre a exegese medieval, especial­ mente em seus estágios iniciais. Ela se destinava quase exclusivamente à elite clerical. Da época de Gregório, o Grande, em diante, não houve leigos instruídos na Europa ocidental, e pessoas leigas eram consideradas pouco melhores que judeus, para quem o sentido literal das Escrituras era tudo que conseguiam compreender. Todo o saber estava concentrado na igreja, e a maioria dele nos mosteiros, de modo que o clero paroquial muitas vezes era tão ignorante quanto seus rebanhos. Foi ali que se buscou mais intensamente a tradição da “interpre­ tação espiritual” (lectio d ivin a ), e foi graças às condições sociais da época que ela se tornou a forma básica, e muitas vezes única, de estudo bíblico. De fato, durante muito tempo essa foi a única forma de teologia, chamada de estudo da página sagrada {sacrapagina) até o século 13. Até o fim do período medieval a lectio d iv in a manteve seu prestígio, mesmo entre os exegetas que favoreciam o sentido literal do texto com mais força. Somente quando o encanto se desfez foi que a expressão “interpretação espiritual” adquiriu um significado bem diferente, e a natureza do estudo da Bíblia mudou de forma decisiva. Os principais aspectos da lectio d iv in a podem ser brevemente esboçados da seguinte maneira: 1. Ela envolvia uma preparação espiritual antes da leitura do texto. A Bíblia podia ser lida corretamente apenas em atitude de oração. 2. Ela requeria do leitor uma receptividade silenciosa à voz do Espírito Santo, falando por meio do texto. Os leitores que possuíam uma mentalidade espiritual não questionavam o que liam; eles ouviam e obedeciam. 3. Ela requeria uma atenção especial a todos os detalhes do texto. Tudo na Bíblia havia sido colocado ali para nossa edificação; assim, não dar ouvidos cuidadosamente ao conteúdo da B íblia poderia resultar na perda de algum benefício espiritual. 4. Ela exigia uma profunda compreensão das imagens bíblicas. A lectio d ivin a conduzia a imaginação para a mais elevada contemplação de Deus, de modo que o emprego de imagens bíblicas era um dos modos mais preciosos de dar espaço à imaginação. A valorização da poesia e do belo era uma clara vantagem no serviço a Deus, pois isso apontava para a beleza e a harmonia suprema de todas as coisas.

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Desdobramentos medievais

Antes de 8 0 0 Nesse período de transição, o desenvolvimento principal foi a sistematização dos sentidos espirituais das Escrituras. Aos três sentidos tradicionais de Orígenes, Cassiano havia acrescentado um quarto: o chamado sentido “mistagógico” ou místico. Também havia ocorrido certo desenvolvimento dos outros sentidos figurados, notavelmente por parte de Gregório, o Grande, que, em contraste com Cassiano, preferiu o sentido moral (ou tipológico) como o mais elevado dos três primeiros. O melhor modo de ilustrar o que isso queria dizer é o exemplo clássico da cidade de Jerusalém, cujos significados variavam de acordo com cada um dos quatro sentidos, conforme se vê a seguir: Literal: a cidade na Palestina; a capital de Israel. Alegórico (tipológico): a igreja militante aqui na terra. M oral (tropológico): a alma do cristão. Mistagógico: a cidade celestial; a igreja triunfante. Não sabemos como Orígenes teria interpretado os diferentes significados de Jerusalém, mas com base no que disse sobre a purificação do templo, esta seria uma reconstrução mais ou menos plausível: Literal: a cidade na Palestina; a capital de Israel. Moral: a alma do cristão. Espiritual: a igreja (militante e triunfante). Com base nisso, pode-se observar que na Idade M édia o sentido “espiritual” de Orígenes praticamente desapareceu, sendo substituído pelo sentido “alegó­ rico”, que ficou identificado com a tipologia. O sentido mistagógico preencheu parcialmente essa lacuna, mas fez isso de modo diferente. Pois o sentido mista­ gógico inseriu a história no esquema de interpretação figurada, mesmo que essa história fosse basicamente profética e escatológica. A cidade celestial já existe, obviamente, mas também é para onde estamos indo, e a importância desse sen­ tido da interpretação estava no fato de que ela indicava aos cristãos seu futuro pessoal, bem como o destino da igreja e do mundo. Foi na área de composição de comentários que esse período demonstrou a menor originalidade. Para Beda e seus sucessores, um “comentário” era pouco mais que uma seleção de escritos patrísticos, unidos com um guia para explicar seu uso. Isso também se apÜcou aos carolíngios, cujo alvo principal era selecio­ nar material do maior número de fontes possível.

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De cerca de 8 0 0 a cerca de 1 1 5 0 A principal realização do estudo erudito durante esse período foi a glosa. No século nono, os estudos bíblicos praticamente não progrediram, exceto em quantidade; e o décimo século é uma completa lacuna, pois os teólogos vol­ taram a sua atenção para outras questões, notavelmente o desenvolvimento da liturgia. Foi somente a partir do ano 1000, aproximadamente, que houve um renascimento do interesse pelo estudo erudito da Bíblia, sob a forma de no­ tas curtas, geralmente intercaladas com o texto ou escritas nas margens. Essas notas serviam de guias para leitores perplexos, para que pudessem compre­ ender o que o texto significava em trechos que de outro modo seriam difíceis ou incompreensíveis. A partir de um início bem humilde, a glosa se desenvolveu até se tornar quase um texto paralelo por seus próprios méritos. Alguns manuscritos foram escritos em colunas paralelas — o texto à esquerda, a glosa contínua à direi­ ta. Em outros casos, glosas foram produzidas como manuscritos separados. O exemplo clássico é a chamada Glossa ord in a ria , obra de muitas mãos que se consagrou como texto fixo nas escolas em cerca de 1150. Ela revelou um profundo interesse em outras disciplinas, especialmente o direito, que tinha a sua própria tradição de glosa remontando à época de Justiniano I (527-565). A glosa também revelou uma abordagem de senso comum do texto destinada a elim inar o maior número possível de mistérios, revelando que nem sempre havia consenso entre os pais da igreja a respeito da interpretação de deter­ minado texto. Isso teve o efeito de dim inuir a autoridade dos pais, visto que a verdade precisa ser única, e duas opiniões contraditórias não podiam estar igualmente certas. Inicialmente, o propósito da glosa estendida, ou contínua, era fornecer um manual que explicasse o significado do texto, mas, à medida que o tempo passou, ela passou a incluir questões teológicas (quaestiones). Essas questões muitas vezes eram levantadas por monges e freiras que ficavam confusos com o texto e que­ riam compreendê-lo mais profundamente. Os comentaristas se empenharam no desenvolvimento de seu trabalho dentro da estrutura da glosa, mas isso acabou ficando muito difícil de ser manejado. As quaestiones gradualmente ocuparam o espaço dos comentários, e isso produziu uma divisão do trabalho. No estágio final do desenvolvimento nesse período, Pedro Lombardo deu o passo de retirar as q uaestiones de sua M a gn a glosa tu ra (Grande glosa) e as reorganizou de modo sistemático. Isso resultou em sua famosa obra S en ten tiae

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[Sentenças], livro usado no ensino de teologia sistemática durante o restante da Idade M édia. E importante ter em mente que a sistemática se originou da exegética, e, enquanto Lombardo continuou sendo lido, ela seguiu estampando o selo de sua origém.

De cem de 1 1 5 0 a cem de 1 3 0 0 O lugar de honra durante a parte inicial desse período pertence aos vitorinos, que se esforçaram por desenvolver o plano de seu mestre, Hugo de São Vítor. Hugo escreveu uma geração antes de seus pupilos, mas apontou o caminho que eles deviam seguir. Ele expandiu a lectio d iv in a para incluir um curso preparató­ rio de instrução, que se destinava a fornecer a monges e freiras uma base para os estudos bíblicos, que então poderiam aplicar à sua leitura espiritual. Essa base envolvia a consulta a autores seculares que escreveram nos tempos bíblicos e à tradição contínua da interpretação judaica, para cuja redescoberta Hugo e seus discípulos contribuíram muito. Seu prólogo a Eclesiastes nos fornece uma boa noção de seus métodos e as razões dele: Todas as Escrituras, se expostas de acordo com seu significado apropriado [isto é, no sentido literal], ganharão em clareza e se apresentarão à mente do leitor mais facilmente. Muitos exegetas, que não compreendem essa virtude das Escrituras, obscurecem a sua beleza majestosa com comentários irrelevantes. Quando de­ vem revelar o que está oculto, obscurecem até mesmo o que é claro. Eu mesmo repreendo aqueles que supersticiosamente se esforçam por encontrar sentidos místicos e alegorias profundas onde estes não existem, tanto quanto aqueles que persistem em negá-los apesar de eles estarem ali. E assim, nesse trabalho, não penso que seja necessário se esforçar demais para encontrar tropologias ou significados alegóricos místicos em todas as par­ tes do raciocínio, sobretudo porque o próprio autor não almeja tanto aperfeiçoar ou relatar mistérios, mas, sim, levar o coração humano a zombar de coisas mun­ danas por razões obviamente verdadeiras e por meio de clara persuasão. Não nego que mistérios estejam incluídos no raciocínio, especialmente na última parte. A medida que prossegue, o autor sempre vai se elevando, com contem­ plação cada vez maior, acima do visível. Mas uma coisa é considerar a intenção do autor e seu raciocínio como um todo, e outra é pensar que alguns de seus pronunciamentos, que contêm um sentido místico e precisam ser compreendi­ dos espiritualmente, não devem ser ignorados. No entanto, Hugo não abandonou o sentido espiritual inteiramente, so­ bretudo quando era possível defendê-lo com base nas próprias Escrituras. Por

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exemplo, ele aceita plenamente que em Joel 2.28, citado em Atos 2.17, o próprio Joel tinha em mente uma profecia messiânica, e defendeu essa posição contra exegetas judeus. Obviamente, muitos exegetas posteriores teriam concordado com Hugo nessa questão, mesmo sem situar sua interpretação no mesmo esque­ ma quádruplo por ele empregado. A segunda geração do movimento vitorino realizou diversos avanços que carac­ terizaram o estágio seguinte de desenvolvimento. A obra mais criativa foi de Pedro Cantor e Stephen Langton, que podem ter trabalhado juntos em diversas ocasiões. Eles foram parcialmente responsáveis pela divisão da Bíblia em capítulos como agora a temos; pode ser difícil acreditar, mas essa divisão não existia antes deles, o que tornava quase impossível o trabalho de um comentarista sistemático. A divisão em versículos foi feita um pouco depois, perto do fim do século 13, mas não havia nenhum sistema padronizado antes da invenção da imprensa (final do século 15). Cantor também compilou um manual para pregadores, em que dividiu o sentido literal das Escrituras em três partes: lectio (agora não d iv in a ), disputatio (discussão) e pra ed ica tio (pregação). Elas ainda foram refinadas por Tomás de Chobham, para quem a pregação era a mais elevada forma de exegese. Básico no método de Tomás era uma distinção entre o significado de palavras e o sig­ nificado de coisas (incluindo conceitos). Se tomarmos Jerusalém como exemplo, Tomás pensava que a palavra (“cidade da paz”) não podia ser separada da coisa (uma cidade na Palestina) e que qualquer significado alegórico podia se basear somente na segunda dentre essas duas. Do contrário, haveria uma completa separação da realidade, algo que ele estava determinado a evitar. A análise das três partes do estudo bíblico feita por Tomás pode ser repre­ sentada da seguinte forma: 1. L ectio (“leitura”). Esta se concentrava nas questões gramaticais e semân­ ticas. Tomás afirmou que uma palavra pode significar uma coisa só (exemplo: cachorro); muitas coisas (direito); nada por si só (o); nada na realidade (duende) ou alguma coisa implícita (“nas alturas” = Deus) (com a exceção do último, esses exemplos são atuais). Na leitura da Bíblia, era essencial saber a qual categoria uma dada palavra pertencia, para que pudesse ser corretamente interpretada. É óbvio, haveria casos em que uma palavra seria usada diferentemente em contextos distintos e, até mesmo casos em que uma palavra teria mais de um significado no mesmo contexto. Era necessário analisar tudo isso cuidadosamente antes de tentar fazer qualquer interpretação espiritual.

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2. D isputatio (discussão de casos difíceis). Isso ocorria sempre que havia incertezas de interpretação. Por princípio, não poderia haver contradições nas Escrituras, de modo que era necessário resolver aparentes dificuldades por meio de argumentação. M ais problemáticas eram as incoerências entre os pais, que eram bem mais numerosas. Estudiosos como Tomás estavam conscientes delas e começaram a procurar uma solução que hoje chamaríamos de “contexto cultu­ ral” ou “cenário na vida” (S ifz im Leberí). A propensão que tinham para aspectos gramaticais os levou a chamar isso de usus loquendi (“modos de linguagem”), segundo os quais o uso mudava de lugar para lugar e de época para época. No entanto, essa solução para o problema não foi realmente muito satisfatória, e, à medida que o tempo passou, a autoridade dos pais diminuiu por causa da falta de harmonia entre eles. 3. P raedicatio (pregação). Essa era a esfera privilegiada da alegoria, cujo impulso e vitalidade vieram da vida dos mosteiros. A função do pregador era desvendar os mistérios divinos, para assim revelar o céu aos que estão na terra e exortar o rebanho a perseverar na luta espiritual pela perfeição. Enquanto essa pregação permaneceu uma atividade monástica, esse tipo de exposição era tanto possível como natural. M as quando os pregadores começaram a voltar a sua atenção para os leigos no mundo secular, uma abordagem diferente passou a ser necessária. Não é difícil perceber como no contexto secular logo começou a prevalecer a exortação moral, e foi a pregação mais do que qualquer outra coisa que levou os estudiosos medievais a acentuar o sentido moral acima dos sentidos alegórico e mistagógico. Em cerca de 1200, a tradicional lectio d iv in a estava passando por uma crise. A necessidade de instrução básica no significado das Escrituras estava levando exegetas a investigar o sentido literal mais profundamente, o que causou um renascimento extraordinário de estudos hebraicos. Os sentidos espirituais não foram ignorados, mas cada vez mais se reservavam a uma elite monástica. Cada vez mais comentaristas estavam recorrendo a uma falsa humildade a fim de repudiar qualquer conhecimento de alegoria; isso, diziam esses comentaristas, estava reservado para aqueles que eram perfeitos, não para eles! Até mesmo em círculos monásticos, a imitação de Cristo passou a ser compreendida muito mais literalmente do que antes, como podemos observar na trajetória de Francisco de Assis. Todavia, antes de abandonar completamente o centro do palco, a alegoria espiritual realizou uma última tentativa, na esfera da profecia preditiva. As raízes disso, como sabemos agora, encontram-se na obra exegética de monges como Bruno de Asti (ou Segni), usados por um papado renovado para

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defender o poder da igreja contra os imperadores da época. Esses exegetas usaram a alegoria bíblica para demonstrar que a igreja era o reino de Deus, a nova Jerusalém, e que o Sacro Império Romano era o reino de Satanás, a nova Babilônia. O propósito abertamente político dessa alegorização era óbvio, e inicialmente ela não conseguiu decolar como método de interpretação. Isso mudou, no entanto, com a obra de Joaquim de Fiore. Joaquim ligou a alegoria política a um esquema universal de história reden­ tora — as três eras da salvação. Ele restaurou a concepção montanista de uma terceira era, em que o Espírito Santo, procedendo tanto do Antigo Testamento (o livro de Deus Pai) como do Novo (o livro de Deus Filho), rejeitaria a letra do texto bíblico e governaria o mundo “em Espírito e em verdade”. Ele até profetizou que logo chegaria o primeiro Anticristo e, em decorrência disso, seria fundada uma nova ordem de monges. Seus seguidores rapidamente iden­ tificaram o Anticristo com o imperador Frederico II (1194-1250) e a ordem monástica com os franciscanos. Essas identificações eram aceitáveis o suficiente para fornecer ao esquema de Joaquim a publicidade de que precisava para pros­ perar. Pressões políticas logo o lançaram na clandestinidade, mas ele continuou voltando à tona em toda a história da igreja. Até mesmo hoje há uma forte tendência popular de interpretar acontecimentos históricos recentes em livros como Daniel e Apocalipse, e, desse modo, o legado de Joaquim sobrevive. No século 13, é possível identificar um novo rigor na composição de comen­ tários. A glosa deu lugar à postila (postilla), palavra de origem incerta (post illa verba}), que era um comentário mais literal intercalado com o texto bíblico. No decorrer desse processo, o termo “glosa” passou a ser limitado a notas marginais e muitas vezes era usado no sentido de uma interpretação biblicamente falsa. Francisco de Assis, por exemplo, advertiu seus seguidores a não “glosar” suas regras, ou seja, elas não deviam receber uma interpretação falsa. Hugo de São Cher e sua escola realizaram a grande obra de “apostilagem”, e o novo método estava sendo usado por volta de 1235. A decretação da morte do estudo teológico tradicional ocorreu com a obra de Tomás de Aquino e seus colegas. Tomás rejeitou a noção de que a teologia não passava de exegese com um propósito alegórico e a estabeleceu como ciên­ cia separada, baseada nos princípios da filosofia aristotélica. Isso fez com que ele fundamentasse sua especulação teológica tanto na razão natural quanto na revelação divina e levou a uma sistematização muito mais ampla do pensamento teológico. A Bíblia ainda era a suprema fonte escrita, obviamente, mas agora era lida com uma visão filosófica em vez de mística.

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Uma conseqüência dessa mudança foi a elevação do sentido literal de interpre­ tação a uma proeminência incontestável nos locais onde os tomistas ensinavam. Em primeiro lugar, o “sentido literal” foi redefinido e passou a incluir tudo o que aparecia em forma escrita, quer fosse imediatamente claro para o leitor, quer não. Era necessário explicar dificuldades textuais de modo racional, e não com base na alegoria. O sentido espiritual foi completamente separado da exegese escolástica, embora os tomistas tenham mantido a convicção de que Deus o concedia a intérpretes carismáticos, que proferiam o que recebiam de um modo que extrapolava a investigação sistemática. Obviamente, não levou muito tempo para que mestres “espirituais” inescrupulosos abusassem dessa liberdade, e, no final da Idade M édia, havia intelectuais que ridicularizavam abertamente intér­ pretes monásticos das Escrituras como se fossem tolos e ignorantes. Como exemplo do que essa mudança de ênfase significou na prática, pode­ mos tomar a interpretação de Êxodo 23.19: “Não cozinharás o cabrito no leite de sua mãe”. Agostinho considerava esse versículo uma alegoria, pois para ele o sentido literal era absurdo e indigno das Escrituras. Ele acreditava que era uma profecia velada de que Cristo não pereceria na matança dos inocentes em Belém (M t 2.16). André de São Vítor, em contrapartida, com seu conhecimento do judaísmo e sua predileção pelo sentido literal, observou que, uma vez que os judeus de sua época ainda mantinham a proibição dessa prática, o Antigo Testamento precisa ter um significado literal. Stephen Langton acrescentou que a proibição, originariamente, tinha razões higiênicas. Tomás foi além dessa análise puramente literal e encontrou um princípio teológico no versículo, mas sem abandonar o significado literal. De acordo com ele, a proibição se destinava a evitar crueldade e também a evitar uma prática comum entre os gentios. Era, portanto, uma forma de instrução espiritual, visto que o povo de Deus precisa se esforçar para evitar crueldade e práticas pagãs. Nessa interpretação, percebemos que chegamos ao mundo moderno, pelo fato de que a exposição de Tomás poderia ser aceitável hoje, por mais que a exegese e teologia tenham avançado desde então. Essa é uma medida de sua realização e um sinal de que a igreja medieval estava entrando em uma nova era.

De cerca de 1 3 0 0 a cerca de 1 5 0 0 O final da Idade M édia foi uma época em que as forças de mudança que ha­ viam crescido lentamente no período anterior atingiram o ponto culminante. A escolástica de Tomás de Aquino entrou em declínio, mas foi substituída por

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um racionalismo muito mais radical, associado com o nome de Guilherme de Ockham (c. 1285-1347). Okhcam não estava preparado para aceitar qualquer coisa de boa-fé; era necessário sujeitar tudo à mais rigorosa prova, Ele também tinha interesse em nunca perder tempo e excluía qualquer evidência que não fosse pertinente ao seu raciocínio. (Essa é sua famosa “navalha”, que eliminava todos os acréscimos desnecessários.) Esses interesses não favoreceram a exegese alegórica e também tiveram um efeito revolucionário sobre o sentido literal. Exatamente quão revolucionário foi o efeito ficou claro na obra de John WyclifFe, o mais forte defensor da ideia de que somente as Escrituras eram suficientes para a interpretação e de que qualquer pregador que fosse além de seu significado claro estaria desencaminhando seu rebanho. W ycliífe queria um estudo da Bíblia que fosse intelectualmente rigoroso, mas ao mesmo tempo acessível para o público maior. Ele foi um forte defensor da interpretação moral das Escrituras, desprovida de suas tendências alegóricas. Para ele, o sentido li­ teral era moral o suficiente, e ele acreditava que o indivíduo seria justificado aos olhos de Deus se vivesse de acordo com os claros preceitos do evangelho. Ele não tinha tempo para os excessos sacramentais da igreja e negou a nova doutrina da transubstanciação, que ele não considerava bíblica. Para W ycliífe, as Escrituras continham toda a verdade, e o conhecimento humano era inútil em comparação com elas. Nada que não pudesse ser en­ contrado nas Escrituras tinha lugar na verdadeira religião, embora tenha sido obrigado a adm itir que havia muitas verdades (como a doutrina da Trindade) que estavam implícitas no texto em vez de explícitas. Ele considerava os pais da igreja inúteis, a não ser que o que dissessem correspondesse ao que as Escrituras claramente ensinavam — uma obrigação difícil em virtude da herança alegórica! Ele também pensava que era necessário ler as Escrituras como um todo, considerando o Antigo e o Novo Testamentos juntos. De m ui­ tos modos, W ycliífe foi produto das correntes filosóficas de sua época, mas ele não foi ockhamista no verdadeiro sentido. Para ele, toda a filosofia precisa se subordinar ao ensino das Escrituras; era necessário usar a lógica em deferência da Bíblia, e não como arma para atacá-la. A qui podemos observar claramente que ele foi um precursor da Reforma e de sua batalha contra o secularismo do humanismo renascentista. No entanto, não devemos esquecer que W ycliífe ainda era filho da Idade M édia, e não devemos nos surpreender ao descobrir que sua prática de exe­ gese bíblica muitas vezes não estava à altura de seus princípios. Ele aceitava significados figurados nas Escrituras e, às vezes, usava a alegoria de modos

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que não seriam aceitos depois de um século ou mais. W ycliffe foi um pio­ neiro, mas suas ideias precisaram aguardar quase 150 anos para produzirem frutos duradouros. Talvez o melhor resumo do estado da exegese medieval tardia esteja nas regras de João de Ragusa (Dubrovnik), que ele forneceu ao Concilio de Basiléia em 1433. As regras de João são uma combinação fascinante do antigo e do novo e nos permitem perceber o espírito de transição que marcou esse período como um todo. As regras são estas: 1 .A s E scrituras são inspiradas na sua totalidade. Não havia nada de novo nis­ so, obviamente, pois se tratava de algo que, como doutrina, remontava à igreja primitiva. M as João, comparado aos expositores de outras épocas antes dele, não tinha tanta certeza sobre a forma como as Escrituras haviam sido inspiradas e, por isso, não elaborou sobre esse tema. 2. N ada do que as E scrituras afirm am categoricam en te p o d e desencam inhar. Essa era uma reafirmação da antiga doutrina da clareza das Escrituras, mas em um contexto que a torna um ataque aos excessos da exegese alegórica. Para João, as Escrituras afirmavam muito mais coisas “categoricamente” do que afirmavam para um exegeta como Beda, por exemplo. 3. O ensino das E scrituras está em harm onia com a bondade d e D eus. Esse foi mais um ataque à alegoria tradicional, que afirmava que as Escrituras estavam repletas de afirmações imorais que precisavam ser transformadas por meio da alegoria. João rejeitou isso e afirmou que até mesmo partes supostamente “imorais” das Escrituras (como a ordem divina para matar os amalequitas) eram manifestações da bondade de Deus. 4. As E scrituras têm m uitos sentidos, e o sen tido litera l é um deles. O sentido literal continha os sentidos figurados. Isso parece ser uma concessão à alegoria, mas a segunda parte da regra revela a verdadeira opinião de João. Qualquer significado espiritual a ser derivado do texto precisa vir do sentido literal, e não ser imposto a ele. 5. O sen tido litera l é aquele que o autor tinha em m ente. E le é in fa lív el e contém tudo o que é necessário p a ra a salvação. Essa era uma posição radicalmente nova, mais semelhante a W ycliffe do que qualquer outra coisa. Ela situava a regra anterior no contexto correto e afirmava a autoridade espiritual para aqueles que interpretam o sentido literal corretamente. 6. O leitor p recisa ex am inar o contexto e o estilo de uma passagem . Essa ideia é derivada de Hugo de São Vítor, mas João a expressou em um contexto em

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que, graças ao elevado valor atribuído ao sentido literal, seu ensino tinha um significado espiritual que Hugo não teria nem imaginado. 7. As dificuldades em um texto são úteis e necessárias. E necessário expor as Escrituras. Se tudo fosse simples e óbvio, João defendeu, ninguém se importaria com o estudo atento e cuidadoso do texto das Escrituras, e não haveria neces­ sidade de expô-las. Isso significaria na prática que ninguém as leria nem lhes daria atenção. 8. Como intérpretes, os p a is d evem ser p referid os aos contem porâneos. Aqui o tradicionalismo básico de João transparece claramente. Ele não estava preparado para abandonar a antiga herança da igreja, até mesmo quando era possível provar que ela estava errada. Obviamente, como em qualquer época, os “contemporâ­ neos” muitas vezes iam a extremos, e João estava certo em insistir em que fossem submetidos ao teste do tempo antes de serem levados muito a sério. M as uma regra desse tipo também poderia servir para negar muitas das regras anteriores, sobretudo porque se poderia facilmente demonstrar que os pais haviam favore­ cido a alegoria em detrimento do sentido literal em muitas partes das Escrituras. 9. Era necessário com parar com entaristas e fa z ê-lo s concordar caso fo s s e possível. Em casos d e discordância, d ev e-se p r e fe r ir o m ais próx im o das E scrituras. O alvo da harmonia de comentários também era tradicional, enraizado na ideia da unida­ de da verdade e da autoridade dos pais para expô-la. A segunda parte da regra era nova, pois atribuía às Escrituras a autoridade primária, enquanto em épocas anteriores as opiniões dos pais mais importantes teriam recebido a preferência, mesmo que sua interpretação fosse menos literal. 10. Os hereges interpretaram as E scrituras com fa lsid a d e. O a lvo da in terpretação bíblica é chegar à verdade. Essa era uma afirmação tradicionalista, pois defendia a autoridade da igreja (encarnada no papa) para interpretar as Escrituras. Embora João estivesse correto no que disse, tudo dependia de quem decidia o que era heresia. Aqui precisamos nos lembrar do contexto; os “hereges” com quem ele estava mais preocupado eram os lolardos na Inglaterra e os hussitas na Boêmia, ambos os grupos seguidores dos princípios de Wycliffe.

Conclusão Chegamos ao fim de nossa pesquisa da exegese medieval, e é hora de costurar as partes. Grande parte do que pesquisamos parece estranha para o leitor moderno, e é importante nesse estágio extrair da realização medieval elementos que man­ têm valor permanente. É possível resumi-las da seguinte forma:

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1. Ainda comparamos textos com acepções semelhantes em diferentes par­ tes da Bíblia, exercício primeiramente sistematizado nas glosas e postilas. 2. Ainda comparamos as visões de críticos do passado para decidir o que po­ demos aprender deles, prática que remonta a Beda, e até antes dele, a Gregório, o Grande. 3. Ainda comparamos as Escrituras com a literatura secular do período, co­ mo os vitorinos nos ensinaram a fazer. 4. Ainda usamos comentários versículo por versículo como o mais popular tipo de exposição bíblica, e o sermão mantém seu lugar na exegese oral. Assim, a obra de Pedro Cantor e seus seguidores permanece hoje uma realidade na vida da igreja. B ibliografia B isc h o f f , B. “Turning points

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ESTUDO DE CASO: CÂNTICO DOS CÂNTICOS Nenhum livro da Bíblia recebeu tanta atenção durante a Idade M édia quanto Cântico dos Cânticos. Desde a época de Hipólito (c. 200 d.C.) até a de Lutero, houve ao menos 64 comentários sobre o livro, dos quais 45 datam do ano 800 em diante. Praticamente todos os grandes expositores bíblicos, e vários entre os menos conhecidos, tinham algo a dizer sobre essa obra, que permaneceu um clássico ao longo das gerações. Ao mesmo tempo, há alguns comentaristas importantes que não escreveram sobre o livro, entre eles Agostinho, Hugo e André de São Vítor e (muito mais tarde) João Calvino. Nenhum livro, com a possível exceção de Apocalipse, recebeu tantas inter­ pretações divergentes. Desde os rabinos, que pensavam que o livro representava uma saga da conduta de Deus com Israel, até os intérpretes modernos, que o enxergam como um tratado de libertação feminina, todas as possibilidades im a­ gináveis foram investigadas em uma época ou outra. No meio dessa confusão, no entanto, destacam-se dois modos básicos de interpretação: o literal e o alegórico. Antes do advento da crítica moderna, a interpretação literal era tão rara a ponto de causar escândalo quando aparecia. O único autor cristão que a adotou foi Teodoro de Mopsuéstia, e sua obra foi convenientemente esquecida. A alegoria dominou tanto a interpretação judaica como a cristã, e isso permaneceu assim até a primeira parte do século 19. Além disso, é necessário dizer que as interpretações alegóricas desse livro são as únicas que tiveram muito mais êxito na vida da igreja. Isso se aplica até mesmo à nossa época antialegórica, conforme podemos observar em relação a Cântico 2.4: “Levou-me ao salão de banquetes, e o seu estandarte sobre mim é o amor”. No contexto original, parece que o autor tinha em mente uma noite de

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prazer sexual após uma orgia de bebedeira, mas nenhuma congregação moderna que cante o coro baseado nessas palavras pensa sobre isso. Para nós, é “óbvio” que aqui temos Cristo, levando-nos para sua igreja e nos alimentando com seu alimento e bebida espirituais na santa comunhão. Estudiosos podem protestar quanto quiserem, mas, para a maioria dos cristãos, a interpretação tradicional vem à tona quase sem esforço, e o sentido literal é completamente ignorado. Esse fenômeno curioso nos leva a perguntar se o modo alegórico de inter­ pretação é o correto a adotar nesse caso, ou ao menos se ele está mais perto da intenção do poema do que o sentido “literal” concebido por exegetas modernos. Qual era, afinal de contas, a intenção original do autor? Se queremos pressupor que o autor não foi Salomão, mas alguém trabalhando na tradição de sabedoria associada a seu nome, que intenção ele teve? A tendência moderna de con­ siderar Provérbios uma compilação de conselhos úteis, mas bem enfadonhos, Eclesiastes como obra de um humanista cansado e Cântico dos Cânticos como obra erótica nos mostra como a tradição de sabedoria é pouco compreendia ou valorizada em nossos dias, em absoluto contraste com épocas anteriores, quan­ do esses livros eram considerados os mais seletos em todas as Escrituras. A interpretação literal afastou esses livros do uso cotidiano da igreja, e eles quase deixaram de fazer parte do cânon para todos os efeitos práticos. A igreja cristã herdou sua interpretação alegórica dos judeus, e os exposito­ res cristãos rapidamente a adaptaram à sua teologia específica. A partir da época de Orígenes, encontramos as duas interpretações clássicas, a união da Palavra de Deus com a alma humana, por um lado, e a união de Cristo com a igreja, sua noiva, por outro. Essas duas interpretações representam aspectos diferentes da igreja: a vida privada e devocional do cristão como indivíduo e o testemunho e destino coletivos da comunhão espiritual de todos os fiéis. Eles não se excluem mutuamente, e a maioria dos comentários alegóricos contém elementos das du­ as interpretações, embora se incline para uma ou para outra. Obviamente, é verdade que a disciplina de celibato imposta nas ordens monásticas criou uma situação sexual bastante tensa, e um livro como Cântico dos Cânticos seria praticamente uma dinamite. M as devemos lembrar que as ordens monásticas não inventaram a interpretação alegórica, que antedatou a ênfase no celibato em alguns séculos. O desconforto de alguns com algumas expressões de amor erótico ao menos se igualou à confusão que o tom secular do livro gerou. Com exceção de Ester, cuja condição canônica foi questionada durante bastante tempo, Cântico dos Cânticos é o único livro na Bíblia que nunca menciona o nome de Deus. Para a mente medieval, isso somente poderia

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significar que era o texto místico por excelência, pois Deus havia se ocultado atrás de suas próprias palavras. De todos os grandes comentários sobre o livro, nenhum supera os oito sermões de Bernardo de Claraval, um clássico devocional que ainda hoje é amplamente lido. Bernardo favoreceu a abordagem pessoal adotada pela alegoria da Palavra e da alma e foi nela que se concentrou. Seus sermões foram escritos durante um período de dezoito anos, começando em 1135 e continuando até sua morte em 1153. Apesar das quase seiscentas páginas de texto que resultaram desse esforço, Bernardo nunca passou do primeiro versículo do terceiro capítulo. Os primei­ ros oito sermões se ocupam de Cântico 1.2: “Beije-me ele com os beijos da sua boca...”. Obviamente, há um enorme número de digressões, mas elas são fasci­ nantes em si mesmas. Pois o que Bernardo faz (e essa é a principal razão de sua popularidade ainda hoje) é ler toda a Bíblia pelo prisma de Cântico dos Cânticos. Para Bernardo, Cântico não é somente uma alegoria mística, mas a chave para a compreensão das Escrituras como um todo e, portanto, a mais perfeita expressão da vida espiritual. No decorrer de seus sermões, encontramos toda a extensão da revelação bíblica, desde a criação do mundo até a segunda vinda de Cristo. O primeiro sermão, que é uma espécie de introdução a toda a compilação, estabelece o tom de forma admirável. Bernardo diz: É necessário lhes falar, amigos cristãos, sobre verdades diferentes daquelas verdades que pessoas que estão no mundo precisam ouvir, ou ao menos precisa­ mos falar sobre essas verdades de um modo diferente. Às pessoas que estão no mundo, deve-se dar leite e não carne, caso um pregador deseje seguir o método de ensino de Paulo: “O que vos dei para beber foi leite, e não alimento sólido, pois não podíeis recebê-lo...” (ICo 3.2). O próprio Paulo nos ensina, por meio de seu exemplo, a oferecer alimento mais sólido a pessoas espirituais, quando diz: “Também falamos dessas coisas, não com palavras ensinadas pela sabe­ doria humana, mas com palavras ensinadas pelo Espírito Santo, comparando coisas espirituais com espirituais” (ICo 2.13). Ele também diz: “... falamos de sabedoria entre os que já são maduros...” (ICo 2.6). Assim, estejam preparados para serem alimentados não com leite, mas com pão. Há pão nessas palavras de Salomão, em Cântico dos Cânticos, que está repleto de alimento. Agora o colocamos diante de nós e o partimos conforme necessitamos dele. E adiante no mesmo sermão: Mas quem irá partir esse pão? O Mestre da Casa está presente, de modo que precisam reconhecê-lo no partir do pão (Lc 24.35). Quem mais é capaz de partir o pão? No que me diz respeito, não sou impetuoso o bastante para arrogar

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isso para mim. Se estão esperando de mim, não receberão nada. Pois também estou com aqueles que recebem sua carne de Deus. Rogo a Deus, junto com vocês, pelo alimento de minha alma e o sustento de meu espírito. Pobre e neces­ sitado que sou, bato à porta daquele que abre e ninguém pode fechar (Ap 3.7), para que possa receber um conhecimento do profundo mistério oculto nesse livro. Os olhos de todos esperam em ti e lhes dás seu alimento a seu tempo (SI 145.15). Teus filhos pequenos buscam pão e não há ninguém que possa parti-lo para eles. De tua bondade esperamos por essa bênção. O Deus misericordioso, parte teu pão para as almas famintas que estão diante de ti, por meio de minhas mãos, caso considere adequado, por meio do poder de tua graça! Assim, Bernardo apresenta seu tema e ora a Deus pedindo graça para expor o texto como deve. Observe que ele identifica o pão com a Palavra, e não com o sacramento, o que nos chama a atenção como uma característica curiosamente “protestante”. Em relação ao tema do beijo, que ocupa os sermões sobre Cântico 1.2, pode­ mos ter uma noção do sabor de sua exposição teológica com base no Sermão 8. Bernardo diz: Tenho certeza de que nenhuma criatura, nem mesmo um anjo, é admitido em um segredo do amor divino desse tipo e tão santo. Paulo acaso não diz por conhecimento próprio que essa paz ultrapassa todo entendimento, até mesmo o dos anjos (Fp 4.7)? É por essa razão que a Noiva, embora ousada em muitas coisas, não ousa dizer: “Beije-me ele com a sua boca”, pois isso está reservado somente ao Pai. Mas ela pede outra coisa: “Beije-me”, ela diz, “com os beijos de sua boca...”. Vejam a nova Noiva recebendo o novo beijo, não da boca do Noivo, mas dos beijos da boca dele. Ele soprou sobre eles, diz o texto, e isso certamente significa que Jesus soprou sobre seus apóstolos, isto é, a igreja primitiva, e disse: “... Recebei o Espírito Santo” (Jo 20.22). Esse foi o beijo. O que foi ele? Um sopro? Não, mas o Espírito invisível, que agora é conferido de tal modo no sopro do Senhor, que é compreendido como aquele que procede igualmente do Pai e do Filho (Jo 15.26). O beijo é certamente comum àquele que beija e àquele que é beijado. E assim a Noiva se satisfaz em receber o beijo do Noivo, embora não seja um beijo da boca dele. Pois ela não considera uma coisa pequena ser beijada pelo beijo, pois não é nada menos que ser beijada pelo Espírito Santo. Certamente, se o Pai beija e o Filho recebe o beijo, é apropriado conceber o Espírito Santo como o beijo, pois ele é a paz imperturbável do Pai e do Filho, sua ligação segura, sua unidade indivisível.

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Assim, eis o que temos: a dupla procedência do Espirito Santo (a famosa doutrina dofilioq u è), que na época de Bernardo era um tópico de debate ardente com a igreja oriental, aqui nos é revelada em Cântico 1.2! Para um exemplo de como Bernardo extrai preocupação pastoral prática do texto, não há lugar melhor do que o Sermão 61, em que ele comenta sobre Cântico 2.13,14. Esse extrato também demonstra o modo com que as duas linhas de alegoria se aglutinam em uma só exposição: “Levanta-te, minha amada, minha bela, e vem”. A igreja não recua das marcas ardentes da paixão do Salvador nem foge das marcas pálidas de suas feridas. A igreja até mesmo se compraz nelas e deseja que sua própria morte seja como elas. A razão da Noiva dizer ao Noivo: “Pomba minha, que andas pelas fendas da rocha, nos esconderijos, nas encostas dos montes, mostra-me o teu rosto, deixa-me ouvir a tua voz; pois a tua voz é doce, e o teu rosto é lindo” é que ela se dedicou com uma devoção indivisa às feridas de Cristo e continuamente medita sobre elas. Daqui vem a perseverança que não foge do martírio. Essa é a completa confiança que ela tem no Deus altíssimo. O mártir não tem nada a temer se puder levantar seus olhos para esse rosto pálido e descorado. Ele é curado por sua palidez e fortalecido para se tornar como seu Mestre quando enfrentou a morte, até mesmo para ficar pálido como o ouro. Por que devemos temer a pessoa que disse: “mostra-me o teu rosto”?. Por que ela diz isso? Penso que seja porque o Noivo deseja mais ser visto pela Noiva do que vê-la. Pois o que existe que ele não vê? Ele não precisa que ninguém se mostre a ele, visto que ele tudo vê, até mesmo as coisas ocultas. Assim, o que ele deseja é ser visto. O líder está cheio de bondade e quer que seus soldados fiéis fixem seus olhos em suas feridas para que delas possam extrair força. Então esses soldados derivarão poder do exemplo de Cristo. O êxito da alegorização de Bernardo pode ser visto no fato de que ele rea­ parece ao longo das eras, e pode ser encontrado ainda em 1853, no comentário de George Burrowes. Até M artinho Lutero, que pensava estar interpretando Cântico dos Cânticos “literalmente”, isto é, no contexto do relacionamento de Deus com Israel, enxergou o beijo em 1.2 como a dádiva da Palavra da parte de Deus a seu povo. Por que, então, a interpretação alegórica continua encontrando adeptos ainda hoje? A razão pode ser a natureza essencialmente poética do livro que se presta à alegoria, mas também pode ser porque a alternativa não foi capaz de se demonstrar espiritualmente adequada. Para uma amostra de interpretação lite­ ral moderna, podemos tomar o exemplo de M arvin Pope: “Beijo. A raiz nsq tem

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toda a variedade de significados de nossa palavra ‘beijo’. Em Ezequiel 3.13, diz respeito às asas de querubim que tocam umas nas outras, mas em outros lugares trata-se de pelo menos uma boca que toca uma variedade de objetos — boca, lábios, mãos, pés e ídolo, um bezerro”. Depois de ler algo tão árido, talvez seja mais fácil compreender por que o sentido alegórico continua sendo atraente. B ibliografia Um guia quase completo da história da interpretação de Cântico dos Cânticos pode ser encontrado em M . H. Pope, S ong o f Songs: a n ew translation w ith in trod u ction a n d com m entary, Anchor Bible Comm entary 7C (New York: Doubleday, 1977). B a c k h o u s e , H .,

orgs. The S ong o f Songs: B ern a rd o f C lairvaux (London: Hodder and Stoughton, 1990). Contém os sermões 1, 3, 6, 8 ,1 3 -1 5 ,2 0 ,2 8 ,2 9 ,3 1 3 3 ,3 6 ,3 8 ,4 3 ,4 5 ,4 7 ,5 0 ,6 1 ,6 9 e 85. E a l e s , S. J. “Cantica Canticorum: eighty-six sermons on the Song of Solomon”. In: M a b il l o n , J. org. L ife a n d works o f St B ernard, abbot o f C lairvaux (London: Catholic Standard Library, 1889). 4 vols. E v a n s , G. R., org. B ern a rd o f C lairvaux: selected works (New York: Paulist Press, 1987). Essa é uma nova tradução, contendo os sermões 1-5 ,7 , 8 ,5 0 ,6 2 ,7 4 , 80 e 82-84. M a t t e r , E. A. The vo ice o f m y b eloved : the S ong o f Songs in Western M ed iev a l C hristianity (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1990). M ig n e , J.-P. P atrologia L atina 183. cols. 799-1198. Contém o texto original de Beda.

5 O RENASCIMENTO E A REFORMA O período e o tema Em cerca de 1450, um novo espírito de investigação era claramente identi­ ficável na Europa ocidental. Os horizontes mentais estavam se expandindo e a invenção da imprensa tornou a difusão de conhecimento muito mais fácil. Ao mesmo tempo, a chegada de estudiosos gregos fugindo de uma Bizâncio em ruínas e o desenvolvimento de uma espiritualidade mais pessoal dentro da igreja criaram um novo clima intelectual e espiritual. O papado havia sofrido diversos ataques muito danosos no século 14, dos quais estava se recuperando de forma notável; mas a autoridade antiga e inquestionada desaparecera para sempre. Tentativas papais de mobilizar a Europa contra os turcos muçulmanos se provaram fracassos dispendiosos, e os infiéis continuaram seu avanço durante um século ou mais no Oriente. Em contrapartida, o sul da Espanha havia final­ mente se recuperado dos árabes, e as descobertas de Colombo abriram um novo mundo a ser conquistado. Por volta de 1500, um renascimento de aprendizado e cultura estava em pleno andamento em quase todos os lugares. O uso do latim como idioma co­ mum significava que a difusão de ideias era muito rápida; o que se imprimia num mês em Veneza era lido no mês seguinte em Antuérpia, em Paris e em Londres. Estudiosos como Erasmo eram muito procurados em todos os lugares e viajavam de um país a outro sem dificuldades. Isso significava que suas críticas à ordem existente circulavam com muita liberdade. Já não era possível às autori­ dades ocultar informação ou impedir sua difusão. Como a maior autoridade de todas, o papado era a que mais tinha a perder com isso, principalmente pelo fato de que o comportamento dos papas renascentistas não era muito edificante. A noção de Roma como uma poça de corrupção se popularizou, e criticar a igreja se tornou algo comum. Pesquisadores modernos mostraram que a descrição da igreja da época como uma igreja corrupta não era completamente justa e que havia muitos sinais de

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nova vida nela. Os mosteiros estavam se tornando mais populares, depois de um declínio nos séculos 14 e 15, e o apetite por literatura devocional era enorme. Doações financeiras para templos locais aumentaram consideravelmente nos primeiros anos do século 16, o que mostra que a piedade popular estava crescen­ do o tempo todo. Alguns defendem, a partir desses fatos, que a Reforma foi um acidente lamentável, que rompeu uma igreja que estava se emendando, mas o mais provável é que foram exatamente essas forças de recuperação que tornaram a Reforma inevitável, pois elas alimentaram exigências de uma espiritualidade mais genuína na igreja. A experiência do jovem M artinho Lutero pode ser considerada típica. Depois de uma juventude desperdiçada, ele teve uma profunda experiência es­ piritual e decidiu ingressar em um mosteiro. A li encontrou um modo de vida que deveria conduzi-lo à perfeição, mas que na verdade o deixou se sentindo ainda mais abatido. Ele descobriu que exercícios piedosos e boas obras não con­ seguiam remover o profundo sentimento de culpa que sentia pelos seus pecados, e isso continuou incomodando-o. Uma visita a Roma não serviu para nada; ele ficou revoltado com o luxo e a indiferença espiritual do clero romano, que não se incomodava em usar suas posições para colher o máximo de benefício financeiro possível. Em 1512, Lutero ainda um jovem de 29 anos, tornou-se professor de Novo Testamento na universidade de W ittenberg. Foi durante os anos seguintes que ele descobriu a doutrina da justificação pela fé somente, e esta transformou toda sua perspectiva da vida. Lutero encontrou essa doutrina em Romanos 1.17, que é uma citação de Habacuque 2.4: “o justo viverá pela fé”. Subitamente, ele compreendeu que as boas obras eram inúteis para obter a salvação; somente o próprio Deus, implan­ tando a fé em nosso coração, podia realizar isso. Inicialmente, Lutero confinou essa descoberta à sala de aula, onde começou a realizar preleções sobre Romanos. M as logo foi arrastado para o conflito com a igreja, por causa da campanha de venda de indulgências para levantar dinheiro para a construção da catedral de São Pedro em Roma. A indulgência era uma garantia do papa de que pecados específicos haviam sido perdoados e não precisariam de expiação no purgatório. Lutero compreendeu imediatamente que essa ideia era completamente con­ trária às suas próprias convicções e a atacou publicamente em suas Noventa e Cinco Teses, que publicou em 31 de outubro de 1517. A publicação das teses, que logo estavam circulando em toda a Europa, de­ sencadeou uma controvérsia que dividiu o continente. A maioria dos estudiosos apoiou Lutero inicialmente, mas à medida que ele se tornou mais radical em

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suas exigências, muitos deles se recusaram a continuar seguindo-o. Isso se apli­ cou sobretudo a Erasmo, que criticava Roma, mas nunca conseguiu compreender por que a doutrina da justificação pela fé somente, defendida por Lutero, era de uma importância tão vital. Outros, de tendência mais conservadora, como Henrique VIII da Inglaterra, reagiram contra Lutero desde o início, mas acaba­ ram se vendo do mesmo lado — nesse caso, para desconforto de ambos. O lema da Reforma era sola Scriptura [somente as Escrituras] e esse prin­ cípio guiou seu desenvolvimento teológico. Lutero e a primeira geração de reformadores ainda estavam profundamente imersos em categorias de pen­ samento medievais e tendiam a interpretar o princípio “Escrituras somente” do modo cristológico tradicional. Em termos patrísticos, eles tinham certa inclinação “antioquena” na teologia, como podemos observar com base no fato de que Lutero foi acusado de nestorianismo e Calvino, de arianismo, ambos considerados como desvios antioquenos. Logo, no entanto, um novo tipo de teologia emergiu, baseado exclusivamente na Bíblia. Essa foi a teologia da aliança (ou “federal”), cujas origens podem ser traçadas a W illiam Tyndale na Inglaterra e a alguns dos seguidores imediatos de Calvino na Alemanha. O próprio pensamento de Calvino provavelmente estava de acordo com isso, embora ele não tenha criado um sistema hermenêutico definido. A teologia da aliança concedeu à igreja um modo de interpretação do Antigo Testamento sem escorregar para alegorias e logo se tornou a estrutura aceita de quase toda a interpretação bíblica protestante. Por volta de 1560, o mapa da Europa havia mudado decisivamente. O Sacro Império Romano estava dividido ao meio entre estados católicos e estados pro­ testantes, a Escandinávia e a Inglaterra haviam rompido com Roma, e havia fortes movimentos protestantes na França, Hungria e Polônia. A igreja romana inicialmente tentou chegar a um acordo com esse novo movimento, mas acabou desistindo e, em vez disso, escolheu uma política de entrincheiramento. Isso foi elaborado no Concilio de Trento, que se reuniu de modo não regular entre 1545 e 1563. Terminado o Concilio, o catolicismo romano era uma força de combate distinta, oposta de modo militante, aos novos poderes protestantes e fixada em um molde dogmático que fornecia um modelo para os protestantes emularem. Essa nova militância católica resultou em uma longa série de guerras que não terminou antes do Tratado de W estfália, em 1648, que consagrou a divisão religiosa da Europa ocidental. Nessa época, as diferentes igrejas protes­ tantes também haviam encontrado suas definições: os luteranos pela Fórmula de Concórdia (1577) e os calvinistas no Sínodo de Dort (1618-1619).

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A divisão da Europa e o colapso da civilização medieval se tornaram mais evidentes no surgimento de idiomas nacionais, que a partir de 1530 começaram a substituir o latim tanto no estado como na igreja (protestante). O uso do vernáculo na adoração foi uma das exigências principais dos reformadores, e é graças aos seus esforços que diversas línguas europeias (e.g., finlandês, eslovaco e romeno) desenvolveram pela primeira vez sua literatura. A tradução da Bíblia para diferen­ tes línguas faladas na Europa foi uma importante atividade nesse período e ajudou a definir o caráter nacional de países como Alemanha, Holanda e Grã-Bretanha. O latim, no entanto, continuou sendo o idioma internacional do estudo erudito, e assim os principais reformadores muitas vezes publicavam seus textos em latim e em seu idioma nativo. Foi somente no século 17 que o francês substituiu o latim, mas isso ocorreu principalmente no domínio secular, e não no religioso. Nas ilhas britânicas, os desdobramentos seguiram um curso ligeiramente diferente. Depois de romper com Roma em 1534, Henrique VIII tentou for­ mar uma aliança com os luteranos, mas fracassou. Ele então estabeleceu um catolicismo nacional, que foi derrubado só depois de sua morte em 1547. Sob Eduardo VI (1547-1553), a Inglaterra experimentou uma reforma rápida e profunda. No entanto, o rei morreu antes de essas políticas poderem ser pro­ priamente implementadas e houve um período de reação sob sua irmã M aria I (1553-1558). Os muitos fracassos de M aria demonstraram que uma restauração da antiga ordem não era possível nem desejável, e, quando subiu ao trono, sua irmã Elizabete I (1558-1603) conseguiu estabelecer uma ordem moderada, mas claramente protestante. Apesar de pressões de protestantes mais radicais, a ordem elisabetana so­ breviveu até ser derrubada pela insensatez de Carlos I (1625-1649) e seu assecla bajulador Guilherme Laud, arcebispo da Cantuária de 1633 a 1645. Suas políticas acabaram produzindo a Guerra Civil Inglesa (1642-1649), em que os protestan­ tes radicais triunfaram e o rei foi executado. Os protestantes, no entanto, não estavam unidos e não conseguiram se unir em torno de uma política comum para governar o Estado uma vez que o capturaram. Seu idealismo inicial logo se trans­ formou em tirania, e a população ficou desiludida. Por volta de 1660, foi possível restaurar a monarquia para grande alegria do povo, em uma atmosfera de cinis­ mo e indiferença crescentes em relação a questões religiosas. O protestantismo inglês passaria a ficar dividido em dois grupos, conformista e não conformista, dos quais este era obviamente o mais comprometido — e o mais radical. As décadas de 1650 até 1700 foram um período de crescente intolerân­ cia entre os devotos, em que dissidentes foram perseguidos e expulsos sempre

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que possível. Os protestantes franceses foram finalmente enviados ao exílio em 1685, uma experiência que levou ao radicalismo de alguns deles, a ponto de se oporem a toda autoridade em questões religiosas. Os dissidentes ingleses, como os não conformistas eram chamados, também estavam sofrendo opressão, mas certamente não a tal ponto. A intransigência teológica oficial assegurou que as faculdades de teologia universitárias não tivessem nada criativo para oferecer, e a discussão teológica foi transferida para outros lugares. Quando as paixões gera­ das pelas guerras religiosas se exauriram, uma profunda decepção se estabeleceu e a indiferença religiosa se tornou comum, sobretudo entre intelectuais. Novas ideias radicais que haviam sido murmuradas em segredo desde a década de 1630 agora apareciam gradualmente no debate público, e o clima espiritual mudou dramaticamente. Quando o rei francês Luís XIV morreu em 1715, o fervor religioso de 1685 havia desaparecido e uma nova era de ceticismo havia começado. Esse foi um processo que durou uma geração ou mais, e sua difusão foi desigual. Certamente não houve um grande acontecimento singular que marcou o ocaso da era da Reforma e o início de uma nova era chamada “Iluminismo”. M as os principais historiadores desse período, de modo geral, agora aceitam que uma mudança desse tipo ocorreu durante os anos em torno de 1700. A revolução espiritual que havia começado com Lutero estava final­ mente perdendo a força, e uma nova era a estava substituindo. E mais fácil classificar os estudiosos bíblicos do período da Reforma de acordo com sua persuasão teológica do que de acordo com a cronologia. Em distinção acentuada com a Idade M édia, os movimentos intelectuais dos sécu­ los 16 e 17 não foram capazes de carregar consigo toda a Europa. Eles foram igualmente incapazes de (ou estavam indispostos a) coexistir uns com os outros. Por essa razão, praticamente tudo o que foi escrito durante esses séculos tem um ar de controvérsia, que muitas vezes pareceu anacrônico ou não atraente para as gerações posteriores. É somente em nossa própria época, em que a indiferença religiosa é mais uma vez algo comum, que os estudiosos podem trabalhar juntos para buscar uma descrição relativamente objetiva desses anos. Não será nenhu­ ma surpresa descobrir que a Bíblia foi mal-usada muitas vezes nesses conflitos; o que é mais importante é que tantos elementos de valor permanente foram obtidos nesse período. Pois quer gostemos, quer não, o cristianismo moderno no Ocidente ainda se define pelo que aconteceu durante esse período, e nossas igrejas permanecem amarradas ao seu legado. Não há como escapar da Reforma: ela permanece a pedra fundamental da vida social, política e, acima de tudo, religiosa da atualidade.

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Os intérpretes e sua obra Os humanistas Estes foram os primeiros da nova classe de intérpretes a aparecer no cenário, e é graças a eles, em grande parte, que a Reforma foi possível. No entanto, embora muitos humanistas iniciais simpatizassem com Lutero, somente alguns na ver­ dade o seguiram na rebelião. O temperamento deles destoava do temperamento de Lutero e costumavam ter uma religiosidade menos passional do que ele. Eram brilhantes no estudo ou na sala de aula mais do que no púlpito, e alguns deles passaram a se opor a Lutero por causa do fanatismo que percebiam nele. Lourenço Valia (1407-1457). Pioneiro principal do novo humanismo, Valia se opôs às reivindicações temporais do papado e passou muitos anos demons­ trando que elas se baseavam em documentos forjados. Em sua abordagem das Escrituras, ele queria buscar uma base mais antiga que a Vulgata latina e ir até os textos originais, uma ação que no contexto foi vista pela autoridade papal como algo igualmente subversivo. M arsílio Ficino (1433-1499). Humanista italiano definitivamente secular. Sua estima pelo apóstolo Paulo se baseava no fato de que o apóstolo demons­ trava um bom conhecimento de literatura secular! Desidério Erasmo de Roterdã (c. 1466-1536). O mais conhecido dos hu­ manistas, hoje universalmente reconhecido como o homem mais erudito de sua época. Renovou completamente o estudo dos clássicos e foi o primeiro estudan­ te sistemático de crítica textual. Sua edição do Novo Testamento grego, com uma tradução em latim (1516), produziu um alvoroço na véspera da Reforma. Lutero rapidamente fez uso da edição de Erasmo, que questionava a Vulgata de Jerônimo em vários lugares. A devoção de Erasmo à crítica textual da Bíblia fez * com que muitas pessoas pensassem que ele ficaria a favor da Reforma, mas ele tentou ficar fora do conflito e acabou se opondo a Lutero na questão do livre-ar­ bítrio humano. Especialmente influentes foram suas Annotations [Anotações] e suas Paraphases [Paráfrases] sobre os Evangelhos; estas se tornaram leitura obrigatória entre o clero inglês nas primeiras gerações da Reforma. Jacques Lefèvre d’Étaples (c. 1460-1536). Escreveu comentários bíblicos nos quais é possível traçar seu avanço em direção ao protestantismo. Em seu primeiro comentário sobre Romanos (1512), tentou conciliar Paulo com Tiago na questão das boas obras e revelou que tinha uma posição sinergista, isto é, os seres humanos cooperam com Deus para alcançar a salvação. Em seu comen­ tário sobre os Evangelhos (1522), ainda defendia uma posição sinergista, mas

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se opunha às reivindicações papais com base em M ateus 16.19. No entanto, em seu comentário sobre as epístolas pastorais (1527), mostrou que havia adotado uma posição mais ou menos luterana, que manteve até sua morte. João Eck (1486-1543). Professor de teologia em Ingolstadt a partir de 1510, Eck apoiou Lutero até 1519, quando os dois homens se desentenderam. Eck se tornou o líder da reação católica a Lutero e acabou produzindo uma Bíblia em língua alemã para rivalizar com a tradução de Lutero (1537). João Reuchlin (1455-1522). Tio-avô de Melâncton, amigo e discípulo de Lutero, Reuchlin foi um dos principais hebraístas de sua época. Encorajou es­ tudantes a se aprofundar nos conhecimentos de hebraico, bem como de grego, e publicou uma gramática da língua para o uso deles (1506). Opôs-se fortemente à Reforma, da qual tentou afastar Melâncton. João Colet (c. 1466-1519). Grande amigo de Erasmo, Colet foi responsável por levá-lo para a Inglaterra por alguns anos. Ele mesmo proferiu uma série de preleções sobre as epístolas paulinas em Oxford em 1497, o que demonstrou seu saber e suas preferências humanistas. Foi o mais notável humanista da época, e mais tarde tanto católicos como protestantes o reivindicaram como um dos seus. Guillerme Budé (1467-1540). Humanista francês que persuadiu o rei da França a designar preletores seculares que exporiam as Escrituras gregas e he­ braicas com uma liberdade negada a eles pela faculdade teológica da Sorbonne. Foi graças a ele, em grande parte, que o jovem Calvino recebeu uma formação humanista em exegese bíblica e secular. Sebastião Castellio (1515-1563). Esse humanista professou o protestantis­ mo, mas se opôs fortemente a Calvino em muitos pontos doutrinários, sobretudo na predestinação. E famoso por suas objeções à canonicidade de Cântico dos Cânticos, o que fez com que não recebesse sua ordenação em Genebra. M ais tarde, publicou elegantes traduções da Bíblia em latim e francês, que incluíam Cântico dos Cânticos.

Os reformadores luteranos M artinho Lutero (1483-1546). M artinho Lutero foi uma figura tão altaneira em sua própria época que toda a Reforma do século 16 agora está indelevelmente associada a seu nome. Sua produção teológica foi prodigiosa, embora alguns de seus escritos tenham sido publicados somente no século 20. É famoso principalmente por sua tradução da Bíblia para o alemão, iniciada em 1524, a qual continua sendo a base da tradução alemã moderna mais usada. Suas obras

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exegéticas constituem pouco mais da metade de sua produção total — trinta volumes de 55 na edição americana de suas obras. Com algumas exceções, elas são principalmente notas de preleções escritas para publicação. O restante são principalmente sermões. Por causa de sua grande importância, elas são listadas aqui em ordem de composição. Salmos Romanos (publicado em 1938) 1517-1518 Hebreus 1521 Lucas 1.46-55 (M agnificat) 1522 iPedro (Sermões) 1523 2Pedro (Sermões) Judas (Sermões) 1523 ICoríntios 7 1523 1523-1525 Deuteronômio 1524 Oseias 1524 Joel 1525 Amós 1513-1515 1515-1516

Obadias-Malaquias 1526 1526 Eclesiastes 1527 ljoão 1527-1528 iTimóteo 1527 Tito 1527 Filemom 1528 Isaías 1530-1531 Cântico dos Cânticos Gálatas 1531 1531-1545 Salmos (seleção) 1532 Mateus 5—7 1534 ICoríntios 15 1535-1545 Gênesis 1543 ISamuel 23.1-7

Pode-se ver com base nessa lista que Lutero realizou grande parte de sua obra exegética na década de 1520, quando as doutrinas da Reforma ainda estavam sendo elaboradas. Depois de 1535, ele se concentrou em uma enorme exposição do Pentateuco, que ainda estava longe de ser concluída quando ele morreu. O comentário de Gênesis perfaz oito volumes e representa um quar­ to de sua produção hermenêutica. Considerando que Lutero era professor de Novo Testamento, é surpreendente observar quão pouco escreveu sobre o assunto; a maioria de seus comentários é de livros do Antigo Testamento e foi ali que concentrou a maior parte de seus esforços perto do fim da vida. Combater interpretações alegóricas do Antigo Testamento, sem perder seu significado cristológico, era uma das grandes preocupações dos reformadores, pois disso dependia sua convicção de que o sentido literal das Escrituras era o que estabelecia a verdadeira doutrina. De fato, Lutero estava explicando as partes mais difíceis das Escrituras para uma igreja que mais uma vez estava perguntando se o Antigo Testamento tinha lugar significativo na vida e ado­ ração cristãs.

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Lutero é famoso pela sua distinção entre lei e evangelho, que ele identificou em todas as Escrituras. Em sua opinião, a epístola de Tiago era quase comple­ tamente lei, e ele, portanto, questionou seu lugar no cânon. A noção de que há uma incompatibilidade fundamental entre Tiago e Paulo foi refutada muitas vezes, mas as dúvidas de Lutero a respeito disso permanecem surpreendente­ mente influentes ainda hoje. François Lam bert (1486-1530). Francês da cidade papal de Avinhão, migrou para a Suíça onde conheceu Zuínglio (1522) e então se mudou para W ittenberg (1523). Convertido ao luteranismo, ele foi para Hesse em 1526 e, no aiío seguinte, se tornou professor de Antigo Testamento na nova universidade de Marburgo. Foi um dos mais populares e convincentes dos primeiros lutera­ nos, e suas obras desfrutaram de ampla circulação em toda a Europa. Depois de sua morte, no entanto, sua popularidade decaiu, e hoje ele está praticamente esquecido. Seus comentários incluem obras sobre Cântico dos Cânticos (1524), os Profetas Menores (1525-1526) e Apocalipse (1528). Andreas A ltham er (c. 1500-c. 1539). Um dos primeiros convertidos ao lu­ teranismo, Althamer tornou-se o pregador oficial da cidade alemã de Ansbach em 1528. Escreveu um comentário de Tiago (1527), mas sua fama deve-se principalmente a seu C onciliatio locorum Scripturae [Harmonia das Escrituras] (1530), uma harmonia de passagens difíceis das Escrituras que circulou ampla­ mente em toda a Europa. Andreas Bodenstein von Karlstadt (Carlstadt) (c. 1477-1541). Um dos pri­ meiros convertidos ao luteranismo, Karlstadt escreveu 380 teses sobre a supremacia das Escrituras (1520). M ais tarde, adotou uma forma extrema de protestantismo radical, um tanto semelhante ao puritanismo posterior, e rompeu com Lutero. Suas teses são notáveis pelo modo que combinam a ênfase reformada nas Escrituras, o amor humanista por idiomas e o conhecimento de exegese rabínica medieval. João Bugenhagen (1485-1558). Profundamente influenciado por Erasmo, ele se tornou luterano em 1520 e mais tarde foi para a Dinamarca, onde foi responsável por reorganizar a igreja dinamarquesa em conformidade com o luteranismo. Ajudou Lutero a traduzir a Bíblia para o alemão e escreveu um comentário de Salmos (1524), que se tornou um clássico. Entre suas outras obras, há comentários de Deuteronômio (1524), 1 e 2Samuel (1524), Efésios— Hebreus (1524), 1 e 2Reis (1525),Jeremias (1526), Romanos (1527), ICoríntios 1—4 (1530) e Jeremias (1546). Filipe M elâncton (1497-1560).Teólogo mais sistemático do que Lutero, foi responsável por grande parte do trabalho de estabelecimento do luteranismo. Ele

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publicou um comentário de Romanos que passou por várias revisões durante o curso de sua vida. A primeira edição veio a lume em 1522, quando um conjunto de suas preleções foi publicado sem seu conhecimento. Ele as revisou comple­ tamente para uma nova edição em 1529 e produziu outras revisões extensas em 1532,1540 e 1556. Foi esse comentário, junto com as preleções de Lutero sobre Gálatas, que forneceu a teólogos luteranos sua principal fonte bíblica para a doutrina da justificação pela fé somente. Melâncton foi responsável também por expressar o pensamento de Lutero da perspectiva da filosofia aristotélica, um de­ senvolvimento que tem sido controverso desde então. Seu Loci com m unes rerum theologicarum [Lugares-comuns de questões teológicas], que ele escreveu já em 1521, tornou-se um manual comum de teologia luterana e contribuiu grande­ mente para o desenvolvimento do método teológico entre os reformadores que vieram depois. Seus outros comentários foram de M ateus (1520), ICoríntios e 2Coríntios 1—3 (1522), João (1523; 1536), Gênesis (1523), Provérbios (1524); Colossenses (1527) 1 e 2Timóteo (1541), Daniel (1543), Eclesiastes (1550), Zacarias (1553), M alaquias (1553); Filipenses (1554) e Salmos (1555). Andreas Osiander (1498-1565). Foi um dos primeiros reformadores a tentar fazer uma harmonização completa das aparentes discrepâncias nas Escrituras. Sua H arm onia eva n gelica [Harmonia dos Evangelhos] (1545) demonstra seu método, o qual era dizer que o modo mais simples de reconciliar aparentes contradições era insistir que acontecimentos similares ocorreram tantas vezes quantas necessárias para harmonizar as diferenças. Assim, nas narrativas da paixão, Osiander pensava que Cristo foi coroado com espinhos duas vezes e que Pedro se aqueceu no fogo não menos que quatro vezes! Lutero não ficou im ­ pressionado com esse esforço, mas gerações posteriores usaram Osiander como um modelo para seus próprios esforços de harmonização. João Brenz (1499-1570). Foi aluno de Ecolampádio em Heidelberg e tornou-se luterano em cerca de 1521. Em 1537, liderou a Reforma em Tübingen e, em 1550, fez a mesma coisa em Stuttgart. Em seus últimos anos, foi um fir­ me defensor do luteranismo clássico contra as inovações percebidas tanto dos calvinistas como de Melâncton. Foi um prolífico comentarista das Escrituras e desfrutou grande reputação na Alemanha durante um século depois de sua morte. Muitos de seus livros foram republicados anualmente no século 16, mas desde então foi injustamente negligenciado. No entanto, uma nova edição de suas obras completas está sendo preparada e tem sido publicada em Tübingen desde 1986. Seus comentários incluem obras sobre Jó (1527), João (1527), Eclesiastes (1528), Amós (1530), Oseias (1531), Atos (1535), Juizes (1535), Rute (1535), Lucas

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(1537), Êxodo (1538), Levítico (1542), Filemom (1543), Ester (1543), Gaiatas (1547), Filipenses (1548), Salmos (1548), Josué (1549), Isaías (1550), ISamuel (1554), Romanos (1564), Jonas (1566) e Mateus (1567).

Reformadores influenciados por Lutero W olfgang Capito (1478-1541). Nativo da Alsácia, Capito tornou-se um dos líderes da Reforma em Estrasburgo. Escreveu comentários sobre partes das Escrituras, notavelmente Oseias e Habacuque, que circularam amplamente durante sua vida, mas caíram no esquecimento depois disso. Hoje é lembrado principalmente como um dos primeiros colegas de M artin Bucer. M artinho Bucer (1491-1551). Um dos primeiros convertidos ao luteranismo (1518), Bucer foi o líder da Reforma em Estrasburgo, capital de sua nativa Alsácia. Embora às vezes seja classificado como luterano, ele foi um dos seguidores mais críticos do grande reformador e não demorou para adotar outras ideias. Ele recebeu Calvino durante a estadia deste na cidade (1538-1541) e já havia se aproximado mais dos reformadores suíços, cujas ideias sobre a eucaristia havia passado a apreciar. Durante muito tempo, ele tentou mediar essa questão entre luteranos e zuinglianos, mas seus esforços não tiveram êxito. Em 1548, foi exilado e foi para a Inglaterra como convidado do arcebispo Cranmer. A li participou na revisão do L ivro d e oração com um de 1549 e do Ordinal de 1550. Quando morreu em 1551, era professor emérito de Divindade em Cambridge. Os muitos contatos de Bucer o tornaram o mais ecumênico dos reformadores, fato compreendido apenas em anos recentes. Sua obra foi negligenciada du­ rante bastante tempo, mas agora está passando a ser vista como de importância seminal. Ele escreveu comentários de Sofonias (1528), Salmos (1529), Efésios (1527) e João (1530), antes de ocupar-se com os Evangelhos Sinóticos (1536) e com Romanos (1536), objetivando integrá-lo a um projeto abrangendo todas as epístolas paulinas. M as ele morreu antes de concluí-lo. Bucer escreveu também um comentário de Juizes (1544). Guilherme Tyndale (c. 1494-1536). Tyndale pertenceu à primeira geração de reformadores ingleses e foi atraído a ideias luteranas em cerca de 1522, quan­ do propôs a CuthbertTunstall, bispo de Londres, uma tradução da Bíblia para o inglês. Não recebendo nenhum apoio, deixou a Inglaterra em 1525 e passou os dez anos seguintes em Antuérpia. Em 1535, ele foi traído e entregue a agentes do Imperador Carlos V, sendo levado para Vilvoorde, perto de Bruxelas. A li, foi julgado por heresia e executado no ano seguinte. Ele havia concluído a tradução

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do Novo Testamento e iniciado a do Antigo, mas não viveu o suficiente para concluí-la. Seu Novo Testamento de 1526 foi acompanhado por uma impor­ tante introdução,A p a th w a y into S cripture [Caminho para as Escrituras], que é o mais antigo estudo hermenêutico em inglês e muitas vezes considerado a fonte definitiva da teologia da aliança mais tarde formulada. Assim como Bucer, ele era teologicamente independente de Lutero e, em alguns aspectos, mais próximo dos reformadores suíços. M iles Coverdale (1488-1569). Como Tyndale, foi um convertido ao luteranis­ mo (1528) e, depois disso, se aproximou de Calvino e dos suíços. Coverdale ajudou seu conterrâneo a revisar sua tradução do Pentateuco. M ais tarde (1535), publicou uma Bíblia inteira, inspirando-se na obra de Tyndale e complementando-a com base em várias versões em latim e alemão. M ais tarde, foi proeminente na pro­ dução da Grande Bíblia de 1539 e da Bíblia de Cranmer de 1540. Ele se tornou bispo de Exeter em 1551, mas foi exilado em 1554 e se mudou para Genebra, onde parece provável ter trabalhado na Bíblia de Genebra (1560). Voltou para a Inglaterra em 1559, mas teve pouco envolvimento em atividades públicas.

Os reformadores suíços Ulrico Zuínglio (1484-1531). Reformador principal de Zurique, Zuínglio não foi um notável comentarista bíblico, mas produziu diversos sermões e exposi­ ções no estilo erasmiano. Diferentemente de Lutero, não fez nenhuma distinção entre a lei e o evangelho, de modo que a epístola de Tiago não apresentava nenhum problema para ele. Os outros reformadores suíços, e notavelmente Calvino, seguiram Zuínglio nesse aspecto. Zuínglio é conhecido principalmente pela sua interpretação “simbólica” do pão e vinho da santa ceia, embora a pes­ quisa moderna tenha mostrado que perto do fim de sua vida ele tenha passado a uma posição mais próxima da de Lutero, a quem anteriormente havia se oposto. João Ecolampádio (1482-1531). De nacionalidade alemã, foi discípulo de Erasmo, a quem ajudou na publicação de seu Novo Testamento em 1516. Ele mais tarde foi atraído a Lutero e se tornou professor das Sagradas Escrituras em Basiléia, em 1523, onde trabalhou para introduzir a Reforma. Durante esses anos, se afastou da compreensão de Lutero da eucaristia em direção à de Zuínglio, que defendeu no Colóquio de Marburgo (1529). Escreveu comentários de ljoão (1524), Romanos (1525) e Ageu—Malaquias (1525), seguindo as linhas esta­ belecidas por Erasmo e Reuchlin. Também enfatizava a importância do estudo bíblico para o estabelecimento da doutrina e disciplina verdadeiras na igreja.

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Conrado Pellican (1478-1556). Notável hebraísta muito antes da Reforma, Pellican foi o primeiro cristão a escrever uma gramática desse idioma. Entre 1532 e 1539, escreveu comentários de toda a Bíblia, incluindo os Apócrifos. O alvo de sua obra era a edificação de ministros locais, que precisavam pregar de uma Bíblia que pouco compreendiam. Pedro M ártir Vermigli (c. 1500-1562). Italiano por nascimento, Vermigli se tornou suíço por opção somente perto do fim da vida (1556), quando foi convidado para se tornar professor de hebraico em Zurique. A grande influência em seus primeiros passos veio de Bucer. Ensinou em Estrasburgo (1542-1548) e acompanhou Bucer para a Inglaterra, onde permaneceu até a ascensão de M aria I ao trono (1553). Como professor emérito de teologia em Oxford, realizou preleções sobre Romanos e ICoríntios, mas seu principal foco era o Antigo Testamento, sobre o qual escreveu diversos comentários. W olfgangM usculus (M âuslein) (1497-1563). Um dos primeiros converti­ dos ao luteranismo (1518), mudou-se para Estrasburgo em 1527 para trabalhar com Bucer. M ais tarde, foi para Augsburgo (1531) e, finalmente, se estabele­ ceu em Berna (1549), onde apoiou o direito de magistrados locais de dirigir a igreja. Como comentarista, ele foi prolífico e original. Escreveu sobre Gênesis, Salmos, Isaías, M ateus, João e as epístolas paulinas, fornecendo primeiro o significado; em segundo lugar, um exame completo de questões gramáticas e históricas; e em terceiro lugar, conclusões doutrinárias e práticas na forma medieval de “questões”. Teodoro Bibliander (c. 1504-1564). Seguidor de Zuínglio e professor em Zurique, Bibliander foi um notável estudioso de hebraico bíblico e exegeta, que, assim como Pellican, abraçava como sua grande missão a educação do clero. Tinha um grande interesse em missões estrangeiras e produziu uma edição do Corão (1543) que foi quase banida. João H einrich Bullinger (1504-1575). Defensor de Zuínglio, Bullinger foi chamado para dar continuidade ao trabalho dos reformadores em Zurique depois da morte precoce de Zuínglio. Aproximou-se aos poucos da posição de Calvino sobre a predestinação, mas resistiu à teoria calvinista das relações igreja-estado, que, em sua opinião, concedia m uita independência ao braço eclesiástico. Foi parcialmente por essa razão que ele foi popular na Inglaterra elisabetana, em que D ecades [Década] (cinqüenta sermões sobre a doutrina cristã), de sua autoria, tornou-se leitura obrigatória. Foi autor e correspondente prolífico e escreveu comentários de todas as epístolas do Novo Testamento (1525-1537) e do Apocalipse (1557).

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João Calvino (1509-1564). Lutero e Calvino foram os maiores entre os re­ formadores, e certamente Calvino foi o mais notável exegeta bíblico de sua época. Calvino é o único reformador cujos comentários ainda se comparam ao que é produzido hoje, e em certo sentido ele pode ser chamado o pai do estudo bíblico erudito moderno. Sua produção foi majoritariamente bíblica, embora tenha sido ancorada em sua grande obra doutrinária, Instituto Christianae religionis [As insti­ tutas ou A instituição da religião cristã], que passou por diversas edições no decorrer de sua vida, de 1536 até 1549. A última delas é agora o texto comumente aceito. Calvino, francês formado na tradição humanista na Sorbonne, juntou-se aos reformadores em cerca de 1533, depois de já ter publicado um comentário sobre a obra de Sêneca D e clem entia [Da m isericórdia]. Ele logo precisou fugir do país e acabou indo para Genebra, onde foi recebido por Guilherme Farei. Genebra de­ monstrou não ser receptiva às suas ideias e ele logo foi embora para Estrasburgo, onde passou três anos com M artinho Bucer (1538-1541). Enquanto isso, a situação em Genebra mudou drasticamente, e Calvino foi convidado a voltar. Ele passou o restante da vida na cidade, pregando e ensinando as Escrituras e desenvolvendo a base de um Estado cristão. Suas obras bíblicas assumem diferentes formas. Havia os comentários, frutos de seus esforços exegéticos. Eles abrangiam todo o Novo Testamento, exceto 2 e 3João e Apocalipse, e um pouco mais que metade do Antigo Testamento. Muitos dos comentários se baseavam em notas de preleções, quer proferidas na escola teológica (leçons), quer a pastores da igreja (congrégations). A glória suprema de seus esforços foram os sermões dominicais, que, no entanto, de vez em quando mostram um grau de independência dos comentários. Isso faz com que seja difícil estabelecer sua relação exata. Por causa da enorme importância das obras exegéticas de Calvino, todas elas estão listadas aqui em ordem bíblica, com as correspondências adequadas.

Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio Josué Juizes lSam uel 2Samuel

Comentário 1554 1564 1564 1564 1564 .1564

Sermões 1559-1561

1555-1560 1561 1561-1562 1562-1563

L eçon/congrégation 1550 (L) 1559 (C) 1560 (C) 1561 (C) 1562 (C) 1563 (C)

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Comentário IReis Jó Salmos Isaías Jeremias Lamentações Ezequiel (1—20) Daniel Profetas Menores Evangelhos Sinóticos João Atos Romanos ICoríntios 2Coríntios Gálatas Efésios Filipenses Colossenses iTessalonicenses 2Tessalonicenses ITimóteo 2T.imóteo Tito Filemom Hebreus Tiago lPedro 2Pedro ljoão Judas

L eçon/congrégation

1557 1551 1563 1563 1565 1561 1559

Sermões 1563-1564 1554-1555 1549-1554 1556-1559 1549-1550 1550 1552-1554 1552 1550-1552

1555

1559-1564

1553 (C)

1553 1552 1540 1546 1547 1548 1548 1548 1548 1550 1550 1548 1548 1549 1551 1549 1551 1545 1545 1551 1545

1552 (L) 1555(C) 1549 (L) 1560 (L) 1562 (L) 1564 (L) 1559 (L) 1557(L)

1550 1549-1554 1555-1557 1557 1557-1558 1558-1559

1562-1563 (C)

1554 1554 1554-1555 1555 1555 1549



1549 (C) 1549 (C) 1549(C) 1549 (C) 1549 (C) 1549 (C)

Com base nessa lista, podemos observar que Calvino comentou todo o Novo Testamento e então começou o trabalho no Antigo, que não conseguiu concluir antes de sua morte. É necessário mostrar que os comentários de Êxodo-Deuteronômio

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e dos Evangelhos Sinóticos realmente são harmonias desses livros, que buscam apresentar uma só narrativa coerente de acontecimentos. Alguns afirmam que ele escreveu um comentário de Apocalipse, mas nada dele foi preservado, contudo, é improvável que o tenha escrito. Grande número de seus sermões ainda não foi publicado, em especial a maioria dos sermões sobre Gênesis. Roberto Estienne (Estéfano) (1503-1559). Pintor francês que se tornou protestante e fugiu para Genebra em 1551, publicou Bíblias em latim, hebraico e grego. Sua grande edição do Novo Testamento, em 1550, foi a primeira a conter um aparato crítico e, no ano seguinte, foi republicada com divisões em versículos que agora se tornaram comuns. Seu texto constituiu a base principal do Textus receptus [Texto recebido], impresso como tal pela primeira vez em 1633. Agostinho M arlorat du Pasquier (c. 1506-1562). Discípulo de Calvino e ministro na Suíça, tornou-se líder da comunidade protestante em Ruão, em 1559, e foi executado ali depois de uma tentativa frustrada de dominar a cidade. Escreveu um comentário de todo o Novo Testamento (N ovi T estam enti catholica expositio ecclesiastkã) (1561), trechos do qual mais tarde foram traduzidos para o inglês, bem como comentários de Gênesis (1561), Cântico dos Cânticos (1562), Isaías (1564) e Jó (1585). Também foi autor de uma concordância em latim publicada após sua morte (1574).

Os católicos Tomás de Vio (Caetano) (1464-1534). Autor prodigioso, voltou sua atenção a co­ mentários bíblicos em 1525, depois de batalhar com Lutero. Esteve imerso na tradição escolástica de Pedro Lombardo e Tomás de Aquino, e seus comentários refletem tal influência. Sua primeira obra foi um tratado sobre passagens difíceis no Novo Testamento, das quais passou aos comentários de Salmos (1527), dos Evangelhos (1527-1528) e de Atos (1529).Todos esses textos foram publicados em conjunto em Veneza, no ano de 1530. Ele então escreveu comentários sobre as epístolas, publica­ dos em Paris em 1532. Recusou-se a escrever um comentário de Apocalipse, pois não tinha condições de interpretá-lo de acordo com o sentido literal. Em seus últimos anos, ocupou-se com obras sobre o Pentateuco (1531), Josué (1531-1532), Jó (1533) e Provérbios, Eclesiastes e Isaías 1—3, que vieram a lume alguns anos após sua morte (1542). Cajetano foi o melhor e mais renomado comentarista católico de sua época, e suas obras foram muito influentes no Concilio de Trento. FranciscoTitelm ans (c. 1498-1537). Defensor pouco conhecido do texto de Romanos na Vulgata (1529) e, depois, de todas as epístolas do Novo Testamento

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(1532), ele parece ter sido um tradicionalista em uma época de reforma, embora tenha permanecido o mais próximo possível do sentido literal do texto. Foi um autor popular, e seus livros passaram por várias edições. Jacó Sadoleto (1477-1547). Cardeal na Cúria de 1524 a 1527, foi um dos principais exegetas de sua época. Publicou um controvertido comentário de Romanos em 1535, que muitos consideram quase indistinguível de obras pro­ testantes. Sua obra está bastante alinhada com a tradição humanista erasmiana, e seu alvo declarado com sua escrita era mostrar que Romanos apoiava a posição papal contra a de Lutero, mas com um espírito pacífico. João de G agny (Gagnaeus) (m. 1549). Reitor da Universidade de Paris a partir de 1531, escreveu comentários sobre as epístolas paulinas. Seu comentário de Romanos veio a lume em 1533 e foi seguido por uma edição completa das epístolas em 1543. Gagny seguiu a tradição literalista de Crisóstomo e Nicolau de Lira e defendeu a autoria paulina de Hebreus, principalmente pela razão de que seu autor tinha zelo pela conversão dos judeus. Cláudio G uilliaud (1493-1551). Parisiense como Gagny, escreveu comentá­ rios sobre Paulo (1542), João (1550) e M ateus, publicado postumamente (1562). Tinha uma postura favorável em relação aos protestantes, e seus comentários refletem a influência de Bucer, entre outros. Em 1545, foi acusado de heresia e obrigado a revisar seu comentário paulino em uma direção mais “católica”. Ambrósio Catharino Polituo (1483-1553). Escreveu um comentário de to­ das as epístolas do Novo Testamento, publicado em 1551. Foi um conservador, oposto a inovadores como Caetano, e representou o espírito medievalista que triunfaria no Concilio de Trento e também mais tarde. João Arbóreo (m. c. 1569). Autor de comentários de passagens difíceis das Escrituras (1540) e das epístolas paulinas (1553), foi discípulo de Erasmo extre­ mamente erudito em diversas fontes, principalmente as patrísticas. No entanto, era mais conservador que seu mestre e se opunha ao que considerava o libera­ lismo de Cajetano e outros. Sexto de Siena (1520-1569). Um judeu convertido, ele produziu um guia com­ pleto para a Bíblia, Bibliotheca Sancta [Biblioteca santa](1566), em que se refere aos Apócrifos do Antigo Testamento como “deuterocanônicos” pela primeira vez. Seu estilo de interpretação se assemelha fortemente ao que era praticado nos círculos escolásticos, embora não tivesse predileção por raciocínios teológicos elaborados que se fundamentavam em uma só palavra ou versículo das Escrituras. Por outro lado, continuou encontrando lugar para o sentido espiritual nessa interpretação e, assim, manteve uma distinção medieval que os reformadores queriam abolir a todo custo.

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Andreas M asius (1514-1573). Escreveu um comentário sobre Josué (1574), em que levantou a questão da autoria do livro. Propôs que talvez Esdras o tivesse escrito, juntamente com Juizes e ISam uel até 2Reis. Foi o primeiro autor bíblico a falar sobre uma compilação de material que passou por uma “redação” em estágio posterior. M asius, assim, rejeitou implicitamente a convicção tradicional de que o próprio Josué havia escrito o livro e aceitou que este pudesse conter elementos que refletiam um período bem posterior. Alfonso Salmeron (1515-1585). Foi um dos primeiros jesuítas. Seus co­ mentários sobre o Novo Testamento foram publicados em 16 volumes em 1597. Eram principalmente notas de sermões que ele havia pregado a uma platéia geral ao longo de um período de mais de quarenta anos. Benito A rias M ontano (1527-1598). Foi um estudioso das Escrituras res­ ponsável por uma edição poliglota da Bíblia, que ele publicou entre 1568 e 1572. Essa obra foi fundamental para a implementação da escola de exegetas jesuítas, muitos dos quais estão listados abaixo. João M aldonado (1534-1583). Ensinou durante muitos anos em Paris e posteriorm ente compilou um comentário dos Evangelhos, concluído e publicado depois de sua morte (1597). Sua exegese refletia fortem ente a tradição patrística. Francisco Toleto (1532-1596). Comentarista jesuíta, publicou obras sobre João e Lucas, e foi o primeiro expositor pós-tridentino a publicar comentários que eram mais que notas de sermão. Francisco Ribera (1537-1591). Confessor de Teresa de Ávila, escreveu ex­ tensivamente sobre o Antigo Testamento. Sua obra principal foi um comentário dos Profetas Menores (1587), porém, comentários adicionais de João, Hebreus e Apocalipse apareceram após sua morte. No último deles, desenvolveu uma teoria do futurismo, que se destinava a neutralizar ataques protestantes ao papa como Anticristo. Bento Pereira (1535-1610). Pupilo de Andreas M asius, escreveu sobre Gênesis, Êxodo e Daniel, e mais tarde sobre Paulo e Apocalipse. Tinha consciên­ cia de problemas críticos no Pentateuco e não ficou convencido de que este era em sua totalidade a obra de Moisés. Sua obra, mais tarde, inspirou a de Richard Simon, um pioneiro da crítica bíblica no sentido moderno. G uilherm e H essels van Est (1542-1613). Foi professor em Douai a partir de 1582 e um dos principais exegetas católicos. Seus comentários sobre as epístolas paulinas foram amplamente usados e apresentam vasta erudição e bom discernimento.

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Roberto Belarmino (1542-1621). Um polemista, sua principal obra (D isputation.es d e con troversiis christianae ji d e i [Discussões das controvérsias da fé cristã]) foi impressa em três volumes em Lovain (1586-1593) e continha uma longa seção sobre a Bíblia e sua relação com a autoridade de ensino da igreja. Ele também foi influente na preparação da Bíblia Clementina (assim denominada por causa do papa Clemente VIII), publicada em 1592. Essa foi uma impor­ tante revisão da Vulgata e permaneceu sendo a Bíblia oficial da Igreja Católica Romana até o Concilio Vaticano II (1962-1965). M ais tarde, ele publicou um comentário de Salmos (1611). Leonardo Lessius (1554-1623). Afastou-se da teoria da inspiração verbal das Escrituras e afirmou que “um livro como 2Macabeus, escrito pela atividade humana sem o auxílio do Espírito Santo, pode, mais tarde, se o Espírito testemu­ nhar que não contém nada falso, ser classificado como Escrituras Sagradas”. Sob pressão de conservadores, ele mais tarde se retratou da observação, afirmando que estava falando sobre o que Deus poderia ter feito e não sobre o que realmente fez. Cornélio a Lapide (van den Steyn) (1567-1637). O mais popular comen­ tarista católico de sua época, estabeleceu regras de interpretação que foram influentes durante mais de dois séculos. Entre outras coisas, disse ser necessário compreender literalmente as declarações negativas de Paulo, enquanto suas de­ clarações positivas normalmente têm um fator qualificador que deve ser levado em consideração. Em seu trabalho, tentou incluir o maior número possível de interpretações de passagens individuais e de livros bíblicos; sua obra abrangeu toda a Bíblia, exceto Jó e Salmos. Jacques Bonfrère (1573-1642). Reviveu a teoria de Lessius a respeito da inspiração das Escrituras e acrescentou que a igreja foi capacitada pelo Espírito Santo para aprovar um livro de tal modo que possa se tornar parte da Bíblia, ainda que não tenha sido originalmente inspirado por Deus. O Concilio Vaticano I (1870) condenou esse erro, com base no aspecto de que um concilio da igreja, por maior autoridade que tivesse, não tinha o mesmo caráter inspirado que um autor das Escrituras.

Os defensores da ortodoxia protestante Joaquim Camerário (1500-1574). Estudioso grego e amigo de Melâncton, le­ cionou em Tübingen e mais tarde em Leipzig. Escreveu um comentário em latim dos quatro Evangelhos (1573), que esboçou sua estrutura literária e foi influente no desenvolvimento posterior da crítica literária e textual.

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M atias Flácio (Vlacic) Ilírico (1520-1575). Foi um Luterano croata que se tornou professor de hebraico em W ittenberg, em 1544. Sua principal obra foi uma chave das Escrituras ( C lavis Scripturarum ), um importantíssimo estudo hermenêutico. Flacius foi fiel à inspiração de Lutero e é dele que obtemos a melhor noção do que o grande reformador almejava em sua exposição bíblica. Flacius afirmou que um exegeta precisa examinar cada passagem bíblica em seu contexto e determinar a intenção original do autor. Ele tinha um interesse especial em realçar a perspicuidade das Escrituras e a identificação que Lutero fazia do sentido espiritual com o sentido literal do texto. Kasper Olevianus (1536-1587) e Zacário Ursino (1534-1583). Esses co­ legas colaboraram no desenvolvimento da teologia da aliança. Ursino também escreveu o Catecismo de Heidelberg (1562), que ainda é amplamente usado hoje. Girolamo Zanchi (Zanchius) (1516-1590). Seguidor de Calvino, contribuiu muito para reestruturar o pensamento reformado de acordo com uma perspec­ tiva tomista e aristotélica. Estava bem preparado para ir além das Escrituras em sua teologia, sobretudo no que se referia à natureza de Deus, acerca da qual a Bíblia tinha pouco a dizer. Ao mesmo tempo, porém, ele cria que as Escrituras eram a única fonte infalível de verdade divina, e essa crença significava, acima de tudo, concordar com tudo que elas continham. Ele harmonizou essa devo­ ção a Aristóteles com sua fé nas Escrituras, afirmando que Aristóteles usou os mesmos métodos que os autores bíblicos, por exemplo, na descrição da criação do mundo em Gênesis. Roberto Rollock (c. 1555-1599). Primeiro reitor da Universidade de Edimburgo (1585) e pregador popular na Escócia, foi um dos principais difu­ sores da teologia da aliança nesse país. Escreveu diversos comentários em latim, alguns dos quais foram publicados somente após sua morte. Entre eles estão Efésios (1590), Daniel (1591), Romanos (1594), 1 e 2Tessalonicenses (1598; tradução em inglês saiu em 1606), João (1599), Salmos (1599; tradução em inglês saiu em 1600), Colossenses (1603) e Hebreus (1605). Niels Hemmingsen (1513-1600). Comentarista luterano das epístolas do Novo Testamento (1572). Distanciou-se bastante de Lutero, sobretudo em sua compreensão da Lei. Para Hemmingsen, não toda a Lei, mas somente seu aspecto cerimonial foi abolido em Cristo. Essa abordagem o aproxima muito mais de Teodoro Beza e da segunda geração de calvinistas do que de Lutero e seus contemporâneos. Ele também inseriu princípios humanistas de crítica literária em sua exposição e desenvolveu um profundo interesse por problemas de contexto histórico e por questões afins.

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Giles H unnius (1550-1603). Luterano que atacou Calvino aspera­ mente por este se recusar a aceitar a alegoria como uma forma válida de interpretação bíblica, Hunnius representa a tendência dos reformadores poste­ riores de retrocederem a uma tendência espiritualizante da Bíblia, que subse­ quentemente se tornou uma característica proeminente nos comentários protestantes “ortodoxos”. Teodoro Beza (1519-1605). Foi o sucessor de Calvino em Genebra e o arquiteto principal do calvinismo sistemático, como agora é compreendido. Sua importância fundamental como estudioso da Bíblia está em sua obra textual sobre o Novo Testamento. Ele é o único reformador a ter um manuscrito deno­ minado a partir de seu nome ( Codex B ezae). Suas edições do Novo Testamento grego (1565 e 1582) tiveram uma grande influência e se tornaram uma das principais fontes para a tradução da Versão Autorizada de 1611. Tomás Brightm an (1562-1607). Esse teólogo anglicano foi uma das prin­ cipais autoridades em Apocalipse. Foi um dos primeiros protestantes a aplicar o livro à política da igreja de sua época e interpretá-lo a favor dos calvinistas e contra os luteranos e o partido da A lta Igreja na Inglaterra. Algumas de suas visões acabaram se consolidando na exegese puritana. Roberto Boyd (1578-1627). Esse escocês ensinou durante muitos anos em várias faculdades protestantes francesas (1599-1614) antes de se tornar o reitor das Universidades de Glasgow (1615) e de Edimburgo (1622-1623). Escreveu um comentário de Efésios em latim , publicado muitos anos após sua morte (1652). É uma obra repleta de teologia sistemática em defesa da ortodoxia calvinista. João G erhard (1582-1637). Sua obra L oci th eo lo gici [Lugares-comuns teo­ lógicos] (1610-1622) representa o apogeu da teologia dogmática luterana. Em sua obra, Gerhard afirmou que as Escrituras eram uma base adequada para o desenvolvimento de uma ciência teológica. Ele, portanto, fez das Escrituras a base de seu sistema teológico e considerou a infalibilidade delas como a garantia da veracidade dos outros artigos de fé. João H einrich A lsted (1588-1638). Importante comentarista calvinista de Apocalipse, acreditava que o milênio chegaria em 1694 e seria seguido pelo reino de um Cristo invisível. Alsted contribuiu muito para a ressurreição de interpretações históricas de Apocalipse e sua influência foi ampla tanto na Alemanha quanto na Inglaterra. José M ede (1586-1638). Professor da Christ’s College, em Cambridge, apropriou-se das ideias de Alsted sobre Apocalipse. Embora ele mesmo não

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tivesse inclinação política, suas ideias tiveram um apelo especial para aqueles que se opunham a Carlos I e suas políticas eclesiásticas. A maioria dos milenaristas da Guerra Civil Inglesa reconheceu sua dívida para com M ede como o principal intérprete de Apocalipse em sua época. Constantino L’Empereur (1591-1648). Hebraísta e notável estudioso rabínico, foi professor de hebraico e teologia em Leiden e firme defensor da orto­ doxia calvinista contra-ataques de humanistas mais novos. Suas obras não são originais, mas fornecem uma boa noção de como os estudos rabínicos eram usados para defender a ortodoxia protestante no século 17. João Cocceius (1603-1669). Calvinista alemão que rejeitou a sistematização mais rigorosa de sua escola, queria criar uma teologia puramente bíblica, da qual a Sum m a doctrin a e de fo e d e r e et testam ento D ei [Suma da doutrin a a respeito da aliança e testam ento d e D eus], publicada em 1648, é o monumento principal. A exposição que Cocceius faz da teologia da aliança, utilizando tanto fontes alemãs como inglesas, tornou-se o padrão para gerações posteriores. Cocceius conseguiu desenvolver sua ideia de aliança da perspectiva de uma sucessão de períodos e acontecimentos históricos, e assim é o ancestral tanto da história da salvação como do milenarismo moderno. Francisco Turretin (1632-1687). O mais notável dogmatista calvinista do final do século 17, foi amplamente responsável por sistematizar a doutrina das Escrituras que se tornou a marca registrada da ortodoxia posterior. Para ele, a forma das palavras no texto, incluindo até mesmo os sinais diacríticos hebraicos, era sobrenatural e incriticável. Seu método de debate seguia a tradição escolástica de Tomás de Aquino e Aristóteles, e ele reconheceu o perigo que métodos críti­ cos de investigação teriam para a teologia que ele defendia. Francis Turretin foi a força motriz por trás da Fórmula Helvética de Consenso de 1675, em que as igrejas suíças se comprometeram a aceitar uma interpretação muito rígida da ins­ piração bíblica. Essa Fórmula foi severamente atacada, no entanto, e foi rejeitada em Genebra em 1706. Ela se tornou uma carta morta logo depois dessa data. Primeiros puritanos ingleses. Pode-se dar esse nome aos membros das igre­ jas da Inglaterra e Irlanda que tentaram encorajá-las a seguir uma direção mais puramente calvinista. Alguns deles de vez em quando entravam em choque com as autoridades, mas a maioria não queria estabelecer igrejas independentes pró­ prias. Em relação ao método teológico, seguiam os primeiros reformadores bem de perto e não foram grandemente influenciados pela neoescolástica que estava se desenvolvendo na Europa Continental na época. O grande monumento de sua teologia foi a Confissão de Fé de Westminster (1646).

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R ep resen tan tes característico s desses teólogo s e exp ositores fo ra m T o m á s

1612-1653), que escreveu u m c o m en tá rio de 2 P e d ro (1633), N íc o l a s B y f ie l d (1569-1622), que escreveu sobre lP e d r o e C o lo ssen ses, e G u il h e r m e P e r k in s (1558-1602), g eralm en te recon h ecid o com o te n d o sido

A

dams

(fl.

o te ó lo g o p rin c ip a l de sua época. E screveu co m en tá rio s de G álata s, Ju d as e A p o c a lip se , b em com o sobre o S erm ã o do M o n te ( M t 5 — 7). T am b ém im p o r­ ta n te fo i G

u il h e r m e

A

m es

(1576-1633), que co n trib u iu g ra n d em e n te p ara o

d e se n vo lvim e n to de u m a fo rm a de te o lo g ia da alian ça esp ecificam en te inglesa que se esp alh o u am p lam e n te n o co n tin e n te, graças à sua p osição de p ro fe sso r em F ran eker, e m F riesla n d

(1622-1633).

E n tre os m ais radicais e m suas p osições estavam G u i l h e r m e W h i t a k e r

(1548-1595), u m dos arq u iteto s d a d o u trin a o rto d o x a das E scritu ras, T o m á s (1535-1603), que m uitas vezes se v ia em p ro b lem as com as au ­

C a rtw rig h t

to rid ad e s e que escreveu co m en tá rio s de E clesiastes, C o lo ssen ses e A p o c a lip se , e H e n r i q u e A i n s w o r t h (c .

1569-c. 1623), p ro e m in en te estu dioso rab ín ico

q ue se to rn o u líd e r d e u m a congregação sep aratista em A m s te rd ã e escreveu c o m en tá rio s n o táveis sob re o P en tateu co , S alm o s e C â n tic o dos C â n tic o s. D e m o d o g eral, é recon h ecid o com o o estu dio so m ais in ju stam en te n eg ligen ciad o de sua época. P o r fim , d evem os in c lu ir J o ã o C o t t o n p ara a N o va In g la te rra em

(1584-1652), que p artiu

1633 d epois de te r red ig id o obras sobre C â n tic o dos

C â n tic o s, E clesiastes e A p o c a lip se .

Um tanto à parte desses estudiosos estavam H u g o B r o u g h t o n (15491612) e T ia g o U ss h e r (1581-1656). Os dois tinham um profundo interesse pela cronologia bíblica, a qual Broughton tentou desenvolver em seu livro, A con sen t o fS crip tu re [Concordância com a Escritura] (1588). Sua obra forneceu a base para outras pesquisas de Ussher, entre as quais estava a “descoberta” de que a criação do mundo havia ocorrido em 26 de outubro de 4004 a.C. A cro­ nologia de Ussher, que ele desenvolveu em seu A nnales Veteris T estam enti [Anais do Antigo Testamento] (1650), às vezes ainda é impressa como a cronologia padrão na Versão Autorizada da Bíblia. Puritanos ingleses posteriores. Esses foram homens que lutaram na Guerra Civil ou ficaram marcados pelas conseqüências da guerra. Eles foram mais influenciados por desenvolvimentos continentais em direção a uma teologia neoescolástica do que seus predecessores, embora geralmente evitassem extre­ mos de pessoas como Turretin. Entre eles podemos mencionar T o m á s M a n t o n (1620-1677), expulso de St PauTs, Covent Garden, em l662. Ele escreveu sobre Tiago e Judas. J oão O w e n (1616-1683) foi reitor de Christ Church, Oxford, de

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1651 até 1660 e escreveu um longo comentário de Hebreus (1668). Ainda mais importante para nossos propósitos foi M a t e u s P o o l e (1624-1679), cuja gran­ de Synopsis criticorum [Sinopse crítica] (1669-1676) é um compêndio de estudo bíblico erudito. A isso se seguiu A nnotations upon the H oly B ible [Anotações a respeito da Bíblia Sagrada], obra concluída por seus amigos após a morte dele. T e ó lo g o s escoceses. E ram p arcia lm en te aliados dos p u rita n o s ingleses, a q u em se assem elh avam em m u ito s aspectos, m as a situação d a Ig reja d a E scócia, re fo rm a d a e e stritam e n te calvin ista, era sig n ificativam en te d istin ta d aq u ela da Ig reja d a In g late rra, e assim é im p ró p rio d escrevê-lo s com o p u rita n o s. E m re ­ lação ao estu d o b íblico, seu gran d e exp oen te fo i D a v i D ic k s o n ( c . 1 5 8 3 - 1 6 6 3 ) , p ro fe sso r de te o lo g ia em G la sg o w ( 1 6 4 0 ) e E d im b u rg o ( 1 6 5 0 - 1 6 6 0 ) . E le es­ creveu co m en tá rio s im p o rta n te s de H eb reu s ( 1 6 3 5 ) , M a te u s ( 1 6 4 7 ) , S alm o s ( 1 6 5 5 ) e das epístolas pau lin as ( 1 6 5 9 ) . In sp iro u u m a série de co m en tá rio s que alm ejava ab ran ger to d a a B íb lia e ap resen tar u m a aplicação clara e d ire ta d o texto segundo u m a p ersp ectiva calvin ista. T ia g o F e r g u s s o n ( 1 6 2 1 - 1 6 6 7 ) p ro d u ziu F ilip en ses e C o lo ssen ses ( 1 6 5 6 ) , G álata s e E fésio s ( 1 6 5 9 ) e l e 2T essalon icen ses ( 1 6 7 4 ) . T ia g o D u r h a m

( 1 6 2 2 - 1 6 5 8 ) c o n trib u iu com A p o c a lip se ( 1 6 5 8 ) e

C â n tic o dos C â n tic o s ( 1 6 6 8 ) , e ta m b é m com u m a exposição de J ó que só fo i im pressa em 1 7 5 9 . J o r g e H u t c h e s o n ( 1 6 1 5 - 1 6 7 4 ) escreveu sobre os P ro fetas M e n o re s ( 1 6 5 4 ) , Jo ã o ( 1 6 5 7 ) e J ó ( 1 6 6 9 ) , e A l e x a n d r e N i s b e t ( 1 6 2 3 - 1 6 6 9 ) tra to u de lP e d r o ( 1 6 5 8 ) e E clesiastes ( 1 6 9 4 ) . M a s , em v irtu d e d o estad o in d e ­ fin id o d a ig reja d u ra n te esse p erío d o , a série não seria co n clu íd a sem obras de o u tro s im p o rta n tes teólogo s. U m ta n to fo ra desse círcu lo estava J o ã o B r o w n d e W h a m p h r a y (c. 1 6 1 0 - 1 6 7 9 ) , a u to r de u m c o m en tá rio altam en te d og m ático de R o m an o s p u b licad o só em 1 7 6 6 .

Entre autores conformistas n a Inglaterra, J oão T ra pp (1601-1669) se des­ taca p o r sua erudição e perspicácia, co m b in ad as com u m calvinism o o rtodoxo que ele u so u eficazm ente em seus extensos co m entários, que ab ran g em os dois T e sta m e n to s em esboço e E sd ras, P rovérbios, os P rofetas M en o res, Jo ã o e as epístolas em m ais detalh e. N a Escócia, R o b e r t o L e i g h t o n (1611-1684), o arcebispo c o n fo rm ista de G lasg o w (1670-1674), escreveu u m co m en tário de lP e d r o (1693-1694) a lta m e n te estim ad o n o século 19. T a m b é m de interesse é S im ã o P a t r ic k (1626-1707), sucessor de T o m ás M a n to n em C o v e n t G a rd e n e m ais ta rd e bispo de C h ic h e ste r e Ely. Foi a u to r de u m co m en tário substancial sobre o P entateu co .

Por último, mas de modo algum por ser menos importante, precisamos mencionar o não conformista M a t e u s H e n r y (1662-1714), cuja m agnífica

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E xposition o f the O ld a n d N ew Testam ents [Exposição do Antigo e Novo Testamentos] (1704-1714) foi concluída por outros após a morte dele. Ela con­ tinua sendo um clássico e ainda hoje é amplamente usada em diversas versões abreviadas. H enry não somente tentou explicar o significado espiritual de todas as passagens das Escrituras; ele também forneceu esboços de sermão para pre­ gadores. Evangélicos posteriores têm uma grande dívida para com sua obra, embora seja necessário admitir que muitas de suas interpretações beiram a ale­ goria, um fato que o distancia dos reformadores de um período anterior.

As questões A Reforma foi uma época de intenso debate teológico, de modo que às vezes se tem a impressão de que os envolvidos nas controvérsias da época tinham pouco em comum entre si. E verdade que, com o passar do tempo, formou-se entre protestantes e católicos uma divisão séria o suficiente para que possamos dizer que teólogos nos dois lados atuavam em diferentes mundos mentais e espirituais. M as é fácil esquecer, igualmente, que durante muito tempo esse não foi o caso e que durante grande parte do século 16 o universo teológico comum da Idade M édia continuou em atividade. Somente após 1560 cedeu lugar, mas mesmo en­ tão a “república das letras” humanista manteve questões teológicas no centro da vida intelectual europeia até cerca de 1650, quando gradualmente se secularizou. É possível resumir as questões que todos os teólogos e estudiosos da Bíblia desse período precisaram enfrentar da seguinte forma. 1 .E ra necessário en con trar um p rin cíp io d e autoridade em que a f é e a experiência cristã pu dessem ser crivelm en te fu n d am en tada s. A influência desestabilizadora do novo saber havia questionado as antigas autoridades. O poder da igreja romana havia sido enfraquecido por divisões internas, pela exposição dos False decre­ tais [Falsos decretos], com suas reivindicações de jurisdição universal, e pela corrupção endêmica. A redescoberta das Escrituras, que todos consideravam a Palavra de Deus, conduziu à proposição de que elas, e não o papa, deveriam ser a autoridade final em questões de fé e moral. Se as Escrituras eram adequadas para essa tarefa ou se precisavam ser complementadas por outros fatores, como a tradição e a razão humana, tornou-se um importantíssimo tema de debate. Os protestantes gradualmente se definiram mais claramente em relação à sua adesão ao princípio “Escrituras somente” (sola Scriptura) e buscaram basear sua teologia exclusivamente na Bíblia. Isso, por sua vez, fez com que realizassem longas discussões sobre a natureza das Escrituras e os limites de sua autoridade,

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e estas acabaram produzindo uma doutrina da inspiração bíblica que defendia a infalibilidade e inerrância absolutas do texto escrito. 2. Era necessário expor a B íblia de um m odo que torn aria claro seu verda deiro sentido. Houve uma rejeição geral da alegoria e outras formas de interpretação espiritual no início do século 16, embora não seja difícil encontrar exemplos em que a prática não acompanhava o princípio. No entanto, todos os estudiosos do período tinham interesse em produzir edições da Bíblia que representassem fielmente o texto original, depurado de suas antigas adulterações. Os protestan­ tes acreditavam que traduzir as Escrituras para o vernáculo dos leitores era uma parte essencial desse processo, e eles não achavam que qualquer pessoa honesta tivesse dificuldades excessivas para compreender o significado claro do texto sagrado. Comentários serviam principalmente como manuais para pregadores e teólogos e, muitas vezes, eram ocupados mais com controvérsia doutrinária do que com questões de crítica textual. 3. Era necessário d efen d er um a posição teológica específica com base no ensino bíblico. Aqui houve uma divisão significativa entre os que defendiam uma perspectiva mais “católica” — aqueles que pensavam que as Escrituras for­ neciam evidências para uma posição teológica que também se fundamentava na tradição eclesiástica e na razão filosófica — e os que insistiam em que o princípio “Escrituras somente” significava que a Bíblia continha seu próprio sistema teológico que devia ser desenvolvido de forma independente. Esse debate se tornou mais contundente na Grã-Bretanha, onde os dois princípios disputaram o controle pelas igrejas nacionais. Inicialmente, parecia possível que o princípio “Escrituras somente” fosse produzir uma teologia da aliança de aceitação geral, e foi com base nisso que os protestantes reformados conse­ guiram se unir e vencer a Guerra Civil. No entanto, logo ficou evidente que, em uma ampla estrutura da aliança, havia uma série de divergências práticas que não poderiam ser resolvidas apelando-se ao princípio “Escrituras somen­ te”, pois teólogos interpretavam a Bíblia de modos diferentes e não estavam preparados para aceitar que algumas de suas conclusões fossem questões de importância menor em que cristãos pudessem ter liberdade de consciência. O espetáculo de cristãos que criam na Bíblia discriminando-se uns aos outros por causa de diferenças a respeito de questões que não estavam claras na pró­ pria Bíblia persuadiu muitos de que esse dogmatismo era prejudicial para a causa da verdadeira religião e conduziu a exigências de uma abordagem mais tolerante e liberal da interpretação bíblica.

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Os métodos de interpretação Com o Renascimento e a Reforma, a interpretação bíblica entrou em uma nova era de sofisticação. Até a metade do século 19, a pressuposição comum era que ela representava os primórdios da exegese crítica moderna, e até mesmo hoje a maioria dos estudiosos do tema precisa levar esse período em consideração, mesmo que somente como uma introdução ao que querem dizer. Os reformado­ res desenvolveram métodos de análise textual usados ainda hoje, e protestantes conservadores continuam prestando atenção neles como fonte de inspiração. Calvino ainda é levado a sério como estudioso e exegeta e seus comentários continuam sendo reimpressos. Os de Lutero foram traduzidos recentemente para o inglês e agora também estão sendo estudados mais uma vez. No entanto, os exegetas desse período viviam em um clim a mental di­ ferente do nosso. Assim como seus antepassados medievais, eles estavam acostumados a aceitar coisas com base na autoridade, e a Bíblia nunca foi seriamente questionada nesse aspecto. Quando os reformadores atacavam a igreja, não era porque eram “antiautoridade”, mas por crerem que a autoridade das Escrituras era superior à da hierarquia eclesiástica. Eles nunca duvidaram de que a Bíblia pudesse ser compreendida; para eles, era possível disponi­ bilizar o “significado claro” do texto por meio de traduções fiéis ao original. Obviamente era necessário estudar a gram ática e o vocabulário dos idiomas originais, mas ninguém duvidava seriamente de que isso era uma ciência ob­ jetiva que não dependia de prejulgamentos teológicos. Ao mesmo tempo, quase todos os intérpretes dessa época acreditavam que a Bíblia precisava ser lida em um contexto teológico, e os comentários deles estão repletos de debates a respeito de questões doutrinárias de um tipo ou de outro. Quer esse contexto fosse imposto de fora (como na teologia “católica”), quer descoberto no texto (a visão “protestante”), a abordagem fundamental era a mesma. A Bíblia refletia um sistema de pensamento coerente, que era a fé da igreja. Fora desse contexto ela não tinha nenhum significado real, e o que gerações posteriores chamariam de uma atitude propriamente “crítica” do texto era considerado um sinal de incredulidade. Os pouquíssimos comentaristas que se entregaram a esse criticismo ficaram isolados e se tornaram significativos somente quando estudiosos posteriores usaram suas ideias e as desenvolveram em uma atmosfera filosófica e teológica diferente. Para compreender a interpretação bíblica desse período, é necessário com­ preender as implicações da doutrina reformada do princípio sola Scriptura.

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Somente então podemos prosseguir para a análise de tipos de exegese específi­ cos e de sistemas teológicos que protestantes acreditavam poder encontrar nas páginas da própria Bíblia.

Sola Scriptura Essa doutrina era o lema da Reforma que havia sido herdado dos últimos teó­ logos medievais, em especial de João Wycliffe. Enunciado já em 1519, foi um elemento característico de toda a teologia protestante depois dessa época. Em geral, significava que as Escrituras eram a única regra em questões de fé, de modo que tudo aquilo que não era possível provar por meio delas não poderia ser exigido como um artigo de fé necessário para a salvação. Essa opinião mo­ derada, que o arcebispo Cranmer escreveu em seus Quarenta e Dois Artigos de Religião (1553) e que sobrevive no artigo 6 dos atuais Trinta e Nove Artigos (1571), foi interpretada de modos diferentes. Em um extremo do espectro esta­ vam os protestantes radicais, que insistiam em que somente era possível tolerar na igreja as coisas claramente permitidas nas Escrituras. Essa era uma atitude pouco realista e logo sua prática precisou ser modificada, mas os deixou expostos à constante crítica de suas próprias fileiras, visto que foram detectadas várias formas de “transigência com o mundo”. No outro extremo do espectro estavam diversos anglicanos da A lta Igreja, em especial Ricardo Hooker (c. 1554-1600) e os seguidores do arcebispo Guilherme Laud (1573-1645), os quais acreditavam que era possível, e até mes­ mo necessário, permitir práticas que não eram expressamente proibidas pelas Escrituras e que poderiam ser justificadas com base na tradição ou razão. Para eles, as Escrituras eram um tribunal supremo de apelo contra abusos, e não um manual esboçando vida e prática cotidianas. A questão fundamental que distinguia protestantes de católicos era se as Escrituras interpretavam a si mesmas ou se precisavam da autoridade de ensino da igreja para torná-las claras. Nesse aspecto, todos os protestantes, incluindo os laudianos na Igreja da Inglaterra, concordavam que a Bíblia era sua pró­ pria intérprete (sui ipsius interpres). Quem expressou isso mais claramente foi o afilhado e protegido de Laud, Guilherme Chillingworth (1602-1644), que, em um livro encomendado pelo arcebispo, The religion o f protestan ts: a safe w a y to sa lvation [A religião dos protestantes: um caminho seguro para a salvação] (1638), proferiu uma frase memorável: “A Bíblia, eu afirmo, somente a Bíblia é a religião dos protestantes”. Chillingworth prosseguiu defendendo o direito de

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livre investigação do significado do texto — um claro ataque a todas as formas de autoridade de fora impostas a ele. Na teoria, o princípio de autointerpretação era simples. A maior parte da Bíblia era considerada clara em seu significado e, portanto, poderia e deveria ser interpretada no sentido literal. Isso era ponto pacífico para quase todos, desde humanistas erasmianos até protestantes radicais. Somente os católicos tradi­ cionalistas continuaram mantendo a antiga distinção entre os sentidos literal e espiritual (alegórico), e eles estavam debaixo de considerável pressão para minimizar isso o máximo possível. Na maioria dos casos, defendia-se a alegoria ou porque era usada no Novo Testamento ou porque havia sido consagrada em certos casos especiais pelo consenso dos pais da igreja, e não por ser um método aceitável em si mesmo. Aquelas partes da Bíblia que não eram claras deveriam ser interpretadas de acordo com o que se chamava a analogia da fé. Isso significava que tudo o que se dissesse sobre elas deveria estar de acordo com o que as partes mais cla­ ras das Escrituras já haviam deixado claro e que não se deveria inferir nada de uma passagem não clara que não poderia ser provado com base em outro texto mais óbvio. Na prática, obviamente, as coisas não eram tão simples quanto pareciam. Como sempre, o Antigo Testamento causou os maiores problemas, visto que não estava claro como deveria ser interpretado em um contexto cris­ tão. Partes do Novo Testamento também eram problemáticas, principalmente o livro de Apocalipse, que não se prestava a essa autointerpretação. Outras questões de controvérsia, como a forma correta de governo eclesiástico ou a adequabilidade do batismo infantil, não poderiam ser resolvidas com um sim ­ ples recurso às Escrituras, pois o texto não falava claramente sobre questões desse tipo. Os protagonistas nessas discussões escolhiam passagens adequadas à sua defesa e, então, ou ignoravam as evidências contrárias, ou as rejeitavam como “não claras”. Tendo dito isso, no entanto, não devemos esquecer que houve uma grande medida de consenso entre os reformadores. Em especial, as doutrinas fundamen­ tais da Trindade e da divindade de Cristo foram mantidas por uma interpretação literal contra aqueles que tentavam negá-las com base no argumento de não serem “bíblicas”. Calvino, em especial, foi veemente em sua crítica àqueles que se recusavam a usar palavras como “Pessoa” e “Trindade” simplesmente porque não estavam na Bíblia, quando as realidades que elas expressavam estavam cla­ ramente presentes no texto. Ele, portanto, aceitou que a linguagem da teologia sistemática pudesse ser derivada de fora da Bíblia, mas não seu conteúdo.

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Os primeiros reformadores estavam muito conscientes de que era necessário fazer uma distinção entre compreender o significado de um texto e ser convencido de sua veracidade. Como bons humanistas, eles sabiam demais sobre os mitos e lendas da Antiguidade para não valorizar isso. Calvino, em especial, afirmou que a convicção da veracidade da Bíblia poderia ocorrer somente por meio do que cha­ mou de “o testemunho interno do Espírito Santo” (testim onium internum Spiritus Sancti). Isso não era uma experiência subjetiva, como poderíamos imaginar hoje, mas uma convicção objetiva de que o que estava claro no texto também era verda­ deiro na experiência. Nada estava mais distante de sua mente do que a ideia de que o testemunho interno pudesse de certo modo produzir uma interpretação privada (dissonante) da Bíblia, como seus escritos deixam muito claro. O problema seguinte que os defensores do sola Scriptura enfrentaram foi a extensão do cânon bíblico. Todos os reformadores concordavam com Jerônimo que o cânon hebraico era aquele que deveria ser usado na igreja, sem acréscimos apócrifos encontrados na Septuaginta. Aqui a igreja romana se viu em um dile­ ma. A tradição ditava que o cânon da Septuaginta fosse mantido, mas o estudo erudito estava do lado de Jerônimo. O Concilio de Trento manteve o cânon tradicional, mas os teólogos católicos logo estavam se referindo às partes não presentes no hebraico como “deuterocanônicas”, o que na prática as confinava a uma posição secundária. M ais sérios foram os ataques lançados contra o cânon hebraico e até mesmo contra o Novo Testamento. O exemplo foi estabelecido pelo próprio Lutero, que não gostava de Ester porque era muito “judaico”, Tiago por não pregar o evan­ gelho e Apocalipse por ser muito obscuro. Se um livro era de origem apostólica ou não, isso não o preocupava; o teste de verdadeira canonicidade era se um livro proclamava a Cristo. Em uma característica explosão de exagero, Lutero disse: “Aquilo que não prega Cristo não é apostólico, ainda que seja obra de Pedro ou de Paulo, e, inversamente, aquilo que ensina Cristo é apostólico, ainda que seja escrito por Judas, Anás, Pilatos ou Herodes”. No fim, no entanto, nada foi feito e Lutero acabou fazendo as pazes com o cânon como estava estabelecido. Ataques posteriores a Cântico dos Cânticos, por exemplo, também fracassaram, e o cânon permaneceu como estava. Uma vez que isso foi aceito, o estágio seguinte foi assegurar que o texto dos livros canônicos fosse confiável. Essa foi uma importantíssima atividade do estudo erudito humanista, e grandes progressos foram realizados durante esse período. Todos passaram a aceitar que a Vulgata de Jerônimo era menos que perfeita, e até mesmo a igreja romana autorizou uma revisão oficial dela. Por trás

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disso estava um século de estudo textual, durante o qual foi firmemente estabe­ lecido que os originais grego e hebraico precisavam ter prioridade sobre a versão latina tradicional. Ao mesmo tempo, a atividade de tradução estava extrema­ mente difundida, e se acreditava que uma tradição literal do original era possível. Até certo ponto, isso foi realizado por meio de uma reformulação das línguas europeias modernas em um padrão mais conformado ao idioma hebraico. Havia precedentes para isso na Septuaginta e no Novo Testamento, em que o grego soa estranho por causa de seu substrato semítico. Devemos a isso, em grande parte, o surgimento do que agora consideramos “inglês religioso”. Quando era necessário fazer concessões ao idioma para o qual se estava traduzindo a Bíblia, isso poderia ser indicado no texto. H á ocorrências disso na Versão Autorizada de 1611, em que as palavras em itálico são acréscimos que os tradutores precisaram fazer para que a comunicação do sentido em inglês fosse mais adequada. O texto hebraico do Antigo Testamento causou pouca dificuldade; até mes­ mo hoje, não há suficientes manuscritos para tornar a crítica textual um grande problema. No caso do Novo Testamento, a situação agora é muito diferente, mas nos séculos 16 e 17 somente poucos manuscritos gregos estavam disponíveis, e era possível harmonizá-los sem muita dificuldade com base no texto usado na Igreja Ortodoxa Grega (conhecido como o Texto Bizantino ou Eclesiástico). O impressor holandês Elsevier publicou esse texto em 1633, com o subtítulo Textus receptus (“Texto recebido”), que permaneceu assim durante quase 250 anos. A tradução apresentou seus próprios problemas, em especial quando certas palavras se tornaram tema de controvérsia teológica. As primeiras tentativas de traduzir a palavra grega ekklêsia por “congregação” encontrou oposição daqueles que a enxergavam como uma ameaça a uma igreja nacional supracongregacional. Manteve-se a palavra “bispo” para episkopos por razões similares, embora a Versão Autorizada de 1611 apresente “presbítero/ancião”, e não “sacerdote”, para presbyteros. Outras palavras que causaram dificuldade foram agap ê (“amor” ou “caridade”) e m etanoia (“arrependimento” ou “penitência”). Em cada caso, a segunda dessas opções sugeria uma justiça obtida por boas obras em um sistema sacramental católico. A Versão Autorizada escolheu o caminho do meio; “cari­ dade” seria permitido, mas não “penitência”.

A inspiração divina das Escrituras Uma vez que a doutrina do sola Scriptura deitou raízes, a natureza do texto sagrado se tornou uma questão de considerável urgência. Se uma igreja inteira

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precisava ser edificada sobre essa base, era necessário assegurar que o fundamen­ to fosse adequado para suportar essa superestrutura teológica. A igreja sempre havia crido que a Bíblia era divinamente inspirada, mas pouco havia sido feito para tentar esclarecer o que isso significava. Alguns dos pais da igreja defendiam a teoria da inspiração por “ditado”, segundo a qual os autores da Bíblia foram autores passivos nas mãos do Espírito Santo; enquanto outros criam que os autores das Escrituras desempenharam um papel mais ativo em sua composi­ ção. Em grande medida, essas visões estavam correlacionadas com a cristologia. Aqueles que sublinhavam a atividade divina do Filho de Deus em carne huma­ na estavam mais inclinados a um modelo de inspiração por “ditado”, ao passo que aqueles que enfatizavam a verdadeira humanidade de Cristo preferiam o modelo alternativo ou de “cooperação”. Na época da Reforma, tanto Lutero como Calvino ficaram identificados com essa alternativa e é ela que caracteriza sua compreensão da inspiração bíblica. Para a primeira geração de reformadores, as Escrituras eram a voz de Cristo, que falou por meio do texto à sua igreja. A questão de erros e discrepâncias na Bíblia foi resolvida de acordo com isso. Cristo não teria sido menos divino se tivesse perdido um braço ou uma perna, nem de fato teria sido menos humano. Imperfeições desse tipo eram um acompanhamento natural da natureza humana e totalmente normais. Se Deus havia de fato falado de modo humano, então o correto era que tivesse se adequado aos limites da natureza humana. Uma perfei­ ção não natural não seria verdadeiramente humana e na prática significaria uma negação da encarnação. Ao mesmo tempo, obviamente, Cristo era sem pecado e, portanto, incapaz de conduzir seus seguidores a erro espiritual. Por essa razão, tanto ele quanto a Bíblia podiam ser adequadamente considerados infalíveis. Esse modo de examinar a questão tinha a sanção da tradição da igreja e cau­ sava poucos problemas. Contanto que a mensagem fosse clara, pouco importava se havia algumas manchas verbais no texto. Tentativas de harmonizar diferentes relatos do mesmo acontecimento foram descartadas como desnecessárias; elas testemunhavam somente o bem conhecido fato de que todos enxergavam as coisas de um ângulo ligeiramente diferente e não podiam ser consideradas como “erro” em nenhum sentido real. Essa perspectiva mudou, no entanto, quando o protestantismo passou a ter características cada vez mais escolásticas. O uso da Bíblia como um manual infalível servia aos teólogos e juristas do final do século 16, pois dava sustentação às suas elaboradas construções teológicas. Na mente deles, a infalibilidade somente podia significar inerrância total; isso significa dizer que não há erros ou discrepâncias de nenhum tipo, em absolutamente

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nenhuma questão, no texto bíblico. Evidências contrárias precisam ser explica­ das, ou apelando-se à deturpação no processo de transmissão textual (que podia ser corrigida), ou dizendo que a intenção do autor havia sido mal compreendida. De modo relativamente mais controverso, essa doutrina também implicava que os textos bíblicos foram escritos pelos homens a quem foram atribuídos. O Pentateuco era universalmente considerado como a obra de Moisés, embora algumas almas corajosas estivessem preparadas para considerar que ele pudesse ter usado fontes anteriores e alguns se questionassem como ele teria escrito o relato de sua morte em Deuteronômio 34. Os salmos eram atribuídos a Davi, ainda que alguns deles (e.g., SI 126; 137 etc.) claramente falassem sobre aconte­ cimentos bem posteriores à época de Davi. Explicou-se isso dizendo que Davi era um profeta, que previu o que aconteceria com Israel. Os Evangelhos foram escritos pelos quatro Evangelistas na ordem que o Novo Testamento os apre­ senta, Hebreus foi obra de Paulo, e o apóstolo João foi o autor de Apocalipse. O fato de a Bíblia na verdade não dizer nenhuma dessas coisas foi ignorado — um claro caso de tradição recebendo a autoridade do próprio texto. Nos primeiros anos do século 17, a antiga doutrina da “inspiração verbal” havia reaparecido com ímpeto. Essa doutrina afirmava que todas as palavras das Escrituras foram concedidas por Deus e, portanto, refletiam sua perfeição em to­ dos os aspectos. Com base em que não era possível divorciar a verdade religiosa da verdade científica, passou-se a aceitar que a Bíblia precisa ser “verdadeira” em um sentido preciso e científico, até mesmo a ponto de insistir em que os números citados nas Escrituras eram exatos, e não meramente aproximações. Por exemplo, se 23.000 homens foram mortos em um dia, as Escrituras queriam dizer isso, e não havia lugar para sugerir que o número real pudesse ter sido 22.999 ou 23.001! Como resultado dessa abordagem, as afirmações das Escrituras poderiam ser tiradas do contexto e usadas para elaborar teorias sobre questões totalmente afastadas das intenções originais dos autores. O caso mais notório, obviamente, foi o relato da criação em Gênesis, que era considerado como contendo uma explicação científica perfeitamente válida do modo que o universo surgiu. Biologia, Astronomia, Geologia e também História estavam todas sujeitas à autoridade da Bíblia, que veio a ser considerada como o fundamento de todo o conhecimento e verdade. Esse conceito de inspiração verbal alcançou o ápice na Fórmula de Consenso Suíça de 1675, em que a autoria mosaica do Pentateuco e a infalibilidade dos sinais diacríticos hebraicos receberam atenção especial. Nessa época, no entanto, houve uma compreensão cada vez maior de que as coisas haviam ido muito

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longe e uma reação se estabeleceu. Diversas igrejas e os teólogos, de modo ge­ ral ortodoxos, se recusaram a concordar com o Consenso, e, em uma geração, ele havia se tornado uma carta morta. Enquanto isso, um ataque muito mais radical às suas pressuposições havia sido lançado, o que prenunciou o fim da ortodoxia protestante como o sistema teológico dominante e o início do método histórico-crítico de interpretação bíblica.

A hermenêutica de Lutero Lutero tinha grande dívida tanto para com a tradição humanista como para com a monástica do final da Idade M édia. No entanto, no decorrer de sua Reforma, ele elaborou os princípios que havia herdado de um modo novo e atraente. É possível encontrar a maior parte do que ele disse em outros lugares, em um predecessor ou outro, mas a combinação é de Lutero propriamente. Os aspectos principais de sua interpretação da Bíblia podem ser assim esboçados. 1. 0 sentido literal das Escrituras é tam bém o sentido espiritual. Esse é o ponto de partida de qualquer análise do método hermenêutico de Lutero. Em suas preleções sobre Salmos, que proferiu no início da Reforma (1518-1521), ele disse: Foi muito difícil para mim romper com meu habitual zelo pela alegoria. E, no entanto, eu tinha consciência de que alegorias eram especulações vazias e, por assim dizer, a espuma das Escrituras Sagradas. E somente o sentido histórico que fornece a verdadeira e sã doutrina. De vez em quando, Lutero levava longe demais o princípio da exegese literal, como na famosa controvérsia a respeito do significado das palavras de Jesus na Última Ceia: "... isto é meu corpo” (M t 26.26), que ele usou para justificar a dou­ trina da presença real de Cristo no sacramento. Ele descreveu como racionalismo a noção de que Jesus pode ter falado simbolicamente; para ele, a presença real era uma questão de fé, por mais difícil que pudesse ser justificá-la logicamente. No outro extremo, no entanto, Lutero muitas vezes recorria à alegoria em sua exposição do texto bíblico. Ele fazia isso parcialmente por acreditar que Paulo também o fez (como em G1 4.22ss.) e parcialmente por acreditar que todas as partes das Escrituras deveriam proclamar a Cristo — por alegoria, se nada mais o fizesse. No entanto, Lutero não acreditava que era possível usar a alegoria para provar nada por si só. Para ele, ela podia servir somente para aplicar verdades já conhecidas a passagens da Bíblia que de outro modo seriam incompreensíveis.

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H á momentos em que o uso que Lutero faz da alegoria rompe com a tradi­ ção da igreja, como, por exemplo, em suas preleções sobre Cântico dos Cânticos. Ele evita as tradicionais interpretações alegóricas e sugere, em vez disso, que o poema é sobre o relacionamento entre Deus e Israel. Uma vez que isso é estabelecido, ele imediatamente volta à alegoria, mas em um contexto pura­ mente veterotestamentário, mantendo assim a dimensão histórica. A alegoria de Lutero é tal que o autor de Cânticos poderia ter compreendido, e não algo imposto por especulação posterior da igreja. 2. A B íblia é a p a la v ra d e D eus em fo r m a escrita, que aponta p a ra a p a la v ra de D eus encarnada em Jesu s Cristo. Para Lutero, a Bíblia não é simplesmente um catálogo de verdades, mas um relato do propósito salvador de Deus, que se cum­ priu em Jesus Cristo. Tudo nas Escrituras apontava para ele, e tudo que não era interpretado à luz de Cristo era fundamentalmente uma interpretação equivo­ cada. Lutero compreendia essa revelação em um sentido histórico, pelo fato de que não acreditava que o Antigo Testamento contivesse a plenitude da verdade oculta em mistério. Ele aceitava que Deus revelou sua verdade em estágios e que o Antigo Testamento era uma revelação progressiva de seus propósitos para a humanidade. M as em cada estágio dessa revelação aprendemos um pouco mais sobre o significado de Cristo para a igreja, e é nesse sentido do cumprimento cristológico que precisamos interpretar o texto. A doutrina da Palavra de Deus defendida por Lutero também se estendia ao conceito da importância da pregação. Em sua mente, o cristão deveria receber a Palavra oral na pregação, baseada na Palavra escrita nas Escrituras, para que seu coração pudesse estar preparado para receber a Palavra viva no sacramento. Desse modo, a pregação, a Bíblia e a vida da igreja estavam todas combinadas em uma união expressa pelo conceito “a Palavra de Deus”. 3.A B íblia contém dois elem entos opostos, mas m utuam ente com plem entarei, a lei e o eva n gelh o. Esse é o elemento mais importante da hermenêutica de Lutero que o separa da tradição calvinista. Para Lutero, a lei era o princípio de conde­ nação, que enviou Cristo à cruz por nossos pecados. O evangelho, em contraste, era a palavra de perdão e restauração. Do mesmo modo que a crucificação de Cristo (lei) não tinha nenhum significado sem a ressurreição correspondente (evangelho), também as diversas condenações nas Escrituras não significavam nada sem a promessa de perdão e nova vida em Cristo. É fácil concluir, com base na distinção lei-evangelho, que Lutero está separando o Antigo Testamento do Novo. M as isso é uma análise demasiada­ mente simples de seu pensamento. Lutero acreditava que havia partes do Novo

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Testamento que continham mais lei do que evangelho — a epístola de Tiago, por exemplo —, e nas promessas de redenção no Antigo Testamento ele encon­ trava continuamente sinais do evangelho em ação. O que mudou em Cristo foi que a promessa deu lugar ao cumprimento, o evangelho se revelou plenamente e o poder da lei foi destruído para sempre. Os contrastes de Lutero (lei-evangelho, promessa-cumprimento etc.) forne­ ceram um tema fundamental de interpretação bíblica entre luteranos desde então. Até mesmo hoje, isso muitas vezes está no centro da teologia alemã, por mais que sua exegese bíblica possa ter se afastado dos métodos e conclusões de Lutero. Isso combina bem com uma ênfase existencialista em passar da luz às trevas, em nascer de novo e ênfases afins. Além disso, não há dúvida de que Lutero capturou uma ideia bíblica importante. O contraste entre os justos e os injustos, entre os salvos e os perdidos certamente é um tema muito proeminente nas Escrituras, e o senso pastoral e a experiência pessoal de conversão de Lutero lhe forneceram uma profunda compreensão disso. Contanto que as forças opostas permaneçam juntas e recebam seu peso adequado, o equilíbrio do ensino bíblico será mantido e a Palavra de Deus será proclamada. E quando esse equilíbrio se perde que as coisas podem dar perigosamente errado e a mensagem do púlpito se torna ou um legalismo sem amor ou um evangelho de “graça barata”, sem conteúdo moral ou desafio espiritual.

A hermenêutica de Tyndale Uma companhia um tanto surpreendente para os gigantes da interpretação bí­ blica reformada é Guilherme Tyndale. Ele não escreveu nenhum comentário e mesmo sua tradução da Bíblia ficou incompleta. M as Tyndale fez algo muito raro e que não é tão comum agora: ele prefaciou seu Novo Testamento com um guia para as Escrituras único em sua simplicidade e fez mais para ajudar pessoas em sua caminhada na leitura da Bíblia do que muitos tratados eruditos. Tyndale estava claramente na tradição luterana e seu interesse principal era a teologia luterana. No entanto, há diferenças sutis entre os dois homens. Elas apontam para uma.nova compreensão das Escrituras que se tornaria a marca registrada especial do pensamento reformado — a teologia da aliança. E possível expressar os princípios hermenêuticos de Tyndale da seguinte forma. 1. O A ntigo Testam ento ê a lei e o N ovo T estam ento é o eva n gelh o. Os dois fa z em p a rte da B íblia cristã. Tyndale foi mais categórico nesse assunto do que Lutero, mas ele reconheceu que não há nenhuma distinção clara entre os Testamentos:

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No Antigo Testamento há muitas promessas, que não são nada menos que o Evangelho, para salvar aqueles que creram nelas a partir da vingança da Lei. E no Novo Testamento muitas vezes se faz menção à Lei, para condenar aqueles que não creem nas promessas. Além disso, nunca é possível separar a Lei e o Evangelho, pois o Evangelho e as promessas servem a ninguém menos que às consciências perturbadas, que são conduzidas ao desespero e sentem as aflições do inferno e da morte sob a Lei, e sob ela estão em cativeiro. A novidade aqui é que o evangelho não abole a lei, mas a reafirma e declara seu verdadeiro propósito. Abolir a lei inevitavelmente acarretaria também abolir o evangelho. Não somente isso, o verdadeiro cristão se regozija na lei e enxerga nela a revelação do caráter de Deus. 2. O cristão é tantofilho de Adão ( zaído)por natureza quantofilho d e D euspelagraça. Essa é uma convicção comum da igreja de todas as épocas, mas, para Tyndale, as duas coisas eram simultâneas na experiência do cristão. Não era suficiente dizer que em Cristo passamos das trevas para a luz, como se as trevas desse modo tivessem desaparecido. As trevas permanecem em nós enquanto somos filho de Adão, e, por essa razão, a lei também tem um propósito salvífico que precisa cumprir em nós. Os cristãos estão comprometidos com a lei por causa da graça de Deus e precisam usá-la como um guia para a conduta correta. O clamor irônico de Lutero a Melâncton (“Peque à vontade!”), que ele justificou com base no fato de que em Cristo temos plena salvação, de modo algum se encaixa no esquema de Tyndale. Antes, o cristão deveria demonstrar a veracidade de sua fé vivendo e praticando a lei em amor. A hermenêutica de Tyndale apresenta um retrato do Antigo Testamento que fez dele um guia da vida cristã pela primeira vez na história cristã. Os gran­ des homens do Antigo Testamento eram modelos de fé que deveríamos imitar tanto quanto os do Novo. Ligando os dois Testamentos desse modo, Tyndale preparou o caminho para o desenvolvimento de uma teologia da aliança que os integraria em um firme fundamento e forneceria uma alternativa viável à dicotomia lei-evangelho de Lutero.

A hermenêutica de Calvino Em absoluto contraste tanto com Lutero como com Tyndale, Calvino aprendeu seu método hermenêutico na Sorbonne, entre alguns dos principais humanistas da época. Sua obra não tem a paixão e o profundo senso de turbulência espiritual que encontramos em Lutero, mas é mais sistemática e lógica. Seus princípios hermenêuticos podem ser assim formulados.

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1. Na Bíblia, os cristãos têm um en con tro pessoa l com Deus, que os con ven ce da verd a d e da m ensagem que ela contém . Isso era básico na compreensão de Calvino, pois sem isso não poderia haver absolutamente nenhuma interpretação genuí­ na da Bíblia. Em essência, obviamente, ele estava meramente repetindo o que Tertuliano havia dito em seus ataques aos hereges, que distorciam a Bíblia por causa do falso espírito neles. M as ao contrário de Tertuliano, Calvino se dedicou a demonstrar o que isso significava com um comentário versículo por versículo. Para ele, o propósito de toda a verdadeira interpretação era edificar a igreja e o cristão como indivíduo, pelo motivo de que todas as Escrituras haviam sido concedidas por Deus para corrigir e instruir em justiça (2Tm 3.16). Perder o senso da presença de Deus e de sua voz falando quando se lia o texto era perder o próprio texto. Aqui o testemunho interno do Espírito Santo era o guia supre­ mo, e Calvino nunca se desviou desse princípio. 2. As virtu d es fu n d a m en ta is de um bom com entário são clareza e brevidade. Ele não somente acreditava que o texto estava acima do intérprete, mas que o in­ térprete precisa demonstrar isso servindo o texto aos leitores, e não o ocultando de modo obscuro e enfadonho. Ele criticou Melâncton pela obscuridade, pois Melâncton se concentrava nas dificuldades das Escrituras, que ele resolvia aos poucos. Para Calvino, isso era confuso, pois os leitores não conseguiam saltar com facilidade de um problema para o outro, ignorando as partes claras das Escrituras no meio. Ele também criticou Bucer pela sua abordagem enfadonha, dizendo que os leitores se perdiam na análise de Bucer e não conseguiam captar o sentido. È necessário estabelecer um equilíbrio entre dizer o suficiente, por um lado, e dizê-lo de um modo que possa ser absorvido sem esforço desnecessário, por outro. 3. A intenção do au tor p recisa ser o p rin cíp io orien ta dor da interpretação. Não se deve interpretar nenhum texto sem levar em consideração o modo que o autor desejava que ele fosse interpretado. Isso era muito importante no Antigo Testamento, em que Calvino censurou severamente muitos intérpretes cristãos pela sua determinação em encontrar uma referência a Cristo em cada versículo, por mais forçado que isso pudesse ser. A intenção do autor podia ser descoberta examinando-se as circunstâncias históricas em que ele escreveu, os leitores ou ouvintes aos quais estava se dirigindo e a forma gramatical em que se expressou. Ir além dessas coisas em benefício da piedade era menosprezar o modo que Deus escolheu para dar sua Palavra ao seu povo. 4. O sen tido litera l da interpretação é de im portância máxima, mas não p recisa ­ mos segu i-lo d efo rm a servil. Calvino tinha plena consciência de que o contexto e o significado podiam obrigar um intérprete a ir além do que estava escrito no

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próprio texto e insistiu em que isso fosse feito quando necessário, contanto que não alterasse o significado do todo. Por exemplo, o sexto mandamento, “Não matarás”, exige um comentário complementar; há momentos em que matar não é errado, e a própria Bíblia fornece muitos exemplos disso. Um literalismo radical nesse caso não seria fiel ao significado geral da Bíblia como um todo. M ais um exemplo é o já mencionado em relação a Lutero. Quando Jesus disse: “... isto é o meu corpo”, ele não tinha em mente (e não poderia ter em mente) um sentido estritamente literal, pois estava sentado ali com seu corpo intacto. Um abuso literalista do sentido literal o enfraquecia e destruía a credibilidade do método, um perigo que Calvino estava determinado a evitar a todo custo. 5. A interpretação cristológica das E scrituras p recisa ser teológica e histórica. Nesse aspecto, Calvino rompeu com as interpretações espirituais do passado e até mesmo com a ideia de Lutero de “Cristo em todas as Escrituras”. Para ele, Cristo era o cumprimento do Antigo Testamento e o tema do Novo, mas isso não significava que todos os versículos continham necessariamente uma referência oculta a ele. Antes, o intérprete precisa tomar cuidado para relacionar todas as passagens das Escrituras a Cristo, independentemente do que realmen­ te tenham dito em si mesmas, e não as interpretar de um modo que destruiria o evangelho. Assim, os sacrifícios levíticos eram tipos do sacrifício de Cristo, pelo fato de que ilustravam os princípios subjacentes à sua morte na cruz, mas isso não os tornava não históricos ou meramente alegóricos. Encontrar Cristo no Antigo Testamento para Calvino era uma atividade mais sutil do que para seus contemporâneos e predecessores, e nesse aspecto ele estabeleceu um padrão para a interpretação bíblica completamente novo em círculos cristãos. 6 .A interpretação bíblica passa p o r três fa se s distintas, mas relacionadas. Se qual­ quer um a dessas fa ses f o r om itida, o texto não será corretam ente interpretado. As três fases são exegese (representada pelos comentários dele); dogm ática (representada por sua obra As institutas) e p rega çã o (representada pelos seus sermões). A exegese é logicamente a primeira delas, pois se não compreendermos o que um texto significa, é impossível aplicá-lo. Calvino se sentiu livre para usar todos os meios necessários para alcançar o verdadeiro sentido de um texto, e em nenhum lugar encontramos seu treinamento humanista mais operante do que aqui. Como exegeta, Calvino é notável pela sua honestidade inescrupulosa; ele resistiu à tentação de impor significados cristológicos até mesmo a passagens tão “óbvias” como Gênesis 3.15. A dogmática vem a seguir, pois representa o arcabouço em que se deve inter­ pretar a exegese. Calvino evitou a tendência medieval, ainda evidente em Pedro

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M ártir, Melâncton e Bucer, de sobrecarregar seus comentários com digressões teológicas. No entanto, não devemos concluir a partir disso que ele pensava que a teologia tinha pouca importância. M uito pelo contrário, ele passou a maior parte de sua vinda aperfeiçoando As institutas, que permanecem sendo o trata­ mento mais sucinto e sistemático de dogmática reformada. A pregação vem por último, pois tem o objetivo de ser a aplicação da exe­ gese e da dogmática à vida cotidiana. A pregação só poderia ser expositiva, pois congregações precisavam ouvir a Palavra de Deus, proclamada a eles com base no texto bíblico. Ao mesmo tempo, ela era mais do que mera preleção, pois continha um elemento exortatório que acrescentava uma dimensão subjetiva a uma apresentação dos fatos puramente objetiva. Se a pregação não mudasse a vida das pessoas, ela era um fracasso e a Bíblia não havia sido corretamente interpretada. Calvino nunca perdeu de vista o lado prático da hermenêutica bíblica, e seus sermões permanecem modelos de seu tipo ainda hoje. Talvez o melhor modo de compreender a necessidade de manter essas três coisas combinadas e em harmonia é examinar o que acontece se somente uma delas é deixada de fora. Exegese e dogmática sem pregação são secas e acadêmi­ cas; não há aplicação. Exegese e pregação sem dogmática são subjetivas e sem conteúdo; uma passagem das Escrituras será interpretada sem se considerar seu contexto apropriado na Palavra de Deus como um todo. Por fim, dogmática e pregação sem exegese são mera propaganda; elas não se baseiam em uma assimilação apropriada dos fatos. Somente quando as três coisas são mantidas juntas e em equilíbrio correto a mensagem das Escrituras pode ser corretamente aplicada à vida da igreja e o povo de Deus pode ser edificado como deve ser.

Procurando uma hermenêutica bíblica: o desenvolvimento da teologia da aliança Em Calvino, encontramos um equilíbrio entre o texto, seu significado e suas aplicações que raramente foi igualado — se é que alguma vez o foi — na vida da igreja. M as apesar de sua grandeza, seus discípulos ficaram com a tarefa de desenvolver as implicações de seu ensino para a hermenêutica como um todo. A relação entre Calvino e o que agora chamamos de teologia da aliança é uma relação complexa e muitas vezes controversa. Não há dúvida de que os teólo­ gos alemães e os puritanos ingleses, que foram amplamente responsáveis por essa conexão, acreditavam que estavam seguindo o exemplo dele e meramente explicando o que ele já havia ensinado em seus comentários e em As institutas.

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Ao mesmo tempo, a maioria dos observadores independentes hoje diriam que há uma evolução definida de uma teologia para a outra, mesmo que alguns elementos da teologia da aliança estejam presentes no próprio Calvino. O que aconteceu é que houve uma nova sistematização, baseada nos eventos das pró­ prias Escrituras, que uniu as diferentes partes da Bíblia sob o tema da única aliança que Deus fez com seu povo Israel. A teologia da aliança se desenvolveu lentamente ao longo de uma geração ou mais, mas seu pleno florescimento pode ser visto nos escritos de Johannes Cocceius, cujos princípios podemos esboçar do seguinte modo. 1. A B íblia é a história do relacionam ento de D eus com a hum anidade. Apesar de todos os desenvolvimentos observados desde o início, há um conceito que descre­ ve todo o processo — o da aliança. M uitas vezes se usa a palavra “aliança” (heb. Ifrit; gr. diathêkê; lat. testamenturri) na Bíblia, mas principalmente no Pentateuco, para se referir à aliança especial que Deus fez com Abraão e às promessas que ele concedeu a ele e seus descendentes. Tudo o mais na Bíblia se desenvolve com base nisso. Os Testamentos (= alianças) “Antigo” e “Novo” não são aspectos distintos, mas meramente dois aspectos (dispensações) da mesma coisa. Na realidade, há somente uma aliança entre Deus e a humanidade, a aliança da graça. 2. A p rim eira aliança de D eus f o i com Adão no ja r d im do Éden. Ela f o i uma aliança d e obras. A teologia da aliança não se limitou ao uso bíblico do termo, mas iniciou sua exposição das Escrituras muito antes de Abraão — com o próprio Adão. No princípio, alegava-se, Deus tinha em mente que Adão devesse obter sua salvação exercendo seu domínio sobre a criação e trabalhando para cumprir os mandamentos que havia recebido. (M ais tarde, questionou-se a noção de que isso realmente era uma aliança de “obras”, e no século 19 alguns teólogos calvinistas falaram sobre a aliança de Adão como uma aliança de “graça comum”, em oposição à “graça especial” que Abraão recebeu; mas essa é outra história.) 3 .A dão desobedeceu a D eus e sua aliança f o i quebrada. No entanto, D eus fa lo u à hum anidade caída um a segu n da vez, na aliança f e i t a com Noé. A raça humana seria destruída no dilúvio, excetuando Noé, que foi escolhido para sobreviver e dar continuidade à herança de Adão. A aliança de Noé foi uma aliança de preser­ vação, em que Deus se comprometeu a permitir que a raça humana continuasse existindo apesar de sua pecaminosidade. Além disso, Deus concedeu um sinal a Noé (o arco-íris) que serviu de garantia de que Deus cumpriria suas promessas. 4. As alia n ça sfeitas com Adão e N oé fo ra m inadequadas p a ra a salvação. Em uma época posterior, D eus escolheu Abraão p a ra ser o p a i d e todos os que creem. O papel de

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Abraão na histórica da salvação foi decisivo. Como Noé, ele foi escolhido dentre toda a raça humana para cumprir o propósito de Deus. M as ao contrário de Noé, ele não foi chamado para ser uma espécie de segundo Adão. Em vez disso, estava destinado a ser o ancestral de um povo especial que viveria no mundo, mas não seria dele. O sinal dessa aliança foi a circuncisão. A aliança de Abraão foi uma aliança de separação para um propósito, de eleição para um destino especial. Essa aliança foi renovada em seu filho Isaque e em seu neto Jacó, que recebeu o nome Israel. Esses patriarcas foram os ancestrais dos profetas, que mantiveram viva a consciência do chamado especial de Israel em séculos posteriores. 5. A aliança fe i t a com Abraão f o i p reserva d a na L ei de M oisés. Assim como foi impossível para os descendentes de Adão guardarem sua aliança com Deus, também se provou impossível que os descendentes de Abraão mantivessem seu relacionamento original com Deus. M as, dessa vez, a reação de Deus foi um tanto diferente. Em vez de destruir o povo em um segundo dilúvio, ele o fez atravessar o mar Vermelho, no qual seus inimigos se afogaram em seu lugar. Ele então selou uma aliança no monte Sinai, quando concedeu a Lei a Moisés e Arão. Por meio dessa Lei, o sacerdócio sacrificial foi estabelecido e os prin­ cípios de expiação, que acabariam determinando o sacrifício de Cristo na cruz, foram fixados. O próprio Moisés era um profeta, mas essa Lei foi a carta magna dos sacerdotes que, em associação com os profetas, serviriam aos propósitos da aliança de Deus na nação de Israel. 6. D eus ren ovou sua aliança com Isra el um a segu n da vez, em D avi. Até mesmo após conceder a Lei a Moisés, Israel não foi forte o suficiente para garantir que ela pudesse ser guardada do modo correto. Somente depois do estabelecimento de uma forte monarquia e da captura de Jerusalém, foi possível implementar a Lei de Moisés. O próprio Davi não pôde fazer isso, mas precisou entregar o trabalho a seu filho Salomão, que construiu o templo onde era feito o sacrifício de expiação. No entanto, Davi recebeu a promessa de que seus descendentes reinariam para sempre no trono de Israel e de que nele o destino do povo seria cabalmente realizado. A aliança com Davi foi a carta magna dos reis, que seriam ungidos de modo especial para preservar a nação do mal e, por meio de seu governo, glorificar o nome do Deus de Israel. 7. Cristo v eio p a ra ser o cu m prim ento das prom essas das alianças fe ita s a Abraão, e tam bém daquelas fe ita s a Adão. As promessas da aliança feitas a Abraão, Moisés e Davi eram todas de natureza temporária. Elas continham a promessa de um futuro cumprimento, em que Deus enviaria seu ungido, o Messias, para res­ taurar Israel de uma vez por todas. O Novo Testamento deixa claro que Jesus

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de Nazaré era esse Messias. Pela palavra que pregou, demonstrou ser o último e maior dos profetas. Pelo sacrifico que fez no Calvário, realizou o papel dos sacerdotes e colocou um fim no ministério deles. Pela sua volta triunfante dos mortos e sua ascensão ao céu, ele reivindicou um reino muito maior do que aquele de seu ancestral humano Davi e cumpriu a promessa divina de que a casa de Davi reinaria para sempre. No entanto, o Novo Testamento também diz que Cristo é o novo Adão, que veio para restaurar toda a raça humana. A salvação não se lim ita mais aos judeus, mas é concedida a todo aquele que crê. M ais precisamente, a salvação agora pertence àqueles gentios que, como os judeus de antigamente, foram escolhidos e predestinados para participar da eleição dos filhos de Abraão. Longe de ser antijudaica, a teologia da aliança foi a mais forte afirmação cristã do lugar espe­ cial que pertencia ao antigo Israel. Onde deitou raízes, as atitudes em relação aos judeus mudaram dramaticamente. Na Inglaterra, por exemplo, os judeus haviam sido expulsos em 1290, mas graças à teologia da aliança foram readmitidos na década de 1650, com base no argumento de que a Inglaterra era o lar de todo o povo escolhido de Deus. Na própria teologia cristã, o surgimento da teologia da afiança levou a uma recuperação do Antigo Testamento, que agora se tornava o relato da igreja antes de Cristo. O Antigo Testamento desfrutou de um renascimento de interesse entre cristãos raramente visto antes ou desde então. Os teólogos falavam com bastante satisfação sobre a “igreja judaica” e enxergavam a lei como ainda válida, em certo sentido, para os cristãos. Nomes do Antigo Testamento eram dados com frequência a lugares de adoração (Betei, Ebenézer), e filhos muitas vezes recebiam nomes de profetas em vez de santos cristãos (Abraão, Josué etc.). Os salmos, às vezes em forma métrica, tornaram-se um elemento fundamental na adoração protestante, e, mais tarde, os compositores e autores de hinos cristãos também dependeram fortemente de imagines do Antigo Testamento, como po­ demos observar em hinos prediletos como “Ao Deus de Abraão louvai” e “Guide me, O thou great Jehovah” [Guia-me, ó grande Jeová]. A teologia da aliança se tornou a hermenêutica característica do protestantismo tradicional e “ortodoxo” que dominou as igrejas até a primeira metade do século 19. Mesmo hoje ela ainda é comum entre os meios conservadores no protestantismo, e como um modo de interpretar o Antigo Testamento como um livro cristão ela nunca foi adequadamente superada. O forte viés veterotestamentário da teologia da aliança rapidamente levou à convicção de que os estados protestantes eram de certo modo herdeiros do

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antigo Israel. Essa convicção foi bem forte na Holanda e Grã-Bretanha, onde ajudou a moldar a autocompreensão nacional do século 17. Os puritanos que fo­ ram para os Estados Unidos, por exemplo, acreditavam ser o povo escolhido de Deus, chamado para realizar sua obra no mundo, e estavam convencidos de que suas colônias eram um farol semelhante a Israel entre as nações de antigamente. A Guerra Civil Inglesa foi travada e vencida por homens que professavam essa convicção, e o maior anseio de Oliver Cromwell era estabelecer uma “nação piedosa” que seria um antegosto da nova Jerusalém. Foi esse senso de missão que forneceu ao imperialismo holandês e britânico sua qualidade especial — aquela combinação peculiar de “carregar o fardo...” da responsabilidade “... do homem branco” para com outros povos e raças e de rí­ gido exclusivismo, combinação que criou um a p arth eid muito antes de a palavra ser inventada. O evangelismo, que ao menos em parte reflete o desejo de incluir nas bênçãos da aliança outros que não são como nós, era uma característica da teologia da aliança do mesmo modo que o proselitismo era uma característica dos judeus. Quando o evangelismo de massa começou na Inglaterra na década de 1740, foi necessário reconciliá-lo com a teologia da aliança, uma tarefa que não parecia ser tão óbvia ou desejável na época. Mesmo agora o mais provável é que as objeções a esse tipo de teologia venham daqueles que têm forte compro­ misso evangelístico, e permanece a impressão de que a teologia da aliança não nutre grande simpatia pela ideia de que o evangelho deve ser pregado àqueles que nunca o ouviram.

Uma nota sobre a hermenêutica dos contrarreformadores católicos No estudo do período da Reforma, surpreende descobrir que, apesar da gran­ de ênfase dos reformadores no princípio “Escrituras somente”, a maioria dos comentaristas do período eram católicos ou ao menos humanistas que nunca romperam com Roma. Eles também desempenharam um papel considerável em estabelecer o texto da Bíblia nas línguas originais e até mesmo realizaram al­ gum trabalho de tradução, embora em escala menor do que os protestantes. Por que então, apesar dessa produtividade, suas obras caíram no esquecimento? Até certo ponto, obviamente, a moda é responsável por isso. Protestantes realizaram a maior parte da pesquisa bíblica em épocas modernas e eles não têm nenhum interesse especial no catolicismo pós-Reforma. Desde o abandono geral da teo­ logia tridentina depois do Concilio Vaticano II (1962-1965), pode-se afirmar algo muito semelhante com respeito aos católicos contemporâneos.

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M as moda não explica tudo. Não houve gigantes católicos comparáveis a Lutero ou Calvino, e, em uma época que procurava autoridade, isso era uma séria desvantagem. A primeira geração de expositores e controversistas católicos estava muito mais próxima dos reformadores do que a maioria das pessoas hoje imagina. Até a década de 1540, era-lhes possível beneficiar-se extensamente de autores protestantes, o que muitos deles fizeram. Os métodos que usaram e as conclusões a que chegaram não foram muito diferentes dos de seus contemporâneos cismáticos, e isso se deveu em grande parte ao seu treinamento na tradição humanista de Erasmo. M as é necessário lembrar que os dois lados haviam feito parte de uma só igreja até 1520 e que os limites entre eles não estavam claramente traçados. Enquanto ainda houvesse esperança de uma reconciliação, autores católicos não conseguiriam se distinguir claramente de seus oponentes protestantes. Na época em que uma teologia católica distinta surgiu, depois do Concilio de Trento (1545-1563), mostrou-se anti-humanista e ultratradicional. Autores ca­ tólicos posteriores repudiaram seus predecessores como Cajetano e retrocederam cada vez mais a uma interpretação patrística e medieval. Esse conservadorismo foi combinado com uma mentalidade defensiva que assegurava que qualquer originalidade de pensamento fosse suspeita de heresia. Nesse clima, o estudo bí­ blico erudito era uma atividade perigosa e rapidamente decaiu a uma forma de propaganda da causa romana. Houve muitíssimo disso, certamente, e ela teve mais êxito do que muitas pessoas gostariam de pensar, mas não foi criativa. Não houve nenhum equivalente católico da teologia da aliança e nenhum real encorajamento à leitura das Escrituras, nem mesmo entre o clero. Foi somente no fim do século 19 que esse estado de coisas começou a mudar, e então levou uma geração para que o estudo bíblico erudito fosse aceito novamente em círculos catóÜcos. B ib l io g r a f ia

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ESTUDO DE CASO: ROMANOS H á poucos períodos na história da igreja que foram tão profundamente marca­ dos pela influência de um só livro da Bíblia quanto a época dos reformadores. Ê verdade que Lutero também sublinhou a importância de Gálatas, mas Gálatas é de muitos modos uma preparação para a exposição mais ambiciosa do evan­ gelho que Paulo faz em Romanos. Foi ao ler e comentar essa grande epístola que Lutero chegou à sua compreensão da justificação pela fé, de modo que não é errado afirmar que a Reforma deveu sua origem a ela. M ais recentemente, T. H. L. Parker mostrou que, entre 1529 e 1542, comentários sobre Romanos eram publicados em uma média de um por ano, e ao menos metade deles era de autoria católica — e isso não é de modo algum o que esperaríamos! No entanto, visto que as diferenças entre protestantes e católicos nessa época eram mais sutis e complexas do que se tornariam mais tarde, não é possível fazer uma distinção de modo puramente confessional entre eles. Ao mesmo tempo, a grandeza de Calvino como comentarista se destaca em contraste com os esforços de seus contemporâneos, e podemos começar a ver por que sua obra sobreviveu ao teste do tempo de um modo que outras obras não sobreviveram. Ao examinar essa epístola, vamos primeiro considerar Lutero e Calvino e com­ parar o que eles dizem sobre versículos fundamentais em Romanos com as visões de exegetas modernos. Depois vamos seguir Parker e examinar uma seleção de comen­ tários da Reforma, analisando como eles interpretaram certos textos importantes. Comecemos com o importantíssimo Romanos 1.17: “Pois a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé” [Hc 2.4],

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Em seu comentário sobre essa passagem, Lutero faz as seguintes observações: 1. A justiça de Deus está em contraste agudo com a justiça humana. Esta é pelas obras, aquela vem pela fé. Lutero cita Aristóteles {Ética a N icômaco, 3.7) para fundamentar o que diz sobre a justiça humana. 2. O termo “justiça de Deus” não se refere à própria natureza de Deus, mas à justiça que ele concede a nós. Lutero defende isso com uma citação de Agostinho {Do espírito e da letra, 11.18): “É chamada justiça de Deus porque ao concedê-la ele torna homens justos”. 3. Lutero nega que obras justas realizadas por pessoas injustas têm qual­ quer significado salvífico. Ele diz que elas são “como as obras de uma pessoa que realiza as funções de um sacerdote e bispo sem ser sacerdote; em outras palavras, essas obras são tolas e enganosas e devem ser comparadas com os ges­ tos ridículos de mascates no mercado”. (A mesma ideia é expressa com decoro consideravelmente maior no Artigo 13 da Igreja da Inglaterra que, no entanto, acrescenta que essas obras “têm a natureza do pecado”.) 4. Lutero observa que a expressão “de fé em fé” tem sido interpretada de diferentes modos. Ele cita duas interpretações diferentes, que refuta, antes de fornecer a sua. A primeira delas é a de Nicolau de Lira, que a compreendia como significando “de fé não formada para fé formada”. Lutero rejeitou essa ideia pelo motivo de que “fé não formada” é algo sem sentido; a fé existe ou não existe. Ele então cita a opinião de “outros”, cuja trajetória remonta à Glossa ordinaria [Glosa comum] medieval, de acordo com a qual a expressão significa “da fé dos pais de antigamente à fé da nova lei”. Lutero rejeita isso pelo motivo de que ninguém vive pela fé de gerações passadas, e ele rejeita a ideia de que a fé do Antigo Testamento era inferior à fé do Novo Testamento. Em lugar dessas posições, Lutero defende que a fé aparece no coração de tal modo que se torna mais clara ao longo do tempo, e ele compara isso aos graus de glória em 2Coríntios 3.18 (“... transformados de glória em glória...”) e de força em Salmos 84.7 (“Prosseguem o caminho de força em força...”, NVI). Ele termina com uma refutação cortês da visão de Agostinho de que a expressão significa “a fé daqueles que confessam com a boca à fé dos obedientes” e da visão de Pablo de Santa M aria (Paulo de Burgos), o qual, em seu acréscimo à Glossa ordinaria, afirmou que ela significava “da fé da sinagoga (como ponto de partida) à fé da igreja (como alvo)”. A interpretação que Calvino faz do mesmo versículo é em grande medi­ da compatível com a de Lutero, mas tem suas próprias ênfases características. Calvino a explica da seguinte forma.

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1. A justiça de Deus precisa ser compreendida no contexto da salvação, pois é disso que trata o evangelho. E por querermos ser salvos que procuramos justiça, visto que esse é o único modo de podermos ser reconciliados com ele e desfrutar da vida eterna. Vemos, com facilidade, como Calvino tenta situar sua exposição em um contexto maior; nesse caso, toda a questão da nossa salvação em Cristo. 2. Calvino define “a justiça de Deus” como aquilo que é aprovado por ele quando nos julga. Calvino aceita que alguns comentaristas a enxergam como algo que Deus de fato nos concede e ele admite que as palavras do texto possam con­ ter esse significado, mas essa não é sua preferência. Ele trata essa questão como secundária, mas nos lembra de que a justiça de Deus precisa ser compreendida fundamentalmente no âmbito do perdão dos pecados e da reconciliação com Deus, e não no âmbito de algo em nós implantado pela graça da regeneração. 3. Calvino aceita a interpretação que Lutero dá à expressão “de fé em fé” e não analisa comentaristas anteriores, com exceção de uma breve alusão à opinião de Pablo de Santa M aria, que ele rejeita. 4. Calvino observa que Paulo baseia sua doutrina em Habacuque, que Lutero não menciona. Ele considera a intenção de Habacuque, que é afirmar que a fé é a base da vida eterna para os piedosos, como diretamente relevante para o propósito de Paulo em citá-lo. Calvino volta ao tema do evangelho e lembra seus leitores de que este é a fonte da vida eterna. Quando comparamos Lutero e Calvino a respeito dessa passagem, desco­ brimos que Lutero está mais envolvido com uma controvérsia teológica. Como um bom mestre medieval, ele cita Aristóteles como sua autoridade em questões humanas e os pais da igreja para a teologia. Ao mesmo tempo, ele toma cuidado para distinguir o verdadeiro do falso nos pais e não hesita em rejeitar Agostinho quando é necessário. Ele também tem grande preocupação com a questão das , boas obras e com a natureza da justiça que vem de Deus. Calvino, em contrapar­ tida, mostra menos interesse nisso e evita ao máximo controvérsias teológicas. Ele nunca cita alguma autoridade fora das Escrituras e determina o significado do texto com base em seu contexto. Ele desenvolve isso muito mais que Lutero, e também leva em consideração o texto de Habacuque, que Lutero ignora. Quando passamos a um comentarista atual desse versículo, descobrimos um novo conjunto de problemas que opõe os reformados a nós hoje. Em seu monumental resumo das diferentes posições que o intérprete pode adotar em relação a esse versículo, C. E. B. Cranfield (1975,1979) começa examinando a questão da tradução. H á dois aspectos principais em que exegetas atuais ques­ tionariam a compreensão que os reformadores tinham. O primeiro diz respeito

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ao significado da expressão “justiça de Deus”. Será que essa justiça pertence ao próprio Deus (isto é, ela é objetiva?) ou ela é concedida a nós (isto é, ela é subje­ tiva?). Cranfield reconhece que há um vasto debate erudito sobre esse tema e fornece uma análise detalhada dos vários argumentos usados na defesa das duas posições. No entanto, é interessante observar que ele acaba adotando a posição de Calvino, e em grande medida pelas mesmas razões; ela se encaixa melhor no contexto, é mais próxima de Habacuque etc. A segunda área de debate é a expressão “de fé em fé”. Aqui Cranfield de­ fende, usando evidências lingüísticas, que Paulo não está falando sobre dois tipos de fé ou até mesmo sobre dois estágios no desenvolvimento de uma só fé. Ele afirma que a expressão como um todo é um recurso retórico, comum no hebraico, cujo objetivo é meramente fortalecer o significa do termo “fé”. Ela deve, portanto, ser traduzida mais ou menos por “pela fé somente”. Os refor­ madores não adotaram essa conclusão, pois não compreendiam a construção gramatical, mas é fascinante observar como, mesmo aos tropeções, estavam ca­ minhando nessa direção. Pois tanto Calvino quanto Lutero perceberam, como Cranfield diz, que o versículo não está falando de dois tipos diferentes de fé. Eles preferem a ideia de que há um crescimento na fé, mas têm certa hesitação até mesmo a respeito disso. Parece provável que, caso tivessem tido consciência do recurso lingüístico sendo usado, eles teriam endossado plenamente — e com alívio — a solução de Cranfield, visto que certamente corresponde à posição teológica geral deles. Onde Cranfield diverge mais obviamente de Calvino é em sua interpretação da citação de Habacuque. Enquanto Calvino associa “por fé” com “viverá”, de modo que a fé se torna o meio de vida, Cranfield associa “por fé” com “o justo”, de modo que a fé se torna a base da justiça, pela qual viveremos. A diferença pode ser ilustrada assim: Calvino: A pessoa justa tem fé para que possa viver. Cranfield: A fé torna uma pessoa justa para que ela possa viver. Essa não é uma diferença trivial, pois ela contém a distinção entre o que no século 18 foi chamado de “calvinismo” e “arminianismo”. O primeiro deles apresenta a fé como uma dádiva de Deus à pessoa justa, que é justa porque Deus assim decretou. O segundo faz da fé a condição da justiça e, assim, corre o risco de transformá-la em uma obra. É interessante observar em relação a isso que a interpretação de Cranfield foi sugerida pela primeira vez por Teodoro Beza,

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a quem normalmente se atribui a concessão de características escolásticas ao pensamento de Calvino. Quando passamos a uma tradução moderna do versículo, descobrimos o seguinte: “Porque no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’” (NIV [NVI]). Nessa tradução, a visão da justiça de Deus comum nos reformadores e em Cranfield é adotada e explicitada, enquanto a visão de Cranfield do sig­ nificado de “de fé em fé” é escolhida, embora uma nota de rodapé forneça a outra tradução (mais literal). No entanto, sua interpretação da passagem de Habacuque é rejeitada, o que demonstra que os tradutores da NIV não foram persuadidos de que era necessário alterar a compreensão tradicional do texto a essa altura. M ais um versículo que precisamos examinar em relação a isso é Romanos 5.12. A í temos: De acordo com Lutero: “Portanto, assim como o pecado veio ao mundo por um só homem, e pelo pecado, a morte, assim também a morte se espalhou a todos os homens, em que \_eph hõ\ todos os homens pecaram”. De acordo com Calvino: “Portanto, assim como o pecado entrou no mundo por um só homem, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, pois todos pecaram”. Lutero dá grande importância a esse versículo, que é central em toda sua compreensão da salvação. Para ele, há uma diferença fundamental entre o pecado original, que é o tema desse versículo, e pecados concretos, cometidos diariamente por todo indivíduo. Ele cita Agostinho e Crisóstomo detalhadamente para pro­ var que o pecado de Adão foi algo único e de significado universal, e não como os pecados concretos que cada um de nós comete. É, portanto, errado dizer, como os pelagianos diziam, que nossos pecados são imitações do pecado de Adão, em que caímos por causa de uma tendência inerente nessa direção. A presença da morte no mundo é uma prova disso, visto que até mesmo aqueles que não cometeram pecado concreto morrerão. Se é verdade, como Paulo diz, que foi por meio do pecado de Adão que a morte entrou no mundo, então aquele pecado não pode ser algo pessoal somente para Adão; ele precisa ter um significado maior. Lutero segue definindo o pecado original como uma inclinação e um desejo inerente em direção da injustiça, em contraste com os teólogos escolásticos da Idade M édia, a quem ele acusa, não de modo completamente justo, de terem re­ duzido o pecado a uma mera ausência de justiça original — em outras palavras,

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a ausência do bem ao invés da presença do mal. Ele tem consciência da difi­ culdade textual na últim a expressão, mas, embora adote a tradução erasmiana, baseada no texto grego, ele não mostra nenhuma consciência da teologia bizan­ tina subjacente a ela. Os pais gregos geralmente defendiam que a morte era a causa do pecado, mas Lutero não considera essa possibilidade. Antes, ele analisa se a expressão eph’hõ (lat., in quo) deve ser entendida como “em ele” [“nele”] (isto é, Adão) ou “em isto” [“nisto”] (isto é, o pecado de Adão). Talvez, percebendo que sua escolha não faz grande diferença, ele endosse as duas opções: Paulo está sendo deliberadamente ambíguo aqui. Calvino gasta bem menos tempo com esse versículo do que Lutero. Ele é exa­ tamente tão antipelagiano quanto Lutero e concorda com ele em que a referência ao pecado nesse versículo deve ser entendida como nossa depravação original, e não qualquer ato da vontade pelo qual possamos ter cometido um pecado concre­ to. Calvino é bem específico em que todos nós herdamos essa depravação, visto que, depois que Adão perdeu sua justiça original, isso era tudo que ele tinha para passar a seus descendentes. Calvino ainda diz que todos pecaram porque estamos imbuídos dessa corrupção original profundamente arraigada, e ele interpreta o verbo “pecar” como significando especificamente “ser corrupto”. Ele não se inco­ moda com a dificuldade na tradução da última expressão e não a menciona. Cranfield, em contraste acentuado com isso, presta enorme atenção nas difi­ culdades gramaticais desse versículo, que ele reconhece como tendo importância fundamental para a interpretação de toda a passagem. Cranfield acredita que a construção irregular ocorre porque Paulo está relutante em levar a comparação entre Adão e Cristo além do que realmente está em questão: a morte de Cristo tem o mesmo significado universal que o pecado de Adão. Além disso, ele de­ dica a maior parte de sua atenção à última locução e aos muitos significados possíveis de eph' hõ. Diferentemente de Calvino, que enxergou somente uma interpretação nessa expressão, e Lutero, que chegou a duas, Cranfield distingue nada menos que seis possibilidades, todas as quais tiveram seus defensores em uma época ou outra. A segunda alternativa de Lutero é listada como a segunda possibilidade por Cranfield, que ignora a outra escolha de Lutero. A primeira possibilidade listada é a visão ortodoxa grega tradicional, enquanto a posição de Pelágio é incluída como a quinta. A visão de Calvino é listada como a quarta. A terceira é a mesma que a segunda, com a diferença de que a palavra grega epi (eph*) é entendida como “pois” em vez de “em”. A sexta posição, a preferida de Cranfield, é semelhante à de Calvino, com a diferença de que o verbo é entendido como se referindo a pecados concretos,

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e não ao estado de corrupção, embora obviamente tal estado seja reconhecido como a causa de pecados concretos. A diferença pode ser esboçada assim: Calvino: “A morte veio a todos os homens porque todos são corruptos e, portanto, pecam, quer queiram, quer não”. Cranfield: “A morte veio a todos os homens por sua vez porque todos os homens pecaram voluntariamente”. M ais uma vez, Cranfield se apresenta em tom mais “arminiano”, embora não de modo polêmico nem consciente. A verdade é que provavelmente a maioria dos protestantes no mundo de fala inglesa endossa um “calvinismo” modificado que, em certos momentos, parece “arminiano” em comparação com o próprio mestre. Passando à NIV, encontramos a seguinte tradução: “Portanto, da mesma forma como o pecado entrou no mundo por um homem, e pelo pecado a morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque todos pecaram” [NVI]. Aqui é a visão de Calvino que triunfou, e os tradutores mostram a mesma indi­ ferença para com o problema da tradução que ele mostrou; nenhuma alternativa é oferecida em uma nota de rodapé. Quando passamos aos exegetas contemporâneos dos grandes reformadores, encontramos uma ampla variação de interpretações em versículos fundamentais. T. H. L. Parker examinou algumas delas cuidadosamente, e confiamos em seu julgamento para o que vem a seguir: O primeiro versículo que examinaremos é Romanos 1.18, que pode ser traduzido assim: “Pois a ira de Deus é revelada do céu contra toda a im pie­ dade e injustiça (iniqüidade) daqueles que mantêm a verdade em injustiça (iniqüidade)” (TA). Em questões puramente exegéticas, há uma concordância relativamente ampla. Todos aceitam que “revelação” significa “desvelamento” e que “a ira de Deus” se refere à sua vingança. H á certa divergência a respeito da combinação de “impiedade” com “injustiça” (ou “iniqüidade”). Bucer e Bullinger relacionaram o primeiro termo a pecados contra Deus e o segundo a pecados contra pessoas, mas Melâncton e os exegetas católicos referem os dois termos a pecados contra Deus. Calvino também aceita isso e considera as duas palavras como diferentes aspectos da mesma coisa. Isso tem uma implicação para a tradução inglesa [e para a portuguesa], visto que a palavra “injustiça” combinaria com pecados con­ tra pessoas, enquanto “iniqüidade” combina mais naturalmente com pecados contra Deus.

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H á maior divergência, como seria de esperar, a respeito do significado da última expressão. A maioria dos comentaristas aceita que “a verdade” se refere ao conhecimento de Deus, embora haja diferenças sutis aqui. Em um extremo está Bucer, que entende isso como significando o conhecimento do que deve­ mos a Deus, e, no outro extremo, Bullinger, para quem não é nada menos que a verdade sobre o próprio Deus. Em relação ao significado de “iniqüidade”, as opiniões variam desde a posição de Bucer (de que se trata de uma referência a atos de violência) à afirmação de Calvino — de que Paulo está se referindo essen­ cialmente à supressão da verdade. A maioria dos exegetas, no entanto, tende à posição de Calvino. Com relação à interpretação geral do versículo à luz da epístola como um todo, há considerável divergência a respeito de quem são as pessoas a quem Paulo está se dirigindo. A maioria pressupõe que ele tinha em mente filósofos gregos, mas Calvino rejeita essa ideia com firmeza e diz que ele está se dirigindo a todos, quer filosofem sobre seu pecado, quer não. No contexto da argumen­ tação sobre a justificação pela fé, é evidente que os católicos geralmente têm mais facilidade com isso do que os protestantes. É fácil encaixar esses versículos em um esquema católico de redenção, em que a justificação é um elemento no processo contínuo de salvação. Os protestantes rejeitaram isso, obviamente, mas acharam difícil interpretar esse versículo e os seguintes no contexto de um ato único de Deus que justifica o crente de uma vez por todas. Foi somente quando Calvino o interpretou no contexto maior da indesculpabilidade do homem em face do julgamento divino pelo pecado que essa dificuldade foi superada, e a passagem foi estabelecida até o que hoje se tornou seu lugar tradicional no es­ quema protestante de salvação. Quando passamos a Cranfield, descobrimos que isso já é uma pressuposição; o debate crítico se deslocou para questões em que havia consenso entre os exegetas do século 16, como o significado da expressão “a ira de Deus”. Um exemplo final vem de Romanos 3.20, que diz (literalmente): “Porque pelas obras da lei nenhuma carne é justificada diante dele; pois pela lei é o conhecimento do pecado” (TA). Os exegetas do século 16 não conseguiram concordar sobre o significado da palavra “lei” nesse contexto. Alguns, como Bullinger, Cajetano, Melâncton e Sadoleto, compreendem-na como se referindo à lei como um todo. Outros, no entanto, notavelmente Bucer e a maioria dos católicos, compreendem-na como se referindo somente à lei cerimonial. Quanto ao mais, existe consenso, embora um ou dois intérpretes católicos, incluindo Sadoleto, estivessem inclinados a

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enxergar a expressão “nenhuma carne” como lim itada em sua aplicação àqueles que vivem de acordo com a carne e, portanto, inaplicável aos santos. Com respeito à questão teológica do valor das obras na justificação, há considerável divergência, como seria de esperar. Cajetano diz que precisa­ mos distinguir entre a justiça da obra, que é suficiente para justificar tanto a obra quanto aquele que a pratica, e a justiça de Deus, que está muito acima de qualquer justiça humana. Aquela não pode ser comparada a esta, mas isso não significa que não tenha valor. A lei, obviamente, pode fornecer somente o conhecimento de pecados, e não o perdão, e por essa razão estamos em situação pior com ela do que estávamos antes de ela nos ser dada. E essa distinção entre a justiça humana e a divina que é comum em intér­ pretes católicos e que abre o caminho para uma interpretação que lhes permite afirmar que a justificação não pode ser simplesmente o perdão divino dos peca­ dos humanos; precisa haver uma contribuição humana em relação à capacidade da humanidade para a justiça. Em contaste acentuado com isso, os reformadores insistiam em que não há absolutamente nenhuma justiça humana e que as obras realizadas somente pelo esforço humano eram inevitavelmente inúteis e até mesmo pecaminosas. O versículo em si não decide a questão para nós, mas o contexto geral da argumentação de Paulo na epístola certamente o faz. Temos aqui um caso clássico de uma teologia estranha imposta ao texto bíblico e, então, defendida pouco a pouco. Os reformadores, sobretudo Calvino, responderam a isso apelando à ideia central e geral da epístola e explicaram o significado de cada versículo em relação com isso. Eles não estavam, portanto, impondo um sistema externo, mas elucidando o significado interno, que é (afinal de contas) o que se espera de um bom comentarista. B ibliografia , J. [C a l v in o ]. R om ans (London: Oliver and Boyd, 1960). ______ . R om anos. Tradução de Valter Graciano M artins (São José dos Campos: Fiel, 2014). Tradução de: Romans. C r a n f ie l d , C. E. B. R om ans (Edinburgh: T. and T. Clark, 1975,1979). 2 vols. ______ . C om entário d e Romanos. (São Paulo: Vida Nova, 2005). Edição resumi­ da de: Romans L u t e r o , M . L ectures on R om ans, Works 25 (St Louis: Concordia, 1972). P a r k e r , T. H. L. C om m entaries on R om ans 1532-1542 (Edinburgh: T. and T. Clark, 1986). C a l v in

Segunda parte O MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO

Os cinco capítulos nesta seção tratam do desenvolvimento da crítica histórica, nome comumente dado a um método específico de interpretação bíblica que confere importância primordial ao contexto histórico em que os textos foram originalmente redigidos e depois editados, desenvolvidos e complementados. Os que praticam a crítica histórica muitas vezes atacam a exegese de épocas anteriores como não científica e a ignoram, com exceção de vislumbres rápidos da tradição antioquena na antiguidade e dos humanistas da Reforma. Os opo­ nentes da crítica histórica, em contrapartida, muitas vezes ficaram tentados a considerá-la um pesado ataque à tradição teológica da igreja, que se fundamenta no que eles equivocadamente chamam de hermenêutica “pré-crítica”. Esses juízos opostos refletem as dificuldades que o método histórico-crítico enfrentou para se estabelecer como norma em estudos bíblicos. Durante muito tempo, ele foi combatido tanto pela igreja quanto pelas instituições estatais, e historiadores simpatizantes de seu desenvolvimento consideram seus pioneiros como mártires que deram a vida em favor de sua causa. Os que se posicionam do outro lado escrevem a mesma história da perspectiva de uma série de batalhas perdidas, em que os baluartes da ortodoxia, um após o outro, sucumbiram à influência corrosiva da abordagem crítica, tornando-se párias na periferia da instituição acadêmica. O fato de convicções religiosas profundamente arraiga­ das estarem envolvidas nessa disputa faz com que as emoções falem alto, e ainda hoje é difícil encontrar uma discussão desapaixonada do tema. O método histórico-crítico parte da convicção de que é necessário com­ preender qualquer texto ou movimento religioso em seu contexto original. Os humanistas da Renascença aceitaram esse princípio, mas o aplicaram com pouca consciência dos efeitos que o desenvolvimento histórico teve na tradi­ ção emergente. Por exemplo, por mais críticos que Erasmo ou Calvino possam ter sido, eles tiveram pouca dificuldade para aceitar que Moisés era o autor do Pentateuco. A ideia de que Moisés viveu em uma época e em uma sociedade em que a composição desse documento teria sido impossível nunca lhes ocorreu.

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Eles não teriam sido hostis à ideia de que Moisés usou fontes anteriores, nem lhes teria causado incômodo pensar que outras mãos fizeram alguns acréscimos posteriores, como o relato da morte de Moisés no final de Deuteronômio, mas, da perspectiva humanista, a essência do produto final foi dele, e não havia ne­ nhuma razão por que não deveria ter sido. O surgimento do método histórico-crítico mudou tudo isso. Anomalias textuais que haviam sido ignoradas ou escusadas por outras gerações agora se tornaram pistas essenciais para tentar reconstruir a evolução histórica tanto do texto das Escrituras quanto da religião que ele proclamava. Cresceu a suspeita de que nem tudo era o que parecia, em especial no Antigo Testamento. Por trás do monoteísmo autoevidente do presente, os textos podem ter camadas de um politeísmo mais primitivo, que desde então ficou obscurecido. Israel não era tão único quanto sua história oficial faz crer; ele fazia parte de uma cultura do Oriente M édio que pode ser identificada pelo olho crítico. O que gerações an­ teriores atribuíram à revelação divina poderia ser explicado como um processo evolutivo que tinha paralelos em outras culturas, mesmo que Israel tenha se desenvolvido mais que a maioria. Obviamente, se Israel não era único e suas afirmações sobre a inspiração di­ vina das Escrituras eram falsas ou inverificáveis, sua religião também não podia fazer nenhuma afirmação especial, e foi isso que produziu uma colisão frontal com a igreja. A crítica histórica começou a sugerir que a fé do povo de Israel se desenvolveu com base em uma forma de religião muito mais rudimentar (e mais comum), traços da qual poderiam ser encontrados em toda a Bíblia. O princípio do sacrifício expiatório, por exemplo, passou a ser considerado um resquício de um culto primitivo, que era inconsistente com o monoteísmo filosófico de uma época posterior. A coexistência das duas coisas foi considerada irracional; no desenvolvimento da verdadeira religião, a igreja deveria purificar suas doutrinas e práticas removendo esses resquícios (ou acréscimos de outras fontes). O método histórico-crítico, assim, imediatamente adotou objetivos teo­ lógicos — ou talvez seja mais exato dizer que aqueles que tinham objetivos teológicos adotaram com toda rapidez o método histórico-crítico. Não importa como se olhe para isso, os dois fenômenos certamente ocorreram juntos, e foi somente no século 19 que estudiosos teologicamente ortodoxos conseguiram demonstrar que poderiam usar técnicas da crítica histórica sem alterar sua posição doutrinária. No entanto, muitos estudiosos continuaram acreditando que uma teologia conservadora necessariamente tem um efeito negativo sobre a liberdade e integridade acadêmicas. Os conservadores, portanto, esforçaram-se

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perante a necessidade de demonstrar suas credenciais acadêmicas a uma comu­ nidade acadêmica cética, sem perder a confiança de suas igrejas — e essa não era uma tarefa fácil. A crítica histórica fez seu primeiro aparecimento em meados do século 17 e lutou por reconhecimento durante mais de duzentos anos. Aproximadamente em 1850, ela havia se estabelecido na Alemanha, e se tornou comum no mun­ do de fala inglesa em cerca de 1890, mas continuou encontrando uma clara oposição conservadora durante grande parte do século 20. Por volta de 1945, no entanto, praticamente todos os estudiosos da Bíblia haviam aceitado seus princípios, embora alguns ainda continuassem extraindo conclusões conserva­ doras desses princípios. O método histórico-crítico havia triunfado e se tornado consenso em círculos acadêmicos. Na época, não havia motivo para pensar que essa situação não continuaria por tempo indefinido, mas justamente quando a crítica histórica finalmente triunfou, ela começou a ser questionada — e não somente por conservadores. Desde cerca de 1970, exigiu-se cada vez mais uma reavaliação do estudo erudito bíblico, parcialmente porque o método histórico-crítico parecia estar perdendo a força e parcialmente porque tinha pouco impacto fora do mundo acadêmico, exceto talvez para afastar pessoas da igreja. Em uma época em que a ciência nunca havia sido tão valorizada, o estudo acadêmico das Escrituras estava sendo visto cada vez mais como algo irrelevante para as necessidades espirituais e so­ ciais da comunidade cristã. Portanto, seria possível que a crítica histórica fosse um método equivocado para ser usado na leitura da Bíblia? Havia alternativas que poderiam ser defendidas com integridade acadêmica? Ainda é muito cedo para dizer se essa nova autocrítica será dominante, mas ela é tão comum que merece uma seção dedicada a ela. Agora é possível examinar o método histórico-crítico com uma objeti­ vidade que até recentemente não existia e que ainda muitos profissionais do estudo da Bíblia acham difícil aceitar. Pode ser muito cedo para afirmar que o método chegou ao fim; afinal de contas, ele ainda é dominante em univer­ sidades de toda parte e muito produtivo em sua pesquisa. M as também era possível dizer o mesmo das ortodoxias conservadoras do final do século 17, que para seus contemporâneos parecia ser fixa e imutável, bem como acade­ micamente produtiva. Não podemos excluir a possibilidade de que, do mesmo modo que essas ortodoxias definharam e morreram no espaço de uma geração, também a ortodoxia atual poderá ruir com uma velocidade que hoje dificil­ mente se pode imaginar. O que não podemos prever é se (ou quando) ela será

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substituída por uma nova ortodoxia acadêmica ou se estamos entrando em uma fase de pluralismo acadêmico (assim como religioso) em que se perm itirá a coexistência de diferentes abordagens, incluindo o método histórico-crítico. Por enquanto, podemos somente analisar o que aconteceu até agora e aguardar o que o futuro trará.

6 O INÍCIO DO MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO O período e o tema A crítica histórica da Bíblia surgiu na chamada “Idade da Razão”, que pode ser datada entre o fim da Guerra dos Trinta Anos (1648) e a erupção da Revolução Francesa (1789). Foi uma época em que o ph ilosophe substituiu o teólogo como fonte de toda a sabedoria e o Iluminismo se tornou a ordem do dia. Membros da elite intelectual pertenciam a uma “república das letras” e circulavam livremente pelas várias cortes reais, esferas nas quais o francês estava substituindo o latim como idioma universal da cultura e diplomacia. O melhor modo de compreender a história intelectual do período é em associação com os países em que se desenvolveu. A Grã-Bretanha veio primeiro, talvez porque os anglicanos tivessem uma necessidade especial de justificar sua posição teológica com fundamentos racionais e históricos. O ceticismo britâni­ co logo foi adaptado pelos principais pensadores franceses da época e ajustado para o consumo europeu. Assim, foi o liberalismo britânico que penetrou na Alemanha, onde foi bem recebido. Por volta de 1750, o pensamento iluminista estava morrendo em seu país de origem, mas na Alemanha havia criado raízes e estava prestes a produzir uma revolução intelectual. O estudo acadêmico da Bíblia durante esse período foi principalmente exercido nas áreas dessas três línguas, mas as contribuições de países menores, notavelmente da Holanda, não podem ser ignoradas. Enquanto obras teológicas continuaram sendo escritas em latim, a erudição holandesa competiu com suas contrapartes europeias em pé de igualdade; somente quando isso cessou, no decorrer no século 18, foi que outros europeus deixaram de seguir o modelo intelectual holandês. Talvez tenha sido por isso que o uso do latim se prolongou em países menores como esses. Na Inglaterra, o Acordo Elisabetano de 1559 tentou incluir a maior variedade possível de opiniões teológicas na igreja. A lógica da abrangência teoricamente

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encorajou a tolerância, mas na prática as visões diversas não conseguiram conviver facilmente. Sucessivos regimes britânicos impuseram suas formas de ortodoxia e perseguiram aqueles que discordavam delas — sempre um grupo numeroso. Somente após 1688 começou a haver certo grau de tolerância, que permitiu a expressão de visões divergentes de modo relativamente aberto. Essas visões divergentes eram de dois tipos claramente distintos. De um lado, havia críticos racionalistas que se opunham a qualquer autoridade que não fosse a razão humana. Eles faziam objeções à instituição religiosa, bem como à política, e queriam o máximo de liberdade possível para divergir. De outro, o grupo consistia em não conformistas religiosos que haviam sido expulsos da instituição em 1662. Eles demonstravam uma oposição às autoridades semelhante à dos livres-pensadores, mas por razões diferentes. Eles queriam estabelecer sua própria versão de ortodoxia e atacaram a igreja estatal como corrupta e desencaminhada. Após 1700, no entanto, o não conformismo entrou em declínio. Muitos de seus inte­ grantes se tornaram livres-pensadores, ao passo que outros passaram para a Igreja da Inglaterra. O não conformismo só não desapareceu completamente graças à nova onda pietista, que alcançou a Inglaterra na década de 1720, proveniente da Alemanha. Por volta de 1740, essa realidade havia produzido a conversão de John W esley e levado ao avivamento metodista ou evangélico. Inicialmente, os defensores da ortodoxia protestante tradicional não con­ fiavam nos evangélicos, visto que os últimos preferiam as emoções incertas da experiência religiosa às doutrinas de declarações de fé oficiais, mas em torno de 1800 o entusiasmo religioso se tornou um fator impossível de ser ignorado em grandes denominações. Esse entusiasmo era categórico em sua rejeição da crítica bíblica racionalista, que avançou pouco na Grã-Bretanha até o fim do século 19. A realidade francesa foi mais complexa. Na teoria, a França se tornou o pri­ meiro país a aceitar o pluralismo religioso, quando Henrique IV promulgou o Édito de Nantes (1598), que concedia uma tolerância limitada aos protestantes. Em pouco tempo, porém, essa tolerância foi retirada até que finalmente o próprio édito foi abolido (1685). Isso não extinguiu a divergência intelectual, mas serviu meramente para secularizá-la. Dentro de uma geração, os pensadores franceses estavam na liderança de uma batalha contra o cristianismo, a qual alcançou os círculos mais elevados no país. Eles tinham grande interesse na atmosfera rela­ tivamente liberal da Inglaterra e contribuíram muito para a popularização dos radicais ingleses da época. O mesmo ocorreu com pensadores holandeses, que encontraram um mercado fácil para suas ideias na França, apesar da diferença re­ ligiosa entre os dois países. Ironicamente, na época em que a Revolução Francesa

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irrompeu (1789), a realização principal dos philosophes já havia chegado ao fim. A entronização da deusa Razão em Notre Dame em 1794 foi seu último sus­ piro, e a França logo voltou para um catolicismo ortodoxo, tingido com noções românticas. O liberalismo voltou em meados do século 19, do mesmo modo que na Grã-Bretanha, mas tanto em Paris como em Londres, Oxford e Cambridge não conseguiu se impor com facilidade. Em nenhum dos países ele representou uma tradição contínua de livre pensamento religioso com origem no século 17. As coisas foram bem diferentes na Alemanha. No século 18, todos os ale­ mães instruídos sabiam francês, e um número surpreendente havia estudado na Inglaterra. Livros ingleses circulavam com especial facilidade na cidade de Hanover, que esteve unida à Coroa Britânica de 1714 até 1837, e sua nova Universidade de Gõttingen (fundada por Jorge II em 1734) logo se tornou um centro importante de estudos bíblicos de nível acadêmico. A Alemanha também tinha a vantagem de ser tão descentralizada que a censura de novas ideias era praticamente impossível. Um inglês ou francês que expressasse visões não ortodoxas poderia facilmente ser preso; um alemão precisaria apenas fugir para um principado vizinho, que raramente ficava a mais de algumas horas de viagem. Rivalidades entre princi­ pados e divisões religiosas levaram à criação de um extraordinário número de universidades, em que a teologia — conforme as preferências do governante local — fazia parte essencial do currículo. Isso criou um mercado para novas ideias e uma diversidade intelectual desconhecida em outros países europeus. Enquanto Oxford, Cambridge e a Sorbonne caíram em torpor intelectual, as universidades alemãs fizeram grandes avanços em todas as áreas. Em 1648, a Alemanha estava atrasada e devastada pela guerra, mas em 1800 começou a dominar o mundo acadêmico e estabelecer uma pauta que até hoje tem influência. Durante esse período, o estudo da Bíblia esteve fortemente ligado ao de­ senvolvimento da filosofia ocidental. Os teólogos ortodoxos do período da Pós-Reforma haviam ligado a doutrina da inspiração bíblica a critérios filo­ sóficos para determinar a natureza da verdade. Eles também enfatizavam ser possível basear todo o conhecimento em princípios bíblicos, o que causaria problemas quando a ciência moderna começasse a descobrir evidências em de­ sacordo com os dados da revelação bíblica. Os teólogos da Reforma de modo geral haviam acreditado que as Escrituras e a razão estavam em harmonia, visto que Deus era o autor de ambas. No século 17, em que disputas a respeito da interpretação correta das Escrituras estavam dividindo a igreja, muitos teólogos acreditavam ser possível resolver as questões debatidas apelando-se à razão, que estabelecia um critério objetivo acima e além

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das exigências da política de partidos ou das igrejas. Eles desenvolveram o que chamaram de “ortodoxia racional”, que procurava harmonizar a doutrina básica cristã com as descobertas da ciência natural, e a usaram de forma muito eficaz em debates com aqueles cujo racionalismo era essencialmente antiteológico. Sua abordagem se tornou muito popular e foi apoiada pelos fundadores da Royal Socicty (1660), que acreditavam que a investigação científica poderia colocar fim à maioria das discussões teológicas e fornecer um guia seguro para a verdade. Somente em um estágio posterior, e um tanto para o espanto de racionalis­ tas ortodoxos como John Locke, essa arma se voltou contra a igreja. O século 18 testemunhou um grande debate entre racionalistas que negavam a validade da revelação sobrenatural e racionalistas que afirmavam que a revelação divina das Escrituras era inteiramente racional. Os primeiros se concentravam amplamen­ te na questão dos milagres, que eles consideravam irracionais. Isso naturalmente os levou a negar a veracidade das afirmações das Escrituras, repletas de relatos miraculosos. A negação de milagres obviamente também era uma negação das alegações de Jesus Cristo de ser o Filho de Deus, e, assim, os defensores do racionalismo puro eram inimigos abertos da ortodoxia cristã. Foi nesse clima que outras questões, como discrepâncias no texto bíblico, passaram a ser investigadas com olhar científico. Os críticos racionalistas do cristianismo se apoderaram de todas as sugestões de que a Bíblia pudesse ser menos que totalmente correta como evidências a favor de sua posição. Essa motivação não confessada acabaria colocando o estudo bíblico erudito sob uma suspeita da qual nunca se recuperou plenamente. No fim do século 18, seria justo afirmar que os defensores da teologia ortodoxa se opunham a qualquer tipo de crítica bíblica, que eles classificavam como heresia. Neste capítulo, nosso interesse está em como o estudo crítico surgiu e al­ cançou a maturidade nas universidades alemãs. Começaremos com uma análise dos primeiros racionalistas britânicos, que contribuíram enormemente para a criação do clima de ceticismo em que o estudo crítico mais tarde floresceu, e acompanharemos a história até o momento em que o estudo do Antigo Testamento foi reconhecido como uma disciplina distinta do estudo do Novo Testamento. Por causa da crescente influência do nacionalismo e da tendência de cada país ou região cultural seguir seu próprio caminho, dividiremos nosso estudo desse período de acordo com critérios nacionais, começando com os bri­ tânicos e holandeses, que abriram o caminho para novas ideias, passando pela França, a “câmara de compensação” intelectual da Europa, e terminando com a Alemanha, a nova potência acadêmica no horizonte.

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Os intérpretes e suas obras Os britânicos Tomás Hobbes (1588-1679). De longevidade extraordinária e difícil de ser situado em qualquer dos períodos abrangidos por seus anos de vida, pode-se afirmar com justiça que Hobbes foi o primeiro crítico da Bíblia na era moderna. Sua obra mais famosa foi L eviatã (1651), uma crítica pungente do poder polí­ tico enraizada em conceitos bíblicos e teológicos. Entretanto, durante a leitura percebe-se claramente que Hobbes era ateu, para quem a linguagem religiosa era meramente um veículo de expressão. Ele questiona a autenticidade de partes do Antigo Testamento e tende a negar as atribuições tradicionais de autoria no caso de Moisés e de Salomão, embora seu interesse principal, que era enfatizar que os israelitas estavam sujeitos ao governo da lei (uma observação ligada a acontecimentos políticos de sua época), tenha mitigado os efeitos disso. Ele não hesitou em afirmar que a lei de Deus era válida somente porque estava de acordo com os ditames da razão — um claro sinal de mudança na base da autoridade, que traria importantes conseqüências para o futuro. John W ilkins (1614-1672). Tentou defender o cristianismo contra a crí­ tica de irracionalidade, enfatizando que a Bíblia não é uma fonte de verdades científicas, mas de princípios religiosos. Essa distinção, que se tornaria muito proeminente no racionalismo do século 19, foi considerada por seus contem­ porâneos científicos um importante recurso para a liberdade de investigação, a qual, não obstante, eles também estavam interessados em harmonizar com as afirmações da religião revelada. John Lightfoot (1602-1675). Esse estudioso de hebraico tinha um profundo interesse em estudos rabínicos e na relação de Jesus com o judaísmo contempo­ râneo. Em sua obra principal, H arm ony o f th e fo u r E vangelists a m on g them selves a n d w ith the O ld T estam ent [Harmonia dos quatro Evangelistas entre eles e com o Antigo Testamento] (1644), apontou diversas questões cronológicas que mais tarde se tornariam temas comuns da crítica dos Evangelhos. John Spencer (1630-1693). Outro notável hebraísta, Spencer propôs a te­ oria de que as leis religiosas do Antigo Testamento haviam se desenvolvido no Egito. Foi o primeiro a sugerir que um estudo de religião comparada esclarece­ ria a origem do monoteísmo de Israel. John Locke (1632-1704). Hoje mais conhecido como filósofo, Locke foi um teólogo muito capaz que acreditava que a razão era suprema em todas as questões religiosas. Defendeu sua posição em E nsaio sobre en ten d im en to hum ano

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(1690) e em The reasonableness o f C hristianity [A razoabilidade do cristianismo] (1695). Anglicano ortodoxo, negou compartilhar de ideias deístas dos críticos do cristianismo que o reivindicavam como modelo, mas parece haver pouca dúvida de que sua abordagem racionalista era apropriada para o modo deísta de pensar e de que contribuiu para ele. Locke escreveu uma série de notas e paráfrases de Gálatas, 1 e 2Coríntios, Romanos e Efésios, todas publicadas após sua morte (1705-1707). John M ill ou M ills (1645-1707). Estudioso de destaque do Novo Testa­ mento, cuja edição crítica do Textus receptus foi a primeira a chamar a atenção para versões diferentes em outros manuscritos. Essa obra deu início ao estudo acadêmico moderno do texto do Novo Testamento. Isaac Newton (1642-1727). Hoje considerado o maior matemático de sua época, Newton também foi um teólogo talentoso da escola tradicional da “or­ todoxia racionalista”. Seu P rin cipia m athem atica [Os princípios matemáticos] (1687) estabeleceu a lei da gravidade e afirmou que causa e efeito fazem parte de um só processo. Isso significava que era possível explicar tudo de modo racional, sem recorrer a causas ou autoridades sobrenaturais. Newton acreditava que essa harmonia interna no universo era produto da mente ordenada do Criador e queria afirmar o cristianismo ao invés de negá-lo, mas a tendência inerente de seu pensamento era identificar Deus e Cristo com os conceitos abstratos de eternidade e razão. Suas teorias, portanto, foram mais úteis para os deístas do que para os defensores da fé ortodoxa. Os deístas ingleses. Formavam um grupo diverso de pensadores que não constituíam uma escola de pensamento bem-definida. Antes, representavam uma postura particular de ceticismo para com a Bíblia e o cristianismo. Eles acreditavam que a razão era o único critério da verdade e que grande parte do que se encon­ trava nas Escrituras era irracional. Normalmente se associa a origem do deísmo com o Lorde H e rbe rt de C h e r b u r y (1583-1648), que durante as décadas de 1620 e 1630 realizava reuniões privadas com diversos amigos na propriedade do Lorde Falkland, perto de Oxford. Hoje esse grupo é normalmente conhecido co­ mo Círculo de Great Tew, chamado assim por causa do nome da propriedade do Lorde Falkland. O grupo foi dissolvido quando eclodiu a Guerra Civil em 1642. Charles Blount (1654-1693). Escreveu The oracles o f reason [Os oráculos da razão] (1693), em que mostrou uma postura muito cética em relação à Bíblia, em especial o Antigo Testamento. Afirmou que Deuteronômio, ou grande parte do livro, foi forjado por Hilquias, o sacerdote (c. 622 a.C .), que lhe deu a apa­ rência de uma obra de Moisés.

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John Toland (1670-1722). O deísmo voltou à tona nos escritos de John Toland. Sua obra mais famosa foi C hristianity n ot my.steriom [Cristianismo não misterioso] (1696), em que defendeu a primazia da razão, afirmando, porém, que as Escrituras estavam em harmonia com ela numa relação de subordinação. Toland tinha grande conhecimento dos escritos apócrifos à margem do cristia­ nismo primitivo e, em 1718, publicou N azarenus [Nazareno], em que usou o termo para distinguir o cristianismo judaico do gentílico. Anthony Collins (1676-1729). Collins escreveu diversas obras importantes, das quais a mais notória é D iscourse o f freeth in k in g [Discurso do livre pensar] (1713), em que defendeu os princípios racionalistas do deísmo. Sua obra pos­ terior D iscourse o f the gro u n d s a n d reasons o f the C hristian religion [Discurso dos fundamentos e razões da religião cristã] (1724) esboça a teoria de que os autores do Novo Testamento, por meio de alegorias, adaptaram o Antigo Testamento às afirmações da religião cristã. Ele acreditava que uma interpretação literal do Antigo Testamento defenderia a posição anticristã dos judeus, e não as afir­ mações da igreja, mas ele não desenvolveu essa ideia a ponto de formular uma teologia alternativa. Assim como para a maioria dos deístas, bastava-lhe demolir a ortodoxia predominante, ficando para outros a tarefa de colocar essas ideias em um sistema de pensamento viável. M atthew T indal (1655-1733).Também deísta,Tindal escreveu C hristianity as o ld as th e creation [O cristianismo tão antigo quanto a criação] (1730), em que minimizou a ideia de que o Ser Supremo teria se revelado somente a uma tribo obscura em um canto remoto do mundo. Para ele, o evangelho era equivalente à lei natural, fato que tornava as Escrituras supérfluas. Thomas Woolston (1670-1733). Escreveu D iscourses on the m iracles o f our S aviou r [Discursos sobre os milagres de nosso Salvador] (1727-1729), texto com um pensamento tão desconexo que críticos modernos chegaram a duvidar da sanidade mental do autor. Ao mesmo tempo, no entanto, ele provocou uma reação furiosa de clérigos que o levaram a sério e acabou sendo preso por sua impiedade. Woolston pensava que as histórias de milagres nos Evangelhos eram absurdas e enfatizava a necessidade de interpretá-las como alegorias da união espiritual entre Cristo e o cristão. Seus textos tiveram o efeito de desorientar muitas pessoas anteriormente ortodoxas, e sua obra contribuiu grandemente para a difusão de ideias deístas. Thomas M organ (1680-1743). Foi um áspero oponente dos judeus, a quem culpou pelas adulterações que encontrou na Bíblia. Seu livro, The m o ra lp h ilosopher [O filósofo moral] (1737), contém uma acusação da conduta imoral do

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rei Davi, que ele considerava típica do judaísmo. Ele afirmou que Paulo era um livre-pensador, embora dissesse que o apóstolo, no fim das contas, não havia con­ seguido libertar o evangelho da religião natural das garras dos judaizantes. Ele também acreditava que os hereges gnósticos do segundo século eram os verda­ deiros discípulos de Cristo, mas eles foram erradicados por uma igreja apóstata. Thomas Chubb (1679-1749). Negava a verdade literal das Escrituras e critica­ va tanto o Antigo como o Novo Testamento por suas muitas inexatidões. Embora não tenha sido um grande estudioso, foi um escritor talentoso e defendeu visões deístas de modo atraente e envolvente. Sua obra mais conhecida foi The tru egosp el o f Jesus Christ, asserted\ O verdadeiro evangelho de Jesus Cristo, afirmado] (1738), em que defendeu o tipo de cristianismo moralista proposto por Thomas Morgan. Peter A nnet (1693-1768). Geralmente reconhecido como o último dos deís­ tas, seu livro The resurrection o f Jesus exam ined by a m oralphilosopher [A ressurreição de Jesus analisada por um filósofo moral] (1744) apresenta a hipótese de que a ressurreição foi uma fraude perpetrada pelos discípulos após a morte de Jesus. Oponentes dos deístas. Desde o princípio, o pensamento deísta encontrou oposição na Grã-Bretanha. Trabalhando a partir de uma base racionalista seme­ lhante, mas chegando a conclusões diferentes, esses pensadores tentaram provar que o cristianismo é verdadeiro e que as Escrituras são confiáveis, demonstrando que as “contradições” entre a Bíblia e a natureza eram mais aparentes do que reais. Alguns eram filósofos que trabalharam para criar uma teologia natural baseada na razão; outros eram pietistas, cujo principal interesse era enfatizar a natureza sobrenatural das Escrituras. M as quer partissem da fé, quer da na­ tureza, todos eles estavam interessados em alcançar uma harmonia universal arraigada na religião. Em seus dias, esses apologistas tiveram um êxito notável, e seus argumentos se tornaram as respostas comuns ao liberalismo no século 19. M as hoje se questiona a ideia de que eles tenham alcançado tanto êxito assim. Seu argumento principal era que a filosofia não podia responder a todas as perguntas sobre a natureza do universo; e que não havia diferença entre a ciência e a revelação no número de coisas que ambas deixavam sem explicação. M as a ciência estava continuamente fazendo novas descobertas que ajudavam a resolver seus problemas, algo que a revelação era incapaz de fazer; meramente negar a natureza absoluta da ciência natural não necessariamente defendia as afirmações absolutas da revelação. Pelo contrário, isso abria a possibilidade da negação de quaisquer alegações da verdade absolutas. Os platônicos de Cambridge. Constituíam um grupo de filósofos de Cambridge que tentaram basear seu racionalismo nas obras de Platão, e não

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em Aristóteles (como era comum). Opunham-se ao deísmo, que consideravam incapaz de lidar de modo adequado com a dimensão mística da experiência hu­ mana. Os principais representantes dessa escola de pensamento foram R a l p h C u d w o r t h (1617-1685), H e n r y M o re (1614-1687), J ohn S m it h (16161652) e B e n ja m in W h ic h c o t e (1609-1683). D aniel W hitb y (1638-1725). Eleito membro daT rinity College, em Oxford, em 1664, W hitby se tornou uma importante voz de liderança da ortodoxia mo­ derada na Igreja da Inglaterra. Sua obra principal no campo dos estudos bíblicos foi A com m en tary on the Gospels a n d E pistles [Comentário dos Evangelhos e das epístolas] (1703), que continuou sendo reimpresso durante 150 anos. Ele acre­ ditava que os autores das Escrituras foram divinamente inspirados e preservados de erros fundamentais, mas estava disposto a aceitar que nem tudo na Bíblia foi ditado pelo Espírito Santo. Ele defendeu os milagres bíblicos com bases histó­ ricas e enfatizou a origem apostólica de todos os livros do Novo Testamento. Seus escritos podem ser considerados característicos da visão da Bíblia própria do establishm ent da época, anterior ao início da crítica histórica. Samuel Clarke (1675-1729). Um dos primeiros oponentes dos deístas, Clarke, não obstante, mostrava certa simpatia para com as visões deles. Seu livro The S cripture doctrin e o f the T rin ity [A doutrina bíblica da Trindade] (1712) questiona a base bíblica da maioria das doutrinas cristãs, e ele foi acusado de inclinações unitárias. Sua trajetória demonstra a dificuldade de conciliar o pen­ samento racionalista com a doutrina cristã tradicional. Richard Bentley (1662-1742). Proeminente classicista e defensor da orto­ doxia contra os deístas, Bentley escreveu A confutation o f atheism [Uma refutação do ateísmo] (1692), contra o deísmo em ascensão na época, e Remarks upon a late discourse o f freeth in k in g [Observações sobre um discurso tardio do livre pensar] (1713), uma impetuosa demolição da erudição descuidada de Anthony Collins. Bentley prestou uma grande contribuição para o desenvolvimento da crítica textual, pelo que ainda é lembrado. W illiam W histon (1667-1752). Esse matemático de Cambridge ficou inco­ modado com a inexatidão das citações do Antigo Testamento presentes no Novo Testamento. Propôs a teoria de que as citações do Novo Testamento são as origi­ nais e que os judeus mais tarde adulteraram o Antigo Testamento para deixá-lo menos favorável ao raciocínio cristão. As posições de W histon foram facilmente refutadas por Anthony Collins, mas sua impressão de que a tradição massorética da Bíblia não é a única e de que existiam na antiguidade textos mais próximos do texto do Novo Testamento foi confirmada pelas descobertas de Qumran.

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Joseph Butler (1692-1752). Autor do importante A nalogy o f R eligion [Analogia da religião] (1736), escrito como um ataque frontal ao deísmo, Butler apelou aos fatos tanto da natureza quanto da revelação para defender seu ar­ gumento de que as duas coisas tinham uma sólida inter-relação. Sua obra foi coerente o bastante para refutar os deístas e influenciou gerações até a presente época. Butler também foi um forte oponente de John Wesley, cuja natureza avivamentista de uma religião “entusiástica” ele considerava irracional e perigosa. Thomas Sherlock (1678-1761). Oponente conservador de todas as inova­ ções na igreja e no estado, escreveu D iscourses on the use a n d in ten t o f prop h ecy [Discursos sobre o uso e o propósito da profecia] (1726) como uma vigorosa resposta ao ceticismo de Collins. Sherlock postulou a perfeição absoluta de Deus, por um lado, e a depravação total da humanidade, por outro, afirmando que a ligação entre essas duas coisas não está na filosofia, mas na profecia bí­ blica. A profecia é uma mensagem de esperança para os que estão perecendo no pecado e na incredulidade, mas é possível testemunhar seu cumprimento na totalidade da história bíblica. Ao concentrar o foco no pecado e na depravação humana, Sherlock apontou para uma das maiores fraquezas dos deístas: seu otimismo em relação à natureza humana e às possibilidades da razão. N athaniel Lardner (1684-1768). Dissidente presbiteriano, a principal re­ alização de Lardner foi The credibility o f the go sp el history [A credibilidade da história do evangelho], cujas duas primeiras partes vieram à lume em 1727 e o restante em 1757. Nessa obra, ele se dedicou a refutar o ceticismo de Thomas Woolston, apresentando explicações históricas convincentes para as aparentes discrepâncias que Woolston havia apontado. Sua obra foi essencialmente con­ servadora, mas é importante observar que ele empregava as mesmas técnicas racionalistas de seus oponentes deístas, o que demonstra como o pensamento do século 18 havia sido profundamente afetado pelo Iluminismo. Alexander Cruden (1699-1770). Esse livreiro escocês que viveu em Londres é conhecido por sua C oncordance [Concordância] (1737), obra que passou por diversas reimpressões, às vezes em formato abreviado, e até hoje é usada. David H ume (1711-1776). Famoso filósofo escocês, Hume foi herdeiro da tradição deísta, mas a superou com um nível maior de sofisticação. Foi propo­ nente da religião natural e o mais famoso crítico dos milagres. Escreveu seu ensaio sobre o tema entre 1735 e 1737, mas adiou sua publicação durante dez anos por causa da recepção que suas ideias radicais provavelmente teriam. John Brown de H addington (1722-1787). Pregador escocês bem conheci­ do, escreveu The self-in terp retin g B ible [A Bíblia autointerpretativa] (1778), que

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é notável por sua tendência de comparar uma parte das Escrituras com outras, prenunciando as técnicas posteriores de referências cruzadas. Essa obra, que até certo ponto foi uma adaptação de seu texto anterior, D iction ary o f the H oly B ible [Dicionário da Bíblia Sagrada] (1769), tornou-se extremamente popular e foi bastante usada por mais de um século após sua morte. Robert Lowth (1710-1787). Famoso por sua grande obra, L ectures on the sa cred p oetry o f the H ebrew s [Preleções sobre a poesia sagrada dos hebreus], publi­ cada em latim em 1753 (traduzida para o inglês em 1787 por Richard Gregory). Lowth descobriu que grande parte do Antigo Testamento, em especial Salmos, estava em forma de versos e isso alterou profundamente sua interpretação do texto. Para ele, a poesia era a forma mais antiga e mais adequada de revelação divina, o que o levou a atribuir antiguidade e autoridade maiores às partes poéti­ cas do Antigo Testamento. Sua obra logo estava circulando na Alemanha, onde teve grande influência, e é possível considerar Lowth um importante nome do movimento romântico do final do século 18. Em 1779, ele produziu uma nova tradução de Isaías, em que usou os últimos métodos críticos para emendar o texto com base em conjecturas. Essa obra foi traduzida na Alemanha por J. B. Koppe (1780), que observou em sua introdução que os capítulos posteriores do livro datam do Exílio babilônico. Desse modo, a teoria de que há dois livros de Isaías circulou pela primeira vez entre o público leitor instruído. Benjam in Kennicott (1718-1783). Hebraísta de grande expressão e cola­ borador próximo de Lowth, cujas obras ele comentou, Kennicott envolveu-se com o estudo sistemático dos manuscritos do Antigo Testamento. Provou que o número de versões diferentes desses manuscritos era tão pequeno que isso não tinha real importância para o estudo do Antigo Testamento. Suas conclusões permaneceram válidas até a descoberta dos manuscritos de Qumran em 1947. John W esley (1703-1791). Famoso pregador e evangelista, W esley tinha uma visão conservadora da Bíblia, que ele considerava divinamente inspirada e infalível. No entanto, não era avesso à crítica textual e, em 1754, retraduziu a Bíblia (embora sua versão tenha sido impressa só em 1775). Ele também publi­ cou E xplanatory notes upon the N ew T estam ent [Notas explicativas sobre o Novo Testamento] (1755), que passou por várias reimpressões e teve uma edição em 1983. Em sua obra fica nítida a dependência de J. A. Bengel, mas isso não enfra­ queceu seus propósitos teológicos. W esley interpretava a Bíblia de acordo com a “analogia da fé”, método que o levou a encontrar referências à justificação e à santificação em quase todas as páginas e que também o influenciou a traduzir o texto sem colocar ênfase na eleição e na predestinação, ideias às quais se opunha.

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Alexander Geddes (1737-1802). Se alguma vez houve uma anomalia, esta foi Geddes, católico romano escocês, versado nas teorias críticas de J. G. Eichhorn e pioneiro da crítica literária do Antigo Testamento. Ele foi suspenso do sacerdócio em 1793 por causa de suas traduções da Bíblia, que tendiam a uma interpretação mítica de Gênesis. Geddes adotou uma abordagem raciona­ lista dos elementos sobrenaturais no Antigo Testamento e se recusou a aceitar que Deus poderia ter ordenado as matanças “imorais” atribuídas a ele no texto. Sua obra foi muito lida na Alemanha e, em contrapartida, estabeleceu um im ­ portante canal para a introdução das ideias críticas alemãs na Grã-Bretanha. Os unitaristas. Foram os principais herdeiros da tradição deísta e, no sécu­ lo 1 8 , preservaram um interesse por ideias críticas. Considerados hereges aos olhos da maioria dos cristãos britânicos, eles, assim como suas ideias, não foram bem recebidos, tendo provavelmente contribuído não só para que as princi­ pais denominações não levassem a sério a erudição crítica, mas também para sua divulgação. Seus principais representantes foram W i l l i a m F r e n d ( 1 7 5 7 1 8 4 1 ) , R o b e r t R o b in s o n ( 1 7 3 5 - 1 7 9 0 ) , G e o r g e D y e r ( 1 7 5 5 - 1 8 4 1 ) , todos de Cambridge; e J o s e p h P r i e s t l y ( 1 7 3 7 - 1 8 0 4 ) , T h e o p h i lu s L i n d s e y ( 1 7 2 3 1 8 0 8 ) ,T h o m a s B e ls h a m ( 1 7 5 0 - 1 8 2 9 ) c T h o m a s B e d d o e s ( 1 7 6 0 - 1 8 0 8 ) .

W illiam Paley (1743-1805). Esse filósofo-teólogo defendeu a veracidade do cristianismo em E viden ces o f C hristianity [Evidências do cristianismo] (1794), e em sua grande obra N atural th eology [Teologia natural] (1802) ar­ gumentou que era possível defender a bondade de Deus com base na ordem natural. Fundamentando-se no desígnio do universo, Paley defendeu que Deus necessariamente é um criador racional e benevolente. Ele parece ter sido atraído à heresia unitarista, mas de modo geral foi defensor da ortodoxia anglicana e muito citado por outros conservadores em debates no final do século 19. Thomas Scott (1747-1821). O mais famoso exegeta do Avivamento Evangélico, cujo C om m entary on th e B ible [Comentário da Bíblia] foi publicado em trechos semanais entre 1788 e 1792. Ele ignorou questões críticas e se con­ centrou em lições espirituais contidas nas Escrituras. Sua abordagem em geral era muito amável e pessoal, e sua obra se tornou muito popular.

Os holandeses A interpretação bíblica holandesa no século 17 foi marcada por conflitos entre calvinistas e arminianos pelo controle da igreja. A vitória dos calvinistas no Sínodo de Dort (1618-1619) decidiu a questão da ortodoxia, mas essa vitória

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não pôde ser imposta com o mesmo rigor de outros lugares, de modo que vozes dissidentes desfrutaram de uma liberdade desconhecida no restante da Europa. Isso foi bem importante no segmento editorial, em que a Holanda foi líder mundial, e muitas obras novas e radicais da Inglaterra e da França foram publi­ cadas em edições holandesas. Depois da expulsão dos huguenotes em 1685, a Holanda se tornou um importante centro do protestantismo francês, e o debate com os teólogos católicos de Luís XIV foi conduzido a partir dali. Konradvon der Vorst (Vorstius) (1569-1622). Alemão de Colônia, Vorstius sucedeu a Armínio como professor de teologia em Leiden em 1610. Sua obra racionalista T ractatw theologicus de Deo, siv e de natura et attributis D ei [Tratado teo­ lógico a respeito de Deus, ou a respeito da natureza e dos atributos de Deus] (1610) levou-o a ser repreendido pelos calvinistas e censurado por Jaime I da Inglaterra, entre outros. M ais tarde foi condenado como herege e excluído em 1619. Escreveu um comentário das epístolas de Paulo, publicado após sua morte (1631). Hugo Grócio (de Groot) (1583-1645). Internacionalmente conhecido co­ mo jurista, Grócio também foi um proeminente teólogo de firmes princípios arminianos. Sua obra mais importante foi D e v erita te christianae religion is [Da veracidade da religião cristã] (1622), que escreveu em Paris. Perto do fim da vi­ da, publicou A nnotationes in Vetus etN ovu m T estam entum [Notas sobre o Antigo e o Novo Testamentos] (1644), em que rejeitou a teoria reinante da inspiração divina das Escrituras e enfatizou que era necessário interpretar a Bíblia de acor­ do com a crítica filológica estabelecida, ainda que com certa consideração pela tradição eclesiástica. Sua interpretação do Antigo Testamento se baseava no que chamava de o “sentido primário” do texto, que para ele dizia respeito ao sentido pré-cristão. Assim, ele interpretou passagens como Isaías 53 à luz da própria vida do profeta, e não como profecias do Messias. Sua perspectiva secular o levou a interpretar o texto bíblico no contexto da história contemporânea, uma abordagem que nessa época era uma novidade espantosa. Gerhard Jan Vossius (1577-1649). Alemão, estudou em Leiden, onde ficou bastante amigo de Grócio. Foi mais circunspecto em sua teologia, mas foi acusado de arminianismo e obrigado a se demitir temporariamente em 1619. M ais tarde, tornou-se colaborador próximo do arcebispo Laud e, em 1629, foi feito prebendário não residencial da Catedral de Cantuária. Sua abordagem da Bíblia era semelhante à de Grócio. Isaak Vossius (1618-1689). Filho de Gerhard Jan Vossius, foi para a Inglaterra em 1673, onde se tornou notável defensor da ortodoxia contra o ra­ cionalismo do francês Richard Simon.

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Baruch (Benedito) Espinoza (1632-1677). Judeu de tendências racionalis­ tas, valeu-se da liberdade relativa da Holanda para publicar suas visões críticas. Negou a inspiração divina das Escrituras e insistiu em que não se deve usar a Bíblia como fundamento de todo o saber. Junto com seus contemporâneos ra­ cionalistas na Inglaterra, afirmou que a religião nunca deve contradizer a razão, que lhe é superior. Na crítica bíblica, negou a autoria mosaica do Pentateuco e defendeu que a doutrina da eleição era meramente uma projeção do orgulho e egoísmo humanos, o completo oposto da verdadeira religião. Ele, portanto, opunha-se profundamente à base religiosa da existência de seu próprio povo, bem como ao calvinismo predominante na época. Campegius V itringa (1659-1722). Calvinista ortodoxo, cuja exegese foi marcada por originalidade e perspicácia incomuns. Sua obra mais importante foi um comentário de Isaías (1714-1720), mas ele também escreveu um comen­ tário de Apocalipse (1705), que apresentou o milenarismo a círculos pietistas, nos quais se tornou muito popular.

Os franceses No século 17, a cena teológica francesa era um campo de batalha entre protes­ tantes e católicos em um grau desconhecido em outros lugares. A revogação do Édito de Nantes (1685) teve um efeito traumático na França, do qual o estudo da Bíblia nunca se recuperou. João M orin (M orinus) (1591-1659). Protestante que se tornou católico em 1617, foi antissemita ferrenho e defendeu que o texto hebraico do Antigo Testamento estava completamente errado. Ao longo de sua vida polêmica, per­ cebeu certos problemas no texto que mais tarde se tornariam temas de estudo crítico, mas os ataques perversos aos judeus e sua igualmente bizarra preferência pela Septuaginta, apesar das pesquisas da época, tornam sua obra mais uma curiosidade que qualquer outra coisa. Luís Cappel (Cappellus) (1585-1658). Protestante francês, opôs-se tanto às teorias da inspiração extremamente ortodoxas de Francis Turretin quanto ao ceticismo de M orin em relação ao texto hebraico. Cappel foi um dos primeiros a colocar o estudo da Bíblia hebraica em sólido fundamento crítico, enraizado em estudo e avaliação cuidadosos das diferentes versões textuais. Ele não aceitou a ideia então prevalecente de que diferenças no texto eram resultado de deturpa­ ção judaica (deliberada), mas, em vez disso, considerou-as resultado natural da debilidade humana no longo processo de cópias.

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Isaque de la Peyrère (c. 1600-1676). Protestante francês que mais tarde se converteu ao catolicismo, de la Peyrère desenvolveu a convicção da existência de “pré-adamitas”, uma espécie de raça proto-humana, a fim de explicar problemas como onde Caim conseguiu uma esposa. Foi julgado por heresia e preso em Bruxelas, mas foi solto quando abjurou. Pedro Bayle (1647-1707). Protestante francês exilado na Holanda, Bayle publicou um D iction naire historique e t critique [Dicionário histórico e crítico] (1697), em que tentou remover a religião completamente da esfera do discurso racional. Seus ataques à imoralidade de Davi, que supostamente era o ungido do Senhor, causaram uma forte impressão em uma geração inclinada a confundir espiritualidade com moralidade. Seus argumentos foram rapidamente adotados pelos deístas ingleses, que fizeram uso considerável deles. Pedro Jurieu (1637-1713). Polemista protestante, do exílio na Holanda escreveu fortes críticas ao catolicismo e a todas as formas de ortodoxia religio­ sa, exceto contra seu calvinismo radical. M ais controversista do que pensador, ele não pareceu compreender que era possível voltar seus argumentos contra suas próprias visões com a mesma facilidade que ele as voltava contra outros. Sua H istoire critique des dogm es et des cultes [História crítica dos dogmas e das religiões] (1704) contribuiu muito para introduzir o pensamento crítico na co­ munidade protestante francesa. Ricardo Simon (1638-1712). Foi o maior estudioso da Bíblia na França do século 17 e um liberal proeminente, apesar de seu professo catolicismo. Foi pu­ pilo de M orin, de quem parece ter adquirido a postura cética em relação ao texto hebraico, mas rejeitou a preferência de M orin pela Septuaginta. Ele acreditava que o Antigo Testamento era uma compilação baseada em trabalho anterior realizado por escribas públicos, que existiram, segundo ele, desde épocas antigas entre os judeus. Sua H istoire critiq u e du Vieux T estam ent [H istória crítica do Antigo Testamento] (1677) foi condenada, e Simon foi exilado passando a viver em áreas rurais. Simon acreditava que o Antigo Testamento era produto de uma tradição contínua e associou essa convicção à doutrina católica da relação entre tradição e Escrituras, enfatizando que ambas eram muito parecidas. Ele afirmava que por trás do texto hebraico de hoje existe uma longa pré-história de documentos distintos, crença que certamente o torna um dos mais importantes precursores dos estudos críticos modernos. João Le Clerc (C lericus) (1657-1736). Protestante francês em exílio na Holanda, Le Clerc redigiu sua obra crítica na forma de uma carta aberta a Richard Simon. Ele fez objeção à teoria do desenvolvimento textual de Simon

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ao afirmar que se M oisés foi o fundador da tradição dos escribas, o Pentateuco não pode conter fontes anteriores. Apontou para diversos pontos fracos na teoria de Simon e apresentou explicações alternativas, mas, a exemplo de Simon, também dizia que M oisés não era o autor do Pentateuco. Em vez disso, sugeriu que ele era obra de um sacerdote desconhecido, que 2Reis 17.28 afirma ter regressado do Exílio na Sam aria (c. 720 a.C .). Essa foi a maneira de Le Clerc explicar como o Pentateuco poderia ser comum tanto aos judeus quanto aos samaritanos. Ele também sugeriu que os Evangelistas haviam usa­ do fontes anteriores, ideia desenvolvida pela prim eira vez uma geração depois na Alemanha. João Afonso Turretin (1671-1737). Filho do extremamente ortodoxo Francis Turretin, Jean-Alphonse pertenceu à escola de ortodoxia racionalista que preparou o caminho para a introdução do método crítico na geração seguinte. Em especial, ele enfatizou ser necessário interpretar a Bíblia com exatamente os mesmos critérios aplicados a qualquer outro livro e que a razão era o único juiz da exegese sólida. Turretin é uma importante figura de transição, cujas visões foram levadas aos extremos mais radicais uma geração após sua morte. Agostinho Calm et (1672-1757). Esse estudioso católico francês escreveu um comentário de toda a Bíblia (1724). Foi moderadamente ousado em al­ gumas de suas conclusões, em especial na sugestão de que o Livro da Lei que Hilquias encontrou no Templo era Deuteronômio 28— 31. Essa ideia teve rela­ tiva aceitação no século 18 até ser finalmente abandonada. João A struc (1684-1766). Médico da corte de Luís XV, foi um teólogo amador e discípulo de Richard Simon. Durante muito tempo, foi considerado o primeiro a afirmar que o Pentateuco continha documentos distintos, E (eloísta) e J (javista), embora pesquisas modernas tenham revelado que essa distinção pertence a Henning Bernhard W itter, pastor desconhecido de Hildesheim, que publicou suas descobertas em 1711. No entanto, isso não tem nenhum peso na história da crítica bíblica, visto que foi a descoberta de Astruc que marcou o início de um desdobramento que atingiria o ápice mais de um século depois, com a hipótese documentária de Julius Wellhausen. Francisco M aria Arouet (Voltaire) (1694-1778). Embora não tenha sido um estudioso da Bíblia, Voltaire foi um poderoso crítico dos elementos sobrena­ turais e “irracionais” na Bíblia, que, na sua opinião, desacreditavam o cristianismo completamente. Foi graças a ele que a obra dos deístas ingleses e seus pares foi reciclada e circulou por toda a Europa. Obviamente, Voltaire não mencionou os filósofos e apologistas que se opunham ao pensamento deísta, de modo que

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a Europa, sobretudo a Alemanha, recebeu um panorama bastante unilateral da cena teológica britânica. Charles Chais (1701-1788). Huguenote francês, foi pastor em H aia e es­ creveu diversos comentários do Antigo Testamento, em que defendeu soluções tradicionais para problemas críticos. Dialogou com a literatura deísta da época, e seus argumentos contra eles mais tarde influenciaram estudiosos alemães como M ichaelis.

Os italianos Giovanni Bernardo de Rossi (1742-1831). Estudioso católico romano que en­ sinou em Parma de 1769 até 1821, foi especialista em hebraico e escreveu muito sobre questões lingüísticas. Envolveu-se em controvérsias com judeus a respei­ to da interpretação do Antigo Testamento. Reconheceu problemas textuais e tentou resolvê-los em uma estrutura dogmática tradicional, mas é considerado “liberal” no ambiente católico de sua época.

Os alemães Phillipp Jacó Spener (1635-1705). M aior líder do pietismo, movimento devocional que se opunha à rigidez racionalista da “ortodoxia” protestante da época. Sua principal obra foi P ia desideria [Exigências piedosas {M udança p a ra o f u ­ turo: p ia desideria)\ (1675), em que defendeu uma interpretação cuidadosa das Escrituras baseada no significado literal e original do texto e livre o máximo possível de pressuposições dogmáticas. No entanto, Spener era conservador e aceitava os esboços principais do ensino clássico da Reforma. Também publicou um comentário de Gálatas (1697), livro que, insistia ele, precisava ser interpre­ tado em seu contexto histórico. August Hermann Francke (1663-1727). Discípulo de Philip Spener, foi um dos mais importantes representantes da interpretação bíblica pietista. Ele acreditava ser necessário interpretar cada passagem das Escrituras no contexto do todo, que era a pessoa e a obra de Cristo. A exegese histórico-gramatical era a chave para a compreensão mais profunda e interna do texto, que automatica­ mente levaria a uma conduta santa. Suas principais obras foram M anducatio a d lectionem Scripturae Sanctae [Guia para a leitura das Escrituras Sagradas] (1693), E in leitu n g zu r L esung d er H eiligen S chrift [Introdução à leitura das Escrituras Sagradas] (1694),E in fàltiger U nterricht [Instrução simples] (1694) e Christus, d er K ern H eiliger Schrift [Cristo, o âmago das Escrituras Sagradas] (1702).

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Johann Jakob Rambach (1693-1735). Discípulo de Semler e dos primeiros pietistas, está junto com Francke e Bengel entre os principais exegetas bíblicos de sua época. Seus primeiros comentários de Rute, 2Crônicas, Neemias, Ester e Eclesiastes foram compilados e publicados como U lteriores annotationes in H agiographa [Notas adicionais sobre as Escrituras Sagradas] (1720). Nesse ano, ele começou a realizar preleções em Jena, mas logo foi para Halle (1723), on­ de publicou sua famosa obra In stitu tion es herm eneuticae sacrae [Instituições da hermenêutica sagrada] (1724). A política acadêmica o obrigou a sair de Halle para Giessen (1731), onde morreu. Rambach também foi um notável poeta e hinógrafo e exerceu uma considerável influência sobre seus alunos, muitos dos quais se tornariam estudiosos proeminentes da geração seguinte. Johann Albrecht Bengel (1687-1752). Pai da crítica textual do Novo Testamento, Bengel começou com a edição de J. M ill, que o incomodava pelo grande número de variantes textuais. Ele as estudou a fim de recuperar sua fé na natureza inspirada do texto e em sua edição fez cuidadosas emendas ao Textus receptus nas ocorrências em que encontrou apoio documentado (e.g., em Erasmo). Seu grande feito, no entanto, foi seu aparato crítico, em que classifi­ cou manuscritos segundo “famílias” e listou as diferentes versões, anotando se eram “superiores” ou não. É possível observar a solidez dos juízos de Bengel com base no fato de que muitas de suas decisões ainda hoje são aceitas pelos críticos textuais. Johann Jacó W ettstein (1693-1754). Suplantou Bengel nos estudos textuais e queria abandonar o Textus receptus completamente. No entanto, foi afastado do ministério por ousar sugerir isso e precisou se contentar com um aparato crítico ainda mais elaborado. W ettstein acrescentou referências cruzadas à literatura clássica e judaica com uma diligência nunca superada. Ao fazê-lo, demonstrou um desejo de interpretar o texto no cenário contemporâneo ao próprio texto, ideia que levou uma geração para se popularizar. Nikolaus Ludwig von Zinzendorf (1700-1760). Principal nome do pietismo após Spener, Zinzendorf se ocupou com o problema do “ateísmo prático”, isto é, a vida cotidiana sem referência à fé e aos valores cristãos. Depois de sua conversão, ele se voltou para a Bíblia como o livro que revelava o Cristo vivo. Opunha-se completamente ao racionalismo, quer em sua forma deísta, quer na forma “ortodoxa”. Isso o fez desafiar a fé “ortodoxa” na inspiração verbal das Escrituras e admitir a existência de erros (menores) no texto sagrado. Ele via esses erros até mesmo como provas da inspiração divina, pois afirmava que o Espírito Santo usa seres humanos falíveis como seus instrumentos. Sua posição

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provocou muita oposição de outros pietistas, notavelmente de J. A. Bengel, em­ bora tenha se mostrado influente mesmo após sua morte. Herm ann Sam uel Reimarus (1694-1768). Escreveu uma crítica extensa ao cristianismo baseando-se amplamente nos escritos de Peter Annet, deísta inglês, mas não a tornou pública. No entanto, G. E. Lessing ouviu a respeito de sua existência, apossou-se dela e publicou parte dela anonimamente como W olfen bü ttelfragm en ts [Fragmentos Wolfenbüttel], (1774-1778). Somente em 1792 foi publicada a versão completa. M uitas vezes se atribui a Reimarus o iní­ cio de uma nova era em estudos bíblicos do Novo Testamento, na qual se tentou encontrar o Jesus “histórico” por trás dos relatos dos Evangelhos, mas essa ava­ liação é muito generosa. Reimarus acreditava que Jesus era um agitador político executado por traição pelos romanos e que seus discípulos haviam inventado sua ressurreição. Suas visões foram logo rejeitadas, mas elas levantaram a questão de quanto dos ensinos de Jesus se reflete na pregação da igreja primitiva e que papel deve ser atribuído a ele na separação entre a igreja e a sinagoga judaica. Essas questões constituiriam temas dominantes no estudo erudito alemão posterior e, nesse sentido, é necessário reconhecer a obra pioneira de Reimarus. G erhardTersteegen (1697-1769). De origem holandesa,Tersteegen se tor­ nou um dos mais famosos pregadores e hinógrafos pietistas alemães. Fazia clara distinção entre a Palavra eterna e interna, que qualquer um poderia apreender em sua alma, e a manifestação temporal e externa dessa Palavra, que era a Bíblia. Lutou constantemente contra a “ortodoxia” da época, que ele acusava de ter transformado a Bíblia em um “papa de papel”. Ele sempre insistia na prima­ zia da Palavra viva, mas não via nenhuma contradição entre isso e o texto das Escrituras. No entanto, a distinção de Tersteegen entre a letra e o espírito das Escrituras seria precursora do liberalismo alemão do século 19. G otthilf Traugott Zachariae (1729-1777). Escreveu B iblische theologie [Teologia bíblica] em 1771, em que tentou relacionar a doutrina cristã a passa­ gens bíblicas de modo tal que pudesse sujeitar a dogmática à crítica com base nas Escrituras. Ele foi pioneiro nessa tentativa, mas não levou em consideração o desenvolvimento histórico da Bíblia e tratou todas as partes como detentoras de igual significado. Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781). Filósofo, autor e livre-pensador alemão, trouxe a obra de Reimarus à atenção do público. Realizou um estudo literário dos Evangelhos e, com base em testemunhos patrísticos a favor da exis­ tência de um evangelho pertencente a um grupo de cristãos judeus, deduziu que os três Sinóticos foram baseados em um original aramaico que depois se perdeu.

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Marcos, por ser mais curto e mais conciso que os outros, supostamente estava mais próximo desse documento original. A hipótese de um original perdido privou os Evangelhos de sua aura de inspiração divina, como pretendia Lessing. Ele deu ao Evangelho de João uma posição superior à dos Sinóticos, embora não tenha levantado a questão de sua confiabilidade histórica. Johann A ugust Ernesti (1707-1781). Professor em Leipzig e autor de The biblical in terp reter [O intérprete bíblico] (1761; T I 1826), Ernesti concentrou sua atenção no Novo Testamento, com a exclusão do Antigo, e insistiu na neces­ sidade de tratar as duas partes separadamente. Sua interpretação era puramente histórica e gramatical e ignorava a tradição teológica da igreja o máximo possí­ vel. No entanto, ele continuou acreditando na inspiração bíblica e não aceitou a ideia de que se deveria ler a Bíblia como qualquer outro livro. Johann Georg H am ann (1730-1788). Alemão que estudou na Inglaterra, onde se converteu por meio do contato com o avivamento evangélico. Ao voltar para a Alemanha, apresentou os escritos de David Hume a Immanuel Kant, desse modo dando uma nova direção ao filósofo. Ele também teve grande in­ fluência sobre J. G. Herder, a quem ensinou em Kónigsberg. Para Hamann, os detalhes críticos do estudo bíblico afundavam em insignificância em compa­ ração com as questões mais profundas da fé, em que a encarnação da Palavra desempenhava um papel central. Desse modo, ele estava próximo das tradições da igreja primitiva e dos reformadores, que liam as Escrituras como o registro escrito de uma voz divina, análogo à encarnação de Cristo. Johann Salomo Sem ler (1725-1791). Com Semler teve início uma nova era de estudos bíblicos. Ele escreveu diversos comentários do Novo Testamento e, em sua formidável obra F ree research on the canon [Livre pesquisa sobre o Cânon] (1771-1775), rompeu com a doutrina da inspiração, passando a uma abordagem puramente histórica da Bíblia. Essa abordagem, que ele desenvolveu em conjunto com J. D. M ichaelis, foi chamada “neologia”. Ele queria que a Bíblia fosse lida em seu contexto original, que ele acreditava fornecer uma base objetiva para determinar seu verdadeiro significado. Semler foi o primeiro a descobrir uma diferença qualitativa entre a massa de manuscritos posteriores do Novo Testamento e os poucos manuscritos mais antigos e mais fidedignos, em­ bora tenha atribuído essa diferença à geografia (os melhores manuscritos eram “ocidentais”; os outros, “orientais”) e não à história da transmissão. Ele também acreditava que havia uma diferença acentuada entre cristianismo judaico e cris­ tianismo gentílico e tentou dividir os livros do Novo Testamento de acordo com a comunidade a que cada um deles pertencia. Semler foi logo acusado de tentar

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destruir o cristianismo, mas se defendeu dizendo que suas pesquisas históricas não tinham nenhuma relação com a fé verdadeira — mais um sinal de quanto ele havia se distanciado da tradição. Johann David M ichaelis (1717-1791). Professor de línguas orientais em Gõttingen, estudou na Inglaterra e revisou o livro de Lowth em 1768. Ele também publicou P araphrases o f the O ld T estam ent [Paráfrases do Antigo Testamento] (1769-1786), In trodu ction to the O ld T estam ent [Introdução ao Antigo Testamento] (1787), que ele não concluiu, In trodu ction to the N ew T estam ent [Introdução ao Novo Testamento] (1750) e C om m entaries on the L aw s ofM oses [Comentários sobre as Leis de Moisés] (1770). Essas obras pas­ saram por várias edições e estabelecem M ichaelis como um dos mais notáveis estudiosos da Bíblia de sua época. M ichaelis continuou onde Semler parou e, na prática, deu início aos estudos rigorosamente históricos dos documentos bíblicos. Ele devia muito a Richard Simon, mas excedeu seu mentor e desen­ volveu a disciplina científica de introdução bíblica. Ao contrário de Semler, ele queria manter a doutrina da inspiração bíblica, mas fez isso de modo peculiar. Em relação ao Novo Testamento, M ichaelis reconheceria como canônicos so­ mente os livros apostólicos, o que excluía Marcos, Lucas, Atos, Tiago, Judas e possivelmente também Hebreus e Apocalipse. Ele também descartou M ateus, dizendo ser o Evangelho uma tradução do aramaico. M ichaelis era heterodoxo em sua teologia, mas não rejeitou a dimensão profética do Antigo Testamento, defendendo sua inspiração. Ele também foi influenciado pelo pietismo e acre­ ditava com firmeza que a Bíblia é um livro que tem poder para mudar a vida das pessoas. Johann Benjam in Koppe (1750-1791). Professor em Gõttingen, traduziu para o alemão o texto de Isaías de Robert Lowth (1780) e mais tarde publicou um importante estudo dos Evangelhos (1782), no qual defendeu que Marcos não era um resumo de M ateus, como Agostinho havia afirmado. Koppe defen­ deu com base nos textos que os Evangelistas copiaram documentos anteriores, e não uns aos outros. Seus pontos de vista eram semelhantes aos de Lessing, porém mais sofisticados. Ele foi o primeiro a perceber que sempre que Marcos se afasta de M ateus, ele se aproxima de Lucas. O porquê dessa postura acabou se transformando em uma questão de intenso debate acadêmico. Johann Christoph Dõderlein (1746-1792). Dõderlein foi professor de teo­ logia em Altdorf, e é considerado por muitos o primeiro a ter proposto uma autoria composta do livro de Isaías (1755), embora isso pareça ter passado am­ plamente despercebido na época.

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Karl Friedrich Bahrdt (1741-1792). Embora pertença ao século 18, Bahrdt fazjus à alegação de ter sido o primeiro biógrafo de Jesus no sentido empregado no século 19. Ele acreditava que Jesus era o testa de ferro de uma sociedade secre­ ta, que ele identificou com os essênios, dos quais Nicodemos e José de Arim ateia eram supostamente exemplos. Suas principais obras foram A usfuhrung des P lans u n d Zwecks Jesu [Desenvolvimento do plano e propósito de Jesus] (1784-1792) e D ie sàm tlichen R eden Jesu aus den E van gelien au sgezogen [Coletânea dos discur­ sos de Jesus extraídos dos Evangelhos]. Johann Gottfried Herder (1744-1803). Pupilo de Hamann, usou a teoria de seu mestre e a virou de cabeça para baixo. Herder acreditava que a Bíblia era um livro único que testemunhava o sentimento religioso da humanidade. Sua grandeza não podia ser limitada pelos cânones da pesquisa histórica e crítica, mas precisava ser buscada de modo mais amplo, na categoria da literatura, das narrativas folclóricas e do mito. Seu livro The sp irit o f H eb rew p o etry [O espírito da poesia hebraica] (1782) foi uma tentativa de desenvolver sua abordagem essencialmente estética. No entanto, ele manteve seu interesse na historicidade dos acontecimentos bíblicos e nesse aspecto é necessário ter o cuidado de distingui-lo dos mitificadores que surgiram depois dele. Im manuel Kant (1720-1804). Kant não foi um estudioso ou crítico da Bíblia, mas um filósofo cujas visões teriam grande influência sobre os estudos teológicos e bíblicos posteriores. Ele acreditava que o verdadeiro cristianismo era uma mensagem moral, e o que não podia ser compreendido somente pela ra­ zão precisava ser interpretado à luz do ensino moral que se pretendia transmitir. A ressurreição de Jesus era o exemplo supremo disso. É evidente que ninguém podia voltar fisicamente dos mortos, mas Kant entendia isso como um modo de ensinar a imortalidade da alma e, portanto, da permanência de valores mo­ rais. Sua incoerência aparece no fato de que ele não aceitava que se contassem mentiras a fim de promover a moralidade, mas era isso que ele pensava que os autores bíblicos haviam feito. Gottlob Christian Storr (1746-1805). Professor em Tübingen, de modo geral foi reconhecido como pai do “sobrenaturalismo”, em oposição ao racionalismo prevalecente da época. O sobrenaturalismo implicava uma postura de reconhecimento dos milagres e das limitações da mente humana para avaliar questões espirituais. Em sua crítica dos Evangelhos, ele apresentou uma forte convicção da prioridade de Marcos e a defendeu contra Griesbach (1786). Christian Gottlieb Heyne (1729-1812). Foi o primeiro a definir “mito” como categoria literária; formulou um modo de interpretação da Bíblia sem

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recorrer a afirmações deístas e racionalistas de que os autores bíblicos haviam praticado fraude deliberada. Outros rapidamente adotaram seu método, que adquiriu importância fundamental em estudos bíblicos posteriores. Johann Jakob Griesbach (1745-1812). Professor de teologia em Halle (1773) e depois em Jena (1775), tinha tendências ortodoxas em sua teologia, mas foi um ativo crítico textual. Em 1783, publicou sua famosa sinopse dos Evangelhos de M ateus, Marcos e Lucas, em que demonstrou a forte relação entre os três, defendendo que isso se devia ao fato de Marcos ter copiado tanto de Mateus quanto de Lucas, enquanto Lucas havia usado M ateus como fonte para escrever seu Evangelho. As visões de Griesbach eram controversas e foram rejeitadas depois de 1835, aproximadamente, mas renasceram em anos recentes. Franz Volkmar Reinhard (1753-1812). Apesar de ter um traço fortemente antimístico, aceitou os milagres de Jesus como acontecimentos históricos. Para ele, a moralidade era a chave para a religião, e Jesus devia sua reputação a seu elevado ensino ético, não a seus poderes sobrenaturais. Reinhard, no entanto, não conseguiu responder à pergunta fundamental: Como um mestre moral (e havia muitos deles, obviamente) veio a ser aclamado como o Filho unigênito de Deus? Ele escreveu um livro em que alegava mostrar por que o cristianismo era a melhor das religiões do mundo (1798). Karl A ugust Gottlieb Keil (1754-1818). Ensinou em Leipzig a partir de 1787 e sempre lutou pelo reconhecimento do fato de que o método histórico-gramatical era o único adequado aos estudos bíblicos. Suas convicções foram adotadas por H. A. W . Meyer, mas receberam oposição de muitos de seus con­ temporâneos, incluindo F. Schleiermacher. Johann Christian Karl NachtigaU (1753-1819). Publicou dois artigos, em 1794 e 1796, sob o pseudônimo Othmar, em que defendeu uma datação tardia de parte do material relacionado aos sacrifícios no Pentateuco. Erhard Friedrich Vogel (1750-1823). Tentou provar (1801-1804) que o Evangelho de João não podia ter sido escrito antes da morte do apóstolo. Criticou outros comentaristas do Evangelho, afirmando que suas posições sobre autoria e data eram completamente arbitrárias, e concluiu que o texto, em gran­ de parte, era inexplicável. Johann Gottfried Eichhorn (1752-1827). Aluno de M ichaelis e Heyne, também foi influenciado por Semler e Herder. Foi o primeiro a fazer um estudo sistemático da Bíblia usando a categoria de mito, conceito que ele desenvolveu em seu U rgeschichte [História primitiva] (1779). Escreveu uma importante in­ trodução ao Antigo Testamento (1780-1783) e também ao Novo (1804-1812).

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Também escreveu sobre os profetas (1816-1819), entre muitos outros livros his­ tóricos. Foi um dos últimos estudiosos a estar igualmente familiarizado com os dois Testamentos. Em sua introdução ao Antigo Testamento, Eichhorn lançou os fundamentos para o desenvolvimento posterior da hipótese documentária a respeito da origem do Pentateuco. Ao contrário de muitos proponentes poste­ riores da teoria, no entanto, Eichhorn manteve-se conservador em questões de datação e estava disposto a endossar uma autoria de modo geral mosaica dos primeiros cinco livros da Bíblia. Johann Philipp Gabler (1753-1826). Pupilo de Eichhorn, foi o primeiro a fazer uma clara distinção entre teologia bíblica e teologia dogmática. Considerava a primeira válida para todas as épocas, enquanto a outra muda constantemente para acompanhar os desenvolvimentos no mundo como um todo. Para Gabler, a teologia bíblica era um prelúdio necessário à teologia dogmática, visto que esta não pode se justificar sem apelar à sua fonte. A afirmação de Gabler marcou uma importante inversão de papéis, visto que durante muito tempo se havia usado a teologia dogmática como meio de controlar e censurar a obra de estudiosos da Bíblia. Gabler mostrou ser isso um absurdo, e, após sua época, a insistência na prioridade da teologia dogmática gradualmente decaiu e desapareceu. Georg Lorenz Bauer (1755-1806). Escreveu uma teologia do Antigo Testamento (1796), uma introdução à hermenêutica bíblica (1799) e uma teo­ logia do Novo Testamento (1800-1802). Em seu método, adotou e expandiu as visões mitológicas de Heyne, Eichhorn e Gabler e foi o primeiro a tratar os dois Testamentos como entidades separadas, como Ernesti havia antes desejado. Johann Severin Vater (1771-1826). Escreveu um importante comentário sobre o Pentateuco, em que usou e reformulou as teorias de Alexander Geddes. Seu comentário também teria uma importante influência sobre teorias posterio­ res acerca das origens do Pentateuco. Johann Jakob Hess (1741-1828). Harmonizou os quatro Evangelhos, usando João como base. Para ele, os milagres constituíam um problema e tentou interpretá-los de modo ético, mas aceitava a ressurreição de Lázaro. Em geral, considerava João uma fonte melhor do que a tradição sinótica. Escreveu Geschichte d er d rei letzten LebensjahreJesu, uma “história dos últimos três anos davidadejesus”(1768). C arl Friedrich Stáudlin (1761-1826). Ensinou em Gõttingen a partir de 1790. Aceitou a necessidade de empregar o método histórico-gramatical de exegese bíblica, mas enfatizou que ele não era suficiente. Uma aceitação racional da inspiração divina também era necessária, de modo que o texto pudesse ser lido no espírito em que foi escrito.

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Georg Konrad H orst (1767-1832). Esse pastor seguiu o exemplo de E. Vogel. Afirmou (1804) que as “contradições” cristológicas em João se devem ao fato de que o autor usou várias fontes e que a versão alexandrina de sua teologia indicava que o Evangelho havia sido escrito bem depois da morte do apóstolo. Karl D avid Ilgen (1763-1834). Prestou uma importante contribuição aos estudos do Pentateuco, sugerindo que os cinco primeiros livros da Bíblia foram compilados com base em arquivos no Templo em Jerusalém (1798).

As questões As principais questões que os intérpretes desse período precisaram enfrentar podem ser assim resumidas. 1. Era necessário d eterm in a r o m odo p elo qual a verd a d e p o d eria ser conhecida e o p a p el que a B íblia desem penhava nesse processo. A ortodoxia protestante do século 17 havia afirmado que toda verdade era compatível com a Bíblia, pois era divinamente inspirada. As Escrituras, portanto, estavam corretas em questões de biologia, história, geografia etc., e nenhuma afirmação que a contradizia podia ser verdadeira. Os deístas e outros racionalistas questionaram essa pressuposi­ ção e, à medida que o conhecimento científico avançou, a maioria das pessoas percebeu que essa teoria não era sustentável. M as se a Bíblia não era uma en­ ciclopédia científica, o que ela era? Que tipo de verdade ela continha, se é que continha alguma? Essas perguntas foram respondidas de modos radicalmente distintos, indo dos deístas mais extremos, que pensavam que ela era completa ficção, até os racionalistas mais piedosos, que acreditavam ser possível provar que a Bíblia é factualmente correta, até mesmo nos detalhes. Lentamente, no entanto, passou-se a compreender que a Bíblia não podia ser lida como um manual científico. Ela era uma obra literária que precisava ser interpretada sob categorias literárias, e não científicas. Isso levantou questões de estilo (gênero) e contexto que leva­ ram a uma análise do texto muito mais profunda do que até então se praticava. Estudiosos clássicos e orientalistas tomaram a frente e aplicaram à Bíblia mé­ todos que estavam desenvolvendo em suas próprias disciplinas. Foi assim que começou o estudo crítico moderno da Bíblia. 2. Era necessário d eterm in a r a natureza e a necessidade da religião e com o a B íblia se relacion ava com ela. Em um mundo regido pela razão, que papel a re­ ligião teria para desempenhar? Durante essa época, às vezes se pressupunha

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que razão e religião, na prática, eram a mesma coisa; qualquer um que refletisse corretamente sobre o mundo à sua volta e lesse “o livro da natureza” da forma adequada teria a seu alcance toda a religião que lhe fosse necessária. Qualquer outra coisa era considerada superstição baseada nas tradições ignorantes de épo­ cas passadas, e o melhor que se tinha a fazer era esquecer tais superstições. Em um plano um pouco mais elevado, a religião passou a ser vista como o baluarte necessário da moralidade. O retrato de uma ciência cega para o mal que ela própria poderia engendrar estava começando a penetrar na mente de pensadores do final do século 18. Os horrores da Revolução Francesa ensinaram a lição de que o Iluminismo não havia abolido todos os instintos animais na humanidade. O início do Romantismo, com sua ênfase no valor das emoções, lembrou as pessoas cultas de que a matemática não podia explicar tudo. O mis­ tério, que em 1700 era hostilizado e marginalizado em cada esquina, estava voltando em grande estilo um século depois. Nesse clima, era possível usar a religião para explicar o lado não racional da natureza humana, que era tão im ­ portante quanto o lado racional. A Bíblia desempenhava um papel fundamental nessa tarefa, falando ao coração humano de um modo que desafiava a lógica, mas transformava a vida das pessoas. No fim, era isso o que mais importava, e os estudos bíblicos entraram no século 19 com uma aura mais positiva do que teria sido possível cem anos antes.

Os métodos de interpretação Ao observar os métodos de interpretação aplicados durante esse período, fi­ camos perplexos com a grande diferença entre o que aconteceu no início e o que estava acontecendo no final. Épocas anteriores testemunharam grandes mudanças, mas elas eram mais como oscilações de um pêndulo e não um avanço para um modo novo e diferente de fazer as coisas. Jerônimo, André de São Vítor e Calvino se sentiriam à vontade uns com os outros — falando a mesma língua, lendo os mesmos clássicos e honrando os mesmos métodos de estudo. Podemos escolher chamar uma tradição de “antioquena” e a outra de “alexan­ drina”, mas esses rótulos significam menos do que talvez pensemos. Apesar das muitas diferenças, havia um só mundo, um só universo mental, e este havia sido compartilhado por quarenta gerações de cristãos. No século 18, tudo isso teve um fim. A ruptura com o passado foi menos brutal do que pode parecer agora, e houve muitas pessoas que aceitaram as novas ideias somente em parte, de modo que há numerosas incoerências e anomalias

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quando examinamos alguns indivíduos específicos. M as o clima mental mudou decisivamente, e todos os teólogos mencionados acima foram relegados a um passado que não tinha mais uma relevância plena. Esse diálogo marcado pe­ las afinidades ao longo dos séculos foi substituído por um interesse em novas descobertas que iria revelar o passado como ele realmente era e, ao fazer isso, o distanciaria do presente. Um pequeno mas importante sinal dessa realidade foi que as línguas clássicas, pronunciadas como suas descendentes modernas, ganharam uma pronúncia “reconstruída” (sobretudo por causa de Erasmo) e desapareceram fossilizadas. Na fase inicial dessa grande mudança, os métodos críticos eram relativamen­ te rudimentares. Como crianças aprendendo a caminhar, os estudiosos do final do século 17 tinham a tendência de cambalear em todas as direções, e grande parte do que escreveram nos parece de uma ingenuidade constrangedora. M as seus escritos, mesmo assim, continham as sementes de futuros desdobramentos, e é importante compreendê-los, nem que seja somente para entender como seus pontos cegos causaram problemas para as gerações futuras e impediram o crescimento dos estudos bíblicos como ciência crítica por seus próprios méritos. No fim desse período, estamos no lim iar dos tempos modernos, e a lingua­ gem da crítica deixa de causar estranheza. Isso é compreensível, obviamente, mas contém seus próprios perigos. Pois embora as teorias de Griesbach e Eichhorn ainda estejam conosco, elas tiveram um longo desenvolvimento desde sua época, e corremos o perigo de compreendê-las e representá-las de forma incorreta se não levarmos essa evolução em consideração. Coisas aparentemente conhecidas podem ser bem mais enganosas para o aluno do que outras claramente estranhas.

A influência do racionalismo O racionalismo foi fundamental para os métodos críticos de todos os estudiosos desse período, quer ortodoxos, quer não. Somente perto do fim ele começou a ser questionado, mas até esse questionamento tinha forma e intenção raciona­ listas. O racionalismo assumiu muitas formas e pôde ser usado para defender posições teológicas bem diferentes, mas em seu centro estavam as seguintes pressuposições comuns. 1. A razão é um a fa cu ld a d e hum ana adaptada ao m eio natural. Isso significa que ela é capaz de estudar e fazer juízos críticos sobre coisas e eventos do mundo externo. Essa definição pode parecer óbvia, mas ela não era lei no século 17

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nem está acima da crítica agora. Contemporâneos dos primeiros racionalistas acreditavam que a razão humana era uma imagem do divino, mas ela havia sido corrompida pela Queda e, portanto, não era mais capaz de identificar a verdade. Por isso a revelação era necessária. Os racionalistas eliminaram da equação o pecado e a Queda e enfatizaram que o uso correto da razão era não só possível, mas essencial. A matemática era a manifestação suprema da ciência racional, e não é de surpreender que muitos dos grandes racionalistas eram matemáticos. 2. 0 u n iverso é construído segundo p rin cíp ios racionais conhecidos com o leis cien ­ tíficas. Essa ideia era revolucionária no século 17 e contribuiu muito para que as pessoas se libertassem de superstições de vários tipos. Esquecemos com muita facilidade que, até o século 16, teólogos e cientistas sérios podiam estar inten­ samente ocupados com astrologia, bruxaria e alquimia, todas as quais caíram em descrédito com o início da ciência moderna. Essa convicção teve enormes implicações para a fé cristã, principalmente na avaliação dos milagres e de outros sinais de atividade sobrenatural. Os racionalistas passaram a acreditar que o universo era um sistema fechado que funcionava de acordo com suas próprias leis internas e não estava sujeito à intervenção de forças externas. Portanto, era irracional acreditar que Deus pudesse ter suspendido as leis da natureza para atender a seus propósitos. 3. O u niverso tem um criador do m esm o m odo que um relógio tem um criador. Era quase consenso admitir que um sistema tão complexo quanto nosso universo não podia ter surgido por acaso. Os racionalistas chamavam esse criador de Ser Supremo. Se essa pessoa (ou coisa) podia ser identificada com o Deus da Bíblia era uma questão mais difícil. Na teoria, os israelitas, e mais tarde os cristãos, adoravam o Ser Supremo, a quem chamavam Javé. M as outros povos e religiões também adoravam o Ser Supremo com nomes diferentes. Além disso, a descri­ ção bíblica de Javé estava longe de ser satisfatória. Fora os erros que poderiam ser atribuídos às limitações humanas dos autores bíblicos, havia sérias dúvidas morais a respeito da conveniência de identificar Javé como o Ser Supremo. 4. O d e v er de todos é v iv e r uma vid a moral. E possível definir moralidade co­ mo adequação às leis da natureza, no que agora seria chamado de “autointeresse esclarecido”. Visto dessa perspectiva, no entanto, Javé parecia extremamente imoral. Em primeiro lugar, ele havia escolhido um único indivíduo, Abraão, e se revelado exclusivamente a ele, deixando o resto do mundo para perecer na escuridão. Depois, ele havia protegido seu povo escolhido ordenando a matan­ ça periódica de seus inimigos, que no mais eram inocentes, e encorajando-o a se vingar com derramamento de sangue (e.g., SI 137). Por último, ele havia

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honrado certos indivíduos do povo escolhido cuja conduta estava longe de ser meritória, o rei Davi sendo o exemplo clássico. 5. A religiã o e a B íblia precisa m ser pu rificadas d e elem entos imorais. De acordo com muitos racionalistas, Jesus e Paulo haviam tentado fazer isso, mas fracas­ saram, e o dever do racionalista moderno era concluir essa tarefa. O verdadeiro cristianismo era a adesão ao código moral da natureza, e, na teoria, Jesus havia tentado inculcar isso em seus discípulos. M ais tarde, o apóstolo Paulo tinha ten­ tado fazer a mesma coisa, mas as pressões e os preconceitos judaicos haviam sido fortes demais. A igreja cristã não conseguiu se libertar de suas raízes do Antigo Testamento e continuou desenvolvendo uma teologia que continha elementos primitivos e irracionais — como o sacrifício humano — para expiar pecados. Visto que os racionalistas não levavam o pecado muito a sério, não é surpresa que tenham ficado tão chocados com a solução oficial para ele. Os críticos racionalistas se deleitavam em mostrar o que para eles eram “erros” na Bíblia, mas é necessário lembrar que não estavam interessados nesses erros como estudiosos. Seus alvos eram mais filosóficos, e eles usavam evidências desse tipo para ter o prazer de demonstrar que não era possível confiar na Bíblia. Eles praticamente não notavam que havia questões textuais mais complexas por trás das discrepâncias que apontavam, mas de qualquer forma isso não teria feito muita diferença. Na história da interpretação bíblica, o racionalismo é importante sobretudo por ter lançado as sementes da dúvida em mentes que antes aceitavam a ortodoxia (em suas formas católica ou protestante) sem questionamentos.

O início da crítica textual A crítica textual foi uma disciplina empregada pelos humanistas na época da Reforma, mas havia perdido força no início do século 17. Quase por acidente, surgiu um Textus receptus, que na verdade não passava de uma versão editada do Novo Testamento grego de Robert Estienne, levemente modificada com versões do Codex B ezae e uma ou duas outras fontes. No entanto, tal era o espírito da ortodoxia que esse texto foi aceito sem questionamento como Palavra de Deus, e qualquer mudança que nele se fizesse podia ser motivo de prisão para o estu­ dioso. O resultado foi que, à medida que se descobriam e se disponibilizavam outros manuscritos do Novo Testamento, estudiosos precisaram recorrer a um aparato crítico ainda maior para explicar leituras que não estavam no texto ofi­ cial. As coisas chegaram a ponto de o aparato do Novo Testamento de W ettstein ser várias vezes maior que o próprio texto.

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Essa situação nunca ficou plenamente resolvida nesse período, e o Textus receptus manteve sua posição oficial até a última parte do século 19. Todavia, apesar dessa desvantagem, realizaram-se grandes avanços com o texto, especifi­ camente nos aspectos a seguir: 1. D escobriu-se que os m anuscritos podiam ser classificados de acordo com fa m í­ lias”. Isso significava que era possível determinar quais manuscritos haviam sido copiados de quais, viabilizando-se assim uma história do desenvolvimento textual. É verdade que isso não se desenvolveu o quanto poderia, pois Bengel pensou em uma perspectiva geográfica (famílias ocidentais e orientais), e não histórica (tra­ dições de manuscritos anteriores e posteriores), porém esse início foi importante. 2. R econheceu-se que a leitura mais com um não era necessariam ente a melhor. Nesse particular, as técnicas que estavam sendo desenvolvidas nos estudos clássicos tam­ bém foram aplicadas à Bíblia. Na nova crítica, a “regra” mais importante de todas era a chamada lectio difficilior. Era a convicção de que uma leitura mais difícil (e, portanto, menos provável) devia ser a mais autêntica. A razão disso é que um copista naturalmente tentaria reproduzir algo que ele pudesse entender e, portanto, simplificaria um texto que não lhe estivesse claro. Obviamente, nem sempre esse é o caso; qualquer digitador sabe que é possível produzir uma lectio difficilior por acidente. Mas, como princípio geral, essa medida revelou-se sólida e possibilitou a recuperação de textos bem mais antigos que os anteriormente conhecidos. 3. A ceitou-se nos círculos acadêm icos que não era p o ssív el com preend er a in spi­ ração d iv in a das E scrituras d e m odo m ecanicam en te literalista. Esse foi um claro rompimento com os excessos da ortodoxia protestante, conforme exemplificado na Fórmula de Consenso Helvética de 1675, e alguns estudiosos chegaram a ponto de negar por completo a inspiração do texto. A crítica textual era empre­ gada mais com a esperança de recuperar o texto original, o qual a maioria das pessoas ainda acreditava ser literal ou “verbalmente” inspirado. A crítica textual desse período prestou uma grande contribuição para de­ senvolvimentos posteriores, não somente por ter mostrado a necessidade de melhores edições dos textos originais da Bíblia, mas também por mostrar ser possível o uso de métodos críticos racionais sem se dobrar à ideologia dos deístas e de seus amigos. Em outras palavras, era possível ser um afiado crítico textual e permanecer dogmaticamente ortodoxo, como nos casos de Bengel e Lowth, ou ao menos se dissociar das ideias mais grosseiras dos deístas. No fim do século 18, a crítica textual estava em seu apogeu, mas em um ambiente intelectual completamente distinto daquele em que havia renascido um século antes.

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Os efeitos do Romantismo M ais no fim do século 18, surgiu uma nova corrente de Romantismo que tentou contrabalançar a abordagem unilateral de questões humanas que havia caracte­ rizado os racionalistas. O Romantismo afirmava que a natureza humana não é puramente mecânica e que há diversos fatores que o racionalismo não pode ex­ plicar, como beleza e amor. Os românticos também tinham consciência do lado mau da nossa natureza violenta e cruel, embora a maioria deles, a exemplo dos racionalistas, não acreditasse na depravação total. Por outro lado, havia alguns românticos, a quem agora chamamos de “pietistas”ou “evangélicos”, que levavam o pecado a sério e, como resultado de sua pregação, testemunharam conversões em massa, muitas vezes de caráter emocional. Os evangélicos permaneceram ligados à ortodoxia protestante em face do racionalismo, mas isso não significa­ va que possuíam um sistema teológico bem-definido. A ortodoxia protestante no mundo de fala inglesa era estritamente calvinista, mas não se pode dizer o mesmo de muitos evangélicos. W esley e seus seguidores eram abertamente arminianos, e sua teologia afastou os evangélicos da precisão doutrinária de uma época anterior, do mesmo modo que outros românticos estavam abandonando a lógica fria de seus predecessores racionalistas. O teórico principal do Romantismo foi J. G. Herder, cujos interesses se es­ tendiam à antropologia comparada, da qual foi um dos principais representantes. Herder compreendeu que não era possível reduzir a Bíblia a um documento histórico ou legal. As histórias da Bíblia podiam mudar o coração, e isso não dependia de exatidão histórica ou da moralidade que ela comunicava. Nesse par­ ticular acontecia algo mais profundo, e o racionalismo o havia ignorado. Herder foi atraído à ideia de Lowth de que grande parte do Antigo Testamento era poesia e pertencia a um estágio muito primitivo do desenvolvimento literário. O que os racionalistas criticavam como imoral ou incoerente podia ser encarado como um recurso sutil textual que envolvia o ouvinte em muitos níveis distintos de seu ser. Herder não era indiferente às afirmações históricas da Bíblia, mas estas eram secundárias a seus interesses principais, que eram literários. Por exemplo, ninguém podia afirmar que H enrique VIIIde Shakespeare é uma obra maior que H am let com base no argumento de que Henrique VIII é uma figura histórica bem-conhecida, ao passo que Hamlet era historicamente desconhecido. Nesse sentido, a historicidade da Bíblia não pode determinar seu valor literário. Em contrapartida, se Shakespeare tivesse fornecido a Henrique VIII (ou Hamlet, no caso) um pequeno papel em Jú lio César, algo estaria seriamente errado e não

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passaria despercebido. Nesse sentido, a historicidade da Bíblia era importan­ te, visto que sem ela a história não teria coerência. (Se devemos acreditar que H enrique VIIIretrata a vida de Henrique VIII é uma questão com a qual Herder não estava muito preocupado.) Os românticos não eram grandes estudiosos da Bíblia; eles não estavam mentalmente inclinados às pesquisas detalhadas exigidas pela alta erudição. Estavam apenas reagindo a uma posição que viam como equivocada, não pro­ pondo um método próprio radicalmente novo. No entanto, eles tinham coisas importantes para dizer, e estas seriam notadas pelas gerações futuras. É possível resumi-las do seguinte modo: 1. A B íblia é um a obra literária que precisa ser com preendida d e m odo literário, e não científico. Coisas que não eram “verdadeiras” no sentido científico podiam muito bem conter verdades de outro tipo igualmente importantes. Um exemplo óbvio e inquestionável é a história do bom samaritano. É provável que esse homem nunca tenha existido, e os detalhes da história quase certamente não são “verdadeiros” no sentido histórico. M as o bom samaritano se mantém como uma figura importante na herança moral da civilização cristã, e ninguém lhe negaria esse lugar simplesmente por nunca ter existido como fato histórico. Os român­ ticos estenderam esse princípio a toda a Bíblia e, desse modo, tentaram destruir a oposição radical ao seu ensino que havia crescido nos círculos racionalistas. 2. A gra n d ez a da B íblia está em sua capacidade com provada de m udar a vid a das pessoas. Os racionalistas haviam cometido um erro quando acusaram a Bíblia de “imoralidade”. Isso ocorreu porque sua perspectiva da vida era muito superficial. A Bíblia contém toda a gama de emoções humanas e trata de questões de jus­ tiça, não somente de bom comportamento. Sua mensagem fala a todos os tipos e condições de pessoas, não somente a estudiosos em torres de marfim. Se nos esquecermos disso, o texto definha e morre, seja interpretado de modo conser­ vador ou muito radical. O verdadeiro expositor das Escrituras precisa estar em sintonia com o Espírito que as escreveu. Somente desse modo, e não por um exame perfeito de detalhes históricos e científicos, lhe será possível compreen­ der a origem e natureza divinas da Bíblia.

Neologia: uma síntese? No fim do século 18, o racionalismo deísta havia desaparecido e seria subs­ tituído por algo mais sutil. Ainda havia alguns racionalistas, mas não eram

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mais arrogantes segundo o molde deísta. Eles beiravam um ateísmo manifesto, e muitos acreditavam estar chegando à conclusão lógica do deísmo. M as eles haviam se tornado críticos cautelosos e minuciosos da Bíblia, determinados a fundamentar suas conclusões com evidências sólidas e menos seguros dos supor­ tes filosóficos de seu empreendimento acadêmico. Influenciada pelo pietismo e pelo Romantismo, uma nova categoria de estudiosos ficou conhecida e passou a dominar a maioria das universidades alemãs. Eles foram chamados neologistas, pois acreditava-se que seu modo de interpretar a Bíblia era fundamentalmen­ te novo. Na realidade, eles e os racionalistas que restavam eram praticamente idênticos no que dizia respeito ao uso do método crítico; a única diferença real é que os neologistas eram mais receptivos aos milagres e a outros elementos sobrenaturais na Bíblia, algo que os racionalistas achavam difícil de aceitar. Em face do racionalismo, os neologistas eram “conservadores”, mas não em qualquer sentido aceitável para protestantes ortodoxos. O fundador do movi­ mento, J. S. Semler, negou abertamente a inspiração divina da Bíblia, doutrina que ele considerava um obstáculo para o estudo científico do texto. Em contra­ partida, Semler não era tão cético quanto essa negação pode parecer. Ele estava bem preparado para aceitar o texto como se apresentava e investigar suas afir­ mações, independentemente de parecerem plausíveis à primeira vista. Isso não significava que ele estava disposto a aceitar todos os milagres, mas se prontificava a considerar o que o texto estava tentando dizer, sem nenhum prejulgamento racionalista. Ao aceitar a validade de uma cosmovisão pré-científica em seu con­ texto histórico, Semler estava ressuscitando a antiga ideia de adequação, segundo a qual Deus se adaptou à fraqueza e limitação humanas em sua revelação a nós. Semler também cria que o Antigo Testamento continha passagens que apontavam para a futura vinda do Messias, que ele naturalmente identificava com Jesus Cristo. Ele estava disposto, portanto, a aceitar que havia um elemento cristológico no Antigo Testamento, embora o limitasse a algumas passagens bem conhecidas e relativamente “óbvias”. As demais passagens eram conside­ radas registros da história de Israel, e ele as tratou segundo essa concepção. Embora isso possa ser considerado mais uma evidência do “conservadorismo” de Semler, as aparências são enganosas. Seu princípio fundamental era que as Escrituras precisam ser examinadas sem pressuposições dogmáticas. O que isso significava na prática era que a teologia sistemática não tinha lugar na exegese bíblica, quer como pressuposição, quer como conclusão. Semler não acreditava na existência de um sistema teológico coerente na Bíblia e pensava que as ten­ tativas de encontrá-lo poderiam resultar somente na distorção do verdadeiro

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sentido do texto. A neologia, portanto, divorciou a exegese da dogmática, pos­ tura que passou a caracterizar a interpretação bíblica do século 19. A medida que a neologia foi desenvolvida por seus maiores representantes, J. G. Eichhorn e seu pupilo J. P. Gabler, o princípio de adequação foi estendido ainda mais e passou a incluir a “mentalidade oriental” que eles acreditavam estar presente nos autores bíblicos. Esse era um período em que o Oriente estava sendo “redescoberto”, e havia uma consciência cada vez maior do vasto abismo cultural que fazia separação entre Oriente e Ocidente. Agora sabemos quão simplista essa “redescoberta” na verdade era, mas para as pessoas da geração de Eichhorn parecia lógico que, uma vez situada em seu próprio contexto cultural, a Bíblia faria um sentido perfeitamente aceitável. Eles, portanto, estavam dis­ postos a aceitar que os primeiros capítulos de Gênesis eram um relato mítico da criação plenamente “correto” no contexto da mitologia oriental. O melhor modo de compreender a neologia é como uma tentativa de sín­ tese do pensamento da época. Dos racionalistas, os neologistas herdaram seu espírito crítico, sua recusa em reconhecer a Bíblia como divinamente inspirada e muitas de suas teorias. M as eles abandonaram a ideologia racionalista e estavam dispostos a aceitar que as Escrituras tinham muito mais a dizer do que seria possível dentro de uma abordagem baseada na ciência natural. Dos românticos, eles herdaram a ideia de que a Bíblia era um monumento literário que precisava ser interpretado segundo categorias literárias. E da tradição da pura crítica tex­ tual, os neologistas herdaram o interesse na análise detalhada do texto, com base na qual era necessário justificar suas teorias críticas. Se a neologia foi uma síntese bem-sucedida desses elementos distintos já é ou­ tra questão. Historicamente falando, ela desapareceu dentro de uma só geração, por um lado vencida por um racionalismo renovado e, por outro lado, por um novo “sobrenaturalismo”. A acusação de que a neologia era pouco mais que o racionalismo com um rosto humano pode ser um tanto severa, mas é verdade que os neologistas não foram capazes de se afastar — ou não quiseram se afastar — das pressuposições racionalistas. No final das contas, eles não conseguiram fazer separação entre os métodos críticos e a ideologia que lhes era subliminar, e suas tentativas nesse sentido os fizeram parecer incoerentes com seus próprios princípios. O sobrenaturalismo que substituiu a neologia afirmava ser mais seriamente comprometido com a teolo­ gia tradicional, mas também dependia de explicações racionalistas para milagres e outros eventos semelhantes e acabou igualmente revelando sua incoerência. No entanto, muitos princípios da neologia mantiveram sua influência, e ou­ tros foram ressuscitados em tempos mais recentes, com fundamentos teológicos

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e filológicos mais firmes do que os da época de Eichhorn. O compromisso com uma rigorosa análise textual baseada nos melhores manuscritos permaneceu in­ tacto. A ênfase na Bíblia como documento literário que precisa ser interpretado em seu próprio contexto e de acordo com seus pressupostos apareceu e desapa­ receu, mas hoje é novamente aceita e está estabelecida com bases firmes. Acima de tudo, a recusa em aceitar que o racionalismo é o único guia seguro para a verdade é hoje amplamente compartilhada e, nos últimos tempos, tem sido aplicada aos estudos bíblicos com mais coerência do que na época de Eichhorn. O único dos grandes princípios da neologia hoje bastante questionado é seu divórcio entre exegese e dogmática. No final do século 20, cada vez mais estu­ diosos críticos estão se perguntando se essa opção é de fato viável, visto que, sem a teologia, grande parte da exegese parece ser estéril. Esse aspecto da herança da neologia, largamente aceito durante mais de 150 anos, passou a ser de novo atacado. Talvez o melhor juízo da neologia seja dizer que ela não foi um fracasso de síntese, mas uma primeira tentativa que, mesmo precisando de uma revisão considerável, estabeleceu princípios básicos que ainda hoje exercem sua função na interpretação bíblica.

Crítica textual neologista Em sua crítica textual, os neologistas concentraram a atenção em duas grandes áreas de pesquisa: o Pentateuco e os Evangelhos. Eles também trabalharam su­ perficialmente com outras partes das Escrituras, mas foi a essas duas divisões fundamentais do texto canônico que dedicaram a maior parte de seus esforços e atenção. Examinaremos uma por vez.

O Pentateuco Para começar, os neologistas reconheceram as dúvidas que vários racionalis­ tas haviam expressado a respeito de questões como a datação e a autoria do Pentateuco. Em 1780-1783, Eichhorn ressuscitou a teoria que ele acreditava (equivocadamente) ter sido apresentada pela primeira vez por Jean Astruc em 1753. Foi a ideia de que o Pentateuco era uma compilação de documentos ante­ riores, cuja identidade podia ser determinada de acordo com o uso do nome de Elohim ou Javé para Deus. Esses são os documentos que agora chamamos de E e J, respectivamente. Eichhorn aplicou essa teoria a Gênesis e dividiu o livro de modo semelhante à teoria documentária clássica apresentada quase um século

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depois por Julius W ellhausen (1878). Ao longo de suas pesquisas, Eichhorn descobriu que Gênesis 2.4— 3.24, embora estivesse mais próximo de J que de E, na realidade não fazia parte de nenhum dos dois documentos. Isso abriu o caminho para a possibilidade de que pudesse haver um terceiro documento, cuja identidade não dependia de um nome distinto de Deus. Outros avanços foram feitos por K. D. Ilgen, que em 1798 publicou suas pesquisas sobre Gênesis. Trabalhando com base em títulos que indicavam in­ terrupção no material, em repetições e diferenças de estilo e em diferenças de conteúdo e de perspectiva, Ilgen dividiu em dois o documento E e descobriu duas dificuldades que seriam uma constante em todo o século 19. Ele afirmou que Gênesis 37.28 revelava duas fontes, que haviam sido combinadas em um só versículo, e que Gênesis 39.1 era trabalho de um redator posterior. Ilgen foi o primeiro estudioso que tentou fazer uma reconstrução coerente da história textual do Pentateuco postulando fontes nos arquivos de Jerusalém, as quais foram mais tarde combinadas para produzir o texto que agora temos. Pouco depois, a teoria de A. Geddes foi apresentada por J. S. Vater na Alemanha (1802-1805). Geddes afirmou que por trás do Pentateuco havia uma série de fragmentos (e não documentos completos) e que a divisão de Astruc — E-J — representava diferentes tradições, em vez de dois autores. Essa teoria ampliou demais a crítica do Pentateuco, e o desafio de elaborar uma nova síntese logo foi aceito por W . M . L. De W ette (1806-1807), com cujo trabalho teve início a crítica moderna do Pentateuco. Apesar da crítica radical das origens do Pentateuco incentivada pelos neolo­ gistas, eles pouco ou nada fizeram para explicar seu desenvolvimento teológico. Certamente, sua falta de interesse pela teologia explicava um pouco dessa pos­ tura, e também é verdade que uma pesquisa dessa natureza teria provocado uma séria oposição tanto da igreja quanto do estado. No entanto, há outros aspectos envolvidos. Eichhorn estava bem preparado para acreditar que Moisés havia usado fontes anteriores em sua redação do Pentateuco e que, portanto, a teo­ logia dessa parte do Antigo Testamento era tão primitiva quanto alegava ser. Qualquer evolução religiosa em Israel teria ocorrido em algum estágio anterior; desde a época do Êxodo, o povo hebreu era monoteísta e estava agrupado em torno da Lei e dos sacrifícios do tabernáculo. Somente quando essa convicção foi questionada é que os estudiosos que a propuseram foram acusados de heresia. Com exceção do Pentateuco, a crítica do Antigo Testamento ainda estava em seus estágios iniciais no final do século 18. Eichhorn escreveu sobre as origens de Crônicas, mas não foi muito além de negar que seu autor havia usado Samuel

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e Reis como fontes. O estudo da literatura profética continuou profundamente influenciado pela afirmação de Lowth de que grande parte do texto tinha forma poética, mas, apesar das tentativas de afirmar que Isaías e Zacarias eram obras compostas, nada mais foi feito para seguir com essas linhas de pesquisa. Isso estava reservado para o futuro, quando a neologia deu lugar a uma forma mais sofisticada de crítica histórica.

Os Evangelhos Quanto ao Novo Testamento, o final do século 18 assistiu ao início da críti­ ca dos Evangelhos em larga escala. Sempre se havia admitido certo problema de datação nos Evangelhos, e a visão tradicional, apresentada por Agostinho, era que M ateus havia sido o primeiro a escrever (em aramaico, de acordo com Eusébio), que ele foi resumido por Marcos e que Lucas havia usado os dois na composição de seu Evangelho; João, dentro dessa perspectiva, veio mais tarde com certo grau de independência em relação aos outros três. Papias, es­ critor grego do segundo século, afirmou que Marcos continha as memórias de Pedro, desse modo atribuindo-lhe uma autoridade que os outros Evangelhos, com exceção de João, não tinham. Clemente de Alexandria também dividiu os Evangelhos em Mateus/Lucas de um lado e Marcos/João de outro, embora se opondo diretamente a Papias. De acordo com Clemente, os dois primeiros eram mais antigos, sob cuja influência foram escritos os outros dois. A visão agostiniana de modo geral se manteve durante a maior parte da Idade M édia e do período da Reforma, como podemos observar nos comen­ tários de Calvino. Ele escreveu uma harmonia dos Evangelhos, combinando Mateus, Marcos e Lucas com base na prioridade de M ateus, e tratou João em separado. Foi somente com a obra pioneira de G. E. Lessing que se tentou resol­ ver a confusão em torno da datação dos Evangelhos herdada do mundo antigo. Lessing partiu da premissa de que havia um texto original por trás dos qua­ tro Evangelhos como agora os temos. Segundo essa visão, Marcos estava mais perto desse texto original, porque era o menos elaborado dos quatro Evangelhos e porque era possível demonstrar que M ateus e Lucas eram expansões de Marcos ou algo nesse sentido. João era o Evangelho mais distante dessa fonte e, portanto, foi o último a ser escrito. Essa teoria recebeu certa confirmação na obra de J. B. Koppe (1782), que criti­ cou a teoria agostiniana de que Marcos havia resumido Mateus. Lessing mostrou que o método literário de Marcos não é típico de alguém que está fazendo um

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resumo e que a seqüência de seu Evangelho, nos pontos onde diverge de Mateus, muitas vezes está mais próxima de Lucas. Isso podia ser explicado com base na teoria agostiniana de que Lucas havia copiado Marcos, mas não estava claro por que Lucas teria preferido a seqüência de eventos de Marcos, se ele sabia que Mateus era a fonte de Marcos. A única conclusão lógica era que Lucas não tinha essa informação e pressupôs que Marcos, e não Mateus, era o texto anterior. A afirmação da prioridade de Marcos, amparada pelo testemunho de Papias, rapidamente se popularizou e foi defendida com veemência por G. C. Storr (1786) e J. G. Herder (1797). M as os dois precisaram lidar com uma nova hipótese, desenvolvida por J. J. Griesbach (1783), que deve ser considerado o verdadeiro pai da crítica moderna dos Evangelhos. Griesbach reconheceu a na­ tureza peculiar de João e praticamente o excluiu de sua sinopse dos Evangelhos. Levando a tese de Koppe a sério, Griesbach propôs que Marcos baseou-se em Lucas, assim como em Mateus, e que Lucas havia usado Mateus de forma independente. Desse modo, vemo-nos voltando à prioridade de Mateus, mas com uma guinada no enredo. Para que possamos nos orientar melhor, podemos situar as diferentes teorias na tabela a seguir.

1 2 3 4

Agostinho Mateus Marcos Lucas João

Griesbach Mateus Lucas Marcos João

Lessing etc. Marcos Mateus Lucas João

Com base nessa tabela, podemos observar que por volta de 1783 havia três visões rivais a respeito de qual Evangelho havia sido escrito em segundo lugar, com o único consenso de que João havia sido escrito por último. A hipótese de Griesbach tinha a vantagem de descartar a necessidade de postular uma fonte anterior e desconhecida para os Evangelhos, mas fez com que os críticos se indagassem por que Marcos se importou em escrever, visto que seu Evangelho é quase idêntico a um ou outro dos dois supostamente anteriores. Por essa razão, a tradição iniciada por Lessing veio a ser preferida, com reservas sobre a natureza exata da fonte anterior. A hipótese de Griesbach caiu no esquecimento, para ser ressuscitada por W . R. Farmer somente em 1964, desde então mais uma vez passou a fazer parte dos debates acadêmicos. A opinião desses críticos sobre João era muito mais convergente do que a opinião que tinham sobre os Sinóticos. Todos acreditavam que João era um

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Evangelho escrito mais tarde, quase certamente em uma atmosfera helenista posterior à morte do apóstolo. Havia diferentes graus de ênfase nesse ponto, é claro, e alguns estudiosos preferiam João aos outros Evangelhos em virtude de seu conteúdo mais teológico, porém como fonte puramente histórica sua reputação não era muito alta. Assim como ocorreu com a tradição sinótica, esse período lançou o alicerce para uma abordagem do quarto Evangelho que durou, com muitas modificações (principalmente em uma direção mais conservadora), até a presente época. Em relação ao restante do Novo Testamento, com exceção das dúvidas a respeito da autoria de Hebreus e Apocalipse, o estudo acadêmico neologista permaneceu em um estágio essencialmente pré-crítico. B ibliografia G. “Giovanni Bernardo de Rossi (1742-1831): a sketch of his life and works, with particular attention given to his contribution to the field of biblical criticism”. T rin ity J o u rn a l 12 (1991): 15-38. B e t t s , C . J. E arly deism in F ra n ce,fro m the so-ca lled ‘D éistes’ o f Lyon (1564) to Voltaires Lettres philosophiques (1734) (The Hague: M . Nijhoff, 1984). C h e y n e ,T . K. F ounders o f O ld T estam ent criticism (London: M ethuen, 1893). C r a ig , W . L. The historical a rgu m en t f o r the resurrection o f Jesus d u rin g the deist con troversy (Lewiston: Edwin M ellen, 1985). D r u r y , J. C ritics o f the B ible 1724-1873 (Cambridge: Cambridge University Press, 1989). Fa r m e r , W . R. The syn op tic prob lem (1964; reimpr. Dillsboro: Western North Carolina Press, 1976). F u l l e r , R. C. A lexander Geddes 1737-1802: a p io n eer o f biblical criticism (Sheffield: Almond, 1984). J o h n so n , S. E. The Griesbach hypothesis a n d redaction criticism (Atlanta: Scholars Press, 1991). L a m b e , P. J. “Critics and skeptics in the seventeenth-century Republic of Letters”. H a rva rd T h eologica lR eview 81 (1988): 271-96. L a p l a n c h e , F. L’E criture, le sa cré et Vhistoire: erudits et politiq u es protestan ts d ev a n t la B ible en F rance au XVIIe siècle (Amsterdam/Lille: APA - Holland University Press/Presses Universitaires, 1986). M a r s h a l l , J. E. Thomas Scott (1747-1821) a n d the fo r c e o ftru th (1779) (London: Evangelical Library, 1979). A

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M

cD onald,

ESTUDO DE CASO: DEUTERONÔMIO Já observamos a centralidade das pesquisas do Pentateuco para a interpretação crítica da Bíblia no século 18. Um papel fundamental foi desempenhado pelo livro de Deuteronômio, a “Segunda Promulgação da L ei”, reconhecido como detentor de um lugar especial a partir de uma data muito primitiva. Dos exegetas judeus na época de Jesus, os cristãos primitivos adotaram a tradição de que o Livro da Lei encontrado por Hilquias no Templo durante a reforma de Josias (622-621 a.C.) não era outro senão Deuteronômio. Não se sabia ao certo como ele chegou ali, embora Nicolau de Lira tenha apresentado a noção rabínica de que ele foi escondido quando o rei Amom tentou queimar os livros da Lei (fato não relatado no texto canônico). Thomas Hobbes escreveu em L eviatã (1651) que Deuteronômio 11—27 (não todo o livro) era o Livro da Lei que Hilquias havia encontrado no Templo, mas continuou atribuindo a autoria dessa parte de Deuteronômio ao próprio Moisés. Na visão de Hobbes, o restante do Pentateuco em sua presente forma

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foi escrito ou ao menos reunido bem depois da época de Moisés. Embora Hobbes não tenha dito isso, sua teoria indicava que o núcleo de Deuteronômio era a parte mais primitiva (e mais autenticamente mosaica) do Pentateuco. Hobbes também rejeitou a ideia de que Moisés poderia ter escrito Deute­ ronômio 34.6, que afirma que ninguém sabe “até hoje” onde ele foi sepultado, e durante bastante tempo esse versículo foi uma das armas favoritas nas mãos dos racionalistas que atacavam a posição ortodoxa protestante mais extrema sobre a inspiração divina das Escrituras. M as como acontecia com outros argumentos racionalistas, a tendência era citar esse argumento de forma iso­ lada, sem levar muito em conta suas implicações maiores para a história do texto bíblico. O próximo estágio teve início em 1693, quando o deísta Charles Blount publicou The oracles o f reason [Os oráculos da razão]. Nesse livro, ele escreveu o seguinte sobre Deuteronômio 11—27: Também é possível questionar se o que foi dito anteriormente era a própria lei entregue por Moisés, visto que, depois de estar perdida durante bastante tempo, Hilquias fingiu encontrá-la novamente e, assim, enviou-a para o rei Josias (2Rs 22.8; 23.1-3), de modo que a esse respeito temos somente a palavra de Hilquias. Isso deu início a uma nova série de questionamentos críticos, pelos quais se tornou lugar-comum considerar que o Livro da Lei, e, portanto, grande parte de Deuteronômio, era obra de Hilquias, que ele convenientemente “descobriu” e fez com que fosse visto como obra de Moisés. Essa era a opinião de Voltaire, que achava estar apenas repetindo o que os estudiosos em geral pensavam. No fim do século 18, Thomas Paine, famoso livre-pensador anglo-americano (17371809), escreveu em The a ge o f reason [A era da razão] (1797): São claras as evidências de que os chamados livros de Moisés (que compõem a primeira parte do que conhecemos como Escrituras) são falsificações forjadas entre Hilquias, sacerdote e representante da lei, e Safã, o escrivão, mil anos após a data atribuída à morte de Moisés. Sobre o livro de Deuteronômio, Paine escreveu: Minha fé na perfeição da Divindade não me permite acreditar que um livro tão manifestamente obscuro, desordenado e contraditório possa ser obra dele. Eu mesmo posso escrever um livro melhor. Essa fé em mim procede de minha fé no Criador.

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Poucas vezes o espírito deísta foi expresso com maior clareza e exati­ dão! Paine não estava interessado no que Hilquias escreveu; quer tenha sido a totalidade de Deuteronômio, quer somente parte do livro, essa questão era secundária para ele. M as muitos estudiosos continuaram acreditando que o Livro da Lei era Deuteronômio como um todo (com a possível exceção do último capítulo), e um ou dois pensavam que Hilquias tinha descoberto todo o Pentateuco. No outro extremo estava a visão de A. Calm et, que lim itou a descoberta de H ilquias a Deuteronômio 28—31, opinião compartilhada por diversos estudiosos que o seguiram. Quando passamos aos neologistas, no entanto, entramos em um mundo comple­ tamente distinto do mundo dos deístas.Tanto Michaelis como Eichhorn acreditavam que praticamente todo o Pentateuco era obra de Moisés. De acordo com eles, Moisés pode ter usado fontes anteriores, mas obviamente isso excluía Hilquias, que eles pen­ savam ter encontrado todo (ou quase todo) o Pentateuco no Templo. O retrato neologista foi despedaçado por J. S. Vater, que trabalhou a partir da tese de A. Geddes. Vater acreditava que, antes do Exílio, o Pentateuco existia somente em fragmentos e que Hilquias encontrou no Templo um ou mais deles. Vater dificilmente podia duvidar de que esse fragmento mais tarde se tornou o núcleo de Deuteronômio, mas ele continuou enfatizando que Deuteronômio foi o último dos livros do Pentateuco a ser escrito — depois do Exílio. Ele resolveu essa contradição dizendo que o fragmento de Hilquias manteve-se indepen­ dente de qualquer fonte maior até a compilação dos outros livros do Pentateuco. Sua posição não era muito satisfatória, pois ele também reconheceu que havia elementos deuteronômicos em Samuel e Reis e concluiu que partes do texto deviam necessariamente existir já na época de Salomão, ou até mesmo antes. As opiniões de Vater poderiam ter desmoronado por serem incoerentes, não fosse pelo brilhantismo de W . M . L. De W ette (1780-1849). A trajetória princi­ pal de De W ette como estudioso pertence ao período seguinte de nosso estudo, mas quando jovem ele tratou do problema de Deuteronômio em uma tese em latim (1805) e depois em suas famosas B eitrà ge [Contribuições] ao estudo do Antigo Testamento (1806-1807). De W ette aceitou a hipótese dos fragmentos de Vater, mas tratou toda a questão das origens deuteronômicas de uma perspectiva diferente. Argumentou que Crônicas era uma composição tardia e que, portanto, não é uma fonte segura para o tema da adoração de Israel antes do Exílio. Em especial, a centralização do culto no Templo de Jerusalém era desconhecida durante a monarquia ou an­ tes dela, período em que havia altares por todos os lugares, conforme fica muito

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claro em livros como Samuel e Reis. Críticos anteriores, que obviamente haviam notado isso, argumentaram que esses altares foram construídos em circunstân­ cias excepcionais e não prejudicavam o princípio mosaico de que a adoração sacrificial deveria ocorrer em um só lugar. Desse modo, ele demonstrou para sua própria satisfação que Deuteronômio 12 não podia ser mosaico, nem mesmo pré-exílico, pois continha prescrições que iam completamente contra a prática israelita comum antes do Exílio. A importância de De W ette está no fato de ter ele sido o primeiro a apre­ sentar uma descrição completa das origens de Israel totalmente distinta do relato do próprio Antigo Testamento. De W ette considerava o texto do Antigo Testamento uma retroprojeção fictícia feita no pós-Exílio, retratando a vida de Israel nos períodos do estabelecimento em Canaã e da monarquia. Além dis­ so, ele não agiu como deísta, mas como estudioso, interessado em uma análise textual feita com perfeição. Em relação ao livro encontrado por Hilquias, De W ette estava disposto a acreditar que ele fazia parte substancial do livro de Deuteronômio que hoje conhecemos, mas não excluiu a possibilidade de que fragmentos agora incluídos em outros livros do Pentateuco também pudessem ter sido encontrados. Deuteronômio não era tão especial quanto se pensava, e a origem do Pentateuco era uma questão mais complexa do que se havia im a­ ginado até então. Ainda havia muito trabalho pela frente, mas estava lançado o fundamento para entender Deuteronômio como parte de um processo de for­ mação do Pentateuco, do qual ele não era nem o início nem o fim. Começava assim uma nova era na crítica do Pentateuco. Os argumentos de De W ette, apresentados em sua D issertatio [Dissertação], de 1805, eram os seguintes: 1. A história de M oisés se com pleta n o fim de N úmeros, incluindo a designação de J o su é com o sucessor. De W ette seguiu Eichhorn no pensamento de que Gênesis era uma compilação de duas fontes; acompanhou Vater ao aceitar uma autoria múltipla para os livros de Êxodo a Números. Deuteronômio, no entanto, parece ser um novo início para a história, exatamente quando esta havia sido concluída. 2. Os p rim eiros versículos de D euteronôm io parafraseiam o que f o i relatado com detalhes em N úmeros. Isso parece estranho se Deuteronômio é meramente a continuação de uma história em andamento e duplamente estanho quando percebemos que, sob alguns aspectos, ele parece contradizer o que foi dito antes. 3. D euteronôm io tem um estilo distinto. Versículos isolados encontrados em outros lugares no Pentateuco são bastante expandidos: por exemplo, Êxodo

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20.18 se torna Deuteronômio S..22-27, e Levítico 26.29 se torna Deuteronômio 28.53-57. De W ette descobriu dez exemplos dessa expansão. 4. H á m ais de trin ta -palavras e fra ses pecu lia res a D euteronôm io. A ideia de que isso se deve ao fato de que, em sua origem, Deuteronômio era um discurso e não um documento escrito é refutada quando se compara Levítico 26, que também é uma fala, com sua contraparte em Deuteronômio 28, que revela o estilo particular de Deuteronômio. 5. D euteronôm io tem um conceito d e religião m ais avan çado que o resto do P entateuco. De W ette acreditava que Deuteronômio era mais sutil e mais teo­ lógico em sua abordagem de questões como o milagre do maná. Ele também contém leis de origem posterior, como a lei do rei (17.14—20), dos profetas (18.9-22) e do divórcio (24.1-4). 6. Por último, e o mais importante, D euteronômio contém instruções para que o culto seja prestado em um só santuário. Nesse ponto ele é extremamente inovador e contra­ diz Êxodo 20.24,25. Isso também vai contra a prática normal em Israel em épocas antigas, como podemos observar no fato de que Samuel, Saul, Davi e Salomão não viram como problema a realização de sacrifícios em muitos lugares diferentes. De W ette conclui que Deuteronômio serviu para complementar os livros an­ teriores da perspectiva de uma nova ideologia, em que Jerusalém desempenhava um papel central. Em uma nota de rodapé, ele acrescenta que Deuteronômio foi o livro encontrado por Hilquias em 622 a.C ., embora não tenha especulado mais sobre sua origem. No entanto, a essência de seus argumentos e sua eviden­ te convicção de que Deuteronômio revelava um desenvolvimento da religião israelita ao longo do tempo indicam que ele deve ter aceitado a datação de Deuteronômio perto da época de Hilquias, mesmo que não considerasse o pró­ prio Hilquias como seu autor. B ibliografia B e w e r , J.

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D e W e t t e , W . M . L. D issertatio critico-ex egetica qua D euteronom ium a p riorib u s

p en ta teu ch ii libris diversum , alius cuiusdam recentioribus auctoris Opus Esse M on stratu r (Jena, 1805). ______ . B eitrã ge z u r E in leitu n g in dasA lte T estam ent (Halle, 1806-1807). J a p h e t , S. “The historical reliability of Chronicles: the history of the problem and its place in biblical research”.J o u r n a lfo r the Study o f the O ld T estam ent 33 (1985): 83-107. K e n n e t h , R. H. D euteronom y a n d the D ecalogue (Cambridge: Cambridge University Press, 1920). L o h f in k , N., org. D as D euteronom ium (Leuven: Leuven University Press, 1985). M c C o n v il l e , J. G. L aw a n d th eology in D euteronom y (Sheffield: JSO T Press, 1985). N ic h o l so n , E. W . “The centralisation of the cult in Deuteronomy”. Vetus T estam entum 13 (1963): 380-9. P a u l , M . J. H et A rchim edisch P u n t va n d e Pentateuchkritiek (‘s Gravenhage: Boekencentrum 1988). REiDER,J.“The origin of Deuteronomy”. TheJ ew ish Q uarterly R ev iew 2 7 (19361937): 349-71. W e n h a m , G. J. “The date of Deuteronomy; linch-pin of Old Testament criticism”. Themelios 10, n. 3 (1985): 15-20, e 11, n. 1 (1985): 15-18.

O SÉCULO 19 (1800-1918)

O século 19 foi uma época de enorme desenvolvimento social, político e cien­ tífico. Depois da mudança drástica causada pela Revolução Francesa e pelas Guerras Napoleônicas (1789-1815), uma nova ordem social emergiu na Europa. Nas Américas e na Rússia, novos poderes surgiram, com um potencial até então pouco conhecido. No decorrer do século, a civilização europeia estendeu-se para a maior parte da África e da Ásia, de modo que em torno de 1900 a cultura cristã ocidental predominava em quase todos os lugares. As igrejas fizeram parte dessa expansão; por volta de 1900, as missões protestantes, que um século antes praticamente não existiam, haviam estabelecido igrejas nativas em muitas partes do globo. Isso envolveu um esforço concentrado de tradução da Bíblia, que teria consideráveis implicações para os estudos bíblicos. A Revolução Francesa e seus efeitos geraram uma forte reação em países católicos romanos, reprimindo os estudos bíblicos durante quase um século. Na Alemanha, Napoleão realizou uma limpeza geral da antiga ordem, abolindo o Sacro Império Romano (1806) e reorganizando centenas de miniestados nos quais o país estava dividido. Essa reorganização (ou “mediatização”, conforme alguns a chamaram) também afetou as universidades, onde se concentrava o estudo bíblico erudito alemão. Sete faculdades protestantes desapareceram: Altdorf (1807), Rinteln e Helmstedt (1809), Frankfurt-an-der-Oder (1811), Erfurt (1816), W ittenberg (1817) e Duisburg (1818). W ittenberg, a universi­ dade de Lutero, juntou-se com Halle, e Frankfurt-an-der-Oder foi deslocada para Breslau, que abriu em 1811. Em compensação parcial, novas faculdades teológicas foram abertas em Berlim (1810) e Bonn (1818). Visto que o estudo acadêmico alemão do século 19 era amplamente do­ minado por alemães, é importante compreender a organização desse mundo. Durante a maior parte do período, houve vinte e uma faculdades teológicas protestantes formando pastores de língua alemã. Delas, dezessete estavam em solo alemão tradicional. Estavam em Berlim, Bonn, Breslau, Erlangen, Giessen, Gõttingen, Greifswald, Halle, Heidelberg, Jena, Kiel, Kõnigsberg, Leipzig, Marburg, Rostock, Tübingen e Würzburg. A elas, é necessário acrescentar Estrasburgo, que foi alemã de 1871 a 1919. Fora do Reich alemão havia Basiléia e Zurique, na Suíça, e Dorpat (Tartu) na Estônia. Dorpat foi russificada em 1893 (antes de se tornar estoniana em 1918) e assim excluída da órbita alemã.

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Essas universidades desfrutavam de um alto grau de autonomia interna, contanto que não ameaçassem a ordem do Estado. Isso podia ser um sério pro­ blema para as universidades no reino da Prússia, mas não teve grande peso em outras. Professores geralmente ocupavam seus cargos durante toda a vida e se alinhavam com a tradição da universidade em que estavam. Isso se aplicava principalmente a Tübingen, Gõttingen e Berlim, mas o mesmo princípio podia ser aplicado a praticamente qualquer lugar. Os alunos, por outro lado, deslo­ cavam-se livremente de uma faculdade para outra e muitas vezes freqüentavam várias universidades ao longo de sua formação. Isso significava que havia com­ petição real entre as universidades e não era mais possível suprimir ideias novas. A cena intelectual alemã tinha uma abertura desconhecida em outros lugares e esse fator foi preponderante em seu desenvolvimento gigantesco no século 19. A censura de opiniões heterodoxas ainda era praticada depois de 1815, até mesmo em países protestantes: o fato é que somente depois de 1890 alguém que defendia novas ideias radicais podia se sentir relativamente livre de perseguição. Na Alemanha, o estado desempenhava um papel ativo nesse aspecto, mas no mundo de fala inglesa essa tarefa era realizada pelas igrejas, que muitas vezes se valiam de tribunais para resolver seus problemas. O século 19 foi uma época de conflito teológico entre os liberais, herdeiros do estudo crítico erudito do século 18, e os conservadores, que dominavam a maioria das instituições eclesiásticas. Ao longo do tempo, os liberais gradualmente obtiveram o controle das univer­ sidades e delas excluíram os estudiosos conservadores. O estudo erudito alemão dominava os países escandinavos, com seu con­ texto histórico luterano, e o mesmo se podia dizer das minorias protestantes na França e Austria-Hungria. A Holanda até certo ponto mantinha uma tradição independente, mas a influência alemã era forte também ali. Somente em países de fala inglesa houve algum contrapeso à dominação alemã, mas essa realidade não resistiu ao longo do século. Enquanto em 1800 ideias britânicas ainda eram exportadas para a Alemanha, um século depois a tendência havia sido invertida, de tal modo que a maioria dos estudiosos britânicos não sabia como o liberalis­ mo “alemão” se havia originado. Entre 1805 e 1815, a erudição bíblica alemã se tornou irreconhecível. Os neologistas deram lugar a uma nova escola crítica, que virou o Antigo Testamento do avesso. Levou mais tempo para a mesma coisa acontecer nos estudos do Novo Testamento, mas por volta de 1840 esse processo estava em pleno andamento. Ao mesmo tempo, bem poucas pessoas na Inglaterra compreendiam isso. O alemão não era um idioma bem-conhecido, e aqueles que promoviam os alemães muitas

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vezes estavam às margens da vida da igreja, associados a unitaristas e outros livres-pensadores. Relata-se que, quando E. B. Pusey (veja p. 292) quis estudar na Alemanha na década de 1820, não conseguiu encontrar ninguém em Oxford que pudesse lhe ensinar alemão; mais tarde afirmou que havia somente nove pessoas em todo o país com a capacidade necessária para tal. Isso deve ser um exagero, mas for­ nece uma impressão correta do conhecimento geral das questões alemãs na época. Pusey foi para a Alemanha, onde foi aluno de Friedrich Schleiermacher, geralmente reconhecido hoje como o pai da teologia liberal alemã. Pusey ficou horrorizado e voltou para a Inglaterra como conservador irredutível, até mesmo reacionário, em questões teológicas e bíblicas. Como professor de hebraico em Oxford de 1828 até sua morte em 1882, ele tomou providências para que não se tolerassem quaisquer ideias liberais em estudos do Antigo Testamento. Na Escócia, houve uma tendência semelhante, amparada não pelo conservadorismo católico de Pusey, mas por presbiterianos dissidentes. O resultado foi que o estudo bíblico erudito britânico manteve um perfil bem conservador duran­ te muito mais tempo do que na Alemanha. A cena americana era ainda mais conservadora do que a britânica, e as batalhas entre conservadores e liberais só foram finalmente vencidas por estes na década de 1920. Visto que esse conflito foi tão importante, é essencial analisar o que signi­ ficavam as palavras “liberal” e “conservador” no século 19. O “liberal” podia ser descrito dos seguintes modos: 1. Ele se dedicava ao método histórico-crítico como o único modo seguro e objetivo de alcançar a verdade. A Bíblia era um livro humano escrito em deter­ minado contexto histórico e religioso. Mesmo que seus autores fossem de certo modo inspirados por Deus, eles estavam escrevendo para recomendar uma po­ sição religiosa que podia ser explicada por um sem número de fatores de modo completamente independente da revelação divina. A pesquisa acadêmica podia revelar o processo pelo qual isso havia ocorrido e emitir sua opinião. M uitos estudiosos críticos estavam convencidos de que o Antigo Testamento era em grande parte ficção e de que muitas pessoas e lugares nele descritos nunca ha­ viam existido. O Novo Testamento tinha mais credibilidade, mas sua descrição de Jesus era historicamente imprecisa. O cristianismo, incluindo os documentos do Novo Testamento, era produto de diversas forças rivais na igreja primitiva. O grupo vitorioso, que passou a predominar em cerca de 200 d.C., simplesmente anatematizou o restante e suprimiu seus escritos. 2. Os “liberais” suspeitavam, e até mesmo desdenhavam, do estudo erudito e da tradição anterior ao Iluminismo. Em especial, eles não gostavam de qualquer

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coisa que pudesse ser chamada “católica” e opunham-se a ela. Os liberais con­ sideravam a Reforma uma grande ruptura, uma transição para a liberdade intelectual do indivíduo, e eles travaram o que muitas vezes acabou sendo uma guerra declarada contra o papado e contra a igreja romana. A igreja do Novo Testamento não tinha uma hierarquia religiosa, e qualquer sinal de seu desen­ volvimento podia ser classificado como “catolicismo primitivo” e relegado ao período pós-apostólico. 3. O liberal geralmente era atraído por uma experiência espiritual isenta de dogmas. A teologia sistemática era resultado da corrupção que a igreja primitiva sofreu por influência de ideias helenistas e não correspondia ao ensino original de Jesus. Jesus era um homem que ensinava moralidade e liberdade espiritual; ele não era Deus em carne humana. O dogma havia transformado importantes princípios intelectuais em mistérios insondáveis e, portanto, era um grande ini­ migo da ciência. O “conservador” podia ser assim descrito: 1. Estava convencido de que a Bíblia era a Palavra de Deus divinamente inspirada. Essa era a grande premissa de todos os conservadores no século 19. Alguns estavam dispostos a admitir que gerações anteriores não haviam ex­ pressado essa ideia do melhor modo possível e, em seu zelo, talvez tivessem ido longe demais em suas afirmações. Outros se agarravam firmemente à posição da Fórmula de Consenso Helvética de 1675, segundo interpretada por Francis Turretin. M as o consenso era que a inspiração divina constituía a essência das Escrituras e que, sem ela, o cristianismo desmoronaria. 2. O conservador estava convencido de que a teologia dogmática era ne­ cessária para explicar os ensinos das Escrituras. Os conservadores do século 19 normalmente não eram pietistas em sua compreensão teológica. Pelo contrário, muitas vezes culpavam os movimentos pietistas por adotarem um ar de indi­ ferença diante de questões doutrinárias, postura que abriu o caminho para a introdução do liberalismo nas igrejas. 3. O conservador acreditava que, se os métodos acadêmicos fossem correta­ mente aplicados, a posição liberal seria provada como deficiente. O liberalismo se baseava mais em preconceitos do que em evidências, das quais a maior parte podia ser bem interpretada com as lentes conservadoras. O liberalismo não era uma ciência, mas uma crença que, em sua essência, era anticristã. O campo de desenvolvimento mais encorajador para os conservadores foi a arqueologia; foram eles que lideraram as grandes expedições para a Palestina, o Egito e a

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Mesopotâmia. É necessário lembrar que esses países eram bem desconheci­ dos em 1800, e ninguém podia afirmar com certeza se cidades como Nínive ou Babilônia haviam de fato existido. Esse ceticismo era comum e se estendia muito além da Bíblia; a maioria dos estudiosos questionava a existência daTroia de Homero, até ela ser descoberta por Heinrich Schliemann. A arqueologia cer­ tamente amenizou as especulações liberais mais extravagantes e acabou fazendo com que grande parte do estudo crítico erudito do século 19 parecesse desatua­ lizada e desligada da realidade histórica. Nem todas as descobertas arqueológicas do século 19 ampararam a posição conservadora, mas houve um número sufi­ ciente delas para tornar necessária a revisão de muitas posições liberais. Para concluir, podemos acrescentar que o século 19 assistiu ao desenvolvi­ mento da especialização no que até então havia sido um único campo de estudos bíblicos. Após 1800, foi ficando cada vez mais raro encontrar um estudioso que conhecesse bem os dois Testamentos. Portanto, devemos neste ponto di­ vidir nossos estudos em erudição do Antigo Testamento e erudição do Novo Testamento, examinando uma por vez.

7 O ANTIGO TESTAMENTO: DE DE WETTE A WELLHAUSEN O período e o tema Uma nova era no estudo erudito do Antigo Testamento começou com W . M . L. De W ette (1780-1849), que rompeu com a tradição neologista e seguiu por um caminho que o levaria a trabalhar em uma reelaboração completa da história e da religião de Israel. De W ette era tão cético quanto qualquer racionalista do século 18 poderia desejar, mas associou suas opiniões a um estudo erudito feito com cuidado e minúcias. Aqueles que dele divergiam não podiam rejeitar seus argumentos de imediato, mas precisavam demonstrar sua própria posição sobre fundamentos igualmente minuciosos. Os herdeiros de De Wette expandiram suas visões e as reformularam, mas apesar de uma grande quantidade de revisões e correções da tese de De Wette, algumas das quais causaram uma discussão relativamente acalorada, a direção geral estava bem clara. O método de De Wette havia triunfado; o resto era mero detalhe. Entre a nova classe de estudiosos críticos, reconheceu-se que os livros histó­ ricos do Antigo Testamento tinham um forte sabor deuteronômico e, de certo modo, estavam relacionados a esse livro, embora somente em 1943 se tenha de­ senvolvido a moderna teoria da “história deuteronômica”. Também se afirmou que Isaías não podia ser, em seu todo, obra do profeta que viveu na época de Ezequias (c. 715-686 a.C.) e que os capítulos finais eram obra de um ou mais profetas que viveram no Exílio ou logo depois. Vários outros livros, sobretudo Daniel e a literatura de sabedoria atribuída a Salomão, receberam datas muito posteriores das que tradicionalmente lhes eram atribuídas. A crítica textual era em geral mais conservadora, ao menos em virtude do fato de que o número limitado de variantes tornava novas divergências muito difíceis. Os desdobramentos mais promissores ocorreram no campo da filologia comparada, que se tornou uma das principais disciplinas à medida que outros idiomas semíticos foram descobertos. Diversas correções conjecturais foram fei­ tas ao texto hebraico, com base em etimologias derivadas de idiomas cognatos.

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No entanto, embora algumas palavras de origem incerta tenham sido assim esclarecidas, elas não eram numerosas o suficiente para causar uma revolução importante em nosso conhecimento do texto. O legado principal desse período foi uma série de excelentes gramáticas e dicionários hebraicos, que desde então se tornaram referências nesses campos. Perto do fim do século, a arqueologia começou a ser desenvolvida e seus resultados vieram em auxílio dos conservadores na luta contra os liberais. Não é nenhuma surpresa que tenha sido no país mais conservador de todos, os Estados Unidos, que a arqueologia recebeu mais apoio e incentivo. A li, e em grande medida também na Grã-Bretanha, ela se tornou baluarte do estudo erudito conservador e um dos principais recursos científicos da teologia ortodoxa. Seu impacto foi tão forte que, nos primeiros anos do século 20, até acadêmicos li­ berais alemães adotaram posições mais conservadoras em face dessa nova fonte de evidências. Nessa época, no entanto, a erudição veterotestamentária havia sido trans­ formada pelas teorias de Julius Wellhausen. As pesquisas de W ellhausen sobre o Pentateuco estabeleceram uma hipótese documentária tão satisfatória de suas origens que praticamente substituiu as teorias anteriores, de modo que muitas pessoas hoje pensam que a crítica do Pentateuco começou com ele. A hipótese documentária foi muitas vezes desafiada, mas, apesar de seus problemas, man­ tém-se como ponto de partida de todos os estudos modernos do Pentateuco.

Os intérpretes e sua obra A esfera alemã W ilhelm M artin Leberecht De W ette (1780-1849). Geralmente considerado pai dos estudos eruditos críticos do Antigo Testamento, De W ette recebeu desde cedo a influência de J. G. Herder. Logo aos 25 anos de idade, publicou sua dissertação sobre Deuteronômio, que estabeleceu um novo padrão nos es­ tudos críticos do livro. Um ano depois, começou a publicar suas B eitrã ge zur E in leitu n g in das A lte T estam ent [Contribuições para a introdução ao Antigo Testamento]. Nessa obra revolucionária, De W ette defendeu que grande parte do Antigo Testamento era mítica e tinha pouco valor histórico. M as De W ette não era um racionalista; ele considerava os mitos importantes veículos para a expressão de ideias filosóficas e religiosas em uma forma essencialmente poé­ tica. Nesse aspecto, ele seguiu as principais opiniões dos grandes estudiosos da época, incluindo Herder. Também foi profundamente influenciado pela filosofia

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religiosa de J. F. Fries (1773-1843), para quem a teologia era uma contemplação dos elementos “mais elevados” (isto é, mais intelectuais e “espirituais”) da reli­ gião. Ele mais tarde escreveu diversas obras sobre Salmos (1811,1819,1836) e uma teologia dogmática na qual incluiu ideias críticas (1813). W ilhelm Gesenius (1786-1842). Conhecido principalmente por sua análise filológica detalhada do texto hebraico, conduzida por ele de uma perspectiva racionalista. Defendeu a datação tardia tanto de Crônicas como de Deuteronômio e desenvolveu um tratamento mais sutil da categoria de “mito”, dividindo exemplos concretos destes em categorias históricas, filosóficas e “mistas”. Seu co­ mentário de Isaías (1820-1821) foi notável pela compreensão de detalhes críticos e consolidou a convicção acadêmica sobre a autoria múltipla do texto canônico. Continua conhecido por seu dicionário de hebraico, publicado em 1810-1812. C arl Peter W ilhelm Gramberg (1798-1830). Publicou uma história crítica das ideias religiosas do Antigo Testamento (1829-1830) na qual antecipou muitas das ideias de Wellhausen, mas morreu muito cedo, o que impediu que ele tivesse um impacto mais importante no desenvolvimento da erudição crítica histórica. Friedrich Bleek (1793-1859). Sua principal obra foi uma introdução ao Antigo Testamento, publicada somente após sua morte (1860). Nesse livro, ele se afastou das visões radicais de De W ette e caminhou na direção de uma convicção de que o código sacerdotal do Pentateuco tinha origem mosaica. Ele acreditava no emprego adequado de ferramentas críticas, o que para ele impli­ cava a obtenção de conclusões conservadoras. Christian C arl Josias von Bunsen (1791-1860). Diplomata e estudioso ale­ mão, passou grande parte da vida na Inglaterra e foi responsável principalmente por apresentar os métodos críticos de estudo da Bíblia ao mundo de fala inglesa. Isso pode ser visto no fato de Rowland W illiam s, em Essays a n d rev iew s [Ensaios e resenhas] (1860), ter lhe dedicado um ensaio de quarenta páginas, ao passo que outros estudiosos da época foram praticamente ignorados. Ele era tido em alta estima por H. Ewald, consideração que era recíproca. Bunsen tinha uma visão evolutiva do desenvolvimento da religião e interpretou Gênesis dentro de um pa­ no de fundo egípcio (1845-1857). Sua fama na Alemanha repousa amplamente em sua obra B ibelwerk f ü r die G em einde [A Bíblia para a igreja] (1858), em que colocou à disposição dos fieis comuns as descobertas da erudição crítica. Friedrich W ilhelm K arlU m breit (1795-1860). Deu aulas em Heidelberg a partir de 1820, onde foi professor de Antigo Testamento até sua morte. Escreveu diversos comentários que procuravam um caminho intermediário entre a orto­ doxia conservadora e a crítica radical. Sob muitos aspectos, foi o filho intelectual

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de Eichhorn, cuja abordagem filológica estrita seguiu bem de perto, e também de Herder, que lhe ensinou a qualidade espiritual do Antigo Testamento. Ele via no texto tanto um relato notável do desenvolvimento humano quanto uma par­ te fundamental da revelação divina, que conduzia a seu cumprimento em Cristo. Anton Günther (1783-1863). Sacerdote católico romano de Viena cuja teologia filosófica exerceu considerável influência sobre Franz Delitzsch. Ele acreditava que a teocracia hebraica originalmente havia sido um organismo vivo, no qual o pecado e o perdão eram proclamados no culto sacrificial e apoiados pelo movimento profético. M as, ao longo do tempo, o culto se tornara puramen­ te formal, e os profetas começaram a aguardar a futura restauração do mundo. O Antigo Testamento não produziu a cura desejada, e somente em Cristo as promessas finalmente se cumpriram. As opiniões de Günther não eram radicais pelos padrões da época, mas bastaram para que Roma o condenasse em 1857. Alguns de seus seguidores continuaram lutando por suas ideias e muitos contri­ buíram para a formação da dissidente Velha Igreja Católica após 1870. Hermann Hupfeld (1796-1866). Fiel seguidor de De W ette e, como este, admirador de Herder. Para ele, A Bíblia era um testemunho vivo do espírito religioso eterno e não um relato da história de Israel. Sua obra mais importante foi D ie Q uellen d er Genesis u n d d ie A rt ih rer Z u sam m ensetzung [As fontes de Gênesis e o modo pelo qual foram reunidas], publicada em 1853. Ele distinguiu dois tipos de fonte E, uma mais antiga e sacerdotal (agora o documento sacer­ dotal) e outra mais nova e de orientação mais legal. Além disso, enfatizou que o documento sacerdotal era a base do Pentateuco (o chamado G rundschrift), ao qual outras fontes foram mais tarde acrescentadas. Karl H einrich G raf (1815-1869). Seu grande livro D iegesch ich tlich en B ücher des Alten Testam ents [Os livros históricos do Antigo Testamento] veio a lume em 1866 e produziu inovações imediatas para a crítica do Antigo Testamento. A primeira parte tratava de Gênesis a 2Reis, a segunda, de 1 e 2Crônicas. Defendeu que não havia G rundschrift no Pentateuco. De acordo com ele, o redator deuteronômico havia combinado J com supostas seções narrativas do G rundschrift e com seu próprio material para constituir o alicerce do Pentateuco. O material sacerdotal foi redigido nos moldes das partes narrativas do chamado G rundschrift e acrescentado ao restante após o Exílio. Gustav Friedrich Oehler (1812-1872). Estudioso bem conservador, pu­ blicou uma introdução à teologia do Antigo Testamento (1845). Rejeitou as tentativas de cristianizar o Antigo Testamento, embora o visse como uma pre­ paração para o Novo. No entanto, os laços entre os Testamentos são visíveis,

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sobretudo quando considerados de uma perspectiva posterior; os próprios au­ tores do Antigo Testamento não estavam aguardando de modo consciente o futuro cumprimento de seus escritos. Johann Friedrich Ludwig George (1811-1873). Sua obra principal foi um estudo das festas judaicas na relação com a lei mosaica (1835), na qual afirmou que todas as festas oficiais tinham origem pós-exílica. Ele também acreditava que Deuteronômio, cuja origem na época do rei Josias ele aceitava, era anterior a trechos consideráveis de Êxodo—Números, ideia que mais tarde levou à teoria de que os últimos procediam de uma “fonte sacerdotal” anteriormente não iden­ tificada. George levou as ideias de De W ette à sua conclusão lógica e acreditava que a religião israelita pré-exílica era uma religião de liberdade cultural. Em mui­ tos aspectos, foi precursor de Wellhausen, com quem conviveu brevemente em Greifswald (1872-1873), mas não se sabe se exerceu influência direta sobre ele. H einrich Ewald (1803-1875). Ligado a Gõttingen durante a maior parte da vida, passou onze anos exilado em Tübingen (1837-1848) em protesto contra a suspensão da constituição hanoveriana e, em 1868, foi expulso da universidade por se recusar a jurar lealdade à Prússia. É universalmente reconhecido como um dos maiores estudiosos do Antigo Testamento de todos os tempos. Ewald parece radical quando comparado com alguém como Eichhorn, mas na compa­ nhia de De W ette e seus seguidores parece conservador, e W ellhausen o criticou por isso. No entanto, pode-se dizer que ele antecipou as teorias de estudiosos do século 20 como A. A lt e M . Noth; suas convicções recebem maior aceita­ ção agora do que durante sua vida. Foi o primeiro a escrever uma história de Israel, publicada entre 1843 e 1859. Também publicou extensas obras sobre os poetas (1835-1839; 1866-1872) e profetas (1840-1841; 1867-1868) do Antigo Testamento, cujo texto ele considerava de grande valor para a reconstrução da história israelita. Ao longo de seu trabalho sobre esses temas, Ewald desenvolveu uma teoria extremamente complexa das origens literárias desses documentos, que ele acre­ ditava terem passado por vários estágios de redação antes de chegarem à forma final. Em sua opinião, os livros históricos do Antigo Testamento podiam ser divididos em três grandes obras. A primeira era “o grande livro das origens”, que incluía o Pentateuco e Josué, obra concluída antes do Exílio. O segundo livro era “o grande livro dos reis”, que se estendia de Josué a 2Reis, produzido duran­ te o Exílio, e o último era “o grande livro da história universal”, que abrangia Crônicas, Esdras e Neemias e foi escrito em cerca de 323 a.C. por um levita. Também original era sua opinião de que havia dois deuteronomistas.

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Em 1848, Ewald publicou D ie A lterthüm er des Volkes Isra el [As antiguidades de Israel], em que fornece seu relato das origens dos rituais e das festas sacer­ dotais. A reconstrução que Ewald faz das origens de Israel afirma que, embora o relato de Gênesis fosse extremamente estilizado, ele continha mais que um núcleo de verdade. Em especial, ele estava disposto a aceitar, sobre fundamentos críticos, que Israel havia migrado do norte da Mesopotâmia em épocas patriar­ cais. Ewald juntou crítica, tradição e teologia em um produto único, que tornou suas visões acessíveis para todas as escolas de pensamento. Ao mesmo tempo, isso o distanciou de qualquer uma dessas escolas, o que fez dele uma figura solitária na cena alemã durante sua vida. Somente depois de sua morte é que seus pupilos entenderam sua importância e o quanto deviam a ele. Ferdinand H itzig (1807-1875). Professor em Zurique de 1833 até 1861 e depois em Heidelberg. Foi um prolífico comentarista e apresentou algumas propostas de datação bem radicais, como a sugestão de que Salmos teve origem no segundo século a.C. Segundo ele, a grande realização de Israel foi ter desen­ volvido uma religião transcendental ao mesmo tempo que evitou o panteísmo. Em sua opinião, isso se deveu ao fato de Israel preferir a verdade à beleza, evi­ tando, assim, a adoração da natureza. Em outros aspectos, ele acreditava que a religião israelita primitiva havia sido fortemente influenciada por religiões vizinhas, principalmente da Pérsia. Ludwig D iestel (1825-1879). Lecionou em Greifswald (1862), Jena (1867) e finalmente Tübingen (1872), sendo lembrado hoje principalmente por sua his­ tória do estudo erudito do Antigo Testamento (Geschichte des A lten Testam entes in d er christlichen K irche [História do Antigo Testamento na igreja cristã]), que veio a lume em 1869 e permanece como ponto de partida para todas as histórias da exegese do Antigo Testamento. Johann Karl W ilhelm Vatke (1806-1882). Publicou uma teologia bíblica radical em 1835, que, infelizmente para ele, coincidiu com uma reação con­ servadora em Berlim. Foi profundamente influenciado por Hegel, embora sua obra crítica não dependa necessariamente das ideias filosóficas hegeíianas. Seu conceito fundamental foi que a religião está continuamente se desenvolvendo de um estágio inferior para outro mais elevado, motivo pelo qual ele rejeitou a teoria de De W ette de que o judaísmo pós-exílico representava a decadên­ cia de um estágio mais elevado com Moisés e os profetas mais antigos. Vatke rejeitou as pretensões históricas da literatura israelita anterior ao século oitavo a.C. e baseou muitas de suas conclusões sobre o período em um estudo de reli­ gião comparada em Canaã e no Egito. Ele certamente não tinha uma opinião

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elevada de Moisés, mas acreditava ter sido ele quem deu início ao culto de Javé, que supostamente substituiu a religião anterior e astral de Israel. Os confessionalistas ortodoxos. A união de igrejas luteranas e reformadas, consumada em 1830, gerou um novo interesse pelas confissões reformadas, em especial entre os que estavam determinados a proteger a tradição luterana na igreja unida. Esses homens foram motivados por uma experiência religiosa vinculada à propagação do Avivamento Evangélico da Grã-Bretanha para a Europa continental e eram devotados à Confissão de Augsburgo de 1530, que eles consideravam a mais adequada expressão de sua fé. Estudiosos do Antigo Testamento destacavam-se entre eles, os quais fizeram uma campanha longa e com êxito parcial contra os proponentes dos novos métodos críticos. Em sua abordagem do texto, esses homens aceitavam as afirmações de fé que o texto fazia e consideravam digna de crédito a história na qual elas eram apresentadas. Eles, portanto, usaram sua erudição para defender a autenticidade do Antigo Testamento, sobretudo em seus aspectos históricos. Um membro proeminente desse grupo foi A u g u s t T h o l u c k (1799-1877). Em um discurso realizado em Londres em 1825, ele atacou a incredulidade da faculdade teológica de Halle e iniciou uma controvérsia que logo envolveria estudiosos em toda a Alemanha. Foi apoiado por diversos acadêmicos da mes­ ma opinião, que pensavam que os métodos críticos adotados por De Wette, Gesenius e outros estavam enfraquecendo o cristianismo. Entre outros confessionalistas encontram-se os seguintes: Ernst W ilhelm Hengstenberg (1802-1869). Professor de Antigo Testa­ mento em Berlim de 1828 até sua morte, tornou-se o mais prolífico e estimado dos estudiosos confessionalistas. As maiores obras de Hengstenberg foram B eitrã ge zur E in leitu ng ins Alte T estam ent [Contribuições para a introdução ao Antigo Testamento], publicada em três volumes de 1831 até 1839, e sua C hristology o f the O ld T estam ent [Cristologia do Antigo Testamento], publicada na Alemanha em 1829, traduzida para o inglês em 1858 e periodicamente reimpressa desde então. Seu principal interesse teológico era defender a obra expiatória de Cristo, o que o levou a adotar uma visão muito conservadora dos sacrifícios do Antigo Testamento. Ele desempenhou um papel proeminente em controvérsias ecle­ siásticas e acadêmicas e se esforçou ao máximo para impedir que estudiosos que usavam métodos críticos detivessem cargos universitários importantes. (Johann) Karl (C arl) Friedrich Keil (1807-1888) e Franz Delitzsch (18131890). Esses dois estudiosos estão indelevelmente entrelaçados, graças a seus excelentes comentários detalhados sobre o texto hebraico. Keil permaneceu

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firmemente conservador durante toda a vida, mas Delitzsch se tornou ligeira­ mente mais receptivo ao método crítico após se mudar de Erlangen para Leipzig em 1867. Seu comentário de Isaías, de 1866, defendeu a autoria tradicional dos 66 capítulos, mas edições posteriores revelaram uma mudança nessa posição, e ele parecia estar aceitando uma autoria múltipla na época de sua morte. Por causa da grande importância dos comentários desses dois eruditos, ainda hoje amplamente usados, eles são listados aqui por ano de publicação, com K ou D para indicar o autor: 1S51 1852 1857 1Sh4 1865 1866 1868

Cântico dos Cânticos (D) Gênesis (D) Josué (K) Êxodo e Levítico (K);Jó (D) Deuteronômio e Josué (K) Isaías (D) Juizes, Rute, Profetas Menores (K) 1870 Ester (K) 1871 Salmos (D)

1872 Daniel e Crônicas (K) 1873 Provérbios (D) 1875 Samuel (K) 1876 Reis (K) 1877 Eclesiastes (D) 1880 Jeremias e Lamentações (K) 1882 Ezequiel (K) 1887 Gênesis, edição revisada (D) 1888 Esdras e Neemias (K) 1889 Isaías, edição revisada (D)

Delitzsch também foi um renomado teólogo., e seu System, ofb iblicalpsychology [Sistema de psicologia bíblica] (1855) foi uma admirável tentativa de provar a unidade da descrição que a Bíblia faz da humanidade e sua correspondência essencial com os ensinos cristãos. Johann Christian Konrad von Hoffmann (1810-1877). Confessionalista que mais tarde se afastou da ortodoxia estrita, Hoffmann foi profundamente influenciado pelo historicismo de L. von Ranke (1795-1886), que lhe forneceu uma clara compreensão do equilíbrio que precisava ser estabelecido entre os motivos dos indivíduos e os processos subjacentes da história. Ele acreditava que a história humana era a revelação do amor do Deus triúno manifestado à sua criação. Essa realidade poderia ser conhecida somente por meio de uma conversão pessoal a Cristo, depois da qual a Bíblia a confirmaria. Seu método pode ser visto do modo mais claro possível em P rophecy a n d fu lfilm en t [Profecia e cumprimento] (1841-1842), obra na qual situou os profetas em sua própria época e enxergou a função que eles desempenhavam de apontar de uma época para a seguinte na história do Antigo Testamento, e não fundamentalmente de fazer previsões sobre Cristo (em contraste acentuado com Hengstenberg).

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Johann H einrich Kurtz (1809-1890). Último dos grandes estudiosos confessionalistas, foi professor de Dorpat de 1850 a 1870. Escreveu diversas obras defendendo visões tradicionais contra os críticos, incluindo uma história da an­ tiga aliança (1848-1855) e uma história sobre a adoração sacrificial do Antigo Testamento (1862). Seu interesse principal estava na história da igreja, sobre a qual também escreveu extensamente. Eduard Riehm (1830-1888). Escreveu uma importante introdução ao Antigo Testamento (1889), em que criticou a teoria documentária de Wellhausen sobre as fontes do Pentateuco pelo erro do autor em não reconhecer que J e E nem sempre tinham uma ligação tão forte quanto ele pensava. Ele mesmo acreditava que o G rundschrift sacerdotal datava de épocas monárquicas primitivas e havia sido combinado com J e E em uma única operação, em algum momento em torno do oitavo século a.C. A redação deuteronômica finalmente reuniu todo o Pentateuco que hoje conhecemos. Edouard (Eduard) Reuss (1804-1891). Nascido em Estrasburgo, escre­ via principalmente em francês, mas estudou na Alemanha e permaneceu em Estrasburgo após a cidade passar ao domínio alemão. Já em 1834 afirmava que a lei sacerdotal era pós-exílica e, portanto, posterior aos Profetas Maiores. Até mesmo Ezequiel, de acordo com Reuss, é anterior à composição das leis rituais do Pentateuco. Ele não tornou essa ideia pública e isso aconteceu somente quando um de seus pupilos, August Kayser, desenvolveu-a em Das vorexilische Buch d er Urgeschichte Israels u n d sein e E rw eiteru n gen [O livro pré-exílico da história antiga de Israel e suas expansões] (1874). Abraham Kuenen (1828-1891). Esse estudioso holandês e professor em Leiden tinha forte contato com os desenvolvimentos na Alemanha. Sua visão da história do Antigo Testamento era claramente reducionista, e ele repudiou qualquer conceito de “história da salvação” (H eilsgeschichte), de acordo com a qual o texto apresentava o desenvolvimento do propósito salvador de Deus pa­ ra Israel. Ele propôs a Graf, com base em sua leitura de Colenso, que todo o G rundschrift era pós-exílico. August D illm ann (1823-1894). Aluno de Ewald, apresentou argumentos críticos sobre o Pentateuco muito semelhantes aos de Riehm. Para ele, a se­ melhança de J e E no contexto original era suficiente para explicar seu grande entrelaçamento na redação final; não era necessário postular dois estágios no processo editorial. Bernhard Stade (1848-1906). Professor em Giessen a partir de 1857, es­ creveu uma grande história de Israel (1905) que defendia plenamente a posição

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de Wellhausen. No entanto, ele também acreditava que o Antigo Testamento era uma preparação para o Novo e que uma teologia bíblica era tanto possível quanto necessária. A dolf Kamphausen (1829-1909). Empregado por Bunsen como secretário pessoal, Kamphausen iniciou sua trajetória como seu assistente. Em 1859, foi para Bonn e, em 1868, sucedeu Delitzsch em Erlangen, onde permaneceu até 1900. Fez fortes críticas ao ceticismo histórico de Wellhausen e se esforçou para corrigi-lo. Foi um grande estudioso do texto hebraico e um bom juiz de seu material. Como um todo, seu estudo erudito era conservador para a época, embora não acreditasse na historicidade de Daniel, por exemplo. Ele escreveu pouco, mas foi influente na atualização da tradução de Lutero da Bíblia alemã. R udolf Sm end (1851-1913). Professor na Basiléia a partir de 1881 e depois em Gõttingen de 1889 até sua morte, foi colega de W ellhausen e o apoiou plenamente. Julius Wellhausen (1844-1918). Professor em Greifswald (1872), depois em Halle (1882), Marburgo (1885) e por fim em Gõttingen (1892), hoje é univer­ salmente reconhecido como representante clássico da hipótese documentária do Pentateuco. Em 1878, publicou sua obra principal, The history o f Israel [História de Israel], revisada em 1883. Também publicou um resumo da história de Israel em 1880, que constituiu a base do verbete sobre “Israel”na nona edição da E ncyclopaedia B ritannica (1881), provocando um escândalo no mundo de fala inglesa, na época ainda amplamente imune aos estudos da erudição crítica alemã. Wellhausen não tinha em alta conta a credibilidade do Pentateuco como história, embora aceitasse que uma figura obscura chamada Moisés, em certo sentido, havia sido o fundador da religião israelita. Ele concedeu mais crédito à história do povo na época dos juizes e dos primeiros reis, e suas concepções sobre esses períodos assemelham-se bastante ao que hoje pode ser encontrado em histórias críticas de Israel. Friedrich Delitzsch (1850-1922). Liberal fanático, em absoluto contraste com seu pai, Delitzsch chegou a afirmar que as descobertas arqueológicas, que a maioria das pessoas imaginava apoiar as narrativas do Antigo Testamento, des­ truíam sua singularidade, e, portanto, tais descobertas tornavam-se relativamente desimportantes. Destacou-se como defensor da teoria de que grande parte do Antigo Testamento tinha um contexto histórico babilônico, visão reforçada pela descoberta do Código de Hamurábi (1902). Sua principal contribuição foi na área da filologia, tendo continuado e desenvolvido a obra de Gesenius. W olfW ilhelm G rafvon Baudissin (1847-1926). Professor em Estrasburgo (1880), Marburgo (1881) e Berlim (1984), fez uma preleção em 1884 em que

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afirmou que, embora o documento sacerdotal (P) tivesse sido publicado na época de Esdras, ele representava um renascimento de práticas pré-exílicas, de modo que seu conteúdo era de data bem anterior. Ele acreditava que a religião israelita primitiva continha elementos proféticos, sacerdotais e deuteronômicos distintos. Bernhard Duhm (1847-1928). Professor na Basiléia de 1889 até sua morte, Duhm escreveu uma Theologie d er P ropheten [Teologia dos profetas] em 1875, em que preparou o caminho para Wellhausen. Sua obra mais conhecida é o comentário de Isaías (1892), em que de fato isolou os diferentes “cânticos do servo” e postulou um terceiro Isaías como autor dos capítulos 56—66, bem co­ mo confirmou a visão de Eichhorn de que havia um segundo Isaías que compôs os capítulos 40—55. Rudolf Kittel (1853-1929). Professor em Breslau de 1888 até 1898 e depois em Leipzig, Kittel desenvolveu a noção de W ellhausen de que P era uma fon­ te composta e traçou seus elementos mais antigos a épocas davídicas (1888). Ele pensava que esse documento havia sido composto no oitavo século a.C. e criticou Wellhausen por ignorar a importância da reforma de Ezequias. Inicialmente, acreditava que todo o Pentateuco havia sido redigido durante o Exílio, porém, com o resultado de descobertas arqueológicas, foi demovido a adotar uma posição muito mais conservadora (1906). Depois disso, desenvolveu uma abordagem mais positiva do texto, em especial a chamada “narrativa da sucessão” em 2Samuel. Theodor Nõldeke (1836-1930). Professor em Kiel (1864-1872) e depois em Estrasburgo (1873-1906), Nõldeke desenvolveu a hipótese de G raf em U ntersuchungen zu r K ritik des A lten T estam ents [Investigações na crítica do Antigo Testamento], publicado em 1869. Seu principal alvo nisso foi demons­ trar a unidade do G rundschrift — em oposição a G raf — e defender que era pré-exílico. Defendeu que o deuteronomista foi o redator final do texto. K arlBudde (1850-1935). Professor em Bonn a partir de 1879, Estrasburgo a partir de 1889 e Marburgo a partir de 1900, escreveu D ie biblische U rgeschichte [Pré-história bíblica] em 1883, em que dividiu a fonte J do Pentateuco, desse modo inaugurando modificações na hipótese documentária que foram usadas na pesquisa do século 20. Em uma obra posterior sobre a história da religião de Israel (1899), ele sugeriu que o javismo de Israel veio do casamento de Moisés (Ex 2.16-22) e, portanto, havia sido adotado dos queneus. Esse pensamento acabou ficando conhecido como hipótese queneia da origem do javismo. Johannes M einhold (1861-1937). O último dos grandes estudiosos alemães do Antigo Testamento do século 19, ensinou em Greifswald a partir 1885 e

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depois em Bonn a partir de 1889, onde permaneceu até sua aposentadoria em 1928. Vindo de um contexto muito conservador, converteu-se à posição de W ellhausen após muitos anos de pesquisa sobre suas descobertas. Ele escreveu com relativo detalhamento sobre Daniel e Isaías e tentou mostrar que as festas de Israel se originaram principalmente após o Exílio. Defendeu uma visão evo­ lutiva da religião de Israel, que culminou no ensino de Jesus. M as, ao mesmo tempo, distinguiu o ensino de Jesus bem fortemente de suas raízes do Antigo Testamento, pois nele M einhold via a perfeição do verdadeiro amor espiritual. M einhold viveu para ver seu tipo de liberalismo ser derrotado na Alemanha e se sentiu deslocado no ambiente teológico das décadas de 1920 e 1930 — um claro sinal de que uma época de estudo erudito havia chegado ao fim.

O mundo defala inglesa Adam Clarke (c. 1760-1832). Comentarista ortodoxo da Bíblia, sua obra sobre Gênesis veio a lume em 1810. Nela, ele se sentiu livre para afirmar que nem tudo no Pentateuco é derivado de M oisés, embora tenha defendido a autoria mosaica geral do texto. Ele também se esforçou muito em ligar o relato da criação a opiniões científicas prevalecentes e mostrou aguda consciência de dificuldades textuais. Suas soluções sempre tinham intenção conservadora e às vezes produ­ ziam resultados engenhosos. H ugh Jam es Rose (1795-1838). Estudioso do Trinity College, foi para a Alemanha em 1824 e voltou no ano seguinte, quando pregou uma série de sermões na universidade sobre o estado do protestantismo naquele país. Eles foram depois publicados e continham um panorama supreendentemente bom dos estudos eruditos alemães que então prevaleciam. Rose conhecia muito as ideias de Eichhorn, Gabler e De W ette e as descreveu de modo relativamente correto, mas em um tom hostil e de superioridade. Thomas Arnold (1795-1842). Não foi um estudioso do Antigo Testamento, mas um liberal anglicano que acreditava na revelação progressiva e queria que se interpretasse o Antigo Testamento a essa luz. Contribuiu muito para preparar o público cristão geral para aceitar uma visão evolutiva das origens da religião bíblica. M oses Stuart (1780-1852). Ensinou no Andover Seminary nos Estados Unidos a partir de 1810 e desenvolveu o estudo erudito do Antigo Testamento norte-americano durante essa época. Grande admirador dos estudiosos alemães, especialmente Eichhorn e Herder, tentou interpretá-los nos limites da ortodoxia calvinista. Quando encontrava dificuldades críticas que não conseguia explicar,

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dependia do conceito de inspiração divina para explicá-las. Estranhamente, ele acabou aceitando um grau de revelação progressiva no Antigo Testamento, que geralmente era considerada herética no meio em que ele circulava. Sua mais influente obra foi A critica i history o f the d efen ce o f the O ld T estam ent canon [Uma história crítica da defesa do cânon do Antigo Testamento] (1845), e também escreveu comentários de Daniel (1850) e Eclesiastes (1851). Theodore Parker (1810-1859). O mais radical crítico bíblico americano de sua época, Parker foi um ministro unitarista que acreditava que o estudo eru­ dito crítico acabaria destruindo a autoridade da Bíblia — um acontecimento que ele aguardava ansiosamente. Traduziu a introdução de De W ette ao Antigo Testamento e a comentou em uma direção ainda mais radical. Seu alvo fun­ damental era transportar todo o estudo crítico alemão para o solo americano. É interessante observar que ele foi o único estudioso americano do Antigo Testamento cuja obra não passou despercebida na Alemanha dessa época. Joseph Addison Alexander (1809-1960). Ensinou no Princeton Seminary a partir de 1834 e foi um prolífico comentarista da Bíblia. Seus comentários permaneceram clássicos de seu tipo, representando o melhor da exposição bíbli­ ca calvinista ortodoxa, e são reimpressos com frequência ainda hoje. Merecem menção especial seus comentários de Salmos (1850) e de Isaías (1846-1847). E ssays a n d r e v ie w s [E nsaios e resenhas] (1860). U m a com p ilação de sete ensaios de seis clérigos lib erais d a Ig reja da In g la te rra e de u m d ig n itário de C a m b rid g e , am p lam e n te con sid erad a o ve rd ad e iro in ício d o m o d e rn o lib e ­ ra lism o anglicano. Q u a tro dos ensaios tê m u m a relação d ireta com a crítica

(1821-1902), (1817-1893), R o w l a n d W il l i a m s (1817-1870) e C h a r l e s (1817-1878). O en saio de J o w e tt sobre a in te rp re ta çã o das E scritu ras

do A n tig o T estam en to . F o ram escritos p o r F r e d e r ic k T e m p l e B e n ja m in J o w e t t G

o o d w in

ficou fam o so e m uitas vezes é reim p resso em an tologias ain d a h oje, em b o ra após a c o n tro vé rsia ele te n h a d esistid o de escrever sobre questões religiosas e se v o lta d o a estudos clássicos. S eu arg u m en to p rin c ip a l era que a B íb lia é u m liv ro com o q u alq u er o u tro liv ro e d eve ser in te rp re ta d o com a m esm a ab ord agem crítica que se ap licaria a q u alq u er o u tro liv ro de an tigu id ad e clássica. D e acordo com ele, a B íb lia era o re la to d a educação p ro g ressiva d a m en te h u m an a, que alcan çou seu auge n o en sin o de Jesus.

Temple argumentou, segundo uma linha mais ou menos semelhante, que o Antigo Testamento era um livro de regras (lei) destinado a educar a raça humana até que ela pudesse aceitar a liberdade do Espírito concedida em Cristo, com a tradição profética apontando para isso. Ele comparou o legalismo do

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Antigo Testamento com a tradição dogmática no cristianismo e defendeu que a humanidade agora havia alcançado um estágio de desenvolvimento em que nenhum dos dois era necessário. W illiam s tratou do estudo erudito alemão contemporâneo, que para ele significava quase exclusivamente a obra de Bunsen, uma figura secundária na cena alemã. O ensaio de Goodwin talvez seja o melhor. Ele tratou do relato da criação de Gênesis e afirmou que havia sido escrito à luz do conhecimento científico disponível para o autor. Visto dessa perspectiva, é um texto notável, mas não comparável às teorias complexas da ciência moderna. Defender, como os defensores de Gênesis estavam fazendo, que o relato bíblico da criação era inteiramente compatível com as descobertas da ciência moderna não somente era falso, mas também não correspondia à intenção do autor. Essays a n d re v iew s causou um enorme escândalo na Inglaterra, e alguns de seus colaboradores foram julgados por heresia. As respostas oficiais eram inva­ riavelmente fortes defesas da fé tradicional na inspiração divina das Escrituras e na concordância completa entre seu ensino e as descobertas científicas modernas. Nem os E nsaios nem as respostas apresentaram um padrão muito elevado; em relação ao estudo erudito alemão, elas mal foram além da posição de Eichhorn. M as a controvérsia serviu para exasperar a atmosfera e colorir toda a questão da crítica bíblica durante mais uma geração. Josiah W illard Gibbs (1790-1861). Lecionou em Yale a partir de 1824 e ali desenvolveu estudos do texto hebraico. Ele mesmo escreveu pouco, mas influen­ ciou uma geração de estudiosos e pastores em uma direção mais liberal. Thomas H artwell H om e (1780-1862). Ele é bem conhecido por sua obra Introduction to the critica i study a n d k now ledge o f the H oly Scriptures [Introdução ao estudo crítico e ao conhecimento das Escrituras Sagradas] (1818), que passou por diversas edições e revisões até 1860 e se tornou um dos principais textos sobre o tema. Suas concepções eram mais conservadoras que as de Clarke, mas ele não hesitou em sugerir correções e rearranjos textuais onde sentia serem necessários. Edward Robinson (1794-1863). Tinha forte interesse por crítica bíblica, mas de uma perspectiva essencialmente conservadora. Manteve a convicção de um só autor de Isaías, seguindo Hengstenberg, posição ainda mais conserva­ dora que a de seu professor, Moses Stuart, que (talvez surpreendentemente) seguiu a visão mais tradicional nesse aspecto. Traduziu o léxico de Gesenius (1833) e foi pioneiro da arqueologia bíblica. Depois de visitar a Palestina, ele produziu R esearches in P alestine [Pesquisas bíblicas na Palestina] (1841), o pri­ meiro levantamento científico da evidência arqueológica e ainda considerado

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uma obra-prima. Foi essa experiência que confirmou o conservadorismo de Robinson e o levou a afirmar confiantemente que se podia e devia interpretar a Bíblia em seu contexto original. H enry H art M ilm an (1791-1868). Autor de The history o f the J e w s [A his­ tória dos judeus] (1829-1830; 2. ed. 1863), em que faz referências ocasionais a estudiosos alemães como M ichaelis, mas como um todo é um relato tradicional da história israelita. Sugestões ocasionais feitas nela de que o relato bíblico pode precisar de correção foram suficientes para causar uma tempestade de con­ trovérsias quando o livro surgiu. Na época da segunda edição, suas convicções estavam se tornando aceitáveis, mas sua radicalidade ainda estava no lim ite da aceitabilidade dos leitores britânicos. George Rapall Noyes (1798-1868). Professor de hebraico e literatura sacra em Harvard a partir de 1840, foi notável pelas suas traduções da poesia do Antigo Testamento e queria produzir uma nova tradução de todo o texto, bem como uma série de comentários críticos. Foi um forte crítico de conservadores contemporâneos como Hengstenberg e pensava que era totalmente impossível defender a fé cristã em uma base racional. Frederick Denison M aurice (1805-1872). Esse teólogo se converteu do unitarismo para a Igreja da Inglaterra. Assim como Arnold, foi um progressista em questões religiosas e queria encorajar o pensamento liberal. No entanto, ele manteve uma visão conservadora da historicidade do Antigo Testamento e mais tarde rompeu com J. W . Colenso (veja p. 293) a respeito disso. Sua obra principal no campo de estudos do Antigo Testamento foi Patriarchs a n d la w g iv ers o f the O ld T estam ent [Patriarcas e legisladores do Antigo Testamento] (1851). H enry John Rose (1800-1873). Irmão de Hugh (p. 288), continuou man­ tendo uma posição conservadora em questões do Antigo Testamento. Foi um dos principais opositores de Essays a n d re v iew s (veja p. 289). Patrick Fairbairn (1805-1874). Pregador e professor da Igreja Livre da Inglaterra, sua maior obra foi T ypology o f S cripture [Tipologia das Escrituras] (1845-1847), que teve continuação em The in terpretation o fp ro p h ecy [A inter­ pretação da profecia] (1856), em que argumentou que a tipologia no Antigo Testamento era mais prevalecente do que o Novo sugere, embora não se de­ vesse levar isso a extremos. Ele também editou The im p eria l B ible diction ary [Dicionário bíblico imperial] (1864-1866) e escreveu comentários de Jonas (1849) e Ezequiel (1851), bem como H erm en eu tical m anu al [M anual her­ menêutico] (1858). Embora fosse principalmente um estudioso do Antigo Testamento, também publicou um comentário das Epístolas Pastorais (1874).

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James Bowling M ozley (1813-1878). Professor régio de teologia em Oxford a partir de 1871, opôs-se tanto a Essays a n d rev iew s (veja p. 289) como a Colenso (p. 293), mas sentiu que era necessária uma resposta mais elaborada e fundamenta­ da do que aquelas comumente concedidas na época. Ele desenvolveu suas opiniões em R u lin g ideas in early ages a n d their relation to O ld Testament fa ith [Ideias prevalecentes em épocas primitivas e sua relação com a fé do Antigo Testamento] (1877). Nesse livro, ele afirmou que a diferença fundamental entre a época do Antigo Testamento e a nossa era o fato de que os povos antigos não tinham nenhuma concepção de responsabilidade ou moralidade individuais. Tudo era coletivo em sua experiência, o que explica por que matanças tribais em massa, que parecem imorais para nós, eram perfeitamente aceitáveis para eles. Para compreender o Antigo Testamento, é necessário primeiro entrar em seu universo mental; somente então estaremos em condições de julgar se o que o texto diz é certo ou errado. A rthur Penrhyn Stanley (1815-1881). Professor régio de história eclesiás­ tica em Oxford de 1856 até 1863, publicou três séries de L ectures on the history o f the J ew ish church [Preleções sobre a história da igreja judaica] (1863, 1865, 1876). Da perspectiva do estudo crítico, as preleções são ecléticas e insatisfa­ tórias, mas elas representam a primeira tentativa em inglês de escrever uma histórica crítica de Israel da perspectiva de Ewald, cuja obra Stanley admirava grandemente. É difícil identificar sua posição sobre o Pentateuco, mas ele se opôs ao ceticismo de Colenso. Parece que estava disposto a aceitar que as leis somente assumiram sua presente forma em um período muito posterior àquele a que foram teoricamente atribuídas. Ao mesmo tempo, Stanley acreditava que o sistema sacrificial era um empréstimo de fontes não israelitas e representava uma forma mais rudimentar de religião do que a proclamada pelos profetas. O valor fundamental do sacerdócio era seu poder permanente; após o desapareci­ mento da inspiração profética, os sacrifícios no templo continuaram como um lembrete da identidade religiosa de Israel. Edward Bouverie Pusey (1800-1882). Professor régio de hebraico em Oxford de 1828 até sua morte, escreveu seu H istorical en q uiry into the p ro b a ble causes o f the rationalist character lately p red o m in a n t in the th eology o f G erm any [Investigação histórica das causas prováveis do caráter racionalista ultimamente predominante na teologia da Alemanha] em 1828. M ais hostil aos alemães ainda do que Hugh Rose, Pusey denunciou M ichaelis e Eichhorn como praticamente infiéis. Ele não mostrou tanta condenação para com De W ette, embora de modo algum tenha sido favorável à sua filosofia orientada pela escola da Frísia. Em Oxford, defendeu visões extremamente conservadoras, como seu comentário

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de Daniel (1865) deixa claro. Pusey estava profundamente envolvido no avivamento anglo-católico, e seu nome quase se tornou sinônimo dele. Ele dedicou grande parte de sua vida posterior à controvérsia a respeito disso e não foi muito produtivo como estudioso da Bíblia. John W illiam Colenso (1814-1883). Graduado na St Johrís College, Cambridge, e amigo do clérigo liberal F. D. M aurice, foi designado bispo de Natal, na África do Sul, em 1853. Suas concepções sobre a Bíblia eram inge­ nuamente conservadoras nessa época, mas foram abaladas por perguntas sobre o verdadeiro significado do texto apresentadas por um dos convertidos zulus a quem havia sido chamado para ministrar. Em cerca de 1861, ele começou a estudar o Pentateuco seriamente, com a ajuda de obras de estudiosos alemães importantes da época, tanto conservadores quanto liberais. Logo estava negando a infalibilidade bíblica e atacando o conservadorismo, que ele associou acima de tudo ao movimento anglo-católico em ascensão. Em 1862, foi acusado de here­ sia por causa de um comentário que havia escrito sobre Romanos e voltou para a Inglaterra para enfrentar um julgamento. A li ele leu a In trodu ction [Introdução] de Samuel Davidson (veja p. 295), que ele declarou ser a mais competente obra na Inglaterra sobre o assunto da crítica bíblica. No fim de 1862, Colenso publicou The P entateuch a n d the Book o f Joshua critically ex a m in ed \ 0 Pentateuco e o Livro de Josué criticamente examinados]. Nesse livro, tratou do problema do elevado número de israelitas que ao que tudo indica marcharam no deserto: 600.000 de acordo com Êxodo 12.37,38 e 603.550 de acordo com Números 1.46. Isso teria composto uma população total de mais de dois milhões! Para servir às suas necessidades religiosas, havia, se­ gundo consta, somente três sacerdotes: Arão e seus dois filhos, que precisariam trabalhar sem parar para realizar os rituais atribuídos a eles em Levítico. Essas críticas eram semelhantes às que os deístas já haviam feito, e Colenso não estava dizendo praticamente nada de novo. M ais tarde, ele explicou suas pesquisas das questões de autoria e composição. Defendeu que E era o G rundschrift no Pentateuco e que havia sido redigido por Samuel, visto que o nome Javé não foi usado antes dessa época. Colenso defendeu esse argumento com base em Salmos, que ele acreditava oferecer evidência de que Davi havia usado Elohim como o nome de Deus para a parte inicial de sua vida e então mudado para Javé (hoje, como questão de interesse, muitos estudiosos acreditam que os salmos “eloístas” originalmente continham o nome Javé e mais tarde foram alterados). Colenso subsequentemente concentrou sua atenção em Deuteronômio e em Gênesis 1— 11, os quais examinou do modo mais completo possível. Até

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certo ponto, dependeu da exegese crítica alemã contemporânea, em especial de Hupfeld, mas chegou a muitas de suas conclusões de forma independente. Em especial, ele pensava que o segundo eloísta era provavelmente idêntico ao j avista e que a mudança do nome divino era deliberada de sua parte. Isso teve o efeito de dissociar o autor do uso de um nome divino específico e representou um grande avanço na compreensão crítica. Colenso então continuou postulando a existência de quatro javistas distintos, que viveram e trabalharam no período monárquico primitivo. Grande parte do Pentateuco, portanto, existia na época de Salomão, com Deuteronômio sendo acrescentado por Jeremias, partes de Levítico por Ezequiel e os toques finais por vários autores sacerdotais até a época de Esdras, quando toda a obra estava concluída. Colenso se via constantemente em problemas com as autoridades ecle­ siásticas, por combinar visões críticas com concepções relacionadas à Baixa Igreja. Ele considerava a datação tardia de partes levíticas do Pentateuco como uma defesa para aqueles que estavam batalhando contra o crescimento do ritualismo na Igreja Anglicana. Também rompeu com F. D. M aurice, cujo li­ beralismo não se estendia à crítica do Antigo Testamento como fato histórico. Suas soluções para problemas críticos muitas vezes eram simplistas, mas as questões que ele levantou fazem parte da disciplina do estudo do Pentateuco desde então. M arcus Kalisch (1825-1885). Judeu alemão, emigrou para a Inglaterra em 1848. Escreveu um comentário de quatro volumes de Gênesis (1858), Êxodo (1855) e Levítico (1867,1872), bem como uma gramática hebraica. Suas visões sobre Gênesis e Êxodo eram relativamente tradicionais, mas ele reconheceu a existência de problemas críticos. Sobre Levítico, no entanto, ele foi muito mais radical e acreditava que o sistema sacerdotal se desenvolveu plenamente somen­ te depois do Exílio. No entanto, resistiu a tentativas contemporâneas de ligar essa visão a uma teoria de desenvolvimento religioso e baseou suas conclusões o máximo possível em evidências textuais somente. H ugh M artin (1822-1885). M inistro da Igreja Livre da Escócia, defendeu a teologia da aliança tradicional e a inspiração das Escrituras contra as tendências liberais em ascensão. Escreveu um comentário de Jonas (1866) de uma perspec­ tiva extremamente tradicional. Edward Hayes Plum ptre (1821-1891). Foi professor de exegese na Kings College, Londres, de 1864 até 1881, e um importante estudioso conservador. Em B iblica lstu dies [Estudos bíblicos] (1869), rejeitou a teoria do segundo Isaías. Também publicou um comentário de Eclesiastes em 1881.

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Andrew Alexander Bonar (1810-1992). Proeminente pregador da Igreja Livre da Escócia, escreveu um comentário de Levítico (1846), em que interpre­ tou a lei cerimonial como uma alegoria da obra de Cristo. Charles Haddon Spurgeon (1834-1892). O maior pregador em um século de gigantes, Spurgeon pregou em Londres de 1854 até sua morte, deixando uma enorme quantidade de sermões que foram publicados semanalmente até 1917. Como comentarista bíblico, é conhecido por The treasury o f D a v id [O tesou­ ro de Davi], um estudo de sete volumes sobre Salmos (1888-1891). Também atacou fortemente os críticos de sua época em C om m en ting a n d com m entaries [Comentando e comentários] (1876). Francis W illiam Newman (1805-1897). Irmão mais novo de John H enry Newman, passou de uma fé ortodoxa a uma posição de radicalismo extremo. Em seu livro A history o f the H ebrew m o n a rch y from the adm inistration o f S am uel to the Babylonish ca p tivity [Uma história da monarquia hebraica da administra­ ção de Samuel até o Cativeiro Babilônico] (1847), desenvolveu suas opiniões críticas, entre as quais estava uma datação tardia do Pentateuco. Demonstrou certo conhecimento dos estudos alemães da época, mas estes não parecem tê-lo influenciado muito, e sua abordagem foi bastante original. Samuel Davidson (1806-1898). Nascido na Irlanda do Norte, tornou-se professor de crítica bíblica na Belfast Academical Institution em 1835 e se mu­ dou para a Lancashire Independent College em 1843. Em 1857, foi obrigado a pedir demissão por causa de suas posições liberais, expressas em The tex t o f the O ld T estam ent con sid ered \ 0 texto do Antigo Testamento analisado] (1856). Em 1862, assumiu uma função em Londres, onde começou a se associar com os unitários a partir de 1870 aproximadamente. Sua In trodu ction to the Old T estam ent [Introdução ao Antigo Testamento] foi publicada em 1863. Desde muito cedo, mostrou grande simpatia para com o pensamento crítico alemão e, em sua Sacred herm eneutics [Hermenêutica sagrada] (1843), escreveu uma avaliação detalhada e de modo geral justa dele. Fez fortes críticas à tendência de Kant de julgar a Bíblia de acordo com suas ideias de moralidade, até em casos em que a própria Bíblia não faz juízos morais. Também criticou Eichhorn e os neologistas por levarem longe demais o antigo princípio da adequação. Davidson estava disposto a aceitar que a Bíblia empregava a adequação formal (isto é, o uso de formas apropriadas, como a parábola ou alegoria), mas não que os autores bíblicos haviam adaptado sua mensagem à ignorância e aos pre­ conceitos de sua época. Suas visões críticas seguiram amplamente as de Keil e dificilmente podiam ser consideradas radicais de acordo com critérios alemães,

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mas eram inaceitáveis para a opinião conservadora na Grã-Bretanha. Hoje ele é lembrado como o “m ártir” de 1857, e não por seu estudo bíblico em grande parte não original. Andrew BruceD avidson (1831-1902). Foi professor de Antigo Testamento na New College, Edimburgo, a partir de 1863 e o autor de diversos comentá­ rios críticos publicados em Cambridge, entre eles Jó (1884), Ezequiel (1892) e Naum, Habacuque e Zacarias (1899). Foi aluno de Ewald em Gõttingen e compartilhava em grande parte de sua perspectiva. Também ensinou W illiam Robertson Smith (veja abaixo), mas ficou fora da controvérsia causada pelas convicções deste. W illiam Robertson Smith (1846-1894). Foi professor na Free Church College, em Aberdeen, de 1870 até 1881, e então sucessivamente professor e catedrático de árabe em Cambridge de 1883 até sua morte. Suas obras mais famosas são The Old Testament in the Jew ish Church [O Antigo Testamento na igreja judai­ ca] (1881) e The Prophets o f Israel a n d th eirp la ce in history to the close o f the eighth cen tu ry B C [Os profetas de Israel e seu lugar na história até o fim do oitavo século a.C.] (1882). Robertson Smith era um evangélico sólido, que acreditava que uma interpretação crítica do Antigo Testamento de acordo com a perspectiva estabele­ cida por Wellhausen era o único modo de se poder vindicá-lo como a Palavra de Deus. Sua importância está no fato de que ele tratou da opinião de que a crítica bíblica era um ataque racionalista ao cristianismo, e ele tentou mostrar que ela era compatível com uma devoção fervorosa à mensagem do evangelho. Robertson Smith argumentou que a Bíblia falava ao coração, por meio da obra do Espírito Santo, a fim de levar o leitor a uma fé viva em Deus. Desse modo, ele estava convencido de que sua posição era a dos principais reformadores, que também haviam falado sobre o “testemunho interno do Espírito Santo”. Para ele, o Antigo Testamento era o relato das condutas graciosas de Deus com Israel e, portanto, uma revelação progressiva do amor divino. Ele tratou das afirmações históricas aparentemente falsas de certos livros do Antigo Testamento (notavel­ mente Crônicas) apelando à perspectiva do autor (ou dos autores), para quem essas afirmações teriam parecido naturais. A chave para sua interpretação era que o Antigo Testamento fala sobre uma religião que oferece “acesso a Deus”. O sacer­ dócio levítico desenvolvido limitava esse acesso com todos os tipos de restrições cultuais e legais, mas ainda assim era apropriado em sua própria época e lugar. A importância de Robertson Smith para a história subsequente é que ele conseguiu integrar a compreensão da revelação com a teoria e o método críticos de Wellhausen. Ao afirmar que era possível ser um cristão piedoso e um crítico

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radical ao mesmo tempo, ele desarmou os ataques por parte daqueles e abriu o caminho para a aceitação por parte destes. O clima intelectual britânico de qualquer modo estava sendo preparado para a aceitação de uma abordagem evolutiva do desenvolvimento humano, e as teorias de W ellhausen eram perfei­ tamente compatíveis com isso. Robertson Smith forneceu a ponte e a ligação que combinou seu estudo erudito com o espírito da época na Grã-Bretanha e, assim, introduziu uma nova era nos estudos do Antigo Testamento. W illiam Gordon Blaikie (1820-1899). Professor na Free Church College, Edimburgo (1868-1897), escreveu D avid, king o f Israel [David, rei de Israel] (1856), B ible history [História bíblica] (1859), B ible geogra p h y [Geografia bí­ blica] (1861) e H eroes o f Isra el [Heróis de Israel] (1894). Sua abordagem foi popular e amplamente influente. Como um todo, ele se limitou a uma interpre­ tação conservadora dos personagens e acontecimentos do Antigo Testamento, mas não se opôs à crítica bíblica e fez certo uso dela onde era apropriado. John James Stewart Perowne (1823-1904). Foi professor da cátedra Hulse de teologia em Cambridge de 1875 até 1878 e o primeiro editor do Comentário Bíblico de Cambridge, que após um começo conservador (1872-1884), tornou-se um dos veículos fundamentais dos estudos críticos na Inglaterra. W illiam R ainey H arper (1856-1906). Professor de idiomas e literaturas semitas em Chicago a partir de 1891, escreveu diversas obras sobre sintaxe hebraica e um bem-conhecido comentário de Amós e Oseias (1905). Suas con­ vicções eram as da cena crítica dominante que havia penetrado o pensamento anglo-americano na década de 1880. Samuel Rolles Driver (1846-1914). Foi o sucessor de Pusey em Oxford (1883). O desenvolvimento de suas posições sobre a crítica do Antigo Testamento reflete o progresso realizado pelos críticos alemães radicais na década após 1880. Em um sermão pregado em Oxford em 21 de outubro de 1883, Driver aceitou que havia dois relatos da criação em Gênesis, que haviam sido influenciados por fontes externas, sobretudo babilônicas. No entanto, Driver permaneceu con­ vencido de que a Bíblia era a Palavra de Deus inspirada e incontestável como verdade moral e espiritual. Em 1882, sua atitude em relação à crítica bíblica ainda era cautelosa e, portanto, conservadora, e ele não hesitou em objetar a visões alemãs, incluindo as de Wellhausen. No entanto, parece que ele tinha uma visão mais cerebral da revelação que a de Robertson Smith; para Driver, a revelação não era tanto a presença de Deus no coração, mas a transmissão de informações espirituais à mente. Isso levantou problemas agudos para sua visão da fidedignidade do texto bíblico.

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Por volta de 1885, Driver estava preparado para aceitar que havia linhas de narrativa sacerdotais, proféticas e deuteronômicas no Pentateuco e, em 1887, ele atribuiu o progresso na religião israelita ao papel dos profetas — uma visão que B. Duhm havia apresentado na Alemanha em 1875. M as em 1891, em seu livro An introduction to the litera tu re o f the O ld T estam ent [Uma introdução à literatura do Antigo Testamento], Driver mostrou a aceitação completa da posição de W ellhausen. Dessa época em diante, ela se tornou cada vez mais comum no estudo acadêmico britânico. Driver continuou desenvolvendo suas convicções em seu comentário de Gênesis (1904). Thomas Kelly Cheyne (1841-1915). Neto de T. H. Horne e professor da cátedra O riel em Oxford de 1885 até 1908, começou como discípulo de Ewald, mas posteriormente aceitou a datação pós-exílica do G ru n dsch rift do Pentateuco. Após 1880, ele adquiriu um a perspectiva mais evangélica, mas influenciada principalmente por Robertson Sm ith. Na velhice, seu estudo erudito se tornou excêntrico e ninguém o levava a sério. Ele é lembrado hoje principalm ente por seu livro F ounders o f O ld T estam en t criticism [Fundadores da crítica do A ntigo Testamento] (1893), que narrou o início do estudo crí­ tico na Inglaterra. Crawford H owellToy (1836-1919). Foi professor de Antigo Testamento no Southern Baptist Seminary, Louisville (1869-1879), e subsequentemente pro­ fessor de idiomas orientais e literatura bíblica em Harvard (1880-1909). Pediu demissão do Louisville Seminary por causa de suas visões liberais, mas acabou se tornando um expositor reconhecido da alta crítica alemã mesmo sediado em Harvard. Suas principais obras incluem A history o fth e religion o f Isra el [História da religião de Israel] (1882), Q uotations in the N ew T estam ent [Citações no Novo Testamento] (1884),Judaism a n d C hristianity [Judaísmo e cristianismo] (1890), An introdu ction to the history o f religion s [Introdução à história das religiões] (1913) e um comentário de Provérbios (1899). George Buchanan G ray (1865-1922). Tutor e professor em Mansfield College, Oxford, fez notáveis contribuições ao estudo erudito do Antigo Testa­ mento em seus comentários de Números (1903) e de Isaías 1—27 (1912). Sua obra póstuma, Sacrifice in the O ld T estam ent [Sacrifício no Antigo Testamento] (1925), foi uma importante obra de teologia do Antigo Testamento. John Jam es Lias (1834-1923). Estudioso conservador, escreveu P rincipies o f biblical criticism [Princípios de crítica bíblica] (1893), em que atacou fortemen­ te tanto W ellhausen quanto Driver. Ele também escreveu um comentário de Juizes (1884).

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John Skinner (1851-1925). Professor em Londres a partir de 1890 e mais tarde em Cambridge, escreveu um comentário de Isaías 1—39 na série Cambridge (1896). Charles Fox Burney (1868-1925). Ensinou em Oxford, onde foi profes­ sor da cátedra Oriel a partir de 1914. Suas principais obras sobre o Antigo Testamento foram N otes on the H ebrew tex t o f the Book o f K in gs [Notas sobre o texto hebraico do Livro de Reis] (1903),I sra el’s settlem en t in Canaan [O estabe­ lecimento de Israel em Canaã] (1918) e um comentário de Juizes (1918). H erbert Edward Ryle (1856-1925). Professor de teologia da cátedra Hulse em Cambridge de 1887 até 1901, foi o filho do mais proeminente bispo evan­ gélico conservador da época, John Charles Ryle (1816-1900). No entanto, desenvolveu fortes opiniões críticas, que ficaram evidentes em seus livros, The early n a rra tives o f Genesis [As narrativas primitivas de Gênesis] (1892) e The canon o f the O ld T estam ent [O cânon do Antigo Testamento] (1892). Seus co­ mentários de Esdras e Neemias (1893) e Gênesis (1914) foram publicados na série Cambridge. Após 1892, sofreu o afastamento e a rejeição de seu pai, que não permitia que ele ensinasse ou pregasse na diocese de Liverpool. H enry Preserved Sm ith (1847-1927). Lecionou nas seguintes escolas: Lane Seminary (1874-1893), Amherst College (1898-1906), M eadville Seminary (1907-1913) e Union Theological Seminary, em Nova York (1913-1925). EscreveuInspiration a n d in erra n cy [Inspiração e inerrância] (1893), O ldT estam ent history [História do Antigo Testamento] (1903), The religion o f Isra el [A religião de Israel] (1914), Essays in bib lical in terpretation [Ensaios em interpretação bí­ blica] (1921) e um comentário de 1 e 2Sam uel (1899). Em todos esses escritos, ele apresentou as teorias de Wellhausen e seus colegas, tornando-se um dos defensores principais do liberalismo clássico no mundo de fala inglesa. A rthur Sam uel Peake (1865-1929). Primeiro professor de crítica bíblica e exegese da cátedra Rylands em Manchester (1904), escreveu T heproblem o fsu fferin g in the O ld T estam ent [O problema do sofrimento no Antigo Testamento] (1904). Hoje é lembrado principalmente por sua edição do famoso C om m entary on the B ible [Comentário da Bíblia] (1919), que ainda traz seu nome, embora a última edição (1962) seja bem diferente da original. Robert H en ry C harles (1855-1931). Professor de grego bíblico na T rinity College, em D ublin (1898), e depois preletor em Oxford (1905), é conhecido principalm ente por sua compilação m agistral de apócrifos e pseudoepígrafos (1913). Também escreveu comentários de D aniel (1929) e Apocalipse (1920).

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Robert Lawrence O ttley (1856-1933). Suas preleções Bampton de 1897, publicadas no mesmo ano que A spects o f the O ld T estam ent [Aspectos do Antigo Testamento], tentaram combinar estudo crítico com teologia tradicional. Ele era conservador e defendeu que as tradições religiosas do Antigo Testamento eram mais antigas que os relatos escritos. W illiam Emery Barnes (1859-1939). Lecionou em Cambridge a partir de 1885 e se tornou professor de teologia da cátedra Hulse (1901-1934). Escreveu um comentário de Crônicas (1899) na série Cambridge. Alexander Francis Kirkpatrick (1849-1940). Professor régio de hebraico em Cambridge de 1882 até 1903, foi autor de um famoso comentário crítico de Salmos (1892,1895,1912) repleto de pensamentos devocionais.Também escreveu The d iv in e library o f the O ld Testament [A biblioteca divina do Antigo Testamento] (1891), uma versão modificada da história de Israel de Robertson Smith (1881). Frederick John Foakes-Jackson (1855-1941). Membro da Jesus College, Cambridge (1886) e professor de instituições cristãs no Union Theological Seminary, New York (1916-1934), escreveu uma B ib lica l history o f the H ebrew s [História bíblica dos hebreus] (1903) e uma B ib lica l history f o r schools [História bíblica para escolas] (1912-1913). Sua obra posterior se concentrou principal­ mente no campo do Novo Testamento (veja p. 351). George Adam Sm ith (1856-1942). Professor de Antigo Testamento na United Free Church College, Glasgow (1892), e reitor da University of Aberdeen (1909), escreveu comentários de Isaías (1888-1890), dos Profetas Menores (1896-1897), Deuteronômio (1918) e Jeremias (1923). Seu H istorical geogra p h y o f th e H oly L and [História geográfica da Terra Santa] (1894 e mui­ tas edições subsequentes) é um clássico que nunca foi superado. Em 1912, ele também proferiu as preleções Schweich intituladas The ea rly p o etr y o f Isra el [A poesia primitiva de Israel]. A publicação de suas preleções Yale em 1901 (M odern criticism a n d th ep rea ch in g o f the O ld T estam ent [Crítica moderna e a pregação do Antigo Testamento]) produziu ameaças de um julgamento por heresia, mas o clima havia mudado o suficiente em menos de uma década para permitir que Smith continuasse expondo suas visões críticas liberais sob o guarda-chuva da Igreja Livre Unida.

As questões Apesar da atmosfera de controvérsia que envolvia o estudo do Antigo Testa­ mento no século 19, havia uma clara unidade de propósito entre os estudiosos

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de um tipo que nunca havia existido antes. O mundo acadêmico era um único espaço intelectual em que todos participavam de modo mais ou menos igual. Debates acadêmicos ocorriam em uma estrutura comum de ideias, ainda que as soluções apresentadas para problemas específicos pudessem variar amplamente. No campo dos estudos do Antigo Testamento, as principais questões da época podem ser resumidas da seguinte forma. 1. Era necessário estabelecer a relação correta en tre o A ntigo Testam ento e história “secu lar”. Até que ponto o Antigo Testamento era uma fonte histórica fidedigna? Essa questão incomodou todos os estudiosos do século 19 e precisou ser respon­ dida de um modo ou de outro. A tradição que flui de De W ette até W ellhausen a respondeu de um modo negativo — o Antigo Testamento não era fidedigno como história e podia ser usado somente se fosse radicalmente reinterpretado. Outros foram mais positivos em sua avaliação, entre eles, estudiosos críticos como Eichhorn e Ewald. Talvez não aceitassem tudo como se encontrava, mas para eles as linhas gerais de desenvolvimento histórico apresentadas no texto eram verdadeiras. A tendência ao radicalismo foi refreada pelo conservadorismo natural das igrejas e mais tarde por descobertas arqueológicas. Apesar de tudo, provavelmente era mais fácil defender visões tradicionais de forma erudita em 1900 do que havia sido em 1800. 2. Era necessário explicar a natureza da origem e do d esen volvim en to de Israel. A consciência histórica do século 19 inclinou estudiosos a aceitarem a ideia de que as culturas evoluem ao longo do tempo. Em certo sentido, isso era óbvio no Antigo Testamento, visto que a vinda de Cristo levou Israel a um novo estágio de desenvolvimento religioso. M as até que ponto era possível imaginar uma forma “progressiva” de revelação no Antigo Testamento? Qual era a autoridade de um texto, se havia sido suplantado em um estágio posterior? Era correto im a­ ginar Israel como tendo se desenvolvido de um politeísmo e idolatria primitivos para um monoteísmo sofisticado? Os padrões morais haviam mudado junto com esse desenvolvimento? Aqui, novamente, soluções variaram amplamente. Radicais extremos rejeitavam o Antigo Testamento como indigno de conside­ ração séria tanto no nível moral quanto espiritual. Conservadores extremos, em contrapartida, recusavam-se a aceitar que qualquer coisa no Antigo Testamento pudesse estar em um plano inferior ao que se encontra no Novo, pois o mesmo Deus havia se revelado nos dois. A maioria das pessoas estava em algum ponto entre esses extremos. À medida que o século avançava, mais pessoas passavam a aceitar que havia ocor­ rido uma série de mudanças na religião israelita, conectadas com a jornada

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no deserto, o estabelecimento da monarquia e (acima de tudo) as reformas de Josias, o subsequente Exílio e a restauração. Foi a natureza dessas mudanças que continuou causando divisão. Havia radicais que acreditavam que a religião pré-exílica tinha sido uma atividade caótica, sem nenhuma organização cultuai centralizada. Em vez disso, havia existido uma séria de profetas extáticos, que ensinavam o povo. Essa tradição profética foi extinguida durante e após o exílio, para ser substituída por uma ditadura sacerdotal que manteve a nação viva ao mesmo tempo que paralisava seu desenvolvimento religioso. Alguns estudiosos conservadores continuaram insistindo em que as práticas sacrificiais descritas em Levítico e Crônicas tinham origem muito antiga, mas o esquema simplista de profetas pré-exílicos e pós-exílicos continuou dominando a discussão. 3. Era necessário relacion ar o d esen volvim en to d e Isra el ao das nações vizinhas. Esse aspecto da história do Antigo Testamento era uma área praticamente inexistente em 1800. Sabia-se pouco ou nada sobre outros povos do Oriente M édio, fora do que era possível colher em fontes como Heródoto. M as, à me­ dida que a arqueologia e a lingüística comparada avançaram, esse vazio foi preenchido rapidamente. De ser praticamente a única fonte de nossa infor­ mação sobre o Oriente M édio antigo, a Bíblia passou a ser vista como um testemunho entre muitos. Impérios esquecidos durante bastante tempo foram redescobertos e suas civilizações foram expostas à vista pela primeira vez no milênio. Israel, como agora se sabia, era uma nação pequena e, em geral, in­ significante no contexto da época. Era como se um estudante moderno de história europeia tivesse sido obrigado a se concentrar nos Países Baixos até subitamente se defrontar com evidências apontando para a grandeza da GrãBretanha, França e Alemanha. O reajustamento de perspectiva que essas descobertas implicavam foi naturalmente levado a extremos. Do mesmo modo que os Países Baixos de­ sempenharam um papel importante na histórica europeia por causa de sua posição geográfica, do mesmo modo também a Palestina ocupou uma posição fundamental no Oriente Médio. M as isso foi esquecido na pressa de aceitar evi­ dências do Egito e da Mesopotâmia. Os estudiosos rapidamente encontraram paralelos a ideias do Antigo Testamento nessas civilizações e automaticamente atribuíram isso ao “fato” de que Israel deve ter emprestado demasiadamente de uma ou outra delas. Aqui as tendências mudavam conforme o avanço do século. Inicialmente, o Egito foi a fonte preferida para tudo que era significativo em Israel, mais tarde foi a Babilônia e até mesmo a Pérsia. A possibilidade de as influências terem fluído no sentido oposto era raramente considerada.

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Em um aspecto importante, esse desenvolvimento alterou os estudos do Antigo Testamento para sempre. Enquanto em 1800 havia sido possível ques­ tionar que Israel pudesse ter alcançado o nível de sofisticação que supostamente tinha na época de M oisés (em qualquer período entre 1400 a.C. e 1200 a.C .), já em 1900 estava ficando claro que esse não era o caso. M uito pelo contrário, um homem como Abraão não era mais considerado como um nômade primitivo, semicivilizado, mas como o herdeiro de uma cultura mesopotâmica antiga e extremamente desenvolvida. Agora o conhecimento de escrita e legislação era visto como inteiramente compatível com uma datação primitiva das narrativas patriarcais. As conclusões de estudiosos radicais como W ellhausen não foram desse modo aniquiladas, mas ao menos se tornou possível apresentar uma alter­ nativa viável de uma perspectiva tradicionalista. 4. Era necessário redefin ir a relação do A ntigo Testamento com o N ovo. A vi­ são mais antiga de que os dois Testamentos eram um só foi sendo aos poucos abandonada, uma vez que se tornaram comuns na religião as ideias de progres­ são. Já em 1900, apenas os teólogos mais conservadores ainda a defendiam e em sua maioria haviam optado por não se envolver na crítica textual. O Antigo Testamento passou a ser visto por quase todos como um estágio anterior no desenvolvimento religioso, suplantado pelos ensinamentos de Cristo. M as Cristo cumpriu o Antigo Testamento ou o aboliu? Os que se inclinavam para a visão de que Cristo havia cumprido o Antigo Testamento consideravam-no um prelúdio para a vinda de Cristo e, portanto, não viam nada de errado em detectar nele te­ mas “cristológicos”. Dentro dessa visão, havia uma grande diferença, com certeza, entre os que abordavam o Antigo Testamento como profecia de fato e os que o consideravam mais um conjunto de padrões religiosos sem um propósito proféti­ co específico; de qualquer maneira, porém, era possível os cristãos com essa visão de cumprimento atribuírem valor espiritual permanente ao Antigo Testamento. Como contraponto, havia a posição segundo a qual Cristo havia abolido o que viera antes e o substituíra por algo infinitamente melhor. Pode haver algum antegozo nos profetas, mas, em geral, o Antigo Testamento tinha pouco a oferecer ao cristão. Dentro dessa perspectiva, havia alguns para os quais algum dia o AT tinha tido validade, e outros que insistiam que ele estava errado desde o início. M as, de qualquer maneira, era difícil ver o que justificava um estudioso cristão gastar tanto tempo em um texto com pouco valor moral ou espiritual, especialmente se tinha de ensinar futuros ministros das igrejas. Por isso, mesmo os estudiosos inclinados a essa posição de suplantação podem acabar argumen­ tando contra suas próprias teorias, insistindo que o Antigo Testamento com

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certeza tem algo a nos dizer hoje, apesar da grande distância de tempo e de sofisticação que nos separa dele.

Os métodos de interpretação No século 19, o domínio do método histórico-crítico era tal que outras formas de interpretação pareciam anacronismos. Havia alguns comentaristas que con­ tinuaram produzindo obras conservadoras, incluindo interpretações alegóricas da Bíblia, mas elas estavam às margens do estudo acadêmico, onde a maioria das teorias liberais reinava livremente. A maioria delas a esta altura estão repudia­ das, mas os principais métodos de investigação desenvolvidos durante o século 19 permanecem válidos para a crítica histórica.

O método crítico do Antigo Testamento Os princípios mais importantes da crítica histórica do século 19, como aplica­ dos aos estudos do Antigo Testamento, podem ser expressos do seguinte modo. 1. A in terpretação p recisa estar fu n d a m en ta d a em um con hecim en to sólido dos docum entos origin a is, do idiom a em que fo r a m escritos e do contexto em q u efora m re­ digidos. O estudo intenso de hebraico, forte característica da exegese neologista, continuou intacto em todo o século 19. Outras versões do Antigo Testamento, notavelmente a Septuaginta, desapareceram do cenário, mas é curioso observar que Robertson Sm ith a considerava um texto melhor que o hebraico original. O contexto histórico apresentou um problema maior, pois durante bastante tempo a Bíblia aparentou estar isolada em seu ambiente literário. Não havia outra literatura hebraica antiga a ser considerada, e a arqueologia ainda não havia se desenvolvido suficientemente para poder fornecer muito material de comparação. No entanto, o alvo permaneceu, e o entusiasmo, com que a desco­ berta de documentos como o código de Hamurábi (1902) foi recebida, mostra que esse interesse era genuíno. 2. É necessário buscar uma explicação racional pa ra todos osfen ôm en os. Isso signi­ ficava que um estudioso devia buscar explicar sua evidência com base em dados fidedignos. Qualquer hipótese precisava ser meticulosamente testada contra a evi­ dência disponível, para verificar se era sólida. A ausência de fontes externas para comparação obrigou estudiosos do Antigo Testamento a depender de fenômenos internos, o que significava que não havia nenhum modo objetivo de testar se uma

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hipótese era “verdadeira” ou não. No entanto, estava claro para os críticos que qualquer explicação que exigisse intervenção divina, ou que pudesse ser defendida somente pelo recurso à doutrina cristã, era inadmissível. Assim, era inevitável que se rejeitasse o relato direto do Antigo Testamento em muitos pontos. 3 .A evid ên cia extraída in direta m en te d e um texto tem m ais va lo r do que decla­ rações ou afirm ações diretas, p o is a chance de ter sido fo r ja d a com fin s de propa gan da é m enor. Os efeitos disso podem ser observados do modo mais claro possível nos debates a respeito do culto sacrificial e seu sacerdócio. De acordo com Deuteronômio e Crônicas, isso foi estabelecido por Moisés, mas a evidência de Samuel e Reis indica que havia grande liberdade no que diz respeito a quem sacrificava e onde se construíam os altares. A centralização do culto e sua sub­ missão ao controle de um único sacerdócio parecer ser uma reforma pós-exílica (ou ao menos pós-Josias), pois somente depois disso a evidência indireta corres­ ponde ao que Deuteronômio e Crônicas afirmam abertamente. O argumento conservador era que esses textos estabeleceram princípios que eram negligen­ ciados de tempos em tempos ou foram fielmente observados somente muito mais tarde, mas isso geralmente era considerado uma distorção do argumento, e não foi aceito pela maioria dos estudiosos críticos. 4. H á u m a força ev o lu tiv a do m ais sim ples p a ra o m ais com plexo; portanto, ideias e prá tica s m ais complexas datam d e um a época posterior. Isso foi, e ainda é, a mais controversa de todas as pressuposições do método crítico. Ela é demonstra­ tivamente falsa na lingüística, visto que a estrutura gramatical do inglês, por exemplo, é muito mais simples agora do que era há mil anos e ninguém afirma­ ria que isso representa um declínio civilizacional. Também agora se sabe não ser verdade que os povos primitivos eram incapazes de estruturas bastante comple­ xas, principalmente em sua vida cultuai e religiosa. É no mundo ocidental que as pessoas querem que a religião seja simples e direta, pois elas têm pouco tempo livre para ela. Em outros lugares, essa pode ser a única esfera da atividade em que se dá à mente humana a liberdade para que seja o quão complexa quiser. No entanto, a maioria dos críticos do século 19 geralmente defendia a convicção de que quanto mais primitiva uma religião era, mais simples ela seria. Isso explica por que havia consenso de que as leis complexas de Levítico e as cerimônias de Crônicas precisam ter datação tardia, enquanto a relativa simplicidade da religião profética podia ser situada muito antes. 5. O m onoteísm o é um a fo r m a de religião “mais eleva d a ” que opoliteísm o e, p o rta n ­ to, desen volveu -se mais tarde. Isso pode parecer contradizer o último princípio, pois para nós o monoteísmo, à primeira vista, parece ser mais simples que o politeísmo.

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Isso, no entanto, é evidente somente na superfície. Na realidade, o monoteísmo é mais complexo, pois exige um sistema unificado de conhecimento e percepção que possa explicar toda a realidade. O politeísmo é desconectado sob esse aspecto, com diferentes atividades atribuídas a diferentes deuses, e, portanto, é “mais sim­ ples”. Em relação à religião israelita, isso significa que qualquer sinal de politeísmo é um sinal de seu culto primitivo. De forma semelhante, quanto mais absoluto o monoteísmo, mais tardia será a datação do texto. Muitos teólogos do Antigo Testamento acabaram concebendo um “henoteísmo” israelita — a convicção de que Israel adorava a um Deus somente, mas não negava a existência de outras divindades — como uma espécie de estágio de passagem. A ideia foi apresentada pela primeira vez por F. M ax M üller (1823-1900), que era um especialista em religiões sânscritas e indianas, e ela se popularizou à medida que o século avançou. Gradualmente passou-se a pensar que Israel não era estritamente monoteísta até a época de Ezequias (oitavo século a.C.) ou até mesmo mais tarde.

A crítica do Pentateuco A interpretação do Antigo Testamento no século 19 era inteiramente dominada pela crítica do Pentateuco. Isso não significa que não se estudavam e comen­ tavam outros livros; é claro que sim. M as muitas vezes as questões críticas que eles levantavam adquiriam importância principalmente por causa da relação que tinham com suas origens no Pentateuco — sendo o exemplo mais óbvio disso o caso de Crônicas. Para os que adotavam uma datação tardia do material sacerdotal e a prioridade da tradição profética de Israel, também era necessário interpretar os profetas de um modo que se encaixasse nesse esquema. Os livros históricos eram compreendidos como vinculados a Deuteronômio e também como um anexo ao Pentateuco. No centro da crítica do Pentateuco estava a questão de suas fontes. Havia três teorias principais no século 19, que podem ser classificadas do seguinte modo. 1 .A utoria mosaica. Essa visão tradicional ainda era mantida por muitos, in­ cluindo diversos estudiosos críticos. Em geral, eles defendiam que Moisés havia usado material anterior. Eles também reconheciam que haviam ocorrido reda­ ções subsequentes do material. No entanto, a convicção principal era que Moisés era o fundador da religião israelita e a fonte das leis e práticas cultuais de Israel. 2. A hipótese d e fra gm en to s. Essa foi a teoria proposta por Geddes, Vater e De W ette. A convicção básica era que o Pentateuco havia sido composto com base

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em diversos fragmentos distintos e não tinha nenhuma unidade fora daquela fornecida pelo redator final — ou redatores finais — , que viveu — ou viveram — durante ou logo após o Exílio. Um dos fragmentos que acabou compondo o Pentateuco era o Livro da Lei encontrado por Hilquias; isso constituía parte de Deuteronômio e também pode ter contribuído com algo para Levítico. 3. A hipótese docum entária. Ela era mantida em combinação com a auto­ ria mosaica (Eichhorn) ou não (Wellhausen). Essa hipótese documentária era menos flexível que a dos fragmentos e obrigava seus defensores a desenvolver teorias muito complexas sobre como os vários documentos foram reunidos antes da redação final, visto que estava claro que deve ter havido um longo pro­ cesso de compilação antes de resultar no Pentateuco como agora o conhecemos. M as, apesar dessas dificuldades, a hipótese documentária ganhou a discussão no século 19 e foi expressa em sua forma clássica por Julius W ellhausen (1878). Para compreender as questões em jogo, talvez seja melhor começar com os quatro documentos postulados pelos sucessores imediatos de W ellhausen e trabalhar a partir dal i. Esses documentos eram o E loísta (E), chamado assim porque seu autor se referia a Deus como El; o J a v ista (J), chamado assim porque seu autor se referia a Deus como Javé [Yahweh]; o D euteronom ista (D), redigido em cerca de 622 a.C ., tendo como base o Livro da Lei que Hilquias encontrou no Templo; e o S acerdotal (P [priest = sacerdote]), redigido por um grupo de sacerdotes após o Exílio. E era amplamente considerado o documento fundamental (G rundschrift) ao qual os outros foram acrescentados. M uitas vezes se pensa que na verdade havia dois Eloístas, um mais velho e um mais novo, cuja obra estava tão entrelaçada com J que não podia mais ser desemaranhada. A datação de E era uma questão primordial nos estudos críticos. Alguns afirmavam que era bem antigo (século 10 a.C.) e outros que era pós-exílico. G raf (1866) afirmou que ele não era uma unidade e que suas seções narrativas eram primitivas, enquanto suas seções le­ gais eram pós-exílicas. J foi o primeiro redator do Pentateuco, pois ele teoricamente usou o G rundschrift e lhe acrescentou seu próprio material. D estava associado a Hilquias e foi acrescentado a uma combinação E-J já existente. Isso não significava necessariamente que E-J era mais antigo que D, mas somente que, quando se reuniu o Pentateuco em sua presente forma, D foi acrescentado a E-J, que na época existia como um documento distinto. P não tinha nenhuma existência separada até G raf (1866) o isolar de E e declarar que havia sido acrescentado a E-J após o Exílio.

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Wellhausen usou essa situação e a transformou do seguinte modo. O G rundschrift não era uma unidade. O seu núcleo básico era um Código Sacerdotal, que era uma parte substancial, embora não tudo, de P. A isso se acrescentou Q i uma compilação de quatro diferentes livros da aliança. Uma vez que se acrescentou Q_ao Código, um material adicional foi incorporado, notavelmente Levítico 17—26, para formar P. Isso era o G rundschrift em sua forma final, que não poderia ter existido antes do Exílio. P, portanto, baseava-se em fontes escritas já existentes, e não em uma tradição oral. Independentemente do G rundschrift,hssna. o E loísta“mais novo”e o Javista, cuja obra se baseava fundamentalmente na tradição oral e havia passado por dois estágios de redação antes de ser combinada com um terceiro elemento, o chamado “jeovista”, em algum momento durante o período monárquico pos­ terior. Subsequentemente essa unidade E-J foi combinada com o G rundschrift, mas somente depois de já ter sido combinada com D. Em sua origem, D existia como duas edições distintas, que primeiramente foram combinadas em uma e então acrescentadas a E-J. As seções narrativas de D são dependentes de E-J, o que mostra que D usou a obra anterior como fonte. D poderia datar do período da reforma de Josias e de algum modo estava vinculado à descoberta de Hilquias no Templo. Em algum momento após o Exílio, E-J e D foram combinados entre si e, então, com P, para constituir o Pentateuco como o conhecemos hoje. Isso pode ser representado em um diagrama: Fontes escritas

Código sacerdotal +4 livros da aliança (Q1 + material adicional

Fontes orais

Dl

D2

Tradição

E

' J E-J

D EXÍLIO D + E-J Pentateuco Críticos posteriores de Wellhausen estavam extremamente interessados em sua datação tardia do G rundschrift, o u P. Estavam inclinados a pensar que ele

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devia ter sido concluído muito antes, possivelmente até mesmo depois da época de Davi ou Salomão. Isso, no entanto, não fez nenhuma diferença para a redação final, que eles ainda estavam inclinados a situar na época de Esdras, nem alterou o esquema fundamental de Wellhausen. Após 1878, as teorias anteriores da crí­ tica do Pentateuco gradualmente desapareceram, e a hipótese de Wellhausen se tornou a base de investigações posteriores. Houve muitas modificações quanto ao que pertencia a qual linha de tradição e muitas tentativas de rever a datação do material em uma direção mais conservadora, mas a estrutura básica sobrevi­ veu intacta.

A exegese não crítica Essa exegese desempenhou um papel secundário no século 19, uma vez que a crítica histórica dominou as universidades, mas ela permaneceu influente nas igrejas e em geral no nível popular. Ela era praticamente universal na Igreja Católica Romana, que anatematizou a crítica histórica, e nas igrejas protes­ tantes, e se tornou a marca identificadora dos evangélicos conservadores. Ela manteve a distinção tradicional entre os sentidos literal e “espiritual” do texto, mas com uma nova e pronunciada ênfase no último. Talvez isso fosse uma rea­ ção à crítica histórica, que muitos consideravam conseqüência lógica de seguir o sentido literal de modo exclusivo demais; mas é igualmente provável que isso tenha demonstrado uma sede de significado espiritual, que não era saciada com os métodos hermenêuticos então comuns nos círculos acadêmicos. E possível observar o deslocamento do sentido literal para o sentido es­ piritual das Escrituras na obra de três exegetas conservadores da época, E. W. Hengstenberg (1842), J. A. Alexander (1850) e C. H. Spurgeon (1888-1891), todos os quais escreveram sobre Salmos. Isto é o que eles têm a dizer sobre o salmo 22, cuja frase introdutória “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”é famosa no clamor de abandono de Jesus na cruz (M t 27.46; M c 15.34). Hengstenberg escreveu: A visão que sempre prevaleceu em toda a igreja cristã é a que refere o salmo diretamente e exclusivamente a Cristo. O autor de modo algum lamenta ter adotado essa visão em sua cristologia. Ele continuou repetindo a visão de Calvino e Melâncton, de que Davi foi ins­ pirado por um espírito de profecia messiânica, e explicou por que não podia aceitá-la:

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Davi, afirma-se, de acordo com essa hipótese, ao buscar socorro junto ao Senhor em virtude de um caso específico de aflição, transfere (elevado pelo espírito de profecia messiânica) seu próprio ser aos sofrimentos extremos do Messias esperado e fala como o presente tipo do libertador vindouro. Embora o autor [comentado por Hengstenberg] reconheça que nessa tentativa se faça justiça àquelas considerações que podem ser apresentadas em favor de exposições opostas, ainda assim ele não pode senão considerá-la como uma tentativa de conciliação sem êxito. Tal visão de concepção do salmo se mostra para ele como algo psicologicamente inconcebível por completo. Como Davi poderia estender sua consciência àquela de sua descendência não pode ser concebido sem confu­ são da vida de almas e destruição de identidade pessoal. Ele então disse que o salmo se refere à pessoa ideal do Justo, cuja identidade exata era desconhecida para Davi. Davi compôs o salmo com base em sua experiência, e qualquer homem justo, à medida que é verdadeiramente justo, pode apropriar-se dele como expressão de seu próprio sofrimento. M as, visto que ninguém é verdadeiramente justo, o salmo não se cumpriu até a vinda de Cristo, o único que podia verdadeira e finalmente apropriar-se dele para si mes­ mo. Contudo, embora essas tenham sido suas observações em sua introdução ao salmo, quando Hengstenberg acabou comentando o próprio versículo, ele afirmou categoricamente: “a asserção [...] de que essas palavras são adequadas somente nos lábios de Cristo é completamente errônea”. Assim, ao comentar o texto, ele lim i­ tou sua interpretação cristológica e não permitiu que ela controlasse sua exegese. Alexander, que baseou seu comentário no de Hengstenberg, tinha isto para dizer: O tema desse salmo é a libertação de um sofredor justo das mãos de seus ini­ migos e o efeito dessa libertação em outros. Ele está estruturado de tal modo a ser aplicado sem violência a qualquer caso que pertença à classe descrita, no entanto, de tal modo que se verificou plenamente só em Cristo, a cabeça e o representante da classe em questão. O narrador imediato no salmo é uma pes­ soa ideal, o servo justo de Jeová, mas, até certo ponto, qualquer cristão sofredor e toda a igreja sofredora pode se apropriar de suas palavras, como ocorreu em todas as épocas. Nessa passagem, a interpretação cristológica é admitida, mas reduzida ao mínimo. A ênfase é muito forte no cristão, seja quem for, e na igreja como um todo. A qui não há menção a Davi, embora Alexandre claramente aceitasse que ele era o autor humano do salmo. É quase como se isso fosse irrelevante para ele; o verdadeiro narrador dessas palavras é o cristão universal.

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Spurgeon conhecia tanto Hengstenberg como Alexander, mas não mencionou nenhum deles em relação a esse salmo. Em vez disso, referiu-se ao comentarista católico romano A. Calmet (1672-1757) e a A. Clarke (c. 1760-1832), a quem ele aprovava. Sua inclinação cristológica é evidente em sua introdução: É a fotografia das horas mais tristes de nosso Senhor, o relato de suas palavras finais, o lacrimatório de suas últimas lágrimas, o memorial de suas últimas ale­ grias. Davi e suas aflições podem estar aqui em sentido muito modificado, mas como a estrela é oculta pela luz do sol, aquele que vê Jesus provavelmente não verá nem desejará ver Davi. Diante de nós temos a descrição tanto da escuridão quanto da glória da cruz, dos sofrimentos de Cristo e da glória que se seguirá. Ah, a graça que encontramos nessa grande visão! Devemos ler reverentemente, descalçando nossos pés, como Moisés fez na sarça ardente, pois se há solo sa­ grado em qualquer lugar nas Escrituras é nesse salmo. Quando passamos da introdução ao comentário do próprio versículo, lemos: Por que [tu] tens m e desamparado ? Precisamos colocar a ênfase em todas as pa­ lavras desse mais triste de todos os pronunciamentos. Por quê? Qual é a grande causa de um fato tão estranho a ponto de Deus abandonar seu Filho em um momento desses e numa situação dessas? Não havia nenhuma causa nele; então por que ele foi abandonado? Tens. Está feito e o Salvador está sentindo seu efeito atemorizador quando faz a pergunta; certamente é verdade, mas quão misterioso! Não foi nenhuma ameaça de abandono que fez o grande Fiador clamar; ele suportou esse abandono de fato. Tu. Posso entender por que o trai­ dor Judas e o tímido Pedro tenham fugido, mas tu, meu Deus, meu fiel amigo, como podes me deixar? Isso é pior que tudo, de fato pior que tudo junto. A pior chama do próprio inferno é a separação da alma de Deus. Desamparado. Se tivesses [me] castigado eu poderia suportá-lo, pois tua face brilharia, mas me desamparar completamente — Ah, o que é isto? M e. Teu Filho inocente, obe­ diente e sofredor, por que me deixaste a perecer? Uma visão do eu contemplada pela penitência e de Jesus na cruz vista pela fé será o melhor modo de expor essa questão. Jesus é abandonado por que nossos pecados haviam criado uma separação entre nós e nosso Deus. Aqui, depois de uma geração de estudos críticos que negavam a própria possibilidade, temos agora a interpretação mais profundamente cristológica de todas. Spurgeon de longe supera Alexander e Hengstenberg em sua aplicação do salmo a Cristo; ele vai tão longe nisso que Davi e suas circunstâncias são total­ mente obscurecidas. Mesmo fazendo concessões à retórica de um pregador, isso certamente está levando as questões longe demais! Em contrapartida, Spurgeon

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não é meramente cristológico; ele é cristocêntrico. A interpretação dele não fala do nosso sofrimento, mas do sofrimento de Cristo. Apesar de todo o linguajar extravagante, o que temos aqui é uma descrição objetiva do que ele fez, e não uma aplicação subjetiva dos sentimentos de Davi a nós mesmos. Nesse aspecto, há uma grandeza na interpretação de Spurgeon que pode ser facilmente ignorada pela mente crítica, e não é difícil perceber por que essa abordagem atraiu aqueles que queriam compreender mais sobre Cristo na sua leitura das Escrituras. Esse tipo de interpretação é justificável? Aqui encontramos a grande se­ paração entre o estudioso crítico e o tradicionalista piedoso. Para aquele, o que Spurgeon está dizendo é anátema. Hengstenberg é mais tolerável, mas ainda está errado; Alexandre talvez passe por um triz no teste de aceitabilidade. M as para o tradicionalista, a ordem de preferência pode muito bem ser o inverso! Pode ser que Spurgeon seja quem chega mais perto do centro da questão e Alexander o que está mais longe dela, embora ainda em limites aceitáveis. A verdadeira pergunta então se torna algo diferente: Será que o propósito da Bíblia é ser a área exclusiva de estudiosos críticos que trabalham segundo pressuposições racionalistas? Ou há espaço para o cristão encontrar seu Senhor e Salvador nas palavras do salmo que ele escolheu para si mesmo no momento de sua morte? B ibliografia A lt , A . “Edward Robinson and the historical geography of Palestine”. J o u rn a l

o f B ib lica lL itera tu re 58 (1939): 365-72. B e id e l m a n , T. O . W. R obertson Sm ith a n d the sociological study o f religion (Chicago: Chicago University Press, 1974). B e w e r , J. “Edward Robinson as a biblical scholar ”.Jou rn a l o f B ib lica l L iterature 58 (1939): 355-63. B r o w n , J. W . The rise o f biblical criticism in A merica, 1800-1870 (Middletown: Wesleyan University Press, 1969). C a m e r o n , N. M . de S. B ib lica l h igh er criticism a n d the d efen se o f infallibilism in 19th C entury B ritain (Lewiston: Edwin M ellen, 1987). C l e m e n t s , R. E. A cen tu ry o f O ld T estam ent study (Guildford: Lutterworth, 1976). D ir k s , J. E. The critica i th eology o f Theodore Parker (New York: Columbia University Press, 1948). D ru r y , J., org. Critics o f the B ible 1724-1873 (Cambridge: Cambridge University Press, 1989).

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lover,

ESTUDO DE CASO: ISAÍAS Até 1775, o consenso era que o livro de Isaías era substancialmente obra de um só autor, o profeta que viveu em Jerusalém na época de Ezequias (oitavo século a. C.). Deus havia privilegiado esse Isaías de modo especial, concedendo-lhe uma percepção única do futuro destino do povo de Israel. Ele foi capacitado para prever o Exílio, a restauração e a futura vinda do Messias, não como um governador triunfante, mas como um servo sofredor, que traria as boas-novas de salvação do pecado (Is 52.7—53.12).

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Ao longo do século 19, essa unidade foi explodida pela “descoberta” de que o que parecia ser a obra de um só autor na verdade era uma compilação de di­ ferentes escritos, que poderiam ser atribuídos a dois ou mais profetas distintos. As razões fornecidas para isso estavam enraizadas na rejeição racionalista da profecia preditiva, que teve enormes implicações teológicas para o destino de textos messiânicos. De muitos modos, o estudo crítico de Isaías e a reação a ele simbolizam os conflitos hermenêuticos do século 19. Os primeiros estudiosos críticos a insistirem que precisava haver um Segundo Isaías foram Dõderlein (1775), Eichhorn (1780-1783) e Gesenius (1820-1821). Eles estavam seguindo uma sugestão apresentada pela primeira vez pelo rabino medieval Ibn Ezra no século 12, embora não tivesse sido desenvolvida por cris­ tãos ou judeus desde então. Às divisões de Isaías em duas partes se seguiram mais pesquisas de Duhm (1875, 1892), que subdividiu o Segundo Isaías e produziu um terceiro profeta, que escreveu após o retorno do Exílio. Isso era (e é) mais controverso do que a tese de Eichhorn e Gesenius, e alguns estudiosos preferi­ ram ver o “Terceiro Isaías” como uma compilação de documentos separados de diferentes autores, mas esse argumento tem relativamente pouca importância para o grande debate do século 19. Visões críticas foram apresentadas ao mundo de fala inglesa nos comentários de G. A. Smith (1890) e T. K. Cheyne (1893), bem como na importante introdução ao livro de S. R. Driver (1891). Os argumentos que eles apresentaram para uma datação tardia dos capítulos 40—66 eram os seguintes: 1. O cenário histórico de 40—66 retrata uma época após a queda de Jerusalém e o Exílio dos cativos na Babilônia. O nome do rei persa Ciro é de fato citado (44.28; 45.1). É verdade que às vezes é possível encontrar o mesmo contexto histórico nos capítulos anteriores (e.g., 13.1— 14.23; 21.1-10), mas esse é um argumento que defende a tese de Duhm de que o “Primeiro Isaías” é um documento misto que reflete muitas linhas de desenvolvimento posterior, e não um argumento a favor da unidade geral do livro. 2. H á grandes diferenças de linguagem, estilo e conceitos entre as duas partes do livro de Isaías, e isso aponta para autores diferentes. Em especial, o nome Yahweh é exaltado muito acima de todos os ídolos pagãos, e um monoteísmo exclusivo, supostamente desconhecido antes do Exílio, é proclamado com grande vigor e poder. A natureza universal de seu governo e a expectativa de um cumprimento messiânico em uma época futura também são sinais de datação tardia.

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3. Os profetas hebreus tinham a função de tratar de questões contempo­ râneas à luz da Lei de Deus. A profecia preditiva não fazia parte de sua tarefa, embora esse conceito de profecia tenha se tornado comum entre os judeus em épocas pós-exílicas. É, portanto, impossível que 40—66 seja a obra do Isaías histórico, mas perfeitamente compreensível que compiladores hebreus o atri­ buíssem a ele em sua (historicamente incorreta) capacidade preditiva. S. R. Driver expressou o último ponto com grande clareza (1891): Os profetas, todos eles, mantêm íntima relação com a história de suas épo­ cas. Eles nunca apresentam alguma verdade anunciada de forma abstrata; ela é sempre trazida para uma relação com a época em que vivem e adaptada às cir­ cunstâncias especiais das pessoas a quem se dirigem. Obviamente, os princípios que os profetas afirmam muitas vezes são capazes de uma abrangência muito maior de aplicações; o seu significado não se esgota quando eles concluíram seu trabalho na própria geração do profeta; mas ainda assim seu interesse primário está nas necessidades de sua própria época. Os defensores conservadores da autoria tradicional incluíam Hengstenberg e Delitzsch na Alemanha, bem com Alexander e outros como ele no mundo de fala inglesa. M uito se comentou entre os estudiosos liberais sobre o fato de que Delitzsch, que defendia a autoria única de Isaías ainda em 1880, mudou de opinião perto do fim de sua vida e admitiu um Segundo Isaías na quarta e última edição de seu comentário (1889). Depois disso, não houve praticamente nenhum estudioso crítico que defendesse a visão tradicional com alguma con­ vicção. No entanto, a defesa da posição antiga não foi inteiramente abandonada, e na metade do século 20 ela desfrutou de um renascimento entre estudiosos conservadores ligados ao Princeton Theological Seminary (até 1929) e depois ao Westminster Theological Sem inary (Filadélfia). Seu grande monumento é o comentário de três volumes de E. J. Young (1965-1972). A unidade de Isaías também foi defendida, embora com menos intensidade, pelo estudioso conser­ vador católico romano E. J. Kissane (1941-1943) e, mais recentemente, pelo anglicano evangélico conservador J. A. M otyer (1993). Os estudiosos conservadores atacaram os argumentos liberais com estes três pontos: 1. O livro sempre foi uma unidade na tradição do manuscrito e foi aceito como tal por judeus e cristãos igualmente. A natureza preditiva dos capítulos 40—66 não está em desacordo com o papel de um profeta do oitavo século.

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2. A linguagem e os conceitos de 40— 66 são suficientemente semelhantes ao que vem antes para permitir uma única autoria. É possível explicar as dife­ renças com a mudança no tema e com a natureza preditiva desses capítulos. 3. Uma datação tardia de 40— 66 compromete a inspiração divina do texto, elemento muito importante em virtude de sua dimensão messiânica. Uma expressão típica dessa posição pode ser encontrada em J. A. Alexander (1846-1847), no seu comentário sobre o capítulo 40: A aplicação específica desse capítulo ao retorno da Babilônia não tem o menor fundamento no próprio texto. A promessa é uma palavra geral de consola­ ção, proteção e mudança para melhor, que será produzida pelo poder e pela sabedoria de Jeová, contrastados, primeiro, com os do homem, de nações e de governantes, então com a completa impotência de ídolos. A exortação à fé e à paciência implica que o cumprimento da promessa ainda estava distante. A referência à idolatria não prova nada em relação à data da predição, embora seja mais apropriada nos escritos de Isaías do que nos de um profeta no Exílio babilônico. Ela evidentemente se destina, no entanto, a condenar a idolatria em geral e, mais especificamente, todas as apostasias idólatras dos israelitas sob a antiga economia. Alexandre passa pelas referências a Ciro quase sem comentário; ele as aceita como proféticas, mas não se estende no assunto e trata o texto como um relato detalhado de suas conquistas e de sua trajetória. M uito diferente é o caso de O. T. Allis (1950), para quem o problema de Ciro é central na interpretação de todo o livro. Allis escreveu: A menção a Ciro por nome como o pastor do Senhor que ordenará a recons­ trução das cidades de Judá e a restauração de Jerusalém e do templo que está devastado é um dos mais notáveis fenômenos em todo o livro de Isaías. Ê possível afirmar corretamente sobre ele que ou ele oferece prova conclusiva da inspiração única do profeta que pronunciou a profecia mais de 140 anos antes de seu cumprimento ou que fornece prova igualmente conclusiva de que esse pronunciamento profético e provavelmente outros, e extensas porções do livro que chamamos de “Isaías”, precisam ser datados em uma época muito posterior ao ministério do filho de Amós. Com o risco de ser acusado de tentar simpli­ ficar o problema indevidamente, é possível afirmar que, se a profecia de Ciro pode ser considerada como de Isaías, há pouca ou nenhuma autorização para que se negue a ele a autoria de todo o livro que contém seu nome. À objeção de que Isaías 44— 45 fala com uma vivacidade que sugere um relato ocular de acontecimentos que já ocorreram, Allis respondeu:

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Ao afirmar que o Poema de Ciro indica claramente que Ciro pertence ao futuro, não estamos ignorando o fato de que na maioria das passagens que se referem a ele, ele é descrito com uma vivacidade que sugere que ele já está presente na mente do profeta. Consideramos que isso esteja em profunda concordância com aquele aspecto da profecia — e, de fato, como um exemplo dele — ao qual já demos atenção e do qual em breve daremos mais exemplos, a tendência de representar eventos futuros como presentes ou já passados. Mas afirmamos que aqui no Poema de Ciro, em vista da precisão e vivacidade notáveis com as quais Ciro é apresentado, o Espírito da profecia considerou necessário deixar claro que a vinda desse libertador poderoso pertencia a um futuro distante. Está evidente que o ponto principal em questão entre críticos e conservado­ res era a natureza da profecia e a relação que isso tinha tanto com a inspiração das Escrituras quanto com a unidade do Antigo e Novo Testamentos. Allis expressou essa posição claramente: ... a questão supremamente importante [...] é se há qualquer conexão forte e vital entre o Antigo Testamento e o Novo, se realmente é possível afirmar que os grandes acontecimentos históricos sobre os quais lemos nos Evangelhos são cumprimentos de previsões relatadas no Antigo Testamento. A. B. Davidson declarou muitos anos atrás [...] que precisa haver uma conexão entre profe­ cia e cumprimento. Para qualquer pessoa que aceita as afirmações do Novo Testamento por seu sentido óbvio, tal afirmação é tão óbvia a ponto de ser axiomática. A igreja cristã aceitou e defendeu essa posição, como claramente implicada, por exemplo, nas palavras, para que se pudesse cumprir aquilo que foi falado pelo profeta. Mas nós observamos que a tendência inconfundí­ vel nos círculos críticos foi enfraquecer ou destruir essa conexão, fazer isso adotando uma definição de profecia que torna a previsão ex hypothesi pratica­ mente impossível. As questões atingiram o ponto culminante no caso da identificação do Servo do Senhor. A tradição judaica desde a época de Rashi, se não antes, havia identi­ ficado essa figura com a nação de Israel como um todo. Os cristãos, obviamente, sempre haviam visto o texto como uma profecia de Cristo, e Isaías 53 era con­ siderado um dos mais detalhados relatos do sacrifício expiatório de Cristo em toda a Bíblia. Alexander expressou bem a posição tradicional em seu comentário: Apesar dessas e de outras profecias do Messias, ele não é reconhecido quando aparece. v. 1. Ele não é o objeto de desejo e confiança pelo qual a grande massa de pessoas esteve esperando.

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v. 2. Não somente isso, sua condição humilde, sobretudo seus sofrimentos, fazem dele antes um objeto de desprezo. v. 3. Mas essa humilhação e esse sofrimento são vicários, e não acidentais ou causados pela sua própria culpa. v. 4-6. Por isso, embora seja pessoalmente inocente, ele é perfeitamente submisso. v. 7. Até mesmo aqueles por quem ele sofre podem confundir sua pessoa e seu ofício. v. 8. Sua causa apresenta os dois extremos de punição justa e de inocência perfeita. v. 9. Mas o fruto glorioso desses muitos sofrimentos corrigirá todos os erros, v. 10. Ele se torna o Salvador somente por se tornar um substituto, v. 11,12. Mesmo após a obra de expiação estar concluída e sua gloriosa recompensa assegurada, a obra de intercessão ainda continuará. Essa era a teologia e a interpretação desse capítulo fundamental que comen­ taristas conservadores estavam determinados a todo custo a defender, pois elas continham a essência da mensagem do evangelho. Os estudiosos críticos, em contraste, adotaram uma visão bem diferente. Sobre a identidade do Servo com Cristo, G. A. Smith (1890) tinha isto para dizer: ... a correspondência externa entre essa profecia e a vida de Jesus Cristo de mo­ do algum é perfeita. Os sofrimentos de Jesus não reproduziram ou cumpriram todas as feridas registradas no quinquagésimo terceiro [capítulo] de Isaías. Por exemplo, Cristo não era o homem doente e miserável inicialmente representado pelo Servo [...] Cristo não era Jó. Smith certamente fez o melhor para reconhecer que havia semelhanças notáveis com Cristo nesses versículos; de fato, seu comentário transborda com expressões de piedade e devoção pelo homem que sofreu e morreu por nós. M as há uma suspeita persistente de que tudo isso é produzido e forçado e de que por trás dessas profissões de fé espreita um profundo senso de dúvida. Driver expressou isso claramente: Sempre que o profeta usa o termo meu servo ele quer dizer Israel; mas, às vezes, ao falar, ele pensa somente nas nações históricas literais; outras vezes, ele tem em vista o verdadeiro Israel, o Israel como foi gradualmente treinado por Deus para responder à sua vocação e destino originais, o Israel que desde o início esteve latente em ideia na nação histórica e que às vezes, no núcleo piedoso do povo, foi manifesto (aproximadamente) na realidade, mas que, ao que parece,

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ele concebe que no futuro será realizado completamente no palco da história. Israel, dessa perspectiva, é delineado por ele como uma personalidade ideal e projetado no futuro como uma figura que exibe as características mais genuínas da nação e as realiza em ação com uma intensidade e clareza de propósito que o Israel histórico nunca chegou a atingir nem de forma mais remota. A noção de que o Servo do Senhor é a nação de Israel, por mais idealizada e atenuada que seja sua forma, é completamente contrária à doutrina e tradição cristãs e se resume a uma aceitação da interpretação judaica dessa passagem. No entanto, é intrigante como Smith, Driver e Cheyne conseguiram evitar uma análise de versículo por versículo do texto, falando somente em termos gerais sobre os “cânticos do servo”. Evidentemente, eles não estavam dispostos a cutu­ car o vespeiro que essa análise inevitavelmente teria acarretado. M as como é possível, perguntou Allis, que um estudioso que afirma ser cristão faça esse tipo de interpretação? Uma pessoa dessas não está comprometida pela sua fé com uma aceitação incondicional da profecia messiânica que Isaías 53 contém? E possível considerar legítim a a aceitação de uma exegese judaica nesse caso? A questão teológica apresentada por esse e outros textos messiânicos tradi­ cionais em Isaías é uma questão importante que não irá embora, como Brevard Childs (1979) nos lembrou. Sobre as realizações do estudo crítico, que ele aceita e elogia pelo que são, Childs diz: Mesmo assim, da perspectiva da comunidade de fé e prática que confessa uma relação especial com a Bíblia, o estudo crítico de Isaías trouxe consigo todo um conjunto de novos problemas que cresceu ao invés de diminuir ao longo dos anos. Childs lista os problemas do seguinte modo: 1. O estudo crítico dividiu o livro em tantos fragmentos distintos que se perdeu de vista a coerência de sua mensagem. 2. A exegese crítica agora está na reconstrução histórica bastante experimen­ tal de eventos, que se torna ainda menos sólida à medida que mais fragmentos são distinguidos. A datação de grandes seções do livro se tornou muito difícil como resultado desse processo. 3. Quanto mais o livro é ancorado na antiga história israelita, mais difícil se torna apropriar-se de sua mensagem para a vida da igreja hoje. Embora ele aceite amplamente a fórmula de “três Isaías” de Duhm e seus sucessores, Childs está muito interessado em enfatizar a convicção protestante de que o texto canônico é, e provavelmente sempre foi, uma unidade. Quem

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quer que o tenha redigido em sua presente forma tomou muito cuidado para combinar profecias de diferentes períodos, de modo que todo o livro refletisse uma só mensagem. O “Segundo Isaías” é o cumprimento das promessas que o “Primeiro Isaías” recebeu, e a unidade do livro se constrói em torno desse tema básico de cumprimento de promessa. Os capítulos 36— 39, longe de serem o final original do Primeiro Isaías, realizam um importante papel de ligação entre esses dois princípios teológicos e foram inseridos em sua presente posição de modo bastante deliberado. Na abordagem crítica da profecia, Childs considera a visão de W estermann (idêntica à de Driver) como típica e lamenta: Essa teoria hermenêutica moderna provavelmente pode ser explicada como uma rejeição existencial do conceito de ideias eternamente válidas que era popular na filosofia idealista do século 19. No entanto, a regra exegética de Westermann torna praticamente impossível a tarefa de levar a sério a forma canônica do texto bíblico. Especificamente em relação ao Segundo Isaías, a forma final da literatura forneceu uma estrutura completamente nova e não histórica para a mensagem profética, que separou a mensagem de suas amarras históricas originais e a tornou acessível para gerações futuras. Embora a forma canônica das tradições de Isaías permitisse a continuação de uma grande variedade de diferentes formas, os vários testemunhos têm em comum um interesse em testemunhar das condutas de Deus com Israel e o mundo, tanto no julgamento quanto na redenção. Na debatida questão do Servo, Childs aceita a visão crítica de que isso precisa se referir a Israel inicialmente, mas ele chama a atenção para a personificação da nação e ressalta que o Servo não é descrito como o cumprimento de nada no Primeiro Isaías. Portanto, ele precisa se referir a alguém novo, que virá no futuro. Childs diz: ... o processo canônico preservou a mensagem em uma forma, cujo significado não foi plenamente compreendido. Não era possível resolver a diversidade no testemunho em relação à experiência passada de Israel, em vez disso o passado teria que receber seu significado no futuro. Childs também aponta que, na época do Novo Testamento, tanto judeus como cristãos partiam das mesmas pressuposições na sua reflexão sobre Isaías e que os dois grupos enxergavam o Servo como uma figura escatológica. A divergência entre judeus e cristãos continua sendo escatológica, e não pode ser resolvida por apelos a uma “exegese objetiva e científica”. Embora sendo ele mesmo um estudioso essencialmente crítico, Childs esboça esperança para uma possível resolução da divisão do século 19 entre

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liberais e conservadores a respeito da questão de Isaías. Se suas propostas fossem levadas a efeito, algo como o seguinte poderia emergir como consenso: 1. O livro é uma unidade, compilado a partir de material profético diferente, cuja ligação interna é o princípio de profecia e cumprimento. “Primeiro”Isaías se­ ria a profecia; “Segundo” (e possivelmente “Terceiro”) Isaías seria o cumprimento. 2. Referências históricas a Ciro teriam sido escritas após o evento, mas de uma perspectiva de cumprimento profético; muitas passagens relacionadas ao Exílio e à restauração de Israel eram previsões genuínas de eventos futuros. 3. O Servo do Senhor é uma figura que recapitula o destino histórico de Israel, mas que não pode ser identificado com alguma pessoa do Antigo Testamento. Ele permanece como uma esperança escatológica, que cristãos na­ turalmente creem ter se cumprido em Cristo. De fato, um consenso fundamentado nesses termos foi trabalhado em de­ talhes há relativamente pouco tempo por J. D. W . Watts (1985; 1987), embora ainda não se saiba se ele se consagrará entre os estudiosos em geral. Hugh W illiam son (1994) propôs recentemente uma tentativa um tanto popular de fazer justiça à unidade de Isaías, ao mesmo tempo que respeita sua diversidade interna. Partindo do “Segundo Isaías”, ele tenta mostrar que esse profeta incorporou material anterior em um todo maior, mas coerente. W illiam son não trata do problema do “Terceiro Isaías”, embora uma solução nesse sentido possa se estender para incluí-lo também. O que está ficando cada vez mais claro é que a questão da unidade de Isaías não vai fugir. Qualquer que tenha sido o processo de redação, há um só livro que está unido extraordinaria­ mente bem e que foi recebido ao longo do tempo como obra de um só autor. É cedo demais para dizer se é possível encontrar um consenso histórico que respeita essa unidade. M as uma coisa é certa: a questão está longe de morrer, até mesmo entre aqueles que aceitam a divisão tripartida do livro. B ibliografia J. A . Isaiah tran slated a n d ex plained (Philadelphia: Presbyterian Board of Publication, 1846-1847). A l l is , O . T. The u n ity o f Isaiah (London: Tyndale, 1950). C h e y n e ,T . K. In trodu ction to the book o f Isaiah (London: A. and C . Black, 1893). C h i l d s , B. S. In trodu ction to the O ld T estam ent as S cripture (London: SC M , 1979), p. 311-38.

A

lexander,

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S. R. Isaiah: his life a n d tim es (London: Francis Griffiths, 1891). M o t y e r , J. A. rFhe proph ecy ofIsa ia h (Leicester: IVP, 1993). ______ . O com entário de Isaías (São Paulo: Shedd, 2016). Tradução de: The prophecy of Isaiah. P a r k e r , T. H. L. C alvirís serm ons on Isaiah’s p rop h ecy o f the death a n d p a ssion o f C hrist (Is. 52:13—53:12) (London: James Clarke, 1956). S m i t h , G. A. The book o f Isaiah (London: Hodder and Stoughton, 1890). W a t t s , J. D. W . Isaiah (Waco: Word, 1985,1987). 2 vols. W il l ia m s o n , H. G. M . The book called Isaiah (Oxford: Oxford University Press, 1994). Y o u n g , E. J. The book o f Isaiah (Grand Rapids: Eerdmans, 1965-1972). 3 vols. D

r iv e r ,

8 O NOVO TESTAMENTO: DE S CHLEIERMACHER A SCHWEITZER O período e o tema No século 19, o estudo histórico-crítico do Novo Testamento apresentou uma abrangência mais ampla e acabou penetrando a vida da igreja ainda mais pro­ fundamente do que o estudo do Antigo Testamento. A razão disso foi que o Novo Testamento ocupava um lugar tão central no cristianismo que qualquer alteração em sua condição, ou na percepção popular de sua importância, neces­ sariamente causaria ondas de grande impacto em toda a comunidade cristã. Os críticos do Antigo Testamento contribuíram inadvertidamente para a grande estima que se tinha pelo Novo Testamento, pois muitas vezes argumentavam que o evangelho era uma revelação muito mais elevada do que a registrada no Antigo Testamento. Questionar o Novo Testamento era atacar a essência do cristianismo e a própria base da ordem moral e espiritual da civilização ocidental. Estudiosos como Semler e M ichaelis tinham uma atitude mais reverente para com o Novo Testamento e, embora usassem métodos críticos, estavam me­ nos inclinados a investigá-lo muito a fundo. Os poucos radicais, como Reimarus, temiam pela sua reputação e possivelmente até pela sua vida. Foi só em 1835 que a barragem se rompeu com a publicação da obra de David Strauss L ife o f Jesu s [A vida de Jesus]. Strauss não era um acadêmico, mas levantou questões que haviam sido debatidas sem muito alarde em círculos acadêmicos durante duas gerações e que não podiam mais ficar ocultas. O arquiteto principal de uma nova compreensão do texto do Novo Testa­ mento foi F. C. Baur.Trabalhando em Tübingen, ele e um punhado de discípulos desenvolveram uma “escola” de interpretação que se tornou famosa desde então. Baur tentou reescrever a história da igreja primitiva, usando o Novo Testamento como sua fonte. Sua convicção básica era que o Novo Testamento tinha pouca relação com o Jesus de Nazaré histórico, apesar do fato de ser seu personagem

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central. O verdadeiro valor do Novo Testamento, segundo Baur, estava em seu testemunho do desenvolvimento das primeiras comunidades cristãs. Nessas comunidades, ou igrejas, houve diversas tensões rivais que se infiltraram nas pá­ ginas do Novo Testamento. As epístolas e Atos dos Apóstolos (obviamente) e os Evangelhos (menos obviamente) foram escritos no contexto dessas forças rivais e nos dizem mais sobre elas do que sobre Jesus. Apocalipse era muito mais compli­ cado e foi, em geral, ignorado ou menosprezado nos estágios iniciais de pesquisa, pois sua forma e significado não foram adequadamente compreendidos. Uma vez que Baur passou a trabalhar, toda a tarefa da crítica textual mudou. Os Evangelhos, que haviam sido o principal foco de atenção no século 18, agora preci­ savam compartilhar a atenção com o restante do Novo Testamento. Na verdade, o foco se deslocou para um período posterior — 50-100 d.C., em vez de 1-30 d.C. O Jesus histórico agora se tomou uma figura oculta, enterrada debaixo de camadas de tradição e debates teológicos. Ainda se considerava possível recuperá-lo, mas não era uma tarefa fácil. A energia que já havia sido investida na tentativa de resolver o “problema sinótico” agora tomou uma nova direção, com a busca do Jesus histórico se tornando o motivo principal para a pesquisa dos Evangelhos. Graças a Baur e seus discípulos, as epístolas foram reconhecidas como as mais importantes fontes primárias para nosso conhecimento do cristianismo primitivo. Atos dos Apóstolos, cujo propósito é contar a história da igreja, foi considerado uma composição posterior e em geral não confiável. M as as epístolas, escritas no calor da controvérsia e destinadas ao uso imediato, eram uma fonte de informação incomparável. Ao mesmo tempo, elas eram incompletas, pois forneciam somen­ te um lado da história. Um leitor de Paulo, Pedro, Tiago ou João precisariam reconstruir a situação que originou a epístola em primeiro lugar — o chamado Sitz im Leben (“contexto vital”). Normalmente, o melhor modo de fazer isso seria encontrar evidência externa que nos forneceria um outro lado da história. Infelizmente, no entanto, evidências desse tipo eram escassas. Os autores pagãos diziam pouco sobre os cristãos, e as fontes judaicas eram somente pouco mais informativas. Os escritos apócrifos e pós-apostólicos estavam disponíveis, mas eram geralmente considerados como tendo datação tardia e fidedignidade questionável. Ocasionalmente alguém sugeria que uma seita como o montanismo, que floresceu na Ásia M enor em cerca de 170 d.C ., era um vestígio estendido do cristianismo apostólico que a igreja da época se empenhou ao máximo para extinguir. Às vezes também Marcião era visto assim. M as esses testemunhos eram tardios e seu valor para reconstruir a primeira geração do cristianismo era incerto.

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Só era possível fazer progresso verdadeiro nesse campo examinando-se o próprio texto do Novo Testamento. Ao fazer isso, Baur concluiu que na igreja primitiva havia três círculos competindo por influência. Em primeiro lugar, havia o círculo do judaísmo palestino. Esse era o mais próximo do próprio Jesus e, portanto, o que tinha maior probabilidade de ter retido memórias autênticas dele. Em seguida, havia o círculo da Diáspora Judaica, que estava mais aberto a influências externas. O apóstolo era um membro desse grupo e lutou pelos seus interesses contra os palestinos. Por fim, havia o círculo gentílico helenista, que inicialmente estava na periferia da igreja do Novo Testamento, mas que logo o dominou completamente. A queda de Jerusalém em 70 d.C. colocou um fim na existência independente do cristianismo judaico palestino, e as comunidades da Diáspora, que haviam se separado das sinagogas, fundiram-se com os gentios para formar uma nova igreja. Com tantas fontes diferentes convergindo nela, essa nova igreja tinha uma grande diversidade interna, mas isso não poderia sobreviver ao processo de autodefinição e luta por reconhecimento que se seguiu. Em face da perseguição, a igreja solidificou sua posição teológica, e então emergiu gradualmente um grupo “ortodoxo” que expulsou os “hereges”. Esses “ortodoxos” eram o grupo mais helenizado de todos, e eles impuseram um sistema de doutrina na igreja fortemente influenciado por modelos filosóficos gregos. Entre os “hereges” estavam aqueles que protestavam contra isso, muitas vezes por reterem elementos do cristianis­ mo primitivo de que a grande igreja (como o grupo “ortodoxo” reivindicava ser) estava tentando se livrar. Um exemplo principal disso foi a chamada “esperança da parúsia” ou ávida expectativa da segunda vinda imediata de Cristo. Entre os “hereges” estavam também aqueles cuja helenização do evangelho foi rudimentar e sem êxito — os chamados “gnósticos”. Eles constituíam um grupo heterogêneo de pessoas, cuja abordagem da Bíblia era essencialmente mítica e alegórica, com pouca compreensão de sua dimensão histórica. A grande igreja se sobrepôs a eles ligando os mitos à história e insistindo em que Jesus de Nazaré era o Deus que morreu e ressuscitou e que havia trazido salvação para seu povo escolhido. O “mistério” da fé não estava confinado a uma elite na comunidade escolhida, mas era compartilhado por todos os seus membros, que coletivamente constituíam uma sociedade separada. E verdade que a grande igreja tinha uma hierarquia e um sistema de controle interno estranhos ao Novo Testamento, mas isso não dependia de graus de iniciação espiritual — ao menos não a princípio. Foi somente quando o cristianismo foi legalizado e conquistou o Império Romano que se desenvolveu na igreja uma elite espiritual de pessoas

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“religiosas”, que controlaram a comunidade até a grande revolta de Lutero em nome da liberdade espiritual e religiosa. A reescrita da história da igreja ocorreu com pouca referência a Jesus, que permaneceu uma figura obscura. Distingui-lo dos mitos envolvendo seu nome se tornou uma preocupação principal, que sofreu em virtude da ausência de evidências confiáveis. Teorias foram apresentadas, uma após a outra, com pou­ cos resultados positivos. No final do século 19, com frequência se pressupunha que Jesus havia sido um rabino com grande êxito, que havia internalizado as exigências morais da lei mosaica e, desse modo, trazido sobre si a ira das autori­ dades judaicas, que tentaram se livrar dele. Eles acabaram conseguindo fazê-lo, possivelmente porque Jesus de algum modo estava associado a grupos que pro­ curavam se livrar dos romanos. O que eles não poderiam ter previsto era que os seguidores de Jesus iriam resistir a isso e fazer dele não somente um mártir, mas um Salvador e Deus vivo que havia voltado dos mortos e subido ao céu. Essa descrição permaneceu relativamente intacta até 1906, quando Albert Schweitzer publicou seu notável livro, A busca do Jesu s histórico. Esse livro era uma história das tentativas do século 19 de encontrar o Jesus “histórico”, as quais Schweitzer considerava totalmente equivocadas. O verdadeiro Jesus, de acordo com ele, era uma figura apocalíptica e fanática que havia aguardado o fim iminente do mundo. As autoridades judaicas não podiam tolerar uma figura desse tipo assim como não poderíamos hoje. Quando eles se livraram dele, seus discípulos reconstruíram sua vida e seus ensinos, domesticando-os para um público maior e transformando-os em uma combinação de preceito moral e milagre que encontramos nos Evangelhos. A verdadeira chave para o espírito de Jesus estava naquelas partes do Novo Testamento que o estudo eru­ dito do século 19 havia considerado as mais difíceis de entender — o “Pequeno Apocalipse” de Marcos 13 (com paralelos em M t 24 e Lc 21) e, obviamente, o grande Apocalipse de João. O estudo do Novo Testamento havia sido virado do avesso e uma nova era de pesquisa havia começado. Os estudiosos britânicos do Novo Testamento apresentaram resistência maior às tendências alemãs do que seus colegas do Antigo Testamento, embora estivessem preparados para aceitar certos aspectos do método crítico. Houve diversas razões para isso. O mundo de fala inglesa era em geral mais cauteloso e conservador e mais resistente a pressões filosóficas do que os alemães e outros países continentais. A vida eclesiástica também tinha sido profundamente in­ fluenciada pelo Avivamento Evangélico e pelo anglo-catolicismo. O primeiro contribuiu com uma ênfase na expiação que continuou dominando grande parte

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da discussão teológica. O segundo contribuiu com uma ênfase correspondente na encarnação de Cristo, que era profundamente hostil às teorias do “mito” da escola de Tübingen e seus sucessores. A eclesiologia anglicana também tinha interesses próprios em demonstrar que não era uma deturpação posterior, mas algo que podia ser justificado pe­ la tradição primitiva. Os anglicanos não estavam ligados a um tipo católico romano de fundamentalismo, que os teria obrigado a procurar o papado nos evangelhos (M t 16.18), e, assim, eles podiam aceitar que as estruturas eclesiás­ ticas haviam se desenvolvido ao longo do tempo. M as, ao contrário de outros protestantes, eles estavam comprometidos em defender a legitimidade desse de­ senvolvimento, o que incluía demonstrar que ele remontava a épocas primitivas. Eles fizeram isso com êxito notável e no meio desse processo deslocaram o ca­ lendário das origens do Novo Testamento de volta ao primeiro século. Isso, por sua vez, tornou mais difícil argumentar que o Novo Testamento tinha tradições radicalmente diferentes dos ensinos de Jesus, visto que o tempo disponível para seu desenvolvimento mal passava de uma geração, em que pessoas que haviam conhecido Jesus ainda estavam vivas e ativas na igreja. O conservadorismo britânico estava fortemente ligado a um estudo tex­ tual preciso, e aqui, repetindo, os críticos do Novo Testamento viviam em uma atmosfera diferente da de seus colegas do Antigo Testamento. Longe de depen­ derem de uma única tradição de manuscritos, os estudiosos do Novo Testamento tinham uma vasta diversidade de textos e fragmentos à sua escolha. O Textus receptus não poderia sobreviver ao estudo renovado desses documentos e, em 1880, foi abandonado de vez, quando surgiu um novo texto grego, baseado em uma seleção cuidadosa de versões dos melhores manuscritos disponíveis. Isso deu início a um novo ciclo de estudos textuais, que no decorrer de um século produziria um texto-padrão do Novo Testamento que é o mais próximo possível do original em relação às evidências atualmente disponíveis. Isso foi um feito notável e pode ser justamente considerado como o único resultado verdadeira­ mente seguro da crítica moderna.

Os intérpretes e sua obra A esfera alemã: os precursores de Baur Friedrich D aniel Ernst Schleiermacher (1768-1834). Professor em H alle (1894) e Berlim (1810), ele agora é reconhecido como o pai da teologia liberal alemã no século 19, e a maioria de sua obra foi feita nesse campo. Seu liberalismo era

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diferente do racionalismo mais antigo dos deístas, ao qual se opôs fortemente. Ele combinou uma abordagem crítica de questões textuais e históricas com uma sensibilidade religiosa herdada do pietismo. Em seus discursos sobre a religião (1799), defendeu que a religião era o estudo do lado não racional dos seres humanos, que era simplesmente tão importante quanto o lado racional, e que o cristianismo era a forma mais elevada de religião que havia se desenvolvido até então. Foi o primeiro a fazer preleções sobre a vida do Jesus histórico, mas seus pensamentos sobre o tema foram publicados somente em 1864, quando foram seriamente criticados por Strauss. Durante sua vida, ele publicou pouco no campo dos estudos do Novo Testamento, com exceção dos comentários de lTim óteo (1807) e Lucas (1817). H erm ann H eim art Cludius (1754-1835). Afirmou (1808) que o Evangelho de João representa um cristianismo muito diferente do cristianismo dos Sinóticos e, portanto, não pode ser obra de uma testemunha ocular. De acordo com ele, as contradições internas no texto deixam claro que o Evangelho foi elaborado por uma série de redatores diferentes. Hermann Olshausen (1796-1839). Ele ensinou em Kõnigsberg (1821) e Erlangen (1834) e escreveu prolificamente sobre temas do Novo Testamento, principalmente de uma perspectiva doutrinária. Suas obras incluem T hegen u in eness o f th efo u r canonical Gospels [A genuinidade dos quatro Evangelhos canônicos] (1823), Ein Wort über tieferen Schriftsinn [Uma palavra sobre o significado mais profundo das Escrituras] (1824), D ie biblische S chriftauslegung [Exposição das Escrituras bíblicas] (1825) e seu grande B iblical com m entary on the N ew T estam ent [Comentário bíblico do Novo Testamento] (1830-1840; TI 1847-1860), partes do qual foram republicadas em anos recentes (1983-1984). Olshausen foi um forte defensor da crítica bíblica, mas a usou para alcançar conclusões muito con­ servadoras. Por exemplo, ele acreditava que Pedro ditou suas duas epístolas em hebraico; a diferença entre elas podia ser atribuída a diferentes tradutores gregos, o segundo dos quais fez uso de Judas no decorrer da sua obra. Johann Leonhard H ug (1765-1846). Foi o mais importante católico es­ tudioso da Bíblia do século 19 e lecionou no seminário católico em Freiburg im Breisgau (1792). Sua grande obra foi a magistral In trodu ction to the N ew T estam ent [Introdução ao Novo Testamento] (1808; TI 1827). Ela faz pleno uso dos métodos histórico-críticos, mas chega a conclusões previsivelmente conser­ vadoras em todos os casos. Mesmo assim, é necessário creditar a H ug o fato de ter aberto a Igreja Católica Romana à crítica bíblica protestante da época. Perto do fim de sua vida, tornou-se oponente ferrenho de David Strauss, defendendo

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que as pressuposições seculares de Strauss e as compreensões equivocadas da natureza do mito o haviam levado a subestimar a fidedignidade dos relatos do Novo Testamento. Karl Gottlieb Bretschneider (1776-1848). Escrevendo em latim a fim de evitar ofender o público geral, Bretschneider sugeriu (1820) que João era um Evangelho com origens helenistas, muito distante da atmosfera do judaísmo palestino. Essa visão se tornaria comum no século 19. Karl H einrich Venturini (1768-1849). Adotou a tese de Bahrdt (veja p. 246) e a aperfeiçoou. De acordo com ele, Jesus poderia ser entendido somente se revestisse de carne sua mensagem espiritual. Seus “milagres” eram somente curas normais e a ressurreição de Lázaro foi de um coma, não da morte. No Domingo de Ramos, Jesus proclamou a si mesmo como Messias a fim de tentar destruir a superstição popular, mas seu conluio fracassou e, em vez disso, ele foi crucificado. Sua obra principal foi D ie natürliche G eschichte des grossen P ropheten vo n N azareth [A história natural do grande Profeta de Nazaré] (1800-1802). Heinrich Eberhard Gotdob Paulus (1761-1851). Ensinou em Jena a partir 1789, em Würzburg a partir de 1803 e em Heidelberg a partir de 1811. Foi uma importante ligação entre os neologistas e racionalistas do século 18 e a geração de críticos seguinte, notavelmente De Wette. Escreveu diversos comentários, incluindo três comentários dos Evangelhos Sinóticos (1830-1833), mas é lembrado hoje mais por L ife o f Jesus [A vida de Jesus] (1828), em que rejeitou os milagres como eventos naturais. Manteve-se um racionalista clássico da antiga escola até o fim da vida. W ilhelm M artin Leberecht De W ette (1780-1849). (Veja p. 278-9). Sua obra do Novo Testamento incluiu breves estudos exegéticos, abrangendo todo o texto, publicados entre 1836 e 1848. Karl Lachmann (1793-1851). Lecionou filologia clássica em Kõnigsberg (1825) e depois em Berlim (1827). As técnicas de crítica textual de Lachmann introduziram uma nova era nos estudos bíblicos. Sua classificação de manuscri­ tos ainda é geralmente aceita, e suas edições do Novo Testamento grego (1831 e 1847-1850) foram as primeiras a se basear inteiramente nas mais antigas tradi­ ções de manuscritos. Nesse aspecto, sua obra foi precursora da obra de Westcott e Hort. Também defendeu, com base em um estudo preciso das evidências tex­ tuais, que Marcos foi o primeiro Evangelho a ter sido escrito. Johannes M artin Augustinus Scholz (1794-1852). Aluno de J. L. Hug, tornou-se o reitor da faculdade católica em Bonn. Foi pioneiro na pesquisa sobre o texto grego do Novo Testamento, embora se inclinasse à aceitação do Textus receptus, um fato que fez estudiosos posteriores desconsiderarem grande

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parte de sua obra. No entanto, Scholz não estava completamente ligado à tradi­ ção eclesiástica e, perto do fim de sua vida, repudiou muitas de suas concepções anteriores a favor da opinião científica contemporânea. Christian Gottlob W ilk e (1786-1854). Pastor até sua demissão em 1837, escreveu um livro chamado D er U revan gelist [O primeiro evangelista] em 1838, em que defendeu a prioridade de Marcos, seguido por Lucas e Mateus. Em 1846, tornou-se católico romano. Johann C arl Ludw ig Gieseler (1792-1854). Lecionou em Bonn (1819) e Gõttingen (1831). Anuiu à afirmação de Herder de que havia um “evangelho primitivo” oral que havia sobrevivido em aramaico, mas ao desenvolver essa hi­ pótese acabou revelando suas graves dificuldades, notavelmente o fato de que ela não podia explicar as semelhanças verbais entre os Evangelhos Sinóticos em grego. Sua obra principal sobre o tema foi publicada em 1818. Gottfried Christian Friedrich Lücke (1791-1855). Lecionou em Bonn a partir de 1818 e em Gõttingen a partir de 1827. Publicou comentários do Evangelho de João, das epístolas joaninas e de Apocalipse, mas sua obra mais importante foi G rundriss d er N eutestam entlichen H erm eneutik [Esboço de her­ menêutica do Novo Testamento], publicada em 1817, um fiel reflexo das ideias de Schleiermacher. Lücke defendeu que a exegese histórico-gramatical não era suficiente para a compreensão do Novo Testamento; também era necessário explicar o elemento religioso. Rejeitou, portanto, a ideia de que a Bíblia podia ou devia ser lida “como qualquer outro livro”.

A esfera alemã: Baur e seu legado Ferdinand Christian Baur (1792-1860). Possivelmente o maior estudioso do Novo Testamento do século 19, foi certamente um dos mais influentes. A partir de 1826, lecionou história da igreja e dogmática em Tübingen, onde formou uma geração inteira de estudiosos. Seguidor da filosofia de G. W . F. Hegel, acre­ ditava que o cristianismo primitivo era uma síntese criada a partir do conflito de forças opostas. Desenvolveu esse tema no livro U ntenuchungen über d ie so gen an nten P astoralbriefe des Aposteis Paulus [Investigações a respeito das chamadas Epístolas Pastorais de Paulo], publicado em 1835. M ais tarde, escreveu mais um livro sobre Paulo, Paulus, d er A postei Jesu C hristi [Paulo, apóstolo de Jesus Cristo], publicado em 1845 e traduzido para o inglês só em 1873-1875. Nessa obra, ele negou a autoria paulina de todas as epístolas com exceção de Gálatas, 1 e 2Coríntios e Romanos. Também negou a origem apostólica (e, portanto, a

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essência da historicidade) de Atos. Em 1847, publicou sua última obra de crítica do Novo Testamento, K ritische U ntersuchungen über d ie kanonischen E van gelien [Investigações críticas a respeito dos Evangelhos canônicos]. Acreditava que Mateus era o primeiro dos Evangelhos a ter sido escrito, pois era o que melhor refletia o contexto judaico do cristianismo. Em contrapartida, acreditava que o Evangelho de João refletia as controvérsias gnósticas e montanistas do final do segundo século e não tinha nenhum valor histórico. Albert Schwegler (1819-1857). Representante da escola de Tübingen, seu livro Das nachapostolische Z eitalter in den H auptm om enten sein er E ntw ick lung [O período pós-apostólico nos momentos fundamentais de seu desenvolvimento] (1846) interpretou a totalidade da literatura cristã primitiva da perspectiva da teo­ ria de conflito de Baur e se tornou uma expressão clássica da posição de Tübingen. M atthias Schneckenburger (1804-1848). Professor em Berna a partir de 1834, morreu cedo. Escreveu diversos estudos do Novo Testamento, incluindo um sobre Atos (1841), em que desenvolveu a posição da escola de Tübingen. No entanto, era mais cuidadoso que Baur e amparou seus argumentos com uma grande quantidade de evidências que Baur ignorava. Christian Hermann Weisse (1801-1866). Ensinou em Leipzig a partir de 1828, com exceção de uma breve interrupção (1837-1841), e foi um filósofo idealista em uma época em que o idealismo estava saindo de moda na Alemanha. Em sua Gospel history [História do evangelho] (1838), defendeu a hipótese das duas fontes em relação às origens dos Evangelhos em que tanto Mateus como Lucas usaram Marcos e mais uma fonte. Essa foi a primeira vez que alguém ha­ via proposto a existência do documento que agora chamamos Q jQ u elle, palavra alemã traduzida por “fonte”). Ele considerava João não histórico, mas afirmou que seu tom era principalmente hebraico, e não helenista. Ele também acreditava que Jesus havia rejeitado a literatura apocalíptica judaica espiritualizando-a. De acordo com Weisse, Jesus ficou consciente de que era o Messias quando foi batizado. A ressurreição, no entanto, era uma convicção psicológica da comunidade cristã primitiva, e não um fato histórico. H einrich August W ilhelm M eyer (1800-1873). Escreveu um comentário do Novo Testamento que conseguiu desenvolver até Filemom (1829-1847), mas que continuou sendo publicado até a presente época sob diversos autores que o sucederam. O comentário afirma se basear exclusivamente em princípios histórico-gramaticais e, assim, adquiriu uma reputação de conservadorismo, mas M ayer de modo algum era hostil a teorias críticas que pudessem ser defen­ didas pelas evidências textuais.

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David Friedrich Strauss (1808-1874). Estudante emTübingen, foi chamado para lecionar em Zurique em 1839, contudo, por causa da oposição de conserva­ dores, foi aposentado antes de poder ensinar. Passou o restante de sua vida como autor independente. Seu mais famoso livro, e o que originou oposição a ele, foi seu L ife o f Jesu s [A vida de Jesus] (1835). Nessa obra, ele demonstrou uma mar­ cante preferência por interpretações sobrenaturalistas de Jesus às interpretações racionalistas e afirmou que era impossível escrever uma história normal sobre sua vida. De todo modo, argumentou Strauss, a história não é importante. O que importa é o mito envolvendo o homem, pois é isso que mudou o mundo. Ele afirmou que Marcos era um epítome de Mateus, que tentou transformar a - narrativa do evangelho em história, mas fracassou. Atacou os racionalistas pela sua opinião elevada sobre João, que ele considerava como incoerente com seus princípios, visto que João era o Evangelho menos histórico de todos. Por causa de sua preferência por mitologia não histórica, Strauss não tinha interesse algum em escatologia — uma questão importante, como Schweitzer mais tarde obser­ vou. Strauss tinha pouco senso crítico e ignorava completamente o problema da origem da igreja. No entanto, seu livro levantou novas questões e obrigou os estudiosos a reexaminarem suas pressuposições nas pesquisas dos Evangelhos. Ele representou um ponto de inflexão nos estudos do Novo Testamento, de im ­ portância igual à defesa que Schweitzer fez da abordagem escatológica, quase duas gerações depois. A ugust WÜhelm Neander (1789-1850). Eminente historiador da igreja, iniciou seus estudos do Novo Testamento mais perto do fim de sua vida, em uma tentativa de encontrar respostas a Strauss (1836; 1837). Sua abordagem geral era conservadora e racionalista. Ele levou os milagres de Jesus a sério, mas os interpretou como um tipo de poder psicológico para influenciar a natureza, tanto humana como material. Christoph Friedrich von Am m on (1766-1850). Foi mais um racionalista idoso que se envolveu na briga contra Strauss (1840; 1842-1847). Sua aborda­ gem era inteiramente racionalista, e ele preferia João como fonte histórica aos Sinóticos por causa de seu idealismo. A ugust Friedrich Christian V ilm ar (1800-1868). Autor de um comentário de seis volumes da Bíblia (C ollegium Biblicuní), Vilmar ocupa um importante lugar na história da interpretação. M uito antes de Albert Schweitzer, ele fez objeção à ideia comum de que a crítica histórica podia fornecer uma com­ preensão melhor das Escrituras do que a apresentada por gerações anteriores. Ele traçou uma clara distinção entre teologia, como o estudo de Deus e suas

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obras, e exegese, que ele considerava fundamentalmente uma técnica literária. Essa distinção não foi amplamente valorizada em sua própria época, e Vilmar foi severamente criticado por fazê-la, mas ela se tornou mais amplamente aceita em épocas recentes. ConstantinT ischendorf (1815-1874). Famoso pelas suas pesquisas de ma­ nuscritos, publicou 24 edições do Novo Testamento grego durante sua vida e fez uma contribuição importantíssima à crítica e pesquisa textuais. Friedrich W ilhelm GhiUany (Richard von der A lm ) (1807-1876). Suas concepções eram semelhantes às da escola de Tübingen, embora ele tenha data­ do Marcos após Lucas. Ele não teve tempo para escrever sobre João. Acreditava que Jesus veio a ser adorado por causa de uma fusão sincretista de judaísmo e influências gnósticas. Afirmou que Jesus acreditava ser um Messias escatológico e que incitou os romanos a matá-lo a fim de inaugurar o reino escatológico de amor fraternal. Sobre essa convicção, tentou fundar sua própria igreja, baseada em princípios deístas, mas fracassou. Johann Tobias Beck (1804-1878). Professor de teologia sistemática em Tübingen a partir de 1843, mas a própria antítese de Baur, Beck foi um conservador tradicional no estilo de J. A. Bengel e defendeu o luteranismo confessional. Isso fica bem evidente em seu comentário póstumo de Romanos (1884). Sua posição foi defendida mais tarde, mas em uma forma modificada, por A. Schlatter e até mesmo por K. Barth. KarITheodor Keim (1825-1878). Publicou uma história de Jesus (1867), em que afirmou que havia existido uma fase galileia no ministério de Jesus antes de ele se mudar para a Judeia. No primeiro período, sua mensagem ainda tinha tom idílico e moral; somente mais tarde ela se tornou política e escatológica. Essa visão se tornou mais tarde o retrato liberal comum da vida de Jesus. Karl Christian Planck (1819-1880). Membro da escola de Tübingen e íntimo de Baur, inventou um sistema filosófico extremamente complexo, que somente ele conseguia entender. Sua contribuição principal para a pesquisa do Novo Testamento apareceu em dois artigos (1843, 1847) que levantaram pela primeira vez a questão da relação de Jesus com o judaísmo. Bruno Bauer (1809-1882). Acreditava que João era uma obra de arte, e não um relato histórico, e que o Evangelho havia sido fortemente influencia­ do por Filo. Os Evangelhos Sinóticos também não eram históricos, embora fossem obviamente diferentes de João. Marcos era o primeiro e a única fonte literária dos outros. As narrativas de nascimento de Jesus eram fictícias, e a ideia messiânica era uma invenção da igreja primitiva. Apresentou a ideia de

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um segredo messiânico, mais tarde desenvolvida por Wrede. Ele acreditava que milagres representavam uma falsa vitória sobre a natureza; a verdadeira vitória está somente na morte. O cristianismo, ele afirmou, era um judaísmo com in­ fluências estoicas, produto da agonia cultural moribunda da Grécia e de Roma. Em relação a Jesus, Bauer acabou concluindo que ele nunca havia existido. Sua obra sobre João foi publicada em 1840 e o livro sobre os Sinóticos, pouco depois (1841-1842), os quais seguidos por uma obra sobre os Evangelhos como um todo (1850-1851). Ele também escreveu sobre Atos (1850) e sobre as epístolas paulinas (1850-1852). Suas duas obras sobre a cena cultural mais ampla vieram depois; a que tratava de Filo veio a lume em 1874, e o texto sobre a teoria da crise greco-romana foi publicado em 1877. Johann Peter Lange (1802-1884). Professor em Zurique a partir de 1838 e o substituto conservador de D. Strauss, escreveu um comentário teológico sobre a histórica da igreja primitiva (1853-1854) em que defendeu visões tradicionais contra os críticos de Tübingen. Johannes Henricus Scholten (1811-1885). Professor em Leiden a partir de 1843, pertencia à escola moderna de crítica e publicou comentários de Marcos (1868) e Lucas (1870). Gotthard Victor Lechler (1811-1888). Escreveu uma extensa obra sobre a era apostólica (1851), em que tentou mostrar a unidade essencial entre Paulo e os outros apóstolos. Aceitou que havia diferenças de ênfase no grupo apostólico, mas resistiu ao impulso de Tübingen de encontrar conflitos em todos os lugares. Sua obra permanece valiosa pelo modo com que distinguiu diferentes linhas na igreja do Novo Testamento. Timothée Colani (1824-1888). Era da Alsácia e escreveu em francês. Em 1864, afirmou que havia diferentes teorias messiânicas no judaísmo e que não era possível identificar Jesus com nenhuma delas com certeza. Estava convencido de que Jesus nunca havia imaginado uma segunda vinda, mas acreditava que sua obra estaria concluída com sua morte. Ela não tinha, portanto, nenhuma dimensão escatológica. M ichaelBaum garten (1812-1889). Um severo crítico da escola de Tübingen, escreveu um comentário de três volumes de Atos (1852), que transbordava de veneno contra seus oponentes. No entanto, seu argumento de que Baur não havia compreendido o conceito “liberdade da lei” em Paulo, — e que o havia transformado em uma nova lei —, era válido e profundo. Albrecht Benjamin Ritschl (1822-1889). Um dos maiores estudiosos liberais do Novo Testamento do período, estabeleceu ideias que determinaram o formato do protestantismo liberal até mesmo após 1918. Lecionou teologia sistemática em

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Bonn a partir de 1852 e depois em Gõttingen a partir de 1864. Seu livro sobre a origem da igreja católica primitiva (1850) rompeu com a tese de Baur e represen­ tou a primeira revolta na escola de Tübingen. Também escreveu uma grande obra teológica sobre a justificação, publicada em dois volumes (1870,1874). Karl A ugust Hase (1800-1890). Ensinou em Jena a partir de 1830. Seu campo principal era história da igreja, mas também escreveu sobre temas do Novo Testamento. Foi o primeiro a escrever uma biografia de Jesus com uma base puramente histórica. Aceitou somente os milagres relatados em João, e talvez também tenha admitido o nascimento virginal. Dividiu a trajetória de Jesus em duas partes distintas. No primeiro período de seu ministério, Jesus supostamente aceitou o messianismo popular e se adequou às suas exigências apocalípticas de uma restauração de Israel, porém, na segunda parte, diversi­ ficou sua perspectiva por conta própria e desenvolveu outras visões. De acordo com Hase, os apóstolos permaneceram ligados à primeira dessas fases, exceto João, que compreendeu o desenvolvimento psicológico de Jesus e respondeu a ele. Hase publicou D as L eben Jesu [A vida de Jesus] em 1829 e D ie Geschichte Jesu [A história de Jesus] em 1876. Sua interpretação da vida de Jesus se tornou comum na década de 1830 e permaneceu assim durante meio século. Edouard (Eduard) Reuss (1804-1891). (Veja p. 285.) Escreveu uma história dos escritos do Novo Testamento (1842), uma teologia joanina (1847) e uma histó­ ria da teologia cristã na era apostólica (1852), todos os quais apareceram em francês. Gustav Volkmar (1809-1893). Foi um membro extremista da escola de Tübingen, cujas obras agora foram esquecidas. Levou a tese de Baur à sua con­ clusão lógica e encontrou conflitos judaico-helenistas em quase todos os lugares do Novo Testamento. A maioria de seus colegas achava que ele estava levando as coisas longe demais e, ao reagir a Volkmar, lançaram as sementes da dúvida a respeito dos métodos da escola como um todo. Karl H einrich von W eizsácker (1822-1899). Sucedeu a Baur em Tübingen (1861). Suas mais famosas obras foram U ntersuchungen ü ber d ie ev a n gelisch e G eschichte [Investigações a respeito da história do evangelho] (1864) e D as apostolische Z ,eitalter d er christlichen K irch e [A época apostólica da igreja cristã] (1886). Augustus Hermann Cremer (1834-1903). Luterano convicto, lecionou em Greifswald a partir de 1870. Sua principal obra é D ie paulin ische R ech tfertigu n gsleh re [A doutrina paulina da justificação pela fé], publicada em 1899. Franz Overbeck (1837-1905). Ensinou em Jena a partir de 1864 e depois em Basel (1870). Revisou o comentário de Atos escrito por De W ette à luz das

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convicções da escola de Tübingen e escreveu várias obras sobre o cânon (1880), sobre a literatura pós-apostólica (1882) e sobre João (1911). Era não cristão declarado, e grande parte de sua obra se destinava a refutar as afirmações do cristianismo. Grande parte dela nunca foi publicada. W illem Christiaan van M anen (1842-1905). Professor em Leiden, foi o principal representante da escola radical holandesa de crítica do Novo Testamento. Ele não se opunha tão veementemente à ortodoxia quanto Baur e seus colegas, mas era mais radical do que eles. Argumentando c o m base na teologia desenvolvida — e, portanto, helenizada — de Romanos e Gálatas, van M anen concluiu que elas não podiam ter sido escritas por Paulo, cujo contexto era muito judaico. Van M anen, portanto, concluiu que nenhuma das epístolas paulinas era genuína. A dolf H ilgenfeld (1823-1907). Ensinou em Jena a partir de 1847. Foi um adepto crítico da escola de Tübingen e escreveu diversos estudos sobre o con­ texto cultural judaico do Novo Testamento. Em 1857, chamou a atenção pela primeira vez para a importância da literatura apocalíptica judaica para as ori­ gens cristãs. Também escreveu importantes obras sobre o cânon (1863) e sobre vários escritos extracanônicos (1884). Eduard Zeller (1814-1908). Membro da escola de Tübingen e colega pró­ ximo de Baur, Zeller lecionou em Berna a partir de 1847 e em Marburgo a partir de 1849. Em 1862, foi para Heidelberg e depois para Berlim em 1872. Ele escreveu pouco, mas apoiou Baur e Strauss nas controvérsias. Suas próprias convicções eram panteístas, e ele não acreditava em vida após a morte. Para ele, o cristianismo era pouco mais que o código moral supremo. H einrich Julius H oltzm ann (1832-1910). Ensinou em Heidelberg (1858) e depois em Estrasburgo (1874-1904). Ele escreveu um estudo clássico dos Evangelhos Sinóticos (1863), que estabeleceu a teoria das duas fontes, uma introdução ao Novo Testamento (1885) e uma teologia do Novo Testamento (1896). Holtzmann se opôs às visões de Wrede, a quem criticou em Jesu s’ m essianic self-consciousness [A autoconsciência messiânica de Jesus] (1907). Também escreveu comentários de Efésios e Colossenses (1872), das Epístolas Pastorais (1880), dos Evangelhos Sinóticos e Atos (1889) e João (1890). Em il Schürer (1844-1910). Ensinou em Leipzig (1869), Giessen (1879), Kiel (1890) e Gõttingen (1895). Sua mais famosa obra é H istory o f th e J ew ish p eo p le in th e a ge o f Jesu s Christ [História do povo judeu na época de Jesus Cristo], que começou a aparecer em 1874 e foi concluída em 1887. A inda é um re­ curso fundamental para o estudo do judaísmo na época do Novo Testamento,

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e a tradução para o inglês (1885-1891) foi atualizada e republicada ainda em 1973-1986. M artin Káhler (1835-1912). Ensinou em Halle a partir de 1860, exceto por um breve período em Bonn (1864-1867). Foi um teólogo e estudioso da Bíblia luterano conservador e extremamente produtivo. Escreveu um pungente ataque à abordagem liberal da vida de Jesus, publicado em 1892, embora tenha sido traduzido para o inglês somente em 1964. Sua principal linha de raciocínio era que não há nenhum documento histórico fidedigno relacionado à vida de Jesus, fora os Evangelhos, que não são histórias no sentido comum do termo. Procurar o “Jesus histórico”, portanto, era um grande erro e deveria ser substituído por um foco na pregação e ministério de ensino que os Evangelhos relatam. Suas convicções se tornaram muito influentes na crítica do século 20, embora não tenham sido bem recebidas quando foram publicadas pela primeira vez. C arl Friedrich Georg H einrici (1844-1915). Ensinou em Berlin (1871), Marburgo (1874) e Leipzig (1892). Na década de 1880, foi o primeiro a fazer amplo uso de paralelos entre o pensamento helenista e o paulino, mas foi cui­ dadoso em enfatizar que o contexto do Antigo Testamento de Paulo assegurou que sua abordagem fosse original. M ais tarde, em 1911, ele se opôs à sugestão de Reitzenstein de que o cristianismo era essencialmente uma religião de mistério e argumentou que o cristianismo triunfou sobre seus rivais por causa de sua combinação única de religião e moralidade. R udolf Sohm (1841-1917). Jurista, defendeu em seu livro K irch en rech t [Lei eclesiástica] (1892) que, em essência, a igreja primitiva era uma organização espiritual, e não legal. Defendeu uma abordagem teológica da histórica da igreja e, nesse sentido, foi precursor da escola da “história das religiões”. Bernhard W eiss (1827-1918). Professor em Kõnigsberg (1857), Kiel (1863) e Berlim (1876), escreveu muitos dos volumes no comentário Mayer, uma teologia bíblica do Novo Testamento (1868), uma vida de Jesus (1882) e uma introdução ao Novo Testamento (1889), amplamente lida em sua época e quase imediata­ mente traduzida para o inglês. Weiss foi o pai de Johannes e um intérprete da Bíblia muito conservador. Johannes W eiss (1863-1914). Foi filho de Bernhard e genro de Albrecht Ritschl; faleceu antes de seu pai. Lecionou em Gõttingen a partir de 1888, em Marburgo a partir de 1895 e em Heidelberg a partir de 1908. Estava ligado à escola da “história das religiões” e se tornou pioneiro do que mais tarde seria conhecido como crítica da forma. Suas concepções sobre Jesus como uma figura escatológica foram desenvolvidas em seu livro Jesu s’ tea ch in g on the kingdom o f

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G od [O ensino de Jesus sobre o reino de Deus] (1892) e mais tarde populari­ zadas e difundidas para um público maior por A . Schweitzer, que reconheceu a percepção de Weiss. Weiss também escreveu comentários de Lucas (1893) e ICoríntios (1910), e em sua morte deixou uma obra incompleta sobre o cristia­ nismo primitivo, publicada postumamente (1917). Paul W ilhelm Schm iedel (1851-1935). Lecionou em Zurique de 1893 a 1923 e é o último representante renomado da tradição radical de Baur. Suas visões eram similares às de F. Overbeck, e ele não tinha uma opinião nem um pouco elevada da historicidade dos documentos do Novo Testamento.

A esfera alemã: da escola da “história das religiões” em diante Herm ann Usener (1834-1905). Professor de filologia clássica em Berna (1861), Greifswald (1863) e Bonn (1866), foi um estudioso de grande influência no campo da religião comparada e na história da igreja primitiva, e sua obra pre­ parou o caminho para a abordagem neotestamentária da “história das religiões”. Seu livro sobre a festa do Natal (1899) recorreu aos conceitos da magia egípcia como principal fonte das narrativas de nascimento de Jesus. Otto Pfleiderer (1839-1908). Ensinou em Tübingen (1864-1868), em Jena (1871-1875) e depois em Berlim. Suas mais importantes obras sobre crítica bíblica foram o famoso Paulinism [Paulinismo] (1873) e Das U rchristentum [O cristianismo primitivo] (1883). Ele argumentou que João foi totalmente condicionado pela escatologia, que Marcos era uma obra de teologia, e não de história, que Paulo foi fortemente influenciado pelo helenismo e que os sacra­ mentos foram influenciados pelas religiões de mistério. Também acreditava que havia uma diferença radical entre Jesus e Paulo. A dolf H ausrath (1837-1909). Ensinou em Heidelberg a partir de 1867. Embora fosse um historiador da igreja, escreveu sobre a influência das ideias helenistas em Paulo e produziu uma história da época do Novo Testamento que refletiu as convicções da escola de Tübingen (1868). Foi precursor da escola da “história das religiões”, mas não vinculou o Novo Testamento ao cristianismo pós-apostólico primitivo de algum modo construtivo. WiUiam W rede (1859-1906). Ensinou em Gõttingen (1891) e depois em Breslau (1893). Foi um dos fundadores da escola da “história das religiões” de Gõttingen e escreveu diversas obras importantes. The task a n d m ethods o f N ew T estam ent th eology [Tarefa e métodos da teologia do Novo Testamento] foi pu­ blicada em 1897, seguida por estudos sobre João (1903) e Paulo (1904), que

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ainda hoje mantêm um expressivo grau de importância. Sua obra mais signifi­ cativa foi The m essianic secret [O segredo messiânico] (1901), traduzido para o inglês somente em 1971. Seu argumento principal era que Jesus ocultou toda alegação de ser o Messias, mas a igreja primitiva mais tarde subentendeu essas alegações em seu ministério. W ilhelm Bousset (1865-1920). Ensinou em Gõttingen de 1896 a 1916 e depois em Giessen. Publicou um grande número de obras sobre o judaísmo e o cristianismo primitivo, bem como sobre estudos patrísticos de vários tipos. Suas mais importantes obras foram sobre o livro de Apocalipse (1896), o judaís­ mo (1902), a literatura apocalíptica (1903) e o gnosticismo (1907); seu famoso K yrios Christos [Senhor Cristo] veio a lume em 1913, embora tenha sido tradu­ zido para inglês somente em 1970. Bousset foi um dos membros fundadores da escola da “história das religiões” em Gõttingen, e a maioria de suas obras reflete essa orientação. Ele acreditava que a igreja primitiva era uma comunidade de adoração unida por ritos sagrados e que “Kyrios” era um poder místico cuja presença era sentida durante essa adoração. A lbert Eichhorn (1856-1926). Ensinou em H alle (1886) e em Kiel (19011913), mas precisou se aposentar por causa de doença. Publicou pouco, mas influenciou muitos outros com seu ensino. Sua mais famosa obra é Thesen [Teses], que veio a lume em 1886 e trata principalmente da paixão e morte de Cristo. Ele mais tarde escreveu sobre a Ú ltim a C eia em D asA bendm ahl im N euen T estam ent [A ceia do Senhor no Novo Testamento] (1898). Foi um proeminente seguidor da abordagem da “história das religiões” para a crítica do Novo Testamento. W ilhelm H eitm üller (1869-1926). Lecionou em Gõttingen (1902), Marburgo (1908), Bonn (1920) eTübingen (1924). Colega próximo de Bousset e profundamente ligado à abordagem da “história das religiões”, escreveu um comentário de João (1907), bem como obras sobre o batismo e a ceia do Senhor. H ans H einrich W endt (1853-1928). Revisou o comentário de Atos escrito por M eyer (1899) e enfatizou que Lucas era antes de tudo um historiador, mesmo que alguns dos detalhes de sua história estejam incorretos. Portanto, ele fez o que estava a seu alcance para destruir os argumentos da escola de Tübingen e devolver a questão da historicidade aos princípios da interpretação do Novo Testamento. A dolf von H arnack (1851-1930). Ensinou em Leipzig (1874), Giessen (1879), Marburgo (1886) e Berlim (1888-1921). Embora fosse principalmente um historiador da igreja, também tratou de questões do Novo Testamento e foi o mais proeminente representante da crítica liberal alemã até sua morte. Seu apoio

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aos objetivos de guerra da Alemanha em 1914 decepcionou o jovem Karl Barth e o ajudou a se situar em uma jornada teológica longe do liberalismo. Sua principal obra foi D ogm engeschichte [História do dogma], publicada em vários volumes entre 1886 e 1889 e logo traduzida para o inglês (1894-1899).Também escreveu sobre Lucas, Atos e Suas preleções D as Wesen des C hristentum s [A essência do cristianismo], feitas em 1900, tornaram-se populares imediatamente e foram traduzidas para vários idiomas. Ele desenvolveu sua teoria das origens cristãs em uma obra sobre esse tema (1902) e mais tarde tentou reabilitar Marcião (1921) como um dos últimos representantes do “verdadeiro” cristianismo. Richard Reitzenstein (1861-1931). Ensinou clássicos em Breslau (1888), Rostock (1889), Giessen (1892), Estrasburgo (1893), Freiburg im Breisgau (1911) e finalmente em Gõttingen (1914). Escreveu muitas obras de filologia clássica e realçou a herança não judaica do cristianismo primitivo. Em sua obra sobre religiões de mistério helenistas (1910), afirmou que Paulo havia sido for­ temente influenciado por elas, ideia que ele mais tarde desenvolveu em outros estudos sobre religiões de mistério iranianas (1921) e sobre a pré-história do batismo cristão (1929). Ele exerceu grande influência sobre W . Bousset e mais tarde sobre R. Bultmann. Herm ann G unkel (1862-1932). Lecionou em Gõttingen (1888), Halle (1889), Berlim (1905), Giessen (1907) e novamente em H alle (1920). A obra de sua vida foi no âmbito do Antigo Testamento, mas em sua juventude também escreveu sobre temas do Novo Testamento. Seu livro sobre Gênesis e Apocalipse, Schõpfung u n d Chaos in U rzeit u n d E n dzeit [Criação e caos no início e no fim dos tempos], que veio a lume em 1895, chamou a atenção para a importância de Apocalipse e preparou o caminho para um renascimento dos estudos apocalípticos. Outra obra de grande importância foi Z um religion sgeschichtlichen Verstàndnis des N euen Testam ents [Da compreensão da História das Religiões do Novo Testamento], publicada em 1903. Theodor Zahn (1838-1933). Lecionou em Gõttingen a partir de 1871, em Kiel a partir de 1877, em Erlangen a partir de 1878, em Leipzig a partir de 1888 e novamente em Erlangen a partir de 1892. Foi um importante historiador do cânon e escreveu detalhadamente sobre ele (1888-1916); escreveu também uma introdução ao Novo Testamento (1897-1899) e nove comentários em sua própria série (1903-1926). Sua perspectiva era conservadora e profundamente acadêmica. Foi um dos primeiros alemães a compreender a importância de des­ cobertas arqueológicas feitas por estudiosos anglo-americanos, em especial as de Sir W illiam Ramsay.

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Hajo Uden M eijboom (1842-1933). Esse estudioso holandês escreveu A history a n d critiq u e o f the M arcan H ypothesis [História e crítica da hipótese marcana] (1866; TI 1992), que contém uma penetrante crítica das pressuposições subjacentes a grande parte da pesquisa sinótica moderna. Ele critica sobretudo os argumentos a favor da prioridade marcana e, no fim, acaba favorecendo a hipótese de Griesbach. E, além disso, acrescenta que a elevada cristologia de Marcos deve ser um sinal de sua natureza tardia, desse modo revelando que ele também não escapou dos tipos de pressuposições que governavam o pensamento daqueles a cujas visões se opôs tão fortemente. Paul Feine (1859-1933). Ensinou em Gõttingen (1893), Viena (1894), Breslau (1907) e Halle (1910). Seus manuais sobre teologia do Novo Testamento e introdução ao Novo Testamento atacaram a abordagem da “história das reli­ giões” e se tornaram obras obrigatórias em universidades alemãs, passando por várias edições. Ernst von Dobschütz (1870-1934). Lecionou Novo Testamento em Jena (1893), Estrasburgo (1904), Breslau (1910) e Halle (1913). Em seu livro P roblem e des A postolischen Z eitalters [Problemas da época apostólica], publicado em 1904, criticou a abordagem da “história das religiões” acerca das origens cristãs e enfatizou ser possível explicar o triunfo do cristianismo somente pelo que o distinguia de outras religiões da antiguidade, e não pelo que tinha em comum com elas. A dolf Deissmann (1866-1937). Foi professor de Novo Testamento em Heidelberg (1897-1908) e depois em Berlim. Deissmann tinha um profundo interesse em questões políticas e ecumênicas, bem como nos estudos do Novo Testamento. Foi o primeiro a chamar a atenção para o significado da fórmula “em Cristo” no Novo Testamento, uma questão que ainda hoje é debatida. Em 1911, escreveu uma obra de grande importância sobre Paulo, traduzida para o inglês em 1926. Também provou que o grego do Novo Testamento não era um idioma espe­ cial, ou uma deturpação do grego clássico, mas o idioma comum falado na época. A dolf Schlatter (1852-1938). Foi professor de Novo Testamento em Greifswald (1888), Berlim (1893) e Tübingen (1898) e, certamente, o mais notável estudioso conservador do Novo Testamento de sua época, alcançando uma posição clássica como tal na Alemanha. Escreveu sobre a fé no Novo Testamento (1885), seguindo Cremer e atacando estudiosos que tentaram criar uma divisão entre Jesus e Paulo. M ais tarde produziu uma teologia do Novo Testamento (1909) e, de 1930 até sua morte, escreveu comentários de todos os livros do Novo Testamento.

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A dolf Jülicher (1857-1938). Professor em Marburgo de 1888 a 1923, foi um crítico textual notável e escreveu uma obra clássica sobre as parábolas (18881889) em que argumentou contra as interpretações alegóricas delas. Também escreveu uma introdução ao Novo Testamento (1894) e um comentário de Romanos (1907). Foi herdeiro da escola de Tübingen, mas divergiu dela em muitos aspectos e encontrou pouca evidência do conflito radical entre judaizantes e helenistas no Novo Testamento. Paul W ernle (1872-1939). Lecionou em Basel a partir 1897. A maioria de suas obras de Novo Testamento foi publicada no início de sua carreira, incluindo D er Christ u n d d ie Sünde bei Paulus [O cristão e o pecado em Paulo] (1897), D ie A nfànge unserer R eligion [Os primórdios de nossa religião] (1901) e D ie synoptische F rage [A questão sinótica] (1904). Em 1916, publicou Jesus, mas mais tarde se ocupou com obras dogmáticas e históricas. Foi profundamente influenciado pela escola da “história das religiões”, mas não estava inteiramente ligado a essa visão. Kurt D eissner (1888-1942). Lecionou em Greifswald a partir de 1915. Foi um oponente da escola da “história das religiões” durante toda a vida e es­ creveu diversas obras contra sua abordagem, da qual a mais conhecida é Paulus u n d d ie M ystik sein er Z eit [Paulo e o misticismo de sua época], publicada em 1918. A lbert Schweitzer (1875-1965). Lecionou em Estrasburgo de 1902 a 1913, quando se tornou médico missionário no Gabão. Suas principais obras incluem The m ystery o f the K in gd om o f G od [O mistério do reino de Deus] (1901), The quest o f the historical Jesu s (1906) e P aul a n d his in terpreters [Paulo e seus in­ térpretes] (1911), que mais tarde foi expandido como The m ysticism o fP a u l the A postle [O misticismo de Paulo, o apóstolo] (1930). Também escreveu um livro sobre a ceia do Senhor (1901). Schweitzer é famoso pelo modo com que dis­ secou o estudo do Novo Testamento alemão do século 19 e mostrou que suas premissas principais se baseavam em falsas pressuposições sobre a natureza de Jesus e de seu ensino. Schweitzer adotou as teorias escatológicas de J. Weiss e as trouxe para a atenção de um público maior. Estava convencido de que o próprio Jesus acreditava que voltaria em um futuro muito próximo, mas essa convicção estava errada. Na opinião de Schweitzer, o cristianismo como o conhecemos é uma versão extremamente diluída do que Jesus originalmente ensinou, que em sua forma pura teria sido incrível até mesmo em sua própria época. Após a publicação de suas grandes obras sobre Jesus e Paulo, os estudos do Novo Testamento na Alemanha entraram em uma nova era.

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O mundo defala inglesa Joseph Stevens Buckm inster (1784-1812). Provavelmente o primeiro crítico liberal da Bíblia nos Estados Unidos, tentou mostrar que o Novo Testamento não apoiava o calvinismo ortodoxo e que somente aqueles livros que podiam reivindicar autoridade apostólica incontestável deveriam ser reconhecidos co­ mo canônicos. Morreu jovem, o que o impediu de prestar alguma contribuição acadêmica para o tema, mas suas teorias e seu exemplo permaneceram como inspiração para uma geração de críticos na Nova Inglaterra. SamuelTaylor Coleridge (1772-1834). Bem conhecido como poeta romântico e crítico literário, as visões teológicas de Coleridge eram essencialmente unitárias. Ele fez objeções às teorias da inspiração divina das Escrituras, afirmando, em vez disso, que o texto bíblico era uma obra de arte que expressava em símbolos uma rea­ lidade que ia além dos sentidos e apelava fundamentalmente à imaginação do leitor. Charles Simeon (1759-1836). Principal evangélico anglicano de sua época, seu H orae hom ileticae (1840) continha 22 volumes de esboços de sermões que foram amplamente usados desde então e que refletem uma exposição protestan­ te ortodoxa tradicional das Escrituras. H erbert M arsh (1758-1839). Foi professor de teologia da cátedra Lady M argaret em Cam bridge (1807) e o primeiro teólogo nessa universidade a lecionar em inglês em vez de latim . M ais tarde tornou-se bispo de Llandaff (1816) e Peterborough (1819). Suas preleções foram impressas entre 1810 e 1823 e refletem uma ortodoxia tradicional, amparada pelo uso de evidências históricas. Traduziu In tro d u ctio n to th e N ew T estam ent [Introdução ao Novo Testamento] de M ichaelis (1802) e nela incluiu um ensaio sobre o problema sinótico, que ele já havia publicado separadamente (1798). M arsh defendeu uma fonte aramaica comum para os Evangelhos, mas argumentou que cada um dos três Sinóticos usou uma versão diferente dela. Ele também acreditava que houve um documento em aramaico complementar usado por M arcos e Lucas, que ele chamou de B eth, efetivamente idêntico à hipótese Q_posterior. Robert H aldane (1764-1842). Congregacionalista e batista (após 1808) escocês, foi um evangélico renomado do início do século 19. Escreveu exten­ samente sobre o tema da inspiração bíblica e até mesmo defendeu a posição ortodoxa sobre esse tema contra August Tholuck (1838). Seu comentário de Romanos (1836-1839) se tornou um clássico. Thomas Arnold (1795-1842). Discípulo de Coleridge, Arnold contribuiu muito para a popularização de suas convicções, embora nunca tenha conseguido

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concluir um comentário bíblico. Opôs-se fortemente ao movimento panfletista (tractarian m ovem en f) e isso o empurrou na direção de um liberalismo mais extremado. Ele estava disposto a aceitar uma ampla variação de datações tardias de diferentes textos bíblicos e também aceitou a possibilidade da ocorrência de erros neles. A. P. Stanley e Benjamin Jowett mais tarde usaram e desenvolveram suas ideias. Moses Stuart (1780-1852). (Veja p. 288-9.) Suas obras sobre o Novo Testamento incluem comentários de Hebreus (1827), Romanos (1832) e Apocalipse (1851). Andrews Norton (1786-1852). Ministro unitário e professor em Harvard a partir de 1813, desempenhou um papel importante na introdução da crítica bíblica na Harvard D ivinity School e dali para o restante dos Estados Unidos. Publicou uma obra de três volumes, The evid en ces o f the gen u in en ess o f the Gospels [As evidências da autenticidade dos Evangelhos] (1837,1844). W illiam John Conybeare (1815-1857) e John Saul Howson (1816-1885). Coautores de um famoso comentário, The life a n d epistles o f St P aul [A vida e as epístolas de São Paulo] (1852), que ainda hoje é amplamente lido. Eles demons­ traram que o conhecimento arqueológico do Oriente Médio contribuiu mais para a compreensão de Paulo do que as reconstruções tendenciosas de divisões na igreja primitiva. Sua obra agora está desatualizada em muitos detalhes, mas permanece influente em sua abordagem geral do tema. John Brown de Edimburgo (1784-1858). M inistro e teólogo dissidente es­ cocês, foi notável pela sua defesa de visões liberais da expiação. Foi um prolífico autor de comentários bíblicos, em que realçou a necessidade de assegurar que tudo que um pregador extraía de um texto realmente estava ali. Seu comentário de lPedro (1848) marcou um ponto crítico na exegese escocesa e foi seguido por outras obras sobre Gálatas (1853), Romanos (1857) e Hebreus, esta publicada postumamente (1862). W illiam Lindsay (1802-1866). Teólogo presbiteriano escocês dissidente, é principalmente conhecido pelas suas preleções sobre Hebreus (1867). Jam es Sm ith (1782-1867). Leigo escocês e arqueólogo amador, demonstrou que o relato feito por Lucas da viagem marítima em Atos 27 não era uma ficção literária, mas um registro verdadeiro das condições dessas viagens na região. Suas pesquisas, publicadas em 1848, contribuíram muito para convencer os estudio­ sos britânicos da fragilidade das reconstruções de Atos da Escola de Tübingen. John Jam es Tayler (1797-1869). Unitário, lecionou durante muitos anos na Manchester College, que durante sua vida ali se mudou de York para Manchester

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e depois para Londres (está agora em Oxford). Escreveu An attem pt to ascertain the character o f the fo u r th G ospel [Uma tentativa de determinar a natureza do quarto Evangelho] (1867), em que defendeu o valor espiritual do texto apesar de reconhecidas dificuldades relacionadas à sua autoria e origem. Questionou fortemente sua exatidão como relato histórico, mas ainda assim manteve a con­ vicção de que era uma revelação do Deus vivo. H enry Alford (1810-1871). Membro da Trinity College, foi autor de um comentário de quatro volumes sobre o Novo Testamento grego. Alford estava aberto às ideias críticas alemãs, mas não ficou fascinado com elas. Seu comen­ tário é judicioso e lúcido e foi o modelo para todos os comentários em inglês subsequentes de seu tipo. James Eadie (1810-1876). Estudioso escocês e presbiteriano dissidente, foi no­ tável por suas visões conservadoras sobre as Escrituras que fundamentavam sua obra exegética. Ele é lembrado hoje por seus comentários de Efésios (1854), Colossenses (1856), Filipenses (1859), Gálatas (1869) e l e 2Tessalonicenses (1877). Charles Hodge (1797-1878). Um dos fundadores do Seminário Princeton (1820) é lembrado hoje principalmente por sua System atic th eology (1872-1873). No entanto, também escreveu um notável comentário de Romanos (1835), em que manteve uma posição estritamente calvinista. As visões de Hodge sobre a inspiração das Escrituras eram aquelas do dogmático protestante ortodoxo F. Turretin, e é em grande parte por causa dele que essa posição se tornou a mar­ ca registrada de Princeton e do movimento evangélico americano conservador em geral. A rthur Penrhyn Stanley (1815-1881). Pupilo de Thomas Arnold, lecionou em Oxford a partir de 1838. Foi acima de tudo historiador da igreja, mas foi obrigado a adotar algumas posições em questões do Novo Testamento. Isso apa­ rece em seus Serm ons a n d essays on the apostolical a ge [Sermões e ensaios sobre a época apostólica] (1847) e mais tarde em suas póstumas L ectures on the history o f the J ew ish church [Preleções sobre a história da igreja judaica] (1902). Também escreveu um importante comentário de 1 e 2Coríntios (1855). Em sua opinião, a igreja foi perturbada pelos judaizantes, que mais tarde passaram a apresentar uma postura totalmente gnóstica. Defendeu a historicidade dos apóstolos e sua missão, mas não encontrou nenhuma defesa das convicções católicas dos adep­ tos do movimento panfletista (tractarian m ovem en t). Ele apreciava a erudição alemã da época e adotou muitas de suas conclusões, mas nunca perdeu a con­ vicção de que toda a interpretação bíblica deve ter uma aplicação prática à vida da igreja e do cristão como indivíduo. Nesse aspecto, ele representava uma fusão

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tipicamente inglesa de estudo liberal e envolvimento eclesiástico conservador, que marcaria grande parte do anglicanismo durante o século seguinte. M atthew Arnold (1822-1888). Poeta e crítico literário, foi filho de Thomas Arnold (3-4 veja p. 34). Escreveu detalhadamente sobre questões religiosas, em especial sobre a interpretação da Bíblia, que ele considerava fundamentalmente um documento literário. Fez fortes críticas a seus contemporâneos que não en­ xergavam isso e tentavam encontrar nas Escrituras teorias científicas e literárias que não faziam parte do propósito do texto. Suas obras foram controversas em sua época, mas se mostraram frutíferas no século 20, com a grande ascensão do interesse pela crítica literária. Suas principais obras religiosas foram St P aul an d p rotesta n tism [São Paulo e o protestantismo] (1870), L iterature a n d dogm a [Literatura e dogma] (1873), God a n d the B ible [Deus e a Bíblia] (1875) e Last essays on church a n d relig io n [Últimos ensaios sobre igreja e religião] (1877). Joseph Barber Lightfoot (1828-1889). Lecionou teologia em Cambridge a partir de 1861 e foi bispo de Durham a partir de 1879.0 mais notável estudioso inglês do Novo Testamento de sua geração, escreveu comentários de Gálatas (1865), Filipenses (1868) e Colossenses e Filemom (1875) que mantiveram sua importância desde então. Ele também é notável por sua obra sobre literatu­ ra pós-apostólica, em especial sobre Clemente de Roma (1869) e Inácio de Antioquia (1885). O fato de que ele conseguiu provar que sete das epístolas de Inácio eram genuínas foi um avanço importantíssimo na datação dos do­ cumentos do Novo Testamento. Lightfoot demonstrou com êxito que elas não poderiam ter sido produzidas após 100 d.C ., desse modo abrindo um grande buraco nas teorias de Baur. Edwin H atch (1835-1889). Preletor em história da igreja em Oxford a par­ tir de 1867, foi um importante representante do pensamento liberal na teologia britânica. Foi inimigo dos anglo-católicos, mas muito admirado por Harnack, que traduziu sua obra para o alemão. Em 1880, proferiu as Preleções Bampton sobre The organization o f the early C hristian churches [A organização das igrejas cristãs primitivas] (publicado em 1881). Também escreveu um livro de gran­ de impacto, The in fluence o f Greek ideas a n d usages upon the C hristian Church [A influência de ideias e práticas gregas sobre a igreja cristã], publicado em 1890 e reimpresso até 1957. Hoje sua fama vem principalmente da concordância da Septuaginta que ele editou com H. A. Redpath, publicada alguns anos após sua morte (1897). Alfred Edersheim (1825-1889). Judeu convertido ao cristianismo, ingres­ sou na Igreja da Escócia (1846) e mais tarde na Igreja da Inglaterra (1875).

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Escreveu uma enorme quantidade de obras sobre o judaísmo na época de Jesus, e sua obra clássica foi um livro de dois volumes, L ife a n d tim es o f Jesu s the M essiah [V ida e época de Jesus, o Messias] (1883). Seus livros são muito informativos e interessantes, embora nem sempre apresentem uma postura muito crítica em relação à sua fonte. Sua obra tem tom conservador e ainda é amplamente lida em círculos cristãos judaicos. Fenton John Anthony H ort (1828-1892). Foi professor de teologia em Cambridge a partir de 1871. Escreveu Ju daistic C hristianity [Cristianismo judaísta] (1874), The Christian ecclesia [A eclésia cristã] (1897) e comentários de lPedro (1898), Romanos e Efésios (1895) e Tiago (1909), editados e publicados após sua morte. No entanto, é famoso em especial por sua obra como estudioso textual. Em 1881, publicou, junto com B. F. Westcott, a primeira edição crítica moderna do Novo Testamento grego. Também foi um importante colaborador da Revised Version of the English Bible [Versão Revisada da Bíblia em Inglês] (1881). Benjam in Jowett (1817-1893). Professor régio de grego em Oxford a partir de 1855 e mestre da Balliol College a partir de 1870, escreveu comentários de dois volumes sobre as epístolas paulinas (1855), mas se afastou da teologia depois da controvérsia causada por Essays a n d rev iew s [Ensaios e resenhas], em 1860 (veja p. 289-90). Sua abordagem era principalmente liberal e crítica. Alexander Balm ain Bruce (1831-1899). Esse estudioso da Igreja Livre da Escócia escreveu extensamente sobre diferentes aspectos da teologia do Novo Testamento. Envolveu-se com a escola de Tübingen, e seus escritos foram amplamente respeitados na Alemanha. Também escreveu um comentário de Hebreus (1899). John Charles Ryle (1816-1900). Bispo de Liverpool a partir de 1880, suas exposições conservadoras dos Evangelhos ainda estão sendo impressas e são amplamente lidas entre os que compartilham sua perspectiva evangélica. Brooke Foss W estcott (1825-1901). Lecionou teologia em Cambridge (1870-1884), e subsequentemente foi cônego de Westminster e bispo de Durham (1890-1901). Em 1851, escreveu uma Introduction to the study o f the Gospels [Introdução ao estudo dos Evangelhos], que ajudou a introduzir mé­ todos críticos na Inglaterra. Também escreveu H istory o f the canon [História do cânon] (1855), aproximadamente na mesma época. De 1853 a 1881, trabalhou com F. J. A. Hort em sua edição do Novo Testamento grego. M ais tarde, pro­ duziu comentários de João (1881), das epístolas joaninas (1883) e de Hebreus (1889). Era platônico na filosofia e socialista na política, e seguramente o de posição mais à esquerda entre o trio de Cambridge, Westcott, Lightfoot e Hort.

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Frederic W iUiam Farrer (1831-1903). Membro da Trinity College, em Cambridge, e pupilo de J. B. Lightfoot, escreveu um estudo clássico de The life a n d work o f St P aul [A vida e obra de São Paulo] (1879), em que defendeu a fidedignidade histórica tanto das epístolas paulinas quanto de Atos. Também é famoso por suas Preleções Bampton, de 1885, publicadas como H istory o f in terpretation o f the B ible [H istória da interpretação da Bíblia] (1886). Charles John EUicott (1819-1905). Lecionou na Kings College, Londres (1848), e também brevemente em Cambridge (1860-1861), antes de se tornar bispo de Gloucester (1863). Foi um autor prolifico e escreveu comentários de Gálatas (1854), Efésios (1855), Filipenses, Colossenses e Filemom (1857), 1 e 2Tessalonicenses (1858), das Epístolas Pastorais (1858) e ICoríntios (1887). Sua principal contribuição, no entanto, aquela pela qual é lembrado hoje foi seu extenso comentário de toda a Bíblia. A seção do Novo Testamento foi publicada em estágios entre 1877 e 1882, seguida pela parte do Antigo, que veio a lume entre 1882 e 1884. M arcus Dods (1834-1909). Estudioso escocês igualmente familiarizado com os dois Testamentos, escreveu comentários de Gênesis (1882), ICoríntios (1889) e João (1891). Também fez uma série de preleções que mais tarde foram publicadas como The Bible, its nature a n d origin s [A Bíblia, sua natureza e ori­ gens] (1909). Nessa obra, como em diversas de suas obras anteriores, ele rejeitou a doutrina ortodoxa da inspiração bíblica e defendeu uma visão que limitava a infalibilidade a questões de conteúdo, e não a todos os detalhes no texto. Richard Belward Rackham (1868-1912). Escreveu um comentário de Atos (1901), que tem uma perspectiva essencialmente teológica em vez de filológica. H enry Barclay Swete (1835-1917). Continuou a tradição textual de Lightfoot, primeiro na Kings College, em Londres (1882), e depois em Cambridge (1890-1915). Foi fundador do J o u rn a l o f Theological Studies (1899) e escreveu extensamente sobre a doutrina da igreja primitiva. Sua obra sobre o Novo Testamento incluía comentários de Marcos (1898) e Apocalipse (1906). Também editou a Septuaginta em três volumes (1887-1894). James Hope M oulton (1863-1917). Foi estudioso de grego do Novo Testa­ mento e autor, juntamente com G. M illigan, de uma famosa gramática. Também publicou estudos de papiros gregos e revelou um mundo subterrâneo de magia e religiões de mistérios, que ele vinculou ao cristianismo primitivo. Richard John Knowling (1851-1919). Escreveu um famoso comentário de Atos (1900), notável por seu cuidadoso tratamento das evidências lingüísticas e históricas.

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H andley Carr G lyn M oule (1841-1920). Foi o primeiro reitor do Ridley H all, em Cambridge (1881), e mais tarde professor de teologia (1899) e bispo de Durham (1901). Escreveu comentários de quase todas as epístolas do Novo Testamento, que ainda hoje são lidos por estudantes conservadores que apre­ ciam seu estilo elegante e sua exegese cuidadosa. W illiam Sanday (1843-1920). Professor de Novo Testamento em Oxford a partir de 1882, foi um dos principais canais de entrada da crítica bíblica alemã na Igreja da Inglaterra. Proferiu as Preleções Bampton sobre o tema da inspiração em 1893 e, no ano seguinte, começou um seminário sobre o problema sinótico, que acabou resultando nos Estudos de Oxford de 1911. Em 1895, escreveu um comentário de Romanos junto com A. C. Headlam, que ainda é de uso comum hoje. M ais tarde, entre 1905 e 1910, escreveu diversos livros sobre cristologia e a vida de Cristo em que seguiu a erudição alemã da época. Vincent H enry Stanton (1846-1924). Professor régio em Cambridge de 1916 a 1922, escreveu extensamente sobre os Evangelhos. Hoje é lembrado principalmente por sua obra de três volumes, The Gospels as historical docum ents [Os evangelhos como documentos históricos] (1903, 1909, 1920), que passou por diversas edições. Foi forte defensor da prioridade marcana, que ele amparou com uma robusta análise filológica. Ernest De W itt Burton (1856-1925). Teólogo americano e estudioso da Bíblia, lecionou em Chicago durante muitos anos. Escreveu um importante es­ tudo chamado P rin cipies o f litera ry criticism a n d the syn op ticp rob lem [Princípios de crítica literária e o problema sinótico] (1904), em que se dispôs a questionar a pressuposição prevalecente da prioridade marcana. Edwin Abbott Abbott (1838-1926). Escreveu extensamente sobre os pro­ blemas literários e filológicos dos Evangelhos. Ele é mais lembrado por seu artigo sobre o tema na edição de 1879 da E ncyclopaedia B ritannica, em que desenvolveu sua teoria das origens sinóticas. Também publicou um livro, The corrections o f M ark [As correções de Marcos] (1901), que tratava do mesmo tema. Alfred Plummer (1841-1926). Após lecionar em Cambridge (1865) e Durham (1874), ele se tomou um dos editores da série International Criticai Commentary [Comentário Crítico Internacional], Foi autor extremamente prolí­ fico e escreveu sobre 1 e 2Pedro e Judas (1879), João e as epístolas joaninas (1880), Lucas (1896),Tiago e Judas (1903), as Epístolas Pastorais (1903), Mateus (1909) e 2Coríntios (1915). Junto com A r c h ib a l d R o bertso n (1853-1931), também escreveu um comentário de ICoríntios (1911). Vários de seus comentários passa­ ram por diversas edições e uma ou duas ainda hoje estão sendo impressas.

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John Caesar Hawkins (1837-1929). Autor de H orae syn opticae: con tribu tions to the study o f the syn optic problem [Horae Synopticae: contribuições para o estudo do problema sinótico] (1898), notável por seu exame cuidadoso das evidências lingüísticas dos textos. Também demonstrou a unidade essencial de Lucas—Atos como uma só obra histórica. Cuthbert H am ilton Turner (1860-1930). Ele foi membro da M agdalen College, em Oxford, a partir de 1889, e professor de exegese da cátedra Dean Ireland a partir de 1920. Escreveu uma série de artigos sobre Marcos no J o u rn a l ofT heological Studies (1924-1925), seguida por um comentário completo (1928) e por diversas obras de história da igreja. George FootM oore (1851-1931). Lecionou em Harvard de 1904 a 1921. Sua obra Ju daism in th efirst cen tu ries o f 'the C hristian era [O judaísmo nos primei­ ros séculos na era cristã] (1927) é um clássico. De muitos modos, sua abordagem ao tema previu a obra posterior de K. Stendahl e E. P. Sanders. Benjam in W isn er Bacon (1860-1932). Professor de Novo Testamento em Yale (1897-1927), escreveu extensamente sobre Marcos (1919,1925) e M ateus (1930). Foi um fiel seguidor da crítica da fonte alemã e ajudou a introduzir seus métodos no mundo de fala inglesa. Joseph Armitage Robinson (1858-1933). Estudioso de Cambridge na tradi­ ção de Lightfoot, publicou um comentário de Efésios (1903), em que defendeu a autoria paulina. Também publicou diversas obras sobre a história da igreja. H arry Angus Alexander Kennedy (1866-1934). Foi professor de Novo Testamento na Knox College, em Toronto (1905), e depois na New College, em Edimburgo (1909-1925). Sua obra mais importante foi The th eology o f the epistles [A teologia das epístolas] (1919), que se tomou um clássico menor de teologia paulina. Foi um dos primeiros estudiosos a enfatizar que o grego do Novo Testamento era o idioma comum da época, e sua obra reflete uma cuida­ dosa análise dos estudos críticos de seu tempo. Francis Craw fordBurkitt (1864-1935). Professor de teologia em Cambridge a partir de 1905, é notável por diversos estudos nas antigas versões siríacas e lati­ nas do Novo Testamento. Publicou um grande número de obras sobre diferentes aspectos do cristianismo primitivo, entre elas The go sp el history a n d its tran sm ission [A história do evangelho e de sua transmissão] (1906), C hristian b egin n in gs [Primórdios cristãos] (1924) e Church a n d gn o sis [Igreja e gnose] (1932). Burnet H illm an Streeter (1874-1937). Membro da Queerís College, de Oxford, a partir de 1905 e reitor a partir de 1933. Foi um proeminente crí­ tico modernista dos Evangelhos, e sua “solução” do problema sinótico, que ele

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publicou em T hefou r Gospels [Os quatro Evangelhos] (1924), manteve-se como a solução comum durante uma geração. Também escreveu um livro sobre The p r im itiv e church [A igreja primitiva] (1929). Edwyn Clem ent Hoskyns (1884-1937). Lecionou em Cambridge a partir de 1919. Originalmente um estudioso liberal, converteu-se para uma posição mais conservadora e se tornou o representante principal da “teologia bíblica”. W illiam M itch ell Ram say (1851-1939). Arqueólogo pioneiro da Ásia M enor, veio a considerar Lucas um historiador extremamente cuidadoso e contribuiu muito para destruir as teses de Tübingen. A maior parte de sua obra foi escrita antes de 1900, mas deu seu maior fruto mais tarde. Seu comentário de Gálatas (1900) apresentou a teoria “sul da Galácia” para defender uma datação prim itiva de Atos. Graças a ele, agora é um consenso que os “gálatas” do Novo Testamento eram habitantes da província romana da Galácia, e não, como anteriormente se havia pensado, gálatas étnicos (que viviam no “norte da Galácia”). F rederickjohn Foakes-Jackson (1855-1941). Já mencionado em relação à sua obra inicial em estudos do Antigo Testamento, ele escreveu St Luke a n d a m od em w r iter [São Lucas e um autor moderno] (1916), St Paul, the m an a n d apostle [São Paulo, o homem e apóstolo] (1926), Peter, p r in ce o f apostles [Pedro, príncipe dos apóstolos] (1927) e, junto com Kirsopp Lake, editou um estudo de cinco volumes de Atos (1931). Sua obra reflete o uso reverente da crítica histórica que era comum entre os estudiosos anglicanos do período.

Autores defala francesa M ichel Nicolas (1810-1886). Nascido em uma família protestante em Nimes, estudou em Genebra e, a partir de 1839, lecionou em Montauban. A partir de 1858, começou a introduzir a crítica alemã na França e publicou diversos artigos sobre o cânon do Novo Testamento e o quarto Evangelho. Seu principal monu­ mento literário foi um estudo crítico de dois volumes da Bíblia (E tudes critiques su r la B ible [Estudos críticos da Bíblia]), cujo volume do Antigo Testamento foi publicado em 1862 e o do Novo em 1866. Edmond Scherer (1815-1889). Nascido em Paris em uma família anglo-suíça, converteu-se à fé evangélica na Inglaterra em 1832. Depois estudou em Estrasburgo e foi para Genebra em 1846, onde uma crise de fé fez com que re­ nunciasse três anos depois. Ele é bem lembrado pela importante contribuição prestada para o estabelecimento da prioridade marcana nos Evangelhos Sinóticos.

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Emest Renan (1823-1892). Foi a primeira pessoa a escrever uma biografia de Jesus de uma perspectiva essencialmente católica, embora de modo algum fosse ortodoxo em suas convicções. Rejeitou os discursos joaninos, mas aceitou as partes narrativas como históricas. Tentou escrever um quinto evangelho, em que descreveu Jesus como um mestre que persuadiu a si mesmo de que tinha uma conexão especial com Deus e se tornou um místico. Ele não era realmente sincero ou profundo como estudioso do Novo Testamento, mas seu livro L ife o f Jesus [A vida de Jesus] (1863) teve uma enorme influência em círculos literários. Sua obra foi traduzida para o inglês por George Eliot (1864) e também influenciou Tolstói. Frédéric Godet (1812-1900). Pastor protestante suíço de Neuchâtel, escreveu comentários de Lucas, João, Romanos e ICoríntios. Godet era extre­ mamente conservador, mas não tinha medo de encarar as dificuldades que os textos apresentavam. Suas próprias conclusões eram dogmáticas e substanciais, mas ele ainda é amplamente lido e apreciado hoje em círculos conservadores. A lbert Réville (1826-1906). Nascido em Dieppe, estudou em Estrasburgo, provavelmente como aluno de Reuss e Colani. De 1851 a 1873, foi pastor da Igreja W allon em Roterdã e, em 1862, publicou um importante estudo de M ateus. A partir de 1880, lecionou no Collège de France, em Paris. M arie-Joseph Lagrange (1855-1938). Católico romano, esse francês es­ tudioso da Bíblia fundou a École Biblique at Jerusalem em 1890. Escreveu amplamente sobre temas bíblicos e agora é considerado o pai dos estudos cató­ licos romanos modernos. Alfred Loisy (1857-1940). Estudioso católico francês, foi um dos principais protagonistas da controvérsia modernista. Em 1893, foi afastado de seu cargo de ensino no Institut Catholique por aceitar métodos críticos em estudos bí­ blicos e, em 1908, foi excomungado por causa de seu livro L’E va n gile e t 1’E glise [O evangelho e a igreja], que havia sido publicado em 1903. Também escreveu importantes comentários dos Evangelhos Sinóticos (1907-1908) e Atos (1920).

As questões As questões na interpretação do Novo Testamento que mais caracterizam o século 19 podem ser apresentadas do seguinte modo: 1. Era necessário determ in ar a relação en tre o N ovo T estam ento e o fa t o histó­ rico. Em certo sentido, isso era um problema menos sério que para o Antigo Testamento, visto que o período que o texto abrangia era muito mais curto e

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mais conhecido. M as, em outro sentido, era mais difícil, por causa das reivin­ dicações feitas para Jesus pela teologia ortodoxa. Poucas pessoas questionavam que ele havia existido, e a maioria estava preparada para aceitar que ele era um mestre e profeta extraordinário. M as o consenso terminava ali. O que Jesus acreditava sobre si mesmo e se ele havia feito as coisas extraordinárias atribuídas a ele nos Evangelhos eram questões de controvérsia interminável. O lim ite entre história e mito não estava claro e, constantemente, mudava entre os estudiosos de acordo com suas próprias pressuposições teológicas. O surgimento da igreja apresentava mais um problema. Aqui a maioria dos estudiosos estava disposta a aceitar que as epístolas eram as melhores fontes de informação, mas isso fez com que muitos questionassem a fidedignidade de Atos. Também havia o problema da divisão interna na igreja entre cristãos judeus e gentios, do qual as epistolas deveriam dar testemunho. Fortemente conectada com isso estava a questão de quanto o cristianismo havia sofrido de helenização, até mesmo antes da composição do Novo Testamento, e qual era o significado disso. 2. Era necessário d eterm in ar qual era a fo n t e da teologia do N ovo Testamento. Seria ela o ensino de Jesus ou sua mensagem havia sido distorcida pela geração seguinte, notavelmente pelo apóstolo Paulo? Se as epístolas paulinas eram mais antigas que os Evangelhos, elas não são mais fidedignas como um indicador do que a igreja realmente pensava naquela época e não revelam uma diversidade de opinião que não se encontra nos Evangelhos? A questão principal em jogo aqui era a relação entre a teologia ortodoxa da igreja e as convicções de Jesus. Até que ponto Jesus teria reconhecido as afirmações cristológicas de uma geração posterior ou até mesmo as afirmações messiânicas de seus contemporâneos judeus? M ais uma questão importante era a origem da hierarquia e dos sacramentos da igreja. Será que o Novo Testamento encorajava a posição “católica” nessas questões ou a hierarquia era uma invenção posterior e os sacramentos, um empréstimo de várias religiões de mistério ou outros cultos pagãos? 3. Era necessário estabelecer um texto correto e p reciso sobre o qual se p od eria trabalhar. Isso era um problema crucial nos estudos do Novo Testamento, quase sem paralelo no Antigo Testamento, em que havia uma só tradição de manuscritos. O vasto número de manuscritos do Novo Testamento e suas mui­ tas divergências exigiam um trabalho intenso e laborioso de crítica textual que ocupou a mente de alguns dos maiores estudiosos da época. O Textus receptus foi abandonado a favor de um texto “eclético”, extraído de muitas fontes diferentes,

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uma ação que exigia a mais cuidadosa apresentação das evidências e razões na escolha de uma variante em vez de outras. Em muitos aspectos, esse trabalho permaneceu até a presente época e representa a contribuição permanente do estudo do século 19 para a história da interpretação bíblica.

Os métodos de interpretação Comparação com o Antigo Testamento Quando passamos a examinar detalhadamente a história da interpretação do Novo Testamento no século 19, ficamos perplexos com o fato de que o método histórico-crítico foi aplicado ao Novo Testamento de um modo muito diferente de como foi aplicado ao Antigo. A crítica histórica investiu contra os dois Testamento com base no fato de que não eram relatos simples e diretos dos acontecimentos. Ela tendia a aplicar os mesmos critérios a cada Testamento em relação aos fenômenos sobrenaturais. Os milagres consti­ tuíam uma dificuldade especial e eram explicados por outros meios quando possível. Teofanias e coisas semelhantes também podiam ser descartadas, quer como ilusões, quer como modos poéticos de relatar profundas experiên­ cias psicológicas. Além disso, no entanto, a abordagem de cada Testamento diferia. O Antigo Testamento era considerado como incerto por causa da vasta distância temporal que supostamente o separava dos acontecimentos que descrevia. A pressupo­ sição geral era que se havia reunido a maior parte do presente texto entre 700 a.C. e 200 a.C., um período de quinhentos anos. Os acontecimentos descritos, no entanto, ocorreram ao longo de um período muito maior, e muitos deles já eram história antiga quando os primeiros textos foram escritos. Até mesmo sem considerar Gênesis 1— 11, os estudiosos do Antigo Testamento ainda estavam falando sobre acontecimentos entre cerca de 2000 a.C. e cerca de 400 a.C ., e era somente no período de sobreposição — os trezentos anos de Ezequias até Esdras — que havia alguma chance de se ter um relato histórico de primeira mão. Em contrapartida, havia pouca consciência de um abismo cultural entre os hebreus e seus vizinhos. As descobertas no Egito e na Mesopotâmia fo­ ram avidamente aplicadas ao Antigo Testamento, e os idiomas cognatos foram explorados na busca de palavras que pudessem ajudar a interpretar palavras hebraicas obscuras. A crítica histórica ridicularizou a singularidade do Antigo Testamento, mostrando sua forte conexão com o ambiente cultural além das fronteiras de Israel.

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Com o Novo Testamento, a abordagem era tão diferente a ponto de ser quase o exato oposto. O período era muito mais curto — não mais do que um século do início ao fim —, e a distância entre os acontecimentos descritos e o primeiro relato deles não era mais que uma geração, ainda bastante vivos na memória. As chances de exatidão, portanto, eram infinitamente maiores, mas os críticos do Novo Testamento apresentaram o fator cultural como aquilo que separava os tex­ tos de seu tema. Jesus pode ter vivido somente alguns anos antes de Paulo estar pregando aos gentios, mas seu universo cultural era muito diferente do universo deles. Os judeus palestinos habitavam um mundo mental vastamente diferentes daquele dos gregos e judeus helenizados na Diáspora, e o conflito entre esses dois elementos era um dos aspectos mais salientes da igreja primitiva. O homem que era um Messias político no primeiro contexto se tornou um Deus Redentor que morreu e ressuscitou no segundo, pois normas e expectativas culturais exigiam isso. A mente hebraica não podia compreender uma encarnação divina, enquanto sua contraparte helênica considerava isso bastante natural. A cultura grega era muito mais conhecida do que as culturas do Oriente Médio, e havia muitos pontos de comparação lingüística e cultural. Se João falou sobre o L ogos como o criador do universo, os estudiosos consideravam isso o L ogos de Platão e seus seguidores. Dificilmente se considerava possível que os dois conceitos pudessem ter sido completamente independentes um do outro. O mero fato de que os apóstolos e seus colegas haviam escolhido escrever em grego, que não era seu idioma nativo, demonstrava que havia ocorrido uma assimilação cultural de uma religião originalmente hebraica ao mundo greco-romano. Havia ainda o fato de que a maioria das epístolas do Novo Testamento se dirigia a cidades ou comunidades de fala grega, e as epístolas geralmente eram consideradas os relatos cristãos mais antigos e mais autênticos. Portanto, não era difícil sugerir que se havia enterrado o Jesus histórico debaixo de uma avalanche cultural que tinha se apoderado da igreja cristã em um estágio muito primitivo de seu desenvolvimento. As considerações teológicas também desempenharam um papel mais im ­ portante do que na interpretação do Antigo Testamento. Ninguém questionava seriamente que o monoteísmo hebraico era superior ao paganismo vizinho, e, embora houvesse divergências de opinião a respeito de como esse monoteísmo havia surgido, todos os envolvidos aceitavam o resultado final, No caso do Novo Testamento, a situação era mais uma vez exatamente oposta. Aqui a pressuposição era que o ensino primitivo de Jesus era infinitamente superior às subsequentes distorções e equívocos que resultaram da difusão do cristianismo

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em um ambiente estranho. A questão principal na crítica dos Evangelhos passou a ser quanto desse ensino primitivo era possível recuperar, e a sugestão de que era possível purificá-lo abandonando as formulações ortodoxas dogmáticas da igreja estava destinada a provocar a mais forte oposição de teólogos confessionais. A figura de Jesus não podia ser estudada isoladamente da vida da igreja, e o abismo entre o que os liberais estavam sugerindo e o que a igreja confessava em seus credos e outros documentos confessionais aumentava à medida que o século avançava. O “Jesus histórico” acabou demonstrando ser uma caricatura do liberalismo do século 19, com pouca conexão com a igreja ou com a reali­ dade histórica. Os tradicionalistas naturalmente acreditavam que um retorno a essa realidade vindicaria a teologia da igreja, enquanto J. Weiss e A. Schweitzer defenderam uma alternativa que se recomendaria a uma geração posterior de liberais — a convicção de que o Jesus histórico era uma figura apocalíptica cuja perspectiva seria incompreensível agora e que precisava ser domesticada para o consumo de massa até mesmo naquela ocasião. M as não importa se o modelo a ser seguido é o dos liberais mais antigos ou da abordagem escatológica de Weiss e Schweitzer, o resultado é semelhante: o Novo Testamento é um texto inferior ao ensino original de Jesus e, portanto, representa um declínio, e não um avanço, na religião.

O método histórico-gramatical O primeiro método de interpretação que precisamos analisar é o método cha­ mado “histórico-gramatical”. Consistia em uma forma de crítica histórica, mas que evitou as questões filosóficas e teológicas mais profundas associadas a ela. O alicerce desse tipo de crítica era a análise textual, para a qual havia um grande escopo no Novo Testamento. Decidir qual das diferentes variantes era a melhor envolvia uma considerável quantidade de trabalho investigativo, não somente no estudo dos manuscritos, mas também no juízo teológico, visto que muitas vezes as variantes representavam uma posição teológica ou outra. O exemplo mais fa­ moso disso era ljoão 5.7, que no Textus receptus continha uma clara referência à Trindade. No entanto, um estudo cuidadoso dos manuscritos revelou que esse acréscimo era muito tardio e estava confinado a um pequeno número de textos. Uma edição verdadeiramente crítica do Novo Testamento, portanto, precisaria omiti-la, e a doutrina trinitária havia perdido o que havia sido uma de suas prin­ cipais bases bíblicas. Mesmo que a doutrina da Trindade não dependesse desse único versículo, era inevitável que a ideia de que ele era inautêntico perturbasse

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convicções anteriores de que a Trindade era uma doutrina do Novo Testamento e aumentasse a probabilidade de que ela era um desenvolvimento pós-apostólico (e, portanto, distorcido) do ensino original de Jesus. A crítica histórico-gramatical dependia fortemente de princípios exegéticos que haviam sido desenvolvidos desde a época de Erasmo e que continuam sen­ do considerados válidos hoje. A convicção de que o significado de uma palavra deveria ser determinado a partir de seu contexto e do uso em outros lugares permaneceu básica nessa abordagem. A pressuposição de que o texto original fez sentido para o autor e para seus primeiros leitores também foi aceita sem questionamentos. Por último, o reconhecimento de que escribas posteriores tenderam a simplificar dificuldades que eles não compreendiam também de­ sempenhou um papel importante na análise textual, originando uma predileção pela chamada lectio difficilior (“versão mais difícil”) como a mais provável. Por causa de sua atenção especial a detalhes e de sua recusa de se afastar dos próprios textos, a crítica histórico-gramatical passou a ser considerada a forma mais conservadora de estudo bíblico praticada em um ambiente acadêmico. Por essa razão, aqueles com uma inclinação naturalmente conservadora também tendiam a escolhê-la como a forma mais objetiva e científica de estudo bíblico acessível a eles. No entanto, seria um erro pensar que esses conservadores eram necessariamente “ortodoxos” no sentido tradicional do termo. A ortodoxia pro­ testante era uma postura confessional, adotada em relação à posição doutrinária (ou posições doutrinárias) aprovada(s) pelas principais igrejas protestantes na época da Reforma e depois. Na Europa continental e na Escócia, essas confissões eram detalhadas e exi­ gentes, e muitos estudiosos da Bíblia pensavam que a adesão a elas como um ponto de partida comprometeria sua liberdade e integridade acadêmicas. Até mesmo muitos dos conservadores entre eles preferiam basear seu conservadorismo nas conclusões de sua pesquisa e não em uma confissão eclesiástica adotada anteci­ padamente, e, portanto, eles não eram ortodoxos em seus métodos. A diferença prática era que se a evidência dos textos afastasse as conclusões das confissões, um estudioso conservador seguiria a evidência, enquanto seu colega “ortodoxo” buscaria interpretar a evidência à luz da confissão de sua igreja. Por causa disso, os estudiosos conservadores que podiam ser persuadidos a adotar posições críticas em várias questões comprometiam sua ortodoxia na visão dos confessionalistas. Nesse clima, os anglicanos tinham uma clara vantagem, pois não tinham uma confissão de fé detalhada. Os estudiosos anglicanos podiam seguir o mé­ todo histórico-gramatical até sua conclusão lógica sem esbarrar na oposição

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de confessionalistas em sua própria igreja. O resultado foi que os anglicanos fizeram uma contribuição distinta para a crítica textual que era extremamente conservadora sem estar ligada a uma “ortodoxia” confessional no sentido lute­ rano ou reformado. O principal ponto fraco da abordagem histórico-gramatical era sua su­ perficialidade filosófica e teológica. Ao efetivamente excluir essas questões de consideração, os proponentes do método muitas vezes não conseguiam res­ ponder às asserções teológicas dos críticos mais radicais. Uma exegese textual precisa não explicava como o próprio texto havia surgido, nem dizia a ninguém o que significava. Os praticantes desse método também esbarravam na objeção que se havia feito desde a época de Filo ao sentido literal do texto: por si mesmo, ele era “não espiritual” e, portanto, não edificava a alma do cristão. F. Lücke expressou isso muito claramente já em 1817: Visto que o sentido literal tem condições de expressar plena e diretamente so­ mente ideias e conceitos individuais, mas nunca a totalidade de um discurso ou documento, muito menos ideias e sentimentos religiosos, segue-se que o princí­ pio gramatical de interpretação não é de todo adequado para apurar e apresentar o conteúdo dos relatos religiosos do Novo Testamento [...] Visto que no Novo Testamento não são apresentados somente os primórdios históricos externos do cristianismo, mas também sua origem interna, a interpretação histórica, que tem interesse somente naqueles, precisa ser considerada insuficiente... Uma análise mais profunda desses fatos exigia outro método, baseado em prin­ cípios histórico-gramaticais o máximo possível, mas que fosse além deles em certos aspectos vitalmente importantes.

A escola de Tübingen Foi ao menos parcialmente em resposta a essa necessidade que F. C. Baur e seus pupilos desenvolveram seu próprio e distintivo método de interpretação. Baur baseou sua abordagem na filosofia de G. W . F. Hegel, de acordo com a qual todo o desenvolvimento humano era resultado do conflito entre forças opostas, que Hegel chamou de tese e antítese. A partir desse conflito acabaria emergindo uma síntese mais elevada, combinando elementos da tese e da antítese, mas produ­ zindo uma realidade fundamentalmente nova. H á uma óbvia analogia humana aqui no processo da procriação: o macho (tese) entra em “conflito” com a fêmea (antítese) para produzir um filho (síntese), que por sua vez cresce para se tornar uma nova tese, repetindo o processo na geração seguinte.

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Aplicado ao estudo do Novo Testamento, o pensamento de Hegel produziu na mente de Baur um conflito entre o judaísmo (tese) e o helenismo (antítese), que acabou produzindo uma nova síntese, a qual Baur chamou de “catolicis­ mo primitivo”. De acordo com Baur, esse conflito estava em pleno andamento na igreja primitiva e pode ser documentado a partir das epístolas paulinas. Paulo se mostra como o defensor do grupo dos gentios, enquanto Pedro é o representante dos “judaizantes”. E possível encontrar sinais da síntese “católica” emergente em Atos dos Apóstolos e nas epístolas pastorais (que Baur considera como pós-paulinas). Os Evangelhos Sinóticos, Tiago, Judas e Apocalipse são testemunhas do cristianismo judaico. Além disso, há uma importante diferença entre os Evangelhos Sinóticos e João, pois João representa um estágio mais avançado de síntese, em que conflitos anteriores haviam sido deixados para trás. Por essa razão, João deve ter datação bastante tardia e não tem nenhum valor como fonte histórica para a vida de Jesus. Baur, assim, insistiu em que todos os livros do Novo Testamento representavam uma “tendência” que precisava ser identificada antes de uma interpretação correta deles ser possível. Somente quando se fazia isso era possível situar cada livro do Novo Testamento em seu contexto histórico correto e reconstruir o desenvolvimento interno da teologia do Novo Testamento. A compreensão que Baur tinha disso pode ser captada muito claramente se considerarmos sua abordagem da cristologia do Novo Testamento. Ele pensava que os Evangelhos Sinóticos apresentavam Jesus como um Messias puramente humano e que a ascensão representava a transição do humano para o divino, uma ideia que somente é sugerida no fim de M ateus e Lucas e está totalmente ausente em Marcos. João, em contrapartida, apresenta um Cristo que desceu do céu no início — uma perspectiva muito diferente. E Paulo está em algum lugar no meio; para ele, Cristo é um homem, mas também algo mais, mas ainda não o Filho divino que desceu à terra. Como Baur diz: Em primeiro lugar, temos a cristologia dos Evangelhos Sinóticos e aqui não se pode afirmar por nenhum motivo suficiente que eles nos fornecem a menor justificativa para avançar além da ideia de um Messias puramente humano. A ideia de pré-existência está completamente fora da esfera de visão sinótica [...] Em contraste com essa perspectiva está a da ideia-Logos joanina. De acordo com isso, a concepção substancial da pessoa de Cristo é a concepção de sua essência como divina em si mesma. Aqui o pensamento se desloca, não de baixo para cima, mas de cima para baixo, e o humano, portanto, é somente uma coisa secundária e acrescentada depois.

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Entre essas duas perspectivas opostas, a cristologia de Paulo ocupa um lugar à parte, e não podemos deixar de perceber que ela nos fornece a chave da transição de uma para a outra. Por um lado, Cristo é essencialmente homem, por outro, ele é mais do que homem; e sua humanidade já está tão realçada e idealizada que o sentido em que ele é homem certamente é incoerente com o modo de ver sinótico, que está sobre a firme base de seu surgimento histórico e humano. Baur foi o primeiro a afirmar abertamente o contraste entre a “cristologia de baixo” e a “cristologia de cima”, um contraste que mais tarde desempenharia um grande papel na teologia e na interpretação bíblica do século 20. Os métodos críticos de Baur se tornaram tão importantes para o posterior estudo do Novo Testamento que é essencial ter uma clara compreensão de seus pontos fortes e fracos. E possível esboçar seus pontos fortes do seguinte modo. 1. B aur conseguiu explicar o d esen volvim en to histórico e teológico do N ovo T estam ento com o um todo. Reconheceu a interdependência dos vários textos e a necessidade de fornecer uma teoria das origens cristãs que poderia explicar toda a evidência. Todas as teorias subsequentes das origens do Novo Testamento precisaram seguir Baur nisso. 2. B aur reconheceu que a cristologia era a ch a ve p a ra a com preensão do desen ­ vo lv im en to do N ovo Testamento. Quanto mais “avançada” a cristologia de um livro era, mais tardia era sua datação. Trabalhando sobre essa base, era possível identificar as diferentes linhas da cristologia do Novo Testamento com a máxi­ ma clareza. 3. B aur reconheceu a im portância da intenção do autor p a ra determ in ar quando e p a ra quem qualquer liv ro específico do N ovo Testam ento f o i escrito. Ele foi um dos primeiros a reconhecer a diversidade na comunidade apostólica e a criar uma teoria para explicá-la. Os pontos fracos de sua abordagem podem ser esboçados do seguinte modo. 1. B aur estava ligado a um a ab ordagem filosófica que o obrigou a red u z ir o ensino d e Jesu s à sua dim ensão p u ra m en te moral. Ele, portanto, negligenciou a impor­ tância de Jesus como pessoa e o significado de suas expectativas escatológicas. Isso tornou difícil compreender como o ministério de Jesus foi transformado no fundamento da igreja e removeu o Jesus histórico da análise teológica. 2. A abordagem de B aur era ex cessivam ente esquem ática e fa z ia as evid ên cia s se adequarem às suas pressuposições. Seus oponentes conseguiram, subsequentemente, demolir praticamente cada uma de suas conclusões, um fato que inevitavelmente colocou seu método geral em dúvida. Em especial, o modelo de conflito de

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Baur era inadequado como uma interpretação do crescimento do cristianismo do Novo Testamento e contradizia suas próprias intenções. Pois o modelo de conflito, como H egel o apresentou, era um modelo de progresso, enquanto na aplicação que Baur fazia dele, ele era um modelo de declínio. Baur não pensava que o “catolicismo primitivo” resultante da síntese do cristianismo judaico e gentílico era uma melhoria do que havia existido antes; muito pelo contrário, ele acreditava que ele era uma distorção da verdadeira mensagem de Jesus. Baur queria voltar à tese mais simples, o que suas próprias pesquisas mostraram ser uma impossibilidade histórica. Uma forma um tanto aberrante da abordagem de Tübingen foi a de D. Strauss, cujo livro L ife o f Jesus [A vida de Jesus] (1835) afirmava que era possível compreender os Evangelhos com base no mito. Strauss emprestou esse con­ ceito dos neologistas, mas o exerceu mais sistematicamente, estendendo-o aos Evangelhos como um todo, e não o limitando a certos fenômenos como as pa­ rábolas. Influenciado pelo racionalismo de H. Paulus, Strauss também incluiu os milagres de Jesus nessa categoria de mito. Strauss certamente foi longe demais ao aplicar esse princípio aos textos, mas ele fez a observação de que era necessário en­ contrar um princípio geral que poderia ser usado para interpretar o significado dos Evangelhos. Strauss também pensava que Jesus se considerava como o Messias e que podia, portanto, receber o crédito por ter autorizado a apropriação do mito (que em si mesmo tinha origem judaica anterior) a si mesmo. Foi Strauss, por exemplo, que sugeriu pela primeira vez que o Evangelho de João era uma forma avançada desse mito e, portanto, um documento muito posterior aos Sinóticos. A relação de Baur com Strauss é problemática. Strauss havia sido um pupilo dele em Tübingen e, portanto, havia absorvido alguns de seus princípios. Quando L ife o f Jesu s foi publicado, Baur reconheceu o trabalho como uma contribuição para a compreensão do Novo Testamento que era fundamentalmente similar à sua própria obra sobre as epístolas paulinas. Porém, mais tarde, ele começou a fazer objeção à abordagem “negativa” de Strauss. Em 1847, ele publicou seu próprio estudo sobre os Evangelhos em que afirmou que a tradição sinótica era historicamente fidedigna à medida que descrevia um Jesus não divino. João não tinha nenhum valor histórico, mas Baur não acreditava que ele era “mítico”; antes, ele sugeriu que tinha conotação e intenção filosóficas e idealistas. Era a ideologia que distinguia João dos outros, e não a predileção pela mitologia. A abordagem mitológica de Strauss teria um grande futuro, mas não com­ binou muito bem com o racionalismo histórico da escola de Tübingen, e, assim, ela foi ou atacada ou ignorada durante grande parte do século 19. O próprio

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Strauss nunca ocupou uma posição acadêmica, o que é sinal de sua alienação do clima da época. No entanto, as questões que ele levantou continuaram as­ sombrando o mundo acadêmico, e até mesmo Baur tinha consciência de que suas próprias pesquisas eram, até certo ponto, uma resposta a Strauss. A voz de Strauss continua importante na história da interpretação bíblica do século 19.

A demolição da abordagem da escola de Tübingen As pesquisas de Baur foram extremamente controversas desde o início e logo estavam sendo atacadas de todos os lados. Os conservadores naturalmente se apressaram para defender o retrato tradicional do Novo Testamento como uma estrutura unificada, construída em volta do ensino de Jesus transmitido aos apóstolos, incluindo Paulo. Uma das mais valiosas contribuições que eles fizeram para a continuação da pesquisa foi que conseguiram destruir de fato o conceito de Baur de “cristianismo judaico” como uma entidade singular. Eles mostraram que os primeiros cristãos judeus não eram simplesmente judeus; uma separação entre eles e a sinagoga havia ocorrido desde o início da proclamação do evan­ gelho. Do mesmo modo, não se deveria identificá-los com seitas judeu-cristãs como os ebionitas, que apareceram somente mais tarde e não representavam o pensamento cristão judaico prevalecente. Baur havia reunido todos eles como uma só coisa de um modo que era confuso e tendencioso. Em seguida, os oponentes de Baur trataram de sua compreensão das fontes do Novo Testamento. Como muitos outros de sua época, Baur aceitava a visão de que havia existido um evangelho aramaico, agora perdido, que era a base dos três Sinóticos. No entanto, por meio de diligente pesquisa textual, o estudioso clássico K. Lachmann mostrou que Marcos era quase certamente o Evangelho mais antigo e que tanto M ateus quanto Lucas dependiam dele em sua forma escrita (isto é, grega). Isso destruiu a ideia de que os Evangelhos eram inter­ pretações diferentes, em um ambiente helenista, de material hebraico primário, e obrigou os estudiosos a aceitar que havia ocorrido um desenvolvimento da tradição sinótica em um contexto puramente helenista. Por fim, um ex-pupilo de Baur, A. Ritschl, demonstrou (1857) que não era possível defender o retrato de Baur das origens do “catolicismo primitivo” com base nas evidências disponíveis. O cristianismo católico não era fruto do con­ flito entre as variantes judaica e grega, mas o descendente de um cristianismo puramente gentüico. Ele compreendia o ensino de Jesus como algo que im ­ plicava uma ruptura radical com o judaísmo, ruptura levada adiante por todos

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os apóstolos. Era equivocado, portanto, sugerir que Paulo estava em conflito com os outros apóstolos de forma significativa. Os “judaizantes” na igreja eram reacionários em desacordo com a igreja prevalecente, ainda que Pedro, em um momento de fraqueza, tivesse aparentemente cedido aos desejos deles. Estes não constituíam um “grupo” no sentido que Baur dava ao termo e não tinham nenhuma teologia organizada que poderiam expressar em oposição ao ensino de Paulo. No entanto, apesar de todos os pontos principais em que se conseguiu mostrar que Baur estava errado, seus oponentes não conseguiram eliminar seu retrato geral do desenvolvimento do cristianismo por meio de uma série de está­ gios históricos. Em especial, a influência constitutiva do apóstolo Paulo na igreja passou a receber um reconhecimento quase universal, como também sua posição “mediadora” entre os apóstolos anteriores e a igreja posterior. Na abordagem histórica crítica, a teoria de Baur foi destruída detalhadamente, mas a estrutura sobreviveu para se adequar a um exame mais rigoroso das evidências por parte de gerações posteriores. Uma crítica mais fundamental da posição de Baur veio de extremos opos­ tos do espectro teológico. De um lado, estavam os conservadores, incluindo os confessionalistas ortodoxos, que queriam manter a uniformidade ideológica do Novo Testamento. Na prática, isso significava se opor à interpretação que Baur fazia de Paulo como um judeu helenizado. Estudiosos como A. Schlatter afir­ maram que Paulo estava plenamente familiarizado com o judaísmo palestino e desenvolveu sua teologia em conexão com ele. Seu mundo era o dos rabinos, e não o dos filósofos gregos, e é na relação com os estudos rabínicos que o seu pensamento precisa ser compreendido. Nesse contexto, logo ficou claro que a fé é o conceito mais importante de Paulo, em oposição às tendências legalistas do establishm ent yià ^ ico , e que ele compartilhava essa ideia com Jesus, presumivel­ mente porque a obtivera dele. Com base em elementos teológicos, portanto, a natureza judaica de Paulo era evidente, e a unidade essencial entre seu pensa­ mento e o dos apóstolos anteriores podia ser evidenciada. De outro, a objeção fundamental à teoria de Baur veio da posição cética de E Overbeck. Este rejeitou completamente o hegelianismo de Baur e sua associação contínua com a teologia. Ele alegava que o fato de que os primeiros cristãos aguar­ davam a volta iminente de Cristo excluía a possibilidade de uma teologia desse tipo ter existido. Ele também mostrou que o afastamento decisivo do cristianismo primitivo para um modelo mais helenista ocorreu em algum momento após o fim do período do Novo Testamento, pois durante uma geração ou mais os bispos que

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sucederam os apóstolos continuaram escrevendo cartas no estilo apostólico. Havia motivos, portanto, para estender a época apostólica até meados do segundo século e postular um período pós-bíblico nela. Com base nisso, não era possível datar a helenização da igreja e a síntese do “catolicismo primitivo” na época do Novo Testamento, e, assim, a compreensão que Baur tinha da “tendência” de livros como Atos e as epístolas pastorais estava necessariamente equivocada.

A abordagem da “história das religiões” : primeira fase Essa abordagem de problemas histórico-críticos foi desenvolvida pela primeira vez por O. Pfieiderer (veja p. 338). Seu ponto de partida básico era a convicção de que o cristianismo primitivo era o produto de um desenvolvimento com­ partilhado com outras religiões da época. O próprio Pfieiderer acreditava que a teologia paulina, que para ele era o fundamento do cristianismo primitivo, era uma combinação do judaísmo farisaico e do judaísmo da Diáspora, cujas inco­ erências foram resolvidas pelos sucessores de Paulo à medida que, aos poucos, expurgaram do pensamento de Paulo seu elemento farisaico. Ele também estava disposto a encontrar em Paulo influências das religiões de mistério contem­ porâneas e a considerá-lo como o produto de um desenvolvimento segundo o espírito da antiguidade clássica. Desse modo, Pfieiderer pensava que podia remover questões teológicas inteiramente da história do cristianismo primitivo e explicá-la à luz do que constituía o sincretismo religioso. A ideia de que as primeiras igrejas se assemelhavam mais a associações religio­ sas gregas do que a sinagogas foi desenvolvida por E. Hatch, cujas visões teriam uma grande influência na Alemanha, bem como na Inglaterra. A descoberta da \Didaquê Doutrina\ em 1883 obrigou A. von Harnack a modificar essas ideias consideravelmente, reconhecendo que os ofícios de apóstolo, profeta e mestre se destinavam ao uso de toda a igreja e não somente da congregação local, de modo que o modelo de “clube” era impróprio. No entanto, Harnack nunca abandonou a tese principal de Hatch, apesar dessa evidência que parecia contradizê-la. O rompimento com as visões de Hatch e com a abordagem da “história das religiões” em sua primeira fase ocorreu somente quando R. Sohm (1892) insistiu na igreja como organização universal e carismática, na qual a ideia da igreja local como associação legal não tinha lugar. Para Sohm, a igreja era um corpo divino, e não uma criação humana, e, portanto, manifestava uma unidade espiritual que transcendia condições locais. Essa abordagem essencialmente teológica e anti-histórica das evidências do Novo Testamento foi desenvolvida

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por M . Kãhler, que praticamente ignorou o significado do Jesus histórico com­ pletamente. Como Kàhler escreveu em 1892: O Jesus histórico descrito por autores modernos esconde de nós o Cristo vivo [...] Qual é o efeito que Jesus deixou? De acordo com a Bíblia e a história da igreja, não é nada menos que a fé dos discípulos, a convicção de que nele temos a vitória sobre a culpa, o pecado, o tentador e a morte. Todos os outros efeitos fluem desse; nós os medimos com ele; sua existência ou não existência depende dele. E essa convicção é resumida na única confissão: “Cristo, o Senhor”. Com essa confissão, a história da época do Novo Testamento não tinha conexão al­ guma, e a teologia do judaísmo, menos ainda [...] O Senhor ressurreto não é o Jesus histórico por trás dos Evangelhos, mas o Cristo da proclamação apostó­ lica, de todo o Novo Testamento [...] O Cristo real é o Cristo que é pregado. As concepções de Káhler marcam o fim efetivo da primeira fase da abordagem da “história das religiões” e mostram o caminho para novos desen­ volvimentos que deslanchariam somente depois da Primeira Guerra M undial. Enquanto isso, no entanto, o estudo da história das religiões entrou em uma segunda fase, mais sofisticada que a primeira.

A abordagem da “história das religiões” : segunda fase Em sua segunda fase, a abordagem da “história das religiões” deixou de ser so­ mente um conjunto de ideias afins e tornou-se um sistema completo, que atraiu diversos estudiosos e pode legitimamente ser chamado de uma “escola”. Seu centro de gravidade era Gõttingen, e seu principal periódico era o Theologische Rundschau, fundado em 1898 por W . Bousset e W . Heitmüller. A segunda fase dessa abordagem se distinguiu pela atenção que deu a todo o fenômeno da literatura apocalíptica. A literatura apocalíptica havia sido o enteado dos es­ tudos do Novo Testamento durante gerações, visto que, exceto para religiosos fanáticos de vários tipos, os quais a usavam para seus próprios fins, ela parecia ser incompreensível. Ela certamente não combinava bem com a abordagem do século 18 e, portanto, havia sido amplamente ignorada. Pegando o tom com Gunkel (1895), Bousset (1896) desenvolveu a ideia de que o Anticristo descrito em Apocalipse era a transformação do mito do dragão primitivo na expectativa de um pseudo-Messias. No entanto, Bousset resistiu à noção de que Apocalipse era uma obra mista reunida a partir dos mitos das na­ ções vizinhas. Para ele, o que realmente importava nesse livro era até que ponto ele diferia de obras contemporâneas desse tipo, e ele atribuiu essa diferença à

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influência do evangelho, que era singularmente livre de acréscimos místicos. O livro de Apocalipse demonstrava o que um autor cristão podia e iria fazer com mitos sagrados; ele os transformaria em algo novo à luz da revelação de Cristo. Esse tema continuou sendo desenvolvido por Gunkel (1903), que argumen­ tou que o cristianismo, ao menos em suas formas paulina e joanina, havia se originado de um judaísmo sincretista. Ele escreve: O cristianismo primitivo é como um rio que é a confluência de dois córregos: um é especificamente israelita, ele se origina no Antigo Testamento; o outro, no entanto, flui, por meio do judaísmo, de religiões estrangeiras e orientais. Então no Ocidente se acrescenta a isso o fator grego [...] Não é o Evangelho de Jesus, conforme o conhecemos predominantemente pelos Sinóticos, que é uma religião sincretista, mas, sim, o cristianismo primitivo de Paulo e João. Enquanto isso, Bousset também tinha tratado do tema novamente e o apli­ cara especificamente à literatura apocalíptica (1903). Bousset agora afirmava que a literatura apocalíptica judaica era o solo do evangelho cristão e que isso explicava grande parte do que podia ser encontrado no Novo Testamento, in­ cluindo o ensino de Jesus. Ele escreve: Por um lado, vimos ser provável que a literatura apocalíptica judaica não se­ ja produto genuíno da religião israelita, mas, antes, a literatura apocalíptica iraniana desempenhou um papel em sua gênese. Por outro lado, ficamos cons­ cientes de uma extensa influência da literatura apocalíptica judaica sobre o Novo Testamento. As conseqüências teológicas disso eram muitas. Bousset afirmou que acrés­ cimos estranhos poderiam e deveriam ser apagados do evangelho quando era evidente que eles nunca haviam sido realmente assimilados pela tradição cristã. Como um exemplo disso, ele citou a convicção da existência do Diabo e de pode­ res malignos em geral, que ele considerava como uma forma de dualismo iraniano. M as esse princípio não era universalmente válido. Como escreveu Bousset: A regra de que se deve remover tudo que veio de fontes estranhas não é uma regra universalmente válida. Ela é verdadeira somente quando o que é estranho permaneceu estranho, não assimilado. Mas ela não é válida onde o que talvez outrora tenha sido estranho se amalgamou completamente com o espírito do evangelho para formar uma parte essencial e fundamental dele. A essa categoria pertence acima de tudo a fé do evangelho no além. ífeso faz parte de seu indis­ pensável depósito da verdade.

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M ais tarde, em seu famoso K yrios Christos [Senhor Cristo] (1913), Bousset levou essa linha de pensamento ao seu ápice, levando em consideração as pes­ quisas que R. Reitzenstein, entre outros, havia feito no campo dos estudos iranianos. Nessa obra clássica, Bousset aboliu a distinção entre o cânon do Novo Testamento e outros escritos cristãos primitivos. Em sua presente opinião, havia somente uma tradição literária na igreja primitiva, parte da qual foi mais tarde canonizada e, portanto, preservada, mas em uma condição removida de seu con­ texto histórico. Os cristãos primitivos, afirmou Bousset, tinham uma teologia que haviam obtido de uma forma de judaísmo em que o tema do Filho do Homem desempenhava um papel proeminente. M as foi a igreja gentílica, e não a judaica, que levou as coisas à sua conclusão lógica. Foram eles que começaram a adorar a Cristo como Kyrios (“Senhor) e a afirmar que ele estava presente em espírito entre eles, uma afirmação oposta à convicção escatológica de cristãos judeus, que diziam que Jesus havia se retirado e voltaria somente no fim dos tempos. Sobre a origem desse grupo do Kyrius, Bousset foi bastante claro: Uma pesquisa mostra que o título “Senhor” abarca uma área na história das religiões que ainda pode ser delimitada com alguma certeza. O título penetrou a religião helenista-romana do Oriente. A Síria e o Egito realmente eram seus habitantes nativos. O fato de que ele desempenhou um papel fundamental na adoração egípcio-romana de governantes é somente um aspecto do fenômeno geral [...] É como se o título “Senhor”fosse concedido em especial às divindades no centro do grupo de comunhão que aqui é nosso objeto de estudo [...] O cris­ tianismo antioqueno e o de outras congregações helenistas primitivas surgiram e se desenvolveram nessa atmosfera. Assim, para Bousset e a escola da “história das religiões”, o surgimento do cristianismo é inteiramente expÜcável no contexto da história religiosa helenista. A teologia cristã é uma apropriação da mitologia pagã, imperfeitamente assi­ milada a uma forma seleta de judaísmo. E possível explicar sua singularidade, e presumivelmente também seu êxito, com a extensão de sua correspondência aos anseios espirituais de romanos e gregos contemporâneos. O fim dessa estrada específica pode ser encontrado nos escritos de W . Wrede, que levou a crítica histórica até seus limites radicais. Em seu livro clássico, The M essianic s e c r e t [ 0 segredo messiânico] (1901), Wrede defendeu vigorosamente que Jesus nunca afirmou ser o Messias. O fato de que essa ideia é tão proemi­ nente no evangelho de Marcos, supostamente o mais “histórico” dos quatro, Wrede explicou dizendo que Marcos reflete o conceito teológico do “segredo

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messiânico”, defendido pela igreja, que então foi imposto retroativamente aos ensinos de Jesus. Marcos encarou sua tarefa como um Evangelista com a tradi­ ção de que Jesus era um grande mestre e também um operador de milagres. Ele uniu as duas coisas e transformou Jesus em um Messias secreto, cuja verdadeira trajetória começou só depois da ressurreição. Aliás, a identificação de Jesus com a figura do Messias de fato foi quase certamente o trabalho do apóstolo Paulo. Escrevendo sobre esse tema em 1904, W rede disse: Qual era a origem do conceito paulino de Cristo? Para os que enxergam em Jesus o que Paulo enxergava, um ser supramundano e divino, não há nenhum problema. Mas os que enxergam Jesus como ele era de fato — uma personali­ dade humana histórica — percebem um enorme abismo entre esse homem e o Filho de Deus paulino. Não passou nem uma geração desde a morte de Jesus e já sua forma não somente havia crescido ao infinito, mas havia sido completa­ mente alterada. Como isso veio a acontecer? O retrato de Cristo não se originou de uma impressão da personalidade de Jesus. Essa visão com frequência foi mantida, mas nunca demonstrada [...] Somente resta uma explicação: Paulo acreditava em um ser celestial desse tipo, em um Cristo divino antes de acreditar em Jesus [...] Paulo deve ser considerado o segundo fundador do cristianismo. Com Wrede, a crítica histórica radical atingiu seu lim ite lógico. Ela logo provocou séria oposição, significativamente de A. von Harnack (1909), que considerava seu método bem deficiente. Ao negligenciar a teologia, Harnack afirmou, a escola da “história das religiões” enfatizava demais o lugar do mito no desenvolvimento do cristianismo e negligenciava o fato de que todas as religiões mais elevadas eram desmitologizações de um primitivismo anterior. Essa objeção foi ampliada por A. Jülicher (1907), que atacou principalmente a compreensão que Wrede tinha de Paulo. Para Jülicher, estava claro que Paulo não havia fun­ dado uma nova religião, mas havia investigado as conclusões lógicas a serem extraídas do ensino de Jesus. Aplicando-as ao seu judaísmo herdado, Paulo havia derrubado barreiras e superado mitos; ele não havia construído novos. A última palavra sobre o tema apropriadamente pertence a K. Deissner (1918). Deissner aceitava que Paulo com frequência usava termos e conceitos comuns nas religiões de mistério de sua época, mas defendeu que ao se apropriar deles, o apóstolo os desmitologizou. Deissner escreveu: ... a gnose do misticismo é fundamentalmente não histórica; ela não tem ne­ nhuma relação interna com os eventos e acontecimentos da-Jústória. A gnose paulina, muito pelo contrário, origina-se [...] no fato histórico que, para o

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apóstolo, é o ponto decisivo e focal de toda a história: o Cristo crucificado. Como resultado dessa forte conexão com a história, a gnose do apóstolo está privada desde o princípio de toda magia mística... Em outras palavras, a noção de que é necessário compreender o cristianismo contra o pano de fundo da religiosidade contemporânea é valiosa, mas a escola da “história das religiões” a aplicou sem muito critério e de um modo que igno­ rava o compromisso básico do cristianismo com as realidades históricas. Suas percepções, portanto, podiam ser frutíferas somente à medida que e quando eram depuradas e separadas de um retrato do cristianismo primitivo que atri­ buía demais à cultura ao redor e não o suficiente à originalidade da vida e do ensino do próprio Jesus.

A escatologia Nosso exame da interpretação bíblica do século 19 e início do século 20 precisa concluir com a redescoberta da importância da escatologia na vida e no minis­ tério de Jesus. Essa descoberta alterou completamente a visão liberal tradicional do Messias, pois apresentou a teoria de que a compreensão que Jesus tinha de si mesmo era radicalmente diferente do que os filósofos morais da época moderna poderiam imaginar. Essa ênfase em questões escatológicas começou com J. Weiss, que seguiu, inicialmente (1892), as concepções que seu sogro A. Ritschl tinha sobre Jesus e “o reino de Deus”como uma ordem moral e espiritual. Na época em que a segunda edição de seu livro havia aparecido (1900), estava claro que Weiss havia mudado de opinião. Weiss escreveu em sua introdução a essa edição que “a ideia que Ritschl tinha do reino de Deus e a ideia de mesmo nome na procla­ mação de Jesus são duas coisas muito diferentes”. Weiss continuou esboçando sua convicção de que quando Jesus falava sobre o reino de Deus, ele imaginava a iminente chegada do fim do mundo e o início de uma era inteiramente nova do Espírito. Em especial, suas exigências éticas eram nada menos que um prelúdio da vinda do reino e inteiramente subordinadas a ele. Para citar Weiss: ... o reino de Deus como Jesus o enxergava é uma entidade totalmente so­ brenatural que se opõe completamente a este mundo. Resulta disso que no pensamento de Jesus não pode ter havido lugar para um desenvolvimento do reino de Deus dentro da estrutura deste mundo. Com base nesse resultado, parece ser o caso que o uso religioso-ético dessa ideia na teologia recente, que a privou completamente de seu significado originalmente escatológico-apocalíptico, é injustificado.

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Weiss atraiu a ira de liberais porque não era possível harmonizar suas afir­ mações com o reino de Deus espiritual, como retratado por eles, sem atrair o apoio conservador, que ainda estava casado com a ideia de um reino de Deus no presente. Os conservadores apreciaram a ênfase de Weiss no futuro, certamen­ te, mas não estavam preparados para aceitar que o reino tinha uma orientação exclusivamente futura. A convicção de Weiss foi compartilhada por R. Kãbisch (1893), que mostrou a dimensão escatológica da pregação de Paulo e a associou ao judaísmo contemporâneo. As concepções de Weiss e Kãbisch foram unidas e popularizadas por A. Schweitzer (1906,1911), que excluiu qualquer possibilidade de que Jesus ou Paulo haviam sido influenciados por forças fora da tradição judaica. Para Schweitzer, a ênfase escatológica do Novo Testamento era totalmente (e somente) explicável com base na literatura apocalíptica judaica. Como ele disse (1911): A solução, portanto, precisa consistir em deixar fora da questão a influência gre­ ga em qualquer forma e combinação e excluir a “natureza unilateral” de tentar compreender a doutrina do Apóstolo aos Gentios inteiramente com base no cristianismo primitivo judaico. Seria difícil imaginar uma rejeição mais completa da abordagem da “história das religiões”. Schweitzer pode ter ido muito longe em sua reação às tentativas liberais do século 19 de transformar Jesus em um mestre religioso moral bur­ guês, mas aos poucos seus contemporâneos começaram a apreciar o conteúdo de seus argumentos. Após a Primeira Guerra M undial, o liberalismo à moda antiga desapareceu rapidamente, e um novo modo de pensar, muito mais sintonizado com a visão escatológica, começou a fazer seu impacto na interpretação do Novo Testamento. B ibliografia org. C ritics o fth eB ib le 1724-1873 (Cambridge: Cambridge University Press, 1989). E l l is , I. S even a ga in st Christ: a study o f “Essays a n d r e v ie w s ” (Leiden: Brill, 1980). G r a n q u ist , M . “The role of ‘Common sense’ in the hermeneutics of Moses Stuart”. H a rva rd T h eologica lR eview 83 (1990): 45-64. H a r r i s , H . lh e T übingen School. 2. ed. (Leicester: Apollos, 1990). K ü m m e l , W . G. The N ew T estam ent: the history o f the in vestiga tion o fit s problem s (London: SC M , 1972).

D

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ESTUDO DE CASO: OS EVANGELHOS SINÓTICOS Foi J. J. Griesbach (1774-1775) quem inventou o termo “sinótico”para descrever a relação próxima entre Mateus, Marcos e Lucas e que fez a primeira tentativa sistemática de determinar quais eram as conexões entre eles. Obviamente, essas semelhanças haviam sido constatadas muito antes e tinham sido comentadas. Agostinho, por exemplo, escrevendo em cerca de 400 d.C ., distinguiu clara­ mente os três primeiros Evangelhos, que “tratavam principalmente das coisas que Cristo fez pelo veículo da carne de um homem e de modo temporal”, de João, que “tinha em vista a verdadeira divindade do Senhor, em que ele é igual com o Pai, e dirigiu seus esforços acima de tudo à exposição da natureza divina em seu Evangelho de modo tal que considerava ser adequado às necessidades e noções humanas” {De consensu eva n gelistaru m [Com o consenso dos Evangelistas] 4). Calvino, escrevendo aproximadamente em 1555, também observou que João tinha um estilo muito diferente dos outros três Evangelhos e comentou isto sobre os últimos: ... não diremos que a diversidade que percebemos nos três Evangelistas era o objeto de um acordo expresso, mas, visto que eles desejavam fornecer uma nar­ rativa real do que sabiam ser certo e incontestável, cada um seguiu o método que considerava melhor. Contudo, visto que isso não ocorreu por acaso, mas pela direção da Providência Divina, assim, sob essa diversidade na maneira de escrever, o Espírito Santo lhes sugeriu uma extraordinária harmonia, que, se não houvesse outras e mais fortes evidências para defender sua autoridade, seria quase suficiente por si mesma para assegurar seu crédito.

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Ele continuou explicando que ao escrever um comentário sobre a harmonia dos três Evangelhos, em vez de sobre cada um separadamente, estava seguindo um método já desenvolvido por outros, notavelmente M artinho Bucer. Calvino explicou essa abordagem assim: Em primeiro lugar, é totalmente incontestável a impossibilidade de expor de modo correto e com êxito qualquer um dos Evangelistas sem o comparar com os outros dois; e, consequentemente, comentaristas fiéis e instruídos gastam uma porção grande demais de seu labor reconciliando as narrativas dos três Evangelistas. Contudo, visto que muitas vezes aquelas pessoas de capacidades comuns não con­ sideram a comparação uma questão fácil, quando é necessário passar de um ponto para o outro, pensei que poderia de modo útil e conveniente poupar-lhes o labor se eu dispusesse as três histórias em uma seqüência, ou em um só retrato, em que o leitor pudesse perceber de imediato a semelhança ou a diversidade. Desse modo, não deixarei de fora nada do que foi escrito por qualquer um dos três Evangelistas; e tudo que pode ser encontrado em mais de um deles será reunido em um só lugar. Daí em diante, Calvino continuou desenvolvendo um esquema baseado ampla­ mente na pressuposição da prioridade de M ateus, segundo o qual era possível ler os Evangelhos Sinóticos juntos. Diferenças secundárias entre eles foram explicadas da perspectiva diferente dos próprios Evangelistas, de que Calvino estava bem consciente. A primeira tentativa de explicar a origem dos Evangelhos Sinóticos foi feita por J. Le Clerc (1716), mas suas opiniões foram ignoradas. Quase duas gerações depois, G. E. Lessing propôs (1778; publicado em 1784) que os Evangelistas haviam copiado, independentemente, um original aramaico, agora perdido, que os pais da igreja conheciam como o Evangelho dos hebreus ou dos nazarenos. Ele usou a afirmação de Eusébio de que M ateus havia redigido seu Evangelho originalmente em aramaico {Historia E cclesiastica [H istória eclesiástica] III.24.6) e afirmou que o Evangelho que agora conhecemos como M ateus era a réplica mais fiel daquele texto. Em 1782, J. B. Koppe demonstrou que Marcos não era um resumo de M ateus, e nisso foi seguido por Griesbach (1783), que afirmou que Lucas es­ creveu em dependência de M ateus e que Marcos o fez em dependência dos dois. Isso foi contestado por G. C. Storr (1786) e por J. G. Herder (1797), ambos defendendo a prioridade marcana, mas em geral as visões de Griesbach prevaleceram entre os estudiosos críticos até a década de 1830. Várias sugestões foram feitas sobre a possibilidade de que os Evangelistas haviam tido acesso a mais de uma fonte, mas essa ideia só se popularizou de fato

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em 1832, quando F. Schleiermacher, seguindo o testemunho de Papias, autor do segundo século, argumentou que o evangelho primitivo era uma versão do que agora conhecemos como Marcos, em acréscimo ao qual havia uma compilação separada de “declarações” de Jesus (logia) que não constituíam um evangelho, mas haviam sido usadas por Mateus para complementar o material pré-marcano (e mais tarde copiadas por Lucas). Essa ideia mais tarde constituiria a base da chamada hipótese dos dois documentos, embora Schleiermacher não pensasse desse modo e aceitasse a solução de Griesbach como a mais satisfatória. Schleiermacher foi logo seguido por K. Lachmann (1835), que empregou argumentos textuais detalhados para demonstrar que Marcos tinha a maior chance de ter sido o primeiro dos Evangelhos, embora provavelmente não exa­ tamente em sua presente forma. Alguns anos depois, C. H. Weisse aperfeiçoou a hipótese dos dois documentos (1838), que ele afirmou serem Marcos de Papias (não idêntico ao nosso Marcos) e as logia de Mateus. Após diversas tentativas, Weisse finalmente chegou à conclusão de que M ateus, Marcos e Lucas haviam todos copiado o Proto-Marcos de Papias e que M ateus e Lucas também ha­ viam feito uso das logia. A existência das logia fazia parte do argumento de que “Marcos” era o primeiro Evangelho, visto que, sem elas, teria sido impossível explicar o grande corpo de material comum em M ateus e Lucas, mas ausente em Marcos. Esse argumento foi fomentado pelo radicalismo da escola de Tübingen, que combinou a hipótese de Griesbach da prioridade mateana com a asserção de que Mateus foi escrito após o fim do período das testemunhas oculares e, portanto, não era fidedigno como fonte histórica. Isso fez com que as pessoas procurassem fontes anteriores e tornou a teoria de Weisse mais atrativa. A es­ cola de Tübingen fez mais uma contribuição para a crítica sinótica que devemos mencionar. Ao postular um conflito fundamental entre o cristianismo judaico e o cristianismo gentílico e defender que os Sinóticos representavam aquele, enquanto João representava este, os homens de Tübingen obrigaram o mundo acadêmico a escolher entre duas tradições, sendo que somente uma podia rei­ vindicar qualquer historicidade. Os Sinóticos podiam conter erros em diversos aspectos, mas eles tinham mais chance de conter a verdade histórica do que João, que procedia de um contexto cultural inteiramente diferente. O grande avanço seguinte na crítica sinótica foi feito por H. J. Holtzmann (1863), que continuou de onde W eisse havia parado. Holtzmann produziu uma síntese da pesquisa alemã contemporânea sobre as origens sinóticas e conseguiu convencer a maioria dos estudiosos da época de que havia dois documentos

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básicos subjacentes aos três Evangelhos: Marcos, ou um Proto-Marcos, muito parecido com ele, e uma fonte logia que Holtzmann chamou de Lambda, mas que Harnack mais tarde alcunharia “Q p a r a Q uelle (palavra alemã traduzida por “fonte”). O êxito da teoria de Holtzmann se deveu não ao seu estudo erudito, que era deficiente em muitos pontos, mas ao clima prevalecente da época. Essa era a verdadeira chave, como Schweitzer mostrou, para a aceitação comum da prioridade marcana. Como o expressa W . R. Farmer, o principal defensor mo­ derno da hipótese de Griesbach: Essa vida liberal de Jesus [isto é, Proto-Marcos], livre de constrangedoras lendas de nascimento e contraditórias histórias de ressurreição, forneceu a base histórica em que teólogos liberais podiam fundamentar sua fé enquanto lançavam com devasta­ dor efeito seu ataque histórico-crítico aos dois mais vulneráveis pilares da ortodoxia do século 19 — o Nascimento Virginal e a Ressurreição física. Foi, portanto, a hipótese marcana que forneceu aos liberais uma base crítica para sua defesa da cida­ dela da fé contra o ataque de radicais do século 19 como Bruno Bauer da esquerda, enquanto eles mesmos continuavam sua batalha com os ortodoxos à direita. Depois da época de Holtzmann, o foco de interesse nos Evangelhos Sinóticos se descolocou para a Inglaterra. Isso de certo modo era natural, pois a tradição inglesa sempre havia se concentrado fortemente em problemas textuais e filológicos, e a questão sinótica sem dúvida alguma era um deles. Foi W illiam Sanday quem apresentou a teoria de Holtzmann ao mundo de fala inglesa e quem forneceu o impulso para uma futura “solução” do problema. Sanday era intrinsecamente hostil à abordagem de Tübingen, que era muito especulativa para seu gosto. Sua própria posição teológica era mais próxima à de Holtzmann, que queria combinar as visões tradicionais com os métodos críticos à medida que isso era possível e que recuou dos extremos de Baur e seus discípulos. Sanday começou um seminário em Oxford em 1894 para analisar a questão sinótica, e o subsequente estudo inglês dependeu amplamente dele. Entre as mais notáveis realizações do seminário estavam a obra de John Hawkins H orae syn opticae (1898, 1909) e um simpósio sobre a questão publicado em 1911. O último grande representante do seminário foi B. H. Streeter, cuja “solução” do problema sinótico (1924) mais tarde se tornaria a comumente aceita. A primeira contribuição importante dessa “escola de Oxford” foi eliminar a distinção entre Marcos e o “Proto-Marcos”. Visto que Holtzmann estava simultaneamente chegando à mesma conclusão de forma independente, essa nova teoria venceu imediatamente. Por volta de 1900, era consenso universal

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que Marcos foi o primeiro dos Evangelhos e que os outros Sinóticos o haviam usado, em sua forma final, como fonte para seu próprio trabalho. Essa hipótese não era inteiramente satisfatória, visto que há divergências secundárias entre Marcos de um lado e M ateus-Lucas de outro, em material que, de modo geral, é comum aos dois, o que torna a teoria do Proto-Marcos atraente. No entanto, essas considerações não foram vistas como suficientemente significativas para impedir a adoção da teoria de que Marcos, como o temos, agora era a fonte dos outros Sinóticos. Também se passou a aceitar que M ateus e Lucas haviam usado Marcos de forma independente um do outro, com a mesma independência com que haviam se utilizado também do documento Em torno de 1900, o material comum em M ateus e Lucas era geralmente considerado como uma fonte Q_distinta, embora não houvesse consenso a respeito do que esse documento pudesse ter sido originalmente. A maioria dos estudiosos pensava que, em sua presente forma, Q_é meramente uma série de extratos de um documento maior, que pode ter se sobreposto com material marcano. Como o Q_original não estava disponível para inspeção, essa hipótese permaneceu sem provas. Todavia, como um termo conveniente para material comum em Mateus e Lucas, mas ausente em Marcos, Q_tem se estabelecido com êxito, independen­ temente de qualquer conexão que pudesse ter com o documento real. B. H. Streeter (1924) reconheceu que Q_dava a maior dor de cabeça para os que queriam manter a prioridade marcana. Pois, por que M ateus e Lucas teriam concordado um com o outro contra Marcos, se os dois tivessem copia­ do dele de forma independente? Que cada um deles divergisse de seu modelo era compreensível, mas não que divergissem do mesmo modo. Explicar isso era o problema! Streeter resolveu a questão abandonando a hipótese dos dois documentos a favor de uma teoria muito mais complexa das origens sinóticas. Trabalhando segundo as linhas principais estabelecidas por Holtzmann e pela “escola de Oxford”, ele produziu o seguinte esquema. 1. Marcos e Q_foram fontes básicas, que se sobrepunham até certo ponto, embora não possamos dizer quanto. De modo muito geral, pareceria que Marcos era história narrativa, enquanto Q_era uma fonte mais teológica. 2. M ateus começou usando Marcos e acrescentou seu próprio material (M ). Ele então reorganizou partes de Q_na forma de cinco grandes discursos. 3. Lucas, em contrapartida, começou com seu próprio material (L), ao que ele acrescentou extratos de Q^ Depois disso, integrou Marcos sempre que era possível encaixá-lo.

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4. Concordâncias entre M ateus e Lucas contra Marcos eram explicáveis por acidente e coincidência na maioria dos casos. Quando isso não funcionava, Streeter afirmava que M ateus e Lucas podiam ter copiado Q fielm ente, do qual Marcos havia se desviado em pormenores secundários. Os estudiosos atuais do problema sinótico muitas vezes ficam assoberbados com a vasta diversidade de possibilidades que se abrem uma vez que começamos a examinar e comparar esses Evangelhos, e muitos podem se perguntar se o esforço gasto nisso realmente vale a pena. Afinal de contas, as variações são tão secundárias e têm tão pouco efeito no significado que a solução de Calvino para o problema parece mais próxima da realidade do que muitos dos esquemas completos que os estudiosos posteriores criaram. Talvez seja por causa disso que os estudos mais recentes tenham dado mais importância a cada um dos Evangelistas e tentado explicar seus argumentos e diferenças à luz de sua teolo­ gia e propósito de composição. Isso atualmente parece ser uma possibilidade de pesquisa mais fecunda do que o próprio problema sinótico, mas precisamos lembrar que ele era um produto de sua época do mesmo modo que qualquer outra coisa. Ele encontrou um forte paralelo na crítica contemporânea do Pentateuco, tanto é que às vezes o “Proto-Marcos” era designado como o G rundschrift. Aqueles que se empenharam nele mais avidamente não estavam somente brincando com o texto, como alguns crí­ ticos recentes alegaram. Eles tinham interesse em isolar a primeira e, portanto, a mais autêntica fonte histórica da vida de Jesus. O fato de que parecia ser possível encontrar tal fonte, que não tinha conexão alguma com uma “teologia” específica, fundamentava a visão de que Jesus não era uma figura teológica por si mesmo e de que desenvolvimentos posteriores desse tipo eram intrusões estranhas. Nesse contexto, a natureza e a posição de Q_ obtiveram um significado desproporcional. Aqui estava uma compilação de declarações aparentemente remontando à própria época de Jesus e provavelmente mais antiga ainda do que Marcos. De onde Q_havia vindo? Será que havia um autor desconhecido, da estatura do “Segundo Isaías”, ou os estudiosos estavam meramente tratando de uma coletânea de declarações que poderiam ter sido compiladas pelos apóstolos e ligadas ao nome de Jesus em sua tentativa de reabilitá-lo após sua morte? A crítica sinótica foi conduzida segundo os mais minuciosos princípios filológicos, mas ela nunca esteve separada da teologia de sua época. Era a linha de frente exegética da busca do “Jesus histórico”, e todas as conclusões a que ela chegou precisam ser vistas a essa luz. Somente quando o “Jesus histó­ rico” se desvaneceu em mito e foi abandonado é que foi possível retrabalhar

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substancialmente a antiga abordagem dos Sinóticos de uma perspectiva teológi­ ca diferente. O que aprendemos desse episódio é que não há nenhuma pesquisa puramente “científica”; tudo tem um fundamento teológico, por menos que seja reconhecido e por mais critérios “racionais”que sejam usados para defender uma posição. Essa lição seria aprendida repetidamente no século 20. A história dos estudos sinóticos, portanto, representa tanto um monumento da grande era da crítica histórica quanto um prenuncio do que estava por vir. B ibliografia A. J. et al. The tw o-so u rce hypothesis: a critica i appraisal (Macon: Mercer University Press, 1965). B u c h a n a n , G. W . “Has the Griesbach hypothesis been falsified?”. J o u rn a l o f B ib lica lL itera tu re 91 (1972): 550-72. E d w a r d s , R. A. The th eology o f Q (Philadelphia: Fortress, 1971). F a r m e r , W . R. The syn op tic prob lem : a critica i analysis (New York: M acmillan, 1964; Dillsboro: Western North Carolina Press, 1976). J o h n so n , S. E. The Griesbach hypothesis a n d red a ctio n criticism (Atlanta: Scholars Press, 1991). P a r k e r , P. The G ospelbefore M ark (Chicago: Chicago University Press, 1953). S t r e e t e r , B. H. T hefour Gospels: a study o f origin s (London: M acm illan, 1924). T u c k e t t , C. M . The r e v iv a l o f the Griesbach hypothesis (Cambridge: Cambridge University Press, 1983). B e l l in z o n i ,

MEADOS DO SÉCULO 20 (1918-1975)

A Primeira Guerra M undial (1914-1918) marcou um importante ponto de inflexão na história do mundo ocidental. O horror da destruição mostrou que o mal em seres humanos, que os progressistas do século 19 acreditavam que havia sido banido para sempre, continuava espreitando sob a superfície. O otimismo que havia reinado antes de 1914 tinha desaparecido, e poucos davam ouvidos aos liberais que o haviam proposto. Agora em sua velhice, A dolf von Harnack podia trovejar contra Karl Barth, seu antigo pupilo e atual oponente, mas pouco adiantaria. A chamada de Barth a uma pregação bíblica baseada no pecado, na justiça e no juízo era a mensagem que falava à atmosfera reinante nos anos pós-guerra. O desaparecimento do liberalismo à moda antiga na Europa não tinha pa­ ralelo nos Estados Unidos, onde ainda estavam sendo travadas as batalhas do século anterior. Durante a década de 1920, os conservadores perderam o contro­ le das denominações principais e perderam seu lugar no Princeton Theological Seminary, que havia sido sua grande fortaleza. Na Grã-Bretanha, o liberalismo também durou mais tempo, e fora da Escócia a mensagem de Barth foi ouvida somente aqui e ali. Em contrapartida, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos con­ tinuaram liderando o campo de estudos filológicos, o que manteve estudiosos perto dos textos bíblicos, e o campo da arqueologia, que se tornou o principal bastião do pensamento conservador. Durante todo esse período, arqueólogos fizeram descobertas que pareciam confirmar o texto bíblico, e muitos dos que haviam começado como céticos passaram a aceitar a fidedignidade essencial dos textos bíblicos. M ais uma característica importante desse período foi que estudiosos com tipos muitos diferentes de perícia começaram a ingressar no campo dos estu­ dos bíblicos e a propor novas respostas a antigas perguntas. Antropólogos, em especial, adquiriram uma respeitabilidade que mal teria sido imaginável antes de 1914, e teorias do desenvolvimento cultural, que haviam sido polidamente ignoradas quando apresentadas por Herder, agora voltaram com novo vigor. Sociólogos também apareceram, bem como economistas e cientistas políti­ cos. Especialistas nesses campos acabariam fazendo uma contribuição para a

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interpretação bíblica que desafiaria o domínio da crítica histórica, contudo, na década de 1920, ainda faltava uma geração ou mais para esse dia chegar. O mundo pós-guerra também testemunhou uma secularização crescente da vida cotidiana. As igrejas já não atraíam o número de seguidores que haviam tido antes da guerra, e havia menos interesse em questões religiosas. Questões que tinham encantado ou dividido o público geral no século 19 já não inte­ ressavam a maioria das pessoas. Isso forneceu a professores de teologia uma liberdade muito maior do que alguma vez haviam desfrutado, mas à custa de perder seu público. Quando ninguém está ouvindo, os acadêmicos podem dizer o que querem sem que ninguém os incomode! M ais uma característica importante desse período foi o crescimento do ecumenismo. Por volta de 1920, estava-se começando a aceitar que os protes­ tantes, ao menos, poderiam e deveriam trabalhar juntos no nível acadêmico. O antigo confessionalismo deu lugar à divisão entre “liberais”e “conservadores”. Os conservadores praticamente não tinham mudado do que haviam sido um século antes, mas a abordagem dos “liberais” havia se tornado muito menos ideológica. O início da neo-ortodoxia, que adotou um confessionalismo tradicional, mas o combinou com uma aceitação da crítica bíblica moderna, forneceu uma ponte entre os dois campos, mesmo que fosse rejeitada pelos puristas em ambos os lados. Na realidade, os estudos bíblicos estavam assumindo um tom cada vez mais secular, e as convicções de um professor já não importavam tanto assim. A Segunda Guerra M undial (1939-1945) representou mais um importante marco no desenvolvimento dos estudos bíblicos. O domínio do mundo acadê­ mico alemão foi sacudido pela ascensão de H itler e a subsequente aniquilação da Alemanha e precisava competir com uma rede acadêmica muito expandida em outros lugares. Mesmo assim, a enorme vantagem desfrutada por alemães no campo da crítica histórica permaneceu intacta durante mais uma geração, e, quando finalmente foi substituída, o domínio do método crítico histórico desapareceu com ela. No entanto, não há nenhuma dúvida que os anos após 1945 assistiram à preparação de uma nova era em estudos bíblicos, que ficou evidente na década de 1970. Esses anos também assistiram à ampliação dos estudos bíblicos, que vieram a incluir estudiosos católicos e judeus em pé de igualdade com os protestantes. Os estudiosos católicos conseguiram aproveitar a encíclica papal D ivin o afflante Spiritu [Pelo sopro do Espírito divino] (1943), que lhes deu permissão para participar do estudo crítico das Escrituras, contanto que permanecessem na estrutura dogmática da igreja romana. Essa restrição demonstrou ser bastante

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suave, e logo os estudiosos católicos estavam ocupando seu lugar como iguais ao lado dos protestantes. Também podemos dizer quase o mesmo a respeito dos estudiosos judeus. A fundação do Estado de Israel naturalmente despertou nos estudiosos judeus o interesse em explorar o passado bíblico da nação, que era uma parte essencial da ideologia do novo país. A descoberta fortuita dos Manuscritos do M ar Morto em 1947 deu a esse interesse um novo ímpeto, visto que pela primeira vez um corpo substancial de literatura judaica, datando da época do Novo Testamento, havia sido descoberto. Os estudiosos judeus rapidamente deixaram sua marca tanto nos estudos bíblicos como na arqueologia, e, embora tivessem uma abordagem em geral con­ servadora, eles de modo algum eram “fundamentalistas”. Nesse mesmo período, o judaísmo atraiu estudiosos gentios por outras razões. A terrível destruição da comunidade judaica europeia durante a guerra influenciou muitos cristãos, que pensavam que a redescoberta do judaísmo fazia parte de sua própria reabilitação espiritual. No processo, eles perceberam mais uma vez simplesmente quão ju ­ daicos Jesus e seus discípulos haviam sido. O contato entre ele e a comunidade de Qumran pode ter sido pequeno, mas as semelhanças eram evidentes. As teo­ rias apresentadas, mais ou menos como conjeturas, por J. Weiss e A. Schweitzer, agora demonstravam ser confirmadas por evidência sólida. Em pouco tempo, cristãos e judeus estavam trabalhando lado a lado para compor um retrato mutuamente aceitável do judaísmo do primeiro século, um sinal seguro de que antigos antagonismos religiosos estavam praticamente mortos. Ao mesmo tempo, os cristãos conservadores estavam se recuperando das derrotas dos anos entreguerras, e eles mais uma vez eram uma força a ser reconhecida no mundo acadêmico. No entanto, havia uma importante diferença entre os con­ servadores pós-guerra e seus ancestrais de uma geração ou mais antes. Enquanto estes haviam baseado suas visões na ortodoxia doutrinária, os novos conservado­ res eram guiados pelas regras que os críticos haviam estabelecido. Se mantinham opiniões conservadoras, eles o faziam usando os mesmos métodos e estilo de argumentação que seus oponentes. Em certo sentido, sua tarefa era relativamente simples. Os liberais do século 19 nem sempre haviam sido muito cuidadosos em avaliar corretamente as evidências; e demasiadas vezes tinham aceitado qualquer conclusão que havia confundido os ortodoxos, quer justificada, quer não. Os novos conservadores podiam alegremente ressaltar isso e trazer o mundo acadêmico de volta a uma avaliação mais equilibrada dos dados. Ao mesmo tempo, os conservadores eram suspeitos porque seu estudo eru­ dito tinha motivação religiosa. Após 1945, a secularização se tornou a palavra

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de ordem, e durante certo tempo começou-se a ter a impressão de que qualquer lealdade religiosa era um obstáculo à objetividade acadêmica. No entanto, isso era uma situação artificial que não podia durar. Gradualmente ficou claro que estudiosos religiosamente comprometidos estavam divididos en­ tre si mesmos e que o renascimento conservador nas igrejas era mais aparente que real. Cedo, estudiosos doutrinariamente ortodoxos mais uma vez estavam lutando pela sobrevivência em suas próprias instituições, à medida que os bastiões conservadores, um após o outro, sentiam a pressão de um novo liberalismo sur­ gindo de dentro. Certo tempo depois de 1970, ficou evidente que o mundo em que o estu­ do bíblico havia habitado durante mais de um século já não era o mesmo. Os gigantes do método histórico-crítico, que haviam sido treinados pelos liberais clássicos do final do século 19, começaram a desaparecer, e seu lugar foi ocupado por pessoas que não compartilhavam os mesmos interesses. M uitos dos antigos argumentos agora pareciam enfadonhos ou irrelevantes; era o momento de um novo início, que somente seria possível com o ingresso em outros campos de pesquisa. Os esforços interdisciplinares experimentais da década de 1920 agora se tornavam cada vez mais comuns. Novas filosofias, incluindo o marxismo, começaram a influenciar o pensamento de estudiosos, e certas tendências so­ ciais também invadiram seu domínio. Que estudioso do século 19 poderia ter imaginado que seu estudo de palavras gregas, por exemplo, seria usado para servir ao feminismo radical? Isso de fato era uma nova era, em que o estudo histórico-crítico perdeu seu monopólico acadêmico e se via competindo com uma ampla variedade de alternativas.

9 A CRÍTICA DO ANTIGO TESTAMENTO DEPOIS DE WELLHAUSEN O período e o tema A crítica do século 20 se distinguiu pelo importante lugar que concedeu à ar­ queologia. Antes de 1900, a arqueologia tinha sido uma arma usada contra as teorias de críticos radicais, mas ela não havia sido integrada em uma interpre­ tação coerente do Antigo Testamento. Para estudiosos treinados na tradição de De W ette, esse não era o caso. Eles acreditavam que Israel havia desenvolvido sua particularidade religiosa em um estágio relativamente tardio e que os regis­ tros documentários tinham pouco valor histórico antes de 800 a.C. Uma vez que se estabeleceu uma relação entre descobertas arqueológicas e o estudo do Antigo Testamento, esse retrato mudou radicalmente. Em 1902, Friedrich Delitzsch fez um célebre discurso em que afirmou que grande parte do material no Pentateuco tinha paralelos literários em documentos babilônios que remontavam a 2000 a.C. e até antes. Ele concluiu que os israelitas tinham emprestado material cultuai dos babilônios em um estágio muito primitivo, uma asserção que era anátema para muitos estudiosos, incluindo Wellhausen, que insistiu em que a religião da Bíblia era um desenvolvimento único. O resultado foi uma controvérsia “Bíblia-Babel” que continuou durante cerca de 20 anos, até que se reconheceu que embora Delitzsch tivesse exagerado sua defesa, suas afirmações básicas sobre a datação estavam corretas. O representante mais importante desse novo modo de pensar foi Hermann Gunkel. Gunkel havia publicado suas pesquisas sobre o tema já em 1901, mas por causa da oposição de W ellhausen, suas teorias foram amplamente ignoradas. Gunkel se associou com a escola da “história das religiões” em Gõttingen e aplicou seus métodos ao Antigo Testamento. Ele concluiu que a hipótese docu­ mentária, embora fosse fundamentalmente sólida como uma análise do presente estado do texto, era inadequada como uma teoria das origens do Pentateuco. Gunkel acreditava que cada um dos quatro documentos tinha uma pré-história

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que se estendia para trás muitos séculos, em uma antiga tradição oral que refletia fielmente muitas das condições da Babilônia em cerca de 2000 a.C. Isso, por sua vez, conferiu plausibilidade à afirmação de Israel de que seus patriarcas haviam migrado dali aproximadamente nessa época. M ais pesquisa arqueológica revelou uma sociedade “patriarcal” em que era possível considerar Abraão, Isaque e Jacó como figuras históricas genuínas. Era necessário reescrever completamente a história primitiva de Israel, levando em consideração a civilização e as tradições literárias da Babilônia, que incluíam histórias da criação e do dilúvio semelhantes às encontradas em Gênesis. Era certamente verdadeiro que os israelitas haviam modificado essas histórias para se adequarem à história de Yahweh, mas o padrão básico tinha uma linhagem inconfundivelmente babilônica e muito antiga. O trabalho de Gunkel foi complementado pelo de Albrecht A lt e M artin Noth, ambos conduzindo extensa pesquisa das origens de Israel na Palestina, e eles concluíram que foi sob a hegemonia egípcia que os hebreus estabeleceram suas primeiras comunidades. De acordo com eles, os israelitas primitivos esta­ vam unidos como uma confederação tribal, ligada por santuários religiosos. Esse padrão, conhecido como “anfictionia”, tinha paralelos na Grécia e Itália, bem como entre os filisteus. Descobertas no Egito ainda revelaram que grande parte da literatura sapiencial de Israel tinha paralelos ali e provavelmente tinha rela­ ção com fontes egípcias. Até mesmo o monoteísmo israelita tinha um paralelo egípcio no culto estranho e efêmero de Aquenáton. A lt e Noth, junto com diversos colegas, também conseguiram demonstrar que os livros históricos do Antigo Testamento eram um relato fidedigno de acontecimentos desde a época de Davi. A “narrativa de sucessão” em 2Samuel 9—20 foi considerada um relato de testemunha ocular, e os livros bíblicos de Josué a 2Reis passaram a ser classificados como a “história deuteronômica” (1943), por causa de suas fortes ligações com o último livro do Pentateuco. O resultado geral disso foi que Israel foi firmemente situado em seu con­ texto do Oriente Próximo. Mostrou-se que o Egito e a Mesopotâmia haviam tido ligações muito mais fortes com a Palestina do que se havia imaginado an­ teriormente, e era possível esclarecer, se não explicar inteiramente, grande parte do Antigo Testamento pelo recurso a essas fontes. O resultado foi um retrato das origens israelitas diametralmente oposto àquele fornecido por W ellhausen e seus colegas em dois pontos cruciais. 1. Mostrou-se que os relatos do Antigo Testamento eram muito mais anti­ gos e historicamente fidedignos do que W ellhausen havia imaginado. Mesmo

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que não se pudesse provar que documentos-fonte existiram antes da época da monarquia de Israel, era evidente que uma série de tradições, muitas delas certamente orais, haviam preservado a memória de uma época muito anterior. Portanto, não era mais possível pressupor que esses textos representavam so­ mente condições sociais e religiosas da época em que foram reunidos em sua presente forma. 2. Mostrou-se que a religião israelita era muito menos singular do que se havia pensado anteriormente. Ela não era a criação de uma casta sacerdotal em Jerusalém, trabalhando antes, durante e logo depois do Exílio, mas o produ­ to de um longo período de desenvolvimento e empréstimo de muitas fontes. Inicialmente, isso causou considerável inquietação nas igrejas, por causa da suspeita de sincretismo, mas pesquisas adicionais logo demonstraram que Israel não havia somente emprestado de outras religiões; ele havia transformado o material em algo que podia existir somente no contexto de um javismo maduro. Em especial, os estudiosos começaram a reavaliar o papel dos profetas. Agora havia o consenso de que eles eram os reais criadores e mantenedores do javismo, que garantiram a singularidade de Israel em seu contexto cultural e histórico. M ais um desenvolvimento importante desse período foi a extensão da pesquisa crítica aos salmos. Os estudiosos do século 19 haviam reconhecido que era quase impossível datá-los, e, assim, eles em grande medida foram ignorados. Um ou dois estudiosos haviam tentado situá-los de modo muito tardio, até mesmo tão tardio quanto a época de Jesus. Aqui as pesquisas de Gunkel forneceram um novo começo. Trabalhando a partir de princípios de crítica literária, Gunkel conseguiu classificar os salmos de um modo que fazia sentido e permitia que fossem integrados à vida religiosa de Israel em um estágio muito anterior de seu desenvolvimento histórico. Em especial, a associação tradicional de muitos dos salmos com Davi veio a parecer menos improvável do que havia parecido na época de Wellhausen. A impressão geral deixada pelo estudo crítico do Antigo Testamento desse período é que Israel era uma parte plenamente integrada da cultura do Oriente M édio e que ele podia traçar suas raízes históricas até a Babilônia em cerca de 2000 a.C., como Gênesis afirmava. Sua religião tinha ligações com cultos vizinhos, mas manteve uma distinção que cresceu ao longo do tempo e, no fim do Exílio, havia se tornado absoluta. A importância da arqueologia e da tradição literária e oral foi plenamente aceita, de um modo que modificou profundamente o retrato liberal comum de uma geração antes. No entanto, a análise básica de W ellhausen das diferentes fontes continuou sendo reconhecida e forneceu uma estrutura básica em que esses novos desenvolvimentos foram integrados.

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Os intérpretes e sua obra Os precursores de uma nova abordagem Edward BurnettTylor (1832-1917). Antropólogo inglês, fez um estudo especial do “animismo”, que ele definiu como fé nos espíritos dos mortos, sua adoração e contato com eles. Escreveu diversas obras antropológicas nos anos 1865-1881, que foram muitas vezes reimpressas e traduzidas na Alemanha, onde tiveram considerável impacto na escola da “história das religiões”. Tyler acreditava que o Antigo Testamento era o exemplo clássico do desenvolvimento do animismo para uma religião monoteísta sofisticada. Emile Durkheim (1858-1917) e M ax W eber (1864-1920). Trabalhando separadamente, mas de modos semelhantes, Durkheim e W eber afirmaram que a religião era uma função social que fornecia coesão em sociedades primitivas. O conceito de “santo” era uma projeção de valores da comunidade que precisavam ser mantidos a fim de que ela permanecesse unida. W eber foi o fundador de uma sociologia particularmente religiosa. Ele reinterpretou a história de Israel defendendo que havia começado como uma confederação de tribos, em que Yahweh era a divindade de ligação. Os profetas acabaram teologizando a lei tribal original, a fim de lhe conferir autoridade suprema sobre esse agrupamento de tribos. Na opinião de Weber, o Exílio foi uma crise social crucial, que levou Israel a uma nova compreensão de si mesmo, em que judeus vieram a ser consi­ derados como párias e peregrinos no mundo. W ilhelm W undt (1832-1920). Contemporâneo mais novo de Wellhausen, representou um novo espírito na pesquisa crítica. O principal interesse de W undt era definir a natureza da profecia israelita, e ele examinou a relação entre pronunciamentos proféticos e psicologia pessoal. Sua conclusão foi que os profetas se distinguiam amplamente pelo modo com que manifestavam uma in­ teração entre “visão” e “realidade”. Sua obra principal, intitulada Vólkerpsychologie [Psicologia dos povos], foi publicada em 1906. A lbert Eichhorn (1856-1926). Foi pioneiro em relacionar com o Antigo Testamento as ideias da escola da “história das religiões”. Eichhorn defendeu que não era suficiente rastrear o material fonte à sua origem; também era preciso explicar o desenvolvimento das tradições ao longo do tempo. Ele tinha interesse especial na história das ideias e desenvolveu sua abordagem em uma famosa disputa pública (1886). Jam es George Frazer (1854-1941). Foi um arqueólogo amador e crítico literário britânico, cuja obra The gold en bough [O arco de ouro] (1890) ainda

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é famosa pelo modo com que desenvolveu a abordagem folclórica da religião, usando animismo, mágica, fetichismo, maná e tabu como conceitos simbólicos. Hoje se considera a obra de Frazer como pseudoantropologia, com pouco valor científico, embora seu significado literário tenha sido considerável. Ele aplicou suas teorias ao Antigo Testamento em Folklore in the O ld T estam ent [Folclore no Antigo Testamento] (1918).

Gunkel e seus seguidores na Alemanha H erm ann G unkel (1862-1932). Inicialmente um estudioso do Novo Testa­ mento (veja p. 340), depois de 1900 concentrou sua atenção no Antigo Testamento. Em 1901, produziu um comentário de Gênesis, mas atualmente é lembrado sobretudo por sua obra pioneira sobre os salmos (1933), em que expôs suas teorias crítico-literárias. Gunkel não conseguiu realizar grande avanço com suas ideias enquanto W ellhausen estava vivo, mas após 1918 ele foi amplamente reconhecido como uma nova voz original no estudo do Novo Testamento. Em relação ao método crítico, ele abriu diversos novos caminhos que continuaram a se mostrar proveitosos para pesquisadores. Gunkel acreditava que era essencial examinar o conceito de gênero (G attung) para compreender como o Antigo Testamento havia sido construído. Em sua opinião, os israelitas estavam unidos a formas culturais herdadas de povos vizinhos, que eles subsequentemente usaram para expressar sua convicção de que Yahweh havia se revelado de forma singular a eles. Ele acreditava que era possível explicar as lendas primitivas de Gênesis como “saga” e que era possível classificar os salmos de acordo com certos tipos. Também afirmou que a exegese era uma arte, e não uma ciência, e que era necessário compreender o espírito que havia motivado os autores originais. O espírito não tinha nada em comum com as doutrinas do cristianismo; ele era uma piedade prática fortemente relacionada às exigências da vida cotidiana. Em contraste acentuado com Wellhausen, Gunkel acreditava que as tradições do Pentateuco refletiam vários estágios muito antigos no desenvolvimento de Israel. Em sua opinião, era necessário dissecar os “documentos” que Wellhausen havia isolado para encontrar seu verdadeiro contexto histórico, que ele chamou de Sitz im L eben (“contexto vital”). Esse conceito se tornaria extremamente im ­ portante na pesquisa subsequente. Justus Kõberle (1871-1908). Esse brilhante teólogo morreu jovem e não teve oportunidade de causar um impacto importante nos estudos bíblicos. Ele, no

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entanto, mostrou o caminho para um novo desenvolvimento da história da salva­ ção. Ele acreditava que o papel de Deus na história havia sido ignorado no estudo do século 19, que era muito centrado no homem. Em sua opinião, a singularidade da religião de Israel não era a fé do povo (como Gunkel afirmou), mas o fato de que Deus havia se revelado a eles. As convicções de Kõberle tiveram pouca influência na época em que foram publicadas, mas se tornaram mais significati­ vas com o início da neo-ortodoxia após 1918. Suas obras principais trataram de pecado e graça na religião de Israel (1905) e na história da salvação (1906). Hugo Gressmann (1877-1927). Amigo próximo de Gunkel e, como este, seguidor dos novos métodos de pesquisa apresentados pela escola da “história das religiões”. Ele acreditava que os métodos críticos de Gunkel precisavam de mais refinamento e propôs escrever uma história dos gêneros literários com que Gunkel havia se identificado. Gressmann insistiu na necessidade de estudar cuidadosamente o conteúdo, bem como a forma, e que a singularidade religiosa de Israel poderia e deveria remontar a um período primitivo. Ele também era a favor de usar as percepções da sociologia religiosa como expostas por Weber. Albrecht A lt (1883-1956). Professor de Antigo Testamento em Basel (1914) e depois em Leipzig (1922), seu nome está ligado ao “método histórico-geográfico”, que ele usou para investigar a terra da Palestina e suas fortes relações culturais com o Egito. Ele tentou enraizar as teorias de Gunkel em um contexto palestino que correspondia às suas teorias sobre o desenvolvimento histórico de Israel. Entre outras coisas, sugeriu que havia uma cerimônia de renovação da aliança a cada sete anos e que diversos salmos haviam sido originalmente redigidos em conexão com isso. Ele também é conhecido por um importante estudo da lei israelita (1934). M artin Noth (1902-1968). Noth foi pupilo de A lt e, mais tarde, professor em Kõnigsberg (1930) e Bonn (1968). Ele realizou avanços muito importantes na pesquisa “da história das religiões” iniciada originalmente por Gunkel. Sua primeira obra de grande importância foi um comentário de Josué (1938). Em 1943, ele sugeriu que a estrutura tribal de Israel era comparável às anfictionias gregas e que ela era uma confederação tribal reunida em torno da arca da alian­ ça. Em 1948, escreveu uma história das tradições do Pentateuco, baseada nessa teoria, e mais tarde produziu comentários de Exodo (1959), Levítico (1962) e Números (1966). Gerhard von Rad (1901-1971). Foi mais um pupilo de A lt e lecionou em Jena (1934), Góttingen (1945) e Heidelberg (1949). Em 1938, publicou um livro sobre o problema da crítica da forma do Hexateuco, que abriu o caminho

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para o desenvolvimento da crítica da redação. O principal interesse de von Rad era explicar como se haviam reunido as várias tradições por trás do Pentateuco e em torno de quais princípios. Ele expôs os pontos fracos de Gunkel em aspectos já indicados por Gressmann e defendeu que o desenvolvimento de tradições era mais importante para a hermenêutica que sua origem. Von Rad acreditava que a fé de Israel era o fator determinante na seleção de material tradicional para a inclusão no cânon. Isso resultou em um tipo de credo, expresso na forma de saga. Seguindo a iniciativa de Kõberle, von Rad afirmou que todo o cânon era história da salvação (H eilsgeschichte) e que era futil tentar compreendê-lo de qualquer outro modo. Otto Eissfeldt (1887-1973). Pupilo tanto de W ellhausen como de Gunkel, lecionou Antigo Testamento em Halle de 1921 a 1957. Tentou reunir os frutos da pesquisa de seus professores em uma sinopse do Hexateuco e tinha cons­ ciência da necessidade de integrar a crítica literária em uma coerente história de gêneros. Sua obra mais conhecida foi uma introdução ao Antigo Testamento (1934; TI 1965).

Outros estudiosos alemães W alther Eichrodt (1890-1978). Professor em Basiléia a partir de 1922, Eichrodt reagiu contra a abordagem de Gunkel do Antigo Testamento. Concentrou sua atenção na aliança como princípio teológico central em torno do qual se havia redigido o Antigo Testamento. Seu principal interesse era defender a doutrina da revelação divina e explicar como Deus havia trabalhado na história de Israel. Nesse sentido, ele também foi um herdeiro do manto de Kõberle. W alterZ im m erli (1907-1983). Zimmerli foi professor de AntigoTestamento em Gõttingen a partir de 1951 e escreveu comentários de Eclesiastes (1962) e Ezequiel (1969), bem como um esboço de teologia do Antigo Testamento (1972). Ele também acreditava que era importante reunir o material do Antigo Testamento em um todo teológico coerente e tentou fazê-lo isolando temas comuns no texto como um todo, isto é, a terra, o sacerdócio e a monarquia, os quais eram vistos como dádivas de Deus para a nação. Como crítico textual, ele extraiu conclusões radicais. Em especial, tentou mostrar como Ezequiel era uma obra mista reunida muito tempo depois da morte do profeta e somente um reflexo parcial de sua obra e vida. W ilhelm Rudolph (1891-1987). Professor em Giessen (1933) e mais tarde em M ünster (1946), foi um comentarista prolífico e escreveu sobre Números

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(1934),Jeremias (1935), Lamentações (1938),Juizes (1947), Reis (1951) e Ester (1954). Ele se opôs fortemente às tendências antissemitas do Terceiro Reich, mas conseguiu manter os estudos do Antigo Testamento em evidência e livres de pressões ideológicas durante essa época. Assim como Eichrodt, foi um forte crítico do método da “história da tradição” de Gunkel e seus seguidores, cuja abordagem da data ele considerava demasiadamente esquemática. Claus W esterm ann (1909-2000). Lecionou em Berlin (1949) e mais tarde em Heidelberg (1958). Seu principal campo de estudo foi nos profetas e em Gênesis, sobre o qual ele escreveu um comentário de grande importância (19741982). Sua abordagem geral é semelhante à de A lt e Noth. Georg Fohrer (1915-2002). Seguidor de Eissfeldt em linhas gerais, cri­ ticou as tentativas de impor a abordagem da “história das tradições” à critica do Pentateuco além dos limites que os textos comportam. É autor de um im ­ portante livro, E struturas teológicas do A ntigo T estam ento (1972), em que sua intenção principal foi demonstrar que o mundo intelectual do antigo Israel era distinto do mundo intelectual dos povos vizinhos e que ele preparou o caminho para o surgimento do cristianismo, com sua desmitologização da religião e seu conceito de um Deus pessoal. H ans-Joachim Kraus (1918-2000). Professor de Antigo Testamento em Gõttingen (1968) e pupilo de von Rad e Noth, é mais lembrado hoje por sua magistral história da crítica do Antigo Testamento (1956), agora em sua terceira edição (1982), e por um comentário de Salmos (1961).

Os escandinavos Johannes Pedersen (1883-1977). Professor de filologia semítica em Copenhague (1916-1950), foi profundamente influenciado por teorias antropológicas con­ temporâneas. Em sua história de Israel de quatro volumes (1920, 1934), ele desenvolveu teorias psicológicas e antropológicas de um modo que parecia ir contra o retrato geral do desenvolvimento de Israel anteriormente esboçado por Wellhausen. Foi influenciado principalmente pela ideia de que o Pentateuco pode refletir o culto de Israel e interpretou Êxodo 1— 15 como uma liturgia de Páscoa, proposta refutada por G. Fohrer. Aage Bentzen (1894-1953). Professor de Antigo Testamento em Copenhague, estudou sob a orientação de Pedersen. Sua abordagem ao Antigo Testamento deu continuidade à tradição cultuai, e suas obras principais foram um comentário de Daniel (1953) e uma introdução ao Antigo Testamento (1941).

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Ivan Engnell (1907-1964). De nacionalidade sueca, foi estudioso do Antigo Testamento e escreveu uma detalhada refutação de Wellhausen, usando a críti­ ca da história e da tradição emprestada de Noth. Rejeitou a ideia de que havia documentos extensos por trás de Gênesis—Números e considerava “P”como pra­ ticamente o autor do texto como agora o temos. Engnell demonstrou com êxito diversos pontos fracos da teoria de Wellhausen, mas não conseguiu derrubá-la. Sua obra principal sobre o Antigo Testamento foi publicada em sueco em 1945. Sigm und M owinckcl (1884-1965). Pupilo de Gunkel, lecionou em Oslo a partir de 1922. Escreveu diversas obras, sobre Jeremias (1914), Isaías (1921 e 1925), sobre os Dez Mandamentos (1927) e sobre profecia (1946). No entanto, é reconhecido sobretudo por sua obra sobre Salmos (1921-1924 e 1951), em que tratou das teorias de Gunkel e formulou uma teoria ampla e bem desen­ volvida das origens litúrgicas supostamente por trás dos salmos. Agora a sua obra é considerada um clássico de seu tipo, embora a maioria de suas conclusões tenham sido questionadas por outros eruditos.

O mundo defala inglesa H enry W heeler Robinson (1872-1945). Lecionou na Rawdon Baptist College (1906) e depois foi diretor da Regents Park College de 1920 até sua morte. Adotou métodos e ideias críticas, mas permaneceu firme na estrutura tradicional da teologia e piedade batistas. Sua influência sobre as gerações mais novas foi imensa e continuou durante muito tempo depois de sua morte. Entre suas obras estão The religiou s ideias o f the O ld T estam ent [As ideias religiosas do Antigo Testamento] (1913), The O ld Testament, its m aking a n d m ea n in g [O Antigo Testamento, sua composição e significado] (1937) e Inspiration a n d revela tion in the O ld T estam ent [Inspiração e revelação no Antigo Testamento] (1946). Em 1935, fez duas preleções sobre o tema da “personalidade corporativa”, um artifí­ cio que ele usou para tentar explicar as mudanças súbitas de singular para plural, em especial nos salmos. Essas preleções foram publicadas juntas como C orporate p erson a lity in a n cien t Isra el [Personalidade corporativa no Antigo Israel] (1964) e estimularam um debate a respeito da percepção hebraica da pessoalidade hu­ mana. Robinson sugeriu que a nação de Israel podia projetar a si mesma como um só indivíduo, uma ideia que encontraria seu cumprimento na identificação de Jesus Cristo com o povo judeu. Essa visão já não é amplamente aceita, mas é possível encontrar muitos de seus traços, principalmente nos escritos de estu­ diosos instruídos no período entreguerras.

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Jam es A lan M ontgom ery (1866-1949). Lecionou na Philadelphia Divinity School (1906-1935) e foi editor do J o u rn a l o f B ib lica l L iterature (1909-1913). Escreveu comentários de Daniel (1927) e de 1 e 2Reis (1951).Talvez sua contri­ buição mais permanente para o estudo erudito tenha sido seu reconhecimento e apoio a estudiosos mais novos, em especial a W . F. Albright. WiHiam Oscar Emil O esterley (1866-1950). Professor de hebraico e exe­ gese do Antigo Testamento na Kings College, Londres (1926-1936), foi autor prolífico de muitas obras-padrão, incluindo The evolu tion o f the m essianic idea [A evolução da ideia messiânica] (1908), The religion a n d w orship o f the syn a gog u e [A religião e adoração da sinagoga] (1911), The books o f the A pocrypha [Os livros Apócrifos] (1914), Studies in Isaiah 40—66 [Estudos em Isaías 40—66] (1916), H ebrew religion [Religião dos hebreus] (1930), A h istory o f Isra el [Uma história de Israel] (1932) &An introdu ction to the books o f the O ld T estam ent [Uma introdução aos livros do Antigo Testamento] (1934). As duas últimas obras fo­ ram escritas junto com T. H. Robinson (veja abaixo). A fluência de estilo de Oesterley e sua capacidade de sintetizar dados complexos tornaram suas obras um tipo de fonte canônica para a interpretação liberal do Antigo Testamento na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos de meados do século 20. Leonard Elliott Elliott-Binns (1885-1963). Clérigo anglicano ordenado em 1915, escreveu From M oses to Elisha [De Moisés até Eliseu] (1929), The J ew ish p eop le a n d th eir fa it h [O povo judeu e sua fé] (1929) e comentários de Números (1927) e Jeremias (1919). Sua obra representa uma típica síntese de estudo liberal contemporâneo do Antigo Testamento. Theodore H enry Robinson (1882-1964). Lecionou na University College, CardifF (1915-1944), e foi um dos principais fundadores da Society for Old Testament Study (SOTS).Tornou-se conhecido em virtude de sua ligação com W . O. E. Oesterley (veja acima), mas também escreveu diversas obras indepen­ dentes. Entre elas estavam P rophecy a n d the p roph ets in a n cien t Israel [Profecia e os profetas no antigo Israel] (1923), The p o etr y o f th e O ld T estam ent [A poesia do Antigo Testamento] (1947 ),Job a n d h isfrien d s [Jó e seus amigos] (1954) e comentários de Amós (1923), M ateus (1928) e Hebreus (1933). Harold H enry Rowley (1890-1969). Professor de idioma e literatura he­ braicos em Manchester (1949-1959), escreveu diversas obras significativas, incluindo The A ram aic o fth e O ld T estam ent [O aramaico do Antigo Testamento] (1929), D arius the M ede [Dario, o M edo] (1935), The releva n ce o f A pocalyptic [A relevância da literatura apocalíptica] (1944), The m issionary m essage o f the O ld T estam ent [A mensagem missionária do Antigo Testamento] (1945), The

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red iscovery o f the O ld T estam ent [A redescoberta do Antigo Testamento] (1946) e The O ld T estam ent a n d m od em study [Antigo Testamento e o estudo moderno] (1951). Ele seguiu as principais linhas da ortodoxia liberal de sua época, mas sua obra se distinguiu pela cuidadosa exegese e comparação do material com outras fontes do Oriente Próximo. Godfrey Rolles Driver (1892-1975). Professor de filologia semítica em Oxford (1938-1962), era filho de S. R. Driver. Escreveu extensamente sobre o contexto do Antigo Testamento, incluindo P roblem s o f the H ebrew v erb a l system [Problemas do sistema verbal hebraico] (1936), S em itic w r itin g [Escrita semí­ tica] (1948),A ram aic docum ents o f the fifth cen tu ry B C [Documentos aramaicos do quinto século a.C .] (1955) e C anaanite m yths a n d legen ds [Lendas e mitos cananeus] (1956). H enry Snyder Gehman (1888-1981). Lecionou em Princeton após sua re­ organização segundo uma perspectiva liberal em 1929 e é mais conhecido como editor do W estminster D iction ary o f the B ible [Dicionário bíblico de Westminster] (1944,1970). M itchell Joseph Dahood (1922-1982). Esse grande estudioso católico ro­ mano do Antigo Testamento se especializou em questões de filologia. Escreveu P roverb s a n d N orthw est S em itic p h ilo lo gy [Provérbios e a filologia semítica do Noroeste] (1963), U garitic a n d the Old T estam ent [Ugarítico e o Antigo Testamento] (1968) e um comentário de Salmos (1966-1970). John G ray (1913-2000). Professor de hebraico em Aberdeen (19611980), escreveu extensamente sobre diversos temas do Antigo Testamento, da arqueologia à teologia. Suas principais obras incluem The legacy o f Canaan: the R as Shamra texts [O legado de Canaã: os textos de Ras Shamra] (1957, 1965), A rchaeology a n d the O ld T estam ent [Arquelogia e o Antigo Testamento] (1962), The C anaanites [Os cananeus] (1964), A history ofjeru sa lem [História de Jerusalém] (1969) e The biblical doctrine o fth e reign o f God [A doutrina bíblica do reino de Deus] (1979), bem como comentários de Josué, Juizes e Rute (1967) e de 1 e 2Reis (1970).

Os arqueólogos anglo-americanos e seus seguidores O desenvolvimento da arqueologia na Palestina e no Oriente M édio foi o fruto da cooperação internacional em vasta escala entre 1890 e 1945, mas sem dúvida alguma o lugar de honra pertence aos estudiosos de fala inglesa, que muitas vezes eram motivados por um desejo de “redescobrir” a Bíblia em seu contexto

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original. O conservadorismo geral do mundo de fala inglesa e o interesse público comum em pesquisa arqueológica (que parecia ser suficientemente “objetiva” para superar barreiras denominacionais) serviram para equipar e financiar duas gerações de estudiosos, antes de a comunidade acadêmica maior os aceitar. Na história da interpretação bíblica, é impossível fazer justiça a todos esses homens e mulheres, e somente podemos incluir aqueles cuja obra demonstrou ser a mais proveitosa para estudos acadêmicos como tais. No entanto, é necessário lembrar que isso foi um empreendimento de grande importância, apoiado pelas igrejas e profundamente influente no estudo do Antigo Testamento do mundo de fala inglesa em todos os níveis.

A Palestina antes de 1 9 4 5 O s arqueólogos principais desse p erío d o fo ra m S ir F l i n d e r s P e t r i e ( 1 8 5 3 1 9 4 2 ) , A r c h i b a l d H e n r y S a y c e ( 1 8 4 5 - 1 9 3 3 ) , S k J o h n G ar stan g ( 1 8 7 6 -1 9 5 6 ) , W i l l i a m F o x w e l l A l b r i g h t ( 1 8 9 1 - 1 9 7 1 ) e N elson G

lu e c k

(19 0 1-19 7 1).

P etrie fo i o p rim eiro escavador sistem ático de u m sítio palestino, que ele acre­ ditava te r sido a an tiga L aquis, m as que em v e z disso agora é considerado com o E g lom . Sayce fo i u m dos p rim eiros p ro m o to res da ideia de que a arqueologia h avia desaprovado as teorias críticas de W e llh a u se n e seus colegas, visão que ele apresentou com grande vig o r em T h e h i g h e r c r i t i c i s m a n d t h e v e r d i c t o f t h e m o n u m e n t s [ A alta crítica e o vered ito dos m on u m en tos] (1 9 8 4 ). A o s olh os de seus

críticos, Sayce não p ro vo u sua posição, com o S.

R. D riv e r não hesitou em m ostrar,

m as sua o b ra estabeleceu as lin h as gerais de conflitos e desen volvim entos futuros.

Sir John Garstang foi o primeiro diretor do departamento de Antiguidades Palestinas (1920-1926) e sob sua supervisão se estabeleceram as principais dire­ trizes da exploração palestina. M ais tarde ele conduziu uma série de escavações em Jericó (1930-1936) muito divulgadas, e como resultado, afirmou que os israe­ litas haviam destruído a cidade em cerca de 1400 a.C ., cerca de 200 anos antes do que geralmente se havia pensado. W . F. Albright passou a maioria dos anos entreguerras na Palestina e deu o tom do estudo americano durante uma geração. Tendo começado com uma mente relativamente aberta em relação à crítica bíblica, Albright se tornou mais conservador com o passar do tempo. Era sensível às ambigüidades muitas vezes encontradas nos textos bíblicos, mas as considerava essencialmente fidedignas e as usou como guia para sua pesquisa arqueológica. Seu apoio ao estabele­ cimento do estado de Israel em 1948 lhe conferiu uma posição privilegiada

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na nova ordem, e ele foi extremamente influente entre a primeira geração de arqueólogos israelenses. Também atacou os defensores da alta crítica, dando continuidade ao trabalho de Sayce. Entre suas muitas obras, The archaeology o f P alestine a n d the B ible [A arqueologia da Palestina e a Bíblia] (1932) e From StoneA ge to C hristianity: m onotheism a n d the historicalprocess [Da Idade da Pedra até o cristianismo: o monoteísmo e o processo histórico] (1940) se consolidaram como clássicos. Perto do fim da vida, publicou Yahweh a n d the god s o f Canaan [Yahweh e os deuses de Canaã] (1968), um estudo conservador de ideias reli­ giosas do Antigo Testamento à luz de evidências arqueológicas. Nelson Glueck foi um dos primeiros estudiosos judeus a desenvolver um pro­ fundo interesse pela arqueologia palestina e se especializou nas nações do deserto vizinho: Amom, Moabe e Edom. Fez muitas viagens entre 1932 e 1947 e foi pioneiro nessas áreas. Seus dois livros, The other side o f the Jordan [O outro lado do Jordão] (1940) e The Jordan riv er [O rio Jordão] (1946), são defesas clássicas da visão conservadora de datas bíblicas estabelecidas por Garstang e Albright.

O Egisto e a Mesopotâmia antes de 1 9 4 5 O egip tó lo g o p rin c ip a l d a época, fora S ir F lin d ers P etrie, que com eçou ali, foi o am erican o J a m e s H e n r y B r e a s t e d (1865-1935). A eg iptologia havia sido u m a disciplina p ró sp era desd e a ép o ca de N ap o leão, cujas tro p as tin h a m descoberto a P ed ra de R o seta (1799), p e rm itin d o que estudiosos decifrassem os hieróglifos. B reasted lig o u a eg ip to lo g ia ao o rien te m a io r e co n trib u iu b a stan te p a ra a visão de que Israel havia se in sp irad o e x ten sam en te n a civilização egípcia clássica. E m

The d a w n o f conscience [O alvorecer d a consciência] (1933), ele ta m b é m m o stro u haver u m a fo rte ligação en tre o livro de P rovérbios e o T eaching o f A m en -em -ope [E n sin o de A m e n -e m -o p e ] egípcio, que p o d e te r sido até m esm o m il anos m ais antigo. E ssa d esco b erta im p ô s aos estudiosos a com preensão de que a m o rali­ dad e de Israel não havia se desenvolvido le n ta m e n te ao lo n g o do tem p o , m as prov av elm en te havia sido im p o rta d a d o m u n d o vizinho. M a is u m im p o rta n te egip tó lo g o d o p e río d o fo i G e o r g e R e i s n e r (1867-1942), que estabeleceu os m ais elevados critério s de investigação possíveis e d e m o stro u seu uso em seu tra b a lh o em S am aria (1908-1910).

Na Mesopotâmia, o papel principal foi desempenhado por H e n r y L a y a r d (1817-1894), cujas escavações em Ninrude e Nínive desenterraram um enorme número de tábuas cuneiformes que ainda permanecem uma das mais impor­ tantes fontes para os arqueólogos bíblicos, além da própria Bíblia. Seu trabalho

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pioneiro foi continuado por S ir C h a r l e s L e o n a r d W o o l l e y (1880-1960), cujas muito divulgadas escavações de Ur dos caldeus produziram notáveis evi­ dências a favor do dilúvio bíblico (1929).

Após 1 9 4 5 O período desde a Segunda Guerra M undial assistiu a um vasto desenvolvi­ mento da arqueologia bíblica, em que o campo é menos dominado por anglo-americanos do que era o caso antes da guerra. No entanto, alguns nomes muito significativos fizeram uma importante contribuição para o tema, tanto na Palestina como em outros lugares no Oriente Médio. O lugar de honra precisa ir para G eo rge E r n e st W r ig h t (1909-1974), o pupilo e herdeiro de Albright. W right fundou o The B ib lica l A rchaeologist [O Arqueólogo Bíblico] em 1938, que continua sendo o principal periódico nessa área, com um público amplo, tanto o popular quanto o acadêmico. De 1959 até sua morte, a influência de W right na arqueologia americana foi extremamente abrangente, e ele dirigiu ou encorajou diversas novas escavações, notavelmente em Gezer (1964-1971). De igual importância foi o trabalho de K a t h l e e n K enyon (1906-1978), cujas escavações principais em Jericó e Jerusalém derrubaram muitas conclu­ sões anteriores e reabriram questões como o saque de Jericó de Josué. M ais um importante arqueólogo do período foi J o se p h C a l l a w a y (1920-1988), que alcançou resultados notáveis em A i (1972,1980). Trabalho adicional de grande significado foi realizado por J a m e s L eon K e lso (1892-1978) e P a u l L a p p (1930-1970). Kelso escavou Betei (19541960) e Lapp continuou o trabalho de Glueck na Jordânia. Não fosse sua morte precoce, é provável que ele teria assumido o lugar de Albright e W right no tempo devido. Seu trabalho nos limites da antiga Palestina foi complementado pelo do estudioso britânico C r y s t a l B e n n e t t (1918-1987), que realizou uma grande contribuição para nosso conhecimento de Edom e dos edomitas. M ais um proeminente americano, embora não nos moldes de Albright, foi J a m e s B e n n e t t P r it c h a r d (1909-1997), que escavou Gibeão (1956-1962) e escre­ veu extensamente sobre o tema da arqueologia do Antigo Testamento. Os frutos da pesquisa anglo-americana foram apresentados ao mundo de fala inglesa na famosa H istória de Israel do pupilo de Albright, J ohn B r ig h t (1908-1995), publicada em três diferentes edições (1960, 1972, 1980). Em sua obra, Bright escreveu a história de Israel de uma perspectiva bastante

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conservadora, sobretudo nos primeiros períodos. Em contraste acentuado com W ellhausen e sua escola, foi o período pós-exílico que Bright considerou o mais difícil de analisar historicamente. Na terceira edição de sua obra, no entanto, ele aceitou que a visão de Albright das origens de Israel havia sido questionada pela pesquisa mais recente. Bright também escreveu um importante estudo, The a u thority o f the O ld T estam ent [A autoridade do Antigo Testamento] (1967), que tratou do uso do texto na igreja cristã e dos modos possíveis de pregá-lo hoje. Como também ocorre em sua outra obra, essa é uma introdução essencialmente conservadora ao tema. M a is u m estudioso am erican o que co n trib u iu m u ito para p o p u larizar as des­ cobertas arqueológicas é B e r n h a r d W o r d A n d e r s o n (1916-2007). Professor de T eologia d o A n tig o T e sta m e n to em P rin c e to n a p a rtir de 1968, escreveu d i­ versas obras, in clu in d o The liv in g w o rld o f the O ld T estam ent [O m u n d o vivo do A n tig o T estam en to ] (1957), The Old T estam ent a n d Christian fa it h [O A n tig o T e sta m e n to e fé cristã] (1963) e C reation versus chaos [C riação versus caos] (1967). U m pouco m en o s conserv ad o r do que B rig h t, ele no e n ta n to foi p ro fu n d a m en te influenciado pela tradição de A lb rig h t, o que claram ente se reflete em sua obra. P o r fim , é necessário m en cio n ar D o n a l d J o h n W is e m a n (1918-2010), cuja tra ­ je tó ria n o M u se u B ritân ico (1948) e n a E scola de E stu d o s O rie n tais e A fricanos em L o n d re s (1961) co n trib u iu m u ito p a ra p ro m o v er o desenvolvim ento d a assiriologia e p a ra associá-la ao m u n d o do A n tig o T estam ento.

Outros arqueólogos O domínio de anglo-americanos no campo arqueológico não deve obscurecer a contribuição muito importante feita por arqueólogos de outras nacionalida­ des. Entre os alemães bem ativos antes da Primeira Guerra M undial, G u s t a f D a l m a n (1854-1941), que dirigiu o Instituto Alemão em Jerusalém de 1902 a 1917, precisa ocupar o lugar de honra. A pesquisa de Dalman se concentrou na vida cotidiana do povo da antiga Palestina, e ele foi o primeiro a usar esse material como evidência para fundamentar seus estudos bíblicos. Sua extensa documentação de todos os aspectos da cultura palestina começou em 1928 e ainda não foi concluída. A arqueologia francesa estava quase no mesmo nível que a britânica e em algumas áreas era bem mais avançada. Os franceses haviam sido pioneiros no estudo da egiptologia no século 19 e conduziram amplas escavações na Síria de­ pois da Primeira Guerra M undial. Trabalho pioneiro na arqueologia palestina foi

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realizado por Louis H u g u e s V in c e n t (1872-1960), que tinha uma longa asso­ ciação com a Ecole Biblique em Jerusalém e cuja obra Canaan [Canaã] (1907) era a avaliação mais ponderada do trabalho de campo realizado até então. Seu mais famoso sucessor foi R o l a n d de V a u x (1903-1971), diretor da École Biblique de 1945 a 1965 e amplamente responsável pela investigação de Qumran, a fonte dos Manuscritos do M ar Morto. Os franceses também realizaram escavações no antigo sítio de M ari no Eufrates (1933), que Albright considerava como um importante elo na cadeia que ia da Mesopotâmia até a Palestina, e acima de tudo em Ugarite (a partir de 1929), em que o idioma local, agora denominado ugarítico, demonstrou ser um dos parentes mais próximos do hebraico bíblico e uma inestimável fonte de informação lingüística relacionada ao Antigo Testamento. D e p o is de 1948, a arqueologia israelita ta m b é m se to rn o u significativa e aqui as figuras p rin cip ais fo ram Y i g a e l Y a d in (1917-1984) e Y o h a n a n A h a r o n i (1919-1976). T ra b a lh a n d o n a trad ição de A lb rig h t, eles lan çaram a base para o su b seq u en te e stu d o israelense. Y adin ficou fam oso p o r suas escavações em H a z o r n a d écad a de 1960 e início d a d écad a de 1970. A h a ro n i, que se to rn o u u m fe rre n h o rival de Y adin, é m ais le m b ra d o p o r sua fo rte ligação com a te rra de Israel e sua geografia h istó rica, q u e ele relacio n o u ao seu trab a lh o arqueológico. E le p o d e ser co m p arad o com A lt e N o th n a A le m a n h a, m as sua ab o rd ag em do A n tig o T e sta m e n to era m ais co n serv ad o ra que a deles.

As questões As questões principais para o estudo do Antigo Testamento em meados do século 20 podem ser formuladas do seguinte modo. 1. Era necessário iden tificar que tipo de literatura o A ntigo T estam ento era. Uma vez que era consenso que o Antigo Testamento havia sido juntado em dife­ rentes épocas e a partir de diversas fontes, era necessário explicar por que ele acabou adotando sua presente forma. Até que ponto ele era “literatura”, e o que essa palavra um tanto vaga significava nesse contexto específico? Era possível interpretá-lo de uma perspectiva literária, de um modo que não dependia intei­ ramente da origem histórica (ou das origens históricas)? Essa era a pergunta que estava na raiz da divergência entre Wellhausen e Gunkel, e ela se tornou cada vez mais importante com o passar do tempo. A existência de gêneros literários, cada um com sua própria tradição e história, era considerada cada vez mais como a principal pista da origem fundamental da religião israelita.

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2. Era necessário d efin ir o lu ga r apropriado da arqueologia na disciplina de estudos do A ntigo Testamento. Aqui as principais tensões eram entre aqueles con­ servadores que acreditavam que a arqueologia fornecia prova conclusiva de que os críticos radicais estavam errados e esses mesmos críticos que, inicialmente, ignoraram a arqueologia completamente e então defenderam que, por causa da diversidade de interpretações a que a evidência arqueológica estava suscetível, ela não provava nada, nem a favor de um, nem a favor do outro. A maioria dos estudiosos veio a aceitar que a evidência arqueológica era importante e, no caso de materiais escritos, era praticamente indispensável para qualquer reconstru­ ção da história israelita; contudo, os conservadores entre eles foram obrigados a admitir que eles não podiam simplesmente impor seus pontos de vista às evidências. Mesmo assim, no entanto, a arqueologia continuou sendo uma in­ fluência conservadora no estudo erudito em geral. 3. Era necessário d ecid ir a natureza da relação en tre os textos do A ntigo Testamento e a religião do A ntigo Testamento. A visão mais antiga era que a religião de Yahweh havia originado os textos, que representavam um estágio relativamente tardio do desenvolvimento de Israel. M as as pesquisas de Gunkel abriram o problema da tradição primitiva e sua relação com as religiões não israelitas (ou a dependência delas). A noção de que ao menos alguns dos textos talvez fossem mais antigos que a religião e de que essa religião pode ter adaptado escritos estranhos para seu propósito causou grande inquietação na comunidade cristã, pois colocou em questão a singularidade de Israel e a realidade da inspiração divina. Como já ha­ via ocorrido antes, parecia que um tipo de solução intermediária provavelmente surgiria com o passar do tempo. Seria admitido que Israel havia emprestado exemplos, e possivelmente até mesmo textos, de outras culturas, mas que no processo ele os havia transformado para servirem às exigências de sua própria fé religiosa. Se essa transformação havia ocorrido sob inspiração divina ou não foi uma questão teológica que continuou dividindo os que aceitavam os textos como a Palavra de Deus e os que não pensavam assim.

Os métodos de interpretação Gattungsgeschichte (crítica da forma) Esse foi o tipo de interpretação mais fortemente associado a H. Gunkel e seus seguidores. A palavra alemã significa “história do gênero”, que é uma descrição mais precisa, mas em nosso idioma o termo “crítica da forma”, que tecnicamente

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se refere a um ramo da G attungsgeschichte, foi usado para descrever esse método em geral. A crítica da forma precisa ser entendida como resposta à crítica das fontes que havia sido o alicerce de estudos bíblicos até Wellhausen. No século 19, o principal esforço crítico havia sido despendido em análise textual, que ha­ via revelado diversos níveis por trás do cânon como agora o temos. Obviamente, isso não aconteceu por acidente, e, como vimos, Wellhausen desenvolveu uma ideia muito clara do que essas fontes eram. M as ele não entendeu muito bem que os documentos escritos que ele descobriu eram criações literárias que se­ guiam suas próprias regras internas de interpretação e davam testemunho de seu próprio desenvolvimento histórico. Ao levar essas questões em consideração, Gunkel acreditava que podia fazer retroagir a história do cânon além dos estágios editoriais nos períodos posterio­ res da monarquia e do Exílio e rastrear o desenvolvimento cultural de Israel a partir de uma época bem anterior. As descobertas de antigos documentos babilônicos e egípcios semelhantes àqueles encontrados no Antigo Testamento, mas de uma data certamente muito antiga, fortaleceram a posição de Gunkel. Isso também sustentou sua afirmação de que a literatura religiosa de Israel era fun­ damentalmente semelhante à dos povos vizinhos. Ao tentar determinar datas e mudanças de registro na experiência religiosa de Israel, Gunkel concentrou sua atenção no que ele chamou de o Sitz im Leben, seu contexto social e histórico. As raízes da abordagem do Antigo Testamento segundo Gunkel estavam na religião comparada. Em sua opinião, o estudo da Bíblia pertencia ao estudo dos fenômenos religiosos em geral, e “revelação” era um conceito que os povos em to­ dos os lugares usavam para relacionar sua herança cultuai, mítica e moral a uma fonte divina. Até esse ponto, ele era um produto tardio do Romantismo religioso que havia inspirado J. G. Herder no século 18. Ao mesmo tempo, Gunkel estava preparado para reconhecer a singularidade de Israel pelo motivo de que os israelitas acreditavam que havia um só Deus que havia se revelado a eles ao longo de sua história nacional. Esse era o fator “teológico” que deu origem à fé dos israelitas em seu próprio destino peculiar. É necessário observar que esse tipo de “teologia” evita o metafísico; visto que Gunkel não acreditava que a religião tratava de especulações filosóficas abstratas, ele pensava que Israel também não estava interessado nelas! Para ele, o ensino dogmático da igreja era irrelevante; o que importava era a sabe­ doria prática necessária para viver a vida como ela era no cotidiano. Ao examinar o contexto literário do Antigo Testamento, Gunkel encontrou três áreas principais em que podia concentrar sua atenção com maior proveito. Em primeiro lugar, havia o material lendário de Gênesis. Gunkel acreditava

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que isso correspondia à categoria literária que estudiosos chamam de “saga”, em imitação dos antigos poemas nórdicos com esse nome. “Saga” teoricamente era uma forma de arte que combinava fatos históricos com uma tradição poética que se originava na profundidade da antiga tradição folclórica da nação, que havia sido preservada pela tradição oral. A criação literária resultante servia para definir a identidade da nação, conceder-lhe um senso de propósito e apontá-la para um futuro glorioso. Ao avaliar as afirmações que Gunkel fez para “saga”, é importante lembrar que ele acreditava que esse conceito existia como um gênero literário, que havia sido conscientemente empregado por aqueles que tinham criado as lendas. Isso era certamente verdadeiro a respeito dos bardos nórdicos que redigiram as sagas escandinavas clássicas, mas se era possível afirmar o mesmo a respeito de Israel era menos claro. Entre o primeiro a apontar isso estava seu amigo e colega H. Gressmann. Em uma minuciosa crítica dos métodos de Gunkel, Gressmann defendeu que as sagas eram poesia, enquanto a maior parte da composição do Pentateuco era um tipo de prosa elevada. Para alguém tão profundamente inte­ ressado na forma como Gunkel, isso deveria ter sido uma séria dificuldade, mas ele parece ter ignorado. Em segundo lugar, as sagas eram criações literárias inde­ pendentes que tinham sua própria integridade, enquanto no Antigo Testamento qualquer material semelhante à saga havia sido retrabalhado para algo diferente muito antes de ser consignado à escrita. Havia, portanto, limites distintos para o que era possível afirmar para “saga” como tradição escrita, em vez de oral, por trás do Antigo Testamento. Também havia o problema da religião, e foi aqui que Gunkel mais se equi­ vocou. M uito além de suas pressuposições unilaterais sobre o culto de Israel, não estava nem um pouco claro que as sagas nórdicas eram “religiosas” em qualquer sentido comparável ao Pentateuco. Os deuses nórdicos tinham papéis pequenos na história de grandes homens, mas dificilmente era possível dizer isso a respeito do Deus de Israel, cuja mão era o fator de direção no movimento dos patriarcas do Antigo Testamento. O próprio Gunkel reconheceu isso, por exemplo, quando aceitou que Gênesis 1 era uma história de criação babilônica que tinha sido desmitologizada por um autor sacerdotal, que havia tornado o Deus de Israel o único criador supremo. A relação entre o divino e o humano na literatura de Israel era tão diferente de qualquer coisa encontrada na “saga” que esse gênero não era uma categorial útil para interpretar Gênesis 1— 11. A segunda área de interesse de Gunkel era a literatura profética. Ele estava convicto de que a profecia era um gênero literário, e não declarações extáticas

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de figuras com dons e carisma. Afirmou que a palavra falada da profecia se cristalizou no papel em formas reconhecíveis, como ameaças, repreensões e advertências. O gênero básico era “oráculo”, que subjaz a maioria dos pronuncia­ mentos proféticos. “Oráculo” era uma forma pela qual Deus falava diretamente ao povo, usando o profeta apenas como meio de comunicação. “Oráculo” tam­ bém tinha natureza preditiva, e aqui Gunkel se separou do estudo liberal de uma geração anterior. Para ele, não bastava descrever os profetas como mestres e guardiões de uma ordem moral e cultuai estabelecida; eles também eram, e necessariamente, arautos de acontecimentos futuros, tanto bons como maus. Gunkel reconheceu que nem tudo na literatura profética podia ser explicado desse modo e que os profetas haviam emprestado amplamente das tradições literárias e folclóricas de sua época. Em especial, eles haviam feito considerável uso de cânticos, tanto sacros como profanos. No processo de adaptá-los, no en­ tanto, os profetas os haviam impregnado com seu próprio espírito. Isso, por sua vez, teve o efeito de fornecer ao estilo lírico hebraico um traço decididamente profético, que pode ser observado nos salmos. Gunkel ainda acreditava que algumas dessas declarações proféticas haviam sido feitas no contexto de adoração pública. Por exemplo, ele aceitou que Joel 1 e 2 era um lamento cultuai apresentado na forma de profecia, o que mostra­ va que Joel havia feito uso de elementos litúrgicos em sua obra. M as Gunkel não desenvolveu muito suas ideias sobre esse tema. Isso seria o trabalho de seu pupilo e discípulo S. Mowinckel, que reconheceu a hesitação de Gunkel nessa área e o admoestou a esse respeito, afirmando que isso se devia à prolongada influência de Wellhausen (e outros como ele) em sua mente. Mowinckel desen­ volveu a ideia de Gunkel de que havia uma íntima ligação entre profecia e culto, e isso regeu sua abordagem tanto dos profetas como do Saltério. Mowinckel pensava haver “profetas do Templo” em Jerusalém que eram discípulos de Isaías, responsáveis por muitos dos elementos litúrgicos nesse livro profético. Ele tam­ bém acreditava que esses profetas haviam contribuído para livros como Naum, M iqueias e Habacuque, utilizando material cultuai e legal semelhante. Mowinckel conseguiu demonstrar que havia diversas conexões íntimas entre literatura profética, de um lado, e tanto o Pentateuco como o Saltério, de outro, mas sua sugestão de que isso se devia à influência predominante de “profetas do Templo” em Jerusalém é mais questionável. O que é mais provável é que o culto do templo fornecia aos diferentes autores um foco comum, de modo que, ao redigir, eles tinham um importante pano de fundo. Nesse sentido, a obra de Mowinckel representou um avanço genuíno no estudo do Antigo Testamento.

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O estudo erudito subsequente tanto modificou como ampliou as percepções de Mowinckel. De modo geral se reconheceu que parte da profecia pode ter si­ do originalmente escrita, e não oral. Isso eliminou a necessidade de postular um período de transmissão oral, mas não alterou seriamente a abordagem da crítica da forma. M ais significativo foi a pressa para demonstrar que tudo nos profetas estava vinculado a uma fonte cultuai, como se fosse possível explicar a profecia inteiramente no contexto da adoração de Israel. Ao ir contra a visão que se tinha dos profetas no século 19, que os havia enxergado como espíritos livres e um tanto selvagens que muitas vezes se opunham ao culto sacerdotal, sem dúvida alguma a nova ênfase serviu para corrigir um desiquilíbrio. M as quando declarações pro­ féticas sobre guerra foram interpretadas como referências a temas mitológicos transmitidos aos profetas por meio de um imaginário cúltico, as coisas haviam ido longe demais. A relação entre os profetas e o culto era certamente mais forte do que se havia reconhecido anteriormente, mas isso não significava que os profetas dependiam inteiramente do que acontecia no Templo em Jerusalém. O terceiro foco de Gunkel, e que demonstrou ser o mais proveitoso para suas teorias, era o Saltério. Ele estava convencido de que o uso profético de textos líricos do Israel primitivo havia transformado o gênero de tal modo que, na época em que o Saltério foi escrito, a lírica hebraica estava permeada pelo es­ pírito profético. O Saltério era uma parte do Antigo Testamento que havia sido mais ou menos ignorado por Wellhausen e seus seguidores por causa da extrema dificuldade em aplicar critérios históricos à maioria dos salmos individuais. Ao usar a crítica da forma, Gunkel encontrou um modo de explicar o Saltério em relação ao seu Sitz im L eben na vida religiosa de Israel. A datação precisa ainda causaria problemas, mas ao menos era possível sugerir como e quando os vários tipos literários surgiram. Isso tornaria possível reconstruir um retrato geral do desenvolvimento dos salmos que refletia a evolução religiosa da nação em geral. A análise que Gunkel faz do Saltério produziu as seguintes categorias de salmos: 1. Hinos. Esses são os cânticos de louvor e constituem a mais antiga camada da poesia lírica de Israel, como podemos observar no Cântico de M iriã (Ex 15.21) e no Cântico de Débora (Jz 5). Os profetas, sobretudo Isaías, têm muitos exemplos desses hinos. No próprio Saltério estão os Salmos: 19.1-6; 29; 33; 40; 47; 96 e 103— 105. Sobre eles, Gunkel escreveu: O tom predominante em todos os hinos é a adoração entusiástica, mas reveren­ te, do Deus glorioso e inspirador de admiração. Até certo ponto, pode-se dizer que o propósito dos Hinos era agradar a Yahweh, a quem eles louvam com

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tanta exuberância. Pois, do mesmo modo que o rei em uma refeição festiva não dispensaria cânticos entoados em seu louvor, também a Yahweh se ofereciam canções sempre que seus festivais eram celebrados ou sacrifícios eram ofereci­ dos a ele. Mas também para os próprios cantores os cânticos eram benéficos. A ideia religiosa, quando expressa vocalmente, tornava-se mais forte, e o indivíduo ficava envolvido no clima da multidão. Um subconjunto especial desse tipo era o H ino escatológico, do qual Gunkel encontrou vários exemplos. Esses hinos prenunciavam o fim dos tempos e foram compostos tardiamente na história de Israel. De fato, eles ainda estavam sendo escritos na época do Novo Testamento, como o demonstram os hinos relatados em Lucas 1. Exemplos no Saltério incluem Salmos: 46; 82; 85; 126 e 149. 2. L am entos da com unidade. O tipo de salmo mais antigo depois dos hinos são os lamentos da comunidade, inspirados pelas várias calamidades que esta experimentava de tempos em tempos. Esse tipo também é bem representado nos Profetas, que muitas vezes precisavam conclamar o povo a que lamentasse por seus pecados. Gunkel afirmou que todos os anos eram separados dias espe­ ciais para a lamentação, tanto assim que esta adotou uma natureza ritual muito cedo (cf. lR s 21.9). É necessário observar, no entanto, que, das Lamentações de Jeremias, somente a quinta era considerada por Gunkel como um lamen­ to comunitário. No Saltério, há exemplos em Salmos: 44; 60.1-5; 74; 79; 80; 89.38-52 e 94. 3. Cânticos do in d ivíd u o I: ação d e graças. Aqui Gunkel foi obrigado a defender a possibilidade de salmos de indivíduos. R. Smend (1888) havia argumentado que o “eu” do Saltério era uma personificação da comunidade, e não uma ex­ pressão de um indivíduo. Gunkel admitiu que havia casos em que isso era assim, mas defendeu que na maior parte do tempo o “eu” devia ser interpretado em seu sentido natural, como a voz do próprio poeta. M ais uma vez, havia exemplos proféticos desse tipo, embora fossem poucos (cf. Jn 2.2-9). No entanto, eles eram muito antigos e foram quase certamente emprestados das nações vizinhas. Como Gunkel disse: Em defesa da grande antiguidade de todo esse tipo literário está o fato de que as inscrições egípcias e as tábuas votivas fenícias,bem como o chamado “Salmo de Jó” (que realmente é um cântico de ação de graças), contêm a mesma estrutura narrativa. E possível perceber com base nesses exemplos que, no caso desse tipo de poema cultuai, não estamos tratando de estruturas distintamente israelitas, mas de um tipo de composição poética que era compartilhado com as nações vizinhas de Israel e certamente foi praticado em Israel desde tempos remotos.

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No Saltério, eles estão representados nos salmos: 18; 30; 40; 66; 100; 107; 116; 118; 136 e 138. 4. Cânticos do in divíd u o II: lam entos. Esse tipo também ocorre com bastante frequência no Saltério e, de acordo com Gunkel, revela um estilo literário muito pronunciado. As mesmas imagens se repetem, por exemplo: de um suplicante que no meio de alguma enfermidade precisa, ao mesmo tempo, queixar-se de seus inimigos que o estão perseguindo e difamando. Em geral, os salmistas afir­ mam sua inocência em face dessas provações (e.g., SI 17; 26), embora de vez em quando confessem sua culpa (SI 51). A ordem dos salmos também é característica, começando com um lamento, seguido por uma oração de intensidade ardente, e terminando com uma certeza de livramento, proferida em um tom de júbilo. Exemplos desse tipo são os salmos: 3; 6; 17; 22; 51; 69; 88; 94; 121; 123 e 130. 5. Tipos secundários: litu rgias de entrada, cânticos da Torá, bênçãos. Os salmos 15 e 24 são exemplos deles, sendo caracterizados por um chamado à pureza para comparecer ao lugar santo. 6. Salmos régios. Encontram paralelos tanto no Egito como na Babilônia e originalmente eram orações oferecidas aos reis. Alguns seguidores de Wellhausen os haviam datado tardiamente, defendendo que o “rei” é um símbolo poético para a nação de Israel, mas Gunkel rejeitou isso pelo motivo de que os paralelos em outra literatura tornavam uma data primitiva mais provável. No Saltério, eles são Salmos: 2; 18; 20; 21; 45; 72; 101; 110; 132 e 144.1-11. Gunkel reco­ nheceu que eles continham grande variedade, representando, de fato, diferentes aspectos da vida real. A identificação dos salmos régios produziu uma grande reavaliação do papel do rei de Israel. Ele não era mais visto como um governa­ dor puramente secular, mas como uma figura cultuai por seu próprio mérito. Ao mesmo tempo, tentativas de ligar essa nova percepção com a realeza em outros lugares no Oriente M édio não tiveram o mesmo êxito. Nações diferentes tinham costumes diferentes e não era possível comparar Israel diretamente com seus vizinhos. Assim, os salmos régios eram característicos ao mostrar como Israel havia emprestado ideias estrangeiras; eles também eram distintos, pelo fato de que não havia nada exatamente como eles em outros lugares. 7. Salmos não litúrgicos. Gunkel os alcunhou de “cânticos espirituais” e os considerava como os últimos a serem escritos e os mais próximos do espírito do evangelho. O salmo 50, em que Yahweh afirma explicitamente que não quer sacrifício e cerimônias, é um típico exemplo deles. 8. T ipos mistos. Diversos salmos são tipos mistos, contendo elementos extraídos de duas ou mais das categorias acima. Os mais típicos deles são os

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salmos que retratam a entronização de Yahweh, que combinam os hinos com salmos régios e elevam a exaltação do monarca terreno à exaltação do monarca celestial. Os salmos 47; 93 e 95—99 são exemplos disso. Em alguns casos, eles se justapõem a outros tipos; O salmos 18 também é uma ação de graças de um indivíduo, e salmos 89.46-51 e 144.1-11 também são lamentos de indivíduos. Outros salmos combinam lamentação com ação de graças (SI 22) ou lamenta­ ção com um hino (SI 44; 104). Só de vez em quando um salmo será combinado com um gênero completamente distinto, como, por exemplo, o salmo 32, que é uma mistura de ação de graças com um poema de sabedoria. Gunkel foi seguido por Mowinckel, que desenvolveu ainda mais essas ideias. Mowinckel foi profundamente influenciado por ideias antropológicas e procurou sinais de um culto primitivo em muitos salmos. Ele acreditava que quase todos os salmos haviam sido redigidos para a adoração pública e, portan­ to, tentou ligá-los com uma prática cultuai específica. Concentrou a atenção nos salmos régios, que ele pensava refletirem a condição semirreligiosa do rei. Mowinckel destacou os salmos em que Yahweh era entronizado como rei e defendeu que eles eram cantados em um festival anual de Ano Novo, quando Yahweh era ritualmente “entronizado”. Mowinckel utilizou analogias babilônicas para demonstrar que esse festival existiu e até mesmo defendeu que aspectos dele contribuíram para a origem da escatologia em Israel. Contudo, apesar de seus apelos, poucos estudiosos o seguiram nisso, e a ideia de um festival de entronização de Ano Novo tem sido em geral rejeitada. Mowinckel divergiu de Gunkel em sua convicção de que era o Saltério que havia inspirado os profetas, e não o contrário. Na opinião de Mowinckel, até mesmo os chamados hinos escatológicos eram manifestações do culto do tem­ plo, que os profetas mais tarde emprestaram. Essa reconstrução significava que o Saltério precisava ter uma datação relativamente primitiva e os profetas uma datação relativamente tardia — uma ideia que nem todos consideravam aceitável. Podemos terminar dizendo, portanto, que a obra dos críticos da forma foi extremamente proveitosa nos Profetas e no Saltério, em especial no último, em que ela abriu uma nova possibilidade de pesquisa, mas demonstrou ser de utili­ dade bastante lim itada em outros lugares.

O impacto da arqueologia Nós já observamos que a arqueologia exerceu uma enorme influência na pes­ quisa no Antigo Testamento em meados do século 20. Ao tentar avaliar isso,

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precisamos sempre lembrar que a arqueologia era uma disciplina independente, governada por cânones e critérios que podem não ser diretamente aplicáveis aos estudos bíblicos. Nem sempre havia uma clara compreensão disso por parte daqueles arqueólogos que iam para o Oriente M édio com a intenção específica de “escavar a Bíblia”. De uma perspectiva estritamente arqueológica, não exis­ te a disciplina de “arqueologia bíblica”, pois cada um dos países mencionados na Bíblia tem sua própria história, que precisa ser interpretada como tal. M as os primeiros exploradores do Oriente M édio não pensavam assim. Para eles, a Mesopotâmia e a Síria tinham importância somente porque eram mencionadas na Bíblia, e era necessário enxergar tudo que eles descobriam a essa luz. Isso produziu diversas distorções sérias das quais a arqueologia da região somente se recuperou lentamente. Primeiro, isso significava que se procuravam e escavavam locais mencionados na Bíblia exatamente por essa razão, e ninguém tinha interesse em considerar como eles se encaixavam na cultura maior da época. Jerico é a mais escavada cidade na Palestina somente por causa de sua proeminência na Bíblia; ela está longe de ter sido a cidade mais importante. Pela mesma razão, os sítios de Ur, Babilônia e Nínive foram escavados muito antes de sítios menos conhecidos, embora as descobertas de M ari ou Ugarite tenham a mesma importância para a reconstrução adequada da época patriarcal. É somente por não serem mencio­ nados na Bíblia que ninguém se interessou por eles até bem mais tarde. Também é verdadeiro que as técnicas arqueológicas não foram aperfeiçoadas durante bastante tempo. Os métodos de escavação, a importância da cerâmica como evidência e o critério usado para datar as várias camadas históricas de escombros estavam sendo desenvolvidos até mesmo durante as descobertas destinadas a defender a historicidade da Bíblia. Isso às vezes produzia confu­ são, como, por exemplo, em Jericó, em que técnicas defeituosas levaram alguns estudiosos a concluir que haviam encontrado evidências para o saque de Josué da cidade, quando na verdade não tinham. Visto que esses estudiosos estavam deliberadamente procurando essas evidências e estavam determinados a inter­ pretar tudo que encontrassem de um modo que defenderia sua busca, podemos começar a compreender quão problemático o uso da arqueologia era. Somente muito lentamente, e muito arduamente, tornou-se possível desembaraçar a evi­ dência da propaganda daqueles que a descobriam e fazer uma avaliação racional do valor das descobertas. Ao mesmo tempo, também precisamos lembrar que havia um preconceito acadêmico contra a arqueologia que precisava ser superado. Wellhausen e seus

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colegas a rejeitaram como irrelevante; eles não tinham nenhuma compreensão da importância de coisas como cerâmica e zombavam de seus colegas por levar essas “trivialidades” a sério. Eles estavam tão enraizados em uma tradição literá­ ria e filológica que era impossível se afastarem dela a ponto de compreenderem a importância de evidências não lingüísticas para o estudo da Bíblia. Se é possível acusar os primeiros arqueólogos de ingenuidade, é igualmente possível acusar estudiosos da Bíblia contemporâneos de ignorância esnobe. Após 1918, essa situação começou a mudar, graças principalmente à obra de A. A lt e M . Noth. A lt havia compreendido muito cedo que era errado pensar que a influência principal no Israel antigo havia vindo da Mesopotâmia. Certamente havia contatos nessa direção, mas estes eram, em sua maioria, muito primitivos (isto é, datando da época patriarcal) ou bem tardios (exílicos e pós-exílicos). Nos séculos em que Israel foi constituído em sua existência nacional, teve uma ligação muito mais forte com o Egito, um fato testificado pela própria Bíblia. Alt, portanto, acreditava que era mais importante procurar influências egípcias do desenvolvimento de Israel do que mesopotâmicas. A lt também tinha uma profunda percepção da importância da topografia palestina para as relações econômicas e políticas de Israel. As ligações entre a região montanhosa e a planície costeira, entre o vale da Jordânia e o deserto, eram antigas e constantes. A lt teve a vantagem adicional de poder visitar a Palestina e observar como as relações comerciais funcionavam logo antes de o desenvolvimento moderno ter interrompido os antigos padrões na região. Ele, portanto, teve a oportunidade de observar em primeira mão como as rotas comerciais, por exemplo, determi­ naram a evolução da organização social. Ao aplicar suas teorias ao texto bíblico, A lt afirmou que Israel e Judá eram antes confederações tribais separadas, que se uniram temporariamente sob Davi e Salomão antes de voltarem a seu estado original. Ele ainda sugeriu que os dois reinos tinham diferentes concepções de monarquia. Judá era um estado dinástico, ligado aos destinos da casa de Davi. M as Israel tinha uma monarquia eletiva, em que qualquer figura carismática poderia ser escolhida como rei. Os métodos de A lt também tinham uma importância especial para o exame da debatida questão da invasão de Canaã por Israel. Por causa das ambigüi­ dades que envolviam as escavações em Jericó, a maioria dos estudiosos estava começando a acreditar que Israel havia invadido a terra em dois estágios e de diferentes direções. A primeira onda de invasores havia vindo do Sul, direta­ mente do deserto do Sinai. Uma segunda onda, liderada por Josué, havia vindo do Leste um pouco depois. A lt alterou essa visão completamente por meio de

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seu estudo de fontes egípcias e a relação que existia entre o Egito e as cidades cananeias. Sua alegação era que a “invasão” israelita na verdade era uma lenta penetração de beduínos pastores de ovelhas, que gradualmente ocuparam cada vez mais território até se tornarem os principais habitantes da terra. Foi por essa razão, defendeu Alt, que a estrutura tribal manteve uma importância tão grande, até mesmo depois da aparente consolidação da nação em uma só monarquia. Na realidade, ele defendeu, as tribos dispersas continuaram constituindo a base da sociedade durante muito tempo depois disso. As pesquisas de A lt foram usadas e desenvolvidas mais por M . Noth. Noth defendeu com base em evidências filológicas que os nomes das diferentes tribos poderiam ter surgido somente em solo palestino. A organização tribal, portanto, era uma estrutura que havia sido criada após a invasão (se de fato realmente tivesse havido uma invasão), e não antes dela. Noth também compreendeu que somente era possível explicar a unidade de Israel como nação por razões reli­ giosas, e, portanto, desenvolveu a teoria de que Israel havia sido originalmente uma confederação religiosa unida em torno da Arca da Aliança. A própria Arca foi mudada de lugar para lugar, até finalmente se estabelecer em Jerusalém, que então se tornou o centro da vida nacional de Israel. Entretanto, lugares fixos anteriores da Arca não foram esquecidos, e observâncias cultuais continuaram em diferentes lugares em que havia existido uma associação anterior com ela (Siquém sendo o principal exemplo de Noth). O método de Noth sofreu tanto de uma ausência de evidências para defen­ der suas teorias quanto do entusiasmo de seus muitos discípulos, que tentaram descrever todos os aspectos da vida de Israel da perspectiva de uma vaga confe­ deração religiosa. Isso resultou em diversas distorções, que tornaram mais difícil — e não menos — desemaranhar as origens de Israel das origens dos povos vizinhos. Como acontece tantas vezes na pesquisa do Antigo Testamento, com­ parações feitas com outras nações levaram alguns estudiosos a impor um padrão em Israel que não correspondia à evidência. Israel era uma nação su igen eris, com nenhuma real contraparte em outros lugares. Comparar suas instituições com aquelas da antiga Grécia, por exemplo, poderia levar somente a equívocos. No entanto, o método de Noth sublinhou o fato de que Israel tinha consciência de sua existência como comunidade religiosa com nenhum centro fixo muito antes de adquirir os atributos de um estado nacional. Por causa dessa consciência an­ terior, o estado nacional nunca foi fundamental para a existência de Israel, e isso permitiu que ele sobrevivesse não somente ao Exílio, mas a séculos de dispersão, quando outras nações desmoronaram e desapareceram.

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Um efeito colateral curioso das pesquisas de A lt e Noth foi que elas revela­ ram até que ponto os livros “históricos” do Antigo Testamento realmente eram composições religiosas. Quanto mais esses estudiosos investigavam sua evidência para tentar relacioná-la à arqueologia da Palestina, mais eles compreendiam que ela refletia uma interpretação muito específica dos acontecimentos. Havia muito mais na história do período do que o Antigo Testamento revelava, e uma “história de Israel” moderna usaria os textos bíblicos somente como uma evidência entre muitas. Um exemplo notório disso é o caso de Onri, um dos mais importantes reis de Israel, mas que é descartado nos meros oito versículos de IReis 16.2128. Do mesmo modo, o registro bíblico fornece um relato muito incompleto do reinado de Josias, que parece ter reconquistado a maior parte do reino davídico e que desempenhou um papel importante no palco da política internacional. Não se trata de o que a Bíblia diz sobre esses reis não ser verdadeiro; isso meramente reflete prioridades distintas daquelas da maioria dos historiadores modernos. Essas prioridades somente poderiam ser religiosas, é óbvio, e assim a ar­ queologia inadvertidamente contribuiu para uma redescoberta da importância da religião para os cronistas de Israel. Isso, por sua vez, reintroduziu considerações teológicas no estudo do Antigo Testamento de um modo que havia se tornado relativamente incomum e levou ao importante estágio seguinte no desenvol­ vimento da pesquisa crítica. Da perspectiva arqueológica, o mais importante contribuinte para esse desenvolvimento foi W. F. Albright. Albright acreditava firmemente que a arqueologia oferecia pistas importantes para a evolução de ideias intelectuais e tentou demonstrar isso mostrando como o monoteísmo de Israel havia se desenvolvido primeiro a partir de fontes babilônicas primitivas e mais tarde havia sido fortalecido pelo curioso episódio de Aquenáton no Egito (século 14 a.C.). Moisés, que pode ter sido um refugiado fugindo da perseguição que abateu os seguidores do monoteísmo de Aquenáton após sua morte, foi cer­ tamente o fundador da fé de Israel, que se manteve contra a intrusão de práticas cananeias durante vários séculos. Essa visão da história religiosa de Israel era quase diretamente contrária à de Wellhausen e fortaleceu grandemente a posição daqueles conservadores que viam o monoteísmo do Antigo Testamento como revelação divina e não como o produto de uma prolongada evolução histórica.

A crítica da redação e a teologia do Antigo Testamento A ênfase crescente em fatores religiosos na interpretação do Antigo Testamento levou a diversos novos desenvolvimentos. Para começar, a crítica literária

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desempenhou um papel muito maior. O reconhecimento de diferentes fontes e gêneros chamou a atenção para o modo que a diversidade de material havia sido reunida. Seguindo diversos estudos que mostravam a importância do tema reli­ gioso para diferentes partes da narrativa histórica, G. von Rad tentou fazer uma síntese em 1938. Von Rad demonstrou a importância da perspectiva teológica dos redatores do texto final, que evidentemente haviam escolhido e adaptado seu material para um propósito específico. Nos livros “históricos”, isso era rela­ tivamente óbvio; eles queriam demonstrar como o culto havia se centrado em Jerusalém desde a época de Davi e, assim, mostrar a importância da monarquia davídica para a identidade nacional de Israel. O que hoje chamaríamos de a ligação entre “igreja e estado” era seu tema escolhido, e seu objetivo era mostrar como isso funcionava para a vantagem dos dois. As ações dos vários reis eram relatadas somente à medida que influenciavam essa ligação; outras coisas eram ignoradas em maior ou menor medida. Essa nova abordagem inevitavelmente concentrou bastante a atenção nas perspectivas teológicas dos redatores, o que explica por que a crítica da redação, como o método de von Rad agora é chamado, gerou um novo interesse pela teologia do Antigo Testamento. W ellhausen e seus contemporâneos, incluindo Gunkel, também haviam tido um interesse por esse tema, mas de um modo diferente. Para eles, não era a coerência interna do Antigo Testamento que im ­ portava, mas a contribuição que Israel havia feito para o desenvolvimento de percepções religiosas universais. Esses críticos haviam acreditado que o produto final da história religiosa de Israel era um monoteísmo ético, que na época pós-bíblica havia produzido a mais importante das grandes religiões mundiais. Para eles, o código moral era mais importante que a teologia, visto que sua inclinação prática os levou a considerar a dogmática como uma enfadonha irrelevância. Obviamente, havia muito no texto que, por nossos padrões, seria considerado “imoral”, e não poucas dessas coisas estavam associadas a Yahweh; em espe­ cial, suas ordens a Israel para matar os inimigos do povo (e dele). No entanto, W ellhausen e seus contemporâneos acreditavam ser possível rejeitar esses epi­ sódios como lamentáveis aberrações. A natureza inadequada dessa abordagem ficou evidente quando se apli­ caram as descobertas da egiptologia ao estudo do Antigo Testamento. Se os israelitas haviam “purificado” sua herança babilônica e criado um código moral mais elevado e mais coerente com base nela, não era possível dizer o mesmo a respeito da contribuição egípcia para a literatura de Israel. Foi uma grande surpresa para J. Breasted quando ele percebeu que o Egito tinha padrões morais

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muito mais elevados que os padrões dos Dez Mandamentos ao menos mil anos antes de Moisés! Descobertas desse tipo tomaram impossível basear a singula­ ridade de Israel em sua superioridade moral, e isso destruiu a abordagem liberal tradicional de interesses religiosos. Ao mesmo tempo, estudiosos também desenvolveram uma compreensão da distinção de Israel enraizada em sua compreensão histórica de si mesmo. Von Rad defendeu que as primeiras afirmações teológicas em Israel podiam ser encontradas em diversas passagens curtas (e.g., Dt. 6.20-24; 26.5-9 e Js 24.2-13) que constituíam um tipo de “credo”. Esse “credo” não era uma afir­ mação filosófica de várias doutrinas abstratas, mas um relato dos grandes atos de Yahweh na história da nação. O que sustentava Israel era sua convicção de que Deus havia intervindo na história em seu favor e que ele continuava guiando e dirigindo o destino da nação. O Pentateuco era, assim, fundamentalmente uma H eilsgeschichte (“história da salvação”), em que acontecimentos históricos e fé religiosa se fundiam em uma só coisa. Essa história da salvação foi concedida em sua forma mais básica no Pentateuco, que permaneceu a expressão funda­ mental da fé de Israel. Os profetas estavam familiarizados com essa tradição e enxergavam sua própria atividade à luz dela. Nos anos até o Exílio e durante ele, os profetas interpretaram o declínio do destino da nação em relação à deso­ bediência às ordens de Javé como revelado na Torá. M ais tarde, eles mudaram seu tom até certo ponto e interpretaram a restauração sob Ciro como um novo começo para Israel, em que Deus mostrou que não havia esquecido de sua an­ tiga promessa de eleição. Agora, no entanto, ela era interpretada em uma base diferente e com uma esperança mais explicitamente escatológica. Von Rad via essa esperança como tendo se realizado em Jesus Cristo e, desse modo, ele ten­ tou integrar o Antigo Testamento com o Novo em uma teologia bíblica geral. A abordagem essencialmente histórica de von Rad foi complementada pela de W . Eichrodt, que começou de um ângulo mais sistemático. Eichrodt não gostava de como os estudiosos haviam dividido o Antigo Testamento em fragmentos quase sem relação e tentou encontrar um princípio fundamental de unidade que poderia explicar a teologia do texto como um todo. Para ele, esse princípio era a aliança, que ele então desenvolveu. É possível medir quan­ to a pesquisa do protestantismo havia se afastado das percepções da Reforma com base no fato de que tão poucos estudiosos perceberam que o conceito de aliança realmente era uma volta à teologia do século 17, com o acréscimo de uma boa medida de frutos da crítica bíblica. Outros estudiosos foram rápidos para mostrar que a palavra “aliança” ocorria de modo muito desigual no Antigo

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Testamento, mas Eichrodt sensivelmente se recusou a permitir que sua pesquisa dependesse de uma só palavra. Em vez disso, ele usou o termo como um rótulo conveniente para descrever algo que era onipresente no Antigo Testamento — a percepção que Israel tinha de seu profundo relacionamento pessoal com Deus. Através de todos os ápices e reveses de sua existência histórica, Israel manteve essa convicção fundamental, que poderia ser legitimamente considerada como o fator constante ligando situações históricas e convicções muito diferentes. No entanto, também é necessário reconhecer que se continuou questionan­ do a legitimidade de se construir uma só teologia do Antigo Testamento, e ainda de dois ângulos diametralmente opostos. Os estudiosos críticos receavam constantemente que os teólogos pudessem tentar impor um sistema lógico em dados que resistia a qualquer classificação clara desse tipo, enquanto os cristãos conservadores não conseguiam aceitar qualquer teologia que não tivesse uma ênfase fundamentalmente cristológica. Obviamente, a análise histórico-crítica do Antigo Testamento praticamente excluía isso, visto que sua leitura dentro do contexto original excluía o tema de Cristo, exceto talvez como uma esperança escatológica e messiânica. No entanto, o fato permanece de que não há nenhu­ ma tradição religiosa que agora se baseia exclusivamente no Antigo Testamento como sua fonte material de autoridade. O judaísmo tem a M ishná e o Talmude para guiá-lo, e na prática eles têm maior importância que a Torá. O cristianismo tem o Novo Testamento, que tanto cumpre como abole o Antigo. O Islã tem o Alcorão, que reivindica complementar e substituir tanto o Antigo como o Novo Testamentos, e seitas de origem mais recente, como o mormonismo, também modificam o Antigo Testamento de modos semelhantes. Para o professor e pregador cristão, a questão foi muito claramente posta por J. Bright em seu livro The au thority o f the O ld T estam ent [A autoridade do Antigo Testamento] (1967). Após recapitular os problemas apresentados pela pesquisa crítica e as soluções oferecidas por diferentes tradições cristãs, tanto liberais como conservadoras, Bright opta por uma abordagem essencialmente conservadora que, no entanto, leva a crítica moderna a sério. Seu principal foco são as necessidades do pregador, que precisa encontrar no texto uma mensagem de relevância contemporânea sem distorcer o significado original. Intérpretes discordarão deste ou daquele aspecto de sua tese, mas sua linha básica de abordagem é útil no modo pelo qual tenta integrar interesses tradicionais com descobertas e necessidades atuais. Bright resume isso assim (p. 201): “O Antigo Testamento é a história de nossa própria herança de fé — mas antes de Cristo; é o relato das condutas de nosso Deus e uma revelação de nosso Deus — mas

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antes de Cristo”. Ele continua desenvolvendo o que ele quer dizer da seguinte forma (p. 202): Não se deve perder de vista nenhum aspecto dessa relação dupla por um mo­ mento sequer quando se tenta interpretar o Antigo Testamento. Fazer isso é pernicioso. Ignorar a continuidade é esquecer que o Novo Testamento rei­ vindicou o Antigo, é arrancar o evangelho de seu apoio na história e, desse modo, mutilá-lo. Ignorar a descontinuidade é esquecer a afirmação do Novo Testamento de ser “Novo”; isso também é nivelar os dois Testamentos; in­ terromper o fluxo da História e ignorar o fato de que nós não praticamos e não podemos praticar a religião do antigo Israel. É necessário manter os dois aspectos em vista ao tratar de todas as partes do Antigo Testamento. Não é como se alguns de seus textos fossem contínuos com o Novo Testamento, outros descontínuos — embora seja verdade que ora predomina um aspecto, ora outro. Em cada um de seus textos, o Antigo Testamento está com o Novo em uma relação tanto de continuidade quanto de descontinuidade. Em ne­ nhum lugar podemos esquecer qualquer um desses aspectos, pois sob os dois o Antigo Testamento é um livro que aponta para Cristo e, ao mesmo tempo, profere sua indispensável palavra a homens em Cristo. Com essa afirmação, voltamos ao tema clássico da interpretação bíblica cristã: a relação do Novo Testamento com o Antigo em Cristo. Mesmo após dois séculos de crítica histórica, o antigo desafio ao aspirante a pregador do evangelho permanece fundamentalmente inalterado. B ibliografia B r ig h t , J.

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unnew eg,

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ESTUDO DE CASO: OS SALMOS Não pode haver dúvida alguma de que uma das realizações principais da crítica do Antigo Testamento do século 20 foi um modo radicalmente novo de inter­ pretar os salmos e a literatura sapiencial de Israel. O início da crítica histórica no século 19 havia produzido algumas dificuldades no que dizia respeito a esses livros, pois eles não podiam ser facilmente situados em um contexto histórico específico. Uma vez que havia o consenso de que Davi não era o autor de Salmos nem Salomão autor da literatura sapiencial, o campo estava aberto a inúmeras sugestões a respeito da data e do propósito original dessa literatura. Podemos ilustrar isso apresentando a abordagem de um escrito crítico histórico antes do início da crítica da forma e então examinar as mudanças que isso produziu. Em Oxford em 1889, T. K. Cheyne proferiu uma série de Preleções Bampton sobre os salmos e elas foram publicadas em 1891. Cheyne tinha uma motivação religiosa específica por trás de sua obra; ele era um clérigo evangélico, interessado em demonstrar e aplicar a autoridade das Escrituras Sagradas como a suprema regra de fé e vida na igreja. No contexto da época, isso significava que ele se opunha ao anglo-catolicismo, com sua ênfase na tradição e na doutrina da igreja. Em sua introdução a essas preleções, Cheyne escreveu: Penso ser da essência do protestantismo evangélico que o ensino religioso recebido de fora deve ser submetido pelo cristão como indivíduo ao teste de sua concordância com os “oráculos vivos” [...] E sua incumbência não aceitar nada de modo obrigado, mas, em uma humilde dependência do todo-poderoso auxílio do Espírito, pelo estudo crítico das Escrituras e por experiência pessoal, descobrir por si mesmo, e ajudar outros a descobrir por si mesmos, quais são os elementos realmente vitais da doutrina da igreja. Eu não afirmo que ele

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chegará ao fim desse estudo rapidamente, mas afirmo que, da perspectiva pro­ testante, ele precisa começá-lo. E aquilo que é o dever de clérigos evangélicos comuns precisa certamente ser ainda mais o dever dos que detêm cargos na Igreja Alta. Eles não devem ficar continuamente apelando à letra de formu­ lários doutrinários eclesiásticos, mas primeiro ao estudo das Escrituras tanto crítica quanto espiritualmente e, então, iniciar uma correspondência de uma exegese mais elevada dos formulários com a exegese e a crítica mais elevadas das Escrituras [...] Um verdadeiro evangélico começa, não com o Livro de Oração e os Artigos, mas com as Escrituras Sagradas. E um evangélico refor­ mador deve provar sua sinceridade protestante adotando princípios históricos modernos de crítica da Bíblia. Para Cheyne, assim como para Robertson Smith e outros evangélicos de seu tipo, a crítica histórica da Bíblia era um ingrediente essencial de sua fé. Cheyne voltou a esse tema em sua sexta preleção, em que ele comentou o seguinte: Caso alguém ainda pergunte: Qual a relação da origem histórica do Saltério com a defesa da fé cristã?, somente preciso responder: Como poderíamos em qualquer possibilidade usar o Livro de Salmos como um relato da teologia da igreja até termos provado criticamente que ele pertenceu ao período da igreja judaica? Agora que se forneceu essa prova (sendo o salmo 18, como seria de es­ perar, o único salmo pré-exílico possível — e até mesmo esse é tardio o bastante para ser chamado, em certo sentido, uma composição da igreja), podemos ousar dizer que é a consciência da igreja, ou de alguns de seus membros principais, que encontra uma voz em todas as partes do Saltério. Para o leitor atual, causa certa surpresa descobrir que Cheyne, que rejeitava a autoridade da igreja quando aplicada a temas cristãos, estava disposto a aceitá-la — e, de fato, insistir nela — quando se tratava da “igreja judaica”, com a qual ele queria dizer judaísmo pós-exílico. Ao insistir em uma data tão tardia para todo o Saltério, Cheyne estava adotando uma posição mais radical até mesmo que muitos críticos alemães contemporâneos. Por exemplo, ele rejeitou a sugestão de Ewald, feita em 1835, de que o salmo 50 tinha conexão com a reforma de Josias em 622 a.C. Ewald havia defendido sua posição com base em similaridades entre o salmo e o ensino de Jeremias, contudo, embora Cheyne aceitasse isso até certo ponto, ele rejeitou a sugestão de que era possível que a teologia de Jeremias tivesse sido absorvida de modo tão profundo antes do Exílio. A favor de uma data pós-exílica, ele mencionou diversas características encontradas no salmo, como a descrição de uma teofania, a importância das ideias de Jeremias e o formalismo e a hipocrisia que teoricamente haviam caracterizado o período

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pós-exílico. À objeção de que Esdras e Jeremias dificilmente teriam tido um oponente desse calibre entre os poetas do Templo, Cheyne teve isto para dizer: Talvez; mas a história não segue o curso prescrito pela teoria. Precisamos per­ mitir as variedades do sentimento religioso. Esdras de qualquer forma (como os livros de Rute e de Jonas demonstram) não era um autocrata, e o autor do salmo 50 pode ter pertencido a uma escola um tanto diferente daquela do gran­ de reformador [...] Basta observar que, embora o salmista admita a validade temporária do sistema legal estabelecido, ele aguarda a realização de visões mais nobres que as de Esdras. Obviamente, uma data pós-exílica para o Saltério criou problemas especiais para a interpretação dos “salmos régios”, visto que não estava claro quem pode­ ria ter ocupado o trono como o segundo Davi. A visão prevalecente na época de Cheyne era atribuir esse papel ou a Ciro, que permitiu que os judeus voltassem à Palestina, ou ao seu sucessor Dario, que deu continuidade à mesma política. Cheyne, no entanto, rejeitou essa possibilidade a favor de uma identificação muito posterior. Como ele diz: Todavia, não houve nenhum príncipe menos remoto, mas não menos poderoso que Dario, por quem os judeus tinham os mais fortes sentimentos de lealdade e gratidão? No entanto, houve um — Ptolomeu Filadelfo, que “para os judeus se tornou um judeu, a fim de que pudesse ganhar os judeus” e que, quase melhor em alguns aspectos do que Ciro e Dario, mereceu o louvor de um poeta hebreu. Ele foi de fato o segundo Ciro de Israel, não somente porque prorrogou os privilégios que seu pai concedera aos judeus, mas porque redimiu à própria custa uma multidão de cativos judeus. Essa identificação, baseada em algumas observações de Arísteas, cronologista judeu de um período posterior, teria datado os salmos no reino de Ptolomeu II (285-246 a.C.) ou até mesmo depois dele. O mais importante é que ela teria atribuído a Ptolomeu um papel que suas atividades dificilmente mereciam, por mais gratos que os judeus contemporâneos possam ter sido pela ajuda que ele lhes prestou. O que está faltando na análise de Cheyne é qualquer percepção da dimensão religiosa da posição do rei em Israel. Nem mesmo Ciro, certamente escolhido e ungido por Deus, podia ocupar o lugar de Davi, pois ele não era um rei da aliança. Esse aspecto da questão simplesmente não estava presente em Cheyne, que parece ter pensado que qualquer identificação remotamente plausível na época pós-exílica serviria — e quanto mais tarde fosse possível situá-la, melhor.

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O surgimento da crítica da forma alterou completamente esse retrato do Saltério, pois ela ressuscitou a ideia há muito tempo dormente de que os salmos estavam intimamente ligados à vida de adoração de Israel. O fato de que essa descoberta tinha implicações para a vida da igreja moderna foi livremente reco­ nhecido por Mowinckel, que escreveu: Enquanto isso, o estudo comparativo de religiões havia colocado em destaque o importante lugar do culto na religião em geral. A redescoberta de antigas culturas orientais mostrou aos estudiosos da Bíblia que exatamente o mesmo era verdadeiro a respeito das religiões dos povos vizinhos de Israel, de cuja cul­ tura e religião Israel havia adotado muitos costumes e concepções importantes. Até mesmo no cristianismo protestante uma compreensão melhor do valor do culto organizado surgiu — embora em alguns círculos ainda seja rotulada como uma tendência de “igreja alta”. Essa mudança na situação acadêmica e espiritual também necessariamente influenciou a interpretação do Antigo Testamento, sobretudo dos salmos. Em seguida, Mowinckel elogiou Gunkel, que havia “provado de modo seguro que em Israel também a origem da poesia dos salmos se encontra no culto público: os diferentes tipos de salmos surgiram em relação a diferentes situações e atos cultuais aos quais eles originalmente pertenciam”. A descoberta de Gunkel, afirmou Mowinckel, tornou possível assentar a base para uma real compreensão histórica e literária dos salmos, que levaria a uma revisão substancial de visões críticas sobre a história religiosa do Antigo Testamento e a uma reavaliação da menosprezada “religião de culto” do Antigo Testamento. M as Gunkel destruiu sua teoria, M owinckel argumentou, dizendo que os salmos como agora os temos não são composições cultuais originais, mas imitações privadas compostas em uma data posterior. Gunkel citou exemplos semelhantes na literatura profética como prova dessa afirmação, mas Mowinckel conseguiu mostrar que “empréstimos” proféticos de poesia cultuai eram adap­ tados com um propósito diferente, e não eram simplesmente imitações. Ele, portanto, defendeu que Gunkel estava errado em traçar essa comparação e su­ geriu que os salmos eram originalmente textos cultuais. Ligar os salmos à vida cultuai de Israel foi uma mudança fundamental na percepção crítica. Como Mowinckel mostrou, o culto estava entre os aspectos mais antigos e constantes da vida de Israel, alcançando o distante passado pré-histórico. Certamente pode ter havido desenvolvimentos teológicos no culto, e ele pode ter adquirido vários acréscimos e mudado externamente de tempos em tempos, mas formas de observância religiosa são notoriamente conservadoras em

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todas as sociedades e isso produziu um argumento a p rio ri a favor de uma datação primitiva para grande parte do Saltério. O fato de que ele tinha forma poética contribuiu para essa pressuposição, visto que na maioria das sociedades a poesia e o cântico precederam o desenvolvimento da literatura em prosa. Era, portanto, bastante defensável dizer que ao menos partes do Saltério eram consideravelmente mais antigas que o Pentateuco ou os livros históricos do Antigo Testamento. Gunkel e Mowinckel concordaram em que havia uma divisão fundamental entre os salmos “nós” e os salmos “eu”. Os primeiros refletiam a vida da comuni­ dade, incluindo a antiga visão de que o indivíduo perdia sua identidade na tribo. Os últimos eram mais difíceis de interpretar, mas havia duas possibilidades. A primeira era que o “eu” era uma personificação da nação, uma visão que tinha alguns adeptos. M as nem Gunkel nem Mowinckel estavam preparados para tornar isso um princípio universal de interpretação. Eles geralmente preferiam a segunda opção, que era que os salmos “eu” refletiam a vida de oração e espiritual de um indivíduo particular cuja vida refletia a experiência comum. A alternação “eu-nós” está mais visível nos chamados “salmos régios”. Mowinckel acreditava que a atribuição tradicional dos salmos a Davi tornava todos eles “régios” e ele considerava isso como uma importante indicação de seu significado e lugar no culto. O rei desempenhava um papel proeminente na adoração, embora não fosse deificado do modo egípcio ou mesopotâmico. No entanto, o papel do rei era tal que os salmos régios precisavam refletir uma real situação cultuai e, portanto, datar da época da monarquia davídica, se é que não da época do próprio Davi. Mowinckel, assim, dava-se por satisfeito datando a maioria dos salmos na época da monarquia ou logo no início do Exílio. Ele também reconheceu que um grande número certamente procedia do período pós-exílico e os conside­ rava bem profundos em sua percepção espiritual (em absoluto contraste com Cheyne). De qualquer modo, ele rejeitou categoricamente a sugestão de que qualquer um dos salmos canônicos podia ter uma datação tão tardia quanto o período macabeu (segundo século a.C.). No entanto, Mowinckel foi cuidadoso para não ser dogmático a respeito da datação. Como ele escreveu: ... a respeito desse período [isto é, da monarquia e início do Exílio] não é possível escrever nenhuma história da salmografia. A maioria das datações de salmos in­ dividuais é muito incerta para isso, e encontramos tantos aspectos característicos e comuns se repetindo em salmos anteriores, bem como em posteriores, que não é possível organizar o material de modo a produzir alguma coisa parecida com uma clara linha de desenvolvimento entre pontos fixos comparativamente escassos.

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De acordo com M owinckel, a associação dos salmos régios com a dinastia davídica foi um fator importante na maneira em que seu uso se transformou após o Exílio. A dinastia havia desaparecido, mas deu lugar a uma esperança messiânica, em que um futuro Filho de Davi apareceria e reivindicaria sua herança ancestral. Os salmos régios, portanto, foram reinterpretados e con­ siderados como profecias do M essias vindouro. Foi com base nisso que eles acabaram sendo compilados e incluídos no cânon, de modo que havia uma coerência entre seu uso no cânon e sua função no culto israelita posterior. Um efeito colateral principal da identificação dos salmos com o culto foi o maior interesse mostrado em sua teologia. Isso aparece muito claramente quando comparamos o que Cheyne tinha para dizer com o que pode ser encontrado em comentários mais modernos. Usaremos como nosso exemplo a interpretação do salmo 22, a que já nos referimos. Cheyne disse que ele havia sido composto logo antes da missão de Neemias e refletia a perseguição que os judeus estavam experimentando nas mãos de Sambalate e seus amigos. Não havia o som de nenhuma nota de salvação a não ser a oferecida por Neemias e sua operação de resgate, que Cheyne naturalm ente compreendia de modo secular. Os analistas da crítica da forma, em contrapartida, muitas vezes estavam tentados a ligar o salmo 22 aos salmos régios, afirmando que no ritual cultuai o rei representava a divindade que morria e ressuscitava. De acordo com essa interpretação, apresentada por A . Bentzen e outros, o homem abandonado por Deus era o rei que morria e o homem que agradece (v. 22-31) era o gover­ nador que ressuscitava, descrito em um drama de adoração. Em um estágio posterior, quando o salmo havia finalmente sido redigido em sua presente forma, havia ocorrido um processo de “democratização” que perm itia que os adoradores, como indivíduos, se apropriassem da experiência da figura representativa do rei. M ais recentemente, C. W esterm ann (1984) interpretou o salmo 22 à luz da crítica da forma, mas sem ligá-lo aos salmos régios. Assim como intér­ pretes anteriores, ele considera sua presente forma como uma redação de um salmo mais antigo, embora ele pareça aceitar a estrutura básica como de “um lamento que se inverteu”. Portanto, ele não pode ser considerado uma combinação de um lamento original com uma ação de graças posterior; esses dois elementos estavam ali desde o início. W esterm ann concorda com seus predecessores imediatos em que a composição do salmo é muito bem elaborada. Ele o analisa assim:

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v. 1-21: o lamento 1-3 4,5 6-8 9,10 11 12,13 14,15 16-18 19-21

lamento ou queixa a Deus condutas de Deus com seu povo um lamento “eu” (sobre o inimigo a partir do v. 7) condutas de Deus com o suplicante uma petição a Deus um lamento “eu” sobre o inimigo um lamento “eu” um lamento “eu” sobre o inimigo uma petição a Deus

v. 22-31: a ação de graças 22 23 24 25,26 27-32

uma declaração transicional de louvor uma convocação para louvar mais uma declaração transicional de louvor o resgate do voto (fim do lamento) louvor descritivo

Westermann continua interpretando o importante primeiro versículo e diz que ele descreve um relacionamento com Deus que não pode ser destruído, apesar do intenso sofrimento que o salmista experimentou. W estermann expressa assim a ideia: É necessário observar que, nesse início do salmo 22, há uma compreensão fundamentalmente diferente da relação do homem com Deus daquela que se desenvolveu desde o período do Iluminismo. Nós descrevemos esse relaciona­ mento como “fé” e identificamos o termo com a própria religião. Mas em um relacionamento com Deus visto como fé, o homem é o sujeito; ou se crê nele ou não. Sob esse aspecto, a relação com Deus nos salmos é bem diferente; ali Deus é o sujeito, é ele que inicia o relacionamento. Assim, mesmo quando um homem perde a confiança em Deus, ele nunca pode se livrar dele, como observamos claramente no salmo 139. Em suas observações finais sobre o salmo, Westermann afirma: O centro de todo o discurso teológico do Antigo Testamento se encontra em uma oração verbal: Deus agiu. Somente alguém que realmente experimentou

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o que Deus fez pode dizer isso, nesse caso o narrador do salmo 22. Sua experiência foi moldada pelo contraste que determina a progressão do salmo do primeiro ao último versículo. Somente por ter experimentado a distância e o silêncio de Deus ele podia sentir seu inverso; e por ter experimentado essa inversão, ele precisava contá-la. O que ele tinha para contar precisava avançar ainda mais, pois Deus agiu. E das ações de Deus que a teologia do Antigo Testamento fala, e, ao fazer isso, ela fala sobre o relacionamento divino-humano, passado, presente e futuro. Por fim, podemos examinar a interpretação do salmo fornecida por um es­ tudioso evangélico contemporâneo, Peter Craigie (1983). Ele faz uma análise do salmo diferente da que é feita por Westermann, mais fortemente ligada a um modelo litúrgico. Ele o divide assim: 2-22b Lamento. O homem enfermo declara sua aflição. 2-11 12 13-19 20-22b

ele é abandonado por Deus e pela humanidade sua oração por ajuda ele está cercado por problemas sua oração por libertação

22c Resposta. Isso pressupõe um oráculo 23-27 Ação de graças (declarada pelo sofredor) 28-32 Ação de graças (declarada pela congregação) Craigie enxerga o salmo como fundamentalmente individual, embora se situe no contexto de uma liturgia pública. Para ele, todo o processo de lamento, oração e ação de graças teria ocorrido durante um só ato de culto, que pode ter estado ligado a algum ritual régio, embora essa hipótese precise permanecer incerta. Sobre os primeiros versículos, Craigie escreve: O adorador começa expressando o mais terrível mistério de seu sofrimento, isto é, o sentimento de ser esquecido por Deus. E um mistério porque parece estar enraizado em uma contradição, isto é, a aparente contradição entre teologia e experiência. A teologia, baseada na tradição e experiência do passado, afirmava claramente que a confiança resultava em libertação. De fato, era essencial na fé da aliança que aqueles que confiavam no Deus santo não se decepcionariam [...] Mas a experiência estava em completo desacordo com a teologia; enquanto os pais confiaram e foram libertados, a essência dos lamentos do salmista era

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“a distância da minha salvação”. O Deus da aliança, sobre o qual havia a con­ vicção de que não havia abandonado seu povo fiel, parecia ter esquecido esse adorador que, na enfermidade, estava diante das portas da morte. E era o sen­ timento de ser esquecido por Deus que era o problema fundamental — mais grave do que a própria condição de enfermidade e a ameaça de morte. E extremamente interessante observar o contraste entre P. Craigie e C. Westermann. A visão de Craigie da fé como confiança é claramente mais sub­ jetiva que a de Westermann; a teologia protestante tradicional descreveria a abordagem de Craigie como “arminiana” e a de Westermann como “calvinista”. Em contrapartida, Craigie menciona o tema da aliança, refletindo tanto o calvinismo tradicional como Eichrodt, de um modo que Westermann não faz. No entanto, nenhum deles faz qualquer referência ao uso desse versículo no Novo Testamento, ao menos não no decorrer do próprio comentário. Craigie, no en­ tanto, acrescenta isto no final: Embora o salmo não seja messiânico em seu sentido ou contexto original, é possível interpretá-lo de uma perspectiva do Novo Testamento como um salmo messiânico por excelência. Está claro nas palavras registradas de Jesus na cruz que ele identificou sua própria solidão e sofrimento com as do salmista. E está claro que os Evangelistas interpretaram a crucificação à luz do salmo, utilizando suas palavras em sua descrição da cena [...] Não é sem razão que o salmo foi chamado de: o relato da crucificação do “quinto Evangelho”. Craigie continua extraindo as implicações disso para a cristologia: O que é mais significativo na perspectiva do Novo Testamento é a identificação que Jesus faz de si mesmo com o salmista sofredor, pois ela fornece uma percep­ ção de uma parte do significado da crucificação. O sofredor do salmo 22 é um ser humano, experimentando o terror da mortalidade na ausência de Deus e na presença de inimigos. No sofrimento de Jesus, nós percebemos Deus, em Jesus, entrando no terror da mortalidade e participando dele; ele se identifica com os sofredores e os moribundos. Visto que Deus, em Jesus, participou dessa desola­ ção, ele pode oferecer conforto àqueles de nós que agora andam onde o salmista andou. Mas também há uma notável diferença entre a experiência do salmista sofredor e a de Jesus. O salmo termina com louvor porque o sofredor escapou da morte; Jesus morreu. No entanto, a segunda metade do salmo também pode ser interpretada de uma perspectiva messiânica. A transição no v. 22 não é in­ terpretada agora como livramento da morte, como foi o caso do salmista, mas em livramento por meio da morte, alcançado na ressurreição.

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A aplicação cristológica que Craigie faz do salmo pode ir tão longe quanto é legítimo ir à luz da crítica histórica, mas o teólogo protestante constatará imediatamente o elemento ausente nela. Craigie fala detalhadamente sobre so­ frimento e morte e sobre como Cristo compartilhou conosco essas coisas. M as em nenhum momento ele menciona a expiação; não há nenhuma sugestão de que Cristo foi nosso substituto na cruz, que ele suportou essas coisas por nossa salvação. Nesse aspecto, sua aplicação cristológica é insatisfatória, pois ignora o aspecto principal do evangelho. Não é fácil determinar se isso se deve a uma exegese cuidadosa ou a um “arminianismo” latente (ou a ambos). O que isso mostra, no entanto, é que a aplicação teológica feita nos exemplos acima tem natureza não sistemática. Ela nasceu do desejo do estudioso da Bíblia de rela­ cionar o texto à sua própria perspectiva de fé, e não de um interesse em ligá-lo a uma estrutura sistemática de doutrina cristã. B ibliografia C heyne , T. K. T heorigin oftheP salter(London: Paul,Trench,Trübner and C o., 1891).

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r a ig ie ,

G

un kel,

10 A CRITICA DO NOVO TESTAMENTO DEPOIS DE SCHWEITZER O período e o tema A crítica do Novo Testamento após a Primeira Guerra M undial foi dominada por um renascimento neo-ortodoxo inspirado por Karl Barth (1886-1968). Barth foi aluno de A. von Harnack em Berlim, onde havia absorvido as mais avançadas teorias liberais da época. Em 1912, ele se tornou pastor na cidade suíça de Safenwil e ali começou a compreender que a teologia que havia aprendido na universidade não podia ser pregada na paróquia. Em 1914, recebeu mais um choque, quando seus antigos professores anunciaram que estavam apoiando os objetivos de guerra da Alemanha. Barth começou a compreender que havia algo errado com a teologia liberal, e durante os anos de guerra realizou um estudo intensivo da Epístola de Paulo aos Romanos, que havia fornecido aos reforma­ dores sua inspiração teológica principal. O fruto de seus esforços foi publicado em 1919 na forma de comentário dessa epístola. A obra de Barth chocou o mundo teológico alemão. Visto que esse comen­ tário foi lançado logo depois da derrota nacional e apontava para uma era que as grandes mentes da época há muito tempo rejeitavam, o texto fez pleno sentido dentro da atmosfera de uma geração desiludida. A guerra também criou um cli­ ma intelectual em que a literatura apocalíptica e a escatologia podiam florescer. Nesse ponto, J. Weiss e A. Schweitzer já haviam preparado o caminho, mas foi após 1919 que sua mensagem realmente começou a fazer sentido. Fora da Alem anha, o impacto da neo-ortodoxia não foi homogêneo, sobretudo no mundo de fala inglesa, que nunca absorveu plenamente o libe­ ralismo alemão pré-guerra. O pragmatismo anglo-saxão também lhe resistiu. A neo-ortodoxia era sobretudo um movimento filosófico, enraizado na teo­ logia sistemática, e isso nunca havia sido um atrativo para a mente inglesa. Somente na Escócia, e até certo ponto nos Estados Unidos, ela fez grandes avanços. Sua contribuição principal foi durante o surgimento da teologia

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bíblica, que tentou expor a teologia dos autores bíblicos independentemente da dogm ática tradicional. M uitas vezes a teologia bíblica é considerada um movimento, mas ela não tinha coesão interna. Arqueólogos, e não teólogos, desempenharam o papel principal em amparar sua posição conservadora. Inicialmente, havia pouca ar­ queologia do Novo Testamento, visto que o Novo Testamento não se prestava a ela do mesmo modo que o Antigo Testamento. A principal exceção a isso foi o trabalho de Sir W illiam Ramsay em estabelecer a fidedignidade de Lucas-Atos e em localizar as várias igrejas estabelecidas por Paulo e pelos outros apóstolos na Ásia Menor. Suas descobertas vieram a ser consideradas como de grande importância e ainda continuam influenciando as avaliações acadêmicas dos escritos de Lucas. Ao mesmo tempo, outras forças muitas vezes defendiam uma perspectiva conservadora, mesmo que isso não fosse sua intenção principal. Por exemplo, em 1922, Paul Billerbeck publicou a primeira parte de seu comentário de quatro volumes sobre o Novo Testamento, baseado em fontes midráshicas e talmúdicas. Embora ele não tenha sido o primeiro estudioso a mostrar a importância do contexto judaico para o pensamento de Jesus, Billerbeck foi de longe o mais sis­ temático. Trabalhando com base no que era essencialmente uma abordagem da “história das religiões”, e não a partir de uma posição conservadora tradicional, ele virou as pressuposições da escola do avesso. Quase de uma hora para outra, passou-se a ver a relação entre o Novo Testamento e vários cultos pagãos como irrelevante, à medida que o mundo do judaísmo contemporâneo era desven­ dado. Billerbeck não viveu para ver isso, mas a descoberta dos Manuscritos do M ar Morto em Qumran conduziu os estudos do Novo Testamento ainda mais na mesma direção. A natureza judaica de Jesus e seus discípulos se tornou tão importante que, na década de 1970, alguns estudiosos estavam perguntando se de fato havia qualquer diferença fundamental entre o cristianismo do Novo Testamento e o judaísmo! Quase tão importante quanto a descoberta dos manuscritos de Qumran foi a descoberta dos papiros gnósticos em Nag Hammadi no Egito (1946). Pela primeira vez, os estudiosos tinham acesso a um grande corpo de literatura cristã herética que definitivamente não havia sido alterado pelos ortodoxos de uma época posterior. Isso permitiu que eles reconstruíssem um retrato coerente do gnosticismo, que logo levou a debates sobre a extensão em que diversas epís­ tolas do Novo Testamento estavam combatendo tendências gnósticas. Alguns estudiosos pensavam que o gnosticismo era um fenômeno pré-cristão, que

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confrontou e até certo ponto influenciou o crescimento da igreja do Novo Testamento. Outros acreditavam que o gnosticismo surgiu somente perto do fim do período do Novo Testamento, quando a igreja rompeu com seu ambiente judaico e começou a confrontar o mundo maior do helenismo. A questão seguinte era: Quanto tempo levou para a comunidade cristã co­ meçar a definir suas convicções de um modo que excluía gnósticos e outros grupos? Seria verdadeira a afirmação de que havia um pluralismo primitivo na igreja, gradualmente classificado como “heresia” por um grupo restrito de cristãos “ortodoxos”? Essa era a tese de W . Bauer, que ele tentou defender a partir de uma ampla variação de evidências epigráficas, além das fontes textuais comuns. H. W . E.Turner aptamente se opôs a Bauer, mas as dúvidas a respeito da natureza da ortodoxia na igreja primitiva não desapareceriam. O “conflito” entre judaizantes e helenistas continuou fornecendo material para mais de uma teoria das origens cristãs. Como ocorreu no debate do século 19, seu equivalente do século 20 não estava dissociado da política eclesiástica. Aqueles que tenta­ ram provar que os primeiros cristãos viviam em uma igreja pluralista também queriam recomendar esse modelo para a presente época — uma razão de modo algum insignificante posto que se sentiriam bem nele! Enquanto tudo isso estava acontecendo, a crítica literária moderna começou a deixar sua marca nos estudos bíblicos. A crítica da forma foi aplicada ao Novo Testamento, embora com resultados menos satisfatórios que os que Gunkel ha­ via obtido no Antigo Testamento. Rapidamente se reconheceu “epístola” como um gênero, e “textos apocalípticos” foram aceitos pela primeira vez como um tipo de literatura com paralelos fora do cânon. “Evangelho” também foi con­ siderado um gênero especial, embora fosse mais difícil decidir quais eram suas características distintas. Os Evangelhos não eram nem história nem biografia no sentido estrito, embora tradicionalmente tivessem sido considerados como ambos. Se era possível interpretá-los como uma mitologização da história era uma questão de debate, embora muitos estudiosos acreditassem que houvesse elementos místicos derivados de fontes apocalípticas judaicas, como o livro de Daniel, embutidos na descrição do evangelho de Jesus. M ais exitosa foi a iden­ tificação de “parábola” como tipo literário, embora aqui também tenha havido problemas de definição que não eram tão claros quanto pudessem parecer. Para que as parábolas serviam, portanto, tornou-se uma questão principal na pesquisa do Novo Testamento, e ela ainda não foi resolvida satisfatoriamente. M ais um legado da crítica da forma foi o problema do Sitz im Leben (contexto histórico) dos Evangelhos. Será que os Evangelhos representavam

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condições da vida e do ministério do próprio Jesus ou eles espelhavam a vida da igreja primitiva? Essa não era uma questão que podia ser resolvida facilmen­ te e as coisas ficaram ainda mais complicadas com o acréscimo da perspectiva dos evangelistas individuais, criando ainda mais contextos históricos a serem considerados. Esse desenvolvimento ocorreu como um resultado do surgimento da crítica da redação após 1945. Seus proponentes simpatizavam com a teo­ logia bíblica e concentraram sua atenção fortemente na perspectiva teológica dos evangelistas individuais. Eles tentaram ir além do antigo problema sinótico, mostrando que as características da redação de cada Evangelho refletiam os interesses teológicos específicos do autor. Essa abordagem teve o grande mérito de demostrar o que A. Schweitzer já havia afirmado, isto é, que a apresentação de Marcos da vida de Jesus era primariamente teológica em vez de histórica. Ao mesmo tempo, no entanto, a busca do Jesus histórico continuou ocupan­ do a atenção de estudiosos. As críticas de Schweitzer da abordagem do século 19 foram aceitas, mas não foram suficientes para diminuir o interesse no homem por trás do “mito” do evangelho. Em sua primeira fase, a busca renovada do Jesus “real” seguiu uma inclinação conservadora, de acordo com a neo-ortodoxia prevalecente. Os Evangelhos eram considerados históricos em uma medida significativa e se pensava que a crucificação tinha importância central para compreender Jesus. A teologia assumiu um lugar proeminente nesse tipo de pesquisa, e outras considerações ficaram em segundo plano. M ais tarde, o clima mudou, e emergiu uma “terceira busca” do Jesus histórico. Esta minimizou o valor histórico dos Evangelhos e se concentrou mais em evidências externas. O judaísmo desempenhou um papel proeminente nisso, e mais uma vez a políti­ ca da Palestina foi considerada uma pista importante para compreender Jesus. Considerações teológicas eram vistas como sendo menos significativas, embora não tenham sido totalmente rejeitadas. Durante esse período, a percepção acadêmica das fortes ligações entre os Evangelhos e a igreja primitiva foi reforçada, mas de um modo diferente do que havia ocorrido antes. Paulo e outros apóstolos agora eram vistos como judeus, a exemplo de como Jesus também era visto, de modo que as relações judaico-cristãs no Novo Testamento adquiriram nova importância. De grande importância nessa discussão era a revolta judaica de 66-73 d.C ., que culminou na destruição de Jerusalém (70 d.C.). O Novo Testamento não menciona essa revolta, exceto talvez obliquamente em uma advertência fornecida por Jesus (veja M c 13). No entanto, ela veio a ser considerada um fator fundamental no processo pelo qual a igreja deixou de ser judaica e se tornou um movimento sobretudo gentílico,

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pois deve ter sido aproximadamente nessa época que a sinagoga e a igreja se separaram. A fidedignidade histórica de Atos foi um fator importante nessa discussão, visto que Lucas situou essa separação consideravelmente antes e não a vinculou com a política palestina. Será que esse relato era historicamente preciso ou meramente o reflexo da propaganda cristã primitiva? Por fim, a singularidade da teologia de Paulo também passou a ser ques­ tionada. Ele sempre havia sido considerado como o “apóstolo dos gentios”, o antijudaizante arquetípico. M as, na década de 1970, alguns estudiosos come­ çaram a sugerir que sua teologia era tão judaica quanto a de seus oponentes; a diferença era que sua perspectiva era a perspectiva do judaísmo da Diáspora, e não a dos rabinos palestinos. Com essa sugestão, é possível dizer que a “ini­ ciativa rejudaizante” do Novo Testamento alcançou o auge. Pela primeira vez desde a morte dos apóstolos, o conhecimento completo de fontes rabínicas e de outras fontes judaicas foi considerado essencial para a interpretação do Novo Testamento, deixando o impacto do helenismo em segundo plano. O clima de estudos do Novo Testamento na década de 1970 era radicalmente diferente do que havia sido durante quase duzentos anos e parecia possível que uma nova era nos estudos bíblicos estava prestes a raiar.

Os intérpretes e sua obra A esfera alemã Paul Billerbeck (1853-1932). Conhecido principalmente por seu comentário de quatro volumes do Novo Testamento (1922-1928), geralmente designado (embora incorretamente) de “Strack-Billerbeck”, porque H. Strack concordou em ajudá-lo com a publicação e seu nome acabou na página do título, embora não tenha escrito uma só palavra do texto. Billerbeck foi um notável estudioso rabínico, e seu comentário tem enorme valor por conter grande riqueza de in­ formação contextual sobre o período. Hans W indisch (1881-1935). Foi professor de Novo Testamento em Leiden (1914), Kiel (1929) e H alle (1935). Sua obra sobre o Sermão do M onte (1929) foi uma resposta à abordagem da “história das religiões” de Bultmann. Ele também escreveu comentários das Epístolas Católicas (1911), de Hebreus (1913) e 2Coríntios (1924). Rudolf Otto (1869-1937). Professor de teologia sistemática em Gõttingen (1897), Breslau (1914) e Marburgo (1917-1929), hoje ele é conhecido princi­ palmente por seu famoso estudo de religião comparada, The ideia o f the holy [O

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sagrado] (1917). No entanto, também escreveu sobre temas do Novo Testamento, sobretudo em The kingdom o f God a n d the Son o fM a n [O reino de Deus e o Filho do homem] (1934). Hans Lietzm ann (1875-1942). Professor de história da igreja em Jena (1908) e Berlim (1924), escreveu comentários de Romanos (1906), 1 e 2Coríntios (1907) e Gálatas (1910), todos eles partes de uma série sobre todo o Novo Testamento que ele desenvolveu. E lembrado hoje mais por sua obra sobre história da igreja primitiva, incluindo sua bem-conhecida M ass a n d the L ord ’s Supper [A missa e a ceia do Senhor] (1926). Hans Freiherr von Soden (1881-1945). Ensinou em Breslau (1918) e Marburgo (1924) e foi um proeminente antinazista. Suas obras principais se concentraram em crítica textual e ordem eclesiástica. Ele tentou fundir as per­ cepções helenista e judaica em uma compreensão mais profunda do cristianismo, que para ele era sempre uma ética prática, bem como uma teologia filosófica. Friedrich Buchsel (1883-1945). Professor de Novo Testamento em Rostock de 1917 até sua morte, foi um estudioso conservador que escreveu comentários das epístolas joaninas (1933) e de João (1934). Também escreveu um livro sobre a cristologia de Hebreus (1922) e outro sobre João e o sincretismo helenista (1928). Ele rejeitou a pressuposição comum de que João havia sido profunda­ mente influenciado por modelos e conceitos helenistas e defendeu que tudo no quarto Evangelho vinha de um contexto judaico palestino, tornando-o mais historicamente fidedigno do que se havia anteriormente pensado. Em st Lohmeyer (1890-1946). Professor em Breslau de 1920 a 1935, foi de­ mitido por suas opiniões antinazistas. Foi assassinado por tropas russas em 1946. Antecipou a crítica da forma em L ord o f the tem ple [Senhor do templo] (1942) e escreveu diversos comentários: Apocalipse (1926), Filipenses, Colossenses e Filemom (1930) e Marcos (1937). Um comentário de Mateus foi publicado após sua morte (1956). Sua interpretação de Paulo demonstra uma profundidade de percepção do texto sem comparação em seus contemporâneos na Alemanha. M artin D ibelius (1883-1947). Aluno tanto de Harnack quanto de Gunkel, foi professor em Heidelberg a partir de 1915. Foi um dos grandes represen­ tantes da abordagem da “história das religiões” na crítica do Novo Testamento e pioneiro da crítica da forma. Escreveu comentários sobre as epístolas mais curtas de Paulo (1912), as Epístolas Pastorais (1913), os Evangelhos (1919) e Tiago (1921). M ais tarde, escreveu obras populares sobre Jesus (1939) e Paulo (1951), e Studies in th e Acts o f th e A postles [Estudos nos Atos dos Apóstolos] foi compilado e publicado postumamente (1951). Ele se opôs às tendências

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teologizantes da crítica da redação e pareceu um tanto antiquado no clima da década de 1930 e depois. Julius Schniewind (1883-1948). Lecionou em H alle (1921), Greifswald (1927), Kõnigsberg (1929), Kiel (1935) e H alle (1936), mas foi demitido em 1937 por suas visões antinazistas. Foi reconduzido ao cargo em 1945. Escreveu diversos artigos sobre os Evangelhos Sinóticos e sobre teologia do Novo Testamento, em que demonstrou que o conceito de “boas-novas” tinha origem nas esperanças judaicas pós-exílicas do Messias que haveria de vir, e não no helenismo. Schniewind deu continuidade à tradição conservadora e teológica de M artin Káhler e AugustTholuck, que, graças a ele, ficou conhecida na Alemanha como a “Hallenser Theologie”. Para Schniewind, a teologia, assim como a fé, vinha de ouvir a Palavra, e a Bíblia era uma voz chamando para ser ouvida, e não um texto esperando para ser dissecado. Ele fez uma tentativa consciente de ressuscitar os princípios de exegese bíblica dos reformadores em face da crítica histórica moderna e foi um dos principais representantes do movimento de teologia bíblica na Alemanha. Gerhard Kittel (1888-1948). Professor de Novo Testamento em Tübingen (1926-1945), é conhecido principalmente por seu Theological diction ary o f the N ew T estam ent [D icionário teológico do N ovo T estam ento] (1933-1974). Apesar de sua obra sobre os problemas do “judaísmo posterior” e do cristianismo prim i­ tivo (1926), em que esboçou a influência daquele sobre este, tornou-se nazista e foi afastado do cargo de professor em 1945. Karl Ludwig Schmidt (1891-1956). Foi professor de Novo Testamento em Giessen (1921), Jena (1925), Bonn (1929) e Basiléia (1935-1953). Sua principal obra foi sobre os Evangelhos Sinóticos (1919) e sobre a natureza literária deles (1923). W alter Bauer (1877-1960). Bauer foi professor de Novo Testamento em Góttingen (1916-1945). Sua obra constitui a base do dicionário padrão de grego do Novo Testamento, que agora está na sua sexta edição (a quarta edição, 1952, foi traduzida para o inglês e geralmente é conhecida como “Arndt e Gingrich”, de acordo com os nomes dos tradutores). Ele também escreveu um comentário de João (1912) e um estudo muito importante, Orthodoxy a n d heresy in earliest C hristianity [Ortodoxia e heresia nos primórdios do cristianismo] (1934). Em seu livro, tentou provar que “ortodoxia” era um conceito tardio, desenvolvido com base na centralização gradual da autoridade na igreja, e que “heresia” repre­ sentava formas mais autênticas (isto é, mais primitivas) de cristianismo. Karl Barth (1886-1968). Teólogo reformado suíço, lecionou em Góttingen (1921),Münster (1925), Bonn (1930) e, por fim, Basiléia (1935). Sua obra principal

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foi Church dogm atics [Dogmática eclesiástica], uma teologia sistemática de fôle­ go que ele redigiu durante várias décadas e nunca chegou a concluir. Também escreveu comentários teológicos de Romanos (1919, 1921), ICoríntios (1924) e Filipenses (1928). A fusão que Barth faz entre conservadorismo teológico e métodos críticos ficou conhecida como “neo-ortodoxia”, que inspirou toda uma geração de teólogos reformados. No entanto, ele recebeu considerável oposição dos católicos, que objetaram à sua denúncia radical da teologia natural. Também é questionável se a “neo-ortodoxia” conseguirá se manter como uma síntese teo­ lógica depois que a geração dos pupilos de Barth tiver desaparecido do cenário. Rudolf K arlBultm ann (1884-1976). Foi professor de Novo Testamento em Marburgo (1921-1951) e sua abordagem da crítica da forma dos estudos do Novo Testamento veio a dominar o campo na Alemanha. No mundo de fala inglesa, seus métodos e conclusões foram mais controversos, e ele muitas vezes foi execrado como o arquétipo do crítico incrédulo. O estudo clássico em que ele desenvolveu suas teorias foi The history o fth e syn op tic tradition [A história da tra­ dição sinótica] (1921), um livro que revela sua dívida para com Gunkel. Outras obras importantes foram Jesu s a n d the Word [Jesus e a Palavra] (1926), P rim itive C hristianity [Cristianismo primitivo] (1949) e H istory a n d eschatology [História e escatologia] (1957). Ele também escreveu comentários de João (1941), das epístolas joaninas (1967) e de 2Coríntios (1976). Bultmann é famoso por afirmar que a mensagem do evangelho é uma pro­ clamação (grego, kêrygm a), que pode ser universalizada removendo a camada externa de mito que a reveste. Esse é o processo conhecido como “desmitologização”, que Bultmann considerava essencial para pregar o querigma com êxito ao “homem moderno”. A crítica à sua obra se concentrou em torno desse conceito de “mito”, que claramente remonta a D. F. Strauss e que muitos consi­ deraram uma categoria inapropriada para descrever o conteúdo dos Evangelhos. Bultmann também foi atacado por tornar o querigma uma abstração desencar­ nada, que de uma perspectiva teológica significa uma negação da encarnação. Leonhard Goppelt (1911-1973). Foi professor de Novo Testamento em Hamburgo a partir de 1954 e em M unique a partir de 1967. Sua abordagem era conservadora, mas ainda na tradição crítica. Suas obras mais bem-conhecidas são Typos: the typ ologica l in terpretation o f the O ld T estam ent in the N ew [Typos: a interpretação tipológica do Antigo Testamento no Novo] (1939) e A postolic a n d p ost-a p ostolic tim es [Épocas apostólica e pós-apostólica] (1962). Ao morrer, deixou uma teologia incompleta do Novo Testamento (1975, 1982) e um co­ mentário de lPedro (1978), ambos publicados postumamente.

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Joachim Jerem ias (1900-1979). Jeremias foi professor de Novo Testamento em Greifswald (1929) e Gõttingen (1935). Ele permaneceu comprometido com a busca tradicional do Jesus histórico, em oposição ao Cristo querigmático de Bultmann. Ao usar métodos de “história das religiões”, ele acreditava que podia identificar as próprias palavras (ipsissim a verb a ) de Jesus nos Evangelhos. Seus livros, The eucharistic w ord s o f Jesu s [As palavras eucarísticas de Jesus] (1935), The parables o f Jesu s \Asparábolas de Jesu s] (1947) e The th eology o f the N ew T estam ent [ T eologia do N ovo T estam ento] (1971), foram bem recebidas fora da Alemanha e ajudaram a espalhar seus métodos para outros países. H einrich Schlier (1904-1982). Pupilo de Bultmann, foi professor de Novo Testamento em Bonn (1946). Escreveu extensamente sobre temas paulinos, in­ cluindo comentários de Gálatas (1949), Efésios (1957) e Romanos (1977). Sua última obra foi um estudo detalhado da teologia de Paulo (1978). Günther Bornkamm (1905-1990). Pupilo de Bultmann, foi professor de Novo Testamento em Heidelberg de 1949 a 1971. Seu Jesu s ofN a zareth \Jesus de Nazaré\ (1956) é a expressão clássica da “nova busca” do Jesus histórico, e seu livro sobre Paulo (1969) também se tornou uma obra padrão. Foi pioneiro da crítica da redação de M ateus (1963, 1968) e defendeu a visão protestante clássica da centralidade da justificação pela fé na teologia paulina, contra os ataques de Ernst Kásemann. W iffi M arxsen (1919-1993). Professor de Novo Testamento em Zurique, escreveu muito sobre teologia do Novo Testamento, sobretudo de uma perspec­ tiva da crítica da redação. Seu estudo de Marcos (1959) é um clássico desse tipo de interpretação. Também escreveu comentários de ITessalonicenses (1979), 2Tessalonicenses (1982), uma introdução ao Novo Testamento (1964) e livros sobre cristologia (1969) e catolicismo primitivo (1958). Georg Ewald Strecker (1929-1994). Foi professor de Novo Testamento em Gõttingen (1964) e um proeminente crítico da redação do Evangelho de Mateus. Sua obra principal é The Sermon on th eM ou n t [O Sermão do Monte] (1984). W erner Georg Kümmel (1905-1995). Foi professor de Novo Testamento em Zurique (1932), M ainz (1951) e Marburgo (1952). Sua obra Introdução ao N ovo T estam ento é um excelente guia de pesquisa moderna do Novo Testamento. Ernst Kásemann (1906-1998). Pupilo de Bultmann e um de seus mais se­ veros críticos. Foi professor de Novo Testamento em M ainz (1946), Gõttingen (1951) e Tübingen (1953). Foi o principal instigador da “nova busca” do Jesus histórico (1953). Sua obra foi notável pela capacidade de provocar controvérsias, e muitas (se não a maioria) de suas conclusões foram rejeitadas por um número

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de estudiosos pelo menos igual ao número dos que as aceitaram. É amplamente por causa dele que o cânon, “a ortodoxia”, o Evangelho de João, “o catolicismo primitivo” e o apocalipse como “a mãe da teologia cristã” têm constado de modo tão proeminente na pesquisa moderna. Ele questionou a ênfase protestante tra­ dicional na justificação pela fé, presente na teologia paulina, e atribuiu o ensino de Paulo sobre o tema a uma influência apocalíptica. A maior parte de sua obra está na forma de ensaios em outras compilações, mas ele escreveu um importante comentário de Romanos (1973). Nils Alstrup D ahl (1911-2001). Aluno norueguês de Bultmann, ensinou em Oslo (1946) e em Yale (1965-1982) e, portanto, é uma ponte entre os mun­ dos escandinavo e de fala inglesa. Foi um dos que deram início à “nova busca” do Jesus histórico. Seus muitos ensaios sobre diferentes temas do Novo Testamento foram publicados em várias compilações: The cru cifiedM essiah [O M essias cruci­ ficado] (1974), Jesu s in the m em ory o f the early church [Jesus na memória da igreja primitiva] (1976) e Studies in P aul [Estudos em Paulo] (1977). H einz Schürmann (1912-1999). Professor de Novo Testamento em Erfurt (1952) e importante representante católico romano da abordagem da “história das religiões”, especializou-se nos Evangelhos e escreveu um comentário de Lucas em dois volumes (1969,1993), que está incompleto. Eduard Schweizer (1913-2006). Aluno de Bultmann, foi professor de Novo Testamento em Zurique de 1949 a 1978. Escreveu detalhadamente sobre es­ tudos do Novo Testamento. Após obras iniciais como L ordship a n d discipleship [Senhorio e discipulado] (1955), Church a n d church order in the N ew T estam ent [Igreja e ordem eclesiástica no Novo Testamento] (1959) e The church as the body o f Christ [A igreja como o corpo de Cristo] (1965), passou a escrever comen­ tários: de Marcos (1967), M ateus (1973), Colossenses (1976) e Lucas (1982). Kurt (1915-1994) e Barbara (1937-) Aland. Uma dupla de trabalho de marido e esposa que realizou uma contribuição de grande importância para o estudo textual do Novo Testamento. Seu livro sobre o tema, The text o f the N ew T estam ent [O texto do Novo Testamento], foi publicado em 1982 e é uma obra de referência. Também revisaram o léxico de W . Bauer (1988), e Kurt escreveu sobre o problema do cânon (1962). Hans Conzelm ann (1915-1989). Pupilo de Bultmann,lecionou em Zurique (1954) e depois em Góttingen (1960). Também foi pioneiro da crítica da re­ dação, como pode ser observado em sua obra clássica The th eology o f St Luke [A teologia de São Lucas] (1956).Também escreveu comentários de Atos (1963) e ICoríntios (1969) e se envolveu na “nova busca” do Jesus histórico.

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Ceslaus Spicq (1901-1993). Grande estudioso da Bíblia, francês, cató­ lico romano conservador, é notável por seu comentário clássico de Hebreus. Também editou um dicionário teológico do Novo Testamento (1985; T I 1995).

O mundo defala inglesa John M artin Creed (1889-1940). Lecionou em Cambridge a partir de 1914 e foi um liberal de grande influência. Escreveu um comentário de Lucas (1930) e um estudo doutrinário da divindade de Cristo (1938). Desempenhou um papel proe­ minente nas tentativas de enfraquecer a doutrina tradicional da Igreja da Inglaterra. Shailer M athews (1863-1941). Foi reitor da Chicago D ivinity School (1908-1933), em que desenvolveu uma geração de estudiosos interessados em interpretações sociais do evangelho. Inicialmente, seguiu o liberalismo de sua época, mas em The m essianic hope in the N ew T estam ent [A esperança messiânica no Novo Testamento] (1905) adotou a perspectiva escatológica de J. W eiss.M ais tarde, escreveu diversas obras em que ligou a interpretação do Novo Testamento ao estudo sociológico contemporâneo. Jam es M offatt (1870-1944). Estudioso da Bíblia escocês, ele foi profun­ damente influenciado por A. B. Bruce. Após ensinar em Glasgow (1915), ele ensinou no Union Theological Seminary, em Nova York (1927-1939). Foi um notável tradutor da Bíblia, tendo publicado o Novo Testamento em 1901 e o Antigo Testamento em 1924. Toda a obra foi revisada em 1935. Além disso, ele contribuiu com comentários das Epístolas Gerais (1928) e de 1 e 2Coríntios (1938) para uma série de comentários baseada em sua própria tradução. Kirsopp Lake (1872-1946). Seguidor e popularizador de W . Bousset, fez uma relação entre as religiões de mistério e seu alto conceito da eucaristia como centro do cristianismo. A rthur Cayley H eadlam (1862-1947). Considerava o Jesus dos evangelhos como uma figura histórica coerente e defendeu ser necessário tratar os textos como historicamente fidedignos. Sua obra principal nessa área foi The fo u r th G ospel as history [O quarto Evangelho como história] (1948). Ele também pu­ blicou um comentário de Romanos com W. Sanday (1920) e outras obras sobre Paulo (1913) e milagres (1915). ShirleyJackson Case (1872-1947). Case foi professor de Novo Testamento em Chicago (1908-1938) e um dos principais liberais de sua época. Especializou-se em história social, sobre cujas bases tentou escrever biografias de Jesus (1927,1932).

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W ilfred Lawrence Knox (1886-1950). Esse estudioso anglo-católico con­ servador escreveu extensamente sobre P au l a n d the church o f Jerm alem [Paulo e a igreja de Jerusalém] (1925), bem como sobre P aul a n d the church o f the gen tiles [Paulo e a igreja dos gentios] (1939). Seu estudo das fontes dos evangelhos sinóticos foi publicado postumamente em 1953-1957. Robert H enry Lightfoot (1883-1953). Professor de Novo Testamento em Oxford (1934), ele apresentou a crítica da forma à Inglaterra em H istory a n d in terpretation o f the Gospels [História e interpretação dos Evangelhos] (1935) e foi um precursor da crítica da redação. Escreveu comentários de Marcos (1950) e João (1956), este publicado após sua morte. W illiam Ralph Inge (1860-1954). Defendeu contra Baur e sua escola que não é possível explicar o Novo Testamento da perspectiva de uma oposição entre judaísmo e helenismo, teoria que, em sua visão, já estava desatualizada. Escreveu diversas obras, principalmente sobre filosofia grega antiga e misticismo. Charles Cutler Torrey (1863-1956). Professor de línguas semíticas em Yale, escreveu diversas obras importantes de crítica bíblica, incluindo The com position a n d date ofA cts [A composição e data de Atos] (1916), em que ele defendeu que um original aramaico estava por trás do texto bíblico. Thomas W alter M anson (1893-1958). Lecionou em Oxford (1932) e Manchester (1936), onde sucedeu a C. H. Dodd. Suas obras principais foram The teach in g o f Jesu s [O ensino d e Jesu s] (1931) e The sayings o f Jesu s [As declara­ ções de Jesus] (1939). Ele se opôs fortemente à crítica da forma e se apegou à abordagem filológica tradicional na Inglaterra. A rthur Darby Nock (1902-1963). Nock lecionou em Cambridge (1926) e Harvard (1930). Sua abordagem antropológica da religião significava que sua interpretação do Novo Testamento era muito literal e antidogmática. Hoje é lembrado principalmente por seu estudo acerca da C onversion [Conversão] (1933), mas também escreveu sobre o contexto helenista do cristianismo (1928) e sobre Paulo (1938). VincentTaylor (1887-1968). Lecionou em Leeds (1936) e escreveu exten­ samente sobre temas do Novo Testamento, de uma perspectiva crítica moderada. Produziu um comentário sobre Marcos (1952) e sobre a narrativa da paixão de Lucas (1970), bem como vários estudos em teologia do Novo Testamento, incluindo Jesus a n d h is sacrifice [Jesus e seu sacrifício] (1937), The atonem ent in N ew Testament teaching [A expiação no ensino do Novo Testamento] (1940), F orgiveness a n d reconciliation [Perdão e Reconciliação] (1941) e T heperson o f Christ in the teaching o f the N ew Testament [A pessoa de Cristo no ensino do Novo Testamento] (1958).

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Sam uel George Frederick Brandon (1907-1971). Aluno de religião com­ parada e com uma abordagem de modo geral liberal, ele escreveu uma obra importante sobre a queda de Jerusalém em 70 d.C. (1951) e seu significado para a igreja cristã. Sua obra sobre Jesu s a n d the zealots [Jesus e os zelotes] (1967), que descreveu Jesus como um simpatizante revolucionário, não rece­ beu aprovação geral. Charles Harold Dodd (1884-1973). Professor de Novo Testamento em Manchester (1930) e Cambridge (1935-1949), sua obra mais importante foi sobre João, mas escreveu amplamente sobre o Novo Testamento e em geral é considerado o maior estudioso de sua geração na Grã-Bretanha. Escreveu comentários de Romanos (1932) e das epístolas joaninas (1946), além de seu clássico The in terpretation o fth e fo u rth G ospel \A interpretação do quarto E vangelho (1953) e H istorical tradition in the fo u r th G ospel [Tradição histórica no quarto Evangelho] (1963). Entre outras obras importantes se encontram The parables o f the kingdom \As parábolas do reino] (1935, revisado em 1961), The apostolic p rea ch in g a n d its d evelop m en ts [A pregação apostólica e seus desenvolvimen­ tos] (1936) e The fo u n d e r o f C hristianity \0 fu n d a d o r do cristianism o] (1967). Sua posição teológica era liberal e ele é bem-conhecido por suas objeções ao conceito de “ira de Deus”. Ele também defendeu uma “escatologia realizada” em sua interpretação das parábolas e ampliou o conceito de Bultmann do querigma com a inclusão da ideia de cumprimento histórico. H enryJoel Cadbury (1883-1974). Prestou uma grande contribuição ao es­ tudo das origens cristãs ao insistir no tratamento de Lucas—Atos como uma só obra. Sua publicação mais importante foi The style a n d litera ry m ethod ofL uke [O estilo e método literário de Lucas] (1916). Norman Perrin (1921-1976). Perrin foi professor de Novo Testamento na Emory University (1958) e em Chicago (1964). Desenvolveu a abordagem de T. Manson e J. Jeremias em The kingdom o f God in the teach in g o f Jesus [O reino de Deus no ensino de Jesus] (1963). M ais tarde, publicou uma obra mais cética: R ed iscoverin g the teach in g o f Jesu s [Redescobrindo o ensino de Jesus] (1967). Em seu último livro, Jesu s a n d the la n gu a ge o f the kingdom [Jesus e a linguagem do reino] (1976), defendeu uma abordagem literária dos Evangelhos. W illiam Barclay (1907-1978). Professor de teologia em Glasgow (19631974), é famoso sobretudo por seus comentários sobre o Novo Testamento, amplamente usados por pregadores. Eles representam uma abordagem con­ servadora da crítica bíblica, mas uma atitude relativamente liberal para com questões de doutrina cristã.

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John Arthur Thomas Robinson (1919-1983). Esse bem-conhecido es­ tudioso do Novo Testamento tinha posições exegéticas conservadoras, mas as teológicas eram extremamente radicais. Seu livro, R ed atin g the N ew T estam ent [Uma nova datação do Novo Testamento] (1976), foi uma tentativa prolongada de demonstrar que todo o Novo Testamento havia sido escrito antes de 70 d.C. Embora seja muito criticado por estudiosos liberais, suas teses não foram refuta­ das com sucesso total. Stephen Charles N eill (1900-1984). Um estudioso de influência em amplos círculos, de tendências relativamente conservadoras, apresentou como principal contribuição para os estudos do Novo Testamento seu relato extremamente agradável da interpretação do Novo Testamento de 1861 a 1961 (1964). George Bradford Caird (1917-1984). Um dos últimos representantes da antiga escola de exegese de Cambridge, escreveu detalhados e bem elaborados comentários de Apocalipse (1966), Lucas (1968) e das epístolas da prisão de Paulo (1976). Sua última obra foi L anguage a n d im a gery o f the B ible [A lingua­ gem e as imagens na Bíblia] (1980), que é um clássico menor. A rthur M ichael Ramsey (1904-1988). Lecionou em Durham (1940) e Cambridge (1950) e se tornou sucessivamente bispo de Durham (1952) e arcebispo de York (1956) e da Cantuária (1961-1974). Sua posição era a de um católico liberal e ele defendeu essa posição em diversas obras, incluindo The go sp el a n d the C atholic church [O evangelho e a igreja católica] (1936), The resurrection o f C hrist [A ressurreição de Cristo] (1945) e The g lo r y o f God in the transfiguration o f C hrist [A glória de Deus na transfiguração de Cristo] (1949). John Knox (1900-1990). Foi professor de Novo Testamento no Union Theological Seminary (1943-1966) e escreveu diversos estudos críticos liberais sobre temas do Novo Testamento, incluindo C hrist the L ord [Cristo, o Senhor] (1945), Chapters in a life o fP a u l [Capítulos na vida de Paulo] (1950), The death o f C hrist [A morte de Cristo] (1958), The church a n d the reality o f Jesu s [A igreja e a realidade de Cristo] (1962) e The hu m a nity a n d d iv in ity o f C hrist [A humanida­ de e divindade de Cristo] (1967). Também escreveu comentários de Romanos (1954) e Filemom (1959). M atthew Black (1908-1994). Lecionou em diversas universidades britâni­ cas antes de se tornar diretor da S tM ary s College, em St Andrews (1954-1978). Sua formação inicial foi no Antigo Testamento e em idiomas semíticos, habi­ lidade que viria a usar com grande eficácia quando focou no Novo Testamento após 1945. Sua obra A ram aic approach to the Gospels andA cts [Abordagem aramaica dos Evangelhos e Atos] (1946) foi um estudo de grande importância

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sobre as influências judaicas no Novo Testamento e teria importância seminal no direcionamento da pesquisa nessa área. M ais tarde, escreveu sobre Qumran, The scrolls a n d C hristian origin s [Os pergaminhos e as origens cristãs] (1961), e produziu um comentário de Romanos (1973). Sua última obra relevante foi mais um comentário, de lE n oq u e (1985). Charles Francis D igby M oule (1908-2007). M oule foi professor de Novo Testamento em Cambridge de 1952 a 1976 e um proeminente estudioso de ten­ dências conservadoras. Escreveu comentários de Marcos (1965) e Colossenses (1957), bem como dois bons livros sobre o Novo Testamento em geral: The birth o f the N ew T estam ent [O nascimento do Novo Testamento] (1962) e The p h en om en on o f the N ew T estam ent [O fenômeno do Novo Testamento] (1967). Também foi um proeminente opositor daqueles que desmitologizavam a divindade de Cristo e contrariou os argumentos deles em um importante estudo sobre a origem da cristologia (1977). Christopher Francis Evans (1909-2012). Professor de Novo Testamento na Kings College, Londres (1962), e um bem-conhecido liberal, fez objeções à imposição de limites canônicos na literatura cristã primitiva (1971) e escreveu um comentário de Lucas (1990). W illiam D avid Davies (1914-2001). Foi professor de Novo Testamento no Union Theological Sem inary em Nova York (1949) e na Duke University (1966). Sua obra clássica P aul a n d rabbinic Ju daism [Paulo e o judaísmo rabínico] (1949) foi uma importante contribuição para a reavaliação de Paulo em seu contexto judaico. M ais estudos sobre o contexto judaico do Novo Testamento incluem The settin g o f the Serm on on the M ou n t [O cenário do Sermão do Monte] (1964) e The g o sp el a n d the la n d \ 0 evangelho e a terra] (1974). Também escre­ veu o primeiro volume de um comentário de M ateus, em cooperação com D. C. Allison Jr (1988). Bruce M anning M etzger (1914-2007). Professor de Novo Testamento em Princeton (1938), foi um notável estudioso conservador do Novo Testamento grego. Seus livros The tex t o f the N ew T estam ent [O texto do Novo Testamento] (1964) &A tex tual com m en tary on the G reekN ew T estam ent [Comentário textual do Novo Testamento grego] (1971) são clássicos em seu campo. Charles Ernest Burland Cranfield (1915-2015). Foi um renomado exegeta conservador e comentarista do Novo Testamento. Obras iniciais suas foram comentários de lPedro (1950) e Marcos (1959). Sua obra principal é seu co­ mentário de Romanos (1975,1979), que rapidamente se estabeleceu como uma obra padrão sobre essa epístola.

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Reginald Horace Fuller (1915-2007). Fuller lecionou em Lampeter (1950), Chicago (1955), Union Theological Seminary, Nova York (1966) e finalmente no Virginia Seminary (1972-1986). É possível observar sua abordagem relativa­ mente radical em seu conhecido livro Thefo rm a tio n o f the resurrection n arratives [A formação das narrativas da ressurreição] (1971). Também foi amplamente responsável pela tradução das principais obras de R. Bultmann para o inglês. Charles Kingsley Barrett (1917-2011). Esse renomado estudioso do Novo Testamento foi professor em Durham (1958-1982). Sua posição era crítica, mas em geral no lado conservador, na tradição filológica de Cambridge. Seu comentário de João (1955, ed. rev. 1978) se tornou um clássico. Também escreveu comentários de Romanos (1957) e l e 2Coríntios (1968,1973). Entre seus muitos outros livros estão The H oly Spirit a n d the gosp el tradition [O Espírito Santo e a tradição do evangelho] (1947), F rom first Adam to last [Do primeiro Adão ao último] (1962), Jesus a n d the gosp el tradition [Jesus e a tradição do evangelho] (1967), The signs o f an apostle [Os sinais de um apóstolo] (1970) e The Gospel o fjo h n an dJudaism [O Evangelho de João e o judaísmo] (1975).Também publicou diversos ensaios sobre o Novo Testamento (1972), sobre Paulo (1982) e sobre João (1982). Ernest Best (1917-2004). Professor em Glasgow (1974-1978), escreveu extensamente sobre Marcos e Paulo. Seus comentários de Romanos (1967), lPedro (1971) e l e 2Tessalonicenses (1972) são expressões concisas de uma posição moderadamente crítica.

As questões E possível resumir as questões principais confrontando o estudo crítico do Novo Testamento durante esse período do seguinte modo. 1. Era necessário d eterm in a r a relação en tre Jesu s e a igreja cristã. Essa era uma questão fundamental, remanescente do século 19. Em seu centro estava o problema do “Jesus histórico”, o homem por trás da história do evangelho. Intérpretes conservadores consideravam os Evangelhos relatos historicamente fidedignos e descreviam Jesus como o grande fundador e mestre da fé que agora leva seu nome. Estudiosos mais liberais tendiam a enxergar Jesus em um papel passivo, como aquele ao redor do qual as lendas e doutrinas do cristianismo se reuniam. O interesse fundamental da maior parte do estudo dos Evangelhos era essa questão. Com o passar do tempo, ficou cada vez mais claro que era necessá­ rio enxergar Jesus principalmente em contraste com seu pano de fundo judaico.

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Qualquer distância entre ele e o cristianismo posterior tinha relação com a se­ paração da igreja de suas raízes judaicas, que ocorreu em algum momento em cerca de 70 d.C. ou logo depois disso. Também havia a importante questão da escatologia, levantada por J. Weiss and A. Schweitzer. Até que ponto o Novo Testamento era uma escatologia realizada, isto é, um cumprimento de promes­ sas do Antigo Testamento, e até que ponto ele apontava para uma esperança futura? Será que os discípulos diluíram esse aspecto, quer para tornar a pregação mais aceitável, quer para explicar que a futura esperança não se materializaria como esperado? Essas questões permaneceram temas de debate fundamental durante esse período. 2. Era necessário determ inar a relação en tre a igreja cristã e ojudaísm o. Essa questão está fortemente ligada à primeira e adquiriu importância muito maior após 1945. Houve uma reação geral em todo esse período ao retrato do cristianismo como uma seita judaica helenizada, o qual havia crescido no século 19 e havia sido pro­ movido, pelos primeiros representantes da abordagem da “história das religiões”. Em vez disso, afirmou-se com ousadia cada vez maior que o cristianismo era uma forma perfeitamente compreensível de judaísmo, ao menos na forma proclamada por Jesus. Até Paulo veio a ser cada vez mais compreendido em associação com suas origens judaicas, até finalmente alguns o considerarem pouco mais que um rabino meio excêntrico. Essa era claramente uma visão extrema, mas no final da década de 1970 ela estava determinando o ritmo da discussão acadêmica. 3. Era necessário d ecid ir a té que p o n to a teologia cristã com o ela agora exis­ te está enraizada no N ovo T estam ento. A afirmação tradicional de que toda a teologia cristã se baseava no ensino das Escrituras era cada vez mais questio­ nada. Alguns teólogos protestantes liberais afirmavam que o Novo Testamento continha uma variedade de posições teológicas que podiam ser harmonizadas somente de modo muito geral (isto é, afirmando que Jesus tinha “significa­ do central” para nossa compreensão de Deus). Outros afirmavam que certas doutrinas cristãs ortodoxas, sobretudo as relacionadas à divindade de Cristo e aos conceitos de pecado e juízo, eram distorções do relato bíblico e queriam modificar a tradição dogmática com base em uma nova exegese dos textos. Ainda outros, fundamentalmente mais conservadores, enfatizavam que o Novo Testamento fazia parte de um conjunto de Escrituras maior que continha uma mensagem teológica coerente; eles foram identificados como o movimento da “teologia bíblica”. Em meados do século 20, essas convicções disputavam entre si em meio aos estudiosos críticos, e não é possível afirmar que alguma delas se estabeleceu como definitiva.

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4. Era necessário a b sorver as m ais recentes descobertas arqueológicas no estudo do N ovo Testamento. Até 1945, isso era um problema relativamente secundário, com exceção da história de Atos e da localização das igrejas na Ásia Menor. M as após as descobertas dos textos de Nag Hammadi e dos Manuscritos de Qumran, a arqueologia do Novo Testamento adquiriu significância muito maior. Tornou-se possível recriar o contexto da igreja primitiva e avaliar a abundância de papiros que haviam sido descobertos no Egito. Finalmente se reconheceu o grego do Novo Testamento como o vernáculo comum de sua época — não exatamente o “idioma falado”, mas uma norma escrita que se aproximava dele. A descoberta e o exame de um grande número de manuscritos e fragmentos do Novo Testamento permitiram que estudiosos compusessem o que constituía um texto grego definitivo, concluindo, desse modo, à medida que isso era possível, o trabalho começado por Lachmann no início do século 19.

Os métodos de interpretação A crítica da forma O grande representante da tradição de Gunkel e von Rad nos estudos do Novo Testamento foi R. Bultmann. Em uma medida considerável, ele combinou suas realizações críticas com uma perspectiva filosófica e teológica, que o ligou ao existencialismo contemporâneo e às teorias de M . Heidegger, em especial. Bultmann, portanto, provocou consideravelmente mais oposição que von Rad, mas sua ideologia foi a que predominou na crítica do Novo Testamento até o início da década de 1970. Hoje é possível dizer que a abordagem de Bultmann está desaparecendo, embora suas realizações críticas permaneçam. Bultmann começou aplicando os métodos de Gunkel aos Evangelhos Sinóticos. Ao analisar cada pedaço minúsculo de tradição, ele acreditava que podia demonstrar, a partir do modo que foram preservados, como haviam sido usados nas primeiras comunidades cristãs. Desse modo, ele pensava que podia descobrir seu S itz im L eben e assim preencher o período em bran­ co entre a vida de Jesus e a redação dos apóstolos. Deve-se enfatizar que Bultm ann não tinha interesse nas percepções sociológicas que esse método pudesse fornecer; a história permaneceu seu único interesse. Para Bultmann, havia duas dimensões da história — aquela em que o texto era composto e aquela da qual o texto falava. A prim eira delas era mais importante, visto que seus interesses e prioridades inevitavelmente determ inariam o que seria selecionado do período anterior.

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Por causa disso, Bultmann acreditava que a busca do “Jesus histórico” estava fadada ao fracasso. O que o Novo Testamento realmente testemunhava era a proclamação do evangelho, que somente estava tangencialmente relacionada à vida do Jesus histórico. Bultmann ligou suas teorias críticas às opiniões teoló­ gicas de M . Kàhler and K. Barth, os quais enfatizaram o “Cristo pregado” em oposição ao Jesus da história, mas sem negar o último como Bultmann fez. Dali era somente um pequeno passo para afirmar que as tradições do evange­ lho haviam se desenvolvido de acordo com a pregação da igreja e que se havia adaptado o relato histórico para servir a esse alvo. Isso, por sua vez, sublinhou a legitimidade — até mesmo a necessidade — de fazer mais adaptações ao texto para acomodá-lo à cosmovisão moderna. Foi esse processo que Bultmann cha­ mou de “desmitologização” e que constituiu a base de grande parte de sua obra. Entre estudiosos que compreendiam a abordagem da “história das religiões”, as ideias de Bultmann encontraram uma platéia pronta e logo foram adotadas. Em outros lugares, no entanto, houve confusão, equívoco e rejeição. A grande fraqueza na teoria de Bultmann era o curto período entre a vida de Jesus e a composição dos Evangelhos; a comparação com a cultura popular em outros lu­ gares sugeriu que desenvolvimentos que normalmente levariam gerações foram comprimidos por Bultmann no espaço de algumas décadas. Desmitologização não foi um conceito prontamente absorvido por aqueles cuja compreensão de “mito” era menos sofisticada que a dele, e ela foi rejeitada por todos aqueles que consideravam o evangelho um relato fidedigno. É verdade que quando a filosofia por trás da pesquisa da abordagem da “história das religiões” recebeu uma compreensão mais ampla, sobretudo no mundo de fala inglesa, as ideias de Bultmann obtiveram um parecer mais favorável, mas então a discussão havia entrado em uma nova fase e suas percepções foram empurradas para o serviço de interpretações sociológicas e outras similares, que ele, por sua vez, evitou. A compreensão que Bultmann tinha de “mito” tinha semelhanças com a de seu predecessor do século 19, D. F. Strauss, mas também havia diferenças significativas. A melhor maneira de esboçar as semelhanças é esta: 1. Os dois acreditavam que o mito havia surgido como uma expressão de consciência religiosa. 2. Os dois acreditavam que o mito já não era uma categoria aceitável de pensamento para o “homem moderno”. 3. Os dois acreditavam que o mito precisa ser interpretado, e não simples­ mente eliminado.

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4. Os dois acreditavam que as ideias são mais importantes do que os acontecimentos históricos. Para eles, os Evangelhos são um relato daquelas, e não destes. A melhor forma de descrever suas diferenças é esta: 1. Strauss usava a crítica histórica como uma arma para destruir uma teologia conservadora e sobrenaturalista. Bultmann, em contraste, usava-a para destruir a teologia liberal da abordagem da “vida de Jesus” iniciada por Strauss. 2. Strauss abandonou todo o contato com o Jesus de Nazaré histórico, afir­ mando que era impossível que a ideia divina pudesse ter se limitado à vida de um só indivíduo. Bultmann, em contrapartida continuou se concentrando em Jesus e na singularidade do “evento Cristo”, mesmo que isso tivesse pouco conteúdo histórico. 3. Strauss adotou uma filosofia hegeliana que não podia ser harmonizada com textos bíblicos, pois aquela constituía um sistema metafísico, ao passo que estes não. O existencialismo de Bultmann não era mais metafísico do que os próprios textos e podia ser adaptado a eles sob o denominador comum da “ex­ periência espiritual”. Apesar de toda a crítica das convicções de Bultmann oriunda de fontes conservadoras, é necessário enfatizar que, em seu próprio ambiente, ele era um teólogo conservador. Em sua teologia da proclamação, ele queria preservar uma continuidade genuína entre suas próprias convicções e as do Novo Testamento. Ele acreditava que Paulo teria concordado com sua abordagem, mas não com aquela de muitos exegetas contemporâneos mais “literais”, porém menos teoló­ gicos. Ao desenvolver sua teologia da palavra pregada, Bultmann pensava que havia encontrado um critério aceitável para distinguir entre o que era funda­ mental no evangelho e o que não era. O primeiro ele mantinha; o segundo ele se sentia livre para criticar. Assim, se encontrasse algo em um texto de que discor­ dasse, ele o dispensaria, afirmando que isso era incoerente com o que o próprio autor acreditava em seus melhores momentos. Em outras palavras, Bultmann acreditava que os documentos do Novo Testamento eram incoerentes consigo mesmos, mas que ele havia encontrado a chave para decidir o que podia ser rejeitado e o que precisava ser retido. A esse tipo de teologia Bultmann chamou de Sachkritik (“crítica do con­ teúdo”), e ele o aplicou a questões como a ressurreição de Jesus descrita em ICoríntios 15.1-11. Bultmann afirmou que essa convicção era incoerente com

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o tom geral dos escritos de Paulo em outros lugares e, portanto, afirmou que, ao escrever essa passagem, Paulo não estava em um de seus melhores dias! Obviamente, essa argumentação é ridícula, visto que Paulo não escrevia suas cartas às pressas sem pensar sobre o conteúdo, sobretudo quando o tema era tão sério quanto esse. O problema de Bultmann era que ele estava tentando expressar suas próprias convicções por meio de um texto antigo com o qual ele afirmava estar em continuidade histórica, mas do qual ele na verdade dis­ cordava. Sua obra foi a última tentativa entre estudiosos liberais de acomodar convicções pessoais no cânon das Escrituras, e isso resultou em uma completa distorção do cânon. Em relação a isso, podemos acrescentar, de passagem, que, visto que Bultmann não considerava sua fé como algo que decorria do Antigo Testamento, ele tinha pouco a dizer sobre essa parte da Bíblia. A indiferença total de Bultmann para com a história era mais um sério ponto fraco que não sobreviveria à crítica durante muito tempo. Pois o cristianismo era uma religião histórica. Houve uma bem-conhecida época histórica quando ele não existia, e outra bem-conhecida época em que ele surgiu. Entre essas duas coisas estava a figura de Jesus de Nazaré, que simplesmente não desapareceria nem permitiria que fosse transformado em um “evento Cristo” divorciado do processo histórico. Era inevitável que mais cedo ou mais tarde o Jesus histórico voltasse à tona, e, quando ele voltou, a construção teológica de Bultmann come­ çou a se esfarelar.

A crítica da redação Os próprios pupilos de Bultmann estiveram entre os primeiros a detectar a fraqueza em sua abordagem e começaram a busca de uma melhor síntese da Bíblia como história e teologia. Bultmann havia mostrado pouco interesse pelos autores dos Evangelhos como teólogos; para ele, os Evangelhos eram uma com­ pilação de fragmentos teologicamente informativos que precisavam ser isolados e examinados em separado. M as seus pupilos logo acharam mais interessante analisar como e por que esses fragmentos haviam sido reunidos em sua presen­ te forma. E importante compreender que o motivo fundamental para isso era teológico, e não exegético. E possível esboçar as próprias posições teológicas de Bultmann do seguinte modo. 1. A fé não deve ser amparada por argumentos racionais, pois isso pode torná-la menos que totalmente suficiente para a salvação.

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2. A fé não pode ser exposta ao risco de investigação racional e, portanto, o melhor é mantê-la separada de afirmações históricas. Não podemos levar em consideração mudar ou abandonar nossa fé simplesmente por causa de uma descoberta arqueológica. 3. A fé é um relacionamento com Deus, que não pode ser compreendido de modo humano; é, portanto, errado tentar rebaixá-lo a um nível à nossa altura. 4. A fé está centrada em Jesus, que para o cristão é uma revelação única de Deus. Essa é uma questão de convicção que não está aberta a provas por meios racionais, pois é muito mais profunda que a razão humana. Os críticos da redação que seguiram Bultmann (G. Bornkamm, E. Kásemann, H. Conzelmann) tendiam a concordar com ele em todos esses pontos, com a parcial exceção do último. É obviamente impossível “provar” qualquer coisa sobre Jesus por meio de investigação racional, mas isso não torna indesejável en­ contrar o máximo que conseguirmos, pois fatos históricos moldarão nossa fé em um grau mais elevado do que aquele que seria reconhecido por Bultmann. Por exemplo, o cristianismo não seria o que é se Jesus nunca tivesse sido crucificado; fatos históricos estão no próprio centro da proclamação. Os críticos da redação também tinham consciência de que havia uma liga­ ção vital entre o Jesus da história e o Cristo da fé. Eles não desejavam separar esses dois elementos, pois a igreja primitiva proclamava a identidade entre eles e fez dela a base de sua fé. Sem a ressurreição, não teria havido cristianismo. Eles tinham consciência de que os Evangelistas estavam escrevendo à luz do “evento da Páscoa”, como a ressurreição veio a ser chamada, e não acreditavam ser pos­ sível nem desejável voltar além desse ponto. Para eles, o “Jesus histórico” era essencialmente o Jesus percebido à luz da Páscoa, com o benefício da visão em retrospectiva. Os detalhes podem estar ocultos da visão de cristãos modernos, do mesmo modo que as raízes de uma árvore são invisíveis para aqueles que estão à sua sombra, mas elas estão ali — e elas importam. Isso era a essência da “nova busca” do Jesus histórico, que se formou nas décadas de 1950 e 1960. De uma perspectiva literária, sem dúvida alguma a crítica da redação era muito mais satisfatória que a antiga crítica da fonte, que havia feito somente uma análise, ou até mesmo que a crítica da forma, que havia examinado os ■pedaços resultantes para verificar se havia padrões ou estruturas comuns. M as os teólogos da “nova busca” não eram analistas literários; eles eram historiadores, interessados em “fatos”. É provavelmente por causa disso que em última instân­ cia não tiveram êxito. O seu método, que era extremamente promissor de uma perspectiva literária, foi posto ao serviço de um fim diferente — crítica histórica.

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Isso não funcionaria a longo prazo, e a nova “busca” não sobreviveu às tentativas iniciais de demonstrar seu potencial.

A questão histórica A crítica da redação claramente levantou a questão de quanto de historicidade há por trás dos relatos dos Evangelhos, e observamos que ela era menos cética a respeito disso do que Bultmann havia sido. Mesmo assim, os críticos da redação de modo geral não estavam preparados para abandonar a asserção de Bultmann de que é necessário buscar o Sitz im Leben dos Evangelhos na igreja primitiva, e não na vida de Jesus de Nazaré. Isso é um ponto vitalmente importante, que determina toda exegese moderna do Novo Testamento. Desde a época de F. C. Baur, aceitou-se que as epístolas paulinas (e em menor medida as Epístolas Católicas), entre todos os documentos, são os mais fidedignos do Novo Testamento. A razão disso é simples. Eles eram cartas, escritas a pessoas específicas e tratando de problemas específicos. Sabe-se muito bem que cartas estão entre as mais valiosas fontes de informação que possuímos; examiná-las é sempre uma das principais tarefas de qualquer historiador. Assim, colocar as epístolas em primeiro lugar era um bom método histórico, muito além de qual­ quer outra coisa. Problemas surgiram, no entanto, quando as epístolas passaram a ser usadas como padrão de medida para Atos e os Evangelhos. Afirmar, por exemplo, que as narrativas de nascimento representam uma teologia posterior simplesmente por não haver nada como elas nas epístolas é levar esse método longe demais. Não sabemos por que essas narrativas não são mencionadas nas epístolas, e um argumento com base no silêncio é sempre perigoso. Dizer nada pode significar qualquer coisa. A observação seria válida somente se fosse possível demonstrar que as epístolas de algum modo contradizem as narrativas de nascimento dos Evangelhos, e isso, obviamente, elas não fazem. Diversos estudiosos da Bíblia, sobretudo no mundo de fala inglesa, estavam propensos a usar argumentos desse tipo para demonstrar que os novos métodos da pesquisa crítica eram defeituosos e que não destruíam a credibilidade histórica dos Evangelhos. Isso poderia ser difícil de provar, e geralmente seria uma questão de acreditar que o texto está correto até (e a não ser) que se pudesse demonstrar que ele está errado — mas essa era outra questão. O verdadeiro problema da historicidade se mostrou nas próprias epístolas e em Atos. Sir W illiam Ramsay havia descoberto que Lucas era historicamente

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fidedigno em um grau que sequer se havia imaginado anteriormente, e isso forneceu a Atos uma nova credibilidade entre os historiadores. No entanto, tor­ nou-se cada vez mais difícil situar as epístolas em seu cenário histórico. Ninguém questionava que elas o tivessem; o problema estava em tentar descrevê-lo ade­ quadamente. Em alguns casos, notavelmente 1 e 2Coríntios, discutia-se se as epístolas como agora as temos são textos originais ou combinações de docu­ mentos anteriores, refletindo um diferente Sitz im Leben. A autoria paulina das epístolas atribuídas a ele foi menos amplamente negada do que havia sido no século 19, mas ainda havia diversos estudiosos que questionavam a autenticidade de Colossenses e das Pastorais, e mesmo Efésios balançava no lim ite do reconhecimento. Em geral, pensava-se que as situações que essas cartas descreviam eram muito “avançadas” historicamente para serem situadas na época de Paulo; elas devem ter refletido a obra dos discípulos dele na geração seguinte. Obviamente, não é possível demonstrar isso, e é possível defender o oposto, como J. A. T. Robinson mostrou tão cla­ ramente (1976). M as antigas ideias persistiram apesar desses argumentos, e ainda é difícil encontrar um estudioso crítico que prontamente aceite a auto­ ria paulina das Pastorais, apesar da grande quantidade de pesquisa realizada para demonstrá-lo. Até mesmo nas epístolas incontestavelmente paulinas, no entanto, houve diversas questões históricas importantes que permaneceram sem resposta. A identidade exata dos gálatas ainda causava problemas, embora a teoria do “Sul da Galácia” de Ramsay parecesse de longe a mais provável das alternativas. Ainda se debatia a natureza do “conflito” entre judeus e gentios, ainda que vá­ rios estudiosos tenham advertido que uma divisão rígida entre eles era muito simplista. Somente na década de 1970, demonstrou-se conclusivamente, por meio de pesquisa arqueológica em Afrodísias, que os “tementes a Deus” men­ cionados em Atos (isto é, gentios que acreditavam no Deus de Israel e viviam às margens das sinagogas) realmente existiram, e mesmo então alguns estudiosos continuaram questionando isso. A existência dos tementes a Deus tem certa importância para toda a questão da influência gnóstica, pois essa foi uma questão importante nas pesquisas de Novo Testamento desde antes de 1850. De modo geral, hoje existe um consenso de que o cristianismo não era uma seita gnóstica, e visões radicais desse tipo já não conseguem convencer ninguém. Ao mesmo tempo, ainda é incerto até que ponto é possível encontrar uma forma de gnosticismo no Novo Testamento. Quem, por exemplo, eram os oponentes de Paulo em Corinto? Qual era o

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problema em Colossos? As origens do gnosticismo permanecem misteriosas, e em alguns casos ele nunca foi uma só seita ou movimento, mas um modo de pensar que tinha muitas manifestações. No segundo século, algumas dessas manifestações haviam se transformado em sistemas “teológicos” reconhecíveis, em que um Redentor celestial desem­ penhava um papel central. A analogia com Jesus é suficientemente clara, mas a antiga visão de que o cristianismo absorveu esse mito e o aplicou a Cristo é agora insustentável. O que aconteceu foi o contrário; outros usaram a história de Cristo e a interpretaram dentro de um contexto filosófico centrado no homem e em si mesmo. E possível comparar os sistemas gnósticos a algumas seitas pseudocristãs e da Nova Era hoje. Como elas hoje, eles combinavam um pulverizar assistemático de temas e experiências espirituais de um modo que se passava por um aperfeiçoamento do cristianismo convencional; e como elas hoje, eles eram parasitários; sem o cristianismo, eles não teriam existido. Parece bem possível que algo como um tipo de protognosticismo tenha existido na igreja na época de Paulo, mas, se esse era o caso, ele não tinha coesão interna e não podia se manter como um sistema independente.

O judaísmo Fortemente ligado à questão da historicidade do Novo Testamento encontra-se a redescoberta do judaísmo palestino contemporâneo. Ela abriu diversas perspec­ tivas que as pesquisas anteriores sugeriam de vez em quando, mas que de modo geral eram consideradas improváveis. Entre elas estava a convicção de que o judaísmo na época de Jesus era pluralista em um grau inédito. Os grandes mo­ numentos a essa convicção têm sido escritos desde meados da década de 1970, mas as sementes foram lançadas uma geração antes. Praticamente tudo nos Evangelhos foi associado com uma ou outra fonte judaica, de modo que uma teoria de influências gentílicas é supérflua. M uitos estudiosos agora pressupõem que o cristianismo nasceu do judaísmo quase exclusivamente e que influências “helenistas” que podem ser detectadas no Novo Testamento — mais obviamen­ te o uso do grego para escrevê-lo — haviam sido completamente absorvidas pelos judeus antes de o cristianismo aparecer no cenário. A diversidade do judaísmo na época de Jesus tornou mais fácil encontrar um lugar para ele como um mestre judeu. Não há necessidade alguma de fazer dele um essênio, ou um zelote, apesar das tentativas de S. G. F. Brandon (1967). Se o judaísmo era genuinamente pluralista, teria havido suficiente espaço para

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ele. Hoje se sabe que os métodos exegéticos dos autores do Novo Testamento tinham fortes paralelos no judaísmo contemporâneo, sobretudo em Qumran, em que a chamada exegesz p esh er (veja p. 60s.) tinha a mesma popularidade vista no Novo Testamento. Em meados da década de 1970, era um fato óbvio que o judaísmo era um ingrediente essencial no cristianismo, mas em geral ainda se pensava que Jesus, ou ao menos Paulo, pregava um evangelho bem diferente de qualquer coisa que os rabinos poderiam ter esperado. Somente mais tarde, e então de modo bem radical, essa pressuposição foi desafiada, e o papel do juda­ ísmo no início do cristianismo se estendeu para se tornar ainda mais difundido do que antes. Talvez o fato mais importante que emergiu do estudo do judaísmo é que Jesus fez uso significativo de conceitos apocalípticos judaicos. Seu título preferido para si mesmo — “Filho do Homem” — é claramente um deles, derivando-se de Daniel 7. Do mesmo modo, mostrou-se que sua pregação do “reino de Deus”tem contexto judaico apocalíptico, embora o significado preciso do termo permaneça um tanto obscuro. M as também parece estar relativamen­ te claro que o Jesus histórico não era a figura apocalíptica incivilizada descrita por A. Schweitzer. Jesus usou a imagem apocalíptica de modo cuidadoso e deliberado e a integrou em uma agenda diferente. Jesus pode ter empregado conceitos judaicos familiares, mas se esse é o caso, ele os usou de modo original e atraente.

Os frutos da crítica histórica para o estudo do Novo Testamento Agora podemos resumir qual havia sido a contribuição da crítica histórica em suas diferentes formas para o estudo do Novo Testamento na década de 1970. A lista fornecida aqui é semelhante à do bispo Stephen Neill (1964). 1. O Novo Testamento é estudado agora livremente em uma atmosfera não confessional, até mesmo não religiosa. Qualquer um que possui as ferramentas acadêmicas apropriadas é, em princípio, bem-vindo para participar na pesquisa acadêmica. Na verdade, há uma predisposição negativa para com os que podem ser suspeitos de pressuposições religiosas que poderiam influenciar o curso de sua pesquisa. 2. Foi reconstruído um texto do Novo Testamento que está o mais próximo possível do original. Pode haver novos desenvolvimentos nessa área, mas no momento isso parece improvável.

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3. O idioma grego do período do Novo Testamento foi cabalmente estuda­ do. Agora sabemos que o Novo Testamento foi escrito no vernáculo da época, mas com um sabor especial próprio. 4. Todo o Novo Testamento precisa agora ser datado no primeiro século, e possivelmente antes de 70 d.C. Isso reduz consideravelmente o tempo dispo­ nível para o desenvolvimento da tradição oral e sinaliza uma maior exatidão histórica do texto. 5. As epístolas paulinas são as partes mais antigas e mais historicamente fidedignas do Novo Testamento. 6 .0 Evangelho de Marcos foi provavelmente o primeiro a ser escrito, apesar dos argumentos apresentados a favor da prioridade de Mateus. No entanto, ago­ ra está claro que não é possível resolver o problema sinótico de nenhum modo esquemático ou artificial, e parece mais provável que os três Evangelhos tenham se desenvolvido lado a lado até certo ponto. 7. A forma e o conteúdo dos Evangelhos foram fortemente influenciados pelas necessidades da igreja primitiva, embora não possamos saber com certeza a medida exata em que isso ocorreu. 8. No centro da mensagem de Jesus estava a proclamação do “reino de Deus”, uma expressão que precisa ser compreendida dentro do contexto da literatura apocalíptica judaica, embora, mais uma vez, não haja consenso sobre o melhor modo de fazer isso. 9. O Novo Testamento reflete influências tanto judaicas quanto helenistas, com a predominância das primeiras. No entanto, não é possível reduzir sua mensagem a uma combinação desses dois fatores; também há algo radicalmente novo nela. 10. O quarto Evangelho é distinto dos Sinóticos, mas isso não significa que ele não tenha valor histórico. De alguns modos, ele pode refletir tradições até mais antigas do que as relatadas nos Evangelhos Sinóticos. Esses pontos resumem as realizações principais da crítica histórica e, com algumas modificações, é possível dizer que ainda são válidos hoje. No entanto, a discussão acabou passando a outras questões, e os grandes debates que estão por trás de algumas dessas “conclusões”foram mais postos de lado do que resolvidos. B ibliografia F. W . C. H. D odd: in terp reter o f the N ew T estam ent (London: Hodder and Stoughton, 1977).

D il l is t o n e ,

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F. C ritica d ei m ito e ragion e teologica: sa ggio su R u d o lf B ultm ann (Naples: Guida Editori, 1983). H y n e s , W . J. Shirley Jackson case a n d the C hicago school (Chico: Scholars Press, 1981). K ü m m e l , W . G. The N ew T estam ent: the history o f the in vestiga tion o f itsproblem s (London: SC M , 1972). M o r g a n , R.; B a r t o n , J. B ib lica l in terpretation (Oxford: Oxford University Press, 1988). N e il l , S.; W r ig h t , N . T. The in terpretation o f the N ew T estam ent 1861-1986 (Oxford: Oxford University Press, 1988). 0 ’N e il l , J. C. The B ib le’s au thority (Edinburgh: T. and T. Clark, 1991). P a in t e r , J. T heology as herm eneutics: R u d o lf B ultm anrís in terpretation o f the his­ tory o f Jesu s (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1987). P a r s o n s , R. E. Sir E dw yn Hoskyns as a biblical theologian (London: C. Hurst, 1985). S m a r t , J. D. The past, p resen t a n d fu tu r e o f biblical th eology (Philadelphia: Westminster, 1979). S t u h l m a c h e r , P. H istorical criticism a n d th eologica l in terpretation o f Scripture (Philadelphia/London: Fortress/SPCK, 1977/1979). ______ . Vom Verstehen des N euen Testam ents (Gõttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1979). W a y , D. The lordship o f Christ: E rnst K ãsem anrís in terpretation o f PauVs th eology (Oxford: Oxford University Press, 1991). D o n a d io ,

ESTUDO DE CASO: APOCALIPSE Com a possível exceção de Cântico dos Cânticos, nenhum livro da Bíblia re­ cebeu tantas interpretações diversas e fantásticas quanto a Revelação dada a João, também conhecida por seu nome derivado do grego, Apocalipse. Em um recente estudo de como se interpretava o livro no Renascimento, C. A. Patrides listou nada menos que 1.313 comentários sobre todo o livro ou sobre parte dele até 1979, e ele acrescentou que essa lista estava incompleta. Desde o início da história da igreja, a natureza especial do livro foi reconhecida e houve debates sobre como se deve interpretá-lo. Orígenes o interpretou alegoricamente, e ele certamente se presta a esse tipo de tratamento. M as muitos comentaristas an­ tigos também interpretaram o livro literalmente como uma profecia do fim do mundo. Certo bispo Nepos, em algum lugar no Egito, aparentemente pensava

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que haveria um milênio na terra, quando os santos estariam livres para se entre­ gar a prazeres hedonistas. Dionísio, bispo de Alexandria, ficou com a tarefa de refutar essa ideia, o que ele fez em um livro chamado O n prom ises [Das promessas], que agora está per­ dido. De acordo com Eusébio, Dionísio também forneceu três razões por que o apóstolo João não era o autor de Apocalipse. Em primeiro lugar, Apocalipse o designa como João, ao contrário do Evangelho ou das epístolas a ele atribuídas. Em segundo lugar, o estilo e a construção de Apocalipse são muito diferentes daqueles de outros escritos joaninos. Apocalipse foi escrito em um grego muito peculiar e quase rudimentar, enquanto o Evangelho e as epístolas mostram um elegante domínio do idioma. Em terceiro lugar, sua natureza é muito diferente da natureza de outros escritos joaninos; sua teologia e conteúdo são bem únicos e diferentes de qualquer outra coisa no Novo Testamento. Os argumentos de Dionísio eram perspicazes, mas sua voz permaneceu solitária até o início da crítica histórica, quando seu julgamento passou a ser levado em conta. Hoje, as convicções de Dionísio são amplamente defendidas, mas a questão da autoria está longe de ser decidida, e os estudiosos modernos estão fortemente divididos a respeito da questão. Pois se a posição de Dionísio é defensável, tam­ bém o é a dos tradicionalistas. Eles defendem que nenhum outro autor cristão teria ousado se chamar de “João” sem qualificação. E possível explicar o estilo do livro por seu gênero; por causa disso, as diferenças entre o Evangelho e as epístolas são tão grandes quanto aqui. Mostrou-se que a “linguagem rudimentar” que tanto desagradou a Dionísio pertence à literatura apocalíptica como gênero; os solecismos de João eram deliberados e colocados ali para efeito estilístico. Em relação ao conteúdo e teologia, há mais ligações que podem ser imaginadas entre o Evangelho de João e Apocalipse. A recente redescoberta da natureza judaica essencial do quarto Evangelho ajudou aqui, visto que Apocalipse está profunda­ mente impregnado das imagens do Antigo Testamento e do folclore judaico. Mas também é verdade que Apocalipse concentra a atenção em certos temas joaninos, dos quais os mais óbvios e importantes são o Cordeiro de Deus e a descida celes­ tial de Jesus. Portanto, a autoria joanina de Apocalipse não deve ser descartada. O conflito entre Dionísio e Nepos demonstra o dilema que os intérpretes de Apocalipse encontraram durante centenas de anos. Se o livro é interpretado historicamente, ele precisa ser uma profecia futura do fim por vir. Portanto, é possível pressupor que acontecimentos políticos estão por trás da imagem apocalíptica, que aponta para um julgamento vindouro. No mundo antigo, essa abordagem era chamada “quiliasmo”, de acordo com a palavra grega chiliae (mil)

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— uma referência ao reinado de mil anos de Cristo previsto em Apocalipse 20. M ais tarde, isso veio a ser conhecido segundo seu nome derivado do latim, “milenarismo”, que é como normalmente o descrevemos hoje. O quiliasmo se desenvolveu contra o pano de fundo de medo que permeou a igreja perseguida dos séculos segundo e terceiro. Sua mensagem de julgamento sobre a ordem secular após a volta triunfante de Cristo e a vindicação dos santos sofredores era um grande conforto para pessoas que não tinham o desejo nem os meios de se rebelar contra sua situação. Em vez de tentar realizar o impossível, os cristãos meramente precisavam aprender a interpretar os sinais dos tempos e identificar neles o fim que se aproximava. M as, como ficou claro, o “fim” era bem diferente do que eles haviam sido levados a esperar. Em vez de um conflito terminal entre o reino de Cristo e o Império Romano, o Império chegou a um acordo com a igreja e abraçou o cristianismo em seu sistema. De algum modo, ficou claro que o quiliasmo tradicional não funcionaria mais e era necessário criar uma nova interpretação de Apocalipse. Muitos teólogos se dedicaram a essa tarefa, com variados graus de êxito, mas a interpretação que se tornou comum foi a de Agostinho. Agostinho não adotou uma posição alegórica pura e simplesmente. Em vez disso, ele interpretou toda a história humana como um vasto conflito en­ tre as forças do bem e do mal, representadas pelas duas “cidades”, Jerusalém e Babilônia. Essas “cidades” não podiam simplesmente ser identificadas com suas correspondentes terrenas, embora obviamente houvesse pontos de semelhança. Em sua própria época, Agostinho reconheceu Jerusalém na igreja e a Babilônia no poder civil, embora a correspondência estivesse longe de ser completa. Não era possível estabelecer a correspondência de modo tão fácil assim. Em relação ao reinado de mil anos, Agostinho acreditava que isso se referia à presente época da igreja, uma interpretação que removia o elemento escatológico. Durante essa época, as forças do mal seriam refreadas, até que em algum momento no futuro Cristo voltaria para redimir seu povo. A interpretação de Agostinho em geral foi seguida nos séculos após ele, embora até mesmo em sua época houvesse infindáveis variações nos detalhes. E possível encontrar um bom exemplo na interpretação aplicada a Apocalipse 4.7, que descreve a visão de quatro seres viventes ao redor do trono de Deus. A maioria dos estudiosos parecia acreditar que eles representavam os quatro Evangelistas, mas eles não conseguiram concordar a respeito de qual criatura representava qual Evangelista. A tabela comparativa a seguir fornece uma noção da diversidade de opiniões que existiam.

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Estudantes de arte medieval reconhecerão que a visão de Jerônimo acabou se tornando o “padrão”. Com o passar do tempo, houve uma tendência cada vez maior de igualar Jerusalém à igreja e a Babilônia ao estado, sobretudo durante as grandes contro­ vérsias da A lta Idade M édia. Algumas pessoas pensavam que o julgamento viria no ano 1000, mas ele passou sem incidentes. No século 11, parece que o próprio papado encorajou uma interpretação quiliástica, para servir aos seus próprios fins políticos, mas sem muito êxito. O real avanço na interpretação veio com a obra de Joaquim de Fiore, um monge calabrês que viveu na segunda metade do século 12. Joaquim ressuscitou o trinitarismo econômico da igreja do segundo século, de acordo com o qual cada pessoa da Divindade estava associada a uma época específica da história humana. Contudo, Joaquim simplesmente não se apossou de um esquema antigo; na verdade, talvez ele nem mesmo o conhecesse. De acordo com Joaquim, a primeira era começou na criação e continuou na vida do povo de Israel do Antigo Testamento. A segunda era começou com a es­ perança messiânica no Antigo Testamento e se sobrepôs com a primeira era até a vinda de Cristo. A terceira ainda não havia começado. Ela se caracterizaria por uma plena revelação do Espírito Santo, que inauguraria uma era de progresso e ilumina­ ção. Joaquim relacionou a visão de Apocalipse a esse esquema e descobriu paralelos entre a abertura dos sete selos, e a tribulação associada com eles, e a história de Israel antes da vinda de Cristo. O mesmo padrão estava se repetindo na história da igreja, a qual ele acreditava, estava entrando nas tribulações do sexto selo. Quando essa época chegasse ao fim, o sétimo selo seria aberto, e a igreja entraria no descan­ so sabático de Deus, representado em Apocalipse 8.1 pela meia hora de silêncio. As convicções de Joaquim foram logo popularizadas e se espalharam am­ plamente, causando distúrbios sociais durante muitas décadas depois disso. As autoridades eclesiásticas oficiais condenaram suas obras e tentaram suprimi-las, mas somente com êxito limitado. Um novo elemento foi então acrescentado a argumentos familiares — o da vinda do Anticristo. Inicialmente, essa figura foi

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identificada com Frederico II (1194-1250), mas quando ele morreu sem grande alarde as especulações correram solto. O século 13 foi uma época de grande expectativa profética, que obviamente não se materializou. A figura do Anticristo se desenvolveu ainda mais no século 14, quando pela primeira vez foi identificada com o papa. Joaquim e muitos outros de sua época haviam esperado por um papa angelical e tinham interpretado passagens como Apocalipse 20.1 como uma referência ao papado. Contudo, embora essa inter­ pretação fosse sobreviver até o século 16, ela foi substituída pelo exato oposto. A primeira pessoa conhecida a ter denunciado o papa como Anticristo foi o impe­ rador Frederico II, mas seus motivos políticos eram muito óbvios para que ele fosse levado a sério. No entanto, por volta de 1300, diversos franciscanos e seus defensores estavam condenando o mundanismo da corte romana com termino­ logia apocalíptica, e uma avaliação negativa tanto de papas individuais quanto da instituição do papado se tornou comum no século 14. A identificação definitiva do papado com o Anticristo foi feita pelos lolardos e seguidores de João Wycliffe e dali se espalhou para os hussitas na Boêmia. Depois disso, ela se tornou um lugar comum no folclore popular e voltou à tona com grande ímpeto na Reforma. E necessário, obviamente, enfatizar que interpretações desse tipo estavam amplamente confinadas ao nível popular; elas não eram compartilhadas pela elite instruída. A opinião que Lutero tinha de Apocalipse era surpreendentemente semelhante à de Dionísio de Alexandria, e Calvino nunca escreveu um comen­ tário de Apocalipse. Tanto Lutero como Calvino usavam Apocalipse de tempos e tempos, como uma fonte de instrução e consolação, mas nenhum deles parece ter tido uma visão sistemática dele. Pelo que parece, eles tentaram interpretá-lo historicamente, como uma profecia das provações que a igreja experimentaria e da vitória final que ela conquistaria. As circunstâncias da época tornavam a identificação do papado com o Anticristo muito tentadora, e Lutero na verdade chamou o papa de o Anticristo em sua resposta à bula que o excomungou (1520). M ais tarde, nos chamados Artigos de Esmalcalde (1537), essa identificação foi confirmada e depois passou a integrar a teologia luterana oficial. Também veio a lume na Confissão de Fé de Westminster (1647), porém mais uma vez como uma doutrina isolada, sem relação com nenhuma interpretação geral de Apocalipse. O relativo comedimento dos reformadores não durou, obviamente, e, no calor das controvérsias religiosas que irromperam no final dos séculos 16 e 17, o emprego de imagens apocalípticas se tornou um lugar-comum do debate po­ lítico. A identificação precisa do Anticristo mudava com as circunstâncias: às vezes ele era o papa, às vezes o Sacro Imperador Romano e às vezes o rei da

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Inglaterra ou da França. O fio comum que unia todas essas identificações era que o Anticristo era o suporte de uma ordem estabelecida que forças revolucionárias estavam tentando derrotar. Uma vez que esse padrão político foi estabelecido, ele se repetia e renovava de uma geração para a seguinte. A Revolução Francesa e as muitas revoltas do século 20 foram todas consideradas a essa luz por certos grupos de cristãos, embora as instituições eclesiásticas oficiais raramente acei­ tassem, se é que chegavam a aceitar, interpretações desse tipo. O que as caracterizou acima de tudo foi a sistematização cada vez mais ela­ borada que receberam, principalmente depois dos acontecimentos da Revolução Francesa. Começando com a obra de John Nelson Darby (1800-1882) e con­ tinuando através de uma sucessão de intérpretes conservadores, uma nova forma de “dispensacionalismo” emergiu, que supostamente explicava Apocalipse da perspectiva do cumprimento de profecia. Como aconteceu com interpre­ tações anteriores, essa nova forma se concentrou no milênio, e não na figura do Anticristo, embora certamente não faltassem candidatos para esse papel. O dispensacionalismo desfrutou de seu maior triunfo na Bíblia de Referência de Scofield, publicada pela Oxford University Press em 1909. O editor dessa Bíblia, C. I. Scofield (1843-1921), promoveu uma forma de milenarismo que logo veio a ser considerada “ortodoxa” em círculos fundamentalistas, sobretudo nos Estados Unidos, realidade que se mantém até os dias de hoje em muitos casos. Na presente época, o dispensacionalismo ainda é uma questão doutrinária em muitas igrejas norte-americanas e está fortemente vinculado sobretudo ao Dallas Theological Seminary. Para pessoas de fora, o milenarismo dá a impressão de um enorme conjunto de informações muito parecidas, mas para os adeptos da visão dispensacionalista há uma grande quantidade de sutilezas que distinguem um grupo de intérpretes dos outros. É impossível listar todas as variações em um curto espaço, mas é possível esboçar as principais do seguinte modo. 1. O spré-m ilenaristas históricos. Eles se atêm à leitura “natural”de Apocalipse 20.1-6, de acordo com a qual a segunda vinda de Cristo precede seu reinado de m il anos. No fim do milênio, haverá o julgamento e a consumação finais. Durante o milênio, Satanás será amarrado e seu poder, restrito. Os santos res­ suscitarão dos mortos, o que é conhecido como a primeira ressurreição. No fim dos m il anos, Satanás será solto para guerrear com Deus. Ele perderá essa batalha, obviamente, e será destruído. Então virá a segunda ressurreição e o julgamento final. Os pré-milenaristas históricos são cuidadosos na interpretação

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do Antigo Testamento à luz do Novo. Eles enfatizam que a igreja é a herdeira das promessas do milênio e que não se deve aplicá-las ao Israel histórico, exceto em um sentido secundário. Pode ser verdade, como Paulo sugere em Romanos 11, que os judeus serão salvos como parte da consumação final, mas isso não implica que eles têm um destino fora da igreja cristã. 2. O spré-m ilenaristas dispensacionalistas. Acreditam que os destinos de Israel e da igreja são distintos, pois cada um pertence a uma dispensação diferente. Por essa razão, as promessas feitas a Israel no Antigo Testamento ainda precisam se cumprir, incluindo a volta dos judeus à Palestina e o reestabelecimento do Estado de Israel. Ê por causa dessa visão que os pré-milenaristas dispensaciona­ listas apoiam intensamente o sionismo moderno. Os dispensacionalistas também fazem uma distinção entre o “reino do céu” e o “reino de Deus”, em como esses termos se encontram no Novo Testamento. De acordo com eles, o reino do céu é uma realidade eterna, enquanto o reino de Deus é uma promessa a ser cumprida em um futuro temporal. E necessário admitir, no entanto, que essa distinção é obscura e pouco compreendida fora dos círculos em que é proclamada. M ais significativa para os dispensacionalistas é a questão da grande tribulação de Apocalipse 7. De acordo com a visão comum, os santos serão levados ao céu antes da tribulação e, assim, escaparão do sofrimento que é necessário vir depois. Esse acontecimento é conhecido como o arrebatamento. Em um estágio posterior, haverá uma ressurreição daqueles santos que suportam a tribulação e, ainda mais tarde, mais uma ressurreição daqueles que morrem durante o m ilê­ nio. A ideia de uma série de ressurreições é difícil de harmonizar com o texto de Apocalipse e foi a fonte de considerável crítica da teoria da dispensação. O dispensacionalismo desse tipo penetrou em um círculo muito amplo de evangélicos conservadores nos Estados Unidos, e muitos deles o consideram um componente essencial da “ortodoxia”. Ele combina a visão de que o movimento geral da criação é ascendente e, portanto, pode se harmonizar com noções mo­ dernas de progresso, mas ao mesmo tempo enfatiza que isso será interrompido por uma súbita catástrofe e, portanto, é pessimista. Em meio à prosperidade e afluência, dizem os dispensacionalistas, o julgamento se aproxima. Essa visão era um óbvio eco de alguns dos profetas do Antigo Testamento e, nesse sentido, ela pode ser considerada como dando continuidade a uma tradição bíblica antiga. 3. Os pós-m ilenaristas. São hoje um grupo minoritário, mas já foram bem influentes e articulados e podem um dia voltar a sê-lo. Os pós-milenaristas acre­ ditam, junto com Agostinho, ser necessário igualar a presente era ao reinado de mil anos de Cristo. Afirmam que, apesar dos aparentes reveses, não é possível

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interromper o triunfante progresso do evangelho. O reino de Deus não é uma esperança futura, mas uma realidade presente, que está sendo diariamente es­ tendida pela pregação do evangelho. De acordo com essa teoria, o mundo será plenamente cristianizado antes de Cristo vir novamente após um longo período de paz e prosperidade. Muitos pós-milenaristas rejeitam a mentalidade de crise dos dispensacionalistas a favor do que às vezes é conhecido como o “evangelho da prosperidade”. Esse tipo de milenarismo tem fortes afinidades com o libe­ ralismo do final do século 19, e seus seguidores são muitas vezes classificados junto com ele por seus oponentes. 4. Os am ilenaristas. Essas são as pessoas que acreditam que o milênio é um símbolo espiritual que não tem nenhum ponto de referência histórico direto. Até certo ponto, eles concordam com os pós-milenaristas, pelo fato de que tendem a identificar as bênçãos dessa era com a atual vida da igreja. Cristo já conquistou a vitória decisiva sobre Satanás, o pecado e a morte e assim é impossível enxergar isso como um acontecimento futuro. Não há nenhuma distinção entre o reino do céu e o reino de Deus; os dois termos se referem a uma realidade igualmente temporal e eterna. Os amilenaristas também rejeitam a distinção entre Israel e a igreja, ao menos em relação ao seu destino eterno. Haverá uma só ressurreição e um só cumprimento das promessas — em Cristo e por meio dele. A segunda vinda de Cristo, portanto, será um só acontecimento, em que a última ressurrei­ ção, o arrebatamento e o julgamento ocorrerão simultaneamente. O que se pode dizer sobre a posição das grandes igrejas cristãs sobre a questão? Ela foi tradicionalmente amilenarista. No entanto, é necessário acrescentar que ra­ ramente a questão foi levantada como algo urgente fora dos círculos que podem ser vagamente descritos como “fundamentalistas”; a verdadeira posição da maioria dos cristãos de grandes igrejas é a posição do cauteloso agnosticismo — para não dizer aberta indiferença — a algo que em última análise parece não estar claro para eles. Quando passamos de convicções populares a teorias acadêmicas, surge um retrato diferente. Dificilmente parece necessário afirmar que Apocalipse tinha pouca importância para os racionalistas dos séculos 17 e 18, que o consideravam algo rudimentar, até mesmo insano. Essa avaliação negativa continuou no mun­ do acadêmico do século 19, em que a opinião geral era que, embora o livro tivesse certos méritos literários e teológicos, era de modo geral inferior ao restante do Novo Testamento e que a igreja podia seguramente ignorá-lo. Visto que os mes­ mos teólogos tinham um elevado respeito pelas qualidades morais e teológicas do quarto Evangelho, não é surpreendente que o século 19 tenha testemunhado uma ampla rejeição da autoria joanina tradicional de Apocalipse.

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Um dos resultados surpreendentes dos estudos bíblicos do século 20 foi a descoberta acadêmica da literatura apocalíptica como um modo de pensar ca­ racterístico do judaísmo na época do Novo Testamento. Talvez não haja melhor exemplo individual de como o consenso liberal do século 18 foi quase total­ mente virado do avesso. Essa mudança de direção já foi prenunciada na obra de J. Weiss e A. Schweitzer, que descreveram o Jesus histórico como profeta escatológico cuja mensagem seria completamente incompreensível para a maio­ ria das pessoas hoje. Desde essa época, a redescoberta e análise de outros textos apocalípticos do mundo antigo ajudou os estudiosos a colocar o Apocalipse canônico em um contexto literário e histórico que auxiliou grandemente todo o processo de interpretação. Nem todos gostariam de ir tão longe quanto E. Kãsemann (1960), que declarou que a literatura apocalíptica era a mãe de toda a teologia cristã, mas essa visão da centralidade da literatura apocalíptica para nossa compreensão da mentalidade da igreja primitiva é muito mais comum agora do que costumava ser e é amplamente o fruto de uma análise da crítica da forma, de sua pesquisa e das descobertas textuais recentes. A literatura apocalíptica passou a ser reconhecida como um gênero à par­ te. Isso significa que há certas regras literárias a que ela se conforma. Por trás da forma está a mensagem do apocalipticismo, que é maior que o conteúdo dos próprios apocalipses. Na análise que a crítica da forma faz da literatura apocalíptica, podemos observar duas distinções básicas. A primeira é entre apo­ calipses em que o profeta embarca em uma viagem extraterrestre e aqueles em que não o faz. O Apocalipse canônico pertence ao primeiro tipo (veja Ap 4). A segunda é entre apocalipses que apresentam uma revisão da história, completa, com a crise e a transformação vindouras; apocalipses que apresentam a crise e a transformação sem a revisão da história; e apocalipses puramente pessoais em sua compreensão da escatologia. O Apocalipse canônico pertence à segunda dessas categorias, embora alguns intérpretes o situariam na primeira. É sempre necessário lembrar que, assim como na maioria das análises da crítica da forma, há textos que não se encaixam claramente na definição do gênero. Ê possível considerá-los como de conteúdo apocalíptico, e, em alguns casos (e.g., o A pocalipse de M oisés), podem até portar o título oficial, sem serem apocalípticos no sentido literário do termo. A maioria dos apocalipses, se não todos, contém as seguintes características: 1. A revelação é comunicada à humanidade pela agência de um media­ dor humano. Na literatura apocalíptica judaica, há sempre um anjo, e muitos

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apocalipses cristãos são semelhantes nesse aspecto. No entanto, alguns, incluin­ do o Apocalipse canônico, têm Cristo como o mediador da mensagem. 2. A revelação é feita a um profeta humano tratado por um pseudônimo. Na literatura apocalíptica judaica, ele normalmente é uma figura do passado remoto, como Enoque, Daniel ou Moisés. Apocalipses cristãos às vezes são ex­ cepcionais, pelo fato de que o profeta é uma figura da nova aliança, embora a questão de sua identidade permaneça sem solução, como já observamos no caso de João. Se o João de Apocalipse é o apóstolo, seu apocalipse é uma proeminente exceção à regra estabelecida nessa questão. 3. A revelação pode ocorrer visualmente ou oralmente. Nos textos apoca­ lípticos, há quase sempre uma combinação desses modos, com o resultado de que o aspecto visionário está investido com um alto grau de simbolismo. Aqui o Apocalipse canônico não é exceção. 4. A revelação está quase sempre conectada com um livro de algum tipo. Ela pode ter vindo na forma de um livro enviado do céu ou pode ser o dever do profeta escrever o que ele viu (como no Apocalipse canônico), mas, de qual­ quer forma, a natureza “escriturai” do gênero apocalipse é bastante notável. A intenção é que seja comunicado à platéia designada em forma escrita em vez de oral — um aspecto que o distingue da profecia tradicional. 5. A revelação tem interesse no destino histórico. Isso pode estar forte­ mente revestido de simbolismo alegórico, mas por baixo dele há um interesse em demonstrar como a providência divina controla o processo histórico, que está rapidamente caminhando rumo ao seu fim predeterminado. Esse fim será catastrófico, mas no sentido de que um julgamento divino interfira em algum momento para destruir a ordem estabelecida. Central nisso é a batalha cós­ mica entre o bem e o mal, que será derrotado pelas forças do bem. A relação precisa entre a realidade cósmica e os acontecimentos históricos como os com­ preendemos é raramente esclarecida, e é difícil ligar ocorrências específicas com cumprimento histórico — mais uma importante diferença entre literatura apocalíptica e profecia. No entanto, os acontecimentos na história humana sim­ bolizam o conflito geral que está sendo travado no nível espiritual, e a pessoa sábia conseguirá ler os sinais dos tempos. Quando comparamos os resultados dessa investigação acadêmica, ficamos perplexos com as diversas semelhanças e diferenças entre suas conclusões e as in­ terpretações tradicionais da igreja. É certamente demasiadamente simples rejeitar as tradições clássicas de interpretação como equivocadas; muitas delas têm ele­ mentos em comum com a recente análise acadêmica. O pré-milenarismo histórico

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foi vindicado no sentido de que a literatura apocalíptica claramente aponta para um futuro cumprimento da história, vista como um conceito unitário debaixo do controle da vontade soberana de Deus. O pré-milenarismo dispensacionalista foi defendido em sua insistência na natureza catastrófica do fim, um claro aspecto do gênero como um todo. E o amilenarismo tem sido justificado em sua insis­ tência no fato de que o movimento do apocalipse não pode ser indistintamente associado a acontecimentos na história humana, aos quais a revelação está ligada de um modo muito mais sutil e indefinível. Até mesmo o pós-milenarismo, a interpretação mais afastada da literatura apocalíptica histórica, pode reivindicar certa validade ao ligar sua compreensão do reino de Deus com o ordenamento providencial da história testemunhado pelos textos apocalípticos. Da perspectiva da interpretação bíblica, portanto, parece que as visões tradi­ cionais não são tão erradas ou inadequadas para fazer justiça a todos os aspectos da literatura apocalíptica, das quais agora há uma compreensão muito melhor do que havia antes. Talvez a igreja um dia encontre estudiosos que conseguirão integrar todas essas perspectivas com base no que agora se conhece sobre o gênero e produzir uma interpretação do Apocalipse canônico que conquistará o consentimento geral dos cristãos. Um passo encorajador nessa direção pode ser visto em livros recentes de Richard Bauckham, que tornou a literatura apocalíptica uma área fundamental de sua própria pesquisa e perícia. Para ele, o livro é profecia cristã, intimamente co­ nectada com toda a herança profética judaica e cristã primitiva. Como ele diz em The theology o f the Book ofR evela tion [A teologia do Livro de Apocalipse] (1993): A reivindicação que Apocalipse faz de ser profecia precisa ser compreendida em relação à sua afirmação de continuidade com toda a tradição profética bíblica [...] Assim como a profecia bíblica em geral, pode-se dizer que Apocalipse, co­ mo profecia, consiste em três elementos fortemente relacionados. Em primeiro lugar, há o discernim ento da situação contemporânea por meio da percepção profética da natureza e do propósito de Deus [...] Em segundo lugar, há &p r e­ visão. Na visão de João, ele não somente vê “as coisas [...] do presente”, mas também “as que acontecerão depois destas” (1.19; cf. 4.1; 1.1). Em sua essência, a previsão consiste em ver como o propósito supremo de Deus está relacionado à situação presente percebida pelo profeta. O que precisa ocorrer é a vinda do reino de Deus — ou Deus não seria Deus [...] Em terceiro lugar, a profecia exige de seus ouvintes uma resposta apropriada à sua percepção da verdade do presente mundo e à sua previsão de o que a realização do propósito de Deus deve significar para o presente mundo.

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Bauckham continua mostrando que, do mesmo modo que as promessas feitas por outras profecias bíblicas muitas vezes somente se cumpriam parcial­ mente na época em que a profecia era concedida, também Apocalipse mantém um elemento de esperança escatológica e não cumprida. O propósito supremo do livro é fornecer ao leitor uma compreensão do significado da história hu­ mana ao abrir para ele uma nova e mais profunda visão de Deus. Apocalipse é fundamentalmente teologia no sentido mais estrito; é uma penetração mais profunda no mistério do Ser Divino. Vamos citar Bauckham mais uma vez: Apocalipse tem a teologia trinitária mais desenvolvida no Novo Testamento, com a possível exceção do Evangelho de João, e tem ainda mais valor por demonstrar o desenvolvimento do trinitarismo bem independentemente das categorias filosóficas helenistas. Ele tem uma percepção poderosa e apofática da transcendência de Deus que evita e supera inteiramente as críticas atuais das imagens monárquicas de transcendência. Ao mesmo tempo que ele retém a glória de Deus de um mundo em que os poderes do mal ainda predominam, ele reconhece a presença de Deus neste mundo presente na forma do Cordeiro que foi morto e dos sete Espírito que inspiram o testemunho da igreja. Ao situar o Cordeiro no trono e os sete Espíritos diante do trono, ele concede ao amor sacrificial e ao testemunho da verdade a prioridade na vinda do reino de Deus no mundo, ao mesmo tempo que a abertura da criação à transcendência divina garante a vinda do reino.

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Terceira parte O CENÁRIO CONTEMPORÂNEO

Do final do século 19 até a década de 1970, era um fato óbvio entre acadê­ micos que o método histórico-crítico era o único modo de estudo da Bíblia cientificamente respeitável. Obviamente, havia os “fundamentalistas” e outros tradicionalistas que rejeitavam o método e aplicavam critérios diferentes aos textos bíblicos, mas eles não eram levados a sério. A batalha acadêmica a fa­ vor do método histórico-crítico havia sido ganha, e, ao que tudo indicava, definitivamente. No entanto, subitamente toda a situação se desestabilizou mais uma vez. A crítica histórica sofreu o ataque de muitas fontes diferentes, incluindo a própria disciplina. M étodos alternativos de interpretação foram apresentados e foram levados a sério pelos estudiosos, muitos dos quais esta­ vam começando a participar em pesquisas interdisciplinares. A relevância da Bíblia para questões políticas e sociais foi redescoberta, um tanto ou quanto para a surpresa de um público que havia se acostumado a associar cristianismo com conservadorismo político. As questões religiosas também tiveram uma espécie de ressurgimento. Havia muito tempo, o compromisso religioso estava em declínio entre religiosos, e esse processo parecia estar se acelerando após 1945. A noção de que um estudioso podia ou devia ser julgado por sua teologia estava se tornando cada vez mais obsoleta, e a discussão de questões teológicas da Bíblia era conduzida com a pressuposição de que os estudiosos guardariam para si suas convicções pessoais, se é que as tinham. A aceitação da crítica histórica entre católicos romanos derrubou a última grande barreira confessional e unificou o mundo acadêmico sobre uma base “científica” religiosamente neutra. Porém, ao mesmo tempo que isso estava acontecendo, surgiu um novo tipo de erudição religiosa engajada. Era o renascimento do movimento evangélico que passou a crescer rapidamente na década de 1950 e estava destinado a se tornar o maior ramo do protestantismo no fim do século. Esse novo movimento evangélico era menos dogmático que sua contraparte mais antiga, mas também era mais exclusivamente “bíblico” do que qualquer outro que o havia precedido. A famosa afirmação de W illiam

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Chillingworth de que “somente a Bíblia é a religião dos protestantes” nunca foi mais verdadeira do que entre os evangélicos após 1945. Diante de todas essas pressões, a estrutura monolítica da crítica histórica começou a ruir. O método histórico-crítico certamente não desapareceu; apesar das profecias que anunciaram seu fim, ele permanece a forma comum de inter­ pretação bíblica em todas as principais universidades e na maioria dos manuais e comentários. Ele não parou de crescer e se desenvolver, e o estudioso do cenário contemporâneo não pode ignorá-lo. Ele mudou de diversos modos sutis em relação ao que era em 1945, mas ainda está presente. A atmosfera secular presente nos estudos bíblicos modernos significa que é perigosamente fácil para os estudiosos ignorarem o ponto central da Bíblia e se refugiarem em estudos técnicos que não apresentam grande interesse para ninguém. A proliferação de teses de doutorado sobre questões extremamente técnicas fornece ampla evidência disso. As questões podem ser importantes e até mesmo podem mudar o curso do estudo erudito, mas estão inclinadas a parecer bem irrelevantes para qualquer pessoa menos especializada. A necessidade de relacionar as descobertas de especialistas bíblicos àquelas de colegas em outras disciplinas produziu novos tipos de interpretação que não podem ser considerados “não eruditos”, mas dificilmente são relacionadas com métodos críticos tradicionais. O primeiro e mais natural deles é a abordagem literária. Ê óbvio que a Bíblia faz parte da literatura mundial e é fundamento de grande parte dela. No entanto, as teorias literárias com frequência não têm sido levadas a sério pelos estudiosos da Bíblia nos tempos atuais. A insistência de Benjamim Jowett em Essays a n d r e v iew s [Ensaios e resenhas] (1860) para que se interprete a Bíblia “como qualquer outro livro” nunca realmente ultrapas­ sou o nível da crítica textual. Questões filosóficas mais profundas a respeito da natureza da linguagem e das funções sociais da literatura só foram exploradas a fundo mais recentemente. Na década de 1920, o surgimento da crítica da forma e, mais tarde, de sua ra­ mificação, a crítica da redação, prepararam o caminho para uma análise literária mais aprofundada da Bíblia. A antropologia cultural também alcançou a m a­ turidade como uma disciplina acadêmica e estava sendo aplicada às Escrituras. Por fim, foram abraçadas também novas teorias lingüísticas e a filosofia exis­ tencialista, de modo que na década de 1970 havia se desenvolvido uma “nova hermenêutica” que tentava analisar a Bíblia de um modo inteiramente novo. Os praticantes da nova hermenêutica faziam uso deliberado da cultura literária circundante, e muitos de seus representantes abordavam a Bíblia com base nas

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disciplinas da literatura clássica ou da literatura moderna ou de ambas. Como resultado disso, obras literárias de muitas culturas diferentes que ninguém havia considerado relevantes para os estudos bíblicos antes vieram a ser usadas como exemplos para ilustrar princípios de composição em vários livros da Bíblia. Em uma atmosfera completamente diferente, os estudiosos também pas­ saram a prestar atenção em questões políticas e de injustiça social. Percebeu-se que os profetas do Antigo Testamento tinham muito a dizer sobre essas coisas, e o Êxodo de Israel do Egito podia ser facilmente descrito como uma libertação da injustiça econômica. O marxismo desafiou a consciência social da igreja em países do Terceiro Mundo, do mesmo modo que as igrejas o desafiavam sempre que ele estava no poder. A noção de que a Bíblia tinha uma mensagem para a vida econômica e política mais uma vez se tornou comum, com a diferença de que agora se usava a palavra “teologia” para descrever isso. Assim, ficamos familiarizados com expressões como “teologia da libertação”, “teologia negra” e “teologia feminista”, nenhuma das quais têm relação estreita com Deus ou com a teologia no sentido tradicional. O colapso dos regimes marxistas no Leste Europeu sugere que as interpre­ tações da Bíblia que tentaram dialogar com o marxismo provavelmente não têm muito futuro, mas as coisas são muito diferentes com teologias “negras’ (isto é, não europeias) e feministas, as quais são apoiadas pelo surgimento de estudiosos não europeus e do sexo feminino em uma escala jam ais vista. Os primeiros fazem grande alarde em torno do fato de que até aqui o estudo acadêmico foi conduzido quase exclusivamente da perspectiva da civilização ocidental (branca) (que para esse propósito inclui a América do Norte, Austrália e Nova Zelândia), enquanto o equilíbrio geográfico e demográfico da igreja está rapidamente mudando em direção ao Terceiro Mundo e a grupos historicamente marginali­ zados como afro-americanos. H á verdade nessa percepção, mas é difícil dizer se povos historicamente “oprimidos” realmente têm algo único com que contribuir para o mundo acadêmico ou se o que está acontecendo é que eles estão sendo progressivamente integrados no que tem sido a corrente predominante europeia, mas que agora é global. No presente momento, parece mais provável que o surgimento da “aldeia global” criará uma só cultural mundial, em que variações regionais se reduzirão ao nível de folclore. O feminismo apresenta um desafio diferente, pois há reais diferenças entre homens e mulheres que transcendem as questões raciais e culturais. A dificul­ dade é saber quanto elas podem (ou devem) influenciar o desenvolvimento do estudo bíblico. A “redescoberta” de teólogas negligenciadas do passado como

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Hildegard de Bingen ou Juliana de Norwich é interessante, mas não contribuiu muito para mudar nossa percepção geral da Idade M édia. Também é incerto se há interesses especificamente femininos nas Escrituras dos quais os estudiosos do sexo masculino até agora não trataram. O problema não é tanto concentrar a atenção em áreas negligenciadas, e há muitas delas, mas demonstrar que al­ gumas áreas são de certo modo interesses peculiarmente femininos. O perigo da subjetividade é muito grande e é necessário dizer que até agora o mundo acadêmico como um todo não tratou dessa questão com suficiente seriedade. Por fim, o renascimento de um movimento evangélico conservador injetou um novo impulso religioso no estudo acadêmico da Bíblia. Alguns evangélicos conservadores se tornaram notáveis estudiosos críticos, plenamente aceitos como tais por seus colegas mais liberais. M as, até mesmo quando esse era caso, per­ manecia uma diferença fundamental de propósito entre acadêmicos evangélicos e seus colegas. Em uma época em que o estudo crítico estava se tornando cada vez mais esotérico, os evangélicos estavam lembrando as pessoas que a Bíblia precisava ser exposta no ministério de ensino da igreja. Os novos evangélicos não se especializaram em teologia sistemática ou confessional como seus predecessores, embora muitas vezes fossem suspeitos disso. Em vez disso, eles preferiram criar um novo tipo de ecumenismo conservador, baseado em uma compreensão reducionista do princípio da Reforma de sola Scriptura (“somente as Escrituras”). Em que alguém como Calvino seguia uma progressão de três estágios, da exegese para a dogmática e daí para a exposição, os novos evangélicos omitiam a dogmá­ tica e tentavam praticar a exposição com base somente na exegese. Isso muitas vezes produzia sermões fracos e insípidos, mas o fato de que eles chegavam a se preocupar com a exposição os distinguia do estudo crítico prevalecente. A nova geração de evangélicos conservadores também possuía uma autoconsciência e uma identidade de grupo singulares na história da interpretação bíblica. Nunca antes uma minoria havia se unido conscientemente para desafiar um consenso. Poucos estudiosos tinham alguma dúvida a respeito de quem fazia parte do movimento; tanto seus defensores como seus inimigos reconheciam os evangélicos com muita clareza quando os viam, ainda que muitas vezes fos­ se difícil defini-los com exatidão. Sua flexibilidade doutrinária permitia que aceitassem conservadores com uma ampla diversidade de posições teológicas, algumas delas contraditórias (e.g., visões batistas e pedobastistas acerca do batismo), mas também possibilitava excluir qualquer um que discordasse de certos “chiboletes” [veja Jz 12.6] — o exemplo supremo era a autoria única de Isaías. Na década de 1950, nenhum verdadeiro evangélico poderia ter aceito a

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existência de um “Segundo Isaías”, e qualquer pessoa que fizesse isso era vista com profunda suspeita. Essa atitude foi questionada na década de 1970, mas com limitado efeito. O que realmente aconteceu foi que um corpo evangélico anteriormente unido começou a se dividir em uma ala mais “liberal” e uma mais “conservadora”, um processo em que cada lado suspeitou e desconfiou do outro. Se isso foi um efeito colateral ou o triste resultado de conflitos que poderiam e deveriam ter sido evitados é difícil dizer, mas não é mais possível definir o mundo evangélico tão facilmente quanto teria sido há uma geração. O cenário contemporâneo, assim, apresenta um pluralismo de abordagens nos estudos bíblicos que teria sido inconcebível em 1945. Os capítulos seguin­ tes examinam os três grandes agrupamentos apresentados acima, considerando os debates e problemas próprios a cada um deles. As linhas divisórias cer­ tamente não são absolutas; por exemplo, entre evangélicos conservadores há muitos estudiosos que participam plenamente de debates críticos e também um considerável número que têm profundo interesse em questões sociais e políticas. No entanto, há ao menos três diferentes mundos de discurso nos estudos bíblicos contemporâneos, e é necessário fazer justiça a cada um deles, por maior que seja a sobreposição que possa haver em casos individuais. Nos capítulos seguintes, não há tentativa alguma de uma inclusão total, pois o estu­ do contemporâneo abrange uma diversidade muito vasta. Trataremos somente das tendências e movimentos principais e forneceremos uma seleção de autores e obras representativos. Da perspectiva cultural e lingüística, o cenário contemporâneo é distinto pelo surgimento do inglês como o idioma predominante no campo dos estudos bíblicos. Ao mesmo tempo que a própria Bíblia está sendo traduzida para pra­ ticamente todos os idiomas humanos conhecidos, torna-se cada vez menor o número de idiomas em que os estudos avançados são desenvolvidos. H á muito tempo o inglês tem dominado as ciências naturais, mas seu avanço nas ciências humanas tem sido mais lento. No entanto, desde meados da década de 1970, as publicações em inglês suplantaram todas as outras e há poucos indícios de que essa tendência esteja perdendo força. Talvez o melhor modo de medir isso seja observar a porcentagem de artigos em inglês publicados em periódicos destina­ dos a um público largamente não anglófono. Para esse propósito, comparamos quatro periódicos de reputação internacional: o Z eitschrift f ü r d ie alttestam en tliche W issenschaft (ZATW), o Z eitschrift J iír d ie n eutestam entliche W issenschaft (,ZNTW), B iblica (B) e o R ev u e B iblique {RS). As porcentagens de artigos neles publicados em língua inglesa são as seguintes:

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1945-1954 1955-1964 1965-1974 . 1975-1984 1985-1994

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ZATW 20 .22 33 55 50

ZNTW 5 11 13 23 23

B 14 27 40 53 65

RB 0 0 4 9 28

Quando consideramos que periódicos em inglês raramente publicam seus tex­ tos em qualquer outro idioma e também que eles são muito mais numerosos em geral, podemos começar a medir o efeito dessa enorme mudança que está ocorrendo diante dos nossos olhos.

11 TENDÊNCIAS ACADÊMICAS NA INTERPRETAÇÃO Introdução O primeiro mundo de discurso na interpretação bíblica contemporânea é o do estudo acadêmico, que continua a tradição histórico-crítica herdada do sé­ culo passado e tenta integrar novas abordagens em suas normas estabelecidas. Representantes dessa abordagem tendem a acreditar que ela é a única legítim a e consideram as outras “subjetivas” e “não científicas”. Alguns deles têm uma pro­ funda aversão aos evangélicos conservadores, a quem deliberadamente — mas de modo equivocado — rotulam de “fündamentalistas”. No entanto, há evan­ gélicos conservadores que são notáveis estudiosos nessa tradição, amplamente respeitados por aqueles que não compartilham de suas convicções religiosas. Semelhantemente, alguns estudiosos críticos estão na vanguarda da pesquisa interdisciplinar, enquanto outros têm se detido e podem até mesmo terem sido críticos seus colegas mais ousados. Assim, o que ocorre é que a instituição aca­ dêmica manifesta atualmente um grau de pluralismo relativamente novo e que apresenta possibilidades estimulantes para o futuro.

Os intérpretes e sua obra Críticos literários efilósofos Erich Auerbach (1892-1957). Foi pioneiro da crítica literária moderna, cuja obra clássica M im esis (1947) afirma que os Evangelhos se destacam como literatura por causa da profundidade de seu realismo. Auerbach tinha poucas ligações com o mundo bíblico acadêmico e foi pouco lido nesses círculos durante sua vida. Clive Staples Lewis (1898-1963). Popular apologista do cristianismo or­ todoxo, seguiu a abordagem de Auerbach. Criticou sobretudo os estudiosos da Bíblia que tentavam aplicar categorias literárias como “mito” a seu material sem

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realmente compreender essas categorias. Ele tem tido considerável influência co­ mo crítico dos métodos tradicionalmente empregados pelos estudiosos da Bíblia. M artin H eidegger (1889-1976). Foi professor de filologia em Marburgo a partir de 1923, onde exerceu grande influência sobre R. Bultmann, e mais tarde em Freiburgo (1928). Sua obra clássica é S er e tem po (1927), que permanece fundamental para a hermenêutica moderna. Embora não seja de modo algum um estudioso da Bíblia, Heidegger forneceu uma estrutura filosófica que sus­ tenta a interpretação bultmaniana moderna e demonstrou ser muito profícuo no desenvolvimento de teorias hermenêuticas atuais. Ernst Fuchs (1903-1983). Esse aluno de Bultmann ensinou em Berlim a partir de 1955 e em Marburgo de 1961 a 1970. A maior parte de sua obra é profundamente filosófica, e ele foi um importante representante da nova escola de hermenêutica. Infelizmente, a maior parte do que ele escreveu também é obscuro e de difícil compreensão. Sua mais notável obra é um estudo do Jesus histórico da perspectiva da “nova busca” (1960). Hans W ilhelm Frei (1929-1989). Lecionou em Yale a partir de 1957. Sua obra principal foi The eclipse o f biblical n a rra tive [O eclipse da narrativa bíbli­ ca] (1974), que fez uma contribuição significativa para o estudo literário da Bíblia. Frei defendeu que a Bíblia é principalmente “realista” em sua descrição de acontecimentos, até mesmo quando os próprios acontecimentos não eram históricos segundo critérios modernos. Ele explica esse aparente realismo como um recurso literário, que os estudiosos têm ignorado com exagerada frequência. Ao confundi-lo com “história”, eles foram obrigados a defender que a Bíblia não é verdadeira e, portanto, ignoraram sua mensagem principal. “Realismo” literário, em contrapartida, pode fazer justiça à qualidade narrativa do texto sem prejulgar o sentido histórico de um modo ou de outro. Northrop Frye (1912-1991). Esse crítico literário fundamental foi pioneiro na aplicação da teoria semântica à Bíblia. Suas obras principais de crítica bíblica são T hegreat code: the B ible a n d literatu re [O grande código: a Bíblia e literatura] (1982) e Words w ith p o w e r [Palavras com poder] (1990). Frye também foi um dos principais defensores da visão de que a Bíblia usa o simbolismo literário pa­ ra comunicar sua mensagem e de que esse simbolismo pode ser identificado em palavras específicas (e.g., “montanha”), usadas como símbolos que representam a verdade espiritual. Amos Niven W ild er (1895-1993). Lecionou em Chicago (1943) e Harvard (1954-1963). Foi o fundador da crítica literária do Novo Testamento na América do Norte e escreveu diversos estudos importantes sobre a linguagem religiosa,

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incluindo E schatology a n d ethics in the tea ch in g o fJ esu s [Escatologia e ética no ensino de Jesus] (1939). Hans George Gadamer (1900-2002). Pupilo tanto de Heidegger quanto de Bultmann, foi professor de filologia em Heidelberg de 1949 a 1968. Sua obra clássi­ ca, Truth andmethod\V erdade e métodó\ (1960), é junto com a obra de Heidegger Ser e tempo um dos fundamentos principais para os estudos hermenêuticos modernos. Gerhard Ebeling (1915-2001). Professor tanto em Tübingen quanto em Zurique (1946), foi um importante expositor de hermenêutica bíblica na dé­ cada de 1960 e contribuiu grandemente para o renascimento do interesse nos aspectos filosóficos da disciplina. Seus diversos livros incluem The n ature o f fa ith [A natureza da fé] (1959), Word a n d fa it h [Palavra e fé] (1960) e The tru th o fth e go sp el [A verdade do evangelho] (1981), que na verdade é um estudo de Gálatas. Também escreveu uma dogmática (1970). Paul Ricoeur (1913-2005). Famoso pensador francês, cujas teorias her­ menêuticas têm sido muito influentes no campo da crítica literária moderna. Também escreveu sobre temas bíblicos. Seus livros mais expressivos nessa área são The sym bolism o f e v i l \Asim bólica do maí\ (1967) e Essays on biblical in terp re­ tation \Ensaios sobre interpretação btblica\ (1981).

Estudiosos profissionais da Bíblia Joseph Augustine Fitzm yer (1920-). Professor de idiomas e literatura bíblicos na Catholic University of America, em W ashington D C (1976), ele é um dos mais importantes representantes dos modernos estudos críticos católicos. Além de muitas contribuições sobre estudos de Qumran e de aramaico, ele escreveu um notável comentário de Lucas (1981,1985) e mais um de Romanos. W illiam Farmer (1921-2000). Professor em Dallas (1964) e um forte de­ fensor da hipótese de Griesbach sobre as origens dos Sinóticos em seu livro The syn op ticp rob lem [O problema sinótico] (1964), ele é responsável sobretudo por ter reaberto a questão sinótica após uma geração, embora sua preferência pela prioridade de M ateus permaneça extremamente controversa. Dennis Nineham (1921-2016). Professor em Londres (1954), Cambridge (1964) e Bristol (1979-1986), escreveu extensamente sobre questões hermenêutica da perspectiva do relativismo cultural. Ele também publicou um bem-conhecido comentário de Marcos (1963). Krister Stendahl (1921-2008). Lecionou em Harvard (1958-1979) antes de voltar à Suécia como bispo de Estocolmo (1980). Sua obra The School o f

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M a tth ew [A escola de M ateus] (1957) foi uma das primeiras a fazer uso do material de Qumran para interpretar o Novo Testamento. Uma obra posterior, P aul a m o n g je w s a n d G entiles [Paulo entre judeus e gentios] (1976), contribuiu para o recente movimento revisionista nos estudos paulinos. S aw as Agouridis (1921-2009). Lecionou em Atenas (1954), Tessalônica (1960) e novamente em Atenas (1980). Escreveu diversos livros sobre diferen­ tes temas bíblicos, bem como comentários das epístolas joaninas (1973) e de ICoríntios (1985). É o grande responsável por elevar o nível de erudição dos estudos bíblicos em Tessalônica, tornando-a a principal faculdade ortodoxa hoje no mundo. Ele também fundou o Greek B ulletin o f B ib lica l Síudies [Periódico Grego de Estudos Bíblicos] e tem sido o principal inspirador e promotor dos esforços para a produção de uma tradução grega moderna da Bíblia. Brevard Springs Childs (1923-2007). Professor em Yale (1966-1988), é um dos principais representantes da teologia bíblica e da crítica canônica. Ao desenvolver esses temas, tentou integrar os interesses teológicos tradicionais da igreja com as descobertas do estudo crítico. Sua obra tem sido frequentemente criticada (dos dois lados do espectro), mas parece provável que a ênfase principal de sua abordagem será muito influente em anos por vir ainda. Seus principais livros incluem B ib lica l th eology in crisis [Teologia bíblica em crise] (1970), In trodu ction to the O ld T estam ent as S cripture [Introdução ao Antigo Testamento como Escrituras] (1979), The N ew T estam ent as canon: an introduction [O Novo Testamento como cânon: uma introdução] (1984), O ld T estam ent th eology in a can on ical context [Teologia do Antigo Testamento em um contexto canônico] (1985) e B iblical th eology o f the O ld a n d N ew Testam ents [Teologia bíblica do Antigo e Novo Testamentos] (1992). Também escreveu um notável comentário de Êxodo (1974). James Barr (1924-2006). Lecionou em Montreal (1953), Edimburgo (1955), Princeton (1961), Manchester (1965) e Oxford (1976-1990). Escreveu extensa­ mente sobre interpretação bíblica e é bastante conhecido como iconoclasta. Sua obra demonstrou que a distinção tradicional entre os modos “hebraico” e “grego” de pensar é bastante exagerada e tem pouca importância. Ele também tem sido um crítico severo da abordagem “estudo de palavra” na teologia bíblica, represen­ tada tipicamente por G. Kittel. M ais controversamente, ele atacou os evangélicos conservadores em uma série de livros e artigos em que denuncia o “fimdamentalismo”. Suas principais obras são The sem antics o f biblical language [A semântica da linguagem bíblica] (1961), Old a n d n ew in interpretation [O antigo e o novo na in­ terpretação] (1966), The B ible in the m odem w o rld [A Bíblia no mundo moderno]

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(1973), Fundam entalism [Fundamentalismo] (1977), The scope a n d authority o f the B ible [O escopo e a autoridade da Bíblia] (1980) e H oly Scripture: canon, authority, criticism [Escrituras Sagradas: cânon, autoridade, crítica] (1983). M artin H engel (1924-2009). Professor de Novo Testamento em Erlangen a partir de 1967 e em Tübingen a partir de 1971, desenvolveu o contexto judai­ co do Novo Testamento em sua obra clássica Ju daism a n d hellenism [Judaísmo e helenismo] (1969) e é notável por sua oposição às distinções radicais entre ideias judaicas palestinas e ideias helenistas no Novo Testamento. Destacou-se na chamada “terceira busca” do Jesus histórico e é célebre por sua avaliação positiva dos Evangelhos e de Atos como documentos históricos. Jam es M cConkey Robinson (1924-2016). Popularizou a “nova busca” do Jesus histórico (1959) e a teologia bultmaniana. Seu nome está associado à pu­ blicação de The N ag H am m adi library [A biblioteca de Nag Hammadi] (1977). Sua própria posição teológica foi radical e secular. Geza Vermes (1924-2013). Esse estudioso judeu é conhecido por sua obra Os M anuscritos do M a r M orto e por seu livro Jesu s the J e w [Jesus, o judeu] (1973). Prestou uma contribuição fundamental para nossa compreensão do contexto judaico do Novo Testamento. Sua própria convicção é que Jesus estava inserido no judaísmo predominante e que o desenvolvimento da igreja cristã foi uma aberração helenista. Jam es Louis M artyn (1925-2015). M artyn lecionou no Union Theological Seminary em Nova York (1959, 1967-1986). Sua obra H istory a n d th eology in the fo u r th G ospel [História e teologia no quarto Evangelho] (1968, revisada em 1978) marca um ponto decisivo nos estudos joaninos. A rthur W illiam W ainw right (1925-). Após um breve período lecionando em Birmingham e depois de atuar como ministro metodista na Inglaterra, ele foi para a Emory University, em Atlanta, em 1965. E o autor de um estudo clássico sobre a Trindade, The T rin ity in the N ew T estam ent [A Trindade no Novo Testamento] (1952), e também escreveu B eyon d biblical criticism [Além da crítica bíblica] (1982). Em 1985, editou a obra de John Locke Paraphrase a n d notes on th e P auline E pistles [Paráfrase e notas sobre as epístolas paulinas] e pu­ blicou uma introdução ao livro de Apocalipse, intitulada M ysterious A pocalypse [Apocalipse misterioso] (1993). Robert W alter Funk (1926-2005). Suas próprias obras incluem L anguage, herm eneutics a n d the Word o f G od [Linguagem, hermenêutica e a Palavra de Deus] (1966), Jesu s as precu rsor [Jesus como precursor] (1975) e Parables a n d p resen ce [Parábolas e presença] (1982). Sua abordagem à Bíblia é puramente secular, e

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ele defendeu um evangelho completamente novo, privado de qualquer conota­ ção teológica. Sua contribuição teológica principal ao estudo erudito ocorreu por meio da fundação da Scholars Press, que se tornou um grande veículo de publicação para obras de hermenêutica bíblica radical. H elm ut Koester (1926-2016). Foi pupilo de Bultmann, Bornkamm e Kásemann e lecionou em Harvard a partir de 1964. Por meio de seu ensino e de seu In trodu ction to the N ew T estam ent [Introdução ao Novo Testamento] (1980), ele transportou a abordagem da “história das religiões” para os Estados Unidos. Ben Franklin M eyer (1927-1995). Lecionou na M cM aster University, em Hamilton (Ontario), onde foi colega de E. P. Sanders (veja adiante). Suas obras principais são The aim s of]esus\ Os alvos de Jesus] (1979), geralmente considerada o estudo pioneiro da “terceira busca” do Jesus histórico, The early C hristians [Os primeiros cristãos] (1986) e C riticai realism a n d the N ew T estam ent [Realismo crítico e o Novo Testamento] (1989). Jam es Alvin Sanders (1927-). Publicou estudos sobre os Manuscritos do M ar Morto (1965) e diversas obras importantes sobre o cânon, incluindo Torah a n d canon [Torá e cânon] (1970), Canon a n d co m m u n ity [Cânon e comunidade] (1984) e F rom sa cred story to sa cred tex t [Da história sagrada ao texto sagrado] (1987). Sua pesquisa tem contribuído significativamente para o renascimento do interesse nos estudos canônicos. Raymond Edward Brown (1928-1998). Foi aluno de W . F. Albright e se tornou Professor de Novo Testamento no Union Theological Seminary, em Nova York (1971). É um estudioso católico romano fundamental para os es­ tudos do Novo Testamento e pioneiro da crítica bíblica nesses círculos. Sua obra principal foi sobre a literatura joanina. Seu comentário de dois volumes do Evangelho (1966, 1970) e seu comentário das epístolas (1982) são clássi­ cos. Também escreveu The critica i m ea n in g o f the B ible [O significado crítico da Bíblia] (1981), bem como importantes estudos tanto sobre as narrativas de infância quanto sobre as narrativas da paixão nos Evangelhos. Leander Keck (1928-). Foi professor de Novo Testamento nas universida­ des Vanderbilt (1959) e Emory (1972), antes de ir para Yale (1980). Sua obra principal é A fu tu r e f o r the historical Jesu s [Um futuro para o Jesus histórico] (1971). Sua abordagem está próxima da posição liberal e socioantropológica associada à “nova teologia de Yale”. John A dney Emerton (1928-2015). Foi professor emérito em Cambridge (1968). Trabalhou em textos siríacos relacionados à Bíblia e editou numerosas compilações de artigos sobre temas filológicos.

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D an Otto V ia (1928-). Importante representante da hermenêutica estruturalista, escreveu Parables [Parábolas] (1967) e K erygm a a n d com edy in the N ew T estam ent [Kerygma e comédia no Novo Testamento] (1975). Jam es Leslie H oulden (1929-). Lecionou Novo Testamento em Oxford (1960) e na Kings College, em Londres (1977). Suas principais obras são E thics a n d the N ew T estam ent [Ética e o Novo Testamento] (1973), P atterns o ffa ith [Padrões de fé] (1977) e Explorations in th eology [Explorações em teologia] (1978). Também escreveu comentários das epístolas da “prisão” de Paulo (1970), das epístolas joaninas (1973) e das Pastorais (1975). Sua abordagem é extrema­ mente liberal e hostil a posições conservadoras em geral. Anthony Ernest H arvey (1930-). Esse estudioso liberal inglês está forte­ mente associado à tentativa de desmitologização da doutrina cristã. Proferiu as Preleções Bampton em 1980, publicadas como Jesu s a n d the constraints o f history [Jesus e os limites da História] (1982), em que tenta estabelecer uma base his­ toricamente fidedigna de conhecimento sobre Jesus. H ans-D ieter Betz (1931-). Professor em Chicago (1978), é uma grande autoridade em retórica antiga e sua aplicação ao Novo Testamento. Seus co­ mentários de Gálatas (1979) e 2Coríntios 8 e 9 (1985) refletem sua chamada “crítica retórica”. Jam es M ichael Efird (1931-). Lecionou durante muitos anos na Duke University e escreveu diversos livros amplamente usados que tratam das inter­ pretações do Antigo Testamento e do Novo. Seu interesse especial é a profecia e seu cumprimento. Entre os mais bem-conhecidos estão N ew Testament w ritin gs [Escritos do Novo Testamento] (1980), O ld T estam ent w ritin g s [Escritos do Antigo Testamento] (1982), O ld T estam en tprophets then a n d n ow [Profetas do Antigo Testamento então e agora] (1982) e H ow to in terp ret the B ible [Como interpretar a Bíblia] (1984). Também escreveu comentários de Daniel e Apocalipse (1978), Jeremias (1979) e um estudo intitulado R evela tion f o r today [Apocalipse para hoje] (1989). Peter Stuhlm acher (1932-). Preletor e professor de Novo Testamento em Tübingen desde 1959, exceto por um breve período em Erlangen (1968-1972), ele é o autor de numerosos artigos sobre temas de teologia e interpretação bí­ blicas. M uitos deles foram reunidos como S chriftauslegung a u f dem Wege zur biblischen Theologie [Exposição das Escrituras a caminho da teologia bíblica] (1975). Também escreveu Vom Verstehen desN euen T estam ents: ein e H erm eneutik [Compreendendo o Novo Testamento: uma hermenêutica] (1979). Suas outras obras incluem G erechtigkeit Gottes bei Paulus [A justiça de Deus em Paulo]

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(1962) e D as P aulinische E van gelium [O evangelho paulino] (1967). Sua pers­ pectiva é em geral conservadora, embora ainda na tradição prevalecente da crítica histórica alemã. Eberhard Jü n gel (1932-). Pupilo de Fuchs, foi professor de teologia sistemática em Zürich (1967) e depois em Tübingen (1969). Embora seja prin­ cipalmente um teólogo sistemático, escreveu sobre temas do Novo Testamento, notadamente em Jesu s undP aulu s [Jesus e Paulo] (1962). John Dominic Crossan (1934-). Um grande expoente de teorias herme­ nêuticas relacionadas à crítica literária da Bíblia, trabalhou sobre as parábolas em Parables o f Jesu s [Parábolas de Jesus] (1973) e publicou extensamente sobre o estruturalismo. RobertTannehill (1934-). E pioneiro da abordagem literária da interpretação bíblica, e suas obras desenvolvem essa teoria. Entre elas estão D yin g a n d risin g w ith Christ [Morrer e ressuscitar com Cristo] (1967), The sw o rd o f his m outh [A espada de sua boca] (1975) e The n arrative unity ofL uke—Acts: a literary interpre­ tation [A unidade narrativa de Lucas—Atos: uma interpretação literária] (1987). Robert A lter (1935-). Professor de hebraico e de literatura comparada na University of Califórnia, Berkeley (1969), ele é um grande representante de abordagens literárias à Bíblia. Seus livros principais são The a rt o f biblical nar­ ra tiv e \A arte da n arrativa bíblica\ (1981) e The a rt o f bib lical p o etr y [A arte da poesia bíblica (1985). Edwin Parrish Sanders (1937-). Foi o responsável por uma grande reorientação nos estudos paulinos por meio de seus livros P aul a n d P alestinian Ju d a ism [Paulo e o judaísmo palestino] (1977) e Paul, the la w a n d th e J ew ish p eo p le [Paulo, a lei e o p o v o ju d e u ] (1983). Em comum com K. Stendahl, ele está convencido de que Lutero não entendeu Paulo e que, como resultado disso, a interpretação protestante do Novo Testamento tem sido fundamentalmente deficiente. Seu estudo Jesu s a n d Ju daism [Jesus e o judaísmo] (1985) foi seme­ lhantemente iconoclasta em sua reavaliação radical da relação de Jesus com a religião de sua época. Anthony Charles Thiselton (1937-). Professor de teologia na Nottingham University e uma grande autoridade em teoria hermenêutica. Seus principais livros são T wo horizons: N ew T estam ent herm eneutics an dp h ilosoph ical description [Os dois horizontes: a hermenêutica do Novo Testamento e a descrição filosófi­ ca] (1980) e N ew horizons in herm eneutics: the th eory a n d p ra ctice o f tra n sform in g biblical rea d in g [Novos horizontes na hermenêutica: a teoria e prática da leitura bíblica transformadora] (1992). É evangélico conservador e sua obra oferece

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um notável exemplo de como um estudioso dessa linha pode penetrar mais profundamente o complexo mundo da filosofia alemã. Ernest W ilson Nicholson (1938-2013). Professor da cátedra Oriel em Oxford (1979-1990) e depois reitor da Oriel College. Suas diversas obras in­ cluem "Deuteronomy a n d tradition [Deuteronômio e tradição] (1967), P reach in g to the exiles [Pregando para os exilados] (1971), Exodus a n d Sinai in history an d tradition [Êxodo e Sinai na história e na tradição] (1973) e God a n d bis p e o p le [Deus e seu povo] (1986), bem como um comentário de dois volumes de Jeremias (1973,1975). Jam es Douglas G rant D unn (1939-). Professor de Novo Testamento em Durham, sua posição teológica está na margem liberal do campo evangélico atual. Escreveu diversas obras de uma perspectiva crítica, incluindo Jesu s a n d the S pirit [Jesus e o Espírito] (1975), U nity a n d d iv ersity in the N ew T estam ent [Unidade e diversidade no Novo Testamento] (1977), C ristology in the m aking [Cristologia em processo] (1980), Jesus, P aul a n d the la w [Jesus, Paulo e a Lei] (1990) e The p a rtin g s o f the w a ys b etw een C hristianity a n d Ju daism [A separação entre o cristianismo e o judaísmo] (1991). Também escreveu um comentário de dois volumes de Romanos (1988). Gerd Theissen (1944-). Professor de Novo Testamento em Heidelberg (1980), foi pioneiro da interpretação sociológica e psicológica moderna da Bíblia. Suas obras incluem The m iracle stories o f the gosp el \_As histórias de milagre na Bíblia] (1974), The fi r s t fo llo w er s o fJesu s [Os primeiros seguidores de Jesus] (1977), On h a v in g a critica i fa ith [Sobre ter uma fé crítica] (1978), P sychological aspects o f P auline theology [Aspectos psicológicos da teologia paulina] (1983) e uma tentativa ambiciosa de reconstruir a vida de Jesus, A sombra do Galileu (1986). Richard John Bauckham (1947-). Professor de Novo Testamento em St. Andrews (1991), escreveu extensamente sobre vários temas e se especializou em literatura apocalíptica. Seus escritos principais sobre o Novo Testamento são The B ible a n d p olitics [A Bíblia e a política] (1989), J u d e a n d the relations o f Jesu s [Judas e os parentes de Jesus] (1990), The th eology o f R evela tion [A teologia de Apocalipse] (1993) e um altamente bem-conceituado comentário de 2Pedro e Judas (1983). Erudito evangélico conservador, ele está fazendo uma grande contribuição para colocar os interesses teológicos no primeiro plano dos estudos bíblicos hoje. H ugh Godfrey M aturin W illiam son (1947-). Professor régio de hebraico em Oxford (1992), publicou The book called Isaiah [O livro chamado Isaías] (1994), em que defende a unidade do livro como uma composição pós-exílica,

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bem como comentários de 1 e 2Crônicas (1982) e de Esdras e Neemias (1985, 1987). Também é um estudioso evangélico, cuja obra é uma fusão de interesses evangélicos tradicionais (e.g., em favor da unidade de Isaías) e um uso responsá­ vel dos melhores métodos críticos, que ele tem empregado para desafiar muitas das pressuposições recebidas dos estudos contemporâneos.

As questões As principais questões na interpretação acadêmica contemporânea podem ser esboçadas do seguinte modo: 1. É p o ssív el estudar a B íblia de um m odo que deixa a teologia de lado? Certa­ mente se tentou fazer isso na geração passada, com variados graus de êxito. Visto que estudos técnicos de um tipo ou de outro podem ser escritos sem intrusões teológicas, é possível ou desejável parar por aí? Podemos pressupor que pessoas terão interesse no propósito fundamental do material que estão estudando ou será que indivíduos devem decidir essa questão como lhes convêm? 2. Ê p o ssív el ou d esejá vel in tegra r estudos críticos tradicionais com outras discipli­ nas? Essa questão se tornou de importância máxima e tem causado considerável controvérsia. As ligações tradicionais com a filologia, a história e a filosofia clássicas têm sido enfraquecidas continuamente, para serem substituídas pela antropologia, sociologia, lingüística e crítica literária. Isso é válido ou será que o estudo crítico deve permanecer em seus caminhos tradicionais? H á uma impor­ tante questão de controle de qualidade aqui: Visto que não é possível que um só estudioso espere dominar todas as disciplinas, é melhor investigar uma área estreita a fundo ou abranger uma ampla variedade com o risco de ser superficial? Dividir o campo em diferentes especialidades é somente uma resposta parcial a esse problema. É fácil cometer erros em uma área especializada, e os estudiosos cujos dados e conclusões dependem de outros podem ser seriamente desencaminhados. Isso já aconteceu quando os estudiosos da Bíblia se apropriaram equivocadamente de certas descobertas arqueológicas, e problemas desse tipo estão propensos a se multiplicar em vez de diminuir à medida que as ligações interdisciplinares aumentam. 3. Ê p o s s ív e l m a n ter a u n idade e a in tegrid a d e de estudos bíblicos com o um a discip lin a p o r si m esm a? Isso se tornou uma grande questão em anos recentes, visto que os estudiosos passaram a considerar cada vez mais o A ntigo e o Novo Testamentos como antologias da literatura hebraica antiga e cristã primitiva.

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O Antigo Testamento manterá seu lugar central na literatura hebraica antiga, visto que quase todo o restante se perdeu, mas o Novo Testamento está em uma posição diferente. Situado no contexto do judaísm o do primeiro século, ele agora se apresenta como só uma opção entre muitas. Até mesmo em cír­ culos cristãos, de modo algum ele é um relato pleno da igreja prim itiva, como a redescoberta de grandes quantidades de m aterial gnóstico tem revelado. O fato de que essa literatura foi perdida ou ignorada durante mais de 18 séculos não intim ida os críticos históricos, que podem considerá-la como evidên­ cia ainda mais valiosa, visto que ela obviamente não foi adulterada durante esse período. Em um nível diferente, a crescente especialização do estudo recente tornou difícil para a maioria dos estudiosos terem uma compreensão plena mesmo de só um dos Testamentos, quanto mais de ambos. A separação que ocorreu no início do século 19 por motivos teológicos agora é uma necessidade prática, por causa da vasta quantidade de material envolvido. Podemos não ter alcançado o estágio em que cada livro da Bíblia tem seu próprio departamento especializado, mas esse dia está mais perto agora do que nunca. É cada vez mais difícil obter uma compreensão da unidade da Bíblia, e o fundamento em que é necessário basear essa unidade é fugidio, apesar da atenção recentemente prestada ao sig­ nificado hermenêutico do cânon.

Os métodos de interpretação A cena acadêmica contemporânea se caracteriza por uma abundância de diferentes abordagens ao texto bíblico. Nesta seção, examinaremos as mais sig­ nificativas, independentemente das que têm um significado social ou político especial, que deixaremos para o capítulo seguinte. Aqui examinaremos as teorias e os métodos hermenêuticos seguintes: a crítica histórica que se desenvolveu a partir de cerca de 1975; os ataques ao método histórico-crítico; a crítica canôni­ ca; a nova crítica literária; a nova hermenêutica; e o estruturalismo.

A crítica histórica desde cerca de 1975 A sobrevivência do método histórico-crítico como a forma predominante de interpretação bíblica não pode mais ser tida como certa, mais ele ainda é o mais importante nos departamentos universitários de estudos bíblicos. Na presente época, ele está evoluindo rapidamente, e tem havido diversos novos desenvolvi­ mentos que derrubaram alguns dos resultados aceitos da crítica anterior.

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No Antigo Testamento, a pressuposição de que a arqueologia fornece uma base segura para a datação do período patriarcal tem sido cada vez mais questio­ nada. Não se pode mais afirmar confiantemente que as figuras de Abraão, Isaque e Jacó são históricas no mesmo sentido que figuras posteriores na história de Israel, e a relação conservadora entre a arqueologia e a Bíblia tem sofrido um ataque cada vez maior. Um marco nesse sentido foi a publicação da tese de T. L. Thompson The historicity o f the p a tria rch a l n arratives: th e q u estfo r the h istorica l A braham [A historicidade das narrativas patriarcais: a busca do Abraão histórico] (1974). Essa obra foi uma crítica ampla e completa da escola de ar­ queologia de Albright e fez as seguintes observações mais notáveis: 1. Albright enfatizou as semelhanças entre as tábuas encontradas em M ari e Nuzi e o relato bíblico e ignorou totalmente as muitas diferenças. Isso resultou em uma defesa unilateral da historicidade dos dados bíblicos, que não podia ser corretamente apoiada pela evidência. 2. Albright associou sua afirmação de que havia ocorrido uma invasão de nômades mesopotâmicos na Palestina em cerca de 2000 a.C. (que se baseava no relato de Gênesis) com sua afirmação de que a cultura palestina contemporânea era a de um grupo nômade intruso e não urbano (que se baseava em descobertas arqueológicas). Essa associação era extremamente duvidosa, visto que não havia evidências de que a cultura da Palestina no período em consideração era o pro­ duto de uma invasão nômade da Mesopotâmia. 3. O princípio de harmonização de Albright entre os textos bíblicos e a evi­ dência arqueológica distorceu o significado de uma dessas coisas por si própria; era feito com que tudo se encaixasse, não importando se de fato se encaixava ou não. Os argumentos de Albright a favor de um Êxodo e da conquista de Canaã no século 13 também sofreram um exame minucioso. Em um artigo publica­ do em 1977, P. M . M iller mostrou que a evidência arqueológica estava muito longe do que seria necessário para provar a exatidão dos textos bíblicos e que Albright precisou depender do silêncio para preencher lacunas nas evidências. Trabalhando do extremo oposto do espectro, J. Bimson, um estudioso evan­ gélico conservador, tentou provar (1978) que o Êxodo e a conquista haviam ocorrido no século 15, e, no processo, expôs diversos pontos fracos nos métodos usados por Albright e sua escola. Ainda é muito cedo para afirmar qual desses argumentos vencerá, mas agora se tem escrito o suficiente para deixar claro que a harmonização que Albright fez da Bíblia com os dados arqueológicos não pode ser sustentada. Certamente há

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pontos fracos nas abordagens oferecidas por seus críticos, e até agora ninguém conseguiu impor uma síntese alternativa, mas a questão está mais uma vez total­ mente indefinida. Basta dizer que ainda é possível defender a datação primitiva sobre um fundamento acadêmico e que, por causa disso, não há como voltar ao ceticismo do século 19. Ao mesmo tempo, as intensas pesquisas arqueológicas que têm sido realizadas desde 1967 por estudiosos israelenses produziram re­ sultados mais próximos das teorias de A lt que das teorias de Albright, deixando a impressão de que a penetração israelita da palestina foi um processo gradual, e não uma invasão súbita vinda do leste do Jordão. Em outras áreas, o estudo crítico do Antigo Testamento se desenvolveu somente marginalmente desde 1975. A maior parte da atenção tem sido dedi­ cada à análise literária dos dados, e questões históricas têm desempenhando um papel secundário na pesquisa. Diferentes teorias continuam sendo apresentadas sobre livros específicos, mas sem afetar o retrato geral que havia sido estabele­ cido anteriormente. O estudo do Novo Testamento experimentou mudanças muito maiores desde 1975, principalmente por causa do impacto das teorias de E. P. Sanders e B. F. Meyer. Sanders desencadeou o processo em 1977, quando publicou seu significa­ tivo estudo sobre Paulo. Nele, tentou mostrar que toda a tradição de interpretação do pós-Reforma era fundamentalmente falha, pois descrevia o judaísmo rabínico como uma religião legalista semelhante ao catolicismo romano do século 16. Sanders defendeu que não havia muita verdade nisso e que os rabinos acreditavam que guardar a Lei não era uma questão de obter favor com Deus, mas de expressar a realidade de ser membro na aliança da graça. Fazendo extensivo uso da literatura do período, ele conseguiu mostrar que o retrato tradicional dos rabinos (e dos fariseus) havia enfatizado a incontestável mesquinhez deles em algumas áreas, mas ignorava o fato de que eles eram igualmente capazes de profundas percepções espirituais em outras. Se essa mudança de percepção terá muito impacto na ava­ liação erudita dos ensinos de Paulo, permanece incerto, mas ela está certamente produzindo uma reavaliação completa da natureza da oposição que ele enfrentava. A obra de B. F. M eyer (1979) é significativa por dar início ao que agora é chamado “a terceira busca” do Jesus histórico. O orgulho da “terceira busca” é seu método histórico, e a obra de M eyer está solidamente fundamentada em teoria filosófica. Ele pergunta qual era o propósito de Jesus, e ele mesmo responde que seu objetivo principal era “restaurar”Israel de acordo com a esperança escatológica geral do período. Ele faz uma distinção radical entre o que Jesus dizia e fazia em público e o que ele revelava sobre si mesmo em privado. No primeiro domínio,

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ele se contentava com um apelo à reforma, mas, no segundo, embarcou em uma revolução espiritual. Seus discípulos acabaram compreendendo que as revelações privadas de Jesus eram programáticas para sua conduta pública e que ele queria ver uma transformação espiritual de amplas conseqüências para a nação. As ideias de M eyer foram adotadas e desenvolvidas por M . J. Borg (1984). Borg situou Jesus claramente em meio à vida política e religiosa de sua época, embora não do mesmo modo que Reimarus havia feito. Em vez de descrevê-lo como um revolucionário político, Borg o enxerga como o último na linhagem tradicional dos profetas de Israel, afastando as pessoas de uma falsa esperança política e insistindo com elas para que imitem a natureza misericordiosa de Deus. Em especial, Borg tenta transformar a linguagem escatológica usada por Jesus e explicá-la não como a pregação de um reino futuro, mas como a aplicação de categorias de pensamento que transcendiam as realidades presentes. A favor dessa hipótese, ele mostra que Jesus ordena que seus seguidores fujam de Jerusalém (M t 24.15-22), o que não sugere que ele imaginava que sua destruição seria o fim do mundo. O que Jesus acreditava era que a ordem judaica em que ele vivia logo che­ garia ao fim — uma profecia que se cumpriu nos acontecimentos de 66-73 d.C. M ais uma grande contribuição para a “terceira busca” foi prestada por E. R Sanders (1985), que criticou algumas de suas pressuposições e tentou focar a atenção mais em certos fatos históricos que corriam o perigo de ser ignorados pela “terceira busca”. O ponto principal de Sanders era que Jesus não morreu por uma ideia, mas por aquilo que ele de fato fez. O estudo erudito que começava com as afirmações de Jesus, e não com suas ações, estava fundamentalmente equivocado. O centro da religião judaica era a adoração no Templo e quando Jesus começou a atacá-la, ele estava condenado. O establishm ent judaico podia tolerar inúmeras violações de leis alimentares e leis relacionadas ao sábado, mas não um ataque frontal ao seu sistema sacrificial. H á muitos pontos fracos em questões específicas na reconstrução que Sanders faz dos acontecimentos, mas sua tese fundamental continua estimulando mais pesquisa. A “terceira busca” do Jesus histórico tem um tom mais secular e mais judaico do que a “nova busca” nas décadas de 1950 e 1960, mas há duas questões funda­ mentais de que ambos os matizes precisam tratar. A primeira delas é a relação entre Jesus e o judaísmo. E aí a questão não é meramente explicar o conteúdo de seu ensino, mas determinar qual foi o motivo de ele ter sido crucificado. E também tentar identificar como uma interpretação teológica avançada de sua vida e morte surgiram tão cedo após os próprios acontecimentos, se Jesus mes­ mo não foi responsável por isso. A segunda grande questão é a relação de Jesus

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com a igreja primitiva. Agora cada vez mais se reconhece que os elementos de continuidade são mais significativos do que os de descontinuidade e que a ideia de que Paulo ou os primeiros cristãos corromperam completamente o ensino de Jesus dificilmente está correta. M as é mais difícil afirmar quais eram essas liga­ ções de continuidade, principalmente se a “terceira busca” continuar excluindo questões teológicas de sua consideração. No fim, é impossível fornecer um retrato adequado de Jesus se a teologia é deixada de lado; o problema da ressurreição — e da adoração concedida a Jesus pela igreja prim itiva — sempre vai querer a palavra nessa discussão. É aqui que a “nova busca” é mais fraca e que o mundo dos estudos do Novo Testamento aguarda uma nova síntese. No entanto, o fato de que ela tem uma abordagem muito mais positiva da fidedignidade histórica dos documentos de que dispomos e também o fato de que ela está preparada para conceder considerável crédito às ações atribuídas a Jesus nos Evangelhos constituem um início promissor para o futuro desenvolvimento de um retrato de sua vida e obra que consiga gerar consenso.

Alternativas à critica histórica

O ataque conservador Ao mesmo tempo que a crítica histórica tem experimentado uma séria de re­ novações, ela também passou a ser cada vez mais atacada como método. Em 1977, o estudioso alemão Gerhard M aier publicou sua obra programática, The en d o f the h istorica l-critica i m ethod [O fim do método histórico-crítico], em que ele mostrou os vários defeitos da crítica histórica. Em especial, M aier apresenta os seguintes argumentos: 1. A crítica histórica é analítica e não sintética. O que ela faz bem é separar coisas em pequenos pedaços, mas não é boa em reuni-los novamente. No entanto, todo o Novo Testamento foi reunido no que os primeiros cristãos consideravam um todo coerente e é essencial saber como e por que isso foi feito. Se a análise dos textos produzir somente fragmentação, ela não nos levará a lugar algum. 2. A crítica histórica não produziu um sistema coerente de pensamento. Ela usa diferentes critérios para avaliar diferentes pedaços de evidência, com pouca consideração pelo todo. Repetindo, isso é um problema de análise versus síntese, aumentado pelo fato de que nem toda a análise procede das mesmas pressuposições básicas.

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3. A crítica histórica depende de dados inadequados. É impossível recons­ truir o mundo antigo de um modo que seria universalmente aceito como uma base apropriada para a análise histórica; até mesmo quando este ou aquele acon­ tecimento é constatado como “verdadeiro”, ele não pode ser encaixado em um todo coerente em que cada elemento é adequadamente fundamentado por evi­ dências relevantes. Suas conclusões, portanto, nunca são mais que hipotéticas, por mais plausíveis que possam ser. 4. A crítica histórica se concentra na exatidão dos textos bíblicos como um relato factual e tende a ignorar a aplicabilidade do texto para hoje. Pode ser mui­ to interessante saber se as muralhas de Jericó realmente caíram ou não, mas que diferença isso faz para nossa vida espiritual agora? A crítica histórica investiga questões como essa sem a menor consideração da dimensão espiritual do texto. Ela é reducionista em sua abordagem às Escrituras e, portanto, inadequada co­ mo método hermenêutico. M aier, um evangélico conservador, continuou defendendo que somente uma abordagem teológica completa dos dados, levando em consideração sua historicidade, mas não ficando fascinado com ela, poderia ressuscitar a herme­ nêutica bíblica. Ele desenvolveu essa perspectiva em sua B ib lica l herm eneutics [Hermenêutica bíblica] (1990; T I 1994), que defende uma recuperação da doutrina da revelação. Para M aier, isso está ligado à voz do Espírito Santo que dá testemunho a nosso coração pela fé. Aqueles que expõem o texto bíblico dessa perspectiva descobrirão que sua exposição também se torna uma tes­ temunha da revelação que eles estão buscando proclamar. Aqui estamos nos movendo entre conceitos familiares no protestantismo tradicional, mas quase esquecidos no mundo da crítica bíblica de hoje. A inda não se sabe se a pro­ posta de M aier terá êxito nesse alvo de restaurar a teologia ao centro do estudo bíblico, mas é significativo que ele tenha sido apoiado dentro da comunidade crítica, notadamente da parte de Peter Stuhlmacher (1979). Também é possí­ vel mencionar o notável caso de Eta Linnemann, que depois de formada no liberalismo comum das universidades alemãs se converteu a uma fé evangélica conservadora e posteriormente dedicou a vida a uma crítica ampla e completa de suas posições de antes.

A crítica canônica M ais uma forma de ataque à crítica histórica é a que concentra sua atenção no fenômeno do cânon. A crítica canônica não pode ser confundida com o estudo

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de como o cânon se originou. Ela aceita a existência do cânon em sua presente “forma” e tenta explicar seu desenvolvimento investigando os princípios por trás dele. Como a expressão foi usada pela primeira vez por J. A. Sanders (1972), ela se refere às pressuposições hermenêuticas dos redatores que originalmente produziram o cânon. De acordo com Sanders, embora gerações posteriores te­ nham se apropriado do cânon e o tenham ajustado às suas próprias necessidades religiosas, o ponto de partida de toda a interpretação permanece o texto con­ forme reunido pelos redatores originais, e, assim, sua interpretação do material desempenha um papel fundamental em todo o estudo subsequente da Bíblia. No entanto, a crítica histórica foi depois adotada e renovada por B. S. Childs, a quem o termo agora está indelevelmente associado. Childs foi mais longe que Sanders e afirma que o estudo canônico da Bíblia se opõe ao método histórico-crítico. Para ele, uma interpretação da Bíblia teologicamente fundamentada precisa começar com a forma final do texto e relacionar suas descobertas a todo o cânon. O interesse principal de Childs é como uma passagem funciona em seu contexto canônico, embora não esteja completamente claro como ele define isso. O que veio primeiro: a passagem ou seu contexto? Parece haver aqui um argumento circular do qual é impossível escapar. De alguns modos, a abordagem de Childs é uma volta à ideia da Reforma de que é necessário ler e interpretar cada passagem das Escrituras como parte de “todo o conselho de Deus”, mas ele aceita plenamente os resultados da crítica histórica e avalia o material de acordo com ela. Também não se mostra disposto a ligar suas teorias a qualquer princípio teológico além daquele da canonização, de modo que ele não depende de alguma coisa como o conceito da Reforma de “teologia da aliança” para fornecer coerência às suas teorias. Sua abordagem tem sido severamente criticada com base no argumento de que é autocontraditória (pois em um nível ele aceita a crítica histórica, ao passo que em outro nível ele a rejeita) e anti-histórica (pois ele se recusa a considerar o Sitz im Leben dos reda­ tores canônicos). No entanto, não pode haver dúvida alguma de que a pergunta fundamental feita pela crítica histórica permanece um item essencial na agenda do atual estudo crítico.

A nova crítica literária Antes do início da crítica histórica no começo do século 19, questões literárias constituíam uma parte substancial do estudo bíblico. Isso se aplicava até mes­ mo aos teólogos do início do Iluminismo, que tinham interesse em detalhes

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históricos somente quando podiam ser usados como evidência para atacar a “infalibilidade” do texto bíblico. Até mesmo no século 19, havia estudiosos que conferiam um valor mais elevado ao evangelho de João do que aos Sinóticos, em virtude de seu estilo muito mais literário. A crítica da forma representou uma volta a interesses literários, mas levou certo tempo para que isso ficasse evidente. As ideias de Gunkel foram rapidamente adaptadas às necessidades da teologia querigmática da década de 1920, e foi necessária ainda mais uma geração para que o elemento puramente literário voltasse à tona mais uma vez. Enquanto isso, obviamente, haviam ocorrido consideráveis desenvolvimen­ tos na teoria literária fora do campo dos estudos bíblicos. Já na década de 1920,1. A. Richards e T. S. Eliot estavam desenvolvendo um tipo de crítica que abando­ naria a história como modelo e insistiria no julgamento meramente estético das obras de arte. A crítica literária desse tipo desenvolveu três métodos distintos de investigação. Primeiro, havia a crítica centrada no autor, que procurava examinar a intenção original no autor quando escreveu sua obra. Isso fazia certo sentido, mas em última instância era insustentável, por várias razões. Primeira, não era possível saber qual era a intenção do autor, a não ser que ele o deixasse claro, o que raramente fazia. Determinar qual teria sido sua intenção com base no pro­ duto final era um exercício amplamente subjetivo, com mais chance de refletir os interesses do intérprete do que os do autor. Em segundo lugar, havia ocasiões em que a intenção do autor era bem diferente da percepção geral dos leitores. O caso clássico é a obra de Nikolai Gogol, cujas peças satíricas que condenavam o desgoverno czarista tinham o propósito de apoiar o regime e não eliminá-lo. M as a percepção pública dessa obra foi exatamente a oposta, para a desgraça de Gogol. Até durante a vida de Gogol, o famoso crítico literário russo V. Belinsky elogiou sua obra ao máximo, ao mesmo tempo que condenava o próprio Gogol como um incorrigível reacionário que não compreendia o verdadeiro significado da própria obra. A crítica centrada no autor claramente tinha seus limites e ela foi logo substituída pela crítica centrada no texto. Essa forma de crítica literária podia remontar suas origens a Aristóteles e se concentrava na composição interna da obra em estudo. Havia certos critérios de harmonia e adequação que poderiam ser usados para julgar o valor estético de uma obra de literatura, e eles seriam válidos independentemente das intenções do autor. No entanto, as dificuldades com a crítica centrada no texto eram tão sérias quanto as encontradas pela críti­ ca centrada no autor. Em primeiro lugar, ela se baseava inteiramente na forma, e não no conteúdo. Em um extremo, seria possível defender que a lista telefônica

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é uma bela composição, perfeita em sua simplicidade, mas seria difícil afirmar que se trata de uma grande obra da literatura. A crítica centrada no texto ainda ignorava o problema da função de um texto, que também se relacionava à sua acessibilidade. Certos textos belos desapareceram (ou nunca vieram a lume) na cultura ocidental porque os princípios por trás de sua escrita nunca foram com­ preendidos ou apreciados pela maioria dos ocidentais instruídos. Um exemplo clássico disso é o Alcorão, universalmente reconhecido como a obra-prima da literatura árabe, mas que deixa a maioria dos ocidentais indiferente, pois não conseguimos compreender (ou simpatizar com) os princípios por trás dele. Por último, há a crítica centrada no leitor, que demonstrou ser a opção mais popular em anos recentes. Esse tipo de crítica enfatizava a importância do leitor e de sua percepção do texto, que saltaria à vida somente à medida que o leitor fosse capaz de absorvê-lo ou apreciá-lo. Não importava se o leitor distorcia a intenção original do autor, contanto que a grandiosidade do texto continuasse sendo apreciada. A vantagem da crítica centrada no leitor é que se trata da forma mais facilmente determinada; todos os críticos são eles mesmos leitores. M as o subjetivismo dessa abordagem também é óbvio. Nem todos os leitores são críticos competentes, mas a crítica centrada no leitor não consegue distin­ guir facilmente entre os leitores que sabem do que estão falando e os que não sabem. No entanto, é esse tipo de crítica literária que se tornou predominante na pesquisa moderna de modo geral, e ele foi prontamente aplicado à Bíblia. M ais um aspecto importante da crítica literária é sua relativa indiferença diante de questões históricas. As críticas da fonte, da forma e da redação, como haviam sido adaptadas aos estudos bíblicos, eram de pouco interesse para os críticos literários. Seu interesse era o estado final do texto e o efeito literário que exercia sobre leitores. Nesse sentido, ela estava mais próxima da crítica canônica. No entanto, a lógica da crítica literária ia mais fundo que isso. Pois a boa litera­ tura não é escrita por comitês ou por grupos de redatores trabalhado durante um período de séculos. A boa literatura é o produto de gênios individuais, e nesse sentido a crítica literária da Bíblia tendia a defender a ideia de que seus textos principais foram redigidos por autores individuais, e não compilados por grupos de um tipo ou de outro. Isso, por sua vez, levantou a pergunta de se realmente era possível considerar a Bíblia como literatura no sendo estético. Ela não se encaixava na codificação por “gêneros” que a crítica da forma havia tentado impor a ela, com o resultado de que os críticos se viam inventando novos “gêneros” para lidar com o fenô­ meno bíblico. Nem era possível divorciar a Bíblia da história. Mesmo que seus

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detalhes estivessem “errados” até certo ponto, ela ainda era em grande medida um documento histórico, interessado em relatar acontecimentos como haviam realmente ocorrido. Partes do texto tinham uma natureza diferente e poderiam legitimamente ser considerados “não históricos”, e a crítica literária teve mais êxito com elas, mas a historicidade (reivindicada) do texto principal era incon­ testável. A crítica literária também tinha dificuldade em lidar com a dimensão religiosa das Escrituras, que não era facilmente suscetível a análise literária. Tendo dito isso, a crítica literária se concentrou em certos tipos de literatura considerados amplamente representados na Bíblia. O primeiro deles é a narra­ tiva . Grande parte da Bíblia é uma história, e uma das grandes glórias do texto está em como ela é contada. Não importa o que mais os autores das Escrituras fossem, eles certamente eram grandes contadores de história, com o especial talento de tornar sua história tão realista quanto possível. Esse é um ponto de especial importância, pois grande parte da crítica das Escrituras do século 19 estava enraizada no que parecia ser a fantástica improbabilidade (e, portanto, ausência de realismo histórico) da narrativa textual. Ao reestabelecer o “realis­ mo” do texto em uma base literária, os críticos modernos ajudaram para que ele recebesse maior credibilidade; a história é “verossímil”, mesmo que na realidade nunca tenha acontecido. Essa foi a linha seguida por Erich Auerbach e adotada por C. S. Lewis, que deu um passo adiante e afirmou que a narrativa bíblica era realista porque era real; ela havia de fato acontecido exatamente do modo como é contada. Essa visão, no entanto, foi questionada, notadamente por R. Alter, que considerava a narrativa bíblica essencialmente como ficção com uma qualidade que a asseme­ lhava à história. A maioria dos representantes de uma interpretação narrativa das Escrituras parece se encontrar em algum ponto no meio desse debate. Eles estão dispostos a aceitar que grandes partes das Escrituras podem muito bem ser “verdadeiras” em um sentido científico e histórico, mas não estão dispostos a afirmar que todas elas (ou ao menos não tantas quantas elas reivindicam ser) são fatos históricos. Para eles, a historicidade é uma questão secundária, que não afeta a verdade da narrativa como tal. No entanto, como afirma Hans Frei, o importante é que o intérprete moderno esteja disposto a começar com o mundo bíblico e deixar suas narrativas definirem o que é “real”, de modo que nossa vida hoje tenha significado à medida que se encaixe nessa estrutura. Em outras palavras, é necessário interpretar a Bíblia dentro de sua própria autocompreensão, e não por meio das lentes deturpadoras de uma hermenêutica moderna e essencialmente estranha.

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M ais um ramo da crítica literária é a retórica. Essa foi adaptada de uma antiga categoria grega e aplicada com o maior êxito às epístolas paulinas. O ponto principal da crítica retórica é que o texto está interessado em propagar um argumento, o que ele faz usando certos artifícios retóricos. É óbvio que não há nenhuma razão especial pela qual isso não seja assim, mas, independentemente de elucidar algumas expressões aqui e ali, é difícil esperar que esse tipo de crítica tenha um grande efeito sobre a interpretação bíblica. A maioria das pessoas sabe já faz tempo que Paulo estava argumentando contra oponentes de um tipo ou de outro; mostrar isso mais uma vez parece de certo modo desnecessário. Tentativas de explorar outros tipos de efeito literário têm tido menos êxito. Edwin Good escreveu sobre a ironia em Iro n y in the O ld T estam ent [Ironia no Antigo Testamento] (1965), contudo, embora a ironia possa estar presente no texto, parece ter importância secundária para a interpretação. M uito semelhante a isso são as tentativas de D. O. V ia de encontrar “comédia” nos Evangelhos. D. O. V ia também escreveu extensamente sobre o “gênero” literário das parábolas, embora nesse caso suas teorias estejam mais bem fundamentadas. A fraqueza principal da abordagem literária, por mais interessante e impor­ tante que seja, é que ela, demasiadas vezes, coloca a forma acima do conteúdo. Insignificância bela é preferida a significado feio — uma aberração estética que não pode fazer justiça ao evangelho daquele que “não tinha formosura ou bele­ za”. Na Bíblia, a literatura é um meio para um fim, e não um fim em si mesmo, e críticos literários, portanto, precisam aceitar que eles nunca podem desempe­ nhar mais que uma função secundária em sua interpretação.

O estruturalismo Fortemente ligado à crítica literária está o “estruturalismo”, que se originou nas teorias lingüísticas de Ferdinand de Saussure, o qual distinguiu de modo perspicaz entre o que ele chamou de lín gu a [lan gu e] e fa la [parole]. De acordo com Saussure, lín gu a era a estrutura subjacente de um idioma, que encontrava expressão em palavras convencionais (fala). Essas palavras eram arbitrárias e poderiam mudar de tempos em tempos, do mesmo modo que elas diferem de um idioma para outro. M as o significado subjacente de uma palavra permanece o mesmo. Tradução, portanto, é mais uma atividade ligada à fa la , e não à lín ­ gu a. Saussure compreendia, obviamente, que palavras não eram o único meio de significação das coisas. Gestos muitas vezes eram igualmente importantes, assim como a entonação. Qualquer coisa que poderia comunicar um significado

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desse modo podia ser chamada um “signo”, que para ele era um componen­ te essencial da linguagem. Dessa teoria nasceu o conceito de “semiótica” (da palavra grega sêm eion, significando “signo”). Todos os idiomas possuem uma semiótica própria, ou “código lingüístico”, que precisa ser decifrado antes de ser compreendido. Tradução, portanto, é a atividade de trocar um código por outro a fim de expressar a mesma lín gu a [lan gu e] usando uma fa la \parolé\ diferente. Dessas observações puramente lingüísticas rapidamente se desenvolveu uma teoria complexa de relações de signo por trás da totalidade da cultura hu­ mana. O antropólogo Claude Lévi-Strauss a usou e aplicou ao estudo do mito. Ele afirmou que mitos muitas vezes apresentam uma estrutura em que dois opostos se apresentam funcionando juntos. Esse tipo de dualismo pode na ver­ dade ser essencial para o mito e, assim, fazer parte de uma realidade estrutural mais profunda. O estruturalismo foi um grande atrativo para marxistas, pois oferecia a possibilidade de aplicar suas teorias deterministas à literatura. Não é de surpreender, portanto, que tenha sido o crítico russo V. Propp que pela pri­ meira vez desenvolveu a ideia nessa direção isolando 39 categorias diferentes de narrativas folclóricas, em que todas as narrativas folclóricas existentes podiam ser encaixadas. Em um sentido importante, no entanto, o estruturalismo é o total oposto do marxismo; ele não tem interesse algum no conceito de história. A interpretação literária estruturalista está interessada exclusivamente em textos tal como eles existem, e assim tenta compreendê-los. Por essa razão, ele foi adotado por alguns estudiosos da Bíblia como um modo de escapar do método histórico-crítico, mas sem muito êxito. Até mesmo seus defensores afirmam que o estruturalismo não almeja nos ensinar nada que não saibamos; seu propósito é explicar o que já sabemos. Em estudos bíblicos, ele acabou demonstrando ser muito semelhante à crítica da forma, com somente alguns detalhes a mais. Por exemplo, na história da cura do homem com a mão atrofiada (M c 3.1-6), o estruturalismo afirma haver uma profunda oposição entre Jesus e os fariseus, o que revela o fato de que a história tem mais ligação com a relação de Jesus com a Lei do que com seu poder de curar. M as qualquer leitor relativamente atento já teria percebido isso. Estruturalistas admitem esse fato de bom grado e afirmam que isso meramente demonstra a exatidão de seu método. Todavia, não se admite facilmente que isso também pode indicar sua natureza supérflua, o que para muitos estudiosos da Bíblia parece ser a conclusão óbvia. As pressuposições estruturalistas passaram a ser atacadas por Jacques Derrida (1930-2004), cujo método é chamado “desconstrutivismo”. Derrida mostrou

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que muitas vezes há incoerências em textos que tornam uma abordagem estruturalista difícil, se não impossível. Ele tem menos certeza do que a maioria dos estruturalistas de que há uma ligação significativa entre os signos e as coisas que eles simbolizam; tudo parece estar na mente. Os críticos de Derrida lamentam o que consideram o ceticismo extremo dele, mas ele ao menos demonstrou que a abordagem estruturalista não está livre de certa crítica bastante séria. Suas con­ vicções não penetraram muito a fondo o mundo dos estudos bíblicos, embora tenham sido usados em certa medida por J. D. Crossan e outros. Para a maioria dos intérpretes da Bíblia, o desconstrutivismo, assim como o estruturalismo, é simplesmente muito obscuro e esotérico para fazer muito sentido.

A nova hermenêutica Tão complexa e confusa quanto o estruturalismo, e em alguns aspectos não dife­ rente dele, é a chamada “nova hermenêutica”. Esse é um modo de leitura de textos literários filosoficamente fundamentado, enraizado na obra de M artin Heidegger e no trio hermenêutico Gadamer, Fuchs e Ebeling. Seu maior representante no mundo de fala inglesa é A. C. Thdselton, que continua escrevendo extensamente sobre o tema. A nova hermenêutica é sobretudo um modo existencialista de in­ terpretar um texto. Ela começa com a pressuposição de que tanto o texto como o autor habitam em um “horizonte” que governa o modo pelo qual eles com­ preendem o significado e se apropriam dele. Se um texto é da mesma época que nós, seu horizonte é provavelmente (embora não necessariamente) o mesmo que o nosso e devemos ter relativamente pouca dificuldade para compreendê-lo. M as se um texto vem de uma época ou cultura diferentes ou ambos, seu horizonte será diferente do nosso e não o compreenderemos tão prontamente. Com respeito à leitura da Bíblia, o problema de horizontes se tornou agudo pela primeira vez quando tradutores começaram a colocar os textos bíblicos em idiomas tribais que não tinham os conceitos necessários para produzir uma tradução literal deles. Como seria possível explicar árvores a um esquimó ou neve a um índio amazônico? Desse nível simples, problemas mais complexos começaram a emergir. O sistema sacrificial do Antigo Testamento não tinha paralelos em todas as culturas. Relações tribais poderiam ser muito diferen­ tes e produziram sérios equívocos. Pessoas urbanizadas ocidentais também se sentiam alienadas do mundo da Bíblia, que falava sobre um modo de vida há muito tempo abandonado. Até mesmo quando as palavras existiam para tra­ duzir os textos, suas associações poderiam ser muito diferentes. Um exemplo

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clássico disso é a palavra “fariseu”, que tinha uma conotação diferente na época de Jesus do que tem agora. Para os discípulos de Jesus, fariseus eram modelos de observância religiosa, a serem admirados e respeitados, mas, para nós, eles são hipócritas religiosos. O natural para nós é que os fariseus sejam os “vilões”, mas os ouvintes de Jesus teriam ficado chocados com essa sugestão. Considerações desse tipo produziram um modo inteiramente novo de traduzir a Bíblia, em que a “equivalência dinâmica” substituiu a tradução lite­ ral. Isso pode ser observado mais obviamente na maneira com que a imagem psicossomática da Bíblia é tratada. Nas ocorrências em que Paulo se refere às entranhas, esse uso tanto é estranho como soa vulgar em nossa língua, e tende a ser substituído por palavras abstratas como “preocupação, compaixão”. Isso pode comunicar algo do significado, mas ignora a dimensão psicossomática, que é uma parte importante da antropologia bíblica e não pode simplesmente ser excluída do texto. Nesse sentido, não há absolutamente “equivalência dinâmica” alguma nessa tradução. M ais um resultado da nova hermenêutica igualmente discutível é o desen­ volvimento do conceito de “condicionamento cultural”. Nesse caso, o horizonte é criado pela “cultura”, que está fora do texto e o julga. “Cultura” como conceito é notoriamente difícil de definir na melhor das hipóteses e quase impossível no que diz respeito a algo como a Bíblia. H á uma só cultura nas Escrituras ou há várias? Jesus vivia em uma cultura mediterrânea, em uma cultura do Oriente M édio ou em ambas? Onde estão os limites e quais são os aspectos que deter­ minam quem pertence e quem não pertence a uma área cultural específica? No entanto, apesar dessas dificuldades, é amplamente pressuposto hoje que tudo na Bíblia é condicionado por sua “cultura” e que, por vivermos em uma “cultu­ ra” diferente (óbvia para nós), temos o direito de adaptar seu ensino às nossas circunstâncias. Isso parece ser óbvio o suficiente no que diz respeito à questão de mulheres que cobrem a cabeça na igreja, mas foi levado muito mais longe do que isso. Até mesmo o fato de que o apóstolo Paulo apela à ordem da Criação e à Queda para justificar a liderança masculina (lT m 2.11-15) é rejeitado com base na afirmação de que isso é natural para alguém educado na cultura de um fariseu do primeiro século; mas não tem significado algum hoje. O uso da palavra “fariseu” como exemplo de como um horizonte difere de outro demonstra o ponto fraco principal da nova hermenêutica como método de interpretação bíblica. Em primeiro lugar, não é certo até que ponto os fariseus eram extremamente respeitados — eles podem igualmente ter gerado ressenti­ mento secreto por parte do judeu comum da época de Jesus. Em segundo lugar,

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se é verdade que para nós um fariseu é um hipócrita religioso, a razão é que Jesus ensinou isso aos seus discípulos, que o transmitiram a nós. Não é simplesmente uma questão de viver em um horizonte diferente; a palavra “fariseu” nunca teria chegado a entrar em nosso vocabulário se Jesus não a tivesse usado do modo com que usou. Há, portanto, uma ligação histórica essencial entre Jesus e nós, que precisa ser respeitada quando uma palavra como essa está sendo interpretada. Infelizmente, a nova hermenêutica acha difícil lidar com a evolução histórica; ela tende a saltar de um horizonte para o outro, sem prestar muita atenção aos vínculos entre eles. Talvez por essa razão seu uso mais freqüente tenha sido para interpretar as parábolas, por terem conteúdo principalmente não histórico.

Conclusão Ainda é muito cedo para dizer se o método histórico-crítico chegará um dia a perder seu papel central na interpretação bíblica. Dos outros métodos exami­ nados aqui, é provável que a maioria fará somente uma contribuição modesta para os estudos bíblicos, e alguns certamente desaparecerão sem deixar rastro. Dificilmente a popularidade do estruturalismo ou da nova hermenêutica durará muito tempo, pois ambos estão ligados a conceitos filosóficos que agora estão saindo de moda. A crítica literária certamente terá um impacto mais duradouro, pois a Bíblia é claramente “literária” em um sentido ou outro, mas teorias literá­ rias mudam com relativa frequência e, portanto, esse tipo de crítica é instável. A crítica canônica também dificilmente desparecerá, mas provavelmente terá uma forma consideravelmente modificada. Para o presente, portanto, parece melhor concluir que embora a crítica histórica tenha sido desafiada por esses métodos alternativos, ela ainda não foi suplantada. Se ela alguma vez recuperará a inquestionada supremacia do passado, no entanto, ainda é algo incerto. B ibliografia J. The sem antics o f biblical la n gu a ge (Oxford: Oxford University Press, 1961).

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ESTUDO DE CASO: AS PARÁBOLAS DE JESUS No século 20, poucas áreas do estudo do Novo Testamento foram tão ampla­ mente discutidas como as parábolas de Jesus. Elas não são “relatos” históricos no sentido estrito; ninguém pensa, por exemplo, que existiu um bom samaritano na estrada para Jericó. Qualquer que seja nossa opinião sobre o restante dos Evangelhos, é óbvio que Jesus criava histórias desse tipo para transmitir men­ sagens morais e espirituais. M as como essas histórias devem ser interpretadas? Durante muitos séculos, foi comum tratá-las como alegorias, de acordo com o princípio de que é necessário usar as partes mais claras das Escrituras para inter­ pretar as mais obscuras. Isso significa que o ensino de Jesus e dos apóstolos sobre sua vida e morte podia ser usado para ser aplicado às parábolas, que na superfície pareciam ter pouco valor espiritual. Aqui precisamos distinguir valor espiritual de valor meramente moral, que uma parábola pode ter em seu significado literal. Isso não impressionava os pais da igreja, pois era fácil encontrar histórias seme­ lhantes em Platão e outros filósofos pagãos. O que eles estavam procurando nos Evangelhos era algo único e superior a isso. O exemplo clássico de uma inter­ pretação espiritual das parábolas é o relato do bom samaritano fornecido por Agostinho ( Q uaestiones E van gelioru m [Questões sobre os Evangelhos] 2.19). C. H. Dodd o resume assim: Um homem descia de Jerusalém para Jericó. Esse homem é o próprio Adão; Jerusalém é a cidade celestial da paz, de cuja bem-aventurança Adão caiu; Jericó significa

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a Lua e também nossa mortalidade, pois a Lua nasce, cresce, míngua e morre. Os assaltantes são o Diabo e seus anjos, que o roubaram, a saber, de sua imor­ talidade; o espancaram, ao persuadi-lo a pecar; e o deixaram quase morto, pois à medida que ele é destruído e oprimido pelo pecado, ele está morto; ele, portanto, é chamado de quase morto. O sacerdote e o levita que o viram e passaram por ele significam o sacerdócio e ministério do Antigo Testamento, que não podia tirar nenhum proveito da salvação. Samaritano significa Guardião e, portanto, esse nome simboliza o próprio Senhor. O enfaixar das feridas é a contenção do pecado. Oleo é o conforto da boa esperança; vinho é a exortação a trabalhar com espírito fervoroso. O animal é a carne em que ele condescendeu vir a nós. Colocar o homem sobre o animal representa a fé na encarnação de Cristo. A hospedaria é a igreja, onde os viajantes são revigorados em sua volta da peregrinação a ca­ minho da pátria celestial. O dia seguinte é o que acontece depois da ressurreição do Senhor. Os dois denários são ou os dois preceitos do amor ou a promessa desta vida e da que está por vir. O hospedeiro é o apóstolo Paulo. O pagamento adicional é ou o conselho dele ao celibato ou o fato de que ele trabalhou com suas próprias mãos a fim de que não fosse um fardo a nenhum dos irmãos mais fracos quando o Evangelho era novo, embora lhe fosse legítimo “viver do evangelho”. Houve muitas variações nesse tema em séculos posteriores; em especial, uma compreensão freqüente dos dois denários era vê-los como os dois Testamentos ou os dois sacramentos principais ou até mesmo como o pão e o vinho da eu­ caristia. O hospedeiro também variava um pouco; para muitos ele era o papa. Quando avaliamos a interpretação de Agostinho, é fácil perceber que as ob­ servações que ele faz são suficientemente aceitáveis em vários casos, embora admitidamente algumas sejam forçadas. A real dificuldade é a incongruidade entre o cenário da parábola e a estrutura teológica que Agostinho está tentando impor a ele. Por exemplo, os discípulos de Jesus compreenderiam a relação entre judeus e samaritanos de um modo bem distinto; dificilmente se imaginaria que eles estivessem identificando o Senhor com o samaritano. Os reformadores não aceitaram essa alegorização das parábolas, como pode ser visto nas observações de Calvino. Sobre o tema do bom samaritano, ele escreveu: A alegoria aqui inventada pelos defensores do livre-arbítrio é demasiadamente absurda para merecer refutação. De acordo com eles, sob a figura de um homem ferido está descrita a condição de Adão depois da Queda; disso eles inferem que o poder de agir bem não foi totalmente eliminado dele; pois Adão é descrito somente como quase morto. Como se tivesse sido o desígnio de Cristo, nessa passagem, falar sobre a corrupção da natureza humana e inquirir se a ferida que Satanás infligiu em Adão era mortal ou curável; não, como se ele não tivesse

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plenamente, e sem o uso de figuras, declarado em outra passagem que todos estão mortos, a não ser aqueles que ele vivifica por sua voz (Jo 5.25). Tão pouca plausibilidade pertence a outra alegoria, que, no entanto, tem sido tão altamente satisfatória que tem sido admitida por consenso quase universal, como se fosse uma revelação do céu. Eles imaginam que esse samaritano é Cristo, pois ele é nosso guardião; e nos dizem que sobre a ferida foi derramado vinho, junto com óleo, porque Cristo nos cura pelo arrependimento e por uma promessa de graça. Eles inventaram uma terceira sutileza, que Cristo não restaura a saúde imediatamente, mas nos envia para a igreja, como um hospedeiro, para sermos gradualmente curados. Admito que nenhuma dessas interpretações me agrada; antes, devemos ter uma reverência mais profunda pelas Escrituras, em vez de achar que estamos livres para disfarçar seu significado natural. E, de fato, qual­ quer pessoa pode ver que a curiosidade de certos homens os levou a inventar essas especulações, contrárias à intenção de Cristo. Em relação à sua própria interpretação da parábola, Calvino tem relativa­ mente pouco a dizer. Sua interpretação é estritamente literal, e ele fez uso da tradicional inimizada entre judeu e samaritano em sua exposição. M as ele não disse nada sobre a parábola como um artifício literário; para ele, ela era uma his­ tória direta contando uma narrativa moral óbvia e universal. Como ele o coloca: Aqui, como em um espelho, observamos aquela relação comum dos homens, que os escribas se esforçaram para obscurecer por sua sofistica perversa; e a compaixão, que um inimigo mostrou a um judeu, demonstra que a direção e o ensino da natureza são suficientes para mostrar que o homem foi criado para o bem do homem. Logo, daí se conclui haver uma obrigação mútua entre todos os homens. Em nossa própria época, C. H. Dodd mostrou que os Evangelhos forne­ cem encorajamento à interpretação alegórica, como no exemplo da Parábola do Semeador, que Marcos supostamente interpreta de modo alegórico. Dodd citou A. Jülicher, cujo livro D ie G leichnisreden Jesu [As parábolas de Jesus], que marcou época, foi publicado entre 1899 e 1910. Jülicher usou Marcos 4.11-20 como o texto fundamental para defender sua visão. Em resposta a uma pergunta de um dos discípulos, Jesus é descrito como dizendo: “... A vós é confiado o mistério do reino de Deus, mas tudo se diz por meio de parábolas aos de fora, para que, vendo, vejam e não percebam; e ouvindo, ouçam e não entendam, para que não ser convertam e não sejam perdoados”. Ao examinar o que então se segue, Dodd faz as seguintes observações: 1. A explicação da parábola contém sete palavras que não são usadas no­ vamente nos Evangelhos Sinóticos, mas muitas vezes encontradas em Paulo e

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em outros escritos apostólicos. Isso sugere fortemente que estamos tratando aqui de um segmento de tradição apostólica, e não do relato autêntico do que Jesus ensinou. 2. A explicação das parábolas é confusa. A semente é a Palavra, mas a co­ lheita que surge é composta de diferentes classes de pessoas. Isso vai contra a concepção grega da “Palavra seminal” (logos spermatikos) que Dodd pressupõe que está por trás da passagem. A “Palavra seminal” produziria fruto igual a si mesmo, e não algo diferente. 3. As parábolas são explicadas como mistérios, elaboradas para impedir que aqueles que não foram predestinados à salvação compreendam o ensino de Jesus. Isso, disse Dodd, reflete a teologia da igreja primitiva, e não o ensino do Salvador, e pretendia explicar por que o povo escolhido não aceitava sua mensagem. Dodd não conseguia aceitar a noção de que Jesus alguma vez tenha desejado que as pessoas não o compreendessem. 4. As parábolas eram muitas vezes usadas pelos rabinos e não teriam sido compreendidas alegoricamente pelos judeus. Portanto, defendeu Dodd, a inter­ pretação de Marcos precisa refletir influência gentia aqui. No mundo helenista, mitos eram muitas vezes interpretados alegoricamente, de modo que isso teria sido considerado perfeitamente natural vindo de um mestre cristão. Dodd então forneceu sua própria definição de uma parábola: Do modo mais simples, a parábola é uma metáfora ou símile extraído da natureza ou da vida comum, que arrebata o ouvinte por sua vivacidade ou estranheza e deixa a mente com dúvidas sobre sua aplicação exata o suficiente para estimulá-la à reflexão. De acordo com ele, havia diferentes tipos de parábola, que poderiam elabo­ rar a simples metáfora de diferentes modos. No entanto, ele foi bem claro sobre como uma parábola diferia da alegoria. Ele disse: A parábola típica, quer seja uma simples metáfora ou uma similitude mais elaborada, é uma história completa, apresenta um só ponto de comparação. Os detalhes não pretendem ter significado independente. Em uma alegoria, em contrapartida, cada detalhe é uma metáfora separada, com um signifi­ cado próprio. O que era crucial era a coerência interna e a simplicidade da parábola; uma só mensagem era pretendida, e uma só linha de pensamento estava sendo exerci­ da. O ouvinte precisava aplicar a história como um todo, sem tentar encontrar

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significados ocultos por trás de todas as palavras. As parábolas correspondiam à natureza e à experiência de vida — e é exatamente isso que Calvino havia falado. Tudo era natural; e, se havia uma surpresa (como, por exemplo, o fa­ to de um samaritano estar disposto a ajudar um judeu), isso era intencional e transmitia a mensagem da história. Quaisquer significados secundários ou extensões de significado a outras situações precisam ser seriamente verificados. Eles poderiam ser suficientemente válidos em si mesmos, mas não faziam parte da interpretação da parábola. Dodd justificou essa afirmação em um fundamento teológico. O realismo das parábolas refletia o fato de que o reino de Deus que Jesus proclamava era profundamente natural; era o modo que as coisas deveriam ser. O fato de que a realidade muitas vezes está em desacordo com isso era o problema de que Jesus e seus seguidores precisavam tratar, mas as parábolas estabeleciam a norma e elas faziam isso de um modo natural. Dodd também afirmou que a alegoria era essencialmente uma explicação decorativa de um ensino que já era aceito como natural, enquanto uma parábola era essencialmente um argumento. Jesus estava atacando os preconceitos profundos de seus ouvintes e usando a forma de história como um veículo para mudar sua percepção de sua própria conduta. Até aqui, Dodd seguiu Jülicher, mas então começou a divergir desse modelo. Jülicher havia preferido tornar a interpretação “verdadeira” das parábolas a mais ampla possível e, ao fazer isso, havia removido toda possibilidade de alegoria. O resultado, no entanto, era tão banal a ponto de fazer com que se questionasse se realmente fazia sentido contar uma parábola. Dodd não conseguia aceitar a ideia de que Jesus era somente outro mestre moral; seu ensino foi o sinal e o ga­ tilho de uma grande crise espiritual que sua presença provocou. Por essa razão, defendia Dodd, a interpretação das parábolas precisa ser buscada na situação em que foram proferidas. Infelizmente, os Evangelistas muitas vezes relatavam uma parábola em di­ ferentes cenários e às vezes ligavam diferentes interpretações à mesma história (ou, inversamente, não forneciam nenhuma interpretação). Nós, portanto, preci­ samos elaborar o que consideramos o mais provável, e isso de modo algum é fácil. Nesse ponto, Dodd reconheceu a importância da crítica da forma, que insistia no Sitz im L eben das parábolas como a principal chave de sua interpretação. M as Dodd estava muito longe de ser um crítico da forma convicto. Em sua opinião, descontar a interpretação (ou interpretações) dos Evangelistas inteiramente, como tanto Jülicher quanto os críticos da foram estavam inclinados a fazer, era ir longe demais. Algumas das parábolas provavelmente continham o próprio

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ensino de Jesus e, mesmo que J. Jeremias pudesse ter ido longe demais ao dizer que poderíamos recuperar suas próprias palavras, não havia dúvida alguma de que o sabor da narrativa refletia o que esperaríamos de Jesus. Dodd não disse isso em um fundamento puramente subjetivo, mas fez o máximo possível para evidenciar suas convicções com base no teor geral dos Evangelhos. No centro da compreensão de Dodd das parábolas estava o ensino de Jesus sobre “o reino de Deus”. Quer isso fosse mencionado explicitamente, quer não, parecia estar na base de todas as parábolas de um modo ou de outro, e era ali que o intérprete precisava começar. Ao examinar o uso judaico da época, Dodd descobriu que o termo “reino de Deus” podia ter dois significados distintos. 1. O reino de Deus podia se referir ao governo de Deus sobre seu povo Israel. Esse governo era efetivo à medida que Israel obedecia à Torá, a lei em que a vontade de Deus era revelada. Nesse sentido, o reino de Deus era uma realidade presente. 2. O reino de Deus também podia ser um governo divino universal, ao qual todo o mundo um dia se submeteria. Nesse sentido, ele não era uma realidade presente, mas uma esperança futura, um sinal do que ocorreria nos últimos dias (ieschaton). A realização desse governo escatológico seria acompanhada pelo ju l­ gamento divino daqueles que o haviam rejeitado e pela libertação para aqueles que haviam aceitado sua soberania. Dodd aceitou que o ensino de Jesus era semelhante ao dos rabinos de muitos modos. Os rabinos falavam sobre se apossar do reino de Deus, e Jesus refletiu algo disso quando falou sobre receber o reino de Deus como uma criança pequena (Mc 10.15). Contudo, enquanto os rabinos compreendiam isso como significando ob­ servância escrupulosa da Torá, Jesus não o compreendia assim. Para ele, o modo da criança pequena estava em contraste com o dos “... sábios e eruditos...” (M t 11.25). Até certo ponto, isso poderia ser explicado dizendo que, para Jesus, o reino de Deus era descrito como uma esperança tanto presente como futura, de modo que o ingrediente “extra” em seu ensino poderia ser interpretado como escatológico. M as Dodd foi obrigado a reconhecer que há mais um sentido em que esse reino “escatológico” também chega ao aqui e agora. Quando Jesus disse que o “... reino de Deus chegou a vós” (M t 12.28), isso era um fato de experiência presente de um modo diferente do ensino rabínico. A escatologia havia invadido o presente de um modo novo e radical. E no centro dessa ruptura escatológica estavam as parábolas de Jesus. É por isso que elas são tão importantes para nossa compreensão de sua vida e ensino.

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Um aspecto importante desse ensino, que causou enorme escândalo na épo­ ca, era a evidente amizade de Jesus com “publicanos e pecadores”. A própria resposta de Jesus foi que os doentes é que precisam de médico. Três parábolas, todas em Lucas 15, transmitem essa mensagem de modos diferentes: as parábo­ las da Ovelha Perdida, da M oeda Perdida e do Filho Pródigo. As parábolas que ocorrem tanto em Lucas como em M ateus estão situadas em contextos diferen­ tes. Dodd concluiu que a versão de Lucas era a mais historicamente correta, pois o Sitz im L eben estava “certo”, e essa era sua abordagem em geral. Por exemplo, na Parábola do Grande Banquete (Lc 14.16-24 e M t 22.1-13), Lucas tem duas partes de convites de última hora para aqueles que não foram originalmente convidados, enquanto Mateus tem só uma e, além disso, inclui o exemplo do ho­ mem sem trajes nupciais. Dodd interpretou isso como se referindo ao conflito a respeito da admissão de gentios na igreja. Lucas era a favor e assim enfatizou esse aspecto em seu relato. Mateus era cauteloso e, assim, mostrou os perigos de deixar gentios entrarem na igreja com muita facilidade. Jesus, obviamente, não teria sido tão restritivo — embora isso possa dizer mais sobre os próprios desejos de Dodd do que sobre o ensino de Jesus. A mais difícil de todas essas parábolas é a dos Agricultores Maus (Mc 12.1-8). Jülicher a considerava uma alegoria construída pela igreja primitiva e que se referia à morte de Jesus. Dodd rejeitou essa interpretação, defendendo que os agricultores maus são descritos de modo demasiadamente realista para serem considerados alegóricos. Ganância e morte eram suficientemente comuns para não precisarem ser excluídas desse modo. Para fortalecer essa posição, Dodd acrescentou que as condições instáveis da Palestina antes da revolta judaica eram um Sitz im L eben ideal para esse tipo de coisa. Ele interpretou a parábola como uma referência direta às injustiças sendo perpetradas por proprietários na Palestina da época e afirmou que Jesus queria dizer que a justiça de Deus no fim exterminaria toda a sociedade — o que de fato aconteceu em 70 d.C. O assassinato injusto do filho amado meramente demonstrava que os dois lados eram culpados na situação social insatisfatória e que ambos sofreriam por causa disso. Relacionar isso à morte de Cristo, defendeu Dodd, é compreensível, mas desnecessário; o Sitz im Leben sugerido acima explica isso suficientemente bem. Dodd então continuou e distinguiu um segundo grupo de parábolas, aquelas que descrevem uma crise iminente. Ele reconheceu que essas parábolas (dos Servos Fiel e Infiel; das Dez Virgens etc.) muitas vezes foram interpretadas como significando que Jesus previu um período de espera entre sua morte e sua segunda vinda. Dodd negou isso e afirmou que Jesus nunca foi além da

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situação imediata em que as parábolas foram proferidas. Sua primeira vinda foi o acontecimento que provocou a crise, e seus ouvintes seriam julgados segundo sua resposta a ele aqui e agora. A introdução do tema da segunda vinda veio depois; ela era uma adaptação dessas parábolas feita pela igreja, para refletir uma situação que Jesus não havia imaginado. Dodd também distinguiu um terceiro grupo de parábolas, que ele definiu como parábolas de “crescimento”. Elas incluíam histórias tão bem conhecidas como as do Semeador, do Trigo e do Joio e da Semente de Mostarda. Como já vimos, Dodd acreditava que a Parábola do Semeador vem completada por uma interpretação alegórica nos Evangelhos como agora os temos, mas ele rejeitou isso, exceto como uma interpretação imposta à parábola original pela igreja pri­ mitiva. As parábolas de crescimento eram claramente escatológicas, na visão de Dodd, pois de certa forma apontam para o futuro cumprimento do que agora é presente apenas em parte, mas ele não aceitava ser essa função principal delas. Como ele mesmo disse: As parábolas de crescimento, desse modo, são suscetíveis de uma interpretação natural que as transforma em um comentário sobre a atual situação durante o ministério de Jesus, em sua natureza como a vinda do Reino de Deus na história. Elas não devem ser compreendidas como um longo processo de desenvolvimento introduzido pelo ministério de Jesus, a ser consumado por seu segundo advento, embora a igreja mais tarde as tenha interpretado com esse sentido. Como no ensino de Jesus como um todo, também aqui não há nenhuma longa perspectiva histórica: o eschaton, o ápice da história divinamente ordenado, está aqui. Ele não apareceu por esforço humano algum, mas por um ato de Deus; e, no entanto, não por uma intervenção arbitrária e catastrófica, pois é a colheita após um longo processo de crescimento. Esse é o novo elemento que essas parábolas introduzem. A vinda do Reino é de fato uma crise trazida pela intervenção divina; mas não é uma crise sem preparo, sem relação com o curso anterior da história. Um processo obscuro de crescimento ocorreu antes dela e o ato novo de Deus que faz com que a crise surja é uma resposta à obra de Deus na história que ocorreu antes. Na análise final, a proclamação do reino de Deus era uma crise que exigia decisão e trazia juízo consigo, e as parábolas eram um elemento central em de­ safiar pessoas a enfrentar isso com coragem. M al se havia imaginado um papel tão central para elas antes, mas graças às pesquisas de Dodd, isso se tornou um grande tema do estudo erudito moderno. M ais um seguidor de Jülicher que partiu em uma direção levemente di­ ferente foi J. Jeremias. Ele acreditava que era possível ir além das camadas de

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interpretação da igreja e descobrir as próprias palavras (ipsissim a verb a ) de Jesus nas parábolas. De um modo paralelo à abordagem de Dodd, embora indo além dela em profundidade, Jeremias desenvolveu o tema da crise em grande detalhe, mostrando que poderia já ter sido tarde demais para tomar uma decisão, tão iminente era o juízo próximo. Assim como Dodd, ele foi obrigado a considerar que a igreja primitiva modificou consideravelmente seu ensino, projetando a natureza imediata do desafio original em um futuro mais distante. A interpretação historicista das parábolas, que Jeremias propôs com tanta elo­ qüência, foi recomendada por grande parte do mundo acadêmico por assentar um fundamento indispensável à interpretação posterior. Pode-se até dizer que surgiu um consenso, muito bem resumido por Craig Blomberg (1990) da seguinte forma: 1. Em toda a história da igreja, a maioria dos cristãos interpretou as pará­ bolas como alegorias. 2. O estudo moderno corretamente rejeitou a interpretação alegórica a fa­ vor de uma abordagem que enxerga cada parábola como transmitindo uma só mensagem central. 3. No entanto, as parábolas como aparecem nos Evangelhos têm alguns ele­ mentos inegavelmente alegóricos, mas eles são exceções e não a regra. 4. Assim, as interpretações explícitas ocasionais das parábolas nos Evan­ gelhos são exceções adicionais à prática comum de Jesus, e também não se deve considerá-las normativas. 5. Independentemente dessa pequena quantidade de alegoria, a maioria das parábolas e a maioria das partes de cada parábola estão entre as declarações mais inquestionavelmente autênticas de Jesus nos Evangelhos. M as não demorou muito para que esse consenso fosse criticado, pois quanto mais as várias camadas eram descascadas, menos havia para interpretar e mais banais as conclusões finais pareciam. O desenvolvimento contínuo de métodos literários de interpretação bíblica abriu as portas mais uma vez, e outro retrato começou a emergir. Um exemplo bem conhecido disso pode ser encontrado na obra de E. Fuchs e na chamada “nova hermenêutica”. A nova hermenêutica encorajou um novo início na interpretação de pa­ rábolas focando no fenômeno da linguagem. Seus defensores afirmavam que as parábolas precisavam ser compreendidas de um modo completamente di­ ferente daquele em que a conversa humana ordinária era analisada. Em sua opinião, as parábolas constituíam um “evento lingüístico” que abria um novo mundo e impelia o ouvinte a uma decisão. A abordagem de crise de Dodd e

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Jeremias, portanto, foi mantida, mas o Sitz im L eben que eles esboçaram foi abandonado. O processo de tomada de decisão não podia estar ligado a um momento específico na história; ele se aplicava a todas as épocas. Como tais, as parábolas adquiriram ainda mais um significado, igualmente profundo. De uma perspectiva literária, elas eram uma espécie de fusão entre provérbio e profecia; ensinavam sabedoria na vida cotidiana, do mesmo modo que os provérbios, mas ao mesmo tempo desafiavam as inadequações da conduta humana normal e as reprendiam com a ameaça de julgamento, ao modo das profecias. Essa dupla função veio a ser vista como seu gênio especial e foi citada como outra razão para seu papel central e de ligação nos textos dos Evangelhos. A análise literária pós-critica normalmente tem descoberto 41 parábolas ou declarações parabólicas, que podem ser subdivididas nos seguintes tipos: 1. Parábolas derivadas de provérbios. H á doze delas, das quais quatro são pará­ bolas “simples” e as restantes foram expandidas para incluir uma seção narrativa. Dessas, quatro tratam da experiência cotidiana e quatro são advertências do juízo vindouro. A lâmpada (M c 4.21) e o sal (M c 9.50) são exemplos do tipo simples, a história dos dois devedores (Lc 7.41s.) reflete a experiência cotidiana, e a história do homem com dois filhos (M t 21.28-32) aponta para um juízo futuro. 2. Parábolas d e descoberta e resposta. H á catorze delas, das quais dez se con­ centram no reino (governo) de Deus que transformará o futuro e quatro na ação em situações cruciais. Do primeiro tipo, quatro se concentram no tema do ocultamento e mistério do reino, incluindo as Parábolas da Figueira (M c 13.28) e do Trigo e do Joio (M t 13.24-30). Outras quatro enfatizam o tema da dádiva de Deus e a surpresa associada a ela, incluindo a Parábola do Semeador (M c 4.3-8) e da Pérola de Grande Valor (M t 13.45). Um terceiro grupo, for­ mado pelas Parábolas da Ovelha Perdida (M t 18.12) e da M oeda Perdida (Lc 15.8), enfatiza o tema da descoberta e da alegria que isso acarreta. Do segundo tipo, duas parábolas recomendam ação adequada em uma determinada situação, essas são as Parábolas do Amigo Inconveniente (Lc 11.5-8) e do Juiz Injusto (Lc 18.2-5), e mais duas tratam de uma ação que fracassou: a do Rico Insensato (Lc 12.16-20) e a dos Trajes Nupciais (M t 22.11-14). 3. Parábolas narrativas. Elas se dividem em dois tipos principais. O primeiro tipo são aquelas em que há uma inversão de condição. H á seis delas e todas elas ocorrem em Lucas, que as usa como exemplos éticos. Parábolas desse tipo são a do Bom Samaritano (Lc 10.30-37), do Homem Rico e Lázaro (Lc 16.19-31) e do Filho Pródigo (Lc 15.11-32). O segundo tipo principal é o das chamadas

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“parábolas de servo”, que se subdividem de acordo com o resultado, se é esperado ou inesperado. Do primeiro desses grupos, há cinco exemplos nos Evangelhos, dos quais a Parábola dos Talentos (M t 25.14-30) e das Dez Virgens (M t 25.113) podem ser consideradas representativas. Ao segundo grupo pertencem as quatro parábolas em que o resultado é inesperado, por exemplo, a Parábola do Credor sem Compaixão (M t 18.28-35) e do Administrador Infiel (Lc 16.1-8). As parábolas podem ser caracterizadas desse modo, mas elas não podem ser plenamente explicadas pelo exegeta. A participação do leitor (ou ouvinte) é um ingrediente essencial na narração da parábola, como Pheme Perkins deixa claro: ... não podemos entrar na dinâmica da parábola se simplesmente fazemos perguntas relativas a informações. Precisamos apreciar a visão e a criatividade especiais nas parábolas de Jesus. Precisamos explorar a extensa variedade de experiências humanas apresentadas nas parábolas. Talvez precisemos observar nossa própria experiência para perceber como as experiências nas parábolas tratam de nós. Essas dimensões da parábola usam nossos recursos de imagina­ ção e sensibilidade. Muitas parábolas até mesmo nos desafiam a extrair nossas próprias conclusões sobre a história que está incompleta [...] Em resumo, pre­ cisamos participar do processo de narração da parábola. Aqui a abordagem literária que começa com uma crítica centrada no leitor alcança o ápice. Não somente o leitor é convidado a se enxergar em relação à parábola, mas também se pede que ele participe na formulação de seu significado — o passo supremo para a criação literária independente! Com isso em mente, vamos dar mais uma olhada na Parábola do Bom Samaritano (Lc 10.29-37). A ocasião para essa parábola é uma questão legal: Qual a extensão do conceito de “próximo”? Essa certamente era uma pergunta real na Palestina do primeiro século, onde muitos grupos diferentes viviam lado a lado em indiferença ou hostilidade mútuas. A maioria das pessoas teria pressu­ posto, no entanto, que membros de seu próprio grupo estariam nessa categoria. Mas à medida que Jesus conta essa história, fica claro que nem o sacerdote nem o levita são capazes de ajudar a infeliz vítima. Qual a razão disso? Leitores de hoje instintivamente recorrem a sentimentos anticlericais para explicar o que para nós é total hipocrisia. Nós consideramos o sacerdote e o Levita represen­ tantes de um certo padrão moral, que eles acabam ignorando quando se torna inconveniente ou quando ninguém mais está olhando. Ao fazer isso, obviamente, estamos expressando algo do modo com que hoje consideramos o clero, e não necessariamente dizendo qualquer coisa sobre visões antigas da questão.

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É ao menos possível que a maioria dos leitores antigos, sobretudo judeus, entendia que a razão de o sacerdote e o levita não poderem ajudar estava ligada às exigências de pureza ritual, que os proibia de ter contato com um homem nessa condição. Essencialmente, era o mesmo problema que Jesus enfrentou quando curou em um dia de sábado — a compaixão humanitária conflitava com a pureza ritual, e os judeus haviam aprendido a preferir o último. Um samarita­ no “herege”, em contrapartida, talvez não estivesse impedido por essa restrição e, portanto, poderia oferecer auxílio quando necessário. Parece bem possível que o ódio entre judeus e samaritanos partia principalmente do lado judeu; se esse de fato era o caso, a parábola era uma repreensão à arrogância moral judaica de um modo que afetava toda a nação, e não somente seus representantes clericais. Parece haver pouca dúvida de que Jesus tinha a intenção de nos ensinar a amar nossos inimigos nessa parábola, mas não é imediatamente óbvio quem deve amar quem. Na superfície, é o samaritano que mostra amor pelo infeliz judeu, mas é bem provável que a real intenção de Jesus era ensinar o oposto: ao se colocarem no lugar da infeliz vítima, os judeus deveriam ter percebido que eles não eram uma raça superior e que eles também dependiam da boa vontade de outros. Era, portanto, a incumbência dos judeus amar outras raças e não as menosprezar. Perkins defende esse significado mais “profundo” da parábola apelando ao princípio de “opostos” que se atraem no decorrer da história e, por fim, a colocam de cabeça para baixo. A aplicação mais ampla da mensagem da parábola é mais complicada. M uitos intérpretes estão inclinados a procurar situações “paralelas” no mundo atual, por exemplo, protestantes e católicos na Irlanda do Norte, negros e bran­ cos da África do Sul ou, o melhor entre todos esses exemplos, judeus e árabes na Palestina de hoje. Essas analogias podem ter certa validade em seu próprio con­ texto, mas como interpretações gerais da parábola elas são muito restritivas. A maioria de nós não se vê nessas situações e, portanto, pode adotar uma posição de confortável arrogância moral com respeito a elas, o que é exatamente o con­ trário do que Jesus estava tentando ensinar. A verdadeira mensagem da parábola é que a compaixão não pode ser lim itada a certas situações ou classes de pessoas. Onde há uma necessidade, ela precisa ser satisfeita, sem que se considerem dis­ tinções humanas, pois estas se tornam barreiras para o amor. Isso não significa dizer que não há situações em que é necessário manter essas barreiras —, Jesus não teria aceitado o samaritano como um religioso em pé de igualdade — , mas isso não deve se tornar em desculpas que impedem de cumprirmos as exigências mais relevantes da lei. Ao colocar essa mensagem em uma parábola, Jesus estava

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apresentando um tema convencional do Antigo Testamento de um modo que desafiaria a complacência daqueles que o ouviam. Em teoria, eles deveriam ter conseguido perceber isso por si mesmos, mas a familiaridade excessiva com o texto da Lei, e um certo modo estreito de a interpretar, havia embotado sua receptividade às ordens de Deus. O emprego de teorias literárias para elucidar o significado de uma pará­ bola é de grande utilidade, contanto que elas sejam mantidas em seus limites apropriados. No exemplo acima, há duas áreas em que os intérpretes modernos estão sujeitos a serem guiados por seus preconceitos e não pela própria história. A primeira delas, como já mencionamos, é a tendência de vincular a oposição entre judeus e samaritanos a uma situação semelhante no mundo atual, desse modo distanciando-a da maioria de nós. A segunda é a tendência de confun­ dir questões morais e religiosas, como se aquelas automaticamente incluíssem estas. Onde se pode observar isso mais claramente é na exortação para “amar” o samaritano, o que determina que, no fim, nossa humanidade em comum é mais importante que as diferenças que nos separam. Aplicado à vida moderna, isso poderia facilmente dar a entender que diferenças doutrinárias e outras di­ ferenças “religiosas” não importam e que a raça humana deve se unir com base no amor fraternal. Não era isso que Jesus estava dizendo, e essa interpretação estende seu significado além do que pode ser extraído do texto — e também está em contradição direta com o que se afirma em outros lugares (e.g., Jo 4.24). Outras interpretações modernas das parábolas avançam pouco além disso, embora a crítica canônica de B. S. Childs insista em uma abordagem literária teologicamente inadequada. Por mais verdadeiro que possa ser encontrar uma moral da história e a aplicar em nossas próprias situações de vida, é sempre ne­ cessário lembrar que a “forma canônica” dos Evangelhos exclui a possibilidade de que o ensino moral seja seu propósito principal. As parábolas, junto com todas as outras partes dos Evangelhos, têm uma função completamente diferen­ te: testemunhar o ato salvador supremo de Deus em Cristo. Uma interpretação das parábolas que não leva isso em consideração ignorou o ponto principal. No caso do bom samaritano, isso precisava envolver uma interpretação específica do amor de Deus, que vem para sacrificar a si mesmo a fim de destruir nossa justiça própria e curar as nações. No entanto, uma vez que essa abordagem teológica começa a se enraizar, é curioso observar como a alegoria antiga está a um pe­ queno passo de distância. Se Deus está operando no mundo, por que deveria ser impossível interpretar o bom samaritano como Jesus e a pobre vítima à margem da estrada como a humanidade pecaminosa? No fim, estamos mais perto do

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ponto de partida do que jam ais poderíamos ter imaginado, e a interpretação antiga acaba parecendo menos improvável, afinal de contas. Blomberg resume isso bem: de acordo com sua análise, a crítica moderna afirma ter demonstrado que parábolas são muito mais alegóricas do que o consenso acadêmico tradicio­ nal tem pensado e que muitas das parábolas têm mais de um sentido. Se essas características as tornem mais autênticas ou menos, é uma questão disputada, mas de modo puramente literário isso dificilmente importa. Para o historiador da interpretação bíblica, no entanto, a mensagem é clara: a reafirmação contem­ porânea da alegoria, quer correta ou não, ao menos demonstra que a “comunhão dos santos de todas as épocas” é uma realidade, mais do que outrora poderíamos ter considerado possível. B ibliografia C . I n terp retin g the parables (Downers Grove/Leicester: IVP/ Apollos, 1990). C h ild s , B. S. The N ew T estam ent as canon: an introdu ction (London: SCM , 1984), 531-540. C r o s s a n , J. D. “A basic bibliography for parables research”. Sem eia 1 (1974): 236-74. D o d d , C. H. The parables o f the kingdom (London: Nisbet, 1935). ______ . A sparábolas do reino (São Paulo: Fonte Editorial, 2010). Tradução de: The parables of the Kingdom. D ru r y , J. The parables in the gospels (London: SPCK, 1985). J e r e m ia s , J. The parables o f Jesu s (London: SC M , 1963). ______ .As parábolas d e Jesus. 6. ed. Tradução de João Rezende Costa (São Paulo: Paulinas, 1991). Tradução do alemão: Die Gleichnisse Jesu. J o n e s , P. R. The tea ch in g o f the parables (Nashville: Broadman, 1982). K is t e m a k e r , S. The parables o f Jesu s (Grand Rapids: Baker, 1980). ______ . As parábolas d e Jesu s: p a ra com preend er as histórias que o m estre contou. 3. ed. Tradução de Eunice Pereira de Souza (São Paulo: Cultura Cristã, 2011). Tradução de: The parables of Jesus. P a t t e , D., org. S em iology a n d parables: an exploration o f th ep ossib ilities o ffered by structuralism f o r exegesis (Pittsburgh: Pickwick, 1976). P e r k in s , P. H earin g the parables o f Jesu s (Ramsey: Paulist Press, 1981). V i a , D. O. The parables (Philadelphia: Fortress, 1967). B lom berg,

12 TENDÊNCIAS SOCIAIS NA INTERPRETAÇÃO Introdução O segundo mundo de discurso na interpretação bíblica contemporânea é o das atuais questões sociais e políticas. Os estudiosos preocupados com elas podem ser críticos que aceitam plenamente as conclusões do primeiro grupo, mas eles também podem ter passado a considerá-las “irrelevantes”. Para eles, a coisa mais importante é a ortopraxis, ou “ortopraxia”, em oposição à “ortodoxia”. A ortopraxia significa fazer a teologia funcionar de um modo prático a fim de manifestar o reino de Deus em ações, e não meramente em palavras. As igrejas tradicionais são muitas vezes condenadas por se contentarem com orar e pregar enquanto injustiças sociais flagrantes continuam sem correção. Corrigir isso significa tirar as igrejas de seu comodismo e desenvolver uma posição política que coloca a Bíblia contra as ideologias opressivas de nossa época. Teólogos desse tipo são muitas vezes criticados por causa de sua agenda unilateral; demasiadas vezes, a opressão é exclusividade do capitalismo ocidental, da supremacia branca e do chauvinismo masculino. M as é possível que esses teólogos um dia venham a se voltar contra as causas que agora apoiam com o mesmo espírito crítico que eles atacam seus alvos atuais. Em anos recentes, muitos teólogos no Terceiro Mundo expressaram sua profunda insatisfação com uma abordagem acadêmica ao estudo da Bíblia que tem pouca relevância para os problemas práticos que precisam enfrentar. Para esses teólogos, o fato de que as Escrituras têm muito a dizer a respeito de justiça política e social, principalmente o Antigo Testamento, é de máxima importância no tratamento das necessidades básicas de suas sociedades. Do Terceiro Mundo, interesses desse tipo têm gradualmente se espalhado de modo mais amplo. A probabilidade de teólogos e estudiosos da Bíblia no mundo ocidental serem desafiados a refletir sobre as implicações práticas de suas ideias é muito maior que em qualquer época nos últimos trezentos anos. Igrejas

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estão fazendo afirmações políticas em uma medida que teria sido impensável há uma geração, e a fidelidade à mensagem bíblica é citada como a razão prin­ cipal para isso. Sob a bandeira da justiça, a busca da ortopraxia se ampliou para incluir questões sociais que foram ignoradas ou descartadas durante bastante tempo por líderes eclesiásticos. O lugar da mulher na igreja e na sociedade é um grande exemplo disso, e atualmente se está desenvolvendo uma “hermenêutica feminina” da Bíblia. E difícil dizer se isso se tornará um aspecto importante de estudos bíblicos no futuro, mas ao menos por enquanto é um desafio sério aos modos tradicionais de pensar. Comum na hermenêutica da ortopraxia é a convicção de que o intérprete das Escrituras precisa começar com os problemas reais que as pessoas no mundo estão enfrentando e procurar respostas para eles na Bíblia. Isso está em absoluto contraste com o modelo de interpretação tradicional e “ortodoxo”, que começa com a Bíblia e procura aplicar seu ensino à realidade contemporânea. De acordo com a maioria dos proponentes da ortopraxia, a abordagem tradicional corre o risco de ser irrelevante, pois faz perguntas que ninguém mais está fazendo e propõe soluções que ninguém mais compreende. Os oponentes do modelo de ortopraxia respondem que ela é demasiadamente subjetiva e está sujeita a tirar a Bíblia do contexto, assim interpretando-a erroneamente, até mesmo em lugares que na superfície podem parecer oferecer apoio ao argumento da orto­ praxia. Como sempre, há um elemento de verdade nos dois lados desse debate que precisa ser levado em consideração. A exigência de “relevância” é necessária, sobretudo quando o estudo acadêmico se tornou tão obviamente divorciado dos aspectos práticos da vida da igreja. Ao mesmo tempo, a “relevância” nunca pode ser o único critério para a interpretação, visto que a Bíblia fala de fora à nossa situação, mas também de dentro. E necessário estabelecer um equilíbrio entre considerações subjetivas e objetivas para que esse tipo de hermenêutica dure além da presente geração.

Os intérpretes e sua obra Jacques Ellul (1912-1994).Teólogo leigo protestante de nacionalidade francesa, lecionou direito e sociologia em Bordeaux a partir de 1946. Foi um forte crítico da ideologia de esquerda e de teólogos que tentavam adaptar o cristianismo a ela. A maioria de seus escritos trata de vários aspectos da realidade sociológica moderna, mas vários deles são especificamente teológicos e de orientação bíblica. Entre os últimos estão The p resen ce o f the kingdom [A presença do reino] (1948;

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TI 1951), um estudo do ensino de Jesus sobre o reino de Deus; T h eju dgm en t o f Jon a h [O julgamento de Jonas] (1951; TI 1971); The p olitics o f God a n d the p o li­ tics o f m an [Políticas d e D eus ep o lítica s dos homens\ (1966; TI 1972), um estudo de 2Reis; The m ea n in g o f the city [O significado da cidade] (1970), que examina a civilização urbana à luz do ensino bíblico sobre a cidade; e A pocalipse: the Book o fR ev ela tio n [O Livro de Apocalipse] (1975; TI 1977), que ele interpreta como a consumação da história humana fora do domínio do governo de Satanás. Ellul desfrutou de certa popularidade nos Estados Unidos na década de 1970, mas sua influência despareceu desde então. De modo geral, sua abordagem é mui­ to idiossincrática para ter causado um grande impacto sobre os estudiosos da Bíblia, embora ele tenha sido mais valorizado por cientistas sociais. José M iguez Bonino (1924-2012). Teólogo da liberação protestante que \A f é em busca da eficácia] ensinou em Buenos Aires. Sua mais proeminente obra é D oin g th eology in a revolu tion a ry situation (1975). Juan Luís Segundo (1925-1996). Teólogo da libertação, uruguaio e jesuíta. Escreveu The historicalJesus [O Jesus histórico] (1986) e P aul [Paulo] (1986). Norman Karol G ottwald (1926-). Leciona no New York Theological Seminary desde 1980 e é um grande intérprete marxista do Antigo Testamento. Seu principal livro é The tribes ofY ah w eh \As tribos d e Yahweh] (1979), em que descreve a “conquista” israelita de Canaã como uma revolta camponesa na so­ ciedade da época. Gustavo G utiérrez (1928-). Esse teólogo da libertação sul-americano en­ xerga o Exodo como um arquétipo de libertação social e política e interpreta Jesus de modo político. Sua obra principal é A teologia da libertação (1971). Peter Berger (1929-). Sociólogo da libertação, escreve amplamente sobre te­ mas teológicos de fora da disciplina. Suas obras mais importantes são The social construction o f reality [A construção social da realidadê\ (1966), The sa cred canopy: elem en ts o f a social theory o f religion [O dossel sagrado: elem entos p a ra um a teoria sociológica da religiã o] (1967), A ru m ou r o f angels \Um ru m or de anjos] (1969) e The h eretica l im p era tive [O im p era tivo herético\ (1979). Abraham Johannes M alherbe (1930-2012). Esse estudioso da Bíblia sul-africano ensinou nos Estados Unidos a partir de 1969. Seus livros S ocialaspects o fe a r ly C hristianity [Aspectos sociais do cristianismo primitivo] (1975) e The cyn ic epistles [As epístolas cínicas] (1977) promoveram a pesquisa sociológica em estudos do Novo Testamento. W ayne Atherton M eeks (1932-). Professor em Yale a partir de 1973, é um grande historiador social da igreja primitiva. Seus vários livros incluem

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The w ritin gs o f St P aul [Os escritos de São Paulo] (1972), The P rop h et-K in g: M oses traditions a n d the Joh a n n in e C hristology [O Profeta-Rei: tradições mo­ saicas e a cristologia joanina] (1967), The fir s t urban C hristians \Os p rim eiros cristãos urbanos\ (1983) e The m oral w o rld o f the fir s t C hristians [ 0 m undo m oral dos p rim eiros cristãos] (1986). Phyllis Trible (1932-). Ela ensinou em vários seminários americanos, mais recentemente no Union Theological Sem inary em Nova York (1979). É uma grande teóloga e intérprete da Bíblia feminista e escreveu God a n d the rhetoric o f sexuality [Deus e a retórica da sexualidade] (1978). John H all Elliott (1935-). E professor de teologia em São Francisco, nos Estados Unidos (1975). Sua obra mais importante até agora é um comentário sociológico de 1 e 2Pedro e Judas (1986). Leonardo BoíF (1938-). De nacionalidade brasileira, é um teólogo da li­ bertação católico romano, cujas visões têm sido colocadas sob suspeita pelo Vaticano. Sua obra mais importante é Jesu s Cristo libertador (1972). Elisabeth Schüssler Fiorenza (1938-). Professora de Novo Testamento em Notre Dame (1970) e na Episcopal D ivinity School, em Cambridge, Massachusetts (1984), ela é uma reconhecida intérprete feminista do Novo Testamento. Escreveu extensamente sobre o livro de Apocalipse (1972,1981) e publicou obras controversas como In m em ory o fh e r \.As origen s cristãs a p a rtir da m ulher: um a n ova herm enêutica\ (1982) e B rea d n o tsto n e [Pão, não pedra] (1984).

As questões As questões com que deparam os intérpretes modernos da Bíblia podem ser resumidas assim: 1. É p o ssív el usar um texto a n tigo p a ra resolver problem as sociais, econôm icos e p olíticos a tu ais? De que modo os teólogos podem usar exemplos de ensino e con­ duta extraídos de um contexto diferente ao tentar tratar das questões de hoje? 2. E p o ssív el en con trar um só p rin cíp io herm enêutico p elo qual as E scrituras p o ­ dem ser aplicadas à p resen te situ ação? Será que “justiça” pode desempenhar essa função e, se sim, o que ela significa na prática? Como esse termo pode ser inter­ pretado em situações concretas? 3. E p ossível relacionar uma herm enêutica desse tipo a uma tradição que transcende os interesses do m om en to? Será que há uma ligação entre o que os proponentes da ortopraxia estão dizendo e o testemunho do evangelho antiquíssimo da igreja,

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ou será que a ortopraxia é um tipo de rebelião contra a tradição? Será que a igreja se tornou uma parte tão integral do establishm ent que efetivamente é um inimigo a ser combatido em nome de Cristo? E se esse é o caso, será que a igreja pode ser virada do avesso em nome da fidelidade a uma mensagem que a maioria dos cristãos nunca ouviu ou entendeu? Até que ponto é possível ou legítimo deixar o mundo estabelecer a agenda da igreja?

Os métodos de interpretação A teoria sociológica A influência da teoria sociológica na interpretação bíblica cresceu drama­ ticamente na geração passada, com resultados que têm sido extremamente controversos. Uma das principais razões disso é que os estudiosos da Bíblia tradicionalmente aprenderam a pensar de modo histórico, o que pode ser bem diferente do normal para cientistas sociais. A história tem interesse no desen­ volvimento humano ao longo do tempo e procura acontecimentos particulares que moldaram o processo. Nenhum historiador pressuporia que o que ocorreu em uma época e lugar terá paralelo em outros lugares; cada situação e aconteci­ mento é único em si mesmo, e ele suspeitará de qualquer “paralelo” pressuposto. A sociologia, em contrapartida, procura o que é geral ou típico em qualquer sociedade e tenta encontrar modelos semelhantes em outros lugares. Ela tem bem menos interesse em desenvolvimentos ao longo do tempo e prefere operar em conceitos teóricos que podem ser aplicados através de barreiras temporais e especiais. Para um sociólogo, a “história” pode ser pouco mais que a fonte de tradições sociais impostas às pessoas sem seu consentimento. Isso pode ser aceito como inevitável, mas em certos tipos de teoria sociológica isso também pode ser lamentado, de modo que a “história” pode vir a ser considerada um grande inimigo da liberdade. Ao examinar a Bíblia, o sociólogo está primariamente interessado em des­ cobrir tipos de estruturas sociais. Definir o que significa uma “sociedade” é o primeiro problema. Poderia ser relativamente claro que Israel sob a monarquia constituía uma “sociedade”, visto que havia uma organização estatal que fornecia algum tipo de estrutura à vida da nação. M as as coisas são muito menos claras para o período patriarcal e elas se tornam ainda mais complicadas após o Exílio. A que “sociedade”Jesus pertencia, por exemplo? Em um nível, ele era galileu, em outro, judeu e em outro, súdito do Império Romano. Como os acontecimentos de seu julgamento deixam mais que claro, essas “sociedades” competiam por

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influência, e cada uma tinha um papel a desempenhar em sua vida. Qual delas, se é que alguma, era determinante? O mesmo problema volta quando se trata da igreja primitiva, que vivia nos mundos judaico e greco-romano simultaneamente. Os sociólogos gostam de interpretar a vida religiosa de uma nação em relação às “instituições” e “funções” que indivíduos na nação ocupam. Nem todas essas instituições podem ser encontradas em todas as sociedades, mas elas são tipos comuns. Em especial, muitas vezes há contrapartes em nossa própria época de instituições religiosas no antigo Israel. Por causa disso, a análise feita sobre fenô­ menos modernos pode ser aplicada ao mundo antigo com base na pressuposição de que todas as sociedades funcionam de modos mais ou menos semelhan­ tes. É fácil entender como os defensores desse método ficam atordoados pela insistência do historiador na singularidade do desenvolvimento de qualquer sociedade e podem responder dizendo que, se Israel era assim tão singular, é difícil perceber como e por que agora deveria servir de modelo para os cristãos. Em contrapartida, há sempre o perigo de que fenômenos “típicos”venham a ser analogias imperfeitas e produzam somente interpretações extremamente enga­ nosas. Também é questionável como civilizações extremamente remotas podem ser explicadas em relação à teoria sociológica moderna. Um problema muito sério quando se lida com o mundo antigo é a ausência de dados; simplesmente não é possível reconstruir a vida econômica dos israelitas com qualquer grau de precisão, de modo que uma grande quantidade de análise social moderna não pode ser aplicada à Bíblia. Apesar desses empecilhos, no entanto, os sociólogos têm usado suas teorias para interpretar os dados bíblicos e apresentado várias sugestões interessantes. Em primeiro lugar, eles identificaram modelos a serem seguidos na sociedade, dos quais “profeta” e “sacerdote” são os mais característicos. Um profeta, por um lado, é uma figura carismática, que emerge do nada para desafiar as estruturas sociais básicas em nome de princípios mais profundos que foram esquecidos ou corrompidos. Um sacerdote, por outro, é identificado como um guardião da ordem estabelecida que precisa juntar os pedaços quando a onda de indignação profética se esgotou. Modelos semelhantes podem ser observados na vida reli­ giosa moderna: os sacerdotes da religião cristã são os guardiões da tradição, cuja vida é periodicamente perturbada por profetas carismáticos que desafiam sua autoridade e questionam a base da instituição que servem — a igreja. A reflexão sociológica permitiu que diversos intérpretes da Bíblia ressusci­ tassem os profetas de Israel de um modo que a erudição crítica não conseguiu. E difícil não perceber que a voz profética foi preservada nas Escrituras mais

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que a sacerdotal, embora seja necessário admitir que os sacerdotes provavel­ mente realizaram a maior parte da própria preservação. A conclusão é que o testemunho profético é que precisa ser constantemente reenfatizado, e assim, muitos teólogos modernos se tornaram “profetas”, dirigindo-se aos problemas de nossa sociedade do modo como seus ancestrais se dirigiram aos problemas das sociedades em que estavam inseridos. M ais uma distinção muito importante é aquela entre “igreja” e “seita”. Uma “igreja” é uma instituição religiosa que abraça, ou busca abraçar, a sociedade como um todo. Suas normas são aquelas publicamente aceitas e provavelmente impostas pela lei. Uma “seita”, em contraste, é um grupo religioso que existe na sociedade maior, mas é distinto dela. As razões disso podem variar de caso para caso, mas geralmente os membros de uma seita estão mais profundamente com­ prometidos com os valores religiosos que professam e certamente estão mais conscientes do fato de que a maior parte da sociedade não pensa como eles. Na época moderna, essa distinção é relativamente clara, ao menos de modo geral. Todos estamos acostumados com a diferença entre igrejas históricas e mais co­ nhecidas que buscam viver uma vida plenamente pública e grupos menores que se separam em graus variados da sociedade maior. Os problemas surgem quando se aplica essa distinção ao Israel antigo ou à igreja primitiva. Se aceitamos que a adoração no templo era a “igreja” de Israel, onde encontramos as “seitas”? Podemos dizer que a comunidade de Qumran, por exemplo, era uma seita? O que dizer dos samaritanos ou dos primeiros cristãos? Se o cristianismo começou como uma “seita”, quando ele se tornou uma “igreja”? Para um teólogo, a igreja sempre foi a igreja, até mesmo quando era uma seita da perspectiva sociológica, e as normas que devem reger sua vida agora são as mesmas de então. O problema aqui é amplamente de linguagem e definição téc­ nicas. Os sociólogos usam palavras que os teólogos entendem de forma distinta, e vice-versa. “Igreja” é um excelente exemplo disso; para o teólogo, a igreja é uma instituição única, de natureza sobretudo espiritual. Para o sociólogo, porém, ela é uma instituição típica, com muitos paralelos em outras sociedades. A sua natureza espiritual pode ser admitida até certo ponto, mas não sua singularidade. Além disso, as percepções antropológicas também foram usadas na inter­ pretação bíblica, às vezes com resultados curiosos. Por exemplo, observou-se que em muitas sociedades primitivas há uma resistência coletiva à realidade empírica se ela for incompatível com as convicções de uma tribo. A fim de compensar essa incompatibilidade, muitas tribos inventam explicações para preencher o que antropólogos chamam de “dissonância cognitiva”. Aplicando

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essa teoria ao cristianismo primitivo, alguns teóricos explicaram a doutrina da ressurreição de Cristo desse modo. Os discípulos de Jesus, incapazes de aceitar a realidade de que ele havia sido crucificado, reuniram-se e criaram uma compen­ sação psicológica por esse fato inaceitável: Jesus não estava realmente morto; ele estava vivo. Essa sugestão pode ser encontrada na obra de John Gager K in gdom a n d com m un ity [Reino e comunidade] (1975), embora Gager tenha cuidado para afirmar que “dissonância cognitiva” não era o único fator que motivou os primeiros discípulos. A teoria sociológica demonstrou ser a mais atraente na interpretação da igreja primitiva. A razão disso é que as cartas paulinas fornecem evidências de um tipo ausente em outros lugares na Bíblia, que podem ser complementadas com base na arqueologia e na literatura da época de um modo impossível para o Antigo Testamento. A vida cotidiana no Império Romano pode ser razo­ avelmente reconstruída e, portanto, é possível sugerir algumas reconstruções teóricas da composição social das primeiras comunidades cristãs. Esse tem sido o interesse especial de W ayne M eeks, que buscou explicar as convicções das comunidades paulinas no contexto das estruturas sociais da época. Meeks re­ laciona os pronunciamentos teológicos e éticos de Paulo aos tipos de pessoas a quem estava se dirigindo e tenta sugerir razões por que as convicções específi­ cas podem ter sido mais atraentes para certos tipos de pessoa. M eeks também analisa a linguagem paulina de “pertencimento” e de “separação” para tentar determinar quem fazia parte da comunidade cristã e quem não fazia. Em estudos desse tipo, é muito importante distinguir cuidadosamente en­ tre duas coisas bem diferentes. H á muito tempo se tem compreendido que as primeiras comunidades cristãs eram constituídas por comunidades de comer­ ciantes que cruzavam o mundo mediterrâneo; esse fato é evidente com base em Atos e nas cartas paulinas. Paulo andava por um mundo de fabricantes de tendas e donos de barcos, e muitas igrejas que ele fundou estavam localizadas em proeminentes centros comerciais. M as o que M eeks está tentando mostrar é que o evangelho de Paulo pretendia atrair essa classe de pessoas mais do que outras, de modo que um aristocrata ou trabalhador rural teria achado a atmosfera nas congregações de Paulo um tanto incompatível. É óbvio que não há como confirmar essa impressão por causa de nossos dados limitados. O que sabemos é que não havia muitas pessoas ricas, sábias ou famosas nas igrejas (IC o 1.26) e parece que havia certa tendência a preferir os abastados em lugar dos pobres (Tg 2.1-4). Entretanto, afirmações desse tipo são muito genéricas e demasiadamente compreensíveis como traços humanos comuns, para serem de muita utilidade na

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construção de uma teoria social viável. Do mesmo modo, embora seja possível que tensões sociais estivessem por trás das relações inamistosas evidentes na igreja coríntia, sabemos muito pouco sobre elas para ter certeza. Com toda pro­ babilidade, elas eram um dos diversos fatores envolvidos e não eram percebidas por Paulo como a questão mais importante. Por fim, é necessário confessar que a maioria dos intérpretes da Bíblia acha muito difícil uma conciliação com a sociologia. As suas reservas principais para com ela podem ser expressas assim: 1. A sociologia é “reducionista”, pois prefere falar em generalidades e ignorar detalhes específicos. Isso significa que seu resultado muitas vezes é o menor denominador comum, o que pode nos dizer algo sobre os padrões de comporta­ mento humano sem dizer muito sobre o caso particular (ou casos particulares) em questão. Os sociólogos respondem que interpretar a Bíblia de qualquer perspectiva é “reducionista”; o que é necessário é um esforço interdisciplinar que abarque um campo de conhecimento tão amplo quanto possível. 2. A sociologia exige dados do mundo antigo que não estão disponíveis. Seja qual for sua utilidade hoje, ela simplesmente não é aplicável aos estudos bíblicos. Os sociólogos replicam que isso é não compreender o uso da sociologia ao lidar com modelos no passado histórico. Seu propósito é explicar os dados dispo­ níveis por meio da analogia com desenvolvimentos em outros lugares, e não conduzir uma análise detalhada da sociedade antiga. Por melhor que fosse ter mais informações, isso não é tão necessário quanto alguns teólogos pressupõem. 3. A sociologia tem uma abordagem essencialmente determinista e não con­ segue explicar adequadamente os elementos individuais e pessoais que operam para mudança em situações reais. Isso é muito sério no estudo da Bíblia, em que o papel de indivíduos específicos, sobretudo o papel de Jesus, é tão central. Os sociólogos replicam que o determinismo é somente parte da história. Se quiser­ mos compreender o que é único em Jesus, precisamos primeiro compreender o que é comum a ele e a outros profetas etc. Se não fizermos isso adequadamente, podemos acabar adorando a Jesus por razões completamente equivocadas. Talvez a coisa mais justa a dizer no presente momento seja que ainda está em andamento o debate entre os teólogos a respeito de quanto é possível in ­ tegrar teorias e percepções sociológicas aos estudos bíblicos. A lgum a tensão entre as duas disciplinas provavelmente sempre existirá, embora haja sinais de que um m odus v iv e n d i possa acabar sendo alcançado. Como C. Tuckett (1987) escreveu:

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Em relação aos resultados obtidos, grande parte do novo e original foi alcançado por abordagens aos textos do Novo Testamento de uma perspectiva sociológica. Em relação ao método básico, no entanto, é necessário dizer que neste ponto há pouca coisa que se distinga das abordagens tradicionais do texto associa­ das ao método histórico-crítico. As abordagens sociológicas nos ensinaram a ampliar nossa visão na interpretação do Novo Testamento; mas elas fazem isso encorajando-nos a usar muitos dos métodos básicos empregados no passado.

A teologia da libertação Baseado em uma abordagem amplamente sociológica, mas aplicando-a a uma situação particular, está o fenômeno da teologia da libertação, desenvolvida pela primeira vez na América Latina como resposta aos extremos de injustiça social nessa região do mundo. A teologia da libertação foi fortemente influenciada pelo marxismo, embora não esteja necessariamente ligada a ele. Entre os estudiosos da Bíblia, seu defensor mais coerente tem sido Norman Gottwald, cujo renomado livro The tribes ofY ahw eh \_As tribos de Yahweh] (1979) permanece como um mo­ numento dessa abordagem. Gottwald deriva suas categorias básicas de Karl M arx e interpreta a mudança social de modo puramente material como, por exemplo, a necessidade das tribos de se alimentarem. Na opinião de Gottwald, a “conquista” israelita de Canaã não foi uma invasão de fora, mas uma revolta de classes interna. Já vimos como a primeira parte dessa tese foi defendida com base em certas evi­ dências arqueológicas, que apontam para um movimento de tribos israelitas em direção a Canaã, e não como uma invasão única ocorrida em uma só ocasião; mas a ligação entre isso e o conceito de “luta de classes” é mesmo de Gottwald. Os estudiosos da Bíblia (acertadamente) desconfiam do pensamento de Gottwald, e parece provável que sua hipótese acabará sendo rejeitada com base no fato de que as evidências históricas e lingüísticas não a sustentam. O que pode ser mais difícil de contrariar, no entanto, é sua asserção de que o “javismo” israelita originalmente era um movimento igualitário, com implicações revo­ lucionárias para todas as sociedades, antigas e modernas. Como alguém que está nessa tradição, Gottwald afirma ser imperativo que o cristão moderno se torne “participante” — embora nem sempre esteja claro de que o cristão deve participar. Na interpretação de Gottwald, a ortopraxia se tornou um fim em si mesmo; o objetivo em vista é menos facilmente identificável. Isso não é verdade, obviamente, para a teologia da liberação da América Latina, cujos objetivos sociais e políticos são extremamente claros. A maioria dos teólogos envolvidos nela deriva sua inspiração principal do livro de Êxodo,

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complementado por profetas como Amós e Oseias. O Êxodo é interpretado como o arquétipo da luta de um povo pela libertação de uma tirania econômica e política. Deus é visto como aquele que se posiciona do lado dos pobres e opri­ midos, escolhendo líderes carismáticos como seus instrumentos para libertar o povo. A violência de modo algum está excluída do retrato; muito pelo contrário, ela é vista como um modo de exercer justiça sobre os opressores. A teologia da libertação descreve Jesus como alguém que pregava o “reino de Deus”, que para ele significava uma era de felicidade e liberdade quando a escravidão do passado seria esquecida. O reino de Deus envolveria a transformação de uma situação intolerável. Isso, por sua vez, significaria superar o pecado em suas dimensões sociais e coletivas — em estruturas e em grupos. Na América Latina, o pro­ blema dos pobres é sua “alienação” da sociedade, e é isso o que uma igreja que verdadeiramente segue a Jesus precisa buscar superar. Os teólogos da libertação enfatizam a dimensão social do ensino de Jesus mostrando ser impossível explicar só de modo espiritual suas censuras aos governantes da época. Gustavo Gutiérrez acredita que a situação na América Latina inevitavelmente levará a um confronto violento, embora ele não enfa­ tize esse ponto. Outros teólogos da libertação, como Leonardo BoíF, realçam a necessidade absoluta de uma abordagem não violenta, que para eles é a única plenamente de acordo com o ensino de Cristo. Ainda outros, como Juan Luís Segundo, adotam uma posição intermediária. A não violência pode ser o ideal e é certamente o que Jesus praticou em sua própria situação, mas não podemos excluir a possibilidade de que ele teria adotado uma abordagem diferente em outras circunstâncias. A real tarefa na América Latina é decidir se os alvos de Jesus podem ser realizados pacificamente ou não. Se não, então a violência pode ser o menor de dois males. Como ocorreu com as perspectivas sociológicas em geral, a teologia da libertação foi colocada sob suspeição de modo geral por parte de intérpretes da Bíblia, que a enxergam como uma distorção do significado da Bíblia. Em especial, as seguintes observações são feitas contra ela: 1. A teologia da libertação reduz a fé à política. Uma mensagem espiritual e sobrenatural é distorcida em favor de alvos políticos a curto prazo em países específicos. Não se alega isso para negar a seriedade da situação social sendo tratada ou a necessidade de que cristãos façam alguma coisa quanto a ela. Antes, é para questionar se deve ser permitido que as circunstâncias do momento go­ vernem a interpretação da Bíblia pela igreja. Os simpatizantes conservadores da

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teologia da libertação acreditam que ela é muito dogmática nesse aspecto e não suficientemente capaz de compreender que a teologia precisa abarcar uma pers­ pectiva mais ampla. Os defensores da teologia da libertação respondem, dizendo serem poucos os teólogos da libertação que fazem afirmações extravagantes desse tipo — se é que eles existem; e que passou-se essa impressão, em grande medida, porque eles não discutem as implicações mais amplas de suas convicções. 2. A teologia da libertação fornece uma interpretação unilateral da Bíblia, realçando seu elemento político, e ela dá ênfase exagerada à atividade humana no processo de libertação. Não se pode negar que há certa força nesse argumen­ to, sobretudo nas formas mais extremas de teologia da libertação. A visão de que é necessário exercer justiça a todo preço certamente não representa o único mo­ do possível de interpretar as Escrituras, ainda mais se a ideia de “exercer justiça” significa recorrer à violência. A Bíblia enfatiza que Deus age na história humana para ajudar os desemparados, e não que os oprimidos precisam se unir a fim de ajudarem a si mesmos. Esse é um ponto importante e facilmente ignorado na teologia da libertação. 3. A teologia da libertação usa a Bíblia para defender seus próprios fins políticos, acusação válida sobretudo nos escritos de alguns de seus represen­ tantes mais extremistas da América Latina. M as seus defensores argumentam que esses extremistas não são característicos da teologia da libertação como um todo. Em especial, é incorreto dizer que a teologia da libertação é prisioneira do determinismo marxista. H á alguns indivíduos que interpretam a situação por meio de uma ótica marxista, mas os problemas da América Latina são reais e não mudarão se a ideologia marxista for abandonada. M uitos teólogos da libertação afirmariam que estão oferecendo uma alternativa cristã ao marxismo e veem a justificação para suas atividades em sua interpretação da Bíblia. Como A. F. McGovern (1983) o expressou, a teologia da libertação desafia a igreja a considerar estas proposições teológicas: (a) Deus revela a si mesmo na história, (b) Deus deseja a plena liberdade humana de seu povo, em todos os níveis de sua vida. (c) Deus revela uma preocupação muito especial com os pobres e se ira com a injustiça feita contra eles. (d) Jesus buscava trazer o poder e a justiça libertadores de Deus para todos, (e) Jesus se identificava de um modo muito especial com as pessoas marginalizadas da sociedade, os excluídos, os pobres, (f) Jesus denunciou os que colocavam fardos sobre os pobres e que colocavam o legalismo (lei e ordem) acima da necessidade humana, (g) Jesus buscou “quebrar o poder do mal e do pecado” no mundo, (h) As ações de Jesus eram vistas como uma ameaça aos que ocupavam posições de poder.

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Essas proposições não estão acima de crítica e algumas delas são no mínimo tendenciosas. M as a maioria dos teólogos da libertação enfatiza que elas não podem simplesmente ser atribuídas a uma análise marxista da Bíblia, de modo que a acusação de que eles estão usando o texto meramente para fins políticos não se sustenta. Como ocorre com outros tipos de teologia baseados em teorias sociais, a teologia da libertação está enraizada em uma situação específica que exige ação por parte da igreja. Os cristãos não podem simplesmente se acomodar ou proclamar um evangelho sobrenatural quando injustiças corrigíveis estão bem na sua frente. Ao mesmo tempo, os teólogos têm o dever de olhar além de suas circunstâncias, bem como aplicar a verdade de Deus a elas. É esse aspecto da questão que causou a maior inquietação e é aí que a teologia da libertação precisará alcançar a maturidade a fim de durar além do tempo e lugar em que a criaram. Por enquanto, pode ser dito que ela tem influenciado movimentos de protesto em diferentes partes do mundo, sobretudo no sul da África, e tem desempenhado uma função importante na “inclinação para os pobres”, evidente nos interesses sociais de muitas igrejas no Primeiro Mundo. M as ela fez pouco para moldar o modo de interpretação da Bíblia em círculos acadêmicos, e é necessário questionar seriamente se ela tem algum futuro nesse aspecto.

A teologia feminista O feminismo é mais um ramo de interpretação sociológica com potencial consi­ deravelmente elevado para influenciar a interpretação da Bíblia feita pela igreja. Ele não era originalmente uma parte muito significativa da teoria sociológica ou da teologia da libertação, mas emergiu em anos recentes à medida que as mulheres passaram a assumir cargos de liderança na igreja. A linguagem de “opressão” usada por teólogos da América do Sul tem sido adotada e adaptada a interesses feministas, às vezes de um modo um tanto impróprio. Do mesmo modo que na teologia da libertação, a teologia feminista começa com uma situa­ ção concreta. A maioria das pessoas concorda que o papel das mulheres na igreja foi subestimado ao longo dos anos e que as mulheres foram em certa medida discriminadas pelos homens. Nesse caso, no entanto, a tendência de exagerar é muito maior que na teologia da libertação. O relacionamento macho-fêmea é um problema universal, na opinião de feministas, e as mulheres sofrem discriminação tanto no Ocidente quanto no Terceiro Mundo. Além disso, essa discriminação é muitas vezes resultado de certa

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interpretação da Bíblia que na superfície parece ser bastante justificada. A teologia feminista diverge da maioria dos outros modelos desse tipo pelo fato de que ataca a Bíblia, bem como a igreja, e insiste na necessidade de mudança em ambas. A posição é expressa com grande clareza pelo teólogo J. L. Hardegree Jr. (1983): ... precisamos estar preparados para aceitar a realidade de aspectos da Bíblia com que discordamos. Um exemplo é a linguagem “másculo-centrada” e as ati­ tudes “másculo-chauvinistas” gerais que encontramos na Bíblia. A Bíblia não pode ser perdoada nesse aspecto; ela precisa ser derrotada. Como isso deverá ser feito ainda não está inteiramente claro. Por enquanto, precisamos estar firmes em nosso argumento contra esses males ou limitações encontrados na Bíblia, por exemplo, recusando-nos a usar qualquer uma dessas passagens ofensivas em expressões litúrgicas sem repeti-las em uma linguagem que mostre plena valorização das mulheres bem como dos homens. Essa abordagem levou a uma adulteração comum do idioma inglês, por causa do uso duplo possível para a palavra “homem”. No fundo disso está um equívoco a respeito do significado da linguagem que já causou grande confusão. Na Bíblia, substantivos e pronomes masculinos são usados para incluir os dois sexos — uma prática muito comum nos idiomas mundiais e que nunca foi considerada “sexis­ ta”. Em um nível mais sério, uma das razões às vezes apresentadas para continuar essa prática na igreja é que o uso de imagem feminina, fora do uso apenas como restritivo, tem a conotação de um culto de fertilidade. Também há o problema prático de que o Salvador do mundo era homem e de que a cristologia como a conhecemos não poderia funcionar de outro modo. Se Deus fosse fêmea e sua filha fosse o Messias prometido, como ela teria adquirido uma natureza humana? Não seria possível imaginar uma relação sexual entre José e a M ãe divina a não ser que ela também se encarnasse primeiro, mas isso destruiria a natureza sin­ gular da Filha. É impossível levar o feminismo às suas últimas conseqüências e ainda permanecer nos limites da fé cristã tradicional — conclusão prontamente valorizada por aqueles interessados em defender essa mesma fé cristã. Da perspectiva feminista, a história bíblica deve ser interpretada como dois grandes momentos — criação e redenção — em que mulheres e homens eram plenamente iguais. Após cada um deles, no entanto, as mulheres perderam sua igualdade em relação aos homens e decaíram em sua condição. No Antigo Testamento, isso foi conservado na L ei de M oisés e na vida cotidiana do povo. Observâncias religiosas eram uma exclusividade masculina, e somente homens continham o sinal da aliança, a circuncisão. O máximo que se fez para explicar

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isso foi dizer que Eva havia pecado primeiro e desencaminhado Adão no Jardim do Éden. A subordinação ao homem, portanto, foi a punição da mulher (c f.lT m 2.11-15). No Novo Testamento, Jesus reestabeleceu a igualdade entre homem e mu­ lher (cf. G1 3.28), mas isso logo foi empurrado para o fundo por uma igreja dominada por homens e profundamente influenciada por algo chamado “patriarcado”, um termo sociológico que significa “dominação masculina”. (Observe a diferença entre o uso sociológico e o teológico desse termo; para um teólogo, “patriarca” é um termo de honra aplicado a Abraão, Isaque e Jacó ou aos líderes das mais importantes igrejas orientais.) Tanto esse problema como o modo de confrontá-lo são esmiuçados por Elisabeth Schüssler Fiorenza (1983): O processo de patriarcalização e institucionalização não é um mero fato consu­ mado, mas um movimento inicial em um “jogo de poder” contínuo que requer uma análise sociológica e teológica para recuperar o fundamento bíblico e teo­ lógico para o lugar pleno da mulher na igreja de hoje. A igualdade sexual do movimento de Jesus e dos primeiros missionários cristãos precisa ser reafirmada por um modelo interpretativo igualitário que reconheça plenamente o conflito entre igualdade e hierarquia na igreja primitiva — uma batalha que foi reaberta em nossa época. A crítica à teologia feminista geralmente é feita do seguinte modo: 1. Ela é contrária ao que a Bíblia diz e ensina. Isso às vezes é admitido por defensores do feminismo, que argumentam que a Bíblia está errada nesse aspecto. Alguns feministas admitirão que o ensino bíblico era progressista no contexto da época (isso é especialmente verdadeiro a respeito de Jesus), mas tal realidade não é mais adequada. A Bíblia precisa ser atualizada e, sempre que necessário, substituída. Os defensores da autoridade bíblica, por mais que pos­ sam simpatizar com algumas das observações feitas por feministas, não podem segui-los nisso. O relato histórico permanece o que é, sejam quais forem os sentimentos de intérpretes modernos. Alterar isso arbitrariamente, até mesmo com a melhor das intenções, é ir contra o significado claro do texto e produzir outras distorções (como o problema cristológico mencionado acima). 2. Ela não reconhece que o uso de linguagem masculina pela Bíblia não é sexis­ ta, mas inclusiva. Pode ser difícil para algumas mulheres entenderem e aceitarem isso, mas não deixa de ser um fato e é um fato que faz sentido em seu contexto. Argumentar que as Escrituras têm um preconceito másculo-chauvinista ou que

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ela está repleta de “patriarcado” é impor um falso modelo a ela. O que a Bíblia realmente ensina é que homens e mulheres são completamente complementares uns aos outros. Como seres humanos, eles são tanto iguais como diferentes. A ideia feminista moderna de “igualdade” é um conceito unissex, que não é nem um pouco bíblico. Ao afirmar que não há nenhuma diferença significativa entre os sexos, os feministas correm o risco de destruir a sociedade humana reduzindo todas as pessoas ao conceito andrógino de “ser humano” ou “pessoa”. 3. Ela sujeitou a Bíblia completamente à sua própria agenda. A acusação muitas vezes feita contra a teologia da libertação é provavelmente ainda mais apropriada nesse caso. Um exemplo pode ser extraído do comentário de E. A. Judge (não é feminista) que escreveu (1972) sobre as mulheres nas igrejas paulinas: Vale a pena observar a condição das mulheres que davam apoio a Paulo. Elas são claramente pessoas de certa independência e eminentes em seus círculos, acostumadas a receber pessoas e organizar suas próprias reuniões — se assim eram as reuniões com Paulo — como mais lhes parecia adequado. O observador imparcial poderia pensar que Judge estava expressando uma visão elevada do papel da mulher na época de Paulo, mas não é o que pensa E. S. Fiorenza. Seu comentário (em Gottwald, 1983) sobre a observação de Judge é esta: Essa interpretação equivocada reduz o papel influente das mulheres no movi­ mento dos primeiros cristãos ao de donas de casa que têm permissão para servir café após as preleções de Paulo! Visto que os exegetas do Novo Testamento pressupõem que a liderança de certas comunidades cristãs estava nas mãos de homens, eles pressupõem que aquelas mulheres mencionadas nas cartas de Paulo eram colaboradoras e assistentes dos apóstolos, especialmente de Paulo. Ê difícil não pensar que a interpretação de Judge por Fiorenza é perversa e ditada por uma agenda de que nem ele nem o Novo Testamento tinham consciência. Fortemente ligada a isso está a questão do papel da mulher na liderança da igreja primitiva, e neste ponto a teologia feminista pode novamente exibir uma perversidade quase de tirar o fôlego. A escassez de referências à mulher em papéis de liderança no Novo Testamento pode ser explicada não como um fato da vida na época, mas como um reflexo dos propósitos polêmicos das cartas paulinas. A razão por que Paulo aparentemente não menciona mais vezes líderes do sexo fe­ minino era a ausência de necessidade; elas não estavam causando os problemas com que ele estava tentando lidar. A restrição de termos como episkopos (bispo) e presb yteros (presbítero) a homens é o resultado de um preconceito posterior;

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como o uso de diakonos (diácono) demonstra, esses termos podiam se aplicar tão bem a mulheres quanto a homens. Novamente, a ausência de exemplos para evidenciar esse argumento é considerada fortuita e não significa nada. Igualmente peculiares são as tentativas de fazer a palavra grega K ephalê (IC o 11.3) significar “fonte”, e não “cabeça”, quando o primeiro significado mal é ates­ tado na literatura grega antiga e não se encaixa no contexto. Até mesmo o esforço de fazer a palavra grega authentein significar “dominar”, e não “ter autoridade sobre” (lT m 2.12), embora mais plausível, tem sabor de apelo especial. Qualquer que seja a evidência passível de ser produzida para defender essa ideia, o fato permanece que authentein nunca foi entendido desse modo, e também há pouca chance de um significado desse tipo vir à mente de alguém que não conhece a posição feminista. Vale a pena observar que The w om erís B ible com m entary [Comentário bíblico das mulheres] (1992) apresenta cautela quanto à ideia de “fonte”, embora de modo geral seja favorável a ela e não diga nada a respeito do significado alternativo de authentein. É um fato bem conhecido que a principal objeção teológica à liderança feminina na igreja se baseia no ensino das Cartas Pastorais e, assim, é extremamente importante para intérpretes feministas insistir na origem não paulina dessas cartas. Vale a pena citar em detalhes The w om erís B ible com m entary [Comentário bíblico das mulheres] sobre esse ponto: O autor apela às histórias da Criação como justificação para a subordinação feminina. Adão foi criado primeiro, então Eva; além disso, foi Eva, e não Adão, que “foi enganada e caiu em transgressão”. A expressão grega sugere que o autor pode estar apelando a uma tradição judaica em que a serpente seduz (não sim­ plesmente “engana”) Eva. Se esse é o caso, seu pecado é sexual. Paulo também usa a criação anterior de Adão para defender a subordinação da mulher (ICo 11.8,9). No entanto, de acordo com Paulo, Adão, o primeiro humano, cometeu o primeiro pecado — desobediência (Rm 5.12-21). Além disso, os cristãos são uma nova criação em que o pecado é derrotado e não há “homem nem mulher” (G1 3.28). Para Paulo, a subordinação de mulheres a homens fazia parte da antiga ordem da criação, mas não era parte da nova criação em Cristo. Assim, o autor das Pastorais contradiz Paulo e outras compreensões cristãs primitivas. Não é difícil demonstrar a função do apelo especial na citação acima. Pode ser que o autor esteja apelando a uma tradição judaica, mas isso de modo algum é certo, e evidência alguma é fornecida para defender essa afirmação. A referência a Romanos 5 é aplicada aqui de modo bastante perverso; é verdade que Adão é considerado responsável pelo primeiro pecado, mas isso certamente não remo­ ve o papel de Eva e de modo algum contradiz o que está sendo afirmado em

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lTim óteo. Por último, a interpretação de Gálatas 3.28 está simplesmente errada. Paulo não disse que o pecado havia sido derrotado de tal modo a abolir qualquer distinção entre homens e mulheres; não é disso que trata Gálatas 3.28. Tudo que ele disse foi que, em Cristo, toda a raça humana tem um Salvador comum, de modo que nesse nível as distinções do tipo homem-mulher não importam. Talvez o maior problema com a interpretação bíblica feminista seja que tantas mulheres tomam a crítica a ela como algo pessoal. Negar o tipo de coisa que The w o m en ’s B ible com m en tary [O comentário bíblico das mulheres] está afirmando muitas vezes é entendido como um ataque às mulheres como tais, o que não é verdade. Infelizmente, não há como negar que a teologia feminis­ ta muitas vezes envolve um comprometimento emocional por parte dos que a praticam, o que está ausente em outros tipos de teologia. Isso é uma pena, pois dificulta qualquer tipo de crítica e expõe a igreja ao perigo de que uma posição teológica falsa seja aceita simplesmente porque não fazê-lo ofenderia metade de seus membros.Talvez nunca antes na história da igreja a interpretação da Bíblia esteve exposta a um perigo tão sutil e onipresente como esse.

Conclusão É necessário realçar que os métodos de interpretar a Bíblia esboçados acima ainda são experimentais e somente parcialmente aceitos em círculos acadêmicos. Nas igrejas, há normalmente uma suspeita ainda maior quanto a eles, embora a herme­ nêutica feminista possa estar fazendo um avanço maior no momento. E bastante provável que outros tipos de interpretação surgirão nessa ampla categoria social, à medida que novas questões aparecerem. Já há sinais de que logo poderemos estar diante de uma teologia ecológica, por exemplo, que em certos aspectos pode não estar muito longe do panteísmo. Além disso, questões que têm sido proeminentes em anos recentes podem desaparecer. A teologia da libertação pode não sobre­ viver por muito tempo ao fim do marxismo como ideologia política, e a teologia feminista pode acabar demonstrando ser igualmente instável a longo prazo. No momento, simplesmente não sabemos o que acontecerá. Podemos relatar somente o que foi falado e feito nos últimos anos e aguardar o que o futuro nos reserva. B ibliografia B a l, M . L eth a llo v e:fem in ist litera ry readin gs o f b ib lica llo ve stories (Bloomington/ Indianapolis: Indiana University Press, 1987). B l o e s c h , D. G. Is the B ible sexist? (Westchester: Crossway, 1982).

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cG o vern ,

ESTUDO DE CASO: ÊXODO H á muito tempo se tem reconhecido o livro de Êxodo como detentor de impor­ tância central para a teologia do Antigo Testamento. No capítulo 3, ele contém a revelação feita por Deus de seu santo Nome, y h w h (Yahweh), e dos Dez Mandamentos no capítulo 20. Também há o relato detalhado de como Deus enviou as pragas sobre o Egito para persuadir o faraó a deixar os israelitas sair e, então, o próprio Êxodo dramático. De muitos modos, é o livro fundamental do Pentateuco, pois explica os acontecimentos seminais que levaram ao surgimento de Israel como nação. No entanto, apesar de sua importância, é provável que somente na teologia da libertação do final do século 20 se tenha conferido um papel fundamental ao livro de Êxodo para determinar o formato da teologia cristã. Precisamos ter isso em mente, enquanto examinamos o modo que o livro foi interpretado ao longo dos séculos. Para simplificar, concentraremos nossa atenção em três passagens fun­ damentais do livro. A prim eira delas é o chamado a M oisés (3.1-14). A segunda é o próprio Êxodo (13.17— 14.31) e a terceira é a que registra os Dez Mandamentos (20.1-17).

O chamado a Moisés Embora os exegetas judaicos antigos tenham dito relativamente pouco sobre o chamado a Moisés, o Novo Testamento faz muitas referências a ele. Isso é

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notável quando lembramos que Jesus e seus seguidores enfatizaram o papel de Abraão na fundação de Israel e, em certa medida, minimizaram o papel de Moisés. Por exemplo, em M ateus 22.32 (M c 12.26; Lc 20.37), Jesus cita Êxodo 3.6 como prova da ressurreição dos mortos, contra os saduceus que a negavam. M uitos comentaristas modernos afirmaram que o uso feito por Jesus da passa­ gem de Êxodo é midráshico e abusa do significado original do texto do Antigo Testamento. Seu argumento é que Êxodo estava se referindo ao que Deus havia feito no passado, por meio de Abraão, Isaque e Jacó, enquanto Jesus usou o mesmo texto para provar que os patriarcas ainda estavam vivos. No entanto, o estudo recente da exegese rabínica tem mostrado que o argu­ mento de Jesus teria sido completamente familiar e aceitável naqueles círculos, pois passagens da Torá muitas vezes eram usadas para provar que havia uma ressurreição dos mortos. M ais importante para o exegeta moderno é o fato claro de que Êxodo 3 não está simplesmente se referindo a um passado distante; ele está relacionando esse passado ao presente. É justamente porque o Deus dos pa­ triarcas se revelou mais uma vez que Moisés sabe que o poder que operava neles será mais uma vez manifestado na libertação de Israel. Os patriarcas pertenciam a essa história contínua e a moldavam; portanto, eles ainda estavam vivos no pensamento do autor de Êxodo, e a interpretação de Jesus extrai esse significado mais profundo. Êxodo 3 é mencionado mais uma vez no discurso de Estêvão (At 7.30), em que a resistência de Moisés ao chamado de Deus é minimizada — como também ocorre em Filo e Josefo. O uso no Novo Testamento do nome y h w h (Êx 3.14) é uma questão complexa, mas deve-se observar que ele ocorre em Apocalipse 1.8, em que João adota a tradução do hebraico para o grego feita pela Septuaginta e a usa para descrever o Deus que é. Na igreja prim itiva, Êxodo 3 era um tema favorito, e quase todos os comentaristas das Escrituras deixaram um tratado sobre ele. O anjo que se revelou a M oisés na sarça ardente foi quase universalmente identificado com Cristo, embora Agostinho tenha modificado isso um pouco e pensasse no anjo como representando Cristo. A razão disso era sua posição antiariana; para ele, identificar o anjo com Cristo era correr o risco de ver o Filho de Deus como um ser criado. O foco principal, no entanto, estava na revelação do nome divino, que os pais da igreja identificaram com o conceito platônico de Ser (ousia). Essa interpretação continuou dominando a discussão em toda a Idade M édia e forneceu a filósofos e teólogos cristãos um ponto de partida. Como Etienne Gilson (1936) escreveu:

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Êxodo assenta o princípio do qual, daqui em diante, toda a filosofia cristã ficará suspensa. A partir desse momento, entende-se de uma vez por todas que o no­ me apropriado de Deus é ser e que [...] esse nome denota sua própria essência. M uitas vezes se usava a sarça ardente como alegoria da virgem M aria, com base na ideia de que M aria, a exemplo da sarça, estava queimando com a presen­ ça de Deus em seu ventre, sem no entanto ser destruída por ela. Os reformadores herdaram essa tradição filosófica com seus traços cristológicos, mas a interpretaram a seu próprio modo. Lutero apoiou entusiasticamente uma interpretação alegórica, alegando que a alegoria era apropriada se estivesse enraizada em Cristo. A interpretação de Calvino era mais sofisticada, embora ele também tenha optado por um significado cristológico, com base no fato de que os santos do Antigo Testamento nunca tiveram contato algum com Deus, exceto por meio de Cristo, o mediador. A voz que falou do meio da sarça arden­ te, portanto, era a voz de Cristo, embora ele tenha permanecido oculto até sua encarnação. No pensamento reformado posterior, muitas vezes se identificava a sarça com a igreja perseguida, e, como tal, ela permanece o símbolo da Igreja da Escócia e de suas igrejas-filha presbiterianas em todo o mundo. Calvino rejeitou a ideia de que Êxodo 3.14 pudesse ser interpretado de modo platônico, com base na afirmação de que Platão não deu o devido valor ao poder de Deus e a seu ordenamento providencial de todas as coisas. Isso foi adotado na teologia reformada posterior e agora é um lugar-comum da inter­ pretação. Como J. Plastaras (1966) escreveu: É difícil traduzir Êxodo 3.14 para o idioma ocidental, pois no meio desse pro­ cesso é inevitável que venhamos a impor ao texto hebraico categorias de ser e essência bastante estranhas para a mente hebraica. As traduções do Antigo Testamento para o grego e o latim alteraram inconscientemente, mas de forma radical, o significado do texto hebraico [...] no que diz respeito ao ser essencial [...] Na verdade, o nome Yahweh define Deus com termos relacionados a uma presença ativa. Essa visão pode ser considerada característica entre a maioria dos exegetas modernos, mas de modo algum está acima de qualquer crítica, como J. Barr (1961) mostrou. Os hebreus tinham um conceito de ser, bem como um conceito de ação, e é muito simplista interpretar o pensamento hebraico de um modo tão unilateral. Isso não significa que o autor hebreu era um precursor de Platão, como a maioria dos comentaristas antigos pensavam, mas sugere que eles eram mais semelhantes entre si do que hoje muitas vezes se pensa.

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Talvez o comentário mais adequado seja o de B. S. Childs (1974): O ser e a atividade de Deus não estão contrapostos, mas estão incluídos em toda a realidade da revelação divina. A natureza de Deus não é ser estático nem presença eterna, nem simplesmente atividade dinâmica. Antes, o Deus de Israel revela seu ser em momentos históricos específicos e confirma em suas obras seu ser supremo ao redimir um povo da aliança. Os exegetas modernos têm dedicado muita atenção ao que eles enxergam como a origem do culto de Yahweh nesses versículos, mas sem resultados signi­ ficativos. Norman Gottwald (1985) resumiu isso assim: Afirma-se que foi de Yahweh que Moisés derivou sua fé, junto com muitas práticas cultuais e legais de seu sogro midianita. Jetro é chamado “sacerdote de M idiã” e participa de (preside?) uma festa com os israelitas em que eles celebram a libertação do Egito (Ex 18). Os queneus/recabitas, que parecem ter sido um subgrupo dos midianitas, viviam entre os israelitas em Canaã e eram ardentes devotos de Yahweh (Jz 1.16; 4.11; ISm 15.6,7; 2Rs 10.15-27; Jr 35.1-11). Alguns dos defensores da chamada hipótese dos queneus a respeito das origens javistas afirmaram que a adoção voluntária de uma nova divindade por Moisés e Israel contribuiu com o elemento de uma escolha ética radical para a religião israelita, mas, julgando de acordo com outras conhecidas conversões de grupo a uma nova fé, isso parece ser uma afirmação arbitrária e excessiva. Gottwald continua analisando as evidências arqueológicas, igualmente in­ conclusivas, e no fim afirma que é tão provável que Moisés tenha apresentado o javismo aos midianitas quanto o inverso. No contexto da teologia da libertação, o chamado a Moisés precisa ser considerado ambíguo. Se é verdade que Moisés foi levantado como um líder carismático de seu povo, é igualmente verdade que o texto enfatiza que somente Deus pode trazer justiça (Ex 3.7-9) e implica que Moisés não chegará a lugar algum por seus próprios esforços. De um ângulo um tanto diferente, as visões feministas de D. 0 ’D. Setel (1992) merecem ser citadas: De acordo com Exodo, o nome Yahweh é estabelecido em contraste com o nome El Shaddai (6.3). Os dois têm significado incerto [...] As origens do termo “Shaddai” não são claras. Ele tem sido vinculado a um termo traduzido por montanha, de modo que o nome El Shaddai pode significar “o poderoso da montanha” ou, conforme é mais comum, o “Deus todo-poderoso”. No en­ tanto, um significado primário da raiz da mesma palavra é “peito”, levantando

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a possibilidade de que os primeiros israelitas podem ter tido um entendimento da divindade como maternal, bem como paternal.

O Êxodo e a libertação de Israel Isso é mais um ponto alto no relato de Êxodo, que recebeu bastante atenção dos exegetas. Josefo tentou racionalizá-lo o quanto pôde, considerando a libertação de Israel uma combinação de sorte — com as condições de vento e clima — e intervenção divina. Filo, em contrapartida, alegorizou a história completamente, considerando-a uma imagem de como Deus lança paixões nocivas no abismo e as destrói. No Novo Testamento, a visão judaica tradicional de que Deus libertou seu povo por causa de sua promessa aos patriarcas foi adotada e transformada à luz de Cristo. Isso fica muito nítido na interpretação que Mateus faz de Oseias 11.1 (“do Egito chamei o meu filho”) como referência ao cumprimento do Êxodo na vida de Jesus. Desse modo, Jesus não é meramente um participante na vida contínua da Israel, mas aquele que inaugura a era messiânica que o primeiro Êxodo somente prenunciou. Com respeito ao tema da libertação da opressão, o Novo Testamento é cé­ tico. Em Atos 13, Paulo se refere a esse grande acontecimento, mas conclui que Israel não adquiriu sua liberdade como resultado. A verdadeira liberdade é possível somente em Cristo. De forma semelhante, em ICoríntios 10, Paulo começou com uma referência favorável ao Êxodo e à importância de passar “de­ baixo da nuvem” e “pelo mar”, mas seu pensamento principal foi que, apesar dos maravilhosos atos de misericórdia de Deus, a maioria da nação não conseguiu viver à altura das promessas e não alcançou a salvação. Ele reforça isso enfati­ zando que o Êxodo não atingiu seu objetivo pretendido e que a aliança feita no Sinai era somente sombra de uma aliança melhor por vir. A igreja primitiva seguiu a pista de ICoríntios 10 e interpretou a história do Exodo associando-a ao batismo. O afogamento do inimigo no mar se tornou o protótipo de enterrar nossos pecados no batismo. O próprio Êxodo representava uma passagem de coisas terrenas a coisas celestiais, e a liberdade conquista­ da pelo povo foi descrita acima de tudo como liberdade do pecado. A exegese medieval deu continuidade a essa tradição, embelezando-a aqui e ali, embora entre exegetas judaicos tenha havido uma volta a explicações racionalistas da travessia do mar. Ibn Ezra, por exemplo, pensava que Israel nem mesmo chegou a atravessar o mar, mas meramente entrou até certo ponto nele e voltou para o mesmo lado do qual havia saído.

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Os reformadores romperam com a tradição anterior muito mais claramente aqui do que em Êxodo 3. Lutero interpretou o resgate dos israelitas como um exemplo de como a fé cristã funciona. A razão humana não consegue enxer­ gar saída alguma da situação, mas, pela fé, Deus realiza o impossível. Ao fazer isso, ele pode usar agentes humanos (como Moisés), mas eles são estritamente desnecessários. Calvino dá um passo adiante ao insistir que Deus preparou a situação a fim de demonstrar ao povo que foi somente por seu poder que eles puderam sobreviver e acabar obtendo a salvação. Interpretações racionalistas do milagre entraram novamente em campo no século 17, como na análise que Le Clerc fez do tema (1693). Arqueólogos e exploradores, então, tentaram encontrar o local em que os israelitas pudessem ter atravessado e calcular como isso poderia ter acontecido. Entre estudiosos críticos, o desenvolvimento da hipótese documentária removeu a necessidade desse tipo de interpretação. Ao dividir a narrativa entre J e P, tornou-se possível enfatizar fatores teológicos nos diferentes relatos, que tinham pouca relação com fatos históricos. Nessa reconstrução, J era mais “realista” e P era mais “fan­ tástico”, mas os dois estavam tentando apresentar diversos pontos teológicos que têm pouca relação com a história. Norman Gottwald analisa as diferentes possibilidades com respeito ao Êxodo e conclui dizendo que nossas evidências são muito escassas para permitir que façamos mais do que adivinhar o que realmente aconteceu. No entanto, ele coloca considerável ênfase em passagens em outros lugares em Êxodo (3.21,22; 11.2,3a; 12.35,36), que sugerem que Israel saqueou os egípcios antes de partir. Ele explica: Pode ter chegado a existir uma versão alternativa autônoma dos meios do Êxodo: não uma travessia do mar, mas uma fuga clandestina com bens rouba­ dos. Intérpretes que enfatizam que a travessia do mar precisa se basear em uma experiência real, mesmo que irrecuperável à nossa vista, não somente ignoram a opção de uma fuga secreta, mas também não levam muito a sério a possibilidade de que o tema do mar como força cósmica de caos e morte pode ter sido usado para intensificar o significado do Êxodo. Também se propôs que as experiências de mais de um grupo de fugitivos do Egito podem ter sido combinadas nas traduções bíblicas, e nesse caso a fuga secreta e a travessia do mar devem ser vinculadas a dois êxodos distintos. Gottwald não esmiúça o significado do Êxodo para a liberdade do povo, parcial­ mente por enxergar a ocupação israelita de Canaã como uma revolta camponesa

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que parte de dentro da sociedade, e não como uma invasão de fora. Os teólogos da libertação da América Latina vão muito mais longe que isso. Para eles, o Êxodo é a base de uma nova comunidade de cristãos e, portanto, deve ser pos­ sível determinar sua natureza. Uma igreja baseada na teologia do Êxodo é uma igreja que não pode ser assimilada ou conquistada pelas forças ao seu redor e que está constantemente tentando escapar de papeis sociais impostos a ela pela sociedade em que está. A vida cristã é uma luta constante por realização própria, uma luta contra as pressões que nos oprimem do mundo ao redor. O Êxodo se torna o único modo pelo qual um cristão pode compreender plenamente o significado e o potencial da criação, que depende de um senso de liberdade para que seja realizada. J. Cardonnel (1968) expressou assim a ideia: A história sagrada, a história consciente de um povo, não começa em Gênesis, mas em Êxodo. A experiência concreta de libertação é o único modo de desco­ brir o fato da criação. É somente o fato da opressão profundamente vivenciado que impele um homem a trabalhar por sua libertação radical, em cujo processo ele pode vir a descobrir que o mundo é uma criação. Em uma obra anterior (1964), ele já havia ligado essa ideia à “opção pelos pobres”, uma opção política tão característica da teologia da libertação em geral. Como ele diz: É antes de tudo assumindo a causa dos oprimidos que Deus realiza sua obra e ma­ nifesta o fato de que ele é Deus. Ele revela a si mesmo como aquele que desperta e cria um povo que não havia existido como tal antes. Enquanto outras divindades simplesmente endossam a vitória de seu povo, a natureza específica do único Deus é o fato de que ele intervém em meio ao próprio abandono e desamparo. Sua revelação divina começa com a libertação dos povos mais oprimidos e torturados, que desse modo se movem profeticamente da opressão para a libertação. Cardonnel resume assim sua teologia do Êxodo: O Deus revelado a quem ofereço a minha fé é infinitamente distinto da di­ vindade do deísmo. Ele não é um “ser supremo” cuja benevolência sem amor deriva de seu poder arbitrário. Antes, ele é aquele que intervém na história dos seres humanos. A originalidade da revelação está no fato de que Deus revela a si mesmo avivando o espírito de um povo ameaçado com derrota total. Esse é o real significado do destino de Israel, que prenuncia a páscoa de todos os povos de uma ordem fatalista para uma ordem de liberdade. Há certa afinidade inegá­ vel entre Deus e a fraqueza. Aquele que é eterno é revelado nos desprezados e oprimidos a fim de confundir os poderosos.

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A interpretação feminista segue a da teologia da libertação e a aplica espe­ cificamente ao caso das mulheres, embora não exclusivamente. Para citar D. OT>. Setel: Nos Estados Unidos, a história do Êxodo tem importância especial para afro-americanos, que identificaram sua própria experiência de escravidão com a dos israelitas. Essa ênfase na identificação com os privados de qualquer poder e influência e na preferência por eles é um aspecto explícito e central de muitas teologias feministas. Essa perspectiva encorajou o desenvolvimento de uma abordagem feminista para compreensão de materiais bíblicos que avalia a auto­ ridade de textos com base em sua afirmação da plena humanidade das mulheres. A compreensão da teologia da libertação da centralidade do interesse divino pelos oprimidos também influenciou os teólogos feministas que acreditam que a libertação das mulheres está inextricavelmente ligada à eliminação do racismo, da opressão com base em diferenças de classe, do antissemitismo, da homofobia e de outras formas de opressão. Essa é uma retórica de grande impacto, mas é difícil perceber como isso é aplicado ao próprio texto de Êxodo. Quando passamos à história da libertação do povo, descobrimos que toda a atenção está concentrada em M iriã e no cântico que ela cantou para celebrar a vitória sobre os egípcios. Aqui o interesse principal é bem diferente de qualquer coisa sugerida pela última citação. Setel escreve: A associação de M iriã com o Cântico no M ar desafia vários estereótipos so­ bre mulheres no antigo Israel. Ela comunica uma imagem de mulheres como aquelas que entoam cânticos de guerra, ideia apoiada por outros textos bíblicos (Jz 5; ISm 2.1-10). Esses hinos militares estão entre os mais antigos exemplos de poesia hebraica. Embora os estudiosos geralmente tenham pressuposto que a poesia, assim como outras criações culturais, fosse exclusivamente o trabalho de homens, esses exemplos levantam a questão do papel da mulher na origem e no desenvolvimento de formas poéticas. A libertação dos oprimidos deu lugar à crítica literária e à origem da poesia, mas somente porque uma mulher é citada como a cantora. Para B. S. Childs, o Êxodo contém em si mesmo uma afirmação de seus próprios lim ites e uma promessa de uma libertação futura e mais gloriosa. Ele escreve: Já no Antigo Testamento, a incapacidade de Israel de prevalecer como o novo Israel foi claramente reconhecida pelos profetas. Deus precisa prover uma nova aliança, não como aquela que ele fez com os pais quando os trouxe do Egito.

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Visto que não pode haver plena redenção da escravidão até a libertação do pe­ cado e da morte, o povo de Deus aguarda com ávida expectativa a redenção final do mundo do mal. O Exodo, desse modo, torna-se somente um sinal do que virá em pleno poder no fim. O Êxodo da escravidão do Egito serve de antegozo das alegrias finais da vida na presença de Deus. Aqui o temporal e o divino se encontram, e a mensagem cristã autêntica de esperança escatológica é anunciada. É exatamente essa dimensão que está ausente nas teorias da libertação modernas e que põe em xeque sua ligação com a mensagem do evangelho.

Os Dez Mandamentos Poucos textos do Antigo Testamento têm se tornado tão conhecidos pelas ge­ rações de adoradores quanto os Dez Mandamentos. Eles desempenham um papel central no ensino de Jesus, em que os judeus de sua época são muitas vezes repreendidos pela interpretação literalista e reducionista que fazem deles. Jesus não hesitou em citar esses mandamentos, coletiva ou individualmente, como arquétipos da obediência que Deus exige de seu povo e que Israel tão evidentemente não ofereceu. Os fariseus mostravam grande perspicácia para interpretar diferentes mandamentos de maneiras pelas quais pervertiam sua intenção original. A lei de Corbã, por exemplo, tinha o objetivo de “driblar” o quinto mandamento e assim evitar a obrigação de prover para os pais idosos (M t 15.4s.). Eles também eram famosos pela observância rígida e hipócrita do sábado (M c 2.27). No Sermão do M onte, Jesus detalhou os mandamentos para mostrar que é necessário observar o espírito da Lei, e não somente a letra. O apóstolo Paulo também defendeu a autoridade dos mandamentos na estrutura do evangelho (Rm 13.8; E f 6.2), e não há indício algum de que ele pensava que os mandamentos haviam sido abolidos ou substituídos pela vinda de Cristo. Isso é importante para nossa compreensão da postura de Paulo em relação à Lei de Moisés, pois os Dez Mandamentos eram o ápice de seu ensino. Se eles ainda eram válidos aos seus olhos, há pouca base para afirmar que sua teologia era “antinomiana”. Na igreja primitiva, logo surgiram várias linhas de interpretação. Alguns (e.g., a D idaquê) trataram os mandamentos como a base para um código ético, dando uma conotação legalista à proclamação do evangelho. Outros (Justino M ártir, Ireneu, Tertuliano) rejeitaram sua autoridade com base no fato de que as leis judaicas haviam sido suplantadas por Cristo, mas estavam preparados

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para aceitar aqueles elementos nelas que estavam em harmonia com a lei natu­ ral. A lei judaica foi reduzida aos elementos comuns que ela compartilhava com o paganismo pré-cristão, e, assim, as reivindicações singulares dos judeus de serem o povo de Deus foram rejeitadas. Agostinho rejeitou uma abordagem tão rudimentar e defendeu que os Dez Mandamentos eram tão espirituais quanto qualquer outra parte do Novo Testamento. O cristão cheio do Espírito é liber­ tado para obedecer à lei e para demonstrar seus frutos em sua vida. De acordo com ele, os Dez Mandamentos eram a carta de liberdade do cristão e tinham uma função espiritual completamente nova como resultado. Tomás de Aquino foi o primeiro a elaborar uma distinção entre os aspec­ tos moral, cerimonial e judicial da lei, que ele desenvolveu com grande precisão. De acordo com ele, a lei moral ainda valia, enquanto os outros dois aspectos da Lei mosaica haviam sido abolidos em graus variados por Cristo. Os Dez Mandamentos naturalmente pertenciam à lei moral e, portanto, ainda estavam em vigor. A divisão de Aquino da Lei nessas três partes constituintes demonstrou ser notavelmente durável e ainda hoje é frequentemente encontrada, embora a pesquisa moderna tenha desconsiderado amplamente a base teórica para ela. Os reformadores tornaram os Dez Mandamentos um elemento funda­ mental em seus catecismos, e foi assim que eles entraram na consciência mais profunda das igrejas protestantes. A abordagem de Lutero combinou a de Tertuliano com a de Agostinho: a lei judaica está morta e não tem relevância alguma como tal, exceto à medida que reflete a lei natural comum a todos. No entanto, quando vistos à luz da cruz de Cristo, os mandamentos adquirem uma nova vida e se tornam a forma mais clara de instrução cristã que poderíamos pedir. Calvino enfatizou esse último aspecto e realçou que o cristão precisa usar a lei do Antigo Testamento para o propósito para o qual foi concedida. Esse propósito pode ser definido como o oposto de tudo aquilo que é proibido. Não é suficiente, por exemplo, evitar cometer adultério; o cristão precisa promover ativamente uma vida de castidade e pureza nos limites do casamento. O surgimento do estudo crítico naturalmente levou a diversas perguntas sobre a forma e o propósito dos Dez Mandamentos, mas seu prestígio era tal que sua origem mosaica de modo geral foi defendida até a época de E. Ewald e mesmo depois. Wellhausen foi quase o primeiro a afirmar que os Dez Mandamentos precisam ser tardios, pois refletem um código moral universal. Ele enfatiza, por exemplo, que uma proibição geral de imagens teria sido impos­ sível no Israel primitivo, e essa visão prevaleceu, apesar de uma intensa oposição dos conservadores.

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Uma perspectiva diferente foi sugerida em 1934 por A. Alt, cuja abordagem de crítica da forma demonstrou que Wellhausen estava errado sobre a datação tardia, mas A lt continuou acreditando que os Dez Mandamentos eram um código legal secundário sobre o qual era impossível dizer muita coisa. Isso parece ser a visão crítica em geral aceita atualmente, sobre a qual B. S. Childs tem isto para dizer: Certamente, o período crítico trouxe à tona uma nova dimensão de precisão filológica e histórica. No entanto, à medida que o estudioso se vê cada vez mais distante do próprio material que ele estuda, pergunta-se quanto dessa ausência de conteúdo que ele descobre provém de uma condição do texto ou dele mesmo. N. Gottwald aceita uma datação relativamente primitiva para os man­ damentos, mas os aborda da perspectiva de sua relativa imprecisão, que ele considera um sinal de sua natureza primitiva. Ele escreve: É evidente que essas proibições concisas estão longe de ser claras em especi­ ficar a conduta exata que pretendem excluir da comunidade. E razoavelmente certo que muitas interpretações modernas do significado judicial do Decálogo não se aplicavam ao antigo Israel. As proibições não tratavam de juramento na fala diária comum, não consideravam adúltero um homem casado que fazia sexo com uma mulher não casada, não vedavam a pena de morte, o matar na guerra ou o aborto e não validavam o direito de reter quantidades ilimitadas de propriedade. Estas são interpretações “revisionistas” que somente podem ser defendidas como extensões dos “princípios” ou do “espírito” do Decálogo e não como ordens afirmadas no Decálogo. A teologia da libertação, surpreendentemente, parece ter pouco a dizer so­ bre os Dez Mandamentos. Isso pode muito bem refletir certa predileção por uma “ética situacional” de acordo com a qual as circunstâncias do momento podem ditar qual resposta é apropriada por parte do cristão. A proibição do assassinato ou do roubo talvez não seja aplicável em um contexto em que a violência revolucionária é a única opção disponível àqueles buscando dar um testemunho fiel do evangelho. A interpretação feminista tende a ser igualmente vaga. Como Setel escreve: Os mandamentos em Exodo 20.1-17, considerados como estando no próprio centro tanto da fé judaica como da fé cristã, afirmam explicitamente que se di­ rigem a uma comunidade masculina. No hebraico, o pronome “tu”está na forma

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singular masculina. Na tradução, o sujeito também está claro no v. 17, que se re­ fere à “mulher do teu próximo”. Como tantos outros textos bíblicos, no entanto, essa passagem contém o que parece ser uma perspectiva contraditória quando no v. 12 instrui membros da comunidade a honrar mãe, bem como pai. Essas passagens servem de lembretes de que o patriarcado, como o governo do pai, é um sistema de dominação baseado não somente em sexo e gênero, mas também em idade. No patriarcado, portanto, mulheres como mães têm autoridade sobre os filhos. Em outros lugares está evidente que, por meio dessa autoridade, elas podem servir como agentes, assim como ser vítimas, da opressão. É animador encontrar uma teóloga feminista que está disposta a admitir que mulheres podem de vez em quando ser agentes de opressão, assim como vítimas dela, embora seja um pouco alarmante descobrir que isso ocorre no contexto do exercício da autoridade parental legítima. Entretanto, considerando o teor geral das observações feitas acima, talvez devamos ser gratos por Setel não ter dito que mulheres estão livres para desobedecer aos mandamentos com base no fato de que os mandamentos não se dirigiam a elas e que, portanto, não há problema algum em cobiçar o marido do próximo! A palavra final sobre a relevância contemporânea dos Dez Mandamentos deve provavelmente ir para B. S. Childs, que escreve: O desafio teológico hoje para a igreja é dar aos mandamentos divinos uma forma de “carne e sangue”, que não somente se empenhe em ser obediente no ouvir de sua palavra, mas que seja igualmente séria na transmissão de seus imperativos com ousadia ao mundo contemporâneo. A igreja precisa falar a uma era com­ pletamente secular que já não compreende o significado de uma palavra divina. Childs e os defensores das teorias de libertação concordam em que precisa­ mos falar a um mundo secular, mas onde estes buscam se adequar ao secularismo, ele mantém a transcendência e a “estranheza” da Palavra divina hoje em nossa sociedade, assim como em todas as épocas. Essa “estranheza” faz parte da essên­ cia do evangelho e nos chama a uma libertação e à herança de um reino que não é deste mundo. B ibliografia C h ild s , B. S. Exodus (London: SC M , 1974). C r o a t t o , J. S. Exodus: a herm eneutics o ffr eed o m (M aryknoll: Orbis, 1981). ______ . Êxodo: um a herm enêutica da liberdade. Tradução de J. Américo de Assis Coutinho (São Paulo: Paulinas, 1981). Tradução de: Exodus.

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D u r h a m , J.

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I. Exodus (Waco: Word, 1987). F ie r r o , A. “Exodus event and interpretation in political theologies”. In: G o t t w a l d , N., org. The B ible a n d liberation (M aryknoll: Orbis, 1983). p. 473-81. N o r t h , G . M oses a n d P haraoh: dom inion religion versu s p o w e r religion (Tyler: Institute for Christian Economics, 1985). S e t e l , D. 0 ’D. “Exodus”. In: N e w s o m , C. A .; R in g e , S. H., orgs. The w om en s B ible com m en tary (Louisville/London: Westminster/John Knox/SPCK, 1992).

13 TENDÊNCIAS EVANGÉLICAS NA INTERPRETAÇÃO Introdução histórica O terceiro mundo de discurso na interpretação bíblica contemporânea é o dos evangélicos conservadores. Esse é um movimento nas igrejas protestantes cujos adeptos rejeitaram as pressuposições críticas do pensamento iluminista em grau maior ou menor. Eles procuram manter a teologia da Reforma, embora na prática isso muitas vezes tenha sido modificado. Os evangélicos conservadores continuam manifestando todas as divisões tradicionais do protestantismo — entre luteranos e reformados, calvinistas e arminianos, batistas e pedobatistas (isto é, aqueles que aceitam o batismo infantil), episcopais e presbiterianos. Todavia, quando situados ao lado dos outros dois grupos, está claro que eles estão unidos e muitas vezes têm formado alianças para proteger os valores que têm em comum. Os evangélicos conservadores tendem a considerar o primeiro mundo de discurso como seu campo missionário e são ambivalentes em relação ao segundo. Eles muitas vezes simpatizam com a causa do combate à injustiça, mas questionam se o modo pelo qual é definida, ou os métodos usados para combatê-la, são realmente consoantes com critérios acadêmicos ou posições teológicas tradicionais. Na presente época, os evangélicos (que têm abandonado bastante o adjetivo “conservadores”, pois o consideram autoevidente do ponto de vista teológico, mas potencialmente enganoso de uma perspectiva política) são extremamente numerosos e influentes no mundo de fala inglesa, embora estejam experimentan­ do um rápido crescimento na América Latina e na China, entre outros lugares. Eles são relativamente inexpressivos na Europa continental, onde muitas ve­ zes é difícil para eles existirem como um grupo distinto em uma igreja estatal protestante. Em países católicos romanos e ortodoxos orientais eles aparecem como uma periferia sectária e muitas vezes são confundidos com Testemunhas de Jeová e outros grupos afins, por mais injusto que isso possa ser. As razões

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principais para isso são seu tamanho pequeno e o fato de que fazem proselitismo em uma comunidade nominalmente cristã maior. E difícil definir os evangélicos com exatidão, mas eles têm um forte senso de identidade de grupo e de coesão interna, senso que decorre do que aconteceu ao protestantismo no final do século 19. Até cerca de 1880, uma interpreta­ ção conservadora da Bíblia era óbvia na maioria das partes do mundo de fala inglesa, e sob esse aspecto os evangélicos não eram diferentes de outros. O libe­ ralismo do tipo alemão não era desconhecido, mas era raro. No entanto, em um espaço muito curto de tempo, o novo liberalismo da Alemanha prevaleceu em quase todos os lugares, às vezes depois de ter sido introduzido por evangélicos. Para muitos evangélicos no século 19, o princípio do sola Scriptura significa­ va que fórmulas doutrinárias tradicionais podiam ser ignoradas ou rejeitadas como “católicas”. Em seu modo de pensar, a interpretação bíblica estava livre para adotar métodos histórico-críticos sem prejuízo para a fé pessoal, que não dependia de “dogmas”. Na década de 1920, o movimento evangélico — o qual havia sido distinguido como a ala missionária e militante do protestantismo — havia se dividido em dois, deixando os conservadores, que continuaram mantendo a doutrina clássica das Escrituras, como um grupo desanimado e alienado. Na Grã-Bretanha, isso era uma pequena minoria na Igreja da Inglaterra e era uma força em declínio fora dela. Nos Estados Unidos, isso infelizmente ficou associa­ do a uma mentalidade que exaltava a ignorância em lugar da ciência. Esse tipo depreciado de evangélicos conservadores veio a ser chamado de “fundamentalismo”, após uma série de doze livretes conhecidos como Thefu n d a m en ta is [Os fundamentos], que haviam sido publicados entre 1910 e 1915. Para ser justo, é necessário salientar que esses livretes, longe de ser obscurantistas, haviam sido escritos pelos melhores estudiosos conservadores da época. Para infelicidade deles, o nome mais tarde foi adotado para descrever uma posição teológica com que eles simpatizavam somente em parte. Um a série de julgamentos legais que prejudicaram o grupo acabou desacreditando o “fundamentalismo”, e isso afetou a reputação de conservadores mais respeitáveis, alguns dos quais haviam se oposto ativamente ao comportamento dos “fundamentalistas”. Quando o conservador Princeton Theological Sem inary foi reorganizado de acordo com uma perspectiva mais liberal em 1929, pareceu que os evangélicos conservado­ res não teriam futuro algum na vida acadêmica. Nessa situação, os poucos intelectuais remanescentes entre os evangélicos se uniram para contra-atacar. Na Grã-Bretanha, a Tyndale Fellowship for

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Biblical Research [Associação Tyndale para Pesquisa Bíblica] (e depois também Theological [Teológica]) foi fundada em 1944. Atuando com base na Tyndale House em Cambridge, seu alvo era restaurar uma posição evangélica conserva­ dora academicamente respeitável. Nos Estados Unidos, novos seminários foram fundados para dar continuidade às antigas tradições. O mais proeminente deles foi o Westminster Theological Seminary em Filadélfia, fundado pelos professo­ res que se sentiram obrigados a sair de Princeton em 1929. Outros vieram logo depois e, na década de 1950, já havia uma nova rede de seminários financiados e administrados por evangélicos conservadores. O processo de recuperação foi lento, e foi somente a partir da década de 1970 que os evangélicos puderam novamente falar com uma voz confiante à comunidade acadêmica. A li, é necessário dizer, eles eram muitas vezes re­ cebidos com uma mistura de suspeita e menosprezo. Estavam sob suspeita por causa de suas supostas ligações com o “fundamentalismo” e por que a percepção geral era de que tinham interesses próprios que estavam tentando impor aos outros. Eles eram menosprezados por causa de suas visões con­ servadoras, que não estavam na moda em círculos acadêmicos da época. No entanto, fizeram progresso sólido e constante. Não demorou muito para que uma grande proporção dos candidatos, às vezes até mesmo a m aioria deles, e na m aioria das grandes denominações, viessem de um contexto evangélico. A maior parte do trabalho de escola dominical e a maior parte da atividade evangelística era conduzida por eles, de modo que suas igrejas cresciam em uma velocidade muito maior do que as outras. Redes de “alianças de comu­ nhão” em universidades e nas profissões criaram vínculos que apoiavam um vasto conjunto de organizações pareclesiásticas. Com o crescimento, no entanto, veio a diversidade, e esse mundo fechado dos evangélicos estava menos preparado para enfrentar as conseqüências disso. Em 1945, era possível pressupor que um evangélico tinha uma teologia rela­ tivamente definida e que ele estava bem ciente da razão de não poder aceitar o liberalismo dominante nas universidades e nas instituições eclesiásticas. Na década de 1970, no entanto, uma nova geração havia surgido, entre a qual essa consciência havia desaparecido amplamente. Embora houvesse um crescimento contínuo, e até mesmo impressionante, nas igrejas, havia poucos resquícios da liderança que tinha inspirado gerações anteriores. Alguns ainda continuaram promovendo os interesses teológicos tradicionais, porém, para muitos, a posição evangélica havia se tornado uma forma de espiritualidade com um conteúdo teológico vagamente definido. A teologia séria, sempre a exclusividade de uma

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minoria, foi praticamente banida de cena. A pregação, de que uma geração an­ terior havia se orgulhado e que experimentara um renascimento na década de 1950, saiu de moda mais uma vez. Em seus esforços por se tornar academica­ mente respeitáveis, muitos estudiosos mais novos ficaram atolados em pesquisas de doutorado e perderam contato com as igrejas das quais haviam vindo, de modo que, quando voltaram ao ministério, não conseguiam se comunicar com o rebanho. O estudo bíblico se tornou demasiadas vezes ou uma busca esotérica entre acadêmicos ou um concurso de ignorância com entrada franca nas igrejas. A ausência de conteúdo teológico dava as caras de forma mais dolorida quando se tratava de questões em que a Bíblia não era clara, mas que precisavam ser discutidas e decididas nas igrejas — o papel das mulheres sendo talvez a mais importante entre elas. Diante de desafios como esses, os evangélicos logo desco­ briram que eles não tinham uma posição comum sobre a maioria das questões — nem mesmo sobre a infalibilidade da Bíblia. Esse era o problema mais sério de todos e diversos estudiosos evangélicos determinaram que eles precisavam lutar por uma visão das Escrituras que pudesse ser estabelecida como “evangélica” com a exclusão de outras alterna­ tivas. Um Conselho Internacional de Inerrância Bíblica (CIIB) foi formado, o qual produziu duas declarações importantes: uma sobre a “inerrância” das Escrituras (1978) e outra sobre hermenêutica (1982). O propósito dessas declarações era claramente exclusivo; seus formuladores queriam estabelecer os lim ites além dos quais nenhum estudioso podia ir e ainda se chamar evan­ gélico. Elas são úteis à medida que sua clareza permite que todos vejam com que um “inerrantista” clássico hoje deve se parecer. Contudo, quando elas são aplicadas ao mundo existente do estudo erudito evangélico, logo fica claro que as coisas não são tão simples. Para dizer a verdade, poucos evangélicos estudiosos da Bíblia endossariam 100% das declarações, e, embora diversas instituições evangélicas nos Estados Unidos as usem como critério na contratação de professores, na prática a maioria delas precisa adotar certa tolerância em pontos específicos (que variam, obvia­ mente, de estudioso para estudioso). A (American) Evangelical Theological Society ainda parte do princípio de que seus membros endossam uma doutrina da “inerrância” bíblica mais ou menos de acordo com o CIIB, mas na prática tende a evitar uma discussão séria da questão. Em contrapartida, nem a Tyndale Fellowship na Grã-Bretanha nem seu correspondente americano mais novo, o Institute for Biblical Research (fundado em 1970), fazem essa exigência. Sem conduzir uma pesquisa com seus membros, é impossível afirmar com certeza

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quantos endossariam as declarações do CIIB, quer totalmente, quer em grande parte, mas o próprio fato de que nenhuma das organizações profissionais tem desejado adotar uma declaração sobre a questão sugere que a defesa da “inerrân­ cia” como princípio exegético ou hermenêutico não é grande entre evangélicos estudiosos da Bíblia. No entanto, apesar de seus problemas internos, essa posição evangélica per­ manece uma força visível nas igrejas protestantes que é rapidamente reconhecida por aqueles que se encontram fora da igreja, bem como pelos de dentro. Há diferenças de cultura e ênfase entre evangélicos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, mas elas não são suficientes para impedir um alto grau de interação. Os evangélicos anglo-saxões têm conseguido atrair seguidores entre luteranos e protestantes reformados na Europa continental, cujas tradições eclesiásticas são muito diferentes, e há até sinais de alcance a grupos católicos conservadores e ortodoxos orientais, apesar do antagonismo histórico. As organizações evangé­ licas principais — como a Tyndale Fellowship na Grã-Bretanha e a Evangelical Theological Society nos Estados Unidos — mantêm sua identidade distinta e seu testemunho. Se isso continuará depois que a geração mais antiga de evangé­ licos, que sabem por que essas organizações foram formadas e que lutavam por seus princípios, sair de cena ainda é duvidoso, mas por enquanto ainda se pode dizer que de fato há uma abordagem distintamente evangélica da Bíblia e de sua interpretação. E isso que este capítulo procura examinar.

Os intérpretes e sua obra De acordo com a evolução da posição evangélica conservadora no século 20, seus representantes podem ser divididos em três grupos relativamente distintos. O primeiro deles consiste naqueles estudiosos que lutaram contra o início do liberalismo nos primeiros anos do século e que, de modo geral, perderam a ba­ talha naquela época. Hoje, eles são considerados os precursores dos evangélicos atuais e algumas de suas obras se tornaram clássicos. O segundo grupo consiste naqueles estudiosos que conscientemente procuraram ressuscitar uma tradição de estudo conservadora entre os evangélicos. Eles atingiram a maturidade nos anos após 1945 e agora a maioria deles está aposentada ou, em alguns casos, não está mais viva. O terceiro grupo consiste na geração mais nova, surgida depois de 1945, que está chegando à proeminência na presente época. Eles são sem dúvida o mais numeroso grupo, e é difícil afirmar neste estágio quem entre eles deixará uma impressão duradoura. Nessa lista, não foi possível incluir mais que

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um pequeno número deles, embora se espere que eles forneçam uma amostra representativa do movimento como um todo.

Os precursores Jam es Orr (1844-1913). Grande estudioso do Antigo Testamento e um dos autores de The fundamentais [Os fundamentos], argumentou em T heproblem o f th e O ld T estam ent [O problema do Antigo Testamento] (1906) que uma crítica baseada no evolucionismo e no antissobrenaturalismo não era persuasiva. Para ele, argumentos tradicionais mantinham uma grande parte de sua força e eram preferidos a não ser que evidências sérias do contrário fossem produzidas. Orr era conservador em sua exegese, mas menos dogmático que seus contemporâ­ neos americanos. Jam es Denney (1856-1917). Estudioso escocês do Novo Testamento, de­ fendeu a doutrina evangélica tradicional da expiação substitutiva de Cristo contra as visões liberais de estudiosos alemães como A. Ritschl. No entanto, ele era mais aberto à crítica bíblica e tinha aversão até maior que Orr pelo conser­ vadorismo dogmático do estudo americano contemporâneo. John Davis (1854-1926). Professor de Antigo Testamento em Princeton e autor de um bem-conhecido dicionário da Bíblia (1898), Davis defendeu uma teologia conservadora contra aqueles liberais cuja obra mostrava inclinação con­ tra o sobrenatural e uma preferência por modos evolucionários de pensamento. M as ele defendeu que não havia razão alguma para que conservadores não de­ vessem participar plenamente em estudos críticos literários e arqueológicos. Robert D ick W ilson (1856-1930). Professor de Antigo Testamento em Princeton e um dos principais fundadores do Westminster Seminary em 1929, seu principal interesse estava em defender a natureza histórica do livro de Daniel. Em 1926, ele publicou S cientific in vestiga tion o f the O ld T estam ent [Investigação científica do Antigo Testamento], em que concluiu, com base na literatura comparada de outras fontes do Oriente M édio, que as datas e os autores tradi­ cionais dos principais livros do Antigo Testamento estavam corretos, embora o Pentateuco possa ter sido levemente modificado por redatores posteriores. John Gresham M achen (1881-1937). Professor de Novo Testamento em Princeton e mais tarde em Westminster, seus estudos eruditos foram o monu­ mento extraordinário dos evangélicos conservadores na década de 1920. Ele foi um líder veterano na luta contra o liberalismo e guiou a saída dos conservadores de Princeton em 1929. Em 1921, publicou The origin o fP a u l’s religion [A origem

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da religião de Paulo], que era uma reafirmação cuidadosa de uma posição con­ servadora contra as teorias radicais de Weiss e Bousset. M achen tentou mostrar que o ensino de Paulo estava de acordo com o de Jesus e que somente a natureza sobrenatural da vida e do ministério de Jesus podia explicá-lo plenamente. Seu ataque à teologia liberal, C hristianity a n d liberalism [C ristianism o e liberalism o] (1923), permanece um clássico nessa categoria. Em 1930, ele publicou The Vir­ g in birth o f C hrist [O nascimento virginal de Cristo], que foi mais uma defesa acadêmica de posições tradicionais fortemente ligada à sua fé pessoal em Jesus. Geerhardus Vos (1862-1949). Professor de Teologia Bíblica em Princeton (1893-1932) e mais tarde forte defensor do Westminster Seminary, Vos desen­ volveu uma versão especificamente evangélica da teologia bíblica. Ele aceitava que a Bíblia era o produto de desenvolvimento histórico, mas considerava isso obra da revelação divina, e não da evolução religiosa. Foi um forte defensor da autoria e da datação tradicional dos principais livros do Antigo Testamento e escreveu extensamente sobre essas questões. Oswald Thompson AUis (1880-1973). Professor de .Antigo Testamento em Princeton (1914) e depois em Westminster, defendeu a autoria mosaica do Pentateuco e a unidade do livro de Isaías. Sua abordagem geral era semelhante à de R. D. W ilson. H erm an Sasse (1895-1976). Representante tardio da tradição luterana con­ fessional de Hengstengberg, Keil e Delitzsch, exerceu considerável influência sobre pastores e teólogos alemães conservadores, bem como entre luteranos na Austrália e nos Estados Unidos. Sua mais importante afirmação hermenêutica veio a lume em B riefe an lutherische Pastoren [Cartas a pastores luteranos] (1950).

A nova geração Ned Bem ard Stonehouse (1902-1962). Professor de Novo Testamento no W estminster Sem inary a partir de 1937, embarcou em um cuidadoso estudo crítico dos Evangelhos, que contribuiu muito para reconciliar descobertas mo­ dernas com visões tradicionais da autenticidade dos textos. Suas obras principais foram The W itness o f M a tth ew a n d M ark to Christ [O testemunho de M ateus e Marcos acerca de Cristo] (1944) e The w itn ess ofL uk e to C hrist [O testemunho de Lucas acerca de Cristo] (1951). Em 1946, ele editou The infallible Word [A Palavra infalível], fruto de um simpósio de estudiosos sobre o tema da inspiração e autoridade da Bíblia que deu o tom para a geração seguinte. Uma obra póstu­ ma, O rigins o f the S ynoptic Gospels: som e basic questions [Origens dos Evangelhos

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Sinóticos: algumas questões básicas] (1963), indicou a aceitação da liberdade e personalidade literárias dos diferentes autores dos Evangelhos. Edward John Young (1907-1968). Ensinou no W estminster Theological Seminary, Filadélfia (1936), e escreveu diversas obras sobre o Antigo Testamento de uma perspectiva conservadora clássica. De menção especial são Introduction to the O ld T estam ent [Introdução ao A ntigo T estam ento] (1949), seu comentário de Daniel (1949) e seu comentário de Isaías em três volumes (1965-1971), em que ele fez a defesa da unidade do livro como obra do profeta do oitavo século a. C., defesa que contém um nível de detalhamento até hoje não superado. David M artyn Lloyd-Jones (1899-1980). Proeminente pregador galês e ministro da Westminster Chapei, em Londres, de 1938 a 1968, ele é lembrado prin­ cipalmente por tentar ressuscitar a tradição puritana da pregação expositiva. Deixou sermões extensos sobre Romanos e Efésios,bem como diversas outras obras, incluin­ do o magistral estudo The Sermon on theM ou n t [O Sermão do M onte] (1959-1960). George Eldon Ladd (1911-1982). Ladd lecionou no Fuller Theological Seminary na Califórnia a partir de 1950. Sua obra se caracterizava por seu conser­ vadorismo teológico, integridade intelectual e liberdade crítica. Em seu primeiro grande livro, C rucial questions about the kingdom o f God [O eva n gelh o do reino: estu­ dos bíblicos sobre o reino de Deus] (1952), ele buscou tratar de algumas das questões levantadas por C. H. Dodd. Embora inicialmente fosse um dispensacionalista, mais tarde se afastou dessa posição e adotou a posição do “pré-milenarismo his­ tórico”. Suas outras obras significativas incluem The N ew Testament a n d criticism [O Novo Testamento e a crítica] (1967), em que defendeu uma visão elevada da autoridade das Escrituras combinada com uma franca aceitação da necessidade de estudo crítico responsável, e sua magistral Theology o f the N ew Testament \Teologia do N ovo Testamento] (1974), que tentou oferecer a estudiosos evangélicos um re­ trato coerente e abrangente do Novo Testamento com um todo. Frederick Fyvie Bruce (1910-1991). Professor da cátedra Rylands de exe­ gese bíblica, em Manchester, de 1959 a 1978, foi autor de muitas monografias sobre diferentes aspectos dos estudos bíblicos. Também escreveu comen­ tários de Atos (1953; ed. rev. em 1990), Hebreus (1964), R om anos (1969), 1 e 2Coríntios (1971) e Colossenses, Filemom e Efésios (1984). Foi um dos fundadores principais da Tyndale Fellowship for Biblical Research (1944) e desempenhou um papel fundamental no treinamento de toda uma geração de pesquisadores, tanto na Grã-Bretanha como nos Estados Unidos. Sua obra estabeleceu um padrão muito elevado de estudo filológico na tradição britânica clássica de Lightfoot e Ramsay.

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Donald Guthrie (1915-1992). Lecionou durante muitos anos na London Bible College e escreveu o importante N ew T estam ent introduction [Introdução ao Novo Testamento] (1970), bem como Theology o f the N ew T estam ent [T eologia do N ovo T estam ento] (1981). Entre outras de suas obras encontram-se comentá­ rios das Epístolas Pastorais (1957), Gálatas (1969) e H ebreus (1983), além de um estudo de Apocalipse (1987). Sua obra se caracteriza por uma análise cuidadosa e conservadora dos dados filológicos e arqueológicos relevantes, e o interesse pela integração teológica da pesquisa acadêmica foi um marco de seu ensino e de seus escritos. Otto M ichel (1903-1993). Professor de Novo Testamento em Tübingen e o representante principal da chamada “Hallenser Theologie”após 1945, M ichel foi uma das principais ligações entre a tradição conservadora do pietismo suábio dos séculos 18 e 19 e a geração posterior a 1945 de evangélicos alemães. Suas obras incluem D as Z eugnis des N euen Testam ents vo n d er G em einde [O Testemunho do Novo Testamento com respeito à igreja local] (1986) e uma compilação de artigos e ensaios intitulada D ien st am Wort [M inistério da Palavra] (1986). Roland Kenneth Harrison (1920-1993). Lecionou na Wycliffe College, em Toronto, de 1960 até sua aposentadoria. Escreveu comentários de Jeremias e Lamentações (1973) e Levítico (1980) e foi o primeiro editor geral do New international commentary on the Old Testament [Novo comentário internacional do Antigo Testamento]. Também escreveu H istory o f O ld Testament tim es [História da época do Antigo Testamento] (1957), The D ead Sea Scrolls [Os Manuscritos do M ar Morto] (1961), Introduction to the O ld Testament [Introdução ao Antigo Testamento] (1969), amplamente usado, e Teach y o u r self biblical H ebrew [Ensine hebraico bíblico a si mesmo] (1955). Foi um firme defensor, às vezes ácido, de opiniões conservadores clássicas no âmbito da crítica do Antigo Testamento. Everett Harrison (1902-1999). Formado em Princeton, ensinou durante vá­ rios anos no Dallas Theological Seminary antes de se tornar um dos fundadores do Fuller Seminary em 1947. Sua obra principal popularizou visões evangélicas tradicionais para um público maior e, assim, tem sido mais influente que a de alguns estudiosos. Foi editor do W ycliffe B ible C om entary [Comentário Bíblico W ycliffe] e prestou várias contribuições importantes à In tern a tion a l S tandard B ibleE ncyclopedia [Enciclopédia internacional Padrão da Bíblia]. Sua Introduction to the N ew T estam ent [Introdução ao Novo Testamento] (1964) foi amplamente usada durante uma geração. Ele aceitava tanto a infalibilidade como a inerrância das Escrituras, mas não se sentia à vontade com alguns modos enfadonhos e insensíveis com que essas doutrinas eram aplicadas por dogmáticos evangélicos.

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John W illiam W enham (1913-1996). Wenham foi diretor da Latimer House, em Oxford, de 1970 a 1973, e se tornou muito conhecido por sua obra E lem ents o f N ew T estam ent Greek [Elementos do Grego do Novo Testamento] (1965). Também publicou importantes estudos cronológicos sobre a datação de Ester (1984) e sobre os Evangelhos Sinóticos (1991), bem como diversas outras obras, incluindo C hrist a n d the B ible [Cristo e a Bíblia] (1972). FrankD erekK idner (1913-2008). Kidner ensinou na Oak H ill College, em Londres (1951), e então foi diretor da Tyndale House, em Cambridge (19641978). Escreveu diversos livros sobre o Antigo Testamento e, em particular, comentários de Provérbios (1964), Salmos (1973-1975), Eclesiastes (1976) e Esdras-Neemias (1979). Sua obra é notável pela clareza de apresentação e pela firme defesa de posições conservadoras sobre questões críticas. Leon Lamb M orris (1914-2006). Ensinou em Ridley H all, em Melbourne, a partir de 1945, exceto por um período de dois anos como diretor da Tyndale House, em Cambridge (1961-1963). Foi um autor prolífico e notável por di­ versos comentários extremamente completos e úteis de diferentes partes do Novo Testamento, incluindo ICoríntios (1958), 1 e 2Tessalonicenses (1959), Apocalipse (1969), João (1971), Lucas (1974), Hebreus (1981), Romanos (1988), Mateus (1992) e Gálatas (1996). Também escreveu N ew T estam ent Theology \Teologia do N ovo Testam ento] (1986) e colaborou em uma In trodu ction to the N ew T estam ent [Introdução ao N ovo Testamento\ (1992). É famoso por de­ fender a teoria da expiação conhecida como substituição penal, sobretudo na controvérsia com as visões mais Überais de C. H. Dodd. Gleason Leonard Archer Jr. (1916-2004). M inistro presbiteriano, ensinou no Fuller Theological Seminary (1948) antes de ir para a Trinity Evangelical D ivinity School (1965). É o autor de muitos livros sobre temas do Antigo Testamento, incluindo um importante S u rvey o f the O ld T estam ent [Panoram a do A ntigo Testamento\ (1964, 1974), T heological wordbook o f the O ld T estam ent [D icionário in tern a cion a l de teologia do A ntigo Testamentõ\ (1980) e O ldT estam ent Q uotations in the N ew T estam ent [Citações do Antigo Testamento no Novo Testamento] (1983). Também escreveu manuais de estudo sobre Hebreus (1957) e Romanos (1959) e uma E ncyclopedia o f B ible difficulties [E nciclopédia de dificuldades bíblicas\ (1982). Sua abordagem de questões críticas é completa­ mente conservadora nos moldes clássicos. John A lexander M otyer (1924-2016). Diretor da Trinity College, em Bristol, de 1971 a 1981, escreveu muitos comentários e estudos sobre vá­ rios livros da Bíblia, notáveis pela combinação de estudo erudito e interesse

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pastoral. Entres eles estão comentários de Amós (1984), Filipenses (1984), Tiago (1987) e Isaías (1993). Ralph Philip M artin (1925-2013). Ensinou na London Bible College (1959) e em M anchester (1965) antes de ir para o Fuller Seminary, em Pasadena, Califórnia (1969). Depois foi professor de Estudos Bíblicos na University of Sheffield. Escreveu diversos e importantes estudos exegéticos sobre Filipenses, incluindo ao menos dois comentários dessa epístola (1959, 1980). Também escreveu comentários de 1 e 2Coríntios (1968), Efésios (1971), Colossenses (1972) e Marcos (1972). Sua obra magna é um comentário de 2Coríntios que integra a série W ord Commentary (1986). Edward Earle EUis (1926-2010). Estudioso proeminente entre os estudiosos, sua obra se limitou em grande parte a publicações acadêmicas. Sua abordagem a questões críticas do estudo do Novo Testamento é cautelosa, embora ele em geral tenha ficado fora das controvérsias recentes a respeito da inspiração bíblica. Suas muitas obras incluem P auis use o f the Old Testament [O uso do Antigo Testamento por Paulo] (1957), P aul a n d his recen t interpreters [Paulo e seus intérpretes recen­ tes] (1967), The w orld o f St Joh n [O mundo de São João] (1984), Pauline theology [Teologia paulina] (1989) e The Old Testament in early C hristianity [O Antigo Testamento no cristianismo primitivo] (1991). Ele também escreveu um comen­ tário sobre Lucas (1966) e foi o fundador e primeiro presidente do Institute for Biblical Research (IBR). Roger 'Ihomas Beckwith (1929-). Bibliotecário (1963) e então diretor (1973) da Latimer House, Oxford, escreveu amplamente sobre vários temas te­ ológicos. Sua contribuição principal aos estudos bíblicos é seu estudo magistral, The O ld T estam ent canon o f the N ew T estam ent church [O cânon veterotestamentário da igreja neotestamentária] (1985), em que demonstra que há excelentes razões para afirmar que o cânon do Antigo Testamento já estava estabelecido em 150 a.C. no máximo. R ichard N orm an Longenecker (1930-). Lecionou na W heaton College (1956) e na T rinity Evangelical D ivinity School (1963), antes de ir para a W ycliffc College, em Toronto (1973). Escreveu Paul, apostle o flib e r t y [Paulo, apóstolo da liberdade] (1964), The C h ristology o f ea rly J e w is h C h ristia n ity [A cristologia do cristianism o judaico prim itivo] (1970), T he m in istry a n d m essage o f P a u l [O m inistério e a mensagem de Paulo] (1971) e a muito aclam ada B ib lica l ex egesis in th e apostolic p e r io d [Exegese bíblica no período apostólico] (1974). Seu comentário de Gálatas (1990) também prestou uma im portante contribuição.

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Elmer A rthur M artens (1930-2016). Lecionou no M ennonite Brethren Biblical Seminary, em Fresno, Califórnia (1970). É um eminente estudioso do Antigo Testamento e escreveu amplamente sobre diversos temas do Antigo Testamento. Seus livros principais são G od’s design: a fo cu s on Old Testam ent th eolo g y [O desígnio de Deus: foco na teologia do Antigo Testamento] (1981; 2. ed. 1994) e um comentário de Jeremias (1986). Bruce Kenneth W altke (1930-). Lecionou no Dallas Theological Seminary (1958), na Regent College, Vancouver (1976), e no W estminster Theological Seminary, Filadélfia (1985). A partir de 1991, lecionou Antigo Testamento na Regent College. Sua abordagem de questões críticas é de um conservadoris­ mo clássico, como se vê principalmente em C reation a n d chaos [Criação e caos] (1974).Também escreveu um comentário de M iquéias (1988) e diversos artigos importantes sobre vários temas do Antigo Testamento e da gramática hebraica. Robert Horton G undry (1932-). Leciona na Westmont College, em Santa Barbara, estado norte-americano da Califórnia, desde 1962 e é o autor de um amplamente usado S u rvey o f the N ew T estam ent \Panorama do N ovo Testamento\ (1970). Entre seus outros vários escritos, pode-se fazer menção especial de The use o f the O ld T estam ent in St M a tth ew s G ospel [O uso do Antigo Testamento no Evangelho de São M ateus] (1967) e Soma in biblical th eology \Soma na teologia bíblica] (1976). Em círculos evangélicos, ele foi um pioneiro na introdução de métodos e conclusões críticos no estudo do Novo Testamento, e isso o levou à controvérsia a respeito da inerrância. Após a publicação de seu comentário controverso sobre M ateus, ele foi obrigado a abandonar seu posto na ETS. W alter Christian Kaiser Jr. (1933-). Lecionou na W heaton College (1958) e na Trinity Evangelical D ivinity School (1966), antes de ir para o Gordon-Conwell Theological Seminary, em Boston (1993). Sua obra reflete uma abordagem conservadora ao Antigo Testamento e é marcada por um interesse em aplicação prática e pastoral. Entre seus vários livros, menção especial pode ser feita a The O ld T estam ent in contem porary p rea ch in g [O Antigo Testamento na pregação contemporânea] (1973), T owards an O ld T estam ent th eology \Teologia do A ntigo Testamento\ (1977), T ow ard an ex egetical th eology [Por uma teologia exegética] (1981), The uses o f the O ld T estam ent in the N ew [Os usos do Antigo Testamento no Novo] (1985) e Back to the fu tu r e : hints f o r in terp retin g biblical prop h ecy [De volta para o futuro: pistas para a interpretação da profecia bíblica] (1989). Ele também escreveu um comentário de Eclesiastes (1979). Ian Howard M arshall (1934-2015). Professor de Novo Testamento em Aberdeen, é autor de um importante comentário de Lucas (1978). Também

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escreveu comentários de Atos (1980), das Epístolas de João (1978), de 1 e 2T essalonicenses (1983) e de lPedro (1991). Entre outras obras encontram-se The origin s o f N ew T estam ent C hristology [As origens da cristologia do Novo Testamento] (1976), B ib lica l inspiration [Inspiração bíblica] (1982) e Jesu s the S a viou r [Jesus, o Salvador] (1990). Pupilo de F. F. Bruce, também supervisionou diversos estudiosos pesquisadores em estudos do Novo Testamento. GordonDonaldFee (1934-). Lecionou na Southern Califórnia College (1966), W heaton College (1969) e no Gordon-ConwellTheological Seminary, em Boston (1974), antes de ir para a Regent College, Vancouver (1986). Vindo de um contexto das Assembleias de Deus (pentecostal), sempre demonstrou um interesse especial em relacionar a obra do Espírito Santo ao texto bíblico e escreveu diversos livros e artigos sobre esse tema. Entre seus livros mais importantes estão N ew Testament textual criticism [Crítica textual do Novo Testamento] (1981), H ow to read the Bible fo r a ll itsw orth [Entendes o que lês?] (1982), N ew Testament exegesis [Exegese do Novo Testamento] (1982,1993), Gospel an d Spirit: issues in N ew Testament herm eneutics [Evangelho e Espírito: questões na hermenêutica do Novo Testamento] (1991), e God’s em p ow erin g presence: the H oly Spirit in the Pauline Epistles [O poder capacitador de Deus: o Espírito Santo nas cartas paulinas] (1994). Ele também escreveu comentários de 1 e 2Timóteo (1984), lCoríntios (1987) e Filipenses (1995).

Os herdeiros Peter Craigie (1938-1985). Lecionou em C algary até sua morte e escreveu diversos e importantes estudos do Antigo Testamento, incluindo comentários de Deuteronômio (1976), Ezequiel (1983), Salmos 1—50 (1983) e Profetas Menores (1984-1985). Sua obra póstuma, O ld T estam ent: background, g ro w th a n d co n ten t [O Antigo Testamento: contexto, crescimento e conteúdo] (1986), é uma introdução geral ao tema. Gerhard M aier (1937-). Orientador desde 1970 e agora reitor da Albrecht-Bengel-Haus, um centro de estudos em Tübingen, ele é provavelmente o principal estudioso bíblico conservador hoje na Alemanha. Seu livro D as E nde d er historisch-k ritischen M ethode [O fim do método histórico-crítico] (1974) causou grande alvoroço e levou a um debate público com Peter Stuhlmacher. Também publicou D ie Joh a n n esoffen b a ru n g u n d d ie K irch e [O Apocalipse de João e a igreja] (1981) e mais recentemente B iblische H erm eneutik [Hermenêutica bíblica] (1990; TI 1994), em que ele desenvolve um método sistemático de exe­ gese bíblica e exposição teológica.

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Edwin M asao Yamauchi (1937-). Lecionou na Rutgers University (1964) e, a partir de 1969, na M iam i University em Oxford, estado norte-americano de Ohio. É uma grande autoridade em gnosticismo e outras seitas periféricas con­ temporâneas do cristianismo primitivo. Entre suas várias publicações na área estão P re-christian gn osticism [O gnosticismo pré-cristão] (1973), The Scriptures a n d archaeology [As Escrituras e a arqueologia] (1980), N ew T estam ent cities in Western Asia M in or [As cidades do Novo Testamento na Ásia M enor ocidental] (1987) e P ersia a n d the B ible [A Pérsia e a Bíblia] (1990). Richard Thomas France (1938-2012). Diretor da Tyndale House (19781981) e reitor da W ycliffe H all, em Oxford, de 1989 a 1995, escreveu amplamente no campo dos estudos do Novo Testamento. Seu primeiro grande livro foi um estudo detalhado de Jesu s a n d the O ld T estam ent [Jesus e o Antigo Testamento] (1971); também produziu The evid en ce f o r Jesu s [Evidências a favor de Jesus] (1986) e um comentário de M ateus (1986). Sua obra mais recente é Women in the church’s m in istry: a test case f o r b iblical herm eneutics [Mulheres no ministério da igreja: um caso paradigmático para a hermenêutica bíblica] (1995), em que defende a ordenação de mulheres ao ministério da igreja. Klaus H aacker (1942-). Foi pesquisador no Institutum Iudaicum,Tübingen (1970-1974), e depois preletor e professor (1975) de Novo Testamento na Kirchliche Hochschule, em W uppertal. Tem estreitos laços com Otto M ichel e M artin Hengel e está entre os mais articulados estudiosos evangélicos hoje na Alemanha. Suas várias obras incluem D ie S tiftu n g des H eils: U ntersuchungen z u r Struktur d er joh a n n eisch en Theologie [A concepção da salvação: pesquisas sobre a estrutura da teologia joanina] (1972), D ie A utoritãt d er H eiligen S chrift [A autoridade das Escrituras Sagradas] (1972), N eutestam entliche W issenschaft: ein e E in fu h ru n g in F ragestellu ngen u n d M eth od en [Ciência do Novo Testamento: uma introdução a questões e métodos] (1981) e B iblische Theologie ais en ga gierte E xegese [Teologia bíblica como exegese aplicada] (1993), uma compilação de artigos e preleções originalmente escritos entre 1970 e 1992. John Edgar G oldingay (1942-). Leciona na StJohrís College, Nottingham, desde 1970, e depois passou à posição de reitor ali. Escreveu amplamente no campo da interpretação do Novo Testamento e buscou combinar o uso res­ ponsável de métodos críticos com um compromisso com a teologia bíblica ortodoxa. Seus escritos incluem Theological d iv ersity a n d the au thority o f the O ld T estam ent [Diversidade teológica e autoridade do Antigo Testamento] (1987), A pproaches to O ld T estam ent in terpretation [Abordagens à interpretação do Antigo Testamento] (1990) e M odels f o r S cripture [Modelos para as Escrituras]

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(1994). Também escreveu o comentário de Daniel na série de comentários Word (1989). G ordonjohn W enham (1943-). Filho de John Wenham e eminente auto­ didata na área de Antigo Testamento, lecionou em Belfast (1970) antes de se mudar para Cheltenham em 1981. Publicou um comentário de dois volumes de Gênesis (1987, 1994), bem como comentários de Levítico (1979) e Números (1981). Também foi um dos editores da quarta edição do N ew B ible C om m entary [C om entário bíblico Vida N ova], publicado pela InterVarsity. Seus comentários são notáveis por causa de critérios precisos de pesquisa filológica e por seu com­ promisso com posições teológicas conservadoras em algumas das questões mais sensíveis no estudo do Antigo Testamento. M oisés Silva (1945-). De origem cubana, lecionou na W estmont College em Santa Barbara, no estado norte-americano da Califórnia (1972), antes de ir para o W estm inster Theological Sem inary na Filadélfia (1981). Escreveu extensamente sobre questões hermenêuticas e hoje é um dos grandes repre­ sentantes da clássica posição de W arfield. Entre seus livros estão B ib lica l w ord s a n d th eir m ea n in g: an in trod u ction to lex ical sem an tics [Palavras bíblicas e seu significado: uma introdução à semântica léxica] (1983, 1994), H as the church m isrea d th e B ib le? The h istory o f in terp reta tion in th e lig h t o f cu rren t issues [A igreja não compreendeu a Bíblia? A história da interpretação à luz de questões atuais] (1987), God, la n gu a ge a n d S cripture: rea d in g th e B ib le in th e lig h t o f g e ­ n era l lin gu istics [Deus, linguagem e as Escrituras: interpretando a Bíblia à luz da lingüística geral] (1990), An in trodu ction to b ib lica l herm en eu tics: th e search f o r m ea n in g \Introdução à h erm en êu tica bíblica: a busca d e sign ifica d o] (1994, em coautoria com W . C. Kaiser) e P au line ex egesis: G alatians as a test case [Exegese paulina: Gálatas como um caso paradigmático] (1995). Também escreveu um comentário de Filipenses (1988). Donald A rthur Carson (1946-). Leciona na Trinity Evangelical Divinity School perto de Chicago e escreveu diversos estudos importantes do Novo Testamento, incluindo um magistral comentário de Joã o (1991). Também foi defensor muito ativo do lado conservador nos debates entre evangélicos ameri­ canos sobre a inerrância e o problema da hermenêutica bíblica. Christopher Joseph H erbert W right (1947-). Leciona Antigo Testamento na A li Nations Christian College perto de Londres, onde é reitor desde 1993. Escreveu diversos estudos importantes sobre teologia do Antigo Testamento, incluindo L iv in g as th ep eo p le o f G od (título no Reino Unido) / An eye f o r an eye (título nos Estados Unidos) [Vivendo como povo de Deus / Olho por olho]

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e G od’s p eop le in G ods la n d [O povo de Deus na terra de Deus] (1990). Tem grande capacidade para levar o estudo sólido ao alcance de não especialistas, e muitas de suas obras são dirigidas a esse público. Nicholas Thomas W righ t (1948-). Deão da Lichfield Cathedral (1993), coordenou a segunda edição da obra I n terp reta tion o f th e N ew T estam ent [Interpretação do Novo Testamento] (1988) de S. Neill. Escreveu obras de teologia do Novo Testamento, incluindo Climax o f th e co ven a n t: C hrist a n d the L a w in P au line th eo lo gy [O ápice da aliança: Cristo e a L ei na teologia paulina] (1991) e The N ew T estam ent a n d th e p eo p le o f G od [O Novo Testamento e o povo de Deus] (1992). Também escreveu um comentário de Colossenses e Filemom (1986) e está atualmente trabalhando em uma obra de cinco volu­ mes intitulada The N ew T estam ent a n d the question o f God [O Novo Testamento e a questão de Deus], da qual os primeiros dois volumes já haviam sido publi­ cados em 1995. Douglas John M oo (1950-). Lecionou na Trinity Evangelical Divinity School a partir de 1974 e depois na W heaton College. Escreve extensamente sobre temas do Novo Testamento, campo em que se destaca por seu estudo cuidadoso e minucioso. Suas principais obras até agora são The O ld T estam ent in the G ospel Passion n a rra tive [O Antigo Testamento na narrativa da Paixão no evangelho] (1983) e The ra p tu re:p re-, m id - o rp ost-trib u la tion a l [O arrebatamento: pré-, meso- ou pós-tribulacionista?] (1984), bem como comentários de Tiago (1985) e de Romanos (1996). Ben W itherington III (1951-). Atualmente ensinando no Asbury Seminary em Kentucky (1995), publicou diversos estudos no Novo Testamento, incluin­ do vários textos em que reavaliou o papel das mulheres. Suas principais obras incluem The C hristology o f Jesus [A cristologia de Jesus] (1980), Women in the m in istry o f Jesu s [As mulheres no ministério de Jesus] (1984), Women in the ea rliest churches [As mulheres nas primeiras igrejas] (1988), Women in th eg en esis o f C hristianity [As mulheres na gênese do cristianismo] (1990), Jesus, P aul a n d the e n d o fth e w o rld [Jesus, Paulo e o fim do mundo] (1992) e C onfiict a n d com m un ity in C orinth: a socio-rh etorical com m en tary [Conflito e comunidade em Corinto: um comentário sociorretórico] (1994). C raigLeonardB lom berg(1955-). Leciona no DenverTheological Seminary desde 1986 e é autor de diversos importantes estudos do Novo Testamento. Especialmente digno de nota é In terp retin g the parables [Interpretando as pará­ bolas] (1990), em que ele reexamina as parábolas de Jesus e questiona algumas das principais pressuposições da crítica moderna.

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As questões As principais questões de que o movimento evangélico desde 1945 tem buscado tratar podem ser expressas do seguinte modo: 1 . É p o ssív el m a n ter um estudo academ icam ente respeitável e um a posição teo­ logicam en te con servadora do tipo eva n gélico ortodoxo? Até certo ponto, a escola neo-ortodoxa de Karl Barth havia respondido a essa pergunta afirmativamente antes da guerra, mas a abordagem de Barth era inaceitável para evangélicos por causa de sua doutrina fraca das Escrituras. Com “ortodoxo”, os evangéli­ cos queriam referir-se à doutrina das Escrituras que havia sido elaborada por escolásticos protestantes do século 17 e que havia sido transmitida por meio de instituições como o Princeton Theological Seminary, cujo maior teólogo, Benjamin Breckenridge W arfield (1851-1921), havia desenvolvido a doutrina da infalibilidade e inerrância das Escrituras de um modo destinado a satisfa­ zer as necessidades de uma geração pós-crítica. A linha de W arfield foi mais tarde expandida e atualizada por teólogos evangélicos como Bernard Ramm (1916-1993) e James Innell Packer (1926-), mas ela não foi fundamentalmente alterada. Ela parece o ingrediente básico de toda a discussão doutrinária atual da natureza e da autoridade das Escrituras hoje entre evangélicos. 2 . É p ossível elaborar um tipo de ortodoxia básica que inclua um a am pla variedade de cristãos conservadores sem p erd er a coerência ? O movimento evangélico moderno é totalmente ecumênico — muito mais, de fato, do que qualquer outra ramificação da igreja. Antigas distinções denominacionais ainda existem, mas elas são não mais percebidas como barreiras do modo como eram antes. Até mesmo questões delicadas como o batismo estão cada vez mais sendo colocadas de lado, e elas agora raramente vem à tona como problemas práticos em círculos acadêmicos (embora possam muitas vezes ser discutidas como questões acadêmicas).Todavia, embora haja um ecumenismo prático entre os evangélicos no nível popular, por enquanto não há teologia sistemática alguma para acompanhar isso, de modo que é difícil saber em que princípios essa comunhão recente se deve fundamentar. 3. E p o ssív elfa z er p a rte gen u ín a de um a igreja e de um m undo acadêm ico mais amplos e ainda assim m anter um a identidade distin ta? Isso talvez seja o maior pro­ blema de todos para os evangélicos na presente época. Um evangélico anglicano provavelmente se sentirá mais próximo de um batista evangélico do que de outro anglicano, mas, se esse é o caso, o que o rótulo denominacional realmente sig­ nifica? Em círculos acadêmicos, é possível para evangélicos operarem de modo

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neutro, sem favorecer sua própria posição? Outros têm o mesmo problema, ob­ viamente, em graus variados, mas ele é mais agudo para os evangélicos por causa da natureza missionária de suas convicções. Eles não são uma igreja, como os católicos romanos, e, portanto, não têm identidade alguma fora da que criaram para si mesmos. Isso envolve uma rejeição do pluralismo teológico, e os evangéli­ cos não conseguem se sentir inteiramente à vontade em uma atmosfera em que tal pluralismo é encorajado. Recentemente, têm surgido sinais de que os evangélicos estão preparados para ir ao encontro dos conservadores teológicos nas comunhões católica e ortodoxa oriental, e isso pode se mostrar mais fácil do que dialogar com liberais em suas próprias igrejas. M as os conservadores teológicos também tendem a se apegar firmemente àquelas doutrinas distintas que causaram a divisão eclesiástica no passado, e isso impede qualquer movimento rumo à unidade. 4. É p ossível ser academ icam ente respeitável e ao m esm o tem po ter um compromisso com a eva n geliz ação? O movimento evangélico é um movimento missionário, e, embora muitos possam não perceber dificuldade alguma em manter uma posição acadêmica na sala de aula e uma posição evangelística no púlpito, a história pode mudar quando se trata de proselitismo na comunidade acadêmica. Será que os evangélicos estão interessados em converter outros estudiosos à sua perspectiva teológica ou será que se contentam em infiltrar no sistema o número suficien­ te de pessoas de suas fileiras para no fim dominá-lo? Não há dúvida alguma de que o medo de proselitismo tem sido uma grande barreira à aceitação dos evangélicos pela comunidade acadêmica em geral; mas será que os evangélicos podem abandonar isso sem perder um componente essencial de sua identidade? A experiência tem mostrado que quanto mais “respeitável”for uma igreja, menos ela pregará o evangelho; quão grande é esse perigo hoje para os evangélicos? 5. É p o ssível que evangélicos participem plen a m en te dos debates teológicos e her­ m enêuticos m odernos? Um evangélico pode ser um teólogo da libertação ou um feminista? É possível adotar a nova hermenêutica como um método para interpre­ tar a Bíblia? Até que ponto os evangélicos têm a obrigação de defender a teologia de gerações passadas? H á respostas pré-programadas para todas as perguntas ou há liberdade para descobrir novas verdades nas Escrituras? Se sim, essas verdades po­ dem ser testadas nas igrejas sem suscitar a acusação de heresia? Conservadorismo e inovação não necessariamente andam juntos, e o temperamento humano é tal que os conflitos são inevitáveis nesse ponto. O movimento evangélico, por definição, é um movimento conservador, de modo que os inovadores é que são invariavelmente suspeitos. Ou será que os inovadores vão predominar e, no meio desse processo, vão desarraigar os evangélicos de seus firmes fundamentos?

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Os métodos de interpretação A abordagem de Warfield ou a antiga abordagem de Princeton Qualquer análise do movimento evangélico moderno e de sua interpretação da Bíblia precisa começar com a abordagem formulada por B. B. Warfield em uma série de artigos publicados de 1880 até sua morte em 1921 e depois com­ pilados em The inspiration a n d au thority o f the B ible \A inspiração e autoridade da B íblia] (1948). A posição de W arfield é reconhecida como clássica tanto pelos próprios evangélicos — que, em geral, continuam professando sua lealdade a ela — quanto também por aqueles que atacam a posição evangélica, normalmente associada a Warfield. Em essência, Warfield seguiu a tradição calvinista escolástica que ele havia herdado do teólogo suíço do século 17 Francisco Turretin. A isso poderiam ser acrescentados os frutos da filosofia escocesa do “senso comum” desenvolvida no século 18. Ele acreditava na complementariedade basilar da revelação geral e da revelação especial, sendo “revelação geral” o termo protestante comum para expressar o que Tomás de Aquino e a tradição católica chamavam de “teologia na­ tural”. Isso significava que a teologia especial concedida por Deus nas Escrituras se encaixaria com o que podia ser conhecido pela mente humana independente­ mente. Em outras palavras, as afirmações de verdade da Bíblia podiam ser testadas pelos critérios normais da história, arqueologia e outras ciências relevantes. Isso significava que a primeira tarefa do teólogo precisava ser estabelecer um método de investigação universalmente válido e convincente. Nas palavras dele: [O cristianismo] veio ao mundo vestido com a missão de chegar ao domínio pela argumentação. Outras religiões podem apelar à espada ou buscar algum outro modo de se propagar. O cristianismo apela à razão correta e se destaca entre todas as religiões, portanto, como uma religião distintamente apologética. A influência escocesa convenceu Warfield de que o conhecimento de Deus era adquirido do mesmo modo que qualquer outra forma de conhecimento — por meio dos sentidos. Ele acreditava que era possível professar a fé em Deus com base em provas naturais, sem a intervenção do Espírito Santo. Em contrapartida, ele também afirmava que a obra do Espírito era essencial a fim de que a fé obtida pela razão viesse a se tornar um meio de salvação. Como ele disse: “A ação do Espírito Santo em dar fé não ocorre independentemente da evidência, mas junto com a evi­ dência; e num primeiro momento consiste em preparar a alma para o recebimento da evidência”. Aplicando sua teoria à Bíblia, Warfield afirmou que as Escrituras

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continham marcas (indicia) de sua perfeição que poderiam ser percebidas pela mente humana, mas não plenamente apreciadas até que a mente fosse renovada pelo Espírito. Em suas próprias palavras: “Quando a alma é renovada pelo Espírito Santo para uma percepção da natureza divina das Escrituras, é por meio das in ­ dicia dessa natureza divina que ela é levada a uma confiança adequada na natureza divina das Escrituras”. Assim, a ciência poderia demonstrar que as Escrituras eram factualmente inerrantes, mas isso não teria significado algum a não ser que — e até que — a mente fosse transformada pelo poder salvador de Deus. Nesse ponto, a inerrância da Bíblia se tornaria um dos fundamentos da vida cristã, visto que seria pela luz da Palavra de Deus inerrante que o cristão saberia como viver. Ao avaliarmos a doutrina de Warfield, é essencial lembrar que ele começava com um princípio geral e passava disso à análise de casos específicos. Nisso, seu método era exatamente o oposto do normalmente exercido por estudiosos críticos. O crítico moderno prefere examinar cada uma das evidências indepen­ dentemente e então juntá-las em um todo maior. Se for possível mostrar que as evidências estão corretas, então o crítico não terá objeção alguma à noção de “inerrância”, pois será um fato demonstrado como verdadeiro. Warfield, em contrapartida, iniciava com a pressuposição anterior de inerrância, com base no fato de que a Bíblia era a Palavra de Deus que não podia errar, e lidava com objeções a essa visão à medida que apareciam no decorrer dos estudos. Essa diferença fundamental de abordagem, mais do que qualquer outra coisa, explica as dificuldades que muitos estudiosos críticos têm tido com essa doutrina. Warfield explica assim esse conceito de autoridade bíblica: Assim, a autoridade das Escrituras está no simples fato de que os agentes de Deus imbuídos de autoridade na fundação da igreja a concederam à igreja que fundaram. Toda a autoridade dos apóstolos está por trás das Escrituras e toda a autoridade de Cristo se encontra por trás dos apóstolos. As Escrituras são simplesmente o código legal que os legisladores da igreja lhe concederam. Essa afirmação permitiu que W arfield fizesse uma distinção importante entre o cânon das Escrituras e outros escritos apostólicos que não pertenciam a ela. De acordo com ele, não eram aqueles livros que os apóstolos escreveram, mas aqueles que eles deram à igreja como lei, que constituem o corpo imbuído de autoridade dos escritos bíblicos. Nessa compreensão da inspiração bíblica, W arfield afirmou estar seguindo a antiga tradição da igreja, de acordo com a qual o Espírito havia dirigido a escolha das palavras dos autores. Isso significava que a Bíblia era “verbalmente

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inspirada”, embora de um modo menos mecânico do que normalmente havia sido afirmado em épocas anteriores. W arfield queria conceder o máximo de autonomia intelectual possível aos autores humanos das Escrituras, motivo pelo qual ele rejeitou o modelo cristológico como base para sua doutrina da inspira­ ção. Em sua opinião, a Bíblia não era o fruto de união hipostática entre Deus e a humanidade, em que a única voz falando teria sido a voz de Deus. Em vez disso, ela era o fruto de um esforço cooperativo entre Deus e a humanidade, em que ambos desempenharam sua função na produção de uma obra divino-humana. O resultado final de tudo isso era que a alegação de inspiração e de auto­ ridade divinas da própria Bíblia poderia ser testada pelos critérios científicos normais. Warfield escreveu: Que a doutrina da Bíblia seja, sim, testada pelos fatos e que o teste seja feito de modo ainda mais — e não menos — rigoroso e penetrante por causa das grandes questões que pairam sobre ela. Se os fatos são inconsistentes com a doutrina, que todos saibamos disso e saibamos disso tão claramente que não haja dúvida alguma acerca da questão. W arfield acreditava que os “fatos” incluíam tudo que a Bíblia menciona­ va, quer estivessem relacionados às questões de fé, quer não. Para ele, o que as Escrituras diziam sobre história ou ciência natural tinha tanta autoridade quanto qualquer outra coisa que pudessem conter. Esse é um aspecto que os oponentes da teoria de W arfield muitas vezes consideram seu principal ponto fraco, mas W arfield pensava que podia fazer essa afirmação com segurança, pois acreditava que a Bíblia enfrentaria qualquer crítica séria dirigida contra ela. Discrepâncias que os críticos haviam notado podiam ser explicadas de algum modo, entre vários. Em primeiro lugar, o texto pode ter sido corrompido na transmissão. W arfield não excluiu essa possibilidade, mas a admitiu abertamente. Para ele, somente os textos originais (os chamados “autógrafos”) eram inspirados, mas, embora eles tenham sido perdidos, o que agora temos é suficientemente próxi­ mo deles para que faça pouca diferença prática. A segunda possibilidade é de nosso presente conhecimento ser inadequado; quando há discrepância entre o que pensamos ter acontecido e o que a Bíblia realmente diz, é melhor confiar na evidência do texto até que chegue o momen­ to em que seja possível provar que isso está errado. Uma terceira possibilidade é que podemos não ter compreendido a intenção do autor. Por exemplo, a autoridade de um livro como Jó pode não depender de conseguir mostrar que essa pessoa chegou a existir na terra de Uz; pode muito bem

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ser que o autor pretendia que Jó fosse um personagem fictício desde o início. Essa teoria de “intenção autoral” pode ser bastante esticada; seguidores posteriores de Warfield às vezes iam tão longe a ponto de sugerir, por exemplo, que a atribuição de Cântico dos Cânticos a Salomão fazia parte da intenção do autor de o associar com a tradição de sabedoria e não tinha relação alguma com o Salomão histórico. Do mesmo modo, R. H. Gundry se sentiu livre para sugerir, em seu comentário de Mateus, que a visita dos magos à família santa era um midrash fictício. Por causa disso, agora é possível encontrar defensores da “inerrância” cujas conclusões críticas mal diferem daquelas de estudiosos não comprometidos com a posição de Warfield. No entanto, embora alguns teólogos tenham mostrado isso e tenham tentado abandonar o modelo de Warfield como uma hipótese que funciona na interpretação bíblica, a resistência a esse movimento tem sido forte. Parece que a maioria dos evangélicos permanece comprometida com uma posição teológica parecida com a que Warfield afirmou, mesmo que não seja sempre consistente ou nem sempre saiba como deve aplicá-la em uma determinada situação. Essa aparente contradição é possível por causa da diferença de método entre Warfield e a pesquisa crítica; aquele, como já afirmamos, começa com um princípio geral; já esta, com exemplos específicos. É onde essas duas abordagens colidem que os problemas sur­ gem, e os diferentes estudiosos evangélicos seguem seus próprios caminhos. No final da década de 1960 e início da de 1970, a questão da inerrância das Escrituras mais uma vez se tornou importante nos Estados Unidos. Os evangé­ licos em outros lugares também foram influenciados por isso, mas em um grau muito menor. O The International Council on Biblical Inerrancy [Conselho Internacional de Inerrância da Bíblia] foi criado em 1977 com o expresso propósi­ to de expor o ensino de Warfield em uma roupagem moderna. Por seu intermédio foi convocada uma conferência em Chicago de 26 a 28 de outubro de 1978 e se produziu uma declaração sobre o tema que, era esperado, se tornaria comum em círculos evangélicos. Essa declaração consiste nas cinco afirmações seguintes: 1. Deus, sendo ele próprio a Verdade e falando somente a verdade, inspirou as Sagradas Escrituras a fim de, desse modo, revelar-se à humanidade perdida, por meio de Jesus Cristo, como Criador e Senhor, Redentor e Juiz. As Escrituras Sagradas são o testemunho de Deus sobre si mesmo. 2. As Sagradas Escrituras, sendo a própria Palavra de Deus, escritas por homens preparados e supervisionados por seu Espírito, possuem autoridade divina infalível em todos os assuntos que abordam: devem ser cridas, como mandamento divino, em tudo o que determinam; aceitas, como penhor divino, em tudo que prometem.

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3 .0 Espírito Santo, seu Autor divino, ao mesmo tempo nô-las confirma por meio de seu testemunho interior e abre nossa mente para compreender seu significado. 4. Tendo sido na totalidade e verbalmente dadas por Deus, as Escrituras não possuem erro ou falha em tudo o que ensinam, quer naquilo que afirmam a respeito dos atos de Deus na criação e dos acontecimentos na história mundial, quer no testemunho que dão sobre a graça salvadora de Deus na vida das pessoas. 5. A autoridade das Escrituras fica inevitavelmente prejudicada, caso essa inerrância divina absoluta seja de alguma forma limitada ou desconsiderada, ou caso dependa de um ponto de vista acerca da verdade que seja contrário ao próprio ponto de vista da Bíblia; e tais desvios provocam sérias perdas tanto para o indivíduo quanto para a igreja. A essas afirmações foram anexados dezenove artigos, que tentaram elucidar seu significado. O The Council on Biblical Inerrancy logo percebeu que não era suficiente reafirmar a defesa da inerrância bíblica por si mesmo. Igualmente importante era a questão de como se deveria interpretar o texto inerrante, e isso levantou sérias questões hermenêuticas que a abordagem de Princeton não ha­ via precisado enfrentar. Em uma segunda conferência em Chicago, que ocorreu de 10 a 13 de novembro de 1982, um conjunto de mais 25 artigos foi publicado, tratando sobretudo de problemas hermenêuticos. Pretendia-se que esses artigos, a exemplo de seus predecessores, se transformassem em um fundamento na interpretação evangélica moderna. Até que ponto as duas declarações de Chicago podem ser consideradas representativas do pensamento evangélico atual sobre a interpretação bíblica? Muitos estudiosos evangélicos da Bíblia, e provavelmente quase todos aque­ les fora dos Estados Unidos, hesitariam em aceitá-las integralmente, quer por discordarem de pontos específicos, quer por não acreditarem que declarações desse tipo sejam necessárias ou mesmo úteis. Certamente, uma instituição co­ mo a Tyndale Fellowship nunca as adotaria, nem seu equivalente americano, o Institute for Biblical Research, faria isso. A razão disso é que poucos exegetas evangélicos têm mostrado indícios de aplicar os princípios de Chicago à sua própria obra com qualquer consistência e muitos as veem como teologicamente desnecessárias e hermeneuticamente questionáveis. Além disso, por mais con­ servadores que possam ser, os exegetas são extremamente resistentes a qualquer formulação dogmática que possa lim itar sua liberdade de investigação. Em contrapartida, a inerrância continua sendo defendida por teólogos sis­ temáticos evangélicos, sobretudo por ser a única visão plenamente coerente com

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uma doutrina bíblica de Deus. Segundo esse argumento, se a Bíblia contém erros, ela dificilmente pode afirmar ser a Palavra do Deus onisciente e onipotente. E difícil não concluir que há uma grande diferença de abordagem entre muitos exegetas evangélicos, de um lado, e os principais teólogos evangélicos, do outro. Se essa tensão pode ser resolvida para a satisfação de todos é algo que pode ser questionado; parece mais provável que os evangélicos continuarão vivendo com diferenças de opinião nessa questão no futuro próximo.

Conclusão: pontos fortes e pontos fracos da interpretação evangélica Os principais pontos fortes da interpretação bíblica evangélica podem ser resu­ midos assim: 1. Sua qualidade é universalmente reconhecida no campo da crítica textual. Graças ao trabalho cuidadoso e paciente de gerações de estudiosos, agora temos textos bíblicos provavelmente o mais próximo possível dos “autógrafos”. Os evangélicos têm desempenhado um importante papel na realização disso e con­ tinuam cultivando habilidades lingüísticas e textuais em um grau que encontra raros paralelos em outros segmentos. 2. Ela está ficando cada vez mais conhecida na produção de comentá­ rios bíblicos. Agora há várias séries rotuladas de evangélicas. Elas vão do Communicators Commentary, que se destina sobretudo a pregadores,passando pelos comentários da série Tyndale, igualmente introdutórios, embora conte­ nham mais comentários críticos, e chegando aos comentários completos sobre os textos grego e hebraico, dos quais os mais notáveis são os das séries New International Commentaries, Word Commentaries e New International Greek Text Commentary. Várias outras séries estão disponíveis ou no prelo, e certa­ mente outras virão a lume. 3. Ela é líder no campo da interpretação bíblica. O zelo missionário dos evangélicos tem mantido vivo o desejo de traduzir a Bíblia para o máximo de idiomas mundiais possível. Ao mesmo tempo, há um desejo semelhante de produzir versões novas e melhores nos principais idiomas do mundo e, notavel­ mente, em inglês. Os evangélicos nem sempre produzem as melhores traduções, mas eles têm o maior número e a maior variedade delas. No presente momento, o monumento principal de suas técnicas e qualidades de tradução em inglês é a New International Version (1979), que substituiu amplamente versões anterio­ res em popularidade entre evangélicos.

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Em contrapartida, seus principais pontos fracos podem ser resumidos assim: 1. H á uma disparidade notável entre teoria e prática. Os teólogos evan­ gélicos têm desenvolvido uma compreensão detalhada da inerrância bíblica e dos princípios da hermenêutica, mas eles nem sempre são aplicados à própria produção de comentários. Não há consenso algum a respeito da estrutura teo­ lógica em que a aplicação desses princípios afirmados pode ocorrer. A doutrina desempenha um papel bastante limitado em muitos círculos evangélicos, que no nível popular são muitas vezes extremamente experienciais e individualistas. A recente expansão de tendências carismáticas, não controladas por princípios teológicos, é indicativo disso. 2. Ela tende a não conseguir chegar a uma opinião comum em áreas da Bíblia nas quais falta clareza. Esse havia sido o problema com a ordem ecle­ siástica, e isso ressurge hoje em discussões sobre o papel apropriado da mulher, sobre o exercício dos dons espirituais e sobre temas afins. Certa relutância em levar a tradição da igreja a sério pode contribuir para essa desordem, e os evangélicos muitas vezes acham difícil encontrar utilidade na história da igreja. O conceito de sola S criptura e a fé na presença do Espírito Santo ha­ bitando em nós hoje são muitas vezes muito fortes para que as afirmações da tradição sejam altamente valorizadas. M as também é necessário dizer que aqueles evangélicos que reconhecem a importância da tradição tendem a ser os mais interessados em defender as práticas de suas próprias denominações, conscientemente ou inconscientemente transformando os apóstolos em pres­ biterianos ou batistas. 3. Ela tende a ser reativa e não proativa. Os evangélicos não ditam a pauta para a vida da igreja maior, e eles não estariam bem preparados para uma tarefa como essa. Por mais de um século agora seu interesse tem sido principalmente defender posições profundamente arraigadas, em vez de abrir novos caminhos, e disso resulta o fato de que muitas vezes as novidades são vistas como heresias, e assim o mundo evangélico não chega a lugar algum. Quando eles eram meno­ res em número, os evangélicos simplesmente viam as coisas acontecerem, mas agora, sendo muito mais influentes, já não podem fazer isso. O perigo é que, sem uma teologia viável para abranger questões não expressamente afirmadas nas Escrituras, os evangélicos irão ser convencidos a aceitar o que desejam os elementos mais liberais na igreja ou irão se dividir mais uma vez, por motivos um tanto distintos daqueles da década de 1920, mas com uma perda semelhante de força e influência durante mais uma geração.

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4. Ela tende a ter mais interesse em ganhar respeitabilidade acadêmica do que em alimentar espiritualmente seu rebanho. Esse é um grande problema que os estudiosos evangélicos precisam enfrentar. Até que ponto é apropriado adotar a linguagem e os conceitos do mundo acadêmico, se isso significa se distanciar da congregação comum? Um exemplo simples bastará: Um evangélico deveria ser preparado para falar sobre o “evento da Páscoa” em vez da ressurreição de Cristo? O que será que o primeiro termo comunica, senão talvez a suspeita de se tratar de um modo de evitar a fé na ressurreição física de Jesus? A força tra­ dicional dos evangélicos foram suas fortes ligações com o cristão comum, mas na presente época isso está em perigo de se perder a favor da busca exclusiva de objetivos e interesses acadêmicos. O que o futuro reserva para o movimento evangélico conservador? No que diz respeito ao trabalho individual de estudiosos, sem dúvida alguma os evan­ gélicos agora estão participando de grandes debates acadêmicos em um grau que teria abismado a geração que lembrava as controvérsias “fundamentalistas” da década de 1920. Tanto em qualidade como em quantidade, os trabalhos des­ ses indivíduos estão entre os melhores atualmente, e quando foram atacados, como por exemplo por J. Barr (1977), estudiosos que em nenhum sentido se identificariam com a esfera evangélica saíram em sua defesa. Contudo, assim como isso aconteceu, também ficou mais difícil defender a existência contínua de organizações claramente evangélicas. Qual seria a necessidade da Tyndale Fellowship, se seus membros podem tran­ sitar livremente em círculos acadêmicos? Inversamente, por que uma sociedade desse tipo desejaria excluir estudiosos simplesmente por não compartilharem de certa teologia conservadora? A única justificativa para a existência contínua des­ sas sociedades é que sua posição teológica é diferente da posição da maioria dos grandes estudiosos, porém importante demais para ser descartada. Para os evan­ gélicos, a Bíblia é a Palavra de Deus divinamente inspirada, mesmo que muitos deles achem difícil aceitar a “inerrância” como o modo correto de expressar isso, e é o poder de vida eterna para aqueles que ouvem e obedecem à sua mensagem. Enquanto os evangélicos continuarem crendo nisso, eles manterão uma existên­ cia distinta, mesmo que menos separada do que no passado. Fundamentalmente, é sua doutrina (e não seus métodos ou conclusões exegéticas) que distingue os estudiosos evangélicos de outros no campo, e é precisamente esse fator que está sujeito a continuar provocando certo desconforto na comunidade acadêmica maior. Se, e até que ponto, esse senso duradouro de “alteridade”e estranheza pode ser superado, é uma pergunta que somente o futuro pode responder.

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ESTUDO DE CASO: ATOS A interpretação de Atos do Apóstolos tem ocupado um lugar central na discussão das origens cristãs primitivas desde a época de F. C. Baur e da escola de Tubingen e tem tido grande importância na luta dos evangélicos contra tendências liberais na crítica bíblica. Baur acreditava que Atos era uma síntese entre formas judaicas e gentias de cristianismo e que o livro vinha de uma época muito posterior à de Paulo ou Lucas. Em sua opinião, seu valor histórico era praticamente nulo. Desde a época de Baur, tem havido uma batalha a respeito da fidedignidade de Lucas como historiador e, como conseqüência, a respeito da natureza do cristianismo primitivo. Nesta análise, examinaremos brevemente as visões tradicionais do livro, depois a tese de Tübingen e as respostas a ela e, por fim, dois comentaristas mo­ dernos que melhor representam as tradições opostas no estudo atual.

Os estudos pré-críticos Atos foi supreendentemente pouco estudado na época anterior aos estudos críti­ cos. Do período pré-Reforma, há somente 92 livros ou fragmentos sobreviventes que tratam dele. Deles, os mais antigos são de Orígenes e seu contemporâneo, Panfílio de Cesareia. Do quarto século, há comentários de Efrém, o Sírio, Dídimo, o Cego, Eusébio de Emesa e Eutálio, o Diácono. O quinto século nos deu obras de João Crisóstomo, Cirilo de Alexandria, Amônio de Alexandria, Hesíquio de Jerusalém e Arátor. Cada um dos séculos posteriores até o século 12 produziu um comentário, com exceção dos séculos 6 e 1 0 , em que há dois, e do século 1 1 , em que não houve nenhum. Se os listarmos por séculos, temos o seguinte quadro: Século

Siríaco

6

7

Grego Ecumênio André de Cesareia

Latim Cassiodoro Beda

8

9 10

Isho’dad de Merv

12

Dionysius bar Salibi

Teofilato de Ocre

Leo Magistro

A ampla variedade de idiomas e lugares de origem indica que não havia tradição comum alguma; com a exceção de Teofilato, que deve ter conhecido

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Ecumênio, provavelmente não houve absolutamente nenhum contato entre esses autores. O primeiro comentário moderno sobre Atos foi escrito por Calvino (1552, 1554), que não mostrou interesse algum pelos problemas de autoria, data ou contexto histórico. Sua compreensão de Atos era que o livro é uma história sagrada destinada a mostrar que Deus sempre se importou com sua igreja e sempre esteve preparado para protegê-la. Ele colocou grande ênfase no papel importante atribuído ao Espírito Santo no texto, um aspecto que desde então tem sido universalmente reconhecido. Calvino também demonstrou uma cons­ ciência da importância dos discursos na narrativa e sabia, além disso, que o livro canônico de Atos tinham uma natureza bem diferente dos contos fantasiosos relatados nos vários Atos apócrifos. Calvino nunca questionou a historicidade essencial do texto e, quando a ocasião exigia, entrava em detalhes históricos e geográficos relevantes à sua exposição. Ele, no entanto, estava preparado para reconhecer que Lucas pode não ter sido inteiramente preciso em seu relato, como, por exemplo, quando disse que Paulo falou em “hebraico” (Atos 22.2) e não em “aramaico”. No entanto, esses são pontos secundários que quase sempre têm uma explicação satisfatória que não prejudica a historicidade geral do texto. O grande avanço seguinte no estudo de Atos foi feito por J. A. Bengel (1734), que mostrou que o livro é um relato dos Atos do Senhor ressurreto habitando em sua igreja por meio de seu Espírito Santo e também que Atos coloca ênfase especial no progresso triunfante do evangelho de sua origem em Jerusalém até o centro do mundo conhecido — Roma. Outro dos primeiros comentaristas de expressão foi W . Paley (1790), o primeiro a analisar em detalhes a relação entre o Paulo das cartas e o Paulo de Atos. Seu método era explorar as cartas e procurar “coincidências não intencionais” que correspondessem ao relato em Atos. Sua pressuposição básica era que nenhum dos autores conhecia a obra do outro e que, portanto, essas “coincidências” demonstrariam a verdade da história subjacente. Levando em consideração a natureza primitiva da pesquisa de Paley, é notável o número de vezes que ele acertou. Hoje, há um consenso entre a maioria dos comentaristas de que Lucas escreveu Atos sem consultar as cartas de Paulo e muitas das “coincidências” sobreviveram ao teste do tempo. Paley enfatizou as coincidências entre as cartas e Atos e acreditava que elas eram suficientes para garantir a historicidade substancial deste último. Entretanto, somente alguns anos depois, F. C. Baur adotaria uma abordagem bem diferente. Para ele, eram as diferenças entre essas duas fontes primárias que importavam, e era necessário confiar nas cartas em casos de divergência.

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Já na época de Paley, J. D. M ichaelis havia se perguntado por que Atos havia sido escrito. Estava claro para ele que Lucas não estava escrevendo uma história geral da igreja nem mesmo da vida de Paulo, visto que, se qualquer uma dessas coisas fosse seu propósito principal, ele teria incluído muito mais informações. M ichaelis concluiu que o propósito de Atos era duplo. Em primeiro lugar, ele tinha a intenção de mostrar que a verdade da religião cristã foi demonstrada por um derramamento do Espírito Santo em poder que operou milagres no dia de Pentecostes — um fato que todos os que criam em Cristo tinham a obrigação de reconhecer. Em segundo lugar, Lucas queria mostrar que o evangelho era tanto para os gentios como para os judeus e que, enquanto os gentios o receberam com entusiasmo, os judeus perseguiram Paulo por admiti-los na igreja.

A crítica histórica e o desenvolvimento da hipótese de Tübingen A primeira pessoa a questionar a historicidade de Atos foi W . M . L. De Wette (1826). Ele acreditava que Lucas tinha em mente escrever uma história do cris­ tianismo primitivo e que as características especiais mencionadas por M ichaelis foram acidentais. Os defeitos na história eram o resultado da incompetência do autor, e não parte de um plano deliberado. Em especial, ele rejeitou qualquer sugestão de que Lucas pudesse ter conhecido Paulo pessoalmente ou viajado com ele; as chamadas passagens “nós” no texto (16.10-17; 20.5-15; 21.1-17; 27.1—28.19) são fundamentalmente ficções literárias. De W ette acreditava que o livro havia sido escrito em algum momento após 70 d. C. e que a narrativa havia sido interrompida em cerca de 62 d.C. porque Lucas não teve tempo ou capacidade para dar continuidade à história. Esse foi o ponto que o estudo crítico de Atos alcançou antes do início do trabalho de Baur. Ele primeiro apresentou sua tese de que a igreja primitiva era um corpo não homogêneo, dividido entre várias facções, em um artigo escrito sobre ICoríntios (1831). Na verdade, havia somente duas tendências em ação, apesar da multiplicidade de grupos. Paulo havia rompido totalmente com os apóstolos na igreja de Jerusalém e estava efetivamente pregando outro evangelho, o da salvação pela fé sem obras. Os outros apóstolos, em contraste, não haviam saído plenamente do judaísmo e permaneceram ligados a uma justiça por obras que acabaria contribuindo para a construção do “catolicismo primitivo”. Baur não aplicou essa tese a Atos nesse estágio, mas obviamente ela foi fundamental para toda sua abordagem. Em 1838, ele sugeriu pela primeira vez que Atos era

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a obra de um paulinista que estava tentando unir os dois lados ao mostrar que Paulo era mais petrino do que a maioria das pessoas imaginava e, inversamente, que Pedro era mais paulino. Entre outras coisas, isso naturalmente levou a uma minimização das diferenças entre os dois apóstolos, que haviam sido claramente expressas em Gálatas. As ideias de Baur foram levadas adiante e desenvolvidas por seus discípulos. A. Schwegler (1846) acreditava que Atos era uma tentativa de reconciliar gru­ pos opostos na igreja e que seu autor usou a história livremente a fim de alcançar esse objetivo. De acordo com ele, o livro reflete a situação da igreja na primeira metade do segundo século, quando o grupo judaico supostamente ainda domi­ nava. E. Zeller (1854) acreditava que o dualismo Pedro-Paulo era uma invenção do autor, que estava mais interessado em explicar e resolver os conflitos de sua própria época (início do segundo século) do que em descrever as verdadeiras origens apostólicas do cristianismo. O fato de que Atos não realça a dicotomia fé-obras do mesmo modo que Gálatas ou Romanos era prova suficiente de que o livro era de uma época relativamente tardia, quando essa controvérsia especí­ fica já estava perdendo importância. O retrato de Atos feito pela hipótese de Tübingen agora havia toma­ do forma, mas quanto mais claro ficavam seus contornos gerais, mais esse retrato se mostrava vulnerável aos ataques envolvendo detalhes. Em 1851, G. Lechler acusou os teólogos de Tübingen de terem inventado um cenário extremamente improvável para o desenvolvimento do cristianismo primitivo. A ideia de que Paulo havia rompido totalmente com os outros apóstolos e começado a pregar um evangelho diferente o chocava como algo totalm en­ te improvável. Lechler afirmou que Paulo observava a lei mosaica quando apropriado e não havia rompido tanto com o judaísm o quanto Baur e outros afirmavam. A inda mais importante, ele defendeu que o cristianismo judaico perdeu influência após 70 d.C . e não poderia ter desempenhado o papel que a escola de Tübingen atribuiu a ele após 100 d.C . A igreja católica, portanto, não surgiu como uma síntese de cristianismos judaico e gentio, mas emergiu de um ambiente exclusivamente gentio. As suas características legalistas e “judaizantes” eram o produto de sua própria evolução interna, e não o resul­ tado da influência judaica. A tese de Tübingen foi modificada ainda mais por diversos estudiosos na Alemanha, mas, apesar de todas as mudanças que foram sugeridas, um aspecto principal permaneceu dominante em todas elas: o Paulo de Atos era uma pessoa diferente do Paulo das cartas. De modo geral, este era considerado

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autêntico e aquele, uma reconstrução fictícia de um paulinista exaltador de heróis, embora nem todos concordassem com isso. Houve uma pequena rea­ ção na outra direção, liderada por A. Loman (1882) e R. Steck (1888), ambos acreditando que o Paulo das cartas era o personagem fictício, recriado por uma escola de discípulos que de fato escreveram as cartas, e que Atos oferecia um relato histórico mais fidedigno.

Após Tübingen Na últim a metade do século 19, foi ficando claro que a tese de Baur não estava ganhando aceitação geral. Fora da Alem anha, ela foi quase universalmente rejeitada, sobretudo na Inglaterra, em que as pesquisas de J. B. Lightfoot se dirigiram contra ela. Até mesmo na Alemanha, a atenção se afastou dos in ­ teresses de Baur e se voltou à questão das fontes usadas pelo autor, e houve muitíssimas tentativas de mostrar que Lucas havia usado diversos escritos anteriores, incluindo um diário de viagem escrito por um dos companheiros de Paulo. M as essa crítica da fonte acabou demonstrando ser relativamente estéril, visto que todos vieram a compreender que Lucas havia se apropriado da história, independentemente das fontes nas quais pudesse ter se baseado. A forma mais extrema dessa visão foi apresentada por A . Loisy (1920), que sugeriu que um relato originalmente histórico da igreja prim itiva havia sido drasticamente revisado por um paulinista interessado em escrever um docu­ mento para exaltar seu herói. O estágio seguinte foi marcado pela obra de M . Dibelius (1923), que apli­ cou técnicas de crítica da forma ao estudo de Atos. Dibelius mostrou que Atos não podia ser dividido em unidades menores do mesmo modo que o Evangelho de Lucas e desse modo concluiu, que Lucas não tinha a mesma abundância de fontes para utilizar. Atos era essencialmente uma composição original, redigida com base em um diário de viagem e complementada com um alto volume de dados de Lucas, em especial os diálogos. Dibelius descobriu nada menos que 24 deles, compondo quase um terço do texto. Era nesses diálogos que o cerne da mensagem de Paulo seria encontrado, pois eles continham sua compreensão tanto do evangelho como de Paulo. Dibelius continuou desenvolvendo suas posições durante o restante de sua vida, e uma compilação final de suas ideias sobre o tema de Atos foi publicada em 1951, quatro anos após sua morte. Suas conclusões podem ser resumidas assim:

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1. Lucas foi o autor de Atos, e não meramente um compilador de tradições existentes sobre Paulo. 2. Lucas foi um legítimo historiador, mas no sentido antigo e não no mo­ derno. Isso significa que ele muitas vezes modificava acontecimentos a fim de apresentá-los como “característicos”. Ele exagerou os aspectos comunitários da vida da primeira igreja a fim de enfatizar o fenômeno da vida em comum, do mesmo modo que ele minimizou os conflitos entre os apóstolos a fim de realçar a realidade de um ideal apostólico que a igreja deveria seguir. 3. Lucas era um pregador com uma mensagem definida para contar sobre a ordenação providencial divina dos acontecimentos. O que ele fornece em Atos não é meramente um relato de acontecimentos, mas uma descrição de como Deus executou seu plano de salvação nos acontecimentos em questão e por meio deles. Dibelius certamente estabeleceu a tendência principal na pesquisa crítica alemã com respeito a Atos dos Apóstolos como o livro é lido hoje. Ao apresen­ tar a identidade do autor, ele conseguiu afastar a atenção de detalhes críticos e se concentrar, em vez disso, na mensagem teológica que Lucas estava tentando comunicar. A teologia, e não a história, agora ocupava o lugar de destaque, que Dibelius considerava como o propósito principal por trás da composição do livro. Isso levou H. Conzelmann (1954) a propor que Lucas substituiu a ênfase escatológica da igreja primitiva por uma teologia da história de acordo com a qual a presente era, da morte de Cristo até a parúsia, é a era da igreja, planejada como tal por Deus. Em termos luteranos, Lucas substituiu a teologia crucis (“teologia da cruz”) por uma teologia gloria e (“teologia da glória”) ou, como poderíamos dizer, ele transformou um momento de crise em um período de triunfo. Como síntese final desse desenvolvimento, podemos citar a introdução de E. Haenchen a seu enorme comentário de Atos (TI 1971, da quarta edição alemã de 1965): O verdadeiro tema de Atos é o logos tou Theou (Palavra de Deus) e seu cres­ cimento. Ela é certamente proclamada por homens e autenticada por Deus por meio de sinais e milagres. Essa teologia não é um salto altivo das alturas paulinas — pois Lucas nunca esteve nessas alturas. Seu ensino é uma das muitas variações de teologia cristã gentia que — de modo mais ou menos independen­ te do grande apóstolo para os gentios — cresceu ao lado da teologia de Paulo e depois dela. As origens do que então se desenvolveu no catolicismo primitivo podem muito bem já ter estado presentes, até mesmo antes da época de Lucas, nessa teologia gentia, que continha em si mesma uma tendência à lei e às observâncias mesmo ali onde não era influenciada por Jerusalém.

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A abordagem conservadora M uito longe das especulações de teólogos alemães sobre o propósito teológico de Atos está a abordagem pragmática da maioria dos estudiosos de fala inglesa. Sempre muito mais conservadores nessas questões do que seus colegas alemães, a maioria desses estudiosos estava muito mais relutante para abandonar as afir­ mações de historicidade que Atos fazia de si mesmo. As razões disso estavam profundamente enraizadas na educação da maioria dos estudiosos britânicos, que se concentrava fortemente no estudo filológico minucioso dos clássicos e deixava a filosofia de lado. Os alemães, em contrapartida, tinham uma pers­ pectiva muito mais filosófica e eram muito menos simpáticos às disciplinas de pesquisa histórica, como a arqueologia. É totalmente característico da mentalidade britânica que a primeira grande contribuição ao estudo de Atos tenha sido feita por um leigo, J. Smith. Ele invernou em M alta em 1844-1845 e usou seus conhecimentos como iatista para traçar o percurso da famosa viagem de Paulo pelo mar. Em The vo ya ge a n d shipw reck o f St P aul [A viagem e o naufrágio de São Paulo] (1848), ele produziu um estudo de primeira mão das condições náuticas da região, que permanece um clássico. Em seu estudo, ele demonstrou que a narrativa de Lucas era um relato de testemunha ocular de um fato. Em suas palavras: Nenhum marinheiro teria escrito em um estilo tão pouco parecido com o de um marinheiro; nenhum homem que não fosse marinheiro teria escrito uma narra­ tiva de viagem pelo mar tão consistente em todas as particularidades, a não ser com base na observação. Essa peculiaridade de estilo é para mim, em si mesma, uma demonstração de que a narrativa da viagem é um relato de acontecimentos históricos feito por uma testemunha ocular. O trabalho de Sm ith foi seguido em 1852 pelo Testamento Grego de H. Alford, o primeiro comentário em inglês a levar o estudo alemão da época a sério. Alford era simpático à crítica histórica, mas bem ciente do preconceito que afetava o trabalho de muitos dos críticos. Em especial, ele ficou extrema­ mente incomodado com o preconceito antissobrenatural que parecia dominar uma enorme parte desses trabalhos. Como ele mesmo diz: A opinião prevalecente de críticos recentes na Alemanha tem sido que o li­ vro foi escrito muito mais tarde do que isso (i.e., 63 d.C.). Mas essa opinião remonta em grande parte à sua propensão subjetiva quanto ao anúncio pro­ fético de Lucas 21.24. Para aqueles que defendem que a profecia não existe

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(e esse lamentavelmente é o caso de muitos críticos alemães modernos), torna-se necessário afirmar que o versículo foi escrito após a destruição de Jerusalém. Assim, do mesmo modo que Atos é a continuação do Evangelho, também muito mais Atos precisa ter sido escrito após esse acontecimento. Para nós na Inglaterra, que recebemos o versículo em questão como um relato ve­ rídico das palavras proferidas por nosso Senhor e enxergamos aí uma sólida declaração profética que até mesmo agora ainda não se cumpriu plenamente, esse argumento no mínimo não tem relevância alguma. Alford havia tocado no que se tornaria o ponto fundamental de diferença entre o estudo crítico da Alemanha e o do mundo de fala inglesa. Em uma época posterior, quando as ideias alemãs haviam se estabelecido mais profundamente, e a afirmação de Alford a respeito da fidelidade inglesa ao ensino de Cristo não podia mais ser feita com a mesma certeza, as alas conservadoras das igrejas de fala inglesa continuariam refletindo as posições dele. Nem Smith nem Alford eram evangélicos, mas foram eles, com sua doutrina elevada das Escrituras, que continuariam mantendo a posição que na época de Alford havia sido compar­ tilhada pelas igrejas como um todo e que a tornaram a marca registrada de sua própria abordagem. É, portanto, historicamente incorreto considerar sectária, reacionária ou “fundamentalista” a abordagem evangélica conservadora à crítica bíblica. Em essência, ela é uma continuação de um tipo de estudo erudito que não tinha uma origem especificamente evangélica, mas que considerava a forte ligação entre a crítica do Novo Testamento e pesquisa histórica como base para todo o estudo sério e que presumia que um texto antigo precisava ser visto pelo que ele é e interpretado de acordo com isso. Seria errado dizer que a escola de Tübingen não tinha seguidores na Inglaterra; havia na verdade ao menos dois que ousaram publicar suas posi­ ções. O primeiro deles foi S. Davidson, cuja In trodu ction to the study o f the N ew T estam ent [Introdução ao estudo do Novo Testamento] (1868) é pouco mais que um compêndio de posições de Tübingen, com pouca apreciação crítica de seus pontos fortes e fracos. Um pouco depois veio S upernatural religion : an in q uiry into the rea lity o f d iv in e revela tion [Religião sobrenatural: uma investi­ gação da realidade da revelação divina] (1874), que era a obra de W . R. Casseis (1826-1907), embora tenha sido publicada anonimamente. Casseis não era um estudioso inteligente ou original, mas ele conhecia a abordagem da escola de Tübingen e acreditava que em geral estava correta. Em especial, ele rejeitou as reivindicações sobrenaturais do cristianismo e, com base nisso, recusou-se a aceitar a autenticidade de Atos dos Apóstolos. Vale a pena citar sua conclusão:

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Escrito por um autor que não foi testemunha ocular dos milagres relatados; que descreve acontecimentos não como eles realmente ocorreram, mas como sua imaginação piedosa pensava que eles tinham ocorrido; que raramente toca a história sem distorcê-la com lendas, a ponto de os elementos originais mal poderem ser detectados; que coloca suas próprias palavras e sentimentos na boca dos apóstolos e outras pessoas da narrativa; e que representa quase todas as fases da igreja na era apostólica como influenciada, ou diretamente produzida, por agência sobrenatural — uma obra desse tipo não tem valor algum como indícios de fatos que contradizem toda a experiência. Atos dos Apóstolos, portanto, não somente é uma obra anônima, mas, após devido exame, suas afirmações de ser história sóbria e verídica precisam ser enfati­ camente rejeitadas. Ela não consegue fortalecer os fundamentos da religião sobrenatural, mas, pelo contrário, por seu uso profuso e indiscriminado do miraculoso, ela desacredita o milagre e fornece uma percepção mais clara de sua origem e de sua natureza fictícia. Nesse ponto a influência de Tübingen é clara e isso produziu uma resposta do maior estudioso textual da época, J. B. Lightfoot. Em uma crítica devas­ tadora a Casseis, Lightfoot expôs a falta de conhecimento clássico do autor e seu hábito de citar outras obras de tal modo a provar o exato oposto do que essas obras realmente estavam tentando dizer. No entanto, a maior contribuição de Lightfoot ao debate sobre Atos está em outro lugar. Seus comentários das cartas paulinas e seu estudo dos pais apostólicos (1885-1890) demonstraram além de qualquer dúvida que não havia o menor sinal de conflito entre Pedro e Paulo no final do primeiro século. Os críticos de Tübingen haviam ignorado ou desconsiderado a massa de evidência que ia contra sua hipótese e simplesmente imposto essa hipótese aos dados. Em suas poucas observações sobre Atos, Lightfoot chamou a atenção para o fato de que era extremamente difícil para um autor acertar os títulos de oficiais governamentais romanos. Havia uma enorme variedade deles, e eles mudavam tão frequentemente que, a não ser que um historiador tivesse um conhecimento muito bom desse tema, a confusão era quase inevitável. No entanto, nesse as­ pecto, Atos revela uma exatidão verdadeiramente espantosa e muito difícil de imaginar em um autor que não seja da época. Um bom exemplo disso é o fato de que a província da Acaia (Corinto) era normalmente governada por um propretor, mas durante alguns anos ele foi substituído por um procônsul. Foi durante esse curto período que Paulo visitou a cidade e seu encontro com o procônsul Gálio é fielmente relatado por Lucas (At 18.12-17). Isso foi dramaticamente

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confirmado em 1905, quando se descobriu uma inscrição em Delfos que men­ cionava o procônsul por nome e datava sua estadia em Corinto em 51 d.C. Lightfoot não foi a fundo em investigações arqueológicas, mas reconheceu sua importância para o estudo de Atos. Em suas próprias palavras: Nenhuma outra obra permite tantos testes de veracidade; pois nenhuma tem pontos de contato tão numerosos em todas as direções com a história, a política e a topografia da época, quer judaicas, gregas ou romanas. O curso que o estudo de Atos tomaria dali em diante no mundo de fala inglesa agora estava firmemente estabelecido. Lightfoot não tinha dúvidas de que Lucas passaria no teste com nota máxima. Ele escreveu: Se, por exemplo, nos confinamos à geografia, acompanhamos o apóstolo por terra e mar; o seguimos através de Jerusalém, da Palestina e Síria, da Ásia Menor, da Grécia, da Itália. Os detalhes topográficos estão espalhados sobre essa ampla extensão de continente, ilha e oceano; e eles são tão precisos quanto secundários. No entanto, o autor nunca é induzido a um erro. Quando passamos da geografia à história, os testes são ainda mais numerosos e levam a resultados ainda mais decisivos. As leis, as instituições, os costumes, os ritos religiosos, os registros jurídicos, da Síria e Palestina, da Ásia Menor, da Macedônia e da Grécia, todos estão muito vivos nas páginas dessa narrativa. Quanto ao suposto propósito teológico de Atos, Lightfoot observa que ele é “a obra e presença continuadas de Jesus, não mais na carne, mas na igreja”. Para ele, não havia evidência alguma que defendia a afirmação de que Lucas estava tentando reconciliar facções opostas na igreja ou que ele estava empenhado em promover o que mais tarde se tornou o “catolicismo primitivo”. A obra de Lightfoot representou o programa do que viria pela frente. Embora ele mesmo não fosse membro do grupo evangélico na Igreja da Inglaterra, suas visões sobre o texto eram próximas às deles o suficiente para serem muito bem aceitas. Especial foi sua dupla afirmação de que Atos era o livro ideal a ser usado quando se desejasse colocar à prova o Novo Testamento contra os relatos da época, por causa de seus muitos pontos de contato com esses relatos, e de que, quando assim testado, o livro se confirmava como obra sem erros, afirmação da qual os evangélicos conservadores mais tarde dependeriam. M as é importante enfatizar mais uma vez que, no final do século 19, as posições hoje vinculadas aos conservadores evangélicos eram amplamente compartilhadas em círculos acadêmicos britânicos. Na opinião da maioria dos estudiosos britânicos, Lucas

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era um historiador cuidadoso que queria descrever as origens da igreja cristã e que fez isso com base em suas próprias investigações de testemunha ocular, bem como nos relatos de outros cujo testemunho era igualmente fidedigno. Sua seleção e organização do material demonstrava que ele tinha um propósito teológico claro ao escrever, mas isso não era uma tentativa de encobrir ou reinterpretar os fatos. As intuições e sugestões de Lightfoot sobre o valor da arqueologia foram testadas por Sir W illiam Ramsay, cujo livro importante sobre Paulo foi publicado em 1895. A importância de Ramsay não está meramente no fato de que ele conseguiu mostrar a veracidade das observações de Lightfoot sobre Atos. Ainda mais importante, da perspectiva dos evangélicos conservadores, era o fato de que ele havia começado sua pesquisa como seguidor da hipótese de Tübingen, mas quanto mais ele examinava a questão, menos convencido ficava. No fim, Ramsey converteu-se — a palavra tem um significado especial nesse contexto — à visão de que Lucas era um dos historiadores mais precisos que já viveram e que o relato dos acontecimentos em Atos era inteiramente fidedigno. A sua contribuição teve importância especial para resolver as aparentes discrepâncias entre Atos e Gálatas. Ramsay propôs, em primeiro lugar, que os gálatas a quem Paulo escreveu não eram os de etnia celta que habitavam a parte setentrional da província romana da Galácia, mas os habitantes helenizados de suas cidades do Sul — Antioquia, Icônio, Listra e Derbe. Seguindo isso, Ramsay propôs uma cronologia inteiramente nova para as visitas que Paulo fez a Jerusalém (G 11 e 2). O melhor modo de apreciar isso é colocar as duas visões principais lado a lado como na tabela abaixo: Visão tradicional G11.18 At 9.26 G12.1 At 15 Gálatas já escrito nessa época

Ramsay At 9.26 At 11.30 'y' /= : ’A í0 s ;i5 ::''

De acordo com os cálculos de Ramsay, Paulo foi a Jerusalém três vezes e somente na terceira ocasião ele discutiu a questão dos convertidos gálatas com os outros apóstolos do modo descrito em Atos 15. As discrepâncias entre esse capítulo e o que está escrito em Gálatas desaparecem se aceitamos que o concilio relatado em Atos 15 não havia ocorrido quando a carta foi escrita. Isso, por sua vez, faria

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de Gálatas a primeira das cartas de Paulo (c. 48 ou 49 d.C.) e provavelmente o documento mais antigo do Novo Testamento. As posições de Ramsay não obtiveram aceitação universal, mas geralmente se admite que os estudiosos com o maior conhecimento da evidência arqueológica e da geografia da região em questão são também os mais suscetíveis a aceitá-las. Talvez o maior elogio feito a Ramsay tenha sido o fato de que ao menos um grande estudioso alemão, T. Zahn, aceitou suas convicções e as tornou am­ plamente conhecidas na Alemanha por meio de seu comentário de Atos de dois volumes (1918, 1921). Todavia, mesmo antes dessa época, uma autorida­ de não menor que o grande estudioso liberal do Novo Testamento Adolf von Harnack havia feito duas defesas extensivas da autoria lucana de Atos (1906, 1908). Levou mais tempo para que ele chegasse à opinião de que o livro havia sido composto em cerca de 62 d.C., mas, em 1911, ele também havia aderido a ela. Uma visão positiva de “Lucas, o historiador” havia finalmente penetrado a fortaleza da crítica liberal alemã. Na década de 1920, era possível falar de duas escolas opostas de pensamento com respeito a Atos, que continuaram seguindo caminhos distintos desde aquela época. Como W . W . Gasque, que escreveu a história desse desenvolvimento, diz: ... a divisão de opiniões em relação ao valor histórico de Atos [...] continuou no século 20 com pouca probabilidade de resolução das questões. As duas perspec­ tivas foram reafirmadas, modificadas até certo ponto, com uma vasta quantidade de evidências adicionais a favor da abordagem histórica. Incapazes de converter os representantes das perspectivas opostas, as duas pareceram desistir de suas tentativas de convencer a oposição e seguiram caminhos separados [...] Sem a intenção de ser indevidamente pessimista, é necessário confessar que parece bastante improvável que haverá uma reaproximação das duas perspectivas em qualquer momento no futuro próximo. Uma tentativa de alcançar algo desse tipo foi feita por K. Lake e H. J. Cadbury, que publicaram seu comentário conjunto de Atos em 1933. Essa obra é um estudo magistral das evidências filológicas e demonstra uma compreensão dos problemas levantados pelo livro de Atos com raros paralelos na erudição do Novo Testamento. Seu grande ponto fraco está na área da teologia: tanto Lake como Cadbury eram liberais do tipo de antes de 1914 e tinham pouca apreciação por questões teológicas. Considerando que eles estavam escrevendo em uma época em que a neo-ortodoxia de Barth estava cada vez mais difundida, é necessário considerar isso um grande defeito de sua obra. No entanto, sua abordagem geral ao material era muito mais conservadora do que se poderia ter

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imaginado. Embora fossem cuidadosos quanto ao apoio que estavam prepara­ dos a dar a Ramsay, eles em geral atacaram muito mais os críticos alemães, cuja crítica consideravam de tom indevidamente negativo. Aqui é importante compreender que Lake e Cadbury representavam a ala liberal do estudo de fala inglesa; o fato de que eles eram tão conservadores quanto indicamos aqui meramente demonstra quão ultraconservadora era a maioria dos outros estudiosos anglo-saxões. Sobretudo na Grã-Bretanha, a tradição de Lightfoot continuou exercendo a influência mais forte em muitas escolas diferentes de pensamento teológico. Isso é evidente com base na obra do estudioso anglo-católico W . L. Knox, que aceitou a fidedignidade de Atos (1948) e até mesmo defendeu que Lucas representava fielmente a teologia de Paulo. Certamente, em parte isso se devia à sua abordagem anglo-católica, de­ monstrada em seu interesse de mostrar que nem mesmo Paulo falava muito sobre a “justificação pela fé” fora de Gálatas e Romanos. Na opinião de Knox, era precisamente por Lucas não enfatizar esse ponto, tão caro aos luteranos, que ele oferecia uma boa exposição da verdadeira posição doutrinária de Paulo. No entanto, o trabalho mais significativo sobre Atos empreendido em inglês em anos recentes é o de F. F. Bruce. Bruce escreveu dois comentários distintos, um sobre o texto grego (1951; terceira edição revisada, 1990) e mais um sobre o texto em inglês da American Standard Version de 1901 (1952; edição revisada em 1988). O primeiro é um estudo histórico e lingüístico no molde estabele­ cido por Lightfoot; o segundo é consideravelmente expandido e tem estilo e conteúdo muito mais teológicos. A importância especial desses comentários é que eles estabeleceram o padrão para a exposição evangélica conservadora, não meramente de Atos, mas de toda a Bíblia. Bruce começou seu estudo onde Ramsey parou. Criticou os estudiosos que não levavam Ramsay a sério, embora ele também estivesse ciente de que Ramsay às vezes forçava as evidências. No entanto, nos pontos principais havia um con­ senso entre os dois estudiosos. Ambos acreditavam que a pesquisa arqueológica confirmava o que Lightfoot e outros haviam afirmado por outros motivos: Lucas é um historiador sem comparação no primeiro século d.C ., e sua obra é um relato substancialmente correto, no que lhe diz respeito, do que transcorreu nas primeiras comunidades cristãs. Bruce insistiu que o “conflito” entre as cartas paulinas e os dados de Atos é aparente e não real. Ele enfatizou que Paulo mesmo respeitava os outros apósto­ los e mencionou que ele estava em comunhão com eles (G12.9). As concessões de Pedro aos judaizantes ele considerava um ato de hipocrisia, visto que sua ação

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não correspondia às próprias convicções de Pedro (G1 2.13). Sobre a questão maior da harmonia entre a descrição de Paulo nas cartas e a de Atos, Bruce tinha isto a dizer: E o Paulo que repete em Romanos “[salvação] primeiro do judeu e também do grego” que em Atos visita primeiro as sinagogas de cidade em cidade e que, em Antioquia da Pisídia, declara aos judeus invejosos: “Era necessário que em primeiro lugar se pregasse a vós a palavra de Deus”. É o Paulo que sofre tanto com a hostilidade dos judeus em Atos que pode se referir aos judeus em ITessalonicenses 2.15ss. como aqueles que “mataram o Senhor Jesus, bem como os profetas, e nos perseguiram. Eles não agradam a Deus, são inimigos de todos os homens e nos impedem de pregar aos gentios para que sejam salvos”. Também é o Paulo que em Atos se recusa a deixar de apresentar o evangelho a seus irmãos segundo a carne, apesar de todas suas experiências amargas sofridas pelas mãos deles, aquele que em Romanos 9.2s. refere-se à sua grande tristeza e incessante dor no coração em face da rejeição do evangelho por eles, aquele que diz estar disposto a ser amaldiçoado, se tão-somente seu desejo do coração e sua oração a Deus pela salvação deles se concretizassem. Em relação ao propósito teológico do próprio Lucas, Bruce seguiu a linha de Lightfoot, embora de uma forma um tanto ampliada. Ele defendeu que o alvo de Lucas era mostrar que o evangelho se espalhou sem impedimento aos gentios e que Paulo conseguiu proclamar sua mensagem livremente na própria capital do império. A nota essencialmente positiva em que Atos termina é evi­ dência de que o livro precisa ter sido escrito antes da perseguição feita por Nero em 64 d.C. Outros fatores também contribuem para essa posição, como o fato de que Lucas não faz uso das cartas paulinas, nem há indicação alguma de que o apóstolo já não estivesse vivo na época da composição do livro. Acima de tudo, não há indicação alguma da revolta judaica de 66-73 d.C. ou da queda de Jerusalém em 70 d.C., menção das quais pareceria inevitável se o livro tivesse sido escrito após esses acontecimentos. O comentário de Bruce é, desse modo, cauteloso e conservador conforme as características dos melhores estudos evangélicos da presente época, mas de mo­ do algum é sectário. Em todos os pontos, ele dependeu firmemente da pesquisa daqueles que o precederam e nunca fez asserções teológicas que não tenham fundamento adequado no texto. Se há uma acusação de preconceito teológico a ser feita, é certamente contra aqueles que seguiram os ditames dos críticos de Tübingen e as posições mais recentes de Dibelius.

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Bruce e Haenchen comparados Para obter uma ideia mais clara de como as duas principais tradições na pesquisa contemporânea de Atos diferem entre si, talvez seja mais fácil examinar seus dois representantes modernos de maior destaque: F. F. Bruce do lado evangélico conservador e E. Haenchen da perspectiva liberal. Um breve exame de algumas das passagens fundamentais em Atos ressaltará as semelhanças e diferenças en­ tre os dois estudiosos. Os pontos importantes de cada comentário são realçados. 1.8: M as recebereispoder quando o Espírito Santo descer sobre vás; e sereis minhas teste­ munhas, tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria, e a té os confins da terra. Haenchen-. Depois ter ficado claro o que os cristãos precisam renunciar, eles apren­ dem o que ganharão: os discípulos receberão o Espírito Santo e então serão as testemunhas de Jesus até os confins da terra. Essa declaração é ao mesmo tempo ordem e promessa. Ela define para a igreja as condições de sua comissão (os apósto­ los são exclusivamente os representantes da igreja, por isso eles podem permanecer tranquilamente em Jerusalém e deixar Paulo continuar a missão principal). Como Atos a apresenta, a igreja cristã é uma igreja missionária. Assim, o outro problema apresentado pela pergunta dos discípulos do versículo 6 também é resolvido: a missão mundial aqui decretada pressupõe que a salvação não se restringe a Israel. As palavras de Jesus, no entanto, têm mais uma implicação. Ao declarar o curso da missão cristã de Jerusalém até os “confins da terra”, elas também pres­ crevem o conteúdo de Atos: o progresso do Evangelho de Jerusalém até Roma. Assim, o que qualquer afirmação de conteúdo teria mencionado no versículo 3 aqui o próprio Senhor revela à comunidade como uma seqüência de aconteci­ mentos designada por Deus. Bruce: Em vez do poder político que outrora havia sido o objeto de suas am­ bições, um poder muito maior e mais nobre seria deles. Quando o Espírito Santo descesse sobre eles, Jesus lhes assegurou, eles seriam revestidos de poder celestial — o poder pelo qual, quando saíram, as obras poderosas deles foram realizadas e sua pregação se tornou eficaz. Do mesmo modo que Jesus havia sido ungido em seu batismo com o Espírito Santo e com poder, seus seguidores também seriam a partir de então ungidos para dar continuidade à obra dele. Essa obra seria uma obra de testemunho — tema proeminente na pregação apostólica em todo o livro de Atos. Nós imediatamente podemos perceber, com base nesses dois tratamentos dos dois versículos, quão diferente é o tom de um comentário para o outro. Haenchen

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enxerga tudo à luz da tendência paulinista de Lucas; Bruce nunca menciona isso. Bruce se concentra na experiência do cristão (pois aqui os apóstolos são sim­ plesmente os primeiros de uma companhia que acabaria também nos incluindo). Haenchen quase considera a igreja primitiva como sendo manipulada por um apelo a um decreto divino que está sobre ela e acima dela. Toda sua abordagem é completamente diferente da abordagem de Bruce e tem um tom muito mais distante das necessidades e aspirações de uma comunidade eclesiástica de hoje. 9.26: Ao chegar em Jerusalém , Saulo procurou ju n ta r-se aos discípulos; mas todos tinham, medo dele e não acreditavam que ele fo sse um discípulo. H aenchen: De acordo com Lucas, Paulo queria ingressar na congregação de Jerusalém, mas não foi recebido com confiança até Barnabé o apresentar aos apóstolos. À primeira vista, isso parece muito plausível. Mas a história so­ mente faz sentido se, como Lucas erroneamente pressupõe, Paulo tivesse ido a Jerusalém logo depois de seu chamado. Somente com um intervalo tão breve, as pessoas ali ainda poderiam não estar informadas de sua conversão. Na verdade, no entanto, Paulo não foi a Jerusalém até três anos mais tarde, quando todos ali sabiam o que havia acontecido em Damasco. Independentemente disso, é inconcebível que Barnabé soubesse da verdade sobre Paulo, mas os apóstolos não. Em outras palavras, todo o fundamento sobre o qual esse edifício lucano é erigido não terá peso algum e tudo precisa vir abaixo. Bruce: Lucas diz que esse acontecimento ocorreu “depois de muito tempo”; Paulo, para ser mais exato, diz em Gálatas 1.18 que três anos após sua conversão (em uma contagem inclusiva, evidentemente) ele foi para Jerusalém — e, com base na narrativa de Atos, parece ter ido para lá imediatamente após a fuga de Damasco. Não é fácil reconciliar a descrição feita por Lucas da atividade pública de Saulo em Jerusalém em associação com os apóstolos com a afirmação em Gálatas 1.12 de que, até o momento de sua partida para a Síria e a Cilícia (e depois isso), ele permaneceu pessoalmente desconhecido às igrejas da Judeia, que somente haviam ouvido falar dele. Um comentarista remove a expressão “em Jerusalém” do versículo 28 [...] Assim, somos assegurados, toda a dificuldade desaparece. Ela de fato não desaparece e, mesmo se desaparecesse, seria necessária cautela no que diz respeito às correções, por mais habilidosas que sejam, propostas não por terem alguma confirmação textual, mas porque adotá-las ajuda a eliminar uma discrepância. Essa passagem é uma das mais difíceis em Atos, pois ela parece contradizer a própria afirmação de Paulo em Gálatas, que todos os comentaristas aceitam

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como primária. Será que Lucas sabia de sua estadia na Arábia? Como era possível para a igreja de Jerusalém continuar sem conhecê-lo se ele havia ido a Jerusalém logo após sua conversão, do modo que Lucas parece sugerir? H á vários modos possíveis de reconciliar os dois relatos, mas nem Haenchen nem Bruce tentam fazê-lo. A solução de Haenchen é simples: Lucas estava equivocado. Bruce não consegue dizer isso, de modo que ele contorna a questão com várias observações importantes, mas secundárias. E difícil não pensar que nenhum dos comenta­ ristas realmente atacou o problema: a solução de Haenchen é demasiadamente simples. Bruce evita uma solução completamente. Nesse momento, mais tra­ balho precisa ser feito para resolver a aparente dificuldade que a descrição que Lucas faz dos acontecimentos apresenta. 28.24: Uns [judeus] criam nas suas palavras [de Paulo], mas outros as rejeitavam . Haenchen-. É antes de tudo digno de nota que Paulo descreve todos os judeus co­ mo obstinados, ainda que alguns — como é expressamente dito — “criam”. Essa dificuldade nasce do fato de que Lucas necessariamente precisa unir duas ideias conflitantes. Por um lado, a mensagem cristã, de acordo com seu relato, está es­ sencialmente em harmonia com o judaísmo. Lucas havia ilustrado isso em sua cena fictícia diante do Sinédrio em 23.6ss., por meio da aprovação que os fariseus concedem a Paulo. Aqui Lucas não se deu ao trabalho de mais uma vez apresentar a oposição entre os fariseus e os saduceus; isso também não faz sentido para Roma. Assim, a única possibilidade restante para ele era simplesmente fazer um grupo de judeus concordar com Paulo. Por outro lado, no entanto, não era de modo algum sua intenção descrever uma conversão judaica; pelo contrário, ele queria apresentar a ressalva judaica à mensagem cristã, a obstinação que compeliu a missão aos gen­ tios. As duas coisas juntas necessariamente produziram a tensão em nosso texto: muitos judeus “criam” e, ainda assim, todos são tratados como obstinados. Bruce: Alguns dos visitantes de Paulo ficaram impressionados com o que ele disse, mas a maioria permaneceu não convencida. A grande maioria da co­ munidade judaica em Roma, líderes e liderados igualmente, recusaram-se a reconhecer Jesus como Messias. Isso cumpriu o padrão que havia se estabeleci­ do em uma cidade após outra em que Paulo havia pregado o evangelho. Visto que o povo judeu, que tinha o direito prescrito de ouvi-lo antes, não o aceitaria, ele precisava ser oferecido diretamente aos gentios [...] Do mesmo modo que em Antioquia da Pisídia (13.46), Corinto (18.6) e Éfeso (19.8-10), também aqui em Roma ele anuncia — e dessa vez em tom de finalidade solene — que dali em diante os gentios terão prioridade em ouvir a palavra da vida e que, ao contrário dos judeus como um todo, eles a aceitarão.

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Tanto Bruce como Haenchen, de seus diferentes modos, afirmam que o evangelho foi rejeitado pelos judeus e que Paulo se voltou para os gentios em lugar deles. No entanto, os dois comentaristas apresentam o contexto disso e os motivos para a mudança de direção de Paulo de modos muito diferentes. Haenchen descreve Lucas como obcecado em encontrar divergências entre os próprios judeus. De acordo com ele, sempre houve um grupo de judeus prontos para seguir esse novo ensino, embora esse grupo não pudesse ser definido em relação às seitas judaicas existentes. Ao mesmo tempo, diz Haenchen, Lucas es­ tava interessado em descrever os judeus da pior forma possível, a fim de justificar o propósito principal do livro — a missão aos gentios e o quase abandono dos judeus que ocorreria após 70 d.C. Desse modo, ele encontra uma “contradição” no texto; Lucas reconhece que alguns judeus creram na mensagem de Paulo, mas ao mesmo tempo condena todos eles como obstinados. Bruce, em contrapartida, não diz nada sobre as divisões internas entre os judeus. Também não pensa que Paulo condena todos os judeus como obsti­ nados; essa descrição se aplica corretamente apenas àqueles que se recusavam a crer em Cristo. Eles eram a maioria, mas Paulo considerava o fato de que eles se recusavam a crer como um sério infortúnio e um revés para a missão aos gentios, que ele originalmente esperava que seria realizada por meio da conversão dos judeus. Foi somente quando isso havia obviamente fracassado que Paulo, com certo pesar, mudou seu foco. Portanto, não se deve considerar Atos principalmente uma campanha quase antissemita a favor da missão aos gentios, mas uma descrição relutante de um triste fato da igreja primitiva: aqueles para quem Jesus viera se recusaram a crer nele. Comparando esses dois comentários, é óbvio que Bruce tendeu a dar a Lucas o benefício da dúvida, mesmo quando ele não conseguia resolver todos os problemas, enquanto Haenchen estava pronto para afirmar que Lucas estava equivocado ou enganado em vários pontos — também que ele era teologica­ mente tendencioso de um modo impreciso. Como evangélico conservador, comprometido com a autoridade suprema e a infalibilidade das Escrituras, Bruce nunca poderia dizer algo assim. M as, ao mesmo tempo, é digno de nota que ele não temeu reconhecer as dificuldades e deixar que ficassem sem solu­ ção quando as evidências são insuficientes. Certamente, ele era contra qualquer correção do texto simplesmente com o propósito de harmonização, e nisso sua integridade como crítico se destaca. No fim das contas, os dois comentaristas deixaram muitas questões em aberto para futuros estudiosos ponderarem, mas nenhum deles foi infiel às suas convicções. Em seus escritos, obtemos uma boa

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noção de como o mundo acadêmico está atualmente dividido entre tendências liberais e conservadoras e aprendemos algo do que está envolvido em tentar expressar e defender cada uma dessas posições. Como uma nota a essa análise, pode-se acrescentar que os evangélicos con­ tinuam produzindo uma grande quantidade de obras de primeira classe sobre Atos. M erece menção especial o estudo extremamente detalhado de Colin Hemer (1940-1987), intitulado The Book ofA cts in the settin g o f H ellenistic h istory [O Livro de Atos no cenário da história helenista] (1989), e a obra em seis volumes do projeto da Tyndale House, The Book ofA cts in itsfirst-cen tu ry settin g [O Livro de Atos no seu cenário do primeiro século] (1993-1996). Cada uma dessas obras apresenta em detalhes precisos as evidências a favor da histo­ ricidade desse livro do Novo Testamento e, desse modo, dá continuidade à tradição que passou a ser vinculada com tanta força ao movimento evangélico conservador atual. B ibliografia B r u c e , F.

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CONCLUSÃO

A história da interpretação bíblica é um tema complexo e difícil. Examinar o pas­ sado sempre envolve um controverso processo de seleção e pode não ser fácil saber quais aspectos dele falarão mais claramente no futuro. A cena contemporânea é bem complicada; nunca antes houve tanto esforço dedicado ao estudo da Bíblia, com tantos fins diferentes em vista. O estudo moderno está menos unido em torno de seus alvos do que jamais esteve, e a interpretação da Bíblia se diversificou a tal ponto que é impossível para uma só pessoa dominar todo esse campo de estudos. Em uma situação desse tipo, prever o futuro curso dos acontecimentos é quase impossível. Pode muito bem acontecer que seja encontrada uma nova síntese, o que unirá os estudiosos novamente. Se esse for o caso, essa síntese precisará incluir os frutos da pesquisa crítica, mas não de um modo que negue o uso legítimo da Bíblia na vida devocional da igreja. A divisão entre essas duas coisas é uma das grandes tragédias dos últimos dois séculos, e, a não ser que consiga ser superada, há pouco futuro para o estudo da Bíblia acadêmico. Pois não importa o que pensarmos dela, a Bíblia vive como o livro da igreja, e é do seio da comunidade cristã que surgem os estudiosos para estudá-la e expô-la. Se essa ligação for cortada, não é a igreja que morrerá, mas o estudo acadêmico da Bíblia. A igreja seria mais pobre sem ele, cer­ tamente, mas não fatalmente aleijada. Como já aconteceu no passado, novas formas de interpretação espiritual surgiriam para substituir aquelas que foram rejeitadas, e a vida espiritual da comunidade cristã continuaria em sua trajetória histórica. Está ficando cada vez mais claro em todos os ramos dos estudos bíblicos que qualquer nova síntese precisará ser teológica, bem como puramente aca­ dêmica. E bem possível que os estudiosos concordem a respeito dos métodos críticos e, no entanto, estejam claramente divididos em questões de interpretação. Fundamentalmente, isso se deve a fatores teológicos que muitas vezes não são compreendidos apropriadamente pelos próprios estudiosos da Bíblia. A questão básica é se o sobrenatural pode ser levado em consideração como um fator que contribui para a história humana. Em outras palavras: H á um Deus no controle dos acontecimentos? A negação prática da ideia, mais do que qualquer outra coisa, determinou o curso de enorme parte do estudo crítico na época moderna, e, se for levada à sua conclusão lógica, a Bíblia deixa de ser um registro histórico dos acon­ tecimentos. Porque as afirmações do cristianismo têm natureza escancaradamente sobrenatural, o que realmente importa em Jesus não é seu ensino moral, mas seus

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atos extraordinários de poder e significado salvíficos. O Sermão do Monte poderia concebivelmente ter sido proferido por outro grande mestre; a ressurreição dos mortos permanece única. No fim das contas, o que pensamos sobre a Bíblia depen­ derá do que pensamos sobre Cristo; as duas coisas estão inseparavelmente unidas. Quando passamos de questões de princípio geral a questões de detalhe, po­ demos dizer com alguma certeza que o estudo textual e lingüístico das Escrituras continuará desenvolvendo técnicas ainda mais refinadas do que desenvolveu no passado. Já há auxílios lexicais e gramaticais disponíveis com que gerações an­ teriores mal sonhavam, e a invenção do computador tornou possível recuperar em segundos todo o corpo de vocabulário e uso gregos ou hebraicos. M as se isso de fato ajuda na compreensão desses idiomas é outra questão. Idiomas não são simplesmente quebra-cabeças; eles têm vida e integridade próprias que não po­ dem ser reduzidas a uma análise de computador. Isso tem ficado lastimosamente evidente no recente abuso do estudo de palavras na Bíblia, que envolvia extrair significados que o contexto e o “sentimento” geral do idioma indicam como sen­ do bem impossíveis. O exemplo mais notório disso é a interpretação de kephalê, “cabeça”, como “fonte” em ICoríntios 11.3, mas há outros exemplos, e o emprego descontrolado desse método está sujeito a produzir resultados desastrosos. Em relação ao texto bíblico, agora é improvável que se farão quaisquer novas descobertas dramáticas que o alterarão substancialmente. Pode haver algumas melhorias aqui e ali, mas o texto padronizado do Novo Testamento é atestado de modo demasiadamente amplo para permitir sérios novos desafios oriundos de fon­ tes. Isso é igualmente verdadeiro a respeito dos textos em hebraico e aramaico do Antigo Testamento, os quais de qualquer modo nunca exibiram a mesma variedade. Questões de autoria e datação certamente continuarão constituindo o conteúdo de teses de doutorado, e há ainda uma grande quantidade de trabalho a ser feito, principalmente sobre o Antigo Testamento. Mas os estudiosos estão cada vez mais aceitando o fato de que há limites para nosso conhecimento que dificilmente serão superados. A asserção de que o presente estado de um texto é “tardio” (c. 200 a.C.) diz pouco sobre sua origem fundamental; o processo de redação pode ter se estendido durante um longo período e, de qualquer modo, está em grande parte oculto para nós. Quanto ao Novo Testamento, poucos agora iriam disputar seriamente que quase todo ele já existia em no máximo 100 d.C.; a única exceção possível a isso é 2Pedro, e até mesmo isso é discutível. A hipótese deTubingen de um conflito primitivo entre judaizantes e helenistas não está morta, mas agora se entende que as questões são menos simples do que Baur pensava, e a pesquisa recente está ampliando o quadro considera­ velmente. Parece seguro pensar que o contexto judaico do cristianismo primitivo será

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ainda mais importante no futuro e que os estudos rabínicos se tomarão um ingredien­ te essencial na pesquisa do Novo Testamento. A grande tarefa aqui será evitar ir ao extremo de negar a natureza especial do cristianismo completamente. Também haverá o desafio de integrar estudos judaicos no período do Novo Testamento com a inter­ pretação do Antigo Testamento. Isso sempre foi um dos maiores problemas para os exegetas da Bíblia cristãos, e não há indícios de que ele será menor nos dias vindouros. A questão da historicidade continuará sendo importante, embora pareça prová­ vel que assumirá uma nova conotação no futuro. Investigações recentes do contexto histórico da Bíblia a tem ancorado na cultura contemporânea em um grau que teria sido inimaginável há duzentos anos, mas isso também tem tornado mais difícil decidir como as Escrituras podem ser usadas hoje em nossa situação. O estudo his­ tórico é uma disciplina que relativiza e corre o risco de destruir o significado prático de um texto até mesmo ao iluminar seu “verdadeiro” significado. Pode ser muito interessante saber que um livro específico da Bíblia foi redigido por tal e tal razão, mas que diferença isso faz para o cristão comum de hoje? Se os pregadores, diante da necessidade de serem relevantes para suas congregações, precisarem impor ao texto sua própria pauta a fim de satisfazer as necessidades espirituais das pessoas, a historicidade das Escrituras ficará fatalmente comprometida; essa é a lição da in­ terpretação alegórica. M as se os estudiosos não conseguirem vincular seus estudos históricos às necessidades contemporâneas, então eles estarão negando outro aspec­ to importante da historicidade das Escrituras: sua capacidade de falar a pessoas de diferentes épocas e lugares e de serem relevantes à sua presente situação. Todos os sinais são de que essa necessidade é a que se tornará cada vez mais urgente nos próximos anos. O mundo moderno tem pouca paciência com anti­ guidade pela antiguidade; para que um livro antigo continue ocupando uma parte importante da vida acadêmica, ele precisará demonstrar sua relevância contínua na sociedade de hoje. Isso será ainda mais verdade à medida que o cristianismo se es­ palhar além de suas sedes históricas e se tomar nativo em grandes partes da África e da Ásia. Algumas pessoas pensam que haverá uma interação crescente das culturas e religiões nativas desses países com o cristianismo e que isso pode ter um impacto considerável no modo com que se estuda a Bíblia ali. M as também é verdade que todo o mundo está se tornando cada vez mais ocidentalizado, e as questões que influenciam pessoas na China, Coreia ou Japão são raramente diferentes daquelas que influenciam pessoas na Europa, América do Norte e Australásia. É bem provável que o maior efeito da difusão do cristianismo pelo mundo será concentrar o estudo acadêmico das Escrituras em um só idioma, o inglês. Poucos estudiosos ocidentais aprenderão idiomas orientais, e os asiáticos não acharão

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conveniente dominar mais de um idioma europeu. O inglês já é o idioma univer­ sal na maioria das ciências, e a interpretação bíblica parece destinada a seguir o exemplo. O resultado será uma transferência automática e rápida de informação na aldeia global, o que assegurará uma coesão considerável de pensamento mesmo que haja diversidade étnica cada vez maior na igreja universal. Na busca de um caminho adiante nos estudos bíblicos, o papel dos evangélicos conservadores pode muito bem se mostrar decisivo. Eles mantiveram um profundo interesse em questões textuais e ligações com a base e o povo comum da igreja, onde os frutos do estudo erudito podem ser testados na pregação e na vida espiritual de cristãos comuns. Recentemente, começaram a alcançar cristãos católicos e também ortodoxos orientais conservadores, e é bem possível que esses dois grupos sejam influenciados por eles tanto quanto os católicos mais liberais foram influenciados pelos protestantes das principais e mais antigas denominações históricas. Seu com­ promisso teológico é tal que eles não conseguem se contentar com um conhecimento irrelevante; eles são obrigados por suas convicções a examinar cuidadosamente um montante de informações de um modo tal que produza uma mensagem de poder espiritual para a igreja de hoje. No mundo do estudo erudito “puro”, esse compromisso está destinado a ser colo­ cado sob suspeição, pois sugere que esse compromisso está sendo usado para fins além de si mesmo e, portanto, está de algum modo sendo corrompido. No entanto, uma pe­ quena reflexão deve ser suficiente para dissipar esse medo. O conhecimento “puro”não existe; até mesmo um estudioso que guarda sua informação consigo ou a reveste com hieróglifos que somente os iniciados podem entender está usando o conhecimento para um propósito — que pode muito bem não ser mais nobre do que uma tentativa de justificar sua própria existência. Os conservadores ortodoxos não devem ter medo de anunciar seu compromisso religioso, nem devem hesitar em permanecer fiéis a ele nos dias que virão. O consenso liberal não é o que era; a antiga confiança foi perdida, e um pluralismo sem precedentes o está substituindo. Agora pode ser exatamente a época em que uma nova geração, inflamada pelo desejo de ver a Bíblia mais uma vez pulsar como a força motivadora na vida espiritual da igreja, pode deixar sua marca. Mas não importa o que acontecer, e não importa como o futuro curso dos acontecimentos possa ser desenvolvido, o cristão não pode duvidar do fato de que a interpretação da Bíblia está nas mãos de Deus, que por seu Espírito Santo ilumina e fortalece a igreja. É essa confiança que guiou os grandes expositores do passado e que levantará e sustentará os grandes intérpretes do futuro. Oremos para que em nossa época possamos ver uma grande obra de Deus na esfera da interpretação bíblica, que terá significado duradouro para a vida de seu povo aqui na terra.

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ÍNDICE DE PASSAGENS BÍBLICAS

Gênesis 1—11 293, 354, 401 I.26 18,119,127 2 42,119 2.2 73 2.4—3.24 260 2.24 65 3.15 203 15.13108 19 103 37.28 260 Êxodo 1—15 390 3.1-14 532 3.6 62, 533 3.21,22 537 II.2,3 537 12.35,36 537 12.37,38 293 12.40 108 13.17—14.31 532 15.21 403 18 535 20.1-17 532, 542 20.12-17 65 20.18 267 20.24,25 268 23.19 153 24.12 57 31.18 16

Levítico 26.29 268 Números 1.46 293 21.17 66 D euteronômio 5.22-27 268 6.20-24 412 11—27 264,265 12 267 17.14-20 268 18.9-22 268 19.15 65 24.1-4 268 26.5-9 ^ 2 28—31 24(9,26 6 28.53-57 268 30.12-14 66 32.1ss. 66 34 196 34.6 265 Josué 24.2-13 412 Juizes 1.16 535 4.11 535 5 403, 539

600

1 Samuel 2.1-10 539 15.6,7 535 2Samuel 1.1 57 9—20 384 IReis 16.21-28 410 21.9 404 2Reis 16.21-28 410 17.28 240 22.8 265 23.1-3 265

Jó 2.28-32 64 Salmos 1—15 83, 557 2 405 2.1 71, 73 3 405 5.12 109 6 405 8.4-6 71, 72 15 405 16.8-11 64 16.10 64,106 17 405 18 405, 406, 416 19.1-6 403 20 405 21 405

H I S T Ó R I A DA I N T E R P R E T A Ç Ã O B Í B L I C A

22 309, 406, 420, 421, 422, 423 22.18 68 24 405 26 405 29 403 30 405 32 406 33 403 34.20 68 40 403, 405 44 404, 406 AS 405 46 404 47 403, 406 50 405, 416, 417 51 405 60.1-5 404 6 6 405 68.18 66 69 405 69.9 68 72 405 74 404 79 404 80 404 82 404 82.6 62 84.7213 85 404 8 8 405 89.38-52 404 89.46-51 406 93 406 94 404, 405 95 73 95.7-11 71 95—99 406

ÍN D I C E DE P ASS AG EN S B Í B L I C A S

1—39 299 6.9 68 7.14 68 13.1—14.23 314 19.12 108 21.1-10 314 26.20 72 36—39 320 40 316 40—66 314, 392 40.6-8 64 44.28 314 44—45 316 45.1 314 52.7—53.12 313 53 237, 317, 319 53.1 68 53.5-12 64 55.3 64 61 62

96 403 100 405 101 405 103—105 403 104 406 107 405 110 405 110.1 64 110.4 71, 73 116 405 118 405 118.22 64 121 405 123 405 126 197, 404 130 405 132 405 136 405 137 252 138 405 139 421 144.1-11 405, 406 145.15 162 149 404

Jeremias 31.31-34 71, 72 35.1-11 535

Provérbios 22.8ss. 84,104

Ezequiel 3.13 164

Cânticos dos Cânticos 1.2 161,162,163 1.5 107 2.4 159 2.13,14 163

Daniel 2.34 107 1450 9.24-27 60

Isaías 1—3 180 1—27 298

Oseias 6.2 64 11.1 536

602

Joel 1 e 2 402 2.28 150 Jonas 2.2-9 404 Habacuque 2.3.4 72 2.4 166,212 Zacarias 9.9 6
H I S T Ó R I A DA I N T E R P R E T A Ç Ã O B Í B L I C A

15.8s. 62 15.4 540 16.18 327 16.19 171 18.12 507 18.28-35 508 21.5 67 21.28-32 507 22.1-13 504 22.11-14 507 22.32 532 24 326 24.15-22 25.1-13 508 25.14-30 508 25.15-18 108 26.26 198 27.9 67 27.46 309 Marcos

2.27 540 3.1-6 492 4.3-8 507 4.11-20 500 4.21 507 9.50 507 10.15 503 12 . 1-8 504 1 2 . 1 0 ss. 62 12.18-23 51 12.26 65, 5 JJ 13 326, 428 13.28 507 14.27 62 15.34 J09

603

ÍN D I C E DE P ASS AG EN S B ÍB L IC A S

Lucas 1 404 1.22.23 68 I.46-55 172 2.23 67 2.24 67 3.4-6 67 4.16-21 62 7.41 507 10.29-37 508 10.30-37 507 II.5-8 507 12.16-20 507 13.46 588 14.16-24 504 15.8 507 15.11-32 507 16.1-8 508 16.19-31 507 17.30ss. 108 18.2-5 507 18.6 588 19.8-10 588 20.37 533 21326 21.24 578 22.37 62 24.27 63 24.35 161 João 1.1 462 1.1,2 109 1.1-3 74, 98 1.29 68 2.17 67, 68 2.18-22 68

3.14 68 4.20 52 4.24 510 5.25 500 5.39.40 60 5.39-47 68 6 68 6.45 62 7.23 62 7.37-39 68 8 . 1 2 68 10.34-36 62 12.15 67, 68 12.38 67, 68 12.40 67, 68 13.18 62 15.26 162 16.12 62 19.24 67, 65 19.36 67, 68 19.37 67, 68 20.22 162 21.15-17 63 Atos I.3 63 2.17 150 2.17-21 64 2.25 64 2.34 64 4.11 64 7 64 7.30 5 JJ 7.40,41 64 9.26 582 II.30 582 13 536

604

13.34,35 64 15 55, 582 16.10-17 574 18.12-17 580 20.5-15 574 21.1-17 574 22.3 67 27.1—28.29 574 28.24 588 Romanos 1 88 1.16 120 1.17 166,212 1.18 218 3.10-18 66 3.20 219 4.1-12 66 4.10 66 4.17s. 65 5 529 5.12 216 5.12-21 529 5.15-21 66 7.7 65 9.2 585 9.7-9 65 9.12-19 6 6 1 0 .6 - 8 6 6 10.18-21 6 6 1145,? 1 1 .1 2 66

13.8 540 13.8-10 6 6 16.25-27 6 6

H I S T Ó R I A DA I N T E R P R E T A Ç Ã O B Í B L I C A

ICoríntios 1.26 520 1—4 173 2 .6 i 6 i 2.13 161 3.2 161 6.16 65 1172 9.9s. 6 6 10 5J6 10.1-4 6 6 11.3 42, 529 11.8,9 529, 5 15 172 15.1-11 444 15.3-5 64 15.29 42 2Coríntios 1—3 174 3.6 97 3.7-18 6 6 3.18 213 8 e 9 477 11 e 12 31 13.1 65 Gálatas 1.8,9 31, 582 1.12 587 1.18 587 1 e 2 582 2.1 582 2.9 584 2.13 585 3.8 65, 66 3.10-13 6 6

605

ÍN D IC E DE P ASS AG EN S B ÍB L IC A S

3.16 65, 66 3.17 66 3.28 125, 527, 529, 530 4.6 15 4.21-31 66 4.22ss. 198 4.24 106 Efésios 2.20 31 3.1-11 67 4.8 66 6.2 540 6.16 109 Filipenses 4.7 162 Colossenses 1.15-17 98 1.26s. 67 lTessalonicenses 2.15 585 lTim óteo 2.11-15 42, 494, 527 2.12 529 2 Timóteo

3.16 24, 202 Hebreus 1.2 17 1.5-13 73 2.2-4 73 2.8,9 72

3.7—4.13 72 4.1-11 73 4.12 101 5.5,6 73 8 .1 -1 0 .1 8 73 8.8-13 72 9.13,14 73 10.19 74 10.19-39 72 10.28,29 73 11 73 12.25 73 Tiago 2.1-4

520

1 Pedro 1.24ss. 64 2.7 64 2Pedro 1.21 24 3.15,16 31 ljo ão 5.7 356 Apocalipse 1.8 533 3.7 162 3.20 41 4 460 4.7 454 1458 12 134 13.8 69 20.1 456 20.1-6 457

ÍNDICE REMISSIVO A Abbott, E. A. 349 Abelardo, Pedro. Veja Pedro Abelardo abordagem da história das religiões 339, 341,364,365,370,426,429,430, 434,441,443,476 Acácio de Cesareia 89 Achard de São Vítor 140,158 Adams,T. 187 Adelmo de Malmesbury 134 Adriano 94 Agostinho de Hipona 29,90,91,92,93, 94,107,109,110,116,125,126, 127,130,153,159,213,214,216, 245,261,371,454,458,498,499, 533,541 Agouridis, S. 474 Aiiaroni, Y., 398 Ainsworth, H. 187 Aland, B. 434 Aland, K. 434 Albright W .E 392,394,395,396,397, 398,410,415,476,482,483 Alcuíno de Iorque 135,136 alegoria 42,66,82,90,92,93,94,95,96, 97,100,101,102,103,105,106, 108,110,116,120,121,130,135, 137,140,142,151,152,153,154, 155,156,159,161,163,185,189, 190,193,198,199,295,499,501, 502,504,506,510,534 alemão, idioma 142,171,173,176,245, 272,273,346 Alexander, J. A. 289,310,311,312 Alexandre, o Grande 47,52

Alford, H. 345,578,579 Allison, D. C. 439 Allis, O. T. 316,317,319,321,551 Alm, R. von der. Veja Ghillany, F. W. AlstedJ. H. 185 Alt, A. 281,312,384,388,390,398,408, 409,410,483,542 Alter, R. 478 Althamer,A. 173 Ambrosiastro 90,92 Ambrósio Autperto 134 Ambrósio de Milão 90,107 Ames, G. 187 Ammon, C. F. von 332 Amom (rei) 264 Amônio de Alexandria 572 Amoraim 50 Anderson, B. W. 397 André de Cesareia 572 André de São Vítor 139,153,159,250 anglicanismo 327 Annet, P. 232,243 Anselmo de Laon 137 Antigo Testamento, cânon do 27,30,35, 47,75,289,299,555 Apocalipse, livro de. Veja literatura apocalíptica Apócrifos 27,28,29,32,33,177,181,392 Apolinário de Laodiceia 89 Apríngio de Beja 94 Aquenáton 384,410 Áquila 83 árabe, idioma 132,296 aramaico, idioma 48,77,93,245,261, 343,372,436,473,573

608

Arátor 572 Archer, G. L. 554 Ário 84,85 Aristóteles 132,184,213,214,233,488 armênio, idioma 77, 84,93 Armínio,J. 237 Arndt, W. F. 431 Arnold, M. 346 Arnold,T. 288,343 Arouet, F. M. Veja Voltaire arqueologia 274,278,290,302,304,379, 381,383,385,393,394,395,396, 397,398,399,406,407,410,426, 442,482,520,558,563,578,582 Astruc,J. 240,259,260 Atanásio 32,85,104,105 Auerbach, E. 471,490 B Bacon, Roger 142 Bahrdt, K. F. 246,329 Barclay, W. 437 Barrett, C. K. 440 Barnes,W. E. 300 Barr,J. 474 Barth, K. 42,43,76,333,340,379,425, 431,432,443,561,583 Basílides 80 Basílio de Cesareia 8 6 , 89,116,120,127 Bauckham, R. 462,463,479 Baudissin, W. W. G. von 286 Bauer, B. 333 Bauer, G. L. 248 Bauer, W. 431 Baumgarten, M. 334 Baur, F. C. 323,324,325,327,330,331, 333,334,335,336,338,346,358, 359,360,361,362,363,364,371, 374,436,447,572,573,574,575, 576,592

H I S T Ó R I A DA I N T E R P R E T A Ç Ã O B Í B L I C A

Bayle, R 239 Beato de Liébana 134 BeckJ.T. 333 Beckwith, R. T. 30,34,555 Beda 135,145,146,147,155,157,164,572 Beddoes,T. 236 Belarmino, R. 183 Belinsky, V. 488 Belsham,T. 236 BengelJ.A. 235,242,243,254,333, 557,573 Bennett, C. 396 Bentley, R. 233 Bentzen, A. 390 Bérengar de Tours 137 Berger, R 515 Bernardo de Claraval 138,161 Best, E. 440 Betz, H. D. 477 Bibliander,T. 177 Billerbeck, P. 426,429 Bimson,J. 482 Black, M. 438 Blaikie, W. G. 297 Bleek, F. 279 Blomberg, C. 506,511,560 Blount, C. 230,265 Boaventura 142 Boff, L. 516 Bonar, A. A. 295 Bonfrère,J. 183 Bonino,J. M. 515 Borg, M .J. 484 Bornkamm, G. 210,433,446,476 Bousset,W. 435 Boyd, R. 185 Brandon, S. G. F. 437,449 Breasted,J. H. 395,411 Brenz,J. 174 Bretschneider, K. G. 329

ÍN D I C E R E M I S S I V O

BrightJ. 396,397,413,414 Brightman,T. 185 Broughton, H. 187 Brown,J. (de Edimburgo) 344 Brown,J. (de Haddington) 234 Brown, J. (de Whamphray) 188 Brown, R. E. 476 Bruce, A. B. 347 Bruce, F. F. 552,584,585,586,589 Bruno Cartuxo 137 Bruno de Asti ou Segni 137,151 Bruno de Würzburg 136 Bucer, M. 175,176,177,178,181,202, 204,210,218,219,372 Buchsel, F. 430 Buckminster,J. S. 343 Budde, K. 287 Budé, G. 171 Bugenhagen,J. 173 Bullinger, J. H. 177,218,219,495 Bultmann, R. 264,313,340,371,429, 432,433,434,437,440,442,443, 4 4 4 , 4 4 5 , 4 4 6 ,447,452,472,473, 476 Bunsen, C. C.J. von 279,286,290 Bunyan,J. 103 Burkitt, F. C. 350 Burney, C. F, 299 Burrowes, G. 163 Burton, E. De W. 349 ButlerJ. 234 Byfield, N. 187 C Cadbury, H.J. 437,583,584 Caetano, Tomás de Vio 180,181,209, 219,220 Caird, G. B. 438 Calcedônia, Concilio de 77,78, 79, 8 8 , 93,94,96

609

Callaway,J. 396 Calmet, A. 240,266,311 Calvino, J. 42,43,159,167,171,175, 176,177,178,179,180,184,185, 191,193,194,196,201,202,203, 204,205,209,212,213,214,215, 216,217,218,219,220,221,250, 261,309,371,372,376,456,468, 499,500,502,534,537,541,573 Camerário,J. 183 cânon alexandrino 29,30 cânon etíope 27,30 Capito, W. 175 Cappel (Cappellus) 238 Cardonnel,J. 538 Carlos I 168 Carlos Magno 77, 79,129,135 Carlos V 175 Carlstadt. Veja Karlstadt Carson, D. A. 559 Cartwright, T. 187 Case, S. J. 435 Casseis, W. R. 579,580 Cassiano,João 133,147 Cassiodoro 94,133 Castellio, S. 171 Chais, C. 241 Charles, R. H. 299 Cheyne,T. K. 263,298,314,319,321, 415,416,417,419,420,424 Childs, B. S. 36,37,319,320,321,474, 487,510,511,535,539,542,543 Chillingworth, W. 192,466 Chubb, T. 232 Cirilo de Alexandria 85 Ciro 314,316,317,321,412,417 Clarke, A. 290 Clarke, S. 233 Cláudio de Turim 135 Clemente de Alexandria 83,101,261

610

Clemente VIII 183 Cludius, H. H. 328 Cocceius, J. 186,205 Cohn-Sherbock, D. 72,76 Colani,T. 334,352 ColensoJ. W. 285,291,292,293,294, 313 Coleridge, S. T. 343 Colet,J. 171 Collins, A. 231,233,234 Colombo, Cristóvão 165 Columbano 134 Constantino 133 Conybeare, W. J. 344 Conzelmann, H. 434, 446,577 copta, idioma 77 Cotton,J. 187 Coverdale, M. 176 Craigie, P. 268,422,423,424,557 Cranfield, C. E. B. 214,215,216,217, 218,219,220,439 Cranmer,T. 175,176,192 Creed,J. M. 435 Cremer, A. H. 335,341 Crisóstomo,João 79,88,107,181,216, 572 cristãos primitivos 24,264,367 crítica canônica 474,481,486,489,495, 510. Veja também Escrituras, cânon das crítica da forma 337,388,399,403,415, 418,420,427,430,432,436,442, 446,460,466,488,489,492,502, 542,576 crítica da redação 389,410,411,428,431, 433,434,436,445,446,447,466 crítica histórico-gramatical. Veja método histórico-gramatical crítica literária 88,183,184,236,346, 349,385,389,410,427,471,472,

H I S T Ó R I A DA I N T E R P R E T A Ç Ã O B Í B L I C A

473,478,480,481,487,488,489, 490,491,495,539 crítica textual 254 Cromwell, O. 208 Crossan,J. D. 478,493,511 Cruden, A. 234 Cudworth, R. 233 D Dahl, N. A. 434 Dahood, M .J. 393 Dalman, G. 397 Dâmaso 91 Dante 41,103 DarbyJ.N. 457 Dario, o Medo 392,417 Davi 27,51,56,57,106,197,206,232, 239,253,268,293,295,309,310, 311,384,385,408,411,415,417, 419,420 Davidson, A. B. 296 Davidson, S. 295 Davies, W. D. 439 Davis,J. 550 Declarações de Chicago 39,566,567 deísmo 230,231,233,234,257,538 Deissmann, A. 341 Deissner, K. 342,368 Delitzsch, F. (filho) 286,383 Delitzsch, F. (pai) 280,283 Denney,J. 550 Derrida,J. 492,493 Deuteronômio 268 De Wette, W. M. L. 260,266,267,268, 269,277,278,279,280,281,282, 283,288,289,292,301,306,313, 329,335,383,574 Dez Mandamentos, os 543 Dibelius, M. 430,576,577,585, Dickson, D. 188

ÍN D I C E R E M I S S I V O

Dídimo, o Cego 79,85,86,105,572 Diestel, L. 282 Dillmann, A. 285 Diodoro de Tarso 79,87 Dionísio de Alexandria 84,104,456 Dionysius bar Salibi 572 dispensacionalismo. Veja literatura apocalíptica Dobschütz, E. von 341 Dodd, C. H. 436,437,451,498,500, 501,502,503,504,505,506,511, 552,554 Dõderlein,J. C. 245,314 Dods, M. 348 Driver, G. R. 393 Driver, S. R. 297,314,315,393,394 Duhm, B. 287,298,314,319 Dunn,J. D. G. 479 Durham,J. 188 Durkheim, E. 386 Dyer, G. 236 E Eadie,J. 345 Ebeling, G. 473,493 E ckJ. 171 Eckhart, Meister 142 Ecolampádio,J. 174,176 Ecumênio 94,572,573 Edersheim, A. 346 Eduardo VI 168 EfirdJ. M. 477 Efrém, o Sírio 93,572 Eichhorn, A. 339 Eichhom,J. G. 247,248,258,259 Eichrodt, W. 389,390,412,413,423 Eissfeldt, O. 389,390 Eliezer ben Jose ha-Galili 58 Eliezer de Beaugency 139 Eliot, G. 352

611

Eliot,T. S. 488 Elizabeth I 168 Ellicott, C.J. 348 Elliott-Binns, L. E. 392 ElliottJ. H. 516 Ellis, E. E. 555 E llulJ. 514,515 Emerton,J. A. 476 Engnell, I. 391 Epístola de Barnabé 32,78 Erasmo 90,91,165,167,170,171,173, 176,181,209,221,242,251,357 Ernesti,J. A. 244,248 escatologia 52,54,56,332,338,369, 406,425,432,437,441,460, 503. Veja também literatura apocalíptica escribas 49,50,56,59,60,68,82,239, 240,357,500 Escrituras, cânon das 37 natureza das 25 Espinoza, B. 139,238 Essays an dreview s 279,290,313,370, 466 essênios. Veja Qumran; Estienne, R. 180 estruturalismo 493 Euquério de Lião 95,136 Eusébio de Cesareia 32, 8 6 Eusébio de Emesa 89,572 Eusébio de Samosata 122 Eutálio, o Diácono 572 Evágrio do Ponto 86 evangélicos 189,266,255, 309,416, 458,466,468-9,471,424,480, 545-50,552-4, 556,568-9,5613,566-70,572,579,582,586, 550,554 Evans, C. F. 439

612

Ewald, H. 279,281,282,285,292,296, 298,301,416,541,542 Êxodo, o 543 Ezequias 277,287,306,313,354 F Fairbairn, P. 291 Falkland, Lorde 230 Farei, G. 178 fariseus 29,30,49,50,51,52,53,54,56, 61,62,82,483,492,494,540,588 Farmer, W. R. 262,263,371,374,377,473 Farrer, F.W. 348 Fee, G. D. 557 Feine, P. 341 feminismo 382,467,525,526,527 Fergusson,J. 188 Ficino, M. 170 Filo 48,53,55,59,65,72,78,79,82,83, 85,99,100,101,111,116,117, 118,119,120,121,123,124,125, 333,358,533,536 Fiorenza, E. S. 516,527,528,531 Fishbane, M. 51,69 Fitzmyer, J. A. 473 Flácio Ilírico, M. 184 Foakes-Jackson, F. J. 300,351 Fohrer, G. 390 fonte Qj. Veja problema sinótico, o Fragmento Muratoriano 32 France, R.T. 558 francês, idioma 168,171,225,227 Francisco de Assis 151,152 Francke, A. H. 241,242 Frazer,J. G. 386,387 Frederico II 152,456 Frei, H. W. 472,490,496 Frend,W. 236 FriesJ.F. 279 Frye, N. 43,472

H I S T Ó R I A DA I N T E R P R E T A Ç Ã O B Í B L I C A

Fuchs, E. 472,478,493,506 Fulberto de Chartres 136 Fuller, R. H. 440 fiindamentalismo 327,474,546,547 Funk, R. W. 26,475 G GablerJ. P. 248,258,288 Gadamer, H. G. 473,493 Gager,J. 520 Gagny (Gagnaeus), J. de 181 Garstang, Sir}. 394,395 Gasque,W. W. 583,590 Geddes, A. 236,248,260,263,266,306 Gehman, H. S. 393 gênero. Veja crítica da forma George, J. F. L. 281 Gerhard,J. 185 Gérson, J. 143 Gesenius, W. 279,283,286,290,314 Ghillany, F. W. 333 Gibbs,J. W. 290 Gieseler,J. C. L. 330 Gilbert de la Porrée 138 Gilson, E. 533 Gingrich, F. W. 431 glosas 136,137,141,148,152 Glueck, N. 394,395,396 gnosticismo 78,80,339,426,448,558 Godet, F. 352 Gogol, N. 488 Goldingay, J. E. 558 Good, E. 491 Goodwin, C. 289,290 Goppelt, L. 432 Gottwald, N. K. 515,522,528,531,532, 535,537,542,544 Graetz, H. 30 Graf, K. H. 280 Gramberg, C. P. W. 279

ÍN D I C E R E M I S S I V O

Gray, G. B. 298 Gray,J. 393 grego, idioma 45,48,49,53,66,70, 77, 84,88,89,91,93,130,132,136, 142,170,171,180,185,195,217, 253,299,327,329,330,333,341, 345,347,348,350,355,431,432, 439,442,449,451,452,453,474, 534,568,584,585 Gregório de Agrigento 94 Gregório de Nazianzo 91 Gregório de Nissa 86,116,120,124,128 Gregório, o Grande 77,79,94,110,133, 135,146,147,157 Gregory, R. 235 Gressmann, H. 388,389,401 Griesbach,J.J. 246,247,251,262,263,264, 341,371,372,373,374,377,473 Grócio, H. 237 Grosseteste, R. 141,142 Guemarás 50 Guiberto de Nogent 137 Guilherme de Auvergne 141 Guilherme de Ockam 154 Guilherme de Saint-Thierry 138 Guilliaud, C. 181 Gundry, R. H. 556,566 Gunkel, H. 340,365,366,383,384,385, 387,388,389,390,391,398,399, 400,401,402,403,404,405,406, 411,414,418,419,424,427,430, 432,442,488 Günther, A. 280 Guthrie, D. 553 Gutiérrez, G. 515,523 H Haacker, K. 558 Haenchen, E. 577,586,587,588,589,590 Hagadá 50,59

613

Hahneman, G. M. 32,34 Haimo de Auxerre 135 Haimo de Halberstadt 136 Halacá 50,51,59,139 Haldane, R. 343 Hamann,J. G. 244,246 Hamurábi 304 Handel, G. F. 41 Hardegree,J. L. 526,531 Harnack, A. von 80,339,346,364, 368, 374,379,425,430,583 Harper, W. R. 297 Harrison, E. 553 Harrison, R. K. 553 Harvey, A. E. 477 Hase, K. A. 335 Hatch, E. 346,364 Hausrath, A. 338 Hawkins,J. C. 350,374 Headlam, A. C. 349,435 hebraico, idioma 83,91,92,140,195, 238,239,277,279,283,286,290, 299,533,534 Hegel, G. W. F. 282,330,358,359,361 Heidegger, M. 442,472,473,493 Heitmüller, W. 339,365 Hemer, C. 590 Hemmingsen, N. 184 Hengel, M. 475,558 Hengstenberg, E. W. 283,284,290,291, 309,310,311,312,315 Henrique IV 226 Henrique VIII 167,168,255 Henry, M. 188 Herbert de Cherbury, Lorde 230 Herberto de Bosham 140 HerderJ. G. 111,244,246,247,255, 256,262,278,280,288,330,372, 379,400 Hermas 32

614

Hermógenes 80 Heródoto 302 Hesíquio de Jerusalém 572 H essJ.J. 248 Heyne, C. G. 246,247,248 Hilário de Poitiers 90,107 Hildegard de Bingen 468 Hilgenfeld, A. 336 Hillel 50,57,58,62,66,72,108 Hilquias 230,240,264,265,266,267, 268,307,308 Hipólito 82,159 História das religiões. Veja abordagem da história das religiões. Hitler, A. 380 Hitzig, F. 282 Hiyya 50 Hobbes,T. 229,264,265 Hodge, C. 345 Hoffmann, J. C. K. von 284 Holcot, R. 142 Homero 55,275 Hooker, R. 192 Horne,T. H. 290,298 Horst, G. K. 249 Hort, F.J.A. 329,347 Hoskyns, E. C. 351,452 Houlden,J. L. 477 Howson,J. S. 344 H u gJ.L . 328,329 Hugo de São Cher 141,152 Hugo de São Vítor 137,139,149,155 Hume, D. 234,244 Hunnius, G. 185 Hupfeld, H. 280,294 H ussJ. 131,143 Hutcheson, G. 188

I Ibn Ezra 139,314,536

H I S T Ó R I A DA I N T E R P R E T A Ç Ã O B Í B L I C A

Igreja Católica Romana 20,38,183, 309,328 Igreja Ortodoxa Oriental 27,38,105, 549 Ilgen, K. D. 249,260 Iluminismo 169,225,234,250,273, 421,487 inerrância. Veja inspiração das Escrituras Inge, W. R. 436 inglês, idioma 135,143,175,292,305, 469,526,593 inspiração das Escrituras 54,104,183, 294,317,345 Ireneu 31,81,82,98,455,540 Ishmael ben Elisha 58 Ihso'dad de Merv 572 Isidoro de Pelúsio 106 Isidoro de Sevilha 134

J Jaime I 237 Jâmnia, Concilio de 29,30 Jeremias, J. 433 Jerônimo 29, 84, 8 6 , 87, 91, 92, 96, 103,107,134,135,140,170, 194,250,455 Jesus 15,16,30,31,48,49,50,51,52,53, 54,55,56,57,59,61,62,63,64,65, 67,68,70,72,73,74,75,79,84,85, 87,93,97,98,102,104,106,125, 162,198,199,203,206,228,229, 232,243,246,247,248,253,257, 263,264,273,274,288,289,300, 309,311,318,323,324,325,326, 327,328,329,330,331,332,333, 334,335,336,337,338,339,341, 342,347,352,353,355,356,357, 359,360,361,362,363,365,366, 367,368,369,370,371,373,374, 376,381,385,391,412,423,426,

615

ÍN D IC E R E M I S S I V O

427,428,430,432,433,434,435, 436,437,438,440,441,442,443, 444,445,446,447,449,450,451, 452,453,460,472,473,475,476, 477,478,479,483,484,485,492, 494,498,499,500,501,502,503, 504,505,506,508,509,510,511, 515,516,517,520,521,523,524, 527,533,536,540,551,557,558, 560,566,570,581,585,586,588, 589,591 João 54,67,68,83,85,174,175,177,181, 184,188,197,249,261,262,263, 324,329,331,332,333,334,336, 432,436,440,453,461,533,554 João Crisóstomo. Veja Crisóstomo, João João de Ragusa 143,155 João Escoto Erígena 136 Joaquim de Fiore 141,152,455 Jorge II 227 José de Arimateia 246 Josefo, F. 53,533,536 Joseph Bekhor Shor 139 Joseph Kara 139 Josias 27,264,265,281,302,305,308, 410,416 Jowett, B. 289,344,347,466 Judá Ha-Nasi 50 judaísmo 26,27,28,29,35,48,49,50, 51,52,53,54,55,59,61,63,70, 72,74,75,82,95,97,139,153, 229,232,282,325,329,333,334, 336,339,347,359,362,363,364, 365,366,367,368,370,381,413, 416,426,428,429,431,436,439, 440,441,449,450,460,475,478, 479,481,483,484,574,575,588 judaísmo da Diáspora 54,72,429 Judas Macabeu 27,30 Judge, E. A. 528

Juliana de Norwich 468 Jüíicher, A. 342,368,500,502,504,505 Jüngel, E. 478 Junilius 133 Jurieu 239 Justiniano 133,148 Justino Mártir 80,540 Justo de Urgel 94 K Kábisch, R. 370 Káhler, M. 337,365,431,443 Kaiser Jr., W. C. 556,559 Kalisch, M. 294 Kammermeister. Veja Camerário Kamphausen, A. 286 Kant, I. 244,246,295 Karlstadt, A. B. von 173 Kásemann, E. 433,446,452,460,476 Kayser, A. 285 Keck, L. 476 KeilJ. K. F. 283 Keil, K. A. G. 247 Kelso,J. L. 396 Kennedy, H. A. A. 350 Kennicott, B. 235 Kenyon, K. 396 Kidner, F. D. 554 Kimchi, D. 139 Kirkpatrick, A. F. 300 Kissane, E.J. 315 Kittel, G. 431,474 Kittel, R. 287 Knowling, R.J. 348 Knox,J. 438 Knox, W. L. 436,584 KõberleJ. 387,388,389 Koester, H. 476 KoppeJ.B. 235,245,261,262,372 Kraus, H.J. 390

616

Kuenen, A. 285 Kümmel, W. G. 433 Kurtz, J. H. 285 L Lachmann, K. 329,362,373,442 Ladd, G. E. 552 Lake, K. 351,435,583,584 Lambert, F. 173 Lane, W. 71 Lanfranco de Bec 137 Lange,J. P. 112,334 Langton, S. 140,141,150,153 Lapide, Cornélio a 183 Lapp, P. 396 Lardner, N. 234 latim, idioma 77,84, 86,87,89,91,129, 130,133,142,165,168,170,171, 176,180,183,184,185,225,235, 266,329,343,454,534 Laud, G. 168,192,237 Layard, H. 395 Leão III, papa 129 Lechler, G. 334,575 Le Clerc, J. 239,240,372,537 Lefevre d’Etaples, J. 170 Leighton, R. 188 Leiman, S. Z. 30,35 L’Empereur, C. 186,212 Leo Magistro 572 Lessing, G. E. 243,244,245,261,262, 264,313,371,372 Lessius, L. 183 Lévi-Strauss, C. 492 Lewis, C. S. 471,490 Lewis, J. P 30 Lias,J.J. 298 liberalismo 22,109,181,225,227,232, 243,272,274,288,289,294, 299,327,340,344, 356,370,

H I S T Ó R I A DA I N T E R P R E T A Ç Ã O B Í B L I C A

379,382,425,435,459,486, 546,547,549,550 Lietzmann, H. 430 Lightfoot, J. 229 Lightfoot, J. B. 346,347,348 Lightfoot, R. H. 436 Lindsay,W. 344 Lindsey,T. 236 Linnemann, E. 486 literatura apocalíptica 21,75,331,336, 339,365,366,370,392,425,451, 453,460,461,462,479 Lloyd-Jones, D. M. 552 LockeJ. 228,229,230,475 Lohmeyer, E. 430 Loisy, A. 576 Loman, A. 576 Longenecker, R. N. 64,65,70,555 Lowth, R. 235,245,254,255,261 Lucas 54,67, 85,247,261,262,328, 330,331,339,344,351,359,362, 372,373,375,404,429,447,572, 573,574,576,577,578,581,588, 589 Lücke, G. C. 330 Luís XIV 169,237 Luís XV 240 Lutero 33,143,159,163,166,167,169, 170,171,172,173,174,175,176, 178,180,181,184,191,194,196, 198,199,200,201,203,209,212, 213,214,215,216,217,220,271, 286,326,456,478,534,537,541 M Machen,J. G. 550,551 Maier, G. 464,485,486,496,557 Maimônides 139 Maldonado,J. 182 Malherbe, A. J. 515

ÍN D IC E R E M I S S I V O

Manson, T. W. 436,437 Manton,T. 187,188 Marcião 31,32,78,79,81,95,97,101, 324,340 Maria 103,534 Maria I 168,177 Marlorat du Pasquier, A. 180 Marshall, I. H. 26,263,556,571 Marsh, H. 343 Martens, E. A. 556 Martin, H. 294 Martin, R. P. 555 Martyn,J. L. 475 marxismo 382,467,492,522,524,530 Marx, K. 522 Marxsen,W. 433 Masius, A. 182 Mateus 31,54,67,68,83,86,88,92,108, 135,136,171,172,174,175,177, 181,188,245,247,261,262,330, 331,332,349,350,352,359,362, 371,372,373,375,376,392,430, 433,434,439,451,473,474,504, 533,536,551,554,556,558,566 Mathews, S. 435 Maurice, F. D. 291,293,294 Máuslein. Pe/a Musculus Máximo, o Confessor 89,134 McGovern, A. F. 524 Mede, J. 185,186 Meeks, W. A. 515,520 Meijboom, H. U. 341 Meinhold,J. 287,288 Melâncton, F. 171,173,174,183,201, 202,204,218,219,309 Melitão de Sardes 78, 81 Mesrob (Mesrop) 93 método histórico-gramatical 87,247, 248,356,357 Metzger, B.M . 439

617

Meyer, B. F. 476,483,484 Meyer, H. A. W. 247,331 Michaelis,J. D. 241,244,245,247,266, 291,292,323,343,574 Michel, O. 553,558 Midrash, Midrashim 566 milenarismo. Veja literatura apocalíptica MiU (Mills),J. 230,242 Miller, P. M. 40,482 Milligan, G. 348 Milman, H. H. 291 M iltonJ. 41,103,211 Mishná 50,53,60,80,413 Moffatt,J. 435 Moisés 16,28,35,55,61, 62, 68, 80, 82, 83,117,118,121,126,140, 182,197,206,221,229,230, 240,245,260,264,265,266, 267,282,286,287,288,305, 306,311,392,410,412,461, 526,532,533,535, 537,540 montanismo 324 Montano 82 Montano, B. A. 182 Montgomery,J. A. 392 Moo, D.J. 560 Moore, G. F. 350 More, H. 233 Morgan, T. 231,232 Morin (Morinus), J. 238,239 Morris, L. L. 554 Motyer,J. A. 554 Moule, C. F. D. 439 Moule, H. C. G. 349 MoultonJ. H. 348 Mowinckel, S. 391,402,403,406,414, 415,418,419,420,424 Mozley,J. B. 292 Müller, F. M. 306 Musculus (Máuslein), W. 177

618

N

Nachtigall,J. C. K. 247 Neander, A.W . 332 Neill, S. C. 438 neologia 263 neo-ortodoxia 380,388,425,428,432, 583 neoplatonismo 77,95,134 Nepos 452 nestorianismo 87,167 Nestório 88 Newman, F. W. 295 Newman,J. H. 295 Newton, I. 230 Nicholson, E. W. 479 Nicodemos 246 Nicolas, M. 351 Nicolau de Lira 142,181,213,264 Nineham, D. 473 Nisbet, A. 188 Nõldeke, T. 287 Norton, A. 344 Noth, M. 281,384,388,390,391,398, 408,409,410 nova hermenêutica 466,481,493,494, 495,506,562 Novo Testamento, cânon do 30,31,33, 34,70,351,367 Noyes, G. R. 291

O Oesterley, W. O. E. 392 Olevianus, K 184 Olshausen, H. 328 Onri 410 Orígenes 22,78,79,83,84,85,86,87, 90,91,96,97,101,102,103,107, 109,110,133,136,137,147,160, 452,572 Orr,J. 550

H I S T Ó R I A DA I N T E R P R E T A Ç Ã O B Í B L I C A

Osiander, A. 174 Othmar. Veja Nachtigall, J. C. K. Otlo de Santo Emerão 137 Ottley, R. L. 300 Otto, R. 429 Overbeck, F. 335,338,363 Owen,J. 187 P Packer,J. I. 561 Paine, T. 265,266 Paley, W. 236,573,574 Panfílio 86,572 Papias 31,261,262,373 parábolas 511 Parker, T. 289 Parker, T. H. L. 212,218 Pascásio Radberto 136 Patrick, S. 188 Patrides 452 Paulo 21,22,54,64,65,66,67,97,106, 161,162,170,183,198,212,214, 215,216,217,219,220,253,334, 336,338,340,341,353,355,359, 362,363,364,366,368,370,428, 429,434,441,444,445,448,450, 458,478,485,494,500,520,521, 528,529,530,536,540,573,574, 575,576,578,580,582,585,587, 588,589 Paulo de Burgos. Veja Santa Maria, Pablo de Paulus, H. E. G. 329 Peake, A. S. 299 Pedersen,J. 390 Pedro Abelardo 138 Pedro Cantor 140,141,150,157 Pedro Comestor (Manducator) 140 Pedro Damião 136 Pedro de Sebaste 86

619

ÍN D I C E R E M I S S I V O

Pedro Lombardo 138,148,180 Pedro Mártir Vermigli 177 Pelágio 92,217 Pellican, C. 177 Pentateuco 28,53,71,82,88,89,93, 110,139,140,172,176,180,182, 187,188,197,205,221,238,240, 247,248,249,259,260,264,266, 267,268,278,279,280,281,285, 286,287,288,292,293,294,295, 298,306,307,308,309,376,383, 384,387,388,389,390,401,402, 412,419,532,550,551 Pereira, B. 182 Perkins, P. 508 Perkins, G. 187 Perowne, J. J. S. 297 Perrin, N. 437 Petrie, Sir Flinders 394,395 Peyrère, I. de la 239 Pfleiderer, O. 338,364 pietismo 241,242,245,257,328,553 Planck, K. C. 333 Plastaras,J. 534 Platão 55 ,80 ,82,83,232,355,498, 534,535 platônicos de Cambridge 232 platonismo. Veja neoplatonismo Plummer, A. 349 Plumptre, E. H. 294 Policarpo 31 Polituo A. C. 181 Poole, M. 188 Pope, M. 163,164 postilas 141,142,157 Priestly,J. 236 Primásio de adrumeto 92 PritchardJ. B. 396 Problema sinótico, o 351,377 Procópio de Gaza 94

Propp, V. 492 Próspero de Aquitânea 94 Ptolomeu II 417 puritanismo 173 Pusey, E. B. 273,292,293,297

a

quiliasmo. Veja literatura apocalíptica Qumran 28,29,30,49,52,54,59,60, 65,67,68,69,70,71,83,233,235, 381,398,426,439,442,450,473, 474,519 Quodvultdeus 95 R Rábano Mauro 136 racionalismo 154,198,228,229,232, 237,242,246,251,253,255,256, 257,258,259,328,361 Rackham, R. B. 348 Ralf de Laon 137 Rambach,J.J. 242 Ramm, B. 561 Ramsay, Sir W. 340,351,426,447,448, 552,582,583,584 Ramsey, A. M. 438,582,584 Ranke, L. von 284 Rashbam. Veja Samuel ben Meir Rashi 139,140,317 Reimarus, H. S. 243,323,484 Reinhard, F. V. 247 Reisner, G. 395 Reitzenstein, R. 337,340,367 Remígio de Auxerre 136 Renan, E. 352 Retício de Autun 89 Reuchlin,J. 171,176 Reuss, E. 285,335,352 revelação, conceito de 19 Réville, A. 352 Ribera, F. 182

620

Ricardo de São Vítor 140 Richards, I. A. 488 Ricoeur, P. 473 Riehm, E. 285 Ritschl, A. B. 334,337,362,369,550 Roberto de Melun 139 Robertson, A. 349 Robinson, E. 290 Robinson, H.W. 391 Robinson, J. A. 350 Robinson,J. A.T. 438,448 Robinson, J. McC. 475 Robinson, R. 236 Robinson, T. H. 392 Rollock, R. 184 Romantismo 250,255,257,400 Rose, Henry 291 Rose, Hugh 288 Rossi, G. B. de 241 Rowley, H. H. 392 Rudolph, W. 389 Rufino 84,91 Ruperto de Deutz 137 Ryle, H. E. 299 R yleJ.C . 299 S SadoletoJ. 181,210,219 saduceus 49,51,54,57,62,533,588 Safã 265 Salmeron, A. 182 Salomão 27,160,161,206,229,266, 268,277,294,309,408,415,566 samaritanos 28,49,52,53,54,55,60, 240,499,509,510,519 Samuel ben Meir 139 Sanday,W. 349,374,435 Sanders, E. R 478,483,484 Sanders,J. A. 476,487 Santa Maria, Pablo de 143,213,214

H I S T Ó R I A DA I N T E R P R E T A Ç Ã O B Í B L I C A

Sasse, H. 551 Saussure, F. de 491 Sayce, A. H. 394,395 Scherer, E. 351 Schlatter, A. 333,341,363 Schleiermacher, F. D. E. 247,273,323, 327,330,373 Schliemann, H. 275 Schlier, H. 433 Schmidt, K. L. 431 Schmiedel, R W. 338 Schneckenburger, M. 331 Schniewind, J. 431 Scholten, J. H. 334 ScholzJ. M. A. 329,330 Schürer, E. 336 Schürmann, H. 434 Schwegler, A. 331,575 Schweitzer, A. 323,326,332,338,342, 356,370,371,374,381,425,428, 441,450,460 Schweizer, E. 434 Scofield, C. I. 457 Scott,T. 236,263 Segundo Concilio de Constantinopla 79 Segundo, J. L. 515 Semler, J. S. 242,244,245,247,257,323 Sêneca 178 Septuaginta 27,28,29,65,70,83,86,91, 92,93,100,122,135,194,195, 238,239,304,346,348,533 Setel, D. 0 ’D. 535,539,542,543,544 Severiano de Gabala 106 Sexto de Siena 181 Shakespeare 255 Shammai 50,57 Sherlock,T. 234 Silva, M. 559 Símaco 83 Simeon, C. 343

ÍN D I C E R E M I S S I V O

Simon, R. 239 siríaco, idioma 77, 79, 84, 86, 93 Skinner, J. 299 Smend, R. 286,404 Smith, G. A. 300 Smith, H. P. 299 Smith, James 344 Smith, John 233 Smith, W. R. 296,297 sociologia 522 Soden, H. F. von 430 Sohm, R. 337,364 Spencer,J. 229,241 Spener, P.J. 241,242 Spicq, C. 435 Spurgeon, C. H. 295,309,311,312 Stade, B. 285 Stanley, A. P 292,344,345 Stanton, V. H. 349 Stáudlin, C. F. 248 Steck, R. 576 Stendahl, K. 3,50,473,478 Stonehouse, N. B. 551 Storr, G. C. 246,262,372 Strack, H. 429 Strauss, D. 323,328,329,332,334,336, 361,362,432,443,444 Strecker, G. E. 433 Streeter, B. H. 350,374,375,376,377 Stuart, M. 288,290,344,370 Stuhlmacher, P. 452,477,486,497,557 Sundberg, A. C. 30,35 Swete, H. B. 348 T Taciano 32,78,93,96,138 Talássio 134 Talmudim 51 Tanaim 50 Tannehill, R. 478

621

Tarfão 80 Targumim 50, 66 Tayler,J.J. 344 Taylor, V. 436 Temple, F. 289 Teodócio 83 Teodoreto de Cirro 88,107 Teodoro Beza 184,185,215 Teodoro de Mopsuéstia 79, 87,106,133, 134,159 Teodoro de Tarso 134 Teofilato de Ocre 572 teologia da aliança 65,167,176,184, 186,187,190,200,201,204,205, 207,208,209,294,487 teologia da libertação 467,522,523 Tersteegen, G. 243 Tertuliano 81,89,95,98,107,120,202, 540,541 Theissen, G. 479 Thiselton, A. C. 478,493,498 Tholuck, A. 283,343,431 Thompson, T. L. 482 Ticônio 90,92,94,107,108,109 Tindal, M. 231 Tischendorf, C. 333 Titelmans, F. 180 Toland,J. 231,264 Toleto, F. 182 Tolstói, L. 352 Tomás de Aquino 132,141,142,152, 153,180,186,541,563 Tomás de Chobham 141,150 Torá. Veja Pentateuco Torrey, C. C. 436 Toseftá 50 Toy, C. H. 298 Trapp,J. 188 Trible, P. 516 Trifão 80

622

Trullo, Concilio de 131 Tübingen, escola de 364,580 Tuckctt, C. 521 Tunstall, C. 175 Turner, C. H. 115,350,496 Turner, H. W. E. 427 Turretin, E 186,187,238,240,274,345, 563 Turretin, J. A. 240 Tylor, E. B. 386 Tyndale, W. 167,175,176,200,201 U Umbreit, F. W. K. 279 unitarismo 236,273,289,291 universidades alemãs 227,228,257, 341,486 Ursino, Z. 184 Usener, H. 338 Ussher,T. 187 V Valentino 80 Valia, L. 170 van den Steyn. Veja Lapide, C. a van Manen, W. C. 336 Vater, J. S. 248,260,266,267,306 VatkeJ. K. W. 282 Vaux, R. de 398 Venturini, K. H. 329 Verecundo de Junce 94 Vermes, G. 70,475 Via, D. O. 477 Vilmar, A. F. C. 332,333 Vincent, L. H. 398 Vitorino de Pettau 89,92 Vitorino, M. 90 Vitringa, C. 238 Vlacic. Veja Flácio Ilírico Vogel, E. F. 247,249

H I S T Ó R I A DA I N T E R P R E T A Ç Ã O B Í B L I C A

Volkmar, G. 247,335 Voltaire, 240,263,265 Von Rad, G. 388,389,390,411,412, 442 Vorstius, K. 237 Vos, G. 551 Vossius, G.J. 237 Vossius, I. 237 W Wainwright, A. W. 475 Waltke, B. K. 556 Warfield, B.B. 26,559,561,563,564, 565,566 Watts, J. D. W. 321,322 Weber, M. 386,388 Weiss, B. 337 Weisse, C. H. 331,373 Weiss,J. 337 Weizsàcker, K. H. von 335 WellhausenJ. 240,260,277,278,279, 281,285,286,287,288,296,297, 298,299,301,303,307,308,309, 383,384,385,386,387,389,390, 391,394,397,398,400,402,403, 405,407,410,411,541,542 Wendt, H. H. 339 Wenham, G.J. 559 W enhamJ. W. 554,559 Wernle, P. 342 WesleyJ. 226,234,235,255 Westcott, B. F. 329,347 Westermann, C. 320,390,415,420,421, 422,423,424 Wettstein, J. J. 242,253 Whichcote, B. 233 Whiston,W. 233 Whitaker, G. 187 Whitby, D. 233 Wilder, A. N. 472

623

ÍN D I C E R E M I S S I V O

Wilke, C. G. 330 W ilkinsJ. 229 Williamson, H. G. M. 321,479 Williams, R. 289,290 Wilson, R. D. 479,550,551 Winclisch, H. 429 W iseman, D.J. 397 Witherington III, B. 560 Witter, H. B. 240 Woolley, Sir C. L. 396 Woolston, T. 231,234 Wrede, W. 334, 336, 338, 367, 368, 371 Wright, G. E. 396 Wright, N.T. 560 Wundt, W. 386

Wycliffe, J. 131,141,142,143,154,155, 156,192,456 Y Yadin, Y. 71,398 Yamauchi, E. M. 558 Young, E. J. 315 Z Zacarias de Besançon 138 Zachariae, G. T. 243 Zahn,T. 340,583 Zanchi (Zanchius), G. 184 Zeller, E. 336,575 Zimmerli, W. 389 Zinzendorf, N. L. von 242 Zuínglio, U. 173,176,177

O passado e o presen te da in te rp re ta ç ã o bíblica n u m a o b ra singular! G erald Bray inicia a obra co m os conceitos básicos da interpretação bíblica que se m antiveram constantes na igreja ao lo ngo das diferentes eras: revelação divina, natureza do cânon, relação do texto bíblico com a vida das igrejas cristãs e tensões permanentes próprias da interpretação bíblica. N as três seções seguintes, a

p rim eira exam ina o p e río d o que vai da igreja antiga à R e fo rm a , a qual m arca o início da m o d e rn a in terp retação h istó rico -crítica; a segunda trata do desenvolvim ento dessa interp retação h istó rico -crítica m o d e rn a desde o fim do século 17 até o 20; e a terceira exam ina as tendências atuais na in terp retação bíblica que p ro cu ram o ferecer alternativas à escola da crítica histórica, a qual d o m in a o cenário atual. C ada seção está dividida em capítulos que c o n ce n tra m a atenção em perío d o s o u escolas de in terp retação e são divididos da seguinte form a: ♦ in tro d u ção ao p e río d o o u escola de interpretação; ♦ breve “ Q u e m é q u e m ” dos m ais im p o rta n te s in té rp re te s e respectivas obras; ♦ in tro d u ção às principais questões críticas, doutrinárias e herm enêuticas; ♦ abordagem e ilustração dos principais m étodos de interpretação co m exem plos de textos bíblicos; ♦ análise de u m livro o u trech o bíblico específico que exerceu u m papel fundam en tal nos estudos. Essas características valiosas da obra p e rm ite m que o leito r ten h a um a rápida visão das questões, dos m éto d o s e dos intérpretes de cada p eríodo, p o d e n d o assim observar co m o as questões clássicas e as perguntas mais im p o rtan tes definiram a fo rm a de a igreja utilizar as Escrituras nos diferentes contex to s históricos.

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