Weffort, Francisco - Por Que Democracia.pdf

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£ Em 1983, ecoavam na polí tica brasileira as greves de julho e os quebra-quebras da zona sul de São Paulo. As manifestações dos bóias- frias estavam ainda por vir, bem como as greves dos funcionários e os movimentos dos professores. Temia-se pelo que viesse a ser o ano de 1984. Agora, o perfil da transição brasileira se acha definido. E as apreensões se transferem para 85. Percebe-se que, uma vez mais em nossa hist ória, a transição para a democracia se faz “ pelo alto”. Este livro, escrito pelo experiente articulista polí tico e cientista social Francisco Weffort, discute o perí odo em que vivemos Mudamos ou estamos mudando? Que transição é esta? Por que Democracia?, cujo tí tulo poderia ser também Por que não Revolução?, é um ensaio polí tico, e,como tal, procura cumprir uma função: estimular o debate da democracia entre nós.

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PORQUE DEMOCRACIA

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rancisco C. Weffort

LEITURAS

Francisco

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UÜ — Vol. 4 — •Brasil Históãria o ( orgs -

R. Maranh

A Era de Vargas



A. Mendes Jr.,

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L . C. Bresser Pereira — Michel é gias Estrat outras e çã o " " •A Concilia Autorit á rios João Almino M. Debrun — •Os Democratas Motta •Empresários e Hegemonia Política — Fernando de Maio / 78 — Greves das lise á An — da Recusa gia é A Estrat • Amnéris Maroni •Explode um Novo Brasil — Diário da Campanha das Diretas — Ricardo Kotscho • A Fala dos Homens — Análise do Pensamento Tecnocr ático M. de Lourdes Covre • A For ç a do Povo — Democracia Participativa em Lajes — Márcio Moreira Alves Paulista — Vavy P. Borges • Getúlio Vargas e a Oligarquia /aude Lefort — C tica á o Democr çã A Inven • — Memória Fotográfica — Div. Autores •PCB — 1922 / 1982Quadros e a Crise Pr é-64 — M. Bandeira • A Renúncia de J . — Bóris Fausto • A Revolução de 1930 Neto • Sentido Dinâmico de Democracia — Elias Chaves o — R. Maranhão • Sindicatos e DemocratizaçãPol • Sindicalismo no Processo ítico do Brasil — K . P. Erickson •Sociedade e Política no Brasil Pó s 64 — Maria Herminia T. de Almeida ( orgJ

•O Colapso de uma Alianç a de Classes —

Por que democracia?



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Coleçã o Primeiros Passos

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Marilena Chauí •O que é Ideologia G— érard Lebrun é Poder que O — • Maar •O que é Política — Wolfgang LeoFernandes Florestan o çã — Revolu é que O •

Biblioteca MA - PUC

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Nadí

PUC/SP

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Cole çã o Tudo é História

— Jacob Gorender • A Burguesia Brasileira Uma Polí tica de Compromissos

• 0 Coronelismo —



Maria de

Lourdes Janotti

e o Golpe de 64 — Caio N. Toledo • 0 Governo GoulartQuadros — Maria Victoria Benevides • O Governo Jânio Kubitschek — R. Maranhão Juscelino Governo O • Boito Jr .

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— Armando Crise da República Velha — P. G. F Vizentini e a Liberais Os • •O Movimento de 1932 — Maria Helena Capelato • Revoluçã o de 30 — A Dominação Oculta — Í talo Tronca

•O Golpe de 1954

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1984

Copyright © Francisco C . Weffort Capa :

Ettore Bottini

Revisão: José W . S . Moraes Gilberto D’ Ángelo Braz *

índice

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Apresentação Introdu ção



PRIMEIRA PARTE

Que tradi ção é esta? \

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Uma herança de equívocos A democracia como instrumento E o golpe como prática habitual

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SEGUNDA PARTE

Que transição é esta? Transição para onde ? As derrotas da violência ou a questão do Estado As derrotas da violência ou a questão da democracia . O Estado na dianteira ou como se faz uma transição conservadora TERCEIRA PARTE

|

Democracia e revolução

editora brasiliense s. a . r . general jardim , 160 01223 são paulo — brasil



Revoluções da liberdade Por uma democracia revolucioná ria

". . .

Para Madalena .

encontrar a f órmula de um s lismo que não sacrifique no pro de sua construção as liberdades d cráticas .” (Antonio Când

Apresentação

Este livro é um argumento pela democracia no B , É pois, um ensaio político. E a minha esperança é cumpra uma função política , estimulando o debate s a questão da democracia entre nós. Há coisa de dois anos atrás , o professor Alfred Ste

da Universidade de Columbia e um dos melhores co cedores da política militar no Brasil, convidou-me escrever um artigo para urna obra coletiva a ser publi nos Estados Unidos sobre a transição brasileira . N ão s o projetado livro veio a pú blico. Só sei que n ão fiz a m parte. É que , em duas outras conversas , tive a impre de que as perguntas que Stepan me fazia sobre a trans brasileira dariam bem um roteiro para um trabalho v do um pú blico mais amplo. Menos a academia e ma jovens que estão chegando à política, lideran ças sind e populares , enfim , o pú blico em geral. Uma conversa vim a ter com um funcioná rio da embaixada ameri no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea CEDEC , onde trabalho , serviu para confirmar esta



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Daí nasceu este livro. Como fazemos de hábito com trabalhos realizados no CEDEC, este ensaio foi lido e dis¬ cutido por diversos colegas de trabalho que compõem a nossa equipe. Aliás, neste caso, a equipe foi acrescida com a participação dos professores Denis Goulet, Fabio Comparato e Marco Aurelio Garcia, além do próprio Stepan , evidentemente. À equipe do CEDEC e a estes colegas o meu agradecimento. Agradeço também a alguns jornalis¬ tas amigos que roubaram tempo de suas atividades para trocar idéias comigo: Almyr Gajardoni, Flavio Andrade , José Onofre, Mino Carta e Ruy Falcão. Evidentemente , os pontos de vista aqui apresentados correm por minha con¬ ta , bem como os possíveis erros. Mas estou certo de que estes seriam em maior nú mero se eu não tivesse a ajuda de tantos amigos . Francisco C. W e f f o r t S ão Paulo , setembro de Í 984 .

Introduçãa POR QUE NAO REVOLUÇÃO?

Estávamos em outubro de 1983. O assessor d baixada americana que me procurou para conversar e o assunto o quanto pôde. Estava visivelmente descon Lembrou-me nú meros sobre a crise económica, o d prego, a violência urbana . Era o quadro calamitoso q sabe. Talvez um pouco menos ruim que o de agora. Ainda ecoavam na política brasileira as grev julho de 1983 e os quebra-quebras promovidos pel sempregados da Zona Sul de São Paulo. As manifes dos bóias-frias estavam ainda por vir , bem como as dos funcioná rios e os movimentos dos professores haviam ocorrido ainda as greves dos metalú rgicos de Redonda , no Rio de Janeiro, e da ACESITA , em

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Gerais. Para o assessor político americano isso, porém tinha maior importâ ncia. Bastavam-lhe os números da O resto viria como conseqiiência. “ Por que vocês tanto em democracia no Brasil?” Ele dirigia a pe

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da questão é muito mais geral. Em todo caso, como ele tentava conversar com alguém da esquerda , a sua pergunta sobre a democracia trazia embutida uma outra : “ Por que n ão revolução? ” . Eram perguntas embaraçosas, e ele sabia disso . No Brasil de após 1964 e , sobretudo, de após 1968, falar de revolução é entrar num pâ ntano de dolorosas ambigiiidades. O golpe de 1964 chamou-se a si próprio de “ revolu ção redentora ” e implantou uma ditadura que já completa 20 anos. Os jovens de 1968 fizeram a luta de resistência em nome de uma concepção da revolução. Muitos deles morreram , e os que sobraram comeram o pão que o diabo ¬

amassou. O funcion á rio americano fazia o possível para ate nuar o constrangimento. Bom conhecedor de história , ele apelava para a erudição, lembrando fatos de revoluções passadas. Depois de algum tempo, está vamos os dois diva gando, como bons acadêmicos, sobre as circunstâncias que deram origem à Revolução Francesa . Mas a questão incó¬ moda ficava no ar. “ Por que democracia? Por que não revolução?” ¬

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ATRAVESSANDO O DESERTO

Conversas como esta são, muitas vezes, inevitáveis, embora bem poucas sejam realmente interessantes . A cam ¬ panha das diretas ainda não havia saído às ruas e ninguém podia , naquelas circunstâ ncias, dizer , com segurança , quais seriam os próximos passos da transição política brasileira . Na falta do que fazer, temia-se pelo que viesse a ser o ano de 1984. Especulava se sobre as predições de Orwell para a Europa e os Estados Unidos e também sobre uma possível “ convulsão social ” no Brasil. Havia mesmo quem falasse de possibilidades de “ ruptura do tecido social ” . Hoje, mesmo depois da campanha das diretas e do

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horizonte, não faltam os que falam de riscos de “ expl social ” . Em 1983, porém , as hipóteses de cataclismas e muito mais freqüentes. O debate político estava povo de especulações e, como hoje, carregado de eufemism Diplomatas , em especial os americanos, acreditam cessá rio ter a sua visão pessoal do país em que de trabalhar. Isso significa que para muitos intelectuais e líticos brasileiros já se tornou rotina receber estrange que querem entender do país algo mais do que dizem relatórios dos seus serviços de informação. O exercíci dominação em escala mundial tem seu preço. E este tamente inclui o envio de pessoas para ouvir e infor Não tenho nenhuma dú vida de que pessoas como este cioná rio americano andam por todos os países , trabalha por uma melhor informação, ansiosos pelo que pode ocorrer amanhã. Eu tenho um ritual definido para situações como Trato sempre de apresentar a minha imagem da lut povo brasileiro pela democracia. Sabe o que é a ideo da segurança nacional ? Conhece as leis sindicais que damos do fascismo italiano? Sabe o que significa o tástico Colégio Eleitoral, pedra de toque da continui do regime atual ? É o feijão-com-arroz da nossa luta tra a ditadura . N ão se trata , evidentemente, de ganhar o nosso lado um funcioná rio de uma grande potê Trata-se apenas de dizer-lhe coisas que ele dificilm ouvirá nos corredores do Palácio do Planalto, em Bra Neste caso, porém, a minha tática não funcio “ Por que democracia ? Por que não revolução? ” Vind um diplomata americano, uma pergunta como esta su em qualquer intelectual brasileiro uma pontinha d ranoia . O assessor americano não é, evidentemente, um lucioná rio. Além disso, na conversa que tivemos , ele e acompanhado de um outro funcioná rio que me pa silencioso demais. Embora muito atento, sua particip se limitava a balançar a cabeça , de vez em quando

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que situações como essa devem ser coisa t ípica do governo Reagan . Ninguém no Brasil falava , naquele momento , em revolução. Por que um diplomata americano haveria de interessar-se pelo assunto? Um amigo meu , a quem contei esta conversa , ficou ainda mais impressionado do que eu . Ele entende que o governo Reagan anda atacado do que ele chama de “ sín drome de John Wayne ” . O fracasso da CIA no Irã , ao considerar estável o agonizante regime do xá Reza Pahíevi , teria aguçado as desconfianças americanas quanto aos paí¬ ses do chamado Terceiro Mundo. Mais do que entender os os que aconteceram ou estão acontecendo , a fatos política externa americana viveria a angústia de compreen der (se possível adivinhar) o que pode vir a acontecer. É como o cow -boy atravessando o deserto, perscrutando o que há por trás do silêncio, certo de que o ataque dos índios virá , mais cedo ou mais tarde. Paranoias à parte, o fato é que a pergunta , por incó moda que seja , tem sentido. Tinha sentido em 1983 e con ¬ tinua tendo hoje. Com a habitual falta de jeito de qualquer estrangeiro em um país que não conhece, o funcion á rio americano tocou num ponto que muitos brasileiros, em especial os da esquerda , gostariam de evitar . No campo liberal , os temores de uma “ convulsão so¬ cial ” permanecem . Em certo sentido, todo o curso da tran¬ sição brasileira , inspirando se num projeto de conciliação cjas elites , tem raiz nesses temores. Para prevenir o risco do que se vem chamando de “ ruptura do tecido social ” , procura-se impedir, a todo custo, uma ruptura da transição política. E busca-se, para isso , cimentar o bloco no poder com a argamassa forte dos interesses conservadores. Mais talvez do que a esquerda , os liberais e os con¬ servadores pressentem a possibilidade de uma revolução. Mas , tanto quanto a esquerda , evitam o assunto o quanto podem. E quando não podem evitá-lo, usam de eufemis¬ mos. As palavras perigosas a começar pela mais peri¬ gosa de todas, revolução são cuidadosamente supri¬ ¬





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UMA TRANSIÇÃO INVEROSSÍMIL

A pergunta do americano tem sentido. A verda que h á algo de muito dif ícil de explicar na situação tica que vivemos no Brasil de 1974 para cá . Para mesmo que não seja um asse estrangeiro qualquer de Reagan , o quadro político destes últimos dez tem algo de inacreditável. O que chamamos de transição pol í tica começou 1974, com a “ política de distensão” do general Ge foi o período do de 1968 a 1974 Antes disso lagre económico ” e também da ditadura mais violen criminosa de nossa história. Uma lógica política inspi no senso comum diria que o melhor momento para abertura política seria aquele em que a economia s pande . Com a transição brasileira ocorre o contrá rio vemos “ fechadura ” política na época de expansão e a tensão ” pol ítica começando com a depressão económ Em 1979, quando o general Figueiredo inaugur sua “ política de abertura” , em seqúência à “ distensão Geisel , a depressão já havia deitado de ser indício tabelas dos economistas para se converter na experiê diá ria de qualquer um . De lá para cá a abertura te mantido sobre o pano de fundo de uma situação ec mica cada vez mais grave . O que era depressão torn em 1982 , quando tivemos as eleições diretas para o vernos dos estados , a mais grave crise económica de o país tem memória . O inverossímil disso tudo é que os brasileiros acreditam que estamos em tos de nós, pelo menos “ Temos uma sopa quente . para a democracia sição cima da mesa ” , dizia há algum tempo o ministro da A náutica, Délio Jardim de Matos. "O interessante” , a centava ele, “ é que ninguém quer virar a mesa ” . O min pensava , por certo, nos diversos grupos que compõe regime do qual ele próprio faz parte. Mais interess













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vale também para o lado de cá, o dos adversá rios do re gime. Queremos, evidentemente, o fim do regime. Mas isso de virar a mesa já é uma outra história. De 1974 para cá , os brasileiros têm acreditado numa transição para a democracia , mesmo sabendo que uma crise económica nos leva ladeira abaixo. Isso talvez fosse f ácil de entender em um país democrá tico e está vel . Se a sopa está quente , esperemos que esfrie. O problema é que o Brasil não é um bom exemplo, nem de democracia , nem de estabilidade política. Minha conversa com o assessor americano foi em 1983, e havia muita gente apreensiva em relação ao que poderia vir a ocorrer em 1984. Estamos chegando ao fim de 1984 e as apreensões se transferem para 1985. Na conversa , nós nos lembramos de 1968, que ele conhecia de leituras e de outras entrevistas como esta. O que é que mudou tanto no Brasil de lá para cá? Em 1968, setores da esquerda saíram à luta armada na esperança de tornar real o sonho de uma revolução social. Não se fa lava em “ ruptura do tecido social ” naquela época . Até mesmo os liberais evitavam usar eufemismos. Ao mesmo tempo, talvez até um pouco antes, setores da direita militar preparavam mais um golpe de Estado, o do Ato Institu cional número 5, que haveria de transformar o regime autoritá rio em uma ditadura sangrenta. Dif ícil reduzir a dupla virada de 1968 a do regime e a da esquerda à simples eficácia dos fatores econó¬ micos. Mas seria também equivocado esquecer que vínha mos de uma crise prolongada , que tivera início em 1961 . Na esquerda , em especial nos setores que passaram à luta armada e naqueles que lhes deram apoio, muitos acredi tavam que o país vivia uma situação de estancamento do capitalismo que só poderia ser superada através de uma saída revolucioná ria no caminho do socialismo. Na direita , dizia-se que o país vivia uma situação de “ guerra revolucioná ria ” . Palavras podem ser manejadas à vontade. E nenhuma terá sido mais distorcida no Brasil de ¬

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que o golpe do AI 5, de dezembro de 1968 , foi feit nome da “ continuidade da revolução” ? Dos dois lados pretendia-se falar a linguagem d volução ou do que cada um dos lados entendia com Em que pesem as muitas divergências extremas e nitivamente antagónicas sobre o entendimento que um dos lados tinha da linguagem da revolução, havia menos um ponto comum: a violência. Entre 1968 e 1 n ão houve revolução, nem de um lado nem de outro. vivemos aqueles anos sob o signo da violência . Com plicar que muitos da esquerda , e mesmo uma boa da direita , tenham saído dessa fase falando ( balbucia pelo menos) a linguagem da democracia ?





UM JEITO NOVO DE CAMINHAR

O perfil da transição brasileira se acha, a estas definido. Mais do que em fins de 1983, se pe agora , em fins de 1984 , que , uma vez mais em nossa tória , a transição para a democracia se faz “ pelo a Em vinte anos de história , o regime segregou o que h de pior para dar-lhe continuidade: a candidatura P Maluf , do PDS , representante de uma nova direita , e burguesa , com tons acentuados de direita fascista outro lado está uma proposta liberal , de marca acent mente conservadora , a figura de Tancredo Neves , r sentando o PMDB moderado e as dissidências do agrupadas na Frente Liberal . Nas duas hipó teses de saída que se esboçam , são fundos os laços com o atual regime. Os militares, em quer hipótese , saem da linha de frente das respons dades pela direção do Estado , deixando o poder em que consideram “ confiá veis ” . O povo , em geral , c nua à margem , condição que se expressa no mecan sucessório indireto do Colégio Eleitoral . E mesmo

ras,

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eleições diretas, não poderá mudar as alternativas pos tas para o jogo. Limitando-se a uma disputa entre os gru pos dominantes e as elites que os representam , n ão há nenhum “ pacto social ” embutido nesse processo sucessó¬ rio. Na melhor das hipóteses, haverá , talvez, um “ pacto político” visando a reorganização institucional do pa ís. A crise económica continua , e já se pode prever que seus custos maiores continuar ão sobre os ombros dos trabalha ¬ dores . Seria esta a democracia pela qual lutamos durante os últimos dez anos ? Seria esta a luz que todos esperá va ¬ mos no fim do t ú nel? Não tive a oportunidade de uma nova visita do asses¬ sor americano. Mas a sua enorme desconfiança em relação às possibilidades da democracia no Brasil teriam agora mais sentido do que em 1983. Não se podia prever então que rumos tomaria , de imediato, a transição. Hoje se pode ver que estes não são os melhores. Ele sugeria , ent ão , uma reflexão sobre uma possível volta ao espírito de 1968 , tanto na esquerda quanto na direita. Hoje a sua descon¬ fiança tomaria talvez outras formas. Poderia ser mais ou menos o seguinte: se só somos capazes de ver no horizonte imediato uma democracia frágil , n ão teríamos de admitir a fatalidade da ditadura , mesmo que esta tenha , de novo , de usar o nome de revolução? Olho à minha volta e sinto que, apesar de tudo , n ão é assim . Sinto, pelo menos, que a maior parte das pessoas não concebe as coisas assim. Apesar do pouco tempo trans corrido desde 1968, alguma coisa mudou no pa ís. Mudou o país e, com ele , mudamos todos. Uns mais, outros menos, muitos dos que até ontem serviram o regime militar vão se passando para o campo das oposições. E mudaram tam¬ bém , ainda mais profundamente, os adversá rios históricos do regime, tanto os derrotados da primeira fornada , a de 1964, quanto os da segunda , a de 1968. Em alguns casos, aliás, mudaram muito mais do que muitos gostariam de admitir. O passado recente, o presente e o futuro imediato se ¬

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estamos mudando ? Tomo a questão do ponto de vis esquerda . Evidentemente , para a esquerda que sobre a duas grandes derrotas, permanecem os valores fu mentais, a liberdade, a igualdade, o sonho do social Mas o que mudou , ou vem mudando, é o modo de c ber esses valores e suas relações. Disse recentemente um poeta militante de 1 Thiago de Mello, que “ meus caminhos de hoje sã mesmos de ontem, o que é novo em mim é o jeito d minhar ” . Talvez seja apenas isso. O que, aliás, é m pois, como se sabe, o jeito de caminhar é que, afina cide quais os caminhos a seguir. Em todo caso, não que o pessimismo do americano com a democracia b leira encontre acolhida na maioria das pessoas que põem isso que venho chamando de a esquerda brasi Como penso que não encontrará acolhida das muita riantes que compõem o conjunto dos liberais brasile As razões de uns e de outros são muito diferentes si . Mas creio que os dois lados concordariam em qu uma esperança nova no Brasil dos anos 80.

PRIMEIRA PARTE

Que tradição é esta?

“ A democracia no Brasil foi sempre lamentável mal-entendido. Uma ari cracia rural e semi feudal importoutratou de acomodá-la, onde fosse po vel , aos seus direitos e privilé gios , mesmos privilégios que tinham sido, Velho Mundo, o alvo da luta da b guesia contra os aristocratas.” (Sérgio Buarque de Hollan

.

As palavras , afinal , têm algum sentido E palavra grande nobreza pol í tica como democracia e revolução têm sentido na história. Quem sabe o lado embaraçoso uma conversa sobre democracia e revolução não venha um equí voco sobre o sentido das palavras? H á paí ses que , em algum momento de sua histó fizeram uma revolução e , depois, construí ram uma de cracia. Servem de exemplos a Inglaterra e a França. tros, como a União Soviética, fizeram uma revolução e conseguiram ainda chegar a uma democracia. Outros , c a Itália, construí ram uma democracia sem passar por u revolução, mas depois da derrocada do fascismo pela de resistência e pela guerra mundial . O Brasil constitui , pelo menos até aqui , o caso inf de um paí s que não fez , nunca, nem uma revolução dadeira nem uma democracia verdadeira. Se é assim, poderíamos entender como normais as dificuldades enfrentamos ao discutir sobre temas como democraci

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irresist ível da história . Temos hoje distâ ncia suficiente p saber que as coisas não se passavam como eles pensava

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O MAL ENTENDIDO DA POLITICA

Uma herança de equívocos mais de uma vez , gente séria , ou tida como tal , usando as palavras democracia e revolução com ex traordin á ria ligeireza. São pessoas que responderiam à per ¬ gunta do diplomata americano com a maior facilidade. Hoje , dizem , caminhamos para a democracia até porque não temos, nas circunstâ ncias, nenhum outro lugar para ir. Como quem diz, é a ú nica saída . Ser á mesmo ? N ão me cabe , evidentemente, questionar um pensa¬ mento para o qual a democracia se apresenta como a ú nica saída . Minha ú nica d ú vida é a de saber se um pensamento que só sabe conceber a democracia como uma imposição das circunstâ ncias pode ser dito um pensamento demo¬ crá tico. Eu me lembro que em 1968 havia quem assegurasse que caminhávamos para a revolução por imposição de uma necessidade histórica . Diziam , também naquela época , que era a ú nica sa ída. N ão eram os verdadeiros revolucioná rios que diziam isso, pois esses sabiam que queriam a revolu ¬ um pouco mais na ,

J á ouvi,

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Somos herdeiros , queiramos ou não, de uma tradi formada desde um passado remoto. E na montanha equívocos que herdamos desse passado, o primeiro é so o próprio sentido da política . Há muita gente por aí ha tuada a tratar as grandes decisões políticas como se foss frutos da natureza , exigências inelutáveis da necessid histórica . N ão se trata, evidentemente, apenas de um e técnico que se resolvesse com a leitura de um ou dois b manuais de ciência política . Nossos equ ívocos habituais sobre o sentido da p tica são, como muitos outros , o resultado de uma hist ó em que a pol ítica jamais se tornou , verdadeiramente , mocr á tica. São o resultado de uma história em que a lítica tem sido, quase sempre, o privilégio de uns quan oligarcas e assemelhados. Uma história que, até aqui , m conseguiu constituir um espaço público onde a ativida política , quase sempre limitada às classes dominantes, desse se diferenciar das atividades privadas dessas mesm classes dominantes. Uma história , enfim, em que os c servadores têm sido, desde sempre, vitoriosos. Penso que tudo isso está mudando. Ainda assim , se ingénuo ignorar o peso do passado. A propósito, M disse, certa vez , que “ o peso do passado oprime como pesadelo o cérebro dos vivos ” . E ele se referia , como sabe, aos povos ‘' que vivem uma época de revoluçã Deixo para depois a questão de saber se estamos ou n em uma época de revolução. Em todo caso , mesmo re nhecendo as mudanças pelas quais estamos passando, ten a nítida impressão de que o nosso passado conservador , invés de oprimir, invade “ o cérebro dos vivos ” sem ce mónia, com a maior desfaçatez.

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dúvidas sobre isso as resolverá olhando para o cená rio pol ítico atual. As f órmulas da “ conciliação nacional ” que aí predominam entre liberais e conservado res são tão velhas quanto a “ política de conciliação ” do II Reinado. N ão seria normal num país conservador como este que nos escapasse o sentido da própria atividade po¬ lítica ? Para tornar mais f ácil a compreensão do que pretendo , dizer apresento um exemplo. Conheço uns tantos políticos da esquerda independente, isto é, não filiados à esquerda tradicional, definida no âmbito do PCB e do PC do B , que tomaram boa parte dos seus anos de ostracismo , após 1964 , refletindo sobre as debilidades do movimento popular e da democracia do período em particular , o operá rio populista . Alguns no exílio, outros no país, embora estes na triste condição de “ emigrados do interior ” , enquanto meditavam sobre as causas da queda de Goulart em 1964 , acompanhavam a saga da guerrilha na América Latina . Esses aos quais me refiro nunca puseram uma arma na mão . Mas nunca se afastaram tanto que não pudessem expres¬ sar, de quando em quando, a sua simpatia . Seria um exa ¬ gero dizer que se apaixonaram pela idéia de revolução. Mas, com toda certeza, flertaram com ela. E, mais de uma em privado e, às vezes, até mesmo, em vez, falaram pú blico do seu próprio passado como quem fala de suas ilusões perdidas. Depois do regresso às atividades políticas, acalenta ¬ ram , por algum tempo, a idéia de contribuir para a forma ção de um novo partido político. Houve mais de uma proposta nesse sentido, mas todas visando o fortalecimento do movimento popular e a reorganização da democracia . N ão queriam repetir o passado, mas assentar os funda¬ mentos do futuro. Em que pesem divergências sobre pon tos secundá rios entre esta ou aquela liderança , eram pro¬ postas tendentes a criar um partido de novo tipo, aberto, democr ático, enraizado nas lutas populares, com uma pers¬ pectiva visando ao socialismo. , o, depois de 1978, dois partidos que Quem tenha

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— —

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POR QUE DEMOCRACIA ?





daque pelo menos como propostas se aproximam á intenções inovadoras. São o Partido Democr tico Tra lhista ( PDT) e o Partido dos Trabalhadores ( PT ) . M mesmo o PDT , que conta , desde as origens, com a l rança de um pol ítico formado antes de 1964, o engenhe Leonel Brizóla , só pôde captar uma pequena parte daq les pol íticos de esquerda que vinham pensando em prop tas semelhantes. Quanto ao PT , este nasce diretamente um setor avançado do movimento operá rio, sob a dire do metal ú rgico Lula , e conta com uma participação ai menor dos independentes de esquerda formados na sa anterior. É que embora viesse namorando a idéia de um ca nho novo, a maioria desses desistiu quando chegou o mento da ação, das decisões que permitiriam começa converter o sonho em realidade . Depois de considerar uma vez mais, as dificuldades, naturais em tudo qu novo e , aliás, já conhecidas de antemão, retomaram gal damente a velha estrada, que lhes permite continuar se o que sempre foram , “ independentes ” em partidos que são os seus ou em frentes nas quais estão condenado uma posição apenas marginal . É a velha estrada de s pre , conduzindo às mesmas debilidades do movimento pular e da democracia que eles próprios compartilha antes de 1964 e que criticaram , depois, com tanta clar Ao invés de plantar a sua própria semente na sua pró terra , preferiram o caminho, certamente mais f ácil , de tar colher de semeadura alheia . Este é um exemplo de como são dif íceis certas danças de mentalidade política . E casos como este me levam a pensar sobre o real si não são poucos ficado da célebre frase de Marx em um país tão conse dor como o Brasil . Minha impressão é que , aqui , o peso do passado que Marx falava , ou seja , o do passado “ de todas as de certo modo se dilui rações mortas ” , se confunde no peso do passado dos vivos. Às vezes, é o passado







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o de uma mesma geração ditando seus caminhos no pre¬ sente . Ou mesmo o de um indivíduo definindo o seu ca ¬ minho de agora. O passado que cada um carrega consigo pesa mais, ou menos , do que o das gerações mortas ? Di ¬ f ícil saber . Em todo caso, seria um exagero dizer que “ opri¬ me como um pesadelo ” .

posições de Estado . O pressuposto é de que cargos e ções são a matéria-prima do poder. Foi o que ficou de rá pidas leituras de Maquiavel. Política é o que se faz conquistar (ou manter) o poder . E o que é o poder ? o poder é o que se faz no Estado ou a partir do Es UM ÁLIBI PERFEITO

UM FALSO REALISMO

Na tradição brasileira , esta mistura de passado , de sensibilidade conservadora e de boas intenções para o fu ¬ turo é chamada de realismo político. Antigamente, as idéias novas chegavam de navio. Depois, começaram a vir pelo r ádio e hoje , cada vez mais, pela televisão. Converse com qualquer político liberal ou conservador e verá quq as in isto é , com os tenções que ele expressa em particular são, em geral, as de pessoa amigos e com a família moderna e razoavelmente civilizada. Nenhum deles ficará escandalizado se você lhe falar de liberdade sindical , de reforma agrá ria, etc. Pelo contrá rio, eles tender ão sempre a manifestar simpatia por mudanças, embora com algumas ressalvas sobre pontos secundá rios. A pol ítica real, porém, é outra coisa. Esta se rege pelo que chamam de realismo, na verdade uma mistura de conservadorismo e de duas ou três idéias saídas de um maquiavelismo primá rio. As boas intenções de mudança ficam para as conversas com os amigos. Daí esta pontinha de má consciência , tão comum em nossos políticos. É o resíduo que vai ficando , ao longo do caminho, das muitas promessas que não se cumprem ja ¬ mais. Da í, também , esta reação tão freq üente nos políticos diante de qualquer idéia nova: consideram, primeiro, a sua viabilidade (em geral para concluir pela inviabilidade) , antes mesmo de a considerarem no mérito. Da í , também , que mesmo os nossos pol íticos mais ideológicps se deixem ¬





Falo da noção de política deixada pela nossa tra e, nesse campo, as distinções entre esquerda e direit quase irrelevantes. Nesse campo, pelo menos, pode-se não apenas de um conservadorismo liberal como até mais su mo de um conservadorismo de esquerda mas nem po que o dos verdadeiros conservadores menos real. Os políticos de esquerda que tomei como exe acima estavam certos de que iriam mudar. O golp Estado, o ostracismo, a experiência distante da gue como passar por isso tudo sem mudar? E, de fat gumas mudanças ocorreram com eles e vêm ocorrendo todos os brasileiros que passaram , mesmo a distâ ncia experiências semelhantes. Submetidos , porém , à concepção tradicional da tica , voltaram ao velho jogo de um modo tão “ nat que alguns nem sentiram a necessidade de explicar as decisões. Como o cachorro dando voltas sobre o pr rabo, nem pareceram dar-se conta de que o velho cam os leva de volta ao mesmo lugar de antes. O passado va tão presente em suas decisões que nem se deixav conhecer como tal. Suas decisões lhe pareciam tão “ rais” que nem lhe pareciam o que eram, ou seja , dec A concepção de política que nos deixou a tra conservadora é um álibi perfeito. Se os caminhos que toma não são percebidos como uma escolha , você considerar-se absolvido ex ante de qualquer respons

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você atuasse sob o impulso de algo superior às suas pró prias forças. Tudo se passa como se você apenas atendesse , como um bom funcioná rio da história , às exigências da situação. Revolução ? Sim. Democracia ? Sim . E o que mais vier , até mesmo a ditadura . Você terá sempre de carregar consigo um ressaibo de má consciência . Mas que é que se pode fazer ? Tudo depende das circunstâncias, não é mesmo ? ¬

A POLÍTICA COMO LIBERDADE

O grande problema desta concepção da atividade po¬ a democra ¬ se continuar predominando lítica é que cia que teremos daqui para a frente será tão capenga quan to a que já tivemos no passado. Mais ainda , a continuar prevalecendo este conceito conservador de política , se a democracia ser á capenga , uma revolução será simplesmen te impossível . É inteiramente evidente que qualquer situa ¬ ção histórica tem as suas exigências. E também é evidente que uma parte da sabedoria política consiste em reconhecê-las. Mas a verdade é que aqueles que em 1968 insisti¬ ram na inevitabilidade daquilo que chamavam de revolu¬ ção , incidem no mesmo erro dos que hoje insistem em uma suposta inelutabilidade do caminho democrá tico . Captam um aspecto da verdade política mas perdem um outro. E o aspecto que perdem é , precisamente, o essencial . Os seguidores do realismo conservador pretendem-se inspirados em Maquiavel e , contudo, deixam de lado um ensinamento essencial do mestre florentino. O verdadeiro realismo político consiste em ver os acontecimentos como cose a jare. Isso significa que não apenas se pode , como dizia o poeta , seguir o mesmo caminho de uma maneira nova , como também se pode , no jeito novo de andar , in ventar caminhos novos. Isso significa ainda que não são as condições nas quais se exerce a ação política que defi¬





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mais que o passado se imponha , sempre há escolhas a que é , por e zer . De outro modo , a ação política perde a sua qualidade e lência , um ato de liberdade cífica e se reverte em um simples automatismo. Qual o sentido dessa rápida digressão sobre o conc de política em nossa busca de uma resposta para a i moda pergunta do assessor americano ? É que uma a política que se concebe como livre só será conservador o caminho conservador for o escolhido por seus prot nistas. Em troca, se a ação política for concebida c reflexo, como é de há bito em nosso realismo político dicional , ela será sempre conservadora , e, além disso, a rit á ria , quaisquer que sejam as intenções dos seus pr gonistas. Nenhuma democracia se construiu jamais como ples reflexo de exigências supostamente inelutáveis história . Nenhuma revolução chegou jamais à vitória c reflexo de uma suposta necessidade histórica . Tant democracias quanto as revoluções se constroem na de vontades políticas conscientes e responsáveis. Daí qualquer esfor ço por esclarecer o significado da demo cia e da revolução só pode servir para torná-las possí





POR QUE DEMOCRACIA ?

A democracia como instrumento... O conservadorismo brasileiro nos legou uma concep¬ ção de democracia e uma idéia de revolução. O problema é que nos legou uma concepção autoritá ria de democracia . E , por conseqiiência , a ú nica idéia que pôde nos legar de revolução é a do golpe de Estado. Quando o general Figueiredo, recém-empossado na Presidência da República , disse , em inícios de 1979 , “ eu hei de fazer deste país uma democracia ” , ele resumiu , no seu jeito rude, toda a nossa tradição. Elevado ao poder na sucessão de golpes chamada de “ processo revolucion á rio ” , que caracteriza o regime de 1964 , ele só consegue entender a transição para a democracia à custa de golpes. Não é o povo quem faz a democracia , mas o representante maior da ditadura. DEMOCRATIZAÇÃO POR VIA AUTORITÁRIA

É uma contradição e , como tal , insustentável no plano

da lógica . Mas lembremo-nos de que só excepcionalme tal contradição se manifesta de maneira nua e crua. modo geral , ela é amaciada por uma tradição conservad cuja principal virtude é esta mesmo: fazer com que a c tradição passe despercebida . E uma contradição cujos mos só se esclarecem de vez em quando pode durar mu Esta , pelo menos , vem de longe , de muito antes atual regime , vem do mais fundo da história brasile embaralhando todas as idéias que herdamos do pass sobre as relações entre a sociedade e o Estado, sobre relações entre o poder e a liberdade . A grande vítima todas estas confusões é o conceito de democracia e , na esteira , o de revolução. Existem , por certo , na tradição brasileira , verdade democratas . E também verdadeiros autoritá rios de que exemplos os fascistas , que nos anos 30 e 40 se expressar através do movimento integralista. Democratas podem encontrados em diversas correntes políticas ao longo toda a nossa história , mas em particular nos momentos tentativa de renovação , como na chamada Revolução 1930 ou na também chamada redemocratização de 19 ou na atual transição. Mas o forte da tradição pol ítica brasileira é a am güidade que a muitos permite serem — ou pretender ser autoritá rios e democratas ao mesmo tempo. S exemplos disso o Get ú lio Vargas de 1945 e o general gueiredo neste fim de regime militar. A propósito , um lhante sociólogo, Alain Touraine , definiu o sentido his rico do desenvolvimento do Brasil dos anos 30 aos a 60 com uma expressão característica: “ democratização via autorit á ria ” . O que sugere que a nossa tradição pol ít foi capaz do milagre de distinguir uma eficácia democ tica no autoritarismo daquela época . O ú nico milagre que a tradição não tem sido capaz , até aqui , é o de disc nir na democracia o seu próprio sentido. Uma concepção autoritá ria da democracia signifi além de uma certa preferência pela ambigüidade , o go



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vérbios que povoam o linguajar político brasileiro. “ Voto não enche barriga .” “ Em política vale a versão, n ão o fato.” “ Lei , ora a lei .” “ Para os amigos tudo, para os adversá rios a lei .” “ Deixa como est á para ver como é que fica .” São prové rbios compartilhados à s vezes pelo povo. Parecem simples, espontâ neos, saborosos como as expres sões do senso comum . Mas, na verdade, traduzem critérios sofisticados e extremamente autoritá rios — de ação política . Aparentemente populares, estas são, na verdade , f ó r¬ mulas contra o povo . Se examinarmos com atenção o que significam , elas só se adequam à comodidade de quem está no poder e , além do mais, habituado ao arbítrio. São f ór mulas para serem ditas com o sorriso de ironia dos pode¬ rosos, como resultado de uma longa e laboriosa reflexão do poder sobre si próprio. O que têm de sabor popular nada mais é do que o resultado de um longo e feroz tra balho de inculcação ideológica , no qual cooperaram , ao longo do tempo, todas as oligarquias e todas as ditaduras de nossa história. Esta mistura complexa de ambigüidade e de cinismo nos legou um conceito de democracia segundo o qual esta é apenas um instrumento de poder . Um instrumento de poder entre outros , apenas um meio , uma espécie de fer ¬ ramenta para se atingir o poder. Essa idéia está de tal modo enraizada em nossos há bitos políticos que fica¬ mos, com freqiiência , embaraçados diante da simples pos¬ sibilidade de virmos a pensar a democracia como um fim em.si'. H á exceções. Por exemplo, o brilhante ensaio de Car ¬ los Nelson Coutinho, que é , que eu saiba , o primeiro in ¬ telectual brasileiro a tratar com profundidade teórica o conceito da democracia como um valor universal .1 Mas são ¬



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1 N ão deixa de ser interessante assinalar que a primeira proposta teó rica sobre a democracia como valor universal venha de um marxista . Sugestões inovadoras sobre o tema podem ser encontradas, também no campo da es¬

exceções . Regra geral , estamos preparados para per sentido da política antes na violência do que no d

antes na coerção do que na liberdade. E quanto ao poder , se alguém nos pergunta o , isso as primeiras imagens que nos ocorrem são so aparatos de poder. São sobre o poder como coisa casual na tradição política brasileira a referência tã tante nos discursos oficiais aos “ poderes constitu conservadora e autoritá ria É que a tradição tudo para obscurecer a dimensão essencialmente tuinte da noção de poder , ou seja , o poder como al se cria , como associação livre de vontades. Para a t é mais f ácil perceber , por exemplo, o poder de um crata que apenas implementa decisões de outros do poder de uma proposta política que mobiliza e quantidades de pessoas para chegar a determinada sões. Percebe melhor o poder morto do “ aparelh “ máquina ” , do que o poder vivo, potencialmente tr mador , das relações políticas reais. No limite , vê no a capacidade da repressão muito mais do que a da tação.





UMA ARMADILHA CONSERVADORA

Também faz parte da tradição jogar a resp lidade dessas idéias nas costas da esquerda. E n ão evidentemente , os que , na esquerda brasileira , estej postos a aceitar esta pecha como um título de gló ria . um equívoco. A concepção da democracia como inst to vem , em linha direta , do privatismo conservad disant liberal , das oligarquias da República Velha . Que era o Estado no Brasil de antes de 1930 uma espécie de apê ndice das grandes plantations e tif ú ndios senhoriais ? Que noção da “ coisa pú blica

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zendas ? Que sentido da sociedade poderiam ter oligarcas para os quais a “ questão social ” se definia como “ quest ão de polícia ” ? O liberalismo dos senhores de terra neste pa ís sempre foi , em essência, um privatismo. Pouco ou nada mais do que isso. Enquanto liberalismo privatista e “ possessivo ” , só foi capaz de conceber a liberdade económica e , ainda assim , limitando-a , exclusivamente, à liberdade económica dos propriet á rios. Por isso mesmo, a liberdade pol í tica que eles foram capazes de entender nunca diferiu das justifica ¬ ções que tinham a apresentar para a manuten ção de seus próprios privilégios. Em vez de invenção da esquerda , a idéia da demo cracia como instrumento aparece na história brasileira como uma espécie de armadilha conservadora . Por que a esquerda brasileira deixou-se atrair tão facilmente para a armadilha ? Há algumas confusões teóricas na raiz disso , que tratarei logo a seguir . Mas há também um dado de rea ¬ lidade que poucos têm conseguido ver com a necessá ria clareza . A esquerda brasileira é , ela própria , tribut á ria da tradição que combate. Se nós formos capazes de perceber o quanto é pro funda a hegemonia conservadora na história brasileira , po¬ deremos admitir esse fato sem maiores dificuldades. A es¬ querda sempre lutou , bem ou mal , contra a tradição mas , durante muito tempo, teve de fazê-lo com as armas que a tradição tornava disponíveis. Que é a hegemonia de uma classe na política sen ão a sua capacidade de impor o seu até mesmo aos discurso ou pelo menos a sua lógica seus adversá rios ? Que é a hegemonia em política sen ão a capacidade de uma classe de definir o terreno e as armas que seus adversá rios usarão em sua própria luta ? A idéia da democracia como instrumento tem sido uma pedra de toque da hegemonia conservadora na história pol ítica deste pa ís desde a Repú blica Velha . ¬

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DEMOCRACIA: DOMINAÇÃO BURGUESA

Mas se a esquerda deixou-se seduzir foi també , em leituras mal digeridas de Marx , aprendeu que que trabalhavam no mesmo sentido. Entre estas, a idéia da democracia como a forma , por excelência , minação burguesa . O problema é que muita gente p esquecer que isso que era verdade para a Europa do Marx , vai deixando de sê-lo, por exemplo, já para a pa do velho Engels. Quem tiver d úvidas a respeit o célebre pref ácio de Engels ao ensaio de Marx As Lutas de Classe na França. Em todo caso, se a id democracia como forma da dominação burgues muito a ver com determinado período da história eu pouco tem a ver com a história brasileira . As democracias européias da época de Marx eram burguesas e seja , de meados do século XIX próprios fundamentos. Mudaram depois , a partir do quartel do século passado, com a conquista popu sufrágio universal , com o fortalecimento dos sindi com o surgimento dos partidos operá rios . Mas en Marx vivia , não creio que ninguém caísse de espan ocasiões em que ele qualificava o Estado como “ executivo dos interesses da burguesia ” . As democra seu tempo eram democracias censitá rias nas quais dania se definia a partir da propriedade e de níveis minados de renda . A vantagem de Marx sobre os liberais da época ponto como , aliás , em muitos outros, estava em q adotava uma posição crítica onde aqueles adotavam posição apologé tica . A burguesia via-se a si própria classe universal e apresentava os seus direitos como reitos do homem . Marx examinava a realidade à sua e não temia dizer o que via , qualidade que, diga-se d sagem , se perdeu em muitos dos que, hoje, se pret ,



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para os burgueses são direitos burgueses. E a dita burgue¬ sia , que se pretendia classe universal , portadora das vir tualidades do progresso, da liberdade e da igualdade, era apenas uma classe dominante a mais na história . Marx dizia que o rei estava nu . E , de fato, estava , como veio a ser reconhecido pelos historiadores depois dele.2 Se descontarmos o lado apologé tico , o liberalismo da época oferecia da democracia uma visão semelhante . Se o conceito liberal sobre o homem livre recobria , em essên cia , o conceito do proprietá rio , se o conceito da liberdade se ligava , em essência , à noção da propriedade privada, se o liberalismo político não se dissociava do liberalismo eco¬ nómico, que podia ser a democracia dos liberais senão a democracia dos burgueses ? Marx, que lia os liberais ali ás, outro há bito salutar que muitos de seus discípulos perderam , ia mais fundo e tirava as conseqiiências. A democracia burguesa era a ditadura da burguesia sobre o proletariado. Era a forma , por excelência , da dominação burguesa . Que os burgueses da época se indignassem , é coisa f ácil de compreender. Mas n ão creio que pudessem negar uma realidade que estava à vista de todos assim como embutida em seu próprio discurso. ¬

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DEMOCRACIA: REBELDIA POPULAR

Outra coisa , muito diferente , têm sido as formas po l íticas adotadas pelas classes dominantes no Brasil. O Im pério, desde a Independência até 1889, foi uma ditadura, mal disfarçada , do “ poder pessoal ” do imperador. E mes¬ ¬

2 Chamar as modernas democracias européias atuais de burguesas só é possível à custa de um enorme empobrecimento da an álise e, por conse qiiência , da perspectiva política . Seria mais correto dizer que são democra ¬ cias sob hegemonia burguesa , aliás hegemonia em permanente disputa por parte dos trabalhadores . O problema dos trabalhadores nas democracias mo¬ dernas é o de conquistar hegemonia

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inte aí , ver como deixar de Pedro e I II Pedro entre terra ? propriet de de rios á oligarquia uma de dura a Repú blica Velha , de 1889 a 1930, senão o domín disfarces , das oligarquias senhoriais? Há quem pref mar aos proprietários de terra daquela época de bu agrá ria , para realçar o car á ter capitalista da forma cial brasileira . Pode-se aceitar esta interpretação s isso altere em nada a visão que temos do regime da tão violento quando paternalista , em todo caso libe nas na superf ície. Desde a chamada Revolu ção de 1930, tivem longos per íodos ditatoriais : o primeiro de 1930 a 1 segundo de 1964 até hoje. Entre 1945 e 1964, e per íodo democrá tico, de reconhecida fragilidade , sustentou muito mais nas pressões das massas po urbanas que recém-ingressavam no cená rio político, em qualquer suposto entusiasmo da burguesia pelas democráticas. A verdade é que em 160 anos de história in dente , o Brasil n ão teve a oportunidade de avaliza da democracia como forma , por excelência , da dom burguesa . Se Marx fosse brasileiro , teria dito , cert que a ditadura é a forma , por excelência , da dom burguesa . E talvez dissesse também que a democra forma , por excelência , da rebeldia popular .

mo que se considere o período da Regência



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so tado Novo) e 1938 ( tentativa de rebelião militar tem o ã n 1945 1930 tação integralista ) . O período . excepcional de nada O recurso a expedientes golpistas se torna ain freqüente no período democrá tico que vem de 1945 Aliás , o per íodo democr á tico se abre com um g Estado que leva à derrubada de Get úlio Vargas do Vêm a seguir : 1950 ( tentativa de impedimento d

... E o golpe como

prática habitual

Um pa ís formado em uma tradição de ambig ü idade e cinismo em relação à democracia teria de transformar o golpe em prá tica corrente . Se a democracia é apenas um meio para o poder, a política perde o sentido do direito e da legitimidade. Institui-se a pr á tica da usurpação como norma . GOLPES E GOLPISTAS

Isso não é nenhuma abstração. Tomo como exemplos apenas fatos da historia republicana contemporánea , ou seja , de 1930 para cá . À parte a chamada Revolução de 30 ela pró pria um golpe de Estado, embora de caráter progressista e de enormes consequ ê ncias para a historia , registramos , até 1945 , os seguintes golpes ou posterior tentativas de golpe: 1932 ( tentativa de restauração das





de Get ú lio Vargas , democraticamente eleito para dência ) , 1954 ( pressões militares que levam à ren ao suicídio de Vargas) , 1955 ( tentativas de impe da posse de Juscelino Kubitscheck , democraticame to para a Presid ê ncia ) , ainda em 1955 ( impedim facto , do vice-presidente Caf é Filho) , 1961 ( tenta impedimento da posse de João Goulart após a renú sem esquecer , evide J ânio Quadros à Presidência) , 1964 , leva à instaur te , o golpe de Estado que , em atual regime militar. Seria demasiado longo enumerar todos os cas nho-me portanto aos que considero mais significati o meu argumento. Assim como o per íodo “ revoluc pós-1930 e a fase democr á tica pós-1945 , também do atual , pós-1964 , se submete à mesma regra . À próprio golpe de 1964 , tivemos golpes em todas a sões presidenciais havidas de lá para cá . O segundo presidente militar , o general Costa se impôs ao primeiro presidente militar , o general Branco, pela força . Em 1969 , quando Costa e Si reu , o vice-presidente , o civil Pedro Aleixo, foi alij força por uma Junta Militar que , também pela forç o terceiro presidente , o general Mediei . A força bém o critério que decidiu a sucessão de Mediei pe to presidente militar , o general Ernesto Geisel. E tituição de Geisel por Figueiredo só se tornou depois de superada pelo menos uma tentativa de do general Silvio Frota , em 1977 .

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envolvem , de modo direto ou indireto, a chefia do Estado e a utiliza ção , direta ou potencial, da violência. Na tradi¬ ção brasileira , a prá tica do golpe se espraia para quase todos os setores da atividade política. Não somos, no Brasil, apenas herdeiros de atitudes amb íguas e cínicas em relação à democracia . Somos também herdeiros de uma verdadeira cultura do golpe. O exemplo mais expressivo dessa cultura é o tratamento que , tradicionalmente, conferimos à lei e ao direito. O PRIVILÉGIO CONTRA O DIREITO

Na confusão, tipicamente oligárquica, entre o direito e o privilégio, a lei , desprovida da sustentação de um Es tado democrá tico que lhe assegure a vigência , só vale como o reflexo direto e imediato dos interesses ou da força da ¬ queles que se empenhem em sua aplicação. Como dizia um jurista fascista dos anos 30, Francisco Campos, “ tem lei que pega e tem lei que não pega ” . “ Pega ” quando atende a um interesse particular o bastante forte para fazê-la va¬ ler. “ Não pega ” quando não tem atrás de si uma força que obrigue a sua aplicação ou quando encontra resistên¬ cias demasiado fortes contra a sua aplicação. Significa di¬ zer que, na tradição polí tica do país, poucas são as leis de sentido efetivamente geral , reduzindo-se a maioria delas a instrumentos que podem ser utilizados ou não, de acordo com a força dos interesses particulares que com elas even¬ tualmente se comprometam . É, portanto, particularismo dos privilégios oligá rqui cos que enquadra , na tradição, a abordagem política das questões referentes ao direito. Depois de 1964, o regime militar tem usado em tal escala da manipulação da lei que acabou se criando uma designação de caráter geral para ¬

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dos só valem em seu interesse, instituir a prática governamenta o a secretos” . Eram diretrizes de çã tavam a toda a sociedade mas da qual esta não conhecimento! Em todo caso, se é verdade que no sentido em que tomamos hoje a exp mos são relativamente novos , também é verdade que de cinismo em relação à lei vem de há muito te Em fins do século passado, nos primeiro Repú blica Velha, alguém recorreu ao Supremo Federal contra determinado ato do presidente d ca . Indagado pela imprensa sobre a possibilidad decisão do Tribunal contrária aos seus interesse dente teria comentado com ironia: “ Se isso quem dará , depois, habeas corpus para os me Supremo Tribunal ? ” . O presidente em questão rechal Floriano Peixoto, que os livros de historia como um dos consolidadores da República e q ficar conhecido, segundo os mesmos livros, com rechal de Ferro” . Em 1955 , o ent ão presidente Caf é Filho Supremo Tribunal alegando constrangimentos m o impediriam de voltar à Presidência depois de período de afastamento por razões de saúde. E mento dif ícil , marcado por golpes e contragolpe os lados , e a atitude de Caf é Filho foi entendid adversá rios como uma manobra a mais visando posse do novo presidente eleito, Juscelino K Seja como for , o fato é que o Supremo Tribun recurso , consagrando o que era , na realidade, deposição do presidente . E um dos membros d Tribunal , o jurista Nelson Hungria , justificou quase com as mesmas palavras usadas , meio sé pelo “ Marechal de Ferro” . Quaisquer que possam ser as interpreta um momento polí tico tão conturbado, n ão resta



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direito e da democracia que, então, se desejava preservar no pa ís . Quaisquer que tenham sido as intenções dos au ¬ tores , esta farsa ajudou , como muitas outras antes e depois dela , a preparar a filosofia dos casuísmos de hoje. A LEI COMO PRETEXTO PARA O ARBITRIO

Não é alegre a história das relações entre o direito e a pol í tica neste país. A Constituição democrá tica de 1946 foi desrespeitada várias vezes antes de vir a ser definiti¬ vamente abolida pelo atual regime militar . E quando o re¬ gime se implantou em 1964 , n ão haveria de faltar-lhe o concurso do velho jurista fascista , o mesmo Francisco Campos, teórico da ditadura do Estado Novo, para intro¬ duzir no primeiro Ato Institucional algumas doses de ci¬ nismo totalitá rio. Sua contribuição para recobrir com palavras os pri¬ meiros atos de força do regime foi alguma coisa do gênero “ a revolu ção é criadora do direito ” . E com isso, numa só frase, ele conspurcou , uma vez mais, duas palavras de grande nobreza política , revolu ção e direito . O que ele pretendia dizer , já se sabe. Onde ele diz revolução, leia-se “ golpe ” . Onde diz direito, leia-se “ f órmulas adrede pre¬ paradas para o exercício ilegítimo da força ” . O que ele queria dizer, confere , precisamente, com o cinismo pre¬ sente em nosso tradicional realismo político. A lei para o poder significa pouco mais do que um pretexto para o arbítrio. É uma id é ia cí nica , sem d ú vida , mas que se ajusta como uma luva a certos aspectos das relações entre direi¬ to e pol ítica no pa ís. O Decreto-Lei n.° 9.070 , que regulou o direito de greve , de 1946 a 1965 , foi denunciado desde

POR QUE

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segundo os seus próprios interesses, quais greves ser consideradas legais ou ilegais . Na verdade , o decreto , que acabou prevalec primia o direito de greve que dizia regulamen

passava a depender da tolerâ ncia (ou intolerância vernos que , de fato , ao longo do tempo, manip

direito de greve a seu bel-prazer , seja quando r as greves , seja quando as permitiam . Funcionou todo como uma chantagem contra o movimento visando a mantê-lo nos limites das conveniência Depois de 1954 , quando alguns governos pa ver no movimento operá rio um possível aliado

ter a impressão de que o velho decreto antigreve t em desuso, tornado letra morta em face da comb

crescente dos trabalhadores . Alguns sindicalistas

chegaram mesmo a pensar que o haviam derr prá tica . V ã ilusão. A lei antigreve estava l á e, 1964, foi usada pelo primeiro governo militar quando a substituiu por outra lei , igualmente a igualmente arbitrá ria. Teria o movimento operá rio perdido a opo de mudar a lei nos seus anos de ascenso e de pro com os governos ? Talvez . O certo, porém , é que vimento oper á rio sempre combateu o Decreto 9. ca se preocupou demasiado em substituí-lo po democr á tica . Se política é força , que importâ ncia nova lei ? O movimento operá rio n ão poderia ser espírito da época . REVOLU ÇÃO

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GOLPE?

A cultura do golpe pressupõe o uso da violê

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freqiientes deste desvirtuamento está no que os partidos de esquerda chamam de “ aparelhismo ” . É prática golpista típica, embora se ache muito dis¬ tante da possibilidade da aplicação de violência . Trata se simplesmente de uma forma de usurpação de postos ou funções partid á rias por indivíduos ou grupos sem títulos de legitimidade política para tal . Embora possam chegar a tais postos ou funções na forma da lei, o que caracteriza os “ aparelhistas ” é o fato de que, a partir de então, dedi quem a maior parte de suas energias a manter-se nisso que chamam de poder e que, no mais das vezes, não é mais do que uma ilusão de poder . Quanto mais fazem por perma ¬ necer, tanto mais a verdadeira política se distancia deles e do partido que tenha a infelicidade de tê-los em seu meio. Assim como a finalidade ú ltima do golpista é o Estado, a finalidade última do “ aparelhista ” é o “ aparelho” . Desnecessá rio prosseguir aqui em uma descrição de todas as formas possíveis da cultura do golpe. Creio que os exemplos mencionados são o bastante para se perceber até onde pode ir uma cultura política que se limita a con ceber a democracia como um instrumento, demonstrándo se incapaz de concebê-la também como um fim em si . A conseqiiência final disso tudo ocorre no plano da linguagem política . Quando o golpismo se torna prática habitual, a mentira e a manipulação tomam o lugar que caberia , no debate político , à informação e à persuasão. Os n íveis de toler â ncia caem , o debate degenera e a vio¬ lência verbal passa a preparar o caminho da violência f í sica . É assim que a cultura do golpe vai preparando, no dia-a-dia da política , o seu grande momento: o golpe de Estado. E quando este acontece, como vimos em 1964, as palavras já se acham de tal modo deturpadas que não custará muito aos golpistas se chamarem a si próprios de revolucioná rios. O nosso conceito tradicional de revolução, sem dúvi d

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mos falar não ocorreram aqui , não seria compreen o nosso conceito de revolução estivesse contamin pela cultura do golpe? profundamente



N ão se trata , ali ás, de um mal exclusivo É de toda a América Latina , com as exceções co México , de Cuba e da Nicarágua . E porque o co revolução se confunde , em nossa tradição, com não se pode dizer que se trata de um mal exclus reita . Contamina , de quando em quando, mesm combatem a tradição conservadora e autoritá ria . na esquerda , negar que já cedemos , mais de um tentação de dar nomes honrosos para práticas me

SEGUNDA PARTE

Que transição é esta?

refeição que fazemos liberdade é convidada a senta deira permanece vazia , mas o posto.”

“ A cada

(R

A conquista da democracia tornou-se, desd leitmotiv da polí tica brasileira. Examinem-se os dos partidos e as declarações dos polí ticos. Exa os conceitos que florescem na vastí ssima literatu pela crónica pol í tica. Todas as divergências são A verdade, porém , é que trazem argumentos em democracia num volume maior do que em qualq de nossa história . Teríamos rompido com a tra descrevemos antes? O Brasil teria, finalmente, admitido ou , nos, estaria admitindo os valores democrático suas crenças fundamentais? Eu me refiro, com até aqui, ao Brasil político, ou seja, aos dirigen militantes dos partidos , aos cidadãos em geral , que seja o seu grau de participação pol í tica, e ta muitos que , sem terem ainda atingido a cidadan por ela Depois de tudo que se fez para tornar esté reno onde deveriam florescer os valores democrá



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POR

QUE

DEMOCRACIA ?

deu-se o nome de Constituição. O mais irónico do é que esta imposição ditatorial abre com a afirmaç soberania popular: “ Todo o poder emana do povo seu nome será exercido ” . O maior mal de uma tradição pol ítica marcada ambigüidade entre a democracia e o autoritarismo nesta enorme distâ ncia entre o que as inten ções procl e o que as ações fazem . Digamos que esse cinismo na direita . Mas a verdade é que depois se genera acaba afetando a todos. e mesmo os É sabido que os autoritarismos à idéia de fazer homenagem gostam de litarismos , ho fazendo 1969 emenda de da A . abertura cracia , exemplo popular é um gem à idéia de soberania Depois de exaurida na história moderna a legitimaç poder pelo direito divino dos reis , simplesmente nin consegue falar do poder sem mencionar que as suas estão no povo. Será disso que se trata quando vemc aí tantas proclamações de inten ções democr áticas ? Ò de-se admitir que estar íamos, de fato, transitando alguma forma de democracia ?





Transição para onde? Se algo se rompeu em nossa tradição política e se, portanto, a democracia está em vias de se constituir como um valor geral , trata-se ainda de processos em curso e, assim , de dif ícil reconhecimento. Sempre permanecem, evi dentemente , os que , como ontem, se apegam a uma visão rigorosamente autoritá ria da pol ítica . Paulo Maluf , por exemplo, é o fruto mais completo do regime implantado no país em 1964 e , mais ainda , de todo o autoritarismo de direita que viceja em nossa historia desde os anos 30. Mas há também, felizmente, os que vêm realizando escolhas democrá ticas e que , penso , constituem a maioria , no meio do povo e das lideranças pol íticas. É sobretudo a formação desta maioria democrática que me preocupa . Quem conhece a história pol í tica brasileira tem di ¬ reito a muitas d ú vidas quando vê alguém se afirmar como democrata . O Brasil de hoje é regido por uma emenda do modo mais ditatorial possível imposta em 1969 ¬

DEMOCRACIAS SÃO REIATIVAS?

A palavra democracia tem sido usada em tanto tidos para caracterizar a transição política brasileir podemos sempre nos perguntar se tem , finalmente, sentido. O general Geisel , por exemplo, pretendeu terizar o seu período de governo falando de “ demo relativa ” . Basta lembrar a expressão para que se uma pequena tempestade polêmica . Pretenderia o criador da “ política de distensão nas repetir um truismo ? Pois não é apenas um tr como qualquer forma de dizer que a democracia



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POR

A democracia da antiguidade clássica , por exemplo, limitava-se a uma aristocracia de senhores que reinavam sobre uma sociedade de escravos. A democracia liberal do século XIX era dirigida por uma elite burguesa que se acreditava portadora da razão e do conhecimento do bem comum , qualidades que, segundo se supunha , as massas de prole¬ t á rios n ão tinham , exatamente porque eram prolet á rios. depende da exis A democracia moderna — onde existe ampla e intensa de e tência de grandes partidos de massa participação dos trabalhadores. Seria a coisas desse tipo que Geisel se referia quando falava de “ democracia relativa ” ? O general Geisel , que falava pouquíssimo, gostava , porém , de frases de sentido duvidoso. E a oposição, na época enquadrada no MDB, se indignava sempre. Não foi também ele quem disse que a extensão das redes de águas e esgotos deveria ser considerada como um dos direitos humanos ? Quem conhece as precaríssimas condições de higiene em que vive a maior parte da população poderia até concordar. Uma ampliação das redes de á guas e esgo¬ tos poderia significar , por exemplo , um decréscimo das nossas escandalosas taxas de mortalidade infantil . O problema é que a frase do general soava , para mui¬ ta gente , em particular na oposição, como expressão de um intolerá vel cinismo. Nos dois primeiros anos do seu gover ¬ no, a luta pelos direitos humanos era , sobretudo, a luta contra a censura à imprensa , contra as prisões ilegais e os seqiiestros praticados por órgãos de segurança do Esta do. Mais do que isso, era uma luta contra a tortura. A oposição poderia talvez entender que o general Fi¬ gueiredo falasse de “ democracia relativa ” como descrição de sua “ política de abertura ” . Ainda assim , insistiria sem¬ pre, como o fez v á rias vezes o presidente nacional do MDB, Ulysses Guimarães , que uma meia democracia é como uma meia gravidez : ou existe ou não existe. A democracia , como a gravidez, é um processo. A oposição não se recusava , portanto , a reconhecer o cará ter



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QUE

DEMOCRACIA ?

eram definidas por certos atributos que faltavam ao

no Geisel e que continuavam pesando no governo redo. O império da lei , à qual se subordinam gov e governantes, a liberdade de se organizar para co de modo pacífico, pelo poder , a liberdade de parti do conjunto dos cidad ãos , através do voto, nos mo de constituição do poder — eis aí atributos mín essenciais da democracia em qualquer tempo ou em quer lugar em que exista ou tenha existido. Ao truismo do general Geisel sobre a democr

lativa a oposição respondia com outro truismo. democracia sem liberdade . Regido por toda a soma bítrio que lhe conferia o Ato Institucional nú mer mais tolerantes entre os oposicionistas recusavam ao governo Geisel até expressões como “ ditadura re no temor de que o adjetivo atenuasse a imagem d poder autocrático. A propósito, o então senador Brossard chegou a comparar o governo Geisel com dos imperadores romanos. Pouco importa a precis tórica da comparação. Ela vale para o objetivo q autor tinha em vista , qual seja , o de caracterizar a soma de poder autocr á tico jamais conhecida na brasileira . CONTRADIÇÕES DA TRANSIÇÃO

Tudo isso é conhecido. Contudo, nem líderes sivos do campo liberal, como Brossard e Ulysse mesmo os setores mais radicais da esquerda deixar reconhecer um fato: foi precisamente no governo que teve início o processo de transição em que nos tramos. N ão era o melhor início que se poderia d Mas foi o que se teve.

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“ pol ítica de distensão” de Geisel e a “ pol ítica de abertura ” de Figueiredo , como ninguém se negará a reconhecer que há um v ínculo de continuidade entre a “ abertura ” e as perspectivas de transição que se esboçam agora . Qual o sentido da democracia que se define num processo de tran ¬ sição que começou , e continua , t ão pelo alto quanto este? Sempre houve polêmicas sobre a democracia. E as polêmicas continuam existindo. No período de Geisel, al ¬ guns falavam de “ democracia relativa ” , outros de “ demo¬ cracia social ” , outros ainda de “ democracia forte ” , “ demo¬ cracia brasileira ” , etc. Os homens da oposição repudiavam qualquer adjetivo. Mas a verdade é que aquilo que os pri meiros buscavam definir com espí rito de apologia não era muito diferente daquilo que diziam os seus adversá rios, embora estes movidos pelo espírito de denú ncia e de crítica. De Geisel para Figueiredo, tivemos o restabelecimen to do habeas corpus e da liberdade de imprensa , a anistia , a reorganização partid á ria , as eleições diretas para os go vernos estaduais em 1982 e estamos chegando ao limiar da substituição de Figueiredo por um presidente civil . Neste per íodo tivemos ainda , a partir de 1978, o ressurgimento do movimento operá rio que , de l á para cá , realizou al gumas das maiores greves que se conhece na história deste pa ís. Na reorganização partidá ria surgiram , entre os velhos, alguns novos partidos. Um destes , o PT , surge de baixo para cima , fen ômeno radicalmente novo a atestar a pujan¬ ça alcançada pelos movimentos populares, em particular o crescimento do peso social da classe operá ria industrial . Na mesma á rea social , surgem duas propostas novas de organiza çã o oper á ria , a Central Ú nica dos Trabalhadores ( CUT) e o Congresso da Classe Trabalhadora (CONCLAT) . Na transição, descobre-se que o país vai deixando para tr á s as imagens conservadoras que a tradição busca ciosamente preservar . A liberdade de imprensa permite nos descobrir um processo de modernização de jornais e revis ¬

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torna anacrónicos muitos dos conceitos que a trad mou sobre a atividade política no país . E no plano mico, em que pesem os efeitos da crise , o menos pelo menos no pode dizer é que nos tornamos um pa ís de perfil capitalista industrial. Sul O cará ter contraditório e ambíguo de uma t que começa por cima se acentua sobre o pano d dos fortes contrastes entre o “ país legal ” , submetid e instituições anacrónicas, e o “ país real ” , em pro modernização acelerada . Compreende-se , pois , que sição seja um assunto polêmico , dif ícil de expli mesmo de descrever . Eu me explico. Para tomar um exemplo, nã d ú vida de que a Lei de Segurança Nacional é um totalitá rio. É uma antilei , à qual chamamos de lei trema concessão de linguagem . Mas bastaria defin r á ter totalitá rio (ou , se quiserem , autoritá rio) de le esta para termos caracterizado o regime que as el A realidade é que o regime , ao mesmo tempo, ou simplesmente não consegue impedir tolera sejam denunciadas nos jornais , no rádio leis suas levisão. Um fato ainda mais curioso: em 1983, deputados de oposiçã o , entre eles toda a bancada tornaram expressa sua recusa em obedecer à em tatorial que nos serve de Constituição, quando p juramento de posse em suas funções de represent povo no Congresso Nacional . Que regime é este evidentemente , rid ículo imaginar que um regime q te tais fatos se tenha tornado uma democracia. M negar que está deixando de ser uma ditadura ? A pol êmica se acende quando se busca defini sição. Mas é inegá vel que , do lado do regime e do oposições , se busca fazer referência a uma reali mum , por dif ícil que seja defini-la . Ou será que lado e de outro, se faria referência a um valor Por estranho que pareça , entre a apologia , de







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oposições falam para assinalar o quanto falta caminhar, os do regime , desde Geisel até hoje , falam para enaltecer o quanto já andamos . Mas a idéia do ponto de chegada apa¬ rece como sendo a mesma . DENOMINADOR COMUM

Desde fim de 1983, as oposições entraram em campa¬ nha visando o restabelecimento das eleições diretas para a Presidência da Repú blica . Tivemos, neste percurso, as maiores manifestações de massa que se conhece na história brasileira , as quais aprofundaram a reivindicação demo¬ cr á tica das diretas, ligando-a com as grandes questões so¬ ciais e económicas vividas pelo país nesta época de crise. É , evidentemente, um quadro povoado por inú meras diver ¬ gências sobre temas os mais diversos. Contudo, nenhuma dessas divergências se revelou bastante forte para impedir a unificação das oposições sob o lema diretas- já . O mais interessante disso tudo é que, sob pressão da mobilização popular , o governo Figueiredo enviou ao Con¬ gresso uma emenda propondo as diretas para 1988. É cer ¬ to que depois a retirou , em uma de suas muitas manobras para assegurar o controle da sucessão. Registro, porém, o fato de que enviou a emenda e nela expressou uma vontade pol ítica , admitindo as diretas para daqui a quatro anos. O que significa que, pelo menos nesta questão, a grande diferença entre as oposições e o regime estaria apenas na avaliação do timing da transição. É evidente que, por tr ás da quest ão do timing , está a questão da continuidade do regime , do controle da transi¬ ção e , em última instâ ncia , do tipo de democracia que se imagina possível para o pa ís. Mas também é evidente que, na questão das diretas como em muitas outras, as contra¬ dições entre o regime e as oposições pressupõem um deno¬

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se recusaria a reconhecer que , nos — dez anos, nós percorremos um pedaço da caminh

mais radicais

rumo de uma maior liberalização política . E não po

deixar de reconhecê-lo , até porque a caminhada n sido possível sem eles. Se é verdade que a inicia transição vem de cima , também é verdade que su nuidade e o seu avan ço progressivo não teriam sid veis sem as pressões nascidas da sociedade civil e d tidos de oposição, que , aos poucos, acabaram cons no país uma ampla e difusa , porém muito eficaz democrática . Desde 1974 , tem havido uma complexa relaçã regime e oposição , por um lado , e entre Estado e de, por outro, que faz de todos responsáveis , emb graus diversos , pelo caminho percorrido. E é esta relação que , criando em todos a convicção de qu nhamos para a democracia , cria também um sen de responsabilidade em face do caminho a perco DEMOCRACIA: VALOR GERAL

A luta política no Brasil , hoje , é tanto uma l poder quanto uma luta em torno do significado d cracia . Em outras palavras: a democracia é o terre grupos e partidos que representam interesses e id diversas lutam pelo poder . É por isso que todos (o todos) têm de incluir entre seus objetivos a conq democracia ou , para os setores mais ligados ao o aprimoramento da democracia . É evidente que, dida que aparece como um instrumento para o a democracia é concebida como um instrumento. M bém me parece evidente que , na medida que s titui no terreno da luta , a democracia passa a ser u tivo comum geral , do conjunto das forças políticas

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curso da transição , desde 1974 , percebe-se que algo se rompeu ou se est á rompendo em nosso tradicional realismo político. Se o realismo cínico da tradição fosse o nosso critério maior de avaliação da situação pol ítica , poderíamos facilmente acreditar que ca minhamos , hoje , para nova forma de ditadura . Poderíamos , por exemplo, imaginar que só uma outra ditadura seria capaz de desfazer tudo o que de ruim se atribui à atual ditadura . Poderíamos também acreditar que “ a ú nica sa ída ” estaria tanto pela esquerda quanto pela direta numa volta ao espírito de 1968. Com o que estaríamos de novo voltando à retórica de uma suposta revolução, enquanto , na realidade , estaríamos preparando um golpe de Estado . Se examin ássemos o momento atual da ótica da tradição , haveria v á rios rumos possíveis , e o menos prová vel seria este que seguimos agora : o da democracia . Em que consiste isso que chamei antes de inverossímil na transição brasileira ? Consiste em que as vicissitudes da transição acabaram criando as condições para o enraiza ¬ mento de uma crença nova : a da democracia concebida como um valor geral . Esta crença democrá tica , inverossí¬ mil de acordo com os critérios da tradição, tornou-se na campanha das diretas de uma evidência t ão n ítida que quase se poderia tocar com a mão. Para deixar as coisas mais claras , recorro a um exem plo. A idéia de desenvolvimento económico constitui-se, a meu ver , como um valor geral desde os anos 50. Isso sig¬ nifica que embora os políticos , os partidos e os cidad ãos em geral possam divergir quanto a saber quais os melho res caminhos para o desenvolvimento, eles estão, em sua grande maioria , de acordo com rela ção ao valor do desen¬ volvimento como tal . E não se trata de que apenas concebam o desenvol vimento como uma necessidade histórica , seja esta deriva da das leis económicas do capitalismo, das leis sociológicas da modernização ou do que se queira . Se fosse só isso, Quando se examina o





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ou n ão imposto por alguma lei histórica ou socio desenvolvimento é , no Brasil , concebido como u

tivo que vale em si mesmo. Mais investimentos , mais empregos , melhores maiores oportunidades de consumo — tudo isso v além de qualquer preferência por este ou aquele econó mico. Temos o direito de preferir o socialis capitalismo como caminho para o desenvolvimen em qualquer hipótese , entendemos o desenvolvimen uma condi ção para a conquista de uma vida ma Se os anos 50 são os anos da constituição d volvimento como um valor geral , penso que os 70 são os da constituição da democracia como valo e nã Porque a quest ão da democracia aparece ligada ao problema do ser de outro modo polêmica em torno do seu significado é uma dec necessá ria . Temos todo o direito de preferir um cracia liberal ou socialista . Temos todo o direito d assegurar a hegemonia burguesa ou lutar pela he dos trabalhadores . Mas esta luta de partidos , gr interesse , classes sociais cm torno do sentido da d cia só pode existir quando se vai além do seu sig meramente instrumental . Na própria luta dos div e dos contr á rios em torno do sentido da democra a afirmação da democracia como um valor geral . lor que é de todos , espa ço irrenunci á vel de reali dignidade humana . A formação e o enraizamento de um valor já disse , processo de dif í cil an álise , em especial est á ainda acontecendo. Se as coisas parecem mais quando se fala do desenvolvimento, é por um e ótica causado pela distâ ncia histórica . Parece-nos tural que a política brasileira tenha no desenvo um dos seus par â metros , que poucos de nós esta postos a admitir que houve uma é poca em que assim . Valores consagrados íerminam sempre por





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Até aqui , fico nisso que me parece ser uma consta tação de fato. Vivemos um tempo no qual a democracia , mais do que um instrumento / vale em ¡¿i mesma . Mas como entender o surgimento desta crença nova quando se sabe da tradição pol ítica que temos ? ¬

I

As derrotas da violência ou a questão do Estado

Os que insistem em afirmar que caminhamos democracia na base do argumento de que “ não tem nhum outro lugar para ir ” cedem ao equívoco d concepção determinista ( mecanicista) da história . livrar-me aqui , desde logo, da possibilidade de vi interpretado na linha do equívoco contrário. Refiro erro simé trico embora oposto ao do determ É o erro de quem vê a história como pura realizaç valores, sejam estes princípios morais, religiosos o l ógicos . Seja a história concebida como realização cessidade ou de um imperativo categórico, o que se é , precisamente, o essencial, isto é , a liberdade. Na conjuntura de 1968, a revolução era uma bilidade entre outras. Na conjuntura atual , a democ uma possibilidade entre outras. Em 1968 a dem n ão era uma alternativa excluída nem, hoje, a rev estaria fora de questão. Se a democracia vier, co espera , a ter êxito , não será por ter sido imposta p





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como se pensa, a democracia. Ocorre apenas que as cir¬ cunstâncias embora dif íceis , a tornam possível. O mais é cose a fare. O mais é luta . Quais são estas circunstâ ncias? Creio que a ¬ berta do valor da democracia na política brasileira desco ocorre no momento mais escuro de nossa história , os anos de ¬ f âmia do período Mediei . O assessor da embaixada in quem conversei me disse que essa é uma idéia de com ¬ nâncias bíblicas. “ Você tem de perder a sua vida resso para ganhá-la .” O que ele queria dizer é algo que todos sabe¬ mos, até por experiência própria . “ Você conhece o valor da liberdade quando a perde.” Diz Juan Linz, em um dos seus estudos, que a tran¬ sição da ditadura à democracia na Espanha se explica , pelo menos em parte , pela memória da Guerra Civil com seu milhã o de mortos. É uma parte da explicação, pois sabemos que entre a Guerra Civil e o período da transiçã o, a Espanha mudou. No Brasil , não se pode falar, a rigor, de uma guerra civil, nem em 1964, nem em 1968, nem durante o reinado de terror de Mediei. Mas ninguém duvidará de que bém aqui o início da transição não se entende sem se tam¬ com¬ preender os efeitos da violência que se abate sobre o sis¬ tema pol ítico e sobre a sociedade depois de 1964 e, em particular, depois de 1968. E, aqui, como na Espanha, isso é apenas uma parte da explicação. Pois, como se sabe, também o Brasil mudou . TERROR DE ESTADO

Há violências e violências. Digamos que, no Brasil, a violência da direita tomou , desde 1964 e, em , desde 1968, proporções industriais, enquanto aespecial da es¬

POR QUE DEMOCRACIA?

a segunda dependia de pequenos agrupamentos pol com capacidade de fogo apenas rudimentar . Embora em proporções brutalmente desiguais , duas formas de violência tiveram, pelo menos em um to, resultados semelhantes. Serviram como fator de ganização e de ruptura do sistema político. O que ainda uma vez , a velha verdade de que quando a vio se impõe , a política desaparece. Por isso mesmo, lência que se abateu sobre o país revelou-se um fr do ponto de vista pol ítico . Da parte da esquerda, se como forma de resistência à ditadura , certamente sou como o meio , que alguns sonharam , de conqui poder. Da parte da direita , se valeu para os seus fin nómicos , foi totalmente ineficaz para os seus fin ticos. Destruiu o que restava da democracia golpea 1964 e , deste modo , tornou estéril o terreno onde qu política, de esquerda , de centro ou de direita , p

prosperar.

Nos dez anos que vão de 1964 a 1974, o siste lítico formado durante o período democrático foi mente destroçado . N ão apenas foi destruído o sistem tidá rio, abolido em 1965 , para dar lugar do simula bipartidarismo ARENA-MDB , o qual não passou d os anos Mediei de um exercício de ficção política . N de terror , após 1968, a própria imprensa tornou-s vés da censura , em um simulacro de si própria . Na cia do habeas corpus , para mencionar logo o caso ex o sistema judiciá rio se anulou como poder indepe E o Congresso, destituído dos seus poderes e am pelo fantasma das cassações, converteu-se em cená vida , eni que pesem as vozes de protesto que se ouv quando em quando. Destruído o sistema político, o de Estado passava a destruir-se a si próprio. Criou situação de autofagia do poder . Situações como esta remetem a leis antigas da p Por estranho que possa parecer , nunca foi tão f áci

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como diz Max Weber, em seu clássico ensaio sobre a Polí tica como Vocação, um conjunto de indivíduos que reivindicam para si o monopólio do exercício legítimo da violência , a questão que se colocava de imediato era a seguinte: como considerar aqueles indivíduos que, no Es¬

tado brasileiro, exerciam a violência de modo ilegítimo ? Seriam ainda o Estado ? N ão que fosse possível fazer uma preleção sobre Weber nestes termos. O terror de Estado o impedia. Mas o fato de que o terror existisse , sentido por todos como coisa tangível, tornava concretas e imediatas re¬ ferências teóricas que , em outras circunstâ ncias , seriam abs¬ tratas. Entre estas mencione-se questões como a violência de Estado e a legitimidade de Estado, envolvendo ques¬ tões complexas sobre o direito, os sistemas de represen¬ tação, etc. Quem diz terror de Estado diz crise de Estado: um Estado que pratica o terror tende a anular-se a si próprio. Nestas circunstâ ncias, qualquer reflexão sobre o Estado, em particular se inspirada nos clássicos , torna-se de ime¬ diato uma proposta política. Naqueles dias , qualquer teoria sobre o Estado encon¬ trava sentido em evidências incontrastáveis. O Estado diz Engels surge quando a sociedade se divide em um conflito irreconciliá vel. Da í que o Estado é um órgão capaz de assegurar a coesão da sociedade, à qual se apresenta como soberano. Que havia em algum lugar um conflito irreconciliável era evidente. Tão evidente quanto a carên¬ cia de um órgão capaz de submetê-lo a controle. O que se tornava ainda mais grave pelo fato de que o aspecto vio¬ lento do conflito aparecia ali mesmo onde se supunha de¬ vesse estar o Estado.



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PRECISA SE DE UM GOVERNO QUE GOVERNE





tanto da realidade vivida quanto as d aproximar dison, um dos “ pais fundadores ” da democracia ame Para que haja uma democracia , diz ele , a primeir dição é que haja um governo capaz de governar, a se é que haja uma sociedade capaz de controlar o go O liberal Madison estaria mais perto da realid que o marxista Engels , ou é que já começávamos a naquele momento , os pren ú ncios da hegemonia libe bre o que ainda viria a ser o processo de transição leira ? Era a realidade da crise que colocava na ord dia uma proposta teórica liberal , ou já estaríamos o os ecos da proposta pelo restabelecimento do Esta Direito que algumas vozes liberais começavam a apre no Congresso? O certo é que nos anos de terror faltavam t primeira condição quanto a segunda . O que chamá naqueles anos , de governo, tinha muito de parecid um bando de gangsters . Cham á vamos aquilo de g pela mesma razão que estamos dispostos a chamar a antilei da Segurança Nacional . Era um antigoverno , pouco mais do que um de sectá rios que manejava os instrumentos do pod seu próprio benef ício ou em benef ício dos interess vados que tomavam o Estado como coisa sua . Os duos que se diziam governo tratavam a sociedade em como um exército de ocupação trataria um país oc Se conseguiam dar a ilusão de que constituíam um no , foi porque est á vamos em pleno “ milagre econó resultado de uma conjuntura de expansão da econom cional e internacional que a propaganda insistia em siderar como realização do poder . Foi, porém , destes anos de violência, de conf de medo que surgiu no pa ís uma atitude nova em r ao Estado e, por conseqUência, em relação à socie à democracia. Tanto para as iniciativas que nasc Estado mais precisamente das Forças Armada

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tica , o ponto de partida tem de ser procurado nos anos mais escuros do regime de após-1964 . São também , por isso mesmo , os anos mais confusos de toda uma fase his¬ tórica carregada de confusões. Se tem sentido falar de esquizofrenia para um pa ís , aqueles foram , sem d ú vida , os anos da esquizofrenia política brasileira . Se o Estado era um anti-Estado, o que chamávamos de sociedade se reduzia a pouco mais do que um conglo merado de indiv íduos amedrontados. A partir de Mediei , nós que vínhamos de cinco anos de ditadura militar , pas¬ samos a viver a situação terrível de uma ditadura de mui¬ tos ditadores. No episódio da substituiçã o de Costa e Silva por uma junta militar , a autoridade do presidente sobre as For ças Armadas viera abaixo e Mediei n ão fora capaz de restabelecê-la ou n ão tivera interesse nisso. Dizem as más línguas que Mediei foi escolhido , entre outras razões, por ser uma personalidade irrelevante. Por uma razão ou por outra , com ele a ditadura chega ao paroxismo . N ão era mais, porém , a ditadura de urti general-pre¬ sidente , mas a do chamado “ sistema ” . E o “ sistema ” era um caos de iniciativas descoordenadas , embora todas tendentes a um arbítrio cada vez maior , de comandantes de exé rcito, comandantes de região, brigadeiros da Aero n á utica , coronéis dispersos por diversos órgãos de segu¬ rança , etc. Se o general Geisel em que pese o autoritarismo extraordin á rio do seu governo - prestou algum serviço à democracia , foi o de restabelecer a disciplina nas Forças Armadas, preparando as condições para que viesse a exis¬ tir no país um governo com capacidade para governar. Ele chamou a isso de “ distensão ” , porque acreditou que a sua tarefa fosse a de restaurar a paz e a ordem em um país em guerra . E a melhor tradução que tinha a oferecer para tal política foi a frase inventada por algum dos seus asses sores , dirigindo-se às oposições: “ Segurem os seus radicais que nós seguramos os nossos ” . ¬

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DA “ DISTENSÃO”

A verdade , porém , é que , em 1974, quando chegou à Presidência , já n ão havia “ radicais ” nas ções , pelo menos não no sentido que o regime atr esta palavra . As guerrilhas estavam já inteiramente tadas quando Carlos Marighela e Carlos Lamarca assassinados , o primeiro em 1971, o segundo em 19 e o que restava, maioria dos seus remanescentes ficado de fora d haviam que esquerdas , das momento democr á ticas , o lutas s à se convertia armada inspiração dirigente cabia , sobretudo , aos liberais. O cos “ radicais ” que sobravam em atividade estava “ porões do regime ” . O país , como tal, vivia em plen e ordem . A ordem do garrote e a paz dos cemitério lando em “ distensão ” para o país, o que Geisel f restabelecer a paz e a ordem nas Forças Armadas





Estado. As explicações para o in ício da transição bra são clássicas na teoria política . Como diria Finer , Man on Horseback , os militares, como institui ção, e na política quando sentem ameaçada a unidade i cional das Forças Armadas . Pela mesma razão, co o autor , ser ão obrigados , mais cedo ou mais tarde, Entrando na política , em 1964, em resposta a um de Estado que já atingia o interior das Forças Arm os militares acabaram eliminando , pela raiz , qualque cípio de legitimidade do poder político , sobretudo n respeita às regras da sucessão presidencial . Na seq de Castello a Costa e deste a Mediei ficava claro qu vez quebrada a legitimidade do Estado, tomava d quem tinha capacidade de fogo. Era o que se chama época , de “ processo revolucion á rio ” . N ão era , como se poderia pensar , o reino do L o Estado supercentralizado diante de uma sociedad

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isso . Foi o reino , ainda mais monstruoso, de Behemoth, a violência solta , desbragada . A ú nica comparação histó¬ rica que me ocorre para o Brasil desses anos é a China dos “ senhores da guerra ” . E havia mais : a corrupção, pra ¬ ticada em ampla escala , no entusiasmo do “ milagre eco¬ nómico” . Sem esquecer os seqiiestros , praticados por agentes do Estado , e a tortura , praticada em estabeleci ¬ mentos militares . Era o caos , t ão temido pelos militares, mas promovido a partir do poder , o qual se achava em suas próprias mãos. E a í , sim , passava a ter sentido “ colocar ordem na casa ” , como dizem as justificações clá ssicas das intervenções mi¬ litares na pol ítica . Foi o que Geisel fez .

CONCENTRAÇÃO DO PODER E ISOLAMENTO POLITICO

Como foi possível que se chegasse a isso ? A pergunta é pertinente , tanto pelo que ela pode explicar do passado , quanto pelo que pode sugerir sobre o andamento futuro das lutas democr á ticas no pa ís. Não é demais relembrar que o golpe de Estado de 1964 foi feito , como outros antes dele, em nome da de¬ mocracia . Também é de reconhecer que este golpe foi pre parado com apoio em amplo movimento de opinião pú bli¬ ca , do qual participaram a maioria da classe média , da burguesia , e da Igreja , bem como toda a grande imprensa e boa parte dos partidos de centro e de direita . Desde o momento de sua implantação, porém, o re gime entra em um processo de concentração militar do poder que marcha no mesmo ritmo do esvaziamento de suas bases de sustentação civil , isto é , política e social. Os militares, que deveriam ser apenas o braço armado de um movimento civil sob hegemonia burguesa , tomam o poder , marginalizam os civis e acabam criando um mal-estar até ¬

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pre maior à medida que o poder se concentra e perd tentação. Em 1969 , quando Mediei recebe o pod mãos de uma Junta Militar , este processo já havia fe

longo percurso .

Setores pol íticos que haviam participado do embora em posição relativamente marginal , como lino Kubitscheck , são exclu ídos rapidamente da p Setores que haviam participado ativamente , como Lacerda e o grupo que se reunia em torno do jor Estado de S . Paulo , são rapidamente marginaliza logo depois , também excluídos. É , portanto, praticamente desde o início que me se submete à lógica infernal que haveria de levá isolamento político. A atividade política torna-se , ca mais, um assunto dos comandos militares e das cam políticas e burocráticas que conseguem sobreviver sombra . N ão houve , no Brasil , apenas “ um golpe do golpe ” , mas vá rios. E cada um deles significa passo a mais no plano inclinado da perda de legitim Ê verdade que as promessas de restabelecime democracia feitas, no início, por Castello, são ren por Costa e, também , por estranho que pareça , por M Ê também verdade que , na fase coberta pelos três ros presidentes militares, surgem , aqui e acolá, ten de institucionalização pol ítica , embora todas fraca Também é certo que , apesar das suspensões tempo o Congresso se manteve em funcionamento, embo evidentes constrangimentos e destitu ído de boa par seus poderes. E também é certo que , apesar de tu eleições ( parlamentares e municipais) se mantiveram uma pr á tica que se renovava de dois em dois anos, e tivessem um sentido meramente simbólico e não de renovação do poder . Nada disso , porém , serviu para mudar o rum acontecimentos. Os fatos que mencionei acima valia

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cia para o futuro, mas o que se via , no dia a-dia do presen ¬ te , era o horror da ditadura. O ESTADO E O ESTADO DE DIREITO

Em todo caso , a retórica estava lá . E começa a tomar sentido quando passa a servir de cobertura para as ban¬ deiras das oposições, em boa parte formada por políticos antes comprometidos com o golpe de Estado. A fracassada Frente Ampla , de Lacerda , Kubitscheck, , . etc terá sido talvez a primeira tentativa neste sentido. É , porém , a partir de 1968, quando o país se acha sob Me¬ diei e em plena vigência do Ato Institucional n ú mero 5 , que os liberais frustrados com ó golpe começam a juntar-se aos liberais remanescentes da democracia de 1946. O MDB, que nasce, como o partido do governo, a ARENA, de uma iniciativa do regime, seria o escoadouro natural destas primeiras expressões da oposição liberal. É a partir com as esquerdas esmagadas sob o peso da de então repressão que começa a definir-se para o conjunto das oposições o tema do restabelecimento do Estado de Direito. Tudo isso significa dizer que a hegemonia liberal que vemos hoje , tão n ítida , no campo das oposições, vem des¬ de o início da luta pelo restabelecimento da democracia no país. E mais: começa , através de umas oposições nas quais os dissidentes do regime têm peso decisivo , na forma da cobran ça de uma promessa democrá tica frustrada pelos novos donos do poder . Para Geisel ligado ele próprio aos “ castelistas ” , muitos deles tidos por liberais nos meios militares trata-se de restabelecer a disciplina militar , a começar pelo princípio da soberania do poder presidencial sobre as For ças Armadas. Nas circunstâ ncias de 1974, quando chega ao poder, isso significava restaurar o Estado. Para as opo

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durante o governo Geisel — , tratava-se de restab n ão apenas o Estado , mas o Estado de Direito . Fiquem claras as diferenças . Para Geisel, trat de criar as condições em que o governo fosse cap governar. Para as oposições , inspiradas em uma d eminentemente liberal , tratava-se de criar as condiçõ viessem permitir à sociedade controlar o governo . São duas visões diferentes , mas simultâ neas . tantes em muitos aspectos , mas não necessariamente dentes. A distensão , “ lenta , gradual e segura’’ para foi, para as oposições, sobretudo inseguras e, em momentos , extremamente violenta . Apesar de tudo duas linhas de ação esboçaram , em mais de uma op dade , o reconhecimento de um terreno comum . E tinham de comum era que ambas se colocavam , e de modos diferentes , contra o terror de Estado. A questão do Estado e a quest ão da democraci sob ótica liberal , aparecem , assim , simultaneamen por o Estado nos trilhos e reorganizar a sociedade aí duas tarefas diferentes que cabem , desde o iní transição , a atores diferentes e , em muitos se

opostos. A í se encontram , em todo caso, algumas das ções que haveriam de permitir que o regime , atra Geisel e , depois , de Figueiredo , tomasse a iniciat transição , reabsorvendo, ao longo do caminho, a das bandeiras liberais em mãos das oposições. São a mas condições que haveriam de permitir à s opo nascidas da iniciativa liberal , manter-se ao longo d po , sob hegemonia liberal , em que pesem todas as ções que haveriam de ocorrer , de cunho acentuada popular e operá rio.

POR QUE DEMOCRACIA ?

por efeito de alterações de estrutura na sociedade leira . É inegá vel que certas situações políticas alterar caso de cará ter marcadamente violento pela q , a maneira profundo menos ou mais modo colocav se classes as e sociais pessoas, os grupos face da política em geral e , em particular , em f Estado. Em que pese toda a nossa tradição de cinis rela ção aos valores democrá ticos, a verdade é qu adquiriram um novo sentido naqueles anos . Adq um novo sentido para os liberais que foram os pr a reivindicá-los no plano político. E tinham de a um sentido novo para a esquerda , que voltava, leante , ao cená rio político. Muita gente, no pa ís medo. E é muito dif ícil ser cínico quando se tem m A preced ê ncia hist ó rica dos liberais sobre a es na luta pela democracia é um fato que não pode cuidado . Vem de antes do período Mediei, como já vamos . E se afirma nos dois primeiros anos de te Estado. Enquanto a direita , aparelhada nos órgãos gurança e no “ sistema ” , fazia a sua “ guerra revo ria ” e a esquerda armada desenvolvia as suas t á t guerrilha , algumas vozes liberais começavam a e pedindo a revogação do AI 5 . É a célebre quest ão dos caminhos , decisiv quem pretenda a hegemonia na política . Quem t caminho certo tem uma boa chance de dirigir os Enquanto uma parte da esquerda resistia pelas ar liberais erguiam uma bandeira de cará ter institucio luta pela supressão do AI 5 passam a reivindicar o de Direito . A resistência armada foi derrotada e est de car á ter institucional acabaram se tornando pala mum do conjunto das oposições. Inclusive da esqu Marx disse, certa vez , que “ a democracia é o resolvido de todas as Constituições ” . No Brasil d sição , a democracia tem sido, e creio continuar á s



As derrotas da violencia ou a questão da democracia A violência que rompeu o sistema pol ítico vigente antes de 1964 rompeu também , sobretudo depois de 1968, com algumas de suas tradições ideológicas . Mudou o país , já sabemos , com o crescimento urbano ão industrial, criando, em particular no Centroexpans a e Sul, setores novos na classe média e na classe oper á ria . J á seria um motivo importante para a ruptura ideológica. O país moderno , urbano e industrial dos anos 70 n ão pode¬ ria manter por muito tempo tradições ideológicas que dei tam ra ízes no país agr á rio que engendra o movimento dos anos 30. Seria , por isso, um engano pensar que as mudan¬ ças de mentalidade que ocorrem nos anos 70 sejam apenas fruto de uma situa ção de violê ncia . ¬

RA í ZES DA HEGEMONIA LIBERAL



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liberais queriam , contra o AI 5 , restabelecer o Estado de Direito , entendido como o império da lei, como diz a expressão em sentido estrito. As esquerdas que voltavam à política avançavam os seus toques na temá tica geral, fa lando em Estado Social de Direito , participação dos traba ¬ lhadores, etc. Em que pesem as muitas divergências, e apesar dos conflitos que ainda haveriam de vir , o adver¬ sá rio comum era um só: a violência do “ sistema ” . ¬

RUPTURA DA TRADIÇÃO

N ão falo das intenções , mas das ações. Nada mais inú til, em política , do que a tentativa de desvendar as in¬ tenções “ de foro í ntimo ” dos protagonistas. Em política , a ú nica intenção que vale é aquela que aparece na ação real . Ê com este crité rio em mente que sustento aqui a tese de que, sob as circunstâ ncias de violência do período Me¬ diei , muitas das ambigiiidades da tradição política brasi¬ leira em face da democracia se resolveram em favor de uma concepção democr á tica de democracia . Há ainda , por certo , setores irredut íveis, tanto à direita quanto à esquer¬ da . E o que possam fazer , ou deixar de fazer , não é de modo algum irrelevante. Mas se são as ações que contam , não me parece haver d ú vida de que a maioria tenta “ um jeito novo de andar ” . E o que a transição já caminhou até aqui seria simplesmente incompreensível se não houvesse da parte de muitos uma atitude nova em relação à de¬ mocracia . Em face das perspectivas da transição hoje , aparecem muitos para dizer louvores à nossa tradição democr á tica . São as vantagens da ambigiiidade de uma tradição que , permitindo às pessoas tentarem ser , ao mesmo tempo, au¬

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dentemente , a alegação de que n ão tiveram , no p as condições de se expressar como tais . Não cre seja bem assim . Um autorit á rio é um sujeito que se comporta tariamente . Um democrata é um sujeito que se co democraticamente. Quem age como um democrata , mantendo, no fundo da alma , sentimentos autoritá ri talvez um mau pol ítico, mas n ã o deixar á de ser de ta por isso . Quem atua como um autoritário, guarde reservas íntimas do gênero “ como seria bo povo estivesse maduro para a democracia ” , talvez chegue a ser um totalitá rio mas, nem por isso, dev considerado um democrata. Penso que o esforço que muitos por buscar no passado as ra ízes de suas co democrá ticas atuais vale apenas como o primeiro p uma revisão de atitudes que , mais cedo ou mais terminar á em uma ruptura com a tradição. O fato de que a questão da democracia apare da , e de modo indissol ú vel , à questão do Estado , co as coisas nesta revisão necessá ria . Complica para em particular para os liberais , que , embora tendo primeiros a dar voz às reivindicações democrá tic também , desde sempre , os que se acham mais pr do Estado . Mais dif ícil ainda quando se sabe que der de origem autocrá tica não tem como deixar de os que dele se aproximam . Para se fazer avançar a cracia depois de um período tão longo de autorit impõe-se romper o regime autorit á rio , dando nova ao Estado. Para quem est á próximo do poder , isso impossível . Mas , sem d ú vida , é mais dif ícil . Embora as dificuldades maiores estejam com rais , é no campo da esquerda que elas mais apa Ainda que a esquerda esteja distante do poder , pes bre ela enormes preconceitos. Pode-se , por exemplo a sério os comunistas quando afirmam querer a de cia ? E os remanescentes da esquerda armada de 19

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podem significar um cínico jogo tá tico. E o pior é que à parte setores minoritá rios de esquerda , que, realmente, n ão conseguem conceber a democracia senão como tá tica mesmo aqueles que se empenham numa verdadeira luta pela democracia acabam tendo dificuldades com outro tipo de preconceitos , os que vêm de sua própria tradição.



OS COMUNISTAS, OS LIBERAIS E A DEMOCRACIA

Para as comunistas do PCB , por exemplo, a sua atitu¬ de atual de valorização da democracia parece significar, n ão uma novidade , mas um aprofundamento de posições que se acham em sua própria tradição. Em 1945, num quadro de derrota do fascismo e de aliança dos EUA e da Inglaterra com a URSS, o PCB viveu um momento de entusiasmo democrá tico que, lamentavel¬ mente , durou tão pouco quanto a sua própria condição de partido legal. Um entusiasmo democrático que o levou a políticas, a meu ver , equivocadas no gênero de aconselhar a classe operá ria a “ apertar o cinto ” em nome da recons trução da democracia , quando o que teriam a fazer era sustentar as greves e as lutas oper á rias, precisamente para ajudar o pa ís conquistar a democracia. Note-se , aliá s , que a perda de entusiasmo pela demo¬ cracia não é exclusiva dos comunistas. Depois de 1947 , eles passam a pregar o que chamavam de “ a derrubada do governo de Dutra ” , bom ou ruim um governo democrati¬ camente eleito pelo povo. Mas a verdade é que o clima da guerra fria afetou o próprio governo, que , desde o início, passou a uma pol ítica anticomunista , denunciada na época , até por parlamentares liberais filiados à UDN . Além disso, lavraria entre os liberais uma funda decepção com a de¬ mocracia de 1946 . N ão eram poucos os que, dentro da UDN , viam na democracia da época uma continuação dis¬ ¬

decepções que conduzem muitos liberais a posiçõ direita. Evidentemente, os comunistas n ão podem ser derados inocentes quanto às práticas golpistas da anos. De resto , nenhuma das demais forças políticas atuantes pode ser considerada inocente, em que diferenças de grau na responsabilidade comum pel pismo. Em todo caso, é fato que , sempre que as circu cias políticas lhes permitiram , os comunistas tratara se ajustar às regras do jogo democrá tico. Isto ocorreu ticularmente, depois de 1954 , o que lhes assegurou posição de participação ativa em 1961 em defesa da lidade democrá tica. Também é verdade que depo 1964 sempre buscaram caminhos democráticos pa opor ao regime militar . Quaisquer que sejam as m opiniões pessoais sobre o PCB e suas políticas, n surpreende que a quest ão da democracia tenha hoje de relevo em sua agenda . A quest ão da rela ção entre os comunistas e a cracia merece, porém , uma referência mais longa . pelo seu peso real no jogo político do que pelo peso me que tem tido o anticomunismo em nossa história tica . E os profundos compromissos dos comunista onde o peso do autoritari sua própria histó ria só muito maior do que eles gostariam de admitir para atrapalhar os seus pr óprios movimentos. Quando eles afirmam querer a democracia, a sempre algu ém para perguntar: “ Ea Rú ssia ? ” Mui atrapalham enormemente para responder. Há exceçõ lizmente . Lembro-me de um comunista que , partici de um debate , estabeleceu a ú nica base que me parec reta para questões como esta . Colocado diante da m pergunta , ele começou dizendo: “ Eu sou comunist n ão sou russo” . A seguir , mostrou algumas diferenç vias entre a R ú ssia czarista de 1917 e o Brasil do 80 e terminou sugerindo que , afinal , mesmo na “ R





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Para mim , o essencial era o ponto de partida . No que implica na verdade uma saud á vel rup¬ gesto inicial ele deu a entender que tura com a sua própria tradição se sentia tão responsá vel pelo stalinismo quanto um ca ¬ tólico pode se sentir responsá vel pela Inquisição ou um liberal brasileiro pode se sentir responsável pelas atroci¬ dades dos americanos na guerra do Vietn ã ou dos france¬ ses na guerra da Argélia .





A NOVA ESQUERDA E A DEMOCRACIA

Mais sutil é o processo de mudança vivido por muitos que , na virada de 1968 , se lançaram à luta armada. Como entender que os que se dedicaram ontem a ações armadas contra o regime militar participem hoje da luta pela demo¬ cracia ? Também aqui , é preciso despir a análise dos pre¬ conceitos correntes e enfrentar os fatos como eles se apre¬ sentam. Registro , em primeiro lugar , que a maioria dos gru ¬ pos de ação armada atuou no eixo Rio-São Paulo, ou seja , no centro econ ómico e pol í tico do pa ís . A ú nica exceção relevante foi a de um grupo do PC do B que tentou esta ¬ belecer uma base de ação guerrilheira no Araguaia , regi ão recôndita do extremo Norte do pa ís. Em segundo lugar , a grande maioria dos guerrilheiros daquele momento era formada por jovens , em geral estudantes , que nasceram para a pol ítica depois de 1964 , encontrando barrado seu caminho para a cidadania pelo regime militar. Em terceiro lugar , boa parte de suas ações militares acabou destinada a obter a libertação de companheiros presos. Se estes três fatos são considerados , o que se pode concluir é que as suas ações armadas foram , sobretudo, de fustigamento contra a ditadura militar implantada . O primeiro preconceito a ser deixado de lado é o da

treinamento a alguns grupos , mas isso é a ijma parte da questão. Quem se apega à idéia d ififluência decisiva dos cubanos acabará perdendo nificado real das ações dos jovens de 1968. Se a insp da retórica guerrilheira era buscada em uma revoluç se convertera em um mito , as razões reais de sua l tavam aqui mesmo. E quanto às influências externas do que Cuba há de ter pesado a atmosfera criad movimento de 1968 na França . Sem esquecer a pro da , tão cínica quanto violenta , do governo americano a guerra do Vietnã . Embora as simpatias pela revolução cubana v desde os seus in ícios , em 1959 , as ações armadas querda só começaram nove anos depois , em 196 preparação é posterior ao Ato Institucional núm de 1965 , que dissolve os partidos políticos da demo de 1946. Foi um momento de frustração geral no tanto mais porque o AI 2 vem em resposta aos resu das campanhas eleitorais estaduais do Rio de Janeir Minas Gerais , onde foram vitoriosos candidatos de ção ao regime militar . É também o momento em que e Silva se impõe a Castello, frustrando a primeir messa de restabelecimento da democracia no pa ís . Pretendo dizer que , qualquer que tenha sido rica , a luta armada daqueles anos tinha o sentido d luta de resistência . E ocorreu n ão porque em Cub vesse um regime socialista , mas porque havia no um regime militar . Quando o regime brasileiro er ou bem , democr á tico, um grupo se alongou pelo i do Brasil para treinamentos de guerrilha , mas fo antes que fosse capaz de qualquer ação. E n ão con chamar a atenção dos meios políticos nem mesmo seus dirigentes , presos , foram submetidos à tortura , t ão Estado da Guanabara , sob o governo Lacerda . N ão ocorreu atividade guerrilheira no país an 1964, como não ocorre agora depois de iniciado (

jades de

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mocracia , onde não se vê nem rastros de ações violentas da esquerda . Nem a Espanha , modelo da transición sin ruptura, se enquadra neste caso. A experiência da luta armada de 1968 é fruto de um conjunto excepcional de circunst â ncias, no qual a influên¬ cia cubana entra apenas como um condimento a mais. O entusiasmo democrá tico que acompanhou o governo Juscelino Kubitscheck trocou-se em seu inverso depois da renuncia de J â nio Quadros. As circunstâ ncias de ameaça de guerra civil que cercam a posse de João Goulart leva¬ ram muitos à convicção de que o país entrara em uma crise de poder , para a qual n ão se via saída pacífica . Começa , ao mesmo tempo , uma depressão económica que haveria de durar até 1968 e para a qual muitos seto¬ res de esquerda n ão viam sa ída possível nos limites do capitalismo . E atenção: n ão foram os jovens, alguns deles quase meninos , de 1968 que criaram esta visão, mas figu ras tão importantes do pensamento económico brasileiro quanto um Celso Furtado , com a sua “ teoria do estanca ¬ mente ” da economia brasileira . E , finalmente, entre 1964 e 1968 , todas as forças pol íticas brasileiras passam por uma seriíssima crise de credibilidade. Depois de Costa e Silva haver levado ao fracasso as promessas democrá ticas de Castello , quem poderia levar a sério as suas próprias promessas ? Quem poderia confiar nos liberais , que , até ontem , eram entusiastas do golpe de Estado ? Como tomar a sé rio a Igreja Católica , quando todos tinham na memória as “ marchas com Deus ” , através das quais muitos dos seus l íderes haviam dado cobertura ao golpe ? Como confiar no próprio PCB, derrotado em 1964 e em processo de crise interna ? Como tomar a sério a Frente Ampla , se ela contava com Lacerda , protagonista do golpe coadjuvante do fracasso das promessas de Cas tello ? A esquerda de 1968 nasce de todas estas crises. E embora o caminho que escolheu viesse a dar em mais uma ¬

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t ca brasileira e, em particular , com algumas das tra dá “ velha esquerda ” . O caminho das ações armad sultou em fracasso, mas não morreu o motivo que o rava: a busca de perspectivas para a construção d esquerda independente da política dominante. Por doxal que possa parecer , a verdade é que dos esco a que se viu reduzida pela repressão, nasce uma esquerda ” no Brasil . Muitos dos seus sobreviventes ram depois aos partidos que se criam a partir de 1 PMDB , o PDT e, sobretudo, o PT . No PT se encon com um setor de ponta do sindicalismo e da esque origem católica , todos em busca de uma perspectiva d independente para o movimento operá rio e para os

lhadores em geral . N ão tenho elementos de informação para saber importâ ncia que os jovens de 1968 atribuíam à de cia . Eram muitos grupos , mais de dez , cada qual sua proposta e os seus próprios dramas. Sei de algun embora tentando romper com os há bitos stalinista fizeram mais do que levar o stalinismo às últimas qiiências , esgotando assim as suas virtualidades. Em caso , n ão tenho d úvidas de que para a maioria d sobreviveram à derrota , a democracia se inscreve entre os seus primeiros objetivos . Os jovens de 1968 propunham a “ derrubada d ” dura como um meio , um primeiro passo, para o s mo ou para a libertação nacional . Mas o que conse realizar foram ações de resistência . Depois da der ainda a idéia de pôr fim à ditadura que permanece seu objetivo. Uma vez mais na política , temos um c que um meio se torna um fim em si próprio. Um parte deles permanece com este objetivo até hoje demais, se puderam acrescentar à idéia do fim da d a perspectiva de uma sociedade futura , o fizeram â mbito de uma orientação política de contornos crá ticos.

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também procedimentos e métodos de ação. Depois da der ¬ rota das armas , ficou claro para muitos que um dos modos, na verdade o mais efetivo, de se lutar contra uma ditadura estaria em organizar a democracia pela base, na sociedade. Tornou-se , então , possível entender que a democracia é algo mais do que uma formalidade descartável e que as instituições civis e os movimentos sociais devem fazer va ¬ ler a sua autonomia em face do Estado e dos partidos. Há também a questão do tempo, aliás fundamental em uma transição que já se alonga por dez anos e promete continuar alguns anos mais. Em luta tão demorada contra a ditadura n ão haveriam de faltar as oportunidades para o reconhecimento das virtudes da democracia onde quer que ela exista , seja na sociedade , seja no Estado. Para quem se empenha nesse combate, procedimentos ditatoriais ou autoritários tendem a tornar-se , em si mesmos, repug¬ nantes. Nada é t ão desastroso para quem combate, durante anos seguidos , contra uma ditadura , quanto ser acusado de usar procedimentos semelhantes aos do adversá rio. Muitos jovens de 1968 continuam socialistas . E uma boa parte deles está certamente convencida de que o socia lismo não virá sem uma revolução social . Mas é inegá vel que algo mudou , tanto em suas concepções sobre o socia ¬ lismo quanto em suas concepções sobre a revolução. E a diferença essencial passa , me parece , pela idéia de de mocracia . ¬

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O Estado na dianteira... ou como se faz uma transição conservado

A transição vem desde 1974 e promete contin alguns anos mais. Começamos este segundo seme 1984 sob ameaça do Colégio Eleitoral , a institu reprodução do regime. N ão se exclui, porém, a p dade de que , numa situação de emergência , os dominantes concedam afinal em adotar o siste eleições diretas , permitindo assim a participação d na escolha de seu presidente. Ou podem ficar a m minho , instituindo um sistema de governo parla com eleições diretas para presidente. Em qualquer hipó tese , a transição continua alguns anos mais . Eleito o presidente pelo povo, ainda muito a fazer para podermos dizer que en de fato, em um período democr á tico. Nas condições mesmo a conquista de uma Assembléia Nacional tuinte , reivindicação da maioria das oposições, dif te poderia ser considerada um novo começo para stória política . Seria , como as diretas, mas um

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brasileira tome tanto tempo ? Como entender que um pro cesso tão demorado tenha ocorrido, pelo menos até aqui , sem rupturas ? ¬

PERGUNTAS DE UMA HISTÓRIA CONSERVADORA

É evidente que tudo isso est á ligado ao predomí nio, até aqui inconteste , dos conservadores na sociedade e na política brasileiras. Vejamos a coisa pelo lado da política . O controle adquirido, depois de 1974, por Geisel e, depois , por Figueiredo , sobre as For ças Armadas, é a premissa sobre a qual estes presidentes militares se ergueram como comandantes pol íticos da transição . Nesta qualidade, con¬ dicionaram de tal modo o processo que este se tem limita ¬ do , no essencial , às elites políticas e à s classes dominantes. O perfil conservador da transição é imposto, em pri¬ meiro lugar , pelo regime que caberia à transição superar . Tudo isso foi definido já no início da “ distensão ” , que deveria ser “ lenta , gradual e segura ” , isto é, sem rupturas e sem traumatismos . O general Golbery do Couto e Silva , o maior estrategista da distensão e da abertura , falava alguns anos atr á s de uma distinção entre “ liberalização” e “ democratiza çã o ” que conviria recordar aqui . O primeiro termo diz respeito ao aumento da informação, o segundo ao aumento da participa çã o em decisões . A estrat égia dominante na “ distensão” e na “ abertu¬ ” cumpriu à risca a distin ção dos conceitos . Liberou a ra informa ção , ainda assim de forma limitada , permitindo a cria ção de v á lvulas de escape para as pressões da socieda ¬ de e , ao mesmo tempo , de formas adicionais de controle dos governantes sobre os seus subordinados . Mas manteve as decisões sob estrito controle da minoria militar e tecnocr á tica no poder . O Executivo decide , o Congresso, na melhor das hipó teses , esperneia . Trabalhadores combativos

catos , mas registra a informação como quem toma a como termómetro da febre social . Decidirá depois e der á parte das reivindicações , se isso não con demais a pol ítica econ ómica . Informação sim , partic não . Uma transição conservadora é como o célebr das bonequinhas russas . Vem uma dentro da outra , iguais , só diferentes no tamanho . O comando milit presidentes condiciona o perfil conservador da tran E este reforça a hegemonia liberal no â mbito das ções . Abre-se assim a perspectiva de um projeto, t ã dicional quanto elitista , de “ conciliação nacional ” , d o ex-governador de Minas , Tancredo Neves , é o exp m á ximo . Do outro lado , com a mesma pretensão m capaz de realizá-la , est á o deputado Paulo Maluf , he de Mediei , representante da nova direita , agressivo propensões fascistas . É o herdeiro do “ sistema ” . No confronto entre as duas variantes , a terra mas os interesses fundamentais das classes dominan t ão garantidos . Voltemos à s condições definidas po dison . O regime criou condições para a existência d governo com capacidade para governar . O de que se agora é que uma parte da sociedade, precisamente cima , est á na bica de vir a controlar o governo . Pass portanto , da “ liberaliza çã o ” à “ democratização” , à cipa ção nas decisões. Mas os que estão destinados ticipar nas decisões são os de cima . A questão q coloca , portanto , é a seguinte : e o resto da sociedad aliá s , constitui precisamente a maioria ? Como fica trabalhadores nessa histó ria ? Na realidade , era para a í que se dirigiam as inq ções do assessor da embaixada americana naquela conversa . Se a democracia que se v ê no horizonte im é a dos de cima , por que os de baixo falam tanto d mocracia e n ã o de revolução ? Os conservadores , estes

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de esquerda dos quais falei antes , fazendo como o cachorro que d á voltas sobre o seu próprio rabo? DECEPÇOES COM O ESTADO

Todas estas perguntas estão colocadas no cen á rio po lítico brasileiro. E , segundo me parece , voltarão no futuro próximo como muito mais força do que agora . Mas quem quiser as respostas terá de reexaminar as relações entre o Estado e a sociedade , nestes últimos dez anos, de uma perspectiva mais ampla do que aquela sugerida pelo libe¬ ralismo de Madison . Que o Estado tomou a dianteira já sabemos. Mas sa¬ bemos também que a novidade histórica deste momento da política brasileira n ão est á nisso. Está na descoberta , ou redescoberta , da sociedade como espaço da política , tanto a sociedade dos de cima quanto a dos de baixo . Temos de entender que esta descoberta da sociedade, em¬ bora ainda incapaz de mudar os rumos do jogo, caminhou muito , obrigando a uma revisão geral das nossas idéias tradicionais sobre o Estado e a pol ítica. limitado, Tanto quanto o “ milagre económico” como se sabe , ao período Mediei a experiência que os brasileiros temos tido , de 1964 para cá , com o regime mi¬ litar , produziu o “ milagre político ” de uma completa sub ¬ versão das nossas idéias tradicionais sobre o Estado. Afi¬ nal , não é impunemente que um Estado trate um país como se fosse um exército de ocupação mantendo sob controle um povo derrotado. O crédito de confiança que a tradição política conferia ao Estado desgastou-se irremediavelmente. Nos anos de terror de Estado, muita gente entrou em profunda perplexidade sobre o que tinha diante dos olhos . Os que haviam apoiado o golpe de 1964 eram herdeiros da clássica ojeriza liberal em face da intervenção do Es¬ ¬





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tilo liberal cl á ssico , o melhor governo é o que gar ordem pú blica e deixa o barco da economia ao sab ventos do mercado . Goulart , segundo o viam , não cumpria nenhum tas condições , herdeiro que era das tradições getuli intervencionismo estatal e de uma política de alicia de massas que nem sempre era capaz de controlar. V corrupção galopando e o comunismo na virada d esquina . E queriam voltar o Estado aos trilhos do f clássico. Quanta decepção! Depois de 1964 e, em par depois de 1968 , marginalizados muitos deles em ao poder que ajudaram a criar , muitos liberais come a dar-se conta de como eram monstruosos os frutos própria semeadura . A pouco e pouco, tomaram co cia de que tinham diante de si , não a democracia comportada com que haviam sonhado, mas uma di muito mais violenta e corrupta do que a de 1937 que sempre abominaram . Ê verdade que muitos d haviam pregado o golpe em nome do liberalismo neceram à sombra do novo poder. Mas tiveram , pa de sacrificar as suas próprias convicções. Por que der á-los liberais enquanto amoleciam nos desvãos d ritarismo ? Em todo caso , é certo que mesmo para e velhas idéias não funcionavam mais . Na primeira metade do século XIX , quando e sões francesas eram habituais na pol ítica brasileir liberal cunhou a frase clássica das decepções liber face de lutas que carreiam mais água para o moin conservadores e dos autorit á rios . Eram as journé dupes , as jornadas de ot á rios. Na virada de 1964 e , tudo , na de 1968 , o movimento que fizeram em fa golpe tomou , para muitos deles , o sentido de uma journé e des dupes . São in ú meros os que, em diferent mentos do regime militar , abandonam as suas fileira sando para o campo das oposi ções. E hoje, último a

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1964 n ão foi menor naquela parte do espectro político que tentou sustentar João Goulart no governo. Havia aí de tudo , desde liberais e conservadores até socialistas e co¬ munistas . Eram parte de uma tradição que se achava con¬ vencida da utilidade do Estado como instrumento de de¬ mocratização da economia e da sociedade . Esta cren ça vem , pelo menos , desde a Revolução de 1930 , quando a concentra ção do poder do Estado cami¬ nhou contra o privatismo das velhas oligarquias agrá rias. O crescimento das funções do Estado passou pela ditadura de 1937 e pela democracia de 1946, dando, por vezes, origem a pol í ticas que buscavam o crescimento económico com base no investimento pú blico. Um desdobramento desta concepção é o da idéia do Estado como fator de maior igualdade social que d á suporte tanto a certos avan¬ ços no campo dos direitos sociais quanto à sustentação do corporativismo sindical . Está aí um dos aspectos daquilo que Touraine chamou de “ democratização por via autori¬ tá ria ” . A realidade traumá tica do regime de após 1964, em particular desde o período Mediei , mostrou , porém , que o sonho de um Estado intervencionista e igualitá rio se havia tornado um pesadelo. O desenvolvimento intenso do pe¬ r íodo do “ milagre ” complicou mais a coisa . Em vez do Estado democr á tico e igualit á rio que almejavam , tinham diante de si uma ditadura que promovia , ao mesmo tem¬ po , o crescimento da economia e a miséria das massas. O próprio Mediei , num dos raros momentos em que se dignou sair do seu mutismo ensurdecedor, definiu os re¬ sultados do seu desgoverno : “ a economia vai bem mas o

povo vai mal ” .

UM ESTADO “ ORIENTAL”

POR QUE DEMOCRACIA ?

1964 , tivemos criminosos e v í timas , ninguém pod face da quest ão do Estado , se considerar inteiramen senã cente . Todos tinham uma meia consciência s , algum de que em mo consciê ncia inteira haviam ajudado a pavimentar o caminho por onde riam de passar as For ças Armadas na sua chega poder . Uns mais , outros menos , todos haviam prepa caminho para a violência . É que , crendo ou descrendo das virtudes da in ção do Estado na economia , todos , sem exceção , e gorosamente estatistas quanto ao aspecto político da ções entre Estado e sociedade . Se se pode falar d “ ideologia brasileira ” para a é poca que se abre com volu ção de 30 , ela seria uma “ ideologia de Estad sentido que Bolivar Lamounier atribui à expressão bém para o Brasil , de 1930 a 1964 , se aplica o q Dahrendorf para a Alemanha de Weimar : “ tudo s para o lado estatal da vida ” . Junto com a concepção instrumental da demo o pressuposto maior da atividade política no Brasil la época poderia ser resumido na célebre met áf Gramsci sobre os pa íses orientais. O Estado era tu sociedade , inarticulada e gelatinosa , era nada . Nenhum intelectual brasileiro traduziu melhor o conservador e pró-fascista Oliveira Vianna esta c ção “ oriental ” , rigidamente autoritá ria . É a idéia tado demiurgo , da qual não se salva nenhum dos p pol í ticos brasileiros da época . Todos concebiam a p e o pró prio Estado com a mesma estreiteza palaci horizontes . A sociedade era lembrada , n ão como para a política , mas pelo seu suposto amorfismo sua suposta incapacidade de organização e de re tação . O golpismo e o cinismo em relação à demo mantêm uma estreita afinidade com esta concepção tal ” das relações entre Estado e sociedade . Seria p





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democrá tico . É o de Otávio Mangabeira , célebre liberal que tornou também célebre a idéia de que , no Brasil da quele momento , a democracia era “ uma plantinha tenra ” , merecedora , portanto , de todo desvelo . Em junho de 1945 , se opôs , como bom liberal antiin¬ tervencionista , à chamada “ lei malaia ” , um projeto de Agamenón Magalhães , ministro de Getú lio Vargas , visando controlar as remessas de lucros para o exterior . ( Agame nón tinha alguma ascendência indígena e , portanto , os olhos puxados de um asiático . Seus adversários o chama vam , por isso, de “ malaio” . ) O interessante do caso , porém , é que quase ao mesmo tempo , o liberal Mangabeira fez um notável apelo à inter venção das Forças Armadas , do qual deveria resultar o golpe de Estado de 29 de outubro de 1945 . E, embora liberal , argumentou exatamente como o faria Oliveira Vianna , dizendo da debilidade de nossa “ organização ci ¬ vil ” (hoje se diria sociedade civil ) e reconhecendo nas Forças Armadas a única real organização do país . Muitos outros exemplos poderiam ser aqui apresen¬ tados . Ninguém , absolutamente ninguém , que tenha feito pol í tica depois de 1930 , está isento do pecado comum da exaltação pol í tica do Estado . Ninguém deixou de bater às portas dos quartéis . Uns mais , outros menos , todos tinham os seus generais e os seus brigadeiros preferidos . O próprio Partido Comunista guarda a esse respeito um traço que o diferencia da grande maioria dos partidos comunistas da América Latina e , talvez , de todo o mundo ocidental . Nascido de um pequeno grupo de anarquistas , ele se submete nos anos 30 à liderança do então capitão Lu í s Carlos Prestes , o maior nome do “ tenentismo” . Com Prestes , aderem vários de seus companheiros , preservando o PC , até 1964 , uma razoá vel influência nos meios mili ¬

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pol í tica civil . Havia generais , almirantes e brigadei centro , de esquerda e de direita , estes últimos na m evidentemente . Se o Estado é tudo , se a democraci um instrumento , não seria inevitá vel o recurso ao duro do Estado que sã o os militares? DESCOBERTA DA SOCIEDADE CIVIL

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tares

brasileiros .

Qualquer que tenha sido a importância dos comunis¬ tas naquela época , vale o exemplo para afirmar que nas

A decepção , mais ou menos generalizada , com tado abre caminho , depois de 1964 e , sobretudo , de 1968 , à descoberta da sociedade civil . Mas ne isso terá sido , em primeiro lugar , uma descoberta lectual . Na verdade , a descoberta de que havia algo ma a pol í tica além do Estado começa com os fatos ma ples da vida dos perseguidos . Nos momentos mais d estes tinham de se valer dos que se encontravam volta . Não havia partidos aos quais se pudesse re nem tribunais nos quais se pudesse confiar . Na hor cil , o primeiro recurso era à famí lia , depois aos a em alguns casos também aos companheiros de tra Se havia alguma chance de defesa havia que procur advogado corajoso , em geral um jovem recém-forma havia feito pol í tica na Faculdade . De que estamos f aqui senão da sociedade civil , embora ainda no estad lecular das relações interpessoais? A única institui ç restava com força bastante para acolher os perse era a Igreja Católica . Quando se quer entender por que o Estado to dianteira na transição , não se pode esquecer que , de 1968 , a sociedade civil brasileira fora reduzida potência , fragmentada no extremo limite . Foi este mento da verdade das teorias que afirmavam o amo e a incapacidade de organização e de representaç

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velava plenamente diante do “ terror de Estado” . Além disso , a perplexidade que tomava conta de todos , se bem tenha frutificado em atitudes de resistência e de valo¬ rização da sociedade , tinha de imediato um efeito para ¬

usante.

O “ terror de Estado” reduzira todos os seus oponen em geral de esquerda, mas também muitos liberais ao seu m í nimo denominador comum de seres humanos desprotegidos e amedrontados. Tanto quanto as decepções ideológicas dos políticos em face do Estado, a descoberta da sociedade civil nasce também da necessidade , sentida por muitos , mesmo entre quem não fazia política , de exer cer controle sobre o medo. Para o meu argumento, é desnecessá rio registrar quan tos foram os presos , os torturados e os mortos. Foram , por certo , em n ú mero muito menor que na Espanha ou na Argentina . Em todo caso , foram em n ú mero suficiente para que o “ terror de Estado ” cumprisse o seu desígnio. Foram em n ú mero suficiente para que todos pudessem perceber que os perseguidos não eram exceções à regra . Antes pelo contr á rio , eram a regra . Quando mais não fosse porque n ão havia , em muitos casos , nenhuma diferença essencial , do ponto de vista político , entre os livres e os presos. Como disse certa vez Raymundo Faoro , a ú nica diferença entre um homem livre e um homem preso estava em que o pri meiro era tolerado e o outro não . Esta fase terrível da vida brasileira não pode ser es quecida . Manter a memória dos tempos escuros em que nasceu uma luta pela liberdade eis o sentido que tem , para mim , a frase do poeta da resistência francesa , René Char , citado por Hannah Arendt em um dos seus estudos . Quaisquer que sejam nossas opiniões sobre o velho MDB , n ão se pode esquecer , por exemplo , os discursos de Oscar Pedroso d’Horta no Congresso , em protesto contra a mor te , sob tortura , de um militante trotskista de São Paulo. Quem vê hoje uma figura como o Lula andando desen tes



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que seu irmão estava preso e submetido a torturas. assiste hoje , com inteira naturalidade , a Ordem dos gados do Brasil citada como poderosa instituição da dade civil , terá de lembrar que a conquista desta po exigiu muita habilidade e coragem de homens como mundo Faoro e alguns outros. Quem expande suas niões hoje com razoá vel segurança nos jornais, nas sões e nas rádios, não poderia jamais esquecer qu tempos dos seman á rios Opinião e Movimento não assim. Quem se habituou a ver amplos setores da ou melhor, das Igrejas numa atitude serena d sistência , terá de saber que muita gente teve medo qu foi à catedral de São Paulo, em 1975, para assistir ao ecuménico ministrado por sacerdotes católicos, jud protestantes em memó ria de Wladimir Herzog. Que hoje o PMDB se deslocando para a direita , nem po deveria se esquecer que o lançamento de Ulysses G rães e Barbosa Lima como anticandidatos significava 1973, uma atitude de independência e de muita cora Haveria muitos exemplos a apresentar. Ressurge nestas considerações sobre a sociedade isso que chamei de inveross ímil na transição política sileira . N ós queríamos ter uma sociedade civil, preci mos dela para nos defender do Estado monstruoso à frente. Isso significa que se n ão existisse , precisarí invent á-la. Se fosse pequena , precisaríamos engrande Não havia lugar para excessos de ceticismo nesta que pois só serviriam para tornar os fracos ainda mais fr É evidente que quando falo aqui de “ invenção” o “ engrandecimento ” , n ão tomo estas palavras no sentid propaganda artificiosa . Tomo-as como sinais de va presentes na ação pol ítica , e que lhe conferiam se exatamente porque a ação pretendia torná-los uma dade. Numa palavra , nós precisá vamos construir a s dade civil porque quer íamos a liberdade .





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SOCIEDADE CIVIL

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SOCIEDADE DE CLASSE

N ão se poderá jamais diminuir o significado das lutas da época da resistência . Mas não se pode tam bém negar que em torno da redescoberta da sociedade civil como espaço para a pol ítica germinaram certos equ ívocos. Durante muito tempo , haveria pouca gente disposta a reconhecer , por exemplo, que a resistência aos desman dos de Mediei e , depois , às violências que continuaram , por muito tempo , no governo Geisel , se alimentou também dos resultados do “ milagre económico ” . Dando prossegui¬ mento a um processo de mudan ças estruturais do capita lismo industrial que vem de meados dos anos 50, os anos 70 assistiram a um processo de moderniza ção industrial que importa em uma mudança do perfil do capitalismo no pa ís . A população empregada no setor secundá rio da eco¬ nomia dobrou de tamanho entre 1970 e 1980 , repetindo o que já ocorrera entre I 960 e 1970. Apoiado na observação de fen ômenos como este , Fernando Henrique Cardoso fa lou , certa vez, de uma revolução económica em curso no país , exagerando de propósito para chamar a atenção para aspectos quase sempre esquecidos nas análises pol íticas. A sociedade civil da é poca da resistência é também fruto destas mudan ças . N ão por acaso é em estados como São Paulo , Rio e Minas mas sobretudo em São Paulo que a resistência ao regime foi , desde o in ício, mais ¬

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forte. A í está o centro dos movimentos dos estudantes e da intelectualidade de antes de 1968 , como também os principais focos de resistência armada da virada de 1968 , e não nos estados perif é ricos , como faria supor certo ro mantismo revolucion á rio daqueles anos . N ã o por acaso as ¬

um setor de vanguarda para o conjunto do movimen dical . Quem examinar o mapa eleitoral do país de para cá terá outro exemplo da correlação existente a resistência ao regime militar e o crescimento econ O jogo das bonequinhas russas da transição c vadora não é, portanto, apenas resultado do êxito tratégias políticas apoiadas na força . Pressupõe con sociais determinadas que se juntam e reforçam as ções políticas. O fato de que os setores empresaria primeiro levantam voz no país pela democracia e no Centro-Sul não poderia ser considerado como co favorá vel à consolidação da hegemonia liberal nos de oposição ? De que parcelas dos grupos dominan fala quando se diz que estão na bica do poder p senão daqueles que não tinham senão que se ben com o intenso crescimento havido no período do gre ” ? Como entender a hegemonia dos liberais nas ções sem fazer referência aos banqueiros, ou sej maiores beneficiá rios das mudanças económicas h no país nos últimos quinze anos? Uma transição sob monia dos grupos dominantes na economia por que d ser uma transição com ruptura ? Nós descobrimos a sociedade civil através da p para nela encontrar, como não poderia deixar de se sociedade de classes. Expressando as desigualdades nais do desenvolvimento do capitalismo no país, a dade civil também expressa as desigualdades entre a ses sociais. O grande movimento pela democracia qu liberais, socialistas e comunistas, bem como sindic e empresá rios, contra o arbítrio do regime autoritár meça a dar sinais de uma diferenciação social nece Quanto mais se caminha no sentido da democracia mais se definem as identidades políticas e sociais d dela participam . Um processo ainda tímido na etap da transição conservadora , mas que só tende a aprof se nas etapas seguintes.

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POR

E OS DE BAIXO?

Os comandantes militares do regime tomaram a dian¬ teira da transição e condicionaram a entrada dos liberais. Os liberais tomaram a dianteira nas oposições e condicio¬ naram a entrada dos setores populares, em particular do movimento oper á rio. Que papel cabe ao movimento ope rá rio neste drama ? Que papel cabe ao movimento operá rio na conquista da democracia? Sempre chamou a atenção dos estudiosos de outros países latino-americanos o fato de que, no Brasil de Mediei a Geisel , houvesse mais estudos sobre a classe operária do que esta mereceria no seu longo silêncio desde 1964, que¬ brado apenas por duas greves em 1968. É que tais estudos, mesmo tratando do passado , sugeriam a possibilidade de uma retomada do movimento operá rio no presente. E tal retomada , de fato, aconteceu. Ainda está para ser feito um estudo comparativo da capacidade de organização do movimento operário de an¬ tes de 1964 e o de após 1978. Arrisco, porém, a hipótese de que o crescimento foi muito maior do que alguns sau ¬ dosistas gostariam de admitir. O movimento operá rio de após 1978 cresceu em condições muito mais dif íceis do que as que prevaleciam antes. O que significa que ganhou , sobretudo, em capacidade de ação autónoma tanto em re¬ lação ao Estado quanto em relação aos partidos. O mesmo ocorre com os movimentos sindicais em geral, os quais ganharam , em particular nos setores ligados aos serviços, uma capacidade de organização que ninguém antes teria admitido como possível. Idem com os movi¬ mentos populares de qualquer tipo. Tomo como exemplos, no campo operá rio, a formação da CUT , da CONCLAT e o expressivo crescimento da CONTAG . Nas atividades ligadas aos serviços estão in ú meras associações profissio nais, entre as quais as associações de docentes e as de ¬

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QUE

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proliferação das sociedades de bairro. Quem conh ponto de partida disso tudo pode avaliar o quanto minhou . Como os movimentos sociais cresceram, em estes anos , na busca de caminhos autónomos, pode-se mar que continuarão crescendo quaisquer que venh ser os próximos passos da transição . São evidentes, agora , tentativas de cooptação de parcelas das lider dos movimentos por grupos e partidos de orientação ral e conservadora . A formação da Aliança Democr de que participam o PMDB e a Frente Liberal do oferece alguns exemplos disso. Creio, porém , que o cessos de cooptação n ão são o bastante para conter dência geral. Embora sem força suficiente para se c rem no centro dos acontecimentos políticos, os setores combativos dos movimentos populares especialmen movimento operá rio constituem a garantia de um vindicação de identidade social e de reconheciment l ítico que já n ão pode ser ignorada . O Brasil de ant 1964 e o de hoje são tão diferentes que se torna dif ícil voltar atrás. Hoje, o impulso maior da democratização da dade e do Estado no Brasil vem de baixo. Isso é mais verdade quando se sabe que os de cima volt alojar-se no Estado, com perspectivas de tímidas refo que apenas servem para amenizar o peso das suas turas autoritá rias. Enquadradas em uma perspectiva servadora , as bandeiras da democracia passam às das classes populares, em particular da classe operá dos setores de classe média que a acompanhem na Qualquer que seja o governo que venha a result confuso processo de sucessão em que nos encontra não poderá resolver a questão da democracia até po para tal , precisaria cortar o galho autoritá rio ond apoiar á . A transição para a democracia continuará. se até aqui tem caminhado sob a iniciativa do regi





TERCEIRA PARTE

Democracia e revolução

“ O único caminho para o renasc

passa pela escola da pró pria vida ca, pela democracia e opinião p mais ilimitadas e amplas. Ê o te que desmoraliza.” ( Rosa Luxem

O assessor americano perguntava: “ por que dem cracia, por que não revolução?” Teria sido f ácil resp der-lhe que a pergunta, como formulada, importava um equí voco. Democracia e revolução não são conce que se excluam reciprocamente. E com isso teríamos p pado a mim e ao eventual leitor este longo percu sobre as vicissitudes da transição polí tica brasileira. O problema, porém, não é só de conceitos, mas bretudo de hist ória. Quero dizer: o problema é da histó real . Ninguém faz democracia ( ou revolução ) no plano conceitos. E a história real é a história do presente , aqui e do agora. Mas a nossa longa volta sobre a história brasile era necessária também por uma outra razão. Os equí vo sobre democracia e revolução não são apenas do no interlocutor americano. São também , como vimos, da dição brasileira, da qual a esquerda faz parte. Ê na bu de uma perspectiva nova que devemos trabalhar ago





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a tirania . Todas as revoluções, diz Hannah Arend como motivo essencial a conquista da liberdade . A afirmação é inquestion ável , mas ainda assim soar surpreendente. Um revolucionário notável diz exemplo, que “ nada é mais autorit á rio do que um lução” . E muitos de nós estamos tão habituados a que as revoluções se fazem apenas contra a misér nos esquecemos que a maior parte dos países do m

dominada por oligarquias privilegiadas que reinam massas miserá veis para as quais o maior sonho po o pão do dia seguinte e apenas isso. Quem só consegue pensar uma revolução na da misé ria e caindo em uma ditadura , esquece-se é óbvio: nada mais autoritário do que as tiranias as quais as revoluções são feitas . Revoluções reivi também o pão, mas jamais ocorreriam se n ão quise liberdade .

Revoluções da liberdade O nosso interlocutor americano separa a revolução da democracia como o diabo da cruz. Haveria que lembrarano I da revolução cubana que o go lhe que em 1959 verno dos Estados Unidos haveria de reprimir, como já o momento de auge da fizera com as demais , antes dela guerra fria , na qual os Estados Unidos se dedicavam a re¬ Hannah Arendt escre primir as revoluções no mundo aos americanos que a recordar veu um livro inteiro para sua democracia nasceu de uma revolução. A lembrança deveria valer também para os revolucionários. É que Hannah Arendt vai mais longe. Ela busca também as per ¬ didas origens revolucioná rias das democracias inglesa e francesa , bem como as origens democrá ticas da revolução russa. As interpretações que apresenta são tão discutíveis quanto quaisquer outras. Mas apóia-se em fatos irrecusá ¬ veis quando afirma o cará ter radicalmente democrático quaisquer que pos¬ das revoluções. Todas as revoluções



UBERDADE VERSUS IGUALDADE?

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A liberdade , que é o motivo essencial das revo é também o princí pio que leva muitos ao desencant se trata de um paradoxo, mas de problemas reais q de ser enfrentados. E enfrentados tanto no plano d no pl mais importante ainda ceitos quanto história real . É muito comum que se coloque a questão da ções entre democracia e revolução como algo que se na questão das relações entre democracia e soci N ão é bem assim que eu vejo o assunto. Há revo no mundo moderno que não são socialistas e há r socialistas que n ão têm origem revolucioná ria . Mas a “ tradu ção ” como um ponto de partida pela razão direta de que é assim que as coisas aparecem no





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do que recorrer a algumas anotações de Norberto Bobbio sobre o tema das relações entre socialismo e democracia . Diz o filósofo italiano que , sobre esta questão , nós nos encontramos “ com uma situação que poderia ser resumida um pouco drasticamente nestes termos: ou capitalismo com democracia ou socialismo sem democracia ” .8 Advirto, desde logo , que seria um equ ívoco retirar de uma ú nica frase conclusões sobre o pensamento de um autor . Bobbio é t ã o l ú cido na an álise das dificuldades da democracia e do socialismo quanto entusiasta na disposição de enfrent á-las . “ Se o socialismo é dif ícil ” , diz ele, “ a de mocracia é ainda mais dif ícil ” . Mas a sua visão das difi culdades vai muito além da constatação de uma situação na qual alguns poderiam ler , interessadamente, uma con¬ denação do socialismo e uma apologia do capitalismo. A sua sentença “ drástica ” estabelecendo “ ou capita¬ lismo com democracia ou socialismo sem democracia ” tem a intenção de apresentar um desafio proposto aos socialis¬ tas que crêm na democracia . É uma provocação no melhor sentido da palavra . N ão aos social-democratas , pois estes já resolveram , há muito tempo , o seu problema optando pelo capitalismo , apenas atenuado pelo Welfare State ( Es¬ tado do Bem-Estar) . Mas um desafio para os socialistas que sabem que as revolu ções nascem para a liberdade e mantêm a crença no sentido original do socialismo . Mas a verdade é que , retirada do seu contexto, a frase soa “ drasticamente ” com a constatação de uma realidade imutá vel de nossa é poca . Tanto mais porque o próprio autor anota em seguida que a experiência histó rica estaria mostrando que os sistemas socialistas n ão chegaram a trans¬ formar-se em sistemas políticos democrá ticos nem se co¬ nhecem casos de sistemas capitalistas que se tenham trans¬ formado em sistemas socialistas por métodos democráticos . Tomando-se nestes termos , a proposição poderá ser aceita tanto pelos adeptos do capitalismo (ou pelos social-demo¬ ¬ ¬

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Bobbio ,

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cratas) quanto por socialistas que só conseguem imag o socialismo com ditadura . Um socialista autorit á rio poderia responder facilm te . Muito bem , se n ão há caminho para o socialismo a vés da democracia , por que deveríamos nos apegar a Se a democracia não leva à transformação da socied posso concluir que contribui para manter a desiguald e a exploração. Neste caso , seria um instrumento de se valem os que se beneficiam com o statu quo do cap lismo , n ão um valor geral . Se o sentido da liberdade realização da dignidade humana , qual o valor de uma mocracia que ajuda a manter a maioria dos homens uma condi ção indigna ? O adepto do capitalismo (e o social-democrata) maria a quest ão pela outra ponta . Se não há caminho socialismo para a democracia , por que dever íamos nos gar a ele ? Se o socialismo é indissociá vel do autoritaris posso concluir que contribui para manter a dominaçã a opressão. Neste caso, seria um instrumento de qu valem os burocratas da “ nova classe ” , não um valor g de todos os trabalhadores. Se o sentido da liberdade realização da dignidade humana , qual o valor de um cialismo que ajuda a manter a maioria dos homens uma condição de submissão e , portanto, de indignida Peço ao leitor que compreenda que não se trata apenas de especulações em torno de uma frase retirad seu contexto. Sem temor ao exagero, eu diria que pro mas como estes aparecem no dia-a-dia da atividade p tica , sempre que se tem de tomar decisões relevantes formos mais fundo na discussão chegaremos ao tema sico das relações entre a liberdade e a igualdade. A que das rela ções entre democracia e socialismo é de como c binar estes dois valores b ásicos do mundo moderno. problema que Bobbio apresenta é , a meu ver , o de c os socialistas podem continuar sendo democratas e rev cion á rios .

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REVOLUÇÕES E REGIMES PÓS-REVOLUCION ÁRIOS

Na sua aparente clareza , o problema , tal como habi ¬ tualmente se coloca , envolve alguns equívocos que conviria desfazer . Há quem se desencante com o autoritarismo tão freqüente nos regimes de origem revolucionária e termine perdendo clareza quanto à natureza do próprio fenômeno revolucionário . Se muitos regimes pós-revolucionários são autoritários , pretende-se que as revoluções que lhes deram origem também o tenham sido . O desencanto com os regi mes está , nestes casos , a um passo de um desencanto com a própria revolução . E , deste modo , caminha-se rapida ¬ mente para uma separação estrita entre democracia e re ¬ volução , com perda para ambas . Um primeiro ponto a assinalar é que o autoritarismo dos regimes sa ídos de revoluções não é , de modo algum , coisa exclusiva dos regimes socialistas . Com a possí vel ex ceção da revolução da independência dos Estados Unidos , nenhum país que tenha feito a sua revolução deixou de pagar a sua quota de autoritarismo . Quem tiver dúvidas relembre , para ficarmos apenas no exemplos clássicos , que o regime pós-revolucionário , na França , envolveu dois Bonapartes e uma guerra de alcance continental , submergindo o país numa fase de instabilida de e de autoritarismo que haveria de durar até 1871 . Cerca de oitenta anos , portanto . Na Inglaterra , a revolução de 1642 envolveria episódios como o próprio Cromwell en¬ trando a cavalo no Parlamento , decapitando um rei e abrindo um período em que teríamos uma ditadura mili¬ tar e , depois , uma situação de instabilidade que só se re¬ solveria mais de 40 anos depois , na segunda revolução, a de 1688 . Apesar disso tudo , poderíamos pensar a democra¬ cia francesa sem a Revolução Francesa ? Ou a democracia inglesa sem as revoluções inglesas? Não é minha função aqui apaziguar consciências so . Menos ainda , buscar racionaliza -

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ções que amenizem o injustificável autoritarismo que s em muitos paí ses socialistas . Pretendo apenas que se conheça o óbvio: uma coisa é , por exemplo , a revolu russa , outra o regime que veio a seguir . O sistema do tido único , para continuarmos neste exemplo , não é in ção da revolução , que foi pluripartidária , mas do reg Tanto assim que nem mesmo Stalin , que , apesar de tu foi um homem da revolução , pretendeu instituir o par único em princ í pio constitucional . Isso coube a um hom t í pico do regime , Brezhnev . E quanto aos sovietes da volução , eram instituições livres , inspiradas em princí da democracia direta , não o simulacro de parlamento presentativo que deles fez o regime . As revoluções são fenômenos democráticos , e con didas com o autoritarismo dos regimes pós-revolucioná pouco tem a ver com a história . O autoritarismo pós-r lucionário se vincula a dois problemas que toda revolu acaba enfrentando . O primeiro é o de construir um n Estado . O segundo é o de , construindo um novo Est abrir caminho para uma nova democracia . São prec mente as duas condições de que falava Madison . São pontos sobre os quais a teoria pol ítica socialista tem ai muito a desenvolver , preparada que está — como ace damente Norberto Bobbio afirma em seus ensaios sob socialismo — muito mais para pensar sobre os proc mentos para a tomada do poder do que sobre o seu e cicio . Mas voltemos ao desafio proposto por Bobbio , e r nheçamos que ele tem toda a legitimidade de um estím à reflexão . Visa estimular progressos no pensamento cialista , não a consagração de uma esclerose da nossa ca . Por isso mesmo pode ser superado . O México pa por uma revolução, aliás a primeira deste século , e é hoje dirigido por um partido — o Partido Revolucion Institucional ( PRI ) — que se coloca em linha de des dência direta do Partido da Revolução Mexicana ( PR Haveria por isso alguém disposto a estabelecer que o ol s

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n ão cumprirão jamais a regra democrá tica da alternâ ncia no poder ? São maioria no mundo contemporâ neo os paí¬ ses capitalistas governados por regimes autoritá rios. E nem por isso aparece muita gente disposta a sustentar que tal ocorre em fun ção de característica intrínsecas ao capita

REVOLUCIONARIOS E REFORMISTAS

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lismo. O que há a reconhecer , de novo com Bobbio, é que “ se o socialismo é dif ícil , a democracia é mais dif ícil ain da ” . No Brasil , tivemos , em 1964, um golpe de Estado , n ão uma revoluçã o , e estamos ainda hoje, cumpridos já 20 anos , buscando caminhos para definir um novo Estado e uma nova democracia . E aqui mesmo, neste Brasil desde sempre capitalista e quase sempre autoritá rio, não faltam , evidentemente , os que pretendam ver no socialismo carac¬ ter ísticas que o obrigariam a viver sob regimes autorit á rios para toda a eternidade . Se queremos realmente a democra ¬ cia , já seria tempo de deixarmos de lado certos precon¬ ceitos. Sabemos todos da existência de processos de demo¬ cratização em curso nos países socialistas. Podem tomar muito tempo até que se chegue à democracia . Mas nem por isso devem ser esquecidos. Afinal , a história não ter¬ minou ainda . Assim como o capitalismo não tem de ser , necessariamente, democrá tico, também o socialismo não tem de ser , necessariamente , autoritá rio. O desafio que retiramos das páginas de Bobbiç vale para os dois lados . É ele próprio quem diz: “ N ão devemos nos iludir : os perigos que ameaçam a democracia em uma sociedade capitalista são os mesmos que ameaçam ou amea¬ çaram o processo de democratização em uma sociedade socialista ” .4 Em outras palavras, a questão da democracia no mundo contemporâ neo é uma questão geral. O que há a fazer é aprimorar a teoria da democracia e continuar a luta . ¬

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Bobbio, op. cit., p. 20.

O que mais importa discutir , porém , é a afirma de que nenhuma democracia passou jamais ao socialism É uma verdade que a histó ria comprova . Valerá , por is como uma lei de ferro , destinada a durar para todo sempre ? A associação que se pretende estabelecer en capitalismo e democracia não significaria atribuir a e um cará ter necessariamente conservador ? O problema é muito próximo à divisa célebre Bernstein , o pai fundador do reformismo social-democra “ O movimento é tudo, o fim é nada ” . Em outras palav nos países democrá ticos a política dos trabalhadores resumiria a introduzir reformas no capitalismo. A tra formação do capitalismo em socialismo seria uma ilu que conviria deixar definitivamente de lado . Um certo revolucionarismo, voluntarista e ingén diria o contrá rio: o movimento é nada , o fim é tudo. N há reformas a fazer , a ú nica coisa que importa é prepa ou alguém por e mos o dia em que os trabalhadores poder . chegar o ao ã o que é mais prov ável A idéia de que só existem reformas a fazer é t ão sória quanto a outra de que só h á que preparar-se p tomar o poder . Na serena realidade dos fatos , nenhum formista faz apenas reformas. Ele tem também respons lidades com o andamento geral das coisas na sociedad na economia . Para tomarmos o exemplo cl á ssico, o dos parti social-democratas , n ão é verdade que estes se dediqu apenas a realizar reformas , em benef ício da classe oper ou de quem seja . Eles se dedicam , a maior parte do tem à gestão do conjunto da sociedade e da economia cap lista . N ão é verdade , portanto, que “ o movimento é t e o fim não é nada ” . É que o fim, que antes era o so , na modernização do capitalismo, e





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isso o movimento mudou de natureza . A grande diferença entre reformistas e revolucioná rios não est á apenas na ques¬ tão de como articular os meios e os fins, mas em saber quais são os meios e quais são os fins. A ojeriza de certos revolucioná rios por reformas é também uma ilusão que a história desmente. Certos direi¬ tos dos trabalhadores, hoje praticamente universais, como o dia de trabalho de oito horas ou o sufr ágio universal , teriam sido impossíveis sem participação revolucioná ria. A reforma agr á ria que consta de qualquer programa revolucion á rio que se preze, pelo menos na América La ¬ que é senão uma reforma ? O que distingue um tina revolucioná rio de um reformista em face de reformas ne cessá rias é que aquele luta para que as conquistas parciais sirvam à organização dos trabalhadores em busca de uma mudança de alcance geral da sociedade. O que o preocupa essencialmente não é a gestão da sociedade tal como ela está , mas encontrar caminhos para transformá-la . Um certo revolucionarismo ingénuo sonha com a re¬ volução como um momento depois do qual nada será como antes. Seria uma espécie de grande catarse coletiva . Seria um novo começo para a história que aboliria todo o pas¬ sado, permitindo aos revolucionários organizar uma nova sociedade como se escrevessem sobre um caderno em bran co. Quem se dedique a estudar as revoluções sabe que neste sonho há , talvez , um grão de realidade mas, com toda segurança , muito de ilusão. N ão se conhece nenhuma revolução que tenha mu¬ dado a sociedade da noite para o dia . O que acontece é que as revoluções criam as condições políticas para que as sociedades mudem . Na França revolucion á ria , os cam poneses adquiriram o direito à propriedade da terra , mas a nobreza proprietária continuou lá , e por muito tempo. Depois de uma revolução, as condições de vida do povo mudam , inas isso ocorre com muito mais vagar do que se pensa . A diferença é que o povo sabe que as coisas estão mudando, até porque participa das mudanças. Mas assim





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noite , também nenhuma sociedade se transforma glo mente, de uma só vez , em todas as suas partes. Ora , é disso , precisamente de mudanças parciais e graduais, se trata quando se fala de reformas? A diferença , quando se fala de reformas no â m de uma revolução , é a participação do povo na direçã processo. Ou seja , a diferença é a democracia . Se é que se trata quando se menciona as reformas no â m da revolução, com mais raz ão ainda quando se fal possibilidade da transformação da sociedade atravé democracia. A diferença é a participação popular nas muda Significa lutar para criar no âmbito da democracia , mo que em cará ter parcial , os processos de particip que são t ípicos de uma revolução . Ou seja , para q quer realmente mudar a sociedade , o caminho é mais ticipa ção , ou seja , mais democracia , e n ão menos. Não deveria haver , afinal , tanto motivo para sur quando revolucioná rios tomam o caminho da democ Revoluções e democracias são modos pelos quais o procura tomar o seu destino em suas próprias m ãos. “ o poder emana do povo e em seu nome ser á exercido princí pio que serve de fundamento a todas as constitu democr á ticas é o mesmo que inspira os processos re cioná rios. Em ambos os casos , o que est á em caus os fundamentos do poder , isto é, da organização po da sociedade . Por que deveríamos nos surpreende quando tocamos nos fundamentos pol í ticos da socie atingimos também os seus fundamentos sociais e e micos ?

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REVOLUÇÃO

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VIOLÊNCIA?

Mas os equívocos das definições usuais sobre d cracia e revolução persistem , apesar de tudo. Usual

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e, na segunda , o caráter violento da disputa. N ão é urna distin ção irrelevante , mas n ão tem toda a importância que , de há bito, se lhe atribui. J á deveríamos saber muito sobre as disputas políticas entre as oligarquias da América La tina para nos impressionarmos com distinções deste gêne¬ ro. Sabemos que h á , entre as oligarquias, disputas pacífi¬ cas pelo poder que não são democrá ticas. E também há in ú meras disputas violentas que não são revolucionárias. N ão pretendo negar , evidentemente , que as revoluções te¬ nham a sua quota de violência. Mas insisto em que não é a violência que as define . A violência que emerge nas revoluções está na raz ão direta da violência exercida pelo regime que elas põem abaixo. É a insurreição popular . N ão é , como pensam al guns, uma violência que se possa programar. É um fenô¬ meno de massas que explode sob a ação de circunst â ncias imprevisíveis e que se generaliza no rebate aos agentes da repressão . Ninguém pode programar uma insurreição. In¬ surreições acontecem , e os que primeiro se surpreendem com elas são os próprios revolucioná rios. Tão imprevisí vel é a sua ocorrência quanto o é a queda do regime tirâ ¬ nico contra o qual elas se voltam. Uma rachadura abre a passagem das águas. Mas só por acaso terá sido feita com essa intenção . A Revolução Francesa começa com pressões vindas da nobreza , e a Re¬ volução Russa , com manifestações de rebeldia dos setores liberais, tradicionalmente acomodados. É uma rachadura a mais no edif ício do poder. Podem ocorrer também mais um movimento das massas de Paris ou mais uma greve em Petrogrado. São, porém , manifestações iguais a tantas outras que o regime enfrentara antes e reprimira com êxi¬ to. Na hora em que as coisas estão acontecendo não há nenhuma maneira de saber se tais pressões são maiores ou menores do que as muitas outras que um regime autoritᬠrio sofre ao longo do tempo , como parte “ normal ” de sua

O poder havia apodrecido. Alguns revolucioná rios refiro-me a alguns em particular que não participaram revolução nenhuma e que, ademais, lêm pouco sobr gostam de falar da destruição do Esta sua história dando a entender que se trataria , sobretudo, de um ato vontade. N ão é tão simples assim . São mais freqiientes história os casos em que Estados apodrecem no curso um longo processo de desgaste, de corrupção e de vio cia , do que os casos em que sejam destruídos pela a externa de pol íticos conscientes desse propósito. Regi autoritá rios e tirânicos acumulam contradições e pro mas ao longo de décadas. No fim acabam inteiram carcomidos. Em certos casos , pelo menos, não é qu revolução comece por destruí-los. É porque eles mostr em determinado momento, que estão podres que a r lução, inesperadamente, começa. O trabalho dos rev cion á rios em tais casos é o de pôr fim a uma obra destruição já muito avançada . E a seguir , sua prim missão é , precisamente, a de construir um novo Esta Processos de crise de poder deste tipo podem previstos em suas linhas gerais. Os revolucion á rios realmente participaram de revoluções costumam dize com razão, que estas acontecem quando os de cima já têm capacidade para continuar governando e quand



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existência . Só depois é que se vai perceber que aquilo que parecia um esbarr ão a mais em um poder inexpugnável

clás Na descrição acima , eu me apóio em dois casos que considero ç descri dessa o aplica çã . A çã Russa o Revolu a e a Revolução Francesa érica Central não seria revoluções que conhecemos no Caribe e na Am perm sí vel sem algumas modificações . Entendo , porém , que o essencial ão era inc A formação de grupos ou mesmo de exércitos guerrilheiros nmesmo da naquelas regiões e em outros países latino-americanos antes precariedad à corresponde ô meno fen esse que lução cubana . E creio degenerescência do E estruturas estatais tradicionais naqueles pa íses . A Rep sob Batista ou Somoza é tão evidente quanto na hoje úblicaEIDominican Salvador em Trujillo , na Guatemala desde Castillo Armas ou mais a momentos antecipa os vezes s à guerrilha de grupos de o formaçã desenvolvi o que é verdade é m , tamb ncia ê degeneresc de do processo e uma re destes grupos em exércitos é , em grande parte , um resultado e a esta degenerescência . O desenvolvimento dos exércitos guerrilheiros adesão , em tanto , a vitória da revoluçã o só se tornam poss í veis com a em s de massa , da população . Para comprovar esta afirmação existem,, um g e Nicarágua e , em sentido negativo

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de baixo j á n ão agüentam a dominação que sofrem. É verdade . Mas os exemplos históricos mostram que é muito mais f ácil perceber a segunda condição do que a primeira . Os sinais de que os de baixo já n ão ag üentam a dominação são muitos e , além disso , são pú blicos . São protestos de massa , explosões de violência . E quando não são pú blicos , de qualquer modo são vis íveis nos índices estatísticos sobre desemprego , fome , degenerescência da força de trabalho, mortalidade infantil , etc . Mais dif ícil é avaliar os proces¬ sos de degenerescê ncia que afetam os que estão no poder e que os tornam incapazes de continuar governando. Lenin , que entendia dessas coisas , cogitava em Zuri¬ que , na Suíça , em janeiro de 1917 , se os “ mais velhos ” , como ele próprio se achava aos 46 anos , ainda estariam vivos para assistir à “ segunda onda ” da revolu çã o. A pri¬ meira , como se sabe , havia ocorrido em 1905, doze anos antes. A “ segunda onda ” começou , inesperadamente, seis semanas depois . Era o sonho maior de sua vida , mas como prever o momento ? O poder czarista , que também n ão podia saber , reage diante das manifestações populares com um impulso que n ão é mais capaz dq sustentar . Reage com a violência habitual e provoca , com isso, uma vio¬ lência maior que já é incapaz de reprimir . Começa a rolar a bola de neve do processo revolucion á rio . Revoluções são assim , feitas pelo povo . O papel dos revolucioná rios é re conhecê-las e , se tiverem , como Lenin , bastante talento , dirigi-las . Importa , sobretudo , ressaltar aqui : a violência é um aspecto da revolu ção , n ão a sua essência . O que a define é a emergência abrupta e maciça do povo para o cená rio político. Se a democracia acontece quando o povo participa de mecanismos cuja legitimidade reconhece, a revolução acontece quando o povo cria , nas ruas, por seus próprios meios , o seu próprio poder . O que espanta com freq úência e desde sempre o ã n é a violência das revolu¬



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Carr , E . H . ,



ções , mas a violência dos regimes que nascem dela que assusta não é a violê ncia do povo contra a tira mas a que , com demasiada freq üé ncia , regimes sa ído revolu ção acabam exercendo contra parte , pelo menos seus próprios fundadores . Tanto o autoritarismo dos regimes pós-revoluci rios quanto a violê ncia que se exerce em seu interior mais a ver com a fragilidade , ou mesmo a inexistência institui ções pol íticas herdadas do regime anterior do com o impacto da revolução como tal . Pelo contrá rio de-se afirmar que quanto maior a participação pop na revolução tanto menor a violência que se seguirá mesmo modo , quanto mais fortes as instituições popu existentes antes , tanto menor o autoritarismo . Isso sig ca : quanto mais democracia existe antes , tanto mais mocracia haver á durante e depois .

POR QUE DEMOCRACIA ?

Por uma democracia revolucionária O sentido da luta dos revolucioná rios , no Brasil, está em contribuir para a criação da democracia . Vou mais longe: o sentido da revolução no Brasil é o de criar a democracia . Esta democracia será socialista ? É o que eu espero. E me alinho entre os que lutam para que venha a ser assim . Os equívocos herdados da tradição conservadora e que condenam a democracia a uma função meramente ins¬ trumental têm de ser simplesmente jogados na lata de lixo da historia . A democracia foi e , por certo, continua sendo um instrumento no mesmo sentido em que um direito é um instrumento para aquele que reivindica a sua apli¬ cação. O que , como se sabe, não elimina o caráter geral do direito . Antes, pelo contrá rio, o reafirma . Não creio que haja trabalhador nenhum no mundo que esteja disposto a renunciar ao direito do habeas cor¬ pus, embora sabendo que este foi , na origem , um instru ¬ mento da aristocracia e , depois , da burguesia , contra o

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corpus chegou aos trabalhadores e inscreve-se ent direitos humanos, adquirindo, por isso , valor univer A democracia foi , em algum momento da histór Europa , um instrumento da aristocracia contra o ab tismo moná rquico. Tornou-se depois instrumento da guesia contra a aristocracia . E é já de algum temp como democracia representativa e democracia dire um instrumento do operariado e das massas pop contra a burguesia . Raciocinar sobre a democracia , como a conhec no mundo moderno, como se fosse apenas fruto de ar nhas das classes dominantes, é mais do que dar prov ignorâ ncia da história política moderna . É ignorar tória das lutas oper á rias e populares. Mais grave ain entregar , de graça , às classes dominantes avanços cráticos que são dos trabalhadores, seja “ por ado como o habeas corpus , seja por conquista , como o su universal. Por que a democracia é um valor univ Pela razão muito simples de que suas conquistas , d de terem chegado aos trabalhadores, passam a dize peito a todos os homens. E onde não chegaram é p que cheguem . E se são insuficientes , são também a de avanços que precisam ser feitos. Se alguém tem de renunciar à democracia não certamente , os de baixo . “ A democracia ” , como diz íerto Bobbio, “ é subversiva . E é subversiva n bem Nort tido mais radical da palavra , porque , ali onde ela c subverte a concepção tradicional do poder , t ão tra nal que é considerada natural , segundo a qual o pod seja o poder político ou o económico, seja o poder pa ou o sacerdotal — vem de cima para baixo ” .7 Nã acaso Rosa Luxemburgo dizia que “ as formas democr da vida política de cada país realmente envolvem o damentos mais valiosos e inclusive os mais indispen da política socialista ” .* 7

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Bobbio, op. cit ., p. 53.

Escogidas ,

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permanece , o produtor se converte em cidad ão de te integral . É , portanto , o predomínio da democracia d Esta, contudo, não pode durar muito tempo, sob pen que a sociedade e a economia parem de funcionar . Falo de predomínio da democracia direta nas re ções , n ão de exclusividade. Mesmo nos momentos de intensa participação popular , uma parte, pelo menos atividades produtivas e, sobretudo , dos serviços tem continuar funcionando. Mesmo nos momentos mais sivos , nem todos podem estar o tempo todo nas ruas pra ças p ú blicas . Além disso , mesmo que fosse pos parar totalmente a economia sem que a sociedade su bisse , a participação direta de todos não seria praticam possível . Não estamos mais nas cidades da Grécia clás onde os cidadãos podiam ser reunidos todos na praç mercado. Na Revolu ção Russa , por exemplo, os sov eram , evidentemente, instituições de democracia d Mas nem por isso exclu íam o princípio representa Soldados, operá rios e camponeses faziam-se repres através de deputados .

Quem seja capaz de perceber o sentido democrá tico de uma revolu ção n ão deveria ter dificuldades para perce¬ ber também o sentido revolucioná rio da democracia . Se em vez de se falar tanto da violência das revoluções e do cará ter pacífico das democracias, déssemos mais atenção aos mecanismos de participação popular , talvez as dife ren ças e as relações entre elas ficassem mais claras. O que distingue, essencialmente, uma revolução não é a violência , mas a predomin â ncia dos mecanismos da de¬ mocracia direta sobre os mecanismos de representaçã o. Na Revolução Russa , o momento decisivo foi quando o eixo dos acontecimentos passou da duma (o parlamento) para os sovietes , ou seja , para os conselhos de trabalhadores. Na Revolução Francesa , a pressão dos “ clubes ” e, em es¬ pecial , das massas de Paris sobre a assembléia d ão exem¬ plos do mesmo fenômeno. Em uma democracia , as Forças Armadas são “ o povo em armas” , no sentido de que são obedientes a instituições que representam o povo. Em uma revolução, as milícias s ão “ o povo em armas ” sem me¬ diação do sistema representativo. Haveria muitos outros ¬

exemplos . Esta é a grande diferença entre uma democracia e uma revolução. Na primeira , prevalecendo o sistema re¬ presentativo, torna-se inevit á vel a separação do homem em produtor e cidadão. O fenômeno é tão visível nas demo¬ cracias liberais, sob hegemonia burguesa , quanto o será em qualquer democracia socialista. Pode-se aumentar muito os n íveis de participação popular através de meca¬ nismos inspirados na democracia direta , mas a exigência do sistema representativo permanece predominante em qualquer democracia . E não apenas por razões pol íticas mas, sobretudo , por razões económicas. A revolução é uma situação na qual os homens em todo caso um grande n ú mero deles se convertem em





OS RISCOS DA USURPAÇÃO

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O pior que pode ocorrer quando se discute as rela entre a democracia direta e a democracia representati tomar qualquer deles como excludente . N ão é assim , nas revolu ções nem nas democracias realmente existe E onde a exclusão de um dos princípios ocorre, a pação do poder se torna inevitável . Em vez de pe mos em opor representação e participação direta tería pelo contrá rio , de estudar mecanismos que permitam os dois princípios se complementem. A exaltação do princípio representativo comp riscos conhecidos. Um deles , talvez o mais freqúente, siste na apropriação, por parte do representante , de

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uma propriedade pessoal. É o que mais se vê por a í. Quem n ão conhece pelo menos um representante do povo que depois de eleito se volta para este povo como se fosse, não seu representante, mas seu senhor ? Temos um exemplo nítido disso hoje no Brasil. De¬ pois de muitas e inequívocas manifestações da opinião pú blica em favor das eleições diretas já para a Presidência, a maior parte dos pol íticos que haviam participado da campanha decidiu suspendê-la para facilitar acordos de cú pula . A reorientação dos setores liberais e conservado¬ res das oposições rumo às eleições indiretas no Colégio Eleitoral não foi , como pretendem fazer crer, uma impo sição das circunstâ ncias, mas uma escolha política . A cam¬ panha de mobilização isto é, de participação direta valia, para tais setores, como um instrumento visando ele¬ var seu cacife nas negociações com o regime . Mas como a mobilização alcançou níveis muito superiores aos espe¬ rados , começou a provocar um visível deslocamento do eixo dirigente das oposições em benef ício de lideranças situadas à esquerda . A aposta , antes imprová vel, de Ulys ses Guimarães como possível candidato à Presidência pas sou a ganhar contornos mais nítidos. E , além dele, surgia , ainda à sua esquerda, o nome de Leonel Brizóla e em¬ bora sem pretensões à Presidência o prestígio crescente de Luís Inácio Lula da Silva . Como todos estes nomes são tidos por inaceitá veis pelo regime, os setores liberais e conservadores das oposições decidiram arranjar as coisas de modo a que retomasse vôo o nome , reconhecidamente “ confiá vel ” , de Tancredo Neves . Sei que a questão das diretas é apenas um item de uma agenda pol ítica mais complexa onde a questão geral da democracia ocupa o lugar central . N ão haveria , portan ¬ to, razões que impedissem os políticos , como representan¬ tes da vontade popular , de fazer as suas próprias avalia ções sobre o quadro político. É neste sentido que se enten de como legítima a autonomia dos representantes em face dos representados. N ão pretendo aqui , até porque seria



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n de funcionamento do princí pio representativo no do a ção com mandato caso, mau funcionamento perativo que só vale para a democracia direta. Ai assim , não vejo nenhuma avaliação do quadro político pudesse legitimar , em nome da democracia , a suspen da campanha com o visível objetivo de facilitar acor contrá rios ao restabelecimento das eleições diretas já. C que este é um caso típico de desobediência dos princíp da democracia representativa , com laivos de usurpa tipicamente autorit á ria . E existem riscos mais graves. O grande cientista cial e pensador liberal Max Weber fez parte, como as sor , da delegação alemã que foi a Versalhes para nego ( ou para se submeter ? ) o tratado que pôs fim à guerra 1914-1918. Nessa ocasião, manteve com o também fam general Ludendorf , um militar de direita que depois ap ria Hitler , ainda em in ício de carreira , um diálogo vale a pena ler . Lá pelas tantas, Ludendorf pergu “ Então o que você entende por democracia ? ” . Weber ponde: “ Em uma democracia o povo escolhe um líder qual confia . Então o líder escolhido diz : ‘Agora calem boca e obedeçam-me’ . Desde esse momento o povo partido não têm mais liberdade de interferir nos assu do líder ” . Ludendorf diz que gostaria de uma democr desse tipo, e Weber arremata : “ Depois o povo pode fa o seu julgamento. Se o líder cometeu erros, que seja tido no prisão! ” .0 Max Weber não era um qualquer . Felizmente p ele , Weber morreu em 1920, treze anos antes da ascen de Hitler na Alemanha. Em todo caso, sua visão da mocracia representativa tornou-se , certamente, parte d que veio a se chamar , depois , o espí rito de Weimar . D cilmente alguém poderia profetizar a tragédia do nazi na Alemanha com mais clareza do que Weber nesse logo. Também não creio que nenhum crítico das estreite





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do liberalismo quanto ao sistema representativo poderia ir t ão fundo na qualificação das responsabilidades dos li¬ berais pela tragédia do totalitarismo. É a isso que condu ¬ zem , no limite , as pequenas fraudes do princípio represen¬ tativo . Pavimentam o caminho para a grande usurpação sempre catastrófica do fascismo .





BUROCRACIA E DEMOCRACIA

Os riscos da exalta ção da democracia direta são, de h á bito , apresentados como diametralmente opostos aos da democracia representativa . É assim , de fato. Mas acabam levando a resultados semelhantes. O princípio do mandato imperativo — t ípico da de¬ mocracia direta segundo o qual o representante recebe uma pauta definida de seus eleitores , para cumprir tais e quais pontos e n ão outros , só se aplica em casos especia¬ l íssimos na pol í tica . Desde que se generalize , ele torna os representantes em meros procuradores de suas bases , sem qualquer capacidade como dirigentes políticos. À parte situações excepcionais t í picas das revoluções mas não exclusivas delas , o uso do mandato imperativo envolve riscos bastante conhecidos. O primeiro é evidente. Sempre surgem as situações em que alguém tem de decidir sobre questões que as bases n ão puderam discutir . Às vezes são situações corriqueiras , às vezes momentos decisivos para a vida de um movimento político , de um partido ou , mes mo , de um país. Se se considera só a participação direta como democrá tica , não teremos instituições representativas que possam dar conta do recado. Que alternativa resta , em casos como esse , sen ão a usurpação autoritá ria ? A exaltação extrema do princípio representativo aca ¬ ba sempre , de uma maneira ou de outra , na supressão da participação popular . Mas se reduzirmos o conceito de de¬ mocracia tão-só à democracia direta , chegaremos ao mesmo







quando se fala de uma revolução. Em qualquer hipó conselhos populares , conselhos de empresa , etc. têm conviver com partidos e parlamentos. A participação p lar que se dá , de modo direto, nas ruas e nas praças de conviver com a participação em eleições para os lamentos e para os governos . N ão há d ú vida de que e tem tensões entre estes diferentes modos de participa popular . Em determinados momentos, estas tensões po adquirir um cará ter decisivo para os rumos do proc pol í tico. Mas são essenciais ao jogo democrático. El ne-se um dos lados e todo o jogo democrático aca sendo suprimido . A exaltação do princípio representativo é um principais álibis para os golpes de Estado que conh mos na histó ria do Brasil e da América Latina . Se parc da população se organizam e reivindicam , sempre apa alguém para dizer que é o caos que se aproxima . “ O verno n ão decide sob pressão . ” Não é esta uma frase mum na boca de muitos dos nossos governantes ? Mas que não deveriam decidir sob pressão ? A pressão dos pos de pressão não é precisamente um mecanismo funcionamento das democracias modernas ? Mas a história registra também in úmeros exem em que a exaltação da democracia direta acaba cria álibis para golpes e para a ditadura . O corporativismo um simulacro de democracia direta cista permi relacionar quantidades de casos. Mas deixemos de la neste caso , os fascistas. Tomemos os riscos da democr direta onde ela é tomada realmente a sério, ou seja , histó ria da esquerda revolucioná ria . O exemplo clássico mas de modo algum o ú n é u da supressão da Assembléia Constituinte na re luçã o russa . Os bolcheviques, ent ão no poder , diziam a Constituinte , eleita antes de outubro, não represent mais o povo . A prova disso , diziam , estaria no curso revolução , apoiado sobretudo nos sovietes. Até este po posso admitir que estavam com a razão. Mas se isso



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tituinte ? N ão o fizeram . E deu no que deu , ou seja , na supressão da democracia representativa e no esvàziamento da democracia direta . Rosa Luxemburgo criticou isso tudo no devido tempo. Transcrevo algumas das críticas de Rosa Luxemburgo. Depois de anotar os fatos sobre a Constituinte, com apoio em um folheto de Trotsky , ela diz: “ Tudo isso está muito bem e é bastante convincente. Mas não posso deixar de me perguntar porque pessoas t ão inteligentes como Lenin e Trotsky n ão chegaram à conclusão de que surge imediata ¬ mente dos fatos mencionados. Como a Assembléia Cons¬ a tituinte foi eleita muito antes da mudança decisiva ¬ , composi refle o çã e como sua Revolução de Outubro tia o passado e não a nova situação, deduz-se auto¬ maticamente que se teria de anular a Assembléia Cons¬ tituinte já superada e convocar, sem perda de tempo, eleições para uma nova Constituinte. N ão queriam con¬ fiar , e n ão deviam fazê-lo , o destino da revolução a uma assembléia que refletia a R ússia kerenskista de ontem , do período das vacilações e das alianças com a burguesia . Portanto , a ú nica coisa a fazer era convocar uma assem¬ bléia que surgisse da Rússia renovada que tanto havia avançado . Em vez disso, Trotsky extrai das característi¬ cas específicas da Assembléia Constituinte que existia em outubro uma conclusão ' geral sobre a inutilidade , durante a revolução, de qualquer representação surgida de eleições populares universais ” .10 Medidas autoritá rias tomadas na revolução russa acabaram se tornando, em certa tradição da esquerda , em princípios de organização política . Por que estranha razão oper á rios n ão podem fazer greve em muitos países socia ¬ listas ? Ora , nada mais simples. Se as empresas são do Estado e se o Estado é diretamente da classe operá ria , não teria sentido que esta fizesse greve contra empresas que são suas . Estamos a apenas um passo da conversão dos sindicatos em agências do Estado que, mais do que se preo-

cupar com as reivindicações oper á rias , se dedicam a co trolar os operá rios para cumprir os índices de produtiv dade previstos no plano . Sabemos que a mágica da conversão de circunstâ ncia em princípios n ão teria sido poss ível sem o totalitarism vigente na é poca de Stalin . Mas a verdade é que Stal morreu h á trinta anos e muitas coisas continuam iguai Se formos mais fundo nestas mágicas , encontraremos princípio da democracia direta transformado em álibi par o autoritarismo . E isto vai conjugado como uma depr cia ção extrema do sistema representativo. Se a primeir fun ção de qualquer Parlamento é a fiscalização do Ex cutivo , que significam parlamentos que , como ocorre em muitos pa íses socialistas , só se re ú nem uma ou duas veze por ano ? O exemplo maior , porém , é o do sistema do partid ú nico ou , conforme a Constituição da URSS , do “ partid dirigente ” . A propósito , por que definir , na Constituiçã que determinado partido é “ dirigente ” ? O argumento no essencial , o mesmo que leva à anulação do direito d greve. Se a classe oper á ria estaria , por assim dizer , dir tamente embutida no Estado , ela n ão poderia ter mais d que um partido, precisamente aquele que criou o Estad oper á rio . Anula-se assim o princípio democr á tico represen tativo do pluripartidarismo e criam-se as condições par um inevit á vel afastamento entre a classe oper á ria realme te existente e as burocracias estatais e partid á rias que d zem represent á-la . É , de novo , a usurpação do poder .11 Quando Max Weber estava em sua comissã o em Ve salhes , a l íder revolucion á ria espartaquista Rosa Luxem

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De novo vale a pena transcrever as cr í ticas de Rosa Luxemburgo medidas revolucion á rias que , de in ício, limitam a participa ção democr á tica depois , conduzem ao partido ú nico: " A liberdade só para os que apóiam governo , só para os membros de um partido ( por numeroso que seja ) nã é , em absoluto , liberdade. A liberdade é sempre exclusivamente liberdad para quem pensa de maneira diferente . N ão por causa de nenhum concei fan á tico de ‘ justi ça , mas porque tudo o que é instrutivo, totalizador e p rificante na liberdade pol í tica depende desta caracter ística essencial . E su efetividade desaparece t ã o logo a ‘liberdade ’ se converte em um privil ég 1



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burgo estava em uma prisão em Berlim . Era o início do primeiro governo social-democrata da Alemanha , o de Friedrich Ebert . Rosa , a Vermelha , era a mais dura dos seus críticos de esquerda . Mas se era implacável com a social-democracia , era també m extremamente atenta ao que acontecia na Revolução Russa . Rosa morreu , assassinada , junto com Karl Liebcknecht , por alguns oficiais reacio¬ n á rios alem ães , em 1919 , alguns anos antes do in ício do stalinismo. Mas a sua cr ítica dos desvios autoritá rios da revolu ção russa permanece atual até hoje . Vale a pena ler : “ Em lugar dos organismos represen tativos surgidos de eleições populares gerais , Lenin e Trotsky implantaram os sovietes como ú nica representação verdadeira das massas trabalhadoras. Mas com a repressão da vida pol í tica no conjunto do país, a vida dos sovietes se deteriorar á cada vez mais. Sem eleições gerais, sem uma irrestrita liberdade de imprensa e de reunião, sem uma livre luta de opiniões, a vida morre em toda instituição pú blica , se torna mera aparência de vida , ficando apenas a burocracia como elemento ativo . ( . . . ) (surge em conseq úência ) uma ditadura , por certo , mas n ão a ditadura do proletariado e sim " de um grupo de pol íticos, isto é, uma ditadura no sentido burguês , no sentido do governo dos jacobinos. ( . . . ) Podemos ir ainda mais longe: essas condições devem causar inevitavelmente uma brutalização da vida pú blica , tentativas de assassinato , caça de ref éns , etc . ” .12 ¬

A DEMOCRACIA E A LUTA DOS TRABALHADORES

Representação e participação direta são aquisições irrenunci á veis da democracia e das revoluções do mundo moderno . São duas formas de participação popular que

aprimoram a democracia e a capacitam para constitu como espaço de transformação da sociedade . Num país como o Brasil , que caminha para a de cracia sob hegemonia liberal e conservadora , não pa haver dú vidas de que o horizonte dos donos do pode atuais e os pretendentes , n ão vai além de uma conce em e limitada de democracia representativa . Alguns çã op participa a promover de falam cial no PMDB , eles ocorre o lar . Lástima que , onde tal participaçã a suportem . Convivem mal e com a participação pop como acabamos de ver na campanha das diretas e em meros outros exemplos. E , na mesma medida , conv razoavelmente bem com as heran ças autoritá rias que baram transformando a democracia representativa país em um simulacro de si própria . Como se dará a disputa pela hegemonia na dem cia que se inicia sob hegemonia liberal e conservad N ã o sei e duvido que alguém possa responder isso a Mas sei que haverá disputa e que os partidos e lidera pol í ticas vinculadas aos trabalhadores terão de dese ver um amplo programa de democratização do Esta da sociedade brasileiros. Depois de tanto maltratar no passado o conceit democracia , a história brasileira exige agora o recon mento da democracia em sentido pleno. Quando digo o sentido da revolução do Brasil será o de criarmos mocracia , tenho claramente presente que esta é uma t que vai muito além de discussões de caráter instituci embora n ão possa , nem deva , deixá-las de lado. Criar democracia em um país como o nosso supõe , certam o restabelecimento das eleições diretas em todos os n o pleno restabelecimento das prerrogativas do Congr a independência do Judiciá rio , a revogação da Lei d gurança Nacional , a supressão das leis que tolhem o cício da liberdade e da autonomia sindical, a supre das leis que tolhem a liberdade de organização partid a desativação dos órgãos da chamada “ comunidad





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Mas supõe também alterações drásticas na política económica , redirecionando o funcionamento da economia para atender às demandas populares. Como pode funcio¬ nar a democracia em um país em que cerca de trinta mi¬ lhões de pessoas vegetam em uma condição de miséria absoluta ? E n ão fica nisso. É evidente que a democracia terá de contribuir para a supressão das desigualdades so¬ ciais extremas que impedem , para a maioria do povo, o acesso à cidadania . Neste sentido, a realização de uma reforma agrá ria é uma tarefa democrá tica urgente. Se entendermos que democracia , no mundo moderno, só existe com participação dos trabalhadores, a verdadeira luta pela democracia começa agora . Uma democracia mo¬ derna é uma democracia na qual a maioria do povo não esteja confinada na condição de cidadãos de segunda clas¬ se. Na qual , portanto, a maioria do povo e não apenas uma minoria de privilegiados tenha a condição de se tornar dirigente . Na qual todos os trabalhadores e não apenas uma minoria dentre eles possa vir a pú blico “ para dizer a sua própria verdade ” . O programa de uma democracia moderna no Brasil é o de uma verdadeira revolução. Caberá , certamente , aos setores populares das atuais oposições os ú nicos, em verdade , que continuarão sen¬ do oposição amanhã — um papel decisivo nesta luta . Penso aqui nos partidos ligados ao movimento oper á rio e po¬ pular , em particular o PT . Mas também no conjunto das instituições ligadas ao movimento operá rio e ao movimen ¬ to popular . Seria ingénuo pensar que um só partido po¬ l ítico, ou mesmo alguns partidos possam dar conta de um programa t ão vasto . Estamos entrando em etapa de amplo desenvolvimento dos conselhos populares, conselhos de empresa , sindicatos, sociedades de bairro, comunidades de base, associações profissionais , associações culturais, etc. etc. Uma democracia real em um país como o Brasil pres¬ supõe não apenas pluralismo partidário, mas também plu¬ ralismo institucional e, mesmo , social dos movimen¬ tos populares . É o desenvolvimento de todo este complexo











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POR QUE DEMOCRACIA ?





de instituições populares que permitirá , no futuro , muda o eixo da transição . E O SOCIALISMO?

Volto à pergunta que se acha na abertura deste cap tulo e , na verdade , no in ício das minhas preocupações a escrever este ensaio. A democracia no Brasil será soci lista ? Sim , se os que lutam pelo socialismo fizermos p merecer. E uma das maneiras de merecê-lo está em com preender que não chegaremos jamais ao socialismo se uma vastíssima e complexa luta pela hegemonia dem crá tica . Uma luta que envolve um n úmero enorme de que tões de há muito resolvidas pelo capitalismo em vári por exempl partes do mundo , mas também algumas controle sobre o e mica ó tica pol í econ da o a reorientaçã se col es çõ solu cujas funcionamento do grande capital cam na fronteira do socialismo. A pior maneira de os socialistas enfrentarem um luta tão ampla e complexa será a de converterem as idéi do socialismo em mero artigo de propaganda . Quem vi por aí gritando “ viva o socialismo” a propósito de tudo de qualquer coisa poderá sentir-se interiormente satisfei por ouvir o som da própria voz . Mas isso não ajuda e grande coisa . Será em cima das questões concretas que há de construir no país alternativas de poder popular q no futuro venham a se constituir como base de uma no sociedade socialista e democrática . E quem continuar s nhando que o poder é algo que apenas se toma , terá passar pela experiência de construí-lo na luta do dia-a-di Ou isso, ou o poder que realmente tem de ser tomado n o será nunca . O socialismo não pode ser apresentado apenas com a idéia do futuro. Todo futuro começa sempre no presen O fato de que a maior parte dos problemas vividos n país seja passível de solução sob regime capitalista alime





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FRANCISCO C. WEFFORT

POR QUE DEMOCRACIA ?

ta as perspectivas da hegemonia liberal sobre a democracia brasileira. Mas que sejam problemas, na maior parte, pas¬ s í veis de solu ção no capitalismo não é garantia nenhuma de que venham a ser resolvidos. Do mesmo modo , o fato de que os liberais tenham , tido até aqui , a hegemonia da frente de oposições que empurra para diante a transição não significa que estejam destinados à hegemonia na democracia que deve vir . Sa ¬ bemos que a frente liberal burguesa que ora se apresenta para governar o país carrega consigo um lastro pesado de conservadorismo. E que, além dos seus próprios conserva dores , terá como contrapeso , pela direita , os remanescentes do regime militar que agora se colocam sob a direção de Maluf . O próximo governo , qualquer que seja , ser á não apenas um governo de crise mas também provavelmente um governo em crise . Seria uma lamentável ingenuidade enfrentar uma situação como essa apenas com gritos de euforia radical . Mas seria também um erro descartar a possibilidade do socialismo . A democracia pela qual lutamos será socialista? O futuro dirá. São muitos os que já estão na luta , que, aliás, não começou ontem . Mas creio que o número dos que lu ¬ tam vem aumentando e cresceu muito quando fomos aos poucos descobrindo um “ novo jeito de caminhar ” , com ele , um novo caminho. Quem vem observando, ao longo dos anos , as muitas maneiras pelas quais os trabalhadores afir mam a sua independência na política pode admitir tam bém que não está longe o dia em que ultrapassem o estágio atual das suas lutas de resistência para apresentar-se ao conjunto da sociedade brasileira com alternativas pró prias de poder . Nesse dia , o socialismo deixará de ser consigna abs trata de uns quantos para se converter no programa con ¬ creto de transformações que a maioria preconiza para a sociedade brasileira . O passado da nossa tradição conser¬ vadora e autorit á ria pesará apenas sobre os seus legítimos herdeiros, os conserv

que tal possa surpreender os assessores do governo Re já não haverá , na esquerda e no movimento operá popular , equ í vocos sobre o sentido da democracia e o nificado da revolução. É que , então , a luta pela democ será também a luta pelo socialismo .

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Até quando?

O SENHOR E O UNICÓRNIO - A Economia dos Anos 80 Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo Através de artigos publicados originalmente na Revista S nhor, Belluzzo intelectual independente que luta pela recon tru çã o nacional analisa a situa çã o económica brasileira e i ternacional, numa linguagem que nã o d á margem à s interpret ções duvidosas.



Sobre o Autor

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Francisco Co rêa Weffort formou - se pela USP em Ciências So ciais , em 1962, e é professor titular de Ciencia Política dessa Universi ¬



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dade. Tem diversos estudos publicados sobre populismo e sindicalis ¬ mo na política brasileira. De 1964 a 1968 foi professor do Instituto Latino - Americano de Planificación Económica y Social, organismo da ONU , sediado em Santiago , Chile. De 1968 a 1969 foi professor visitante na Universida ¬ de de Essex , Inglaterra. Em 1974 foi assessor da OIT , na Argentina , estando ent üo vinculado à Universidade de La Plata. É colaborador regular da revista Isto É . Membro da Comissão Executiva Nacional do Partido dos Tra balhadores, PT , desde a sua fundação, exerce hoje as funções de se¬ cretário geral nacional.

DÍVIDA EXTERNA E POLÍTICA ECONÓMICA - A Experiência Brasileira nos Anos 70 Paulo Davidoff Cruz Estudando em profundidade as transforma ções da econ mia brasileira , os mecanismos de financiamento e o endivid mento do Brasil no per í odo que vai do auge do ciclo expansivo recessã o dos anos 80, o autor discute o papel desempenhado p la polí tica econ ómica governamental e as conseqiiê ncias d “ abertura financeira ” para o exterior. (

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INFLAÇÃO E RECESSÃ O Luiz Carlos Bresser Pereira e Yoshiaki Nakano Reunindo textos inéditos ou publicados na Revista de Ec nomia Polí tica , este livro lança uma luz à discussã o sobre infl çã o e recessã o: partindo do conceito de estagflaçã o , os autore

identificam fatos hist ó ricos decisivos na "estabiliza çã o" da cr se econ ó mica mundial .

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