Cassirer A Filosofia Do Iluminismo

  • Uploaded by: Carine Laser
  • 0
  • 0
  • February 2021
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Cassirer A Filosofia Do Iluminismo as PDF for free.

More details

  • Words: 149,137
  • Pages: 471
Loading documents preview...
Ernst Cassirer A FILOSOFIA DO

ILUMINISMO

H D nO RAD A

U N IC A M P

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL - UNICAMP C273f

Cassirer, Ernst A filosofia do iluminismo / Ernst Cassirer; tradução: Álvaro Cabral. — Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992. (Coleção Repertórios) Tradução de: Die Philosophie der aufklãmng. 1. Iluminismo - Filosofia. I. Título.

ISBN 85-268-0232-1

20. CDD- 142.7

índice para catálogo sistemático: 1. Iluminismo-Filosofia 142.7 Coleção Repertórios Esta edição é publicada por acordo com a Imprensa da Universidade de Yale. Todos os direitos reservados. Projeto Gráfico Camila Cesarino Costa Etíana Kestenbaum Coordenação Editorial Carmen Silvia Palma Editoração Sandra Vieira Alves Preparação Marco Antonio Storani Revisão Katia de Almeida Rossini Rosa Datva V. do Nascimento 1992 Editora da Unicamp Rua Cecilio Feltrin, 253 Cidade Universitária - Barão Geraldo CEP 13084-110-Campinas-SP-Brasil Tel.: (0192) 39-3720 Fax: (0192)39-3157

A Max Cassirer por seu 75.° aniversário (18 de outubro de 1932) como prova de amor e respeito.

PREFÁCIO

A presente obra pretende ser simultaneamente menos e mais do que uma monografia sobre a filosofia do Iluminismo. Em primeiro lugar, menos: tal monografia teria que se impor como tarefa, expor ante os olhos do leitor toda a riqueza dos detalhes, acompanhar em suas múltiplas ramificações o nasci­ mento e o desenvolvimento dos diversos peculiares da filosofia do Iluminismo. A própria forma da coleção “ Grundrisses der philosophischen Wissenschaften” [Elementos de Ciências Filosó­ ficas] e os objetivos a que ela se propõe impedem semelhante empreendimento. No plano geral dos "Grundrisses" [elementos], não se pode ter em vista o exame e a apresentação exaustiva, em toda a sua amplitude, dos problemas propostos pela filoso­ fia do Iluminismo. Em vez desse programa extensivo, requer-se um outro de natureza puramente intensiva. Trata-se de compre­ ender o pensamento iluminista menos em sua amplitude do que em sua profundidade, de apresentá-lo não na totalidade dos seus resultados e de suas manifestações históricas, mas na unidade de sua fonte intelectual e do princípio que a rege. Não me parece necessário nem possível empreender um relato épico de curso, desenvolvimento ç destino da Filosofia das Luzes; o que se pre­

tende, sobretudo, é tornar perceptível o movimento interior que se realizou nela e a ação dramática em que, de certo modo, seu pensamento esteve envolvido. Todo o fascínio característico, todo o va*or sistemático próprio do lluminismo residem nesse movimento, n* energia do pensamento que o suscita e na paixão com que os seus problemas são equacionados. Nessa perspectiva, numerosos elementos se integram à sua unidade, os quais, para um outro método que expusesse pura e simplesmente os resul­ tados, poderiam passar por contradições insolúveis, por uma mistura eclética de temas heterogêneos. Para desvendar sua sig­ nificação histórica própria, cumpre interpretar desde um centro único de perspectiva a suas tensões e distensões, suas dúvidas e decisões, seu ceticismo e sua fé inquebrantável. Essa é a interpretação que esta obra vai tentar oferecer. Ela situa a filosofia do lluminismo no quadro de um mais vasto encadeamento histórico, o qual não pode, evidentemente, ser aqui desenvolvido mas apenas esboçado em suas linhas gerais. O movimento que nos propomos descrever, longe de estar con­ centrado e fechado sobre si mesmo, encontra-se, muito pelo contrário, ligado por múltiplos vínculos tanto ao futuro quanto ao passado. Ele constitui apenas um ato, uma fase singular do imenso movimento de idéias graças ao qual o moderno pensa~mènto "filosófico adquiriu a certeza, a segurança^ He~si~me-smo, osentim entó específico de si e sua autoconsciência_espe£Ífica. íxpus émoutros livros, em especial em Individuum und Kosmos in der Philosophie der Renaissance (1927) e em Die Platonische Renaissance in England (1932), outras fases desse vasto movi­ mento, procurando sublinhar a importância das mesmas. A pre­ sente obra faz parte integrante dessa série, tanto por seu obje­ tivo quanto por suas perspectivas metodológicas. A filosofia do lluminismo, à semelhança das obras acima citadas, procura con­ siderar a história da filosofia sob uma luz que não tem por única finalidade estabelecer e descrever os resultados, mas,

ademais, revelar as forças criadoras por meio das quais esse*> resultados são intimamente elaborados. Tal método quer forne­ cer, com o desenvolvimento das doutrinas e dos sistemas filosó­ ficos, uma “fenomenologia do espírito filosófico’’; quer acom­ panhar, passo a passo, a consciência cada vez mais lúcida e mais profunda que esse espírito, mesmo tratando de problemas obje­ tivos, adquire de si mesmo, de sua natureza e de seu destino, de seu caráter e de sua missão. Que me seja permitido realizar um dia uma recapitulação geral, uma síntese completa de meus estudos anteriores é algo que não me atrevo mais a esperar e ainda menos ouso prometer. Neste meio tempo, esses estudos permanecerão como meros segmentos separados, cujo caráter fragmentário não desconheço mas que, segundo espero, servirão um dia para a construção do grande edifício quando chegar o momento oportuno. Quanto à filosofia do Iluminismo, cumpre dizer que ela oferece condições bastante favoráveis a esse gênero de análise. Os resultados decisivos, verdadeiramente duradouros, que ela produziu não consistem num conteúdo doutrinal que ela teria tentado elaborar e fixar dogmaticamente. E mais do que isso: ainda que não tenha tomado plena consciência desse fato, a Época das Luzes permaneceu, no tocante ao conteúdo de seu pensamento, muito dependente dos séculos precedentes. Apro­ priou-se da herança desses séculos e ordenou, examinou, sistema­ tizou, desenvolveu e esclareceu muito mais do que, na verdade, contribuiu com idéias originais e sua demonstração. Entretanto, a filosofia do Iluminismo, apesar de ter adotado a maioria dos seus materiais de outras fontes e de ter desempenhado, nesse sentido, um papel subalterno, nem por isso deixou de instituir uma forma de pensamento filosófico perfeitamente nova e ori­ ginal. Apodera-se de riquezas intelectuais já existentes? Contenta-se — como é visivelmente o caso no tocante à imagem do universo físico — em dar prosseguimento à construção sobre os

alicerces já assegurados pelo século XVII? Isso não impede que tudo o que lhe cai nas mãos adquira um outro sentido e abra um novo horizonte filosófico. Na verdade, o que aí temos não é outra coisa senão uma visão nova e um novo destino do movi­ mento universal do pensamento filosófico. Na Inglaterra e na França, o Iluminismo começa por quebrar o molde obsoleto do conhecimento filosófico, a forma do sistema metafísico. Não acredita mais no privilégio nem na fecundidade do “espírito de sistema": vê neste não a força mas o obstáculo e o freio da razão filosófica. Entretanto, ao abandonar o esprit de système, ao bater-se contra ele, nem por isso o Iluminismo renuncia ao sprit systématique, ao qual pretende, pelo contrário, incutir mais valor e eficácia. Em vez de se fechar nos limites de um edifício doutrinal definitivo, em vez de restringir-se à tarefa de deduzir verdades da cadeia de axiomas fixados de uma vez por todas, a filosofia deve tomar livremente o seu impulso e assumir em seu movimento imanente a forma fundamental da realidade, for­ ma de toda a existência, tanto natural quanto espiritual. A filo­ sofia já não significa, à maneira dessas novas perspectivas fun­ damentais, um domínio particular do conhecimento situado a par ou acima das verdades da física, das ciências jurídicas e políticas etc., mas o meio universal onde todas essas verdades formam-se, desenvolvem-se e consolidam-se. lá não está separada das ciências da natureza, da história, do direito, da política; nu­ ma palavra, ela é o sopro tonificante de todas essas disciplinas, a atmosfera fora da qual nenhuma delas poderia viver. Já não é a substância separada, abstrata, do espírito; oferece o espírito como um todo, em sua verdadeira função, no modo específico de suas investigações e de seus problemas, em seus métodos, no próprio curso do saber. Assim é que todos os conceitos e os problemas, que o século XVIII parece ter muito simplesmente herdado do passado, deslocaram-se e sofreram uma mudança ca­ racterística de significação. Passaram da condição de objetos

prontos e acabados para a de forças atuantes, da condição de resultados para a de imperativos. Tal é o sentido verdadeira­ mente fecundo do pensamento iluminista. Manifesta-se menos por um conteúdo de pensamento determinado do que pelo pró­ prio uso que faz do pensamento filosófico, pelo lugar que lhe confere e pelas tarefas que lhe atribui. O século XVIII, que se auto-intitulou orgulhosamente o "Século da Filosofia", justificou essa pretensão na medida em que devolveu efetivamente à filo­ sofia seus direitos originais, em que a restabeleceu em sua sig­ nificação primeira, sua significação verdadeiramente "clássica” . Deixou de encerrar-se na esfera do pensamento, abriu caminho até aquela ordem mais profunda donde jorra, com o pensamento puro, toda a atividade intelectual do homem, e onde essa ativi­ dade deve encontrar seu alicerce, segundo a convicção profunda da filosofia do Iluminismo. Desconhece-se, portanto, o sentido dessa filosofia se se acredita poder considerá-la — e executá-la — como simples “filosofia da reflexão”. Ê verdade que foi um pensador nada menos que da estirpe de Hegel o primeiro a en­ veredar por esse caminho da crítica e que parece tê-lo legitima­ do de uma vez por todas com a autoridade do seu nome. Mas encontramos no próprio Hegel uma curiosa retificação, pois o julgamento de Hegel como historiador e filósofo da história di­ verge totalmente do veredicto que a metafísica do mesmo Hegel proferiu a respeito do Iluminismo. A Phänomenologie des Geistes [A fenomenologia do espírito] traça um retrato da época do Iluminismo muito diferente, por sua riqueza e profundidade, daquele que Hegel costumava esboçar num espírito puramente polêmico. O movimento profundo, o esforço principal da filo­ sofia do Iluminismo não se limitam, com efeito, a acompanhar a vida e a contemplá-la no espelho da reflexão. Pelo contrário, ela acredita na espontaneidade originária do pensamento e, longe de restringi-lo à tarefa de comentar a posteriori e de refletir, reconhece-lhe o poder e o papel de organizar a vida. O pensa-

mento deve, sem dúvida, analisar, examinar, mas também pro­ vocar, fazer nascer a ordem cuja necessidade ela concebeu, que mais não fosse para provar, no próprio ato de realizar-se, o seu realismo e verdade próprios. É impossível encontrar um acesso a essa camada profunda da filosofia do lluminismo se nos ativermos, como a grande maioria das obras históricas dedicadas a esse período, ao seu corte longitudinal, se nos contentarmos em fazer desfilar ao correr do tempo a diversidade dos fenômenos intelectuais e dei­ xar, por assim dizer, que eles se desenrolem. Tal método de trabalho é, em todo o caso, deficiente, mas os seus defeitos in­ trínsecos talvez em parte alguma se manifestem mais claramente do que numa apresentação da filosofia do século XVIII. No século XVII, ainda se pode conservar a esperança de descrever a totalidade do conteúdo e do desenvolvimento da filosofia acompanhando esse desenvolvimento de sistema em sistema, de Descartes a Malebranche, de Spinoza a Leibniz, de Bacon e Hobbes a Locke. Mas esse fio condutor abandona-nos no limiar do século XVIII, porquanto é o sistema filosófico como tal que carece então de força de lei e de representatividade. E Christian Wolff, que queria obstinadamente manter-se fiel à forma siste­ mática, acreditando que ela comportava toda a verdade especifi­ camente filosófica, também tentou em vão que os outros ele­ gessem esse meio para resolver a totalidade dos problemas filosóficos do seu tempo. O pensamento iluminista consegue sempre extravasar do quadro rígido do sistema e libertar-se, jus­ tamente nos espíritos mais fecundos e mais originais, da sua estrita disciplina. Não é nas doutrinas particulares, nos axiomas e teoremas em que ele acaba por fixar-se que esse pensamento manifesta com maior clareza a sua estrutura e a sua orientação característica, mas quando se deixa empolgar no próprio devir de sua elaboração, quando duvida e averigua, quando derruba e constrói. A totalidade desse movimento incansavelmente flu-

tuante, em permanente fluxo, não poderia reduzir-se a uma simples soma de opiniões individuais. A “filosofia” do Ilumi­ nismo propriamente dita é algo muito diverso do conjunto do que foi pensado e ensinado pelos grandes mestres do período, por Voltaire e Montesquieu, Hume ou Condillac, D’Alembert ou Diderot, Wolff ou Lambert. Ela não se destaca da soma e da sucessão cronológica dessas opiniões porque, de um modo geral, ela não reside numa doxologia, mas na arte e na forma de conduzir os debates de idéias. As forças espirituais que a governam só são perceptíveis na própria ação e no movimento contínuo do debate: somente aí será possível captar a pulsação da vida interior do pensamento iluminista. Esse faz parte da­ queles teares espirituais onde “de um pedal mil fios são movi­ dos / as lançadeiras vão e vêm, / Os fios correm sem ser vistos” [Ein Tritt tausend Fäden regt, / Die Schiff lein herüber, hinüber schiessen, / Die Fäden ungesehen fHessen] . Trazer para a luz esses fios invisíveis deve ser a tarefa essencial da reconstrução e da meditação históricas. Para con­ seguir realizar essa tarefa, procuramos apresentar no presente livro não uma história de diversos pensadores e suas doutrinas pessoais, mas uma história das idéias na Época do Iluminismo, a fim de que se possa apreender essas idéias mais em sua eficácia imediata do que em sua gênese teórico-abstrata. Por isso tínha­ mos que decidir, naturalmente, deixar em segundo plano uma profusão de detalhes mas cuidando de não omitir nenhuma das forças essenciais que modelaram o rosto do Iluminismo e deter­ minaram sua visão da natureza, da história, da sociedade e da arte. Graças a esse método, é possível descobrir que a filosofia do século XVIII, que ainda há quem se obstine em apresentar como uma mistura eclética de temas intelectuais díspares, é dominada, na verdade, por um reduzido número de grandes idéias fundamentais que nos são propostas numa síntese coerente e segundo uma rigorosa articulação. Todo o estudo histórico

deve partir dessa base, ou seja, adotar por ponto de partida o fio condutor que nos pode guiar com segurança através do labi­ rinto dos dogmas e das doutrinas individuais. No que se refere à crítica teórica do Iluminismo, está fora de cogitação abordá-la no âmbito deste livro. Mas vale colocar o nosso trabalho sob a égide do lema spinozista: non, ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere. A Época das Luzes raramente beneficiou-se de semelhante favor. O mais grave de­ feito que se lhe aponta comumente é o de nada entender a respeito de tudo o que está historicamente longe dela, de tudo o que, de um modo geral, lhe é estranho; de ter elevado a sua própria escala de valores, com uma ingênua suficiência, à cate­ goria de norma universal, a única válida e a única possível, e de aferir por esse padrão todo o passado histórico. Se a Época do Iluminismo não pode ser inteiramente absolvida nesse ponto, não será demais acrescentar que ela expiou com sobras o seu erro. Essa suficiência do “eu sei mais” (“Besserwissens”) de que recriminam o Século das Luzes e sobre a qual ninguém se cansa de acumular provas gerou inúmeros preconceitos que ainda hoje impedem um julgamento isento do Iluminismo. À medida que nos mantemos à margem de toda a polêmica direta abstemo-nos de submeter essesr preconceitos a uma crítica explícita, de pro­ ceder, em suma, a um “resgate” da época iluminista. O que nos importou, acima de tudo, foi desenvolver e esclarecer, histórica e racionalmente, o conteúdo do seu pensamento e a sua proble­ mática filosófica central. Esse esclarecimento constitui a pri­ meira e a mais indispensável condição para uma revisão do famoso processo que o Romantismo intentou contra a filosofia do Iluminismo. O julgamento adverso que foi proferido no de­ correr desse processo ainda hoje é repetido sem crítica pela maioria, e continua sendo de bom-tom aludir à “trivialidade do Iluminismo”. Bastará que nos seja permitido impor o silêncio a esse gênero de julgamento para pensarmos ter alcançado o

nosso objetivo. Além disso, tampouco há necessidade de, após a obra de Kant e a “revolução do pensamento” realizada pela Crítica da razão pura, revertermos aos problemas e às conclu­ sões da filosofia do lluminismo. Mas se alguma vez tivesse de ser escrita essa “história da razão pura”, da qual Kant nos ofe­ receu um esboço na última seção da Crítica da razão, ela não poderia deixar de reservar um lugar de destaque para aquelai época que foi a primeira a descobrir e a afirmar apaixonada-, mente a autonomia da Razão, e a impô-la em todos os domínios] Ifàv id a do espírito. Aliás, é de uma evidência cristalina que| nenhuma obra deTíistória da filosofia pode ser pensada e rea­ lizada numa perspectiva puramente histórica: toda a volta ao passado da filosofia constitui um ato de conscientização e de autocrítica filosófica. Ora, mais do que nunca, parece-me já ser tempo de que a nossa época realize esse retorno autocrítico sobre si mesma e se veja no límpido espelho que a época do lluminismo lhe oferece. Muitas coisas que hoje consideramos ser fruto do “progresso” perderão seu brilho, sem dúvida, nesse espelho; muitas coisas de que nos vangloriamos parecerão insó­ litas e caricaturais. E seria julgar apressadamente e iludir-nos perigosamente atribuir todas essas deformidades a defeitos do espelho, em vez de ir procurar-lhes a causa em outro lugar. O Sapere aude!, que é, segundo Kant, a “divisa do lluminismo”, também vale para a nossa própria atitude histórica a seu res­ peito. Cumpre deixar de lado os insultos e as atitudes de sobran­ ceria. Tenhamos a coragem de nos medir por esse pensamento, de nos explicar intimamente com ele. O século que viu e glori­ ficou na razão e na ciência “a suprema faculdade do homem” não pode estar para nós inteiramente superado; devemos encon­ trar o meio de descobrir sua verdadeira fisionomia e, sobretudo, de libertar as forças profundas que produziram e modelaram essa fisionomia.

Não podemos encerrar este prefácio sem agradecer uma vez mais ao professor Fritz Medicus, editor dos “Grundrisses der philosophischen Wissenschaften”, a quem devemos a pri­ meira sugestão para este livro e que teve a gentileza de nos ajudar a reler as provas. Ernst Cassirer Hamburgo, outubro de 1932.

SUMÁRIO I

I. O PENSAMENTO DA ERA DO ILUMINISMO 19 II. NATUREZA E CIÊNCIA DA NATUREZA NA FILOSOFIA DO ILU M IN ISM O ..................... 65 III. PSICOLOGIA E TEORIA DO CONHECI­ MENTO ........................................................................... 135 IV. A IDÉIA DE RELIGIÃO ......................................... O dogma do pecado original e o problema da teodicéia ........................................................................... A idéia de tolerância e a fundação da "religião natural" ........................................................................... Religião e h istó ria.........................................................

189 193 220 246

V. A CONQUISTA DO MUNDO HISTÓRICO . . . . 267 VI. O DIREITO, O ESTADO E A SOCIEDADE . . . 315 A idéia de direito e o princípio dos direitos ina­ lienáveis ........................................................................... 315 A idéia de contrato e o método das ciências sociais 337

VII. OS PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA ESTÉ­ TICA ................................................................................ 367 O "século da crítica” .................................................. 367 A estética clássica e o problema da objetividade do b e lo ............................................................................. 371 O problema do gosto e a conversão ao subjetivismo 394 A estética da intuição e o problema do gênio . . . . 411 Entendimento e imaginação. Gottsched e os suíços 433 Fundação da estética sistemática — Baumgarten 441

/

O PENSAMENTO DA ERA DO ILUMINISMO

1

D’Alembert iniciou os seus Elementos de filosofia com um painel onde procura definir a situação do espírito humano em meados do século XVIII. No decorrer dos três últimos séculos, começa ele por assinalar, foi possível observar que em meados de cada um desses séculos ocorreu sempre uma transformação importante no conjunto da vida intelectual. Assim, em meados do seculo AVTTnicia-se o movimento literário e intelectual da Renascença; em meados do século XVI, a Reforma religiosa está no apogeu; e no século XVII é a vitória da filosofia carte­ siana que provoca uma revolução radical na imagem do mundo Sêrá possível descortinar um movimento análogo no século XVIII e determinar sua direção e seu alcance? “ Por muito pouca atenção que se preste” — prossegue D’Alembert — “aos meados do século em que vivemos, aos acontecimentos que nos agitam ou que, pelo menos, nos ocupam, aos nossos costumes, às nossas r^ras e até às nossas conversas, é muito difícil passar despercebida a extraordinária mudança que, sob múltiplos as­ pectos, ocorreu em nossas idéias; mudança essa que, por sua

19

rapidez, parece prometer-nos uma ainda maior. Cabe ao tempo fixar o objeto, a natureza e os limites dessa revolução, cujos inconvenientes e cujas vantagens a nossa posteridade conhecerá melhor do que nós. O nosso século é chamado o Século da Filo­ sofia por excelência. Se examinarmos sem prevenção o estado atual dos nossos conhecimentos, não se pode deixar de convir que a filosofia registrou grandes progressos entre nós. A ciência da nãfüréza adquire a cada dia novas riquezas; ãTgeumetria. au ampliar os seus limites, transportou^ seu TacEo para as regiões da física que se encontravam mais perto dela; o verdadeiro sis­ tema do mundo ficou conhecido, foi desenvolvido e aperfeiçoa­ do. Desde a Terra até SatuFriõ, desde a história dos céus à dos insetos, a ciência da natureza mudou_de feições. Com ela, quase todas as outras ciências adquiriram novaF formas e, com efeito, era imprescindível que o fizessem. O estudo da natureza parçce ser por si mesmo frio e tranqüilo, porque a satisfação que ele ocasiona é um sentimento uniforme, contínuo e sem abalos, e porque os prazeres, para serem vivos, devem ser separados por intervalos e marcados por acessos. Não obstante, a invenção e o uso de um novo método de filosofar, a espécie de entusiasmo que acompanha as descobertas, uma certa elevação de idéias que em nós suscita o espetáculo do universo, todas essas causas tive­ ram que excitar nos espíritos uma viva fermentação. Essa fer­ mentação, agindo em todos os sentidos por sua natureza, envol­ veu com uma espécie de violência tudo o que se lhe deparou, como um rio que tivesse rompido seus diques. Assim, princípios das ciências profundas até os fundamentos da Reve­ lação, desde a metafísica até as questões de gosto, desde a mú­ sica à moral, desde as disputas escolásticas dos teólogos até os objetos de comércio, desde os direitos dos príncipes aos direitos dos povos, desde a lei natural até as leis arbitrárias das nações, numa palavra, desde as questões que mais profundamente nos tocam até as que só superficialmente nos interessam, tudo foi

20

discutido, analisado e, no mínimo, agitado. Uma nova luz sobre alguns objetos, uma nova obscuridade sobre vários, foi o fruto ou a conseqüência dessa efervescência geral dos espíritos: tal como o efeito do fluxo e do refluxo do oceano é carregar para as praias alguns materiais e delas afastar outros.” 1 O homem que usa essa linguagem é um dos cientistas mais respeitáveis do seu tempo, um de seus porta-vozes intelectuais. Suas palavras fornecem-nos, portanto, uma idéia da índole e da direção de toda a vida intelectual de sua época. Ora, a época em que viveu D'Alembert sentiu-se empolgada por um movi­ mento pujante 'èTTõngiTde abandonar-se ã~esse müvirnéntD, empenhoiísê em compreender-lhe a origem e o destinoTÕ connech mento de seus próprios atos, a autoconsciência e a previsão intelectual, eis o que lhe parecia ser o verdadeiro sentido do pensamento, de um modo geral, e a tarefa essencial que, acre­ ditava ele, a história lhe impunha. Não se trata apenas de que o pensamento se esforça por alcançar novas metas, desconheci­ das até então; é que quer agora saber para onde o seu curso o leva e quer, sobretudo, dirigir~çT seu próprio curso^ Aborda o mundo com a nova alegria de descobrir e com um novo espí­ rito de descoberta; todos os dias aguarda novas e infalíveis reve­ lações. Contudo, a sua sede de saber, a sua curiosidade intelec­ tual não se voltam somente para o mundo. Q pensamento sente-se ainda mais profundamente conquistado, níàís apaixonadamente comovido por uma outra questão: a de sua própria natureza e do seu próprio^poder. Não é por isso que ele se~ afasia incessan­ temente d
21

que pelo seu modo de ação. Não contente de usufruir os seus resultados, ela_explora a forma dessa atividade produtora para tentar analisá-la. É nesse sentido que se apresenta, para o con­ junto do século XVIII, o problema do “progresso” intelectual. Não existe um século que tenha sido tão profundamente penetrado e empolgado pela idéia de progresso intelectual quanto, o Século das Luzes. Equivocar-se-iam, porem, s86rê~o sentido essencial dêisa idéia, aqueles que tomassem “progresso” num sentido quantitativo como uma simples extensão do ja b e r, como um prógressus in indefinitum. A par da ampliação quantitativa en­ contra-se sempre uma determinação qualitativa; à constante ex­ tensão do_6aBer para alénTdè sua periferia corresponde um regresso sempre mais consciente e mais pronunciado ao centro próprio e característico da expansão/^Se se busca a multipliciIdade, é para aí encontrar, a certfffi da unidade. Dedica-se à extensão do saber com o sentimeéto, com a segurança de que ela não vai enfraquecer e diluir o espírito mas, pelo contrário, vai reanimá-lo e “concentrá-lo”. Percebe-se que os diversos ca­ minhos que o espírito deve percorrer, franqueando-lhe a reali­ dade como um todo a fim de lhe traçar o quadro completo, só aparentemente são caminhos divergentes. Objetivamente consi­ derados, os caminhos divergem, mas essa divergência nada tem de dispersão. Todas as energias do espíritõ~permãnecemTigadas ã~um^êÃtíò motor comum. À diversidade, a variedade das for­ mas é tão-só o desenvolvimento e o desdobramento de uma força criadora única, de natureza homogênea. Quando o século XVIII quer designar essa força, sintetizar numa palavra a sua natureza, recorre ao nome de “razão”. A “razão” é o ponto de encontro e o centro de expansâo^o séculõ/ a éxpresslo de todõs~os seus desejos, dê todos os seus esforços, de^seu querér gnçjjPsuas realizações. Cuidemos, porém, ~dè nffo cometer o erro de nos satisftfzermosr precipitadamente com essa característica, de acreditar­ mos que o historiador do século XVIII vai encontrar aí o ponto

22

de partida e de chegada de suas investigações. O que foi aos olhos do século o seu programa e a sua realização é para o his­ toriador apenas o começo, o início de seu trabalho; onde se acreditou encontrar então uma resposta, apresenta-se a verda­ deira questão. Q_século XVIII está impregnado de fé na unidade e imutabilidade da razão. A razão é una e idêntica para todo o indivíduo-pensante, parã toda a nação, toda a~épõcã, tü35"a culr tura. De todas as variações dos dogmas religiosos, das máximas e convicções morais, das idéias e dos julgamentos teóricos, des­ taca-se um conteúdo firme e imutável, consistente, e sua unidade e sua consistênciasão^justamente a expressão da essência própria da razão. Para nós — se bem que estejamos de acordo, no plano das idéias e dos fatos, com determinadas teses da filosofia do Iluminismo — a palavra “razão” deixou de ser há muito tempo uma palavra simples e unívocaT Assim que recorremos a esse vocábulo, sua história logo revive em nós e ficamos cada vez mais conscientes da gravidadejia s mudanças de sentida Que ele sofreu no transcurso dessa história. Nessas condições, sempre nos acode ao espírito como a expressão de “razão” ou a de “racionalismo” tém pouco peso, mesmo no sentido de uma ca­ racterística puramente histórica. Tanto isso é verdade que o conceito genérico como tal permaneceu vago e indeterminado até o momento de receber uma differentia speciflca, um senudo verdadeiramente preciso e determinado. Onde procurar, para o século XVIII, essa diferenva específica? Se tanto se comprazia em autodenominar-se um “século da razão” e um “século filo­ sófico”, onde encontrar o traço característico e distintivo dessa designação? Em que sentido devemos tomar aqui a “filosofia”? Quais as tarefas particulares que lhe são atribuídas, de que re­ cursos dispõe para as levar a cabo e para estabelecer sobre ali­ cerces seguros uma doutrina do mundo e do homem? Se se comparar a resposta que o século XVIII deu a essas questões com as que já encontrou prontas no começo de suas

23

atividades intelectuais, o que impressiona de imediato é uma diferença negativa. O século XVII via na construção de “siste­ mas filosóficos” a tarefa própria do conhecimento filosófico. Tára quêTBe^parecesse verdadeiramente “filosófico”, era preciso que o saber tivesse alcançado e estabelecido com firmeza a idéia primordial de um ser supremo e de uma^erteza sugrema intui­ tivamente apfeêndida, e que tivesse transmitido a luz dessa certeza a todíTcT ser € a todo o saber dela deduzido. É o que efetivamente ocorre quando, pelo método da demonstração e da deãuçaó rigorosa, são mediatamente ligadas à certeza primordial outras proposições, a fim de se percorrer, por meio dessa conexãcTmédiata, toda a cadeia do cognoscível e de a encerrar sobre si mesma/Nenhum elo dessa cadeia pode sei^separado do con­ junto, nenhum deles se expRcíTnem se conclui por^sj~mèsmo. A única explicação de que é suscetível consiste em siia “dedu­ ção” rigorosa e sistemática, a qual o reconduz à causa primeira do ser e da certeza, permitindo assim avaliar a distância a que se encontra em relação a essa causa primeira e ao número de ^los intermediários que o separam d a q u e l a s é c u l o XVIII renunciou a esse modo e a essa forma de “dedução”, de deriva­ rão^ e 3e explicação sistemática. Não rivaliza, em absoluto, com Õescartes e Malebranche, com Leibniz e Spinoza, no tocante ao rigor e à autonomia do método. Busca uma outra concepção da verdade e da “filosofia” que confere a uma e a"õãtrã mais amplitude, uma forma dotada de mais liberdade^ e mobilidade, mais concreta e mais viva. A_Era do Iluminismo não outorga esse ideal de pensamento às doutrinas filosóficas do passadQ^ prefere formá-lo tomando por exemplo a física contemporâneat.éujo mo­ delo tem sob seus olhos. Em vez do Discursodo -método de Des­ cartes, apóia-se nas Regulae philosophandi de Newton para re­ solver o problema central do método da filosofia. E essa solução logo encaminha a investigação para uma direção inteiramente diferente. A via newtoniana não é a da dedução pura mas a da

24

análise. Newton não começa por definir certos princípios, certos conceitos e axiomas universais, a fim de percorrer passo a passo, por meio de raciocínios abstratos, o caminho que leva ao conhe­ cimento do particular, dos simples “fatos”. É na direção inversa que se move seu pensamento. Os fenômenos são o dado; os princípios^ o que é preciso descobrir. Se os princípios são, com efeito, o ngÓTSQov ffj tpüasi , os fenômenos devem permanecer o nqixeqov tiqòq Jjfiac . É por isso que o verdadeiro método da física jamais poderá consistir em partir de algum dado arbitrariamente admitido (de um willkiirlich-an-f genommenen Ansatzpunkt), de uma “hipótese”, para desenvolver ãté o'fim as conclusões que aí estão implícitas. Tais hipóteses são imaginadas ao arbítrio de cada um, modificadas e transfor­ madas da mesma maneira; logicamente consideradas, todas se equivalem, e só lograremos sair dessa equivalência e dessa indi- ^ ferença racional para atingir a verdade, a determinação física, se procurarmos alhures os nossos critérios. Um ponto de partida^ verdadeiramente unívoco não nos podè ser fornecido pela abstra ção e “definição” física mas somente pe^ experiência e observaçãoT^Não se trata, em absolutu, tanto para Newton quanto 'parirseus discípulos e sucessores, de afirmar uma oposição entre "experiência'1 e “pensamento”, de abrir um abismo entre o do- , tnínio do pensamento puro e o dos “simples fatos”. Não é ques­ tão de unTconflito de validade, de um fluãlismo metódico entre as ‘relations of ideas'\ de uma parte, e a “matter of fact”, de outra parte, como o que encontroiT sua expressão mais nítida na Enquiry concerning human understanding, de Hume. O newto-nismo não pressupõe, mmn nhjgfp p rrmrTTrpQ inviolável da investiga^ãa^enao a~£raem e a legalidade perfeíta^da realidade ’e mpírica. Enlrelanlü, èssEHegalidadr ‘jigftificgf que os fatos. como tais, não s^o um material simples, uma incoerente massa de detalhes, mas/que se pode demonstrar, nos fatos e pelos fatos, I a existência de umajorma qateTTs peneira V os-uns/Essa forma

25

r,DrS5Ttiffl-c^_crnrlr> **t/l±*™n*ic(\n\‘,nte determiaadaâ^ s tniturada e articulflfia secundo o número e a medida. Mas é justamente essa articulação que não pode ser objeto de uma antecipação con­ ceptual; ela deve ser encontrada e demonstrada nos fatos. O encaminhamento do pensamento nãc^vai, por conseguinte, dos conceitos e dos axiomas para os fenômenos, mas o inverso/A Observação é~ o Saturn; ò~princTpio, a je i, q_guaesitum. É esse novo programa metódicc deixa sua marca em todo o pensarnento do século XVII esprit systématique nem por isso é subestimado ou marginalizado; mas foi cuidadosamente distin­ guido do esprit de système./Toda a teoria do conhecimento se empenha em confirmar^issa distinção. D'Alembert, no “Discurso preliminar” da Enciclopédia, situa-a no centro do debate, e o Tratado dos sistemas, de Condillac, dá a essa idéia sua forma explícita e sua justificação. Tenta o autor, nessa obra, aplicar a crítica histórica aos grandes sistemas do século XVII, procurando mostrar a causa de seus respectivos fracassos: em vez de se prender aos fatos e de deixar que os conceitos se formem no contato com aqueles, tais sistemas elevaram unilateralmente ao status de dogma o primeiro conceito que lhes ocorreu. Em con­ traste com esse “espírito de sistema”, cumpre doravante estabeTecer novos vínculos entre o espírito “positivo” e o espírito “ra­ cional”. Não T que elesestêjam , em momento nenhum, em aposição conflitante, mas só se conseguirá obter uma verdadeira síntese entre eles se se respeitar uma autêntica via de mediação. N5o se busque, põrtantoTVõrdem, a legalidade, a “razão”, como uma regra “anterior” aos fenômenos, concebível e exprimível a priori: que se demonstre a razão nos próprios fenômenos como a forma de sua ligação interna e de'seu éncadèamento imanente. Que não se pretenda antecipar a razãõ""sob~a fofmã de um sis­ tema fechado: há que deixá-la desenvolver-se a longo prazo, pelo conhecimento crescente dòs~fãfõs~, e impor-se pelos progressos em sua clareza e em sua perfeição. A lógica que todo o mundo

26

busca e que todo o mundo está persuadido de encontrar, em todo o caso, no caminho da ciência, não é a lógica escolástica nem uma logica de concepção puramente matemática ló­ gica dos fatos”, õue õ êspínto se abandone, pois, ato d a á^riqüeza dos fenômenos, que se meça continuamente por ela: longe de correr o risco de aí se perder, está seguro de encontrar nela sua verdade e sua própria dimensão. É assim que se estabelecerá a verdadeira reciprocidade, a verdadeira correlação de “sujeito" e'"objeto’\_de^yerdade” e “realidade” e que se produzirá entre esses termos a forma de “adequação**, de correspondência, que é i condição de todo o conhecimento científico. A conciliação do “positivo”je do “racional” não é uma exi­ gência puramente teóncaT essa síntese é um fim acessível, um ideal realizável: o pensamento setecentista vê aí a prova con­ creta, imediatamente convincente no curso que as ciências, desde o seu renascimento, efetivamente adotaram. Nos progressos da física, na sucessão das etapas percorridas por essa ciência, uma por uma, ele está inteiramente convencido de que tem, de certo modo, sob os olhos a realização do seu ideal. Pode acompanhar aí, com efeito, passo a passo, a marcha triunfal do espírito ana­ lítico moderno. Num intervalo de um século e meio, apenas, esse espírito acaba de submeter-se à totalidade do real, parece ter até realizado, enfim, o grande desígnio de unificar sob uma regra única e absolutamente universal toda a diversidade dos fenômenos naturais. E a fórmula cosmológica que se apresenta na lei newtoniana da atração universal não foi encontrada por acqso nem descoberta às apalpadelas: é um método rigoroso que dá suas provas nessa descoberta. Newton conclui o que Kepler e Galileu tinham começado: esses três nomes não evocam simplesmente as personalidades de grandes sábios, mas autên­ ticos símbolos, marcos im portantesdo conhecimento científico e do prõprio pensamento científico/Partindo da observação^õs

27

fenômenos celestes. Kepler leva_essa observação a um grau de rigor, de “exatidão” matemática que jamajs fora atingido antes dele. Graças a trabalhos de uma paciência infatigável, ele chega às leis que estabelecem a figura das trajetórias dos planetas e determinam a relação entre o período de revolução de cada pla­ neta e a sua distância do Sol. Mas essa observação dos fatos é apenas um primeiro passo. A tarefa que a mecânica de Galileu se impôs tem mais amplitude e maior alcance; a sua problemá­ tica penetra numa nova camada, mais profunda, da conceptualização em física. Com efeito, já não se trata de examinar um determinado setor dos fenôménõs da natureza, por muito vasto è importante que éleseja, mas de fundamentar universalmente a dinâmica, a teoria da naturézãjx)m o tal. iT não escapa a Galilêõ que a inJuiçao imediata danaturêza não está à altura de semelhante tarefa, que ela deve recorrer a outros Instrumentos xte conhecimento, a outras Funções intelectuilsTDs fenômenos da natureza oferecem-se à intuição na unidade de seus processos, como totalidades indivisíveis. Ela percebe-os como simples dados individuais; pode descrever em largos traços seu desenvolvi­ mento, mas essa forma de descrição não poderia substituir uma “explicação” verdadeira. Para explicar um fenômeno natural, não basta apresentá-lo em seu ser e em sua manefra
28

tos e depois reconstruindo-o a partir desses elementos é que se consegue compreendê-lo. Galileu dá um exemplo clássico desse procedimento na sua descoberta da trajetória parabólica dos corpos lançados no espaço. A forma dessa trajetória não podia ser diretamente' decifrada pela intuição nem aduzida de um grande número de observações separadas. A intuição fornecenos, é certo, alguns traçoa gerais: mostra-nos que a uma fase ascensional sucede uma fase de queda do corpo lançado etc., mas faltam sutileza, exatidão, rigor e precisão nessa determina­ ção. Só podemos chegar a uma concepção exata, verdadeiramente matemática, desse processo se relacionarmos esse fenômeno corii ãs condições particulares que o determinam, e considerarmos se­ paradamente cada um dos planos de determinação que nele se entrecruzam para procurar estabelecer a lei. É descoberta a lei da trajetória parabólica: o recrudescimento e o decréscimo de ve­ locidade explicam-se de modo rigoroso a partir do instante em que se consegue provar que o fenômeno balístico é um processo complexo cuja determinação depende de duas “forças”: a força de impulsão originária e a força de gravitação. Todo o desen­ volvimento ulterior da física está dado de antemão nesse sim­ ples exemplo como num modelo elementar; toda a estrutura do seu método já aí está implícita. A teoria de Newton conservou e confirmou todos os traços que aí já são nitidamente reconhecíveis. Ela está construída, com efeito, pelo cruzamento dos métodos de “resolução” e de "composição”. Tomando como ponto de partida as três leis de Kepler, a teoria newtoniana não se satisfaz em ler e interpretar essas leis como expressão de um simples estado fatual da obser­ vação; ela tenta, ademais, reconduzir esse estado de fato aos seus pressupostos, provar que ele é a conseqüência necessária da convergência de diversas condições. Em primeiro lugar, cum­ pre que cada um dos sistemas de condições seja explorado por si mesmo e que o seu modo de ação seja conhecido. Foi assim

29

que o fenômeno do movimento planetário, que Kepler vira como um todo, revelou ser uma formação complexa. A teoria newtoniana reduziu-o a dois tipos de lei fundamentais: à lei da queda livre e à lei do movimento centrífugo. Cada uma delas tinha sido estudada separadamente, e de maneira rigorosamente con­ clusiva, por Galileu e Huyghens: todo o problema consistia en­ tão em realizar a síntese das descobertas deles, reduzindo-as a um único princípio inteligível. A façanha de Newton está jus­ tamente na realização dessa síntese: consiste menos na descoberta de um fato desconhecido antes dele, na aquisição de um material inteiramente novo, do que no remaneiamentoAnteleciuãl operado na base do material empírico. Já não se trata mais de contemplar a estrutura do cosmo e sim, doravante, de a penetrar: ora, o íosm o só se abre para essa espécie de penetração quando suBTnefiflõ acT^pensamento matemático e aõ seu método analítico. Ao eriac^câmjD cálculo dos fluxos e o cálculo infinifesimãl, um instrumento universal a serviço desse programa, parece evidente que NewtõrTVLeibniz demonstraram, pela primeira'véz~ em ter­ mos de rigor absoluto, a “inteligibilidade dá“natureza”. O cami­ nho do conhecimento da nãlurezjTdesenrotã-sé^indefinidamente, mas sua direção permanece fixada com firmeza, porquanto o seu ponto de partida e o seu destino não são exclusivamente determinados pela natureza dos objetos mas também pela forma e pelas fqiçafi^específicas da razão. ~ A filosofia dosScülo^C YI iT es tá, em todas-as-suas_partes, vinculada ao exemplo privilegiado, ao paradigma metodológico da física newfõniana; mas logo sua aplicação foi generalizada. Não se contenta em compreender a análise como a grande fer­ ramenta intelectual do conhecimento físico-matemático e vê aí o instrumento necessário e indispensável de todo o pensamento em geral. Em meados do século, o triunfo de tal concepção já está assegurado, Se é verdade que certos pensadores e ^certas escolas divergem em seus resultados, há, não obstante, uma

30

concordância unânime quanto a essas premissas da teoria do conhecimento. O Tratado de metafísica, de Voltaire; o “Discurso preliminar” da Enciclopédia, dg_D’Alemberípp+s-fnvestigações sobre a clareza dos princípios da teologia e da moral, de Kant, falam a esse respeito a mesma linguagem. Todos proclaniám que o verdadeiro método da metafísica harmoniza-se, basicamente, com o que foi introduzido por Newton na física e proporcionou tão copiosos frutos. Voltaire declara que o homem que se desco­ nhece ao ponto de pretender penetrar a essência interior das coisas, conhecê-las na pureza do seu "em si” (An-Sich), não tarda em adquirir consciência do limite de suas faculdades: ele vê-se na posição de um cego que tivesse de julgar a natureza das cores. A benevolência da natureza colocou, porém, uma bengala nas mãos do cego, que é a análise. Munido dessa bengala ele vai poder abrir caminho entre as aparências, ser informado dos seus efeitos e de seu ordenamento, de nada mais necessitando para orientar-nos intelectualmente, para organizar sua vida e a ciência.2 “Ê claro que jamais se deve formular hipóteses; não se deve dizer: comecemos por inventar princípios com os quais trataremos de explicar tudo. Mas temos que dizer: façamos exa­ tamente a análise das coisas. Sempre que nos é impossível ter a ajuda da bússola da matemática e do farol da experiência e da física para guiar o nosso rumo, é mais do que certo que não podemos avançar um só passo.” Contudo, de posse desses dois instrumentos, vamos poder e devemos arriscar-nos no mar alto do saber. Bem entendido, devemos renunciar à esperança de arrancar alguma vez às coisas o seu segredo, de penetrar no ser absoluto da matéria ou da alma humana. Mas o “seio da natu­ reza” nos está francamente aberto se entendermos por isso a ordem e a legalidade empíricas. É nesse ponto central que vamos nos estabelecer a fim de, a partir daí, avançarmos em todas as direções. A potência da razão humana não está em romper os limites do mundo da experiência a fim de encontrar um caminho

31

de saída para o domínio da transcendência, mas em ensinar-nos a percorrer esse domínio empírico com toda a segurança e a habilitá-lo comodamente. Uma vez mais, manifesta-se aqui a mudança de significação característica que a idéia de razão so­ freu em relação ao pensamento do século XVII. Para os grandes sistemas metafísicos seiscentistas, para Descartes e Malebranche, para Spinoza e Leibniz, a razão é a região das “verdades eter­ nas", essas verdades que são comuns ao espírito humano e aõ jespínto divino. O que conhecemos e do que nos apercebemos à luz da razão é “em Deus”, portanto, que o vemos imediata­ mente :jcadajitojiaj*azãoassegura-n(^^ essência divina« franqueia-nos o acesso ao domínio do inteligível. do supra-sensível puro e simples. O século XVIII confere à razão um sentido diferente e mais modesto. Deixou de ser a soma de “idéias inatas”, anteriores a toda a experiência, que nos revela a essência absoluta das coisas. A razão define-se muito menos como uma possessão do que como uma forma de aquisição. Ela não é o erário, a tesouraria do espírito, onde a verdade é depo­ sitada como moeda sonante, mas o poder original e primitivo que nos leva a descobrir, a estabelecer e a consolidar a verdade. Essa operação de assegurar-se da verdade constitui o germe e a condição necessária de toda a certeza verificável. É nesse sen­ tido que todo o século XVIII concebe a razão. Não a tem em conta de um conteúdo determinado de conhecimentos, de princí­ pios, de verdades, preferindo considerá-la uma energia, uma força que só pode ser plenamente percebida em sua ação e em seus efeitos. A sua natureza e os seus poderes jamais podem ser plenamente aferidos por seus resultados; é à sua função que cumpre recorrer. E a sua função essencial consiste no poder de ligar e de desligar. A razão desliga o espírito de todos os fatos simples, de todos os dados simples, de todas as crenças basea­ das no testemunho da revelação, da tradição, da autoridade; só descansa depois que desmontou peça por peça, até seus últimos

32

elementos e seus últimos motivos, a crença e a “verdade pré-fa­ bricada”. Mas, após esse trabalho dissolvente, impõe-se de novo uma tarefa construtiva. Ê evidente que a razào não pode perma­ necer entre esses disjecta membra; deverá construir um novo edifício, uma verdadeira totalidade. Mas ao crian ela própria essa totalidade, ao levar as partes a constituírem o todo segundo a regra que ela própria promulgou, a razão assegura-se de um perfeito conhecimento da estrutura do edifício assim erigido. Ela compreende essa estrutura porque pode reproduzir-lhe a construção em sua totalidade e no encadeamento de seus mo­ mentos sucessivos. Ê mediante esse duplo movimento intelectual que a idéia de razão se concretiza plenamente: não como a idéia de um ser mas como a de um fazer. Essa convicção abre caminhos nos diversos domínios da cultura do século XVIII. A sentença famosa de Lessing, de que não se deve procurar o verdadeiro poder da razão na posse da verdade mas em sua aquisição, encontra por toda a parte seu paralelo na história das idéias do século XVIII. Montesquieu tenta dar uma justificação teórica geral para essa sede de sa­ ber inscrita na substância da alma humana, para essa infatigá­ vel curiosidade intelectual que nos impele de idéia para idéia, sem permitir que nos detenhamos jamais naquele pensamento que acabamos de atingir: “A nossa alma é feita para pensar, ou seja, para aperceber: ora, semelhante ser deve ser dotado de curiosidade, pois como todas as coisas estão numa cadeia ininterrupta, em que cada idéia precede uma e segue-se a uma outra não se pode gostar de ver uma sem ver uma outra.” A libido sciendi, que a dogmática teológica tinha banido e a que aplicara o ferrete ignominioso do orgulho intelectual, foi desse modo proclamada qualidade necessária da alma e como tal restabelecida em seus direito« naturais. A defesa, o reforço e a justificação desse pensamento são as finalidades essenciais que a cultura do século XVIII se atribuiu. Portanto ela não viu

33

sua tarefa principal na aquisição e ampliação de certos conhe­ cimentos positivos. No que se refere à própria Enciclopédia, que se converteu no arsenal de todos esses conhecimentos, essa ten­ dência fundamental manifesta-se igualmente sem ambigüidade. Diderot, o seu fundador, declara não ser sua intenção adquirir um mero acervo de conhecimentos mas provocar uma mutação no modo de p en sa rA Enciclopédia foi criada “pour changer la façon commune de penser'? A consciência dessa tarefa sensi­ biliza e agita todos os espíritos, suscitando neles um sentimento inteiramente novo de tensão interior. Até os mais moderados e os mais refletidos entre os pensadores verdadeiramente “cientí­ ficos” sentem-se impelidos para a frente, empolgados por esse movimento. Ainda não se atrevem a definir seus fins últimos, mas não podem escapar à sua potência e acreditam sentir que se avoluma nele, através dele, como que um novo futuro da humanidade. Por exemplo, Duelos escreveu em suas Considéra­ tions sur les moeurs de ce siècle: “Não sei se tenho uma opinião excessivamente benévola do meu século, mas parece-me haver uma certa fermentação universal [ . . . ] cujos progressos poderiam ser dirigidos e acelerados por uma educação bem entendida”. Pois o que se quer não é deixar-se muito simplesmente contami­ nar pela efervescência geral e empolgar pelas forças em ação. Quer-se, outrossim, compreendê-las e dominá-las à medida que se adquire essa compreensão. Não se quer mergulhar apenas em redemoinhos e turbilhões de idéias novas, mas assumir o leme e guiar o curso do espírito para metas definidas. O primeiro passo nesse caminho foi, para o século XVIII, partir em busca de uma fronteira determinada entre o espírito matemático e o espírito filosófico. A tarefa era difícil e com­ plicada ainda por uma dialética interna, porquanto se tratava de satisfazer igualmente a duas exigências diferentes, em apa­ rente oposição. Não se devia, obviamente, quebrar o vínculo entre matemática e filosofia, nem mesmo afrouxá-lo: não eram

34

as matemáticas o “orgulho da razão humana”, sua pedra de toque, sua caução e fiança? Mas, por outro lado, via-se com crescente clareza que o poder inerente às matemáticas deparavase com certos limites: elas são, sem dúvida, o exemplo e o mo­ delo da razão, mas sem lograr, no entanto, dominá-la, esgotar-lhe o conteúdo. Assim se estabelece um curioso processo intelectual que parece acionado por forças diametralmente opostas. O pen­ samento filosófico parece querer, de um só movimento, liber­ tar-se das matemáticas e vincular-se-lhes, emancipar-se do seu domínio exclusivo, tentando simultaneamente, digamos, não re­ chaçar ou contestar essa autoridade mas justificá-la por um outro lado. Ele ganha em ambos os planos, no sentido de que a análise, que constitui a forma essencial do pensamento matemá­ tico dos tempos modernos se reconhecida em sua significação profunda, extravasa largamente, por sua própria função univer­ sal, os limites da matemática pura, da grandeza e do número. O tratado de Pascal, Do espírito geométrico, dedica-se a deter­ minar cuidadosamente os limites das ciências matemáticas da natureza e da ciência do espírito, prenúncio de que já no século XVII se percebia com nitidez o deflagrar iminente desse movi­ mento. Nessa obra, Pascal, opõe o “espírito geométrico” ao^esgrit j fin” para mostrar como eles se distinguem um do outro em suasj ^fêspectivas- estruturas e usos. Mas essa sevenTdelímTfação não tardará em ser questionada de novo. Fontenelle, por exemplo, no prefácio de seu livro De Vutilité des mathématiques et de la psysique,4 declara que "o espírito geométrico não está tão exclu­ sivamente ligado à geometria que não possa separar-se dela e transportar-se para outros domínios. Uma obra de^moral, de po­ lítica, de crítica, até mesmo uma obra de eloqüência jamais será, ceteris paribus, tão bela e tão perfeita quanto se fosse concebida num espírito geométrico”. O século XVIII dedica-se a esse pro­ blema e resolve-o no sentido dê~qi!BO "espírito geométrico”, se o entendermos como o espírito da análise^ pura, é de aplicação

35

absolutamente ilimitada e não se encontra vinculado a nenhuma problemática particular. Tenta fornecer a prova dessa tese em duas direções diferentes. A análise, cuja potência só fora até então experimentada no domínio do número e da grandeza, é agora aplicada, por um lado, no plano do psíquico, e por outro, no plano do social. Trata-se, nos dois casos, de provar que uma nova inteligibilidade se revela e que um novo domínio de grande importância tornou-se acessível à autoridade da razão, desde que esta aprenda a submetê-lo ao seu método específico, o método da relação analítica e da reconstrução sintética. No tocante, em primeiro lugar, à realidade psíquica, ela parece, pela maneira como se nos oferece concretamente, pela experiência imediata que temos dela, zombar de semelhante tentativa. Apresenta-senos com uma riqueza ilimitada, numa diversidade infinita. Não tem um só momento, uma só de suas formas, que sejam idênti­ cos aos outros; nenhum dos seus conteúdos é jamais reapresentado da mesma maneira. Na corrente do devir psíquico, em seu incessante fluxo, não há duas ondas que tenham uma só e mesma forma; cada uma como que jorra do nada, única e sem volta, e ameaça logo mergulhar de novo no nada. Contudo, segundo a concepção dominante da psicologia do século XVIII, essa di­ versidade perfeita, essa heterogeneidade, essa fluidez do con­ teúdo psíquico, é apenas aparente. Um olhar mais penetrante reconhece, sob a mutabilidade quase desenfreada do psíquico, a base sólida, os elementos estáveis e consistentes. É tarefa da ciência trazer para a luz esse elementos que escapam ao conhe­ cimento imediato para colocá-los sob os nossos olhos, clara­ mente determinados e nitidamente distintos. Também aí não existe multiplicidade e diversidade que não se reduza, em defi­ nitivo, a uma soma de unidades, nenhum devir que não repouse, em última instância, num Ser consistente. Desde o momento em que se passa das formas psíquicas para as suas fontes e os seus princípios essa unidade e essa relativa simplicidade revelam-se

36

por toda a parte. Nessa afirmação, a psicologia do século XVIII dá ainda um passo mais além das posições de Locke, seu mestre e guia. Contentara-se Locke em pôr em evidência duas fontes diferentes da vida mental: a par da “sensação”, ele mantinha a “reflexão” como forma autônoma e irredutível. Mas os seus discípulos e sucessores vão tentar eliminar esse dualismo por diversos meios e impor um fundamento estritamente “monístico”. Berkeley e Hume condensam “sensação” e “reflexão” no termo único de "percepção", procurando mostrar que essa expressão esgota tudo o que nos é dado como experiência interna ou exter­ na, como objeto da natureza e como conteúdo do próprio eu. Quanto a Condillac, acredita ele que o seu verdadeiro mérito pessoal, que o progresso essencial que ele fez a psicologia reali­ zar em relação a Locke, consiste em ter conservado o método geral ensinado pelo mestre mas estendendo-o ao novo domínio dos fatos elementares da alma. A arte analítica de Locke afirma-se na decomposição das idéias, mas também se esgota nessa decomposição. Ele tende a provar que toda a representação, por complexa que seja, é construída com os materiais da perpepção sensorial ou do sentido íntimo, e mostra como esses ma­ teriais devem combinar-se a fim de produzir as diversas formas de objetos psíquicos. Mas, objeta Condillac, acontece que Locke deteve-se nessa decomposição. Seu comedimento não visou mais além dessa análise, em vez de estender-se ao conjunto da vida e da atividade da alma, em vez de apurar a origem das diversas operações psíquicas. Ora, nessa direção abre-se à exploração um domínio ainda muito pouco explorado e de uma riqueza imensa. A par dos simples dados da visão, da au­ dição, do tato, da cinestesia, do paladar e do olfato, Locke deixou subsistir, como totalidades originais e irredutíveis, as diversas classes de atividades psíquicas. A atenção e a com­ paração, o discernimento e a combinação, o desejo e a volição: cada um desses fatos vale por si só, como um ato autônomo

37

que só se encontra e se demonstra na experiência imediata, e não se deixa reduzir a nenhum outro. Mas assim é, no fundo, o método de dedução, em seu conjunto, que se vê privado de seus frutos e de seu verdadeiro rendimento. Tanto depois como antes dessa diligência, o ser psíquico apresenta-se-nos como uma diversidade irredutível que é perfeitamente possível descrever em sua particularidade, mas não se deixa explicar e deduzir a partir dessas qualidades originárias. Se se quiser tomar verda­ deiramente a sério essa dedução, é necessário que se recorra, para o conjunto das operações do espírito, à máxima que Locke fizera sua no domínio apenas das idéias. É preciso mostrar para todo esse conjunto que o pretenso “imediatismo” não passa de aparência, que ele não se sustenta sob o olhar penetrante da análise científica. Os atos singulares do espírito, cada um deles em separado, não constituem, de maneira nenhuma, dados ori­ ginais, mas resultados e produtos. Para compreender a sua cons­ tituição, para reconhecer a sua verdadeira natureza, é necessário acompanhar sua gênese, observar passo a passo como desperta na alma, a partir de simples dados sensoriais que a afetam, a faculdade de identificar esses dados, de os comparar, distin­ guir, abstrair e combinar. Foi essa a tarefa que o Tratado das sensações de Condillac propôs-se a realizar. Parece que o método analítico obtém aqui um novo triunfo, em nada inferior às suas proezas no domínio das ciências naturais, da explicação cientí­ fica do mundo material. A realidade material e a realidade psí­ quica estão doravante reduzidas, por assim dizer, ao mesmo denominador: ambas são construídas com os mesmos elementos, associados de acordo com as mesmas leis.5 Mas, a par dessas duas realidades, existe uma outra que não pode continuar sendo considerada um simples dado e cuja origem deve ser explorada, único meio de submetê-la, por sua vez, à autoridade da lei e da razão. Trata-se daquela ordem de coisas que se nos manifesta pela existência do Estado e da socie-

38

dade. É também uma realidade em cujo seio nasce o homem, que ele não cria nem organiza, com a qual, muito simplesmen­ te, se defronta; e tudo o que se espera do homem, tudo o que se lhe exige, é que se adapte a essas formas preexistentes. Mas a anuência e a obediência passiva também têm aqui seus limites. A faculdade de pensar, assim que é despertada no homem, fá-lo erguer-se incansavelmente contra essa espécie de realidade. A sociedade é intimada a comparecer perante o tribunal da razão, interrogada sobre a legitimidade de seus títulos, sobre os funda­ mentos de sua verdade e de sua validade. E, por esse procedi­ mento, o ser social, por sua vez, deve condescender em deixar-se tratar como uma realidade física que o pensamento esforça-se por conhecer. Institui-se de novo, em primeiro lugar, a divisão em partes componentes: considera-se a vontade geral do Estado como se fosse constituída de vontades particulares, como se fosse nascida de sua união. Somente por meio desse pressuposto fun­ damental é que é possível fazer do Estado um “corpo”, a fim de submetê-lo ao mesmo método que deu suas provas na desco­ berta das leis universais do mundo material. Hobbes precedeu o século XVIII nesse caminho. O fundamento e o princípio de sua teoria política, a tese segundo a qual o Estado é um “corpo”, têm precisamente essa significação: os procedimentos do pensa­ mento que nos levam ao conhecimento exato da natureza dos corpos físicos são-lhe igualmente aplicáveis sem restrição. Por­ tanto, o que Hobbes diz do pensamento em geral que é um “cálculo”, que esse cálculo consiste em adicionar e subtrair,*, vale igualmente para todo o pensamento político. Esse pensa­ mento também deve começar, portanto, por desfazer o vínculo que une as vontades particulares, a fim de o reatar de novo à j sua maneira e pelo seu próprio método. É assim que Hobbes dissolve o status civilis no status naturalis, que suspende em pensamento o vínculo existente entre as vontades individuais para deixar apenas subsistir seu antagonismo radical, a “guerra

39

de todos contra todos". Mas é precisamente a partir dessa ne­ gação que será gerado e edificado em seguida o conteúdo posi­ tivo da lei civil em sua validade incondicional e ilimitada. A gênese da vontade do Estado pela forma do contrato impõe-se como a única que permite reconhecer-lhe o conteúdo e estabe­ lecer-lhe os fundamentos. É o vínculo que liga a filosofia da natureza de Hobbes à sua doutrina política: uma e outra são duas aplicações diferentes do seu pensamento lógico fundamen­ tal por meio do qual o conhecimento humano só compreende verdadeiramente o que ele gera a partir de seus elementos. Toda a conceituação válida, toda a definição completa e perfeita deve ter aí seu ponto de partida: só pode ser uma definição "causal”. A filosofia é concebida, em sua totalidade, como uma soma de definições causais desse gênero: ela nada mais é do que o conhe­ cimento completo dos efeitos por suas causas, dos resultados derivados pela totalidade dos meios e das condições que os produzem. A filosofia política e social do século XVIII não aceitou, de um modo geral, sem restrições o conteúdo da doutrina de Hobbes, mas foi profunda e duradouramente influenciada por sua forma. Alicerçou-se na teoria do contrato, cujos pressupos­ tos fundamentais foi buscar no pensamento antigo e medieval; mas, ao mesmo tempo, aplica a esses pressupostos desenvolvi­ mentos e modificações característicos da influência exercida sobre ela pela imagem do mundo decorrente das ciências na­ turais da época. Também nesse domínio se desenha com nitidez a vitória do método de “resolução” e de “composição”. A socio­ logia constitui-se à imagem da física e da psicologia analítica. O seu método, explica por exemplo Condillac no seu Tratado dos sistemas, consiste em ensinar-nos a reconhecer na sociedade um “corpo artificial” composto de partes que exercem umas sobre as outras uma influência recíproca. É necessário organizar o conjunto desse corpo de tal maneira que seja impossível a

40

uma classe de cidadãos usar os privilégios que desfrutariam para destruir o equilíbrio e a harmonia do todo, e que, em contra­ partida, todos os interesses particulares sirvam ao bem geral e lhe estejam subordinados.8^ Nessa formulação, um problema de sociolõgiãe de política é, de certo modo, transformado num problema de estadismo. O espírito das leis de Montesquieu vis­ lumbra igualmente o essencial de sua tarefa nessa transforma­ ção. Montesquieu não se propôs apenas a descrever as formas e os tfP&s de constituições — despotismo, monarquia constitu­ cional, constitOlçfo republicana — e expor empiricamente sua maneira de ser. Sua ambição era mais alta: reconstruir esses regimes políticos a partir das forças que os constituem. É ne­ cessário conhecer essas forças para fazê-las atingir sua verda­ deira meta, para mostrar de que maneira e por que meios elas podem ser utilizadas com vistas à instauração de uma constitui­ ção que realize a exigência da maior liberdade possível. Se­ gundo a demonstração de Montesquieu, uma tal liberdade só é possível num único caso: quando toda e qualquer força parti­ cular é limitada e restringida por uma força oposta. A célebre doutrina da “divisão dos poderes” nada mais é do que o desen­ volvimento conseqüente e a aplicação concreta desse pensamen­ to fundamental. Montesquieu quer mudar o equilíbrio instável que rege e caracteriza as formas imperfeitas de Estado, conver­ tendo-o num equilíbrio estático; ele quer mostrar que ligações cumpre estabelecer entre as forças particulares para que ne­ nhuma delas chegue a sobrepujar as outras, para que todas, justa­ mente por que se equilibram de modo recíproco, deixem à liberdade o mais vasto campo possível. O ideal que a doutrina política de Montesquieu descreve é, por conseguinte, o ideal de um “governo misto” que ofereça uma garantia contra o risco de uma recaída no despotismo, a saber, que a forma de mistura seja tão sábia e tão prudentemente calculada que a irrupção de uma força de um lado deflagre incontinenti o aparecimento de

41

uma força oposta àquela do outro lado, de modo que o equilí­ brio procurado restabeleça-se por si mesmo. Montesquieu tem a certeza, ao considerar as coisas desse modo, de que elaborou um sólido esquema intelectual que lhe permitirá ordenar e con­ trolar a infinita multiplicidade e diversidade de formas de Estado empiricamente existentes. Esse ordenamento e essa formulação de princípios fundamentais constituem seu objetivo essencial. “Apresentei os princípios”, assim declara ele no prefácio de O espírito das leist “e vi os casos particulares submeterem-se a eles como por si mesmos, as histórias de todas as nações serem apenas seqüências e cada lei particular ligada a outra lei, ou depender de outra mais geral”. O método da razão é, portanto, nesse domínio, exatamente o mesmo que nas ciências da natu­ reza e no conhecimento psicológico. Consiste em partir de fatos solidamente estabelecidos pela observação mas em não se ater, por certo, a esses simples fatos como tais: não basta que os fatos estejam “ao lado” uns dos outros, é preciso que eles se encaixem uns “nos” outros, que a simples coexistência se revele, quando tudo foi bem apurado, como dependência, e a forma de agregado converta-se em forma de sistema. Essa forma sistemá­ tica não pode, evidentemente, ser imposta aos fatos desde fora; é preciso, isso sim, que provenha deles próprios. Os “princí­ pios” que devemos investigar por toda a parte, e sem os quais será impossível assegurar um conhecimento em qualquer domí­ nio, não são tais ou tais pontos de partida arbitrariamente esco­ lhidos pelo pensamento e impostos à experiência concreta para remodelá-la. São condições gerais a que só podemos ser con­ duzidos por uma análise completa do dado. O caminho pelo qual o pensamento deve enveredar conduz, portanto, seja em física como em psicologia e em política, do particular para o geral, processo que, no entanto, seria impossível se todo o particular como tal não estivesse já submetido a uma regra uni­ versal, se o geral não estivesse implícito nele desde o começo,

42

se não estivesse, de certo modo, nele "investido”. O próprio con­ ceito de "princípio” renuncia assim, bem entendido, ao caráter absoluto a que tinha pretensões nos grandes sistemas metafísicos do século XVII. Contenta-se em possuir uma validade relativa; quer assinalar a última parada a que o pensamento chegou, em cada caso, à medida que avançava, sob reserva de que seja, por sua vez, abandonada e suplantàda, quando necessário. Em função dessa relatividade, o "princípio” torna-se dependente do estado e da forma da ciência da mesma maneira, por exemplo, que uma só e mesma proposição que em uma ciência é postu­ lada como princípio, pode aparecer em outra como uma con­ clusão. Disse D'Alembert: “ É assim que devemos nos conduzir na escolha, no desenvolvimento e na enunciação dos princípios fundamentais de cada ciência, daqueles que formam a cabeça de cada porção da cadeia. Chamamos-lhes princípios porque é aí que os nossos conhecimentos começam.. Mas, bem longe de merecerem esse nome por si mesmos, eles talvez não sejam mais do que conseqüências muito distantes de outros princípios mais gerais que sua sublimidade encobre ao nosso olhar. Não imite­ mos os primeiros habitantes da beira-mar que, não vendo o fim do mar para além da margem, acreditavam não ter ele uma conclusão.” 7 A relatividade que é aqui reconhecida e admitida não contém a menor implicação céptica, o menor risco de cepti­ cismo; ela apenas exprime a certeza de que nenhum limite in­ transponível é imposto à razão em seu incessante progresso, que os fins a que ela parece chegar só podem e só devem constituir para ela um novo começo. De tudo o que precede sobressai que, comparando o pen­ samento do século XVIII com o do século XVII, em nenhum ponto verifica-se uma verdadeira ruptura entre eles. O novo ideal do saber desenvolve-se em continuidade perfeita a partir de pressuposições que tinham sido fixadas pela lógica e pela teoria do conhecimento do século XVII, Descartes e Leibniz em

43

particular. A diferença que existe entre essas duas formas de pensar não representa uma radical mutação; apenas exprime uma espécie de deslocamento de acento. Cada vez mais, o acento des­ loca-se do geral para o particular, dos “princípios” para os “fenômenos". Mas o pressuposto fundamental de que entre os dois domínios não existe oposição, nenhum conflito, mas uma reciprocidade perfeita de determinações, conserva sua plena for­ ça, se pusermos de lado, porém, o cepticismo de Hume, o qual envolve, efetivamente, uma forma nova e fundamentalmente di­ ferente de problemática. A “autoconfiança” da razão em mo­ mento nenhum é abalada. Antes de tudo, foi a exigência de uni­ dade do racionalismo que conservou todo o seu poder sobre os espíritos. A idéia de unidade e a de ciência são e continuarão sendo intercambiáveis. "Todas as ciências, em seu conjunto", escreve D’Alembert, retomando assim as teses iniciais de Des­ cartes nas Regulae ad directionem ingenii, “nada mais são do que a força do pensamento humano, que é sempre uno e idên­ tico, e que deve permanecer sempre semelhante a si mesmo, por mais variados e múltiplos que sejam os objetos a que esse pensamento se aplica.” O século XVII deve a solidez e a uni­ dade interior a que chegou — sobretudo no meio cultural do classicismo francês — ao espírito de coerência e rigor com que manteve essa exigência unificadora, ampliando-a a todos os domí­ nios do espírito e da vida. Essa exigência não se impôs apenas à ciência, mas também à religião, à política e à literatura. “Un roi, une loi, une foi”,* eis a máxima que governa essa época. Quando se passa para o século XVIII, parece que esse absolutis­ mo da unidade de pensamento vai perdendo sua potência, es­ barrando em múltiplos obstáculos que o levam a admitir con­ cessões. Mas as modificações e concessões não atingem, de fato, o próprio âmago desse pensamento; a função unificadora como tal continua sendo reconhecida como a função fundamental da * Em francês no original: “Um rei, uma lei, uma fé.” (N. do T.)

44

razão. O ordenamento racional, o domínio racional do dado, só é possível com uma rigorosa unificação. “ Conhecer” uma mul­ tiplicidade significa colocar os seus elementos em relação recí­ proca de tal maneira que, partindo de um ponto determinado, a totalidade possa ser percorrida segundo uma regra constante e geral. Essa forma de pensamento “ discursivo” tinha sido fixada por Descartes como norma fundamental do conhecimento mate­ mático. Demonstrara ele que toda operação matemática tem por finalidade determinar uma proporção entre uma grandeza “des­ conhecida” (incógnita) e uma outra que é conhecida. Entretanto, essa proporção só pode ser concebida com perfeito rigor se o conhecido e o desconhecido participam de uma “ natureza co­ mum”. Um e outro, o conhecido e o desconhecido, devem poder apresentar-se sob forma quantitativa e, como tais, inferir-se de uma só e mesma unidade numérica. A forma discursiva do co­ nhecimento tem constantemente, pois, o caráter de uma redução: ela reduz o complexo ao simples, a diversidade aparente à iden­ tidade que a fundamenta. O pensamento do século XVIII dedica-se a essa tarefa fundamental, procurando estender o seu efeito a domínios cada vez mais vastos. Graças a essa extensão, a idéia de “cálculo” perde sua significação exclusivamente matemática. 0 cálculo deixa de ser aplicável tão-só ao número e à grandeza: extravasa do domínio da quantidade para o das qualidades pu­ ras. Pois as próprias qualidades deixam-se relacionar entre si,< ligar-se umas às outras, de modo que se possa inferir umas das outras numa ordem fixa e rigorosa. Basta sempre, quando pos­ sível, estabelecer a lei geral dessa ordem para que se possa, em virtude dessa ordem e dentro dos seus limites, manter sob as nossas vistas o conjunto do domínio onde a lei se aplica. A idéia de cálculo tem, assim, a mesma extensão que a de ciência; ela é aplicável a todas as multiplicidades cuja estrutura se reporta a certas relações fundamentais que permitem determiná-la intei­ ramente. Condillac foi o primeiro a exprimir, em La langue des

45

calculs, com uma precisão perfeita, essa idéia geral da ciência de que quis dart em sua psicologia, uma demonstração caracte­ rística e uma ilustração pertinente e fecunda. Para ele, que se ateve, de uma forma geral, à idéia cartesiana da alma, de sua imortalidade e de sua espiritualidade, está fora de dúvida que uma matematização imediata do psíquico é impossível, porquan­ to a aplicação direta dos conceitos de grandeza só é válida quando o próprio objeto é constituído de partes e pode ser re­ constituído a partir delas. A matematização produzir-se-á, por­ tanto, no domínio da substância corporal que se define apenas por sua extensão, e não no domínio da substância pensante “indivisível”. Mas essa oposição fundamental, essa distinção substancial insuprimível que separa a alma do corpo não opõe qualquer fronteira intransponível à simples função de conhe­ cimento analítico. Essa função despreza todas as diferenças asso­ ciadas às coisas, não estando ligada, de maneira nenhuma, na pureza de sua forma e de seu uso formal, ao pressuposto de um conteúdo determinado. Se o psicológico não se deixa, como o corporal, dividir em partes, ele decompõe-se, não obstante, em momentos e em elementos constitutivos no pensamento. Basta para isso conseguir superar a diversidade aparente de suas formas, mostrando que essas são apenas o desenvolvimento progressivo de um germe, de uma fonte comum, de um fenô­ meno originário do "psíquico em geral”. Essa demonstração é fornecida pela célebre imagem que Condillac colocou no centro de sua psicologia. Partiu ele da hipótese de uma estátua de mármore que é progressivamente “animada” e dotada de uma vida psíquica de conteúdo cada vez mais rico à medida que cada um dos sentidos imprime, inscreve no mármore, uma por uma, suas qualidades respectivas. Trata-se de mostrar desse modo que a série contínua dessas “impressões” e a ordem temporal segundo a qual elas lhe são fornecidas bastam para constituir a totalidade da existência psíquica, para produzi-la em toda a

46

riqueza e delicadeza dos seus matizes. Se se consegue por esse método produzir o psíquico, não é menor, evidentemente, a possibilidade de o reduzir E revela-se, com efeito, que tudo aquilo a que chamamos “realidade psicológica” e experimenta­ mos como tal é apenas, no fundo, a repetição e a transformação de uma qualidade fundamental determinada, essa qualidade, pre­ cisamente, que já está implícita na mais elementar das impres­ sões sensíveis. A sensação é a fronteira entre o mundo do corpo e o mundo da alma, entre o mármore como “matéria” morta e um ser vivo e animado. Mas não é porque se transpôs essa fronteira que se tem necessidade, na dimensão do psíquico, de equipar-se de outra maneira e improvisar novos princípios. Aquilo que temos o costume de considerar princípios diferentes, de opor à vida sensível da alma as faculdades “superiores” do espírito, nada mais é, na verdade, senão modificações do ele­ mento originário da sensação. Pensamento e julgamento, desejar e querer, imaginação e criação artística, nada acrescentam de novo, qualitativamente falando, nada de essencialmente hetero­ gêneo, em relação ao elemento sensível originário. O espírito nada cria, nada inventa; ele repete e combina. Nessa própria repetição pode dar mostras, é verdade, de um poder quase ines­ gotável. Estende o universo visível para além de todo limite; projeta-se no infinito do espaço e do tempo, sem deixar de preo­ cupar-se com a produção em si mesmo de figuras sempre novas. Em tudo isso, porém, o espírito só tem que haver-se consigo mesmo e suas “idéias simples”. Essas constituem o sólido ter­ reno sobre o qual assenta todo o edifício de seu mundo, tanto do mundo “exterior” como do mundo “interior” — e esse ter­ reno jamais pode ser abandonado. A tentativa a que Condillac se entrega aqui, a de provar que toda a realidade psíquica é uma transformação, uma meta­ morfose da simples impressão sensível, será retomada e desen­ volvida por Helvétius em seu livro Do espírito. A influência

47

que essa obra bastante fraca e pouco original exerceu sobre a literatura filosófica setecentista explica-se pelo fato de que essa época encontrou aí um traço característico do seu pensamento sob uma forma deveras expressiva, até num exagero que toca as raias da caricatura. Nesse exagero aparecem claramente os limites e o risco metodológicos desse modo de pensamento. Esse risco consiste no nivelamento que ameaça a consciência na me­ dida em que a sua riqueza viva é fundamentalmente negada, em que passa a ser considerada não mais do que uma máscara e uma roupagem. O pensamento analítico arranca a máscara que dissimula os fenômenos psíquicos, mas a realidade assim des­ mascarada só vai mostrar em seguida, em lugar da diversidade anterior e da mobilidade interna, a mais nua uniformidade. A diferenciação das formas, assim como a dos valores, desmorona, revela ser mera ilusão enganadora. No interior do psíquico, deixa de haver doravante “alto” ou “baixo”, “superior” ou “in­ ferior”. Tudo é colocado no mesmo plano, tudo se toma equi­ valente e indiferente. Helvétius desenvolve sobretudo essas con­ siderações no domínio da ética. Sua intenção profunda consiste em eliminar essas hierarquias artificiais que as convenções ins­ tituíram e que se empenham cuidadosamente em manter. Ao passo que a ética tradicional falou sempre de uma categoria particular de sentimentos “morais”, ao passo que acreditava descobrir um “sentimento de simpatia” originário no homem capaz de opor-se aos seus instintos sensuais egoístas, capaz de os dominar e reprimir, Helvétius procura mostrar como seme­ lhante “hipótese” não se coaduna com a simples realidade dos sentimentos e das ações humanas. Quem se debruçar simplistamente e sem preconceitos sobre essa realidade não descobrirá nela o menor vestígio desse pretenso dualismo. Descobrirá por toda parte o mesmo impulso instintivo sempre semelhante e totalmente uniforme. Verá que tudo o que o homem glorifica como desinteresse, magnanimidade e altruísmo só se distingue

48

pelo nome, não na coisa em si, dos instintos mais elementares da natureza humana, dos desejos e das paixões mais “baixas". Não há nenhuma grandeza moral que se eleve acima desse nível: por elevados que sejam os objetivos que a vontade se atribui, algum bem supraterrestre, alguma finalidade supra-sensível que ela possa imaginar-se perseguindo, ela nem por isso deixará de permanecer igualmente encerrada no círculo estreito do egoísmo, da ambição e da vaidade. A sociedade jamais poderá obter a repressão desses instintos primitivos mas tão-somente a sua su­ blimação e o seu disfarce — é isso, de resto, tudo o que ela pode esperar e exigir, se acaso se fizer uma idéia exata de si mesma e dos indivíduos. As mesmas considerações são válidas a propósito do mundo teórico. Assim como, segundo Helvétius, não existe escala de valores no plano ético, tampouco há, na opinião dele, diferenças verdadeiramente radicais entre as for­ mas teóricas. Tudo se funde, em definitivo, na massa única e indivisa das impressões. Aquilo a que chamamos julgamento e conhecimento, imaginação e memória, entendimento e razão — nada disso constitui, de fato, uma faculdade específica, própria e originária da alma. Também aqui se produziu o mesmo dis­ farce. Acredita-se numa elevação acima da impressão sensível quando, na verdade, ela foi apenas ligeiramente modificada; no máximo, envolveu-se-a numa outra vestimenta. Para a crí­ tica, que rechaça tais envoltórios, todas as condutas teóricas aparecem de forma idêntica. Todas as operações do espírito se reduzem, com efeito, ao julgamento, e esse nada mais é do que a percepção de semelhanças e dessemelhanças (convenances e disconvenances) entre as idéias individuais. Mas esse conhe­ cimento da semelhança e da diferença também pressupõe uma “consciência" originária que é inteiramente análoga à percep­ ção de uma qualidade sensível, na verdade completamente idên­ tica. “Eu julgo ou eu sinto que, de dois objetos, um que deno­ mino toesa exerce sobre mim uma impressão diferente daquele

49

que denomino pé; que a cor que nomeio vermelho age sobre meus olhos de modo diferente do daquela que denomino ama­ relo; e concluo em semelhante caso que julgar não é senão sentir” 8 Todo o edifício dos valores éticos, do mesmo modo que a escala lógica do conhecimento, é demolido de alto a baixo, como se vê. Os dois edifícios são arrasados por essa mesma razão de que só ao nível do chão se pensa encontrar para eles uma fundação sólida e inabalável. Entretanto, seria um erro considerar, como não poucas vezes foi feito, que as perspectivas que Helvétius aqui representa são típicas do conteúdo da filo­ sofia do Iluminismo, ou mesmo do pensamento do enciclopedismo francês, porquanto foi justamente no círculo da Enciclo­ pédia que se produziram as críticas mais severas e as mais precisas contra a obra de Helvétius, e foram os nomes mais eminentes da literatura filosófica francesa, homens como Turgot e Diderot, os que tomaram a iniciativa. Mas o que, em todo o caso, é indiscutível é que tanto em Helvétius quanto em Condillac atua um certo método que caracteriza o conjunto do século XVIII, uma certa forma de pensamento que determina de an­ temão tanto as suas realizações positivas quanto as suas difi­ culdades internas, suas vitórias e seus fracassos.

2 O pensamento do século XVIII, tal como o consideramos até o presente momento, corresponde em suma ao desenvolvi­ mento do espírito analítico que é, sobretudo, um fenômeno francês. Na verdade, a França era a pátria, a própria terra clássica da análise desde que Descartes consumara a reforma, a transformação radical da filosofia. A partir de meados do século XVII, esse espírito cartesiano penetra em todos os domí­ nios. Ele não se impõe somente na filosofia mas também na

50

literatura, na moral, na política, na teoria do Estado e da so­ ciedade; chega ao ponto de afirmar-se na teologia, dando a essa disciplina uma forma inteiramente nova.9 Mas na filosofia, assim como no movimento das idéias em geral, a sua influência não é, em absoluto, incontestada. Com a filosofia leibniziana tinha sur­ gido, de fato, uma nova corrente intelectual que trazia consigo, sem dúvida nenhuma, profundas mudanças para a mundivisão desse tempo mas que, sobretudo, imprimia ao pensamento uma forma e uma direção inteiramente novas. À primeira vista, pa­ rece que Leibniz apenas deu prosseguimento à obra de Des­ cartes, libertou as potências que nela dormitavam a fim de lhes conferir seu pleno desenvolvimento. Assim como a sua obra matemática, assim como a análise do infinito sai diretamente da problemática cartesiana, porquanto apenas quer ser a elaboração conseqüente, a realização sistemática da geometria analítica, tam­ bém se pode dizer, com efeito, que toda a lógica leibniziana tem sua origem na combinatória que ela tende a desenvolver como uma teoria formal geral do pensamento. E é incontestável para Leibniz que só no progresso da análise existe futuro e esperança para o progresso dessa teoria formal, para a realização do ideal da scientia generalis, tal como se lhe afigura. Ê sobre esse ponto que vão doravante concentrar-se todos os seus tra­ balhos de lógica. Trata-se de chegar a um “alfabeto do pensa­ mento”: de reduzir todas as formas complexas de pensamento aos seus elementos, ou seja, às operações de simplicidade extre­ ma, do mesmo modo que, na teoria dos números, todo o número pode ser concebido e apresentado como um produto de números primos. Uma vez mais, parece que a unidade, a uniformidade e a simplicidade, a identidade lógica, em suma, constitui o fim último e supremo do pensamento. Todas as proposições verda­ deiras, na medida em que pertencem ao domínio das verdades estritamente racionais, das verdades “eternas”, são proposições “virtualmente idênticas”, reportando-se ao princípio de identi-

51

dade e de contradição. Pode-se, como fez Louis Couturat em sua notável exposição da doutrina, tentar considerar desse ponto de vista o conjunto da lógica leibniziana; pode-se ir mais longe e associar-lhe, situando-a no âmbito dessa problemática, a sua teoria do conhecimento, a sua filosofia da natureza e a sua metafísica. Parece, de fato, que ao proceder-se assim apenas se está sendo fiel às intenções pessoais de Leibniz, que sempre declarou não existir nenhuma divisória erguida entre a sua ló­ gica, a sua matemática e a sua metafísica, que toda a sua filo­ sofia era matematicamente oriunda dos próprios fundamentos da matemática. E, no entanto, parece, se considerarmos justamente a rela­ ção íntima e indissolúvel que une as partes dessa filosofia, que os motivos considerados até o presente como fundamentais, por muito importantes e indispensáveis que sejam para a gênese do universo intelectual leibniziano, não o esgotam em sua totali­ dade. Quanto mais se aprofunda, com efeito, a significação e a especificidade do conceito leibniziano de substância mais niti­ damente se vê que esse conceito implica, não apenas do ponto de vista do^eu conteúdo mas também sob o seu aspecto formal, uma nova mutação (eine neue Wendung). Uma lógica que se construísse unicamente com base no conceito de identidade, que aí estabelecesse todo o sentido de conhecimento, que reduzisse toda a multiplicidade à unidade, toda a mudança à constância, toda a diversidade à estrita uniformidade, semelhante lógica não se harmonizaria com o conteúdo do novo conceito de substância. A metafísica de Leibniz distingue-se da de Descartes e de Spinoza ao postular, em vez do dualismo cartesiano e do monismo spinozista, um “ universo pluralista”. A “mônada” leibniziana não é uma unidade aritmética, puramente numérica: é uma uni­ dade dinâmica. O verdadeiro correlato dessa unidade não é a individualidade mas a infinidade. Cada mônada é um centro dinâmico vivo: somente a sua riqueza e diversidade infinitas

52

constituem a verdadeira unidade do mundo. A mônada só existe na medida em que é ativa, e sua atividade consiste em passar para estados sempie novos e em desenvolvê-los incessantemente de seu própria fundo. “A natureza da mônada é ser fecunda e gerar uma diversidade sempre nova’*. Ê por isso que todo o mo­ mento da mônada, ainda o mais simples, envolve o seu passado e já está prenhe de seu futuro. E nenhum desses momentos é absolutamente idêntico aos outros; jamais se resolve na mesma soma de “qualidades” puramente estáticas. Toda a determinação que aí encontremos deve ser, pelo contrário, considerada tran­ sitória. Para descobri-la e compreendê-la racionalmente não basta apoiarmo-nos num sinal característico fixado aqui ou ali; temos que colocar claramente sob os olhos a regra da transição, representarmo-nos a sua lei específica. Prolongando esse pensa­ mento até as suas últimas conseqüências, vê-se que o tema lógico fundamental que domina e impregna a mundivisão de Leibniz só na aparência é o da identidade. Em vez dessa identidade analítica, característica do pensamento de Descartes ou de Spi­ noza, encontramos aqui um princípio de continuidade, sobre o qual Leibniz construiu a sua matemática e o conjunto da sua metafísica. Continuidade quer dizer unidade na multiplicidade, ser no devir, constância na mudança. Esse termo designa uma ligação que só pode exprimir-se na mudança e na constante al­ teração das determinações, e que exige, por conseguinte, a mul­ tiplicidade tão necessariamente, tão originária e essencialmente quanto a unidade. Até mesmo a relação do geral com o par­ ticular será doravante esclarecida de uma nova maneira. Ini­ cialmente, parece que Leibniz manteve, de fato, a prioridade do universal e seu “primado” lógico de maneira incondicional. O fim supremo de todo o conhecimento reside nas “verdades eternas”, exprimindo as relações universais e necessárias entre as idéias, entre o sujeito e o predicado do julgamento. As ver­ dades de fato, as simples verdades “contingentes”, não se inte­

53

gram nesse modelo lógico; contudo, são tanto mais clara e dis­ tintamente percebidas quanto melhor se conseguir reduzi-las a determinações puramente racionais e, finalmente, resolvê-las. Embora esse fim só seja acessível a um entendimento divino, nem por isso constitui menos a norma, o fio de Ariadne do conhecimento humano acabado. E no entanto, por outra parte, não existe, se nos referirmos à intuição fundamental que domi­ na a lógica e a teoria do conhecimento leibnizianos, uma simples relação de subsunção entre o universal e o particular. Não se trata de subordinar um ao outro mas de conhecer que um está implícito e fundamentado no outro. Ê por esse motivo que, a par do “princípio de identidade”, aparece, como norma tão le­ gítima e indispensável de verdade quanto aquele, o “princípio de razão suficiente”, o qual constitui para Leibniz a condição de todas as “verdades de fato”. A física é governada pelo prin­ cípio de razão suficiente, assim como a matemática o é pelo princípio de identidade. Ela não se contenta em estabelecer rela­ ções puramente conceptuais, a concordância ou discordância de idéias. Deve partir da observação, da experiência sensível, mas não pode, por outro lado, contentar-se em recolher simplesmente as observações, colecioná-las e considerá-las em sua acumulação. É necessário que desse agregado se extraia um sistema: e como consegui-lo senão dando forma à massa incoerente de “fatos”, estabelecendo relações internas de modo que ela se apresente como uma soma de “causas” e “efeitos”? A vizinhança no es­ paço e a sucessão no tempo tornam-se assim uma verdadeira “conexão” em que cada elemento é determinado e condicionado pelos outros segundo regras fixas, de modo que, de todo o estado singular do universo, na medida em que ele é plenamente cognoscível, pode-se aduzir a totalidade dos seus fenômenos. Não iremos mais além, até o conteúdo particular dessa intuição fundamental; contentemo-nos em considerar a sua es­ trutura categorial. Verifica-se de imediato que o conceito de

54

todo (der Begriff des Ganzen), dentro dessa nova perspectiva, adquire uma significação nova e mais profunda. O “todo” do mundo, que se trata de representar, já não é redutível a uma simples soma de partes; tal representação não o esgota. A tota­ lidade revela-se como totalidade, não mais “mecânica” mas “or­ gânica”; seu ser não mais consiste na soma de suas partes mas precede-as, já que é ele que as torna possíveis em sua natureza e modalidade. Aí reside precisamente a diferença decisiva que separa a unidade da mônada da do átomo. O átomo é o elemento, o constituinte fundamental das coisas no sentido de que repre­ senta o que resta finalmente quando elas são divididas até o fim. É “unidade” por oposição, de certo modo, à multiplicidade, opondo-se a toda e qualquer tentativa para subdividi-la uma vez mais, à custa de sua solidez, fixidez e indivisibilidade. A mônada, em contrapartida, ignora essa oposição e essa resistên­ cia, pois de um modo geral não existe para ela alternativa entre unidade e multiplicidade, cisão entre esses dois momentos, mas pelo contrário, reciprocidade interna, correlação necessária. A mônada não é unidade simples nem simples multiplicidade, mas “expressão da multiplicidade na unidade” (multorum in uno expressio). Ela é um todo que não consiste em partes nem cons­ titui o seu resultado, mas que se desenvolve constantemente numa multiplicidade de determinações. Sua particularidade só se revela nesses atos sucessivos de particularização (Besonderung); particularização essa que só é possível e inteligível na condição de que a forma completa a partir da qual ela se de­ senvolve conserve-se em si mesma e permaneça fechada sobre si mesma. A sua natureza e a sua realidade não vão perder-se, portanto, e dispersar-se na sucessão dessas determinações; pelo contrário, conservam-se intatas e presentes, se assim podemos dizer, em cada uma delas. Essa visão fundamental é conceptual e terminologicamente concebida por Leibniz graças à idéia de força: pois a força é para ele o estado presente que tende para

55

o estado que se lhe segue e que aquele envolve de antemão (status ipse praesens, dum tendit ad sequentem seu sequentem praeinvolvit). A mônada não é um agregado mas um todo di< nâmico que só se pode manifestar numa profusão, digamos até, numa infinidade de efeitos variados e que, no entanto, embora diferenciando-se infinitavamente nas expressões de sua força, conserva-se como um centro de força, único e vivo. Essa con­ cepção, que já não se baseia simplesmente na idéia de ser mas na de atividade pura, confere ao problema do individual um sentido inteiramente novo. Nos limites da lógica analítica, da lógica da identidade, só é possível tratar esse problema na con­ dição de se encontrar o meio de reconduzir o indivíduo ao conceito universal, considerando-o um caso especial do univer­ sal. O individual só pode ser “pensado” em geral, ser percebido “clara e distintamente”, por essa referência e nessa vinculação ao universal. Tomado em si, segundo o modo em que se oferece à percepção sensível ou à simples intuição, permanece “confuso”. É óbvio que, mediante uma vaga impressão de conjunto, pode­ mos estabelecer que o individual é, mas não seríamos capazes de dizer, com verdadeira exatidão e certeza, o que ele é. É o conhecimento desse “ o queM, desse quid, que permanece em cada caso reservado para o universal, que só é possível obter considerando a natureza da espécie ou a definição que fornece as características gerais. Em suma, o individual só pode ser “concebido” pela maneira como, por assim dizer, ele se encon­ tra “inserido” (umgriffen) no universal, com o qual está rela­ cionado por subsunção. A doutrina leibniziana do conceito ainda está ligada, por múltiplos laços, a esse esquema tradicional, em­ bora seja a sua própria filosofia a que lhe fez a crítica mais decisiva, a que implicitamente a modificou e até a desmontou. Com efeito, o individual, na filosofia leibniziana, obtém a posse de uma prerrogativa inalienável. Longe de estar confinado ao simples papel de um caso ou de exemplo, ele exprime algo que

56

é em si mesmo essencial e valioso para si mesmo. Cada subs­ tância individual, dentro do sistema leibniziano, é não só uma parte, uma fração, um fragmento do universo, mas esse mesmo universo, visto de um certo lugar e numa certa "perspectiva”. Ora, só a totalidade, abrangendo o universo inteiro dessa pers­ pectiva característica e singular, constitui a verdade do ser. Essa verdade não está constituída de tal modo que as diversas imagens monadológicas do mundo tenham em comum alguma parte integrante, na qual elas se harmonizariam, e que figuraria, em suma, como a origem comum da “objetividade”. É preciso compreender, pelo contrário, que toda a substância, embora conservando sua própria permanência e desenvolvendo suas re­ presentações segundo a sua própria lei, relaciona-se, contudo, no próprio curso dessa criação individual, com a totalidade das outras e afina-se, de algum modo, com elas. A idéia central da filosofia leibniziana não tem que ser procurada no conceito de individualidade nem no de universalidade; estes dois con­ ceitos devem, pelo contrário, ser compreendidos por meio de um outro. Ao refletirem-se um no outro eles geram, nessa pró­ pria reflexão, o conceito fundamental de harmonia, o qual cons­ titui o ponto de partida e o fim de todo o sistema. Em nossa própria natureza, explica Leibniz em seu tratado Da verdadeira teologia mística, esconde-se um germe, um vestígio, um símbolo da essência divina e sua vera imagem. O que significa que só se alcança a verdade do ser, a harmonia suprema e a mais in­ tensa plenitude da realidade no auge da energia individual e não em seu nivelamento, sua igualização e sua extinção. Esse pensamento fundamental impõe uma nova orientação das idéias. Ela não vem apenas modificar algum resultado particular; essa nova orientação desloca, na verdade, o centro de gravidade de toda uma visão do mundo. No início, parece, sem dúvida, que tal modificação interna não tem nenhuma importância direta. historicamente demonstrá-

57

vel, para a filosofia do século XVIII. Com efeito, o pensamento profundo de Leibniz não atuou de imediato, em sua totalidade, como uma força viva e presente. O século XVIII só conhecia inicialmente a filosofia leibniziana sob uma forma muito incom­ pleta, puramente “exotérica”. Para o conhecimento da doutrina, dispõe apenas de um pequeno número de textos que, como a Monadologia e a Teodicéia, devem sua existência a uma oca­ sião exterior e contingente e só contêm a doutrina sob uma forma popular, transposta e abreviada, sem nenhuma justifica­ ção nem qualquer desenvolvimento rigorosamente conceptual. A obra-mestra da teoria leibniziana do conhecimento, os Novos ensaios sobre o entendimento humano, somente em 1765 in­ gressa no campo visual do século XVIII, graças à edição orga­ nizada por Raspe com base no manuscrito de Hanover, ou seja, numa época em que a filosofia do Iluminismo já realizara a maior parte do seu desenvolvimento e adquirira sua fisionomia definitiva. A influência das idéias de Leibniz é, por conseguinte, inteiramente indireta: só atuará na forma transposta que o sis­ tema de Wolff lhe impôs. Ora, justamente, a lógica de Wolff e sua metodologia distinguem-se da de Leibniz na medida em que procuram reduzir ao esquema mais simples e mais uniforme possível a diversidade das abordagens leibnizianas. Se Wolff confere à idéia de harmonia, aos princípios de continuidade e de razão suficiente o lugar que lhes compete na economia do sistema, por outro lado procura limitar-lhes a significação e a independência originais, apresentando-os como conseqüências, como deduções do princípio de contradição. Os conceitos leibnizianos e os temas fundamentais do seu sistema só foram, pois, transmitidos ao século XVIII com certas restrições e como que quebrado por sua passagem através de um meio refrativo. Pouco a pouco, entretanto, vai surgir um movimento de idéias que tenderá a anular a ruptura e a remover os obstáculos que se opõem à compreensão. Na Alemanha, é Alexander Baumgarten,

58

o mais importante discípulo de Wolff, quem manifestará, sobre esse ponto e em muitos outros, sua originalidade e sua indepen­ dência de espírito. Em sua metafísica e, mais particularmente, nas grandes linhas da sua Estética, Baumgarten encontra o ca­ minho que reconduz até certas fontes das idéias de Leibniz que estavam até então como que soterradas. A estética alemã e a filosofia da história retornam, por conseguinte, em seu desenvolvimento, à concepção original e profunda do problema da individualidade que tinha sido inicialmente revelada e apli­ cada na Monadologia e no "sistema de harmonia preestabele­ cida” de Leibniz. Mas é no seio da cultura francesa do século XVIII, uma vez mais, onde a influência cartesiana vinha pre­ dominando amplamente, que a influência e a ressonância de certas idéias e de certos problemas fundamentais de Leibniz se fazem sentir com força crescente. O encaminhamento dessa in­ fluência não passa pela estética e pela teoria da arte, as quais só a muito custo se afastam da órbita da doutrina clássica seis­ centista, mas pela filosofia da natureza e pelas ciências naturais descritivas, nas quais a rigidez conceptual começa, pouco a pou co, a afrouxar. A maior ênfase recai doravante sobre a idéia leibniziana de desenvolvimento; o sistema da natureza do século XVIII, que estava dominado pela idéia de fixidez das espécies, passa progressivamente por uma mudança de dentro para fora. De Maupertuis, retomando os princípios da dinâmica leibniziana, defendendo e explicando o princípio de continuida­ de, até a física e a metafísica do orgânico em Diderot e os pri­ meiros esboços de teoria descritiva completa da natureza na História natural, de Buffon, acompanha-se o desenrolar de um constante progresso. É verdade que Voltaire, no Candide, exer­ ce seu espírito à custa da Teodicéia de Leibniz e recriminalhe, em seus Elementos da filosofia de Newton, não ter feito outra coisa senão retardar com suas idéias a própria física e o progresso da ciência em geral. "Sua razão suficiente, sua continui­

59

dade, seu orgulho, suas mônadas etc.” — escreveu Voltaire em 1741 — “são germes de confusão, dos quais o senhor Wolff fez brotar metodicamente quinze volumes in quarto que, mais do que nunca, instilarão nas cabeças alemãs o gosto de ler muito e entender pouco.” 10 Voltaire, contudo, nem sempre foi dessa opinião. Em O século de Luís X IV , quando queria fazer ver e compreender em suas grandes correntes o conjunto da estrutura intelectual do século XVII, não se tratava, para ele, de menos­ prezar o papel de Leibniz, e reconhecia efetivamente sem reser­ vas a significação universal de sua obra. Essa mudança de opi­ nião manifesta-se ainda mais nitidamente na geração seguinte à de Voltaire, no círculo dos enciclopedistas franceses. D*Alembert, embora combatendo, é certo, os princípios da metafísica leibniziana, nunca deixa de confessar sua profunda admiração pelo gênio filosófico e matemático de Leibniz. E Diderot, no artigo “ Leibniz” da Enciclopédia, pronuncia o entusiástico elo­ gio de Leibniz: ele proclama, com Fontenelle, que a Alemanha, só por ter albergado esse espírito, não merece menos honra que a Grécia por Platão, Aristóteles e Arquimedes, ao mesmo tempo. O caminho ainda é longo, sem duvida, desde esse elogio pessoal até uma penetração autêntica, uma compreensão mais profunda dos princípios da filosofia leibniziana. Entretanto, se se quiser apresentar em seu conjunto a estrutura intelectual do século XVIII, torná-la inteligível em sua gênese, cumpre colo­ car lado a lado, distintamente, essas duas correntes intelectuais diferentes que nele confluíram: a forma cartesiana clássica de análise e essa nova síntese filosófica, que teve em Leibniz o seu ponto de partida, mas que atuam em comum e se justapõem. Da lógica das "idéias claras e distintas” a marcha do pensa­ mento leva à lógica da “origem” e do individual, da mera geo­ metria à dinâmica e à filosofia dinâmica da natureza, do “mecanicismo” ao “organicismo”, do princípio de identidade ao princípio de infinidade, de continuidade e de harmonia. Nessa

60

oposição fundamental já estão contidas as grandes tarefas inte­ lectuais com que o século XVIII se defrontará e que irá abordar, * desde a teoria do conhecimento até a física, desde a psicologia até a política e a sociologia, desde a filosofia da religião até a estética, sob tão variados aspectos.

6

61

NOTAS

1 D ’Alembert, Éléments de philosophie I; Mélanges de littérature, d'histoire et de philosophie, Amsterdã, 1758, IV, pp. 1 e ss. 2 Voltaire, Traité de métaphysique, cap. V. 3 Em francês no original: “Para mudar a maneira comum de pen­ sar.” Cf., sobre este ponto, Ducros, Les encyclopédistes, Paris, 1900, p. 138. 4 Oeuvres, I, p. 34. 5 Cf. sobre o conjunto do problema, o Traité des sensations de Con­ dillac, assim como o “Extrait raisonné” que o próprio Condillac adicionou à última edição de sua obra (Ed. Georges Lyon, Paris, 1921, especial­ mente pp. 32 e ss.). 6 Condillac, Tratado dos sistemas, 2.a Parte, cap. XV. 7 D ’Alembert, artigo “Elementos de ciência” da Enciclopédia. Cf. Éléments de philosophie IV; Mélanges de littérature, d'histoire et de philosophie IV, pp. 35 e ss. 8 Helvétius, De l’esprit, ed. Paris, 1759, p. 8. ° O leitor encontrará precisões úteis na excelente exposição de Gus­ tave Lanson, “L’influence de la philosophie cartésienne sur la littérature française”, Revue de Métaphysique et de Morale, 1896; cf. Études d'his­ toire littéraire, Paris, 1929, pp. 58 e ss. 10 Cf. Correspondence, de Voltaire; em particular, as cartas a Mairan, de 5 de maio de 1741, e a Maupertuis, de 10 de agosto de 1741.

63

II NATUREZA E CIÊNCIA DA NATUREZA NA FILOSOFIA DO ILUMINISMO

1 Para obter a medida exata do papel da ciência da natureza na gênese e elaboração da imagem do mundo na época moderna não nos cingiremos a considerar todas essas descobertas que se integraram uma por uma, como traços característicos, ao con­ teúdo dessa imagem e que definitivamente a modificaram de um modo radical. Essa transformação, cuja amplitude parece, à pri­ meira vista, quase incomensurável, está muito longe de esgotar a totalidade das forças criadoras oriundas da física. Se essa de­ sempenhou um papel decisivo, foi menos pelo novo conteúdo objetivo do pensamento, cujo acesso ao espírito humano foi fran­ queado pela física, do que pela nova função que ela atribui ao pensamento. A ciência da natureza não é meramente o movi­ mento do pensamento que se aplica ao mundo dos objetos, mas também o meio onde o espírito adquire o autoconhecimento. E desse modo se instaura um processo mais significativo do que o recrudescimento e a extensão desse material com que a física recém-nascida enriqueceu o saber humano. O crescimento e a

65

ampliação constante desse material parecem, a partir dos séculos XVI e X V II, ter que prosseguir ad infinitum. Desintegrou-se a forma rígida da mundivisão antiga e medieval; o mundo deixa de ser um "cosm o” no sentido de uma ordem visível em seu todo, diretamente acessível à intuição. Espaço e tempo ampliam-se infi­ nitamente: seria impossível continuar a concebê-los por meio dessa figura sólida que a cosmologia antiga possuíra na doutrina platônica dos cinco corpos regulares ou no universo escalar aristotélico, ou apreender sua grandeza por medidas e números fini­ tos. Em vez desse mundo único e do ser único, eis que sobrevêm a infinidade de mundos incansavelmente gerados no seio de um devir em que cada um representa apenas uma fase transitória, singular, do inesgotável processo vital do universo. Entretanto, a mudança essencial não reside nessa extensão ilimitada, mas, antes, no fato de que o espírito, até por causa dessa extensão, adquire consciência dessa nova força cuja presença sente em si mesmo. Todo o aumento de extensão continuaria sendo estéril e só de­ sembocaria, em última instância, no vazio se o espírito não ad­ quirisse, ao mesmo tempo, por esse meio, uma nova intensidade, uma nova concentração em si mesmo. Tal concentração só o con­ firma em sua própria e verdadeira natureza. A sua mais elevada energia e a sua mais profunda verdade não residem no poder de passar ao infinito, mas de se afirmar em face do infinito, de se mostrar igual em sua simples unidade à infinidade do ser. Já Giordano Bruno, em quem o novo sentimento universal se mani­ festou claramente pela primeira vez em toda a sua força, definiu nesse sentido a relação entre o eu e o mundo, o sujeito e o objeto. Para ele, a infinidade do devir, o grande espetáculo do mundo que se desenrola constantemente sob os nossos olhos é a con­ firmação desse sentido profundo que o ego só pode descobrir em si mesmo. Ê a força da razão que constitui para nós o único modo de acesso ao infinito, que nos garante sua existência e nos ensina a aplicar-lhe a medida e o limite com o objetivo não de

66

restringir sua amplitude mas de conhecer a lei que o envolve e o impregna profundam ente. Essa legalidade do universo que se revela ao pensamento e se define pelo pensamento constitui o correlato necessário de sua imensidade visível. A nova concepção da natureza nasce, portanto, do ponto de vista da história das idéias, de um duplo motivo: forças aparentemente opostas a con­ dicionam e informam. O impulso para o singular, o concreto, o fato agem nela tanto quanto o impulso para o universo abso­ luto, o instinto de se agarrar ao m undo com todos os seus órgãos, tanto quanto o instinto de se lançar em seu vôo a fim de ganhar, graças a essa elevação, uma perspectiva mais correta. O desejo e o gozo sensuais juntam-se à potência do espírito para arrancar o homem ao mero dado e mandá-lo divagar ao ar livre no país do possível. A concepção moderna da natureza que se formou depois da Renascença com uma nitidez e uma firmeza crescentes, e que busca prover-se, nos grandes sistemas do século X V II, em Descartes, Spinoza e Leibniz, de um fundamento e de uma legi­ timidade filosóficas, caracteriza-se sobretudo pela nova relação que se estabelece entre sensibilidade e entendimento, entre expe- • riência e pensamento, entre mundus sensibilis e mundus intelligibilis. Mas essa mudança de método no conhecimento da natureza implica, ao mesmo tempo, uma modificação decisiva da "onto­ logia” pura: ela desloca e altera a escala de valores pela qual se aferia até então a ordem do ser. A tarefa do pensamento medieval consistia essencialmente em reproduzir a arquitetônica do ser, em descrevê-la em seus grandes traços. No sistema reli­ gioso da Idade Média, tal como a escolástica o fixara, toda a rea­ lidade recebia seu lugar imutável e indiscutível; por esse lugar, pela distância maior ou menor que o separava do ser da causa primordial, o seu valor também era plenamente determinado. Não pode haver em tal sistema a menor dúvida: todo o pensa-

67

mento se sabe situado no seio de uma ordem inviolável que não lhe compete criar mas perceber. Deus, a alma e o mundo são os três eixos do ser em torno dos quais se articula o sistema do saber. O conhecimento da natureza não é, de modo algum, ex­ cluído desse sistema; contudo, fica desde o início limitado a esse círculo estreito do ser donde não pode sair sem se perder, sem se desnortear na escuridão a luz que queima nele. O conheci­ mento "n atu ral” coincide com o conhecimento das "criaturas”: ele é o saber, na medida em que este é acessível a um ser finito, criado dependente; o saber que não se estende a nenhum outro domínio salvo o dos objetos sensíveis e finitos. Portanto, quer do lado do sujeito quanto do objeto, é limitado e entravado. Os limites do conhecimento natural não coincidem, evidentemente, nem mesmo no pensamento medieval, com os dos seres físicos ou corporais, dos seres materiais. A par do conhecimento natural do mundo, dos corpos e das forças que atuam neste mundo, existe um conhecimento natural do direito, do Estado, até da religião e de suas verdades fundamentais, pois os limites do co­ nhecimento natural não são determinados por seu objeto mas por sua origem. Todo o saber é "n atu ral”, seja qual for o domínio a que se refere, se decorre exclusivamente da razão humana e se se apóia unicamente nela, sem recorrer a nenhuma outra fonte de certeza. A "natureza” significa, portanto, menos uma classe de objetos que um certo horizonte do saber, de compreen­ são da realidade. Deve-se-lhe im putar tudo o que se situa no campo do lumen naturale, o que não requer, para ser demons­ trado e compreendido, nenhuma outra ajuda senão a das facul­ dades naturais do conhecimento. É nesse sentido que se opõem o "reino da natureza” e o "reino da graça”. O primeiro é-nos comunicado pela percepção sensível e pelas operações que lhes estão ligadas, julgamento e raciocínio lógicos, o uso discursivo do entendimento; o outro só nos é acessível graças à revelação. Entre fé e saber, entre revelação e razão, não cabe, de resto,

68

desencadear um conflito. Muito pelo contrário, os grandes siste­ mas escolásticos no auge da sua época têm por sua tarefa essen­ cial sua conciliação, a concordância entre os respectivos conteú­ dos. O reino da graça não anula o reino da natureza. Se ele se ergue acima do reino da natureza e, de certo modo, o sobrepuja, não contesta, porém, a sua consistência: gratia natural non tollit, sed perficit. Nem por isso deixa de valer o fato de que a natu­ reza não encontrará em si mesma a sua acabada perfeição, que deverá procurá-la além de si mesma. Nem a ciência, nem a mora­ lidade, nem o Estado podem erigir-se sobre o seu alicerce. Há sempre necessidade, para levá-los à sua verdadeira perfeição, de uma assistência sobrenatural. A "luz natural” como tal já não contém em si nenhuma verdade própria; está corrompida e obscurecida, e não saberia como libertar-se, como restabelecer-se dessa escuridão. Para o pensamento medieval subsiste, a par da lei divina, tanto no domínio teórico quanto no prático, uma es­ fera psíquica, relativamente autônoma, da lei natural, esfera que é acessível à razão humana e talvez dominada e explorada por ela. Não obstante, a lex naturalis constitui o primeiro grau e o ponto de fixação da lex divina, a única que está em condições de restaurar o conhecimento primitivo perdido pelo pecado. A razão continua sendo a serva da revelação (tanquam famula et ministra); no nível das faculdades naturais, intelectuais e espiri­ tuais, ela coloca o espírito no caminho da revelação, prepara o terreno da revelação. Essa concepção, que permanece viva muito além da época da escolástica, que se afirma ainda sem contestação, por exem­ plo, no estabelecimento da velha teologia protestante nos séculos XVI e X V II,1 sofre por dois caminhos diferentes o ataque do pensamento renascentista. É a filosofia da natureza que toma a dianteira: pode-se enunciar a sua tendência profunda, o seu princípio fundamental, dizendo que o verdadeiro ser da natureza

69

não deve ser procurado no plano do criado mas no plano da criação. A natureza é mais do que simples criatura; ela participa do ser divino originário, visto que a força da eficácia divina está viva nela. O dualismo do criador e da criatura é assim suplantado. A natureza não se opõe mais a Deus como o motum ao m ovens, como o movido ao motor divino, porquanto é justa­ mente um princípio criador originário que se move interiormen­ te. O poder de dar-se forma e de desenvolver-se a si mesmo assinala a natureza do selo da divindade. Não nos figuremos Deus como uma força que sobrevêm de fora, agindo como causa motriz primeira sobre uma matéria estranha; ele mesmo se empenha no movimento, aí está imediatamente presente. Tal modo de presença convém apenas à divindade, só esta é digna dela. “Non est Deus vel intelligentia exterior circumrotans et circumducense dignius enitn illi debet esse internum principium ntotus, quod est natura própria, species própria, anima própria quam habeant tot quot in illius gremio vivu n t.” Nessas fórmulas de Giordano Bruno manifesta-se uma ra­ dical mudança da idéia de natureza. A natureza é elevada até a esfera do divino, parece ser absorvida por sua infinidade, mas, por outro lado, representa justamente a individualidade, o ser próprio, o ser singular dos objetos. E é igualmente sobre essa potência distintiva que irradia de cada coisa, como de um centro de força particular, que assenta o seu valor inalienável, a "digni­ dade” que ela reivindica na totalidade do ser. Com o nome de “natureza" entende-se doravante tudo isso ao mesmo tempo: sig­ nifica, em primeiro lugar, o ordenamento de todas as partes em relação ao Uno, da totalidade da atividade e da vida que as engloba a todas; contudo, esse ordenamento deixa agora de ser uma simples subordinação, porquanto a parte não está somente no todo, ela afirma-se igualmente contra esse todo. Constitui algo de especificamente individual e necessário. A lei a que obedecem

70

os seres individuais não lhes é prescrita por um legislador estra­ nho; está fundada em seu próprio ser e é plenamente cognoscível a partir desse ser. A conseqüência disso é que um segundo e essencial passo foi dado; a passagem do naturalismo dinâmico da Renascença para a matemática física já está implicitamente consumada. Com efeito, esta última constrói-se pura e simples­ mente sobre a idéia de lei, mas essa idéia está então dotada de uma significação mais rigorosa e mais determinada. O que dora­ vante se impõe com todo o rigor é o estabelecimento da lei da ação que define a natureza da coisa, não por uma espécie de adivinhação mas por um conhecimento claro e distinto, não pela penetração de uma corrente de simpatia mas exprimindo-a atra­ vés de idéias claras. Tanto o sentimento quanto a intuição sen­ sível e a imaginação não se encontram à altura dessa exigência, à qual só se pode responder procurando fora dos caminhos comumente trilhados relações novas entre o individual e o todo, entre a "aparência” e a "idéia". A observação sensível deve combinar-se com a medida exata para engendrar a nova forma da teoria da natureza. Essa teoria^ tal como foi estabelecida por K ep lére Galileu, ainda está impregnada de um profundo impulso religioso que lhe confere seu dinamismo. De fato, o Objetivo que ela se propõe a alcançar não mudou: descobrir na legali­ dade da natureza o vestígio de sua divindade. Contudo, justa­ mente por causa desse contexto religioso, tal teoria não podia deixar de entrar em conflito, de um modo cada vez mais grave, com as formas tradicionais da fé. A luta que a Igreja travou contra a penetração do espírito físico-matemático moderno só se compreende nessa perspectiva. O que ela combatia na física não era certamente tal ou tal resultado da investigação científica. Sempre teria havido uma conciliação possível entre esses resul­ tados e a doutrina da Igreja: Galileu acreditou por muito tempo nessa conciliação e trabalhou sinceramente nesse sentido. Mas o trágico mal-entendido no qual ele finalmente viria a naufragar

71

foi o de ter procurado a divergência que se esforçava por resol­ ver onde ela não estavay o de ter-se subestimado, assim como as inovações que introduzira na atitude metodológica do cientis­ ta. Por isso Galileu não foi capaz de conduzir sua réplica até a verdadeira e profunda raiz do conflito; ficou na tentativa de adaptar e equilibrar as conseqüências intermediárias. Na verda­ de, não era à nova cosmologia que se opunham com todas as suas forças as autoridades eclesiásticas: enquanto " hipóteses” matemáticas, essas autoridades podiam perm itir tanto o sistema de Copérnico quanto o de Ptolomeu. O que era intolerável, o que ameaçava o sistema da Igreja até em seus alicerces era a nova concepção da verdade que Galileu proclamava.2 A par da verdade da revelação, eis que surge agora uma verdade própria e original, uma verdade física independente. Essa verdade não nos é dada pela palavra de Deus mas em sua obra; não assenta no testemunho das Escrituras ou da Tradição e está a todo instante presente sob os nossos olhos. Naturalm ente, ela não é legível para quem não tiver a menor idéia da escrita em que se nos apresenta e que, por conseguinte, não saberia decifrá-la. Ê uma verdade que pode vestir-se de palavras simples; a única expressão que lhe corresponde e lhe convém encontra-se nos objetos matemáticos, nas figuras e nos números. Graças às mate­ máticas, ela apresenta-se sob uma forma acabada, numa tessitura sem lacunas e perfeitamente transparente. A revelação jamais poderá, somente pela palavra, atingir esse grau de limpidez, de translucidez, de univocidade, porquanto a palavra, como tal, mantém-se sempre cambiante e ambígua, permitindo uma varie­ dade de interpretações. A sua compreensão e a sua interpretação são obra humana, portanto necessariamente fragmentária, ao passo que na natureza estende-se sob os nossos olhos o plano geral segundo o qual o universo é construído, em sua unidade indivisível e inviolável, aguardando apenas o espírito humano para o reconhecer e o exprimir.

72

O ra, esse espírito humano manifestara-se claramente desde então no próprio parecer do século X V III: o que Galileu recla­ mava não se convertera, com Newton, em realidade? O proble­ ma que a Renascença tinha formulado não encontrara, num prazo de tempo extraordinariamente curto, uma solução con­ cludente e definitiva? Galileu e Kepler tinham concebido a idéia de lei natural em toda a sua amplitude e profundidade, com toda a sua importância metodológica, mas só tinham podi­ do realizar a demonstração da aplicação concreta dessa concep­ ção para fenômenos naturais isolados, como a queda dos corpos e o movimento dos planetas. Subsistia, portanto, uma lacuna por onde a dúvida poderia insinuar-se; faltava ainda a prova de que essa legalidade rigorosa, a qual se revelava válida nas par­ tes, _era_.teao§ferível para o todo, de que o universo como tal era acessível aos conceitos rigorosos do conhecimento matemá­ tico, de que ele podia ser adequadamente concebido põr inter­ médio deste. Essa prova foi fornecida na obra de Newton: já não se tratava mais de ordenar e regular um cam p£ fenomenal cir­ cunscrito, mas de descobrir e fixar claramente uma_ — que dizemos? — "Lei do Cosmo”. Essa lei fundamental Newton pro­ pusera-a e demonstrara-a manifestamente na teoria da gravita­ ção. Era, enfim, o triunfo do saber humano: a descoberta de um poder de conhecer que se igualava ao poder criador da natu­ reza. Foi assim que o século X V III, em seu conjunto, compreen­ deu e apreciou a obra de Newton: reverencia em Newton, bem entendido, o grande cientista experimental; mas, longe de ficar por aí, proclama incansavelmente e com uma insistência crescen­ te que Newton não deu somente à natureza regras fixas e duradouras, mas também à filosofuj. Não menos importantes do que os resultados de suas investigações são as máximas resultantes dessas investigações, as regulae philosophandi cujo valor provou na física e com as quais marcou essa ciência para sempre. A admiração ilimitada, a veneração que o século X V III manifes­

73

tou a Newton baseia-se nessa interpretação do conjunto de sua obra. Se essa obra parece tão importante, tão incomparável, não é exclusivamente em função da elevação de seus propósitos e de seus êxitos mas ainda mais pelo caminho que ela inaugurou. Newton foi o primeiro a traçar o percurso que conduz das hipótesés~arbitrárias e fantasiosas à clareza do conceito, das trevas à luz. [ . . . ] Nature and Nature's laws lay hid in night, God said: “Let Newton b e ” and all was light [ . . . ] * Nestes versos de Pope está expressa da maneira mais con­ cisa e significativa a veneração de que Newton gozava no pensa­ mento da época iluminista. Com ele, graças a ele, pensava-se ter enfim encontrado o solo firme, a fundação que nenhuma transformação ulterior da física poderia vir a abalar. A corres­ pondência da natureza e do conhecimento humano está agora estabelecida de uma vez por todas, o vínculo que os une é doravante indissolúvel. Os dois termos dessa correlação são, sem dúvida, perfeitamente independentes, mas nem por isso dei­ xam de estar, graças a essa mesma independência, numa perfeita harmonia. A natureza que está no homem encontra-se, em suma, com a natureza do cosmo e reencontra-se nela. Quem descobre uma não pode deixar de encontrar a outra. Já era o que a filosofia da natureza da Renascença entendia por natureza: uma \ lei que as coisas não recebem do exterior mas que decorre da |própria essência delas, que está desde a origem implantada nelas. Natura estque nihilm nisi virtus insita rebus. Et lex qua peragunt proprium cuncta entia cursum.8 Para descobrir essa lei devemos abster-nos de projetar na natureza as nossas representações e os nossos devaneios subje­ tivos; devemos, pelo contrário, acompanhar o seu próprio curso * A natureza e as leis da natureza permanecem ocultas na noite/ Deus disse: “Faça-se Newton” e tudo era luz (N. do T .).

74

e fixá-lo pela observação, experimentação, medida e cálculo. M a s, os nossos elementos de medição não devem basear-se somente j nos dados sensíveis, devem recorrer igualmente a essas funções! universais de comparação e de contagem,-de.associação e de distinção, que constituemTa essência do intelêcttí. Assim, à au to ^ nomia da natureza correVponde-a autonomia do entendimento. Num só e mesmo processo de emancipação intelectual, a filoso­ fia iluminista procura m ostrar a independência da natureza ao mesmo tempo que a independência do entendimento. Ambos devem ser doravante reconhecidos em sua originalidade própria e assim correlacionados. Toda a mediação entre a natureza e o entendimento que se arrogasse detentora de uma onipotência ou de um ser transcendente tornar-se-ia imediatamente supérflua. Tal mediação não permite o estabelecimento de um vínculo mais estreito entre a natureza e o espírito; muito pelo contrário, sempre teve por efeito afrouxar toda e qualquer vinculação entre eles, pela simples posição do problema, pelo questionamento da natureza e do espírito, e acabará por rompê-la. Essa ruptura já ocorrera, na metafísica dos tempos modernos, por iniciativa dos sistemas ocasionalistas, sacrificando a independência de ação da natureza e a independência formal do espírito à onipotência da causa primeira divina. Contrária a essa recaída na transcendên­ cia, a filosofia iluminista proclama, tanto para a natureza como para o conhecimento, o princípio de imanência. Cumpre con­ ceber a natureza e o espírito por sua essência própria, a qual não é em si algo de obscuro e de misterioso, de impenetrável ao entendimento* mas que, pelo contrário, consiste em princípios que lhe são plenamente acessíveis, que ele é capaz de descobrir e de explicar racionalmente por si mesmo. Nessa perspectiva, explica-se a potência quase ilimitada que o conhecimento físico adquiriu sobre todo o pensamento da Êpoca das Luzes. D ’Alembert chamava o século X V III de Século

75

da Filosofia; mas não tinha menos direitos nem menos orgulho em designar-se como o Século da Ciência. A organização da pesquisa no domínio da física já estava muito avançada no século X V II; atingira até uma certa perfeição. Na Inglaterra, com a fundação da Royal Society em 1660t tinha sido criado um local de encontro para os trabalhos de todos os cientistas. Na realidade, essa sociedade já existia e funcionava antes como uma associação livre de pesquisadores independentes, como uma es­ pécie de "universidade invisível” (invisible college), antes de receber, com o decreto régio de fundação, seu estatuto e sua sanção oficial. Manifestava desde sua origem um espírito metodológico muito especial, recordando incessantemente que nenhu­ ma idéia merecia confiança em física se não tivesse dado antes suas provas empiricamente, se não tivesse sido testada na devida ocasião e por meio da experimentação. O movimento assim de­ sencadeado alcança em seguida a França e encontra seu primeiro apoio na Académie des Sciences fundada por Colbert (1666). Mas só o século X V III lhe proporcionou toda a sua amplitude, ao estender sua ação a todos os domínios da vida intelectual. Foi somente então que ele saiu do círculo das academias e das sociedades científicas para converter-se, de uma simples oportu­ nidade propiciada ao homem de ciência, num dos elementos mais importantes e mais profundos de toda a civilização. A par dos investigadores experimentais, dos matemáticos e dos físicos, par­ ticipam agora no movimento igualmente os espíritos que se es­ forçam por realizar uma nova orientação do conjunto das ciên­ cias morais. Uma renovação dessas ciências, uma visão mais profunda do espírito das leis, do espírito da sociedade, da polí­ tica, até da arte poética, parece impossível se não se olhar para o grande exemplo das ciências naturais. È ainda D ’Alembert quem não só encarna em sua pessoa mas exprime com maior rigor e clareza, nos seus Elementos de filosofia, essa ligação entre

76

as ciências da natureza e as ciências do espírito, assim como o princípio sobre o qual essa ligação repousa: A ciência da natureza adquire de dia para dia novas riquezas; a geometria, ao dilatar suas fronteiras, levou o seu facho às partes da física que se encontravam mais perto dela; o verdadeiro sistema do mundo foi finalmente reconhecido. Desde a Terra até Saturno, desde a história dos céus até a dos insetos, a física mudou de rosto. Com ela, quase todas as outras ciên­ cias adquiriram uma nova forma. Essa fermentação intelectual, agindo em todos os sentidos por sua pró­ pria natureza, propagou-se com uma espécie de violên­ cia a tudo o que lhe era oferecido, como um rio cauda­ loso que rompeu seus diques. Assim, desde os princípios das ciências profanas aos fundamentos da Revelação, desde a metafísica até as questões de gosto, desde a música à moral, das disputas dos teólogos aos proble­ mas econômicos, desde os direitos naturais até os direitos positivos, em suma, desde as questões que nos interessam de perto até as que só indiretamente nos afetam, tudo foi discutido, analisado ou, pelo menos, agitado. Uma nova luz sobre alguns assuntos, uma nova obscuridade sobre muitos outros foi o fruto ou a con­ seqüência dessa agitação geral dos espíritos, como o efeito do fluxo e refluxo do oceano consiste em trazer para a costa alguns objetos e dela afastar outros.4 Nem um só pensador notável do século X V III escapou a essa tendência profunda. Se Voltaire, no começo, fez época na França, não foi por seus poemas nem pelos seus primeiros esbo­ ços filosóficos, mas por sua introdução a Newton, por seus Éléments de la philosophie de N ewton; entre as obras de Diderot encontra-se uma intitulada Éléments de physiologie e entre os

77

escritos de Rousseau, uma exposição dos Fondements de la chimie. Os primeiros trabalhos de Montesquieu relacionam-se com problemas de física e de fisiologia, e ele parece ter sido impedido de lhes dar prosseguimento por força de uma circuns­ tância exterior, uma doença dos olhos que desde cedo lhe tornou difícil a observação minuciosa. Nesse estilo tão característico de suas obras da juventude diz Montesquieu: "Poder-se-ia quase pensar que a natureza é como essas virgens que guardam por muito tempo o seu tesouro, mas que, depois, deixam-se arrebatar num instante esse mesmo tesouro que tão zelosamente defen­ diam." 5 Todo o século X V III está impregnado dessa convicção: acredita que na história da humanidade chegou finalmente o momento de arrancar à natureza o segredo tão ciosamente guar­ dado, que findou o tempo de deixá-la na obscuridade ou de se maravilhar com ela como se fosse um mistério insondável, que é preciso agora trazê-la para a luz fulgurante do entendimento e penetrá-la com todos os poderes do espírito. Em primeiro lugar, era necessário que o vínculo unindo teologia e física fosse definitivamente desfeito. Embora já esti­ vesse bastante mais solto antes do século X V III, não fora ainda quebrado de modo nenhum. A autoridade das Escrituras conti­ nuava sendo respeitada em questões que só dependiam da física. As zombarias com que Voltaire atormentava inexoravelmente a "física bíblica" parecem-nos hoje superadas e insípidas, mas um juízo histórico justo não deve esquecer que ele se defrontava no século X V III com um adversário que era ainda sério e perigoso. A ortodoxia ainda não renunciara, em absoluto, ao princípio da inspiração literal e o resultado lógico desse princípio era que o relato mosaico da Criação continha uma autêntica ciência da natureza cujos dados não podiam ser abalados. Não só os teólo­ gos, mas também os físicos e os biólogos esforçavam-se por sus­ tentar e explicar essa ciência. Em 1726, é publicado com o título

78

de Théologie physique, um tratado do inglês Derham em tradu­ ção francesa, a que se seguem pouco depois a Théologie astronomique, do mesmo Derham, a Théologie de Veau, de Fabricius, e a Théologie des insectes, de Lesser.6 Voltaire não se enfurece apenas contra as pretensas descobertas dessa física teológica; ele procura, sobretudo, aniquilá-la no plano metodológico, desacre­ ditá-la como filho monstruoso do espírito metodológico, como bastardo da fé a da ciência. "Q uando alguém quer levar-me pelos caminhos da física a crer na Trindade, diz-me que as três pessoas divinas correspondem às três dimensões do espaço. Um outro acha que me vai dar a prova tangível da transubstanciação: mostra-me pelas leis do movimento como pode existir um acidente sem o seu sujeito” . Uma nítida separação metodológica só se impõe aos poucos. Toma a dianteira na geologia eliminan­ do em primeiro lugar o esquema temporal em que se desenro­ lava o relato bíblico da Criação. Já no século XVII os ataques visavam sobretudo a esse esquema. Fontenelle compara a crença dos antigos na imutabilidade dos corpos celestes à crença de uma rosa que quisesse recorrer ao fato de, em sua memória de rosa, jamais ter visto ainda m orrer um jardineiro. A crítica torna-se mais séria depois que passou a apoiar-se em resultados empíricos, em especial nas descobertas da paleontologia. O tra­ tado de Thomas Burnet, Telluris sacra theoria (1680), assim como a sua Archaeologia philosophica (1692) esforçam-se uma vez mais por confirmar a verdade objetiva do relato bíblico da Criação; mas Burnet deve, a esse respeito, renunciar expressa­ mente ao princípio de inspiração literal e refugiar-se numa inter­ pretação alegórica que lhe permite reformular toda a cronologia bíblica. Em lugar dos sete dias da Criação, ele introduz épocas ou períodos a que se pode atribuir qualquer duração, não importa qual, imposta pelas descobertas empíricas. Em As épocas da natureza, a mais importante obra de Buffon, esse procedi­ mento será elevado à categoria de um princípio de investiga­

79

ção bem definido. Buffon não pretendia entrar em conflito com a teologia e, aos primeiros ataques dirigidos contra a sua obra, submeteu-se às decisões da Sorbonne. Mas, ao manter silêncio a respeito do Gênese, disse muito mais do que poderia ter de­ clarado em qualquer polêmica. Com efeito, pela primeira vez era esboçada uma história física do mundo que se m antinha à margem de toda a espécie de dogmática religiosa e só queria apoiar-se em fatos observáveis e nos princípios da física teórica. Uma brecha irreparável foi assim aberta no sistema tradicional, e o espírito irrequieto de Voltaire não descansou, ao longo de uma obra que se estendeu por mais de meio século, enquanto não demoliu, pedra por pedra, podemos dizer, todo o edifício desse sistema. Essa destruição era a prelim inar indispensável para a reedificação da física. A ciência tinha reaberto agora, com pleno conhecimento de causa, o processo outrora intentado por Galileu. Ela reabria-o dessa vez em seu próprio fórum e decidia fazê-lo de acordo com as suas próprias normas. Desde então o seu veredito nunca mais foi seriamente contestado: o próprio adversário aderiu-lhe finalmente em silêncio. Assim foi alcança­ da uma das primeiras vitórias decisivas da filosofia do Iluminismo. Ela punha um ponto final numa questão que se iniciara na Renascença: delimitava definitivamente o domínio do conheci­ mento racional, no interior do qual este não encontrava o menor obstáculo e o menor constrangimento autoritário, onde podia movimentar-se livremente em todos os sentidos e, apoiando-se nessa liberdade, chegar, enfim, ao pleno conhecimento de si mesmo e das forças que continha em seu bojo.

2 Em Entretiens sur la pluralité des mondes, Fontenelle, pro­ curando explicar a cosmologia cartesiana, compara a história da

80

natureza com um espetáculo que se desenrolasse num vasto palco de teatro. Ao espectador sentado na platéia oferece-se uma série de eventos que chegam e partem em confusa seqüência. O espec­ tador absorve-se na contemplação desses eventos, deleita-se na riqueza variegada das imagens que se desenrolam diante dele, sem se preocupar muito em indagar como é que o espetáculo é realizado. Mas, se por uma vez se encontrar na multidão de es­ pectadores um mecânico, ele não se contentará em olhar. Não descansará enquanto não estiver na pista das causas e não des­ cobrir como funciona o mecanismo que produz essa sucessão de cenas. A conduta do filósofo é idêntica à do mecânico. Mas ocorre nesse caso uma circunstância que aumenta a dificuldade: é que a natureza, no espetáculo que produz incessantemente sob os nossos olhos, escondeu tão bem o seu dispositivo que, durante séculos, ninguém logrou descobrir-lhe o mecanismo secreto. Só a ciência dos tempos modernos conseguiu espreitar nos basti­ dores: percebeu não só o espetáculo mas compreendeu também a engrenagem que o põe em movimento. E ao invés de, por essa descoberta, o encanto do espetáculo diminuir, o seu valor é, muito pelo contrário, realçado. Seria um erro crer, como muitos, que o conhecimento dos mecanismos que regem o curso do universo lhe reduzem a dignidade. "No que me diz respeito, ainda o tenho em mais alto apreço depois de saber que ele é como um relógio. Não é deveras surpreendente que a natureza, por mais admirável que seja, assenta em definitivo sobre coisas tão sim ples?” 7 A comparação assinalada por Fontenelle é mais do que um simples jogo de espírito; ela encerra um pensamento que era de importância decisiva para toda a edificação do conhecimento da natureza no século XVII. A filosofia cartesiana da natureza conferira a esse pensamento seu cunho característico e uma apli­ cação universal. Nada se compreende da natureza se a considerar­

81

mos tão-somente uma soma de fenômenos, se apenas tomarmos em consideração a sua extensão no espaço e a sucessão de even­ tos no tempo. Trata-se de remontar desses fenômenos aos prin­ cípios; ora, estes só se encontram nas leis universais do movi­ mento. Portanto, assim que essas leis foram descobertas e se lhes deu uma expressão matemática exata, está traçado o cami­ nho para todo o conhecimento ulterior. Basta-nos desenvolver o que aí se encontra contido e implícito para ter uma visão com­ pleta de toda a natureza, para compreender o universo até em suas estruturas mais íntimas. O tratado de Descartes sobre o sistema do mundo devia fornecer a execução desse plano teórico. Estava colocado à sombra do lema: "Dêem-me a matéria e construirei um m undo”. O pensamento já não quer mais aceitar o mundo como um dado empírico; assume como tarefa pene­ trar no edifício e observar por si mesmo como a construção é realizada. Em suas próprias idéias, claras e distintas, encontra o exemplo e o modelo de toda a realidade. A evidência de seus princípios e de seus axiomas matemáticos o conduz com toda a segurança de um extremo ao outro do domínio da natureza. Pois existe um só caminho fixo e determinado, uma única cadeia dedutiva fechada sobre si mesma, que leva das causas mais eleva­ das e mais genéricas do devir até os mínimos efeitos, por com­ plexos que sejam. Não existe qualquer espécie de barragem entre o domínio das idéias claras e distintas e o dos fatos, entre a geometria e a física. Uma vez que a substância dos corpos con­ siste apenas em extensão, o conhecimento dessa extensão, a geometria pura, prepondera simultaneamente na física. Ele expri­ me a essência do mundo dos corpos e suas fundamentais pro­ priedades universais mediante definições exatas, e parte daí para a determinação do particular e dos fatos, numa seqüência con­ tínua. Mas esse grandioso projeto da física cartesiana não resistiu ao teste da experiência. Quanto mais Descartes progredia nesse

82

caminho, mais se aproximava dos fenômenos particulares da na­ tureza, maiores eram as dificuldades que se acumulavam à sua frente. Ele só podia defrontar essas dificuldades encontrando escapatórias nos novos e cada vez mais complicados mecanismos, enredando-se numa série de hipóteses. Essa tela finamente tecida foi despedaçada por Newton. Este esforça-se igualmente por estabelecer.princípios matemáticos universais que governem o curso da natureza; mas não acredita na possibilidade de reduzir toda a física à geometria. Pelo contrário, defende o privilégio e a especificidade da pesquisa física, especificidade essa que se ba-j seia, para ele, no método de experimentação e de raciocínio indutivo. O caminho da investigação física não se faz de cima para baixo, dos axiomas e princípios para os fatos, mas, inver­ samente, destes para aqueles. Não podemos começar por hipó­ teses gerais sobre a natureza das coisas para deduzir daí, em seguida, o conhecimento dos efeitos particulares; devemos, pelo contrário, iniciar a nossa investigação na posse do conhecimento que nos foi facultado de antemão pela observação direta, para tentar chegar em seguida, subindo progressivamente, até as pri­ meiras causas e os elementos mais simples dos acontecimentos em curso. O ideal da dedução opõe-se assim ao ideal da aná­ lise. E essa análise é um princípio sem fim; ela não pode esta­ belecer-se em função de uma série limitada, de um programa predeterminado de operações mentais; deve ser reatada a cada novo estágio do desenvolvimento da ciência experimental. Jamais se registra aí um ponto final absoluto, apenas uma série de pa­ radas relativas e provisórias. Newton considerou a sua própria doutrina, a teoria d a -gravitação universal, uma dessas paradas provisórias, porquanto se contentou em m ostrar na gravitação um fenômeno universal da natureza sem lhe averiguar as causas últimas. Rechaçou expressamente uma teoria mecânica da gra­ vitação porque a experimentação nenhuma prova satisfatória nos fornece nesse sentido. Tampouco deseja estabelecer uma causa

83

metafísica qualquer para a gravidade: isso significaria para o fí­ sico uma transgressão injustificável dos limites do seu domínio. Ora, esse só tem que se ocupar dos fenômenos da gravidade e não deve procurar exprimir esses fenômenos em simples con­ ceitos, numa definição abstrata. O que ele procura é uma fór­ mula matemática que os reúna a título de casos particulares concretos e que faça deles a descrição completa. A teoria física não pode nem deve ir além dos limites de uma descrição pura dos fenômenos da natureza.8 Vista nessa perspectiva, a gravi­ dade é, de fato, uma propriedade geral da matéria, mas não existe a menor necessidade de considerá-la uma de suas pro­ priedades essenciais. A filosofia da natureza que se propõe a edificar o mundo pelo puro pensamento, a construí-lo a partir de conceitos simples, vê-se constantemente a braços, segundo Newton, com uma dupla tentação e um duplo perigo. Toda vez que ela se depara com alguma qualidade geral das coisas, a qual se encontra por toda a parte, tudo o que pode fazer é hipostasiar essa qualidade, ou seja, fazer dela uma qualidade primeira, abso­ lutamente real, do ser, ou resolvê-la, reduzi-la, explicando-a como uma conseqüência de razões mais longínquas. Entretanto, esses dois perigos são estranhos ao verdadeiro empirismo, o qual se contenta em estabelecer os fenômenos, sabendo por outro lado que nenhum fenômeno constitui uma realidade tão absolutamente derradeira que não seja suscetível de ainda outra operação analí­ tica. Tal análise não pode, porém, ser realizada de modo preci­ pitado pelo pensamento, por antecipação; ela deve aguardar os avanços da experiência. É nesse sentido que Newton insiste no fato de que a gravidade é, de momento, um elemento "últim o” da nátüreza, uma qualidade provisoriamente "irredutível”, que nenhum mecanismo conhecido basta para explicar, o que não exclui, evidentemente, que essa mesma qualidade, à luz de obser­ vações ulteriores, não possa por sua vez ser reduzida a fenômenos mais simples. A hipótese de que não se sabe quais as qua-

84

lidades "ocultas", como aquelas a que a escolástica recorria, é arbitrária e, bem entendido, vazia de sentido; em contrapartida, seria indubitavelmente um progresso muito claro e muito con­ siderável para o pensamento científico chegar-se a delimitar a riqueza dos fenômenos naturais a um reduzido número de pro­ priedades fundamentais da matéria e a certos princípios do mo­ vimento, mesmo que as causas dessas propriedades e desses princípios devam, no início, permanecer desconhecidas para nós. Com essas teses clássicas, como as que se encontra, por exemplo, em conclusão da sua ó p tica ,9 Newton traçou um pro­ grama claro e preciso para o conjunto das investigações teóricas da física do século X V III. O ponto mais crítico dessas investi­ gações é a passagem de Descartes a Newton, efetuada com muita energia e lucidez. O ideal de uma filosofia da natureza pura­ mente “m ecanista”, segundo a concepção que Fontenelle anun­ ciava nas fórmulas citadas mais acima, é assim progressivamente afastado e, por fim, totalmente abandonado pelos teóricos do conhecimento da nova física. No seu Tratado dos sistemas (1749), Condillac já assume essa posição sem ambigüidade para eliminar do domínio da física esse "espírito de sistem a” que produziu os grandes edifícios doutrinais da metafísica do século X V II. Em vez de não se sabe que explicação geral mas arbitrária, extraída de uma pretensa "natureza das coisas”, era imprescindível dar lugar à observação pura dos fenômenos e à simples demonstra­ ção de sua conexão empírica. O físico deve, em definitivo, re­ nunciar a essa ambição de explicar o mecanismo do universo. Ele já tem muito que fazer, e tem feito muito, quando se em­ penha em mostrar as relações determinadas que unem seus di­ versos elementos. O ideal do conhecimento da natureza deixou de se inspirar, por conseguinte, no modelo da geometria a fim de optar pelo da aritmética, pois é a teoria dos números a que, segundo Condillac, oferece o exemplo mais claro e mais simples de uma teoria das relações em geral, de uma lógica geral das re-

85

1ações.10 Mas esse ideal de conhecimento possui, antes, a am­ plitude de sua extensão e a força de sua influência em virtude de ter sido adotado por Voltaire como grito de guerra no decorrer das lutas que travou contra a física cartesiana. Com esse seu incomparável talento para simplificar e generalizar os problemas, para universalizá-los, Voltaire não tardou em situar o problema no plano da generalidade. O método de Newton não é unica­ mente válido para a física; ele vale para todo saber em geral e submete doravante esse saber a condições e restrições bem deter­ minadas. Quando não podemos valer-nos da bússola das mate­ máticas nem do farol da experiência e da física, é certo que não podemos dar um só passo em nosso caminho. É em vão que esperamos poder decifrar algum dia a essência das coisas, seu puro "em si” (ihr reines An-Sich). Não poderemos compreender, partindo de idéias gerais, como é possível que uma fração de matéria aja sobre uma outra se não chegarmos a fazer uma idéia clara do nascimento das nossas próprias representações. Tanto num caso como no outro deveremos contentar-nos em estabelecer o "q u ê” sem ter a menor idéia do "com o”. Indagar como pen­ samos e sentimos, como os nossos membros obedecem ao co­ mando da nossa vontade, significa interrogarmo-nos sobre os segredos da criação. Ora, nesse ponto, todo o saber nos aban­ dona: não existe nenhum saber dos primeiros princípios. Nada de verdadeiramente primeiro, de absolutamente originário ja­ mais nos será plena e adequadamente conhecido: 44Aucun premier ressort, aucun premier principe ne peut être saisi par n o u s ” 11 Na questão da certeza e da incerteza do conhecimento, os papéis foram curiosamente trocados em conseqüência dessa passagem de um ideal construtivo da física para um ideal puramente ana­ lítico. Para Descartes, a certeza e a firmeza de todo o saber fun­ davam-se nesses primeiros princípios, ao passo que todo o estado de fato como tal permanecia incerto e problemático. Não po­ demos confiar na aparência sensível, porquanto ela comporta

86

sempre a possibilidade de erro, de ilusão sensorial. Para escapar a essa ilusão, não temos outro recurso senão rasgar o véu da aparência, relacionar os dados empíricos com idéias, exprimi-los por idéias que em si contêm suas próprias garantias. Existe, por­ tanto, uma certeza imediata, intuitiva, dos princípios e um co­ nhecimento mediato, derivado dos fatos. A certeza dos fatos está subordinada à dos princípios e deles depende. Mas a nova teoria do conhecimento físico, apoiando-se em Newton e Locke, in­ verte essa relação. O princípio é que é derivado e o fato, como matter of fa ct, é que está na origem. Não existe nenhum prin­ cípio que seja certo “em si” ; cada um deles deve a sua verdade e a sua credibilidade interna ao uso que fazemos dele, uso que não poderia consistir em outra coisa senão permitir-nos abranger inteiramente a diversidade dos fenômenos dados e impor-lhes uma ordem e uma classificação segundo pontos de vista deter­ minados. Se pusermos de lado essa função de ordem e de clas­ sificação, todos os princípios caem no vazio. Eles não possuem em si mesmos a sua razão de ser; só podem receber sua verdade e sua certeza por intermédio daquilo que fundamentam. Como nada têm a fundam entar que não pertença ao domínio da obser­ vação, das realidades de fato, é óbvio que esses princípios, por universais que sejam, nunca podem escapar inteiramente a esse domínio, passar-lhe por cima, "transcendê-lo” . Em meados do século, graças aos discípulos e apóstolos que a doutrina de New­ ton encontrou na França, graças a Voltaire, a M aupertuis, a D'Alembert, essa concepção impôs-se por toda parte. Costumase considerar a conversão ao " mecanismo”, ao "m aterialism o”, como o traço mais significativo da filosofia da natureza do sé­ culo X V III e acredita-se com freqüência que basta isso para caracterizar exaustivamente o seu espírito, em particular a orien­ tação geral do espírito francês nessa época. Na verdade, esse “m aterialism o”, tal como se apresenta, por exemplo, no Système de la nature, de Holbach, e em L'hom m e machine, de La Mettrie,

87

representa apenas um fenômeno isolado que não pode, de modo nenhum, passar por representativo desse período. As duas obras citadas constituem um caso específico, uma recaída no espírito dogmático contra o qual o século X V III batalha pela pena de seus pensadores científicos mais eminentes, e que se esforça jus­ tamente por superar. A mentalidade científica do círculo da En­ ciclopédia não é encarnada, em absoluto, por Holbach e La Mettrie, mas por D ’Alembert, em quem vamos encontrar a mais nítida recusa em aceitar o mecanismo e o materialismo como princípios derradeiros de explicação das coisas, como pretensas soluções dos enigmas do mundo. D ’Alembert não se desvia um milímetro sequer da linha metodológica traçada por Newton. Corta, cerce toda e qualquer questão que diga respeito à essência absoluta das coisas e seu fundamento metafísico. "No fundo, que nos importa penetrar na essência dos corpos, desde que, presumindo-se que a matéria é tal como a concebemos, possamos deduzir propriedades que consideramos primitivas; as outras propriedades secundárias de que nos apercebemos nela e que o sistema geral dos fenômenos, sempre uniforme e contínuo, em nenhuma parte nos apresenta contradição? Detenhamo-nos, pois, e não procuremos dim inuir por sutis sofismas o número já es­ casso dos nossos conhecimentos claros e certos." Sobre questões como a união da alma e do corpo e sua ação recíproca, como a origem das idéias primeiras, como as razões últimas do movi­ mento, a Providência lançou um véu que procuramos em vão erguer. “ É uma triste sorte para a nossa curiosidade e o nosso amor próprio — mas é essa a sorte da humanidade. Pelo menos, devemos concluir daí que os sistemas ou, melhor, os sonhos dos filósofos sobre a maioria das questões metafísicas não merecem ocupar nenhum lugar numa obra unicamente destinada a conso­ lidar os conhecimentos reais adquiridos pelo espírito hum ano.” 12 Com essa espécie de resignação crítica em face do conhe­ cimento, já nos encontramos, entretanto, no lim iar de um pro-

88

blema mais difícil e mais profundo. A filosofia de D ’Alembert renuncia a estabelecer a fórmula metafísica do cosmo que nos desvendaria o "em si” das coisas (das An-Sich der Dirige); ela quer ater-se ao domínio fenomenal, colocar em evidência o sis­ tema que esses fenômenos constituem, sua ordem constante e completa. Onde podemos assegurar-nos, entretanto, da verdade desse mesmo sistema, da existência de uma tal ordem? Onde re­ side a garantia, a prova decisiva de que esse sistema universal dos fenômenos é, pelo menos, um sistema perfeitamente fechado, perfeitamente uno e uniforme em si mesmo? Essa uniformidade é postulada por D ’Alembert, não é fundamentada mais precisa­ mente em parte alguma. Não é lícito recear, então, que, por esse postulado, uma nova forma de crença tenha sido introduzida? Um pressuposto metafísico indemonstrado e indemonstrável não se dissimularia aí por acaso? O racionalismo clássico, na pessoa de seus pensadores mais eminentes, Descartes, Spinoza e Leibniz, já se deparara com esse problema. Ele acreditava resolvê-lo re­ duzindo a questão da unidade da natureza à da unidade de sua origem divina. Se é verdade que a natureza é obra de Deus, ela remete-nos para a imagem do espírito divino, ostenta o selo de sua im utabilidade e de sua eternidade. Em suma, é a sua origem que nos assegura sua verdade autêntica e profunda. A unifor­ midade da natureza tem suas raízes e sua fonte na forma essen­ cial de Deus. Não está já implícita na simples idéia de Deus que ele só pode ser pensado como um, em concordância consigo mesmo, imutável em seus pensamentos e em suas vontades? Co­ locar nele a possibilidade de uma mudança de sua existência equivaleria a uma negação, a um aniquilamento de sua essência. A identificação spinozista de Deus e da Natureza, a sua fórmula Deus sive Natura, repousa inteiramente nessa concepção funda­ mental. Admitir, nem que fosse em pensamento, que a ordem da natureza poderia ser outra, é adm itir que Deus possa ser ou vir a ser outro: "Si res alterius naturae potuissent esse vel alio

89

modo ad operandum determinari, ut naturae ordo alius esset, ergo Dei etiam natura alia posset esse, quam jam est.” 18 Quer falemos das leis da natureza ou das leis de Deus, trata-se apenas de uma mudança de linguagem: as leis universais da natureza se­ gundo as quais tudo acontece e pelas quais tudo é determinado, nada mais são do que os decretos eternos de Deus, o que implica sempre uma verdade e uma necessidade eternas.14 Mesmo para Leibniz não existe, em última instância, ne­ nhuma outra prova conclusiva da constância da natureza, da harmonia das idéias e do real, do acordo dos fatos e das verdades eternas, a não ser o recurso à unidade do princípio supremo donde provém o mundo dos sentidos, assim como o do enten­ dimento. A fim de justificar que os princípios fundamentais da análise do infinito sejam aplicáveis sem restrição à natureza, que o princípio de continuidade possui não só uma significação matemática abstrata mas também uma significação física con­ creta, Leibniz parte do fato de que as leis da realidade não podem afastar-se das leis puramente ideais da lógica e da matemática: "C'est par ce que tout se gouverne par raison et qu'autrement il n'y auroit point de science n'y règle ce qui ne serait point con­ forme avec la nature du souverain principe.” 15 Mas essa demons­ tração não contém um círculo manifesto? Podemos concluir da uniformidade empírica, cujo espetáculo a natureza parece ofe­ recer-nos, a unidade absoluta e a im utabilidade de Deus e de­ pois, em sentido inverso, apoiar-nos nessa im utabilidade divina para afirmar a uniform idade perfeita, a harmonia rigorosa da ordem da natureza? Não atentamos contra as leis mais elemen­ tares da lógica, não sentimos o chão fugir-nos sob os pés quando admitimos como prova final o que, ém primeiro lugar, cumpriria justamente provar, quando apoiamos toda a certeza dos nossos julgamentos e raciocínios empíricos numa hipótese metafísica que se presta muito mais às dúvidas 6 aos debates do que à aquisição dessa mesma certeza? Com efeito, a decisão que o pen-

90

sarnento deve tomar nesse ponto impõe-lhe uma tarefa bem mais árdua e empenha a sua responsabilidade de um modo muito mais pesado do que todas as questões concernentes ao simples conteúdo da filosofia da natureza. Não se trata, efetivamente, do conteúdo da natureza mas do seu conceito, não dos dados da experiência mas de sua forma. A filosofia do Iluminismo podia considerar relativamente simples a tarefa de libertar a física da dominação, da tutela da teologia. Bastava-lhe, para consumar essa libertação, recolher a herança do século precedente, separar coticeptualmente o que já fora apartado de fato. A filosofia iluminista, em suma, nada mais fez do que esclarecer uma situação de fato que era o resultado metodológico do trabalho científico de dois séculos; aduziu-lhe as conseqüências mas sem realizar, desse ponto de vista, a revolução intelectual. Contudo, a partir do instante em que se apresenta, a essa mesma ciência, a questão de sua justificação, surge um novo e mais radical problema. Para que serve libertar a física de todo e qualquer elemento teológico-metafísico, lim itar o seu alcance a simples enunciados empí­ ricos se, por outro lado, não se consegue eliminar os elementos metafísicos de sua estrutura? Ora, toda a afirmação que for além da simples constatação da presença de um objeto dos sentidos, encontrado aqui ou ali, não comporta em si um tal elemento? Será necessário considerar como resultado da experiência a in­ terpretação sistemática da natureza e será possível realizar a de­ monstração, a dedução da uniformidade absoluta dessa expe­ riência — ou tratar-se-á, antes, de uma premissa da experiência, de um preconceito, de uma pré-opinião? E esse preconceito, esse a priori lógico, não é tão contestável quanto poderia sê-lo qual­ quer a priori metafísico ou teológico? Não nos contentemos em afastar, um por um, os conceitos e juízos metafísicos do horizonte da ciência empírica. Tenhamos a ousadia, finalmente, de per­ correr o caminho até o fim: que se prive a idéia de natureza do apoio da idéia de Deus. Que sucederá então à pretensa "neces­

91

sidade” da natureza, de suas leis universais, eternas, invioláveis? Existirá uma certeza intuitiva dessa necessidade, ou alguma outra prova dedutiva concludente? Ou deveremos renunciar a todas as provas desse tipo e decidirmo-nos a dar o último passo — reco­ nhecer que o mundo dos fatos deve ser o seu próprio suporte, que procuramos em vão para ele a firmeza de um outro apoio, de um "fundam ento" racional? Em toda essa problemática, antecipamos o desenvolvimento que conduz do fenômeno da física matemática ao cepticismo de Hume. E não entendemos por esse desenvolvimento uma pura construção intelectual mas um processo histórico concreto que se pode acompanhar passo a passo no pensamento do século X VIII e colocar em evidência até nos detalhes de seus nós e ra­ mificações. Esse ponto preciso escapou, até o presente, aos his­ toriadores da filosofia e, com isso, o verdadeiro ponto de partida do cepticismo de Hume não foi enfatizado. É evidente que esse ponto de partida não aparece a quem se contenta, como ocorre freqüentemente, em situar a doutrina de Hume no contexto do empirismo britânico e em interpretar o seu desenvolvimento his­ tórico a partir desses pressupostos. A doutrina de Hume não representa, com efeito, um resultado final mas um recomeço da filosofia; representa mais do que um elo na cadeia espiritual que vai de Bacon a Hobbes, de Hobbes a Locke e de Locke a Berkeley. Ê claro que Hume tomou deles alguns de seus instrumen­ tos de pensamento, o arsenal conceptual e sistemático do empi­ rismo e do sensualismo. Mas a sua problemática autêntica, espe­ cífica, provém de outro lado, tem origem numa outra causa que se situa no prolongamento, na continuação direta dos debates científicos dos séculos XVII e X V III. Um dos elos mais impor­ tantes da cadeia encontra-se nos trabalhos da escola newtoniana, em particular na elaboração metodológica rigorosa de que se beneficiaram as idéias de Newton entre os pensadores e cientis­ tas holandeses.16 Essas idéias foram reatadas de um modo ex-

92

íraordinariam ente rigoroso e conseqüente — no sentido da in­ vestigação de uma lógica da ciência experim entai A Holanda já tinha sido no século XVII o país onde se associavam, de ma­ neira exemplar, simultaneamente o movimento tendente a uma observação exata dos fatos, para a elaboração de um rigoroso método experimental, e um estilo de pensamento crítico propenso a determinar, com tanta certeza quanto clareza, o sentido e o valor da hipótese científica. O exemplo clássico dessa associação é fornecido pelo maior dos cientistas holandeses, Christian Huyghens, que, no seu Traité de la lumière (1690), expõe, no que se refere às relações da experiência e do pensamento, da teoria e da observação, princípios que superam largamente o cartesianismo em clareza e distinção. Huyghens estabelece nitidamente que não se trata de atingir em física a mesma evidência que nas demonstrações e deduções matemáticas, que não existe nenhuma certeza intuitiva das verdades físicas fundamentais. Que tudo o que se deve exigir e obter em física é uma "certeza m oral”, a qual, na realidade, pode elevar-se a um tão alto grau de pro­ babilidade que, na prática, em nada perde para uma demonstra­ ção rigorosa. Com efeito, se as conclusões aduzidas sob a pres­ suposição de uma determinada hipótese são plenamente confir­ madas pela experiência, se se pode, em particular, prever novas observações baseando-nos nessas conclusões e se se encontra a sua confirmação na experiência, então alcançou-se, efetivamente, aquela espécie de verdade a que a física pode aspirar.17 Os físi­ cos holandeses do século XVIII continuarão construindo sobre essas fundações, persuadidos que estavam de ter sob os olhos, com a teoria de Newton, a confirmação por excelência da cor­ reção de suas posições. Com efeito, nenhum outro elemento hipotético aí se encontra, além daqueles que a experiência pode imediatamente comprovar. S’Gravesande, em sua aula inaugural como professor de matemática e astronomia na universidade de Leyde, em 1717, tentou desenvolver e esclarecer sob todos os as­

93

pectos essa idéia fundamental. Mas, no transcurso desse desen­ volvimento, defrontou-se precisamente com um problema difícil e deveras curioso. Quando, tomando por base certas observações, prevemos fatos que ainda não observamos diretamente, apoiamonos no axioma de uniformidade da natureza. Sem esse axioma, sem a hipótese de que as leis que descobrimos hoje na natureza vão manter-se e perdurar mais tarde, toda a conclusão inferida do passado para o futuro cairia manifestamente no vazio. Ora, como esse mesmo axioma será demonstrável? Responde S’Gravesande: "Não se trata de um axioma estritamente lógico mas de um axioma prático; sua validade não decorre da necessidade do pensamento mas da necessidade da ação. Toda a ação, toda a transação prática com as coisas não estaria vedada ao homem se este não pudesse levar em conta que os ensinamentos recolhidos de uma experiência passada ainda valem no futuro, aí conservam sua força e sua validade? O raciocínio que conclui do passado e do presente para o futuro não é, evidentemente, um raciocínio de lógica formal, um silogismo constrangedor; mas nem por isso deixa de ser um raciocínio que, por analogia, é perfeitamente válido e até indispensável. O saber que temos das coisas físicas, o que sabemos da natureza empírica das coisas, não transpõe o limite desse conhecimento por analogia. Temos, entretanto, o direito e a obrigação de confiar nele, visto que nos é imprescin­ dível aceitar por verdadeiro tudo cuja refutação implicaria a supressão para o homem de todo e qualquer meio de existência empírica, de todo e qualquer tipo de vida social.” 18 Uma curiosa reviravolta acaba, portanto, de se concretizar de uma assentada: a certeza da física, que era baseada em pres­ supostos puramente lógicos, repousa agora numa pressuposição biológica e sociológica. O próprio S’Gravesande procura atenuar a novidade e o radicalismo desse pensamento recorrendo, uma vez mais, a uma interpretação, a uma explicação metafísica. De­ clara ele: “O Autor da natureza colocou-nos na necessidade de

94

raciocinar por analogia, a qual, por conseguinte, pode servir de fundamento legítimo para os nossos ra cio cín io s/'19 Mas essa conclusão, esse "por conseguinte", dissimula mal a p&cá0aaiç slç áXXo yévoç . A necessidade psicológica e biológica do ra­ ciocínio por analogia permitirá afirm ar seja o que for a favor de sua necessidade lógica, de sua verdade "objetiva"? O empirismo matemático chegou agora ao limiar do empirismo céptico: a partir desse instante a passagem de Newton a Hume torna-se inevitável. As duas concepções estão separadas apenas por uma frágil e delgada divisória que o menor sopro derrubará. Descartes, para pedra angular de sua doutrina da certeza do saber, não encon­ trou outra coisa a não ser a "veracidade divina". Teria sido pór em dúvida essa veracidade pretender contestar a validade abso­ luta das idéias e dos princípios que discernimos com clareza e a evidência mais perfeita, a das noções e regras da matemática pura. Agora, pelo contrário, é preciso recorrer, a fim de confir­ mar a validade dos primeiros princípios da física, à verdade da experiência, não à veracidade de Deus mas à sua bondade; daí resulta que uma convicção indispensável ao homem, de uma im­ portância e de uma necessidade vital para ele, deve ter também um fundamento na natureza das coisas. Podemos confiar no ra­ ciocínio por analogia, prossegue S*Gravesande, se levarmos em conta a bondade suprema do Criador: "Pois a certeza da analo­ gia baseia-se na invariabilidade dessas leis que não poderiam estar sujeitas a mudança sem que o gênero humano se ressentisse disso e perecesse em pouco tem po.” 20 Mas, sendo assim, o problema fundamental da metodologia da física vê-se implicitamente trans­ formado num problema de teodicéia. Elimine-se a questão da teodicéia, ou dê-se-lhe uma resposta negativa, e o problema da certeza da indução física adquire então um aspecto muito dife­ rente. E foi justamente essa a mudança que se realizou em Hume. O empirismo matemático encontrava-se num ponto tal 1 que a certeza da "uniform idade da natureza" só podia ser e sta -)

95

belecida e justificada por uma espécie de “fé ”. Hume apodera-se dessa conclusão mas despoja imediatamente essa fé de todos os seus componentes metafísicos, descarta todos os elementos trans­ cendentes. Ela não mais assenta em bases religiosas mas em pura­ mente psicológicas; deriva de uma necessidade puramente ima­ nente da natureza humana. Nesse sentido, a teoria humiana do belief, da crença, é a continuação e a solução irônica de todo um processo intelectual tendente a conferir à própria ciência ex­ perimental um fundamento religioso. A solução consiste na in­ versão dos papéis entre a ciência e a religião. Não é a religião que permite, graças à sua verdade superior, “absoluta”, dar um sólido ponto de apoio à ciência; pelo contrário, é a relatividade do conhecimento científico que arrasta, por sua vez, a religião para o seu terreno movediço. Nem a ciência nem a religião são suscetíveis de uma justificação “ racionar', estritamente objetiva; contentemo-nos, pois, em sacar uma e outra de suas fontes sub­ jetivas, em compreendê-las, na falta de poder fundamentá-las à semelhança das expressões de certos instintos primitivos e pro­ fundos da natureza humana. A conclusão a que nos leva a análise do problema da cau­ salidade impõe-se também do ponto de vista do problema da substância. O empirismo matemático também antecipava, sobre esse ponto, um resultado decisivo. Com efeito, não combatia ele a idéia de uma matéria cujas propriedades fundamentais, aquelas que nos são indicadas pela experiência, estariam unidas por uma relação constante entre princípio e conseqüência e por uma causação recíproca; e que seriam dedutíveis umas das outras, na mais rigorosa necessidade intelectual? Tal dedução era justamente o ideal a que Descartes sujeitara a física. Partindo das proprie­ dades puramente geométricas da matéria, Descartes procura mos­ trar que se pode extrair delas todas as determinações que temos o costume de atribuir ao mundo dos c o rp o sT o d a s as qualidades da matéria, inclusive a impenetrabilidade e a gravidade, são de­

96

duzidas unicamente da extensão. Esta constitui, em suma, a ver­ dade, a essência, a substância do mundo material, ao passo que todas as outras qualidades são postas na categoria de simples aci­ dentes, de propriedades "contingentes”, Newton e sua escola contestam igualmente nesse ponto o cartesianismo e opõem ao seu ideal dedutivo um ideal puramente indutivo. Se nos ativermos estritamente ao fio condutor da experiência, sustentam eles, só poderemos concluir pela coexistência regular dessas proprieda­ des, sem poder jamais pretender deduzir umas das outras. Para bem compreender a história desse problema, uma espiada à dou­ trina dos físicos holandeses é particularmente reveladora. S'Gravesande e seu discípulo e sucessor Musschenbroek não se can­ saram de repetir que é inteiramente frívolo querer distinguir entre as determinações essenciais e não-essenciais da matéria. Como saber se uma lei natural que vemos por toda parte confirmada pela experiência e que, por conseguinte, devemos reconhecer como uma lei universal — por exemplo, a Lei da Inércia — nos revela uma propriedade essencial e necessária dos corpos? "Essas leis são extraídas da essência da matéria ou deve-se deduzi-las somente de certas propriedades fundamentais que Deus conferiu aos corpos, sem que elas, entretanto, lhes pertençam essencial e necessariamente, ou, enfim, os efeitos que temos sob os nossos olhos assentam em causas exteriores das quais não podemos ter a menor idéia? Eis o que ignoramos de forma absoluta.” Pode­ mos considerar, com uma certeza empírica, a extensão e a forma, o movimento e o repouso, a gravidade e a inércia como quali­ dades primárias da matéria, mas nada impede que a par dessas qualidades que conhecemos existam outras, as quais serão talvez descobertas mais tarde, e que poderíamos considerar pelos mes­ mos motivos, ou com maiores razões, qualidades primitivas e originárias.21 Temos, pois, que nos decidir, também nesse ponto, por um abandono definitivo. Em vez de separar a "essência” da "aparência”, e de inferir esta daquela, devemos tomar po­

97

sição, pura e simplesmente, no interior do mundo da experiência; em vez de querer "explicar” uma propriedade por uma outra, devemos nos ater à vizinhança, à coexistência dos diferentes ca­ racteres que a experiência nos revela. Nada perderemos do nosso saber real com esse abandono; apenas nos emanciparemos de um ideal que o progresso do conhecimento empírico sempre recha­ çou e desmembrou. Percebe-se que não vai mais que um passo dessa visão das coisas à dissolução completa da idéia de subs­ tância, ao pensamento de que a representação das coisas corres­ ponde tão-somente à representação de uma simples soma, de um agregado de qualidades. A passagem efetua-se progressivamente e sem ruído: a tentativa de excluir das fundações da filosofia da experiência todos os elementos "metafísicos” é levada finalmente tãô longe que ameaça, que compromete os próprios fundamen­ tos lógicos do empirismo.

3 Enquanto a física matemática se conserva nos limites de um fenoinenismo estrito, chegando mesmo à elaboração de conclu­ sões cépticas, a filosofia popular da ciência envereda pelo ca­ minho exatamente oposto. Ela não é afetada por qualquer escrú­ pulo ou dúvida crítica e está firmemente decidida a não pres­ cindir de nenhuma de suas ambições epistemológicas. Impelida pelo desejo de conhecer o que o mundo contém em seu núcleo secreto, acredita ter ao alcance de sua mão a solução de seus enigmas. Já não necessita, no fundo, para chegar a essa solução, de nenhum esforço positivo: tudo o que nos resta fazer é afastar os obstáculos que retardaram até o presente os progressos do conhecimento da natureza e o impediram de prosseguir resoluta­ mente em seu caminho até o fim. O que, de maneira incessante, reteve o espírito do homem de tomar verdadeiramente posse da

98

natureza e de aí se estabelecer em definitivo foi essa tendência fatal para questionar o além da natureza. Que se descarte essa questão de "transcendência” e a natureza deixa instantanea­ mente de ser um mistério. Não é a sua essência que é misteriosa ou incognoscível, foi o espírito humano que lançou sobre ela uma obscuridade artificial. Arranque-se-lhe esse véu de palavras, de conceitos arbitrários, de preconceitos fantásticos e a essência apresentar-se-nos-á tal como é: como um todo organizado, que se jus­ tifica a si mesmo, que se sustenta e se explica inteiramente por si mesmo. Nenhuma explicação extrínseca, buscando o princípio da natureza para além dela própria, jamais poderá atingir esse objetivo, pois o homem é obra da natureza e só tem existência com ela. É em vão que ele se esforça por escapar à sua lei: mesmo em pensamento, só aparentemente ele pode romper tais vínculos. Qualquer esforço que seu espírito faça para transpor os limites do mundo sensível vê-se-lhe incessantemen­ te reconduzido, pois a única faculdade que lhe é concedi­ da é a de interligar os dados sensíveis. Nesses dados está con­ tido todo o conhecimento que poderemos desejar obter sobre a natureza; e esses dados oferecem-se-nos, aliás, numa ordem tão clara e tão completa que nada subsiste de obscuro ou de duvi­ doso. O segredo da natureza esquiva-se aos que ousam resistirlhe, encará-la de frente com arrogância. Não vislumbra nela con­ tradição nem ruptura; aí vê apenas um ser e uma forma de legalidade. Todos os processos naturais, incluindo aqueles fatos que temos o costume de designar como fatos espirituais, toda a ordem física em seu conjunto, assim como a ordem "m oral" das coisas em sua totalidade, reduzem-se inteiramente à matéria e ao movimento e confundem-se com eles. "Existir não quer dizer outra coisa senão ser suscetível de movimento e concebível no movimento, conservá-lo em si, recebê-lo e transmiti-lo; atrair sobre si as matérias que são apropriadas para fortalecer o seu ser e afastar de si aquelas que podem debilitá-lo.” Tudo o que

99

somos e podemos vir a ser, as nossas representações, os nossos atos de vontade, as nossas atividades, nada mais são do que os efeitos necessários da natureza e das qualidades fundamentais que a natureza nos outorgou, assim como das condições nas quais essas qualidades se desenvolvem e se transform am .22 O raciocínio, que é o único a poder assegurar-nos da ver­ dade da natureza, não consiste, portanto, na dedução lógica ou matemática, é o raciocínio que vai da parte ao todo. Só podemos decifrar e determ inar a essência da natureza em seu conjunto partindo da essência do homem. A fisiologia do homem toma-se, portanto, o ponto de partida e a chave do conhecimento da natu­ reza. As matemáticas e a física matemática perdem sua posição central e são substituídas, entre os fundadores da doutrina mate­ rialista, pela biologia e fisiologia geral. La Mettrie parte de ob­ servações médicas; Holbach recorre sobretudo à química e às ciências da vida orgânica; a objeção de Diderot à filosofia de Condillac é a de que não poderia limitar-se unicamente à simples sensação como elemento primeiro de toda a realidade: a análise deve ir muito mais longe e procurar a causa da sensação. E ela não se encontra em nenhuma outra parte mas em nossa própria organização física. Assim, o fundamento da física deixa de resi­ dir na análise das sensações para localizar-se na história natural, na fisiologia e na medicina. A primeira obra de La Mettrie, que é a "história da alm a”, explica que só existe um meio de escrever essa história: é permanecer constantemente preso ao fio condutor dos processos físicos e não arriscar a menor iniciativa que não esteja justificada pela observação fiel dos fenômenos corporais. São observações desse gênero, efetuadas por ocasião de um aces­ so de febre de que foi acometido e durante o qual ele adquiriu uma consciência aguda da completa transformação de toda a sua vida sentimental e intelectual, as que estão, segundo o seu pró­ prio relato, na origem de suas investigações e que orientaram toda a sua filosofia.23 A experiência sensível, corporal, devia ser

100

doravante o seu único guia: "Eis os meus filósofos”, costumava ele dizer, referindo-se aos seus sentidos.24 Aquele que não se contenta com esse mundo visível, que indaga as causas invisíveis dos efeitos visíveis, não age mais sabiamente, segundo Diderot, do que um camponês que atribuísse o movimento do seu relógio, cujo mecanismo não entende, a um ser espiritual escondido em seu interior. Sobre esse ponto o materialismo dogmático converge com o fenomenismo: pode servir-se das suas armas sem que por esse fato concorde com as suas conclusões. Pois ele também afirma estar muito longe de seu pensamento pretender determ inar a essência absoluta da matéria e não ter essa questão nenhuma im­ portância decisiva para a sua argumentação. Declara La Mettrie: "Satisfaz-me igualmente nada saber sobre o modo como a ma­ téria, em si inerte e bruta, converte-se em matéria ativa e orga­ nizada; tudo ignorar das outras maravilhas inconcebíveis da na­ tureza, não poder compreender, por exemplo, o nascimento do sentimento e do pensamento num ser que, aos nossos sentidos limitados, pouco mais parece ser do que um pedaço de lama. Que se me conceda somente que a matéria orgânica encerra em si um princípio de movimento, graças ao qual ela se diferencia, e que toda a vida animal depende dessa diferença de organização.” O homem está para o macaco e os animais superiores como o relógio planetário construído por Huyghens está para um relógio elementar. "Se são necessários instrumentos mais numerosos, mais rodas e molas para indicar o movimento dos planetas do que para assinalar o curso das horas, se Vaucanson tivesse que pôr mais arte para construir o seu tocador de flauta do que para o seu canário, então apenas um grau a mâis de sua arte teria sido ne­ cessário a fim de produzir um ser falante [. . .] O corpo humano nada mais é do que um prodigioso pêndulo, construído com uma arte e uma habilidade supremas." 25 Constitui um dos traços me­ todológicos característicos do materialismo do século X V III dei-

101

xar de considerar as relações do corpo e da alma à maneira dos grandes sistemas metafísicos do século X V II, desde o ponto de vista da substância, mas quase exclusivamente do ponto de vista da causalidade. A questão de saber como se harmonizam as suas duas "naturezas" só pode perturbar-nos; basta que estejamos cer­ tos da ligação indissolúvel de suas operações. A esse respeito, é impossível traçar uma linha de demarcação em alguma parte: a separação dos fenômenos corporais e dos fenômenos espirituais é apenas uma abstração para a qual a experiência não nos fornece documento nem prova. Por minuciosas que sejam as nossas observações, por mais longe que possamos levar a nossa análise experimental, nunca se chegará a um ponto em que seja possível separar o espiritual do corporal. Essas duas realidades só nos são dadas em conjunto; elas estão feitas de tal modo de um só jato que a supressão de uma jamais será possível sem a destruição da outra. Uma vez que só podemos conceber e julgar a essência de uma coisa por seus efeitos, apenas nos resta, portanto, uma con­ clusão: a ligação necessária e indissolúvel nos efeitos prova a identidade da essência. A distância que parece separar a maté­ ria "m orta" dos fenômenos da vida, o movimento da sensação, tampouco nos deve induzir em erro. Ignoramos, é certo, de que maneira a sensação nasce do movimento; mas não encontramos a mesma incerteza nos casos em que meramente lidamos com a matéria pura e simples e seus fenômenos fundamentais? O sim­ ples fenômeno do choque, a transmissão de uma energia cinética de uma massa para uma outra, podemos "compreendê-lo" conceptualmente, explicá-lo? Não; devemos contentar-nos em estabelecê-lo pela experiência. O mesmo método de verificação em­ pírica impõe-se igualmente para os chamados problemas da "psicofísica": mecânica ou psicofísica, as duas questões são, ao mesmo tempo, tão enigmáticas e, por outro lado, tão transparen­ tes uma quanto outra. Se nos contentarmos com os julgamentos da experiência e nada procurarmos além dos seus limites, ela mos-

102

trar-nos-á sempre a mesma ligação constante, quer entre as diver­ sas propriedades materiais quanto entre realidades e fatos cor­ porais e espirituais. Portanto, se nada encontramos de surpreen­ dente em atribuir à matéria, a par de sua propriedade funda­ mental de extensão, outras determinações, por que recuaríamos diante da idéia de adicionar-lhe, ademais, a faculdade de sentir, de recordar, de pensar? O pensamento como tal é, sem dúvida, difícil de associar à matéria organizada, mas nem mais nem me­ nos, em última análise, do que a impenetrabilidade ou a eletri­ cidade, o magnestimo ou a gravidade, que tampouco se deixam reduzir à simples extensão mas representam, pelo contrário, algo de novo e de diferente.26 O que vale para as sensações e as idéias vale igualmente para os nossos desejos e os nossos instintos, para os ditames da nossa vontade e das nossas inclinações morais. lá não temos a menor necessidade, para compreendê-los, de fazer intervir um princípio sobrenatural e imaterial, de recorrer a uma substância simples que não passa, afinal, uma palavra vazia. "Postulado o princípio mínimo de movimento, os corpos anima­ dos terão tudo do que necessitam para mover-se, sentir, pensar, arrepender-se e comportar-se, numa palavra, no físico e no moral que dele depende." 27 Com esses argumentos bem conhecidos do sistema m ateria­ lista, entretanto, apenas apreendemos, de momento, a superfície e não o verdadeiro núcleo do pensamento que a anima. Pois, por paradoxal que isso possa parecer, à primeira vista esse núcleo de pensamento não deve ser procurado do lado da filosofia da natureza, mas do lado da ética. O materialismo, na forma em que surgiu no século X V III, em que se consolidou e foi defendido, não é um simples dogma científico ou metafísico: é um impera­ tivo. Ele não quer somente fixar ou corroborar uma tese sobre a natureza das coisas, mas, sobretudo, comandar e interditar. En­ contramos esse traço com particular nitidez no Système de la nature, de Holbach. Vista do exterior, a doutrina de Holbach

103

parece representar o sistema do mais rigoroso e mais conseqüente determinismo. Ao quadro da natureza não se deve acrescentar o menor traço que não seja compreensível a partir do homem, de seus desejos, de seu querer. No reino da natureza nada existe de justo ou de injusto, de bom ou de mau: reina aí a perfeita equivalência de todos os seres e de todos os acontecimentos. To­ dos os fenômenos aí são necessários e nenhum ser, nas condições dadas e em função de qualidades que já são as suas, pode agir de qualquer outro modo senão daquele como efetivamente agiu. Por conseguinte, não existe mal nem culpa nem desordem na natureza: "Tudo está em ordem na natureza, cujas partes jamais podem afastar-se das regras certas e necessárias que decorrem da essência que receberam .” 28 Portanto, que o homem se acre­ dite livre não passa de uma perigosa ilusão, de uma fraqueza intelectual. É a estrutura do átomo que o forma, seu movimento é que o faz agir: condições que não dependem dele determinam o seu ser e governam o seu destino.20 Mas se tal é o conteúdo da tese materialista, a sua expressão cai numa estranha contra­ dição. Ela nunca responde à exigência spinozista: non ridere, non lugere neque detestari, sed intelligere. Ainda que seja ape­ nas exteriormente, a filosofia na natureza de Holbach não pre­ tende ser mais do que a preparação, a introdução de um conjunto mais completo. O "sistema da natureza" constitui para ele ape­ nas a base do "sistema social” e da "moral universal”: a verda­ deira orientação do seu pensamento só se apresenta nessas duas últimas obras, plenamente desenvolvida e nitidamente exposta. O "homem deve libertar-se de todos os ídolos, de todas as ilusões sobre a origem primeira das coisas: esse despojamento é-lhe in­ dispensável para cuidar do ordenamento do mundo e realizá-lo com paz e segurança. Foi o espiritualismo teológico que impediu até o presente"toda a organização verdadeiramente autônoma do sistema poJíticn e social. É o freio que retardou a cada passo o desenvolvimento das ciências. "Inim iga jurada da experiência, a

104

teologia, ciência do sobrenatural, foi um obstáculo invencível ao progresso das ciências que com ela quase constantemente coli­ diram em seu caminho. A física, a história natural, a anatomia não tinham o direito de observar fosse o que fosse, salvo pelos olhos malévolos da superstição.” 80 Entretanto, o re in ^ d a ^ su perstição é ainda muito mais perigoso quando se lhe confia a õTgãnizaçIo da ordem moral. Não contente por aniquilar então o saberjium ano, ela arranca do homem o próprio fundamento de &ua_felicidade. Mergulha os homens na angústia com mil fan­ tasmas, arrebata-lhes as mais simples alegrias da existência. O único remédio é a supressão radical, decisiva, de todo_o espiri­ tualismo. É necessário extirpar, de uma vez p_or_ todas, as idéias de Deus,.d e liberdade, de imortalidade, a fim de que parem as intervenções incessantes do outro niyndo — que essas idéias si­ mulam construir — neste nosso mundo, cuja ordem racional o espiritualismo ameaça subverter. La Mettrie desenvolve a mesma forma de argumentação em L'hom m e machine. O mundo jamais será feliz enquanto não se decidir a ser ateu. Junto com a crença em Deus desaparecerão também todas as querelas teológicas e as guerras religiosas. " A natureza infeccionada por um veneno sagrado retomará seus direitos e sua pureza.” 81 Ao apresentar-se dessa maneira, como aguerrido m ilitante e como acusador, impondo uma norma ao pensamento e à fé dos homens, em vez de contentar-se com a tomada de posições teóri­ cas, o Système de la nature, entretanto, mergulha num difícil dile­ ma. A doutrina da necessidade absoluta do curso da natureza prende-se na rede de suas próprias demonstrações. Com que direi­ to, de fato, pode-se ainda falar de "norm as” no âmbito dessa dou­ trina? No que poderia ela basear-se para impô-las e avaliá-las? O dever não irá revelar-se uma pura quimera e converter-se em simples necessidade? Que mais nos restaria, nesse caso, senão abandonarmo-nos a essa necessidade? Como poderíamos regê-la, prescrever-lhe o seu percurso? A crítica que se exerceu desde o

105

século X V III contra o Système de la nature já tinha descoberto o ponto fraco fundamental da argumentação. A réplica de Fre­ derico, o Grande, insiste expressamente sobre esse ponto: "Após ter esgotado todas as provas destinadas a m ostrar que os homens são conduzidos em todas as suas ações por uma necessidade fa­ tal — objeta o rei — , o autor deveria aduzir a conseqüência óbvia de que somos apenas uma espécie de máquina, marionetes acionadas por uma força cega. E, no entanto, ele encoleriza-se contra os padres, contra os governos, contra todo o nosso sistema de educação: acredita, pois, que os homens que exercem essas atividades são livres, depois de lhes dem onstrar que são escravos. Que loucura e que absurdo! Se tudo é movido por causas neces­ sárias, todos os conselhos, todos os ensinamentos, os castigos e as recompensas são tão supérfluos quanto inexplicáveis: poderse-ia igualmente pregar a um carvalho e querer persuadi-lo a transformar-se em laranjeira." Uma dialética mais sutil e mais flexível do que aquela de que Holbach dispunha podia, evidentemente, tentar reduzir essa objeção e envolvê-la habilmente nos ardis de sua própria argu­ mentação. Diderot apercebe-se com toda a clareza das antino­ mias do sistema do fatalismo, exprime-as da maneira mais exata, mas, ao mesmo tempo, serve-se dessas antinomias como forças motrizes, como veículos de seu próprio pensamento dialetizado de ponta a ponta. Ele reconhece a circularidade da argumenta­ ção, mas logo a converte num jogo de espírito intencional. Foi levado por esse impulso que ele concebeu sua obra mais espiritual e mais original: o romance Jacques le fataliste, que quer apre­ sentar a idéia de fatum como o alfa e o ômega de todo o pen­ samento humano, mostrando ao mesmo tempo como, com essa idéia, o nosso pensamento cai em contradição consigo mesmo, como, pelo simples fato de expor essa idéia, deve implicitamente negá-la e suprimi-la. Não nos resta outra solução senão consi­ derar também como necessária essa situação, isto é, essa falta

106

que cometemos incessantemente contra a idéia de necessidade ao submetermo-nos a todo o instante, em nossas representações e em nossos julgamentos, em nossas afirmações e negações, ao do­ mínio da necessidade. Esse duplo movimento, essa oscilação entre os dois pólos da necessidade e da liberdade, realiza completa­ mente, segundo Diderot, o próprio círculo da nossa existência e do nosso pensamento. £ graças a çsse círculo, e não por uma afirmação ou uma negação simples e unilateral, que chegamos a um conceito bastante compreensivo para envolver toda a natu­ reza: esse conceito de natureza que se eleva fundamentalmente acima do bem e do mal, acima da concordância e da discordân­ cia, do verdadeiro e do falso, porquanto inclui os momentos opos­ tos e integra ambos. Mas o século X V III, em seu conjunto, não se entregou a esse turbilhão, a essa vertigem dialética de Diderot que o arras­ tava alternadam ente do ateísmo ao panteísmo, do materialismo ao panpsiquismo dinâmico e vice-versa. No desenvolvimento do seu pensamento, o Système de la nature desempenha um papel relativamente exíguo e secundário. Os pensadores mais próxi­ mos do círculo de Holbach rejeitaram as conclusões de sua obra em seu radicalismo e combateram-lhe, inclusive, as premissas. O espírito satírico e contundente de Voltaire reconhece-se no modo como acerta em cheio no ponto vulnerável da obra de Holbach. Com lucidez e sem o menor constrangimento, põe a nu a con­ tradição de Holbach que, tendo erguido como sua bandeira a luta contra o dogmatismo e a intolerância, não tardou em elevar a sua doutrina ao status de dogma e em defendê-la com um zelo fanático. Voltaire recusa-se a deixar-se m arcar como livre-pensador com semelhantes argumentos e levanta-se contra a idéia de receber das mãos de Holbach e de seus adeptos o "diplom a de ateu ”. Seu julgamento é ainda mais nítido no tocante à apresen­ tação da obra e ao seu valor literário. Incluiu-a no número das obras pertencentes ao gênero literário pelo qual alimenta a

107

menor dose de indulgência: o "gênero enfadonho” [genre ennuyeux].32 Com efeito, além de seu comprimento e de sua pro­ lixidade, o texto de Holbach é de uma rigidez e de uma aridez profundas. De resto, não é seu propósito expresso excluir do es­ petáculo da natureza não só todos os elementos religiosos mas também todos os elementos estéticos, bem como esterilizar todas as potências do sentimento e da imaginação? "Pensemos nisto: somos apenas as partes sencientes de um todo que é desprovido de toda sensibilidade; de um todo cujas formas e ligações cadu­ cam todas mal nasceram, e duraram um tempo mais ou menos longo. Vejamos na natureza uma oficina prodigiosa que contém tudo o que é necessário para produzir as criaturas que temos diante dos nossos olhos e não atribuamos suas obras a alguma causa misteriosa que não existe em parte alguma, salvo em nosso cérebro.” 33 Goethe tinha, sem dúvida, essas linhas sob seus olhos, ou outras semelhantes, ao declarar que, para ele e seus amigos de juventude, em Estrasburgo, quando ouviam falar dos enciclopedistas, era como se deambulassem entre as bobinas e os teares de uma imensa tecelagem, no ambiente trepidante e estri­ dente de uma mecânica incompreensível para os olhos e para o espírito, na ininteligibilidade de uma oficina que integra os mais complexos dispositivos, e pensando sempre que essa fabricação tem por único objetivo produzir a peça de tecido que acabamos por nos sentir culpados de usar, na forma de vestuário, sobre o nosso próprio corpo. Quanto ao Système de la nature, ele e seus amigos pensavam ser incompreensível que semelhante livro ti­ vesse podido passar por perigoso: "Parecia-nos tão pardacento, tão lúgubre e mortal, que dificilmente suportávamos a sua pre­ sença; tremíamos diante dele como diante de um espectro”. A reação provocada pela obra de Holbach, desde a sua publicação, relaciona-se com o fato de que suscitou contra ele a unanim i­ dade não só das forças religiosas mas também das forças vivas da arte de sua época. Foram essas forças, levando à restauração

108

da estética sistemática, as que tiveram igualmente uma partici­ pação ativa na edificação da filosofia da natureza do século X V III: o movimento que elas deflagraram desempenhou um pa­ pel, fez mesmo época, até no desenvolvimento das ciências da natureza.

4 Em seu escrito intitulado Da interpretação da natureza (1754), Diderot, que, entre os pensadores do século X V III, pos­ sui sem dúvida o faro mais aguçado para todos os movimentos e transformações do seu tempo, observa que o século parece ter atingido um ponto particularm ente crítico, talvez mesmo decisivo. Chegamos a um momento em que se anuncia uma grande trans­ formação das ciências. "Atrevo-me a afirmar que, antes de uma centena de anos ter transcorrido, não haverá três geômetras se­ quer em toda a Europa. Essa ciência atingiu o seu ponto culmi­ nante e, quanto ao essencial, permanecerá no estado a que foi levada pelos Euler e os Bemouilli, os D'Alembert e os Lagrange. Eles fixaram as colunas de Hércules que não se poderá transpor." Sabemos como essa profecia respeitante à história das matemá­ ticas puras foi desmentida pelos acontecimentos: os cem anos vaticinados por Diderot ainda não tinham transcorrido quando morreu Gauss, que tinha renovado, uma vez mais, toda a estru­ tura das matemáticas, que ampliara os seus limites até novos horizontes, tanto quanto ao conteúdo como do ponto de vista do método, de uma maneira que o século X V III não podia prever. Mas, no entanto, existe um sentimento correto na base da pro­ fecia de Diderot. O ponto que ele quer enfatizar, sobre o qual quer insistir, é que as matemáticas não podem mais pretender, j doravante, ter_o monopólio da autoridade no domínio das ciên- f cias da natureza^ Surgira uma rival que elas não conseguirão ,

109

repelir inteiramente. Sem dúvida, as matemáticas poderão, no interior de seu domínio, atingir a perfeição, levar seus conceitos ao auge do rigor e da exatidão: essa perfeição nem por isso dei­ xará de ser um obstáculo imanente. Elas não podem, com efeito, escapar ao círculo de seus próprios conceitos, elaborados por elas próprias; j ã o desprovidas de todo o acesso direto à reali­ dade empírica, concreta, das coisas. Somente a experimentação, a observação fiel da natureza, pode abrir-nos esse acesso. Mas, para permitir ao método experimental ser eficaz, para extrair dele todos os frutos que ele é capaz de gerar, cumpre-nos desenvol­ vê-lo até tornar-se perfeitamente independente, libertá-lo de toda e qualquer tutela. Devemos, portanto, combater, no domínio da física, não só o espírito de sistema da metafísica mas também o da matemática. Quando o matemático, não contente por desen­ volver por conta própria seu universo conceptual, afaga a espe­ rança de envolver na rede de seus conceitos a realidade como um todo, ele passa a ser, por isso mesmo, um metafísico. "Q uan­ do os geômetras depreciaram os metafísicos estavam muito longe de pensar que toda a sua ciência não era outra coisa senão uma metafísica.” Com essa tomada de posição começa a empalidecer o ideal da física matemática que domina e anima todo o século X V III; em seu lugar eleva-se um novo ideal, a exigência de uma física puramente descritiva. Diderot concebeu e desenhou em largos traços esse ideal mulio antes que ele tivesse sido realizado em detalhe. Indaga ele: por que possuímos, apesar de todo esse brilhante desenvolvimento do saber matemático, tão exíguos co­ nhecimentos ainda, certos e incontestáveis, no domínio da natu­ reza? Faltam os gênios? Há deficiências de reflexão e de inves­ tigação? De maneira nenhuma: o motivo deve ser procurado, antes, num desconhecimento do princípio das relações que unem o saber conceptual ao conhecimento dos fatos. "Às ciências abs­ tratas monopolizaram por muito tempo os melhores espíritos. Os conceitos e as palavras prosperaram de forma desmedida, ao

110

passo que, por essa mesma razão, o conhecimento dos fatos so­ freu um atraso. Ef no entanto, é esse conhecimento que contém em si, seja qual for a sua natureza, a verdadeira riqueza da filo­ sofia. É um dos preconceitos da filosofia racional que aquele que não sabe contar seus escudos pouco mais rico é do que aquele que só possui um. Lamentavelmente, a filosofia racional ocupa-se muito mais de comparar e de combinar os fatos que já conhece do que em recolher novos." 84 Diderot encontrou assim uma fórmula muito característica e muito esclarecedora que anuncia um novo estilo de pensamento. Ao espírito contábil, ordenador e calculador, ao espírito do racionalismo do século X V III, opõese agora uma nova tendência, a de apropriar-se do real em toda a sua riqueza, de abandonar-se-lhe naturalmente, sem a preo­ cupação de saber se essa riqueza deixa-se definir por idéias claras e distintas, deixa-se medir e contar. Ainda se continuaria construindo, sem dúvida, tais sistemas de idéias, mas sem ali­ mentar ilusões sobre sua significação e seu alcance real. "Feliz o filósofo sistemático a quem a natureza concedeu, como a Epicuro ou a Lucrécio, como a Aristóteles ou a Platão, uma ditosa ima­ ginação, uma grande eloqüência e a arte de apresentar suas idéias em imagens impressionantes e sublimes. O edifício que ele ergueu pode muito bem desm oronar um dia, mas seu retrato continuar de pé, até mesmo entre os escombros.” O sistema possui, portanto, no fundo, uma significação mais individual do que universal, mais estética do que objetiva e lógica. Ele é in­ dispensável como instrum ento do conhecimento; mas cuidemos de não nos converter em escravos de um simples instrumento. Possuir o sistema sem ser por ele possuído: Laidem habeto, dummodo te Lais non habeat.85 É uma nova direção de investi­ gação e, por assim dizer, um novo temperamento de investigador que surge, exigindo ser reconhecido, justficado em seu estilo próprio e na validade do seu método.

111

Essa justificação pode ser abordada mediante considerações que já foram feitas em física matemática. Os partidários e os sucessores de Newton sempre disseram e repetiram, em sua po­ lêmica contra a física "racional” de Descartes, que doravante não era mais preciso preocuparem-se em explicar a natureza, bastando descrever inteiramente os seus fenômenos.36 Em vez da definição, operação válida, até fundamental nas matemáticas, é necessário recorrer à descrição. Ora, para um físico, na reali­ dade, a descrição exata de um fenômeno coincide, em última anSlIse, com a sua medida: só se descreve com rigorosa exatidão o que se pode determ inar por valores purãniêhte númèricos e (exprimir por relações entre esses valores. Mas, quando se passa da Física para a biologia, o postulado de descrição pura adquire um outro sentido. Já não se trata agora de transform ar a reali­ dade intuitiva numa soma de grandezas, num tecido de números e medidas; é preciso, pelo contrário, conservar-lhe a forma pró­ pria e específica. É ela que deve ser exposta aos nossos olhos, em toda a riqueza e diversidade do seu ser e na profusão do seu devir. E essa construção lógica dos conceitos de classes e de espécies, graças à qual buscamos geralmente o conhecimento da natureza, opõe-se de um modo direto à contemplação da sua riqueza. Esses Conceitos só podem resultar muito mais numa limitação da intuição, no empobrecimento, no enxugamento de seu conteúdo, do que em sua perfeita compreensão. Vale a pena lutar contra essa esclerose mediante a pesquisa, a elaboração de conceitos que permitam adaptarmo-nos à riqueza individual, à singularidade individual das formas naturais, ligarmo-nos a essa singularidade sem perder a flexibilidade que ela impõe. Diderot ilustra pessoalmente esse programa no seu Tratado de botânica. Diz ele nessa obra: "Se me atrevesse a tanto, sustentaria de bom grado este paradoxo: que, em certas circunstâncias, nada existe de mais molesto e mais prejudicial do que o método. Ê um fio condutor para se chegar à verdade que jamais pode ser abando­

112

nado; mal o perdemos de vista e logo encontramo-nos inevita­ velmente perdidos. Se pensássemos em ensinar uma criança a falar começando pelas palavras que se iniciam com a letra A, continuando pelas que se iniciam com B e assim por diante, metade de uma vida teria passado antes de ter-se terminado com o alfabeto. O método é excelente no domínio do raciocínio, mas, em minha opinião, nocivo no caso da história natural, de um modo geral, e da botânica em particular.” 87 Isso não significa, evidentemente, que essas ciências possam prescindir do método e do espírito sistemático mas que, em vez de irem pura e sim­ plesmente buscar seus princípios às disciplinas "racionais”, de­ vem elaborá-los em conformidade com seus próprios objetos. Sem dúvida, Diderot não teria podido apresentar essa exi­ gência de uma forma tão nítida se ela já não tivesse, num certo sentido, recebido satisfação ao tempo em que ele redigia suas reflexões sobre a interpretação da natureza. Foi, com efeito, nesse preciso momento que se publicaram os três primeiros vo­ lumes da História natural, de Buffon. Um novo tipo de ciência estava assim criado, formando, em certa medida, uma contraparte (ein Seitenstück) para os Philosophiae naturalis principia mathematica, de Newton. Sem dúvida, a obra de Buffon não é com­ parável, de maneira nenhuma, com a de Newton no plano da densidade, da originalidade e da criatividade, mas ,em nada lhe perde do ponto de vista do método, porquanto aponta com per­ feita clareza uma certa orientação fundamental na elaboração dos conceitos científicos, os quais adquirem a am plitude majes­ tosa de um projeto universal que o método lhes confere. Desde a introdução com que a obra se inicia, Buffon parte do princípio de que é ocioso e perfeitamente errôneo estabelecer nas ciências da natureza um ideal estritamente monista e dele fazer depen­ der todos os ramos da investigação. Todo o monismo metodológi­ co desse tipo esbarra, inevitavelmente, no conflito das matemáti­

113

cas e da física. Com efeito, a "verdade” matemática não consiste em outra coisa senão num sistema de proposições puramente ana­ líticas unidas entre si pelo vínculo da estrita necessidade e que, em última análise, exprimem apenas um só e mesmo conteúdo de saber sob diferentes formas. Ora, essa concepção da verdade perde o seu sentido e a sua força a partir do instante em que nos aproximamos da verdade e tentamos nos instalar nela. Q uan­ do deixamos de lidar com conceitos que nós próprios forjamos, prescrevendo-lhes a forma e a determinação, conceitos que po­ demos inferir uns dos outros com perfeito rigor dedutivo, logo se apaga essa evidência de que dispomos para comparar entre elas idéias puras; por conseguinte, já não se trata de transpor os limites do simples provável. Temos de nos confiar então à condução, à direção única da experiência: só ela nos pode pro­ porcionar agora essa espécie de certeza de que é suscetível a ver­ dade física dos objetos. Devemos multiplicar as observações, precisá-las, generalizar os fatos, relacioná-los com a ajuda de ra­ ciocínios por analogia, até chegarmos, enfim, a um grau de conhecimento que nos permita percebê-los na perspectiva da relação da parte com o todo, da dependência dos efeitos par­ ticulares em face dos efeitos universais. Já não nos satisfaz então comparar a natureza com as nossas idéias; de certo modo, pas­ samos a compará-la a si mesma, vemos como cada uma de suas operações relaciona-se com um centro, como elas concatenam-se mutuamente na totalidade de uma atividade única.38 Essa uni­ dade escapa-nos enquanto prosseguirmos com a repartição em classes ou em gêneros, pois tais classificações só podem fornecer um sistema de nomenclatura, não um sistema da natureza. Elas são úteis, sem dúvida, até indispensáveis para nos propiciar uma visão geral dos fatos, mas nada é mais perigoso do que substituir as coisas significadas por simples sinais, fazer definições reais de definições puramente nominais e delas esperar a mínima ex­ plicação da "essência* das coisas. Segundo Buffon, nesses es­

114

colhos já naufragou Lineu, na sua Filosofia da botânica. Na posse de uma propriedade, de uma característica qualquer, sus­ cetível de lhe perm tir reagrupar o mundo das plantas, Lineu acredita poder, por meio dessa simples repartição, dessa clas­ sificação analítica, traçar diante dos nossos olhos o quadro de suas relações, de sua organização, de sua rede de parentesco. Mas nós não poderíamos obter um quadro desse gênero sem nos resolvermos a inverter totalmente o processo assim entabulado. Devemos, nesse caso, ter em vista não uma divisão analítica mas a reunião sistemática dos seres vivos; em vez de os situar em tal ou tal espécie bem distinta, cumpre-nos conhecê-los em seu parentesco, suas formas de transição, seu desenvolvimento e suas transformações, pois é justamente nisso que consiste a verda­ deira vida da natureza. Uma vez que a natureza procede por diferenças imperceptíveis de uma espécie a outra, de um gênero a outro, de tal modo que entre eles encotramos uma série de estados intermediários que têm o ar de pertencer metade a um gênero, metade a um outro, nada de melhor nos resta fazer do que aceitar a delicadeza, a sutileza dessas transições, tornar o nosso pensamento suficientemente ágil para representar o movi­ mento e as nuanças das formas naturais. A partir daí Buffon decide-se francamente pelo nominalismo: declara que não há es­ pécies nem gêneros na natureza mas somente indivíduos. E acre­ dita ver em todas essas observações a confirmação de tal ponto de vista. Os animais de um continente não são encontrados nos outros, e quando acreditamos ter descoberto as mesmas classes, estas foram modificadas a tal ponto que nos fica difícil reconhecê-las. Teremos necessidade de uma outra prova para nos convencermos de que nenhum ser vivo é de um tipo imutável, que sua natureza pode sempre sofrer transformações, até mes­ mo, com o tempo, m udar inteiramente, e que as espécies menos bem-equipadas já desapareceram ou desaparecerão num prazo mais ou menos c u rto ? 80

115

Não se trata de debater aqui a importância dessas idéias de Buffon como esboço de uma doutrina da evolução universal. No nosso contexto, elas importam menos pelo seu conteúdo do que por sua forma, pelo ideal de saber que introduzem, ideal que encontrará progressivamente na obra inteira de Buffon uma realização concreta. A própria estrutura do conhecimento bioló­ gico começa aqui a desenhar-se nitidamente e é contra a forma • da física teórica que ela se afirma. O método das ciências da natureza deixa de receber sua lei unicamente das matemáticas; ele encontra um segundo foco, se assim podemos dizer, na forma fundamental do conhecimento histórico. A famosa passagem da Crítica do juízo, de Kant, onde se encontra desenvolvida pela primeira vez, de uma forma clara e distinta, a idéia de uma "arqueologia da natureza", parece ter sido expressamente escrita a propósito da obra de Buffon. Diz este: "Assim como na his­ tória dos homens consultam-se documentos, interrogam-se moe­ das e medalhas, decifram-se inscrições antigas para fixar as re­ voluções e as épocas da vida intelectual, também na história da natureza devemos esquadrinhar os arquivos do mundo, arrancar os mais antigos monumentos das entranhas da terra, reunir os escombros e juntar num só corpo de testemunhos todos os in­ dícios de mudanças físicas que possam reconduzir-nos às diver­ sas idades da natureza. É esse o único meio de fixar um ponto qualquer na infinidade do espaço, de colocar alguns limites no trânsito infinito do tempo." 40 Ê nesse procedimento que repousa o poder de uma ciência natural puramente descritiva, a qual deve afastar cada vez mais, em biologia, o método precedente, tomado da lógica escolástica, de definição por genus proximum e differentia specifica. Em boa verdade, só existe de definido o que é claramente conhecido, nitidamente delimitado e exata­ mente descrito. "// ríest de bien défini que ce qui est exactement décrit.n E, por essa nova concepção da essência e dos fins da conceptuação científica, transforma-se também a própria visão

116

do conteúdo essencial da história da natureza. A teoria lógicomatemática da definição já exigia em Descartes uma explicação estritamente mecanicista da natureza como sua contrapartida e seu corolário indispensável. Quando, pelo contrário, o centro de gravidade do pensamento desloca-se da definição, para a descri­ ção, do gênero para o indivíduo, o mecanismo deixa de poder ser considerado o único e suficiente princípio de toda a expli­ cação; prepara-se uma passagem para uma visão da natureza que, em vez de deduzir o devir do ser, deduz o ser do devir e explica-o por ele.

5 O sistema da física cartesiana levou prontamente de vencida, na França, a resistência que encontrara na doutrina da Igreja e nos defensores escolásticos da física das " formas substanciais". A partir de meados do século X V II, tudo evoluiu muito depres­ sa: o cartesianismo impôs-se não só no círculo dos espíritos cultos mas também, a partir de Entretiens sur la pluralité des mondes, de Fontenelle, como um dos elementos da "cultura” geral da so­ ciedade. Sua influência é tão forte e duradoura que os próprios pensadores mais opostos aos seus objetivos essenciais não podem livrar-se dela. A doutrina de Descartes condiciona fundamental­ mente, no século X V III, a forma do espírito francês, e essa for­ ma revela-se tão possante e tão firme que pode assimilar e submeter-se ao próprio conteúdo que a combate.41 Tanto na Ingla­ terra quanto na Alemanha não se chegou a uma dominação tão ilimitada do cartesianismo. A Alemanha preferiu edificar a sua vida intelectual sob a égide das teses leibnizianas, as quais, na verdade, só registram uma penetração muito progressiva, tendo que se assegurar primeiro, passo a passo, da solidez do terreno, para depois exercer uma ação profunda e silenciosa. E, na In*

117

glaterra, os sistemas empiristas exercem uma crítica que se torna cada vez mais rigorosa e contundente contra as idéias essenciais do sistema cartesiano, sobretudo contra a doutrina das idéias inatas e o modo como se apresenta a idéia de substância. Mas, em especial, permanece viva uma forma de filosofia da natureza que se liga diretamente ao dinamismo renascentista e que tende até a juntar-se, mais além, às suas fontes antigas, mormente às doutrinas neoplatônicas. Foi na Escola de Cambridge que essas tendências começaram primeiro a ganhar forma, a encontrar uma expressão sistemática. Um dos primeiros líderes dessa escola, Henry More, saudou com entusiasmo a filosofia cartesiana quan­ do esta surgiu, vendo nela o triunfo decisivo, sem contestação, do espiritualismo, porquanto considerava ter sido consumada nela a separação radical da matéria e do espírito, da substância ex­ tensa e da substância pensante. Mas, tendo ele próprio construído mais tarde a sua própria teoria da natureza, é justamente a res­ peito desse ponto que ele rompe com o cartesianismo. Descartes, com efeito, de acordo com as objeções que lhe faz Henry More, não só distinguiu as duas substâncias como separou uma da outra, levando tão longe a distinção racional que tornou toda a conexão real impossível entre elas e gerou um abismo intransponível de uma para a outra. Entretanto, não é na associação das duas subs­ tâncias, na unidade de sua ação, que repousam a unidade e a vida da natureza? Essa unidade é destruída, a vida desfeita, na supo­ sição de que o reino do espírito só começa com a consciência humana e que se limita ao domínio das idéias "claras e distin­ tas”. O que refuta essa limitação, o que, por princípio, a tom a impossível, é a intuição da continuidade das formas da natureza. Em nenhuma parte, entre as diversas formas da vida que encon­ tramos por toda parte sob os nossos olhos na natureza orgânica e na forma de autoconsciência, se nos apresenta uma solução de continuidade. Um processo graduado contínuo, nunca interrom­ pido, vai desde os processos vitais elementares até as condutas

118

superiores do pensamento, desde a impressão obscura e confusa até o mais alto conhecimento reflexivo. Enquanto a experiência nos ensina que tal continuidade existe, pode o pensamento dis­ cordar? Ao passo que os fenômenos constituem uma série inin­ terrupta, devem encontrar nos princípios e nas explicações essa negação brutal que a doutrina cartesiana lhes opõe? Plantas e animais vêem sua vida negada, anulada pelo cartesianismo, que fez deles autômatos, repele-os para o mundo mecânico. Contra essa tentativa de mecanização, More e Cudworth elaboram a teoria das "naturezas plásticas”. A vida não se limita à faculdade de pensar, à consciência; ela exprime-se de um modo mais es­ pontâneo e mais universal como o poder de criar formas. Deve­ mos reconhecer a vida a todos os seres que, em seu modo de existência, nas formas exteriores em que se oferecem aos nossos sentidos, indicam que certas forças criadoras agem em nós e, ainda que indiretamente, no-las revelam. Do fenômeno natural mais simples ao mais complexo, desde os elementos até os orga­ nismos superiores mais diferençados, reina essa autoridade, essa hierarquia das "naturezas plásticas”. É somente nela, e não ape­ nas nas massas e seus movimentos, que a ordem e a coesão do todo podem fundar-se.42 Leibniz, em sua crítica da filosofia cartesiana, enveredou por um outro caminho, tomando expressamente posição contra a doutrina das naturezas plásticas.43 Embora situando o fenô­ meno da vida orgânica no próprio centro de suas investigações, como biólogo e como metafísico, também teve o cuidado, por outra parte, de evitar todo o ataque ao grande princípio de ex­ plicação matemática da natureza que a ciência deve a Descartes e até de acarretar-lhe a menor limitação. Ê por isso que, quando os pensadores da Escola de Cambridge falam do morbus mathematicus de Descartes, no qual descortinam o vício fundamental de sua doutrina da natureza, Leibniz, pelo contrário, sustenta que uma doutrina da vida deve ser concebida de tal modo que

119

nunca entre em contradição com os princípios do conhecimento físico-matemático. Segundo Leibniz, para garantir a unidade des­ ses dois modos de pensamento, para estabelecer entre eles uma completa harmonia, não existe outro meio senão submeter todos os.feaôm enos da natureza, sem exceção, a explicações rigorosa­ mente matemáticas e mecânicas, sem deixar de considerar, .entretahto, que os princípios da própria mecânica não poderiam .con­ sistir simplesmente em extensão, forma e movimento, e recorrem ainda a outras fontes. O mecanismo é a bússola intelectual que nos aponta o único caminho seguro através do domínio dos fe­ nômenos, que submete os fenômenos ao "princípio da razão” (Satz vom Grundé) e permite concebê-los de modo racional e explicá-los inteiramente. Contudo, não será com esse gênero de explicação que se alcançará a compreensão do mundo. Para com­ preender o mundo, não basta sobrevoar discursivamente os fenô­ menos, ordená-los em seu quadro espaço-temporal. Em vez de ir de um elemento do devir ao outro, aproximando-os segundo o espaço e o tempo, em vez de estabelecer separadamente os di­ versos estados que um corpo orgânico percorre em seu desen­ volvimento, a fim de os unir mutuamente pela relação de causa e efeito, convirá colocar a questão da razão de ser da série in­ teira. Essa questão de ser não é, por sua vez, um elemento da série, porquanto se situa além dela. Para reconhecê-la, devemos abadonar a ordem físico-matemática dos fenômenos e passar daí à ordem metafísica das substâncias; devemos alicerçar nas forças originárias, primitivas, as forças secundárias e derivadas. É essa a tarefa que o sistema leibniziano da monadologia quer executar. As mônadas são os sujeitos donde o devir extrai integralmente seu princípio e sua fonte. O princípio de sua eficiência, de seu progressivo desenvolvimento, não é a relação mecânica de causa e efeito mas uma relação teleológica. Cada mônada é uma ver­ dadeira "enteléquia” que se esforça por desenvolver e aum entar a sua essência, por elevar-se de um certo grau de elaboração a

120

um outro mais perfeito. Aquilo a que chamamos processo “me­ cânico11 nada mais é, portanto, do que o aspecto exterior, a re­ presentação e a expressão sensível do processo dinâmico que se desenrola nas unidades substanciais, nas forças orgânicas. É assim que o extenso, onde Descartes acreditava ter encontrado a substância dos corpos, assenta no inextenso, o "extensivo” no "intensivo", o "mecânico" no "vital". “Quod in corpore exhibetur mechanice seu extensive, id in ipsa Entelechia concentratur dynamice et monadice, in qua mechanismi fons et mechanicorum repraesentatio est; nam phaenomena ex monadibus resultant. ” 44 Assim foram lançados, sem o menor desconhecimento dos direitos de uma explicação matemática da natureza, os funda­ mentos de uma nova "filosofia do orgânico"; pelo menos, estava equacionado um problema que deveria desempenhar um impor­ tante papel no desenvolvimento da filosofia da natureza do século XVIII. Não foram razões puramente teóricas, especula­ ções abstratas, as que suscitaram e alimentaram esse problema. Não menos importante é o papel desempenhado pelas novas pers­ pectivas estéticas apresentadas por espíritos dotados do sentido da arte. Já na idéia leibniziana de harmonia se manifesta a con­ junção dessas duas influências. E em Shaftesbury revela-se de uma forma ainda mais nítida a importância dessa razão estética para edificar uma nova concepção da natureza. No desenvolvi­ mento dessa concepção, Shaftesbury apóia-se nos pensadores da Escola de Cambridge na teoria das "naturezas plásticas". Mas repele todas as conseqüências místicas, em particular as que Henry More extraíra dessa doutrina. Todo o seu esforço tende, com efeito, a conceber a idéia de forma de tal modo que ela deixe transparecer a sua origem espiritual, "ultra-sensível", mas conservando, não obstante, a sua natureza puramente intuitiva. Shaftesbury, que vê o mundo como uma obra de arte, quer re­ troceder desta para o artista que a produziu e que se mantém presente, imediatamente, em todos os seus aspectos, por mínimos

121

que sejam. Esse artista não submete a sua criação a um modelo exterior, que ele se limitaria a reproduzir. Ainda menos se con­ forma, em suas obras, a um plano preconcebido. Sua eficiência é interiormente determinada e, por conseguinte, não poderia ser validamente expressa por analogias extraídas dos processos de exterioridade, como a ação de um corpo sobre o outro. A idéia de finalidade que penetra e domina toda a mundivisão de Shaftesbury sofre igualmente, desse modo, um deslizamento de sentido. Assim como não visamos ao objetivo tanto na criação quanto na fruição artística — a finalidade do ato, na criação tanto quanto na contemplação, nada mais é do que o próprio ato — , tampouco o “gênio” da natureza conhece um fim exte­ rior a si mesmo. Todo o seu ser está em agir. A sua essência, entretanto, não se esgota em nenhuma obra singular, nem mesmo na infinidade de suas obras; ela só se nos revela no próprio ato de produzir e de dar forma. E esse ato é a fonte primária de toda a beleza: “The beautifying, not the beautiful, is the really beautiful” * Essa imanência da finalidade que deriva da sua esté­ tica é mantida por Shaftesbury na sua filosofia da natureza, nela fazendo penetrar uma nova corrente do pensamento. Ademais, ele deu assim um passo além dp modelo dos pensadores de Cambridge que concebem as "naturezas plásticas” — as quais eles consideram indispensáveis a toda a atividade organizada — como sendo essencialmente potências subordinadas, submetidas à lei e à direção da vontade divina. Deus paira acima do mundo como o seu telos, o seu princípio transcendente, ao passo que as "natu­ rezas plásticas” são atuantes no mundo, incumbidas de certo modo pela causa primeira, que apenas visa a fins universais, de engendrar e de elaborar o individual. Shaftesbury abandona essa oposição do inferior e do superior, da potência divina suprema * Em inglês no original: “ Aquele ou aquilo que embeleza, não o belo, é o que realmente possui beleza.” (N. do T.)

122

e das forças "demoníacas" da natureza. Ele vê o um no todo e o todo no um. Nessa perspectiva de imanência estética deixa de haver na natureza alto e baixo, interior e exterior: a oposição absoluta entre aquém e além, entre imanência e transcendência, está agora ultrapassada. O conceito de forma interior (inward forni) situa-se além de toda e qualquer separação desse gênero: "Pois tal é o princípio da natureza que o que valia para o exte­ rior vale também para o interior." A poderosa corrente de um sentimento novo da natureza parte daí para penetrar no curso da história das idéias do século XVIII. O hino à natureza de Shaftesbury aí desempenha um papel decisivo, sobretudo no de­ senvolvimento do pensamento alemão; ele liberta as forças pro­ fundas graças às quais formar-se-ão a filosofia da natureza de Herder assim como a do jovem Goethe.45 Com a concepção da natureza de Herder e de Goethe já ultrapassamos, evidentemente, os limites da época do Iluminismo, mas tampouco nessa direção ocorreria qualquer ruptura no pensamento do século XVIII. A transição realizou-se em perfeita continuidade. A mediação estava dada de antemão no sistema de Leibniz, em seu pensamento universal, o qual continha em si mesmo a unidade e a continuidade do desenvolvimento. Também na cultura francesa aparece com nitidez crescente, a partir de meados do século, o desenvolvimento do conceito leibniziano de mônada. A tal propósito, cabe particularmente a Maupertuis o crédito de ter lançado uma ponte entre a Alemanha e a França. A sua posição pessoal em relação a Leibniz não está, de resto, inteiramente isenta de contradições, mas a dependência efetiva da sua metafísica, da sua filosofia da natureza e da sua teoria do conhecimento, em face dos princípios leibnizianos, não é me­ nos indiscutível. Maupertuis recorre às idéias leibnizianas tanto para demonstrar o seu princípio de mínima ação como para es­ tabelecer e provar o seu princípio de continuidade, e nelas se apóia também para a sua teoria da fenomenalidade do espaço

123

e do tempo. Na verdade, ele esforça-se por dissimular essa estrei­ ta dependência: ao mesmo tempo em que se apropria tacitamente dos seus princípios, obstina-se em criticar, em combater o sistema qua sistema, mormente sob a forma que ele recebeu de Wolff e dos seus discípulos. Essa atitude turva e ambígua não deixou de desservi-lo em seu conflito com König.46 Mas, ainda mais nitida­ mente do que na versão Maupertuis do "princípio da mínima ação”, a dívida, denunciada por König, em relação ao pensa­ mento de Leibniz, evidencia-se nas teorias biológicas contidas num tratado latino intitulado Dissertatio inauguralis metaphysica de universali Naturae systemate, atribuído a um certo doutor Baumann e que teria sido impresso em Erlangen, em 1751. O que confere a esse estudo sua importância para a história das idéias é ver-se aí pela primeira vez uma tentativa de concilia­ ção, de comparação no plano dos princípios, dos dois grandes adversários que se enfrentam na filosofia da natureza do século XVIII. Maupertuis foi o primeiro defensor na França das idéias de Newton; nesse combate, ele precedeu o próprio Voltaire e, de certo modo, abriu-lhe o caminho.47 Mas não tardou em reco­ nhecer que o princípio newtoniano da atração não poderia cons­ tituir um fundamento suficiente a uma ciência descritiva da na­ tureza para compreender e interpretar os fenômenos da vida orgânica. Por mais brilhantemente que tenha sido demonstrada a teoria de Newton em astronomia e em física, encontramo-nos, diz Maupertuis, assim que se passa à química, diante de proble­ mas inteiramente novos que já não se deixam tratar por esse único princípio. Seria necessário, pelo menos, caso se quisesse salvaguardar na química a validade do princípio universal de atração das massas como princípio supremo de explicação, dar à própria idéia de atração um outro sentido mais amplo do que ela possui em física. E deparamo-nos com uma nova mudança de sentido quando se passa da química à biologia, desde que se

124

pretenda explicar a formação de uma planta ou de um animal. Tanto o problema da reprodução quanto os problemas comple­ xos da teoria da hereditariedade não podem ser tratados em ter­ mos puramente físicos; nem sequer é possível a sua formulação correta nessa perspectiva. Somos necessariamente remetidos para uma concepção da matéria que é diferente da que o físico pos­ tula. Tanto a extensão cartesiana quanto a gravitação newtoniana não proporcionam a menor elucidação sobre os fenômenos da vida e estão longe de permtir que se proceda a uma completa dedução. Por conseguinte, não há outra solução senão somar aos predicados puramente físicos — predicados de impenetrabilida­ de, de mobilidade, de inércia, de gravidade — outros predicados em relação com a realidade objetiva da vida. E Maupertuis voltase então para Leibniz, o qual proclamava justamente que, em lugar de se procurar na noção de massa os princípios essenciais e verdadeiros da explicação física, cumpre recorrer, para esse fim, às substâncias simples cuja essência só pode caracterizar-se como consciência, ou seja, pelos predicados de representação e de apetite. Maupertuis insiste igualmente no seguinte ponto: seria impossível haver uma explicação completa da natureza se não nos resolvermos, em vez de tratar esses dois predicados como propriedades derivadas, a incluí-los entre os elementos primiti­ vos do ser. É verdade que, por outro lado, Maupertuis recusa-se a seguir o radicalismo leibniziano ao distinguir o mundo das subs­ tâncias do mundo dos fenômenos, o mundo do “simples” do mundo do “composto”. Abordando a idéia de mônada, ele não conceberá, à maneira de Leibniz, essas unidades primárias donde resultam os processos naturais como pontos “metafísicos” mas, efetivamente, como pontos físicos. Para atingir essas unidades não é necessário, em absoluto, abandonar o mundo dos corpos como tal, ultrapassar o plano onde se situa o ser e o devir da matéria; basta ampliar a idéia de matéria de modo que, em vez

125

fde excluir os fatos primitivos da consciência, ela contenha-os em si mesma. Por outras palavras, devemos incluir na definição da matéria não só as características de extensão,Impenetrabilidade, gravidade etc. mas também as de desejo, aversão e memória. Pretender que tal associação envolva uma contradição, que pre­ dicados tão heterogêneos, até mesmo opostos, não podem coin­ cidir num mesmo sujeito, eis uma objeção que não pode pertur­ bar-nos, dado que só é válida se partirmos do princípio de que as explicações de que o cientista serve-se correspondem a defi­ nições reais, ou seja, a definições que devem designar a natureza ^da coisa e exprimi-la plenamente. Descartes e seus adeptos con­ sideram a consciência e o pensamento o atributo essencial da alma, a extensão o atributo essencial do corpo; t>ão, portanto, perfeitamente coerentes ao estabelecer uma divisória estanque entre a alma e o corpo, uma vez que esses dois atributos nada têm de comum entre si, só atribuindo a um as características que se recusam a admitir no outro. Ocorre, porém, que essa exclusão recíproca fica insustentável a partir do instante em que se reco­ nheceu que todo o poder do pensamento limita-se ao estabele­ cimento de caracteres empíricos. Tais caracteres implicam-se in­ teriormente uns aos outros? São suscetíveis ou não de ser associa­ dos? Não podemos nem queremos apurar isso: basta que a expe­ riência os apresente sempre juntos e que possamos estabelecer a sua coexistência regular. “Se o pensamento e a extensão são apenas propriedades, eles podem muito bem pertencer a um mesmo sujeito cuja essência própria nos é desconhecida. Sua coexistência não é nem mais nem menos inconcebível do que a união da extensão e do movimento. Podemos perfeitamente sen­ tir uma resistência mais forte à idéia de unir extensão e pensa­ mento do que à de unir extensão e movimento; contudo, isso depende apenas do fato de que a experiência apresenta-nos cons­ tantemente esta última união e a coloca diretamente sob os nossos

126

olhos, ao passo que a primeira relação só pode ser concebida por inferências e raciocínios indutivos.” 48 Descartadas, desse modo, as objeções apresentadas contra a função e a coordenação direta das propriedades "psíquicas” e "físicas” na noção de matéria, a construção da filosofia da natu­ reza pode agora prosseguir sem obstáculos. Não está em causa, para nós, deduzir a consciência do não-consciente: isso seria pre­ tender uma verdadeira criação ex nihilo. Não é menos absurdo acreditar que se possa explicar o nascimento da vida espiritual pela associação de átomos, nenhum dos quais possui a sensação nem a inteligência ou a mínima qualidade psíquica que seja.49 Não resta, portanto, outra solução a não ser transportar a cons-: ciência para os próprios átomos como um verdadeiro fenômeno primitivo. Não se cogita de admitir que ela possa ser engendrada pelos átomos mas, isso sim, desenvolvida e levada a níveis de clareza cada vez mais elevados. Da maneira como Maupertuis realiza esse programa, nada resta, por certo, do princípio carac­ terístico da filosofia leibniziana da natureza. O espiritualismo leibniziano é caricaturado sob a forma de um vago e confuso hilozoísmo: a matéria, como tal, é animada, dotada de sensação e de desejo, de certas simpatias e antipatias. A cada uma dessas partes é atribuído não só um "instinto”, que a leva a procurar o que lhe convém e a fugir do que lhe é contrário, mas também um certo sentimento de si mesma. Quando uma parte se associa a outras em grande quantidade, ela não perde esse sentimento de si mesma; da confluência de todas essas moléculas animadas nasce, simplesmente, uma nova consciência comum, na qual par­ ticipam todos os elementos que serviram para a constituição do todo e na qual sua individualidade se fundamenta. "Sendo a percepção uma propriedade essencial dos elementos, não parece que ela possa extinguir-se, diminuir ou aumentar. Pode perfei­ tamente receber diferentes modificações através das diferentes

127

combinações dos elementos; mas deverá sempre, no universo, for­ mar uma mesma soma, ainda que sejamos incapazes de a seguir ou de a conhecer. Cada elemento, em sua associação com os outros, fundiu sua percepção com a deles e perdeu o sentimento específico de si mesmo, de modo que nos falta a lembrança do estado primitivo dos elementos e a nossa origem deve estar intei­ ramente perdida para nós.50 Os Pensamentos sobre a interpretação da natureza, de Diderot, estão ligados à doutrina de Maupertuis. Mas o autor possui um senso crítico demasiado penetrante para não identificar os pontos fracos dessa doutrina. Não sem razão, ele vê nessa tenta­ tiva de superar o materialismo apenas uma variedade do mate­ rialismo. E a esse materialismo simplesmente um pouco mais refinado opõe ele uma concepção puramente dinâmica. Na ver­ dade, é muito arriscado, falando de Diderot, pretender definir com um nome o conjunto de idéias filosóficas que por ele foram sucessivamente sustentadas e querer, por assim dizer, apor-lhes um rótulo. O pensamento de Diderot só é cabalmente apreendi­ do, na realidade, em sua trajetória, em seu movimento inces­ sante, impetuoso, que não repousa com nenhum resultado obtido, que em nenhum ponto do seu curso revela o que é e o que quer. Diderot mudou de "posição" inúmeras vezes ao longo de sua vida. Nada de fortuito nem de arbitrário, porém, nessas mu­ danças. Adquire-se a convicção de qye nenhuma posição singu­ lar donde consideremos o universo, nenhuma luz particular sob a qual o coloquemos, está à altura de sua riqueza e de sua diversidade interior, de sua incessante mobilidade. Diderot não faz o menor esforço para cristalizar seu pensamento em fórmulas fixas e definidas; ele é permanentemente um elemento fluido e fugidio. Mas é justamente nessa volubilidade que ele avizinha-se de uma realidade que tampouco conhece o que seja estabilidade, que é impelida, pelo contrário, por um fluxo incessante, uma

128

transformação perpétua. Esse universo ilimitado e móvel, somen­ te um pensamento móvel pode concebê-lo, um pensamento que se deixa levar de impulso a impulso, que jamais repousa na contemplação do presente e do dado, mas que se inebria com a profusão dos possíveis, que os quer percorrer e tentar todos.81 Graças a esse traço fundamental do seu espírito, Diderot é o primeiro a romper com a visão do mundo estático do século XVIII para dotá-lo de uma visão dinâmica. Todos os esque­ mas, todas as investigações puramente classificatórias lhe pare­ cem estreitas, insuficientes ou, pelo menos, só lhe parecem apro­ veitáveis para fixar o estado do saber num dado momento espe­ cífico. Não se deve atribuir de antemão nenhum limite ao conhe­ cimento por intermédio de tais esquemas, nenhuma hipótese deve pesar sobre o seu futuro. Temos que permanecer abertos a toda a novidade, não deixar que nenhum modelo, nenhuma prescri­ ção, retraia o horizonte da experiência. Desse ponto de vista, pode-se dizer que Diderot avança para uma nova concepção da filosofia da natureza. É ocioso pretender atribuir limites à natu­ reza, querer encerrá-la em nossos gêneros e em nossas espécies. Ela só conhece a diversidade, a heterogeneidade perfeita. Ne­ nhuma de suas formas permanece idêntica, cada uma delas re­ presenta apenas um estado de equilíbrio transitório de suas for­ ças criadoras e que, mais dia menos dia, deverá romper-se. “Tal como nos reinos animal e vegetal, um indivíduo começa, por assim dizer, cresce, perdura, definha e acaba; não ocorreria o mesmo com espécies inteiras? Se a fé não nos ensinasse que os animais saíram das mãos do Criador tal como os vemos e se fosse permitido ter a menor incerteza acerca do seu começo e do seu fim, o filósofo entregue às suas conjeturas não poderia suspeitar de que a animalidade tinha os seus elementos parti­ culares, esparsos e confundidos na massa da matéria desde toda a eternidade? Que acontecera uma reunião desses elementos por­ que havia a possibilidade de que isso se fizesse? Que o embrião

129

formado desses elementos passou por uma infinidade de organi­ zações e de desenvolvimento, que evoluiu do movimento à sensa­ ção e, sucessivamente, às idéias, ao pensamento consciente e à reflexão? Milhões de anos transcorreram entre cada um desses desenvolvimentos — e é possível que muitos outros desenvolvi­ mentos que nos são desconhecidos venham ainda a ocorrer." 52 "Quem conhece as raças de animais que nos precederam? Quem sabe que raças de animais sucederão às nossas? Tudo muda, tudo passa, apenas o todo permanece. O mundo começa e acaba sem cessar; ele está a cada instante em seu começo e em seu fim. Nesse oceano incomensurável de matéria, não há uma molécula que se assemelhe a outras, não há uma molécula que se asseme­ lhe a si mesma de instante para instante: Rerum novus nascitur ordo, eis a eterna divisa do mundo." Não pode, portanto, haver ilusão mais perigosa e pior so­ fisma para os filósofos do que o "sofisma do efêmero” — a idéia de que o mundo deve ser necessariamente o que é presen­ temente. Sua existência constitui apenas um átimo fugaz na infinidade do devir: nenhum pensamento pode medir a priori a riqueza de tudo o que esse devir pode engendrar.53 “Rerum novus nascitur ordon: a divisa a que Diderot submete a natu­ reza não vale para a posição que ele próprio ocupa na história das idéias do século XVIII? Ele cria uma nova ordem das idéias: não contente em ultrapassar largamente os resultados adquiridos pelo seu tempo, ele acomete aquelas formas de pensamento graças às quais esses resultados foram adquiridos e nas quais se ensaiara fixá-los.

130

NOTAS

1 Para maiores precisões acerca desse ponto, consultar em especial Ernst Troeltsch, Vernunft und Offenbarung bei Johann Gerhard und Me lanc h ton, Gottingem, 1891. 2 Cf., para uma exposição mais completa da questão, o meu livro Erkenntnisproblem [O problema do conhecimento], 3.a edição, vol. I, pp. 276 e ss. BGiordano Bruno, De Immenso, Livro VIII, cap. 9; Opera Latina, vol. I, parte 2, p. 310. 4 D ’Alembert, Éléments de philosophie, cf. acima pp. 76 e ss. 6 Sobre os primeiros trabalhos científicos de Montesquieu, cf. por exemplo Sainte-Beuve, Montesquieu, causeries du lundi, vol. VII. 6 Sobre a amplitude e o conteúdo dessa literatura de “física teoló­ gica'1, ver as informações mais detalhadas que fornece D. Mornet em Les sciences de la nature en France au X V IIIe siècle, Paris, 1911, pp. 31 e ss. 7 Fontenelle, Entretiens sur la pluralité des mondes. Premier soir, Oeuvres de Fontenelle, Paris, 1818, pp. 10 e ss. 8 Para mais detalhes sobre a oposição entre “explicação da natureza’1 e “descrição da natureza", entre “definição” e “descrição” em Newton e seus discípulos, cf. Erkenntnisproblem, 3.a edição, vol. II, p. 401. 9 Optice, lat. reddid. Samuel Clarke, 1740, Lib. III, Quaestio 31. 10Condillac, Traité des systèmes; Logique, p. II, cap. 7 e passim. 11 Voltaire, Le philosophe ignorant (1766), vol. X; cf. Traité de mé­ taphysique (1734), em particular o cap. 3 e ss. [Em francês no original: “Nenhuma energia primeira, nenhum primeiro princípio pode ser apreen­ dido por nós.” N. do T.] 12 D ’Alembert, Éléments de philosophie VI; Mélanges, vol. IV, pp. 59 e ss. 13 Spinoza, Ética, Proposição 33 : “[ . . . ] se as coisas tivessem podido ser de outra natureza ou determinadas a operar de modo diverso, de tal sorte que fosse outra a ordem da Natureza, Deus também poderia ser, por conseguinte, de natureza diferente da que é presentemente (N. do T .) 14 "Lege naturae universales, secundum quas omnie fiunt et determinantur, nihil sunt Dei aeterni decreta, quae semper aeternam veritateni et necessitatem involvunt.” Tractatus Theologico-Politicus, cap. III, sect 7.

131

Leibniz a Varignon, em 2 de fevereiro de 1702, Mathematische Schrifteriy ed. Gerhardt, vol. IV, p. 94 [Em francês no original: “Ê porque tudo se rege pela razão e, se assim não fosse, não existiria ciência nem regra, o que estaria em contradição com a natureza do princípio sobe­ rano.” N. do T.]. 16 Para a importância dos trabalhos desses cientistas holandeses no desenvolvimento do próprio pensamento francês, em especial para a in­ fluência que exerceram em Voltaire cf. a obra de Pierre Brunet, Les physiciens hollandais et la méthode expérimentale en France au X V IIIe siècle, Paris, 1926. 17 Huyghens, Traité de la lumière, ed. alemã de Lommel, Leipzig, 1890, p. 3 c ss. 18 Cf. S’Gravesande, Discurso inaugural De Matheseos in omnibus scientiis praecipue in Physicis usu (1717) e o tratado Physices Elementa. . .sive Introductio ad philosophiam Newtoniam, Leyde, 1720. 19 S’Gravesande, Physices Elementay [da] trad. francesa de Joncourt; cf. Brunet, op. cit., pp. 56 e ss. 20 S’Gravesande, Rede über die Evidenz; cf. a introdução à tradução francesa dos Éléments de physique, de Êlie de Joncourt. 21 Cf. S’Gravesande, Physices elementa Mathematica, Praefacio, e Musschenbroek, “De methodo instituendi experimenta physica”, discurso de posse como reitor (1730). 22 Holbach, Système de la nature, cf. em especial pp. 1 e ss., p. 53 e passim. 23 Cf. La Mettrie, Histoire naturelle de Vâme (1745); publicado ulte­ riormente sob o título Traité de Vâme. 24 Traité de Pâme, cap. I. 25 La Mettrie, L ’homme machine, ed. Maurice Solovine, Paris, 1921, p. 130. 26 La Mettrie, V hom m e machine, p. 134. 27 Ibid., p. 113, 28 Holbach, Système de la nature, Parte I, caps. 4 e 5 (pp. 50 e ss., 58 e ss.). 29 Holbach, op. cit., p. 274; cf. La Mettrie, Discours sur le bonheur (Oeuvres philosophiques, pp. 211 e ss.): “Sou e considero um ponto de honra ser cidadão zeloso; mas não é nessa qualidade que escrevo, é como filósofo: como tal, vejo que Cartouche foi feito para ser Cartouche e Pirro para ser Pirro: os conselhos são inúteis para quem nasceu com a sede da carnificina e do sangue.” 30 Système de la nature, p. 311.

132

31 L’homme machine, p. 111. 82 Cf. Voltaire, Poèmes, Les cabales (1772), Oeuvres, Paris, Lequien, 1825, vol. XIV, pp. 236 e ss. [Em francês no original. N. do T.] 33 Système de la nature, p. 205. 34 Diderot, De Vinterprétation de la naturet IV, XVII, XXI; Oeuvres, ed. Assézat, vol. II. 8» Op. cit., sec. XXI, XXVII. 36 Cf. acima pp. 81 e ss. 37 La Botanique mise à la portée de tout le monde, Oeuvres (Assé­ zat), VI, 375. 88Buffon, Histoire naturelle (1749); Primeiro discurso. 39 No que se refere à posição de Buffon na história do evolucionismo, cf. Perrier, La Philosophie zoologique avant Darwin. 40 Buffon, Histoire naturelle, citado em Joseph Fabre, Les pères de la Révolution (De Bayle à Condorcet), Paris, 1910, pp. 167 e ss. 41 Sobre a influência de Descartes, cf. G. Lanson, “L'influence de la philosophie cartésienne sur la littérature française”, Revue de Métaphy­ sique, 1896 (Études dfhistoire littéraire, Paris, 1929, pp. 58 e ss.). 42 Fiz uma exposição mais profunda da filosofia da natureza da Escola de Cambridge e de sua doutrina das “naturezas plásticas” no meu livro Die Platonische Renaissance in England und die Schule von Cam­ bridge (Stud. der Bibi. W arburg), Leipzig, 1932, cap. IV. 43 Cf. o seu tratado Considérations sur les principes de vie et sur les natures plastiques, Philos. Schriften (Gerhardt) VI, pp. 539 e ss. 44 Carta de Leibniz a Christian Wolff, Correspondência entre Leibniz e Wolff, ed. Gerhardt, Halle, 1860, p. 139; para mais detalhes, cf. o meu livro Über Leibniz9 System, Marburg, 1902, especialmente pp. 283 e ss. e 384 e ss. 45 A demonstração precisa dessa influência foi fornecida por Dilthey no artigo Aus der Zeit der Spinoza-Studien Goethes (Archiv, f. Gesch. d. Philosophie, 1894; Gesammelte Schriftent II, pp. 391 e ss.). Sobre a visão da natureza em Shaftesbury e suas relações com a Escola de Cam­ bridge, ver a exposição detalhada que apresentei em Die Platonische Renaissance in England. . Leipzig, 1932, cap. 6. 46 Para os detalhes do conflito, cf. Harnack, Geschichte der A ka­ demie der Wissenschaften zu Berlin, Berlim, 1901, pp. 252 e ss. 47 Sobre a tomada de posição de Maupertuis a favor de Newton e sobre os seus primeiros trabalhos matemáticos e físicos, cf. Brunet, Mau­ pertuis, 2 vols., Paris, 1929, I, pp. 13 e ss.

133

48 Maupcrtuis, Système de la nature, sec. III, IV, XTV, XXII; Oeu­ vres, Lyon, 1756, vol. II, pp. 139 c ss. **Loc. cit., sec. LXIII, LXIV, pp. 166 e ss. w Ibid., sec. LUI, LIV, pp. 155 e ss. 61 Ver, a esse respeito, o excelente retrato de Diderot traçado por Bernh. Groethuysen (“La pensée de Diderot”, em La Grande Revue, Vol. 82, 1913, pp. 322 e ss.). 52 De Vinterprétation de la naturep sec. LVIII, Oeuvres (Assé.). 58 Diderot, Le rêve de D,Alembertl Oeuvres, vol. II, pp. 132, 154 e passim.

134

I ll PSICOLOGIA E TE O R IA DO CO NHECIM ENTO

1 ^ Um dos traços característicos do século XVIII é a estreita relação, poderíamos até dizer o vínculo indissolúvel que existe, no âmbito do seu pensamento, entre o problema da natureza e o problema do conhecimento. O pensamento não pode dirigir-se ao mundo dos objetos exteriores sem voltar-se simultaneamente para si mesmo, procurando assim assegurar-se, num só e mes­ mo ato, da verdade da natureza e da sua própria verdade. Ao invés de o conhecimento ser simplesmente tratado como um instrumento e utilizado de modo singelo como tal, vemos ser continuamente colocada, em termos cada vez mais prementes, a questão ~dâTtej?ltlmidadé desse tlso' e d í estrutura desse instru­ mento. Kant não-foi, em absoluto, o primeiro pensador a formuíar essa questão, embora lhe tenha dado um .outro rumo, uma significação aprofundada e uma solução radicalmentejiova. A tarefa universal de determinar os limites do espírito (ingenii limites definire) já tinha sido estabelecida por Descartes com uma clareza decisiva. A mesma questão converte-se em seguida,

135

com Locke, no fundamento de toda a filosofia da experiência. O empirismo de Locke também comporta uma tendência inten­ cionalmente “crítica”. A determinação do objeto da experiência deve preceder a investigação da função experimental. Não temos o direito de aplicar o nosso conhecimento a não importa que objeto para descobrir-lhe a natureza. A primeira questão deve ser, pelo contrário: que espécie de objeto convém ao conheci­ mento? Quais são os objetos que ele é suscetível de determinar? Entretanto, para resolver esse problema, para discernir exata­ mente a natureza específica do espírito humano, não há outro caminho senão percorrer de lés a lés toda a extensão do seu domínio e reconstituir a ordem do seu desenvolvimento desde os primeiros até as suas realizações supremas. O problema crítico reduz-se, portanto, a um problema genético. Somente^ a gêjifigi d o , espírito hvimano, pode fornecer uma solução verdadeiramente satisfatória para o problema da sua natureza. A psi­ cologia é assim colocada, de modo explícito, na base da teoria do conhecimento e, até a Crítica da razão pura, de Kant, ela reivindicará esse papel quase sem contestação. A reação contra essa concepção, proveniente dos Novos ensaios sobre o enten­ dimento humano, de Leibniz, virá algumas dezenas de anos mais tarde, quando essa obra veio a ser a publicada pela primeira vez em 1765, em conformidade com o manuscrito da Biblioteca de Hanover, e sua influência subseqüente limitar-se-á, aliás, ao domínio da filosofia e da cultura alemãs. A distinção radical do método transcendental e do método psicológicô, da questão do “começo” e da questão da “origem” da experiência, tal como (oi sistematicamente elaborada por Kant, não pode ser retida, portanto, num exame histórico em benefício do problema fun­ damental do século XVIII. Nessa época, pelo contrário, as fron­ teiras não cessam de confundir-se. A “ dedução transcendental” n u n r a ^ j f t s t y j ^ i i i da “dedução psicológica”; determina-se, mede-se a validade objetiva dos conceitos fundamentais do co­

136

nhecimento por sua origem. Assim é que a origem psicológica converte-se num critério lógico mas, por outra parte, não faitam as normas lógicas para penetrar na psicologia e orientar seus problemas. A psicologia recebe delas um caráter reflexivo pre­ dominante: não se contenta em perceber as realidades e os pro­ cessos mentais, quer sondá-los até atingir seus fundamentos últi­ mos, os próprios elementos do psiquismo, a fim de expô-los à plena luz, analiticamente. É nesse domínio, precisamente, que ela alimenta um vivo sentimento de pertença, de estreito paren­ tesco com a ciência universal da natureza. Seu ideal supremo é tornar-se a “ química da alma”, no sentido em que a química é a anatomia do inorgânico e a própria anatomia é a análise dos corpos organizados. “ Depois que tantos arrazoadores fizeram o romance da alma”, diz Voltaire a respeito de Locke, "eis que chegou um sábio para lhe fazer modestamente a história. Locke expôs e explicou ao homem a razão humana, tal como um exce­ lente anatomista explica os mecanismos do corpo humano.” 1 Os grandes sistemas racionalistas do século XVII tinham resol­ vido a questão fundamental da verdade do conhecimento, da concordância das idéias e dos objetos, ao situar o mundo das idéias e o mundo dos objetos numa só e mesma camada primi­ tiva do ser. É nesse nível que eles se reúnem e é por essa coin­ cidência primordial que se explicam os acordos que em seguida realizam de forma indireta. A natureza do conhecimento hu­ mano só se infere de si mesma, decifra-se nas idéias que contém em si mesma a priori. Essas idéias “ inatas” constituem o selo que foi impresso desde o começo no espírito humano e que lhe assegura, de uma vez por todas, a sua origem e o seu destino. O ponto de partida de toda a filosofia, de Descartes em diante, está nessas noções primitivas que consideramos em nós mesmos e que, de certa maneira, são os arquétipos pelos quais se mode­ lam todos os nossos outros conhecimentos. Entre essas noções primeiras encontramos as de ser, número e duração, que pos-

137

suem um valor absoluto para todo o conteúdo do pensamento, ao passo que as idéias de extensão, forma e movimento só valem para o mundo dos corpos e a idéia de pensamento só para a alma.2 Toda a realidade empírica, toda a diversidade dos corpos e toda a vida complexa da alma estão contidas nesses modelos simples e primitivos, que se relacionam de antemão com essa realidade objetiva pela única razão de que assim se relacionam também, simultaneamente, com a sua própria origem. As idéias inatas são “ as marcas do operário impressas em sua obra”. Que benefício se colhe, então, em interrogar-se ainda sobre a sua ligação com a realidade, sobre a possibilidade de aplicá-las a esta? SãQ^apliçáveis à..experiêiicia_pela simples razão de que têm^a mesma origem dela e de que não poderia ha ver .^portanto, a mínima oposição entre sua própria estrutura e a estrutura das coisas. A razão como sistema de idéias claras e distintas e o mundo como totalidade (to ser criado não podem separar-se um do outro em nenhum ponto: cada um desses dois planos do ser^oferece tão-somente expressões e representações diversas de uma mesma e única substancialidade (W esenheit). O intellectus archetypus divino converte-se, assim, no mundo cartesiano, no elo fixo, no grampo de ferro que mantém unidos o pensamento e o ser, a verdade e a realidade. Esse traço característico da doutrina destaca-se ainda mais francamente nos discípulos ime­ diatos e sucessores de Descartes. Ora, todo o movimento do pensamento a partir de Descartes consistiu precisamente em negar lodo 1) vínculo direto entre aj rgalidadc_£_p espírito humaç_ jio, entre~ã~subsfantia co gitanse a suhxtantia piesqio fao ponto de o desfazer inteiramenteTNão existe nenhuma espé­ cie de “união” entre a alma e o corpo, entre as nossas repre­ sentações e a realidade, salvo a que é dada e produzida na essên­ cia divina. Nenhum caminho leva diretamente de um pólo a outro do ser; deve-se passar necessariamente pela mediação da existência e da eficácia de Deus. Só por esse meio conhecemos

os objetos exteriores; não dispomos de qualquer outro recurso para agir sobre eles. Foi assim que a doutrina cartesiana das idéias inatas viu-se alçada por Malebranche às alturas de um princípio segundo o qual só em Deus vemos todas as coisas. Não existe um conhecimento verdadeiro das coisas, salvo se relacionarmos em nós mesmos as percepções sensíveis com as idéias da razão pura. Somente essa relação confere SsTepresentações uma significação objetiva; de simples modificações do nosso eu, convertem-se por esse meio* em representações do ser e da ordem dos objetos. Em si mesmas, as qualidades sensí­ veis, as sensações de cores, de som, os cheiros e os sabores ainda não comportam o menor indício de um conhecimento do ser e do mundo; enquanto vivências imediatas apenas nos assinalam os diversos estados por que passa a nossa alma, de instante a instante. Só a ciência permite extrair desses estados de alma a indicação de um estado de coisas objetivamente real e objetiva­ mente válido, de uma existência da natureza e de uma legalidade inviolável. Mas só pode efetuar essa passagem do subjetivo ao objetivo na condição de reconduzir o contingente ao necessário, a existência fatual à racionalidade, o temporal ao intemporal e ao eterno. Para chegar ao conhecimento da natureza, ao conhe­ cimento do mundo físico, devemos, em vez de atribuir à “ maté­ ria” uma propriedade sensível qualquer, reduzi-la à pura exten­ são. Entretanto, cumpre-nos juntar a essa redução uma outra cujo alcance é mais profundo. Com efeito, não baçta aceitar a extensão no sentido em que ela nos é dada na e*toh§8o concreta, na “ imaginação". Para concebê-la em sua estrita e autêntica ver­ dade, temos que nos libertar também de todas as imagens que esta última nos fornece e dar o passo que nos conduzirá da extensão imaginativa à “ extensão inteligível0.3 É por intermédio dessa idéia de uma extensão inteligível que o espírito humano é suscetível de conhecer a natureza, a realidade física; mas só conceberá essa mesma idéia se a relacionar, se a reconduzir a

139

Deus como um verdadeiro "lugar das idéias” . Nesse sentido, todo ato de conhecimento autêntico, todo ato da razão estabe­ lece uma unidade imediata, uma junção entre Deus e a alma humana. A validade, a potência e a certeza das idéias funda­ mentais do saber estão fora de questão pelo próprio fato de que participamos nelas e através delas da existência divina. Em últi­ ma análise, é nessa participação metafísica que repousam toda a verdade e toda a certeza lógica; é nela que se apóia a prova perfeita. A luz que ilumina para nós o caminho do conheci­ mento, yem de dentro, não de fora: da região das idéias e das verdades eternas, não das coisas sensíveis. E, no entanto, essa pura luz “ interior”, justamente, não nos pertence; ela é o re­ flexo de uma fonte luminosa mais alta: “C’est un éclat de la substance lumineuse de notre maître commun/ 14 Num exame atento desse desenvolvimento metafísico do racionalismo cartesiano, percebe-se com toda a clareza o ponto onde ele devia fatalmente entrar em conflito com a filosofia iluminista. Esta encontra-se, a propósito do problema do conhe­ cimento, diante de uma tarefa idêntica àquela com que se de­ parou a propósito do problema da natureza e que ela acreditava então ter vitoriosamente solucionado. Trata-se de estabelecer a natureza e o conhecimento em seu próprio fundamento, explicar uma e outro por suas próprias determinações. Convém, tanto para um quanto para o outro, abster-se de recorrer a todo o “ além” . Entre conhecimento e realidade, entre sujeito e objeto, não deve interpor-se nenhuma instância estranha. O problema deve ser formulado e resolvido no terreno da experiência: o menor passo que arriscarmos fora do seu domínio significará uma solução ilusória, uma explicação do desconhecido por algo mais desconhecido ainda. Assim, essa mediação em que o aprio­ rismo e o racionalismo pensavam ter baseado a mais alta certeza do saber deve ser recusada sem vacilação nem concessão. O grande processo de secularização do pensamento que a filosofia

140

do Uuminismo considerou ser a sua tarefa essencial inicia-se nesse ponto e com especial virulência. O problema lógico e epistemológico das “ relações da consciência com os seus obje­ tos” não pode ser resolvido pela introdução de temas religiosos e metafísicos que, pelo contrário, só iriam obscurecê-lo. Em sua célebre carta a Marcus Herz, a qual contém a primeira formu­ lação precisa do problema crítico, Kant condena solenemente, uma vez mais, toda a tentativa para se resolver assim esse pro­ blema. “ Platão tomou para primeira fonte dos conceitos puros do entendimento uma antiga concepção da divindade; Malebranche, uma concepção desse ser primordial que ainda tem curso nos dias de hoje [ . . . ] Na determinação da origem e da validade dos nossos conhecimentos, o deus ex machina constitui a escolha mais extravagante que se poderia fazer; além do círculo vicioso que introduz na dedução dos nossos conhecimen­ tos, oferece ainda a desvantagem de favorecer todas as fantasias e lucubrações cerebrais piedosas ou fantásticas.” 5 Nessa parte negativa da sua doutrina, Kant sustenta ainda uma tese que corresponde à opinião comum de toda a filosofia do Iluminismo, a qual nunca deixou de se manifestar contra toda e qual­ quer tentativa de encontrar num mundo transcendente um ponto de apoio para a alavanca do conhecimento. Quanto a Voltaire, na luta perpétua que travou contra semelhante tendência, ma­ nifesta sua predileção pelo sistema de Malebranche, em quem vê o mais profundo metafísico de todos os tempos;6 mas é evi­ dente que essa referência constante serve-lhe para provar a im­ potência do “espírito de sistema” da metafísica.7 Para Voltaire e para todo o enciclopedismo francês, essa atitude negativa im­ plica imediatamente uma certa posição que eles considerarão doravante inatacável. Que mediação, com efeito, irá subsistir entre o eu e a coisa, entre o sujeito e o objeto, se excluirmos o-caminho da transcendência? Que espécie de relação é agora pensável entre eles, senão uma relação de influência direta exer­

141

cida por um sobre o outro? Se o eu e o objeto pertencem a duas camadas diferentes do ser, se devem, apesar de tudo, estar em contato e estabelecer entre si uma conexão, será inevitável que a realidade exterior se comunique à consciência. Mas a úni­ ca forma empírica que conhecíamos de uma comunicação dessa espécie é a da impressão (Einwirkung) direta. Só ela permite lançar uma ponte entre a representação e o objeto. O princípio segundo o qual toda a idéia que encontramos em nós mesmos assenta numa “ impressão” prévia e só se explica a partir desta seríL por conseqüência elevado à categoria de um axioma incon­ testável. Mesmo o cepticismo de Hume, embora dirigido contra a validade universal da relação de causalidade em geral, não he­ sitou na presença dessa forma especial da famosa relação: se nem sempre é possível produzir o original de uma determinada idéia, por mais profundamente escondido que possa estar esse original, nenhuma dúvida pode haver, contudo, de que ele exis­ te e temos que o procurar. Duvidar disso significaria apenas leviandade e inconseqüência.8 Reencontramos aí um resultado surpreendente e teorica­ mente paradoxal: o empirismo psicológico vê-se precisamente forçado, para desenvolver a sua tese, a colocar à frente de sua doutrina um axioma psicológico. O princípio: nihil est in intellectu quod non antea fuerit in sensu não pretende, em absoluto» enunciar uma verdade fatual que teria sido provada por múl­ tiplas confirmações indutivas. Não lhe reconhece uma simples probabilidade empírica mas uma certeza perfeita, indubitável, inclusive uma espécie de necessidade. Diderot declara expres­ samente: “ Nada existe de demonstrado em metafísica e nada sabemos, em momento algum, sobre as nossas faculdades inte­ lectuais, nem sobre a origem e o progresso dos nossos conhe­ cimentos, se o antigo princípio: nihil est in intellectu etc. não é a evidência de um pirmeiro axioma.” 9 Essa fórmula de Dide­ rot é característica, porquanto mostra que o próprio empiris-

142

mo não renunciou, em absoluto, a valer-se de princípios uni­ v e rsa is^ de suaevidência imediata. Mas essa evidência mudou, por certo, de lugar: não enuncia mais um vínculo entre idéias puras mas a apercepção de uma ligação de facto. Em vez da metafísica da alma, deve aparecer a história da alma, esse “mé­ todo estritamente histórico” que Locke defende contra Descar­ tes.10 Pode-se muito bem afirmar que a autoridade de Locke, em todas as questões de psicologia e de teoria do conhecimento, é quase incontestada durante a primeira metade do século XVIII. Voltaire situa Locke muito acima de Platão — e D’Alem­ bert declara na introdução da Enciclopédia que Locke é o cria­ dor da filosofia científica, tal como Newton o foi da física científica. Condillac, num exame rápido da história do problema da alma, associa Locke diretamente a Aristóteles; declara ele que tudo o que foi produzido nesse meio tempo não conta, por assim dizer, para nada no avanço verdadeiro do problema.11 A psicologia inglesa, tal como a francesa, só procura ultrapassar Locke numa direção: a liquidação do que resta de dualismo no princípio de sua análise, a distinção da experiência “ inte­ rior” e “ exterior” que ela quer eliminar para reduzir todo o co­ nhecimento humano a uma só e mesma fonte. A oposição entre “ sensação” e “ reflexão” apenas espelha um pseudodilema que se apaga diante de uma análise mais apurada. Todo o desen­ volvimento, todo o progresso da doutrina empirista de Locke a Berkeley e de Berkeley a Hume tende a compensar e, em última análise, a apagar inteiramente a suposta diferença entre sensa­ ção e reflexão, e a crítica da filosofia francesa do século XVIII incide igualmente sobre esse único ponto, tendente a eliminar o resto de autonomia que Locke tinha concedido à reflexão. A reflexão queria ser conhecimento da alma no que se refere à sua própria existência e aos seus próprios estados, mas existirá tal conhecimento, na verdade, como dado empírico real? Algu­ ma vez nos experimentamos a “ nós mesmos” sem que não so­

143

brevenha, nessa experiência, alguma impressão, por mínima que seja, relacionada com um fato físico, com uma disposição ou uma condição do nosso corpo? Alguma vez será possível indicar na experiência um puro “ sentimento do euM (Ichgefühl), uma autoconsciência abstrata? Maupertuis, ao formular essa questão, recusa-se a resolvê-la dogmaticamente, mas é propenso a darlhe uma resposta negativa. Quanto mais fundo penetra-se na idéia de uma existência pura mais longe se leva a sua análise, mais claramente se afirma a impossibilidade de separar essa idéia de todo e qualquer dado sensível. Verifica-se, em particu­ lar, que o sentido do tato desempenha em seu aparecimento um papeljdecisivo.12 Vamos encontrar a mesma argumentação em Condillac sob uma forma essencialmente mais radical, a qual culmina numa penetrante crítica dos fundamentos da psicologia e da teoria do conhecimento em Locke. Sem dúvida, Locke deu um importante passo no sentido do avanço da investigação em­ pírica; também foi, indubitavelmente, o primeiro a traçar-lhe o percurso que deveria ser adotado. Mas deteve-se a meio ca­ minho e recuou precisamente diante do problema que apresen­ tava maiores dificuldades. Com efeito, foi quando se abordavam as mais altas funções da vida mental, do poder de comparar, de distinguir, de julgar, de querer, que Locke tornou-se, de sú­ bito, infiel ao seu método geral. Contenta-se em enumerar sim­ plesmente essas faculdades e em apresentá-las como poderes fun­ damentais da alma, em vez de segui-las até às suas origens. Portanto, é no ponto mais importante, no ponto decisivo, que se quebra precisamente o fio da investigação. Locke, que com­ bateu vitoriosamente as idéias inatas, não derrubou o precon­ ceito das operações inatas da alma. Ele não viu que, à seme­ lhança da vista e do ouvido, a atenção, a compreensão etc. não são qualidades primárias indivisíveis mas estruturas tardias que só podemos adquirir pela experiência e a aprendizagem.13 Ê necessário, portanto, dar continuidade ao desenvolvimento sem

144

opor nenhuma fronteira superior ao processo de gênese contí­ nua da vida anímica. Longe de se deter diante das formas de energia espiritual pretensamente “ superiores”, esse processo de­ ve encontrar aí a sua plena eficácia e o seu papel decisivo. Nada se encontrará nesse nível que já não esteja contido e cons­ tituído nos elementos sensíveis primitivos. Os atos do espírito, as operações intelectuais, nada comportam que seja verdadei­ ramente novo e, daí, misterioso: são apenas sensações transformadas. Convém acompanhar passo a passo a gênese desses atos, o processo de transformação dos elementos sensíveis primitivos da vida da alma. Verifica-se então que as diversas fases singulares nunca estão separadas por um corte nítido mas, pelo contrário, fundem-se^insensivelmente umas nas outras. Ao conside­ rarmos o conjunto dessas metamorfoses psíquicas, reconhecemos uma só e mesma ordem de desenvolvimento, tanto dos atos dcT pensamento e da volição quanto dos^ atos de sentir e perceber. Condillac náo é exatamente “ sensualista”, no sentido de' qtrefér fazer do eu, à maneira de Hume, um simples "feixe de percepções”. Insiste na simplicidade da natureza da alma, onde se deve procurar, diz ele expressamente, o verdadeiro su­ jeito da consciência. A unidade da pessoa pressupõe necessariamente a unidade do ser senciente, portanto, que existe uma substância espiritual simples que sofre somente modificações múltiplas sob o efeito de diversas impressões que se exercem sobre o corpo e cada uma de suas partes.14v Qs sentidos não são, pois, stricto sensu, mais do que as causas ocasionais e náo a origem de todos os nossos conhecimentos. Com efeito, não são eles que"sentehTe sim a alma, por ocasião das modificações que se produzem nos órgãos corporais. Devemos observar cui­ dadosamente as primeiras sensações de que temos consciência, descobrir a causa das primeiras operações do espírito, surpreendê-las em seu nascimento, acompanhá-las até seus limites extre­ mos, em suma, devemos, como disse Bacon, recriar de certo

145

modo todo o entendimento humano, a fim de compreendê-lo realmente em sua estrutura.15 Nessa tentativa de “recriação”, Condillac não se ateve, evidentemente, à simples observação empírica. O Traité des sensations não se contenta em alinhar observações; pelo contrário, obedece a um plano sistemático partindo de uma hipótese teó­ rica que ele quer consolidar e provar passo a passo. A célebre imagem da estátua que, sob a influência das impressões que se exercem sobre ela, desperta para a vida e eleva-se para formas de vida cada vez mais ricas e diferenciadas, mostra claramente que a “ história natural da alma” que Condillac nos quer apre­ sentar não está inteiramente isenta de intenções especulativas ou sintéticas. Condillac tampouco se contenta em desenvolver diante dos nossos olhos a gênese da alma e a diversidade cres­ cente de suas formas: ele quer revelar-nos a orientação dessa gênese, desvendar-nos os seus verdadeiros mecanismos. Assim, encontramos nele uma nova posição do problema, repleta de fecundas possibilidades: compreende ser impossível descobrir os fatores essenciais dessa gênese se permanecermos no domínio das nossas simples idéias e representações, no domínio do nosso conhecimento teórico. É necessário recorrer a uma outra di­ mensão do psíquico. Não é sobre a especulação, sobre a mera observação, que repousa a atividade de alma, não é aí que se escondem as fontes vivas de todas as nossas diversas energias. Pode o movimento ser explicado pelo repouso? A dinâmica da vida anímica pode fundamentar-se na estática? Para compreen­ der que a força latente está subentendida em todas as metamor­ foses da alma, jamais se detendo em qualquer forma estável, esforçando-se sempre por alcançar novas realidades e novas operações, é necessário supor nela a existência de um princípio motor originário que não pode ser encontrado nas representa­ ções e no pensamento mas tão-somente no desejo e no esforço. O impulso instintivo (Trieb) é, portanto, “anterior” ao conhe-

146

cimento e constitui para este um pressuposto indispensável. Locke já enfatizara esse ponto em sua análise dos fenômenos volitivos: o que determina os homens a empreender uma da­ da ação voluntária, o que é, em cada caso singular, a causa concreta da decisão tomada, não é, de forma alguma, a repre­ sentação de um bem futuro para o qual a ação serviria de meio. Nem essa representação nem a avaliação puramente teórica dos possíveis fins singulares do querer, do ponto de vista do melhor ou do pior, contêm qualquer espécie de força motriz. Não se trata de uma força que atua de antemão, pela previsão teórica e antecipação de um bem futuro, mas de uma força que age no sentido de antes para depois, proveniente do desprazer e do mal-estar que a alma sente em certas situações em que se vê colocada e que a impelem irresistivelmente a fugir dessas situa­ ções. Esse mal-estar (uneasiness) e essa inquietação foram considerádos^põfTõcke^ o verdadeiro m o to re o ^ impulso^tecisivo de todo~o~ffOS5õ quérer.1* Condillac parte das mesniasconSide^ rações mas entendeu levá-las muito além do círculo dos fenô­ menos volitivos e estendê-las a todo o domínio da vida psíquica. A “ inquietude” é para ele não só o ponto de partida do nosso desejo e dos nossos anseiosTdo nosso querer e da nossa ação, mas também das nossas sensações e das nossas percepções, do nosso p e n s a m e r^ ^ Jq s_ j^ sso s julgamentos, e até mesmo 3õs atos superiores de reflexão a_ que a nossa alma sfc H eyaJ 7" Desse modo se vê invertida a ordem habitual das idéias, aquela que, estabelecida em novas bases, recebera a sanção da psicologia cartesiana. A vontade deixa de ser causada pela representação, passando esta a ser causada por aquela. Deparamo-nos aqui, pela primeira vez, com a atitude “voluntarista” cujo rastro pode ser seguido em metafísica até Schopenhauer e em teoria do co­ nhecimento até o pragmatismo moderno. É no simples ordena­ mento teórico dos fenômenos que, segundo Condillac, consiste a primeira atividade da alma, na apreensão pura e simples do

147

que os sentidos nos oferecem, no ato da percepção. O ato de atenção que lhe sucede imediatamente permite insistir em certas percepções, destacar certos dados sensíveis do conjunto do pro­ cesso psíquico. Entretanto, essa acentuação, esse esforço de de­ terminadas percepções seria impossível se não houvesse razão nenhuma para escolher umas em vez de outras. Ora, essa razão não pertence, como tal, à esfera puramente teórica, mas à da prática. A atenção só capta o que, num certo sentido, "afeta” di­ retamente o eu, ou seja, o que corresponde à satisfação de suas necessidades e inclinações. Também são as inclinações e neces­ sidades que determinam a orientação das nossas lembranças: a memória não se explica pela associação mecânica das idéias, sendo determinada e governada pela vida instintiva. É a neces­ sidade que recupera da obscuridade e restabelece alguma idéia esquecida: “ As idéias renascem pela própria ação das necessi­ dades que as produziram.1’ As idéias formam na nossa memória certos turbilhões que se multiplicam na própria medida em que os nossos instintos se avolumam e se diferenciam. Cada um deles apresenta-se como o centro de um movimento determinado que se prolonga até a periferia da vida psíquica, até as repre­ sentações claras e conscientes. “ Assim é que as idéias renascem pela própria ação das necessidades que inicialmente as produ­ ziram. Elas formam, por assim dizer, na memória, turbilhões que se multiplicam como as necessidades. Cada necessidade é um centro, cujo movimento se comunica até a circunferência. Esses turbilhões são alternativamente superiores uns aos outros, à medida que as necessidades vão ficando cada vez mais vio­ lentas. Todos efetuam suas revoluções com uma variedade sur­ preendente: empurram-se, destroem-se, íormam-se de novo, de­ bilitam-se, à medida que os sentimentos, aos quais devem toda a sua força, enfraquecem-se, eclipsam-se, ou produz-se o que ainda não tinha sido experimentado. De um instante a outro, o turbilhão que arrastou vários é por sua vez tragado; e todos

148

se confundem assim que as necessidades cessam, nada se vê além de um caos. As idéias passam uma e outra vez sem ordem; são quadros móveis que somente oferecem imagens bizarras e imperfeitas, e toca às necessidades a tarefa de redesenhá-las e situá-las em sua verdadeira luz.” 18 A ordem lógica das nossas idéias não é, portanto, primária mas derivada, segundo Con­ dillac; trata-se de uma espécie de reflexo ou de espelho de ordem biológica; o que em cada caso nos parece importante, “ essencial”, é-o menos em função da essência das coisas do que da direção do nosso “ interesse” , o qual é determinado pelo que nos for proveitoso, pelo que for útil à nossa conservação. Estamos, pois, ao mesmo tempo, na presença de uma ques­ tão prenhe de conseqüências no que tange à significação da filosofia iluminista como um todo. Há o costume, enquistado numa concepção demasiado estreita desse período, de recrimi­ nar na psicologia do século XVIII sua orientação num sentido exageradamente “ intelectualista”, limitando o essencial de suas análises à vida intelectual e ao conhecimento teórico, ignorando ou menosprezando, em contrapartida, a força e a originalidade da vida instintiva. Essa concepção, entretanto, não resiste a um exame histórico sem preconceitos. Quase todos os sistemas do século XVIII reconheceram claramente, pelo menos, e apro­ fundaram o problema que acabamos de abordar. Já no século XVII a análise das emoções e das paixões tinha sido substituída no centro de interesse da psicologia e da filosofia em geral. As paixões da alma, de Descartes, e a teoria spinozista das paixões no Livro III da Êtica não são obras secundárias, me­ nores; fazem parte integrante dos sistemas. No conjunto, entre­ tanto, o pensamento que prevalece é, de fato, o de que é im­ possível apreender e determinar pelas paixões a “ natureza” da alma. Essa natureza reside no “ pensamento” e só no pensamento encontra sua marca verdadeiramente característica. £ a repre­ sentação, a idéia clara e distinta, não a paixão obscura e con­

149

fusa, que caracteriza, por conseguinte, a natureza da alma. Os instintos, òs desejos, as paixões sensíveis só indiretamente lhe pertencem. Não estão aí suas propriedades originárias e seus movimentos próprios mas perturbações que experimenta, oriun­ das do corpo, de sua junção com o corpo. A psicologia e a ética do século XVII fundem-se essencialmente nessa concepção das paixões como fenômenos de inibição e de perturbação, como perturbationes animi. Somente possui valor ético o ato que do­ mina essas “ perturbações”, que manifesta a vitória da parte ativa da alma sobre a parte passiva, a vitória da “ razão” sobre as paixões. Essa perspectiva estóica não caracteriza somente a filosofia do século XVII; ela impregna toda a vida espiritual dessa época. É o ponto de contato da doutrina de Descartes e [do pensamento de Corneille.19 A vontade racional dominando os impulsos dos sentidos, os instintos e T s paixões, tais são o sinal e a essência da liberdade do homem. O século XVIII não (se detém num critério tão negativo, numa apreciação tão ne­ gativa das paixões. Longe de ver aí uma simples inibição, pro­ cura o impulso originário indispensável da vida da alma. Na Alemanha, os princípios da filosofia leibniziana já deviam de­ sempenhar um papel nesse sentido. Com efeito, Leibniz, ao ela­ borar o seu conceito de mônada, não procurou reduzir a sua natureza à simples “ representação” , ao conhecimento teórico. A mônada não se limita à atividade representativa: ela efetua em si a síntese da representação e do esforço. A idéia de repre­ sentação e a de tendência, a idéia de perceptio e a de percepturitio,20 são colocadas lado a lado no mesmo plano. De um modo geral, a psicologia alemã liga-se a essa hipótese básica que lhe permite dar aos fenômenos voluntários e efetivos uma posição independente no sistema da psicologia. Mas um movi­ mento idêntico esboça-se na França e na Inglaterra, daí passando a outros países. O cepticismo crítico de Hume leva, no domínio da psicologia, a uma inversão de critérios cuja validade era até

150

então incontestada. É, em suma, a inversão do inferior e do superior: mostra que a razão que se costuma honrar como a faculdade soberana do homem desempenha afinal um papel inteiramente secundário no conjunto da vida psíquica. Ela exer­ ce tão escassos poderes na direção das faculdades “ inferiores” da alma que não se cansa, pelo contrário, de recorrer a elas, e não saberia dar um só passo sem a colaboração da sensibili­ dade e da imaginação. Todo o saber racional se reduz exclusi­ vamente à inferência da causa a partir da observação do efeito; ora, essa inferência, em si mesma, é justamente aleatória, in­ certa, e jamais poderá ser estabelecida por via puramente lógi­ ca. Para ela só existe a justificação indireta, aquela que consiste* em descobrir sua origem psicológica, em reconduzir à sua ori­ gem a crença na validade do princípio de causalidade. Verifi­ ca-se então que essa “ crença” não se fundamenta, de maneira alguma, em princípios racionais universais e necessários mas provém de um simples “ instinto” , de uma pulsão primitiva da natureza humana. Esse instinto é, em si mesmo, cego; mas é justamente nessa cegueira que consiste a sua força essencial, a potência pela qual ele impõe-se a todo o curso de nossas idéias. Hume parte desse resultado teórico para sistematicamente es­ tender a todo o domínio do psíquico o processo de nivelamento por ele iniciado. Procede então à redução das camadas superio­ res da vida psíquica segundo um plano que é, em si, perfeita­ mente metódico. Em sua História natural da religião, procura assinalar até que ponto é ilusória e caduca essa pretensão que a religião tem de comunicar, de tornar acessível ao homem um “outro mundo” . O verdadeiro solo nutriente da religião, da representação e da adoração de Deus não está aí. Não deve ser procurado numa idéia inata nem em qualquer certeza intui­ tiva primitiva; tampouco poderíamos encontrá-lo por intermédio do pensamento e do raciocínio, mediante provas e argumentos teóricos. Uma vez mais, não nos resta outra solução senão a de

151

procurar a raiz profunda do religioso na vida instintiva. O sen­ timento do medo é o começo de toda e qualquer religião; é a partir dele qíie se explica e se desenvolve_toda a religião sob seus múltiplos aspectos. O novo modo de pensamento que assim se manifesta em Hume exerce igualmente uma ação incessante no seio da cultura francesa setecentista. Vauvenargues produz quase o efeito de uma violência subversiva, de um ato revolu­ cionário, ao declarar, em sua Introdução ao conhecimento do espírito humano (1746), que a verdadeira e profunda natureza do homem não consiste em sua razão mas em “suãs paixões. O imperativo estóico de dominar suas paixões pela razão nunca seria mais do que puro devaneio. A razão não é no homem uma faculdade diretora e dominante. Não podemos compará-la com o ponteiro que indica as horas no mostrador de um relógio. As engrenagens do conhecimento e o seu primum movens são pulsões primitivas, originárias, que nos acodem sem tréguas, oriundas de um domínio diferente, absolutamente irracional. Até mesmo os pensadores mais claros e lúcidos entre os iluministas franceses, até mesmo os protagonistas e porta-vozes de uma cultura puramente intelectual estão de acordo a respeito dessa tese. No seu Tratado de metafísica Voltaire declara que, sem as paixões, sem o orgulho, a ambição, a vaidade, todo o progresso da humanidade, todo c refinamento de gosto e todo o desenvolvimento das artes e das ciências seriam impensáveis: “ Foi com esse expediente que Deus, a quem Platão chamou o eterno geômetra e a quem eu chamo o eterno maquinista, ani­ mou e embelezou a natureza: as paixões são as rodas que fazem funcionar todas essas máquinas." 21 O tratado Do espíritot de Helvétius, não foi escrito em tom diferente. O primeiro escrito independente de autoria de Diderot, os Pensamentos filosóficos, também parte desse mesmo pensamento. Ê fútil bradar contra as paixões, seria o cúmulo da insensatez empenhar-se em des­ truí-las, nada menos do que socavar o terreno sobre o qual o

152

orgulhoso edifício da razão se sustenta. Tudo o que há de me­ lhor na poesia, na pintura, na música, todo o sublime da arte e dos costumes, brota dessa mesma fonte. Portanto, as paixões não devem ser enfraquecidas mas, pelo contrário, intensificadas, pois a verdadeira força da alma nasce de sua concordância recí­ proca e não de sua destruição.22 Em tudo o que precede perce­ be-se sem dificuldade um deslocamento progressivo das pers­ pectivas fundamentais da psicologia e uma modificação da ordem dos valores psicológicos: metamorfose que se manifesta antes do aparecimento das principais obras de Rousseau e que se realiza fora de sua influência. Essa metamorfose, como iremos ver, não é somente importante para o sistema do conhecimento teórico: ela age em todas as direções, a sua influência exerce-se tanto sobre a ética e a filosofia da religião quanto sobre a esté­ tica do Século do íluminismo, cujos problemas ela coloca em novas bases.

2 Ao considerar-se o conjunto de problemas de que tratam a teoria do conhecimento e a psicologia do século XVIII, sur­ preende a percepção de que, apesar da sua diversidade e da especificidade de cada um, eles convergem para um mesmo ponto. A busca de detalhes vê-se levada constantemente, apesar de toda a sua riqueza e de sua aparente dispersão, para um problema teórico fundamental onde se reúnem todos os fios.23 Trata-se da questão que tinha sido apresentada pela primeira vez na Óptica de Molineux e que logo despertara o mais vivo interesse filosófico. As experiências que fizemos num dos nossos setores sensoriais podem permitir-nos constituir um setor de conteúdo qualitativamente diferente e de outra estrutura espe­ cífica? Haverá uma conexão interna que nos permita passar

153

diretamente de um setor a outro, por exemplo, do mundo tátil ao mundo visível? Um cego de nascença que tivesse adquirido, graças à experiência do tato, o conhecimento exato de certas formas corporais e que soubesse apontar com segurança as di­ ferenças entre elas, continuaria possuindo esse mesmo dom de distinção depois que uma feliz operação lhe proporcionasse o sentido da visão e ele tivesse que passar a julgar essas mesmas formas com base em dados puramente ópticos? Poderá ele dis­ tinguir de imediato, por meio da visão, um cubo de uma esfera, ou terá que realizar um longo e difícil esforço de conciliação antes de chegar a estabelecer a ligação entre as impressões táteis e a forma visível de um e de outro volume? Todas essas ques­ tões ficaram sem uma solução geral imediata mas não tardaram em exercer uma influência muito além dos meios científicos ver­ dadeiramente especializados. O Diário filosófico, de Berkeley, mostra-nos como ele se preocupou com esses problemas que constituíram, de certo modo, o germe de toda a sua teoria da percepção. A Nova teoria da visão, que é o primeiro ato da filosofia de Berkeley e contém implicitamente todos os seus re­ sultados, nada mais é, em suma, do que uma tentativa de de­ senvolvimento do problema de Molineux até as suas últimas conseqüências para o elucidar. E algumas dezenas de anos mais tarde o problema reencontra no seio da filosofia francesa toda a sua força e fecundidade anteriores. Voltaire consagra-lhe urtia análise penetrante em seus Elementos da filosofia de Newton (1738);24 Diderot coloca-o no centro da sua primeira obra de psicologia, de teoria do conhecimento, as Cartas sobre os cegos (1749). Quanto a Condillac, está fascinado a tal ponto por essa questão que declara sem rodeios ter que se procurar aí a origem e a chave de toda a psicologia moderna, porquanto foi ela que chamou a atenção para, o papel decisivo do julgamento nos mais simples atos^e a fortiori na construção progressiva do mundo da percepção.26 A importância teórica decisiva do problema de

154

Molineux é, portanto, perfeitamente clara, de fato: para além do exemplo particular que ele destaca, encontra-se colocada a questão geral de saber se o “sentido” como tal está em condi­ ções de construir para a nossa consciência a forma do mundo real ou se necessita da colaboração de outras faculdades psí­ quicas e, nesse caso, coloca-se a questão de apreender o modo como' determiná-las. Berkeley, em Nova teoria da visão e nos Princípios do conhecimento humano, tinha partido deste paradoxo: a única matéria, o único material de que dispúnhamos para edificar o nosso mundo perceptivo, consiste apenas em simples impressões sensíveis — mas, por outro lado, essas impressões sensíveis não comportam em si a menor indicação das “ formas” sob as quais a realidade percebida se nos apresenta. Acreditamos ver essa realidade diante de nós como uma estrutura sólida onde cada elemento singular teria seu lugar designado e suas relações com todos os demais elementos exatamente determinadas. Aliás, não é justamente essa determinação o que constitui o caráter essen­ cial dessa realidade? Se as percepções particulares não fossem ordenadas em sua simultaneidade e em sua sucessão, se não tivessem entre si relações fixas no espaço e no tempo, não existiria para nós qualquer mundo objetivo, não haveria a me­ nor “ natureza das coisas” . E mesmo o idealista mais convicto não pode renunciar a essa “ natureza das coisas” : terá, inclusive, que admitir e exigir nos fenômenos uma ordem fixa e inviolável para que a aparência não redunde, para ele, em pura ilusão.26 Por conseguinte, a questão crucial de toda a teoria do conheci­ mento consiste em saber o que essa ordem significa, e a de toda a psicologia em saber como aquela se constitui. Mas parece que a experiência, a única que poderia fornecer-nos informações certas, falta-nos justamente nesse ponto. O mundo que ela nos apresenta nunca é, de fato, um mundo em devir, mas sempre um mundo já constituído: ela coloca diante de nós os objetos

155

em sua forma definitiva, em particular segundo uma distribuição espacial determinada, sem nos informar como foi que eles adqui­ riram essa forma. Não só a primeira vez que olhamos para as coisas faz-nos descobrir nelas certas qualidades sensíveis mas, além disso, cremos adquirir consciência de certas relações espa­ ciais: atribuímos a cada objeto uma certa grandeza, uma certa posição e uma certa distância em face dos outros objetos. Mas procuramos, entretanto, as razões de todas essas asserções: e chegamos à conclusão de que elas são impossíveis de encontrar nos dados que o sentido da visão fornece-nos. Esses dados só se diferenciam por sua posição numa gradação puramente qua­ litativa e intensiva e nada contêm que possa levar de imediato à idéia de grandeza, de quantidade pura. O raio luminoso que, partindo do objeto, alcança o meu olho, nada me pode informar diretamente acerca da forma espacial desse objeto nem sobre a sua distância. Tudo do que o olho dispõe é da impressão feita na própria retina. E a natureza dessa impressão não permite aduzir nenhum saber referente à causa que a suscitou nem à distância menor ou maior a que tal objeto encontra-se. A con­ clusão que se deve tirar dessa análise é que tudo aquilo a que chamamos distância, posição, grandeza dos objetos tem, na rea­ lidade, algo de invisível. E parece que a tese fundamental de Berkeley é assim reduzida ao absurdo, na medida em que se anula a identificação de esse e de percipi. No âmbito dos fenô­ menos que se nos impõem imediatamente e que não podemos recusar, de maneira nenhuma, apresenta-se-nos algo, portanto, que ultrapassa as fronteiras da percepção. A distância que se­ para os objetos singulares parece, por sua própria natureza, impossível de perceber, mas, por outro lado, ela constitui um elemento indispensável, ao qual não podemos renunciar a fim de construir a nossa imagem do mundo. A “forma” espacial das percepções mistura-se à sua “ matéria” sensível, sem que seja dada por ela e, ademais, sem que se lhe deixe reduzir analiti156

ca mente. Ela constitui, portanto, o único mundo que nos é acessível, o dos dados imediatos dos sentidos, como que um corpo estranho, o qual, não obstante, não pode ser eliminado sem que o mundo desmorone e retorne ao caos originário. "Distance is, in its own nature, imperceptible and yet it is perceived by sight”: 27 com essas palavras Berkeley exprime, na Nova teoria da visão, da maneira mais rigorosa e impressionante, o dilema em face do qual a psicologia e a teoria do conhecimento sensualista viram-se colocadas desde o seu nascimento. Quando atribuiu ao seu conceito fundamental de percepção uma significação mais ampla, Berkeley superou esse dilema ao inserir nele, além da simples sensação, a atividade de repre­ sentação. Toda a impressão sensível possui esse poder de re­ presentação, de referência mediata. Com efeito, a impressão não se propõe simplesmente à consciência com o seu próprio con­ teúdo específico, ela torna-lhe também visíveis e presentes todos os outros conteúdos aos quais está vinculada por uma sólida conexão empírica. E essa interação das igipressões sensíveis, essa regularidade com a qual elas se convocam e se representam mutuamente perante a consciência, é o fundamento último da representação do espaço. Essa representação não é dada como tal numa percepção isolada, não pertence separadamente à visão ou ao tato. Tampouco é um estado qualitativo específico que seria dado tão originariamente quanto a cor ou o som: ela resulta das relações que os diversos dados sensíveis mantêm entre si. Na medida em que as impressões visuais e as impressões táteis se encontram, no decorrer da experiência, estreitamente ligadas entre si, a consciência adquire a capacidade de passar de uma à outra segundo regras determinadas com absoluta exatidão; é nessa passagem que devemos procurar a origem da representa­ ção do espaço. Quanto à passagem propriamente dita, é evidente que temos de entendê-la como transição puramente empírica e de maneira nenhuma lógica. Não se trata de uma conexão de

157

ordem lógico-matemática e muito menos de um “ raciocínio” que nos conduziria de certas percepções visuais para outras de na­ tureza tá til, ou destas para aquelas. Somente o hábito e o exer­ cício estabelecem essa conexão e progressivamente a consolidam. A idéia de espaço não é, pois, a rigor, um elemento da cons­ ciência sensível; é a expressão de um processo que se reflete nela. Só a rapidez com que esse processo se realiza e a regu­ laridade com que se desenrola permitem que, em nossa autoobservação, saltemos etapas intermediárias e que, desde o come­ ço, já possamos antever o fim. É necessária a análise psicoló­ gica e a crítica mais penetrante para nos recordar a existência dessas etapas intermediárias. Descobrimos assim a experiência, entre os diversos domínios da sensibilidade, das mesmas rela­ ções que existem entre os signos da língua e sua significação. O som vocal não é, de maneira nenhuma, semelhante ao con­ teúdo que ele designa, não lhe está ligado poj* nenhuma espécie de necessidade natural, o que não impede o som de cumprir sua função de designar esse conteúdo e de convocá-lo à cons­ ciência. O mesmo pode ser dito a respeito das ligações que se estabelecem entre impressões de gênero diferente e totalmente díspares, do ponto de vista qualitativo. Nada distingue os sinais da língua dos sentidos dos da língua falada, salvo a universali­ dade e a regularidade de sua coordenação. Voltaire declarou, ao explicar o pensamento de Berkeley: “ Aprendemos a ver pre­ cisamente como aprendemos a falar e a ler. Os julgamentos repentinos, quase uniformes, que formulamos numa certa idade, a respeito de distâncias, grandezas e situações, fazem-nos pensar que basta abrir os olhos para ver as coisas da maneira que ve­ mos. É um engano. Se todos falássemos a mesma língua, sería­ mos propensos a crer na existência de uma conexão necessária entre as palavras e as idéias. Ora, todos os homens falam, nesse caso, a mesma linguagem: a da imaginação. A natureza cjfsse a todos: quando tiverem visto cores durante um certo tempo,

158

a imaginação de cada um de vós apresentar-lhe-á de maneira idêntica os corpos a que essas cores parecem estar ligadas. Esse julgamento rápido e involuntário que formaram ser-lhes-á útil ao longo da vida: pois se tivéssemos que esperar, a fim de ava­ liar as distâncias, as grandezas e as situações de tudo o que nos rodeia, pelo exame dos ângulos e dos raios visuais, estaríamos mortos antes de saber se as coisas de que temos necessidade estão a dez passos de nós ou a cem milhões de léguas, se são da espessura de uma bolota ou de uma montanha.” 28 A teoria da visão de Berkeley foi conhecida e admitida, em seus traços essenciais, por quase todos os psicólogos de primeira ordem do século XVIII. Condillac e D iderot29 modificaram-na em alguns detalhes, indicando ambos que as impressões da vista já contêm em si mesmas uma certa “espacialidade”. Deixam para o tato apenas o papel de aclarar e fixar as experiências feitas por inter­ médio da vista; só o consideram indispensável para a elaboração da representação do espaço, não para o seu aparecimento. Mas a tese rigorosamente empirista como tal não é afetada por essa modificação. Toda a “ aprioridade” do espaço é vigorosamente rejeitada e assim a questão de sua universalidade e de sua ne­ cessidade é colocada sob uma nova luz. Se devemos apenas à experiência a percepção das estruturas do espaço, não podemos descartar o pensamento de que uma mudança da nossa expe­ riência — como a que ocorreria no caso de uma modificação da nossa organização psicofísica — não venha a atingir o pró­ prio âmago da “ natureza” do espaço. E o pensamento não sa­ beria deter-se em semelhante declive. O que significa essa cons­ tância, essa “objetividade” que temos o hábito de atribuir às formas da percepção e do entendimento? Exprimirá ela seja o que for da natureza das coisas ou tudo o que entendemos por tal não se relacionará, não se limitará à nossa própria natureza? Para falar como Bacon, os julgamentos que baseamos nessa na­ tureza valem ex analogia universi ou não valerão antes, de ma­

159

neira exclusiva, ex analogia hominis? Com essa indagação, o problema da origem da representação do espaço vai muito além dos seus limites iniciais. Descobre-se agora a causa que remeteu incessantemente para esse problema as reflexões psicológica e epistemológica do século XVIII. O conceito cujo destino estava em causa era o de verdade em geral. Se o espaço, elemento fundamental da percepção humana, é somente engendrado pela convergência e interação das diversas impressões sensíveis, en­ tão não pode pretender nenhuma necessidade, nenhuma digni­ dade racional que seja superior à que cabe aos seus elementos constitutivos. A subjetividade das qualidades sensíveis, que a ciência moderna conhece e reconhece doravante, também acar­ reta o espaço em sua órbita, portanto. O que vale para o espaço vale no mesmo sentido e com a mesma legitimidade em relação a todos os outros fatores em que assenta a "form a” do conhe­ cimento. A psicologia antiga já distinguia rigorosamente entre as diversas classes de conteúdos sensíveis, por um lado, cores e sons, gostos e cheiros, e, por outro lado, os conceitos formais, atribuindo a estes últimos, entre os quais a duração, o número, o movimento e o repouso, um lugar à parte, na medida em que esses elementos, dizia ela, não dependem de um sentido parti­ cular mas da QxaQr\xr\qiw xoivòv . Nos tempos mo­ dernos, a teoria racionalistã“ do conhecimento retomou essa dis­ tinção psicológica respeitante à origem das idéias a fim de esta­ belecer uma diferença específica de validade entre essas duas classes. As idéias que se costuma atribuir ao senso comum, ao sensus communis, sustenta Leibniz, pertencem na realidade ao próprio espírito e provêm do seu próprio fundo: “ São idéias do entendimento puro que não têm seu princípio nos sentidos mas somente a causa ocasional do seu aparecimento, e que são por isso suscetíveis de definições e de provas exatas.” 30 A aná­ lise exata ocasionada pelo problema de Molineux veio revelar que essa doutrina não tinha o menor fundamento. E quando

160

Cheselden conseguiu em 1728 curar, graças a uma feliz operação, um rapaz de catorze anos cego de nascença, tudo levou a crer que essa questão, apresentada por Molineux como pura hipótese, tinha encontrado a sua solução experimental. As observações efetuadas com esse rapaz pareciam confirmar, de fato, todcs os pontos da tese empirista. As predições teóricas de Berkeley es­ tavam inteiramente corroboradas: verificava-se que o doente, ao recuperar a luz, não tinha, de maneira nenhuma, adquirido ime­ diatamente a faculdade de ver, que, em particular, ele tinha que aprender, progressiva e penosamente, a distinguir as formas cor­ porais que se lhe apresentavam à vista. Dessarte se confirmava a tese de que, entre os dados espaciais do sentido do tato e os da visão, não existia nenhum parentesco, de que as relações entre eles só se estabeleciam na base de uma ligação habitual. Entretanto, se essa conclusão é correta, não podemos continuar falando de um espaço único, o mesmo para todos os sentidos, e servindo-lhes, por assim dizer, de substrato uniforme. Esse espaço homogêneo, produto do espírito, segundo Leibniz, do Intellectus ipse, revela não ser mais do que uma abstração. Os dados que a experiência nos apresenta, os únicos que ela coloca ao nosso alcance, não se encaminham no sentido da unidade e da homogeneidade do espaço mas, pelo contrário, no de uma pluralidade de "espaços” qualitativamente diferentes e tão nu­ merosos quanto os domínios sensoriais. Espaço óptico, espaço tátil, espaço das nossas sensações motoras, todos possuem sua própria estrutura, específica e completa; as conexões e as rela­ ções que eles estabelecem entre si não se baseiam, absoluta­ mente, numa natureza comum, na identidade de uma “ forma” abstrata, mas tão-só na ligação empírica regular que existe entre eles e graças à qual todos essés éspaços têm a possibilidade de representar-se reciprocamente. Mas, então, uma conseqüência adicional parece inevitável. A questão de saber a qual desses espaços sensoriais pertence a “ verdade” autêntica e definitiva

161

perde todo o sentido. Eles equivalem-se todos uns aos outros, nenhum deles pode exigir um grau mais elevado de certeza, de objetividade e de universalidade para si do que para os outros. Aquilo a que chamamos objetividade, verdade ou necessidade só tem, por conseguinte, uma significação relativa e não abso­ luta. Cada sentido tem o seu próprio mundo, resta apenas com­ preender e analisar todos esses mundos de maneira puramente empírica, sem tentar reduzi-los a um denominador comum. A filosofia do Iluminismo não se cansará de recordar essa relati­ vidade. O motivo que se anuncia aqui, não contente por imporse sem tréguas ao pensamento científico, tornar-se-á o tema favorito de toda a literatura. Swift tratou esse tema n'As viagens de Gulliver, com supremo vigor satírico e uma incomparável penetração intelectual; daí passou à literatura francesa, encarnando-se em particular no Micromégas de Voltaire. Também Diderot, na Carta sobre os cegos e na Carta sobre os surdos e mudos, se compraz nas variações sobre esse tema, nas ilustra­ ções multicores. A primeira dessas obras tende essencialmente a mostrar, com o exemplo do célebre geômetra cego Saunderson, que todo o desvio na adaptação orgânica do homem deve ter inevitavelmente por efeito uma mudança completa da sua natu­ reza espiritual. Essa mudança, porém, não diz somente respeito ao mundo sensível, à forma da realidade percebida; encontra-se a mesma diferença, se levarmos a análise mais longe, em todos os domínios da atividade: tanto intelectual quanto moral, tanto estética quanto religiosa. A relatividade chega à esfera superior, a das chamadas idéias puramente intelectuais: não alcança a idéia e a palavra "Deus”, que não deve significar coisas dife­ rentes para o cego e para o que vê. Haverá uma lógica, uma metafísica, uma moral que possam libertar-se e desligar-se da estrutura dos nossos órgãos sensoriais? Não somos nós mesmos e a particularidade de nossa organização, o que não nos cansa­ mos de exprimir por intermédio de todos os nossos enunciados

162

sobre o mundo físico, assim como sobre o mundo intelectual? A existência não sofreria para nós uma transformação radical se fôssemos dotados de um novo sentido ou se um dos nossos sentidos nos fosse retirado? O século XVIII compraz-se em completar e em ilustrar as especulações psicológicas assim esboçadas por meio de espe­ culações cosmológicas. Dos Entretiens sur la pluralité des mon­ des, de Fontenelle, até à Allgemeiner Naturgeschichte und Theorie des Himmels [História universal da natureza e teoria do céu], de Kant, podemos apreender a continuidade de uma mesma tendência e de um movimento idêntico de pensamento. Talvez toda a riqueza de possibilidades que podemos produzir em imaginação e construir in abstracto esteja efetivamente rea­ lizada no universo, talvez a cada corpo celeste correspondam os habitantes dotados de uma constituição psicossomática parti­ cular. “ Diz-se que poderia muito bem faltar-nos um sexto sen­ tido natural, com o qual nos seriam ensinadas muitas coisas que hoje ignoramos. Esse sexto sent’do está aparentemente em algum outro mundo, onde talvez falte algum dos cinco sentidos que possuímos. As nossas ciências têm certos limites que o espírito humano jamais pôde ultrapassar. Há um ponto em que elas nos faltam bruscamente; o resto é para outros mundos, onde algo do que nós sabemos é desconhecido.” 31 Como um fio vermelho, esse pensamento continua ao longo de toda a literatura psicoló­ gica e epistemológica da época iluminista32 E cada vez mais a lógica, a moral e a teologia parecem estar prestes a resolver-se numa antropologia pura e simples. Johann Christian Lossius transpôs a última etapa em seu livro Physische Ursachen des Wahren [As causas físicas do verdadeiro], ao explicar que no lugar da teoria inútil dos juízos e raciocínios lógicos era neces­ sário colocar a teoria mais útil da origem das nossas idéias e, com esse propósito, classificar as nossas idéias não mais em fun­ ção de seu conteúdo e dos objetos a que se referem mas dos

163

órgãos que parecem feitos para tais ou tais dessas idéias. Desse modo, aperceber-nos-íamos da verdadeira natureza das idéias humanas, não completamente, por certo, mas em todo o caso com uma clareza incomparavelmente maior do que a de todas as explicações que nos foram dadas desde Aristóteles até Leibniz. É evidente que teremos de renunciar em absoluto à uni­ versalidade, à objetividade, mas não se causará mais prejuízo à verdade do que à beleza quando se perceber e admitir que ambas são “ de natureza mais subjetiva do que objetiva”, que elas não exprimem uma propriedade dos objetos mas uma rela­ ção das coisas conosco, uma relação das coisas com quem as pensa.83 Dessa perspectiva até ao pleno reconhecimento do “ idealis­ mo subjetivo” só restava dar um passo; entretanto, esse último passo, cumpre dizê-lo, raramente foi transposto no pensamento do século XVIII e a inevitável conclusão só foi aduzida a con­ tragosto. Berkeley não encontraria inicialmente discípulos ime­ diatos nem sucessores: mesmo os que seguiam o seu método analítico procuravam evitar as suas conseqüências metafísicas. Esse ponto apresenta-se com particular nitidez no Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos, de Condillac, bem como no seu Tratado das sensações. Em primeiro lugar, Condillac acredita que pode encontrar a pfeva da “ realidade do mundo exterior”, muito simplesmente, na experiência tátil. Tudo o que os outros sentidos nos mostram, o que nos é oferecido pelo cheiro e paladar, vista e ouvido, não seria suficiente para nos oferecer tal prova. Em todas as suas determinações, com efeito, jamais apreendemos outra coisa senão modificações do nosso eu, sem que se encontre a menor indicação firme de uma causa ex­ terior, donde essas modificações seriam provenientes. Ao ver, cheirar, provar, ouvir, ela ignora inteiramente a existência de órgãos físicos para todas essas atividades sensoriais. Ela absorse-se no ato puro de perceber sem ter primeiramente conheci­

164

mento do seu substrato corporal. As coisas só mudam quando passam pelo tato, pois toda a experiência tátil manifesta neces­ sariamente uma dupla relação. Em cada um dos seus fenômenos particulares, ela proporciona-nos, ao mesmo tempo, o conhe­ cimento de uma certa parte do nosso corpo e apresenta-nos assim, de uma certa maneira, uma primeira abertura para o mundo da realidade objetiva. Entretanto, Condillac não pára nessa primeira solução; procura até expressamente completá-la e aprofundá-la na última edição do Tratado das sensações. E a questão adquire então, para ele, um rumo diferente e mais ra­ dical. Por um lado, devemos confessar que todos os nossos conhecimentos provêm dos sentidos; por outro, é visível que to­ das as sensações apenas exprimem diferentes maneiras de ser do nosso eu. Como poderemos alguma vez "sentir” objetos fora de nós? De nada adiantaria alçarmo-nos até o céu ou mergulhar no mais profundo dos abismos, pois nunca sairemos dos limites do nosso eu; é a nós mesmos que reencontramos sempre com o nosso próprio pensamento. Portanto, o problema apresenta-se a Condillac com toda a clareza, mas os meios de resolvê-lo logi­ camente falham sempre no método sensualista.34 Diderot reco­ nheceu perfeitamente esse ponto fraco: considera ele que Con­ dillac acitou os princípios de Berkeley, ao mesmo tempo em que procurava escapar às suas conseqüências. Entretanto, o idealis­ mo psicológico não pode ser verdadeiramente superado dessa maneira. Diderot vê aí, como Kant veria mais tarde, um “es­ cândalo da razão humana” : "Um sistema que, para vergonha do espírito humano, é o mais difícil de combater, embora seja o mais absurdo de todos.” 35 Percebe-se a mesma incerteza íntima nas cartas filosóficas de Maupertuis e em suas reflexões sobre a origem da lingua­ gem. Também nele o problema foi exposto com clareza e ousa­ dia. Não só Maupertuis coloca a extensão, no que se refere à sua "realidade objetiva”, em pé de igualdade absoluta com as

165

outras qualidades sensíveis, não só declara que não se pode con­ ceber a menor diferença de princípio entre o espaço puro e os fenômenos de cor e de som se considerarmos o seu conteúdo e a sua origem psicológica, mas vai ainda mais longe ao investigar o sentido do julgamento da realidade em geral, o sentido do julgamento “é” ou "h á” . O que significa esse julgamento? Em que consiste o seu conteúdo e o seu fundamento próprios? O que significa isso quando dizemos não só que vemos ou toca­ mos uma árvore, mas também quando lhe adicionamos a afir­ mação de que “há" umn árvore? O que esse “ há” acrescenta aos dados fenomenais, aos simples dados dos sentidos? Pode-se descobrir uma percepção da existência que seja tão simples e tão primitiva quanto a percepção da cor ou do som? E se, como é manifesto, não for esse o caso, que outra significação o jul­ gamento de existência implica? Ao refletir sobre essa questão, é-se levado a pensar que entendemos por “existência” não tanto um novo ser mas um novo signo. Esse signo permite-nos atri­ buir um único nome a uma série complicada de impressões sen­ síveis e fixá-la assim para a nossa consciência. Ê um com­ plexo de impressões presentes, de lembranças e de expectativas o que por esse nome se exprime. A experiência a que ele se refere compõe-se da repetição de experiências análogas e de circunstâncias determinadas solidamente ligadas entre si e que desse modo parecem conferir-lhe uma realidade mais firme. A percepção “vi uma árvore” liga-se a esta outra: “ Fui a um certo lugar, voltei a esse lugar e encontrei de novo a árvore” etc. De tudo isso nasce uma nova consciência: “De cada vez que vier a este lugar, verei uma árvore” , o que, em última análise, não quer dizer outra coisa senão “há uma árvore”. Tudo in­ dica que uma análise estritamente sensualista do problema do ser é desse modo bloqueada; não se trata, por certo, de reduzir e de encerrar a idéia de ser numa simples sensação. Mas o ga nho é, a bem dizer, muito escasso; trocamos a nossa interpre166

tação sensualista por uma outra puramente nominalista. E Maupertuis tem plena consciência de que deslocou mas não resol­ veu a questão. De sorte que a sua análise redunda, em definitivo, numa conclusão céptica; ela exprime a existência da ár­ vore como objeto independente do eu. Por conseguinte, será difícil encontrar nela algo mais do que nos julgamentos pre­ cedentes, os quais nada mais eram do que signos afetados a certas experiências perceptivas. Se eu não tivesse tido mais do que uma única vez a experiência que se exprime na sentença, “vejo uma árvore, vejo um cavalo” , jamais saberia, por muito vivas que pudessem ter sido tais experiências, se poderia for­ mar o julgamento “há”. Além disso, se a minha memória fosse tão ampla que eu não recuasse diante da tarefa de amontoar a bel-prazer sinal sobre sinal para cada uma das minhas per­ cepções, de munir cada uma delas com um sinal especial, talvez nunca fosse levado a enunciar o julgamento “há”, mesmo su­ pondo que tivesse conhecido as mesmas experiências percepti­ vas que me dão atualmente a oportunidade de formular esse julgamento. Não se deve, pois, considerar esse julgamento como a síntese de todas as experiências singulares: “eu vejo”, “eu vi”, “eu verei”? 38 O progresso aqui realizado consiste no desloca­ mento do centro de gravidade do problema da realidade, que passa do domínio da simples sensação para o do julgamento. Quanto ao próprio íúlgamefflo, não é, de maneira nenhuma, concebido e reconhecido em sua verdadeira dignidade racional: quis-se fazer dele apenas um agregado, uma vizinhança e uma sucessão de percepções. Essa questão somente sofrerá uma trans­ formação radlcãr e receberá uma solução crítica quando esse obstáculo tiver sido abolido, ou seja, quando Kant tiver definido o juízo (Urteil) como “unidade de ato”, conferindo-lhe,^graças à espontaneidade que nele reside originariamente, o papel de cxprftnff ã “unidade objetiva da consciência” . A “questão da rdaçãoJi_ da"Tepresentação com um objeto será apresentada,

167

por conseguinte, em novas bases: transferida do simples nível de uma questão de psicologia para o próprio centro de uma “ lógica transcendental”.

3 Também essa última mudança, ainda que expresse uma “revolução no modo de pensar”, não se realiza na história sem mediações e sem preparações. Pois, na Alemanha pelo menos, as doutrinas psicológicas de Locke e Berkeley, de Hume e Condillac nunca chegaram a dominar sem contestação. Embora a influência de Locke tenha podido parecer durante um certo tempo predominante, certos limites não deixaram de ser-lhe impostos desde o começo pela elaboração sistemática de que a psicologia foi objeto por parte de Christian Wolff. A psicologia racional e empírica de Wolff adotou um caminho próprio, em­ bora mantendo-se fiel aos princípios leibnizianos. Ela baseia a sua doutrina da alma na da espontaneidade, na doutrina da autarcia e da autonomia da mônada, a qual, sem receber nada do exterior, produz ela própria o seu conteúdo de acordo com a sua própria lei. Há incompatibilidade entre esse modo de ela­ boração e a idéia de influxus physicus, a própria idéia de “ im­ pressão” que persiste nas psicologias inglesa e francesa. Segundo Leibniz e Wolff, uma psicologia que pretende encontrar na im­ pressão o fundamento essencial do psíquico já frustrou a po­ sição inicial da própria questão. Menosprezou o fenômeno grimitivo da alma, que consiste na ação e não num puro sofrer. À psicologia da “ sensação” opõe-se então uma psicologia pura­ mente funcional. Não se faz jus à verdadeira orientação desta última quando é considerada e criticada, segundo uma atitude muito generalizada, como simples psicologia das faculdades (Vermõgens-Psychologie), Com efeito, na doutrina leibniziana,

168

não poderia haver “ faculdade” no sentido de uma pura possi­ bilidade, de uma "potência” vazia — e ainda menos está em questão compartimentar as diversas aptidões da alma, hipostasiá-las em faculdades autônomas. O próprio Wolff, se bem que os seus esforços no sentido de distinguir cuidadosamente os con­ ceitos tenham podido prestar-se, às vezes, a tal objeção, conser­ va-se sempre rigorosamente fiel ao postulado da unidade da alma. A divisão da alma em faculdades distintas, sua definição e denominação constituem essencialmente nele um modo de apresentação; em contrapartida, mostra sempre no estudo dos próprios fatos que esses poderes não são faculdades separadas, independentes umas das outras, mas somente as direções e as expressões divergentes de uma única potência ativa que é a força de representação (Vorstellungskraft)*7 Quanto à própria representação, não deve ser aqui enten­ dida, de maneira nenhuma, como puro reflexo de uma realidade exterior mas como energia puramente ativa. A natureza da subs­ tância, declara Leibniz, reside na sua produtividade, ou seja, no poder de engendrar de seu seio séries de representações sem­ pre novas [Portanto, o eu não é o simples teatro das idéias mas sua fonte e causa primeira]: fons et fundus idearum praescriptia lege nasciturarum,38 É nisso que consiste precisamente a sua verdadeira perfeição: o eu é tanto mais perfeito quanto menos forem os impedimentos e as perturbações com que essa livre produção manifesta-se nele. Escreve Leibniz em Da sabedoria: “Entendo por perfeição toda a elevação do ser, pois do mesmo modo que a doença é, de algum modo, uma diminuição e uma queda da saúde, também a perfeição é algo que se eleva acima da saúde [ . . . ] Ora, tal como a doença provém de uma função lesada, o que é sabido por quem quer que possua alguns rudi­ mentos de medicina, a perfeição revela-se, pelo contrário, na força de agir, visto que, consistindo todo o ser numa certa força,

169

quanto maior for essa força mais o ser é eminente e livre. Além disso, manifesta-se em cada força, e tanto mais quanto maior ela for o múltiplo a partir do um e no um, na medida em que o um rege fora dele e nele representa-se muitas coisas. Ora, a unidade na pluralidade nada mais é do que harmonia, e é do fato de que tal coisa se harmoniza com tal coisa que decorre a ordem, da qual decorre a beleza, que desperta o amor. Por aí se vê, portanto, como beatitude, prazer, amor, perfeição, essência, força, liberdade, harmonia, ordem e beleza estão interligados, embora sejam pouco numerosos aqueles que verdadeiramente se aper­ cebem disso. Portanto, basta que a alma sinta em si uma grande harmonia, ordem, liberdade, força ou perfeição, e que experi­ mente prazer nisso, para que nela seja suscitada uma alegria [. ..] Essa alegria é estável e não pode decepcionar nem causar uma tristeza ulterior se se ativer ao conhecimento e for acompanhada de uma luz donde brota, na vontade, uma inclinação para o bem que se chama virtude [ . . . ] Daí resulta que nada serve mais à beatitude do que elucidar o entendimento e exercer a vontade para agir, em todas as ocasiões, de acordo com o entendimento, e que cumpre buscar essa luz, muito especialmente, no conhe­ cimento das coisas que podem elevar constantemente o nosso entendimento para uma luz mais alta, de modo que daí jorre um progresso incessante em sabedoria e em virtude e, por con­ seguinte, em perfeição e alegria, cujo proveito subsiste ainda na alma após esta vida.” 39 Nesse punhado de fórmulas características, Leibniz traça de maneira sucinta o caminho a ser seguido por toda a filosofia do Iluminismo na Alemanha, define o próprio conceito de filo­ sofia do Iluminismo e esboça o seu programa teórico. Essas linhas realizam em si mesmas uma verdadeira “ unidade na mul­ tiplicidade”, porquanto condensam tudo o que o Iluminismo alemão continha em germe e devia realizar mais tarde em ma­ téria de psicologia, de teoria do conhecimento, de ética, de es170

tética, de filosofia da religião. Foi esse ponto de partida original que preservou a filosofia alemã do século XVIII do perigo do ecletismo. Por mais gravemente que a “filosofia popular” tenha sido exposta a esse perigo, por mais freqüentemente que lhe tenha sucumbido, a ciência e a filosofia sistemática nunca dei­ xaram, porém, de reencontrar o seu caminho graças a essas questões de princípio que Leibniz fora o primeiro a expor com toda a clareza. Assim é que Wolff foi e continuou sendo desde então o praeceptor Germaniae, e o elogio de Kant — de que ele foi na Alemanha o verdadeiro promotor do espírito de pro­ fundidade — assume aqui todo o seu valor. É também por essa razão que Kant não só se vincula, como se sabe, ao pensamento alemão mas, além disso, não poderia verdadeiramente encontrar alhures os fundamentos da sua problemática e do seu sistema: porque essa filosofia tinha nitidamente percebido e exatamente determinado a possibilidade teórica mais fundamental de cons­ tituir uma imagem do mundo perfeitamente unificada. Para des­ tacar suas direções essenciais podemos apoiar-nos na oposição que já encontramos antes. A filosofia francesa e a filosofia in­ glesa do século XVIII punham todo o seu cuidado e o seu esforço na constituição da totalidade do conhecimento filosófico de modo a não haver mais a necessidade — para retomar uma fór­ mula característica de Locke — de tomar emprestado ou mendigar nenhum dos seus fundamentos.40 Era necessário que todo esse conjunto assentasse exclusivamente sobre si mesmo e só se justificasse per se. Em função dessa exigência de autonomia é que foi rejeitado o sistema das idéias inatas: recorrer ao “ inato” não valia mais, ao que parecia, do que recorrer a uma instância estranha, do que fundamentar o conhecimento na existência e natureza de Deus. Esse recurso apresentava-se em Descartes com a redução do sentido e do valor do inato à potência cria­ dora de Deus — sendo as idéias e verdades eternas, para ele, os produtos dessa potência.*1 No lugar dessa causalidade, en­

171

contramos em Malebranche uma união verdadeiramente subs­ tancial: a visão das idéias e das verdades eternas, a qual deve estabelecer e provar a participação imediata do espírito humano na existência divina. Quanto à filosofia empírica, tendo rejei­ tado essa forma de transcendência só lhe restava a experiência, a “ natureza das coisas” ,42 para fundamentar o conhecimento. Mas essa “ natureza das coisas”, por sua vez, ameaça de u m outro lado a autonomia do espírito, que doravante deve desem­ penhar tão-somente o papel de um simples espelho e de um espelho que apenas pode refletir as imagens, sem as produzir ou elaborar jamais por sua própria conta. “ Nesta parte, o en­ tendimento é meramente passivo; e se terá ou não esses come­ ços e, por assim dizer, esses materiais de conhecimento, eis algo que está fora do alcance do seu próprio poder [ . . . ] Quando ofe­ recidas à mente, o entendimento não pode mais recusar-se a ter as idéias simples nem alterá-las quando estão impressas, nem apagá-las e fazer ele próprio outras novas, da mesma forma que um espelho tampouco pode recusar, alterar ou obliterar as ima­ gens ou idéias que os objetos colocados diante dele aí produ­ zem.” 48 Leibniz opõe sua própria doutrina a essas duas teorias: tanto à da “ transcendência” metafísica quanto à da forma em­ pírica da “ imanência”. Ele salva a exigência de imanência: tudo o que pertence à mônada deve provir do seu próprio fundo. Mas a importância e o rigor que ele confere a esse princípio proíbem-lhe não só de se remeter a Deus mas de recorrer até à natureza, no sentido habitual do termo. Deixou de ser possível continuar mantendo uma oposição entre a natureza do espírito e a natureza das coisas, com uma dependência unilateral da­ quele em face destas. “ Aquilo a que chamamos observação da natureza das coisas nada mais é, com freqüência, do que o co­ nhecimento do nosso próprio espírito e de suas idéias inatas, que não há necessidade de procurar no exterior.” 44 Se o espí­

172

rito faz-se espelho da realidade é sobretudo como um espelho permanente e vivo da realidade; não como soma de simples ima­ gens mas como totalidade de forças imaginantes (bildenden Kräften). Revelar essas forças, torná-las conhecidas em sua es­ trutura específica e fazer entender o mecanismo de sua intera­ ção, tal é doravante a verdadeira tarefa fundamental da psico­ logia e da teoria do conhecimento. É a tarefa que o século XVIII alemão vai empreender e tentar levar a bom termo, graças a pacientes trabalhos especializados. Se é verdade que esses tra­ balhos tendem para a prolixidade e perdem-se, com certa fre­ qüência, nessa mesma prolixidade, nem por isso deixam de ter sua profundidade específica: seja qual for a diversidade dos problemas, trata-se sempre de fazer valer um princípio deter­ minado, de elucidá-lo e de demonstrá-lo sob diversos ângulos. A espontaneidade do eu, descoberta e defendida como uma realidade psicológica, prepara agora o terreno para uma nova concepção do conhecimento, tal como abre novas tarefas e no­ vos caminhos para a estética. Ê assim, em particular, que a divisão da alma em “facul­ dades’1 distintas já não serve agora unicamente para a análise empírica dos fenômenos; a partir dela inicia-se e esboça-se o desenvolvimento de uma futura sistemática universal, de uma “fenomenologia do espírito” propriamente dita. Aquele que percebeu e sustentou essa nova aplicação é precisamente o mais original e o mais penetrante dos mestres da psicologia analítica. Os Ensaios filosóficos sobre a natureza humana, de Tetens, distinguem-se das obras de Berkeley ou de Hume com o mesmo título, no plano metodológico, pelo fato de que, não contentes em classificar e descrever os fenômenos da vida psíquica indi­ vidual, eles consideram essa tarefa descritiva um mero preâm­ bulo para uma teoria geral do “ espírito o b j e t i v o Não basta considerar o entendimento quando ele se ocupa em reunir expe­ riências e em constituir, partindo das sensações, as primeiras 173

idéias sensíveis; cumpre também observá-lo quando ele alçi vôo^ para as alturas, quando elabora teorias e organiza as ver­ dades em forma de ciências, pois T ã í que se manifesta a energia Superior do poder de pensar. Portanto, é aí que se deve formu­ lar a questão das regras fundamentais segundo as quais o en­ tendimento edifica obras tão gigantescas quanto a geometria, a óptica e a astronomia. Tetens considera a contribuição de Bacon e de Locke, de Condillac, de Bonnet e de Hume perfei­ tamente inadequadas para a solução dessa questão; eles não en­ xergaram, sustenta Tetens, o problema do conhecimento racional em sua importância específica; negligenciaram-no quase intei­ ramente em proveito do problema do conhecimento sensível.45 A mais importante inovação por ele introduzida na doutrina das faculdades da alma, a idéia fundamental com que a enri­ queceu, desenvolve-se igualmente nesse mesmo sentido. Quando Câxige uma definição precisa do sentimento, que o distinga com nitidez da sensação, não se trata de uma idéia que tenha ido buscar à observação interior; ele é levado a essa distinção pela consideração de que nos encontramos, num caso e no outro, diante de dois modos inteiramente diferentes da relação com o objeto. Se atribuímos a nós mesmos a sensação, a sua função essencial não consiste, porém, em exprimir o nosso próprio es­ tado mas uma qualidade do objeto. No que se refere ao senti­ mento, pelo contrário, ele comporta uma relatividade muito diversa, muito mais radical e puramente subjetiva; tudo o que sabemos por intermédio dele é que se produziu uma mudança em nós mesmos, e aceitamos essa mudança tal como ela se dá imediatamente, sem relacioná-la a nenhum objeto exterior. Em contrapartida, essa relação nada tem de “ subjetiva”, no sentido de puramente arbitrária; contém em si, pelo con­ trário, a sua própria regra e a sua própria legalidade, e o senti­ mento constitui assim um verdadeiro microcosmo, um mundo per se: é o privilégio de o fenômeno da arte proceder à sua de­

174

monstração, na filosofia alemã do Iluminismo, a arte onde se concretizam justamente a manifestação e o desenvolvimento desse microcosmo. Ê nesse ponto que intervém, em particular, a dou­ trina das faculdades da alma, de Mendelssohnl a qual procede também por reconstrução, produzindo imagens mentais diversa­ mente especificadas a partir das forças que estão na origem dessas imagens. Para distinguir de modo claro e seguro o objeto da arte do do conhecimento teórico, para separar o belo do ver­ dadeiro, Mendelssohn vê-se obrigado a dedicar-lhe uma classe especial de fenômenos psíquicos. O objeto belo não é nem o objeto do simples saber nem o objeto do simples desejo. Escapa-nos das mãos se quisermos tratá-lo como objeto de saber, torná-lo acessível pelo método do saber, pelo processo de aná­ lise e definição, pelas distinções e explicações conceptuais. Mas a sua natureza não nos escapa menos quando o consideramos apenas de um ponto de vista puramente “prático”, quando o abordamos pelo querer e agir: assim que o objeto é visado pelo desejo ou esforço, deixa imediatamente de ser um objeto “ belo” , objeto de contemplação e de fruição artísticas. Partindo dessas considerações, Mendelssohn é levado a postular uma faculdade da alma específica e autônoma a que deu o nome de “ faculdade de aprovação” (Billigunsgsvermõgens). À avaliação e aprovação do belo não se mistura nenhuma excitação do desejo: “ Parece, antes, ser uma marca distintiva da beleza que seja contemplada com um prazer sereno, que nos agrade mesmo quando não nos pertence e ainda estamos muito distantes do desejo de a possuir. Só depois, quando consideramos o belo em sua relação conosco e percebemos sua posse como um bem, é que desperta em nós o desejo de tê-la, de arrebatá-la, de possuí-la: um desejo que é muito diferente da fruição da beleza.” 46 Assim, a doutrina das faculdades — é nisso que consiste o seu verdadeiro valor teórico — não entende fazer pura e simplesmente da psicologia uma teoria dos elementos da consciência, sensações e “ impressões” ,

175

mas uma teoria que abrange todas as atitudes e condutas psí­ quicas. São as energias anímicas que se trata de reconhecer e de descrever em sua realidade específica e não meramente os conteúdos psíquicos como dados estáticos. É fácil perceber, desse ponto de vista, os estreitos vínculos que unem agora a psicologia à estética, ou seja, à disciplina onde, depois das Réflexions cri tiques sur la poésie, la peinture et la musique (1719), de Dubos, prevalece esse mesmo ponto de vista energético. Nas reflexões e observações de Dubos é permitido ver-se uma confirmação direta da doutrina leibniziana, segundo a qual toda a alegria estética está fundamentada na “elevação do ser”, na vivacidade e recrudescimento da intensidade das forças psíquicas. O prazer gerado por esse puro sentimento de viver pode superar ampla­ mente a aversão passível de resultar, digamos, de uma conside­ ração do objeto como tal. Escreveu Lessing a Mendelssohn: “ É inútil dizer-vos que o prazer que está ligado a uma deter­ minação mais forte da nossa energia pode suplantar de longe o desprazer que nos causam objetos para os quais flui essa ener­ gia, ao ponto de deixarmos de ter consciência disso.” 47 E, no seu tratado Von der Kraft in den Werken des schònen Künste [Do vigor nas obras de arte], Sulzer expõe por sua vez a mesma doutrina, esforçando-se, nessa perspectiva, por distinguir a energia do pensamento teórico das da contemplação estética e do movimento voluntário. E eis que a teoria estética intervém uma vez mais, por um outro lado, na teoria do conhecimento. Ao impor de modo de­ cisivo os direitos da “ imaginação” pura, ao esforçar-se por mos­ trar que a “ faculdade poética” é uma faculdade não simples­ mente combinatória mas originariamente criativa, ela provocou uma profunda mudança no seio da problemática lógica, na teoria dos sentidos e da origem das idéias. Para Berkeley, para Hume, para Condillac, a idéia é apenas um acúmulo de im­ pressões ou sua soma ou o sinal que a representa. Não há ne­

176

nhuma significação autônoma que possa convir a esse sinal: ele representa somente para a memória, ulterior e indiretamente, o que foi originariamente dado na percepção. E quando no lugar das idéias das coisas levamos em conta as idéias de relações, nada foi mudado nessa situação, porquanto o espírito não pode estabelecer nenhuma espécie de conexão que não tenha sido ex­ perimentada primeiro na realidade nem pensar verdadeiramente em nenhuma unidade nem em nenhuma diferença que não tenha sido antes comprovada nos fatos. É justamente essa concepção que a crítica da psicologia funcional ataca. É ainda Tetens quem contesta com extraordinário vigor essa teoria do pensa­ mento como simples “substituição de fantasmas” . É possível, admite ele, que o pensamento seja suscitado pela impressão sensível, pelo dado empírico; contudo, jamais se contentará com esse dado nem permanecerá nesse nível. Não lhe basta constituir idéias como simples agregados; precisa elevar-se ao nível dos ideais que é impossível compreender sem a participação da “força de criação plástica” (bildenden Dichtkraft). “ Os psicó­ logos explicam comumente a criação poética pela decomposição e recomposição das representações que foram captadas na sen­ sação e convocadas pela memória. Sendo assim, a criação poé­ tica seria apenas uma substituição de imagens e nenhuma representação elementar nova poderia nascer daí para a cons­ ciência.” Essa explicação continua sendo, portanto, insuficiente para toda e qualquer verdadeira obra de arte. Não se faz jus­ tiça a um Klopstock ou a um Milton “ ao pretender-se que as imagens criadas pela vitalidade de sua linguagem poética não são outra coisa senão um amontoado de idéias empíricas ele­ mentares ligadas pela vizinhança ou sucessão imediata”. E o mesmo pode ser dito a respeito dos ideais científicos, como os que encontramos nas matemáticas e em toda a ciência exata. Esses ideais tampouco se explicam por adições ou subtrações de sensações individuais, por combinação ou por abstração; são

177

“verdadeiras criaturas da faculdade poética”. “ Vimos ser real­ mente esse o caso das idéias gerais da geometria. Mas, na rea­ lidade, todas as outras são da mesma natureza.” O processo de generalização empírica não basta, portanto, para elevar à cate­ goria de idéia pura o que apenas era, no início, uma imagem sensível. As representações gerais sensíveis ainda não são idéias gerais nem conceitos da faculdade poética e do entendimento. Nada mais são do que a matéria-prima, e a forma dessas idéias não poderia ser compreendida nem deduzida a partir daí. No entanto, é nessa forma que assenta o verdadeiro rigor, a exatidão de um conceito. “ Seja, por exemplo, a representação de uma linha curva, fechada sobre si mesma, tomada das sensações vi­ suais; ela recebeu a sua forma característica de cada uma das aparências sensíveis que a produziram por sua associação. Mas isso não é tudo. Temos em nosso poder a representação da extensão e podemos modificar à vontade essa extensão ideal. Portanto, a imaginação dispõe a imagem da linha circular de modo que cada ponto se encontre a igual distância do centro, que nem um só esteja mais distanciado nem mais próximo desse centro. O último retoque é proporcionado nessa imagem pela faculdade poética, e o mesmo pode ser dito de todos os nossos ideais.” 48 E essa extrapolação do dado da impressão sensível, essa faculdade de “ imaginação”, não limita de maneira nenhuma o seu poder ao domínio da matemática pura. Manifesta-se com clareza não menor na elaboração dos conceitos da experiência: os conceitos em que se baseia a física teórica não se explicam apenas, com efeito, por “ combinações de aparências sensíveis”. Partem, é certo, de tais aparências mas não se detêm aí; ligamse-lhes mas transformam-se sob a ação espontânea do entendi­ mento. Essa atividade espontânea, não o simples hábito nascido da regularidade das sensações, constitui o verdadeiro germe e a substância das primeiras leis do movimento. Os princípios uni-

178

versais da física nunca são, evidentemente, demonstráveis a priori, a partir de simples conceitos. Mas só fundamentando-se numa falsa alternativa é que se imaginará poder concluir-se ser necessário que eles nasçam exclusivamente da indução, ou seja, de uma simples sucessão de observações singulares. Nem mesmo uma lei como a da inércia poderia ser inteiramente deduzida e compreendida dessa maneira. "A idéia de um corpo posto em movimento, o qual não age sobre nenhum outro nem sofre a ação de nenhum outro, leva o entendimento a representar-se que o seu movimento prossegue sem mudança, e mesmo que tenha sido preciso ir buscar às sensações essa última idéia, a sua associação com a primeira não é menos a obra da faculdade de pensar que, em virtude da sua própria natureza, realiza em nós a relação entre essas duas idéias; e a associação realizada em nós pela ação do entendimento é muito mais a causa da con­ vicção que temos de que o nosso julgamento é verdadeiro do que a associação de idéias produzidas pelas sensações.” 49 De um modo geral, pode-se dizer que onde quer que uma relação determinada entre idéias seja pensada, o recurso à simples sen­ sação, à impressão passiva, é insuficiente para conceber a idéia de uma relação como tal em sua natureza específica e para fundamentá-la em sua própria espécie. É inegável que tal natu­ reza específica existe: é absolutamente impossível reduzir todas as relações e conexões entre os conteúdos de consciência à iden­ tidade e diversidade, à unanimidade e contradição. A sucessão das coisas, sua contigüidade, o modo particular de sua coexis­ tência, a dependência de uma coisa em relação a uma outra, todas essas formas de relacionamento implicam, evidentemente, algo mais do que simples uniformidade ou diversidade. Assim é que se manifestam por toda parte formas de relacionamento específicas, rigorosamente distintas umas das outras, em que se pode reconhecer em cada uma delas uma certa direção do pen­ samento, um caminho que, por assim dizer, ele adota espon-

179

taneamente, sem ser forçado a isso desde o exterior, pela pres­ são mecânica das impressões e do hábito. Aquilo a que chamamos julgar e associar, deduzir e concluir é, portanto, algo distinto de colocar as idéias na seqüência umas das outras, algo mais, inclusive, do que perceber entre elas semelhança e har­ monia. “Mesmo se o raciocínio se explica como o ato de deduzir a semelhança ou a diferença entre duas idéias de sua semelhança ou de sua diferença respectivas a respeito de uma mesma terceira, essa dedução da semelhança ou da diferença a partir de outras relações da mesma espécie não deixa de scr uma atividade própria do entendimento, produção ativa da idéia de uma relação a partir de uma outra que representa algo mais [ . . . ] do que a mera percepção de duas relações, uma após a outra.” 50 No ponto em que nos encontramos, manifesta-se nitida­ mente a unidade interna, a consistência sistemática que o pen­ samento alemão da época iluminista conservou, apesar de sua aparente fragmentação em mil problemas especiais. Com efeito, de dois lados diferentes, tanto do lado da psicologia quanto do da lógica, não estamos sendo agora remetidos de volta para um mesmo problema central? As duas disciplinas convergem para a mesma questão, a da natureza e da origem da “idéia de rela­ ção”. Enquanto Tetens expõe a questão como psicólogo ana­ lista, Lambert faz dela a pedra angular da sua lógica e da sua metodologia geral. Vincula-se igualmente a Leibniz e sua tarefa histórica essencial foi a de redescobrir, de algum modo, certas idéias leibnizianas básicas, em sua originalidade e profundidade próprias. Longe de contentar-se com o quadro tradicional dessa filosofia apresentado por Wolff e sua escola, ele retorna à pro­ blemática inicial de servir a Leibniz de ponto de partida para constituir o seu sistema. Antes de tudo, é o plano da “caracte­ rística universal” que retém duradouramente sua atenção; ligalhe diretamente o seu projeto de “semiótica”, esforçando-se por

180

estabelecer um sistema das formas do pensamento e por subor­ dinar a cada uma dessas formas uma língua de sinais compará* vel ao algoritmo do cálculo infinitesimal. Nenhum pensamento rigoroso será possível enquanto não conseguir fazer com que a toda associação de conceitos corresponda nos sinais uma deter­ minada operação, com regras universais para todas as operações. Lambert quis estender o domínio desse modo de pensamento muito além das fronteiras da geometria pura* pois é um pre­ conceito, segundo ele, ter acreditado que as idéias de extensão e de grandeza eram as únicas suscetíveis de explicações rigo­ rosas e de desenvolvimentos dedutivos. A certeza e o rigor des­ ses desenvolvimentos não valem apenas para o domínio da quan­ tidade mas podem ser igualmente obtidos onde só relações qualitativas estão em causa. A partir dessa problemática geral, Lambert acredita poder marcar também com toda a nitidez os limites da filosofia de Locke e de sua análise das idéias funda­ mentais do conhecimento. Não se dispõe a contestar a “anato­ mia das idéias” realizada por Locke; admite que as idéias pelas quais queremos exprimir os elementos da realidade não podem ser produzidas só pelo pensamento mas devem ser descobertas na experiência. O verdadeiro conhecimento da realidade não pode fundar-se sobre um princípio puramente formal, simples­ mente “pensável” (gedenkbaren), como o “princípio de razão”; essa “pensabilidade” (Gedenkbarkeit), ou seja, o perfeito acordo das partes num todo lógico, pode pertencer igualmente ao sim­ ples possível. No conhecimento da realidade, pelo contrário, lida-se com determinações materiais, “com sólidos e com for­ ças”, e, para afirmar a existência e a natureza de cada força específica, não basta construí-la com a ajuda de conceitos, sendo necessário apoiar-se no testemunho da experiência. Para el£, cumpre renunciar, portanto, a toda verdadeira definição e darmo-nos por satisfeitos com a descrição. Devemos, “como bons anatomistas”, reduzir pela análise o dado a seus elementos pri­

181

mitivos, sem pretender chegar ao esclarecimento destes últimos pela explicação das idéias. Uma explicação, na medida em que ela é, de um modo geral, possível, só pode ser dada pelo cami­ nho que Locke desbravou, não levando mais longe a elaboração lógica mas demonstrando a origem das idéias simples. Mas as coisas encaminham-se de um outro modo assim que essas idéias fundamentais são estabelecidas e que adquirimos, pelo método prescrito, alguma luz sobre o seu número e a sua ordem, por­ quanto se verifica então que cada uma dessas idéias envolve, na sua simples compreensão, na sua natureza particular, uma multiplicidade de outras determinações que são inerentes à sua natureza e dela decorrem imediatamente. Por conseguinte, não é indispensável, para desenvolver inteiramente essas determina­ ções, recorrer uma vez mais à experiência. Vamos apercebernos, com efeito, de que essas diversas idéias estão entre elas em certas relações de compatibilidade ou de incompatibilidade, de dependência etc., as quais é possível estabelecer pela simples consideração de sua “essência”. O conhecimento dessas rela­ ções como tais é, portanto, um conhecimento rigorosamente in­ tuitivo e apriorístico, em total contraste com o conhecimento empírico-dedutivo. E essa espécie de aprioridade, segundo Lambert, não vale somente dentro dos limites da geometria pura. O que faltou a Locke foi a idéia de procurar para cada uma das idéias elementares o que os geômetras procuraram para o espaço, a demonstração de suas propriedades estruturais por via dedutiva.51 É ao que se aplica a “aletologia” de Lambert, que quer ser, a exemplo da mathesis universalis, uma teoria geral da verdade, ou seja, uma teoria das relações e conexões entre idéias elementares. Além da geometria, ele vale-se, sobretudo, da aritmética, da cronometria e da forometria puras, extraindo daí exemplos e documentos em apoio a um certo tipo de ver­ dade que, embora ele deva a sua matéria à experiência, de­ monstra com base nessa matéria a existência de determinações

182

que não são contingentes mas necessárias. Sobre todos esses pontos, a teoria da verdade de Lambert é, em suma, o correlato lógico do que Tetens tinha estabelecido, como psicólogo, da na­ tureza das idéias de relação. Como essas duas correntes distin­ tas da filosofia alemã iluminista conjugam-se finalmente em Kant, pode-se dizer que é um pensamento que chegou a uma conclusão relativa, a qual significa, evidentemente, ao mesmo tempo o seu fim e a sua ultrapassagem por um novo princípio e uma nova problemática.

183

NOTAS 1 Voltaire, Lettres sur les anglais, Lettre XIII, Oeuvres, Paris, Lequien, 1821, XXVI, p. 65. 2 Cf. a esse respeito especialmente a carta de Descartes à condessa palatina Elisabeth, de 21 de maio de 1643; Oeuvres, ed. Adam-Tannery, III, p. 665. 3 Para um estudo mais detalhado da idéia de “extensão inteligível” em Malebranche, cf. Erkenntnisproblem, vol. I, pp. 573 e ss. 4 Malebranche, Entretiens sur la métaphysique, V, sec. 12 [Em fran­ cês no original: “É um clarão da substância luminosa do nosso mestre comum”. N. do T.] 5 Carta a Marcus Herz, de 21 de fevereiro de 1772, Werke (ed. Cassirer), vol. IX, pp. 104 e ss. 6 Cf. Le siècle de Louis XIV, Oeuvres (Lequien), vol. XIX, p. 140. 7 Voltaire, Poésie satyrique: Les systèmes, Oeuvres, vol. XIV, pp. 231. e ss., assim como Tout en Dieu, comentaire sur Malebranche (1769); Oeuvres, vol. XXXI, pp. 201 e ss. 6 Hume, Tréalisé of human nature, parte III, sec. 2. 9 Diderot, Apologie de Fabbé de Prades9 sec. XII. 10 Cf. Locke, Essay on human understanding, Livro I, cap. 1, sec. 2. 11 “Imediatamente depois de Aristóteles vem Locke; pois não se deve contar os outros filósofos que escreveram sobre o mesmo assunto.” Condillac, “Extrait raisonné du Traité des sensations?' (ed. Georges Lyon, Paris, 1921, p. 32). 12 Cf. Maupertuis, Examen philosophique de la preuve de Vexistence de Dieu employée dans l'Essai de Cosmologie, Mémoire de l’Académie de Berlin, 1756, § XIX e ss. 13 Locke não conheceu até que ponto temos necessidade de aprender a tocar, a ver, a ouvir etc. “Todas as qualidades da alma pareceram-lhe qualidades inatas e não suspeitou de que elas poderiam inferir sua origem da própria sensação.” Condillac, Extrait raisonné, loc. cit, p. 33. 14Condillac, Traité des animaux (1755), cap. 2. 15 Extrait raisonné, loc. cit., p. 31. 16 Locke, Essay on human understanding, Livro II, cap. 21, sec. 30 ss. 17 “Faltava demonstrar, portanto, que essa inquietude é o primeiro princípio que nos dá os hábitos de tocar, ver, ouvir, sentir, provar, comparar, julgar, refletir, desejar, amar, odiar, temer, esperar, querer; que é por intermédio dela, numa palavra, que nascem todos os hábitos da alma e do corpo.” Extrait raisonné, p. 34.

185

18 Condillac, Traité des animaux, pp. 395 c ss. 19 Sobre a ligação do cartesianismo com o teatro de Corneille, cf. G. Lanson, L’influence de la philosophie cartésienne sur la littérature française (cf. acima p. 150). 20 Para a distinção de perceptio e de percepturitio em Leibniz, cf. em particular a correspondência com Christian Wolff, em edição de Gerhardt, Halle, 1860, p. 56. 21 Voltaife, Traité de métaphysique (1734), cap. VIII; Oeuvres (Lequien), XXXI, p. 61. 22 Diderot, Pensées philosophiques (1746), sec. 1 e ss. 28 £ impossível penetrar aqui mais fundo no problema dessa busca de detalhes; por isso me contento em remeter o leitor para as exposições mais completas do problema do conhecimento, as quais serão encontra­ das num outro volume que dedicarei ao mesmo tema. 24 Eléments de la philosophie de Newton, cap. VII; Oeuvres, vol. XXX, pp. 138 e ss. 25 Condillac, Traité des sensations, ed. Lyon, p. 33. 26 Cf. Berkeley, Principies of human knowledge, sec. 34; Dialogues between Hylas and Philonous, III e passim. 27 New theory of vision, § 11 [Em inglês no original: “Em sua pró­ pria natureza a distância é imperceptível e, no entanto, ela é percebida pela vista”. N. do T.] 28 Voltaire, Éléments de la philosophie de Newton, cap. Vin (Oeu­ vres, XXX, p. 147). 29 Cf. Diderot, Lettre sur les aveugles, e Condillac, Traité des sen­ sations, parte I, cap. 7, cap. 11 e ss. 30 Leibniz, Novos ensaios sobre o entendimento humano, Livro II, cap. 5. 81 Fontenelle, Entretiens sur la pluralité des mondes, “Troisième soir”, Oeuvres, Paris, 1818, II, p. 44. 32 Pode-se citar, no âmbito do Iluminismo alemão, B. Sulzer, por exemplo; cf. Zergliederung des Begriffs der Vernunft (1758); Vermischte philosophische Schriften, I, p. 249. 38 Lossius, Physische Ursachen des Wahren, Gotha, 1775, pp. 8 e ss., 56 (cf. Erkenntnisproblem, vol. II, pp. 575 e ss.). 34 Sobre a atitude hesitante de Condillac a respeito do problema da “realidade do mundo exterior", ver para maiores detalhes a introdução de George Lyon à sua edição do Traité des sensations, pp. 14 e ss. 36 Diderot, Lettre sur les aveugles, Oeuvres, ed. Naigeon, II, p. 218.

186

36 Maupertuis, Réflexions philosophiques sur Vorigine des langues et la signification des mots, sec. XXIV e ss.; Oeuvres, I, pp. 178 e ss. 37 Cf. por exemplo Wolff, Psychologia rationalis, § 184 e ss.; Psychologia empirica, § 11 e passim. 38Leibniz, carta a De Volder, 24 de março de 1699, Philos. Schriften (Gerhardt), II, p. 172. 30 Leibniz, Von der Weisheit, escritos alemães selecionados e editados por Guhrauer, I, pp. 422 e ss. 40 Cf. Locke, Essay on human understanding, Livro I, cap. IV, § 24 e ss. 41 Cf. Descartes, Carta a Mersenne, maio de 1630, Oeuvres, ed. Adam-Tannery, I, p. 151: “Perguntais-me in quo genere causae Deus disposuit aeternas veritates. Eu vos respondo que é in eodem genere causae que ele criou todas as coisas, isto é, ut efficiens et totalis causa. Pois é certo que ele é o Autor tanto da existência quanto da essência das cria­ turas; ora, essa essência nada mais é do que essas verdades eternas, as quais não concebo emanando de Deus, como os raios do Sol; mas sei que Deus é Autor de todas as coisas, e que essas verdades são alguma coisa, e por conseguinte que ele é o seu Autor.” 42 Cf. acima p. 89 e ss. 43 Locke, Essay on human understandingt Livro II, cap. 1, sec. 25. 44 Leibniz, Nouveaux essais, Livro I, cap. 1, § 21. 45 Tetens, Philos. Versuche über die menschliche Natur und ihre Entwicklung, Riga, 1777, I, pp. 427 e ss. (Reedição da Kantgesellschaft, Berlim, 1913, pp. 416 e ss.) 40 Mendelssohn, Morgenstunden, Abschn. VII. 47 A. Mendelssohn, 2 de fevereiro de 1757, Werke (LachmannMuncker) XVII, p. 90. 48 Cf. para o conjunto, Tetens, Philos. Versuche über die menschl. N a tu r...; Primeiro Ensaio, Über die Natur der Vorstellungen, n.° XV, reedição da Kant-Gesellschaft, pp. 112 e ss. Cf. também Erkenntnisproblem, II, pp. 567 e ss. 40Tetens, Philos. Versuche..., Quarto Ensaio: Über die Denkkraft und das Denkeny IV (e op. cit., pp. 310 e ss.). 50 Op. cit., Quinto Ensaio: Von der Verschiedenheit der Verhältnisse und der allgemeinen Verhältnisbegriffe (pp. 319 e ss.). 51 Cf. Lambert, Anlage zur Architectonic oder Theorie des Einfachen und Ersten in der philosophischen und mathematischen Erkenntnist Riga, 1771, § 10. Para uma exposição mais completa do método de Lambert, cf. o nosso Erkenntnisproblem, II, pp. 534 e ss.

187

IV

A IDÉIA DE RELIGIÃO

Qual é o traço mais característico do Século das Luzes? Nada parece mais fácil de responder, segundo a idéia tradicional que dele se fez: a atitude crítica e céptica em face da religião, eis o que caracteriza a própria essência do Iluminismo. Mas desde que se queira relacionar esse ponto de vista rotineiro com fatos históricos concretos, imediatamente surgem as hesitações, as dúvidas e as mais sérias reservas, pelo menos no que se refere ao pensamento alemão e inglês. Essa idéia ora pode pas­ sar por defensável a propósito da filosofia francesa do século XVIII, ora representa um erro grosseiro em relação às outras. Adversários, inimigos, admiradores e aduladores do Iluminismo, todos estão de acordo, porém, nesse ponto. Em suas obras, assim como em sua epistolografia, Voltaire não se cansa de lançar seu velho grito de guerra: “Êcrasez Vinfâme!” [Esmaguem a infa­ me!]. E acrescenta prudentemente não ser a fé o que ele com­ bate mas a superstição, não a religião mas o uso solerte que dela faz a Igreja; entretanto, a geração seguinte, que reconhecerá em Voltaire o seu mestre espiritual, não se deterá nessas distinções. O enciclopedismo francês declara guerra aberta à religião, à sua

189

validade, à sua pretensa verdade. Censura-lhe não só ter freado desde sempre o progresso intelectual mas, além disso, ter se reve­ lado incapaz de fundar uma verdadeira moral e uma ordem po­ lítica e social justa. Em sua Politique naturelle, Holbach retorna constantemente a esse ponto. A pior das malfeitorias que ele atribui à religião é a de fazer dos homens, na medida em que os leva a temer invisíveis tiranos, verdadeiros lacaios e covardes diante dos potentados terrestres, sem forças para tomar nas próprias mãos a direção de seu destino.1 O deísmo é, por sua vez, rejeitado como posição híbrida, um meio-termo ambíguo. Por mais que o deísta, declara Diderot, se esforce por cortar uma dúzia de cabeças da hidra da religião, outras tantas volta­ rão a brotar daquela que ele deixou ilesa.2 Extirpar de maneira absoluta toda e qualquer crença, seja qual for o argumento em que ela se apóie e a forma de que se revista, tal parece ser, em definitivo, o único meio de libertar o homem dos preconceitos e da servidão e de abrir-lhe o caminho da verdadeira felicidade. “Em vão, ó supersticioso," — assim faz Diderot a natureza falar ao homem — "buscas o teu bem-estar nos limites do mundo onde a minha mão te colocou. Emancipa-te pois do jugo da religião, a minha soberba rival, que ignora os meus direitos; renuncia a esses deuses usurpadores do meu poder para voltar a viver sob o amparo das minhas leis. Retorna, pois, à natureza de que desertaste. Ela te consolará, ela expulsará do teu coração esses temores que te angustiam, essas inquietações que te dila­ ceram, esses transes que te sacodem, esses ódios que te separam dos teus semelhantes, a quem deves amar. Quando te entregares à natureza, à humanidade, a ti mesmo, espalharás flores ao longo do caminho de tua vida”. "Se percorrermos a história de todas as nações através dos séculos, verificaremos que o homem encontra-se submetido sempre a três leis distintas: o código da

190

natureza, o código da sociedade e o código da religião. Cada uma dessas leis tolhe as outras e a si mesma impõe-se restrições; por isso jamais se conseguiu estabelecer uma verdadeira harmo­ nia entre elas. Por conseguinte, em nenhum tempo e em nenhuma nação é possível apresentar um homem íntegro, um cidadão íntegro ou mesmo um verdadeiro crente".3 Uma vez adquirida consciência desse precário estado de coisas, nenhuma reversão, nenhum compromisso, nenhuma conciliação é mais possível. É preciso escolher entre a liberdade e os grilhões, entre a lucidez da consciência e a obscuridade das paixões, entre a ciência e a crença. E tal escolha não oferece, evidentemente, a menor dú­ vida para o homem dos novos tempos, o homem da Era da Razão, o homem do lluminismo. Ele renunciará sem hesitação ao socorro vindo do alto, desbravará ele próprio o caminho para alcançar a verdade, não pensará que possui essa verdade se não a tiver extraído e provado graças às suas próprias forças. Entretanto, seria uma atitude irrefletida e equivocada con­ siderarmos o Século das Luzes, baseados apenas nas declarações dos seus protagonistas e porta-vozes, uma época profundamente irreligiosa e hostil a toda crença. Essa prevenção nos faria correr o risco de ignorar o que ela realizou positivamente de mais elevado. O cepticismo como tal é incapaz de realizações dessa ordem. O século XVIII não assenta seus propósitos intelectuais mais vigorosos e seu característico dinamismo espiritual na re­ jeição da fé, mas no novo ideal de fé que ele promove e na nova forma de religião em que ela se encarna. Ao Século das Luzes aplica-se, portanto, em toda a sua profundidade e sua verdade, a palavra de Goethe acerca da fé e da descrença. Ao apontar o conflito da fé e da descrença como o tema de maior profundidade, até mesmo o único tema da história do mundo e dos homens, ao acrescentar que toda época em que reina a fé é, para os seus contemporâneos e para a posteridade, brilhante,

191

fecunda e estimulante, ao passo que aquela onde a descrença proclama o seu mísero triunfo naufraga aos olhos da posterioridade porque a ninguém interessa dedicar-se ao conhecimento da esterilidade — diante desse dilema goethiano nem por um instante se pode duvidar de que lado convém situar a época iluminista. O sentimento que por toda parte a domina é um sentimento profundamente criador, uma confiança absoluta na edificação e renovação do mundo. É essa renovação que se espera e exige agora da própria religião. A hostilidade super­ ficial em face da religião que nos impressiona na época do Iluminismo não deve dissimular aos nossos olhos que todos os seus problemas intelectuais ainda estão intimamente misturados com os problemas religiosos, que destes recebem constantes e poderosos impulsos. Com efeito, quanto mais se sente a insu­ ficiência das respostas fornecidas até então pela religião para as questões fundamentais do conhecimento e da moral, mais essas questões se impõem com intensidade e paixão. A luta que se trava já não gravita somente em torno dos dogmas e de sua interpretação mas em torno do modo de certeza da religião, não apenas em tomo do conteúdo da fé mas das modalidades e da direção da fé como tal. Portanto, não é à dissolução da religião que se dedicam com todas as suas forças, principalmente no quadro da filosofia alemã, mas a fundamentá-la e a aprofundá-la num sentido "transcendental”. Esse esforço explica a especifi­ cidade da religiosidade da época iluminista, suas tendências tanto negativas quanto positivas, tanto a sua fé quanto a sua descrença. Cumpre, antes de tudo, apreender a unidade que liga esses dois momentos, reconhecer a sua reciprocidade, para per­ ceber-se em sua unidade real o desenrolar histórico da filosofia da religião no século XVIII: um movimento que parte de um foco de pensamento bem-estabelecido para atingir um fim ideal perfeitamente determinado.

192

O dogma do pecado original e o problema da teodicéia Em toda essa abundante e freqüentemente confusa literatura que o século XVIII dedicou à teologia e à filosofia da religião — somente sobre a questão do deísmo o número de panfletos trocados de uma parte e de outra é inimaginável — ainda é possível, no entanto, definir o ponto de convergência teórica em tomo do qual o debate gravita. O Iluminismo não teve que tomar a iniciativa desse problema, porquanto já o encontrou na herança espiritual dos séculos precedentes e contentou-se em abordá-lo com os novos instrumentos intelectuais que adquirira nesse meio-tempo. Já a Renascença pretendera ser não só uma restauração da Antiguidade Clássica e do espírito científico mas também uma transformação, uma renovatio da religião. A reli­ gião que ela tinha em vista era uma religião de adesão ao mundo (Weltbejahung) e de afirmação do espírito, concedendo a ambos seus respectivos valores específicos, descobrindo o verdadeiro selo do divino não na depreciação ou no aniquilamento do mun­ do e do espírito mas em sua exaltação. Assim se estabeleceu esse deísmo universal que se propagaria um pouco por toda a parte na teologia de inspiração humanista dos séculos XVI e XVII. Essa teologia tem raízes na idéia de que a essência do divino só pode ser apreendida no conjunto de suas manifestações e de que, por conseqüência, possui um sentido e um valor inalienável e autônomo. O ser absoluto de Deus não pode exprimir-se em nenhuma forma e em nenhum nome, porquanto formas e nomes são modos de limitação, inadequados, nesse sentido, para a essên­ cia do infinito. Mas a recíproca, justamente, não é menos verda­ deira: uma vez que toda a forma particular está igualmente distanciada da essência do absoluto, todas as suas formas, por outra parte, estão igualmente próximas dele. Toda e qualquer expressão do divino, desde que seja em si mesma autêntica e

193

verídica, deve medir-se, aferir-se pelas outras; elas são equiva­ lentes entre si, na medida em que, em vez de designar a própria essência, indicam-na somente em figuras, em símbolos. Ê possível, de Nicolau de Cusa a Marsílio Ficino, e deste a Erasmo e a Tomas More, acompanhar o desenvolvimento e o constante re­ forço desse espírito religioso humanista. Nos primeiros decênios do século XVI, parecia que esse desenvolvimento tinha chegado a seu termo, que estava fundada uma " religião dentro dos limi­ tes da humanidade". Ela não opunha hostilidade alguma nem cepticismo algum, em face do dogma cristão, esforçando-se, pelo contrário, por compreender e interpretar o próprio dogma de maneira a fazer dele a expressão da nova consciência religiosa. É na própria idéia do Cristo que Nicolau de Cusa vê realizada a sua concepção fundamental da humanitas. A humanitas do Cristo converte-se no vínculo do mundo e na prova suprema da sua unidade interior, visto que só ela lançou uma ponte sobre o ãbismo entre o infinito e o finito, entre o princípio criador e o ser criado. O universalismo religioso assim fundado permite, portanto, envolver o universo em novas formas de vida inte­ lectual, as quais nasceram no decorrer da Renascença, e reinterpretá-las de um ponto de vista filosófico. Ele abre-se do mesmo modo para as matemáticas, as novas ciências e a cosmologia, ao fundar — contra Santo Agostinho e a Idade Média — uma doutrina profundamente nova do sentido da história. Tudo isso parecia então possível com base na religião, parecia realizado não contra a religião mas graças a ela. Com essa nova ampli­ tude, parecia que a religião revelava, finalmente, sua verdadeira e essencial profundidade. O problema da reconciliação do ho­ mem com Deus, que tinha sido o que estava em jogo na luta dos grandes sistemas escolásticos e de toda a mística da Idade Média, apresentava-se agora sob uma nova luz. Essa reconcilia­ ção deixou de ser esperada exclusivamente da eficácia da graça

194

divina: devia acontecer no seio do trabalho e do desenvolvi­ mento do espírito humano.4 Mas essa religião humanista encontrou na Reforma um adversário implacável. A Reforma, parece, condiz com a Re­ nascença no tocante a conferir um novo valor e uma nova sanção religiosa à vida terrena. Tende igualmente para uma interiorização, para uma espiritualização do conteúdo da fé. E essa espiritualização não se limita ao eu, ao sujeito religioso: ela estendese ao ser do mundo, coloca-se numa nova relação com o centro de certeza da fé. Eis que o mundo deve ser agora justificado pela certeza da fé. À exigência ascética de negação do mundo opõ-se doravante a exigência de transformação do mundo. Essa transformação deve realizar-se pelo trabalho no seio da profis­ são, na ação exercida no âmbito da ordem social secular. Mas se Humanismo e Reforma se encontram, em certo sentido, num terreno comum, conservam-se, porém, muito separados em suas razões profundas. A fé do reformador permanece, em sua origem e em seus fins, estranha aos ideais religiosos do Humanismo. O âmago do conflito pode-se definir numa expressão: o pecado original, a propósito do qual o Humanismo e a Reforma têm posições radicalmente diferentes. O Humanismo, bem entendido, jamais usou atacar frontalmente o dogma da queda original, mas toda a sua orientação espiritual tende a abrandar o rigor do dogma, a privá-lo de sua força. Com uma nitidez cada vez maior, percebe-se no pensamento religioso do Humanismo a penetração do espírito pelagianista; de um modo cada vez mais consciente, esforça-se por rejeitar o rude jugo da tradição agostiniana. O retorno à Antiguidade não devia tardar em alimentar o conflito: recorre-se à doutrina platônica do Eros e à doutrina estóica da autarcia da vontade contra a doutrina agostiniana da corrupção radical da natureza humana e de sua incapacidade para voltar de moto próprio ao divino. O universalismo religioso 3ara o qual o Humanismo tendia não podia ser salvo numa

195

outra base; não se podia fundamentar de outro modo uma reve­ lação que não fosse saída de uma pregação singular, limitada no espaço e no tempo, da palavra divina.5 Mas o protesto in­ transigente do sistema reformado levanta-se contra essa amplia­ ção doutrinal. A fé na qual vivem e morrem os reformadores é a fé no caráter único e absoluto da palavca. bíblica. O interesse que dedicam ao mundo em nada podia atenuar essa fé: a fé e o mundo são postulados, ambos, por essa mesma palavra. A Bíblia, em sua transcendência, sua autoridade sobrenatural e absoluta, é o único objeto a que se pode associar a certeza da salvação. O "individualismo” religioso representado pela Refor­ ma permanece, portanto, inteiramente ordenado em função de realidades puramente objetivas que o ligam ao mundo sobre­ natural.8 E quanto mais tende a confirmar essas ligações, mais se vê conduzido de volta à interpretação agostiniana do dogma, o qual retoma, tanto em Lutero quanto em Calvino, seu lugar na base e no cerne do sistema da teologia. A ruptura com o Humanismo é então inevitável. Consuma-se com um rigor e uma lucidez implacáveis no De servo arbitrio, de Lutero. Ao defen­ der, ainda que com certa prudência, a liberdade humana, ao bater-se pela autarcia e autonomia da vontade, a qual não teria sido inteiramente corrompida pela queda original, Erasmo expri­ me nada menos, segundo Lutero, do que o mais óbvio cepticismo religioso. Não existe erro mais perigoso do que crer numa inde­ pendência do homem, que seria considerado uma potência autô­ noma a respeito da graça divina, sem o menor poder para opor-se ou cooperar. Cumpre distinguir rigorosamente entre a potência de Deus e a nossa, entre a obra de Deus e a nossa, pois dessa distinção depende o nosso autoconhecimento, assim como o conhecimento e a glória de Deus. 41Enquanto um homem estiver convencido de que ainda pode fazer algo por sua salva­ ção, por pouco que seja, ele manterá a confiança em si mesmo e não alimentará o desespero em seu íntimo; tampouco se humi-

196

lhará perante Deus: pelo contrário, arroga-se direitos, ou espera ou, pelo menos, deseja a ocasião, o tempo e a obra que lhe permitirão atingir finalmente a salvação. Mas aquele que não duvida de que tudo depende da vontade de Deus, esse não deposita mais a menor esperança em si mesmo, não escolhe nem elege mais os homens mas espera tudo da eficácia divina: esse é o que está mais perto da graça que deve salvá-lo." Assim, o veredicto da fé reformada abateu-se sobre a fé humanista — e foi em vão que o século XVIII tentou lutar contra esse julgamento. Sem dúvida, os ideais da Renascença continuavam vivos; ainda encontravam, sobretudo no domínio da filosofia, defensores e campeões. Mas todos os grandes mo­ vimentos religiosos da época contrariavam suas tendenclas. 'i oãar esperança ^síava peraiaa dê uma religião universal como a con­ cebida por Nicolau de Cusa e expressa em De pace fidei: no lugar da paz da fé sobreveio a mais rude e mais implacável das guerras religiosas. E a vitória, por toda parte, nessa guerra, p~areoifl dgcretar um retrocesso para o mais inexorável dogma­ tismo. Se é verdade que Hugo Grotius na Holanda e a Escola de Cambridge na Inglaterra tentavam reencontrar o espírito da Renascença, o efeito imediato desses esforços não foi além de um quadro relativamente estreito. Grotius sucumbe ao ataque do gomarismo, que pretendia derrotar o arminianismo holandês; Cudworth e More não podem resistir mais à pressão do puritanismo e do calvinismo ortodoxo. Sem dúvida, a obra desses pen­ sadores muTToT estérilTquer no plano da religião quer no plano da história das idéias: ela abriu o caminho para a teologia do Iluminismo. A teologia do século XVIII está, com efeito, clara­ mente consciente dos seus^ vínculos com a história universal. A objeção que se opõe com tanta freqüência ao século XVIII, a de que ele se autoproclamou o "começo dos tempos", a de que menosprezou e subestimou as grandes realizações do passado, cai aqui no vazio. Semler, um dos mais influentes teólogos da

197

época na Alemanha, manifesta um verdadeiro espírito de crítica histórica — cujos elementos descobriu na investigação bíbli­ ca — ao reconhecer e exprimir os vínculos históricos que o unem aos seus predecessores. Em sua luta contra a ortodoxia, ele vale-se diretamente de Erasmo, a quem considera o verdadeiro fundador da teologia protestante. De novo são apresentadas, com toda a clareza, as velhas questões: autarcia da razão, autonomia do querer moral. Mas exigem doravante respostas independentes de toda a autoridade exterior, da Bíblia e da Igreja. Somente então se quebrou o poder do dogmatismo medieval: o agostinismo deixa de ser atacado em suas conseqüências, em seus efeitos imediatos, passando a sê-lo em seu princípio, em seu centro vital^A idéia de pecado original é, com efeito, o alvo comum que une em sua luta ãs diversas_tendéncias do pensa-~ mento iluminl^a^tliírne bate-se ao lado do deísmo inglês, Rousseau ao lado de Voltaire: parece que, por algum tempo, a fim de abater esse inimigo comum, nada resta das diferenças e di­ vergências. Consideremos, em primeiro lugar, o problema no seio da vida intelectual francesa, onde ele adquiriu seu aspecto mais agudo e encontrou suas fórmulas mais expressivas. Com uma perfeição que só podia ser alcançada pelo espírito analítico fran­ cês, todos os aspectos que o problema continha foram destaca­ dos e cada um deles desenvolvido até as suas extremas conse­ qüências. As diversas abordagens possíveis são dispostas face a face, formando uma antítese muito simples, e dessa antítese re­ sultou, como um desfecho óbvio, a solução dialética. O problema do pecado original é apresentado, uma vez mais, na fílosõtiâ francesa do século XVIII, por um de seus pensadores~mais preTundos. bescobrimo-lo, exposto com extraordinária clareza, uma austeridade e uma força ímpares, nos pensamentos de Pascal. Dificilmente se pode dizer que, depois de Agostinho, o seu coíP' teúdo se haja modificado: graças à mediação da grande obra de

198

Jansênio sobre Agostinho, a problemática pascaliana une-se ao agostinismo. Entretanto, o que separa Pascal de Agostinho, o que o faz ser reconhecido como um pensador dos tempos, é a fnrma ç.^q. .ir^Q^Q j j a demonstração. Esse método está impreg­ nado do ensino de Descartes, tenta levar até os derradeiros mis­ térios da fé oTeu~ideat"THclonãl, o ideal da verdade cTara e distinta. Daí provém ^ paradoxal mistura de temas: o~cõnteúdo doütàfiãT qu&^Pascal pretende demonstrar nos Pensamentos faz o mais extremo contraste com o modo da demonstração. A tese que ele sustenta é a da impotência radical da razão.Jncflpaz por si mesma_da menor certeza, que só pode chegar à verdade re­ nunciando a ela própria e submetendo-se inteiramente, sem re­ servas, à fé^MãsTjüstamente, Pascal não pretende exigir ou pregar a necessidade dessa submissão: quer prová-la. Não se dirige ao crente mas ao descrente; aborda-o no seu próprio ter­ reno, fala na sua língua e serve-se das suas armas. Todo o equi­ pamento da moderna lógica analítica, que Pascal domina melhor do que ninguém, querele mesmo utilizou e levou à sua perfeição suprema nos seus trabalhos matemáticos, deve ser agora adaptado à exposição e ao desenvolvimento dos problemas da relígíãa Avança para cTsoIução desses problema^com os mesmos meios que já utilizara na solução de problemas geométricos, a propó­ sito das seções cônicas, de um problema de física experimental, no seu Tratado do vácuo. A observação exata dos fenômenos e o poder^ekr~Mp3!5sê~ devem uma vez mais, no presente caso, determinar a decisão. Não temos outro meio, não necessitamos de qualquer outro meio para resolver o debate. O físico, a fim de solucionar o problema apresentado por uma força da natureza, não dispõe de nenhum outro recurso senão examinar as suas manifestações, fazê-las dar seu testemunho ordenando-as siste­ maticamente; não existe outro método para decifrar o mistério da natureza humana. A primeira coisa que se deve exigir de uma hipótese é que se harmonize com os fenômenos e os explique

199

todos. Esse postulado, “salvar os fenômenos" ( oÇeiv tà (paivófieva ), não vale menos para a teologia do que para a astronomia. E é aí que Pascal espera o seu adversário, que aguar­ da o céptico e o descrente. Se estes rejeitam a solução da religião, se se recusam a admitir a doutrina do pecado original e da “ dupla natureza” do homem, é a eles que cabe então fornecer uma ex­ plicação mais verossímil. No lugar do duplo devem colocar o simples, no lugar da discordância, o acordo. Mas essa pretensa unidade, justamente, e esse acordo logo entram em conflito ra­ dical com tudo o que a existência humana nos oferece. Onde quer que o homem, com efeito, apresente-se a nossos olhos, o que vemos? Não um ser completo, em harmonia consigo mes­ mo, mas um ser dilacerado, dividido, vergado ao peso das con­ tradições. Essas contradições são os estigmas da natureza hu­ mana. Desde o momento em que quer compreender a sua posição no mundo, o homem vê-se colocado entre o infinito e o nada, na presença de ambos, impotente para decidir se pertence a um ou ao outro. Erguido acima de todas as coisas, desce abaixo de cada uma delas; é o ser mais sublime e o mais rejeitado: tudo nele conjuga potência e impotência, grandeza e miséria. A sua cons­ ciência não se cansa de propor-lhe um fim que, em sua condição, ele jamais pode atingir: nessa vontade de se superar e nas perpé­ tuas recaídas consome-se toda a sua existência. Não poderíamos escapar a esse conflito que se manifesta em todos os fenômenos da natureza humana, e o único meio de explicá-lo consiste em transpô-lo do plano fenomenal para a sua fonte inteligível, dos fatos para o seu princípio. O problema da dupla natureza irre­ dutível do homem só se resolve se se recorrer ao mistério da queda. De súbito, por esse mistério, torna-se claro tudo o que no começo parecia mergulhado em impenetrável escuridão. Se é verdade que essa "hipótese" continua sendo em si mesma um mistério absoluto, também constitui, por outro lado, a única cha­ ve que nos pode abrir as verdadeiras profundezas do nosso ser.

200

A natureza humana só é concebível por esse inconcebível com que nos deparamos em sua profundidade. Assim são invertidos todos os critérios respeitantes à forma lógica, "racionar', do co­ nhecimento. Logicamente, explica-se o desconhecido reduzindo-o ao conhecido: aqui, é o conhecido, o dado, a existência imedia­ tamente vivenciada, que se explica mediante uma causa inteira­ mente desconhecida. Mas precisamente esse retorno dos instru­ mentos e dos critérios racionais nos ensina que atingimos um limite, limite não contingente mas necessário, não subjetivo mas objetivo do conhecimento. Não é uma debilidade do nosso en­ tendimento, da nossa compreensão intuitiva das coisas (unserer Einsicht), o que nos impede de chegar ao conhecimento ade­ quado do objeto: é o próprio objeto que desafia toda a raciona­ lidade, que contém em si uma antinomia absoluta. De fato, todo o critério racional é, como tal, imanente: o que significa que a forma racional da nossa compreensão das coisas consiste em concluir de uma essência determinada e constante, da “natureza” de uma coisa, as propriedades que necessariamente lhe perten­ cem. Nesse caso, porém, estamos lidando com uma natureza que de imediato se nega a si mesma; aqui, é a imanência que, a par­ tir do instante em que tentamos apreendê-la pura e simples-,' mente, nega-se a si mesma e converte-se em transcendência/ "Quem destrinçará este imbróglio? A natureza confunde os piijrônicos e a razão confunde os dogmáticos. Em que te converterás, pois, ó homem, que procuras apurar qual é a tua verdadeirta condição através da tua razão natural? [ . . . ] Reflete, pois, sober­ bo, sobre o paradoxo que tu mesmo és. Humilha-te, razão impo­ tente; cala-te, natureza imbecil: aprende que o homem trans­ cende infinitamente o homem, e escuta do teu mestre a tua verdadeira condição, que ignoras. Escuta Deus!” 7 Essas fórmulas pascalianas iriam apresentar à filosofia fran­ cesa do século XVIII o mais difícil e o mais radical dos pro­ blemas. Os filósofos defrontavam-se aí com um adversário a sua

201

altura, com o qual não podiam evitar medir-se se quisessem dar um passo adiante, por menor que fosse. Se era impossível que­ brar nesse ponto a vertigem da transcendência, se o homem de­ via ser e manter-se "transcendente em relação a si mesmo ", toda explicação "natural" do mundo e da existência estava de ante­ mão prejudicada. Compreende-se, nesse caso, por que j l filoso­ fia francesa do Iluminismo voltava incessantemente aos Pensajmentos de Pascal, como sobcT efeito de uma compuhão~intèriõF, para fazer com tanta freqüência dessa oErTTcTteste de suas fa­ culdades críticas. Através de todas as etapas da carreira de es­ critor de Voltaire teve prosseguimento a crítica de Pascal. Inicia essa crítica com a sua primeira obra filosófica, as Cartas sobre os ingleses; meio século depois, ele retorna a esse trabalho de sua juventude para completá-lo e expor novos argumentos.8 En­ frentando o desafio pascaliano, ele proclama que vai sustentar a causa da humanidade contra o "sublime misantropo". Entretan­ to, quando se examina um por um os seus argumentos, chama a atenção o fato de que ele procura evitar a luta aberta. Voltaire, com efeito, tem o cuidado de não seguir Pascal até o centro pro­ priamente religioso do seu pensamento, até o mais profundo da sua problemática. Ele quer manter-se à superfície da existência humana, mostrar que essa superfície basta-se a si mesma, ex­ plicate a si mesma. À seriedade pascaliana, ele opõe suas con­ siderações irônicas e jocosas, è profundidade mística, a volubi­ lidade do mundano. Recorre a um "senso comum", que converte em juiz das sutilezas da metafísica. Aquilo a que Pascal cha­ mava as contradições da natureza humana é apenas, para Vol­ taire, a prova de sua riqueza, de sua plenitude, de sua variedade e mobilidade. Sem dúvida, ela nada tem de "simples", no sentido em que se poderia atribuir-lhe uma existência determinada, pres­ crever-lhe uma carreira fixa, porquanto se abre incessantemente a novas possibilidades. Mas essa versatilidade quase ilimitada não é, para Voltaire, a sua fraqueza mas a sua força. Por díspar

202

que possa parecer, à primeira vista, a atividade humana, incapaz de ater-se a um resultado adquirido, passando sempre de um fim a outro, saltando incessantemente de uma iniciativa para outra, não é nessa diversidade, entretanto, que ela revela a sua verda­ deira intensidade e toda a potência de que é capaz? É justa­ mente na extensão, no desdobramento espontâneo de todas essas forças diversas que ele sente em si mesmo que o homem é tudo o que pode e deve ser: "Essas pretensas contrariedades, a que chamais contradições, são os ingredientes necessários que en­ tram no composto do homem, que é, como o resto da natureza, o que deve ser.” Mas essa filosofia do senso comum não é a última palavra de Voltaire sobre a questão. Por pouco que ele se debruce sobre os argumentos de Pascal, percebe-se claramente que estes nunca deixam de perturbá-lo. De fato, no ponto em que estamos, a simples negação deixa de ser suficiente: espera-se da filosofia das LuzeSjL exige-se dela, uma decisão clara e positiva. Uma vez que rejeita o mistério do pecado originaíTelaTsõllcitâda a situar alhures a causa e a origem do mal, a reconhecer e demonstrar sua fonte mediantéTVxclusivamente, as forças da razão. DianfèT do problema metatísíco como ta[9 parece que, sobre esse ponto, não existe, de fato, escapatória possível: duvidar do dogma só nos faz mergulhar ^Tinda mais pTrotunduT^e inexoravelmente no enTgrniTda teodicéia. Esse enigma subsiste para o próprio^Voltàire, para quem a existência de Deus é uma verdade rigorosa­ mente demonstrável. Eu existo, logo algo necessário e eterno existe é uma proposição que nada perdeu, para ele, de sua força e de sua evidência.9 Assim, uma vez que o nó górdio da teodi­ céia permanece intato, como poderemos escapar à conclusão de Pascal de que "o nó da nossa condição faz seus entrelaçamentos nesse abismo"? 10 Voltaire sempre rechaçou o otimismo como doutrina metafísica e via na solução de Leibniz e Shaftesbury apenas uma ficção mitológica, um "romance'9.11 Quem pretender

203

que tudo está bem é um charlatão: confessemos a existência dc mal sem acrescentar ainda aos horrores da vida a absurda com­ placência de negá-lo.12 Se Voltaire declara-se aqui favorável ao cepticismo teórico, contra a teologia e a metafísica, nem por isso deixa de ser atingido, ainda que indiretamente, pelos golpes da argumentação pascaliana a que ele se propunha refutar. Em todo caso, se se considerar o resultado a que Voltaire chegou, vemo-lo exatamente no ponto onde se encontrava Pascal, cuja conclusão pessoal, incansavelmente aprofundada, era de que a filosofia como tal, de que a razão, desde que queira contar exclusivamente consigo mesma, sem o mínimo apoio da revelação, desaguará necessariamente no cepticismo: “O pirronismo é o verdadeiro."13 Tendo-se assim despojado ele próprio de todas as suas armas contra o cepticismo sobre a questão da origem do mal, vê-se agora empurrado para os seus últimos entrincheiramentos. Re­ gistra todas as respostas e a todas rejeita. Schopenhauer valeu-se com certa predileção do Candide de Voltaire, do qual quis fazer a arma por excelência da luta contra o otimismo. Mas, na ver­ dade, Voltaire não é mais um teórico do pessimismo do que um teórico do otimismo. A sua posição sobre o problema do mal não surgiu de nenhuma doutrina determinada; ela não pode e não quer ser mais do que a expressão do humor passageiro com o qual ele aborda o mundo e o homem. Esse humor admite toda a espécie de matizes — compraz-se precisamente nesse jogo de matizes. Em sua juventude, Voltaire ignora todo o acesso de pessimismo. Defende uma filosofia puramente hedonista, para a qual a "justificação" da existência consiste em abandonar-se a todos os prazeres e em esgotá-los até o fim. Parece-lhe tão pe­ noso quanto fútil esforçar-se por adquirir uma outra sabedoria: [. . . ] la véritable sagesse Est de savoir fuir la tristesse Dans les bras de la volupté.

204

[. . . a verdadeira sabedoria É saber fugir da tristeza Nos braços da volúpia.] Voltaire ainda não quer ser mais do que o apologista do seu tempo: apologista do luxo requintado, do bom gosto, da volúpia liberada de todos os preconceitos.14 Mais tarde, sem dú­ vida, voltou atrás a respeito dessa glorificação do prazer — por ocasião do terremoto de Lisboa de 1755, retratou-se expressa­ mente. O axioma tout est bien, como tal, como enunciado dou­ trinal, é rejeitado em termos absolutos.15 Insensata ilusão, a de fechar os olhos para os males cuja presença nos acossa de todos os lados; não há outra saída senão fixar o olhar no futuro, es­ perar que este nos traga a solução de um enigma que, de mo­ mento, nos é impenetrável: “Un jour tout sera bien, voilà notre espérance; tout est bien aujourd'hui, voilà l'illusion.” [Um dia tudo estará bem, eis a nossa esperança; tudo está bem hoje, eis a ilusão.] Voltaire adere aqui, portanto, a um compromisso — compromisso que se impõe tanto em teoria quanto no plano ético. O mal moral também é inegável: sua justificação consiste em ser inevitável, dada a própria natureza do homem. Sem as fraquezas humanas, a nossa vida estaria condenada à imobili­ dade, porquanto os mais vivos impulsos da nossa existência nas­ cem, precisamente, dos nossos instintos e das nossas paixões, portanto, de um ponto de vista ético, dos nossos defeitos. Vol­ taire encontrou a fórmula mais impressionante de sua visão do mundo e da vida no seu conto filosófico Le monde comme il va, vision de Babouc (1746). Babouc recebe do anjo Ituriel a ordem de ir à capital do reino para observar aí a vida e os costumes: o seu julgamento decidirá se a cidade deve ser arrasada ou pou­ pada. Ele descobre a cidade em suas fraquezas, seus defeitos, suas mais graves deficiências morais mas, ao mesmo tempo, em todo o brilho de sua civilização e todo o refinamento de sua vida social. E emite a sua sentença. Pelos mais hábeis ourives da ci­

205

dade, manda forjar uma estatueta composta de todos os metais, desde os mais preciosos aos mais vis, para levá-la a Ituriel. "De­ sejarias quebrar esta bela estatueta, porque ela não é inteira­ mente feita de ouro e diamantes?", perguntou a Ituriel. O anjo compreendeu: "Decidiu nem mesmo cogitar de corrigir Persépolis, e deixar correr o mundo como ele está; pois, disse ele, se nem tudo vai bem, tudo é passável." Mesmo no Candide, onde ele esmiuçou o otimismo em todos os seus traços, Voltaire não se desviou desse sentimento. Não podemos escapar ao mal nem podemos extirpá-lo. Mas devemos deixar o mundo seguir o seu curso, tanto o mundo ffsico quanto o moral, e adotar nele uma posição tal que nunca possamos deixar de lutar contra ele: pois essa é a fonte de toda a felicidade de que o homem é capaz. Essa mesma incerteza, que se evidencia na atitude de Vol­ taire a respeito do problema da teodicéia, é igualmente obser­ vada nos outros pensadores do século XVIII. A literatura a res­ peito desse problema é quase inesgotável: ele continua sendo visto como o verdadeiro problema fundamental que deve decidir da sorte da metafísica e da religião. É por isso que se está sem­ pre voltando a ele, sem que, em boa verdade, o problema tenha sido muito enriquecido, no fundo, com esses múltiplos debates. Retoma-se constantemente os argumentos de Leibniz, reinterpretados de mil maneiras, mas não se faz nenhum esforço para compreendê-los na unidade viva dos conceitos e dos princípios fundamentais da sua filosofia. O espírito sistemático desemboca no ecletismo com uma freqüência cada vez maior.16 Surge um novo tema: a psicologia empírica apodera-se do problema e pro­ cura tratá-lo com os seus próprios meios. Parece abrir-se um caminho: a questão de saber se o prazer ou a dor predomina na existência humana despoja-se de sua antiga nebulosidade e as­ senta agora numa base científica mais sólida. Se se pretende resolver, em definitivo, essa questão, é impossível contentar-se com uma apreciação vaga; é necessário encontrar uma medida

206

fixa, estabelecer uma escala determinada pela qual se possa afe­ rir os diversos valores de prazer e de desprazer. No ponto em que se estava, a questão consistia toda ela em realizar a síntese metódica dessa bipolaridade: orientar o curso dissimulado das sensações de prazer e desprazer para a racionalidade, encontrarlhes uma fórmula exata. Tudo o que faltava, aparentemente, para que esse objetivo fosse alcançado era a associação da psi­ cologia e da matemática, da observação empírica e da análise conceptual. Essa é a síntese tentada por Maupertuis no seu Essai de philosophie morale. Partindo de uma certa definição de prazer e desprazer, ele procura representá-los de tal forma que seja possível atribuir-lhes diretamente um valor quantitativo de­ terminado, compará-los em termos numéricos. O conhecimento do mundo físico depende do princípio da redução das diferen­ ças qualitativas que assinalamos entre os fenômenos a diferenças puramente quantitativas: o princípio é o mesmo para os fenô­ menos psíquicos. A heterogeneidade que os dados imediatos da experiência vivida manifestam não nos dispensa de estabelecer sua homogeneidade conceptual. Do mesmo modo, por diversas que sejam as modalidades de prazer e desprazer, algo de co­ mum, entretanto, lhes pertence: uma certa intensidade e uma certa duração determinadas que elas possuem, tanto umas quan­ to outras. Se conseguirmos submeter à medição esses dois ele­ mentos, estabelecer a relação segundo a qual a grandeza do todo manifesta uma dependência da grandeza dos seus elementos cons­ tituintes, o caminho estará aberto para uma solução; seria pos­ sível, nesse caso, proceder a um cálculo das sensações e dos sentimentos que nada teria a invejar ao rigor dos cálculos efe­ tuados em aritmética, geometria, física. Assim, o problema de uma "matemática das grandezas intensivas", de uma mathesis intensorum, aquele que foi concebido por Leibniz a propósito da questão da nova análise do infinito, apresenta-se agora até no domínio da psicologia. A lei que Maupertuis procura formular

207

aqui é rigorosamente análoga aos princípios da estática e da di­ nâmica. Para fazer um cálculo dos elementos de prazer e des­ prazer, é necessário partir do fato de que sua grandeza depende, por um lado, de sua força e, por outro, do tempo durante o qual eles estão presentes e atuam na alma. Uma dupla intensidade numa duração simples pode, portanto, apresentar globalmente o mesmo resultado de uma intensidade simples numa dupla duração. De um modo geral, pode-se definir a grandeza de um estado feliz ou infeliz como o produto da intensidade do prazer e do desprazer com a duração de um e de outro. Apoiando-se nessa fórmula, Maupertuis tratou então de avaliar logo, em ter­ mos comparativos, os sistemas éticos segundo o seu valor de verdade. Tudo bem considerado, esses sistemas só se distinguem pelo tipo de cálculo de felicidade em que cada um deles se ba­ seia. Todos nos querem oferecer uma prescrição sobre a melhor maneira de chegar ao "bem supremo", que consiste em fazer produzir na vida a maior soma possível de felicidade. Mas uns querem alcançar esse resultado através do aumento e acumula­ ção de bens, ao passo que outros querem evitar os males e infor­ túnios. O epicurista esforça-se por aumentar a soma de prazeres, o estóico por reduzir a de desprazeres; um ensina que a finali­ dade da existência é alcançar a felicidade; o outro, que é a de evitar a infelicidade.17 Esse cálculo, como um todo, levou Mau­ pertuis, de resto, a um resultado pessimista: na vida comum, verifica-se que a soma dos males prepondera constantemente sobre a dos bens.18 Numa de suas obras pré-crfticas, o Emaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa, Kant remete-nos para o cálculo de Maupertuis, sem deixar de lhe combater tanto os resultados quanto o método. O problema assim apresentado, afirma ele, é insolúvel para o homem por­ que só podem ser levadas em conta as sensações da mesma es­ pécie, ao passo que nas condições complexas da vida todos os estados afetivos são diferentes por força da própria diversidade

208

das emoções.19 A objeção verdadeiramente decisiva de Kant con­ tra esse método só se manifesta de forma válida, entretanto, em sua própria fundamentação da ética. De fato, a crítica kantiana devia minar de uma vez por todas o edifício argumentativo da filosofia popular do século XVIII, no tocante ao problema da teodicéia. Ao rejeitar o eudemonismo como fundamento da ética, priva o cálculo do prazer e do desprazer de toda significação positiva, moral ou religiosa. Doravante, é em outra esfera que se debaterá a questão do valor da vida. "É muito fácil decidir sobre o valor que teria a vida se ela fosse unicamente avaliada em termos de fruição (ou seja, do fim natural da soma de todas as inclinações, a felicidade). Esse valor cairia abaixo de zero; com efeito, quem iria querer recomeçar uma vida nas mesmas condições, ainda que mesmo de acordo com um novo plano elaborado por si (mas em harmonia com o curso da natureza) e exclusivamente assente na fruição? [ . . . ] Portanto, subsiste ape­ nas o valor que nós próprios atribuímos à nossa vida, não sim­ plesmente porque o fizemos mas porque o fizemos, de maneira intencional, independentemente da natureza, de tal modo que a própria existência da natureza só possa constituir um fim sob essas condições.” 20 A filosofia popular da época do Iluminismo não tinha a maturidade necessária para pensar em tal finalidade para além da dimensão de prazer e desprazer. Somente dois pensadores se­ tecentistas conceberam essa mesma idéia, proveniente de duas direções diferentes, que assim prepararam indiretamente a pro­ blemática kantiana e que, num certo sentido, pressentiram-na. Graças a eles, o problema da teodicéia não só foi tratado de uma nova maneira mas, sobretudo, adquiriu uma nova significação teórica. A metafísica tinha, nesse ponto, esgotado todas as suas possibilidades numa série de tentativas estéreis; atingira um li­ mite em que não havia, para ela, qualquer futuro nem um recuo possível. Para evitar remeter-se uma vez mais o saber à fé, para

209

não o mergulhar de novo no abismo do irracional de que falava Pascal, só restava um caminho: convocar a ajuda de outras for­ ças intelectuais e confiar-lhes a sorte do debate. Para chegar ao centro do problema da teodicéia, o pensamento do século XVIII deve realizar, pois, uma espécie de desvio. Em vez de partir de uma explicação metafísico-teológica, da análise da essência di­ vina para daí concluir, por via dedutiva, os diversos atributos de Deus, em vez de se mergulhar, portanto, na essência do ab­ soluto, ela dedica-se doravante a desenvolver inteiramente todas as energias constituintes, criadoras, que o eu contém em si. Ê o único caminho de que se pode esperar uma solução imanente — uma solução que não force o espírito a ultrapassar seus próprios limites. E eis que de novo se manifestam os dois temas funda­ mentais que irão adquirir, no movimento das idéias do século XVIII, uma importância cada vez maior e uma consciência cada vez mais clara de sua especificidade. Por um lado, é o problema estético, por outro, o problema do direito e do Estado que assu­ me a liderança desse movimento. Nenhum dos dois parece estar, nem um pouco, em estreito contato ou em ligação com o pro­ blema da teodicéia e, no entanto, verifica-se que a partir de am­ bos produziram-se uma transformação característica e um apro­ fundamento desse mesmo problema. O primeiro pensador a atra­ vessar aqui a ponte foi Shaftesbury. Fundou uma filosofia que não só comporta uma parte estética de grande importância teó­ rica mas, sobretudo, uma filosofia em que a estética constitui a verdadeira chave do conjunto. Segundo Shaftesbury. a questão da natureza da verdade não se separa da da beleza: as duas juntam-se em sua raiz e princípio último. Toda beleza é ver­ dade — do mesmo modo que toda verdade, em sua própria substância, percebe-se e concebe-se graças ao sentido da forma, ou seja, ao sentido da beleza. Toda a realidade participa na for­ ma; longe de ser uma massa informe e desordenada, ela possui uma proporção interior, conserva em sua existência uma orga­

210

nização determinada, em seu devir e em seu movimento uma ordem e uma regra rítmicas: eis o fenômeno primordial que prova de imediato a sua origem puramente espiritual, " super­ sensível ”. Os sentidos como tais não são capazes de explicar esse fenômeno e ainda menos de compreender a sua origem última. Aí onde os sentidos agem sozinhos, onde as relações que estabelecemos entre o mundo e nós próprios assentam uni­ camente nas necessidades e impulsos sensíveis, o reino das for­ mas ainda não é acessível. Assim, todo o conhecimento da forma das coisas é vedado ao animal, porque os objetos do seu meio só agem sobre ele como excitantes, para despertar-lhe os instintos e ocasionar-lhe certas reações. Com efeito, esse conhe­ cimento não é nele despertado sob a ação do desejo, da ativi­ dade imediata, mas pela força da intuição pura — uma intuição que permanece pura de toda e qualquer tentativa de apossar-se do objeto, de monopolizá-lo. Shaftesbury viu nessa faculdade de pura contemplação, nesse prazer que se conserva puro de todo o "interesse”, a força primitiva em que assenta toda a fruição da arte, assim como toda a criação artística. É nela que o homem é verdadeiramente ele próprio, é graças a essa faculdade que ele participa na felicidade suprema, a única felicidade que lhe é outorgada. Assim foram radicalmente subvertidos todos os cri­ térios, todos os valores que temos o hábito de aplicar ao exame do problema da teodicéia. Vê-se, como efeito — e vê-se por quê — , que o simples cálculo dos bens e dos males no mundò fica necessariamente muito aquém do sentido autêntico e pro­ fundo desse problema. O conteúdo da vida não deve definir-se, a esse propósito, por sua matéria, mas por sua forma. Não de­ pende do grau de prazer que a vida nos concede, mas da ener­ gia pura das forças criadoras pelas quais ela se dá um conteúdo. É nessa direção que Shaftesbury procura a verdadeira "teodicéia”, isto é, a justificação definitiva da existência; não na esfera do prazer e da dor mas na do livre esboço interior, da criação

211

regida por um protótipo e um arquétipo puramente espirituais. Essa criação prometéica, que supera de longe a simples fruição e em nenhum ponto lhe é comparável, revela-nos a verdadeira divindade do homem e, por conseguinte, a divindade do todo.21 Mas é por um outro caminho, numa direção perfeitamente original do pensamento do século XVIII, que somos conduzidos desde que consideremos a posição de Rousseau a respeito do problema da teodicéia.22 É um personagem da estatura de nada menos que um Kant para reconhecer expressamente em Rous­ seau o mérito de ter, nesse domínio, transposto a última etapa. “Newton foi o primeiro a ver a ordem e a regularidade unidas à perfeita simplicidade onde, antes dele, não se descortinavam senão desordem e confusa diversidade: e, desde então, os come­ tas deslocam-se em trajetórias geométricas. Rousseau foi o pri­ meiro a descobrir, sob a diversidade das formas convencionais, a natureza profundamente escondida do homem e a lei secreta se­ gundo a qual suas observações justificam a Providência. Antes, tinha-se por válidas as objeções de Alphonsus e de Manes. De­ pois de Newton e Rousseau, Deus está justificado e daqui em diante a doutrina do Papa é verdadeira”.23 Essas fórmulas são, à primeira vista, difíceis de interpretar: não se encontra em Jean-Jacques Rousseau, por assim dizer, nada que possa ser in­ terpretado como um debate explícito, como uma explicação ra­ cional do problema da teodicéia, comparável à que encontramos em Leibniz, Shaftesbury ou Pope. A originalidade, a verdadeira importância de Rousseau, reside num outro domínio muito dife­ rente: não é ao problema de Deus mas ao problema do direito e da sociedade que o seu pensamento, como um todo, se dedica. No entanto, foi precisamente através dele que Rousseau nos apresentou uma perspectiva e uma abordagem novas. Foi o pri­ meiro, sem dúvida, a elevar o problema acima do plano da existência individual para situá-lo expressamente no nível da existência social. Foi aí que Rousseau acredita ter descoberto

212

o ponto onde a questão da verdadeira significação da existência humana, de sua felicidade ou de sua miséria, pode ser final­ mente solucionada. Tal é a visão das coisas que ele encontrou no estudo e na crítica das instituições políticas. Diz ele nas Confissões: "Vi que tudo dependia radicalmente da política e que, fosse qual fosse o ponto de vista que se adotasse, nenhum povo jamais seria senão aquilo que a natureza do seu governo o fizesse ser; assim, essa grande questão do melhor governo possível parecia-me reduzir-se a isto: qual é a natureza do go­ verno próprio para formar um povo que seja o mais virtuoso, o mais sensato, enfim, o melhor, se tomarmos essa palavra no seu sentido mais amplo?" Uma nova norma foi assim aplicada à existência humana: em vez da simples exigência de felicidade, a idéia de direito e de justiça social, reconhecida como a ver­ dadeira medida da existência humana, como a escala de valores em função da qual ela deve ser vivida. E o emprego desses novos critérios levou primeiro Rousseau a um julgamento extre­ mamente negativo. Todos aqueles bens que a humanidade ima­ gina ter adquirido no transcorrer de sua evolução, esses tesouros pretensamente acumulados, os da ciência, das artes, as alegrias de uma existência nobre e requintada, tudo isso é reduzido a nada pela crítica inexorável de Rousseau. Ao invés de esses bens terem podido renovar o valor e o conteúdo da vida, eles apenas a distanciaram cada vez mais da sua fonte primeira e, em defini­ tivo, alienaram-na inteiramente do seu sentido autêntico. Desse ponto de vista, no quadro que ele traça das formas de vida tradicionais e convencionais, da existência do homem na socie­ dade, Rousseau concorda surpreendentemente com Pascal. Ele foi o primeiro pensador do século XVIII que, de novo, toma a sério as acusações pascalianas, que lhes avalia todo o peso. Em vez de as enfraquecer, de as lançar na conta, como fez Voltaire, do humor masoquista de um misantropo irrealista, Rousseau re­ toma ao âmago da questão. A descrição apresentada pelos Pen-

213

sarnentos de Pascal da grandeza e da miséria do homem reencon» tra-se, traço por traço, nas primeiras obras de Rousseau, no Discurso sobre as artes e as ciências e no Discurso sobre a de­ sigualdade. Tal como Pascal, Rousseau apenas vê nas bagatelas com que a civilização dotou os homens futilidades e bens ilu­ sórios. Como ele, insiste no fato de que toda essa riqueza apa­ ratosa não tem outro papel senão o de cegar o homem para a sua pobreza interior. O homem só se refugia no mundo, na socie­ dade, numa multidão de ocupações e divertimentos díspares porque não suporta a sua própria presença, porque ver-se, con­ templar-se a si mesmo o espanta e o enche de medo. Toda essa agitação incessante e vã é fruto do pavor que o repouso lhe causa. Pois se ele pudesse ficar quieto por um instante a fim de adquirir verdadeiramente consciência de si mesmo, de reconhe­ cer tudo o que é, o homem entregar-se-ia ao mais profundo de­ sespero. Quanto às forças que no estado atual, empírico, da so­ ciedade aproximam e unem os homens, o julgamento de Rousseau tampouco é diferente do de Pascal. Insiste continuamente nesse ponto: em nenhuma parte existe um ethos primitivo, uma von­ tade de viver em comum numa unidade verdadeira, nenhuma simpatia natural une os homens entre si. Todos os vínculos sociais não passam de mera ilusão. Amor-próprio e vaidade, von­ tade de dominar o outro e de estar sempre em posição de des­ taque, tais são os verdadeiros grilhões que retêm a sociedade humana.24 "Todos, com um belo verniz de palavras, empe­ nham-se em ludibriar os outros sobre os seus verdadeiros propó­ sitos; ninguém é enganado e nem um só é tão tolo que se iluda, embora todos falem como ele. Aparentemente, todos buscam a felicidade, ninguém se preocupa com a realidade. Todos empe­ nham seu ser na aparência; todos, escravos e vítimas do amorpróprio, não vivem para viver mas para fazer crer que vi­ veram.”28

214

Portanto, Rousseau concede a Pascal todas as premissas em que este fundamentou a sua argumentação. Jamais procurou em­ belezar ou enfraquecer: tal como ele, descreve o estado presente da humanidade como o estado da mais profunda degradação. Contudo, ora reconhece o fenômeno donde partiu Pascal, ora se recusa a admitir as explicações propostas pela metafísica mís­ tica e religiosa de Pascal. Seus sentimentos, tanto quanto seu pensamento, revoltam-se contra a hipótese de uma perversão original da vontade humana. Para ele, como para toda a sua épo­ ca, a idéia de pecado original perdeu toda força e todo valor. Sobre esse ponto, ele não combateu o sistema ortodoxo menos severa e radicalmente do que o fizeram Voltaire e os pensadores da Enciclopédia. Foi justamente a esse propósito que se pro­ duziu entre ele e a doutrina eclesiástica um conflito implacável e um rompimento definitivo. No julgamento que pronunciou sobre a obra de Rousseau, a Igreja logo destacou, com toda a lucidez, essa questão central como o único ponto verdadeiramente crí­ tico. A carta pastoral por meio da qual Christophe de Beaumont, arcebispo de Paris, condena o Emílio, enfatiza, com efeito, que a tese de Rousseau, sustentando que os primeiros instintos da natureza humana são sempre inocentes e bons, encontra-se em absoluta contradição com tudo o que as Escrituras e a Igreja sempre ensinaram a respeito da natureza do homem. Rousseau enfrenta, com efeito, um dilema a que, aliás, não tenta escapar. Pois se reconhece o fato de que o homem é "degenerado", se des­ creve essa degeneração com um rigor cada vez maior e cores cada vez mais sombrias, como não lhe reconhecer a causa, como furtar-se à conclusão de que o homem é "radicalmente mau*? Rousseau desfaz-se desse dilema com a introdução da sua dou­ trina da natureza e do "estado de natureza". Em todo o jul­ gamento que formulamos sobre o homem, cumpre-nos distinguir sempre com o maior cuidado se o nosso enunciado refere-se ao homem da natureza ou ao homem da cultura — se se trata do

215

"homem natural" ou do "homem artificial”. Enquanto Pascal explicava as contradições insolúveis que a natureza humana nos apresenta dizendo que, de um ponto de vista metafísico, está­ vamos lidando com uma dupla natureza, para Rousseau essa dupla natureza e o conflito que daí resulta residem no próprio seio da existência empírica, no desenvolvimento empírico do ho­ mem. Foi esse desenvolvimento que obrigou o homem a submeter-se ao jugo da sociedade, condenado-o assim a todos os males morais, alimentando nele todos os vícios, orgulho, vai­ dade, sede inextinguível de poder. "Tudo está bem" — diz Rousseau no começo do Emílio — "ao sair das mãos do Autor das coisas; tudo degenera nas mãos dos homens." Portanto, Deus é desculpado e a responsabilidade dos males cabe unicamente ao homem. Mas essa culpa pertence a este mundo, não ao "além", não é anterior à existência histórica empírica da humanidade, apareceu ao mesmo tempo que esta: por isso é que devemos buscar exclusivamente nesse terreno a solução e a libertação. Nenhum socorro vindo do alto, nenhuma assistência sobrena­ tural pode propiciar-nos essa libertação: somos nós próprios quem deve concretizá-la e encontrar a resposta. Essa conclusão indicará a Rousseau o novo caminho que ele percorrerá até o fim em suas obras políticas, sem se desviar jamais do rumo traçado. A teoria ético-política de Rousseau situa a responsabi­ lidade num lugar onde, até então, ninguém imaginara sequer procurá-la. O que constitui a verdadeira importância histórica e o valor sistemático de sua teoria é o fato de que ela criou um novo sujeito de "imputabilidade", que não é o homem individual mas a sociedade humana. O indivíduo como tal, ao sair das mãos da natureza, ainda não está em condições de escolher entre o bem e o mal. Abandona-se ao seu instinto natural de conser­ vação; é dominado pelo "amour de soi", mas este ainda não se converteu em amor-próprio (amour propre), o qual só se com­ praz e só se mitiga na opressão de outrem. A sociedade tem a

216

responsabilidade exclusiva por essa espécie de amor-próprio. Ê ela que faz do homem um tirano contra a natureza e contra si mesmo. Desperta necessidades e paixões que o homem natural jamais conheceu e coloca-lhe nas mãos os recursos sempre novos para saciá-las sem limites nem freios. A sede de dar o que falar de si, a ânsia de se distinguir dos outros: tudo isso nos torna incessantemente estranhos a nós mesmos, tudo isso nos trans­ porta, de certo modo, para fora de nós mesmos.215 Mas essa alienação estará verdadeiramente inscrita na natureza de toda sociedade? Não será possível conceber uma comunidade real­ mente humana que não tivesse necessidade de recorrer à força, à cupidez e à vaidade, que se alicerçasse inteiramente na sub­ missão de todos a uma lei reconhecida interiormente como coer­ civa mas necessária? Tais são as indagações que Rousseau for­ mula e que tratará de resolver no Contrato social. Na suposição de que desmorone a forma opressiva de sociedade que prevale­ ceu até os nossos dias e de que no seu lugar surja uma nova forma de comunidade ética e política, uma sociedade em cujo seio cada um, em vez de estar submetido à arbitrariedade d( outrem, somente obedecerá à vontade geral que ele conheceria t reconheceria como sua — não teria soado a hora da libertação? Mas é em vão que se aguarda ser emancipado desde fora. Ne­ nhum deus nos trará a alforria: todo homem deve tornar-se o seu próprio salvador e, num sentido ético, o seu próprio criador. A sociedade, sob a forma que ainda prospera, infligiu à huma­ nidade suas feridas mais cruéis: é ela quem pode e deve curar essas mesmas feridas pela sua própria renovação. Tal é a solução que a Filosofia do direito de Rousseau oferece para o problema da teodicéia.27 Foi ele, de fato, quem situou o problema num terreno inteiramente novo, fazendo-o passar do plano da metafí­ sica para o centro da ética e da política. Detenhamo-nos aqui por um instante a fim de examinar, uma vez mais, em seu conjunto, o desenvolvimento do problema

217

da teodicéia no século XVIII: um traço fundamental, simui ta neamente muito genérico e muito característico do pensamento dessa época, logo se destaca, a saber, que o século XVIII não formulou espontaneamente o problema da teodicéia. Ê um pro blema que ele herdou dos grandes sistemas do século XVII e que lhe foi transmitido sob uma forma condicionada por esses sistemas. De fato, parece que Leibniz, muito especialmente, ti­ nha esgotado todas as possibilidades conceptuais — a filosofia do Iluminismo nada acrescentou de essencial às suas idéias nem às suas perspectivas teóricas. É por isso que ela ainda fala intei­ ramente a linguagem da metafísica, serve-se de conceitos elabo­ rados pela metafísica. Mas dentro dessa concha formal instaura-se progressivamente um conteúdo novo. Partindo do domínio da teologia e da metafísica teológica, o problema adquire uma orientação intelectual especificamente nova. Essa mudança in­ terna realiza-se à medida que o conteúdo concreto da cultura espiritual da época iluminista penetra no problema e transfor­ ma-o a longo prazo. Assim se realiza, no domínio das "ciências morais”, o mesmo processo de “secularização" que já observa­ mos no domínio das ciências da natureza. As idéias teóricas elaboradas pela metafísica do século XVII ainda estão forte­ mente lastreadas no pensamento teológico, com toda a sua ori­ ginalidade e independência. Para Descartes e Malebranche, para Spinoza e Leibniz, não existe nenhuma solução do problema da verdade que não tenha a mediação do problema de Deus: o co­ nhecimento da essência divina constitui o princípio supremo do conhecimento donde decorrem, por via dedutiva, todas as outras certezas. Ora, no pensamento do século XVIII, o centro de gra­ vidade da questão desloca-se: a física, a história, o direito, o Estado, a arte escapam cada vez mais à dominação e à tutela da metafísica e da teologia tradicionais. Essas disciplinas dei­ xaram de esperar que a idéia de Deus as ratifique e legitime; pelo contrário, são propensas a modelar essa idéia segundo a

218

forma específica de cada uma delas, a contribuir para a sua determinação com uma participação decisiva. Portanto, não se rompeu totalmente a relação entre a idéia de Deus, por uma parte, e, por outra, as idéias de verdade, moralidade e direito, mas o sentido dessa relação foi mudado. Produziu-se, de certo modo, uma "mudança de sinal”: a idéia fundadora passa à con­ dição de fundada (Begründeten) e o que até então servia para justificar é agora o que exige uma justificação. E, finalmente, a própria teologia do século XVIII é arrastada nesse movimento. Ela renuncia de moto próprio ao primado que até então reivin­ dicava para si: em vez de situar no absoluto a ordem de valores, submete-se a certas normas provenientes de outros domínios, for­ necidas pela "razão” na medida em que esta representa a tota­ lidade das forças espirituais independentes. Assim se consumou, nesse domínio, a ruptura com o dogma do pecado original. A rejeição desse dogma constitui a marca característica da nova orientação da teologia do Iluminismo, tal como se desenvolveu especialmente na Alemanha, onde se encontram os seus repre­ sentantes mais importantes. Todos consideram a idéia de um peccatum originale transmitindo-se de geração em geração como perfeitamente absurda, uma ofensa aos princípios mais elemen­ tares da lógica e da ética. O que é deveras notável é que, de um modo geral, eles não abandonaram nem um pouco o terreno da dogmática como tal. Mesmo naqueles que tentam salvar os ele­ mentos constitutivos dessa dogmática à custa de algumas modi­ ficações e reinterpretações, a idéia de que o homem perdeu todo o poder por sua queda, que sem a graça divina ele é incapaz de exercer o bem e a verdade, é rechaçada sem hesitação. A polê­ mica contra Santo Agostinho prossegue, pois, ao longo de toda essa literatura "neológica", cujo tom sobe à medida que o tempo passa.28 Reimarus, em sua Apologia, empenha toda a sua energia para sustentar que o ato de pecado reside nos pensamentos, nos desejos ou nas obras, que ele está rigorosamente ligado, portan­

219

to, à consciência do sujeito atuante e não poderia transmitir-se fisicamente, passar de um sujeito a outro. E a mesma coisa vale para a salvação e a justificação: assim como outrem não pode cometer por mim uma falta grave, tampouco pode adquirir por mim o mérito moral. No desenvolvimento interno do protestan­ tismo uma importante mudança foi assim realizada. Num certo sentido, o combate prossegue entre Lutero e Erasmo mas, dessa vez, pendendo a favor do último. A profunda ruptura que tinha oposto a Renascença e a Reforma, o ideal humanista de liber­ dade e de dignidade humana, vê-se dessarte reparada. A época iluminista ousa de novo valer-se desse postulado fundamental que deflagrara, sob a égide da Renascença, a luta contra os gri­ lhões da Idade Média. Assim se realiza essa concepção em que Hegel, em sua Filosofia da história, vê a essência autêntica e a verdade do protestantismo. Ao reconciliar-se com o Humanismo, o protestantismo converteu-se na religião da liberdade. Enquan­ to o conflito em torno do dogma do pecado original devia con­ duzir na França a uma rigorosa separação da religião e da filo­ sofia, a idéia de protestantismo podia transformar-se na Alema­ nha até absorver as novas correntes intelectuais e as atitudes mentais que as tinham engendrado, até desmontar e abandonar a forma histórica do protestantismo herdada do passado para melhor valorizar a pureza do seu ideal primitivo.29 A idéia de tolerância e a fundação da “religião natural" Ê um princípio geral da filosofia iluminista, centenas de vezes citado sob diversas formas e com diversos propósitos, que os mais graves obstáculos com que nos deparamos na busca da verdade não são as insuficiências do nosso saber. Por outro lado, não há dúvida de que o nosso saber sofre com tais insuficiên­ cias, de que cada passo em frente da ciência nos coloca peno­

220

samente na presença de nossa incerteza e de nossas lacunas. Mas essa limitação não apresenta, na realidade, nenhum perigo — por muito pouco que tenhamos consciência dela. A ciência corri­ ge por si mesma as faltas que comete, em virtude do seu pro­ gresso interno, e os erros em que ela pode envolver-nos eliminamse naturalmente, desde que a deixemos seguir seu curso de maneira espontânea. Muito mais graves são os erros que, em vez de surgirem de uma insuficiência de saber, têm por causa uma falsa direção da pesquisa. O que mais se deve temer não é a falta mas a perversão. E essa perversão — inversão e falsi­ ficação dos verdadeiros critérios científicos — sobrevêm quando pretendemos antecipar o objetivo a alcançar, fixá-lo antes da investigação. O inimigo da ciência não é a dúvida mas o dogma. O dogma não é a ignorância pura e simples mas a ignorância que se arvora em verdade, que quer impor-se como verdade: eis o perigo que ameaça verdadeiramente o conhecimento em suas estruturas mais profundas. Pois já não se trata, nesse caso, de um erro mas de uma impostura, não de uma ilusão involun­ tária mas de uma mistificação na qual o espírito cai por sua própria culpa e na qual se enterra cada vez mais profundamente. E essa regra não é válida apenas para a ciência mas também para a fé. Com efeito, o que verdadeiramente se opõe à fé não é a incredulidade mas a superstição; pois esta afeta as próprias raízes da fé, polui a fonte donde jorra a verdadeira religião. Vemos, portanto, que a ciência e a fé enfrentam um adversário comum: não existe tarefa mais urgente do que a luta a travar contra esse adversário. É necessário que ciência e fé estejam unidas nessa luta: somente na base de seu mútuo acordo será possível repartir seus respectivos valores e determinar suas fron­ teiras respectivas. Bayle é o primeiro pensador a adotar nitidamente essa po­ sição. No seu Dictionnaire historique et critique, ele realizou a obra fundamental na qual todos os trabalhos ulteriores deviam

221

ir buscar seus princípios e suas justificações. Ê aqui que o cepticismo de Bayle se enraíza e que ele revela sua verdadeira fecundidade9 sua significação eminentemente positiva: "Não sei se não se poderia assegurar que os obstáculos de um bom exame vêm menos de que o Espírito está vazio de Ciência do que de estar repleto de preconceitos." Dessa frase, que se encontra no verbete "Pellison” do Dictionnaire, poder-se-ia fazer a divisa de toda a sua obra. Bayle acha por bem não tocar no conteúdo da fé — evita toda e qualquer crítica explícita desse conteúdo. A atitude que ele combate com todas as suas forças é aquela para a qual todos os meios são bons para consolidar a fé, aquela que amontoa confusamente verdades e quimeras, lucidez e precon­ ceito, razão e paixão, pondo como única condição que sejam uti­ lizáveis, de uma maneira ou de outra, no interesse superior da obra apologética. Com tais procedimentos, © conteúdo da fé não é salvo mas destruído, porquanto esse conteúdo só pode subsistir em sua pureza. O mal fundamental que cumpre combater não é, portanto, o ateísmo mas a idolatria, não a descrença mas a superstição. Essa máxima de Bayle é uma antecipação da tese central do enciclopedismo francês em matéria de crítica religiosa. Diderot refere-se-lhe assiduamente. No artigo "Pirronismo” da Enciclopédia, ele declara que Bayle tem poucos concorrentes na arte dos raisonnements e, sem dúvida, nenhum que o supere. Embora acumule dúvidas sobre dúvidas, não pára de progredir segundo um plano metódico; um artigo do seu Dicionário é um pólipo vivo que a si mesmo se fragmenta numa porção de outros pólipos, todos vivos e que se geram uns aos outros. O próprio Diderot não se cansa de repetir que a superstição é um pior des­ conhecimento de Deus e uma ofensa mais grave contra Deus do que o ateísmo, no sentido de que a ignorância está menos longe da verdade do que o preconceito.80 Compreender-se-á melhor o sentido e o conteúdo desse enunciado se recordarmos os pressu­ postos metodológicos e epistemológicos em que ele se baseia.

222

Eles já aparecem nitidamente em Descartes, ao lançar as pedras fundamentais do racionalismo. Descartes, com efeito, parte do princípio de que o conhecimento humano está sujeito às mais diversas ilusões, mas tem a obrigação de evitar que essas ilusões o desviem do caminho da verdade e o façam mergulhar no erro. Pois a ilusão provém dos sentidos ou da imaginação, ao passo que o erro significa uma falta de julgamento, e que o julga­ mento é uma livre operação do entendimento, a quem cabe toda a responsabilidade pelo ato de julgar. Só do entendimento de­ pende ceder ao impulso dos sentidos, abandonar-se às seduções da imaginação ou recusar-se a anuir àquele ou a estas. Ele pode e deve, se os dados de que dispõe são insuficientes para consti­ tuir um verdadeiro julgamento e atingir uma perfeita certeza, deixar em suspenso a sua decisão. Somente no caso de julgar com precipitação, de deixar-se levar a pronunciamentos sem dispor de premissas completas, é que irá fatalmente cair no erro e na incerteza, que não são apenas defeitos do entendimento mas refletem, sobretudo, uma vontade defeituosa. £ à vontade que cabe dirigir o curso do conhecimento, e a vontade possui o meio de evitar todos os passos em falso, que é ter sempre presente essa regra universal e absoluta de só pronunciar julgamentos ali­ cerçados em idéias claras e distintas. Ao reassumir o princípio cartesiano, o Iluminismo é levado a postular a regra que, segun­ do Kant, contém a essência autêntica da Aufklärung: "O Ilumi­ nismo representa o homem saindo da condição de menoridade em que se mantinha por sua própria culpa. A menoridade é a incapacidade de servir-se do seu entendimento a não ser sob a direção de uma outra pessoa. Diz-se que está em condição de menoridade por sua própria culpa quando a causa não é o defei­ to do entendimento mas só lhe falta a decisão e a coragem para usá-lo sem ser dirigido por quem quer que seja. Sapere aude\ Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimen­ to! Tal é a divisa do Iluminismo.” 31 Essa divisa explica por

223

que a filosofia do Iluminismo julga e aprecia de modo diferente as diversas circunstâncias suscetíveis de engendrar o erro. Todos os fracassos que o conhecimento sofre não são faltas: há aqueles que apenas exprimem os limites da nossa própria natureza e que, portanto, são necessários e inevitáveis. Esse ser a quem o próprio Deus impôs certos limites intransponíveis, como poderia ele responsabilizá-lo por manter-se dentro dos limites que assim lhe foram designados e por não almejar a onisciência? Temos que responder, não por tais limitações do nosso saber mas, pelo contrário, pela loucura de pretender libertarmo-nos delas e de ousar, com uma segurança dogmática, formular julgamentos so­ bre o universo e sua origem. A verdadeira descrença não se manifesta na dúvida — pelo contrário, na dúvida exprimem-se a prudência, a humildade simples e sincera do conhecimento — , mas naquela segurança afetada que se vangloria de sua própria opinião e tripudia sobre todas as outras. Num sentido ético e religioso, essas lacunas do saber, até mesmo as falhas e imper­ feições do pensamento, não contam aos olhos do Ser supremo. Diz Diderot: "O Autor da natureza, que não me. recompensará por ter sido um homem de espírito, tampouco me condenará às penas eternas por ter sido um néscio.” 32 O que conta, em con­ trapartida, o que deve figurar no registro ético, é essa fé "cega” que se fecha deliberadamente a toda investigação e se coloca em posição defensiva contra todo espírito de livre exame; uma fé que não se contenta em limitar o conteúdo do conhecimento mas quer ainda destruir nele a natureza, a forma e o princípio. Vê-se, pois, que se desconhece, que se interpreta de modo totalmente errôneo a tolerância cuja necessidade é proclamada pela filosofia iluminista, atribuindo-lhe um sentido puramente negativo. A tolerância é uma outra coisa muito diversa da reco­ mendação de uma atitude lassa e indiferente a respeito das ques­ tões religiosas. Somente em alguns pensadores insignificantes, de

224

última ordepi, é possível encontrar uma forma de defesa da tole­ rância que se resolve num indiferentismo puro e simples. No conjunto, é a tendência inversa a que predomina: o princípio de liberdade de crença e de consciência é a expressão de uma nova força religiosa positiva que, para o Século das Luzes, é realmente determinante e característica. A consciência religiosa adquire uma nova forma, a fim de se afirmar de modo claro e firme. Essa forma não podia realizar-se sem uma inversão com­ pleta do sentimento religioso e dos fins da religião. Essa mudan­ ça decisiva produz-se no momento em que, no lugar do pathos religioso que agitava os séculos precedentes, os séculos das guerras de religião, surge um puro ethos religioso. A religião não deve ser mais algo a que se está submetido; ela deve brotar da própria ação e receber da ação suas determinações essenciais. O homem não deve ser mais dominado pela religião como por uma força estranha; deve assumi-la e criá-la ele próprio na sua liber­ dade interior. A certeza religiosa deixou de ser a dádiva de uma potência sobrenatural, da graça divina; somente ao homem com­ pete elevar-se até essa certeza e nela permanecer. Desse princípio teórico decorrem, como de si mesmas, por uma ncessidade in­ terior, todas as conseqüências que o século XVIII dele extraiu, todas as exigências concretas e práticas que assumiu. Apresenta-se, porém, uma conseqüência que deve parecer bizarra a todos os que partem de uma concepção rotineira da época iluminista. Se existe um predicado de que o Iluminismo se vê atribuído ou que ele mesmo se atribui com perfeita convicção, é o de ser, se­ gundo parece, a época do intelectualismo puro, subscrevendo sem reservas ao primado do pensamento, da pura especulação teórica. Essa visão das coisas não é confirmada, entretanto, pela forma­ ção e desenvolvimento de seus ideais religiosos. Muito pelo contrário, é a tendência oposta a que nitidamente domina: sem dúvida, o pensamento iluminista esforça-se por fundar uma "re­ ligião nos limites da simples razão”, mas busca também, por

225

outra parte, e com empenho não menor, emancipar-se da domi­ nação do entendimento. O que é que ele não se cansa, justa­ mente, de censurar no sistema dogmático que tanto combate? De que lhe falta o próprio núcleo (Mittelpunkt) da certeza reli­ giosa, ao considerar que a fé consiste em ter por verdadeiras determinadas teses doutrinais e ao pretender encerrar a fé nos dogmas. Tal limitação não é possível nem desejável: faria da religião uma simples opinião, privando-a de sua virtude própria, que é prática e moral. Quando essa virtude é atuante, quando ela se manifesta em sua força e em sua verdade, estamos muito além das representações e dos conceitos religiosos. Essas repre­ sentações e esses conceitos nunca devem ser tomados por outra coisa senão o manto exterior de que se reveste a certeza religiosa. São complexos e ambíguos, mas não temos por isso que deses­ perar da unidade da religião, pois a diversidade apenas diz res­ peito aos sinais sensíveis, não ao conteúdo supra-sensível que busca nesses sinais uma figuração necessariamente inadequada. A teologia do Uuminismo professa, portanto, o mesmo princípio que Nicolau de Cusa formulou três séculos antes; adere com toda a firmeza ao partido de uma religião única dissimulada sob a diversidade dos ritos e conflitos de representação e de opinião. Mas, a partir da Renascença, o horizonte ampliou-se muito e é um círculo ainda mais vasto de fenômenos religiosos que ela quer englobar nesse mesmo princípio. Já no De pace fidei, o combate pela verdadeira religião desenrola-se não só entre cris­ tãos, judeus e muçulmanos, mas também com os pagãos, os tár­ taros e os citas, que não pretendem menos do que os outros participar do verdadeiro conhecimento de Deus. Entretanto, no século XVIII, são os povos do Oriente que retêm a atenção e exigem a igualdade de direitos para as suas convicções religio­ sas.83 Leibniz já citara a civilização chinesa; Wolff, num discurso sobre a filosofia chinesa, celebra Confúcio como um profeta de grande pureza moral e coloca-o a par do Cristo. Voltaire retoma

226

esse tema e converte-o no argumento supremo a favor do fato de que o próprio âmago da religião e da moralidade não depende das representações particulares da fé. Nas Cartas persas, de Montesquieu, a comparação entre o Oriente e o Ocidente rara­ mente se decide em favor deste último: a observação cândida e o senso crítico do persa descobrem por toda parte o arbitrário, o convencional, o contingente, no que, segundo a óptica do próprio país, passa por ser o próprio modelo da sabedoria e da santidade. Por esse meio foi criado um certo gênero literário que serviu depois, inúmeras vezes, para a crítica e a polêmica. Mas essa polêmica não pretendia ser, de maneira nenhuma, ape­ nas destrutiva; ela quer servir-se da destruição como de um meio de construção. Partindo da estreiteza e das limitações do dogma, o homem avança para a liberdade de uma consciência religiosa verdadeiramente universal. Diderot, em seus Pensamen­ tos filosóficos, forneceu desse sentimento da época a fórmula mais vigorosa e mais nítida: “Os homens baniram a Divindade dentre eles; relegaram-na para um santuário; as paredes de um templo limitam-lhe a visão; nada existe do outro lado. Que in­ sensatos sois! Destruam esses recintos que cerceiam as vossas idéias; ampliem Deus; vejam-no por toda parte onde ele está, ou digam que ele não existe.” 84 Essa luta pela "ampliação" da idéia de Deus em que o século XVIII reuniu todas as suas forças intelectuais disponíveis não precisa ser aqui descrita em deta­ lhe. Basta indicá-la em seus grandes traços, destacar-lhe os temas gerais. As armas dessa luta já tinham sido forjadas desde o século XVII: é uma vez mais o Dicionário de Bayle que abastece o arsenal de toda a filosofia iluminista. Nos escritos que publi­ cou contra Luís XIV por ocasião da revogação do Édito de Nantes, Bayle começa por uma reivindicação especial: o reco­ nhecimento da liberdade de crença e de consciência para os adeptos da Reforma; tal foi o primeiro objetivo da sua luta. Mas a amplitude da demonstração que ele consagra a essa reivindi-

227

cação supera de muito a sua tarefa imediata; suas posições tornam-se tão contundentes que geram o escândalo até entre os seus aliados e asseguram-lhe o surgimento de um adversário fanático na pessoa de Jurieu, um dos mestres da teologia reformada. Bayle, com efeito, insiste em afirmar que a sua apologia da liberdade religiosa não pretende servir a uma fé particular mas propõe-se a um fim universal, puramente filosófico, e que o princípio que ela proclama vale imperativamente para todos, sem a menor distinção de convicções religiosas. Ele denuncia a restrição como absurda e intolerável num sentido puramente ético, em função dos critérios da razão moral: nenhuma auto­ ridade religiosa tem, de uma vez por todas, o direito de recorrerlhe. Cumpre manter uma distinção radical entre moralidade e religião. Quando elas entram em conflito, quando o testemunho das Escrituras contradiz diretamente o da consciência moral, convém resolver o problema de tal maneira que seja mantido um primado absoluto para a consciência moral. Se esse primado for abandonado, terá que se renunciar também a todo critério de verdade religiosa e ficamos, nesse caso, desprovidos de toda e qualquer referência para julgar o valor de uma pretensa reve­ lação e até mesmo, no interior da religião, para distinguir a verdade da impostura. Portanto, importa rejeitar o sentido lite­ ral da Bíblia toda vez que aí se encontra expressa a obrigação de um ato que contradiz os princípios elementares da moral. Ê nesses princípios e não na simples transmissão do sentido lite­ ral que residem as verdadeiras máximas imprescritíveis da exe­ gese, aquelas que jamais devem ser descartadas em proveito de um sentido literal pretensamente assegurado. "Ê preferível re­ jeitar o testemunho da crítica e da gramática do que o da razão.” O fio condutor de toda a interpretação da Bíblia será, portanto, esta regra: "Todo o sentido literal que contém a obrigação de praticar crimes é falso.” 3R A máxima reguladora está assim pos­ tulada, a filosofia do Iluminismo nada tinha a acrescentar ao

228

seu conteúdo; bastava aplicá-la até as suas últimas conseqüên­ cias para se atingir o objetivo. No entanto, restava ainda uma tarefa por realizar, da qual Voltaire se encarregou: a de trazer para a luz o tesouro soterrado no Dicionário de Bayle sob uma avalanche de erudição histórica e teológica. O princípio da crí­ tica ética da Bíblia, que tinha sido tão veementemente comba­ tido no século XVII e tão severamente condenado pelos doutri­ nários ortodoxos, tanto do lado protestante quanto do lado cató­ lico, pertence doravante, graças a Bayle, ao acervo comum das aquisições do século. Quando, mais tarde, Voltaire fizer um exame retrospectivo desse conflito, em 1763, no seu Tratado sobre a tolerância, isso ocorrerá com o sentimento inabalável de uma vitória alcançada, enfim, após luta acesa. Vivemos numa época, declara ele em substância, em que a razão penetra cada dia mais nos palácios dos nobres e nas lojas dos burgueses e dos mercadores. Esse progresso não podia ser impedido: os frutos da razão alcançarão sua plena maturidade. Pois é uma lei do mundo intelectual que a razão só existe e subsiste se for re­ criada dia após dia. "Os tempos passados são como se nunca tivessem existido. É preciso partir sempre do ponto onde se está e daquele a que as nações chegaram." Em seu laconismo e em sua exatidão, essa fórmula é daquelas que só Voltaire sabe im­ provisar: ela condensa, em seu brilho, todas as convicções e tendências da filosofia iluminista. Aliás, o Tratado sobre a tole­ rância é notável pela seriedade, serenidade e realismo absoluto com que Voltaire trata o assunto, qualidades em que ele não é pródigo nos seus outros escritos sobre a religião. Como ele tem em vista, nesse caso, um objetivo perfeitamente concreto, e ao qual pretende servir, porquanto luta por uma revisão do pro­ cesso de Jean Calas, o seu estilo adquire uma austeridade e uma força muito especiais. Renuncia a fazer espírito e entrega-se menos do que em outros escritos às digressões polêmicas. O ethos pessoal que se esconde atrás das invectivas satíricas de

229

Voltaire raramente foi levado a uma expressão tão pura e tão vigorosa quanto nesse escrito da velhice. A tolerância, que os fanáticos da religião ousam denunciar como um erro perigoso e uma exigência monstruosa, é apresentada por Voltaire como "o apanágio da razão". Não se trata de uma exigência especial que seria apresentada pela filosofia: exprime o próprio princípio da filosofia, contém sua essência e sua justificação. Ora, é justa­ mente sobre esse ponto que a filosofia se irmana à religião. Ê obra da filosofia e o seu maior triunfo que o tempo das guerras religiosas tenha agora findado, que o judeu, o católico, o lute­ rano, o grego, o calvinista e o anabatista vivam juntos fraternamente e sirvam de maneira análoga ao bem comum. "A filoso­ fia, só a filosofia, essa irmã da religião, desarmou as mãos que a superstição mantinha por tanto tempo ensangüentadas; e o espírito humano, ao despertar de sua embriaguez, espantou-se com os excessos a que fora arrastado pelo fanatismo." 36 Ainda em nossos dias, não faltam os iluminados e os fanáticos; mas deixem a razão agir e o mal será curado, lenta mas inexoravel­ mente. "A razão é suave, ela é humana; ensina-nos a tolerância e aniquila a discórdia; reforça a virtude e torna amável a obe­ diência às leis, em vez de lhes obedecer pela coação." Por esse lado, uma vez mais se manifesta, portanto, que os valores intelectuais puros são progressivamente sentidos como insuficientes. A verdade da religião não pode ser estabelecida segundo critérios puramente teóricos: não se pode decidir sobre o seu valor pondo de parte a sua eficácia moral. É esse o signi­ ficado em Lessing do apólogo do anel: a verdade última e profunda da religião só se prova desde o interior. Toda a de­ monstração extrínseca é insuficiente, quer se trate de uma demonstração empírica, apoiando-se em fatos históricos, ou de uma demonstração lógico-metafísica, escorada em razões abstra­ tas, visto que, em definitivo, a religião é sempre e tão-somente

230

o que age; a verdade de sua essência só se realiza no sentido e na ação. Tal é a pedra de toque que atesta a autenticidade de toda religião. Diderot retomará esse argumento capital para provar a superioridade da religião natural sobre todas as reli­ giões "positivas”. É ocioso, observa ele inicialmente, esperar uma decisão direta da competição que opõe as diversas religiões his­ tóricas, pois cada uma delas reivindica só para si uma superio­ ridade absoluta que redunda na rejeição dogmática de todas as outras crenças. Mas essa simples negatividade tem, não obstante, seus limites. Por muito exclusiva, por mais profundamente hos­ til que toda religião possa ser em relação às outras, nenhuma tem, contudo, o poder nem a vontade de romper completamente os vínculos que a unem à religião natural. A essa terra natal de toda religião, cada uma sente-se ligada de algum modo e nenhu­ ma jamais se deixará desenraizar de todo. Apresentemos, pois, a uma ou a outra das diversas doutrinas religiosas a questão de saber à qual das outras doutrinas, abstração feita, bem enten­ dido, da sua própria supremacia, ela‘atribui o segundo lugar. A resposta ^ue obtemos então é perfeitamente esclarecedora: esse segundo lugar nunca é reservado a uma qualquer das outras religiões positivas mas sempre e unicamente à religião natural. A causa é, portanto, julgada, para quem, pelo menos, quer considerá-la sem prevenção, desde um ponto de vista puramente filo­ sófico. Sabe-se agora onde residem a universalidade e a eterni­ dade verdadeiras: "Tudo o que começou terá um fim; e tudo aquilo que não teve começo não findará. Ora, o cristianismo começou; ora, o judaísmo começou; ora, não existe uma só re­ ligião sobre a terra cuja data não seja conhecida, exceto a reli­ gião natural; portanto, somente ela não acabará, e todas as outras passarão”. Judeus e cristãos, maometanos e pagãos, todos são os heréticos e os cismáticos da religião natural. Esta última é, portanto, a única suscetível de uma verdadeira prova, pois a verdade da religião natural está para a religião revelada como

231

o testemunho que me dou a mim mesmo está para o testemunho que recebo de outrem, e aquilo que sinto imediatamente em mim está para o que conheci através de outrem; "como o que se encontra em mim escrito pelo dedo de Deus está para o que homens fúteis, supersticiosos e mentirosos gravaram no perga­ minho e no mármore; como o que contenho em mim e por toda parte encontro inalterado está para o que se encontra fora de mim e muda com os climas; como o que aproxima o homem civilizado e o bárbaro, o cristão, o infiel e o pagão, o filósofo e o povo, o sábio e o ignorante, o ancião e a criança, está para o que, por outro lado, distancia o pai do filho, arma o homem contra o homem, expõe o sábio e o erudito ao ódio e à perse­ guição do ignorante e do fanático”. Ê em vão que se objetará ainda que, sendo a mais antiga, a religião natural também deve ser a mais imperfeita: donde veio a idéia de que o primitivo não é o mais puro, o autêntico — o a priori de toda religião? E mesmo admitindo o princípio de uma efetivação cabal, de um aumento de perfeição no transcurso da história, não é coisa certa que o debate desenrole-se para vantagem dessa ou daquela reli­ gião positiva e de seus artigos de fé. Onde poderíamos obter a certeza de que chegamos ao fim desse desenvolvimento? Se é verdade que a lei natural pôde ser efetivada pela lei mosaica e a lei mosaica pela lei cristã, por que esta última não seria, por sua vez, efetivada por uma outra que Deus não teria ainda reve­ lado aos homens?87 Tais são as teses de Diderot em Da suficiência da religião natural: vê-se a que ponto elas estão aparen­ tadas com as que Lessing sustentará. É igualmente em Lessing que Diderot nos faz pensar quando distingue estritamente entre provas históricas e provas racionais, e ao insistir cuidadosamen­ te em que os testemunhos de facto, por muito seguros que pos­ sam parecer, jamais alcançam um grau de certeza suficiente para serem usados como provas de verdades eternas e necessárias.88 Assim se encontra cada vez mais abalada a força das provas

232

teóricas da existência de Deus sobre as quais a teologia e a metafísica do século XVII tinham alicerçado o seu sistema: o centro de gravidade da certeza religiosa desloca-se para um ponto onde esse gênero de prova é inaplicável e não apresenta mais, aliás, qualquer espécie de interesse. A mesma tendência fundamental manifesta-se, no essencial, no desenvolvimento do deísmo inglês, apesar da complexidade e das flutuações das diversas argumentações. O deísmo é, em primeiro lugar, um sistema rigorosamente intelectualista que quer banir os mistérios, os milagres, os segredos da religião a fim de colocá-la sob a luz clara do saber. Christianity not mysterious, o simples título da obra de Toland (1696), basta para indicar o tema que passou a ser incessantemente debatido no seio do movimento deísta. A importância filosófica do deísmo depende, sobretudo, do novo princípio que sustenta na posição do pro­ blema religioso. A questão do conteúdo da fé, declara-se logo de início, é indissociável da questão de sua forma: as duas questões devem ser resolvidas simultaneamente. A questão não se estriba apenas no conteúdo da verdade desse ou daquele dogma; ela envolve também o modo da certeza religiosa como tal. Toland pensa poder apoiar-se em Locke, poder introduzir diretamente suas idéias e os princípios da teoria do conhecimen­ to de Locke no problema da religião. O que vale para o conhe­ cimento em geral não deve, com efeito, aplicar-se igualmente ao conhecimento religioso em particular? Locke definia o ato de conhecer em geral como o ato de adquirir consciência de um acordo ou de um desacordo existente entre as idéias. Resulta dessa definição que o conhecimento contém, por sua própria natureza, uma relação e que, por conseguinte, os termos dessa relação devem, antes de tudo, ser dados à consciência e clara­ mente compreendidos sob uma forma ou outra. Se os termos que a fundamentam não são compreendidos, a própria relação perde

233

todo o seu significado. Essas considerações puramente metodo­ lógicas fornecem, segundo Toland, aos objetos da fé religiosa um princípio essencial e uma limitação necessária. Está excluída a transcendência absoluta desses objetos: como poderia a nossa consciência cognoscente, crente e judicativa manifestar-se a res­ peito de um objeto se esse objeto não estivesse, de alguma ma­ neira, presente, se não fosse representado por um fenômeno qualquer? O "irracional” absoluto, ultrapassando o entendimen­ to humano, não comporta justamente uma tal "presença”: logo, é tão impossível afirmar que ele ê quanto determinar o que ele é. Se se objeta que se pode perfeitamente estar seguro da existência de uma coisa sem conhecer um só predicado dessa coisa, sem que se possa dizer nada acerca de sua natureza, tal argumento não se sustenta, visto que, mesmo que essa espécie de conheci­ mento fosse possível, qual significado poderia ele ter para nós? A menos que se pretenda que a fé resulte em si mesma total­ mente vã e absurda, é imprescindível que o seu objeto possua um sentido qualquer, ou seja, que comporte certas determina­ ções que se "compreendem”, que são claramente inteligíveis. O que é misterioso, de todo? os pontos dc vista, o que escapa por princípio a toda a compreensão deve, portanto, permanecer es­ tranho tanto à fé quanto ao saber. "Quem poderia vangloriar-se de ser mais sábio do que o seu vizinho porque sabe de ciência infalível que existe na natureza algo que tem o nome de Blictri, ignorando, porém, no que consiste esse Blictri”? 39 Toland con­ clui que o mistério só pode existir num sentido relativo, nunca absoluto. Quer indicar dessa maneira um conteúdo inacessível a um certo modo de entendimento, não um conteúdo que ultra­ passa, em geral, todas as possibilidades de entendimento. Quan­ to à palavra "mistério”, deve ter significado originariamente uma doutrina que, sem contradizer por isso a razão, continha em si uma verdade conhecida que, entretanto, por um motivo qualquer, deveria manter-se secreta para uma parcela da huma­

234

nidade. A idéia de revelação (Ojjenbarung) não se opõe, por­ tanto, à de religião natural no sentido em que uma e outra se distinguiriam por seus conteúdos específicos. Não é o conteúdo que elas manifestam o que as distingue mas a natureza e o modo dessa manifestação. A revelação não é uma causa específica de certeza mas, simplesmente, uma forma particular de comunica­ ção de uma verdade, cuja prova final cumpre buscar na razão. Em Christianity as old as the Creation (1730), Tindal parte do mesmo princípio. Começa por salientar que religião natural e religião revelada não se distinguem absolutamente por suas respectivas substâncias mas tão-só pela maneira como elas são conhecidas dos homens: uma é a manifestação interior; a outra, a manifestação exterior da vontade de um ser onisciente e infi­ nitamente bom. Para que um tal ser possa verdadeiramente ser pensado, temos que nos desfazer de todas as restrições, de todas as limitações do antropomorfismo. Se Deus dissimulasse uma parte qualquer da sua essência e da sua potência, se reservasse uma e outra para um tempo e um povo determinados, à custa de outros, não estaria ele justamente nesse caso manifestando tal limitação? Uma vez que Deus é eternamente o mesmo e que a natureza não é menos una e imutável, é necessário que a reve­ lação dissemine sua luz igualmente por todos os lados. Deus não seria Deus se pudesse, como quer, por exemplo, o dogma da "graça eletiva'1, dissimular de algum modo a sua própria natu­ reza ao esclarecer apenas uma parte da humanidade, abando­ nando a outra às trevas e à cegueira. O mais importante e essencial critério para a autenticidade de toda revelação só pode ser, portanto, a universalidade que a eleva acima das limitações locais e temporais. O cristianismo é verdadeiro no sentido e na medida em que preenche essa condição primordial. Existe e subsiste por não estar vinculado a nenhum espaço nem a ne­ nhum tempo particulares — e por ser tão velho quanto o mundo. Entre a lei cristã e a lei natural não existe, quanto ao conteúdo,

235

a menor oposição: a lei cristã quer apenas ser a reproclamação do que a lei natural tinha estabelecido e prescrito. Essa nova proclamação (a republicaiion of the law of nature) dirige-se ao conhecimento do homem; mas, sobretudo, tem em vista a sua moralidade. Por conseguinte, o cristianismo representa a reve­ lação verdadeiramente infalível, aquela que supera todas as outras em valor e em certeza. Assim, Tindal avizinha-se da defi­ nição que será ulteriormente retomada ipsis verbis por Kant em Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft [A reli­ gião nos limites da simples razão]. Segundo Tindal, a religião consiste em reconhecer nos nossos deveres os mandamentos de Deus, em relacionar normas morais de uma validade e de um alcance universais com o seu autor, considerando-as a expressão da sua vontade. Portanto, mesmo no desenvolvimento do deísmo inglês, o centro de gravidade está agora deslocado no plano puramente intelectual para o da "razão prática”: o deísmo "mo­ ral" tomou o lugar do deísmo "construtivo".40 A extraordinária influência que o deísmo inglês exerceu sobre o conjunto da vida intelectual do século XVIII assenta essencialmente nessa nova orientação. A considerar apenas o seu conteúdo teórico, a intensidade dessa influência é dificilmente concebível. Entre os mais destacados pensadores desse movimen­ to, nenhum possui, com efeito, uma verdadeira profundidade, um cunho verdadeiramente original — e os argumentos pura­ mente teóricos pelos quais o deísmo trata de apoiar a defesa dos seus pontos de vista são, com freqüência, contestáveis e restringem-se a meias verdades. Mais do que todos esses argumentos, o que causou uma fortíssima impressão na atitude do deísmo foi a sincera vontade de verdade e a seriedade moral com que abor­ dou a crítica do dogma. É aí que reside a sua potência especí­ fica, aquela que lhe incute um impulso interior. Bayle, que se situa no ponto de partida do movimento deísta, já tinha reco­ nhecido com nitidez essa situação, e por isso profetizou a vitória

236

do ethos deísta. "A nossa época" — assim escreveu no seu comentário contra a revogação do Édito de Nantes — "está repleta de espíritos fortes e de deístas. Há quem se surpreenda mas, quanto a mim, o que causa surpresa é que não existam mais, em face uas devastações causadas no mundo pela religião, e a extinção que ela acarreta pelas conseqüências quase inevitá­ veis de toda sorte, ao autorizar para sua prosperidade temporal todos os crimes imagináveis, o homicídio, a extorsão, o exílio, o rapto etc., os quais geram uma infinidade de outras abomi­ nações: a hipocrisia, a profanação sacrílega dos sacramentos etc." 41 Na origem do deísmo encontramos, primeiro, uma ati­ tude de revolta em relação ao espírito das guerras de religião dos séculos passados; uma nostalgia profunda dessa pax fidei que a Renascença tanto ambicionara e prometera mas não lograra estabelecer em parte alguma. Não é, evidentemente, nas guerras de religião que Deus se nos revela em sua essência e em sua verdade mas unicamente na paz da fé — segundo a sólida convicção deísta. Deus é bondoso demais para ser o autor de coisas tão perniciosas quanto as religiões positivas, as quais con­ têm a semente inextirpável da guerra, dos massacres, das injus­ tiças — , conforme reconhece a argumentação de Bayle. Na Ale­ manha, é também a esse tema que o deísmo deve a continuidade de sua penetração; na história das idéias alemãs do século XVIII, pode-se acompanhar de ano a ano o avolumar da onda deísta. Nas revistas, a bibliografia e as resenhas críticas das obras dos "livres-pensadores ingleses" passam a merecer um capítulo es­ pecial e regular.42 Mas é verdade que a luta pelos direitos da "religião natural" e pelas relações a estabelecer entre razão e revelação nunca se revestiu na Alemanha da acuidade que co­ nheceu nos círculos intelectuais franceses. Encontrou, porém, um outro adversário na Alemanha: não apenas uma ortodoxia e uma hierarquia eclesiástica esforçando-se, com toda a sua auto­ ridade e toda a sua sede de dominação, por reprimir o livre

237

movimento do pensamento; sua tarefa consiste, antes, cm dar flexibilidade a um sistema religioso que já contém os numerosos germes de um novo modo de pensar. A filosofia leibniziana de­ sempenha na Alemanha o papel de um meio intelectual onde se realiza a evolução do pensamento religioso e esse meio tem o poder de abarcar os pensamentos mais antagônicos, de aproxi­ má-los e de reconciliá-los. A tendência profunda da filosofia de Leibniz, a tendência para a "harmonia”, permanece viva nesse sentido. No sistema de Christian Wolff tampouco se chega nunca a uma separação brutal entre o conteúdo da fé e o do saber, entre revelação e razão. Trata-se sempre, pelo contrário, de pon­ derar cuidadosamente os respectivos direitos de um lado e de outro e de os destrinçar. Sem dúvida, chega-se a contestar, como em Locke e Leibniz, o contcúdo da fé por sua irracionalidade, mas ninguém pretende jamais que esse conteúdo possa ser obra exclusiva da razão e não comportar nenhum elemento supraracional. Razão e revelação são reconhecidas como fontes origi­ nárias do conhecimento: longe de se combaterem, elas devem completar-se, persuadir-se de que, de sua cooperação, resultará um conjunto completo, uma significação única da verdade reli­ giosa. Não se trata de incitar essas duas forças a combaterem-se ou a rivalizarem mas de associá-las a fim de que seu acordo se torne manifesto. No seio da escola wolffiana havia, portanto, amplo espaço para uma ortodoxia que conservava uma fé inaba­ lável na revelação, ainda que pouco a pouco se modificasse a forma sob a qual essa fé era apresentada e cada vez mais se im­ pusesse a necessidade de um método demonstrativo.43 A tendên­ cia dos autênticos teólogos "modernos" na Alemanha — a cha­ mada "neologia” representada por homens como Semler, Sack, Spalding, Jerusalem e outros — vai muito além, sem dúvida, desse simples resultado. A razão não serve apenas para sustentar e provar formalmente um conteúdo de fé já dado e confirmado por outras fontes; a ela se recorre também para efetuar a de-

238

monstração desse mesmo conteúdo, afastando do dogma todos os elementos que não são suscetíveis de ser assim demonstrados e esforçando-se, através de pesquisas de história dogmática, por denunciá-los como aditamentos ulteriores, estranhos à pureza ini­ cial da fé. O conteúdo da revelação é assim substancialmente reduzido, ao mesmo tempo em que a própria idéia de revelação ainda permanece intata. Entretanto, ela já não tem outro papel senão o de confirmar e sancionar precisamente aquelas verdades que são evidentes para a razão e se harmonizam plenamente com esta. De resto, à demonstração stricto sensu, à prova propria­ mente silogística, opõe-se cada vez mais a prova empírica que, do seu lado, tende a procurar seus fundamentos mais nas certezas íntimas do que em tal ou tal fato histórico. "A minha experiência é a minha prova”, diz Jerusalem. E a experiência essencial, na qual devem apoiar-se todas as provas da religião, é essa paz da alma que nos torna mais ditosos do que jamais poderia ser con­ seguido por essa faculdade puramente teórica que é a razão.44 A autoridade dessa instância pretensamente "objetiva” é recusa­ da pelo apelo à subjetividade como princípio autêntico e verda­ deiro de toda a certeza religiosa, de modo que há apenas um passo mais a dar para eliminá-la explicitamente. Esse passo será dado pelo subseqüente racionalismo teológico, que chegará a in­ timar o conteúdo da fé, como um todo, a comparecer perante o tribunal da razão e a negar a necessidade da revelação como fonte específica de conhecimento. Tinha sido assim que a exi­ gência fundamental do deísmo vencera a resistência da própria teologia e a penetrara totalmente. Quando Sack declarou, certo dia, que a revelação era o "telescópio da razão”, sem o qual esta jamais poderia, ou só obscuramente poderia, discernir as verdades mais importantes da religião, Reimarus pôde retorquirlhe que até mesmo essa comparação tem seus limites. Se é certo que os órgãos da percepção tornam-se mais penetrantes graças ao telescópio e ao microscópio, é óbvio que não podem ser su-

239

plantados por esses instrumentos, os quais são perfeitamente inú­ teis sem o dom natural da visão; da mesma forma, no domínio espiritual, todo saber deve, em definitivo, ser relacionado e afe­ rido pelas faculdades naturais do espírito.45 Foi assim que o movimento deísta rompeu finalmente todos os diques e levou de roldão todas as defesas que se tentava opor-lhe. Sua vitória parecia não poder tardar, apesar de todos esses esforços coligados contra ele e o crescente fluxo de lite­ ratura polêmica e apologética. Mas eis que de súbito o sistema ameaçado da ortodoxia recebeu uma nova e inesperada ajuda. Um dos adversários mais obstinados desse sistema foi quem, ino­ pinadamente, passou a fazer causa comum com ele. Com efeito, não é o dogmatismo teológico que rechaça os assaltos do deísmo e detém seus avanços, mas o mais radical cepticismo filosófico. Na Inglaterra, Samuel Clarke acabava de empregar toda a sua acuidade intelectual para deduzir rigorosamente de princípios universais o conteúdo inteiro da fé cristã.46 O próprio Voltaire não escondeu sua admiração pela sagacidade do autor: Clarke, declara ele em sua Carta inglesa, é uma "verdadeira máquina de raciocinar” (une vraie machine à raisonnements), apropriada para as tarefas mais difíceis.47 E Voltaire jamais desdisse essa sua apreciação: não chegou até, no Tratado de metafísica, a colocar Clarke a par de Locke como um dos primeiros "artesãos da ra­ zão"? 48 É bem verdade que todo esse luxo de provas parece resvalar sobre o deísmo sem o arranhar, e torna mais visíveis, pelo contrário, as fraquezas da ortodoxia. Na sua defesa do "livre pensamento”, Anthony Collins observa ironicamente que ninguém duvidara jamais da existência de Deus antes de Clarke ter decidido provar essa existência.40 Entretanto, onde o lógico e o metafísico fracassaram, vai triunfar o adversário irredutível de todo dogmatismo lógico e metafísico. É Hume quem vai co­ locar o deísmo diante de uma nova dificuldade e desse modo que­ brar seu predomínio. Para fundar o conceito de "religião natu-

240

ral", o deísmo parte, com efeito, da idéia de que existe uma "natureza humana”, por toda parte idêntica a si mesma, dotada de certos conhecimentos fundamentais tanto do gênero teórico quanto prático, que são para ela absolutamente certos. Contudo, onde iremos encontrar essa natureza? Será um fato empirica­ mente dado? Será que não passa, talvez, de uma hipótese? E o defeito fundamental do deísmo não consiste em confiar, sem prévia reflexão, nessa hipótese e em guindá-la, por sua parte, à categoria de um dogma? É contra esse dogma que se ergue a crítica de Hume. Ele não ataca o deísmo nem do lado da razão nem do lado da revelação: resolve simplesmente apreciá-lo se­ gundo o critério da experiênca, do puro conhecimento dos fatos. Convence-se então de que o orgulhoso edifício do deísmo assen­ ta em alicerces de barro: a "natureza humana” sobre a qual se pretendia fundar a religião natural não passa de mera ficção. A experiência revela-nos essa natureza sob uma luz muito diferente daquela que inspirava os esforços construtivos do deísmo: não um tesouro de conhecimentos fundamentais, de verdades a priori, mas um fervilhar confuso de instintos, não um cosmo mas um caos. À medida que se vai penetrando mais profundamente nessa natureza humana, à medida que a descrevemos com maior exa­ tidão, vemo-la perder toda a aparência de ordem e de raciona­ lidade. Hume já chegara a essa conclusão no domínio das nossas representações teóricas. Temos o costume de considerar o "prin­ cípio de causalidade” como a regra suprema de todo o nosso conhecimento teórico, acreditamos que esse princípio confere a todo o nosso saber sua coesão e seu rigor internos. Mas, quando se analisa mais precisamente os conceitos, essa pretensão reduz-se a nada, dado que a própria idéia de causa, que deveria garantir o mais firme ponto de apoio para o nosso conhecimento, é incapaz de produzir por sua própria conta o mínimo funda­ mento objetivo. Ela não possui nenhuma evidência imediata, ne­ nhuma significação nem necessidade a priori; ela própria não

241

passa de ser o produto do jogo das nossas representações, as quais, longe de se interligarem segundo princípios objetivamente ra­ cionais, limitam-se a acompanhar em conjunto o jogo da imagi­ nação, a obedecer às suas leis mecânicas. A mesma crítica vale, a fortiori, para as nossas representações religiosas. Seu conteúdo pretensamente objetivo, seu sentido sublime redundam em pura ilusão a partir do instante cm que as relacionemos com suas ver­ dadeiras fontes, em que nos representemos de que maneira elas surgem e desenvolvem-se. Não descobriremos então nelas nem conteúdo especulativo nem conteúdo ético original. Não é a me­ ditação sobre os princípios do Ser e as causas da ordem do mundo nem a devoção a um Ser de uma sabedoria e de uma bondade infinitas o que provocou as primeiras representações de Deus, o que as fundamentou e justificou. Essa espécie de considerações "filosóficas” não tem poder nenhum sobre as mul­ tidões. O homem não começou como filósofo: é ilusório e ocio­ so esperar que ele acabe filósofo. Ele nada entende de um reino onde predomina a "razão" abstrata, porquanto está submetido ao poder de seus instintos e de suas paixões. São estes que engen­ dram e alimentam os primeiros dogmas e as primeiras represen­ tações religiosas, e neles permanecem duradouramente enraiza­ dos. Nem o pensamento nem a vontade moral os formaram, e muito menos os alimentam. Foi pela esperança e pelo medo que os homens foram inicialmente conduzidos à crença e nesta fi­ caram constantemente retidos. Por aí penetramos, enfim, na ver­ dadeira camada originária da religião. Não existe fundamento racional nem ético para a religião: ela é, pura e simplesmente, uma causa antropológica. Nasce do medo de potências sobrena­ turais e do desejo do homem de congraçar-se com elas, de aco­ modar-se à vontade delas. O jogo de paixões e de imaginação do­ mina e dirige as engrenagens da nossa vida religiosa. A supers­ tição, o medo dos demônios constituem as verdadeiras raízes da idéia de Deus. E não se creia poder escapar a essa conclusão ci-

242

tando as religiões superiores, puramente "espirituais", que se elevam tão alto acima das representações "primitivas” de Deus: esse argumento é reduzido a zero desde que, em vez de consi­ derar a religião em sua transposição racional, sob sua indumen­ tária idealista, a vejamos em sua prosaica realidade empírica. A religião por toda parte oferece o mesmo rosto, desde os seus primórdios até a sua mais recente realização, desde os seus piores aviltamentos até o seu ápice. As mesmas forças psíquicas que prevaleciam quando das primeiras manifestações da religião ain­ da estão agindo em seu curso subseqüente, mantendo-se vivas em todo o seu desenvolvimento. A superstição assume formas dife­ rentes, mais elaboradas, mas sua natureza íntima não mudou. Ousemos erguer o véu de palavras, de conceitos abstratos, de idéias morais com que se cobrem as religiões "superiores" e cons­ tataremos que a religião tem por toda parte o mesmo rosto. O credo quia absurdum impõe sempre e em toda parte o seu anti­ go poder. Existe pior absurdo lógico do que o dogma da transubstanciação? Algo moralmente mais funesto, mais pernicioso para a sociedade humana, do que os artigos de fé das religiões positivas? Nada distingue uma religião "superior" das inferio­ res, a não ser que um terceiro motivo se junte à esperança e ao medo, motivo esse oriundo, sem dúvida, de um certo refina­ mento intelectual, mas que, de um ponto de vista moral, repre­ senta mais um retrocesso do que um progresso. É o motivo da adulação (Schmeichlei) que impele os homens a elevar seus deuses acima de toda medida de perfeição terrena, a atribuir-lhes predicados cada vez mais sublimes. Entretanto, numa análise mais minuciosa, interrogando mais a conduta dos homens do que suas idéias, verifica-se que, deixando de lado toda essa subli­ midade espiritual e moral, tudo permanece no estado antigo. O Deus, todo bondade, sabedoria e justiça do cristianismo, tomouse, no retrato que o calvinismo dele traçou, um tirano tão cruel, pérfido e arbitrário quanto todos aqueles que as religiões primi­

243

tivas sempre temeram e adoraram. A deisidaemonie, o temor dos demônios, está na base de todas as representações religiosas su­ periores, e esse sentimento nada ganhou, por certo, ao deixar de manifestar-se abertamente, ao tentar dissimular de modo insi­ dioso — e ao dissimular-se a si mesmo — todas as fraquezas que as religiões primitivas ingenuamente divulgam.50 Tal é a “história natural da religião” esboçada por Hume, que assim pensou eliminar de uma vez por todas a idéia de “religião natural”, denunciá-la como simples divagação filosó­ fica. Em suma, era a própria filosofia que livrava o sistema da fé revelada do seu mais perigoso adversário. Mas, para esse mesmo sistema, a análise realizada por Hume representava uma esto­ cada não menos mortal. O cepticismo tinha, evidentemente, a última palavra tanto em relação à religião revelada quanto em relação à religião natural. “Nobre privilégio da razão humana o de chegar ao conhecimento do Ser supremo, o de poder con­ cluir, mediante as obras visíveis da natureza, pela existência de um princípio tão sublime quanto o do supremo Criador! Mas observemos o reverso da medalha. Atentemos para a maior parte das nações e das idades. Examinemos os princípios religiosos que prevaleceram, de fato, no mundo. Teremos grande dificuldade em persuadir-nos de que sejam outra coisa senão o fruto dos de­ vaneios de espíritos doentes. . . Não há absurdos teológicos, por mais flagrantes que sejam, que não tenham sido alguma vez acei­ tos por homens de uma inteligência tão vasta e cultivada quanto possível. Não há preceito religioso, por mais rigoroso e austero, que não tenha sido adotado pelos mais voluptuosos e perversos dos homens. .. Tudo isso é um quebra-cabeça, um enigma, um inexplicável mistério. Dúvida, incerteza, abstenção de julgamen­ to, é tudo o que parece resultar de um exame mais profundo dessa questão. Mas tamanha é a fragilidade da razão humana e tão irresistível é o contágio da opinião, que temos grande difi­ culdade em manter essa dúvida tão deliberada, a menos que

244

se estenda o nosso olhar até as superstições mais diversas a fim de colocá-las em conflito umas com as outras, enquanto nós pró­ prios, durante essas furiosas desavenças, vamos encontrar a nos­ sa felicidade na fuga para as regiões aprazíveis, embora um tanto obscuras, da filosofia." 51 Na realidade, o método adotado por Hume e por ele segui­ do até as suas últimas conseqüências não é característico, de maneira nenhuma, do século XVIII. Esse século tinha confiança demais no poder da razão para renunciar ao seu uso a respeito de ponto tão vital. Não tinha a menor intenção de abandonar-se à dúvida, insistindo sempre, pelo contrário, .numa decisão clara e segura. Por isso é que a História natural da religião de Hume permaneceu um acontecimento isolado no curso das idéias da época do Iluminismo. Com efeito, um outro caminho era ainda praticável, o qual, longe de levar a uma ruptura brutal da razão e da experiência, como na doutrina de Hume, parecia combinar e reconciliar as aspirações de uma e de outra. Para enfrentar os ataques cépticos dirigidos contra ele, era imprescindível que o conceito de "religião natural" recebesse um conteúdo definitivo. Não podia continuar subsistindo por mais tempo como pura as­ piração; era necessário mostrar que as exigências e as afirma­ ções desse Conceito tinham seu lugar na realidade da vida reli­ giosa. O conceito de religião natural não devia procurar seu fundamento apenas do lado da razão, mas também do lado da história. Graças a essa tarefa, com a qual se viu a braços por uma necessidade interna, o pensamento do século XVIII depa­ rou-se com um problema de ordem geral que deve abordar agora com todo o equipamento próprio do seu método. Trata-se de compreender a relação que une a religião e a história, de con­ ceber a determinação recíproca dos dois termos, de ver como, no seio dessa reciprocidade, desenvolve-se a realidade autêntica e concreta da religião.

245

Religião e história Essa idéia largamente disseminada e, ao que parece, inextirpável, de que o século XVIII permaneceu alheio e cego à rea­ lidade histórica, de que o seu pensamento foi absolutamente a-histórico, já foi refutada, de maneira direta e decisiva, por uma observação, mesmo superficial, do processo de desenvolvimento da sua problemática religiosa. A mutação interna que intervém a esse propósito caracteriza-se justamente pelo fato de que a reli­ gião emancipou-se do jugo do pensamento metafísico e teológico e um novo critério, uma nova regra de apreciação se criou. Essa regra não é simples: baseia-se, pelo contrário, em dois elementos distintos que ela une e procura conciliar. O espírito racional e o espírito histórico são os dois elementos cuja síntese é assim pro­ posta. A razão é relacionada com a história, a história com a ra­ zão: essa reciprocidade fornece-nos uma nova visão religiosa e um novo ideal de conhecimento religioso. Razão e história, niti­ damente distintas, são mantidas num estado de tensão mútua, no qual assenta todo o movimento interno do pensamento religioso do século XVIII. Muito longe de se caminhar para um simples nivelamento que sacrificaria a história à razão, que a aniquilaria, vamos encontrar uma polaridade reconhecida e elaborada com extremo cuidado. Essa relação polar, entretanto, de acordo com o espírito da filosofia iluminista, não exclui um equilíbrio ideal entre as duas forças opostas: trata-se, com efeito, de uma exis­ tência e de uma verdade que se desvendam, sob formas diferen­ tes, é certo, mas perfeitamente concordantes quanto ao seu con­ teúdo essencial, na razão e na história. Trata-se, portanto, de uma parte, de erguer diante da história o espelho da razão, de observar nele a sua imagem; de outra parte, de discernir toda racionalidade existente no ponto de vista da história. Em suas tendências e orientações respectivas, as duas visões coincidem. A convicção de que as regras da razão são eternas e imutáveis

246

deve acompanhar passo a passo o exame da maneira como essas regras desenvolveram-se historicamente, como se realizaram no decorrer do desenvolvimento empírico-histórico. O verdadeiro “ Iluminismo" do espírito só pode resultar da cooperação e do confronto entre esses dois modos de análise. A certeza da exis­ tência do espírito é parte integrante e indispensável do seu devir; mas, inversamente, esse devir não poderia ser percebido nem reconhecido em seu sentido autêntico sem ser relacionado e me­ dido por uma existência imutável (ein unveränderliches Sein). A primeira e mais severa prova que a nova concepção tinha que enfrentar era o confronto com o próprio fundamento de toda certeza religiosa, ou seja, a tarefa de determinar, de deli­ mitar clara e metodicamente, o conteúdo de verdade da Bíblia. Aliás, o simples fato de suscitar a questão e de pretender resolvêla já representava uma espécie de revolução do pensamento re­ ligioso, visto que implicava um rompimento deliberado com um princípio que a própria Reforma jamais contestara, que ela, pelo contrário, procurara impor mais rigorosa e implacavelmente que nunca: o princípio da inspiração verbal. Todo o esforço da Re­ forma tendia justamente a provar que a verdade das Escrituras era integral e única, sem lacunas e sem limites — e que só se podia proclamá-la em sua integridade e validade absoluta se o texto bíblico não comportasse nenhuma distinção nem divisão. Cada palavra, até cada letra da Bíblia, devia igualar todo o con­ junto em valor e em santidade, reivindicar para si a plena vali­ dade da certeza da revelação. Mas já no século XVIII essa pretensão tinha grande dificuldade em impor-se contra os pro­ gressos do espírito filosófico. O princípio cartesiano da dúvida metódica não podia deter-se em tão propício caminho. Sem dú­ vida, o próprio Descartes não se cansara de garantir que as no­ vidades da sua doutrina diziam respeito à ciência e não à fé, de proclamar expressamente, para tudo o que pudesse penetrar no

247

terreno dos dogmas da teologia, sua inteira submissão à autori­ dade das Escrituras e da Igreja. Ele não impede, porém, que seus discípulos e sucessores imediatos não tardem em abandonar essa prudente reserva. Mesmo os pensadores que são inspirados pela mais pura religiosidade pessoal, que querem sobretudo servir-se dos princípios cartesianos para o despertar e o aprofundamento do espírito religioso, não podem escapar a esse movimento. A primeira obra cujo título já subentende uma história crítica dos livros bíblicos saiu dos círculos oratorianos. Seu autor, Richard Simon, inspira-se em Malebranche, de quem é amigo pessoal. Começa por examinar a autenticidade dos diversos livros da Bí­ blia, por formular hipóteses sobre a sua origem, numa série de diligências que abalam os fundamentos da ortodoxia. Sublinhe-se que esse primeiro exame ainda estava reservado aos meios ecle­ siásticos e pretendia servir indiretamente aos planos da Igreja Católica, pois a crítica de Simon quer demonstrar que os pro­ testantes não têm razão em confiar exclusivamente na verdade da Bíblia e em remeter para essa fonte única e fundamental toda e qualquer outra autoridade religiosa. A Bíblia, por si mesma, não oferece um abrigo absoluto contra as investidas da dúvida; ela deve ser completada e apoiada por outras instâncias, pelo testemunho concordante da tradição da Igreja.52 Assim, não che­ gamos ainda a uma concepção, a uma apreciação histórica mais livre das Escrituras. A história, na medida em que se recorre ao seu julgamento, é constantemente anexada aos fins particulares da ortodoxia eclesiástica. É preciso esperar pela audácia de Spinoza para que seja, enfim, apresentada a questão realmente inci­ siva e decisiva. O seu Tratado teológico-político é, com efeito, a primeira tentativa de justificação e de fundamentação filosófica da crítica bíblica. À primeira vista, pode parecer estranho e paradoxal que esse papel tenha tocado a Spinoza. Se considerar­ mos o conjunto de sua metafísica e de seu fundamento racional, nada parece menos favorável, na verdade, a uma perspectiva

248

especificamente histórica. O fim último e o princípio de seu pen­ samento são o ser puro, não o devir; não a mudança empírica mas a causa imutável e a unidade essencial das coisas, encerrada e sustentada em si mesma. É esse o único objeto do conhecimento adequado; a existência finita, derivada, particular, só é cognoscível por intermédio da "imaginação”. O mesmo ocorre com o conhecimento do tempo e das relações temporais. Jamais a ima­ ginação poderá alçar-se ao plano do conhecimento filosófico, do conhecimento sub specie aeternitatis, o qual, pelo contrário, deve superá-la, despojar-se do imaginário, para atingir a sua perfeição. Desse ponto de vista, o reconhecimento de uma verdade "histó­ rica” no sentido próprio parece estar excluído; em rigor, essa idéia só pode ser uma contradictio in adjecto. No entanto, Spinoza foi quem primeiro concebeu com plena lucidez a idéia de uma historicidade da Bíblia e quem a desenvolveu de maneira clara e positiva. Acompanhando q desenrolar dessa tese a fim de mostrar a sua situação no conjunto do sistema spinozista, des­ cobre-se que ela não provém, em absoluto, de uma orientação histórica imediata, de um interesse espontâneo pelo método his­ tórico como tal; ela nada mais representa senão uma das conse­ qüências mediatas das premissas lógicas do sistema. Ê o monismo de Spinoza que se recusa a admitir a situação distinta da Bíblia, até mesmo a situação distinta do espiritual em geral. Extensão e pensamento, natureza e espírito, ordem das coisas e ordem das idéias não são duas ordens diferentes e fundamentalmente dis­ tintas, mas duas ordens idênticas, assentes na mesma lei essen­ cial. Assim, a consideração da existência histórica não pode ser separada da da existência natural; uma e outra devem ser estu­ dadas desde um mesmo ponto de vista. "Para abreviar, resumirei esse método dizendo que ele em nada difere do que se utiliza na interpretação da natureza, mas concorda em todos os pontos com ele. Com efeito, assim como o método na interpretação da natureza consiste essencialmente em considerar primeiro a natu-

249

reza como observador e, depois de ter assim reunido os dados certos, em concluir a partir deles as definições das coisas natu­ rais, também para interpretar as Escrituras é necessário adquirir um exato conhecimento histórico a uma vez na posse desse co­ nhecimento, ou seja, de dados e princípios certos, poder-se-á então concluir, com base neles e por via de legítima conseqüên­ cia, qual o pensamento dos autores das Escrituras. Desse modo, com efeito (quero dizer, se não se admitirem outros princípios e outros dados para interpretar as Escrituras e esclarecer o seu conteúdo a não ser o que possa ser extraído das próprias Escri­ turas e de sua história crítica), cada um poderá avançar sem risco de erro e poderá tentar fazer-se uma idéia daquilo que ul­ trapassa a nossa compreensão, com a mesma segurança de tudo o que nos é conhecido graças à luz natural." 5:1 Tal é o nrincínio. simples mas decisivo, e prenhe de conseqüências, que Spinoza representa: ele decide interpretar não o ser, a "natureza das coi­ sas”, a partir da Bíblia, mas a própria Bíblia como uma parte do ser e como tal submetida às suas leis universais. Ela não é a chave da natureza, é um dos seus elementos; por isso ela deve ser tra­ tada segundo as mesmas regras que valem para todas as espé­ cies de conhecimento empírico. Por que se deveria, além disso, esperar da Bíblia verdades absolutas, intuições metafísicas acerca do princípio fundamental das coisas, acerca da natura naturans. quando ela própria é apenas uma realidade condicionada e se­ gunda, quando ela própria pertence integralmente à natura naturata? O método que se impõe para a interpretar e compreender, para chegar à sua verdade relativa consistirá portanto, necessa­ riamente, em tratá-la, em interrogá-la com os meios da investi­ gação empírica. As dificuldades que ela contém, as contradições evidentes que comporta, resolvem-se desde que cada texto seja colocado de novo em seu contexto; quando, em vez de consi­ derar cada passagem da Bíblia uma verdade intemporal, ela é explicada pelas particularidades de sua origem e pela individua­

250

lidade do seu autor. O Tractatus theologico-politicus quer ex­ plicar a Bíblia dessa maneira. Não há dúvida que suas explicações, comparadas aos resultados da crítica bíblica científica ulterior, apenas produzem, com bastante freqüência, uma impressão de estranheza e arbitrariedade. Mas o princípio metodológico como tal não é atingido por essas fraquezas e esses defeitos manifestos; apesar de todos os ataques que o Tratado de Spinoza sofreria, ele não podia mais ser abandonado daí em diante. Parece que Spinoza não exerceu nenhuma influência direta sobre o pensamento do século XVIII. Evita-se cuidadosamente pronunciar o seu nome; sua doutrina só é divulgada por canais indiretos que carreiam toda espécie de impurezas. Em sua ex­ posição e sua crítica do spinozismo, Bayle fez tudo o que pôde para orientar os debates para um caminho falso, colocando-os numa perspectiva perfeitamente unilateral e errônea. Mas a pró­ pria idéia de uma crítica histórica da Bíblia tampouco deixaria de vingar e de expandir-se incessantemente, apoiando-se menos, na verdade, em considerações gerais de método e de filosofia do que no grande modelo do Humanismo e no ideal de saber que o caracteriza. O mestre espiritual desse movimento não é Spinoza mas Erasmo. As convicções religiosas e o ethos do Humanismo tinham, com efeito, encontrado sua primeira expressão clássica na edição crítica do Novo Testamento publicada por Erasmo. Partira este do princípio de que, ao restabelecer o texto autên­ tico da Bíblia, devolvia-se ao mesmo tempo à doutrina cristã toda a sua pureza original. Que se decante esse texto de todos os acréscimos tardios, de todas as falsificações arbitrárias, e a imagem do cristianismo puro se destacará por si mesma, em sua sublime simplicidade, em sua significação ética primeira e fun­ damental. Essa convicção devia inspirar a obra do maior dis­ cípulo de Erasmo, Hugo Grotius. Foi no espírito extraordinaria­ mente amplo e alimentado em todas as fontes da erudição hu­

251

manista e teológica de Grotius que nasceu o primeiro plano com­ pleto de crítica bíblica; suas Annotationes ao Antigo e ao Novo Testamento traçaram nos mínimos detalhes o caminho a ser se­ guido pela investigação do século XVIII. Ernesti fala com a maior admiração dessa obra, e vale-se dela expressamente como de um modelo. No Tratado da livre investigação do cânone (1771), de Semler, esse desenvolvimento obteve a sua primeira e concludente realização. A crítica filosófica pouco tem a acres­ centar a esse trabalho; ela contenta-se, de um modo geral, em remeter para os seus resultados e em aduzir deles as conseqüên­ cias lógicas. No artigo "Bíblia” da Enciclopédia, Diderot esboça um quadro quase completo das tendências e tarefas essenciais da crítica bíblica. Estabelece os diversos critérios que permitem apreciar a autenticidade dos livros das Escrituras; exige que se analise cuidadosamente o conteúdo desses livros, que se averigúe as condições em que eles foram escritos, que se determine exa­ tamente a data de sua composição. O princípio da inspiração verbal foi assim rejeitado de uma vez por todas: o método de interpretação histórica penetrou até o cerne do sistema teológico. Mas, apesar de todas as negativas, não foi um abandono do verdadeiro espírito desse sistema o que assim se produziu? O senso histórico recém-despertado não foi um verdadeiro vene­ no que a teologia recolheu em seu seio? Voltando a Spinoza, não pode haver nesse ponto nenhuma dúvida: a idéia de historici­ dade da Bíblia só comporta um sentimento essencialmente nega­ tivo, pois todo o saber que se liga e se limita às relações de tem­ po ostenta, em definitivo, a marca da "imaginação". Semelhante saber nunca nos poderá fornecer uma idéia adequada, uma in­ tuição estritamente objetiva. Mantém-se confinado no domínio da subjetividade, do puro antropomorfismo. Reconhecer e tratar a Bíblia como uma realidade condicionada pelo tempo, eis o que significa exatamente para Spinoza considerá-la uma coleção

252

dc conceitos antropomórficos. Ela foi assim excluída definitiva­ mente do domínio da verdade filosófica, a qual não poderia ser apreendida na imaginatio mas apenas concebida na ratio e na iníuitio. O que o espírito religioso considera ser a garantia su­ prema de toda "inspiração” é, portanto, pelo contrário, para Spinoza, a sua fraqueza e a sua deficiência radical. A violência com que a inspiração apossa-se do indivíduo e submete-o intei­ ramente, a maneira como faz dele um instrumento sem cons­ ciência e sem vontade nas mãos de uma potência estranha, apa­ rentemente superior: todos esses traços excluem a possibilidade de uma verdade autêntica e rigorosa, pois toda verdade está ligada à condição da liberdade interior e da intuição racional. Ela só pode ser alcançada se a potência das paixões e da imagi­ nação for represada e submetida ao comando rigoroso da razão. A intensidade da paixão, a força da imaginação que se manifes­ tam no visionário religioso, no profeta, são a prova mais certa, portanto, de que suas visões nada têm a ver com a descoberta de um conteúdo de verdade objetiva nem com a proclamação de uma vontade divina universalmente coerciva, e de que toda essa predicação permanece vinculada à subjetividade do profeta que, embora pretendendo falar em nome de Deus, na verdade somente fala em seu próprio nome e somente divulga o seu próprio estado interior. O capítulo de introdução do Tratado teológico-político, o qual trata da profecia, desenvolve essa tese com perfeita niti­ dez. Ele mostra que a imagem de Deus muda com cada profeta, que ela recebe a forma de sua imaginação e a cor de seus humo­ res. Segundo o temperamento do profeta, a força da sua imagi­ nação, segundo os eventos por ele vividos anteriormente, a men­ sagem transforma-se. "Conforme for o homem, assim será o seu Deus”: suave para o suave, colérico para o colérico, sombrio e severo para o oprimido e o melancólico, bom e misericordioso para o espírito sereno.54 Para exprimir o pensamento profundo da crítica bíblica de Spinoza na língua do seu sistema, que o

253

Tratado teológico-político não pode e não deve evidentemente falar, digamos que a "substância”, a natureza e a essência de Deus, não pode ser dada em nenhuma visão profética, mas que nessas visões é sempre um certo "modo” que se exprime e a si mesmo se anuncia. E mais do que em qualquer outra parte impõe-se aqui a tese de que toda determinação é negação. Longe de tal forma de expressão poder trazer para a luz o âmago e o sentido do divino, ela é, pelo contrário, a sua aniquilação. A característica do divino é a sua universalidade, a qual exclui toda limitação ao individual, todo vínculo com o individual. Os milagres e as visões proféticas da Bíblia ferem essa certeza primordial da filosofia. É procurar Deus no ocasional e no con­ tingente, em vez de procurá-lo no universal e no necessário. O milagre, como usurpação (Eingriff) da ordem natural, como rup­ tura com suas leis universais, é absolutamente antidivino, pois nessas leis consistem a verdade e a essência de Deus; constituem o seu testemunho. "Mas uma vez que, necessariamente, nada é verdadeiro senão por um decreto divino, as leis universais da natureza são simples decretos divinos decorrentes da necessi­ dade e da perfeição da natureza divina. Portanto, se alguma coisa ocorresse na natureza em contradição com as suas leis uni­ versais, isso também estaria em contradição com o decreto, com o entendimento e a natureza de Deus; ou, se admitirmos que Deus age contrariamente às leis da natureza, seremos obrigados a admitir também que ele age contra a sua própria natureza, e nada pode ser mais absurdo." 55 A crença nos milagres, no senti­ do próprio, é portanto para Spinoza a perversão do sentido re­ ligioso: pregar os milagres significa negar a Deus. A situação não é diferente no tocante a todas essas profecias e revelações religiosas subjetivas que provêm de indivíduos isolados e so­ mente exprimem essas naturezas particulares. Toda particulari­ dade é negação da universalidade; toda historicidade restringe, perturba e oblitera o racional. Na medida, portanto, em que Spi-

254

noza introduz na religião a consideração da história, essa ini­ ciativa só pode e deve servir para limitar-lhe o alcance, para evidenciar os limites intransponíveis de sua certeza, e não para justificá-la filosoficamente. Mas foi então que ocorreu uma prodigiosa virada na histó ria das idéias do século XVIII: o primeiro grande pensador que realmente compreendeu Spinoza, que profundamente meditou e compartilhou do seu pensamento, irá agora ultrapassar as con­ clusões do seu mestre. Lessing é quem dará ao spinozismo a sua verdadeira fisionomia, libertando-o das caricaturas com que o haviam sobrecarregado os teólogos e filósofos seus adversários. Foi ele o primeiro a enxergar a doutrina de Spinoza sob a sua verdadeira luz, e entregou-se a esse pensamento sem reservas nem preconceitos; perto do fim de sua vida, nada mais tinha, segundo parece, de essencial, de decisivo, a opor ao seu rigor ló­ gico e à sua necessidade interna. A entrevista com lacobi mos­ tra em Lessing, desde o começo, um spinozista convicto: "As concepções ortodoxas da Divindade nada mais significam para mim; não as tolero.*' Ev xal Tlãv : não conheço nenhuma outra.w Mas toda a grandeza de Lessing, sua soberba imparcialidade, sua receptividade, assim como sua originalidade e profundidade, revelam-se ainda por esta característica: foi ele quem, sem deixar de reconhecer Spinoza como seu mestre, tomou a iniciativa de ultrapassar as suas conclusões, segundo uma lógica puramente imanente, metodológica. O caráter essencialmente produtivo da crítica de Lessing é aí não menos evidente do que no domínio da crítica estética e literária. Verifica-se que ele aceita a visão de Spinoza sobre os pontos mais importantes, os mais essenciais; sem dúvida, mas pela maneira como os acolhe, impregna-os com o seu próprio caráter e o seu próprio pensamento, ao ponto de os reformar por completo. Lessing, tal como Spinoza, nega ao milagre todo o valor probatório no plano religioso. Por conse­

255

guinte, o milagre autêntico reside no universal, não no parti­ cular, não no contingente mas no necessário. Os "milagres da razão”, como lhes chamava Leibniz, são para ele o testemunho autêntico e o selo do divino. Lessing adere, portanto, com Spinoza, à unidade e à universalidade da idéia da natureza e, ao mesmo tempo, defende o postulado da pura imanência. Deus é uma potência intramundana (eine innerweltliche Macht), não ex­ terior ao mundo; não uma violência que irrompe no mundo da nossa experiência, mas uma força que o impregna e o elabora interiormente. Lessing, entretanto, vê o modo como se processa tal elaboração sob um prisma diferente de Spinoza. Onde este só via decepção e ilusão, Lessing entreviu uma verdade nova e essencial. As relações entre "todo” e "parte”, entre "universal” e "particular”, entre universalidade e individualidade são, com efeito, muito diferentes nele do que eram para Spinoza. A sig­ nificação do particular e do individual não é puramente nega­ tiva; ela também é, por outra parte, eminentemente positiva. Por esse traço, reconhece-se em Lessing o partidário firme e cons­ tante de Leibniz que nunca deixou de ser. Mens non pars est, sed simulacrum divinitatis, repraesentativum universi: dessa fór­ mula leibniziana característica Lessing está em seu pleno direito de apropriar-se. A individualidade tampouco representa para ele uma limitação simplesmente quantitativa, mas uma determinação qualitativa, incomparável e insubstituível: não um fragmento do real, mas uma representação perfeita, autêntica e exaustiva do real. Desse modo, a existência temporal adquire uma outra ex­ pressão, um aspecto muito diverso do que tinha em Spinoza. Tendo definido a mônada como "expressão da multiplicidade na unidade”, Leibniz podia igualmente defini-la como expressão do temporal no imutável. A mônada só ê à medida que se desenvolve progressivamente, e não existe em seu desenvolvimento nenhuma fase separada que não seja absolutamente indispensável ao todo, que não lhe pertença necessariamente. Portanto, a forma da tem-

256

puralidade como tal não constitui o contrário do ser, porquanto ■ó nela o ser pode aparecer e manifestar-se em sua pura essenciulidade. Ao levar essa idéia fundamental para o domínio da religião, Lessing tem pela frente um problema inteiramente novo c uma solução não menos nova: doravante, não mais se recor­ rerá somente à historicidade das fontes da religião para criticála, até mesmo para refutá-la; agora, a historicidade enraíza-se no aentido fundamental e originário da religião. Ao passo que Spinoza, ao examinar a sua história, só pensa em contestar o valor absoluto da revelação, Lessing quer, pelo contrário, executar através desse mesmo exame a restituição (Restitution), o resgate da religião. A verdadeira, a única religião “absoluta” é aquela que abriga em si a totalidade das formas fenomenais do religioso. Nada de individual está absolutamente perdido nela; nenhuma visão tão particular, inclusive nenhum erro, que não sirva, num sentido, à verdade e não lhe pertença. Desse pensamento funda­ mental nasceu Erziehung des Menschengeschlechts [A educação do gênero humano], de Lessing, que transfere para um novo domínio o conceito leibniziano de teodicéia: ao conceber a re­ ligião como um plano divino de educação, Lessing elabora uma teodicéia da história, ou seja, um sistema de justificações que aprecia a religião não em função de um ser estável, dado no co­ meço dos tempos, mas em função do seu devir e da finalidade desse devir. Descobre-se toda a dificuldade que essa nova idéia teve em impor-se se compararmos, sobre esse ponto, Lessing e Mendelssohn. Por muito próximos que estejam esses dois pensadores pelo conteúdo de seu ideal religioso, a separação entre eles é muito nítida no plano do método. Sem dúvida, Lessing e Mendelssohn estão, por seus pressupostos teóricos, estreitamente apa­ rentados: ambos aderem às concepções leibnizianas. No início, apenas havia entre eles uma diferença de orientação: enquanto Mendelssohn se contenta, em geral, com a interpretação tradi­

257

cional que essas concepções encontraram no sistema de Christian Wolff, Lessing, em contrapartida, movido por seu senso crítico e por seu interesse pela filosofia da história, preferia remontar incessantemente às fontes. O esquema geral do pensamento é o mesmo, portanto, para Lessing e Mendelssohn: é fornecido pela distinção leibniziana das formas fundamentais da verdade.56 A teoria leibniziana do conhecimento tinha, com efeito, traçado uma fronteira rigorosa com o objetivo de separar as verdades "eternas” e as verdades "temporais”, as verdades "necessárias” e as "contingentes”. As verdades eternas e necessárias exprimem as relações que regem as idéias puras, quer essas idéias possuam ou não, efetivamente, um objeto na realidade, no mundo empí­ rico real. Os teoremas da geometria ou da aritmética puras não são menos eterna e necessariamente verdadeiros mesmo que não exista na realidade espaço-temporal, no mundo dos corpos físi­ cos, nenhuma forma singular que corresponda exatamente aos rigorosos conceitos estabelecidos pelas matemáticas para os núme­ ros e as diversas figuras geométricas. E o que vale para as ver­ dades matemáticas não vale menos, segundo Leibniz, para as verdades da lógica, da ética e da metafísica. São, com efeito, ciências que não se valem somente do mundo real, dado aqui e agora, mas também de todo e qualquer mundo possível. Elas não se referem a tal existência singular no espaço, a tal evento único no tempo; nelas se exprime a forma absolutamente universal da própria razão — da razão sempre e por toda parte idêntica a si mesma, que ignora toda a possibilidade de mudança, de movi­ mento, de alteração, pois que toda alteração significaria declínio de sua natureza originária, supranatural e eterna. Partindo dessas definições leibnizianas da verdade e das distinções específicas que elas implicam, cai-se inevitavelmente na questão de saber de que modo são aplicáveis ao problema da certeza religiosa e quais as conseqüências de que se revestem para esse problema. A que espécie de certeza pertence a fé religiosa? A fé tem lugar

258

entre as verdades necessárias ou entre as verdades contingentes? Nuseia-se num princípio racional intemporal ou num princípio icmporal histórico? Lessing debateu-se longamente com esse pro­ blema e parece ter, por vezes, desesperado de resolvê-lo: ele não pode renunciar à "racionalidade" da religião nem pôr em dúvida a particularidade, a própria singularidade de suas for­ mas, a realidade de seus vínculos com uma terra e uma época. O cerne da fé não consiste em admitir, em ter por verdadeiro um sistema conceptual intrinsecamente válido e absolutamente intemporal; a fé não pode deixar de estribar-se numa verdade singular, única no seu gênero, acerca de um evento individual e sem retorno. Entre esses dois caminhos naturalmente separados, existirá uma terceira solução? "As verdades históricas contin­ gentes jamais podem provar as verdades necessárias da razão." "Se nada tenho a objetar, historicamente, ao fato de que o Cristo ressuscitou um morto, deverei aceitar igualmente por ver­ dadeiro que Deus tem um filho da mesma natureza que ele? Se nada tenho a objetar historicamente ao fato de que o próprio Cristo ressuscitou dentre os mortos, deverei aceitar igualmente por verdadeiro que esse Cristo ressuscitado era o filho de Deus? [ . . . ] Saltar dessa verdade histórica para uma outra classe muito diversa de verdades, exigir de mim que mude, por essa razão, todas as minhas concepções metafísicas e morais [ . . . ] se isso não é uma fuxáfiaatç elç âMo yévoç , então ignoro o que Aristóteles poderia entender por essa fórmula [ . . . ] Tal é o abismo horrivelmente profundo que não pude resolverme a tranápor, apesar de ter tão freqüente e seriamente tentado o salto. Que aquele que puder acudir-me o faça, eu lhe peço e lhe imploro. E que Deus lhe conceda a merecida recompensa.” 57 Nem a teologia nem a metafísica especulativa do século XVIII continham em si um princípio que permitisse responder verdadeiramente à indagação de Lessing e satisfazer suas exigên­ cias. Ele precisava encontrar o seu próprio caminho, descobrir o

259

meio de entulhar a seus pés o "abismo horrivelmente profundo". Foi essa, de fato, a tarefa realizada por Lessing em sua última obra de filosofia da religião. O histórico não se opõe ao racio­ nal: é o caminho para a sua realização, o lugar autêntico, o único lugar, a bem dizer, de sua efetivação. Os elementos que o espírito analítico de Leibniz distinguira com um esmero e uma clareza incomparáveis tendem de novo a juntar-se. A reli­ gião, segundo Lessing, não pertence absolutamente à esfera do eterno e do necessário, nem à esfera do puro contingente e do temporal. Ela é a união de ambas, sua unidade, manifestação do infinito no finito, do eterno racional no devir temporal. Por todos os desenvolvimentos que forneceu a esse tema, Lessing já se situa, evidentemente, na transição da filosofia do lluminismo propriamente dita. Tanto o "neologismo" teológico quanto o racionalismo universitário não podiam acompanhá-lo nesse cami­ nho, pois essas duas correntes pensam a razão no sentido da "identidade analítica":68 a unidade e a verdade da razão ba­ seiam-se em sua unicidade e em sua uniformidade e não pode­ riam subsistir validamente de outro modo. A atitude adotada por Mendelssohn a respeito das teses de Lessing é particular­ mente característica e esclarecedora: “ Por minha parte — lemos no ferusalem de Mendelssohn — não faço a menor idéia dessa educação do gênero humano que o meu falecido amigo Lessing deixara que não sei que historiador da humanidade lhe metesse na cabeça. O progresso é para o homem individual, a quem a Providência concedeu passar na Terra uma parte de sua eterni­ dade [. . . ] Mas, que o conjunto da humanidade deva avançar ra­ pidamente neste mundo, na seqüência do tempo, e aperfeiçoar-se, não me parece que tenha sido esse o objetivo da Providência; pelo menos, não é, nem de longe, tão certo e tão necessário quanto se tem o costume de imaginar a fim de salvar a Provi­ dência divina.” Para Mendelssohn, que encarna aqui o próprio tipo de filósofo do lluminismo, era em definitivo uma idéia

260

inaceitável que a realização do fim supremo da humanidade pu­ desse ser confiada a um guia tão duvidoso quanto a história, com todas as suas irracionalidades e contradições, seus prós e contras sem objetivo e seu repouso, com suas flutuações e erros perpétuos. É por isso que ele foge às mudanças inúmeras para acolher-se nas leis invioláveis e sempre idênticas da razão. Mas, no fundo, Lessing já não conhece tal "razão1'. Isso não significa que ele não tenha sido, desde o início, o grande racionalista que foi até o fim, mas substitui a concepção analítica da razão por sua concepção sintética, a visão estática por uma visão dinâmica. Se ela nos mostra por si mesma o movimento, a razão quer, não obstante, compreendê-lo sem sua própria lei imanente. É ela própria quem mergulha agora na corrente do devir, não para se deixar agarrar e arrebatar por seus redemoinhos, mas para encontrar, no seio desse devir, a sua própria certeza, para afir­ mar sua perenidade e sua constância. Nesse pensamento despon­ ta a aurora de uma nova visão do ser e da verdade da história que não podia, na realidade, brotar, aperfeiçoar-se e afirmar-se no âmbito da teologia e da metafísica. Coube a Herder dar, nesse caso, o primeiro passo decisivo ao formular o problema para a totalidade da realidade histórica e ao procurar uma resposta na observação concreta dos fenômenos históricos. Mas a sua inicia­ tiva só aparentemente foi solitária. Ela não apresenta a menor ruptura com o pensamento da época iluminista; desenvolveu-se lenta e constantemente no seio desse mesmo pensamento, nutriuse do seu solo. O problema da história apresentara-se à filosofia do Iluminismo, em primeiro lugar, no âmbito dos fenômenos reli­ giosos, e foi aí, de fato, que a sua urgência impôs-se. Mas não po­ dia limitar-se a esse primeiro aspecto do problema; por isso se viu sempre arrastada para mais longe, na direção de novas conse­ qüências e de novas exigências. E foram essas conseqüências e essas exigências que lhe abriram todo o vasto horizonte do mundo histórico.

261

NOTAS

1 Cf. Holbach, Politique naturelle, Discurso III, em particular § XII e ss. (reproduzido em Hubert, D’Holbach et ses amis, Paris, sem data, pp. 163 e ss.) 2 Diderot, Traité de la tolérance, ed. por Tourneux em Diderot et Cathérine //, pp. 292 e ss. 3 Diderot, Supplément au voyage de Bougainville (1771), Oeuvres (Assézat), II, pp. 199 e ss.; cf. especialmente II, pp. 240 e ss. 4 Para uma exposição mais completa, cf. o meu livro Individuum und Kosmos in der Philosophie der Renaissance, Stud. der Bibi: Warburg X, Leipzig, 1927. 5 Para mais detalhes, consultar o meu livro Die Platonische R e­ naissance in England und die Schule von Cambridge, caps. 2 e 4. 6 S. Troeltsch, Renaissance und Reformation, Ges. Werke, vol. 4, pp. 275 e ss. 7 Pascal, Pensées, art. VIII (ed. Ernest Havet, 5.a edição, Paris, 1897, I, p. 114). 8 Cf. Voltaife, Remarques sur les pensées de M. Pascal, 1728-78, Oeuvres (Lequien, Paris, 1921), XXXI, pp. 281 e ss. 9 Cf. Additions aux remarques sur les “pensées” de Pascal (1743); op. cit., vol. XXXI, p. 334: “J’existe, donc quelque chose existe de toute éternité est une proposition évidente.” 10 Pensées, VIII (op. cit. p. 115): “Le noeud de notre condition prend ses replis et ses tours dans cet abîme; de sorte que l’homme est plus inconcevable sans ce mystère que ce mystère n’est inconcevable à l’homme.” [O nó de nossa condição faz seus entrelaçamentos nesse abis­ mo; de modo que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse mistério inconcebível ao homem.] 11 Cf. em particular, “Il faut prendre un parti ou le principe l’action” (1772); sec. XVII: “Des romans inventés pour deviner l’origine du mal.” (Oeuvres, XXXI, p. 177) 12 “Il faut prendre un parti” [É preciso tomar partido], sec. XVI (Oeuvres, XXXI, pp. 174 e ss.). *3 Cf. Pensées, ed. Havet, XXIV, p. 1; XXV, p. 34 (II, 87, 156) e passim. 14 Cf. o poema Le Mondain (1736) e Défense du mondain ou l’apo­ logie du luxe, Oeuvres, XIV, pp. 112 e ss., 122 e ss. As análises seguintes

263

sobre Voltaire e Rousseau já foram parcialmente publicadas em forma um pouco diferente. Cf. o meu artigo: “Das Problem Jean-Jacques Rousseau”, Archiv für Geschichte der Philosophie, ed. Arthur Stein, vol. XLI, 1932, pp. 210 e ss. 15 Poème sur le desastre de Lisbonne ou examen de cet axiorrie: tout est bien (1756), Oeuvres, XII, pp. 179 e ss. 16 Sem insistir demais sobre esse ecletismo nos debates em torno do problema da teodicéia, remeto o leitor para as obras de J. Kremer, Das Problem der Theodizee in der Philosophie und Literatur des 18 Jahrhudert, Berlim, 1909; e de K. Wolff, Schillers Theodizee mit einer Einietung über das Theodizeeproblem in der Philosophie und Literatur das 18 Jahrh., Leipzig, 1909. 17 Maupertuis, Essai de philosophie morale, caps. I. IV e V; Oeuvres, vol. I, pp. 193 e ss. 18 Ibid., cap. II, pp. 201 e ss. 19 Kant, Werke (ed. Cassirer), II, pp. 219 e ss. 20Kant, Kritik der Urteilskraft [Crítica do juízo], § 83, Werke, V, p. 514. 21 Para mais detalhes sobre a teoria da forma e o fundamento da Teodicéia, de Shaftesbury, cf. o meu estudo sobre Die Platonische Reinassance in E ngland... cf. acima, p. 109, cap. 6, pp. 110 e ss. 22 A continuação baseia-se parcialmente no meu artigo já citado, ‘‘Das Problem lean-Jacques Rousseau1’, para o qual remeto o leitor para todas as explicações complementares e as justificações mais rigorosas que se impõem. Cf. acima p. 263, nota 14. 28 Kant, Werke (Hartenstein) VIII, p. 630. 24 Para o conjunto, comparar a exposição de Rousseau nos dois Discursos coroados pela Academia com os Pensamentos de Pascal, em particular os arts. II e IV, ed. Havet, I pp. 26 e ss., 48 e ss. 26 Cf. Rousseau, esboço autobiográfico: Rousseau fuge de JeanJacques, 3.° diálogo. 26 Cf. Discours sur Vorigine de Vinégalité parmi les hommes (Oeu­ vres, Zweibrücken, 1782, pp. 75 e ss., 90 e ss., 138 e ss.). 27 Para uma exposição mais completa acerca do conteúdo e dos princípios gerais da Filosofia do direito de Rousseau cf. adiante, cap. VI. 28 Exemplos dessa polêmica encontram-se nos “Sermões” e nos escri­ tos póstumos de Jerusalem, assim como na autobiografia de Semler Cf. também sobre esse desenvolvimento como um todo, Aner, Theologie der Lessingzeit, pp. 50 e ss., 158 e ss., 223 e passim.

264

20 Cf. em especial a exposição de Troeltsch, Die Bedeutung des Protestantismus für die moderne Welt, 3.a edição, Munique e Berlim, 1927, assim como Renaissance und Reformation (Ges. Werke, IV, pp. 261

e ss.). 80 Cf. Diderot, Lettre sur les sourds et muets, assim como Pensées philosophiques, séc. XII: “La superstition est plus injurieuse que I’athéis_ a t* me. 81 Resposta à pergunta: o que é o lluminismo?, Kant, Werke, IV, p. 169. 32 Additions aux pensées philosophiques, XI. 33 Sobre a significação do Oriente para a cultura francesa do século XVIII, cf. Martino, L ’Orient dans la littérature française aux X V II* et XVUl* siècles, Paris, 1906. 84 Diderot, Pensées philosophiques, XXVI; Oeuvres (Assézat), I, 138. 35 Bayle, Commentaire philosophique sur ces paroles de l’Êvangile: contrains les d’entrer; Oeuvres Diverses, Haia, 1727, II, 367-74. 36 Voltaire, Traité sur la tolérance à l’occasion de la mort de Jean Calas, caps. 1 e 4 (Oeuvres, XXIX, pp. 63, 74 e ss.). 37 Diderot, De la suffisance de la religion naturelle, IV, XVIII, XXV e ss. 88 Cf. por exemplo Diderot, Introduction aux grands principes, e sua resposta às objeções contra essa obra. Oeuvres, ed Naigeon (1798), I, p. 350. 80Toland, Christianity not mysterious, pp. 12 e 128. 40 Para acompanhar esse desenvolvimento em detalhe, ver sobretudo a penetrante exposição de Leslie Stephen, History of english thought on the Eighteenth Century, 2 vols., 2.a edição, Londres, 1881; cf. também Troeltsch, artigo "Deismus”, Ges. Schriften IV, pp. 429 e ss.; e Hermann Schwarz, artigo “Deismus” em Pàdagosisches Lexicon (Velhagen & Klasing). 41 Bayle, Commentaire philosophique, Oeuvres Diverses, p. 367. 42 Sobre o desenvolvimento do deísmo na Alemanha, pode-se con­ sultar Hettner, Literaturgesch. d. achtsehnt. Jahrhunderts, 3.a edição, III, pp. 204 e ss. 43 Para detalhe desse desenvolvimento, cf. por exemplo Troeltsch, em seu artigo “Aufklãrung”, Ges. Schriften, IV, pp. 370 e ss. Para a orientação da primeira corrente wolffiana, cf. especialmente os escritos de Canz, Vsus Philosophiae Leibnitianae et Wolffianae in Theologia (1733) e Philosophiae Wolffianae consensus cnm Theologia (1735).

265

44 Sobre o desenvolvimento da “neologia” na Alemanha, cf. espe­ cialmente a descrição e o abundante material compilado por Aner, Theolo­ gie der Lessingzeit, Halle, 1929. Sob o aspecto histórico, têm particular interesse as relações existentes entre os “neólogos” alemães do século XV11I e a filosofia da religião inglesa do século XVII. A idéia de “expe­ riência religiosa”, tal como está representada, por exemplo, em Jerusalem, foi prefigurada em particular pelos pensadores da “Escola de Cam­ bridge”. Detalhes a esse respeito em meu livro Die Platonische Renais­ sance in England. . . (cf. acima, p. 119); em especial, pp. 19 e ss. 45 Cf. o Prefácio de Reimarus para o seu Abhandlung von den vornehmsten Warheiten der natürlichen Religion. 46 Cf. Clarke, A demonstration of the being and attributes of God, Londres, 1705/06. 47 Ver a VII Lettre sur les anglais, Oeuvres, XXVI, pp. 33 e ss. 48 Traité de métaphysique, cap. II, Oeuvres, XXXI, pp. 20 e ss. 49 Collins, A discourse of freethinking occasioned by the rise and growth of a sect called freethinkers, Londres, 1713. Para uma informação mais completa, ver Leslie Stephen, op. cit., vol. I, p. 80. 50 Para todo este assunto, cf. Hume, The natural history of religion, sec. I e ss., sec. VI, XIII-XV. 51 Hume, op. cit., sec. XV. Cf. Richard Simon, Histoire critique du Vieux Testament, Paris, 1678. 53 Spinoza, Tractatus theologico-politicus, cap. 17; edição alemã coor­ denada por Carl Gebhardt, Leipzig, 1908. Philos. Bibliothek, vol. 93, p. 135. 54 Cf. especialmente, Theolog.-polit. Traktat, cap. 2, edição alemã (G ebhardt), p. 41. 55 Op. cit., cap. 6, pp. 112 e ss. 56 O leitor encontrará uma exposição mais completa do que se segue no meu artigo “Die Idee der Religion bei Lessing und Mendelssohn” (Festgabe zum zehnjärigen Bestehen der Akademie für die Wissenschaft des Judentums, Berlim, 1929, pp. 22 e ss.; uma separata desse artigo baseou-se na supracitada exposição). 57 Lessing, Über den Beweis des Geistes und der Kraft, Schriften (ed. Lachmann-Muncker), XIII, pp. 5 e ss. 58 Cf. acima cap. I, pp. 35 e ss.

266

V A CONQUISTA DO MUNDO HISTÓRICO

Essa idéia tão corrente de que o século XVIII é um século especificamente “a-histórico” constitui, em si mesma, uma idéia desprovida de qualquer fundamento histórico: nada mais do que uma palavra de ordem divulgada pelo Romantismo, uma divisa para se partir em campanha contra a filosofia do Iluminismo. E se examinarmos um pouco mais de perto o desenrolar dessa campanha, não se tarda em descobrir que foi o próprio Século das Luzes que forjou as armas. O mundo da cultura histórica, ao qual se recorre tanto, do lado do Romantismo, contra a filo­ sofia iluminista, e em nome do qual se combatem os seus princí­ pios intelectuais, só foi descoberto graças à eficácia desses princípios, graças às idéias e aos ideais do século XVIII. Se não se tivesse beneficiado da ajuda e da herança intelectuais do Iluminismo, jamais o Romantismo teria podido estabelecer e susten­ tar as suas posições. Por mais que se afaste da filosofia das Luzes em sua concepção da materialidade da história, em sua “filosofia da história” substancial, permanece-lhe ligado em seu método, do qual é profundamente devedor. Com efeito, é ainda o século XVIII que, nesse domínio, formulou o problema pro-

267

priamente filosófico, questionando as condições de possibilidade da história, tal como já questionara antes as condições de possi­ bilidade da física. Trata-se apenas, evidentemente, de um pri­ meiro esboço, mas ele esforça-se por estabelecer essas condições a fim de apreender o "sentido" do devir histórico, para adquirir uma idéia clara e distinta do que seja esse sentido, para fixar as relações entre "idéia" e "realidade", entre "lei" e "fato", e para traçar limites estáveis e seguros entre esses termos. Que o Romantismo tenha, em grande medida, desconhecido esse tra­ balho de pioneiro decisivo, que em muitos casos o tenha recha­ çado com desdém, essa atitude não deve continuar influenciando e perturbando por mais tempo o nosso julgamento. Há uma curiosa ironia no fato de que o Romantismo, na acusação que formula em nome da história contra a filosofia do Iluminismo, comete justamente a falta que assaca ao seu adversário. Parece que, de súbito, os papéis inverteram-se, que se produziu uma completa reviravolta dialética. O Romantismo, que ultrapassa incomparavelmente o século XVIII pela amplitude do seu hori­ zonte histórico e por sua capacidade de penetração histórica, perde esse privilégio a partir do instante em que se trata de colo­ car esse século numa justa perspectiva histórica. Aquele que se entrega ao passado com todas as forças do coração e do espírito, a fim de o apreender em sua realidade pura, fracassa diante desse passado próximo com o qual ainda se encontra em relação direta. Os princípios elaborados para vencer o recuo do tempo, inclusive o extremo distanciamento histórico, revelamse inaplicáveis à vizinhança histórica. A respeito da geração que o precede imediatamente, da geração de seus pais, io i e conti­ nuou sendo vítima de "cegueira histórica". Nunca se preocupou em avaliar o Iluminismo segundo suas normas específicas, não soube, em especial, ver e tratar o quadro do mundo histórico elaborado pelo século XVI, a não ser em termos polêmicos. E não é raro essa polêmica transpor os limites da caricatura. Viria

268

ti caber à época que sucedeu ao Romantismo restabelecer um equilíbrio mais justo. Ela própria estava saturada de espírito romântico e aceitava o postulado de historicidade estabelecido e fundamentado pelo Romantismo. Mas, ao mesmo tempo, adota­ ra em relação ao século XVIII a distância conveniente, o que lhe permitiu conceder, em suma, a esse mesmo século o bene­ fício do ponto de vista historicista. Dilthey foi um dos primei­ ros, no seu artigo "Das achtzehnte Jahrhundert und die geschichtliche W elt” [O século XVIII e o mundo histórico],1 a conferir ao Século das Luzes a fruição plena e integral desse benefício. Se ele refutou de forma definitiva nesse artigo a “fable convenue” de um século XVIII a-histórico e anti-histórico, os pro­ blemas concretos suscitados a tal propósito estão, entretanto, muito longe de ser resolvidos. Pois não se trata somente de acrescentar um "senso histórico", como um traço necessário e indispensável, ao quadro geral da época iluminista, mas de defi­ nir a direção própria da nova corrente intelectual que tem aí o seu ponto de partida e proceder depois ao acompanhamento dos seus efeitos específicos. A visão da história do século XVIII é menos a de um edifício acabado, de contornos bem-delimitados, do que a de uma força agindo em todos os sentidos. Como essa força se comporta, inicialmente, num ponto determinado — o domínio dos problemas religiosos e teológicos — e como pros­ segue em sua expansão, atingindo progressivamente todos os domínios do espírito? De que modo aí se revela e se mantém como um impulso vivo? As considerações que se seguem tenta­ rão responder a essas questões.

1 A filosofia do Iluminismo considera desde o começo que os problemas da natureza e os da história formam uma unidade

269

que é impossível desfazer arbitrariamente a fim de tratar à parte de cada uma das frações. Ela pretende abordar uns e outros com o mesmo equipamento intelectual, aplicar à natureza e à história a mesma espécie de problemática, o mesmo método uni­ versal da "razão". Antes de tudo, é que, sob a sua nova forma, conhecimento físico e conhecimento histórico defrontam-se com o mesmo adversário, contra o qual devem proteger-se em comum. Nos dois casos, cumpre descobrir um fundamento puramente "imanente"; nos dois casos, todo o esforço tem por objeto a tarefa de estabelecer natureza e história em seus próprios terre­ nos, fixá-las em suas articulações centrais. A ciência como tal recusa-se a reconhecer qualquer realidade sobrenatural ou transhistórica. Vimos como nasceram dessa recusa uma nova idéia de Deus e uma nova "ciência sagrada" (Gottesgelehrtheit) uma nova forma de religião e de teologia. As concepções dos teólogos inovadores, dos "neólogos" setecentistas, apóiam-se sobretudo na idéia e na exigência de uma crítica histórica das fontes da reli­ gião. Na Alemanha, Mosheim e Michaelis, Ernesti e Semler tornaram-se os verdadeiros "mestres da geração neologista". Aqui, a história é quem ergue o facho do Século das Luzes, quem liberta os "neólogos" dos grilhões da interpretação dogmática das Escrituras e da ortodoxia dos séculos precedentes.2 Mas a situação não podiá, evidentemente, ser tão simples e unívoca em história quanto na física, onde a filosofia do século XVIII via um domínio reconhecido e consolidado há muito tempo. Na física, o conhecimento já dera, depois da Renascença, o passo decisivo, a nuova scienza de Galileu reivindicara e obtivera sua dignidade própria e sua independência como pensamento cien­ tífico. Tal como Kant, toda a filosofia do Iluminismo podia, por­ tanto, considerar a física matemática um "fato", cujas condições de possibilidade podiam, evidentemente, ser debatidas, mas cuja realidade se impunha sem contestação nem reserva. Para a his­ tória, em contrapartida, ainda havia todo um trabalho a realizar;

270

não se tratava de contar com o apoio da existência de fato de uma ciência comparável, por seu grau de certeza e pela solidez de suas razões, à física matemática. Era preciso, pelo contrário, num só movimento de pensamento, conquistar o mundo da história e fundamentá-lo, assegurar o seu domínio no decorrer da conquista. É claro que tal tarefa não podia ser realizada de repente, porquanto exigia uma longa e árdua preparação. Mas é justamente essa preparação que convoca para a luta todas as forças intelectuais do século e que, de um outro lado, testa-a& Era preciso então que a filosofia do Iluminismo se convertesse num pensamento efetivamente produtivo: ela não podia conti­ nuar a contentar-se em reunir os resultados científicos que lhe eram apresentados pelas diversas disciplinas; tinha que pôr mãos à obra e tratar de realizar ela própria, em grande medida, as tarefas de uma ciência propriamente dita. Voltaire, no domínio da física, é apenas aquele que desbravou o caminho para Newton na literatura, o divulgador de suas idéias e de seus princípios; mas, no domínio da história, é uma concepção original e inde­ pendente, uma nova abordagem metodológica que Voltaire assu­ me o risco de inaugurar, abrindo-lhe o caminho no seu Essai sur les moeurs [Ensaio sobre os costumes], Todos os grandes ensaios históricos que o século XVIII produziu estão agora sob a influência dessa impressionante façanha filosófica. Assim como influenciou na França Turgot e Condorcet, Voltaire influencia na Inglaterra Hume, Gibbon e Robertson. E Hume é, ao mesmo tempo, a prova direta da estreita união pessoal que existe dora­ vante entre a história e a filosofia. A época da “historiografia filosófica" que começa no século XVIII procura realizar um equilíbrio entre esses dois elementos. Não quer, de maneira algu­ ma, submeter unilateralmente a história aos imperativos cons­ trutivos da filosofia, mas separar imediatamente dela própria, da riqueza e da visão palpitante do detalhe histórico, novas tarefas e novos problemas filosóficos. A permuta de idéias que 271

desse modo se instaurou e que não parou de crescer em inten­ sidade e amplitude é proveitosa para ambas as partes. Assim como a matemática se tornou o protótipo das ciências exatas, também a história é agora o modelo metodológico a que o século XVIII conferiu uma nova e profunda compreensão da tarefa universal e da estrutura específica das ciências humanas. O pri­ meiro passo devia ser ainda libertar o conjunto dessas ciências da tutela da teologia. Ao aceitar, numa escala crescente, a intro­ dução do método histórico em sua própria esfera, ao constituir-se ela mesma história dos dogmas da Igreja, a teologia era reco­ nhecida, ao mesmo tempo, como uma aliada que não tardaria em revelar-se mais poderosa do que ela e em contestar-lhe final­ mente o domínio do seu próprio terreno. A competição amistosa redundaria em conflito, o qual deveria engendrar a nova forma da história e das ciências humanas em geral. De um ponto de vista puramente filosófico, as origens desse movimento remontam ao século XVII. O cartesianismo, com sua orientação estrita e exclusiva para o "racional”, mantivera-se es­ tranho ao mundo histórico propriamente dito. Segundo ele, o conhecimento de um fato nunca pode ter pretensões à verda­ deira certeza, nem comparar-se em valor ao saber claro e distinto da lógica, da matemática pura e das ciências exatas da natureza. O pensamento de Malebranche não se afasta um milímetro se­ quer dessa regra: só pertence ao domínio do saber autêntico, "filosófico”, declara ele, "aquilo que o próprio Adão teria podi­ do conhecer”. Em seus começos de filósofo, Bayle ainda é um cartesiano convicto, que nunca deixou de testemunhar, em espe­ cial, sua admiração pela física cartesiana. Mas a dúvida metódi­ ca assume nele, porém, uma outra direção e atribui-se uma outra finalidade. A dúvida de Descartes é determinada pelo princípio de que não podemos confiar em nenhuma fonte de certeza que nos tenha iludido uma vez ou que contenha em si a possibilida­ de de nos iludir. Medido por esse critério, cumpre-nos rejeitar

272

não só o testemunho da experiência sensível mas todo o saber que não seja rigorosamente demonstrável, que não seja redutível ii axiomas evidentes e à demonstração racional. Daí resulta que ji dimensão da história fica inteiramente fora do círculo do ideal de saber cartesiano. Não existe o menor conhecimento de um fato que possa conduzir a esse ideal, à verdadeira sapientia universalis. Em suma, a dúvida cartesiana apenas comporta um caráter negativo a respeito da história: ela rechaça e recusa. Ora, em vez de recusar os fatos como tais, Bayle faz deles, pelo contrário, o verdadeiro tipo e o modelo de toda a sua teoria da ciência. Estabelecer fatos perfeitamente seguros, inabaláveis, tal é, para ele, o ponto de apoio arquimediano, o ponto de amarra­ ção de toda ciência. Assim é que, em pleno século rigorosamente racional e racionalista, ele será o primeiro "positivista” convicto e conseqüente. A opinião de D'Alembert, de que a metafísica só pode ser uma ciência de fatos se não quiser converter-se numa ciência de quimeras, poderia ter sido pronunciada por Bayle. Ele renuncia a todo o conhecimento das primeiras "causas” absolutas do ser e só quer considerar os fenômenos como tais; é no quadro do mundo fenomenal que Bayle quer operar a distinção clara e nítida do certo e do incerto, do "provável” e do errôneo e ilusório. Portanto, aplica a dúvida à realidade histórica, serve-se dela como de uma ferramenta para descobrir a verdade da história, para atingir uma forma de certeza que lhe seja própria e adequada. Nessa investigação, ele é infatigável e insaciável, impelido pelo instinto sempre desperto para exami­ nar os dados do mundo fático, histórico, e adotar uma posição em relação a eles. Nesse mundo histórico nada existe para Bayle de indiferente ou de insignificante; dificilmente se vislumbra nele algumas nuanças de valor e de significação. Não é por acaso que ele escolheu para a sua obra crítica a forma de um Dictionnaire historique et critique. Ao invés do espírito de su­ bordinação que rege os sistemas racionais, o Dicionário faz pre­

273

valecer o princípio da simples sucessão por vizinhança. Nunca se encontrarão nele idéias hierarquizadas, deduzidas umas das outras, mas sempre a mera acumulação de materiais, todos no mesmo plano, todos pretendendo o mesmo direito a serem inte­ gralmente expostos e tratados com profundidade. Não se observa sequer um princípio de seleção na maneira como ele armazena esses materiais. Apenas aqui e ali se surpreende um toque de escrúpulo ou uma ponta de dúvida; mas em nenhum momento ele age de acordo com um plano metódico que permita fixar limites aos diversos conteúdos, separar o importante do secundá­ rio, o essencial do acessório. Acontece com freqüência que o não-essencial ou mesmo o inteiramente insignificante encontra lugar no Dicionário, que nesse seja objeto de desenvolvimentos circunstanciados e de atenções cuidadosas, ao passo que o impor­ tante é entregue ao abandono. Não é o peso das coisas que deci­ de a escolha dos assuntos, mas a preferência contingente, indi­ vidual, o interesse subjetivo que a erudição de Bayle manifesta justamente pelos objetos mais longínquos, as antiguidades mais raras, as curiosidades históricas. Bayle tem perfeita consciência dessa sua característica pessoal e refere-se-lhe freqüentemente nas descrições que faz de si mesmo em seus escritos e nas suas cartas íntimas. Escreveu ele certa vez a seu irmão: “Je vois bien que mon insatiabilité de nouvelles est une des maladies opiniâtres contre lesquelles tous les remèdes blanchissent. C'est une hydropsie toute pure. Plus on lui fournit, plus elle d e m a n d e 8 O amor ao fato pelo fato, a "devoção ao minúsculo” atingem nele uma vivacidade inaudita. E essa concepção do saber opõe-se consciente e expressamente ao ideal do saber racional rigoroso. Como efeito, por maiores que sejam as vantagens que este últi­ mo saber tenha, em exatidão e rigor, sobre o saber puramente empírico do historiador, essa concepção deverá pagar tais van­ tagens com um defeito essencial. O seu caráter estritamente ra­ cional veda-lhe todo o contato direto com a realidade, exclui-a

274

nie dessa realidade. A certeza, a indiscutível validade formal da demonstração matemática, não pode resgatar o caráter fundamen1iiImente duvidoso de sua aplicação à realidade concreta das coisas. A história depende de um outro "gênero de certeza" lgenre de certitude) que a matemática, mas é suscetível de ser infinitamente aperfeiçoada no interior desse gênero. O fato de i|ue um indivíduo chamado Cícero existiu é metafisicamente mais certo do que a existência real, in natura rerum, de um objeto como aqueles que a matemática pura define.4 Todas essas considerações dão acesso, efetivamente, ao mundo dos fatos; mas não fornecem nenhum espécie de princí­ pio que permita obter verdadeiramente o domínio desse mundo, assegurar o seu controle intelectual. O conhecimento histórico ainda não consiste em mais do que um simples agregado, uma soma de detalhes sem vínculos entre eles e sem lógica interna. A realidade histórica apresenta-se a Bayle como um amontoado monstruoso de escombros e faltam todos os meios para se asse­ nhorear pelo pensamento dessa massa de materiais. Era neces­ sário o inesgotável poder de assimilação de Bayle para enfrentar o caudal crescente e invasor do saber especializado. A própria moldura do Dicionário explode. O núcleo original dos artigos independentes encontra-se agora flanqueados por um verdadeiro exército de comentários, observações e notas, que acabam por sufocá-lo inteiramente. E, na maioria das vezes, Bayle apaixonase muito menos pelos artigos fundamentais e pelas "questões essenciais" que aí são tratadas do que por aquelas que nos pare­ cem justamente ser "acessórias”. Não só ele se entrega alegre­ mente ao não-essencial mas, além disso, vê aí a expressão da nova tarefa que lhe incumbe como historiador. Não se ofende com a censura de futilidade nem com o título de minutissimarum rerum minutissimus scrutator que lhe conferem. Não é por incli­ nação pura, explica ele, mas por reflexão, por uma intenção metódica consciente, que optara por essa maneira de trabalhar.3

275

Se a historiografia moderna, com efeito, pode e deve suplantar a antiga, é porque não se contenta como esta em dar apenas o esboço das coisas (le gros des choses) mas prende-se a todas as particularidades a fim de fornecer para elas uma detalhada expli­ cação crítica.8 Nada está mais distante do pensamento de Bayle do que um projeto de filosofia da história, do que uma inter­ pretação teleológica da história. Disso ele já foi impedido por seu profundo pessimismo, o qual lhe proíbe descobrir em qual­ quer parte da história um plano coerente, um todo racionalmen­ te organizado. Uma olhada para os fatos, para a história real da humanidade, deve bastar para curar-nos de todas as especulações e construções apressadas, ensinando-nos que essa história nunca foi outra coisa senão o rosário de crimes e infortúnios do gênero humano.1 Vê-se que, quanto mais dirigimos um olhar lúcido e penetrante para o singular, mais teremos que renunciar ao conhe­ cimento, à compreensão verdadeira do todo, reduzir a nada, pelo contrário, toda a esperança de uma tal compreensão. E, no entanto, essa dissolução e desintegração do mundo histórico em Bayle produziram finalmente uma concepção nova, positiva e altamente proveitosa do todo. As partes separadas unem-se e cristalizam-se em torno de um centro de gravidade determinado precisamente por esse modo de investigação: Bayle não toma a realidade do "fato” num sentido material mas for­ mal; essa realidade não é somente para ele um problema de conteúdo mas, sobretudo, um problema de método. Ê a essa nova orientação que Bayle deve a sua verdadeira originalidade e a sua importância na história do pensamento. Com efeito, dificilmente um só dos fatos coletados por Bayle à custa desse trabalho heróico ainda apresenta para nós, materialmente falan­ do, um interesse essencial. Mas existe, mesmo assim, uma cir­ cunstância que confere à obra, não obstante, o seu valor ines­ quecível: é que, pela primeira vez, a idéia de fato é concebida como um problema profundo. Bayle já não considera mais os

276

fatos singulares essas pedras sólidas com as quais o historiador deve erguer o seu edifício: a tarefa que o excita e o apaixona é justamente a atividade intelectual que permite adquirir as pedras para a construção. Com uma clareza sem precedentes, ele de­ monstra o complexo de condições a que está justamente vincula­ do o fato como tal. É esse conhecimento que faz de Bayle o lógico da história. O fato já não é para ele o começo do conhe­ cimento histórico; num certo sentido, é o seu fim: seu terminus ad quem e não mais o seu terminus a quo. Essa diligência não parte dele, chega até ele: quer desembaraçar o único caminho que pode conduzir a uma verdade dos fatos. Não se pense que temos essa verdade ao alcance da mão, que podemos apreendê-la de imediato em sua realidade sensível; pelo contrário, ela só pode ser o resultado de uma operação intelectual que não deixa­ ria nada a desejar em complexidade, sutileza e rigor aos mais difíceis raciocínios matemáticos. É necessário o mais refinado exame seletivo, a mais atenta investigação crítica e uma avalia­ ção crítica dos testemunhos individuais para descobrir e extrair da sua ganga o núcleo sólido de um determinado "fato" histó­ rico. O valor especial dessas considerações históricas decorre do fato de Bayle não se ter contentado em apresentar in abstracto essas exigências mas de segui-las até nas pesquisas mais concre­ tas de detalhes. Antes dele, jamais a crítica da tradição tinha sido realizada com tamanho rigor e inexorabilidade, com uma tão minuciosa exatidão. No levantamento sistemático de suas lacunas, de suas obscuridades, de suas contradições, Bayle é in­ fatigável. E é aí que brilha o seu verdadeiro gênio de historiador, que consiste, por paradoxal que isso pareça, não na descoberta do verdadeiro mas na do falso. O simples plano extrínseco do Dicionário, sua concepção literária inicial já são totalmente ca­ racterísticos: Bayle queria, em primeiro lugar, oferecer no seu Dicionário não uma enciclopédia do saber mas uma “coletânea de erros”. "Por volta do mês de novembro de 1690” — escreve

277

ele numa carta — “formei o projeto de compor um Dicionário crítico, o qual conteria uma coletânea de erros que têm sido cometidos, tanto pelos que fizeram dicionários como por outros escritores, e que reduziria, sob cada nome de homem ou de cida­ de, os erros referentes a esse homem ou a essa cidade." 8 A su­ perioridade intelectual de Bayle, seu virtuosismo erudito e lite­ rário encontraram aí seu terreno de eleição. Seu instinto de farejador celebra aí seu verdadeiro triunfo; seu júbilo nunca é maior do que quando surpreende a pista de um erro secreto que vinha arrastando-se há séculos. Uma vez mais, a ordem de grandeza desses erros importa-lhe muito pouco; Bayle está fasci­ nado por sua existência como tal e por sua qualidade. É preciso que o erro seja perseguido até em seus últimos entrincheiramentos, em seus últimos refúgios, e seja extirpado a todo custo, quer o seu objeto seja grande ou pequeno, sublime ou miserável, grave ou insignificante. O fanatismo crítico de Bayle aplica-se igualmente às matérias mais fúteis, é a propósito delas que se mostra mais constantemente entusiasmado, pois é nelas que resi­ de por excelência o erro histórico sob sua forma específica. Aí se vê como a mais insignificante negligência na transmissão e propagação da tradição acarreta as conseqüências mais fatais, como pode levar até uma falsificação radical da verdadeira si­ tuação. Toda negligência dessa ordem deve ser, portanto, des­ mascarada implacavelmente, e esse trabalho puramente negativo do historiador não deve fraquejar em momento algum nem recuar diante do mais imperceptível dos detalhes. Nenhuma in­ formação alterada deve escapar a essa prova; nenhum citação inexata é permitida, nenhuma deve ser citada de memória, sem referência à fonte real.9 Por todas essas exigências Bayle foi o verdadeiro criador da “acribia” histórica. Para a sua obra filo­ sófica, entretanto, essa acribia é apenas, evidentemente, um meio e não um fim em si. Para entender bem a finalidade para que tendem as considerações de Bayle, cumpre comparar a sua

278

obra com a última das grandes concepções e construções pura­ mente teológicas da história que foram tentadas, aquela que Bossuet nos deixou no seu Discurso sobre a história universal. Essa obra oferece-nos um vasto plano de conjunto, sublime à sua maneira, uma interpretação religiosa universal da história. Mas essa iniciativa tão ousada, se considerarmos os seus funda­ mentos empíricos, os fatos sobre os quais ela assenta, foi verda­ deiramente edificada sobre areia. A verdade desses fatos só pode ser assegurada, com efeito, por um círculo vicioso. Toda auto­ ridade dos fatos, dos dados históricos, repousa para Bossuet na autoridade da palavra bíblica; mas essa mesma autoridade, ele tem que fundá-la, por sua vez, na autoridade da Igreja e, por conseguinte, na tradição. Assim, a tradição torna-se o funda­ mento de toda certeza histórica. Mas no que se baseia o con­ teúdo e o valor próprios da tradição? Em testemunhos históri­ cos, nem mais nem menos. Bayle é o primeiro pensador moderno a desvendar esse círculo com um rigor crítico implacável e a enfatizar inúmeras vezes as conseqüências fatais. Desse ponto de vista, Bayle não fez muito menos pela história do que Galileu pela física. Galileu exige a independência total da física em relação ao texto bíblico para a interpretação dos fenômenos, impõe e justifica metodicamente essa exigência: Bayle abre o caminho dessa independência em história. Foi ele quem realizou, mutatis mutandis. a revolução copernicana em história. Em vez de basear a "verdade" da história num pretenso dado objetivo imposto dogmaticamente pela Bíblia ou pela Igreja, ele retorna às fontes subjetivas, às condições subjetivas dessa verdade. A crítica das fontes históricas, que lhe serviu de ponto de partida, adquire em suas mãos uma amplitude cada vez maior até converter-se numa espécie de "crítica da razão histórica". Nada é mais errôneo e prejudicial, segundo ele, do que o preconceito de que a verdade histórica poderia e deveria ser aceita como moeda corrente, na base do crédito. Mas, pelo contrário, a mis­

279

são da inteligência consiste em proceder à cunhagem da moeda e em testar cuidadosamente cada peça, antes de pô-la em cir­ culação. Glaubst du denn: von Mund zu Ohr Sei ein redlicher Gewinnst? Überliefrung, o du Thor, Ist auch wohl ein Hirngespinnst! Nun geht erst das Urtheil an; Dich vermag aus Glaubensketten Der Verstand allein zu retten, Dem du schon Versieht gethan. [Crês, pois, que da boca à orelha Haja um lucro honesto? A tradição, ó insensato, Ainda é uma quimera! Ê de julgamento que se trata agora; Dos grilhões da crença Só o intelecto pode salvar-te, Ele, a que tu já renunciaste.] Esses versos do West-östlicher Divan de Goethe são, talvez, os que permitem resumir da maneira mais clara e mais perti­ nente o papel de Bayle e os que melhor caracterizam a sua orientação pessoal. É a sua inteligência penetrante, inflexivel­ mente analítica, a que libertou em definitivo a história dos gri­ lhões da fé e estabeleceu-a sobre fundações metodológicas au­ tônomas. Inaugura essa tarefa pela crítica da tradição teológica mas, ao invés de ficar por aí, estende as suas investigações a todo o conjunto da história profana. É no que precisamente ele foi o precursor do século XVIII, para o qual o Dictionnaire historique et critique constituiu não só uma reserva científic; inesgotável mas também um exercício intelectual, um treine

280

mento dialético sem igual. Foi no Dicionário que a filosofia do Uuminismo aprendeu a formular os seus próprios problemas, que encontrou forjadas as armas que deveria utilizar para a emancipação da consciência histórica. E, nesse sentido, Bayle foi não só o lógico da nova ciência mas, além disso, o seu mo­ ralista. É o apóstolo e a encarnação viva das virtudes propria­ mente históricas. A história só pode ser tocada com mãos limpas, não se cansou Bayle de proclamar, o relato histórico não deve ser impedido por nenhum preconceito nem desfigurado por ne­ nhuma parcialidade confessional ou política.10 "Todos os que conhecem as leis da História estarão de acordo em que um historiador, se quiser cumprir fielmente suas funções, deve des­ pojar-se do espírito de adulação e do espírito de maledicência e colocar-se o mais possível na posição de um estóico, a quem nenhuma paixão agita. Insensível a todo o resto, só deve estar atento para os interesses da verdade, sacrificando a essa o res­ sentimento de uma injúria, a lembrança de um benefício e até mesmo o amor da pátria. Deve esquecer que está num certo país, que foi instruído numa certa comunhão, que é devedor de gratidão a este ou àquele, que tais e tais são seus progenitores ou seus amigos. Um historiador, enquanto no exercício de sua função, é como Melquisedeque, sem pai, sem mãe e sem genea­ logia. Se lhe perguntarem donde veio, deverá responder: não sou francês, nem alemão, nem inglês ou espanhol; sou habitante do mundo; não estou a serviço do imperador, nem do rei da França, mas somente a serviço da verdade; essa é a minha única rainha, só a ela prestei juramento de obediência.” Por essa má­ xima e o imperativo moral que a fundamental, Bayle foi o grande mestre da filosofia do Iluminismo, esboçou o seu “projeto de uma história universal desde uma perspectiva cosmopolita”, encarnando-a numa obra-prima que é o seu exemplo e modelo clássico.

281

2

Bayle nunca nos deu uma verdadeira filosofia da história; a bem dizer, se considerarmos a sua concepção geral e as suas premissas metodológicas, ele nem mesmo podia tentar oferecernos uma. O primeiro a enveredar por esse caminho foi Giam­ battista Vico, cujos Principi di una scienza nuova d ’intorno alia comune natura delle nazioni constituíram o primeiro esboço siste­ mático de uma filosofia da história. Na verdade, essa obra, conce­ bida numa perspectiva de oposição deliberada a Descartes e desti­ nada a expulsar o racionalismo da história, essa obra que se apóia mais na "lógica da imaginação” (Logik der Phantasie) do que na de idéias "claras e distintas”, nenhuma influência exerceu sobre a filosofia do Iluminismo. Permaneceu mergulhada numa obs­ curidade donde só viria a ser tardiamente retirada por Herder. No âmbito da filosofia do Iluminismo, a primeira tentativa de­ cisiva de fundar uma filosofia da história foi obra de Montes­ quieu. Nesse sentido, O espírito das leis caracteriza uma nova época; é uma obra que não nasceu diretamente de interesses históricos e que ignora a pura alegria do fato estabelecido em sua unicidade, tão característica de Bayle. O simples título da obra de Montesquieu já indica que se trata do espírito das leis e não dos fatos. Ele não averigua, examina ou avalia os fatos per se mas pelas leis que neles se apresentam e exprimem. As leis somente são acessíveis numa matéria concreta, não se pode descobri-las em qualquer outra parte nem demonstrá-las de outro modo. Entretanto, por outro lado, essa matéria só encontra seu conteúdo e seu sentido verdadeiros quando tomada como exem­ plo, como paradigma de relações universais. Montesquieu mani­ festa, tanto quanto Bayle, um amor decidido pelo detalhe, cuja contemplação procura adquirir através de estudos profundos e de grandes viagens. O prazer que lhe causa o singular é tão vivo que a ilustração particular, o acessório anedótico que ele inter-

282

cala em suas exposições de tempos em tempos submergem a linha de pensamento e ameaçam torná-la quase irreconhecível. Mas, quanto ao conteúdo, toda essa riqueza é dominada e validada por um princípio rigorosamente intelectual. "Examinei primeiro os homens" — escreve ele no Prefácio da obra — “e julguei que, nessa infinita diversidade de leis e costumes, não eram eles orientados unicamente por seus caprichos. Coloquei princípios e vi os casos particulares submeterem-se a eles por si mesmos, as histórias de todas as nações serem apenas seqüências e cada lei particular ligada a outra lei, ou depender de uma outra mais geral." Assim, para Montesquieu, a realidade dos fatos como tal não é a finalidade obrigatória da investigação. É apenas uma etapa a transpor com o objetivo de chegar a alguma outra coisa que é a verdadeira meta da investigação. Pode-se afirmar que Montesquieu é o primeiro pensador a conceber e exprimir de maneira clara e precisa a noção do "tipo ideal" histórico. O espírito das leis é uma teoria política e sociológica dos tipos. A obra quer mostrar e demonstrar que os organismos políticos que designamos pelos nomes de república, aristocracia, monarquia, despotismo não são meros agregados de elementos variados, que cada um dentre eles está, por assim dizer, pré-formado, e é a expressão de uma determinada estrutura. É evidente que essa estrutura permanece escondida enquanto ficarmos na simples consideração dos fenômenos políticos e sociais. Nesse domínio, nenhuma forma é idêntica a nenhuma outra; encontramo-nos diante de uma heterogeneidade total e de uma variabilidade quase ilimitada. Mas essa aparência desfaz-se desde o instante em que se aprenda a retroceder dos fenômenos para os princí­ pios, da diversidade das formas empíricas para as forças consti­ tuintes. Apercebemo-nos então, na abundância de repúblicas, de a república, nas inúmeras monarquias históricas, de a monarquia. Montesquieu quer mostrar no detalhe que o princípio sobre o

283

qual repousa a república, sobre o qual se baseia a sua perma­ nência, é a "virtude” (vertu) cívica, ao passo que a monarquia se alicerça no princípio da honra e o despotismo, no medo. Compreendemos assim que a verdadeira diferença, a essencial, é a diferença de impulso (Antriebe), de motivação intelectual e moral, que confere a cada sociedade a sua forma e o seu mo­ vimento. Explica Montesquieu: "Entre a natureza do governo e seu princípio há esta diferença: a sua natureza é o que o faz ser como é, e seu princípio é o que o faz agir. A primeira constitui sua estrutura particular e a segunda, as paixões humanas que o movimentam." 11 Montesquieu tem perfeita consciência da na­ tureza lógica particular dos conceitos fundamentais que ele assim introduziu. Não vê aí conceitos abstratos que possuíssem tãosomente a universalidade de um gênero e apenas pretendessem destacar certos traços comuns, tal como se encontram nos fenô­ menos reais. Para além de tal generalidade empírica, ele quer estabelecer a generalidade, a universalidade de sentido que se ex­ prime nas formas particulares de Estado; quer tornar visível a regra interior que domina e governa essas formas. O fato de que essa regra nunca se exprima plenamente em qualquer forma individual, de que não possa realizar-se plena e exatamente em nenhuma individualidade histórica, nada retira à sua importân­ cia. Ao atribuir às diversas formas de Estado um princípio espe­ cífico, repousando a essência da república na virtude, a da mo­ narquia na honra etc., ele não entende que se possa tomar essas essências por realidades empíricas concretas. Mais do que um ser, é um dever-ser (ein Sollerí) o que elas exprimem.12 É por isso que as objeções que podem ser suscitadas contra a realização do sistema de Montesquieu não valem forçosamente contra suas idéias fundamentais. A infra-estrutura empírica na qual ele tenta fundamentar seu sistema pode parecer muito imperfeita nos dias de hoje, por causa do nosso horizonte histórico ampliado, da nossa problemática sociológica mais elaborada; isso não retira

284

a Montesquieu, porém, o mérito de ter descoberto um novo e fecundo princípio e fundado um novo método das ciências so­ ciais. Ora, é notável que esse método dos "tipos ideais”, de que ele é o iniciador e que aplica com perfeita mestria, nunca tenha vindo a ser depois abandonado como tal e que, pelo contrário, somente na sociologia dos séculos XIX e XX tenha encontrado o desdobramento completo de suas múltiplas possibilidades. E Montesquieu já extrai daí a doutrina de que todos os elementos constitutivos de uma determinada sociedade estão entre si numa situação de estrita correlação. Não são as parcelas de uma soma e sim forças interdependentes cuja ação recíproca depende da forma do todo. Até nos mínimos detalhes verifica-se essa comu­ nidade de ação e essa organização estrutural. O modo de edu­ cação, o sistema de justiça, a organização do casamento e da família, todo o mecanismo de política interna e externa: tudo isso depende, num certo sentido, da forma fundamental do Es­ tado; é impossível modificá-los arbitrariamente, sem afetar ao mesmo tempo essa forma fundamental e, em última instância, destruí-la. Com efeito, a corrupção de uma sociedade não começa em tal ou tal direção de sua ação mas na destruição do seu princípio interno: " A corrupção de cada governo começa quase sempre pela dos princípios." 13 Enquanto o seu princípio se mantiver como tal, enquanto se mantiver saudável, uma forma política nada tem a temer sobre o seu futuro; o próprio enfra­ quecimento de suas instituições e de suas leis particulares não lhe causará nenhum dano. Por outro lado, desde que o princípio desmorone, desde que adormeça a força que interiormente o aciona, as melhores leis deixam de oferecer qualquer proteção: "Quando os princípios do governo são corrompidos uma vez, as melhores leis tornam-se más e voltam-se contra o Estado; quando seus princípios são sadios, as más têm o efeito das boas: a força do princípio arrasta tudo [. . . ] Poucas são as leis que não sejam boas quando o Estado não perdeu os seus princípios; e

285

como dizia Epicuro, referindo-se às riquezas: não é o licor que está estragado, é o vaso.” 14 Se acabamos assim de delinear os contornos de uma filo­ sofia política, ainda não apresentamos, contudo, o menor fun­ damento para uma filosofia da história. Os tipos ideais descritos por Montesquieu são, com efeito, formas puramente estáticas. Elas estabelecem um princípio de explicação do ser do corpo so­ cial sem oferecer nenhum meio de interpretação do seu devir. Entretanto, Montesquieu não duvida de que o seu método não possa estender-se a esse problema também com proveito. Está convencido de que o devir, à semelhança do ser, nada mais é do que um simples agregado, um desenrolar de eventos inde­ pendentes e separados, mas que é possível descobrir aí igual­ mente certas orientações típicas. Ê possível, sem dúvida, que, visto do exterior, aquilo a que chamamos "história" nunca ma­ nifeste semelhante orientação e só deixe entrever um enredo de "acasos". Mas esse aspecto tende a dissipar-se à medida que se passa da superfície dos fenômenos para a sua verdadeira pro­ fundidade. O caos, o conflito dos eventos singulares dissolve-se, os fenômenos reduzem-se a uma "razão" que permite explicá-los. "Os que afirmaram que uma fatalidade cega produziu todos os efeitos que vemos no mundo disseram um grande absurdo, pois que maior absurdo do que uma fatalidade cega ter produzido seres inteligentes? Existe, portanto, uma razão primeira e as leis são as relações que se encontram entre ela e os diferentes seres, assim como as relações desses diversos seres entre si." 15 Ê certo que, com bastante freqüência, parece que o mero acaso decide do destino de um povo, determina a sua grandeza e a sua deca­ dência. Uma observação mais penetrante leva, porém, à desco­ berta de um outro quadro. "Não é o acaso que domina o mun­ do r . . . ] Existem causas gerais, quer morais, quer físicas, que agem em cada monarquia, elevam-na, mantêm-na ou precipitamna; todos os acidentes estão submetidos a essas causas; e se o aca-

286

id de uma batalha, ou seja, uma causa particular, arruinou um Estado, havia uma causa geral que fazia com que esse Estado devesse perecer através de uma única batalha. Numa palavra, a situação principal arrasta com ela todos os acidentes particula­ res.” 16 As condições físicas agem igualmente sobre esse estado geral. E Montesquieu é um dos primeiros pensadores a indicar e assinalar a importância das mesmas, a mostrar o vínculo que une ii forma política e as leis de um país ao seu clima e à natureza do seu solo. Nesse ponto, entretanto, recusa a simples dedução a partir de fatores puramente físicos; ele subordina as causas ma­ teriais às espirituais. É evidente que nem todo solo, nem todo clima convém a tal ou tal forma política; mas, inversamente, as condições físicas nunca são inteiramente determinantes. É tarefa que compete sobretudo ao legislador estabelecer condições jus­ tas e sãs para o Estado. Os maus legisladores são aqueles que cedem às deficiências do clima; os bons, aqueles que se aper­ cebem das deficiências e contra elas reagem com todas as suas forças morais e espirituais. "Quanto mais as causas físicas levam os homens ao repouso, mais as causas morais devem afastá-los dele.” 17 O homem não está simplesmente submetido às forças da natureza; ele conhece essas forças e, graças a esse conhecimento, é capaz de conduzi-las para a meta que escolheu, de estabelecer entre elas um equilíbrio que assegure a conservação da sociedade. "Se é verdade que o caráter do espírito e as paixões do coração são extremamente diferentes nos diversos climas, as leis devem ser relativas à diferença dessas paixões e à diferença desses ca­ racteres.” 18 O curso geral e o objetivo geral da história estão assim impregnados de uma ordem comparável à das leis da natu­ reza, em rigor e em certeza. No nível de desenvolvimento em que nos encontramos ainda falta muito, sem dúvida, para que o mundo moral esteja tão bem ordenado quanto o mundo físico. Se ele também possui leis naturais determinadas e imutáveis, não parece obedecer-lhes com tanta perseverança quanto a natureza

287

física obedece às suas. A causa disso é que os indivíduos dotados de razão estão limitados e, por via de conseqüência, sujeitos a erros, e que, de um outro lado, agem segundo o seu próprio pensamento e a sua própria vontade. Quer dizer, não obedecem constantemente às leis fundamentais que por eles próprios fo­ ram criadas.10 Montesquieu, entretanto, é filho do seu tempo, é um legítimo pensador da Era do Iluminismo, que espera do pro­ gresso do conhecimento desse estado de coisas uma nova ordem do mundo da vontade, uma nova orientação geral da história política e social da humanidade. É o que o conduz à filosofia da história: do conhecimento dos princípios gerais e das forças motrizes da história, ele espera a possibilidade de organizá-los com mais segurança no futuro. O homem não está somente submetido à necessidade da natureza, ele pode e deve criar livre­ mente o seu destino, construir o seu próprio futuro. Mas um simples desejo será impotente se não for conduzido e penetrado por uma visão segura das coisas, a qual só pode nascer da união e da concentração de todas as faculdades do espírito. Ela exige, ao mesmo tempo, que o espírito observe cuidadosamente as rea­ lidades individuais, que ele mergulhe nos detalhes empíricos da história e, por outra parte, que analise teoricamente as diversas "possibilidades" para as situar e distinguir com nitidez umas das outras. Montesquieu mostra idêntica mestria na solução de ambos os problemas. De todos os pensadores do seu meio, ele é o dotado de mais viva penetração histórica, o que possui a mais pura intuição das diversas formas da existência histórica. Não disse ele um dia, falando de si mesmo, que para falar da história antiga tentara adotar o espírito da Antiguidade, metendo-se na pele de um antigo? 20 Esse olhar exercitado na apreensão do singular e esse gosto da singularidade preservaram-no igual­ mente, em sua construção teórica, de toda parcialidade dou­ trinária. Sempre se defendeu vitoriosamente contra a exposição puramente esquemática, a redução da multiplicidade de formas

288

a um quadro absolutamente rígido e inflexível. A esse propó­ sito, existe em O espírito das leis uma fórmula muito significa­ tiva. Descrevendo a Constituição inglesa, que ele reverencia co­ mo um modelo político, Montesquieu não sublinha menos o fato de estar bem longe de querer impor a mesma forma de governo aos outros países, de impô-la como termo obrigatório de refe­ rência: "Como poderia afirmar isso, eu que acredito que o pró­ prio excesso de razão nem sempre é desejável e que os homens, quase sempre, acomodam-se melhor no meio do que nas extre­ midades?" 21 Até mesmo em suas construções puramente teóri­ cas, Montesquieu procura, portanto, descobrir e conservar cons­ tantemente o "meio" certo, assim como quer manter o equilí­ brio entre os elementos fundamentais do pensamento, entre a "experiência" e a "razão". Graças a esse dom de equilíbrio, sua obra continuou exercendo uma influência muito além dos estrei­ tos limites da "filosofia do lluminismo". Não só foi o exemplo e o modelo da visão histórica dos enciclopedistas mas também dominou com seu prestígio os seus adversários e críticos mais perspicazes. Embora se empenhasse em combater o método e as premissas de Montesquieu, Herder nem por isso admirou menos esse "nobre e gigantesco empreendimento" e ambicionou para os seus próprios projetos situarem-se à mesma altura desse mo­ delo.22

3 Analisando em 1753, no Vossischen Zeitung, o Essai sur les moeurs de Voltaire, Lessing inicia o seu artigo com o co­ mentário de que a mais nobre ocupação do homem é o homem — mas de que podemos ocupar-nos desse objeto de "duas ma­ neiras diferentes": "Considera-se o homem quer individualmente quer de um modo geral. Da primeira maneira, 6 muito difícil

289

inferir que o homem é essa nobilíssima ocupação. Conhecendo o homem individualmente, o que é que se conhece? Loucos e celerados [. ., ] Outra coisa muito diferente é considerar o ho­ mem em geral. Em geral, ele denuncia sua grandeza e sua ori­ gem divina. Considerem-se os empreendimentos do homem, como ele amplia cotidianamente as fronteiras da sua inteligência, como são sábias as leis que o governam, quanta diligência seus monu­ mentos testemunham [ . . . ] Nenhum escritor se dedicou jamais, de forma especial, a esse objeto, de modo que o autor da presente obra tem o direito de proclamar: libera per vacuum posui vestigia princeps.” 23 Lessing, o maior adversário e o crítico mais penetrante que Voltaire encontrou no século XVIII, quis nessas poucas linhas render plenamente justiça à importância de sua obra histórica. Ele toca de imediato no cerne da obra e caracte­ riza a sua orientação mais profunda: a intenção de Voltaire, efe­ tivamente, consiste em elevar a história acima do "demasiado humano”, do contingente, do singular absoluto. Não é sua in­ tenção retratar o individual e o ocasional mas o "espírito dos tempos” e o "espírito das nações”. Não se interessa pela simples seqüência de acontecimentos mas pelo progresso da cultura e pela organização interna dos seus diversos elementos. Sob a forma que projetava inicialmente Voltaire, o Ensaio sobre os costumes era destinado à marquesa de Châtelet, que se queixava, por comparação com as ciências da natureza, do caráter heteró­ clito e fragmentado do saber histórico. Deveria ser possível rea­ lizar em história uma ciência análoga à de Newton, reduzindo os fatos a leis. Mas não seria possível, tanto em história quanto em qualquer outra área, chegar-se ao conhecimento das leis sem descobrir um pólo imóvel no fluxo dos fenômenos. Esse ele­ mento imutável e idêntico não se encontra, por certo, no curso infinitamente múltiplo e cambiante do destino dos homens; ele só pode estar na própria natureza humana. Que se deixe, por­ tanto, de prestar unicamente atenção na história aos eventos

290

políticos, ao surgimento e queda dos grandes impérios, aos tro­ nos que desabam. Em vez de prestar atenção ao gênero humano, de adotar por máxima o homo sum, a maioria dos historiadores não tem feito outra coisa senão descrever batalhas. O verdadeiro objeto da história é a história do espírito, não o detalhe de fatos quase sempre controvertidos. "Em vez dessa enorme acumula­ ção de fatos, em que um jamais deixa de contradizer o outro, dever-se-ia reter somente os mais importantes e os mais seguros a fim de colocar um fio condutor na mão do leitor e para que ele fique em situação de formar um juízo acerca da ruína, re­ nascença e progressos do espírito humano, e desse modo aprenda a conhecer o caráter e os costumes dos diversos povos.” 24 Voltaire considera, em suma, que os verdadeiros defeitos da his­ tória, tal como foi escrita até o presente, são, por uma parte, uma concepção e uma interpretação míticas do passado; por outra parte, o culto dos heróis, ao qual ele não é propenso, em absoluto. Esses dois defeitos estão em correspondência; consti­ tuem a dupla expressão de um único defeito mais profundo. A interpretação mitológica da história produziu o culto dos heróis, dos líderes e dos príncipes, e não pára de alimentá-lo. J'aime peu les héros, ils font trop de fracas, Je hais ces conquérants, fiers ennemis d'eux-mêmes, Que dans les horreurs des combats Ont placé le bonheur suprême, Cherchant partout la mort, et la fesant souffrir A cent mille hommes leurs semblables. Plus leur gloire a d'éclat, plus, ils sont ha’issables,* * “Gosto pouco dos heróis, são barulhentos demais/Detesto esses conquistadores, altivos inimigos de si mesmos,/Que nos horrores dos combates/Colocaram a felicidade suprema,/Buscando por toda parte a morte, e fazendo-a sofrer/A cem mil homens seus semelhantes./Quanto mais refulge a glória deles, mais abomináveis são.” (N. do T .)

291

escreveu Voltaire a Frederico, o Grande, na carta que lhe enviou após a vitória de Chotusitz.25 O centro de gravidade da história foi assim deslocado, segundo uma intenção metodológica cons­ ciente, da história política para a história do espírito. Aí reside o traço característico que distingue nitidamente Voltaire de Montesquieu. Se o Ensaio sobre os costumes e O espírito das leis foram publicados, com efeito, quase ao mesmo tempo e num ambiente cultural semelhante, as duas obras perseguem, no en­ tanto, finalidades muito diferentes. Para Montesquieu, a vida política continua sendo o centro do mundo histórico: o Estado é o verdadeiro sujeito, até único, da história universal. O espí­ rito da história coincide com o “espírito das leis". Em Voltaire, pelo contrário, o conceito de espírito assume envergadura maior: engloba toda a vida interior, todo o conjunto de transformações a que a humanidade deve submeter-se antes de alcançar o conhe­ cimento e a verdadeira autoconsciência. A tarefa essencial a que o Ensaio sobre os costumes se propõe é fazer compreender a lenta marcha da humanidade em direção a esse objetivo e todos os obstáculos que deve superar. Para realizar essa tarefa, é evi­ dente que não se contentará em considerar a história política; o olhar quererá dominar a história da religião, a da ciência, a da arte, a da filosofia, e haverá o propósito deliberado de traçar assim o quadro completo das fases particulares que o espírito teve de percorrer e transpor a fim de adquirir sua forma pre­ sente. Mas justamente a propósito desse plano fundamental, as considerações de Voltaire sobre a história colocam-nos diante de uma questão deveras embaraçosa. Ao aprofundar-se essa pers­ pectiva, ao analisar os princípios que a embasam, surge um curioso dilema. Voltaire é o entusiástico profeta do progresso: foi por esse pensamento que ele mais fortemente influenciou o seu tempo e as gerações subseqüentes. A célebre obra de Condorcet, Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito hu­

292

mano, situa-se diretamente na linha das idéias e dos princípio9 de Voltaire. Como conciliar, porém, essa fé no progresso da humanidade — é realmente essa a pergunta que se deve acabar por fazer a Voltaire — com a convicção não menos firme de que a humanidade, "no fundo”, é sempre a mesma, de que a sua verdadeira "natureza” não mudou? Se esta última hipótese preva­ lece, a substância própria do espírito escapa à ação do devir his­ tórico, que não pode atingi-la em suas profundidades extremas. Para quem sabe separar a casca do cerne da história, são sempre e por toda parte as mesmas forças que a dominam e dirigem-lhe o curso. Voltaire permanece fiel a essa concepção que já carac­ terizava o pensamento histórico da Renascença e cujos repre­ sentantes principais são Maquiavel e Juan Luís Vives; 26 é a concepção que ele exprime nitidamente e sem rodeios em diver­ sas passagens de sua obra histórica. "Resulta deste quadro” — escreveu ele resumindo uma vez mais o conjunto de suas desco­ bertas na conclusão do Ensaio sobre os costumes — "que tudo o que se relaciona intimamente com a natureza humana asseme­ lha-se de um extremo ao outro do universo, que tudo o que pode depender do costume é diferente e que é um acaso se se parece. O domínio do costume é muito mais vasto do que o da natureza; estende-se aos hábitos, a todos os usos, espalha a variedade no cenário do universo; a natureza aí difunde a unidade; ela esta­ belece por toda parte um pequeno número de princípios invariá­ veis: assim, o solo é por toda parte o mesmo e a cultura produz frutos diversos.” 27 Pode haver, sendo assim, uma história filo­ sófica no sentido próprio? Toda aparência de mudança, de evo­ lução, não se dissipa desde que se reverta aos princípios verda­ deiros que, por trás dos reflexos cambiantes dos fenômenos, permanecem inalteravelmente idênticos? E o conhecimento filo­ sófico do processo histórico não seria, no fundo, a supressão desse processo? Poderá o filósofo deleitar-se com o variegado e

293

confuso caudal de eventos sabendo que essa diversidade é ilusó­ ria, que ela não provém da natureza mas tão-somente do hábito? Sobre todas essas questões, a filosofia da história de Voltaire não nos satisfaz com qualquer resposta explícita. Mas a solução implícita que nos propõe o Ensaio sobre os costumes é não per­ manecer em parte nenhuma exposto unicamente aos aconteci­ mentos, vincular pelo contrário diretamente a essa exposição uma análise intelectual dos fenômenos que permita separar o con­ tingente e o necessário, o duradouro e o passageiro. Desse ponto de vista, Voltaire concebe o trabalho do historiador estrita­ mente sob a mesma luz que o trabalho do físico. Historiador e físico têm a mesma tarefa, a de descobrir a lei escondida no fluxo e na confusão dos fenômenos. Essa lei nada tem a ver, tanto na história quanto na natureza, com um plano divino que atribuiria a cada coisa seu lugar no todo. Devemos renunciar, tanto no conhecimento histórico quanto nas ciências da natureza, às ingenuidades da teleologia. Voltaire vê a encarnação dessa teleologia no Discurso sobre a história universal, de Bossuet, que ele admira, de resto, como obra-prima literária, mas censu­ rando-lhe ter assim transmudado em ouro o vil chumbo.28 A historiografia crítica deve nesse ponto prestar à história o mes­ mo serviço que os matemáticos prestaram às ciências da natureza. Ela deve libertar a história do domínio das causas finais e re­ conduzi-la às causas empíricas reais. A física foi libertada da teologia pelo conhecimento das leis mecânicas da natureza; é necessário que a psicologia realize a mesma tarefa no interior do mundo histórico. É a análise psicológica que determina, em de­ finitivo, o verdadeiro sentido da idéia de progresso; ela funda­ menta-a e justifica-a, ao mesmo tempo que aponta seus limites e mantém seu uso no interior desses limites. Ela mostra que a hu­ manidade não poderia ultrapassar as fronteiras da sua "natureza” — que essa natureza, entretanto, não é dada de uma vez por todas, que deve, pelo contrário, ser elaborada pouco a pouco e 294

continuamente imposta através de obstáculos e resistências. Ê evidente que a “razão", como faculdade humana fundamental, é dada desde o início e é por toda parte uma e idêntica. Mas, longe de se manifestar exteriormente em sua perenidade e em sua universalidade, ela dissimula-se por trás da multidão de usos e costumes e sucumbe ao peso dos preconceitos. A história mos­ tra como a razão sobrepuja pouco a pouco as resistências, como se torna o que é por natureza. Portanto, o verdadeiro progresso não diz respeito à razão nem, por conseguinte, à humanidade como tal, mas somente à sua exteriorização, à sua revelação (Sichtbarkeit) empírico-objetiva. E é justamente essa revelação, essa visibilidade progressiva, essa marcha da razão para a com­ pleta transparência o que constitui o verdadeiro sentido do pro­ cesso histórico. Não compete à história suscitar a questão meta­ física da origem da razão, que ela, de resto, não dispõe de nenhum meio para resolver. A razão como tal é algo de supratemporal, de necessário e de eterno que não requer, em absoluto, averiguar a questão do seu começo. Tudo o que a história pode provar é que o eterno, não obstante, manifesta-se temporalmente, tem lugar no transcurso do tempo e revela, pouco a pouco, de um modo cada vez mais puro e mais perfeito, sua configuração primeira e original. Voltaire fixou nessa concepção fundamental da história o programa teórico adotado depois por todos os historiadores sete­ centistas. Se não logrou pessoalmente o pleno preenchimento desse programa no seu Ensaio sobre os costumes, não há, con­ tudo, por que debitar os defeitos de execução que aí se obser­ vam ao sistema de pensamento do seu autor. É uma crítica apres­ sada e superficial aquela que pretende demonstrar através dessas insuficiências a “não-historicidade" fundamental do lluminismo. As fraquezas que se apressaram em opor à obra histórica de Voltaire são provenientes muho menos do seu sistema do que

295

da sua personalidade e do seu temperamento individual. Voltaire não tem a menor propensão para o caminho sereno das investi­ gações históricas, para a moderação, a indulgência e a perse­ verança que permitem levá-las a efeito. Se ele se volta para o passado, não é pelo passado em si mas no interesse do presente e do futuro. A história para ele não é um fim mas um meio, um instrumento de educação e de instrução do espírito humano. Longe de se contentar em examinar e investigar, Voltaire exige e antecipa com veemência o conteúdo de suas exigências. Não só acredita estar no bom caminho mas vê-se perto do fim, ine­ bria-se e exalta-se por atingir, enfim, o seu objetivo após tantos esforços e perplexidades. Esse ambiente, esse pathos pessoal transparece constantemente em sua exposição histórica. Essa ex­ posição é tanto mais perfeita porquanto Voltaire reencontrou no passado a melhor maneira de expressar seu próprio ideal. Por isso o momento culminante de sua obra histórica é O século de Luís XIV. Sem dúvida, Voltaire é capaz em muitos outros casos de vê-los com clareza e de raciocinar com justiça, mas, na maio­ ria das vezes, seus julgamentos e seus veredictos são exces­ sivamente rápidos e brutais para permitir um aprofundamento sereno. O orgulho intelectual do filósofo corta a palavra ao historiador. A todo instante, o relato empenha-se em proclamar como a idade clássica da razão é superior em saber e lucidez não só à Idade Média mas até a essa tão celebrada Antigui­ dade. Voltaire sucumbe a essa teleologia rudimentar que ele refuta e combate com tanta energia como teórico. Ele descobre na história o seu ideal filosófico, assim como Bossuet nela en­ controu o seu ideal teológico; este mede toda realidade pela bitola da Bíblia, aquele nunca deixa de impor ao passado, sem hesitação nem reserva, a medida da razão. Tudo isso, sem dú­ vida, criou obstáculos à realização desse vasto plano de uma história verdadeiramente universal que, em seu espírito, deveria

296

abranger com igual amor todas as culturas, todos os tempos e povos. Mas, por outro lado, é inegável que Voltaire possui espe­ cificamente os “defeitos de suas virtudes". O que poderia pa­ recer, objetivamente considerado, uma falta de abertura constitui, sob outro aspecto, a acuidade desafiadora do relato, o que lhe confere esses traços vivos e pessoais que cativaram e empolga­ ram os contemporâneos. Voltaire foi o primeiro pensador do século XVIII que deu vida à grande obra-prima histórica e encarnou-a num modelo clássico. Aliviou a história do acumulo de erudição, livrou-a do discurso obscuro e prolixo dos cronistas. É desse êxito que ele se orgulha, acima de tudo, é aí que ele coloca toda a sua dignidade de historiador. Quando em 1740 o capelão sueco Nordberg publicou sua história erudita de Car­ los XII, assinalando alguns equívocos de Voltaire e entregandose a algumas críticas um tanto mesquinhas da sua História de Carlos X I I , este último não tardou em devolver-lhe o cumpri­ mento com ênfase satírica: “Talvez seja uma coisa importante para a Europa" — escreveu ele a Nordberg — “que se saiba que a capela do castelo de Estocolmo, que ardeu há 50 anos, estava na nova ala do lado norte do palácio e que havia nela dois quadros do intendente Kloker, os quais estão atualmente na Igreja de São Nicolau; que as cadeiras estavam cobertas de azul nos dias de sermão; que umas eram de carvalho e outras de nogueira. Também acreditamos ser de extrema importância ficar instruídos a fundo de não haver ouro falso no pálio que serviu na coroação de Carlos XII; saber qual era a largura do baldaquino; se a igreja era decorada com planejamentos vermelhos ou azuis, e de que altura eram os bancos: tudo isso pode ter seu mérito para aqueles que querem instruir-se sobre os lídimos in­ teresses dos príncipes [ . . . ] Mas um historiador tem múltiplos de­ veres. Permita-me lembrar-lhe aqui dois que são merecedores de certa reflexão: o de não caluniar e o de não entediar. Desejo

297

perdoá-lo do primeiro, porque o seu livro não será lido por nin­ guém; mas não posso perdoar-lhe o segundo, porque fui obri­ gado a lê-lo." 29 Há aí mais do que sarcasmo; está aí expresso um novo ideal do estilo de historiador que Voltaire soube encarnar e impor como norma. Lorde Chesterffield dizia a respeito da obra histórica de Voltaire que ela continha a história do espírito humano "escrita por um homem de gênio para uso dos homens de espírito". Voltaire, na verdade, nesse domínio menos do que em nenhum outro, não sucumbe ao perigo de "fazer espírito": ele apóia-se em investigações especializadas, amplas e muito pro­ fundas, e a "acribia" do historiador nada tem de estranha para ele. A sua atenção prende-se, sobretudo, ao detalhe sociológico: interessa-se muito mais por descobrir e descrever o estado da sociedade em tal ou tal época, as formas vigentes de vida fami­ liar, as espécies e os avanços das artes e dos ofícios, do que em repisar eternamente a descrição das disputas políticas e religio­ sas das nações, suas guerras e suas batalhas. Recorre à filologia e à lingüística, declara que, com muita freqüência, uma etimo­ logia confirmada pode propiciar-nos uma idéia correta das trans­ formações dos povos, que o alfabeto de que um povo se serve testemunha incontestavelmente quem foi o seu verdadeiro edu­ cador e quais as fontes primordiais dos conhecimentos da na­ ção.80 Até mesmo a história das ciências teve que se submeter aos imperativos metodológicos assim fixados. Nesse domínio, D ’Alembert foi um discípulo de Voltaire. A influência decisiva que exerceu o Prefácio que escreveu para a Enciclopédia, do ponto de vista filosófico e literário, não repousa, em definitivo, no fato de que, pela primeira vez, a evolução das ciências estava sendo encarada nessa nova perspectiva? D ’Alembert não con­ cebe essa evolução como uma acumulação interminável de novos conhecimentos eruditos mas como o desenvolvimento metódico da idéia do próprio saber. Exige que, em lugar de uma poli-his298

tória, seja criada uma ciência filosófica dos princípios, cujos problemas serviriam para tratar a história das ciências. No plano enciclopédico do saber que nos ofereceu nos seus Elementos de filosofia, D ’Alembert definiu ainda nesse sentido a tarefa da his­ tória: “ A história geral das Ciências e das Artes encerra quatro grandes temas: os nossos conhecimentos, as nossas opiniões, as nossas disputas e os nossos erros. A história dos nossos conhe­ cimentos revela-nos as nossas riquezas ou, melhor, a nossa real indigência. Por um lado, humilha o homem ao mostrar-lhe o pouco que faz, por outro, enaltece-o e encoraja-o, ou pelo menos consola-o, desenvolvendo nele os usos multiplicados que soube fazer a partir de um pequeno número de noções claras e certas. A história das nossas opiniões faz-nos ver como os homens, ora por necessidade, ora por impaciência, substituíram com êxito diverso a verdade pela verossimilhança; ela mostra-nos como o que inicialmente era apenas provável tornou-se em seguida ver­ dadeiro à força de ter sido retocado, aprofundado, refeito e como que depurado por sucessivos trabalhos de vários séculos; ela oferece à nossa sagacidade e à dos nossos descendentes fatos a verificar, pontos de vista a seguir, conjeturas a aprofundar, conhecimentos começados que é mister aperfeiçoar [. . .] Enfim, a história dos nossos erros mais notáveis ensina-nos a desconfiar de nós mesmos e dos outros; além disso, ao mostrar os caminhos que se afastaram da verdade, facilita-nos a busca da verdadeira senda que nos conduz de volta a ela.” 81 O plano aqui traçado por D'Alembert encontrou, no que se refere à história das ciências exatas, uma brilhante realização na obra do seu mais genial discípulo. A Mecânica analítica, de Lagrange, oferece-nos uma amostra de história da ciência que é quase insuperável, mesmo em nossos dias. Os trabalhos ulterio­ res, por exemplo, a Kritische Geschichte der allgemeinen Prinzipien der Mechanik [História crítica dos princípios gerais da

299

m ecânica], de Eugen Dühring, mantiveram-se fiéis ao modelo metodológico que nos é aqui apresentado. Mas D ’Alembert vai ainda mais longe por conta própria; ele confere à história não só um valor teórico mas também um valor ético, e espera que ela nos proporcione o conhecimento cabal da humanidade moral. “A ciência da história depende da filosofia por dois lados: pelos princípios que servem de fundamentos à certeza histórica e pela utilidade que se pode extrair da história. Os homens colocados no palco do mundo são apreciados pelo indivíduo judicioso como testemunhas ou julgados como atores; ele estuda tanto o uni­ verso moral quanto o físico, no silêncio dos preconceitos; acom­ panha os relatos dos escritores com a mesma circunspecção com que observa os fenômenos da natureza; examina os matizes que distinguem a verdade histórica do verossímil e o verossímil do fabuloso; reconhece as diferentes linguagens da simplicidade, da lisonja, da prevenção e do ódio; fixa-lhes as características; determina quais devem ser, segundo a natureza dos fatos, os diversos graus de força nos testemunhos e a autoridade nas testemunhas. Esclarecido por essas regras tão sutis quanto se­ guras, é principalmente para conhecer os homens com quem convive que ele estuda aqueles que viveram. Para o comum dos leitores, a história é o alimento da curiosidade ou o alívio do tédio; para o indivíduo judicioso, é a compilação das experiên­ cias morais realizadas pelo gênero humano; compilação essa que seria mais concisa e mais completa se fosse ditada unica­ mente por critérios judiciosos, mas que, por imperfeita ou in­ completa que seja, ainda encerra as maiores lições; tal como a coletânea de observações médicas de todas as eras, sempre au­ mentada e sempre imperfeita, forma não obstante a parte mais essencial da arte de curar." 32 Assim se desperta, a partir da história, na filosofia do lluminismo a idéia de um estudo filosó­ fico do homem, de uma “antropologia geral" como a que Kant

300

elaborará sistematicamente e figurará em seu ensino.83 As pri­ meiras tentativas de uma história crítica da filosofia estão inti­ mamente ligadas a esses esforços. Os artigos de Diderot na Enciclopéia sobre diversos sistemas filosóficos ainda possuem apenas uma escassa originalidade no plano da história propria­ mente dita; foram inspirados, de maneira muito visível, por Bayle, Brucker e a Histoire critique de la philosophie, de DesIandes (1756). Um novo espírito manifestou-se porém nesses artigos, em particular nos dedicados à filosofia moderna — a Hobbes, Spinoza e Leibniz. O enunciado de opiniões cede cada vez mais o lugar à análise, encaminhada tanto no sentido histó­ rico quanto no sistemático, visando tanto ao conteúdo doutrinal quanto às condições históricas que o viram nascer. É claro que o predomínio do espírito analítico, tão carac­ terístico do século X V III, estende-se a todo esse domínio. Esse espírito também implica, em história, uma acentuada insistência no uniforme à custa da mudança, nos elementos de constância à custa dos elementos de movimento. Um único pensador do sé­ culo X V III soube conservar, em face dessa tendência dominante, uma posição original e autônoma: Hume, que não se afina mais com o tipo geral do Iluminismo para a filosofia da história do que para a teoria do conhecimento e a filosofia da religião. Coir Hume começa a abrandar, a flexibilizar-se essa perspectiva está­ tica, a qual se dedicava unicamente a conhecer as " propriedades ” fixas e imutáveis da natureza humana; ele prefere abordar o processo histórico como tal, em vez do substrato idêntico que imaginamos subjacente. Não só como lógico mas também como filósofo da história, Hume é o crítico da idéia de substância. Sem dúvida, não descreve a história como um movimento con­ tínuo, mas delicia-se com suas mudanças incansáveis, com a contemplação do devir como tal. Não busca uma "razão” nesse devir, não acredita nisso. Em vez de um interesse racional, é um

301

interesse psicológico e estético o que ele vincula ao desenrolar dos fatos. A "imaginação", que ele opõe à razão abstrata na sua teoria do conhecimento, sublinhando a sua importância, também adquire na história um papel preponderante; recorre-lhe como a faculdade fundamental do historiador. “ Haverá, na verdade, mais suave arrebatamento para o espírito do que transportar-se para as mais recuadas idades do mundo e observar a sociedade hum a­ na em sua infância, dando timidamente os seus primeiros passos no caminho das artes e das ciências; ver a política do governo e a civilidade da conversação afinando-se gradualmente, e tudo o que faz o ornamento da vida avançando para a perfeição?” Em vez de definir de antemão, em suas grandes linhas, a fina­ lidade da história, Hume prefere mergulhar na riqueza do seu conteúdo concreto. Para ele, a história é, por muito pouco que a inteligênca possa apreendê-la, por muito pouco que possamos penetrar em suas "razões” últimas, o mais nobre e o mais belo "divertimento do espírito” (Unterhaltung des Geistes)\ nenhum outro se lhe compara. "Como preferir-lhe esses passatempos fú­ teis que nos absorvem por tanto tempo? Como considerá-los mais satisfatórios, mais dignos de reter as nossas atenções? Que per­ versidade deve ser a de um gosto capaz de uma tão ruim escolha de seus prazeres!" Contudo, por mais alto que a história seja aqui erguida, por mais celebrada que seja como o mais nobre ornamento da existência humana, Hume nem por isso abjura do seu cepticismo. Comparemos esse elogio da ciência histórica com as esperanças, as exigências, o idealismo que o século X V III ti­ nha depositado inicialmente na história: o contraste logo nos im­ pressiona. Qual é essa vida dramaticamente movimentada que faz desfilar a história sob os nossos olhos? Que prazer se pode ter em acompanhar o nascimento, os progressos, a queda e final­ mente a destruição dos mais florescentes impérios? Em ver quais as virtudes que os levaram ao apogeu, quais os vícios que os conduziram ao declínio? uln short, to see ali humart race, from

302

the beginning of time, pass, as it were, in review before us; appearing in their true colours, w ithout any of those desguises, which, during their life time, so much perplexed the judgement of the beholders. W hat spectacle can be imagined, so magnifi­ cent, so various, so interesting? W hat amusement, either of the senses or the imagination, can be compared with it? ” 84 Que espetáculo — mas, lamentavelmente, nada mais do que um es­ petáculo! Pois Hume não acredita mais que se possa penetrar no sentido dos acontecimentos e descobrir nele o plano geral. Ele abandona a questão de saber que segredo se esconde no mais profundo do mundo histórico, desfrutando a simples con­ templação sem procurar medir pela craveira de uma “ idéia” preconcebida os quadros sempre cambiantes que a história faz refletir sob os nossos olhos. Mas, uma vez mais, não se faz jus ao cepticismo de Hume se apenas se tomar em consideração os seus elementos negativos. Até nesse papel aparentemente dissol­ vente ele realiza uma tarefa positiva muito importante. Resisten­ te a toda generalização apressada, prendendo-se à m aterialidade dos fatos, Hume não fornece apenas um alerta metodológico mas também um verdadeiro ajuste do método. Sua doutrina impõe a especificidade, a legitimidade do individual e rasga o caminho para o seu reconhecimento. Para dar a esse reconhe­ cimento o seu verdadeiro status filosófico era necessário, eviden­ temente, dar mais um passo, que ele não deu nem podia dar. Era preciso que o individual se tom asse não apenas um fato, a matter of fact, mas um problema. Não bastava chamá-lo do reino das idéias para o reino dos fatos: cumpria definir o lugar do individual no reino das idéias. Essa exigência mais profunda, à qual era mais difícil responder, consistia em criar uma nova idéia de indivíduo, extrair dela as diversas significações, as apli­ cações e modificações possíveis. O empirismo céptico de Hume não estava equipado para tal empreendimento. O pensamento do século X V III teria que enveredar por um novo caminho e

*03

confiar-se a um novo guia. Teria que trazer para a luz do dia o tesouro metodológico enterrado na doutrina de Leibniz: não fora essa doutrina a que dera ao problema da individualidade, graças ao princípio da "m ônada”, a sua expressão mais penetrante, ao colocá-lo no centro de todo um sistema filosófico?

4 A concepção leibniziana da substância também se propõe a distinguir o que permanece sob a mudança. De um outro lado, entretanto, a sua originalidade consiste em apresentar a relação entre o um e o múltiplo, entre a duração e a mudança, como uma relação de pura reciprocidade (WechselVerhältnis). Tal concepção não pretende subordinar o múltiplo ao um, o cambiante ao duradouro: parte do princípio de que esses mo­ mentos opostos somente se explicam uns pelos outros. Por con­ seguinte, um conhecimento autêntico não pode ser um conheci­ mento ou do duradouro ou do cambiante: cumpre dem onstrar a sua interdependência, apreender a sua correlação. É na m udan­ ça incessante que se revela a unidade da lei, a unidade da subs­ tância; é aí que ela encontra a única expressão de que é susce­ tível. A substância persiste: essa substância não implica, porém, nenhuma imobilidade; pelo contrário, essa substância envolve a regra constantemente idêntica a si mesma de seu próprio pro­ gresso. A concepção estática da substância cede o lugar a uma concepção dinâmica: a substância só é "sujeito" ou "substrato" na medida em que é força, em que se revela diretamente ativa, em que manifesta a sua verdadeira natureza pela sucessão de suas atividades. A natureza da substância não consiste em permane­ cer fechada em si mesma: ela é produtividade, desenvolvimento de uma diversidade sem fim a partir de si. A sua "existência" é precisamente essa "gênese” de um conteúdo sempre renovado,

304

a produção incessante de seus fenômenos. A totalidade desses fenômenos estó, bem entendido, prefigurada na substância; não se produz propriamente nenhuma "epigênese", nenhuma forma­ ção nova, no sentido de que seria determinada do exterior. Tudo o que a substância poderia parecer engendrar sob a ação de forças exteriores está, na verdade, baseado também na sua própria natureza, aí se encontra pré-formado, predeterm inado. Por outra parte, entretanto, não se trata de imaginar-se uma determinação rígida e acabada. O ser da substância não está acabado na plena realização do seu desenvolvimento; o meio e o fim são tão essenciais quanto o seu começo. A metafísica leibniziana fundam enta o ser da "m ônada” em sua identidade, sem deixar de adm itir nessa identidade a idéia de continuidade. Identidade e continuidade assim reunidas estão na origem da totalidade, ou seja, de sua organização interna em torno do seu próprio centro.88 Essa idéia fundamenta] da metafísica leibniziana devia for­ necer um novo e promissor ponto de partida para a conquista do mundo histórico. Mas foi preciso esperar bastante tempo até que esse empreendimento cumprisse suas promessas e se desen­ volvesse livremente. Sem dúvida, o sistema de W olff não descar­ tou, em absoluto, o problema da história; ele procurou até defi­ nir com nitidez a posição da história em face do mundo racio­ nal. Segundo a teoria da ciência de W olff, cada disciplina divide-se em duas partes uma concreta, empírica, a outra “históri­ ca". A experiência deve conservar a totalidade dos seus direitos na economia do sistema: a cosmologia geral estribar-se-á na física empírica, a psicologia racional na psicologia empírica. Mas o equilíbrio que W olff esforça-se assim por m anter pouco se justifica num plano puramente metodológico e é a própria forma do sistema, a da dedução, da demonstração m atemática, que entra em conflito com esse equilíbrio. A filosofia, segundo a

305

sua própria tarefa, continua sendo a ciência do racional, não a do histórico; a ciência do possível, não a da existência de facto: scientia possibilium quúatenus esse possunt. Portanto, uma "filo­ sofia da história” propriamente dita não pode encontrar lugar no sistema de W olff, já que ela implicaria uma mistura de gêneros, uma confusão das f r o n t^ a s do saber, uma verdadeira uerápafttç etç «Uc vrvn. * Não é o mundo dos fatos, aquele de que trata a história, o que constitui o objeto da filosofia, mas o mundo das “razões”. E, mesmo quando a filo­ sofia se aplica aos fatos empíricos, é ainda o princípio de razão que permanece como sua máxima e seu fio condutor. A univer­ salidade e a necessidade das causas contradizem o caráter con­ tingente, eventual e singular que se liga de modo inseparável a toda a existência histórica. Não se trata de atingir dessa forma o ideal de rigorosa “clareza” matemático-filosófica: jamais a história terá acesso ao santuário da ciência e da filosofia. Tinha parecido, entretanto, que esse santuário era suscetí­ vel de entreabrir-se por um outro lado. Enquanto a filosofia, em sua pureza abstrata, mantinha-se à margem do mundo histórico, acreditando poder e dever preservar-se, a teologia tomara a ini­ ciativa de deslocar as fronteiras, de recusar a legitimidade dos compartimentos estanques que separavam o conteúdo “dogmá­ tico” do conteúdo “histórico” da fé. Já vimos qual tinha sido o ponto de partida desse movimento, que objetivos intelectuais o tinham determinado.38 No âmbito do pensamento alemão, foi Lessing quem nesse movimento chegou às últimas conseqüên­ cias, foi com ele que o método atingiu seu ponto culminante. Em Erziehung des Menschengeschlechts [Educação do gênero * Metabasis eis alio genos (literalmente, transposição para outro gê­ nero). Consiste em “falar de uma outra coisa”, isto é, dar a um termo um significado distinto por pertencer a uma classe diferente daquela em que esse termo foi inicialmente entendido (Cf. J. Ferrater Mora, Dicfonârio de filosofia, no verbete "sofisma” ) (N. do T .).

306

hum ano], o religioso reconcilia-se com o histórico, que assim é reconhecido como um fator necessário, um momento indispen­ sável do religioso. Contudo, o pensamento de Lessing não se estende ao mundo histórico como tal. Que o dedo da Providên­ cia o tenha organizado até os ínfimos detalhes é algo de que Lessing não duvida, por certo, mas nem por isso se permite erguer o véu desses mistérios. Foi preciso esperar H erder para que esse passo decisivo fosse dado. Sua obra, para quem a toma em sua totalidade concreta., é incomparável; ela não conhe­ ce antecipação nem preparação na cultura da época. Parece cair do céu, gerada pelo nada: brota de uma visão da história que é inigualável em pureza e perfeição. Essa nova concepção do mundo histórico jamais poderia fundar-se, entretanto, e desen­ volver-se sistematicamente sem os instrumentos intelectuais que já estavam à sua disposição. A "m etafísica” da história de Her­ der liga-se em todos os pontos às idéias de Leibniz, se bem que a vivacidade das perspectivas a coloque, desde o início, prote­ gida do perigo de aplicar esquematicamente a teoria.87 Com efei­ to, ela não se contenta em buscar o simples contorno da história; quer discernir separadamente cada forma e apropriar-se dela de dentro para fora. Rompe, em definitivo, com as limitações do pensamento analítico, particularm ente com o princípio de iden­ tidade. A história aniquila toda identidade aparente, nada co­ nhece que seja realmente idêntico, ignora todo retorno ao seme­ lhante. Não pára de engendrar novas criaturas e de dotar os seres a que dá vida com um a forma própria e um modo de existência autônomo. Toda a generalização abstrata é, portanto, impotente em seu domínio. Nenhum conceito específico único, nenhuma norma universalmente coerciva é capaz de englobar toda a sua riqueza. Cada situação hum ana tem seu valor sin­ gular, cada fase da história possui seus direitos próprios e sua necessidade imanente. Fases e situações não são isoladas umas

307

das outras, elas só existem no todo e pelo todo. Cada uma delas é igualmente indispensável ao todo. É em sua heterogeneidade perfeita que se constitui a verdadeira unidade, a qual não se representará como unidade de um estado de coisas mas como a de um processo. O primeiro esforço do historiador deverá, portanto, ser, em vez de submeter o seu objeto a uma medida uniforme fixada definitivamente, o de adaptar a sua medida à individualidade do objeto. " É uma tolice" — protestou Herder a propósito dos egípcios — "exum ar tal ou tal virtude egípcia singular de sua terra, de seu tempo e dos alvores do espírito humano a fim de exprimir o seu valor nas medidas de um outro tempo! [ . . . ] Deixemos o grego equivocar-se totalmente acerca do egípcio e o oriental odiá-lo: o nosso primeiro pensamento não pode ser outro senão vê-los, muito simplesmente, em seus pró­ prios lugares, sob pena de os enxergarmos, sobretudo desde a Europa, como caricatura grotesca." É preciso que a história re­ nuncie às "caracterizações gerais". "Faz-se o retrato de um povo inteiro, de uma época, de uma regifio — mas de quem é esse retrato? Ajuntam-se povos e tempos, sucedendo-se e sobrepondo-se uns aos outros como as ondas do m ar — de quem é a ima­ gem? Quem encontrou a palavra certa para descrevê-los? [. . .] Quem observou que coisa inefável é a qualidade própria de um homem, pela qual se possa dizer, ao apontar tudo o que a dis­ tingue, como ele sente e como ele vive, como todas as coisas mudam e lhe pertencem depois que seus olhos as viram, que sua alma as avaliou, que seu coração as sentiu — que profun­ didade se esconde no caráter de uma única nação que, por mais assiduamente que tenha sido observada e admirada, nem por isso escapa a todo discurso ou, pelo menos, nesse discurso, é tão raramente reconhecível para aquele que a compreende e a interpreta — e isso nada é comparável com o desejo de domi­ nar o oceano de todos os povos, de todos os tempos e de todos

308

os lugares, abrangê-los num olhar, num sentimento, numa pala­ vra! O discurso, perfil obscuro de um semimorto! Seria preciso reunir aí toda a pintura vibrante do modo de vida, dos costu­ mes, das necessidades, dos caracteres da terra e do céu, ou de já os ter percorrido, seria preciso simpatizar com essa nação para sentir uma só de suas inclinações e de seus comportamentos, para senti-lo^ todos juntos, encontrar uma palavra, todo o pen­ samento em sua plenitude — ou então que se lê? uma pala­ vra." 38 Para esse gênero de "achado” (Finden) das palavras que evocam para nós, espontaneamente, a imagem concreta que permite não as distinções analíticas mas a síntese intelectual e visual, os recursos de Herder são inesgotáveis; é aí que ele dá provas de sua verdadeira mestria. Ele não se contenta em des­ crever, em caracterizar; ele próprio se insere em cada uma das épocas que vivência, para cada uma delas alimenta o sentimento correto, o único que convém. Pois recusa também a quimera de uma "felicidade absoluta, autônoma, imutável, tal como o filó­ sofo a define”. A natureza humana não é o receptáculo de uma felicidade dessa espécie: "Mas atrai para si de toda parte tanta felicidade quanto lhe é possível: uma argila flexível, capaz nas mais diversas situações de se formarem as necessidades e as opressões mais variadas [. . .] A partir do instante em que o sen­ tido interior de felicidade, a partir do instante em que a incli­ nação mudou: logo que as circunstâncias e as necessidades exte­ riores adotam esse outro sentido — quem pode com parar as sa­ tisfações diversas, de diversos sentidos, em sentidos diversos? Toda a nação conserva nela o seu centro de felicidade, assim como cada esfera o seu centro de gravidade!" A própria Provi­ dência não aspirou, em absoluto, à monotonia e à uniformidade; ela quis alcançar seus fins pela mudança, a criação perpétua de novas forças e a destruição das outras: "Filósofo, no teu vale do norte, a balança infantil do teu século à mão, sabe-o tu

309

melhor do que ela?" 86 Vê-se por essas palavras que, sob a influência e com a ajuda de Hamann, H erder guarda uma certa distância em relação ao seu próprio tempo. £ em vão que se buscaria em toda a filosofia da história do século X V III um tão nobre timbre de sino quanto na obra dele; nada desse gênero tampouco se encontra em Montesquieu, Voltaire ou Hume. E, no entanto, ainda que se eleve muito acima dela, Herder não rompe abruptam ente com a filosofia do Iluminismo. Esse pro­ gresso e essa elevação só eram possíveis nos caminhos abertos pelo século X V III, o qual, portanto, forjou de maneira defini­ tiva as próprias armas que permitiram vencê-lo e fixou, com o rigor e a precisão que o caracterizam, as premissas donde H er­ der extraiu suas conclusões. £ nesse sentido que a vitória alcan­ çada por Herder sobre o século X V III constitui, na verdade, uma vitória que o século X V III alcança sobre si mesmo; é uma daquelas derrotas que são, talvez, a mais clara expressão do triunfo. Foi ao superar-se a si mesmo que a filosofia do Iluminismo atingiu o seu apogeu espiritual.

310

NOTAS

1 Publicado originalmente na revista Deutsche Rundschau, agosto setembro de 1901; faz agora parte de Gesam. Schriften, vol. III (1927), pp. 209 e ss. 2 Cf. acima, pp. 145 e ss.; para uma exposição mais detalhada, ver Aner, Theologie der Lessingzeit, pp. 204 e ss., 233, 309 e passim. 3 Carta ao irmão de 27 de fevereiro de 1773; em Lettres de Bayle à sa famille; no Apêndice das Oeuvres Diverses, Haia, 1737; vol. I. [Em francês no original: “Vejo perfeitamente que a minha insaciabi­ lidade de novidades é uma das doenças pertinazes contra as quais todos os remédios fracassam. É uma hidropsia pura. Quanto mais se lhe dá, mais ela pede.” N. do T.]. 4 Projet d'un dictionnaire critique (Dissertation a du Rondei), Roter­ dã, 1692; cf. Delvolvé, Religion, critique et philosophie positive chez Pierre Bayle, Paris, 1906, pp. 226 e ss. BDissertation à Du Rondel. 6 Dictionnaire, artigo “Archelaus”, cf. Delvolvé, op. cit., p. 226. 7 Dictionnaire, artigo “Manichéens”, comentário D. 8 Carta a Naudis de 22 de maio de 1692. Lettres de Bayle à sa famille, Oeuvres Diverses, I, apêndice, p. 161. 9 “II ne faut pas souffrir qu'un homme qui cite altère le moins du monde le rapport de son témoin.” [“Não se deve consentir que um homem que cita altere seja o que for no depoimento da sua testemunha.”] “Nou­ velles de la république des lettres”, Oeuvres Diverses, vol. I, p. 530; cf. Dictionnaire, artigo “Péricles”, comentário E; para o conjunto, ver La­ coste, Bayle. Nouvelliste et critique littéraire, Paris, 1929, pp. 27 e ss. 10 Dictionnaire, artigo “Usson”, comentário F, vol. IV, fol. 2858. 11 O espírito das leis, Livro III, cap. 1; cf. cap. 2 e ss. 12 Cf. O espírito das leis, Livro III, cap. 11 : “Tais são os princípios dos três governos, o que não significa que, em determinada república, seja-se virtuoso, mas sim que se deveria sê-lo. Isso tampouco prova que numa certa monarquia reine a honra e que, num dado Estado despótico, vigore o medo; mas sim que a honra e o medo deveriam existir, sem o quê tais formas de governo seriam imperfeitas 13 O espírito das leis, VIII, p. 1. 14 lbid., VIII, p. 11. 15 O espírito das leis, I, p. 1.

311

16 Considérations sur les causes de la grandeur des romains et de leurs décadence, cap. XVIII. 17 o espírito das leis, XIV, p. 5; cf. cm particular, XVI, p. 12. is ibid., XIV, p. 1. 1» Ibid., I, p. 1. 20 Cf. a esse respeito Sorel, Montesquieu, Paris, 1887, pp. 151 e ss. 21 O espírito das leis, XI, p. 6. 22 Cf. Herder, Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit, Werke (Suphan) V, p. 565. 28 “f u i o primeiro a caminhar com passo livre nessa terra vazia.*' Lessing, Schriften (Ed. Lachifiann-Muncker) V, p. 143. 24 Cf. Voltaire, Remarques pour servir de supplément à VEssai sur les moeurs, Oeuvres (Paris, Lequien, 1820), XVIII, pp. 420 e ss. 25 Carta de 26 de maio de 1742, Oeuvres, ed. Lequien, LI, p. 119. 26 Sobre esses diversos pontos, cf. o meu livro Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueen Zeit, I, pp. 164 e ss. 27 Essai sur les moeurs, cap. CXCVII, Oeuvres, XVIII, p. 425. 28 Voltaire, Le Pyrrhonisme de Vhistoire (1768), cap. 2; Oeuvres, XXVI, p. 163. 20 Carta a Nordberg, no prefácio da nova edição da Histoire de Charles XII (1741); Oeuvres, XXII, pp. 12 e ss.; sobre Nordberg e sua crítica a Voltaire, ver Georg Brandes, Voltaire, I, pp. 182 e ss. 80 Essai sur les moeurs, “Introduction”, Oeuvres, XV, 110; sobre Voltaire historiador, ver Gustave Lanson, Voltaire, cap. 6; 6.a edição, pp. 107 e ss. 81 D'Alembert, Êléments de philosophie, sec. II (Mélanges de littérature etc., vol. IV, pp. 9 e ss.). 82 D'Alembert, Êléments de philosophie III; loc. cit., pp. 16 e ss. 83 Cf. em particular as indicações de Kant sobre a orientação dos seus cursos durante o semestre de inverno de 1765-1766, Werke (ed. Cassirer), II, pp. 319 e ss. 84 Em inglês no original: “Em resumo, ver toda a raça humana, desde o começo do tempo, desfilar, por assim dizer, diante de nossos olhos; apresentando-se em suas verdadeiras cores, sem qualquer daqueles disfarces que, durante suas vidas, tanto desconcertaram o julgamento dos espectadores. Que espetáculo pode ser imaginado que seja tão magní­ fico, tão variado e interessante? Que entretenimento, dos sentidos ou da imaginação, lhe pode ser comparado?" (N. do T .) Hume, Of the study of History. Essays moral, political and literary, ed. Green & Grose, nova impressão, Londres, 1898, vol. II, pp. 388 e ss.

312

85 Cf. acima cap. I, pp. 51 c ss. 86 Ver acima pp. 246 e ss. 87 Para a relação entre a filosofia da história de Herder e os con­ ceitos fundamentais da filosofia de Leibniz, cf. a pormenorizada expo­ sição no meu ensaio Freiheit und Form, Studien zur deutschen Geistesge­ schichte, 3.a edição, pp. 180 e ss. 88 Herder, Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit (Idéias para uma filosofia da história da humanidade), Werke (Suphan), V, pp. 489 e ss., 501 e ss. 89 Herder, op. cit., V, pp. 507 e ss.

313

O DIRE IT O

,O

VI

ESTADO E A SOCIEDADE

A idéia de direito e o princípio dos direitos inalienáveis Uma das características essenciais da filosofia do Iluminismo é que, apesar do seu apaixonado impulso para o progresso, apesar de todos os seus esforços para quebrar as velhas Tábuas da Lei e reconstruir a vida sobre alicerces intelectuais comple­ tamente novos, ela nem por isso deixou de voltar incessantemen­ te aos problemas filosóficos originários da humanidade. Já Descartes se defendia contra aqueles que lhe censuravam querer fundar uma filosofia absolutamente "nova” explicando-lhes que a sua doutrina, uma vez que assentava em princípios estrita­ mente racionais, uma vez que se apoiava somente na razão, podia muito bem reivindicar o privilégio da Antiguidade. Quem, senão a razão, possui com efeito o verdadeiro direito de primogenitura? Não domina ela, do alto de sua idade, todas essas opiniões e todos esses preconceitos que a obnubilaram no de­ correr dos séculos? A filosofia do Iluminismo fez sua essa reivin­ dicação. Ela luta em todos os domínios contra o poder do costume, da tradição e da autoridade. Contudo, não crê estar

315

desempenhando assim uma tarefa puramente negativa e dissol­ vente. Pelo contrário, quer varrer o entulho do passado para desembaraçar e instaurar as fundações definitivas do seu edifí­ cio. Essas mesmas fundações são imutáveis e inabaláveis, tão antigas quanto a própria humanidade. Por conseguinte, a filo­ sofia do Iluminismo não considera a sua obra um ato de destruição mas um ato de restauração. Até em suas mais audaciosas revoluções, ela quer ser apenas uma restituição: uma restitutio in integrum pela qual a razão e a hum anidade devem ser res­ tauradas em seus antigos direitos. De um ponto de vista histó­ rico, essa dupla tendência afirma-se no sentido de que a filosofia do Iluminismo, no decorrer de todos os seus combates contra a ordem existente e o passado imediato, sempre se compraz em voltar aos temas intelectuais da Antiguidade e aos problemas antigos. A esse respeito, acertou o passo, por assim dizer, com o Humanismo renascentista, que lhe transmitiu suas aquisições. Mas usa essa herança de um modo essencialmente mais livre do que o Humanismo lograra fazer outrora, encerrado como estava no quadro da investigação puramente erudita. Só extrai dessa herança alguns traços fundamentais que se harmonizam com o seu modo de pensar, sem preocupação com o resto, que abandona. Mas ocorre justamente com bastante freqüência que a filosofia do Iluminismo, ao acentuar com tanta nitidez esses traços, devolva-nos à fonte verdadeira dos problemas. É um pouco o papel que ela desempenhou no tocante ao problema do direito. Em nenhum caso pretende manter-se na consideração apenas dos direitos adquiridos historicamente: ela remete-se ao "direito que temos de nascença". Mas para fundar e sustentar esse direito, ela vincula-se à mais antiga herança intelectual; leva-nos de volta ao problema radicalmente formulado por Pla­ tão. Com efeito, Platão tinha apresentado a questão fundamental das relações do direito e da força: essa questão foi reatada pelo

316

século X V III, que a adapta à sua própria vida intelectual. Nesse ponto, ela consegue, por cima de dois mil anos de história, estatabelecer um diálogo direto com o mundo intelectual antigo que é tão importante do ponto de vista da história das idéias quanto de um ponto de vista puramente especulativo. As^duas teses fundamentais sustentadas na República de P latáftjJoí Sócrates e T rasfmacos entram uma vez mais em conflito. É evidentem èfitr nüma outra perspectiva que as reencontramos, é num mundo intelectual fundamentalmente diferente que ambas as teses são formuladas de novo. Mas essa mudança de circunstâncias não suprime o parentesco profundo e a comunidade real das teses antigas e novas. TJa Tíngua âe duas épocas diferentes revela-se uma só e mesma dialética que nada perdeu de sua força e de seu rigor, que descarta todas as conciliações tentadas preceden­ temente para caminhar, sobre novas bases, em direção a uma nítida decisão de princípio. A questão platônica da "natureza” do justo, de sua essência própria, não é um problema isolado, parcelar, que requeriria apenas uma idéia singular e sua explicação filosófica. Na ver­ dade, ela é inseparável da questão universal e fundamental do sentido e da realidade da Idéia em geral e só poderá receber esclarecimento e solução definitiva nessa perspectiva geral. Em nossas idéias tanto lógicas quanto éticas, exprimir-se-á uma reali­ dade objetiva e determinada, existente em si? Ou essas idéias nada mais são do que sinais verbais a que atribuímos arbitra­ riamente um certo conteúdo? Existirá o igual em si, o belo em si, o justo em si? Ou é em vão que buscamos, no curso cam­ biante das nossas representações e opiniões, algo que seja autên­ tica e verdadeiramente idêntico, que não seja carreado ao acaso e puxado para cá e para lá ao sabor das nossas fantasias (phantasmata)? Haverá uma forma originária e fundamental, modelo e correlato das nossas idéias? Ou o simples fato de propor a

317

questão encerra mal-entendido e quim era? Tal é o alcance uni« versai da decisão em causa nos profundos debates que se desen­ rolam no Górgias e na República a respeito da essência do justo. É jj propósito da questão da natureza, do eidos da justiça, com efeito, que deve seF resõlvtdí a qBWRKT d é lK re ito do eidos como~ tal, do seu qattFfQfiss pT5pno. Se se Tevela que, examinada m ais"3e pertd,"a Tcléia de justiça reduz-se a nada, que ao invés de conter um sentido essencial e imutável ela designa apenas uma representação instável e fugaz, então a mesma sorte está reservada a toda e qualquer outra realidade que tenha podido aspirar à dignidade de idéia. A idéia só vale, nesse caso, por instituição, ôéaet , não por natureza, tpdaei ; somente a instituição lhe confere realidade, somente da insti­ tuição dependem seu conteúdo e sua duração relativa. Ao atacar, sobre esse ponto, a solução sofística, ao empenhar-se em pre­ servar o conteúdo essencial do direito — a saber, o que o direito “é ” no sentido mais puro e o que significa no sentido mais profundo — de toda mistura com a simples força, ao interditar ao direito basear-se na força, Platão apresenta a verdadeira e crucial questão de sua filosofia .^Trata-se, para ele, do ser e do não-ser, não só da ética mas também da lógica. O curso ülfêHõr da história levará, sem dúvida nenhuma, a abrandar cada vez mais o rigor dessa ligação. A forma metodológica da questão platônica será, depois, cada vez mais raram ente compreendida em sua significação própria; só o conteúdo sobrevive, e consti­ tui um dos elementos que, de um modo ou de outro, deve ter ^lugar certo em todas as "teorias” do direito e do Estado. É preciso esperar pelos séculos XVII e X V III para que o problema seja abordado de novo em toda amplitude de sua uni­ versalidade. Foi Hugo Grotius, muito especialmente, quem abriu o caminho nesse domínio. Ele não é apenas homem político e jurista mas também um humanista de vasta erudição; é mesmo

318

o pensador mais importante e mais original produzido nos meios humanistas. Por isso procura, de múltiplas maneiras, ligar-se dire­ tamente às doutrinas da Antiguidade. Em seu tratado Lehre vom Ursprung der Geselschaft und vom Ursprung des Rechts [Dou­ trina da origem da sociedade e do direito], Grotius remonta primeiro a Aristóteles e deste a Platão. Do mesmo modo que em Platão a doutrina do direito nasce da interação da lógica e da ética, também o problema do direito, no espírito de Grotius, liga-se ao problema das matemáticas. Essa síntese é um dos traços característicos da orientação geral do século X V II. As matemáticas constituem o meio e o instrumento intelectual da restauração das "idéias" platônicas. Não só a física mas também as ciências "m orais" enveredaram por esse caminho. Entretanto, o vínculo metodológico que assim se instala comporta certa­ mente para as ciências jurídicas conseqüências que, à primeira vista, são sumamente paradoxais e perigosas; o que o direito pode ganhar num plano puramente ideal, parece estar fadado a perdê-lo do ponto de vista da "realidade”, da aplicação empí­ rica. Abandona o mundo do real, do efetivo, do eficiente a fim de transferir-se para o lado do “possível”. Leibniz não fez mais do que extrair a conclusão clara e segura das idéias de Hugo Grotius quando declarou que a ciência jurídica faz parte daque­ las disciplinas que não dependem da experiência mas de defi­ nições, não dos fatos mas de provas estritamente racionais. O que é o direito e a justiça em si? Essa questão não pode, eviden­ temente, ser esclarecida pela experiência. Direito e justiça en­ cerram a idéia de um acordo, de uma proporcionalidade e harmonia, que continuaria válida mesmo que nunca viesse a en­ contrar sua realização concreta num determinado caso, mesmo que não houvesse ninguém para exercer a justiça e ninguém a cujo respeito ela tivesse que ser exercida. O direito compara-se nisso à aritmética: o que essa ciência nos ensina sobre a natu­

319

reza dos números e suas relações contém uma verdade eterna e necessária, uma verdade que subsistiria intata mesmo que o mundo empírico desmoronasse inteiro e não houvesse mais nin­ guém para ser efetivamente contado, nem sobrasse objeto algum a contar.1 É a mesma comparação e a mesma analogia metodo­ lógica que Grotius coloca no centro da sua argumentação no prefácio da sua principal obra. Ele declara expressamente que suas deduções sobre o direito da guerra e da paz (em De jure belli ac pacis, 1625) não têm o propósito de fornecer uma so­ lução determinada para esta ou aquela questão concreta, para os problemas da política contemporânea. Pelo contrário, ele des­ carta do debate todas as intenções desse gênero, da mesma forma que o matemático tem o costume de considerar as figu­ ras sobre as quais raciocina independentemente de toda reali­ dade material. No desenvolvimento ulterior da doutrina do di­ reito natural essa matematização do direito foi levada ainda muito mais longe. Pufendorf chega a advertir-nos contra uma conclusão precipitada: o fato de que os princípios do direito natural aplicam-se a certos problemas concretos poderia lançar sobre eles uma certa suspeita; não obstante, eles são de uma evidência perfeita, tanto quanto podem sê-lo os axiomas da matemática. Se a teoria do direito natural relaciona assim o di­ reito e a matemática, é porque essas duas disciplinas são para ela os símbolos de um só e mesmo poder espiritual; ela vê em ambas os mais importantes testemunhos da autonomia e espon­ taneidade do espírito. Uma vez que o espírito é capaz, a partir de si mesmo, de gerar suas "idéias inatas", de iniciar e con­ cluir a construção do domínio das grandezas e dos números, não poderia possuir um menor poder de construção e elaboração criadora no domínio do direito. Ele tem que partir de normas originais, que cria por iniciativa própria, e abrir um caminho até a formulação do particular Não existe para o espírito outro

320

meio de elevar-se acima da contingência, da dispersão e da exte­ rioridade do mundo dos fatos, a fim de produzir um sistema jurídico tal que todos os elementos venham a ccncaterna-se na urdidura do todo, que cada decisão individual receba do todo a sua sanção e a sua autenticação. Para que essa tese capital do direito natural pudesse dar suas provas, era preciso superar dois impedimentos e enfrentar dois poderosos adversários. Por um lado, o direito tinha que afirmar sua originalidade e sua autonomia intelectual em rela­ ção aos dogmas da teologia e escapar a seu perigoso assédio; por outro lado, cumpria-lhe definir e delimitar claramente a es­ fera do jurídico em face da do Estado e protegê-la, em sua especificidade e em seu valor próprio, do absolutismo estatal. Por conseguinte, o combate para a fundação do direito natural moderno travou-se em duas frentes. Deve prosseguir contra a doutrina teocrática que deduz o direito de uma vontade divina absolutamente irracional, impenetrável e inacessível à razão hu­ mana, assim como contra o “Estado Leviatã”. Em ambos os casos, trata-se de abalar e vencer um só e mesmo princípio, o stat pro ratione voluntas. Calvino estribava-se nesse princípio para provar que todo direito se baseia, em definitivo, na onipo­ tência divina, que essa, porém, é absolutamente indeterminável e não está sujeita à limitação de nenhuma regra ou norma. O cerne da dogmática calvinista reside nesse pensamento, mormen­ te o dogma central da predestinação; beatitude e danação aí estão implícitas. Não cabe interrogar-se sobre a razão e o direito da decisão divina de salvar a alma; formular tal indagação já representaria uma impertinência sacrílega, uma exaltação da ra­ zão humana acima do próprio Deus. É o poder absoluto de Deus que rejeita a maior parte da humanidade, ao passo que salva e exalta o pequeno círculo dos eleitos; danação e salvação ocorrem sem nenhuma "razão" no sentido humano do termo, sem a

321

menor consideração pela dignidade ou o mérito moral. A pro­ blemática filosófica do direito natural desenvolveu-se a partir dessa problemática religiosa. Grotius é um dos campeões inte­ lectuais do movimento que, na Holanda, sob a liderança do bispo Jakob Arminius, opunha-se ao dogma calvinista da graça eletiva. O seu combate nas fileiras dos arminianos e dos "rem onstrantes” não só marcou profundam ente o seu destino pes­ soal — após a condenação do arminianismo no sínodo de Dordrecht, ele foi privado de seus cargos e encarcerado — mas imprimiu igualmente uma orientação a toda a sua atividade eru­ dita e literária. Grotius encontra-se precisamente na mesma si­ tuação em que Erasmo se encontrara: defendendo o ideal de liberdade do humanismo contra a doutrina do servo arbitrio que fora restabelecida em toda a sua acuidade pelos líderes da Re­ forma, tanto Lutero quanto Calvino. Mas, ao mesmo tempo, vê-se chamado a lutar contra um outro adversário. Depois da onipotência divina, é contra a onipotência do Estado que Grotius deve terçar armas, contra o "Deus m ortal”, segundo a fórmula tão expressiva e tão característica de Hobbes.2 Nesse outro com­ bate, ele enfrenta um pensamento especificamente moderno que vinha, desde a Renascença, ganhando continuamente terreno. Depois de O príncipe, de Maquiavel, e do De Republica, de Bodin, a idéia de que o detentor do poder supremo do Estado não está sujeito a nenhuma condição ou restrição jurídica foi objeto de uma penetrante elaboração. Em contraste com essas duas correntes, o direito natural sustenta como tese suprema a existência de um direito que sobreleva todo poder humano ou divino e que é dele independente. O conteúdo da idéia do direito como tal não tem sua fonte no domínio do poder e da vontade mas no da razão pura. Nenhum ato de autoridade pode m udar ou retirar seja o que for ao que essa razão concebe como "exis­ tente”, ao que é dado em sua pura essência. A lei, em seu

322

sentido primeiro e originário, no sentido de lex naturalis, jamais se resolve numa soma de atos arbitrários. Ela não é a totalidade do que foi ordenado e estatuído: é o "estatuante” originário, ordo ordinans e não ordo ordinatus. A idéia completa de lei pressupõe, sem dúvida, um mandamento (Gebot) endereçado à vontade individual; mas o mandamento não cria a idéia de direi­ to e de justiça, sujeita a essa idéia; coloca-a em execução. Abstenhamo-nos, porém, de confundir essa execução com a fu n ­ dação da idéia de direito como tal. É nos "Prolegômenos" de sua obra De jure belli ac pacis, onde Grotius procede a essa fundação, que se manifesta com maior nitidez o "platonism o” da doutrina moderna do direito natural. Sabe-se que o demiurgo platônico não é o criador de idéias, que ele apenas modela o mundo real à sua imagem, ao im itar o modelo incriado e sempre existente; o mesmo ocorre, segundo Grotius, com a formação e ordenação da sociedade civil. Ao decretar as leis positivas, o legislador conserva os olhos fixados numa norma de validade universal, exemplar, coerciva para a sua própria vontade e para todas as outras. É nesse sentido que se deve entender a célebre frase de Grotius de que todas as teses do direito natural conser­ variam sua validade mesmo admitindo que não exista nenhum Deus ou que a própria divindade não tivesse a menor preocupa­ ção com as coisas humanas.3 Essa proposição não tem a intenção de cavar um abismo entre a religião, por uma parte, o direito e a moralidade, por outra. Grotius continua sendo, em toda a sua personalidade, um pensador profundam ente religioso: põe tanto empenho na renovação moral, na reforma da religião, quanto na fundação intelectual e no aprofundamento da idéia de direito. A tese de que pode e deve existir um direito sem que se seja por isso obrigado a adm itir a existência de Deus tem que ser, portanto, compreendida hipoteticamente e nunca “teticamente". Entendida como a afirmação de uma tese, é

323

evidente que não significaria outra coisa, como Grotius logo acrescenta, senão uma impertinência e um absurdo. Em contra­ partida, como simples "hipótese", na acepção platônica do termo, ela serve para eliminar nitidamente as diversas competências no âmbito da esfera moral e religiosa que Grotius ainda considera uma unidade perfeita (a separação que será efetuada no século X VIII é-lhe absolutamente estranha). O direito não recebe sua validade da existência de Deus; de um modo geral, não deve apoiar-se em nenhuma existência, seja ela empírica ou absoluta. Ele decorre da idéia do bem — dessa idéia a respeito da qual Platão dizia que ele suplantava todas as outras em força e em dignidade. ( ôwáfiei xal ngeofieíç intçéxovaa )• Essa “trans­ cendência” da idéia do direito, que eleva a justiça e o bem acima de todo ser ( ènêxetva rijç oòaíaç ), que nos impede de fun­ dar o seu sentido sobre qualquer coisa existente, Grotius analisa-a cada vez mais profundamente. Foi esse, muito exatamente, o seu verdadeiro papel filosófico e histórico. Afinal de contas, a Idade Média cristã já se ocupara igualmente da idéia de um di­ reito natural inspirado, em seus aspectos essenciais, no estoi­ cismo. A par da lex divina, o pensamento escolástico não ignora a esfera própria, relativamente autônoma, da lex naturalis. O direito não está pura e simplesmente subordinado à revelação, não é deduzido exclusivamente desta. Ensina-se então uma mo­ ral natural e um conhecimento natural do direito que a razão conservou para além da queda original e que são considerados a razão necessária e o ponto de ligação da restauração sobrena­ tural, assente na graça divina, do conhecimento perfeito que o homem possuía antes da queda. Apesar de tudo, a Idade Média não podia reconhecer uma autonomia perfeita tanto da lex naturalis quanto da "razão natural”. A razão permanece a criada da revelação (tanquam famula et ministra). No âmbito das fa­ culdades naturais do espírito e da alma, ela deve conduzir à re-

324

velação e preparar seus caminhos. Mesmo que, numa certa me­ dida, ela seja reconhecida, a lei natural permanece subordinada, portanto, à lei divina. Santo Tomás de Aquino explica essas duas leis como dois raios da essência divina, uma destinada a fins terrenos, a outra instituída pela revelação para fins supraterrenos.4 Se Grotius ultrapassa a escolástica é menos, portanto, pelo conteúdo do seu pensamento do que pelo seu método. Ele vai realizar no domínio do direito a mesma revolução que Galileu realizou na física. Trata-se de definir uma fonte de conhe­ cimento jurídico que não provenha da revelação divina mas sub­ sista, pelo contrário, por sua própria "natureza” e evite assim toda mácula e toda falsificação. Tal como Galileu proclama e defende a autonomia da física matemática, também Grotius luta pela autonomia da ciência jurídica. Parece que o próprio Gro­ tius tinha uma noção perfeita desse parentesco ideal: manifesta por Galileu a sua mais profunda admiração e chama-o, numa carta, de o maior gênio do século. A palavra e o conceito de "natureza”, na vida intelectual do século X V III, englobam e condensam dois grupos de problemas que estamos habituados a distinguir nos dias de hoje. As "ciências da natureza” nunca eram então separadas das "ciências do espírito” e ainda menos se opunham do ponto de vista de sua especificidade e validade. "N atureza” não designa somente o domínio da existência "fí­ sica”, a realidade "m aterial”, da qual cumpre distinguir a "inte­ lectual” ou a "espiritual”. O termo não diz respeito ao ser das coisas mas à origem e fundamento das verdades. Pertencem à "natureza”, sem prejuízo de seu conteúdo, todas as verdades suscetíveis de um fundamento puramente imanente, as que não exigem nenhum a revelação transcendente, as que são certas e evidentes per se. Tais são as verdades que se busca não só no mundo físico mas também no mundo intelectual e moral, pois são essas as verdades que fazem do nosso mundo um só "m un­

325

d o ”, um cosmo que repousa em si mesmo, que possui em si mesmo o seu próprio centro de gravidade. O século X V III também aderiu ao princípio dessa unidade. Montesquieu faz sua estréia na área da ciência experimental.5 Foi por esse caminho que se viu conduzido à sua problemática própria: a análise das instituições jurídico-políticas. Na quali­ dade de jurista, formula a mesma questão que Newton já for­ m ulara como físico: longe de contentar-se com as leis empi­ ricamente conhecidas do cosmo político, ele quer reduzir a diversidade dessas leis a um pequeno número de princípios de­ terminados. O que para Montesquieu constitui o " espírito das leis" é a ordem, a interdependência sistemática que existe entre as normas particulares. Ele pôde assim começar sua obra por uma definição da idéia de lei que determ ina o seu objeto em toda sua amplitude, em sua significação universal, ignorando toda e qualquer limitação a uma ordem de fatos particulares. "As leis, no seu sentido mais amplo," — declara ele — " sio as relações necessárias que derivam da natureza das coisas." 6 Ora bem, essa natureza das coisas existe tanto no possível quanto no real, tanto no objeto de pensamento quanto na realidade dos fatos, tanto no físico quanto no moral. A heterogeneidade do dado não deve afastar-nos da busca da uniformidade escondida; jamais o contingente nos deve fazer perder de vista o necessá­ rio (barrar-nos o acesso ao conhecimento do necessário). Partindo dessas concepções, Montesquieu retoma expressamente, a partir das Cartas persas, o princípio sobre o qual Grotius fundara o direito natural. A justiça é uma certa "relação de conveniência" que permanece constantemente idêntica a si mesma, seja qual for o sujeito que a conceba, quer seja contemplada por Deus, por um anjo ou por um homem. E, como a vontade de Deus está constantemente de acordo com o seu conhecimento, é im­ possível que ele infrinja as normas eternas do justo, porquanto

326

as conhece. Portanto, mesmo que não existisse nenhum Deus, deveríamos am ar a justiça e tudo fazer para nos igualar a um ser de quem temos uma idéia tão sublime e que, se existe, é necessa­ riamente justo. Libertos do jugo da religião, não estamos menos submetidos ao reino da justiça.7 O direito possui, como a ma­ temática, sua estrutura objetiva, que o arbitrário não poderia mudar. "Antes de existirem leis feitas, já havia relações de jus­ tiça possíveis. Afirmar que nada existe de justo nem de injusto fora do que ordenam ou defendem as leis positivas é o mesmo que dizer que antes de ser traçado um círculo seus raios não eram todos iguais.” A filosofia do Iluminismo vinculou-se primeiro, sem reser­ vas, a esse "apriorism o” do direito, à idéia de que devem existir normas jurídicas absoluta e universalmente obrigatórias e imu­ táveis. A investigação empírica e a doutrina empirista não fazem nenhuma exceção nesse ponto. A esse respeito, as opiniões de Voltaire e Diderot não diferem das de Grotius e Montesquieu. Contudo, não deixam de, ao mesmo tempo, cair num difícil di­ lema. Como conciliar essa concepção com a tendência geral da teoria do conhecimento por eles postulada? Como harmonizar a necessidade e a im utabilidade da idéia de direito com a tese de que toda idéia provém dos sentidos e, por conseguinte, só pode representar as experiências sensíveis singulares em que ela se baseia? Voltaire percebeu claramente a contradição que se es­ conde sob essa dupla afirmação e parece que uma certa vacilação manifestou-se, de tempos em tempos, nos seus julgamentos. Mas, no fim das contas, é o racionalista ético, o defensor entusiasta do perseguido e da razão moral, quem leva a melhor sobre o empirista e o céptico. Sobre esse ponto, chegará mesmo a tomar posição contra Locke, seu mestre e guia. Ao m ostrar que não existem idéias inatas, objeta Voltaire, Locke não provou, em absoluto, que não pode existir um principio universal da moral.

327

O reconhecimento de tal princípio não quer dizer que ele exisU em ato e que, desde o começo, atue em todo ser pensante, mas tão-somente que todo ser pensante deve descobri-lo em si mesmo. Essa descoberta corresponde a um certo período, a uma certa etapa do desenvolvimento individual, mas o conteúdo que então se descobre e se revela à consciência não é o resultado desse desenvolvimento: ele sempre existiu. "Concordo com Locke em que não existe realmente nenhuma idéia inata; segue-se, como é evidente, que tampouco existe em nossa alma qualquer propo­ sição de moral inata; mas do fato de que não nascemos com barba, segue-se que nós, habitantes deste continente, não nas­ cemos para ser barbados numa certa idade? Não nascemos com força para caminhar; mas quem quer que tenha nascido com dois pés caminhará um dia. Assim é que ninguém traz consigo ao nascer a idéia de que se deve ser justo; mas Deus conformou de tal modo os órgãos dos homens que todos, numa certa idade, concordam com essa verdade.” 8 O historiador da civilização que gosta de expor a diversidade e a contradição dos usos e cos­ tumes dos homens, de m ostrar sua inteira relatividade, sua de­ pendência em face de circunstâncias cambiantes e contingentes, não estará se desmentindo nesse julgamento? Não, porque Voltaire acredita sempre descobrir por trás da instabilidade das opiniões, dos preconceitos, dos costumes, o caráter imutável da moralidade. "Se bem que o que se chama virtude numa região seja precisamente o que se chama vício numa outra, e que a maior parte das regras do bem e do mal diferem como as línguas e as indumentárias, entretanto parece-me certo existirem leis na­ turais com que os homens são obrigados a concordar em todo o universo, mesmo a contragosto. Na verdade, Deus não disse aos homens: ‘Eis as leis que vos dou de minha boca, e pelas quais quero que vos governeis*; mas ele fez no homem o que fez em muitos outros animias: deu às abelhas um poderoso instinto

328

pelo qual elas trabalham e alimentam-se juntas e deu ao homem certos sentimentos de que não pode desfazer-se, e que são os vínculos eternos e as primeiras leis da sociedade na qual Deus previu que os homens viveriam .,, 9 E é ainda à famosa analogia das leis da natureza que Voltaire recorre para a demonstração dessa doutrina. Seria necessário que a natureza rompesse com sua unidade, sua ordenação, sua perfeita regularidade, precisa­ mente quando se trata de sua criatura mais sublime, o homem? Deveria ela limitar-se a reger o mundo físico por leis universais e invioláveis, abadonando inteiram ente o mundo moral ao acaso e ao arbitrário? Nesse ponto, devemos romper com Locke e ade­ rir a Newton e ao seu célebre princípio: uNatura est semper sibi c o n s o n a Assim como a lei da gravitação que descobrimos na Terra não está ligada ao nosso planeta, assim como essa lei nos revela uma força fundamental da m atéria que atinge os pontos mais longínquos do cosmo e une entre elas todas as par­ tículas da matéria, do mesmo modo também a moralidade rege todas as nações que conhecemos. Sem dúvida, descobrimos, ao analisar essa lei e segundo as circunstâncias, milhares de dife­ renças, mas o fundamento é sempre o mesmo, a saber, a idéia de justo e de injusto. " Comete-se prodigiosamente a injustiça nos furores de suas paixões, tal como se perde a sua razão na em­ briaguez: mas quando a embriaguez se dissipou a razão volta, e é essa, em minha opinião, a única causa que faz subsistir a so­ ciedade humana, causa subordinada à necessidade que temos uns dos outros." 10 A fim de provar a existência de Deus e sua bon­ dade, em vez de recorrer a pretensos milagres físicos, à ruptura da ordem natural, dever-se-ia procurar apoio no milagre moral Les miracles sont bons; mais soulager son frère, Mais tirer son ami du sein de la misère, Mais à ses ennemis pardonner leurs vertus, C'est un plus grand miracle, et qui ne se fait plus.11

329

Também em Diderot a fé numa natureza moral imutável em si mesma e na estabilidade do princípio de justiça que daí de­ corre permanece inabalável: na sua visão do mundo tão perfeita­ mente móvel e dinâmico, essa fé desempenha o papel do ponto fixo de Arquimedes.12 Quando Helvétius, em sua obra De l'esprit, resolve abalar essa fé, quando procura desvendar, desmascarar todos os pretensos instintos morais como outros tantos disfarces do egoísmo, logo Diderot tomou partido contra essa iniciativa de nivelamento.13 Ele atém-se à essência eterna e imutável da mo­ ralidade, embora dê a essa exigência um fundamento que, com­ parado com as teorias do direito natural, revela uma direção de pensamento muito diferente. A gradual mudança de sentido da idéia de "natureza" que acompanhamos passo a passo no pen­ samento do século X V III faz-se sentir cada vez mais: o centro de gravidade passa do apriorismo ao empirismo, do lado da ra­ zão para o da experiência. Não é o comando abstrato da razão que dirige e une os homens; um vínculo mais verdadeiro e mais sólido reside na identidade de suas inclinações, de seus instintos, de suas necessidades sensíveis. É aí que nos cumpre buscar a verdadeira unidade orgânica do gênero humano, é aí que ela encontra seu verdadeiro ponto de apoio, e não em simples pres­ crições religiosas ou morais. Toda moral, toda religião que aban­ dona esse ponto de apoio, que rejeita e abandona os naturais impulsos sensíveis da conduta, não passa de um mero castelo de cartas. Que nenhum "dever" tenha a temeridade de negar ou de transform ar radicalmente o ser empírico do homem! Esse ser nunca deixará de renascer e será sempre mais forte do que todo e qualquer "dever". Uma moral que se declare inimiga da natu­ reza está desde logo condenada à impotência. Para que conser­ vasse, entretanto, alguma influência, teria que extirpar do ho­ mem, ao mesmo tempo que sua sensibilidade, toda nobreza e grandeza moral, todo amor e toda abnegação natural de que é

330

capaz.14 É deixando a natureza obrar por conta própria, sem cadeias nem obstáculos convencionais, é nessa realização de si mesma que ela realizará simultaneamente o único e verdadeiro bem, com a felicidade do homem e a prosperidade da sociedade. Assim, Diderot percorre todo caminho que vai de uma fundação “apriorística” da ética a uma fundação puramente utilitária. Co­ meça por conceber a idéia do direito e da justiça como uma idéia pura, intrinsecamente válida e imutável per se; mas, à me­ dida que ele lhe aprofunda o conteúdo e procura defini-lo com maior precisão, é nas obras imediatas e concretas da natureza que acredita descobrir a realidade. O puro moralismo de que fazia profissão de fé na crítica da religião e dos dogmas religiosos converte-se progressivamente num puro e simples pragmatismo. "Mas, doutor, e o vício e a virtude?" — indaga mlle. de TEspinasse, protestando contra a ética naturalista do médico em O sonho de D'Alem bert — "a virtude, essa palavra tão sã em todas as línguas, essa idéia tão sagrada em todas as nações!" "É pre­ ciso transformá-la" — respondeu o médico — "na de benevo­ lência e seu oposto na de malevolência. Nasce-se felizmente ou infelizmente; é-se irresistivelmente arrastado pela torrente geral que leva um à glória, o outro à ignomínia." 15 Assim, Diderot foi finalmente levado a fundam entar a superioridade do direito "natural" e da m oralidade natural em relação à moral teológica essencialmente no seu modo de eficácia. O que ele objeta a essa moral religiosa, assim como a toda religião revelada, é tê-lo sido sempre desastrosa para a vida da sociedade. Ela rompe todos os vínculos naturais que unem o homem ao homem, alimenta a dicc 1 ia e o ódio entre os amigos mais íntimos e entre aqueles que estão unidos pelos laços do sangue; rebaixa os deveres na­ turais ao subordiná-los a uma outra ordem de deveres pura­ mente quiméricos.16 Diderot permanece fiel a essa linha de pen­ samento em todos os seus artigos da Enciclopéia, assim fome-

331

cendo ao conjunto da obra a linha geral da sua problemática ética.17 D ’Alembert não vê de outro modo os limites metodoló­ gicos da ética: uma ética puramente filosófica só pode ter como finalidade indicar ao indivíduo a sua posição no seio da socie­ dade humana e de lhe ensinar a melhor maneira de consagrar suas faculdades ao bem-estar e à felicidade de todos. “ O que pertence única e essencialmente à razão e o que, por conseguinte, é uniforme em todos os povos são os deveres que todos temos para com os nossos semelhantes. O conhecimento desses deveres é o que se chama Moral [ . . . ] Poucas ciências têm um objeto mais vasto e princípios mais suscetíveis de provas convincentes. Todos esses princípios convergem para um ponto comum, sobre o qual é difícil alimentarem-se ilusões; eles tendem a nos conse­ guir o meio mais seguro de ser feliz, mostrando-nos a ligação íntima do nosso verdadeiro interesse com a plena realização dos nossos deveres [. .. ] É a motivos puramente humanos que as so­ ciedades devem seu nascimento; a religião não tem nenhum pa­ pel na sua formação inicial [. . . ] O filósofo não se encarrega de colocar o homem na sociedade e conduzi-lo nela: cabe ao mis­ sionário atraí-lo em seguida para os pés dos altares. * 18 Sobre as fundações assim preparadas pelos teóricos do di­ reito natural foi edificada a doutrina dos direitos do homem e do cidadão, tal como a desenvolveu o século X V III. Ela cons­ titui o ponto de convergência espiritual, a unidade ideal dos múl­ tiplos esforços tendentes a uma renovação moral e a uma reforma política e social. Ê verdade que trabalhos recentes de história do direito público tentaram m ostrar que a base histórica da doutria dos "direitos do hom em ” era nitidamente mais estreita. Georg Jellinek, em sua muito conhecida obra, Die Erklärung der Menschen- und Bürgerrechte,19 sustenta a tese de que não houve nenhuma relação direta entre a Declaração da Assembléia Cons­ tituinte francesa de 26 de agosto de 1789 e as idéias filosóficas

332

dos séculos XVII e V III. Ele vê o original dessa Declaração nos “Bilis of R ight” americanos, em especial na Declaração de Direitos promulgada pelo Estado de Virgínia em 12 de junho de 1776. Entretanto, mesmo admitindo a perda positiva da tese de Jellinek — a dependência da Declaração francesa em relação aos seus modelos americanos é inegável e demonstrável até nos detalhes — , não se segue daí, em absoluto, que esse autor tenha razão na parte negativa que se lhe prende. Não são as próprias declarações americanas dominadas pela influência do novo es­ pírito que anima os teóricos do direito natural? Longe de cons­ tituírem a raiz donde brotou a reivindicação dos direitos do ho­ mem e do cidadão, digamos antes que elas são seus ramos late­ rais, um desenvolvimento à parte, determinado por motivos par­ ticulares e favorecido por certas circunstâncias históricas, das idéias do direito natural. Assim é que elas não se deduzem, de maneira nenhuma, do princípio exclusivo de liberdade de crença e dos conflitos religiosos que se desenrolaram em torno desse princípio na Inglaterra do século X V III. Trabalhos recentes e perspicazes acerca da Declaração dos Direitos do Estado de Virgínia mostraram claramente que, na época em que foi pro­ nunciada essa declaração, a questão da liberdade religiosa não desempenhava nenhum papel ou, pelo menos, tinha um papel muito secundário.20 Existe, evidentemente, todo um movimento de idéias do qual a Declaração da Constituinte faz parte, no seio do qual ela se desenvolveu organicamente e donde caiu como um fruto maduro; ela aí está bem visível sob os nossos olhos, muito antes que tenha podido ser uma questão de influência das “declarations of right”: esse movimento remonta às origens do direito natural moderno, até Grotius, e foi depois instituído e elaborado teoricamente, sobretudo no âmbito da filosofia do di­ reito do idealismo alemão, em Leibniz e W olff 21 Na Inglaterra, é principalmente a Locke que cabe o estabelecimento, no seu

333

Treatise on government, do princípio segundo o qual o contrato social, que é concluído pelos indivíduos entre eles, não consti­ tui, de m aneira nenhuma, o fundamento único do conjunto de relações jurídicas existente entre os homens. Todos os vínculos contratuais são, pelo contrário, precedidos de vínculos originá­ rios que não podem ser criados nem ser suspensos por um con­ trato. O homem possui direitos naturais que existiam antes da constituição de vínculos sociais ou civis, e, em face desses di­ reitos, a função própria e o objetivo essencial do Estado con­ sistem em dar-lhes um estatuto na ordem política, conceder-lhes sua proteção e sua caução. No número desses direitos, Locke inclui muito particularm ente a liberdade individual e o direito de propriedade. A filosofia francesa do século X V III não des­ cobriu, portanto, a doutrina dos direitos inalienáveis. Mas foi ela, sem dúvida, a primeira a fazer dessa doutrina um verdadeiro evangelho moral, a aderir-lhe com paixão e a proclamá-la com entusiasmo. E ao proclamá-la dessa maneira, inseriu-a verdadei­ ramente na vida política real, conferindo-lhe essa força de cho­ que, essa potência explosiva que se manifestou nos dias da Re­ volução Francesa. Voltaire, claro, não é um revolucionário, nem por temperamento pessoal nem por suas preocupações. Contudo, por trás do tema dos direitos inalienáveis, ele pressentiu a apro­ ximação irrefreável de uma nova época de que se fez o arauto. O que ele exprimiu como filósofo teórico, como metafísico, sobre o problema da liberdade, é deveras insuficientes e, aliás, bastante vago e ambíguo. No seu Tratado de metafísica (1734), ele sustentava ainda, esforçava-se por afirmar, apesar de todas as dificuldades, a doutrina de uma liberdade da vontade humana. Todas as objeções que se fazem contra ela, mostra Voltaire, todas puramente conceptuais e dialéticas, esbarram no simples testemunho da consciência. O sentimento da liberdade, vivo e imediatamente presente em cada um de nós, não pode ser uma

334

pura ilusão. O simples fenômeno do querer basta, portanto, para provar a liberdade: "Q uerer e agir é precisamente a mes­ ma coisa que ser livre.” Como essa liberdade hum ana é conci­ liável com a Providência divina? Essa questão continua sendo, sem dúvida, um dilema insolúvel: mas essa dificuldade não nos deve impressionar muito, pois o limite com que nos deparamos aqui iremos reencontrá-lo em todos os problemas metafísicos e é idêntico para cada um desses problemas.22 Voltaire, mais tarde, rejeitou esse julgamento e declarou-se favorável a um franco determinismo: o sentimento da liberdade, demonstra ele então, não contradiz tal determinismo, pois ser livre, no sentido da auto­ consciência imediata, não significa absolutamente "poder que­ re r” o que se quer mas “poder fazer” o que se quer. Uma von­ tade sem motivos suficientes seria simplesmente absurda, pob seria a negação da ordem da natureza. "Seria deveras singular que toda a natureza, todos os astros obedecessem a leis eternas e que houvesse um animalzinho de cinco pés de altura que, des­ prezando essas leis, pudesse agir como melhor lhe agradasse, ao sabor exclusivo do seu capricho. Ele agiria ao acaso, e sabe-se que o acaso não é nada. Inventamos essa palavra para exprimir o efeito conhecido de toda causa desconhecida.” 23 Mas a incer­ teza e a vacilação interior que Voltaire manifesta a respeito do problema metafísico da liberdade nada mais significam senão o pouco interesse e a escassa atenção que ele dedica pessoalmente a esse aspecto da questão. O debate que conta para ele não é teórico, não se trata da elaboração de um conceito abstrato mas de uma questão eminentemente prática, diríamos até, a questão prática por excelência. O ideal voltairiano da liberdade nasceu da i bservação da vida política concreta, da comparação e da apreciação das diversas formas de governo. Ora, é na Consti­ tuição inglesa que a Europa de então encontrava a realização mais próxima desse ideal, porque essa Constituição comportava

335

uma proteção eficaz da propriedade e da segurança pessoal de cada cidadão. Quem quer que tenha se apercebido uma vez da importância desses bens, quem quer que tenha reconhecido sua necessidade razoável, encontrará em si mesmo a força necessária para defendê-los e conservá-los. "N o essencial, em sua acepção mais apropriada, a idéia de liberdade coincide com a dos direi­ tos do homem. O que quer dizer, finalmente, ser livre senão co­ nhecer os direitos do homem? Pois conhecê-los é defendê-los.” 24 Toda a obra de Voltaire como escritor político é sustentada e inspirada por esse pensamento. Ele está convencido de que basta mostrar aos homens o verdadeiro rosto da liberdade para despertar e mobilizar neles todas as forças necessárias à sua realização. É por isso que, para Voltaire, tal como para Kant, a "liberdade de pena" é verdadeiramente o "paládio dos direitos do povo". "Servir-se de sua pena, como de sua língua, tem seus próprios riscos, faz parte do direito natural. Conheço muitos li­ vros enfadonhos; mas não sei de nenhum que tenha causado um prejuízo real.” 25 Conquistar e garantir a liberdade de pensa­ mento decide tudo: tal é a máxima im plantada por Voltaire na filosofia do seu século, assim desencadeando a torrente cauda­ losa de idéias que irrompeu na literatura da França revolucio­ nária. Proclama-se agora em toda parte que a primeira etapa de toda a libertação, que a verdadeira constituição intelectual da nova ordem política só pode consistir numa declaração dos di­ reitos inalienáveis, do direito à segurança e integridade física da pessoa, à livre fruição de seus bens, à igualdade perante a lei e à participação de todos os cidadãos no Poder Legislativo. "N ão é no conhecimento positivo das leis estabelecidas pelos hom ens” — declara Condorcet — "que se deve procurar conhecer o que acontece com sua adoção, é somente na razão, e o estudo das leis instituídas em diferentes povos e em diferentes séculos só é útil para fornecer à razão o apoio da observação e da experiên­

336

cia.” 28 Mas encontra-se ainda uma outra coisa em Condorcet: na filosofia da história e da civilização que ele nos deu com o seu Tableau des progrès de Vesprit humain, percebe-se que ele compreendeu perfeitamente que complexo histórico de motivos particulares gerou a idéia de direitos inalienáveis. Declara ele, com efeito, que toda a ciência da sociedade hum ana só pode ter um objetivo: garantir aos homens, na mais ampla medida, o livre uso de seus direitos fundamentais numa perfeita igualdade. Nos tempos modernos, é nos Estados livres da América do Norte que esse objetivo esteve mais perto de sua realização, é a esses Es­ tados, por conseqüência, que cabe a glória de ter tornado rea­ lidades concretas as grandes idéias do século. Condorcet atribui, porém, a origem dessas idéias à filosofia dos séculos XVII e XVIII e credita especialmente a Rousseau o mérito de ter eleva­ do a teoria dos direitos do homem à categoria das verdades que daí em diante não poderão ser mais esquecidas nem por muito tempo combatidas.27 Em conclusão, o retrospecto que apresen­ tamos sobre o movimento das idéias do século X V III mostra-nos uma vez mais como os grandes espíritos da Revolução Francesa estavam conscientes da estreita conexão que existe entre a "teo­ ria” e a "práxis”. Neles, pensamento e ação nunca se separaram; estão constantemente certos de que podem traduzir de imediato o primeiro na segunda e conferir a esta a garantia daquele.

A idéia de contrato e o método das ciências sociais Se se quiser compreender o novo caminho adotado pelas ciências sociais nos séculos XVII e X V III, se se quiser fazer uma idéia muito clara do novo método que aí se desenvolveu, é indis­ pensável relacionar, colocar em estreita conexão esse desenvol­ vimento com o que a lógica registrou durante o mesmo período. Por paradoxal que possa parecer semelhante aproximação, ela

337

caracteriza, inegavelmente, uma das tendências fundamentais des­ sa época. Com efeito, desde a Renascença que se assiste à pro­ gressiva ascensão de uma nova forma de lógica que, em lugar de se contentar em classificar e ordenar o saber adquirido, quer ser um instrumento do saber. Racionalistas e empiristas concor­ dam com a necessidade dessa nova lógica e rivalizam para implementá-la. Bacon não é o único a querer, por sua filosofia, fornecer um organon à ciência; Leibniz também insiste na ne­ cessidade, para a lógica, de sair dos caminhos tradicionais, de superar as formas escolásticas, a fim de se atingir uma real fecundidade, a fim de converter-se numa Logica inventionis. O impulso assim dado influenciou de um modo muito nftido e direto a teoria da definição. O método escolástico de definição de um conceito por genus proximum e differentia specifica é cada vez mais considerado insuficiente. Não basta que a defi­ nição analise e descreva o conteúdo de um determinado con­ ceito; ela deve ser um meio para a construção do conteúdo dos conceitos e para a sua consolidação através dessa atividade edifi­ cadora. É assim que nasce a teoria da definição genética ou cau­ sal, em cuja elaboração participaram todos os grandes lógicos seiscentistas.28 A verdadeira e fecunda explicação de conceitos não procede de um modo abstrato; ela não se contenta em abs­ trair um elemento de um complexo dado de propriedades ou de caracteres e de fixá-lo isolando-o. Pelo contrário, quer seguir a lei interna segundo a qual o todo é gerado, ou segundo a qual se pode pensar que o seja. E por essa lei do devir quer tornar visível o seu ser e o seu modo de ser verdadeiros; não indica apenas o que esse todo é mas também por que é. A verdadeira definição genérica permite-nos penetrar com o olhar a estrutura do complexo; e não só essa estrutura como tal: ela penetra ao mesmo tempo até a sua causa. Hobbes foi o primeiro lógico moderno a elucidar a importância dessa "definição causal”. E

338

acredita não ter realizado assim apenas uma reforma lógica; vê nesse empreendimento nada menos do que uma transformação completa do próprio ideal do conhecimento filosófico. O que ele censura à escolástica foi ter acreditado que podia compreender o ser tomando-o por um simples ser, algo passivo, com proprie­ dades e características estáveis. Por isso lhe faltava tanto a ver­ dadeira estrutura da natureza corporal quanto a do pensamento; ambas só são concebíveis, de fato, no movimento. Nós apenas compreendemos aquilo que fazemos nascer sob os nossos olhos. Ê-nos vedado conceber o que escapa ao devir; o eterno, o ser imóvel de Deus ou das inteligências celestes transcende todo o conhecimento humano. Aquilo que quer verdadeiramente co­ nhecer, o homem deve constituí-lo, deve produzi-lo a partir dos seus elementos. £ para esse ato de produção que deve tender toda a ciência — ciência das coisas tanto materiais quanto es­ pirituais. Onde nos faltar a possibilidade de produzir o objeto construindo-o, aí se detém igualmente o conhecimento racional, o conhecimento estritamente filosófico: ubi generatio nulla. .. ibi nulla Philosophia intelligitur,29 Com essas explicações fundamentais da tarefa e do conceito geral da filosofia, já nos encontramos, entretanto, em plena filo­ sofia social de Hobbes. Na verdade, não existe nele, de uma à outra, nenhuma separação, apenas uma transição. Se a teoria do Estado faz parte da filosofia, é porque ela se adapta plenamente ao seu método, porque não pode nem quer outra coisa senão a aplicação desse método a um objeto particular. Também o Es­ tado é um "corpo” — e não há outra solução, por conseqüência, para entender a sua natureza do que analisá-lo até seus últimos elementos e reconstituí-lo em seguida. A fim de chegar-se a uma ciência efetiva do Estado, basta transferir para a política o mé­ todo de composição e de resolução que Galileu empregou em física.30 Em política, assim como em física, é indispensável para

339

a compreensão do todo retroceder até os seus elementos, às for­ ças que no começo reúnem as diversas partes componentes e que continuam mantendo-as associadas. £ o fio dessa análise não poderá quebrar-se em nenhum ponto; ela só cessará quando se tiver chegado aos elementos reais, às unidades absolutas e indecomponíveis. Para compreender verdadeiramente as estruturas políticas e sociais é preciso que o homem as divida em seus ele­ mentos últimos. Esse ideal não é realizável por um método pu­ ramente empírico; Hobbes não alimenta quaisquer ilusões nesse ponto, mas essa objeção não o impedirá de aplicar o seu princí­ pio racional geral até as suas últimas conseqüências. Onde quer que encontremos o homem, na natureza e na história, vemo-lo comprometido em alguma forma de sociedade e não como indi­ víduo isolado. Hobbes não pode esquivar-se a esse limite empí­ rico e é muito conscientemente que o transpõe. Os vínculos efetivos das formas primitivas de sociedade, por exemplo, os vínculos existentes entre os membros de uma família, cumpre desfazê-los, até mesmo cortá-los, para compreender o ser social, deduzi-lo de seus princípios. Não esqueçamos que a filosofia não é o saber do quêt mas o saber do porquê, o saber do ôión , não do simples S n . Ora, todo pensamento é, segundo Hobbes, cálculo, e todo cálculo é adição e subtração. Devemos elevar a faculdade de "subtrair", de abstrair conceptualmente, ao seu mais alto grau, devemos levá-la até o limite extremo de suas possibilidades para ter êxito, em seguida, na adição, ou seja, na integração intelectual de um todo. Com efeito, é a combinação dos dois métodos que deve engendrar o conhecimento verda­ deiro da estrutura de um todo complexo. É por essa razão que Hobbes, inicialmente, procede pela segregação rigorosa das uni­ dades: toma as vontades individuais e serve-se delas como de uma moeda de conta, como unidades puramente abstratas, sem qualquer "qualidade” particular. Cada uma dessas vontades quer a mesma coisa — e cada uma delas apenas se quer a si mesma

340

(will nur sich selbst). O problema da teoria política consiste em explicar como, desse isolamento absoluto, pode nascer uma associação e não uma associação destinada a estabelecer entre os indivíduos conexões flexíveis: uma associação que deve acabar por uni-los num todo único. Tal é o problema que Hobbes quer resolver mediante a doutrina do estado de natureza e a do con­ trato social. Dominação e submissão: nada mais do que essas duas forças para unir num só corpo político o que está separado por natureza e para manter esse corpo em existência. O contrato social apenas será, para Hobbes, um contrato de submissão. En­ fraquecer de algum modo essa sujeição, impor-lhe qualquer res­ trição, seja ela qual for, significaria privar de seu fundamento a existência do Estado, devolver ao caos o cosmo político. Eis como o radicalismo lógico engendra em Hobbes o radicalismo político — e reciprocamente. Querer limitar de uma forma ou de outra o alcance dessas relações de dominação é atacar as raí­ zes racionais do sistema, é negá-lo logicamente. O ato pelo qual os indivíduos desvestem-se de sua vontade própria a fim de trans­ feri-la para o soberano, na condição de que os outros façam o mesmo, não se consuma no interior de uma sociedade já exis­ tente; é, pelo contrário, o começo da sociedade, é o ato que a constitui inicialmente. A relação que Hobbes concebe entre as duas formas de contrato, o “pactum societatis” e o upactum subjectionis”, não deixa subsistir o menor dualismo: só existe uma forma de contrato, que é o contrato de submissão, fonte de todas as formas de vida social.81 Os indivíduos, antes de terem reali­ zado o contrato com o soberano, não são mais uo que uma massa desordenada, um agregado que não apresenta o menor indício de "totalidade”. Só a dinâmica da força soberana procede à fusão do todo político, só ela o mantém coeso por sua autoridade sem limite. O contrato social entendido como contrato de sujeição é, portanto, o primeiro passo que conduz do Ustatus naturalisn ao

341

"status d v ilis ” e continua sendo a conditio sine qua non da manutenção desse estado civil. Entretanto, o direito natural não pode adm itir, em virtude do seu princípio fundamental, que a autoridade do Estado seja concebida como um poder sem limites, como uma potestas legibus soluta. Para salvar esse princípio, a idéia de contrato social tem que ser concebida num outro sentido muito diverso e de­ fendida de uma outra maneira. A sociedade, no espírito de Gro­ tius, não é uma associação de indivíduos com vistas à realização de um certo objetivo; ela baseia-se num instinto irreprimível da natureza, um “appetitus societatis”, indispensável ao homem para tornar-se homem. O indivíduo abstrato a que a teoria de Hobbes é forçada a retornar fica, portanto, segundo Grotius, fora da espécie humana, à margem da forma pura da hum ani­ dade. Como poderia ele concluir então um contrato? No ato de contratar, na promessa como tal, reside justamente um dos tra­ ços fundamentais da natureza hum ana como natureza hum ana­ mente social. Por conseguinte, por sua própria natureza, a so­ ciedade não poderia basear-se no contrato, ser gerada pelo con­ trato; pelo contrário, o contrato é que só é possível e inteligível na hipótese de uma "sociabilidade” original. Essa sociabilidade fundamentada na razão não pode ser substituída por um ato arbitrário, por uma simples convenção. Grotius descarta, por­ tanto, tanto para o Estado quanto para o direito, o princípio de uma fundação e de uma dedução puramente utilitária. Ele não nega, evidentemente, que o Estado e o direito não tenham por missão fundamental proteger a sociedade, mas essa proteção, acrescenta Grotius, de acordo com uma fórmula muito expres­ siva e característica, deve harmonizar-se com a natureza do en­ tendimento humano. Haec societatis custodia, humano intellectui conveniens, fons est ejus juris, quod proprie tali nomie appellatur .82 Nessa perspectiva, não se trata mais, portanto, de aceitar a

342

tese de que a utilidade seja, de algum modo, a mãe do justo e do eqüitativo (utilitas justi prope mater et aequi, Horácio, Sá­ tiras, I, 3): o homem não deixará de buscar, de exigir o direito pelo direito, mesmo que nenhuma utilidade, nenhuma vantagem ou proveito esteja-lhe associado.33 A faculdade de elevar-se até a idéia do direito e da obrigação jurídica, e de adquirir consciên­ cia no que já estava implícito no simples instinto de sociabili­ dade, na inclinação natural para a vida em comum, é o privi­ légio do homem e o fundamento de toda a sociedade especifi­ camente humana. Essa dedução não pode deixar de evocar a união íntima, o casamento, tão característico da obra de Grotius, do espírito jurídico e do pensamento humanista: o direito não é uma criação contingente do homem, mas uma determinação essencial e necessária de sua natureza. Grotius vê no direito a fonte originária donde jorra, e onde se reflete em sua máxima pureza, a humanitas ipsa. Donde a idéia de contrato, aliás, tira­ ria a sua significação própria e a sua perfeita justificação senão dessa sociabilidade natural? O princípio de respeito incondi­ cional do contrato que constitui uma das regras supremas do direito natural requer, evidentemente, que o Estado não seja concebido como a soma dos instrumentos do poder e dos meios de coerção física. O Estado é uma entidade ideal, e sua natureza deve ser interpretada a partir de suas tarefas, a partir de seu sentido e de seu telos ideais. E esse sentido reside, efetivamente, na noção de contrato, mas entendida como a de um livre com­ promisso, não como a de uma obrigação imposta por necessidade e por coerção. Nada pode questionar a validade do "contrato original”, nem mesmo o poder do Estado, porquanto esse poder repousa justam ente nesse antecedente e a revogação do contrato abalaria seu próprio fundamento. O Estado só pode criar e fun­ dar o direito na condição de conter, de realizar em si mesmo um direito original. Portanto, o caráter obrigatório da lex civilis

343

deve estar cimentado no poder fundamental da lex naturalis. O direito como tal é anterior e superior ao Estado; só pode forne­ cer um ponto de fixação e um fundamento inabalável a partir dessa autonomia e dessa independência. A doutrina do contrato que encontramos em Rousseau é de um outro tipo. Ê certo que se tem cometido com freqüência o erro de tomar a doutrina do contrato social de Rousseau por uma das formas da doutrina do direito natural e de a interpretar nessa perspectiva; mas falta a essa interpretação o núcleo racio­ nal do pensamento de Rousseau e trai sua originalidade históri­ ca. Sem dúvida, Rousseau integrou à sua teoria certos elementos tomados de Hobbes e Grotius, mas criticando com toda liber­ dade esses dois pensadores. No tocante a Grotius, ele formulou graves objeções contra as suas teses, desde o Discurso sobre a origem da desigualdade, e é totalmente ocioso, também, procurar interpretar o Contrato social como um dos prolongamentos da doutrina do direito natural. Rousseau separa-se nitidamente do direito natural, embora conserve com ele, é verdade, múltiplos contatos, em sua concepção da teleologia social e, sobretudo, na sua psicologia social. Rejeita expressamente a idéia de um appetitus societatis, de um instinto primitivo de sociabilidade que impeliria o homem para o homem. Ele não hesita, nesse ponto, em voltar a Hobbes, em ligar-se diretamente a ele.34 Sem chegar a descrever o "estado de natureza” como uma guerra de todos contra todos, vê-o, porém, como um estado em que cada um está perfeitamente isolado e perfeitamente indiferente aos outros. Os homens nesse estado não estão ligados uns aos outros nem por um vínculo moral, nem por um laço sentimental, nem pela idéia de dever, nem por um movimento de simpatia. Cada um existe para si mesmo e só procura o que é necessário à conser­ vação da sua própria vida. Segundo Rousseau. o defeito da psicologia de Hobbes é somente o de ter colocado no lugar do egoísmo passivo que reina no estado de natureza um egoísmo

344

ativo. O instinto de rapina e de dominação violenta é estranho

ao homem da natureza como tal; esse instinto não pode nascer e ganhar raízes no homem antes que esse tenha ingressado na sociedade e aprendido a conhecer os desejos "artificiais” que a sociedade alimenta. O elemento mais saliente da constituição psíquica do homem da natureza não é a tendência para oprimir outrem pela violência mas a tendência para ignorá-lo, para se­ parar-se dele. O homem da natureza não é incapaz, sem dúvida, de compaixão, segundo Rousseau; mas, longe de enraizar-se num instinto social "in ato ”, essa compaixão é apenas um dom da imaginação. O homem recebe da natureza a faculdade de pene­ trar na existência e nos sentimentos de outrem e, em certa me­ dida, essa faculdade de "em patia" permite-lhe vivenciar como seu próprio um sofrimento alheio.35 Mas vai uma grande dis­ tância entre essa atitude quese baseia numa simples impressão da sensibilidade e num interesse ativo, numa ação realizada com outrem e para outrem. Isso é cometer um estranho voxeqoi TioÓTCQov , uma bizarra inversão do anterior e do posterior, do começo e do fim, fazer de semelhante instinto a origem da sociedade. Essa forma de simpatia que permite superar o puro egoísmo pode perfeitamente constituir a meta da sociedade, mas não o seu ponto de partida. No estado de natureza, seria impos­ sível existir harmonia entre interesse pessoal e interesse comum. O interesse do indivíduo, longe de coincidir com o da sociedade, exclui-o, pelo contrário, e a recíproca também é verdadeira. Assim nos primórdios da sociedade, os quais não são consciente­ mente elaborados pela vontade mais são o produto fatal do jogo de forças em face das quais o homem, ao invés de as controlar, sucumbe-lhes, as leis sociais são apenas o jugo que cada um quer impor a outrem sem sonhar sequer em submeter-se-lhe ele próprio. Rousseau sente o grande peso dessas formas de socie­ dade ampliadas com o tempo, tradicionais e convencionais, e revolta-se amargamente contra elas. "Você precisa de mim, por­

345

que sou rico e você é pobre. Façamos, pois, um acordo entre nós: permitirei que você tenha a honra de servir-me, na condi­ ção de que me dê o pouco que lhe resta, em retribuição do trabalho que terei em dar-lhe ordens." 30 Tal é, segundo Rousseau, a forma de contrato que dominou a sociedade até os nossos dias, forma que implicava, por certo, um vínculo jurídico mas que nem por isso deixava de estar nos antípodas de todos os vínculos morais autênticos. É aqui que começa o protesto de Rousseau e que intervém a sua vontade de reforma. Contra Hobbes, ele vai insistir vigoro­ samente sobre este ponto: o contrato social é nulo, absurdo e contraditório se, em vez de unir intimamente as vontades indi­ viduais, coage-as desde o exterior a unir-se por meios físicos de coerção. Um vínculo dessa natureza carece, de fato, de um ponto de apoio e é moralmente sem valor. Para que uma auto­ ridade possua esse valor é necessário que os indivíduos submetam-se a ela e não que ela submeta os indivíduos. Tal é a forma de autoridade que o Contrato social de Rousseau quer assegurar, são essas as regras fundamentais que ele quer elaborar. Enquan­ to os súditos que se unem pelo contrato continuam, a despeito dessa união, existindo como vontades individuais — enquanto é sempre um, individualmente, quem pactua com o outro, ou os indivíduos instalam um soberano e submetem-se a ele como a uma pessoa privada — , nenhuma unidade autêntica e verda­ deira foi ainda realizada. Essa unidade jamais será alcançada pela coerção, é na liberdade que ela deve alicerçar-se. Na ver­ dade, a liberdade não exclui de maneira nenhuma a submissão; ela não significa arbitrariedade mas, pelo contrário, estrita ne­ cessidade da ação. Mas essa submissão já não é a submissão de uma vontade individual ou de uma pessoa individual a um outro sujeito voluntário igualmente individual. Ela quer dizer: a vontade individual está suspensa como tal, nada mais deseja

346

ou exige para si, pois só tem existência e querer no seio da "vontade geral”. Essa espécie de "contrato" é a única, segundo Rousseau, a possuir uma força objetivamente obrigatória que não seja a coerção física. Daí resulta a estrita correlação esta­ belecida por Rousseau entre a idéia autêntica da liberdade e a de lei. Liberdade significa adesão à lei estrita e inviolável que cada um se impõe a si mesmo. O verdadeiro caráter da liber­ dade não é a fuga perante a lei ou o simples desprendimento em relação aos ditames da lei mas a livre aquiescência, o livre con­ sentimento em face da lei. Emancipar o indivíduo não significa, portanto, para Rousseau, arrancá-lo a toda e qualquer forma de1 sociedade, mas encontrar uma forma tal de sociedade que pre­ serve a pessoa de todo indivíduo com a força solidária da asso­ ciação política, de modo que o indivíduo, tendo concluído um pacto com todos os outros, somente obedece, não obstante, a si mesmo nesse acordo recíproco. "Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde e maior íorça para conservar o que se tem. Enquanto os súditos só esti­ verem submetidos a tais convenções, não obedecem a ninguém mas somente à própria vontade.” É verdade que os cidadãos re­ nunciaram de uma vez por todas à independência natural (bidépendance naturellé) que vigora no estado de natureza, mas trocaram-na por um outro bem mais precioso.87 Passaram agora a ser indivíduos na acepção mais elevada do termo, verdadeiros súditos voluntários, enquanto não passava antes de um feixe de instintos e de apetites sensuais. Somente a adesão à vontade geral (volonté généralé) constitui a personalidade autônoma. E Rous­ seau não hesita em colocar esse objetivo da ordem social esta­ belecida por contrato muito acima do estado de natureza, que ele parecia, inicialmente, glorificar mais do que tudo.88 Embora nesse estado, assim afirma ele, o homem se prive de muitas

347

vantagens que frui na natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades exercem-se e desenvolvem-se suas idéias am­ pliam-se, seus sentimentos enobrecem-se. Toda sua alma se eleva a tal ponto que, se os abusos dessa nova condição não o degra­ dassem com freqüência a uma condição inferior àquela donde saiu, deveria bendizer incansavelmente o instante feliz que dela o arrancou para sempre e fez de um animal estúpido e limitado um ser inteligente e um homem.89 Esse entusiasmo pela força e dignidade da lei caracteriza a ética e a política de Rousseau, que nisso se revela um prede­ cessor de Kant e de Fichte.40 Pretende tão pouco dar lugar no seu ideal social e político ao arbitrário do indivíduo que vê, pelo contrário, na decisão individual uma espécie de pecado contra o espírito verdadeiro de toda a sociedade humana. Nenhuma hesita­ ção, nenhuma flutuação sobre esse ponto: desde o primeiro esbo­ ço do Contrato social a lei é apontada como a mais sublime de todas as instituições humanas, o dom do céu graças ao qual o homem aprende, desde a sua existência terrena, a pressentir os mandamentos invioláveis da divindade.41 É, portanto, um contrasenso absoluto, no plano histórico, interpretar, como o fez na Alemanha o período do Sturm und Drang, o evangelho da nature­ za como se significasse que era necessário eliminar o reino da lei para retornar à natureza. Se Rousseau tivesse enveredado por esse caminho, o Contrato social teria caído em contradição fla­ grante, quase inacreditável, com o Discurso sobre a origem da desigualdade.. porquanto é impossível proclamar de um modo mais nítido e mais inexorável o reino incontestável, a soberania absoluta da lei, do que nessa segunda obra. O indivíduo não pode opor reservas nem restrições à lei. Toda cláusula que po­ deria ser inserida no contrato social em benefício de tal ou tal direito individual apenas comprometeria o seu sentido e o seu conteúdo próprio. A verdadeira unidade só se realizará se o in-

348

divíduo não só se dá ao todo mas abdica de si mesmo em bene­ fício do todo: "Ademais, fazendo-se a alienação sem reservas, a união é tão perfeita quanto possa ser e a nenhum associado res­ tará algo mais a reclam ar/142 Rousseau é então levado a con­ denar toda resistência individual à lei, mas é porque não existe para ele nenhuma dúvida de que, quando a lei vigora em toda sua pureza e sua verdadeira universalidade, nenhuma exigência moral do indivíduo pode efetivamente ficar por satisfazer. Essas exigências são Mabsorvidas” (aufgehoben) pela lei — no duplo sentido desse termo, ou seja, por uma parte, não podem apresentar-se como exigências independentes e, em contrapartida, o seu sentido autêntico é integrado na própria lei e por isso con­ servado e preservado. Quando domina a força bruta, quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos reina e impõe suas decisões e suas ordens a todos os outros, então é evidente que se requer, que se torna razoável e necessário fixar limites ao poder usurpado. Com efeito, esse poder está exposto ao perigo de cometer abusos que cumpre então prever, tanto quanto pos­ sível. Mas, no fundo, todas as medidas preventivas racionais continuarão sendo, na realidade, ineficazes; quando está ausente a vontade de legalidade como tal, todas as "leis fundam entais”, por mais cuidadosamente meditadas que sejam, através das quais se procura cercear o poder do soberano, não impedirão que este as interprete no sentido que mais lhe convenha e manipule-as a seu bel-prazer. É em vão que se limitará o quantum de poder se não se converter igualmente o seu quale, ou seja, a sua fonte e a sua significação. A teoria do direito e do Estado de Rousseau visa nada menos do que propiciar essa conversão qualitativa. Se ele proclama a soberania absoluta da vontade do Estado, essa mesma soberania tem por condição, bem entendido, que o pró­ prio Estado tenha-se constituído como Estado, o que pressupõe não depender ele de nenhuma outra fonte jurídica de atividade senão a vontade geral. Esse ponto assente, toda a limitação de

349

soberania parecerá não só supérflua mas contraditória, porquan­ to a questão da extensão do poder perde o seu sentido, uma vez que se trata agora do seu conteúdo e do seu princípio, os quais não são suscetíveis de "m ais" e de "m enos”. Desde que não tenha de enfrentar mais a simples força física mas a idéia pura de Estado jurídico, o indivíduo não tem mais necessidade de ser protegido: a proteção verdadeira realiza-se doravante no Estado e pelo Estado, de modo que seria absurdo proteger-se dele. Rousseau não renuncia em conseqüência disso ao princípio dos direitos inalienáveis, mas faz com que esse princípio jamais seja válido contra o Estado, onde ele vê justamente esse princí­ pio encarnado e solidamente fixado. De um ponto de vista for­ mal, essa concepção é desenvolvida de tal maneira que Rous­ seau — nesse capítulo, ele segue o modelo metodológico de Hobbes — rompe com o dualisrr\o que caracteriza até então a doutrina do contrato. Ele já não conhece o contrato sob a sua forma dupla, uma pela qual a sociedade constitui-se a partir dos indivíduos, a outra pela qual ela se dá um soberano e se submete à vontade deste. Hobbes tinha reduzido todo o processo de constituição do Estado ao pacto de submissão; Rousseau, in­ versamente, reduziu-o ao contrato de associação,43 pura e sim­ plesmente. Todo poder que quer apresentar-se como legítimo está contido nesse contrato e nele deve encontrar seu funda­ mento. De resto, nenhuma soberania, seja derivada de que prin­ cípio for, jamais se elevará mais pito do que constitui, de fato, o seu fundamento e a sua justificação original. Todo poder de governo que se encarna num indivíduo ou que seja exercido por uma coletividade nunca passa de ser um pocjpr delegado. Não pode abolir nem infringir a soberania popular que é a ex­ pressão adequada, o único portador e o único titular da vontade geral. O poder de governar só é legítimo na medida em que deri­ va do povo e quando é confirmado pelo povo. Assim que expira o mandato da vontade geral, o poder de governar, o qual, por

350

natureza, tem apenas uma significação administrativa, perde toda legitimidade. Pois a lei pode muito bem ir até o ponto de limitar-se em seu exercício, de delegar a outrem uma parte do poder que nela reside, mas não pode chegar ao ponto de alienarse e aniquilar-se a si mesma. A idéia de "direitos imprescri­ tíveis", que apenas tinham por papel, essencialmente, no espí­ rito do direito natural, delimitar e salvaguardar a independência da esfera do indivíduo em face da do Estado, tal idéia é agora considerada válida no próprio interior da esfera do Estado. Não é o indivíduo, é a totalidade dos cidadãos, a volonté générale, que possui direitos definidos que ela não pode abandonar nem transferir sob pena de destruir-se e de abdicar de sua própria natureza. Já mostramos antes que força revolucionária reside nessa conversão da doutrina do contrato.44 Em primeiro lugar, é o pensamento que eleva Rousseau acima do seu ambiente histó­ rico imediato, é através dele que Rousseau domina o meio inte­ lectual da Enciclopédia. Não é que os contemporâneos de Rous­ seau deixem a desejar quanto à sua vontade resoluta de reforma e quanto à importância desses projetos reformadores. Muito antes dele, as graves e incuráveis mazelas do Ancien Régime já tinham sido reconhecidas. A crítica do Estado e da sociedade sistematicamente realizada pelo círculo da Enciclopédia tinha sido preparada desde o século X VII e começo do século X V III. No caminho claramente assinalado por Fénelon vamos encon­ trar homens como Vauban, Boulainvilliers e Boisguillebert. O Exame de consciência para um rei, de Fénelon, focaliza de certo modo todas as objeções que depois foram suscitadas contra o regime do absolutismo e seus abusos. E tais objeções não ficaram no plano das decisões abstratas; elas atacam o mal pela raiz, procurando definir medidas concretas para eliminá-lo. Em todos os domínios, sente-se o impulso de uma vontade resoluta de re-

351

formas. Por toda parte exigem-se mudanças radicais, na legisla­ ção e na administração, no aparelho da justiça e na distribuição dos impostos, no direito penal e no processo penal. E não são filósofos, puros "doutrinários”, os que travam esse combate; pelo menos, foram precedidos por homens práticos em quase todos os domínios.45 D'Argenson, em Considérations sur le gouvernement ancien et présent de la France, obra composta em 1739 mas que já circulava em manuscrito antes de ser im­ pressa em 1764, chama à França um “sepulcro caiado”: o alvinitente brilho exterior em que ela vive dissimula toda a sua podridão interior. Quando D ^rgenson, em 1744, é chamado ao ministério, é aclamado com entusiasmo por seus amigos filóso­ fos; os homens do mundo e os políticos designam-no espiritual­ mente como o "secretário de Estado da República de Platão”.46 O terreno, em suma, estava perfeitamente preparado, tanto no plano dos fatos quanto no das idéias, para o advento da crítica social de Rousseau, quando ela se manifesta pela primeira vez com os discursos de resposta às questões apresentadas no con­ curso para a Academia de Dijon. O próprio D ’Argenson, como se vê no seu Diário, saúda amistosamente o Discurso sobre a desigualdade como obra de um "verdadeiro filósofo” .47 Parece, portanto, que uma continuidade perfeita estabeleceu-se entre Rousseau e o conjunto do movimento das idéias do século X V III. É por isso que se compreende dificilmente que Rous­ seau tenha imaginado, ao longo de toda a sua vida, que desviou de forma radical o curso das idéias do século mas também que os melhores espíritos da época, depois de terem tentado em vão durante um certo tempo atraí-lo para o seu círculo, acabaram por tratá-lo como um estranho e um intruso, de quem pressen­ tiam sem dúvida a potência demoníaca, mas de quem deviam afastar-se para não sacrificar a clareza e a segurança de suas visões do mundo.48 O cerne dessa incompatibilidade reside me­ nos no conteúdo do pensamento de Rousseau do que na sua

352

maneira de explicar e de argumentar; separa-se do seu século menos pelos ideais políticos que defende do que pela dedução racional e justificação que para eles propõe. Por mais chocado que pudesse estar o século X V III com a situação política exis­ tente, jamais teria levado, entretanto, a crítica dessa situação até uma crítica da existência social como tal. Para ele, essa existência é um fim em si e um fim evidente em si. Nenhum pensador da Enciclopédia põe em dúvida que o homem não pode viver de qualquer outro modo senão nas formas da "socia­ bilidade" e da "sociedade" e que seu verdadeiro destino não pode ser cumprido alhures. A verdadeira originalidade de Rousseau está precisamente em atacar essa premissa, em contestar a hipótese metodológica que continuava inspirando implicitamente todas as tentativas de reforma. Ê verdade que a idéia de comu­ nidade deve ser identificada com o ideal de sociedade que a civilização do século X V III perfilha com uma cega credulidade? Não haverá, antes, entre as duas noções uma completa oposi­ ção? Para conseguir-se estabelecer solidamente a verdadeira comunidade não é imprescindível distingui-la com cuidado e protegê-la dos ídolos da "sociedade"? Foi em face dessa proble­ mática que eclodiu o conflito opondo Rousseau aos enciclope­ distas; devemos acompanhar o seu desenvolvimento a fim de discernir, sob sua verdadeira luz, a ruptura que se desenha nesse ponto. Em A s origens da França contemporânea, Taine censura aos enciclopedistas terem sido doutrinários ingênuos, terem elabora­ do seu sistema político e social de um modo puramente sintético e se lhe aferrarem sem levar em conta a realidade histórica concreta. Tal censura foi considerada indefensável faz muito tempo. Ninguém pode contestar nesses pensadores a sede de realidade, a flexibilidade de seu sentido das realidades. Todos querem colaborar espontaneamente, todos compreendem como é

353

longo, penoso e difícil o caminho que vai da "teoria” à "práti­ ca ”. Mesmo um fanático da abstração como Holbach, por exem­ plo, como teórico do "sistema da natureza”, está longe de ima­ ginar, enquanto pensador político, a implantação direta na rea­ lidade de suas idéias e exigências. No seu Système social, ele descarta expressamente toda e qualquer solução revolucionária, declarando que os remédios desse gênero são sempre mais cruéis do que os males que pretendem curar. A voz da razão não está sedenta de tumultos nem de sangue; se as reformas que ela pre­ coniza são lentas é porque são melhor analisadas e ponderadas, o que as torna mais estáveis e seguras.49 Contudo, não é menos evidente para todos esses pen§adores que compete à razão assu­ mir a direção do movimento de renovação política e social, a ela cumpre em punhar o facho. Só se encontrará a força bastante para vencer o mal se este for totalmente esclarecido, levando as "Luzes” até as suas causas e suas fontes. Nos líderes do Iluminismo, essa fé no poder da razão não assenta em bases pura­ mente intelectuais. Sem dúvida, ainda se pode apontar o puro intelectualismo de D ’Alembert e a fria serenidade do seu espí­ rito matemático, mas Diderot já nos aparece como um persona­ gem muito diferente, muito mais imaginativo do que pensador intelectualista. Mesmo em seus projetos propriamente intelec­ tuais, ele deixa-se arrastar por sua imaginação e muito além dos limites do demonstrável. Ao referir-se à vaga e ambígua oposição entre "racionalism o” e "irracionalism o”, é bom que se diga que Rousseau, comparado a Diderot, surge-nos então, em certa me­ dida, como um racionalista. Diderot jamais atingiu, nem se es­ forçou nunca por atingir, nos seus artigos da Enciclopédia refe­ rentes a questões fundamentais de ordem política e social, o rigor dedutivo que caracteriza o Contrato social. E, no entan­ to, ainda não é aí que reside a diferença decisiva que opõe um ao outro. É que Diderot e os enciclopedistas estão impregnados da convicção de que se pode confiar no progresso da cultura

354

intelectual, porque esse progresso, em virtude do impulso inte­ rior que o anima e da lei imanente que o governa, dará à ordem social sua nova e melhor forma. O refinamento dos costumes, o aumento e a expansão das ciências também transformam, final­ mente, a moralidade e conferem-lhe um fundamento seguro. Essa fé é tão poderosa que, para a maioria desses pensadores, a idéia que buscam e tanto se empenham em fundam entar e justi­ ficar, a de comunidade (Gemeinschaft), confunde-se não só com a de sociedade (Gesellschaft) mas também com a de sociabilida­ de (Geselligkeit). O mesmo ocorre com a expressão francesa société, à qual constantemente se sobrepõem todas essas signi­ ficações. Pretende-se criar uma filosofia sociável, uma ciência sociável. Os ideais políticos, é claro, mas também os ideais es­ peculativos, éticos e artísticos são elaborados pelos salons e para os salons. Mesmo no domínio das ciências, essa "urbanidade” social é elevada à categoria de uma medida e de um critério de avaliação e julgamento genuíno e intuitivo (wirklicher Einsicht) de relações. Toda idéia que não for exprimível nessa linguagem da urbanidade não deu provas de clareza e distinção. Fontenelle, no século X V II, submeteu a essa prova a doutrina de Descartes em Entretiens sur la pluralité des mondes; Voltaire, no século X V III, realiza o mesmo empreendimento a propósito dos Princí­ pios matemáticos da filosofia natural, de Newton. O movimento propaga-se à Alemanha e aí se consubstancia num exemplo bri­ lhante, o das Briefen an eine deutsche Prinzessin (Cartas a uma princesa alemã), de Leonhard Euler. Diderot resume todos esses esforços e dá-lhes a mais penetrante expressão quando declara ser uma obrigação moral tornar as idéias "populares”. O ver­ dadeiro Humanismo é aquele cuja realização passa pela popula­ ridade, cuja realização está condicionada por essa passagem para a língua da sociedade. "Apressemo-nos a tornar a filosofia po­ pular. Se queremos que os filósofos caminhem na frente, aproxi­ memos o povo do ponto onde os filósofos estão. Dirão existirem

355

obras que jamais estarão ao alcance de todo m undo? Se eles o dizem, apenas estão mostrando que ignoram o que podem o bom método e o longo hábito.” 50 Não são as ciências exatas e as matemáticas que, por sua vez, se recusam a privar-se da ajuda e dos encorajamentos do espírito de sociedade (geselligen Geist) do século, e até mesmo os melhores espíritos acreditam que suas pesquisas só podem obter sucesso e fecundidade nesse meio. No "Discurso prelim inar” da Enciclopédia, D ’Alembert sustenta que a superioridade específica do século X V III não é ser mais fértil do que os outros em gênios, em espíritos verdadeiramente cria­ dores. A natureza não é sempre igual a si mesma? Todas as épocas não produziram grandes gênios? Mas o que podem fazer os grandes intelectos quando estão dispersos e entregues à sua própria intuição? "As idéias que se adquire pela leitura e pela sociedade são o germe de quase todas as descobertas. Ê um ar que se respira sem pensar nele e ao qual se deve a vida.” O espírito da Enciclopédia, seu sentimento da vida e do pensamen­ to talvez nunca tivessem sido expressos numa fórmula mais justa e mais concisa. A sociedade é o ar vital; a verdadeira ciên­ cia, a verdadeira filosofia, a verdadeira arte não podem florescer em nenhum outro lugar. A Enciclopédia quer instaurar e asse­ gurar essa união; é ela que, pela prim eira vez, adquire consciên­ cia da ciência como função social e declara que o seu desenvol­ vimento só é possível na base de uma sólida organização social. Todos os outros esforços políticos e éticos devem também pro­ curar aí seus lugares, pois não se pode esperar a renovação da existência política e social senão do crescimento e da expansão dessa cultura do espírito que se adquire em sociedade. Ê nesse ponto que intervém a crítica, a contestação radical de Rousseau. Ele ousa quebrar o vínculo considerado indisso­ lúvel. Ele descobre que é problemática e inteiramente contestável a unidade que se admitia até então, ingenuamente e de boa-fé.

356

existir entre consciência moral e consciência cultural em geral. E, uma vez a questão assim encarada e formulada com todo o rigor, a resposta não podia continuar duvidosa por muito mais tempo. A harmonia desmorona entre o ideal ético e o ideal teó­ rico do século. O próprio Rousseau descreveu com grande pe­ netração o instante em que esse desmoronamento produziu-se nele. £ o momento em que, em conseqüência da questão posta em concurso pela Academia de Dijon, Rousseau encontra-se diante do problema de saber "se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para depurar os costumes”. Assim diz ele em sua célebre carta a Malesherbes: "Se alguma coisa assemelhou-se alguma vez a uma inspiração súbita, ela é o movimento que se produziu em mim nessa leitura: de repente, sinto o espí­ rito ofuscado por mil luzes; um tropel de idéias vivas aí se apresenta simultaneamente, com uma força e uma confusão, que me lançou numa inexprimível perturbação.” 51 Como numa visão súbita, Rousseau descobre o horrível abismo que perma­ neceu escondido aos olhos dos seus contemporâneos, que por ele roçaram sem más intenções e sem pressentir o perigo ameaça­ dor. O domínio do querer está separado do domínio do saber. Opõem-se por seus fins e por seus caminhos. Nessa civilização do espírito de sociedade em que o século XVIII vê a flor da verdadeira humanidade, Rousseau reconhece o pior perigo. O conteúdo dessa civilização, os seus primeiros passos, o seu estado atual, tudo confirma sem ambigüidade que ela é desprovida de todo impulso moral, que se alicerça tão-somente no instinto de poder e de posse, na ambição e na vaidade. O filósofo da vida social deve então ceder o passo ao filósofo da história e apurar por que caminhos a sociedade chegou à sua presente forma, des­ vendando assim as forças que continuam a movimentá-la e a governá-la. Entretanto, essa parte de sua tarefa não foi conce­ bida nem realizada por Rousseau num sentido puramente histó­ rico. Que ele oponha o estado natural ao estado civil, que des-

357

creva a passagem de um para outro, jamais deixa entender que se trata de questões de fato que poderiam ser solucionadas por provas históricas e no âmbito de uma exposição de história. Tanto na descrição do estado de natureza quanto na do "con­ trato social”, a palavra e a idéia de desenvolvimento são toma­ das numa acepção mais lógica e metodológica do que empírica. Se é lícito dizer que Rousseau faz nascer e crescer sob os nossos olhos a sociedade civil, isso não é no sentido de um relato épico mas no sentido da "definição genética” que é o método por excelência da filosofia do direito e da filosofia política dos sé­ culos XVII e XVIII.52 Ele precisa apresentar-nos o processo da gênese da sociedade porque é o único meio de revelar-nos o segredo da sua estrutura, porque as forças que mantêm a socie­ dade só podem tomar-se visíveis em sua ação. Rousseau expli­ cou-se com muita nitidez sobre os princípios do seu método no prefácio do Discurso sobre a desigualdade. Falar do "estado de natureza”, diz ele, é falar de “um estado que já não existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e do qual é necessário, porém, ter noções corretas, para bem julgar o nosso estado atual”. Portanto, Rousseau está longe de aceitar o estado de natureza como um estado de fato em cuja contemplação ele absorver-se-ia, à beira do qual suspiraria, com o qual sonharia. Serve-se dele como de um critério ou de uma norma, como a pedra de toque que permite fazer a prova de tudo o que, na forma presente da sociedade, é verdade ou embuste, o que é lei obrigatória em si ou o que apenas é con­ venção e arbítrio. O Estado e a sociedade de hoje devem con­ templar seu próprio rosto no espelho do estado de natureza, devem aprender a ver-se e a julgar-se. Supondo-se que esse julgamento leve à condenação e rejei­ ção de toda a ordem social existente até os> nossos dias, isso não quereria dizer, evidentemente, que é a ordem em geral que deve

358

ser rejeitada, o mundo humano que deve mergulhar de novo caos inicial. Rousseau está bem longe de tal anarquismo teórico e prático, arauto entusiástico que é da "lei” e da "vontade geral”. Tampouco formulou semelhante conclusão a propósito da cultura intelectual, das artes e das ciências. Pelo contrário, nunca deixou de proclamar — e por que não acreditar muito simplesmente nessas declarações, em vez de pô-las em duvida como uma espécie de auto-sugestão? — que jamais lhe acudira ao espírito, ao atacar as artes e as ciências, a rejeição radical de todas as suas contribuições para a edificação da sociedade. "Nesses dois primeiros escritos” — assim diz ele, falando de si mesmo e dos dois Discursos — " dedica-se sobretudo a destruir esse prestígio ilusório que nos dá uma admiração estúpida pelos instrumentos de nossas misérias e a corrigir essa admiração en­ ganadora que nos faz reverenciar os talentos perniciosos e me­ nosprezar as virtudes úteis. Mas a natureza humana não retro­ cede, e jamais se retorna aos tempos de inocência e de igualdade uma vez que nos distanciamos deles. Obstinaram-se em acusá-lo de querer destruir as ciências, as artes, os teatros, as academias e voltar a mergulhar o universo em sua primitiva barbárie, quan­ do ele, pelo contrário, sempre insistiu na conservação das insti­ tuições existentes, sustentando que sua destruição apenas faria eliminar os paliativos e deixar os vícios, e substituir a corrupção pela desordem e â pilhagem.” 58 Segundo Rousseau, só se esca­ pará a essa desordem, que está no pólo oposto da verdadeira liberdade, abolindo a ordem vigente, cujas impostura e arbitra­ riedade são conhecidas, demolindo até as suas fundações o edi­ fício político e social existente para construir em seu lugar um outro que se erga sobre alicerces mais seguros. O "contrato so­ cial” encarrega-se dessa nova construção: ele transformará o atual estado de coerção em estado de razão, a sociedade que é obra da necessidade cega numa obra de liberdade. O homem não passou do estado natural ao estado civil impelido por uma

359

inclinação moral primitiva, como queria mostrar o Discurso so­ bre a desigualdade, e não é mantido nesse estado por forças ori­ ginariamente morais nem pela vontade ou o entendimento. É muito mais admissível que o homem tenha chegado ao estado so­ cial impelido por um destino inexorável, pela coerção física da natureza exterior e pela de suas emoções e paixões, do que tenha livremente decidido criar a sociedade. Não se trata de recuperar o perdido com essa queda nem de corrigir um estado de decadência. Se o homem deve retomar à sua condição e na­ tureza originais, não é para se conservar obstinadamente nelas mas para voltar a percorrer todo esse caminho uma vez mais desde a origem. E que o homem, nesse segundo percurso, não se abandone ao poder de seus instintos, que escolha e que diri­ ja, que tome em suas mãos o leme e decida sobre o caminho e o objetivo da viagem, que saiba para onde vai e por quê. Se o ignora, não poderá levar a idéia do direito à sua vitória e reali­ zação final. Como se vê, a exigência é inteiramente racional: mas é o racionalismo ético que doravante prepondera sobre o racionalismo teórico. Essa preponderância, essa repartição de forças, uma vez assegurada, nada impede, é verdade, que se conceda um certo direito relativo ao saber teórico. A ciência — tal é a doutrina que Rousseau sustenta a partir do Contrato social — não pode ser perniciosa se, em vez de pretender pairar acima da vida, consentir em colocar-se a serviço da própria vida. Tudo o que tem a fazer é renunciar a reivindicar para si mesma o primado absoluto no domínio dos valores espirituais que se relacionam com a vontade moral. Assim, na sociedade humana, a edificação do mundo do saber deve ser precedida pela elabo­ ração clara e segura do mundo da vontade. Que o homem encontre primeiro em si mesmo uma lei firme antes de preocupar-se com as leis do mundo, dos objetos exteriores. Quando o espírito resolver esse primeiro problema, quando tiver alcan­ çado, na ordem do universo político, uma liberdade autêntica,

3GU

então será lícito ao homem ocupar-se na busca da verdade exte­ rior. A ciência não redundará mais, então, no simples "refina­ mento", não concorrerá mais para enfraquecer e adormecer o homem. Uma falsa ordem das coisas em ética tinha inclinado a ciência nessa direção, convertendo-a em simples refinamento in­ telectual, uma espécie de luxo espiritual. Ela voltará de moto próprio ao bom caminho quando esses impedimentos forem eli­ minados. A liberdade do espírito nada pode propiciar ao homem sem a liberdade moral, e essa liberdade só pode ser adquirida por uma mudança radical da ordem social, com a expulsão de tudo o que é arbitrário e a vitória da necessidade interior da lei. A unidade espiritual do século XVIII também se revela aqui sob uma nova luz, graças ao conflito que eclodiu e à luta apaixonada que Rousseau travou contra a sua época; pois Rousseau, mesmo levantando-se contra a filosofia do Iluminismo, mesmo levando a melhor sobre ela, continuou sendo um verda­ deiro filho desse Iluminismo que combatia. O seu evangelho do sentimento não contradiz essa afinidade: os fatores em ação não são simplesmente afetivos, porquanto expressam verdadeiras convicções intelectuais e morais. Não é uma simples "sensibi­ lidade" que se reflete no "sentimentalismo" de Rousseau mas uma força moral e uma nova vontade moral. Graças a essa inspiração fundamental, a "sentimentalidade" de Rousseau pôde ganhar a arrastar em seu movimento espíritos tão profundamen­ te diferentes quanto, por exemplo, na Alemanha, os espíritoss fundamentalmente não-sentimentais de Lessing e Kant. Talvez em nenhuma outra parte a força do pensamento iluminista, a unidade sistemática de sua visão do mundo manifestou-se mais do que na resistência que opôs ao seu mais perigoso adversário, afirmando contra ele os valores que lhe são mais próprios. Rous­ seau não destruiu o universo do século XVIII, deslocou sim­ plesmente o seu centro de gravidade. Por todo o trabalho de

361

seu pensamento, ele preparou, melhor do que nenhum outro pensador do seu século, o caminho de Kant. Este pôde apoiar-se em Rousseau, estribar-se nele para a construção sistemática do seu próprio mundo intelectual: esse mundo intelectual que ven­ ceu a filosofia do Iluminismo e que, no entanto, é a sua derra­ deira transfiguração e a sua mais profunda justificação.

362

NOTAS

1Mitteilungen aus Leibniz? ungedruckten Schriften [Comunicação de escritos inéditos de Leibniz], por Georg Mollat, Leipzig, 1893, p. 22; para uma exposição mais detalhada, cf. o meu livro Leibniz 9 System in seinem wissenschaftlichen Grudlagen [O sistema de Leibniz em seus fundamentos científicos], Marburgo, 1902, pp. 425 e ss., 449 e ss. Os comentários seguintes são baseados, em parte, num artigo que publiquei com o título de “Vom Wesen und Werden des Naturrechts” em Zeitschrift für Rechtsphilosophie in Lehre und Praxis, vol. VI, pp. 1 e ss. 2 O mesmo combate que Grotius trava na Holanda contra o dogma­ tismo calvinista e o princípio do Estado absolutista será retomado na Inglaterra pela “Escola de Cambridge" e sustentado em condições meto­ dológicas e históricas semelhantes. Não desenvolvo mais essa questão aqui porque a tratei em detalhe no meu estudo Die Platonische Renais­ sance in England und die Schule von Cambridge, Leipzig, 1932, (Stud. der Bibi. Warburg XXIV). 8 De jure belli ac pacis, Prolegomena, sec. XI. 4 Sobre as relações da lex naturalis e da lex divina na filosofia me­ dieval, ver Gierke, Johannes Althusius und die Entwicklung der natur­ rechtlichen Staatstheorien (1879, 3.a edição, Breslau, 1913), pp. 272 e ss., para uma análise detalhada; na primeira teologia protestante a con­ cepção medieval ainda conservava todo o seu poder. Ver os detalhes em Troeltsch, Vernunft und Offenbarung bei Johann Gerhard und Melanchton, Göttingen, 1891, especialmente pp. 98 e ss. Cf. acima pp. 67 e ss. 5 Cf. acima p. 77. 6 Montesquieu, O espírito das leis, Livro I, cap. 1. 7 Montesquieu, Cartas persas, Carta LXXXII. 8 Carta ao príncipe herdeiro Frederico, outubro de 1737, Oeuvres, vol. 50, p. 138. 9 Voltaire, Traité de métaphysique, cap. IX (Oeuvres, XXXI, pp. 65 e ss.). 10 Voltaire, Le philosophe ignorant, cap. XXXVI, Oeuvres, XXXI, pp. 130. 11 Voltaire, Discours en vers sur Vhomme, sétimo discurso, Oeuvres, XII, 91 [“Os milagres são bons; mas aliviar seu irmão,/M as arrancar seu amigo do seio da miséria,/ Mas a seus inimigos perdoar suas virtudes,/É um milagre maior, e que já não se faz mais.” (N. do T .)]

363

12 Cf. em especial o julgamento de Groethuysen, "La pensée de Diderot”, La Grande Revue, 1913; vol. 82, pp. 337 e ss. 18 Cf. acima pp. 47 e ss. 14 Cf. o juízo de Diderot a respeito do seu irmSo, o abade Diderot, na carta a Sophia Volland, 17 de agosto de 1759 (ed. Babelon, Paris, sem data, I, 71): “É honesto mas inflexível. Teria sido um bom amigo, um bom pai, se o Cristo não lhe tivesse ordenado calcar aos pés todas essas misérias. É um bom cristão que me prova, a todo momento, que mais valia ser um bom homem, e que aquilo a que chamam a perfeição evangélica nada mais é do que a arte de sufocar a natureza, que teria falado nele, talvez, tão fortemente quanto em mim.”

15 Diderot, Le rêve de D'Alembert, Oeuvres (Assézat) II, 176; cf. especialmente, de Diderot, o diálogo: Est-il bon , est-il méchant? 16 Cf. em especial Diderot, Entretien d'un philosophe avec la maré­ chale d e ... 17 Para maiores detalhes, consultar Hubert, Les sciences sociales dans VEncyclopédiet Paris, 1923. 18 D ’Alembert, Éléments de philosophie, sec. VII; Mélanges de litté­ rature etc., IV, pp. 79 e ss. 19 2.a edição, Leipzig, 1904; 3.a edição organizada por Walter Jellinek, 1919. 20 Para maiores detalhes sobre esse problema, ver G. A. Salander Vom Werden der Benschenrechte. Ein Beitrag zur modernen Verfassungs­ geschichte unter Zugrundelegung der virginischen Erklärung der Rechte vom 12. Juni 1776> Leipzig, 1926, e E. Voegelin, Der Sinn der Erklärung der Menschen und Bürgerrechte von 1789, Zeitschr. f. öffentl. Recht VIII (1928), pp. 82 e ss. Cf. também J. Hashagen, Zur Entstehungsgeschichte der nordamerikanischen Erklärungen der Menschenrechte, Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft, 78. Jahrgang (1924), pp. 482 e ss. 21 Para mais detalhes, ver o meu livro Die Idee der republikanischen Verfassung, Hamburgo, 1929. 22 Traité de métaphysique, cap. VII, Oeuvres, XXXI, pp. 51 e 57. 23 Le philosophe ignorant (1766), sec. XIII, Oeuvres, XXXI, pp. 85 e ss. 24 Cf. Voltaire, Lettres sur les anglais, Carta IX, e o artigo “Gouver­ nement” no Dictionnaire philosophique, sec. VI; Oeuvres XXVI, pp. 40 e ss.; XL, pp. 101 e ss. 26 Dictionnaire philosophique, artigo “Liberté d'imprimer” ; Oeuvres X U , p. 23.

364

26 Condorcet, Essai sur les assemblées provinciales, 2.a parte, art. VI; cf. Henri Sée, Les idées politiques en France au X V IIIe siècle, Paris, 1920, p. 210. 27 Condorcet, Tableau des progrès de l'esprit humain, 9® époque; Oeuvres, 1804, VIII, p. 233. Cf. De l'influence de la révolution de l'Am é­ rique, “Introduction” (Mélanges d'économie politique, XIV, Paris, 1847, pp. 544 e ss.). 28 para detalhes sobre esse desenvolvimento, cf. a minha exposição em Das Erkenntnisproblem [O problema do conhecimento], 3.a éd., II, pp. 49 e ss., 86 ess., 127 e ss. e passim. 29 Hobbes, De corpore, parte I, cap. I, sec. 8. 30 Cf. acima, capítulo I, pp. 34 e ss. 31 Sobre o significado dessa etapa para o desenvolvimento geral da teoria do Estado, ver Gierke, Johannes Althusius, 3.a edição, pp. 86 e ss., 101 e ss.

32 De jure belli ac pacis, Prolegomena, sec. 8. 33 De jure belli ac pacis, Prolegomena, sec. 16. 34 O que se segue apóia-se, em parte, no meu artigo sobre Rousseau citado antes, e para o qual remeto o leitor interessado numa exposição mais completa do problema e numa justificação mais detalhada da minha posição. Cf. acima p. 263, nota 14. 35 Para a “psicologia do homem natural”, segundo Rousseau, e a crítica de Hobbes, cf. principalmente o Discurso sobre a origem da desi­ gualdade 1 Parte.

..., .a

36 Cf. o artigo “Économie politique” de Rousseau, na Enciclopédia. 37 Do contrato social, I, 6; II, 4 e passim. 38 No meu artigo já citado, procurei mostrar mais precisamente que não há ruptura no desenvolvimento do pensamento de Rousseau e, em especial, nenhuma contradição entre as teses do Discurso sobre a desi­ gualdade e as do Contrato social (cf. em particular, pp. 190 e ss.),. 39 Do Contrato social, Livro I, cap. 8. 40 Sobre essa aproximação, cf. Gurvitch, Kant und Fichte ais Rousseau-lnterpreten, Kant Studien XXVII (1922), pp. 138 e ss. Cf. também a obra de conjunto de Gurvitch, L'Idée du droit social. Notion et système du droit social. Histoire doctrinale depuis le X V IIe, siècle jusqu’à la fin du X I X e siècle, Paris, 1932, pp. 260 e ss. 41 Cf. sobre esse ponto, Schinz, La pensée de J.-J. Rousseau, Paris, 1929, pp. 354 e ss. 42 D o contrato social, Livro I, cap. 6.

365

43 para mais detalhes, ver Gierke, Johannes Althusius, sobretudo pp. 115 e ss. 44 Ver acima pp. 212 e ss. 45 £ agora possível fazer-se uma idéia correta desse movimento, graças à coletânea de textos importantes que é oferecida pelas obras de Henri Sée, Les idées politiques en France au X V I I e siècle, Paris, 1923, e Vévolution de la pensée politique en France au X V II I e siècle. Paris, 1925. Cf. também de Henri Sée “Les idées philosophiques et la littérature prérevolutionnaire”, Revue de Synthèse Historique, 1925. Pode-se consultar ainda G. Lanson, Le rôle de Vexpérience dans la formation de la philo­ sophie au siècle X V I I e en Francef Études d’histoire littéraire, Paris, 1930, pp. 164 e ss. 46 Cf. a carta de Voltaire ao duque de Richelieu de 4 de fevereiro de 1757; Oeuvres (Paris, Lequien), LX, p. 238. 47 Cf. Henri Sée, L’évolution de la pensée politique. . . , p. 98. 48 Para as relações de Rousseau com os enciclopedistas, ver o meu artigo Das Problem Jean-Jacques Rousseau, pp. 201 e ss. 49 Holbach, Système social, II, p. 2. 5° Diderot, De l’interprétation de la nature, sec. XI, Oeuvres (Assézat), II, pp. 38 e ss. 01 Segunda carta a Malesherbes, de 12 de janeiro de 1762. 52 Cf. acima pp. 337 e ss. 53 Rousseau juge de Jean-Jacques, 3.° diálogo.

366

VII OS PR O B L E M A S F U N D A M E N T A I S DA ESTÉTICA

O “século da crítica” O século XVIII que tanto gostou de proclamar-se o “ século da filosofia" não tem menos direito ao título de “ século da crítica” . Na verdade, essas duas fórmulas constituem apenas a expressão diferente de uma só e mesma realidade. Elas tendem a caracterizar sob seus diversos aspectos o dinamismo intelectual com que a época sente-se interiormente animada e que alimen­ tou os seus mais originais movimentos de idéias. Em todos os grandes espíritos do século manifestam-se os laços íntimos que unem à filosofia a crítica estética e literária — e não por acaso mas sempre na base de uma unidade profunda e intrínseca dos problemas. Sem dúvida, existiram sempre relações estreitas entre os problemas fundamentais da filosofia especulativa e os da crí­ tica literária, a partir desse Renascença que queria ser um “ re­ nascer das artes e das ciências” e resultou tanto de permutas diretas e estimulantes quanto de um enriquecimento recíproco. Mas o Século do Iluminismo deu um passo a mais; ele deu uma outra conotação, nitidamente mais estreita, à reciprocidade

367

que deve existir entre esses dois domínios. Ela confere-lhe uma significação que já não é simplesmente causai mas originária e substancial; não se trata somente de acreditar que filosofia e crítica encontram-se e concordam em seus resultados indiretos, mas de afirmar e apurar uma unidade natural entre as duas disciplinas. Dessa convicção e dessa exigência nasceu a estética teórica, ciência na qual se conjugam dois movimentos de origem muito diferente. Por uma parte, há todo o esforço do século XVI11 no sentido de uma visão clara e segura do indi­ víduo, da unificação formal e da estrita coerência racional. To­ dos os fios diferentes que a crítica literária e a reflexão esté­ tica teceram ao longo dos séculos devem reunir-se num só tecido; o material oferecido com abundância pela poética, retó­ rica e teoria das artes plásticas deve, em última instância, ser ordenado, distribuído e considerado numa perspectiva sintética. Mas essa necessidade de clareza e de domínio racional consti­ tui apenas o ponto de partida para o empreendimento. Partindo dessa problemática puramente racionai, a idéia abre caminho até o questionamento do próprio conteúdo do pensamento. En­ tre o conteúdo da arte e o da filosofia procura-se agora uma correspondência, afirma-se agora um parentesco que, no come­ ço, parece ser percebido de um modo obscuro demais para poder ser expresso em conceitos precisos. Mas parece então que a verdadeira e essencial tarefa da crítica reside, precisamente, em transpor esse limite, em penetrar com seus raios o claroescuro da "sensação" e do "gosto" que ela deve, sem cometer nenhum atentado à sua natureza, trazer para a luz do conhe­ cimento. Pois o século XVIII, mesmo quando admite que o pensamento esbarra com um limite, quando reconhece a exis­ tência de um “ irracional”, exige um conhecimento claro e segu­ ro desse mesmo limite. Sabe-se que o mais profundo dos seus pensadores, Kant, elevará no final do século essa existência à categoria de um caráter próprio, constitutivo da filosofia em

368

geral: ele só verá na própria “ razão” filosófica uma faculdade original e radical de determinação de limites. Essa determina­ ção manifesta-se como necessidade suprema quando se trata de separar idealmente dois domínios que não são simplesmente de estruturas diferentes mas sobre os quais se pode afirmar que a diferença eleva-se ao nível de uma diametral oposição. Da consciência dessa oposição nasceu a síntese intelectual que devia conduzir o século XVIII à fundação da estética teórica. Mas, antes que essa síntese tivesse recebido na obra de Kant a sua forma definitiva, o pensamento filosófico deveria ainda enfrentar uma série de etapas preliminares com vistas à defi­ nição, sob diversos aspectos e várias perspectivas, da unidade que queria estabelecer entre os termos em conflito. A batalha que prosseguiu na estética do século XVIII para a definição e classificação dos conceitos fundamentais reflete em suas fa­ ses, por menores que fossem, esse esforço universal. Quer se tratasse do conflito entre “ razão” e “ imaginação”, da oposição entre “gênio” e “ regras”, de fundamentar o belo no sentimento ou numa determinada forma de conhecimento, em todas esses antíteses projeta-se inexoravelmente o mesmo problema funda­ mental. É como se a lógica e a estética, como se o conheci­ mento puro e a intuição artística tivessem que se medir una pelos outros e compreender-se segundo os seus próprios critérios. Reencontramos o mesmo processo em todos os esforços, tão diversos e tão divergentes, efetuados no século XVIII para a fundação da estética: ele foi o seu centro de gravidade latente, o seu foco espiritual. É evidente que entre os numerosos pen­ sadores que participaram nesse movimento, nenhum deles tem, no início, a menor consciência do objetivo para o qual ele tende, nenhum reconhece de imediato uma linha determinada à qual o curso do pensamento ligar-se-ia, um problema básico nitidamente concebido e conscientemente visado no conflito das múltiplas tendências. A problemática, pelo contrário, mantém-se

369

em permanente movimento e, segundo o predomínio deste ou daquele interesse — psicológico, lógico, ético — , assiste-se a um perpétuo deslocamento de sentido das normas e dos concei­ tos fundamentais que governam a estética nascente. Mas, no final, cristaliza-se, a partir desse complexo de tendências de apa­ rência contraditória, uma nova configuração. Em face da lógica e da filosofia moral, da física e da psicologia, estabelece-se ago­ ra uma nova problemática que, no começo, não se distingue nitidamente delas. Mil vínculos ligam-na ainda a todas essas dis­ ciplinas. Entretanto, sem que o pensamento filosófico se esforce verdadeiramente por desfazer esses vínculos, nem por isso dei­ xou de começar a estirá-los aos poucos até conseguir, enfim, se não de fato pelo menos num plano puramente conceptual, rompê-los. Dessa ruptura, desse movimento de libertação inte­ lectual nasce uma disciplina nova, autônoma: a filosofia esté­ tica. Tudo o que podia acontecer na estética setecentista por desvio ou descaminho contribui indiretamente, na realidade, pa­ ra a gestação e a edificação dessa forma de pensamento. A história não deve negligenciar nem subestimar nenhum desses elementos, mesmo que eles apenas sejam ainda esboços impre­ cisos, pois é, sem dúvida, nesse inacabamento que se apresenta de maneira mais clara e mais imediata a nossos olhos a ela­ boração de uma consciência filosófica da arte e da lei que rege essa consciência em sua gênese. Mas algo ainda mais maravilhoso se esconde nessa préhistória da estética teórica. Não só uma nova disciplina filosó­ fica é elaborada com todo o rigor do seu método mas, além disso, no final desse desenvolvimento, surge uma nova forma de criação artística. Contemporânea da filosofia kantiana, a poe­ sia goethiana marca a sua culminação espiritual, constituindo-se em seu desígnio profético. E os laços íntimos que unem essas duas obras maiores só se compreendem plenamente nesse con­ texto histórico. Sempre foi considerado um dos traços mais

370

marcantes da história das idéias alemãs que uma tal "harmonia preestabelecida" fosse possível. Disse Windelband a respeito da Crítica do juízo kantiana que o conceito da poesia goethiana aí se encontrava, de certo modo, construído a priori; que aí se reencontra na forma de obra e de ato o que antes fora justifi­ cado e exigido pela pura necessidade do pensamento filosófico. Essa unidade do ato e da exigência, da obra artística e da cons­ ciência reflexiva, o pensamento alemão do século XVIII não procurou estabelecê-la, elaborá-la artificialmente: ela resulta di­ retamente do simples encontro, da compenetração e da coope­ ração dinâmica de suas forças criadoras. São essas forças que engendram, como seu resultado necessário e imanente, uma no­ va forma de filosofia, simultaneamente com um novo modo, uma nova “ dimensão” do processo de criação artística. Essa síntese, que assinala a realização e o apogeu da cultura do século XVIII, é fruto do paciente trabalho realizado passo a passo durante a época que estamos estudando. Coube ao Século do Iluminismo a glória incomparável e imprescritível de ter cumprido a tarefa de unir, com uma perfeição inigualada, a obra crítica à obra criadora, conferindo a cada uma as virtudes da outra.

A estética clássica e o problema da objetividade do belo O novo ideal de saber instituído por Descartes na origem da sua filosofia tem a ambição de englobar não só todas as partes da ciência mas também todos os aspectos e todos os mo* mentos do agir. Com as ciências, stricto sensu, com a lógica, as matemáticas, a física e a psicologia, que vão receber uma nova orientação, a arte é doravante submetida, por sua vez, à mesma exigência estrita. Ela deve ser aferida pela “ razão”, ser testada de acordo com as regras racionais: não existe ne-

371

nhum outro meio de comprovar se a arte possui um conteúdo autêntico, duradouro e essencial. Tal conteúdo nada tem a ver com as excitações fugidias do prazer que a obra de arte des­ perta em nós. Para ser universalmente válida ela quer ser esta­ belecida sobre alicerces mais firmes, ser isenta da mobilidade infinita de prazer e desprazer, ser apreendida em sua realidade e em sua necessidade próprias. Pessoalmente, Descartes não jun­ tou à sua filosofia nenhuma estética, mas na estrutura geral da sua obra filosófica já se encontra implícito semelhante desígnio. Com efeito, ele estende ao domínio da arte a unidade absoluta qeu caracteriza, em seu entender, a natureza do saber e que deve superar todas as divisões arbitrárias e convencionais. Ele não hesita em ampliar a sua concepção de uma sapientia universalis até englobar no postulado universal da razão a arte em seu conjunto e em todas as suas formas particulares. Quan­ do Descartes, nas Regulae ad directionem ingenii, dá-nos a sua primeira demonstração segundo o método das idéias claras e distintas do ideal da Maíhesis universalis, ele não deixa dé co­ locar sob a autoridade desse ideal, compartilhando, de resto, nesse aspecto, da tradição medieval, não só a geometria e a aritmética mas também a música. E quanto mais se expande o espírito do cartesianismo mais a nova lei é energicamente es­ tendida ao domínio da teoria estética. Se essa teoria quer afir­ mar-se e justificar-se, se ela quer ser outra coisa que não um mero conglomerado algo confuso de observações empíricas e de regras empilhadas a esmo, é necessário que ela encarne o caráter e a missão de uma teoria como tal, que seja marcada com o cunho próprio da teoria. Ela não pode deixar-se conduzir nem desviar pela diversidade dos objetos; pelo contrário, deve abarcar a natureza da criação e do julgamento artístico em sua unidade e integridade. Tanto no mundo das artes como no das ciências só desfrutaremos essa visão sintética se submetermos a um só e mesmo princípio as formas fenomenais da arte tão diversas e

372

aparentemente tão heterogêneas de modo a defini-las e a deduzi-las a partir desse princípio. O caminho a ser percorrido pela estética dos séculos XVII e XVIII estava, pois, traçado de antemão: a natureza, em todas as suas manifestações, é subme­ tida a certos princípios que o conhecimento tem por tarefa essencial determinar e enunciar em termos claros e precisos; a arte, rival da natureza, não pode deixar de ser afetada pela mesma obrigação. A natureza está submetida a leis universais e invioláveis; devem existir para a “ imitação da arte” leis da mesma espécie e de igual dignidade. E todas essas leis parciais devem, em definitivo, harmonizar-se e estar subordinadas a um princípio único e simples, a um axioma da imitação em gerai É essa convicção fundamental que Batteux exprime pelo sim­ ples título de sua obra principal, Les beaux-arts réduits à un même príncipe [As belas-artes reduzidas a um mesmo princí­ pio], a qual parece proclamar o cumprimento vitorioso de todo o esforço dos séculos XVII e XVIII em matéria de método. Aqui domina igualmente o grande exemplo de Newton: da ordem que ele tinha estabelecido no universo físico devia de­ rivar a ordem do universo intelectual, ético e estético. À ma­ neira de Kant, que via em Rousseau o Newton do mundo moral, a estética do século XVIII procura e exige um Newton da arte. E essa exigência não parecia, de maneira nenhuma, oca ou quimérica depois que Boileau se arvorara em “ legislador do Parnaso”. Parecia que sua obra tinha, enfim, elevado a estética ao nível de uma ciência exata, ao substituir postulados pura­ mente abstratos por aplicações concretas e investigações espe­ ciais. O paralelismo das artes e das ciências, que constitui uma das teses fundamentais do classicismo francês, parecia agora es­ tabelecido com base nos fatos. Desde antes de Boileau, expli­ ca-se esse paralelismo pela origem comum das artes e das ciências no poder absolutamente único e soberano da “ razão” . Ora, trata-se de um poder que ignora todo compromisso e

373

não sofre nenhum desvio. Quem não o reconhecer de forma absoluta e inteira, quem não o reconhecer sem restrições por guia, comete um crime de lesa-majestade. Em sua Pratique du théâtre, de 1769, cinco anos antes da publicação da Arte poé­ tica de Boileau, D ’Aubignac escreveu: “ Em tudo que depen­ de da razão e do senso comum, a licença é um crime jamais permitido.” A “licença poética'* — assim como a científica — é assim repelida e condenada. Diz Le Bossu no início do seu Traité du poème épique: “ As artes têm em comum com as ciências serem, como estas, fundadas na razão, e deverem dei­ xar-se conduzir pelas luzes que a natureza nos deu.” 1 Vê-se como a estética clássica concebe a natureza. Tal como nos debates em torno da “ moral natural” ou da “ religião natural” , a idéia de natureza tem, no domínio das teorias estéticas, uma significação mais funcional do que substancial. A norma e o modelo que ela propõe não se encontram de imediato numa categoria de objetos mas no exercício livre e seguro de certas faculdades cognitivas. Pode-se aceitar “ natureza” como sinô­ nimo de “ razão” ;2 tudo vem da natureza, tudo lhe pertence, do que não é o produo fugaz do instante, o fruto do humor ou do artifício, mas funda-se, pelo contrário, nas leis de bron­ ze da ordem eterna. Esse fundamento é o mesmo para aquilo a que chamamos “beleza” e para o que chamamos “verdade” . A partir do momento em que atingimos a camada original da criação inspirada pela razão, deixamos de poder crer numa situação particular e excepcional do belo. A “exceção”, como negação da lei, não pode ser bela nem verdadeira: “Rien n'est beau que le vrai” [Só o verdadeiro é belo]. Verdade e beleza, razão e natureza são apenas expressões diversas da mesma coisa: da ordem única e inviolável do ser que se descobre por inteiro, tanto no conhecimento da natureza como na obra de arte. O artista só pode rivalizar com as criações da natureza e insuflar em suas obras uma vida verdadeira se se compene­

374

trar das leis da ordem natural. A convicção profunda que está então viva em toda parte manifesta-se num poema didático de M.-J. Chénier: C'est le bon sens, la raison qui fait tout: Vertu, génie, esprit, talent et goût. Qu'est-ce vertu? raison mise en pratique; Talent? raison produite avec éclat; Esprit? raison qui finement s'exprime. Le goût n'est rien qu'un bon sens délicat, Et le génie est la raison sublime. [Ê o bom senso, a razão que tudo faz: Virtude, gênio, espírito, talento e gosto. O que é virtude? razão posta em prática; Talento? razão produzida com brilho; Espírito? razão que sutilmente se exprime. O gosto apenas é bom senso delicado, E o gênio é a razão sublime.] Mas seria cometer um grave equívoco a respeito do sentido dessa redução do “ gênio” e do “ gosto” ao bom senso se ape­ nas se visse aí um elogio, uma glorificação do "senso comum*. A teoria do classicismo francês nada tem a ver com uma fi­ losofia qualquer do common sense, porquanto não se apóia no uso cotidiano e banal do entendimento mas nas faculdades su­ premas da razão científica. Pelas mesmas razões que a mate­ mática e a física do século XVIII, ela visa ao ideal de rigor que constitui o correlato necessário e a condição indispensável de sua exigência de universalidade. Portanto, encontramos sem­ pre uma harmonia profunda, até uma coincidência perfeita entre os ideais científicos e os ideais artísticos dessa época, pois a teoria estética não quer outra coisa senão adotar o ca­ minho já inteiramente aberto pelas matemáticas e pela física.

375

Ao alicerçar toda a ciência da natureza na geometria pura, parecia que Descartes preparara um novo triunfo para o co­ nhecimento intuitivo puro. Com efeito, segundo a sua doutrina, todo ser, a fim de ser clara e distintamente pensado, de ser apreendido em seu conceito puro, deve ser submetido primeiro às leis da intuição espacial, transposto para “ figura”. Essa es­ pécie de construção e de representação figurativa é ensinada expressamente por Descartes como o método fundàmental de todo conhecimento nas Regulae ad directionem ingenii. Mas é só na aparência que ele afirma assim e justifica o primado da intuição sobre o pensamento puro, uma vez que logo acres­ centa pertencer o caráter puramente intuitivo à natureza das figuras geométricas mas não à do método geométrico. E quanto a esse método, faz todo o possível por libertá-lo dos limites da intuição e torná-lo independente das sujeições da “ imagi­ nação”. Esse esforço filosófico produziu a geometria analítica, cuja tarefa própria e essencial foi descobrir o procedimento graças ao qual podem-se representar todas as relações intuitivas entre figuras sob a forma de relações numéricas rigorosas que as determinem exaustivamente. É assim que Descartes reduz a “ matéria” à “extensão”, o corpo físico à pura espacialidade; este, porém, não está sujeito, do ponto de vista do seu conhe­ cimento, às determinações da sensibilidade e da “ imaginação”, mas às do entendimento puro, às determinações da lógica e da aritmética.3 Essa crítica da sensibilidade e da imaginação em­ preendida por Descartes foi logo retomada e ampliada por Malebranche. Toda a primeira parte da sua principal obra, Recherche de la vérité, é dedicada a essa tarefa. Uma vez mais, a ima­ ginação, longe de apresentar-se como um dos caminhos da ver­ dade, é antes a fonte de todas as ilusões a que está exposto o espírito humano, não só no domínio das ciências da natureza mas também no do conhecimento moral e metafísico. Controlar a imaginação, freá-la e regê-la conscientemente, tal é o objetivo

376

supremo e essencial de toda a crítica filosófica. Bem entendido, é impossível rechaçar totalmente o concurso da imaginação: o conhecimento aí tem seu primeiro impulso e seu ponto de partida. Mas o pior erro, o caminho mais perigosamente errôneo que ameaça o conhecimento e contra o qual a crítica deve adverti-lo, consiste em aceitar por fim esse começo do saber, tomá-lo por seu verdadeiro sentido e telos. O conhecimento só poderia atingir seu fim abandonando seus começos, ultra­ passando-os com uma clara consciência racional. A própria in­ tuição pura autoriza e exige essa ultrapassagem, uma “ trans­ cendência” desse modo: o encaminhamento do pensamento conduz da extensão sensível, tal como se apresenta nos objetos físicos, a essa “extensão inteligível” (intelligiblen Ausdehnung) que é a única a fundamentar as matemáticas como ciência exata.4 E devemos considerar igualmente o mundo corporal por intermédio da extensão inteligível se queremos torná-lo acessível ao conhecimento, se queremos verdadeiramente penetrá-lo com a luz da razão. A essa luz ele despoja-se de todas as suas pro­ priedades e características puramente sensíveis, que são rejei­ tadas do domínio da verdade para o da aparência subjetiva. O que o objeto conserva como sua natureza autêntica e verdadeira não é o que ele oferece de si mesmo à intuição direta, ao pri­ meiro olhar, mas, pelo contrário, certas relações puras que ele expressa em si mesmo e que se relacionam com regras rigorosas e universais. Essas regras, que tratam menos de objetos singu­ lares do que de relações e proporções universais, fornecem a todo o ser sua estrutura corpórea, ou seja, a norma da qual ele não pode afastar-se e que não pode abandonar sem perder logo o seu próprio caráter enquanto ser, enquanto verdade objetiva. A estética clássica é imitada, traço por traço, dessa teoria física e matemática. Ela encontrava-se, evidentemente, para rea­ lizar sua conscientização intelectual, diante de uma nova e mais difícil tarefa, visto que, a despeito de todas as limitações e

377

restrições de que a “ imaginação” tinha sido objeto no domínio do puro conhecimento, teria sido deveras contestável e parado­ xal interditar-lhe de início o acesso ao limiar da teoria da arte. Semelhante ostracismo seria, na verdade, equivalente a uma total negação da arte. Ump tal revolução na contemplação do objeto de arte não destruiria esse mesmo objeto e não o despo­ jaria do seu verdadeiro sentido? Com efeito, a teoria clássica, por mais nitidamente que se recusasse a basear a arte na ima­ ginação, não ficou cega, de maneira nenhuma, para a especifi­ cidade da fantasia, do imaginário, nem insensível aos seus atra­ tivos e à sua magia. Já a tradição, a veneração da Antiguidade impunham desde o começo determinados limites. Essa tradição exigia, para que a obra de arte concretize-se, a união de uma severa formação prática e de uma disposição inata, de um ingenium que não se pode adquirir mas deve estar presente e ativo desde a origem, como dom da natureza. Ego nec studium sine divite vena nec rude quid possit, video ingenium: alterius sic altera poscit opem rest et conjurât amice. É com uma pará­ frase dessas palavras de Horácio que se abre a Arte poética de Boileau: C’est en vain qu'au Parnasse un téméraire auteur Pense de l'art des vers atteindre la hauteur: S'il ne sent point du ciel l'influence secrète, Si son astre en naissant ne l'a formé poète, Dans son génie étroit il est toujours captif, Pour lui Phébus est sourd, et Pégase est rétif. [É em vão que no Parnaso um temerário autor Pensa da arte dos versos atingir a altura: Se ele não sente do céu a influência secreta, Se seu astro ao nascer não o formou poeta, De seu gênio escasso será sempre cativo, Para ele Febo é surdo e Pégaso esquivo.]

378

A fórmula conserva aqui toda a sua força: o verdadeiro poeta deve nascer poeta. Mas o que vale a respeito do poeta não vale necessariamente para a poesia lato sensu. Pois uma coisa é o impulso que suscita o processo criador, que o sustenta inces­ santemente e lhe propicia o pleno desenvolvimento, e outra coisa muito diferente é a obra que é o fruto desse impulso. Uma obra digna desse nome, criatura autônoma possuindo verdade e per­ feição objetiva, deve despojar-se, em sua pura essência e em sua consistência, das forças subjetivas que eram indispensáveis à sua gênese. É então possível e necessário cortar todas as pon­ tes que a reconduziriam ao mundo onde se forjam as ficções, porquanto a lei que governa a obra de arte como tal não é um produto da imaginação, é uma lei efetiva, que o artista não tem que inventar mas que descobrir, que ele deve ir buscar à natu­ reza das coisas. O total dessas leis efetivas não é outro, segundo Boileau, senão a “ razão” : é nesse sentido que ele ordena ao poeta que ame a razão. O poeta não deve buscar nem a pompa exterior nem o falso ornamento, deve contentar-se com o que o próprio objeto fornece-lhe. Deve aceitá-lo em sua simples ver­ dade e persuadir-se, além disso, de que cumpre assim todos os seus deveres a serviço supremo da beleza. Pois a beleza só se deixa abordar pelo caminho da verdade, e esse caminho exige que não se fique no aspecto exterior das coisas, na impressão que elas causam nos sentidos e na sensibilidade, mas que se leve cuidadosamente em conta o percurso entre a “essência” e a “ aparência”. Não poderíamos conhecer o objeto da natureza pelo que é sem operar uma seleção severa entre os fenômenos que nos assediam incessantemente, sem distinguir entre o variá­ vel e o constante, entre o contingente e o necessário, entre o que só tem valor para nós e o que está fundamentado na própria coisa; o mesmo pode ser dito no tocante ao objeto de arte. Ele não é mais dado e conhecido no absoluto, devendo ser deter­ minado e apreendido por um processo seletivo da mesma ordem.

379

A estética clássica deixou-se desencaminhar — por imitadores de segunda ordem, é verdade, não por espíritos verdadeiramente criadores — até querer estabelecer regras determinadas para a produção de obras de arte. Mas se pretendeu dirigir esse pro­ cesso seletivo, racionalizá-lo e controlá-lo em função de critérios fixos, não imaginou sequer ensinar diretamente a verdade artís­ tica: ela acreditava poder preservar do erro e estabelecer os critérios do erro. Mais uma vez revela-se o seu parentesco com a doutrina cartesiana do conhecimento, ao reger-se pelo princí­ pio metódico segundo o qual só podemos atingir a certeza filo­ sófica por uma via mediata, ou seja, inspecionando as diversas fontes de erro, a fim de superá-las e de eliminá-las. Ê nesse sen­ tido que, para Boileau, a beleza da expressão poética coincide com a sua “exatidão” (Richtigkeit); e esse conceito de “ exati­ dão” é central em toda a sua estética. Ele combate tanto o bur­ lesco quanto o estilo precioso e afetado porque ambos se afas­ tam, em sentidos diferentes, desse ideal. E o mérito supremo, senão o único, que Boileau ambiciona para a sua própria poesia é que ela se mantenha fiel a esse princípio, que não impressione o leitor por encantos superficiais mas pela simples clareza do pensamento, pela economia e escolha refletida da expressão: Riert n'est beau que le vrai, le vrai seul est aimable. Il doit régner part-tout, et même dans la fable; De toute fiction Vadroite fausseté Ne tend qu'à faire aux yeux briller la vérité. Sais-tu pourquoi mes vers sont lus dans les provinces? Sont recherchés du peuple, et reçus chez les princes? Ce n'est pas que leurs sons, agréables, nombreux, Soient toujours à l'oreille également heureux; Q u’en plus d'un lieu le sens n'y gêne la mesure Et qu'un mot quelquefois n'y brave la césure: Mais c'est qu'en eux le vrai, du mensonge vainqueur,

380

Part-tout se montre aux yeux, et va saisir le coeur; Que le bien et le mal y sont prisés au juste; Que jamais un faquin n'y tint un rang auguste; Et que mon coeur, toujours conduisant mon esprit, Ne dit rien aux lecteurs, qu’à soi-même il n ’ait dit. Ma pensée au grand jour par-tout sfoffre et s’expose Et mon vers, bien ou mal, dit toujours quelque chose.8 [Só o belo é verdadeiro, só o verdadeiro é agradável. Ele deve reinar em toda parte, e mesmo na fábula; De toda ficção a hábil falsidade Só tende a fazer brilhar aos olhos a verdade. Sabes por que meus versos são lidos nas províncias? São procurados pelo povo e recebidos pelos príncipes? Não é porque seus sons, agradáveis, numerosos, Sejam sempre igualmente favoráveis ao ouvido; Que em mais de um lugar o sentido não estorve a medida E uma palavra qualquer não afronte a cesura: Mas é que neles a verdade, triunfando da mentira, Por toda parte salta aos olhos e vai conquistar o coração; Que o bem e o mal aí são avaliados com eqüidade; Que nunca um patife aí ocupa um lugar augusto; E que meu coração, guiando sempre o meu espírito, Nada diz aos leitores que a si mesmo já não tenha dito. Ofereço e exponho o que penso por toda parte, à luz do dia, E meus versos, bem ou mal, dizem sempre alguma coisa.] A questão fundamental e central da estética clássica, a questão da relação sistemática entre o “ gerar’ e o “ particular", entre a regra e a exceção, apresenta-se aqui sob a sua verdadeira luz. Nunca se deixou de objetar à estética clássica que não pos­ suía o menor sentido do individual, que procurava no geral toda a verdade e toda a beleza, deixando que ambas se perdes­ sem em puras abstrações. Taine, que sustenta essa tese, fez dela

381

o ponto de partida de uma crítica que não visa apenas à estética dos séculos XVII e XVIII mas rechaça, ao mesmo tempo, todo o espírito do classicismo e pretende arrebatar-lhe todo o seu brilho de empréstimo, desvendar-lhe a impotência e a pobreza. Ê evidente que um exame histórico e um julgamento sem pre­ venções deverão orientar-se num sentido muito diferente. Em vez de servir-se da estética do classicismo para manifestar a in­ suficiência e a fragilidade interna do “espírito clássico”, procurar-se-á esse espírito, pelo contrário, em seus pontos fortes, e o esforço será no sentido de o compreender e interpretar através de suas realizações mais altas e verdadeiramente centrais. Uma vez mais, impõe-se o paralelismo entre a elaboração da estética e o desenvolvimento que a lógica e as matemáticas conheceram nos séculos XVII e XVIII. Considera Descartes que o único progresso verdadeiramente decisivo que realizou em relação ao método geométrico dos antigos foi ò de ter sido quem primeiro dotou a geometria de uma independência e de uma suficiência racionais autênticas. A geometria antiga é, sem dúvida nenhuma, uma escola incomparável do espírito, mas não pode — como Descartes mostra ao longo do Discurso%do método — aguçar o espírito sem ocupar incessante e simultaneamente a imagina­ ção até exauri-la, enfim, por ocupá-la em toda sorte de figuras e problemas particulares. A busca não pode, nesse caso, evitar perder-se indefinidamente na consideração de casos especiais e ser obrigada a inventar e a efetuar uma demonstração especial para cada grupo de casos específicos. A nova análise cartesiana vai pôr cobro a esses obstáculos: ela contém regras universais e desenvolve métodos válidos em todos os casos, implicando a solução dos casos especiais e sua determinação a priori. E mais um progresso na mesma direção será obtido quando as mate­ máticas transpuserem a fronteira da geometria analítica de Des­ cartes para o cálculo infinitesimal de Leibniz e o cálculo dos fluxos newtonianos. A dominação do particular pelo universal

382

será então estabelecida e solidamente fundada por um outro caminho. Para toda função dada, o quociente diferencial apre­ senta-nos a “natureza” dessa função, toda a trajetória da curva que lhe corresponde, com a máxima precisão e tão inteligivel­ mente quanto possível. Todos os detalhes que a intuição tiver a possibilidade de descobrir nessa curva aí são condensados, numa expressão conceptual única, onde se concentram os raios da evidência. Dessa fórmula que coloca à nossa disposição a análise do infinito podemos inferir imediatamente todas as pro­ priedades da curva e todas as suas características, de um modo rigorosamente dedutivo. A intuição como tal não poderia chegar a essa forma de unificação. Pretende ela representar-se um con­ ceito geométrico dado, o conceito de elipse, por exemplo? Não lhe resta mais do que passar em revista e comparar entre si as inúmeras figurações possíveis desse conceito. Dessa comparação destaca-se finalmente uma certa “ imagem” da elipse que está muito longe de constituir um objeto realmente simples e homo­ gêneo. Para uma “ consideração” pura e simples, com efeito, segundo o habitus concreto, as classes particulares de elipses mantêm-se nitidamente diferentes. Há as que se aproximam da forma circular; há outras, estreitas e alongadas, que se afastam muito dessa forma e que, no plano da figuração puramente in­ tuitiva, formam com ela um perfeito contraste. Entretanto, o conceito geométrico, tal como a análise ^presenta-o e desenvol­ ve-o, prova que todas essas diferenças nada têm a ver com a elipse, que não dependem da sua “natureza”. Do ponto de vista do conceito, não cabe procurar essa natureza em toda essa va­ riedade ilimitada de particularizações intuitivas da forma elíp­ tica quando ela reside numa lei de construção universal: e essa lei nos é fornecida sob sua forma rigorosamente exata na equa­ ção da elipse. O pensamento matemático apreende, enfim, a verdadeira “unidade na multiplicidade”. Não pretende negar a diversidade como tal nem recusá-la, mas, pelo contrário, com-

383

preendê-la e fundamentá-la. A fórmula da função sob a sua for­ ma geral só contém, bem entendido, a regra universal que permite determinar a interdependência das variáveis mas é sempre pos­ sível reportar-se da fórmula geral para uma figura particular qualquer caracterizada, como tal, por grandezas determinadas que são as suas constantes individuais. Toda determinação dessas grandezas — um comprimento determinado, por exemplo, que atribuímos ao pequeno eixo da elipse — redunda num novo caso particular; mas todos esses casos particulares “ são” , na realidade, o mesmo, na medida em que todos eles têm, para o geômetra, uma só e mesma significação. Ê um mesmo sentido geo­ métrico, um ser idêntico e uma verdade idêntica da elipse que se escondem para nós na massa heterogênea das figuras parti­ culares e que a fórmula analítica caracteriza e, de certa maneira, desvenda em sua própria essência. Foi na imitação dessa “ unidade na multiplicidade” das ma­ temáticas que se constituiu a “ unidade na multiplicidade” esté­ tica, exigida pela teoria clássica. É um erro acreditar que o princípio da unidade na multiplicidade como tal é incompatível com o espírito do Classicismo, que nesse princípio exprime-se o mais virulento anticlassicismo.6 Pois também no domínio da arte não se trata, para o espírito clássico, de uma simples negação da multiplicidade, de sua supressão, de sua extinção, mas da forma, da organização positiva e sintética a dar-lhe. Na Arte poética, Boileau esforça-se por estabelecer uma teoria geral dos gêneros poéticos, tal como o geômetra uma teoria geral das cur­ vas. Quer instituir o “ possível” a partir da multiplicidade de objetos reais, tal como o matemático quer perceber o círculo, a elipse, a parábola, em sua “ possibilidade” , a saber, na lei de construção que lhes serve de base. Tragédia e comédia, elegia e epopéia, sátira e epigrama, todos esses gêneros possuem sua própria lei de construção bem-determinada, que nenhuma cria­ ção individual está autorizada a violar, da qual não pode afas­

384

tar-se sem ferir a própria "natureza” e perder seus títulos à verdade artística. Boileau procura destacar essas leis implícitas, baseadas na natureza dos diversos gêneros poéticos, respeitadas inconscientemente desde sempre na prática da arte, a fim de impô-las ao conhecimento claro e distinto. Quer enunciá-las e formulá-las em termos explícitos, à maneira da análise matemá­ tica, a qual permite uma tal formulação, uma expressão do conteúdo próprio e da estrutura fundamental correspondente a tal ou tal classe de figuras. Por isso é que o próprio gênero não é para ele algo que o artista deveria elaborar, muito menos um meio e um instrumento de criação de que poderia, a seu belprazer, apossar-se ou desfazer-se, mas, pelo contrário, algo dado como tal e intrinsecamente necessário. Os gêneros e as espécies de arte não se comportam, nesse capítulo, de um modo diferente das coisas da natureza: possuem igualmente imutabilidade, esta­ bilidade, forma e destinação específicas, nada podendo ser-lhes acrescentado ou retirado. O esteta não é mais o legislador da arte que o matemático e o físico o são da natureza. Tanto uns quanto outros não ordenam nem governam, apenas estabele­ cem o que “é”. E não constitui obstáculo nenhum para o gênio estar ligado e, de certo modo, submetido a essa realidade obje­ tiva mas, pelo contrário, é uma garantia contra o arbitrário e a certeza de elevar-se à única forma possível e verdadeira de liberdade artística. Mesmo para o gênio, existem certos limites intransponíveis, tanto do lado dos assuntos artísticos quanto do lado dos gêneros artísticos: está fora de cogitação tratar não im­ porta que assunto em não importa que gênero; a própria es­ trutura do gênero já efetua por si mesma uma certa seleção nas matérias a tratar, excluindo tudo o que não se presta ao único modo de tratamento que ela aceita. O artista deve, portanto, pro­ curar alhures a sua liberdade de movimento: não no conteúdo como tal, o qual, em considerável medida, é fixado e organizado de antemão, mas na direção da expressão e da apresentação. Ê so-

385

mente na expressão que se faz conhecer o que é comumente deno­ minado a "originalidade”.7 É aí que o artista vai empregar suas faculdades individuais: entre as diversas expressões possíveis de um mesmo assunto, o artista verdadeiro dará sempre sua prefe­ rência àquela que suplanta as outras em segurança e fidelidade, em clareza e concisão. Contudo, ele não vai procurar a novidade pela novidade e a todo preço mas, simplesmente, aquela dose de novidade que convier para satisfazer a necessidade de simplicida­ de, concisão, brevidade convincente, numa medida jamais alcan­ çada ainda. Um pensamento novo, diz Boileau a certa altura, não é, absolutamente, um pensamento que jamais tenha sido pensa­ do: “ É, pelo contrário, um pensamento que deve ter ocorrido a todos mas que alguém foi o primeiro a tomar a iniciativa de expressá-lo.” É verdade que nessa fórmula esconde-se um novo obstáculo: uma vez alcançada essa adequação perfeita entre o assunto e a expressão, a arte chegou a uma meta que já não há a necessidade nem a possibilidade de ultrapassar. O pro­ gresso não é um progressus in indefinitum, detendo-se num certo nível de perfeição. Toda perfeição artística significa, ao mesmo tempo, um non plus ultra, um limite da arte. O século de Luís X IV , de Voltaire, é um novo exemplo dessa coinci­ dência clássica, em certas formas de arte, da perfeição interior e do fim dos tempos. Também aqui se manifesta a analogia que a teoria admite entre os problemas artísticos e científicos e que ela tenta desenvolver em detalhe. Condillac via o elo que une a arte e a ciência em sua relação comum com a lin­ guagem. São dois níveis e duas direções diferentes de uma só e mesma função intelectual que se exprime na criação e uso de sinais. A arte, assim como a ciência, coloca os “ sinais” dos objetos no lugar dos objetos, e só se distingue dela pelo uso que faz dos mesmos.8 A vantagem dos sinais científicos, justa­ mente, sobre os da linguagem usual, sobre as simples palavras, é serem muito melhor definidos, tenderem para uma expressão

386

perfeita e unívoca. É esse o seu objetivo; mas desse modo é introduzida uma limitação imanente. A teoria científica pode perfeitamente designar, sem dúvida, um só e mesmo objeto por diversos símbolos — o geômetra, por exemplo, pode exprimir a equação de uma curva primeiro em coordenadas cartesianas, depois em coordenadas polares. Mas uma dessas expressões ga­ nhará, finalmente, em perfeição relativa porque conduz, para o objeto em questão, à fórmula mais simples de todas. Essa mesma “simplicidade” é elevada pela estética clássica ao status de um ideal: a simplicidade vale como corolário da verdadeira beleza, tal como esta é o corolário e o critério da verdade. Os pontos fracos dessa teoria são bem visíveis. Contudo, não foi tanto às deficiências de princípios que o desenvolvi­ mento ulterior da estética ficou inicialmente associado. As de­ ficiências de execução, aquelas que apareceram quando da aplicação dos princípios clássicos à consideração de gêneros artísticos e de obras particulares, pesaram muito mais. Por muito paradoxal que essa idéia possa parecer, pode-se afirmar a esse propósito que uma das fraquezas essenciais da doutrina clássica não é ter levado longe demais a abstração mas não ter perseverado nela com suficiente constância. Com efeito, um pouco por toda parte, misturam-se, no estabelecimento e defesa da teoria, motivações que, longe de serem logicamente inferidas de seus princípios gerais e de suas pressuposiçõs, pro­ vêm do contexto particular dessa problemática, da estrutura intelectual histórica do século XVII. Essas motivações insi­ nuam-se no trabalho dos mais eminentes teóricos, à sua revelia, e levam-nos a afastar-se de seus objetivos puramente especula­ tivos. A ilustração mais clara dessa situação encontra-se na controvérsia que com tanta freqüência passou por ser o próprio cerne de toda a estética clássica, porquanto parece que essa estética só foi concretamente testada a propósito da doutrina das três unidades e que o seu destino filosófico e teórico lhe

387

está vinculado. E, no entanto, verifica-se justamente que essa doutrina não foi criada pela estética do Classicismo, que a pre­ cedeu, pelo contrário, e viu-se simplesmente imbricada no sis­ tema.9 E essa inserção jamais produziu uma justificação verda­ deiramente convincente. Ao anunciar a doutrina das unidades, Boileau fala, sem dúvida, como legislador da razão e em no­ me da razão. Mais nous, que la raison à ses règles engage, Nous voulons qu'avec art Vaction se ménage; Qu'en un lieu, qu'en un jour, un seul fait accompli Tienne jusqu'à la fin le théâtre rempli.10 [Mas nós, Queremos Que num Mantenha

que a razão às suas regras obriga, que com arte a ação se consiga; lugar, que um dia, um só fato consumado até o fim o teatro lotado.]

Essa aplicação da doutrina, medida pelo cânone da pura lógica, esconde, porém, uma evidente sub-repção: o ideal da razão que ele sustenta em todas as oportunidades é aqui subs­ tituído por Boileau por uma medida puramente empírica. Nesse ponto, a estética clássica afasta-se nitidamente da sua concepção científica da “ razão universal” a fim de enveredar pelo cami­ nho de uma filosofia do “ senso comum” . Em vez da verdade, ela recorre à verossimilhança (Wahrscheinlichkeit) e ainda num sentido estrito que tem somente um valor de facto. Uma tal valorização do simples fato é, contudo, fundamentalmente in­ compatível com os verdadeiros e mais profundos princípios da teoria clássica. É evidente que não se trata de um argumento satisfatório paro justificar a necessidade absoluta da unidade de lugar e de tempo reportar-se ao espectador, para quem seria absurdo ver desfilar no transcurso de algumas horas aconte­ cimentos que preenchem um ano ou uma dezena de anos. Pois

388

a própria estética clássica, de acordo com a sua tendência ge­ ral, sempre nos preveniu, justamente, contra a confusão entre o que é verdadeiro e válido “ pela natureza da coisa” e o que parece válido a um indivíduo, do seu ponto de vista particular. Ela exigia do indivíduo, enquanto sujeito estético, que esque­ cesse o seu temperamento particular, a sua “ idiossincrasia”, para deixar falar apenas a pura necessidade do objeto. Não é uma violação dessa exigência, uma contestação do caráter estritamente “ impessoal” da razão, tal como é sempre afir­ mado pelos teóricos do Classicismo, usar como medida do dra­ ma as condições aleatórias em que se encontra o espectador e elevá-las à categoria de norma da criação? E esse traço não é único: é simplesmente o sintoma mais destacado desse deslocamente característico das motivações que encontramos por toda parte, até mesmo nos adeptos do classicismo estrito. To­ dos se esforçam pela simplicidade, exatidão, pela simples “ na­ turalidade” da expressão, mas vão buscar a medida do na­ tural, sem a menor hesitação ou escrúpulo, ao mundo em que vivem, baseiam-se no que lhes fornecem o ambiente imediato, o hábito e a tradição. Aqui, de súbito, o poder de abstração de que estão dotados os fundadores da doutrina clássica começa a faltar-lhes: em vez da reflexão crítica sobrevêm uma credu­ lidade ingênua, uma veneração por todos os dados puramente empíricos da cultura intelectual e artística do século XVII. Esse fascínio pesa tanto mais sobre aqueles pensadores que disso estiverem menos conscientes. Boileau não postula somente a equivalência da “ natureza” e da “ razão” : ele chega mesmo a identificar a natureza propriamente dita com um certo estado de civilização (Gesittung). Só é possível chegar a esse estado cultivando as formas que a vida social criou e levou a um tão alto grau de refinamento. Doravante, a razão e a natureza, a corte e a cidade são elevados à categoria de modelo e de ideal estético. “Étudiez la cour et connaissez la ville; l'une et Vautre

389

est toujours en modèles f e r t i l e [Estudai a corte e conhecei a cidade; uma e outra são sempre férteis em modelos.] Subrepticiamente, as conveniências insinuam-se assim no lugar da natureza, as convenções no lugar da verdade. O teatro, pri­ meiro, onde se revelam a forma e a flor da mais nobre socia­ bilidade, não poderia afastar-se desse quadro. Em nenhuma par­ te os preceitos da razão são mais severos e em nenhuma parte, de resto, o poeta deve observá-los com tanto rigor e escrúpulo, no receio de contrariar os fins essenciais do teatro. Ê por isso que Boileau situa aí a exatidão da regra a que a poesia dramá­ tica deve submeter-se, no mesmo plano que a sua estreiteza, ao ponto de tratar exatidão e estreiteza quase como sinônimos: Dans un roman frivole aisément tout s'excuse; C'est assez qu'en courant la fiction amuse; Trop de rigueur alors seroit hors de saison: Mais la scène demande une exacte raison L'étroite bienséance y veut être gardée.n [Num romance frívolo tudo é facilmente desculpado; Basta que, ao desdobrar-se, nos divirta a ficção; Rigor demais seria então deslocado: Mas o palco exige uma exata razão O estreito decoro aí quer ser guardado.] Por essa última equivalência, a doutrina clássica converteu finalmente seus ideais estéticos em certos ideais sociológicos aos quais ela os vinculou. “ Os diversos gêneros poéticos eram tra­ tados" — diz Goethe nos Comentários à sua tradução do ro­ mance O sobrinho de Rameau [de Diderot] — “ como outras tantas sociedades nas quais convém obedecer a um comporta­ mento particular [ . . . ] O francês não teme falar de conveniências ao julgar produtos do espírito, palavra que, a bem dizer, só pode representar o que se faz em sociedade.” 12

390

E é exatamente nesse ponto que cumpre ver a origem do movimento de idéias que culminará com a dissolução e derrota das teorias do Classicismo. Sem dúvida, na primeira metade do século XVIII, essas teorias ainda dominam quase sem contesta­ ção. Voltaire é um espírito penetrante e crítico demais para não se aperceber de algumas fraquezas nelas existentes, mas, por outro lado, tem uma admiração enorme pelo “ Século de Luís XIV”, do qual veio a ser o primeiro historiógrafo, admi­ ração bastante para não se subtrair às suas estritas exigências em matéria de gosto. Entretanto, em seus acessos de cepticismo e de pessimismo, não deixa de criticar a cultura do seu tempo e procura, no conto O ingênuo (1767), opor a essa cultura corrompida o espelho da natureza, a simplicidade e a franqueza do pensamento, a inocência dos costumes. Mas justamente a maneira como ele apresenta o seu herói mostra com toda clareza como ele é devedor ao seu século desse mesmo ideal da natu­ reza, como está inteiramente comprometido com esse ideal: o filho da natureza de quem ele nos quer fazer o retrato está muito longe, com efeito, de toda rudeza e de toda barbárie. Não só ele mostra a maior delicadeza e respeito pela civilização mas vai ao ponto de falar a língua da galanteria. Voltaire, portanto, enquanto esteta, considera que o gosto refinado, autêntico, baseia-se no instinto de sociabilidade do homem, o qual só pode originar-se — é essa a tese do Ensaio sobre o gosto — no âm­ bito da vida social. Antes de Rousseau, a cultura francesa sete­ centista jamais fizera uma distinção rigorosa entre o social e o natural. Rende-se preito à natureza, devota-se-lhe uma paixão entusiástica, mas todos os traços do convencionalismo são intro­ duzidos no quadro que se faz da belle nature. Diderot foi o primeiro na França que ousou abalar essa convenção. Em suas obras manifesta-se um novo pathos revolucionário mas, em sua ação imediata de crítica e de escritor, em particular na sua obra de poeta dramático, não se atreve mais do que os outros a rom-

391

per os vínculos. Lessing foi o único a dar o passo verdadeira­ mente decisivo, na Dramaturgia de Hamburgo, e a extrair daí as últimas conseqüências. Denuncia a confusão indefensável e funesta que se produzira na França, no drama e na teoria dra­ mática, entre as exigências da pura “ razão” estética e as exi­ gências puramente convencionais, ligadas à época e sem valor geral. E procede a uma severa e inexorável seleção, excluindo do campo das normas estéticas do classicismo tudo o que tem sua origem não na verdade e na natureza mas somente nas ilu­ sões de que toda a época, por brilhante que seja, faz alarde. Essas ilusões não podem produzir nenhuma forma artística ver­ dadeira nem nenhum caráter dramático autêntico. Só a varinha mágica do gênio poético, jamais as regras de conveniência de uma escola estética, pode lograr êxito numa tal criação: “ Quan­ do a pompa e a etiqueta convertem os homens em máquinas, é tarefa do poeta fazer dessas máquinas homens de novo.” A obra de Lessing tinha sido preparada, sem dúvida, até nos detalhes, pela estética setecentista. À força de confundir os princípios sociais e estéticos, segundo o erro cometido pela dou­ trina clássica, teria que acabar-se por tornar solidário, de al­ gum modo, o destino histórico de uns e outros. A partir do instante em que não podiam mais sustentar-se diante de uma crítica cada vez mais penetrante que denunciava seus pontos fracos, esses princípios teriam fatalmente que ceder e acabar por dissolver-se. Dessa derrota, a estética do século XVIII au­ feriu um novo enriquecimento ao tomar plenamente consciência, por ocasião de um evento histórico concreto que lhe dizia diretamente respeito, do vínculo existente entre a arte e o “espírito do tempo” . A poética de Boileau era, como se viu, profundamente determinada pela sua época e, em suma, toda impregnada dela, mas, na doutrina como tal, esse fato evidente não tinha a menor probabilidade de exprimir-se. As regras esta­ belecidas por Boileau, no espírito do autor e na perspectiva da

392

obra, são regras universais, rigorosamente intemporais. A desrazão tem uma “história”, não a razão; esta continua sendo o que sempre foi desde o começo e o que será até o fim dos tempos. Mas eis que, de súbito, além das conseqüências que a estética clássica daí extraíra, as premissas também claudicaram. Com o surgimento de novas idéias científicas e filosóficas, as­ sim como de novas exigências políticas e sociais, sente-se uma evolução dos padrões estéticos. Os novos tempos exigem, de um modo cada vez mais enérgico e consciente, uma nova arte. Ao patético e ao culto do herói da tragédia francesa clássica, Diderot opõe uma nova sensibilidade social e, concomitantemente, estética; defende a causa de um novo gênero poético, a chamada “tragédie domestique". E a crítica estética do século XVIII já estava pronta para integrar tais experiências, reconhe­ cê-las e interpretá-las teoricamente. Dubos inaugurou o cami­ nho com as suas Réflexions critiques sur la poésie et la peinture. Foi um dos primeiros a manifestar interesse de especialista pelo desenvolvimento de uma arte individualmente considerada e a revelar as causas desse desenvolvimento sem se ater apenas às causas intelectuais mas igualmente às causas naturais, climáti­ cas e geográficas. A par das “ causas morais”, ele reserva um vasto campo de ação às “causas físicas” . No domínio da esté­ tica pura, ele é assim o iniciador da teoria que, mais tarde, em sociologia e em ciência política, será brilhantemente susten­ tada por Montesquieu. Não importa que solo e que tempo pro­ duzem tal ou tal arte: non omnis fert omnia tellus,13 Essa perspectiva marca o abandono da fixidez do esquema clássico. Pretende-se uma teoria que acolha a diversidade e a mobilidade dos fenômenos estéticos, uma teoria que se veja nascer dessa mesma multiplicidade. Em suma, a tendência é para passar das simples fórmulas ao conhecimento da estrutura própria da cria­ ção artística, a qual, como se vê cada vez mais claramente, não se decifra na essência da obra de arte mas obriga a teoria

393

a inserir-se no processo da criação artística a fim de o recons­ tituir mentalmente.

O problema do gosto e a conversão ao subjetivismo A mutação interna que põe fim ao reinado da doutrina clássica no âmbito da estética corresponde exatamente, no plano metodológico, à conversão que, no pensamento físico, foi con­ sumada pela passagem de Descartes a Newton. É a mesma fi­ nalidade que é perseguida, em ambos os casos, por caminhos e procedimentos intelectuais diferentes. Trata-se de libertar-se do despotismo absoluto da dedução, trata-se de dar lugar, ao lado dela e não contra ela, de maneira nenhuma, aos fatos simples, aos fenômenos, à observação direta. Não está em ques­ tão, evidentemente, renunciar ao apoio sobre princípios mas, outrossim, elaborar os princípios em função dos fenômenos em vez de subordinar os fenômenos a princípios definidos, válidos a priori e fixados de uma vez por todas. Assim, o método de explicação e de dedução tende cada vez mais, também nesse domínio, a ceder o lugar à pura descrição}4 E essa descrição não parte mais das obras de arte mas da consciência estética cuja natureza ela quer, em primeiro lugar, reconhecer e definir. Já não são agora os gêneros artísticos que estão em causa, prin­ cipalmente, mas as atitudes artísticas: a impressão que causa a obra de arte sobre aquele que a contempla e o julgamento no qual ele procura fixar essa impressão para si mesmo e para os outros. Essa tendência da estética visa sempre à "natureza”, tem-na por modelo que o artista deve esforçar-se por alcançar e respeitar em todos os casos; mas o próprio conceito de natu­ reza acaba de realizar uma característica mutação semântica. O fio condutor deixou de ser, com efeito, essa natura rértim à qual se vinculava o objetivismo estético para ser agora a natu­ reza do homem: essa natureza à qual recorrem de todas as

394

partes nessa época a psicologia e a teoria do conhecimento, aí procurando a chave de todos os problemas que a metafísica pro­ metera resolver sem jamais o conseguir. Se existe um domínio onde se impõe tal abordagem do problema é o da estética, a qual, por sua própria essência, é um fenômeno puramente humano. Toda espécie de “transcendência” está, por esse fato, segundo parece, condenada de antemão; nenhuma solução lógica ou me­ tafísica é pensável mas somente uma solução antropológica stricto sensu. Psicologia e estética ingressam, portanto, numa associação tão estreita que parecem, por um certo tempo, fundirse uma na outra: a passagem da psicologia para a problemática transcendental, passagem essa que proporcionou finalmente a Kant romper esses vínculos, em nenhum outro domínio foi mais difícil de realizar; em nenhuma parte as dificuldades teóricas pesaram tanto quanto na área dos problemas estéticos funda­ mentais. É claro que o método psicológico, ao procurar na natureza humana a origem e o único fundamento do belo, não pretende em absoluto dar livre curso a um relativismo ilimitado, elevar o sujeito individual à posição de um juiz da obra de arte cujas sentenças sejam absolutas e sem apelação. Ele vê, pelo contrário, uma espécie de sensus communis no gosto; a natureza e a pos­ sibilidade de tal “ senso comum” constituem propriamente o ponto de paçtida de sua problemática. Se a forma estética nor­ mativa que vigorava até então está doravante descartada, toda a espécie de regra não deve, porém, ser eliminada por tal motivo; a estética não vai ser entregue ao acaso e ao arbitrário. A elimi­ nação do arbitrário, a descoberta de leis específicas da consciên­ cia estética constituem, pelo contrário, a finalidade da estética enquanto ciência. Diderot encontrou termos justos e penetran­ tes para exprimir esse princípio fundamental no começo do seu Ensaio sobre a pintura. Se o gosto fosse apenas uma questão de humor, donde proviriam essas deliciosas emoções que ema-

395

nam do mais fundo do nosso eu de maneira tão súbita, invo­ luntária e impetuosa, esses movimentos da alma que profunda­ mente nos sacodem, que ampliam ou constrangem o nosso ser, que nos arrancam lágrimas de júbilo ou de dor? Esses fenômenos que cada um experimenta e vivência em si mesmo não poderiam ser recusados por teorias abstratas nem abalados por argumen­ tos cépticos. “Apage Sophista” — gritou Diderot — “jamais persuadirás meu coração de que ele faz mal em agitar-se, nem as minhas entranhas de que fazem mal em comover-se.” 16 Essa nova perspectiva metódica só pretende fundamentar racionalmente o julgamento do gosto com reservas expressas, se ainda assim não renunciar a isso inteiramente nem abando­ nar, de maneira nenhuma, seus direitos à universalidade. Só está agora em questão uma determinação mais exata dessa universa­ lidade assim como o modo segundo o qual sua validade pode ser assegurada. A dedução pura e o simples raciocínio revelamse aqui impotentes: a exatidão do gosto não se deixa demons­ trar da mesma maneira que a validade de uma dedução lógica ou matemática. £ necessário fazer intervir aqui outras faculda­ des, apostar, por assim dizer, numa outra cor psicológica. Essa convicção já tendia a manifestar-se através do edifício da teoria clássica. A obra de Bouhours intitulada La manière de bien penser dans les ouvrages de Vesprit [A maneira de bem pensar nos labores do espírito] só está separada da Arte poética de Boileau por um século ou pouco mais e quer completar a obra de Boileau sem lhe subverter os princípios. Como o próprio título já indica, trata-se de dar uma "arte de pensar” estética como peça anexa do Art de penser de Port-Royal. Mas a forma do pensamento e do julgamento estético destaca-se com mais clareza e distinção do que no modelo acima de todas as for­ mas de inferência puramente "discursivas”. A finalidade su­ prema que o pensamento discursivo possa propor-se é a exa­ tidão e a univocidade. Todo conceito de que ele faz uso deve

396

ser rigorosamente definido, plenamente determinado em todas as suas características e deve conservar o sentido estabelecido pela definição ao longo de toda a série de fases do pensamento. Toda vacilação, toda obscuridade e toda ambigüidade signi­ ficam a morte do conceito lógico-matemático, o qual só recebe seu sentido e seu valor próprios de sua exatidão, e que é tanto mais perfeito quanto melhor lograr realizar esse ideal. Em es­ tética, porém, é uma outra norma que prevalece. Não é difícil encontrar toda uma série de fenômenos expondo-se claramente, acessíveis a toda observação imparcial e que, no entanto, es­ tão tão distanciados da exatidão que esta não teria grande di­ ficuldade em destruí-los. Uma idéia estética não recebe seu va­ lor e seu encanto de sua exatidão e de sua clareza mas da mul­ tiplicidade de relações que ela condensa em seu seio, e esse encanto não se perde porque não se consegue dominar com o olhar essa multiplicidade de relações, resolvê-la analiticamente em seus elementos constitutivos. A significação estética de uma tal idéia não é diminuída pelos impulsos complexos, até contra­ ditórios, que ela suscita, pela maneira como ela cintila em mil cores, por tudo o que ela comporta de fugaz e de flutuante. Em muitos casos, ela só é constituída, na verdade, pelo con­ junto desses traços. Assim como Pascal tinha distinguido o "es­ pírito sutil” do “ espírito geométrico”, opondo um ao outro numa antítese muito profunda, também Bouhours opõe ao es­ pírito de “ rigor” que Boileau tinha elevado ao nível de prin­ cípio da arte o espírito de finura e delicadeza, o espírito de delicatesse. O que se designa aqui por “delicatesse” é, de certo modo, um novo órgão que não tende, como o pensamento matemático, a solidificar, a estabilizar e a fixar o conceito, mas que se exprime, muito pelo contrário, na leveza e mobili­ dade do pensamento, na agilidade em captar os matizes mais sutis e as transições mais céleres. São essas transições e esses matizes que dão a esse pensamento sua tonalidade especifica-

397

mente estética. Por estranha e chocante que essa idéia possa parecer à primeira vista, pode-se dizer que, a par do ideal esté­ tico de rigor e exatidão, encontra-se um outro, diametralmente oposto: o ideal de inexatidão. O classicismo estrito caracteriza­ va como não-verdadeira em si mesma toda coisa inexata e, por conseguinte, rejeitava-a. Mas a "razão" estética, Bouhours in­ siste sobre esse ponto, não é prisioneira do “ claro e distinto” . Não só ela suporta uma certa margem de indeterminação como a exige e provoca, pois a imaginação estética só se inflama e desenvolve na presença do que ainda não está plenamente de­ terminado, do que ainda não está totalmente pensado. Não se trata aqui do simples conteúdo do pensamento e de sua verdade objetiva mas do desenrolar do pensamento e da sutileza, da ligeireza, da presteza com que se realiza. Não é o mero resultado que é decisivo mas o modo como é obtido, o próprio fato de resultar. Do ponto de vista estético, um pensamento é tanto mais valioso quanto mais visível for o encadeamento criador, a gênese da forma inesperada, o "jorro” (Herausspringen). A lógica exige constância, a estética pede a subitaneidade. A ló­ gica deve pôr a claro todas as pressuposições de um pensamento, não perder nenhum dos elos intermediários que o preparam, segui-lo em todas as suas mediações; para a arte, pelo contrá­ rio, o imediato é a fonte onde ela inesgotavelmente inspira-se. A estrita “ retidão” do pensamento, à qual se ligava a estética clássica e que esta erigia em norma, deixou de ser válida: a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos somente na acepção geométrica, não no sentido estético. A estética de Bouhours, ao basear-se no princípio da delicadeza, vai ensinar, portanto, a arte do desvio a justificar sua validade e riqueza. Um pensamento esteticamente válido (pensamento delicado, pen­ samento engenhoso) faz quase sempre uso daquele para atingir seus fins: surpreender o espírito e imprimir-lhe, por meio dessa surpresa, um novo impulso. Existem gêneros poéticos, como o

398

epigrama, que dependem inteiramente dessa condição, que só funcionam em termos de surpresa. Um epigrama não se justi­ fica, na acepção estética, somente por sua verdade: poderia muito bem limitar-se a ser um simples aforismo, faltando-lhe a vida e o movimento da arte. É muito menos graças à verdade do que por meio da falsidade que o epigrama recebe vida e movimento. “ Os pensamentos, à força de serem verdadeiros, tornam-se por vezes triviais**: esse risco de trivialidade estética só pode ser evitado por uma certa configuração, uma espécie de roupagem do pensamento, por uma guinada surpreendente de sua expressão. É a expressão, não o conteúdo do pensa­ mento como tal, que contém cada vez mais a verdadeira carga estética. Não é surpreendente, portanto, e muito menos para­ doxal, nesse contexto, que Bouhours exija para todo produto válido da arte não a verdade pura e simples mas uma certa mistura expressa de falsidade, e que por essa mesma razão justifique o equívoco, porque o falso e o verdadeiro aí estão misturados e formam uma unidade.16 Com efeito, é por meio da expressão do falso que Bouhours, que fala reiteradamente a língua do classicismo, consegue quebrar os grilhões da con­ cepção clássica da verdade e da realidade e iniciar seu vôo para a região da “ ilusão estética” . A estética como tal não nasce nem floresce à pura e pálida luz do pensamento; cum­ pre juntar-lhe o seu contrário, realizar uma justa divisão entre luz e sombra. Uma e outra são igualmente essenciais: a arte não quer ser, a par do mundo natural, uma segunda realidade igualmente objetiva, mas construí-lo em imagem e nela fixá-lo. É por isso que o ideal puramente racional da “ adequação”, da adaequatio rei et intellectus, não se impõe à arte no mesmo sentido que à ciência. A estética clássica, por ter mantido esse ideal, tinha sido assim levada a enfatizar decisivamente o “ na­ tural” e o “exato”. A representação era tanto mais perfeita quanto melhor conseguisse retratar o próprio objeto, refleti-lo

399

sem as turvações e refrações que a natureza do assunto pode ocasionar. Entretanto, essa norma começa agora a eclipsar-se. A ênfase recai menos sobre a proximidade do que sobre a dis tância em relação ao objeto, não no que, na arte, iguala-se à natureza mas no modo específico de sua expressão e de sua representação. O que esses meios de expressão comportam de inadequado no sentido racional do termo, seu caráter mediato e mtafórico, é expressamente admitido e em nada muda sua apreciação. A imagem esboçada pela arte, com efeito, nunca é igualada ao objeto nem coincide com ele, portanto não poderia ser condenada por não-verdade; ela tem sua própria verdade, autônoma e imanente: “Le figuré n'est pas faux et la méta­ phore a sa vérité aussi bien que la fiction. M17 O novo tema que se percebe na obra de Bouhours só en­ controu, porém, seu pleno desenvolvimento em Dubos. O que naquele não passou de simples bosquejo tornou-se nas Réfle­ xions critiques sur la poésie et la peinture, de Dubos, um pen­ samento sistemático que o autor desenvolve em todos os senti­ dos. Os fenômenos que Bouhours tinha descoberto, de certa maneira, na periferia da estética, são agora transferidos para o centro da teoria estética. Não se trata mais de fazer simples­ mente lugar para a imaginação e o sentimento ao lado das faculdades intelectuais, mas de provar que também são facul­ dades verdadeiramente fundamentais. Se se chamou por essa razão à obra de Dubos a “primeira estética do sentimentalis­ mo”,18 é evidente que se deve fazer reservas, historicamente, a respeito da fórmula, porquanto não se encontram nele, em parte alguma, esses traços verdadeiramente “ sentimentais”, como sur­ girão mais tarde na época da “ sensibilidade” (Empfindsamkeit). O que ele entende por “ sentimento” não significa um mergulho do eu em si mesmo, portanto, nesse sentido, uma atitude “ subje­ tiva” . Sem dúvida, ele parte mais simplesmente da consideração e da análise de obras de arte e observa, em primeiro lugar, o

400

efeito que elas exercem, procurando determinar desse modo a verdadeira essência da arte. Mas nessa análise da impressão estética, o eu e o objeto defrontam*se com dois fatores igual­ mente necessários e legítimos. A estrutura precisa dessa relação causal e a participação de cada um desses momentos, o “ sujeito” e o “objeto”, não podem ser estabelecidas de antemão por consi­ derações abstratas; o exame dessa conexão cabe exclusivamen­ te à experiência. Ê em Dubos, portanto, que pela primeira vez, com todo o rigor, a auto-observação define-se como o princípio específico da estética e oposta a todo e qualquer outro método puramente lógico como fonte autêntica de todo o conhecimento estabelecido. A essência da estética não pode ser conhecida de maneira puramente conceptual; o teórico, nesse domínio, não dis­ põe de outros meios para comunicar suas intuições de um modo convincente a não ser recorrendo à sua própria experiência in­ terior. A impressão imediata, à qual deve estar associada toda a criação de conceito em estética, e à qual deve remeter-se cons­ tantemente, não poderia, de maneira nenhuma, ser substituída e rechaçada por deduções. “ Eu não poderia esperar ser aprova­ do” — diz Dubos no início de seu livro — “ se não conseguir fazer o leitor reconhecer no meu presente estudo o que se passa em si mesmo, numa palavra, os movimentos mais íntimos de seu coração. Quase nunca se hesita em rejeitar como um espelho infiel o espelho onde a pessoa não se reconhece.” 19 O estético já não se apresenta agora ao artista com seu código em mãos, tal como quer mais impor ao público normas fixas e universalmente válidas. Apenas quer ser o espelho onde o au­ tor e o espectador devem contemplar-se e reconhecer-se, aí reen­ contrando sua vida interior e suas experiências mais profundas. Toda educação, todo refinamento do juízo estético só podem consistir, em última instância, em aprender a ver sempre mais claramente essas experiências íntimas, essas impressões originá­ rias, e em distingui-las das contribuições arbitrárias e gratuitas

401

da reflexão. Todas as teorias e sutilezas sobre conceitos estéti­ cos que não servem para esse fim são rejeitadas; tudo o que não possui a ingenuidade da impressão e não reforça a nossa confiança nela não atinge a finalidade essencial a que a estética deve propor-se. O gosto, no sentido próprio, não pode ser apren­ dido nem ser suscitado, elaborado verdadeiramente por simples considerações teóricas, assim como a percepção sensível tam­ pouco se presta a tal ensino. “ O coração agita-se por si mes­ mo e por um movimento que precede toda a deliberação quando o objeto que se lhe apresenta é realmente um objeto tocante [ . . . ] O nosso coração está feito, organizado para isso. Sua atividade precede, portanto, todas as conclusões (raisonnements), assim como a atividade do olho e do ouvido as antecede em suas sen­ sações. É tão raro ver homens nascidos sem o sentimento de que estou falando quanto é raro encontrar cegos de nascença. Mas seria impossível comunicá-lo àqueles que não o possuem, como é impossível dar visão e ouvido a quem nunca os teve [ . . . ] Chora-se numa tragédia antes de haver discutido se o objeto que o poeta aí nos apresenta é um objeto capaz de comover por si mesmo e se está bem-imitado. O sentimento ensina-nos o que há na tragédia antes que tenhamos pensado em examiná-la [. . . ] Se o mérito mais importante dos poemas e dos quadros fosse es­ tar em conformidade com as regras redigidas por escrito, poder-se-ia dizer que a melhor maneira de julgar de sua excelência, assim como o lugar que devem ocupar na estima dos homens, seria através da discussão e da análise. Mas o mérito mais im­ portante dos poemas e dos quadros é o de nos agradar; e todos os homens, com a ajuda do sentimento interior que há neles, conhecem sem saber as regras se as produções das artes são boas ou ruins.” 20 Agora que o “gosto” já não é coordenado nem está su­ bordinado às operações lógicas da dedução e da prova mas colocado no mesmo plano, em sua imediação (Unmittelbarkeit) ,

402

dos atos de percepção, ver e ouvir, provar e cheirar, percebe-se o caminho que Hume vai seguir até as suas últimas conseqüên­ cias. A filosofia de Hume tem por objeto muito menos, expli­ citamente, as questões estéticas do que as questões de teoria do conhecimento e de psicologia, de ética e de filosofia da re­ ligião. A estética ocupa, no entanto, um lugar importante no seio dessa problemática e, de um ponto de vista metodológico, ela apresenta uma contribuição perfeitamente original. Com Hume, de fato, a frente de combate é deslocada. Por mais ener­ gicamente que os campeões da “ estética do sentimento” tenham defendido a especificidade do sentimento e afirmado o seu imediatismo, jamais chegaram ao ponto de contestar o “raisonne­ ment” como tal, questionar a "razão” em sua função fundamen­ tal. O conflito gravitava em torno da disjunção (Trennung) das faculdades, não de uma contestação ou de um aviltamento da razão. Enquanto faculdade do pensamento lógico e da pro­ va, do raciocínio' causai sobre o qual repousa todo o nosso conhecimento da realidade, ela mantinha-se à margem de con­ testação. Foi nessa direção, precisamente, que Hume transpôs uma etapa decisiva. Ele ousou levar a luta até o próprio coração das defesas do adversário, querendo assim demonstrar que, jus­ tamente onde o racionalismo colocava seu orgulho e sua força, é aí que se encontra, pelo contrário, o ponto fraco de sua po­ sição. Não cabe mais agora ao sentimento justificar-se perante o tribunal da razão; a razão é que se vê agora citada perante o foro da sensação, da "impressão” pura, a fim de responder aí por suas pretensões. E a sentença pronuncia que todo o poder reivindicado pela razão pura era um poder ilegítimo e contra a natureza, um poder usurpado. A razão perde não só a sua posição soberana como deve igualmente, em seu próprio terreno, no domínio do conhecimento, abdicar de sua função de líder e ceder a primazia à imaginação. Houve, pois, uma permuta de papéis na batalha pela fundação da estética. Enquanto, no

403

começo, a imaginação só tinha que lutar por reconhecimento e a igualdade de direitos, ei-la agora definida como a mais fun­ damental das faculdades da alma, a faculdade dirigente e do­ minante a que devem sumbeter-se todas as outras. As conclu­ sões impõem-se por si mesmas no tocante à edificação da esté­ tica, da “filosofia do belo”, e Hume, aliás, aduziu-as explicita­ mente no seu ensaio intitulado Of the standard of taste [Do pa­ drão do gosto]. É verdade que a estética deve ser entregue ao cepticismo se se entender por isso renunciar a normas univer­ sais e necessárias, impondo-se o tempo todo a todo indivíduo pensante. Em nenhuma parte é mais fácil refutar a pretensão de reger assim a verdade e a necessidade do que no domínio da estética, quando a experiência cotidiana nos ensina que não existe nenhuma escala fixa dos valores estéticos nem jamais existitu. De uma época a outra, de um indivíduo a outro, varia o critério que aplicamos à avaliação do belo e é uma tarefa bem vã pretender extrair desse fluxo e desse caudal de opiniões al­ gum modelo que ostente o timbre da verdade e da validade. Mas, embora reconhecendo essa variabilidade, essa relatividade de julgamento do gosto, convém considerar que ela não contém para a estética os perigos que parece apresentar para a lógica e para as ciências puramente racionais. Essas não querem nem podem renunciar a algum critério objetivo dado na natureza das coisas. Ambicionam conhecer o próprio objeto, na pureza do seu em si, e descrever suas determinações essenciais. Elas consideram, portanto, que lhes é sonegado o seu legítimo fruto e que estão ameaçadas em suas próprias metas se o cepticismo opuser a tais investigações barreiras fixadas de uma vez por todas. No domínio das ciências racionais, o cepticismo só pode ser, em todo caso, um princípio negativo e dissolvente. Mas a situação é bem diferente desde que as nossas atenções con­ centrem-se na esfera dos sentimentos e dos puros juízos de valor. Um juízo de valor que se considere correto não pretende,

404

com efeito, tratar da “ coisa em si” e de sua natureza absoluta; enuncia tão-somente uma relação que subsiste entre os objetos e nós próprios, sujeitos perceptivos, sensíveis e judicantes. Essa relação pode, em cada caso particular, ser “verdadeira” sem que por isso seja sempre e estritamente a mesma, pois a natu­ reza e, portanto, a verdade de uma relação jamais dependem de apenas um dos dois membros que ela une mas da maneira como eles se determinam reciprocamente. A referência ao sujei­ to valorativo e volitivo não é, portanto, algo de puramente exterior ao conteúdo e ao sentido do juízo de valor: só ela pode determinar-lhe o conteúdo e constituir-lhe o sentido. Se esse ponto é bem entendido, dele resulta para o juízo estético uma primazia, um privilégio particular em relação ao juízo lógico. Esse privilégio não depende de o juízo estético realizar mais, mas de exigir menos do que o juízo lógico. Uma vez que se opõe a toda falsa generalização, em que quer ser um enunciado não acerca dos objetos como tais mas sobre a nossa relação com os objetos, ele pode atingir aquela “ adequação” (Angemessenheit) que as ciências da realidade objetiva esforçam-se em vão por alcançar. O sujeito individual, se é evideçte que não pode arrogar-se nenhuma jurisdição sobre as coisas, nem por isso deixa de ser o único juiz possível e autorizado dos seus próprios estados, e é isso, em última análise, o que o juízo esté­ tico nos quer informar. Ele pode, em suma, obter muito mais porque ambiciona muito menos. O entendimento pode errar porque o seu critério não está unicamente em si mesmo, mas também na natureza das coisas a que ele se refere e que quer "encontrar" de qualquer maneira. O sentimento não está ex­ posto a semelhantes erros porque tem em si mesmo o seu con­ teúdo e a sua medida. “Todo sentimento está certo; porque o sentimento a nada se refere além de si mesmo e é sempre real, onde quer que um homem esteja consciente disso. Mas nem todas as determinações do entendimento são corretas por­

405

que têm uma referência a algo além delas mesmas, a saber, aos fatos reais, os quais nem sempre estão em conformidade com esse padrão.” De mil julgamentos diversos formulados a respei­ to de um estado de coisas objetivo, só existe um único que é o certo e o verdadeiro; a grande dificuldade está em descobri-lo e demonstrá-lo. Em contrapartida, mil sentimentos e aprecia­ ções diferentes relativos ao mesmo objeto podem ser todos cor­ retos. Com efeito, o sentimento não pretende apreender e defi­ nir algo de objetivo mas exprimir uma certa concordância (con­ formidade ou relação) entre o objeto e os órgãos e as faculda­ des do nosso espírito. Ê por isso que podemos, num sentido, julgar "objetivamente” a beleza, porque ela é, justamente, algo de um absoluto subjetivismo, não uma coisa mas um estado em nós mesmos. " Beauty is no quality in things themselves: it exists merely in the mind which contemplates them, and each mind perceives a different beauty.” 21 Todos os indícios de validade universal parecem estar en­ tão inteiramente extirpados do julgamento estético; mas se Hume, tanto na estética quanto na lógica, abandona toda uni­ versalidade teórica, nem por isso entende privar-se da univer­ salidade prática. Num plano puramente conceptual, deve ser entendido, em todo caso, que o sentimento estético e a apre­ ciação estética só podem valer no interior dessa mesma esfera subjetiva. Entretanto, se nesse caso tampouco se trata de uma verdadeira conformidade, de uma identidade no sentido lógico do termo, entre os sujeitos, isso não significa a existência de uma uniformidade empírica, a qual tampouco permita às ine­ vitáveis diferenças de sentimento e de julgamento escaparem a todo e qualquer critério. Tal critério não nos é dado a priori, evidentemente, pela "natureza” do belo, mas como uma rea­ lidade de fato pela natureza do homem. Assim é que os cri­ térios do gosto, cm vez de multiplicarem-se ad infinitum, man­ têm-se dentro de limites fixados, precisamente, pela natureza

406

lumana entendida não como um conceito lógico universal ou im ideal ético e estético mas, de fato, como a que caracteriza ima determinada espécie biológica. Se os indivíduos diferem ins dos outros, eles, ajustam-se, porém, apesar de suas diverências, no sentido de que a própria variação possui uma am»litude e uma lei determinadas. Daí resulta essa concordância elativa que podemos constatar invariavelmente, como um felômeno dado, entre os julgamentos estéticos. Por mais ocioso [ue seja querer estabelecer normas absolutas, não deixaremos, 10 entanto, de descobrir uma certa regularidade empírica, uma nédia empírica, por assim dizer. A diferença continua sendo »ossível no plano abstrato mas torna-se desprezível in concreto. 3uem pretendesse situar no mesmo nível, sob a relação do [ênio e do estilo, Ogilby e Milton, Bunyan e Addison, não se xporia, sem dúvida, a uma refutação racionalmente fundamenada, mas o seu julgamento não passaria por ser menos extraagante do que se quisesse comparar um charco ao oceano ou tm montículo de térmitas ao pico de Tenerife.22 A conformilade a que o gosto, como sensus communis, pode aspirar não e deixa, portanto, deduzir nem demonstrar mas assenta, de ato, numa base melhor e mais sólida do que aquela que a speculação jamais lhe teria podido fornecer. Percebe-se até, ia verdade, que, de um ponto de vista puramente empírico, o cordo efetivo entre julgamentos produz-se mais depressa e com iais segurança no domínio do gosto do que no do conhecimento acionai e puramente filosófico. Os sistemas filosóficos não vajm muito mais do que para a sua época, seu brilho dissipa-se em depressa ao ser eclipsado por um novo astro em ascensão, o passo que as grandes obras da arte clássica suportam muito lelhor e com mais segurança o teste do tempo. Por mais intinamente ligadas que pareçam estar à sua época, por mais nexplicáveis que sejam fora das condições espirituais que as iram nascer, não é menos verdade que essas condições não

407

impõem limite nenhum aos efeitos das obras de arte. Pelo con­ trário, lançam uma ponte sobre os séculos e propiciam o mais seguro testemunho do fato de que, se o pensamento dos homens muda, sua vida afetiva e, por conseguinte, sua sensibilidade es­ tética permanecem, no fundo, constantemente as mesmas. A pretensa verdade objetiva que devíamos encontrar nas obras dos pensadores antigos volatilizou-se, ao passo que o fascínio que a poesia antiga exerce sobre nós não se desfaz e apodera-se de nós, como sujeitos sensíveis, com uma força sempre igual. “Aris­ totle and Plato, and Epicurus, and Descartes, may successively yield to etch other: but Terence and Virgil maintain an univer­ sal, undisputed empire over the minds of men. The abstract philosophy of Cicero has lost its credit: the vehemence of his oratory is still the object of our admiration.” 2* Sem dúvida, Hume só concede à estética um mínimo de “validade universal'1 (Allgemeingültigkeit), com o qual a menta­ lidade empírica dos pensadores setecentistas não podia dar-se por satisfeita. Embora reconhecendo a experiência como fonte do julgamento estético, tentam ainda assim colocar essa mesma experiência em bases mais sólidas e conferir-lhe um sentido "objetivo” determinado. Mas o problema é, sem dúvida, deslo­ cado dessa forma, porquanto o estudo não pode limitar-se dora­ vante aos fenômenos estéticos como tais e à sua simples des­ crição: ele deve retornar aos alicerces desses fenômenos e tentar mostrar seu fundamentum in re. Onde buscar esse fundamento, onde estabelecê-lo com mais segurança senão vinculando a bele­ za à finalidade, senão mostrando ser ela apenas a expressão ve­ lada de uma tal finalidade? Foi Diderot quem, na sua doutrina estética, revalorizou esse tema. Segundo ele, o gosto é simulta­ neamente subjetivo e objetivo: subjetivo porque repousa tão-só no sentimento individual, e objetivo porque esse sentimento nada mais é do que, justamente, o resultado e o eco de centenas de experiências individuais. Enquanto simples fato, em sua pre-

408

sença pura, o gosto não é suscetível, sem dúvida, de nenhuma outra maneira de defini-lo e de fundamentá-lo, é um “je ne sais quoi”; mas teremos um conhecimento indireto de “incognoscível” se relacionarmos essa presença com o seu passado. Em todo julgamento de gosto condensam-se inúmeras experiências anteriores. Esses julgamentos não são mais redutíveis a consi­ derações especulativas que a um simples “instinto”: o “instinto” do belo seria apenas uma qualitas occulta, à qual é tão estéril recorrer em psicologia quanto em física — e de igual modo severamente reprovado e excluído. Escapamos a esse duplo pe­ rigo ao encontrar uma explicação puramente empírica para esse pretenso " instinto”, reconhecendo-o precisamente como uma rea­ lidade derivada, produzida, não-originária e fixa. Desde o ins­ tante em que abrimos os olhos para a luz do dia, recebemos inúmeras impressões, todas acompanhadas de um sentimento ou juízo de valor determinado, de uma concordância ou discordân­ cia. Todas essas observações e experiências, acumulando-se em nossa memória, apoiando-se umas nas outras e condensando-se numa nova expressão de conjunto, constituem aquilo a que cha­ mamos o sentimento do belo. Esse sentimento é certamente “ irra­ cional” no sentido de que, na experiência pura do belo, a lem­ brança dessas experiências anteriormente vividas é apagada, de que a realidade atual (die Aktualität) da experiência não nos pode dar, portanto, nenhuma idéia da sua produção, da sua origem genética.24 Mas para Diderot essa origem, se não é um fenômeno imediatamente demonstrável, constitui, não obstante, um postulado aduzido das premissas gerais do empirismo. "Qu'est-ce donc que le goût? Une facilité acquise par des expé­ riences réitérées, à saisir le vrai ou le bon, avec la circonstance qui le rend beau et d'en être promptement et vivement tou­ ché.” 25 A própria redação dessa definição indica que Diderot, ao esforçar-se por apresentar uma definição empírica do belo, corre uma vez mais o risco de deixar escapar o seu modo de

409

ser específico e de deixá-lo dissolver-se na perfeição física ou moral, na finalidade objetiva. "Michelangelo deu à cúpula de São Pedro a mais bela forma possível. O geômetra De La Hire, impressionado com essa forma, traça-lhe a projeção e descobre que ela contém a curva de máxima resistência. O que foi que inspirou essa curva a Michelangelo, entre uma infinidade de outras que ele poderia ter escolhido? A experiência da vida cotidiana. É ela que sugere ao mestre carpinteiro, tão segura­ mente quanto ao sublime Euler, o ângulo do esteio com a parede que ameaça ruir; foi ela que lhe ensinou a dar à asa do moinho a inclinação mais favorável ao movimento de rotação; é ela que faz freqüentemente entrar em seu cálculo sutil os elementos que a geometria acadêmica não poderia apreender.” 26 Nessa defi­ nição empírica e prática, o belo não só correrá o risco de ser re­ duzido, quanto ao poblema de sua origem, à “expérience journa­ lière”, ao cotidiano, ao útil, mas também de ser finalmente confinado nessa esfera? É assim que Diderot só enxerga na beleza do corpo humano a aptidão para cumprir com a máxima eficiência as funções essenciais da vida. uLe bel homme est celui que la nature a formé pour remplir le plus aisément qu9il est possible deux grandes fonctions: la conservation de Vindividu, qui s’étend à beaucoup de choses, et la propagation de Vespèce, qui s ’étend à une.” 21 Vê-se aqui que esse empirismo não con­ seguiu derrotar o perigo que queria superar e que não evitou os escolhos contra os quais a estética racionalista arriscara-se a naufragar. Quando já não se trata apenas de descrever a beleza mas também de fundamentá-la, isso só pode ser conseguido apoiando-se no “verdadeiro” , considerando-se o belo uma forma encoberta do verdadeiro. A norma da verdade, simplesmente, deslocou-se: o seu conteúdo não se baseia mais em proposições a priori, em princípios universais e necessários, mas em expe­ riências práticas, no cotidiano e no útil. Mas o sentido e o valor próprios do belo não são afetados pela mudança de definição;

410

em ambos os casos o critério utilizado pertence a um outro plano, diferente daquele em que se situa o fenômeno da beleza. Como a “ razão" na estética clássica, o “ entendimento" leva fi­ nalmente a melhor na estética empírica. A imaginação é reco­ nhecida, por certo, nessa doutrina como uma faculdade autôno­ ma, como um poder particular do espírito; procura-se até ver aí a poderosa chave, a raiz psicológica de toda atividade, mes­ mo a puramente teórica. Mas essa elevação aparente ameaça, por sua vez, nivelá-la, precisamente: após ter conquistado a esfera teórica, sofre-lhe agora a contaminação. Não era o bom meio de estabelecer a autonomia do belo e a autarquia da imagina­ ção. O impulso intelectual requerido para alcançar essa meta foi recusado tanto ao racionalismo estético quanto ao empirismo estético. Esse impulso só podia vir de um pensador que não se es­ forçaria nem por analisar teoricamente o belo nem por reduzi-lo a regras, nem por descrevê-lo psicologicamente e explicá-lo ge­ neticamente: um pensador que viveria inteiramente na contem­ plação da beleza, em seu poder e sob o seu jugo. Tal pensador só apareceu no século XVIII com Shaftesbury; por isso coube à sua doutrina a tarefa de fundar a primeira filosofia verda­ deiramente completa e autônoma da beleza. A estética da intuição e o problema do gênio A estética inglesa do século XVIII não enveredou pelo ca­ minho do classicismo francês nem pelo de Hume. Ê evidente a influência constante dessas duas correntes de pensamento na po­ sição e no desenvolvimento dos problemas. Como toda a lite­ ratura inglesa setecentista, a estética também tem os olhos vol­ tados para o modelo, para o ideal prestigioso oferecido pela tra­ gédia francesa clássica; em muitos detalhes, ela ainda é deter­ minada por esse modelo. E, no que se refere ao movimento empirista, era-lhe tão mais difícil desprender-se dele porque

411

seus temas essenciais já estavam contidos nas primeiras abor­ dagens do problema estético. De um modo geral, esse problema vinha sendo abordado e tratado sob o ponto de vista psicoló­ gico. Na Inglaterra do século XVIII, parecia não poder haver a menor hesitação nem vacilação no tocante ao verdadeiro método, o único “natural”, a aplicar a essas investigações. Tudo indicava que Locke, Berkeley e Hume tinham vencido definitivamente a batalha do empirismo radical; agora, já não se tratava mais de discutir-lhe os princípios, mas de dar a esses mesmos princípios a maior extensão, de aplicá-los progressivamente a novos domí­ nios e a fenômenos cada vez mais complexos da vida da alma. Entretanto, se a estética inglesa logrou libertar-se e afastar progressivamente a sua problemática do fascínio do empirismo, é porque ela tinha a possibilidade de vincular-se diretamente e alimentar-se regularmente numa doutrina filosófica que não se constituíra sob a influência dò pensamento empirista. Os verda­ deiros mestres da estética inglesa são discípulos e sucessores de Shaftesbury. Contudo, o próprio Shaftesbury não formou a sua visão do mundo a partir deste ou daquele modelo a que podia recorrer facilmente em sua época. Foi aluno e depois discípulo de Locke, mas somente lhe deve certos conteúdos do seu pensa­ mento, ao passo que a forma do seu espírito e de sua doutrina só a ele mesmo pertence. Não sente nenhuma afinidade nem pa­ rentesco com a filosofia do seu tempo; procura para a sua dou­ trina outros modelos intelectuais e outras fontes históricas. Basta folhear o Diário filosófico de Shaftesbury para perceber-se de imediato como ele está longe do seu tempo. Dificilmente se sur­ preenderá nesse diário uma ressonância, um eco remoto dos problemas que agitam essa época, dos dilemas intelectuais e prá­ ticos que ela enfrenta. Seu pensamento paira acima de todas as questões que agitam a época para retomar um contato direto com a Renascença e o mundo antigo. Ê com os antigos, com Platão e

412

Aristóteles, como Plotino, Sêneca, Marco Aurélio e Epíteto, que Shaftesbury reinicia diretamente o diálogo em seu diário. Nada repugna mais ao seu pensamento do que reduzir a filosofia a um sistema de conceitos lógicos ou a um conjunto heteróclito de idéias científicas. Ele quer restaurar e encarnar o seu ideal original, o ideal da pura doutrina da sabedoria. Ê por esse ca­ minho, não pelo da especulação abstrata ou da observação em­ pírica, que Shaftesbury aborda os problemas da estética. Para ele, são problemas de vida pessoal muito antes de tornarem-se problemas da estética. Shaftesbury não vê a estética exclusiva­ mente, nem mesmo primordialmente, na perspectiva da obra de arte, mas tem necessidade de uma estética como de uma ver­ dadeira regra de vida, como uma lei regendo a organização do universo íntimo, da personalidade espiritual. A filosofia, con­ cebida como pura doutrina da sabedoria, permanece intrinse­ camente imperfeita enquanto não tiver encontrado numa doutrina do belo a sua conclusão e a sua realização concreta. Pois não pode existir verdade autêntica sem beleza nem beleza sem ver­ dade. A verdadeira chave da filosofia de Shaftesbury revela-se com toda a clareza: "All beauty is truth” (Toda beleza é ver­ dade). Tomada à letra, essa tese em nada se distingue da exi­ gência de objetividade que a estética francesa clássica tinha re­ presentado: quase não parece ser mais do que uma tradução, um decalque da tese de Boileau: “Rien n’est beau que le vrain (Só o verdadeiro é belo). Contudo, essa concordância só é aparente; as mesmas palavras exprimem aqui e ali pensamentos inteiramente diferentes. Ao proclamar que a beleza é verdade, Shaftesbury não entende a verdade no sentido de um conjunto de conheci­ mentos teóricos, de teses e de juízos redutíveis a regras lógicas fixas, a conceitos e princípios fundamentais. "Verdade", para ele, significa acima de tudo a harmonia interna do universo: harmo­ nia que não se pode conhecer através de simples conceitos nem apreender intuitivamente colecionando e acumulando experiên-

413

cias particulares, mas com a qual é possível adequar diretamente nossas vidas compreendendo-a intuitivamente. Essa espécie de adequação da vida e da compreensão interior nos é propiciada pelo fenômeno do belo. Nesse fenômeno, é abolida toda fronteira entre o mundo "interior” e o mundo "exterior"; descobre-se que a mesma lei universal rege os dois mundos e que é essa lei que eles expressam, cada um a sua maneira. Os “números interiores" (interior numbers) que encontramos em cada fenômeno do belo desvendam-nos, ao mesmo tempo, os mistérios da natureza e do mundo físico, que só na aparência é um "mundo exterior", ou seja, uma simples coisa dada, um efeito material. A verdade au­ têntica e mais profunda desse mundo reside no princípio opera­ tivo que nele vive, encarnado e refletido, em certa medida e com uma força diferente, por cada uma de suas criaturas. É essa es­ pécie de "reflexão", despojada de toda e qualquer mediação ló­ gica, revelando-nos, pelo contrário, o mundo interior e o mundo exterior estreitamente entrelaçados, que nos é proporcionada na intuição do belo. Toda beleza fundamenta-se na verdade e a ela remete-se, mas, por outro lado, o sentido pleno, o sentido con­ creto da verdade não poderia manifestar-se em nenhum domínio senão o da beleza. Assim, Shaftesbury transpõe o imperativo estóico — " ôpoXoyovfiévifasi Çtjv ” — da ética para a estética. É por mediação do belo que o homem alcança a mais perfeita harmonia entre si e o mundo, porque não só compreen­ de mas experimenta, sabe que toda ordem e toda regularidade, toda unidade e toda lei repousam na mesma forma originária, que um só e mesmo todo exprime-se imediatamente tanto em si mesmo quanto em todo ser. A verdade do cosmo toma a palavra, por assim dizer, no fenômeno do belo; em vez de manter-se fe­ chada em si mesma, ela ganha expressão e discurso, esse dis­ curso no qual o seu sentido, o seu logos próprio, revela-se ple­ namente pela primeira vez.

414

Com o pensamento de Shaftesbury, a estética, se a compa­ rarmos à forma que lhe tinham dado o sistema clássico e as teo­ rias empiristas, vê-se transferida para um outro plano. Na ver­ dade, atingimos aí um ponto crítico do seu desenvolvimento, um ponto em que os espíritos, tal como os problemas, devem repartir-se. Bem entendido, essa separação não se estabelece de imediato e, uma vez consumada, não se impõe com todo o rigor. Nos sucessores de Shaftesbury — em Hutcheson, em Ferguson, em Home — os princípios originários não se apresentam, em absoluto, numa perfeita pureza, uma vez que se misturaram e acomodaram, à sua revelia, a uma série de idéias provenientes de outras fontes. Trata-se, porém, de um tema que conservou toda a sua força na insipidez dessa mistura eclética. Sob a in­ fluência da doutrina de Shaftesbury, deslocara-se o próprio cen­ tro da problemática estética, o seu foco especulativo. Na estética clássica, a questão inicial estribava-se na obra de arte, que se tratava como uma obra da natureza e tinha que ser conhecida por meios análogos. Procurava-se uma definição da obra de arte que fosse comparável à definição lógica, capaz como esta última de definir tal ou tal dado por sua espécie, indicando o seu genus proximum e a sua differentia specifica. A doutrina da invariabilidade dos gêneros e das regras estritamente objetivas, impon­ do-se a cada um dentre eles, nasceu desse esforço para se chegar a tal definição. A estética empirista distingue-se desse tipo de investigações não só por seu método mas também por seu objeto. Com efeito, ela não se ocupa diretamente das obras, de seu ordenamento, de sua classificação e subsunção, mas do sujeito da fruição artística, cujo estado interior ela quer conhecer e descrever por seu meios. Não é a elaboração, a simples forma da obra como tal que retém aqui a atenção mas o conjunto de processos psíquicos nos quais se realizam a experiência e a apro­ priação íntima da obra de arte. Esses processos devem ser en­

415

fatizados até em seus mínimos detalhes e reduzidos a seus ele­ mentos primordiais. Em Shaftesbury, em contrapartida, se ques­ tões dessa ordem não são descartadas de forma nenhuma, pelo menos nunca se encontram no centro do seu interesse pessoal, filosófico. Nunca se preocupa com a classificação nem com a análise das obras, muito menos ainda com os estados de alma que se desenrolam no indivíduo que as contempla; seu o b ietivr não é a elaboração lógica de conceitos nem a descrição psicoló­ gica. O belo, para ele, é uma revelação de uma ordem muito diferente, brotando de uma outra fonte e visando a uma fina­ lidade fundamentalmente diversa. Na intuição do belo cumprese, para os homens, a passagem do mundo das criaturas para o mundo da criação, do universo como soma de toda a realidade objetiva para as forças criadoras que o constituíram e susten­ tam-no interiormente. Essa intuição nada deve à simples análise da obra de arte nem à introspecção do processo imitativo que se realiza no sujeito senciente quando da contemplação e da fruição artísticas. Com tudo isso, ainda estamos apenas, segundo Shaftes­ bury, na periferia e não no centro do belo. Não se procurará esse centro na fruição e na sensação mas na elaboração e na criação. A simples receptividade continua sendo insuficiente e impotente, porquanto não nos conduz à espontaneidade que é fonte pró­ pria e original do belo. Mas uma vez descoberta essa fonte, rea­ liza-se a verdadeira, a única síntese possível, não só entre su­ jeito e objeto, entre o eu e o mundo, mas também entre o homem e Deus. Pois a oposição entre o homem e Deus é abolida desde que pensemos o homem não mais simplesmente em sua existên­ cia de "criatura" mas segundo a força criadora originária que o habita, não como ser criado mas como criador. Para que o ho­ mem revele-se verdadeiramente criado à imagem de Deus não basta que, demorando-se no círculo das coisas criadas, da rea­ lidade empírica, tente copiar-lhe a ordem e os contornos; é

416

preciso que ele crie esse modelo interior que é o ponto de par­ tida de toda obra de arte autêntica. Descobre-se então no homem a sua verdadeira natureza prometéica: ele torna-se "segundo cria­ dor depois de Júpiter".28 O caminho que leva à contemplação e à compreensão da essência divina passa necessariamente por essa mediação. £ ao artista, em primeiro lugar, que dá incessante­ mente o mundo à luz em pequeno, que o gera, o produz sob forma objetiva, é a ele que o universo torna-se inteligível como obra daquelas mesmas forças que sente em si mesmo. Todo ser singular nada mais é para ele do que um signo, um hieroglifo do divino: ele lê "a alma do artista no seu Apoio".29 Doravante, a par do raciocínio e da experiência, uma terceira e fundamental força entra em cena, a qual, segundo Shaftesbury, supera todas as outras e oferece-nos, enfim, as verdadeiras profundidades da estética. Nem o pensamento "dis­ cursivo", tateando pesadamente de um conceito a outro, nem a observação lúcida e paciente de fenômenos particulares permi­ tem atingir essas profundezas. Elas só são acessíveis a um "en­ tendimento intuitivo" que não vai do indivíduo ao todo mas do todo ao indivíduo. A idéia de um entendimento intuitivo, de um intellectus archetypus, foi tomada por Shaftesbury do seu verda­ deiro modelo filosófico, que é a doutrina plotiniana do "belo inteligível". Mas ele aplica esse pensamento num sentido novo e confere-lhe um ímpeto e uma ênfase que não possuía em Platão nem em Plotino. Com efeito, ele quer, precisamente, de­ sarmar a mais grave objeção levantada por Platão contra a arte para desqualificá-la num sentido filosófico. A arte não é, de ma­ neira nenhuma, mimesis no sentido em que se ateria ao aspecto exterior das coisas, à sua simples aparência, procurando copiá-las tão fielmente quanto possível. A forma de "imitação" que lhe é própria pertence a uma outra esfera e, por assim dizer, a uma outra dimensão, porquanto não imita simplesmente o produto

417

mas o ato de produção, não o que é engendrado mas a própria gênese. Poder mergulhar diretamente nessa gênese e participar nela intuitivamente, eis a verdadeira natureza e o mistério do gênio, segundo Shaftesbury. E foi assim que o problema do gê­ nio se converteu no genuíno problema fundamental da estética. Nem a análise lógica nem a observação empírica podiam con­ duzir a esse problema; só uma "estética da intuição" podia dar-lhe todo seu peso e seu verdadeiro conteúdo. Uma vez mais, é prudente abster-se de querer decifrar o desenvolvimento das idéias e das doutrinas partindo muito simplesmente da história de uma palavra. Shaftesbury não criou a palavra "gênio"; ser­ ve-se dela como de um termo já conhecido e há muito familiar em estética. Mas foi o primeiro que, não contente em usar esse termo, libertou-o da confusão e da ambigüidade de que vinha sofrendo até então para dar-lhe um sentido muito nítido e espe­ cificamente filosófico. Na estética clássica, sente-se e ressalta-se em primeiro lugar o parentesco do conceito de gênio com ingenium, termo este que equivale à "razão”, ou seja, à faculdade fundamental e verdadeiramente determinante da vida intelec­ tual. O gênio é a sublimação suprema da razão, a própria essên­ cia de todos os seus poderes e aptidões: "O gênio é a razão sublime." 80 O desenvolvimento ulterior da teoria realizado por Bouhours e que conduziu a uma nova orientação da estética, à estética da déiicatesse, pretende superar essa unilateralidade. Ele não vê no gênio a simples promoção, o prolongamento di­ reto do "bom senso"; a função que lhe atribui é diferente e nitidamente mais complexa. O seu poder não está tanto em apreender a simples verdade das coisas, para exprimi-las de maneira tão precisa quanto possível, quanto em saber pressen­ tir as relações obscuras e escondidas. O pensamento wgenial* (pensamento engenhoso) é aquele que, abandonando o caminho do hábito e do cotidiano, chega a uma visão nova e surpreen­ dente das coisas e compraz-se na expressão "imprópria", a saber,

418

na metáfora e na figura.31 Mesmo nesse processo diversionista, entretanto, o gênio nem sempre sai da esfera da intelectualidade, na verdade, da do "espírito", muito simplesmente. Todo o acen­ to recai então sobre a sutileza, a penetração e a presteza do espírito, todas essas virtudes combinadas na idéia de delicadeza. Shaftesbury está igualmente distanciado dessas duas concepções: ele eleva, com efeito, com a maior lucidez e a mais nítida cons­ ciência, a noção de gênio acima do plano da simples sensação e do simples juízo, acima da precisão, do sentimento, da delicade­ za, a fim de reservá-la para o domínio das forças produtivas, constitutivas e criadoras. Desse modo, Shaftesbury deu ao desen­ volvimento futuro do problema do gênio um centro filosófico sólido, conferiu-lhe uma orientação fundamental claramente defi­ nida, que depois será conservada, de um modo lúcido e firme, pelos verdadeiros fundadores da teoria estética, apesar de todas as flutuações dos debates de filosofia e de psicologia populares. Ê daí que parte o caminho direto que leva ao problema fundamen­ tal da história do pensamento alemão do século XVIII: à Drama­ turgia de Hamburgo, de Lessing, e à Crítica do juízo, de K ant32 A doutrina da espontaneidade da criação artística postu­ lada por Shaftesbury não teria podido, entretanto, exercer a influência que se conhece, precisamente nesse momento, se o desenvolvimento intelectual puramente teórico que se realizava nela não tivesse encontrado um complemento e um apoio muito firme num outro movimento de idéias. A partir do instante em que, na literatura inglesa do século XVIII, trata-se do problema do gênio e procura-se determinar a posição do gênio em relação às "regras”, o curso abstrato do pensamento logo retorna ao concreto. Dois nomes, os de Shakespeare e Milton, apresentamse incessantemente ao nosso espírito, determinando de certo modo os eixos fixos em torno dos quais giram todos os deba­ tes teóricos que envolvem o problema do “gênio". Ê com a ajuda desses dois grandes exemplos que se procura apreender

419

a verdadeira e profunda essência da genialidade; é neles que se vê realizada o que a teoria descrevia como pura potenciali­ dade. Essa referência, esse retorno constante a Shakespeare e a Milton, apresenta-se da maneira mais convincente em Conjec­ tures on original composition, de Young. Da meditação das tragédias shakespearianas e de sua admiração pelo Paraíso per­ dido, extrai Young a convicção de que a criatividade do gênio poélico é indescritível e ainda menos analisável, segundo os habituais critérios puramente intelectuais, os critérios por assim dizer aritméticos do entendimento. Desse modelo de entendi­ mento, o gênio está tão distante quanto o mágico do arquiteto. Young resume, com essa palavra, o conjunto da sua doutrina, de maneira muito densa e característica. Ele tem o sentimento forte e profundo dessa magia que se mantém oculta em toda grande obra de arte: é esse sentimento que a sua doutrina pro­ cura vestir de palavras e converter em conhecimento conceptual. Essa magia da poesia não exige nem tolera a mediação das idéias, pois sua verdadeira força repousa, justamente, em seu imediatismo. Shakespeare não tinha recebido nenhuma forma­ ção de letrado, ao passo que dois livros estavam permanente­ mente abertos diante de seus olhos, dois livros que ele sabia decifrar melhor do que ninguém: o livro da natureza e o livro dos homens.83 Essa força elementar donde provinham as tra­ gédias de Shakespeare parecia estar há muito tempo extinta na literatura dramática inglesa do século XVIII, e o sopro de vida que ele lhe insuflara parecia apagado: mas a teoria procura sempre conjurar as grandes sombras e dar-lhes a palavra, pois está persuadida de que a verdadeira natureza do belo só é aces­ sível a uma exploração das verdadeiras "obras originais", as quais são as únicas a deter um poder mágico autêntico, e de que nada há a aprender com imitadores e epígonos. Essas obras não falam simplesmente ao nosso entendimento e ao nosso gosto: elas permitem à tempestade das paixões dar-se livre curso em

420

nossas almas, ao mesmo tempo em que nos oferecem também o meio de conjurá-la e apaziguá-la. É, antes de tudo, uma elaboração, uma paciente realização, uma discussão progressiva, metódica, e um esclarecimento dos princípios estéticos proclamados por Shaftesbury no seu estilo rapsódico-invocatório, tal como nos é oferecido por Hutcheson em seu Inquiry into the original of our ideas of beauty and virtue (1726). Foi através desse livro que as idéias de Shaftes­ bury fizeram sua entrada na cultura geral dos letrados da época, embora não conservassem intatas, evidentemente, no decorrer dessa transfusão, o seu verdadeiro sentido e a sua penetração original. Com efeito, em Hutcheson, as fronteiras que Shaftes­ bury tinha tão cuidadosamente estabelecido entre "receptivi­ dade" e "espontaneidade", entre "sensação" e "intuição", co­ meçam a apagar-se. A expressão por ele escolhida para caracte­ rizar a natureza do belo já é por si mesma significativa: ele não vê melhor comparação, a fim de expressar o imediatismo da percepção do belo, que a da percepção sensível. Existe um sentido específico, o qual não é definível ou redutível de outro modo, para a percepção do belo, da mesma maneira que o olho é o sentido específico da percepção das cores, o ouvido o sentido específico da percepção de sons. A quem não o possui não existe nenhum outro meio de comunicar-lhe o objeto por via indireta ou por demonstração, da mesma forma que a exis­ tência de cores e de sons só é demonstrável pela consciência efetiva de sua presença.84 O fato de que Hutcheson vincula o sentimento do belo, da harmonia e da regularidade a um "sen­ tido interno", diferente dos sentidos externos, contrapondo a estes últimos sua especificidade e sua independência, não per­ mite alimentar ilusões quanto ao nivelamento e à confusão de que o pensamento de Shaftesbury começa sendo objeto. Pois o "gênio" pode ser agora definido, de novo, como o simples dom

421

de um tipo de sensibilidade e assimilado à "delicadeza do gosto” (feinen Geschmack). Como, por outra parte, Hutcheson mostra-se fiel aos princípios fundamentais de Shaftesbury, depara-se, em sua teoria do "sexto sentido ”, com um dilema difícil, de um simples ponto de vista de método. Heinrich von Stein, em seu Entstehung der neueren Aesthetik [Origem da nova estética], disse da doutrina de Hutcheson que ela sofria, de certo modo, da contradição de um "sentido apriorístico”, uma vez que fundamentava o belo na sensação, ao mesmo tem­ po em que, por outro lado, descartava toda conseqüência empirista e mantinha a validade universal dessa mesma sensação. Mas a objeção que é aqui levantada aplica-se ainda mais, evi­ dentemente, à expressão que Hutcheson deu ao seu pensamento do que ao seu próprio conteúdo. Essa expressão é deficiente e ambígua uma vez que procura revestir com a linguagem do empirismo uma intuição oriunda da estética intuicionista de Shaftesbury. O que caracteriza o conceito de intuição estética de Shaftesbury é, justamente, o fato de ele recusar toda e qual­ quer alternativa entre "razão” e "experiência”, entre o a priori e o a posteriori. A intuição do belo deve abrir o caminho para a superação desse conflito esquemático que domina toda a teo­ ria do conhecimento no século XVIII; ela deve colocar o es­ pírito em posição de arbitrar esse conflito. Para Shaftesbury, o belo não é, com efeito, uma idea innata, no sentido carte­ siano, nem um conceito abstrato da experiência, na acepção de Locke. É autônomo e originário, "inato” e necessário, no sen­ tido de que não se trata de um simples acidente mas de que pertence à própria substância do espírito e exprime-o segundo um modo perfeitamente específico. O belo não é um conteúdo adquirido por experiência nem uma representação (Vorstellung) que seria, desde o começo, confiada ao espírito em moeda sonante: é uma direção essencial, específica, uma energia pura e uma função original do espírito.

422

Shaftesi>ury representa, portanto, na sua concepção tanto da arte quanto da natureza, uma perspectiva puramente dinâ­ mica. Mas cumpre distinguir com extremo rigor esse "dina­ mismo" de outras perspectivas com as quais poderia ocorrer a tentação de aproximá-lo. À primeira vista, parece existir a mais estreita concordância entre Shaftesbury e Dubos, porquanto as Réflexions critiques sur la poésie et la peinture, de Dubos, apenas pretendem justificar e desenvolver plenamente a tese de que o valor e o encanto do belo consistem simplesmente na estimulação e elevação dos poderes da alma. Entretanto, Du­ bos, ao considerar essa "vivacidade” estética (aesthetische 44Regsamkeit”) somente do ponto de vista do observador e não do ponto de vista do artista, ao ponderar sobre a atividade de contemplação mas não sobre a de criação, subverte todas as medidas e todos os valores em relação a Shaftesbury. Ambos estão de acordo apenas na parte negativa e não na parte posi­ tiva de suas respectivas teses, no que refutam e rejeitam mas não no que afirmam. Opõem-se a toda tentativa de submissão do belo a regras precisas, estabelecidas em termos definitivos; concedem ao gênio o direito e o poder de quebrar todas essas Tábuas da Lei a fim de criarem outras novas, emanadas de sua própria autoridade. Opõem-se a toda tentativa de apreensão da essência do belo pelo simples “raisonnement", por definições conceptuais puramente discursivas e pela decomposição analí­ tica dos conceitos. Eles ensinam um outro conhecimento "ime­ diato" do belo, mas a fonte desse imediatismo é inteiramente diferente em Shaftesbury e em Dubos. Para o primeiro reside no processo da criação pura, enquanto, para o segundo, deve ser procurada em certos modos do perceber e do conceber que não comportam outra dedução. Toda a fruição estética deve seu nascimento a certas reações que a visão da obra de arte produz no espectador, que se sente arrebatado e extasiado pela obra, empolgado pelo seu movimento. Quanto mais possante é

423

esse movimento, mais intensamente o sentimos e melhor se atin­ ge o objetivo a que o artista se propôs. Uma vez que Dubos procura assim o movimento pelo movimento, faz da intensi­ dade de excitação que a obra de arte provoca em nós quase a única medida de valor estético. A qualidade da obra, sua na­ tureza e sua maneira de ser própria passam, para ele, a se­ gundo plano, quando não perdem toda a importância. Ê ca­ racterístico que Dubos, desde o início de sua obra, ao justi­ ficar a tese de que o espírito tem suas necessidades, tal como o corpo, e de que o seu instinto mais potente é o de permanecer em constante movimento, não coloca em destaque fenômenos puramente artísticos mas dá a essa tese uma diferente e mais vasta penetração. Ele não hesita em colocar lado a lado a im­ pressão que nos é causada à vista de uma pintura ou à audição de uma tragédia e essas outras emoções que sentimos diante, digamos, da bárbara execução de um criminoso, de combates de gladiadores ou de espetáculos de tauromaquia. Em um ou outro caso, o homem é movido pelo mesmo impulso: não só ele suporta a visão do pior sofrimento mas chega mesmo a procurar tal visão, porque essa o alivia do peso da inatividade, da ociosidade. "O tédio que não tarda em acompanhar a ina­ ção da alma é um mal tão doloroso para o homem que esse empreende às vezes trabalhos sumamente penosos a fim de evitar que o tédio o sufoque e atormente [ . . . ] Assim, acorremos por instinto aos objetos que podem excitar as nossas paixões, embora esses objetos nos causem impressões que nos custam, com freqüência, noites inquietas e dias dolorosos: mas, em ge­ ral, os homens sofrem ainda mais ao viver sem paixões do que por causa das paixões que os fazem sofrer.” 35 Assim, a dinâmica que Dubos quer fundar para compreen­ der a natureza e os efeitos da obra de arte não é, como em Shaftesbury, a da criação de imagens e de formas; é a do so­

424

frimento e das paixões. Ele não desenvolve, como Shaftesbury, uma estética intuitiva que se insere no centro do processo ar­ tístico e tenta revelar seu modo de ser, suas regras e suas me­ didas interiores, seu ritmo próprio. Propõe uma estética do "patético" que examina e confronta os estados interiores, os puros pathe suscitados no homem pelas obras poéticas e plásticas. A exigência suprema que devemos fazer ao artista, a regra por excelência, quando não a única, que podemos impor ao gênio não é a de submeter-se, naquilo que produz, a certas normas objetivas, mas a de estar, como sujeito, em tudo o que cria, cons­ tante e inteiramente presente, comunicando e impondo aos es­ pectadores suas comoções interiores. "Sejam sempre patéticos e nunca deixem os vossos espectadores nem os vossos ouvintes ficar impacientes", tal é, segundo Dubos, a primeira máxima de que o esteta deve persuadir o artista. O "patético das imagens", não a sua semelhança com os objetos exteriores, eis onde reside o valor dos quadros ou das pinturas poéticas. Ao retornar à força primordial da paixão, a estética de Dubos exerceu, sem dúvida, uma influência tonificante e fecunda mas cujos limites não são claramente perceptíveis. Uma doutrina tão exclusivamente orien­ tada para o espectador quanto a de Dubos corre constantemente o risco de só medir o conteúdo estético da obra de arte pelo efeito que ela produz sobre o espectador, até acabar por con­ fundi-los. A obra de arte ameaça então converter-se em simples espetáculo. Que ela satisfaça a curiosidade, que ela desperte a simpatia do ouvinte, que entretenha e instigue a sua excitação, e pouco importa, em definitivo, por que meios é alcançado esse resultado. A simples força do efeito produzido é um critério estético válido; o grau de excitação atingido decide do seu valor. Poesia e pintura nada mais se propõem senão a agradar e como­ ver, está aí sua verdadeira grandeza: " Le sublime de la poésie et de la peinture est de toucher et de plaire.” 86 Kant objetou um dia à ética do eudemonismo quando disse que ela nivelava todos

425

os valores morais e finalmente os destruía: aquele que mede o valor moral de um ato apenas pelo prazer que ele lhe propor­ ciona não se interroga sobre a natureza e a origem do prazer, do mesmo modo que ao que quer possuir ouro tanto faz que ele seja extraído de uma mina ou da areia lavada. Poder-se-ia fazer uma objeção comparável contra a estética de Dubos que resolve no sentimento todo conteúdo estético, e todo sentimento na exci­ tação e emoção. O simples fato dessa emoção torna-se aqui o único critério seguro que decide sobre o valor ou o não-valor de uma obra de arte: 44Le véritable moyen de connaître le mérite d'un poème sera toujours de consulter l'impression qupil f a i t ” 87 Comparada com a de Shaftesbury, a doutrina do gosto de Dubos manifesta a mesma diferença característica. No começo, ele parece estar inteiramente de acordo com Shaftesbury ao insis­ tir sobre o imediatismo do gosto e ao explicar que se deve julgar a obra de arte "pela via do sentimento” e não "pela via da dis­ cussão”.88 Mas depois situa o imediatismo em outra parte e justifica-o por uma via inteiramente diferente. Enquanto Shaftes­ bury procura-o no princípio da intuição estética pura, Dubos limita-se à comparação com a simples sensação. O "gosto” cai assim para o nível da atividade sensorial que tem o mesmo nome: o nosso sentimento, diz Dubos a certa altura, julga a obra de arte como a nossa língua julga a qualidade e a excelência de um ensopado de vitela. A esse fundamento da estética falta todo princípio seguro para garantir uma distinção entre "sentimento” e mera "sensação”, entre "belo" e o simplesmente "agradável”. Para Shaftesbury, em contrapartida, essa distinção está no centro de sua meditação, e sua doutrina do "prazer desinteressado" — o mais importante resultado particular com que ele enriqueceu a estética — dela proveio. A essência e o valor da beleza não re­ sidem, para ele, na estimulação que ela exerce sobre os homens, mas no fato de que lhes abre o mundo da forma. Para o animal

426

que vive sob o poder da estimulação e nem por um instante pode escapar a esse poder absoluto, o mundo das formas puras per­ manece justamente fechado, pois nunca a forma poderá ser per­ cebida e compreendida no seu sentido próprio e assimilada se não se distinguir do efeito que ela exerce e promove no âmbito de um objeto autônomo da reflexão, da pura contemplação estética.39 A intuição do belo, que cumpre distinguir cuidadosamente da sua simples sensação, só é despertada nessa contemplação que não é uma simples paixão da alma e sim o seu mais puro modo de agir, a sua atividade própria. A relação da "beleza” e da "verdade”, da "arte" e da "na­ tureza”, também recebe dessarte uma nova definição. Shaftesbury exige mais do que um completo acordo entre esses termos: ele parece querer aprofundar esse acordo até o ponto de apagar todas as distinções, até afirmar sua completa identidade. £, no entanto, equivocar-se-ia redondamente a respeito da fórmula: 11AH beauty is trutti* [Toda beleza é verdade] quem pensasse que ela ofende a "imanência” do belo e sua autonomia, pois a harmonia que Shaftesbury afirma existir entre verdade e beleza não significa, em absoluto, dependência de uma em relação à outra; ela deve, pelo contrário, abster-nos de aceitar uma tal de­ pendência, uma dependência unilateral. A relação é substancial, não causal; trata-se de determinar a essência da natureza e da arte, não a ordem do antes e depois para suas criações respecti­ vas. Segundo Shaftesbury, a arte está ligada muito intimamente à natureza, nada pode atingir e nada deve tentar que ultrapasse os limites da natureza. Mas o íntimo acordo com a natureza que é exigido da arte não significa que ela esteja envolvida na reali­ dade das coisas empíricas e que deva contentar-se em copiá-las. É na criação, não na imitação, que se atingirá a "verdade” da natureza, no seu sentido mais profundo; não é a totalidade das criaturas mas a força criadora donde promanam a forma e a

427

ordem do universo. É nesse único domínio que a beleza deve rivalizar com a verdade, o artista com a natureza. O verdadeiro artista não se dedica a recolher laboriosamente na natureza os elementos de sua obra: ele imita um exemplo, um modelo pura­ mente interior que se lhe apresenta como um todo original e indivisível. Esse mesmo modelo não é, porém, simples aparência; ele harmoniza-se, por certo, se não com a realidade efetiva das coisas, pelo menos com a sua verdade essencial. A criação do artista não é o simples produto de sua imaginação subjetiva, um "fantasma” vazio; o ser que ela exprime é um ser verdadeiro, ou seja, uma necessidade, uma lei verdadeiramente interior. O gênio não recebe essa lei do exterior, extrai-a, pelo contrário, de sua própria espontaneidade. Ora, verifica-se que essa lei, que não é adotada da natureza, nem por isso deixa de estar em perfeita harmonia com ela, não contradiz absolutamente suas formas es­ senciais mas, pelo contrário, revela-as e confirma-as. "A natureza está para sempre ligada ao gênio. O que um promete, a outra certamente o realiza”: com essas palavras Schiller talvez tenha dado a mais densa e mais tópica fórmula da concepção de Shaftesbury das relações da arte e da natureza. O gênio não tem que ir em busca da natureza e da verdade; tem-nas em si mesmo e, se se mantiver sempre fiel a si mesmo, pode estar certo de que elas jamais lhe faltarão. O princípio de "subjetividade”, ao invés dessa forma de imitação da natureza que a estética clássica exi­ gia, conserva, portanto, a sua validade mas, por outro lado, essa subjetividade significará agora algo muito diferente do que é des­ crito nos sistemas empiristas e psicológicos. Se o Eu se resume nessas teorias num simples "feixe de representações", para Shaftesbury ele é uma totalidade originária e uma unidade indissolú­ vel, essa unidade onde discernimos, correta e imediatamente, a estrutura fundamental e o sentido do cosmo, onde apreendemos por intuição e simpatia o "gênio do Todo" (Genius des Alls). Ê para essa "natureza interior ao sujeito", não para a simples ob-

428

jetividade das coisas e dos fatos, que tende a exigência de ver­ dade shaftesburiana, e é dessa natureza que ele faz a norma da beleza. Quando Kant, na Crítica do juízo, definiu o gênio como o talento (o dom natural) que dá sua regra à arte, ele empreendeu, sem dúvida, o seu próprio caminho para a fundação transcen­ dental dessa proposição, mas o próprio conteúdo dessa definição concordará perfeitamente com Shaftesbury e os princípios e hi­ póteses da sua "estética intuitiva”. Em meados do século XVIII uma nova etapa foi cumprida no sentido de uma nova e mais profunda concepção da "subjeti­ vidade” estética, quando os problemas estéticos adquiriram ainda maior amplitude com o surgimeto, a par da "analítica'do belo", de uma "analítica do sublime” que rapidamente ganhará contor­ nos claros e consistentes. Sem dúvida, essa disciplina não trouxe nenhum enriquecimento de conteúdo, porquanto se limitou a des­ tacar um elemento cujos traços podemos encontrar até nos pri­ mórdios da estética filosófica. A própria doutrina clássica já o fora buscar à tradição antiga. Boileau traduziu e comentou em 1674 o tratado Sobre o sublime, de Dionísios Longinos.40 Mas não se encontra nesse comentário a menor sugestão no sen­ tido das novas aplicações e da importância teórica que o pro­ blema do sublime encontrará na estética do século XVIII. A philosophical inquiry into the origin of our ideas of the sublime and beautiful (1756) [Uma investigação filosófica sobre a ori­ gem de nossas idéias do sublime e do belo], de Burke, constitui a primeira abordagem decisiva do problema. Em primeiro lugar, a obra de Burke não é sistemática; sua orientação é, sobretudo, psicológica. Ele não apresenta uma doutrina estética pronta e acabada mas dedica-se a tratar de certos fenômenos estéticos a cuja análise procede com clareza metódica, descrevendo-os com escrupulosa fidelidade. Mas foi justamente essa simples descrição que o levou a descobrir uma das lacunas da estética teórica, tal

429

como vem sendo considerada desde então. Embora se tenha o costume de considerar a ordem, a proporção, a delimitação fixa e a simplicidade do contorno como as marcas do objeto belo, essas características não tardam em revelar-se insuficientes para abranger a totalidade dos elementos que constituem o valor es­ tético e a eficáca da arte. Falta a essa definição englobar toda uma classe de fenômenos cuja realidade impõe-se a cada passo a toda observação independente que não ofusque nenhum pre­ conceito teórico. Os mais profundos movimentos da alma, as experiências artísticas mais intensas não são despertados em nós pela contemplação da "beleza" como proporção serena e cons­ trução rigorosa. Uma excitação mais viva manifesta-se quando estamos em presença não da exata delimitação da forma mas, pelo contrário, da sua discordância, inclusive da sua dissolução completa. Tanto quanto a forma, no sentido do classicismo es­ trito, também o informe (Unfom) possui seu valor e sua legi­ timidade estéticos; tanto quanto o ordenado, o desordenado (Ungeregelte), tanto quanto o mensurável, segundo certos cri­ térios, o incomensurável (Masslose). Esse fenômeno, que destrói o quadro conceptual da estética de então, recebeu de Burke a designação de sublime. O sublime escarnece da exigência esté­ tica da proporcionalidade, visto que a transcendência, a supe­ ração da simples proporcionalidade, constitui o seu verdadeiro caráter. Ele consiste nessa mesma transcendência, age através dela e por meio dela. O que formamos e delimitamos interior­ mente na intuição pura não age somente sobre nós; também existe aquilo que escapa, justamente, a um tal esforço, aquilo que nos submerge em vez de ser modelado e regido pela nossa própria experiência. Em nenhum momento somos mais vivamen­ te agarrados do que por esse impalpável, em nenhum momento sentimos a força da natureza e da arte do que quando nos apre­ sentam o "terrível". Não sucumbir diante do terrível, pelo con-

430

rário, afirmarmo-nos na sua presença, chegar à exaltação e ao ecrudescimento de todas as nossas forças: tais são os fatos que e oferecem no fenômeno do sublime e sobre os quais repousa a iais profunda estimulação estética. O sublime rompe as froneiras da finitude; entretanto, essa ruptura não é vivenciada pelo iu como uma destruição mas como uma espécie de exaltação e le libertação. Pois o sentimento de infinito que o Eu descobre m si mesmo fornece-lhe uma nova experiência de sua própria nfinidade. Essa concepção, essa definição do sublime ultrapasa, portanto, não só os limites da estética clássica mas também o >ensamento de Shaftesbury, porque, para este último, mesmo se io hino à natureza de The moralists proclama sua profunda senibilidade a todos os encantos do sublime, a idéia da forma ubsiste como o princípio estético verdadeiramente fundamental. • a "subjetividade”, no âmbito da estética, também recebe, poranto, um novo sentido e liga-se a novas finalidades. A imporância da doutrina do sublime para a história das idéias está, do lonto de vista da arte, em sublinhar os limites do eudemonismo em escapar à sua estreiteza. O resultado que toda a ética seteentista se esforçara em vão por alcançar cai aqui como um fruto iaduro por obra e graça da estética. Para desenvolver a sua dourina do sublime, Burke deve efetuar uma rigorosa distinção ntre dois aspectos do conceito de "prazer” estético. Ele recoihece e descreve uma espécie de prazer que nada tem a ver com simples fruição sensível, nem com essa alegria que experimenamos na contemplação do belo, experiência que é de uma natueza especificamente diferente. O sentimento de sublime não onstitui um grau superior desse prazer ou dessa alegria: opõe2 tanto a um quanto à outra. Não se pode caracterizá-lo como im simples "prazer” (pleasure), porquanto é a expressão de uma moção de muito diferente espécie, de um arrebatamento, de um leleite (delight) singular que não exclui o temor e o tremor mas,

431

pelo contrário, os exige e envolve. Existe, portanto, uma fonte de prazer estético puro que se mantém rigorosamente distinto de uma simples exigência de felicidade, do instinto de fruição e da satisfação de necessidades limitadas: "A sort of delight full of horror, a sort of tranquillity tinged with terror.” 41 E há ainda uma outra exaltação e uma outra libertação que se realizam graças à problemática do sublime. Já não se trata apenas da li­ berdade interior do homem em relação aos objetos da natureza e da potência do destino: o sentimento do sublime liberta além disso o indivíduo desses milhares de vínculos que fazem dele um membro da comunidade e da ordem social burguesa. Na experiência do belo também caem essas barreiras: o Eu possui seus próprios alicerces, sobre os quais se apóia, e deve afirmar-se em sua independência e em sua espontaneidade contra o univer­ so, tanto físico quanto social. Burke insiste expressamente em que existem no homem dois instintos básicos: um que o incita a realizar sua própria natureza individual e o outro que o torna propenso a viver em comunidade. No primeiro reside, segundo ele, o sentimento do sublime, no segundo o sentimento do belo. O belo une, o sublime isola. Um civiliza, modelando as formas convenientes das trocas e das relações sociais e servindo para o refinamento dos costumes; o outro mergulha até as profundezas do Eu e coloca-as pela primeira vez à sua plena disposição. Não existe nenhuma outra experiência estética que proporcione ao homem na mesma escala que o sentimento do sublime a coragem de ser ele mesmo, a coragem de sua própria "originalidade”, de sua natureza profunda. Assim é transposto um obstáculo que, como vimos, manifestara-se ao longo do desenvolvimento da es­ tética clássica e que consistia em crer que as regras apenas ex­ primiam a pura e simples "verdade” da obra de arte e não lhe impunham outros vínculos senão aqueles atinentes à própria coisa, à natureza dos diversos gêneros artísticos. A práxis da

432

estética clássica jamais realizara plenamente, é verdade, o seu deal teórico: em vez da "verdade da natureza" procura ia, sur­ gira uma verdade social, relativa e contingente; om vez das leis miversais da razão, certas convenções sociais.42 A teoria do su)lime reconhece esse perigo. Ela distingue, mais estritamente do jue antes, a "essência" da "aparência", a natureza do habito, a ubstância do Eu e suas verdadeiras profundidades dos seus elenentos meramente relativos e acidentais. O prob ema do gênio s o do sublime agem aqui na mesma direção: vão tornar-se os emas intelectuais do desenvolvimento e da progressiva elabora­ do de uma nova e mais profunda concepção da individualidade.

Entendimento e imaginação. Gottsched e os suíços Quando se compara o desenvolvimento da estética alemã do iéculo XVIII com o das estéticas francesa e inglesa, logo surge ima diferença característica nas tendências profundas e no am>iente intelectual. É impossível, por certo, se considerarmos sim)lesmente o conteúdo dos problemas particulares assim como a inálise e a definição dos conceitos fundamentais, traçar uma “ronteira precisa entre as diversas culturas nacionais. Como é o ;aso geral no século XVIII, produziu-se nesse domínio uma ininerrupta troca de idéias. Os fios correm por aqui e por ali e jntrelaçam-se tão bem que é quase impossível isolá-los da tesiitura acabada e remontar à sua origem. É por essa razão que ião existe nenhum tema intelectual, nenhum princípio ou teoema especial sobre os quais assentaria uma atitude original da ístétiCa alemã. Não há, por assim dizer, nenhum conceito ou eorema do qual não se possa encontrar o análogo ou o paralelo ias literaturas francesa e inglesa. E, no entanto, todas as inluências franco-inglesas que se exercem na Alemanha aí adquiem logo um novo sentido e outra finalidade: vê-se pela primeira

433

vez os problemas estéticos, em seu conjunto, colocarem-se, por assim dizer, sob a direção e a égide da filosofia sistemática. Ne­ nhum dos grandes mestres da estética alemã decidiu ater-se à observação e descrição nem encerrar-se no círculo dos fenômenos estéticos. A questão que, pelo contrário, é incessantemente ven­ tilada é a das relações entre a arte e os outros domínios da vida espiritual. Procura-se especificar constantemente as faculdades estéticas em face das outras faculdades, em face do entendimen­ to, da razão, da vontade, estabelecer fronteiras claras e precisas de modo a inferir dessas distinções e delimitações o traçado de um quadro de conjunto do espírito em sua unidade interior, em sua diversidade e em seus níveis de ser. Esse espírito de sistema é o que foi implantado por Leibniz na filosofia alemã, depois e^borado e ensinado em toda a sua rigidez pela escola de Christian Wolff. Nem a França nem a Inglaterra conheceram nunca um tão estrito rigor, tamanha "disciplina" teórica em es­ tética. Na França, desde o começo do século XVIII, com a in­ fluência das obras de Bouhours e de Dubos, o espírito estrita­ mente racional da filosofia cartesiana tinha sido progressivamente rechaçado. No desenvolvimento ulterior, uma estreita ligação sub­ sistiu, sem dúvida, entre a filosofia e a crítica estético-literária, mas é a própria filosofia que rejeita agora, de maneira expressa, a forma sistemática. Depois do Tratado dos sistemas de Condillac, travou-se uma batalha generalizada contra o "espírito de sistema”.43 Falando de Diderot, considerou-o Lessing o primeiro espírito filosófico desde Aristóteles a debruçar-se sobre o teatro. E. não obstante, a filosofia do drama segundo Diderot, conforme eu mesmo declara em seus diólogos sobre a arte dramática, é nada menos do que sistemática. Não é logicamente construtiva, não está permanentemente ocupada em deduzir e concluir; não se move numa seqüência de observações sumárias (aperçus), é espontânea e eclética. E também na Inglaterra foi justamente o pensador mais profundo e o mais fértil no domínio da estética,

434

o verdadeiro fundador e instigador do seu futuro desenvolvi­ mento, quem menosprezou e repeliu a coação de todo sistema filosófico. Shaftesbury tinha lançado esta mordaz sentença: "O caminho mais razoável para endoidecer é passar por um siste­ ma." 44 Na Alemanha, porém, mesmo ao travar a batalha por direitos e independência da imaginação, a estética nunca se er­ gueu contra o domínio da lógica. Não combatia contra a lógica mas em estreita união com ela; não queria libertar a imaginação da supremacia da lógica e exigia e procurava uma "lógica da imaginação" específica. Quando os suíços, defensores da ima­ ginação no conflito entre “razão” e “imaginação”, voltaram-se contra Gottsched, eles não pretendiam com isso renunciar ao rigor lógico de Wolff. A obra de Bodmer, Von dem Einflusse und dem Gebrauche der Einbildungskraft, zur Ausbesserung des Geschmackes [Da influência e do uso da imaginação no aper­ feiçoamento do gosto], é dedicada a Wolff e, de certo modo, coloca-se expressamente sob sua égide: foi a sua "maneira de­ monstrativa de filosofar” que permitiu, declara Bodmer, esta­ belecer finalmente as artes sobre fundações seguras. De Wolff, portanto, os suíços retornam então a Leibniz e é ainda à obra do Leibniz lógico que eles se referem em primeiro lugar. Com efeito, eles declaram que o maior serviço prestado à causa da fundação de uma filosofia da arte foi ter "desferido um golpe mortal na sensação” pelo sistema da harmonia preestabelecida: “Ele despojou-a de sua jurisdição por tanto tempo usurpada, reduzindo-a a ser apenas uma causa ministrans e occasionalis do julgamento da alma." 45 Pela posição central que o problema do julgamento adquire nos suíços, vê-se claramente que eles não têm a menor intenção de desfazer o vínculo que une lógica e estética. Ocupam uma posição média num desenvolvimento que conduz a uma síntese e a uma sólida associação entre lógica e estética, desenvolvimento que encontrou seu ápice e sua con­ clusão na Crítica do juízo, de Kant.

435

Se se considera todo esse conjunto, é evidente que fica ain­ da mais difícil definir o verdadeiro tema do conflito que opôs Gottsched aos suíços. O próprio conflito agitou apaixonadamente os espíritos na Alemanha do século XVIII e temos um teste­ munho da profunda marca que deixou no conjunto da vida es­ piritual alemã, de sua poderosa influência sobre o desenvolvi­ mento interno da poesia alemã, graças à Poesia e verdade, de Goethe. Entretanto, os próprios contemporâneos tinham dificul­ dade em separar o verdadeiro cerne do problema do estardalhaço das polêmicas. "Parece-nos” — escrevem Mylius e Cramer no prefácio dos Höllischen Bemühungen zur Beförderung der Kritik und des guten Geschmacks [Ensaios de Halle para a promoção da crítica e do bom gosto] — "que os escritos suíços sobre a poesia teriam podido ser arrumados num armário ao lado da arte poética de Gottsched sem que se desencadeasse uma batalha, como escreve Swift a respeito dos livros dos antigos. Não esta­ mos em condições de responder, quanto ao fundo, àqueles que nos interrogam sobre as verdadeiras causas dessa dissensão crí­ tica. O poeta que algum dia cantará esta guerra terá necessidade de tanta inspiração, sem nenhuma dúvida, quanto Homero quan­ do quis descrever a briga de Aquiles e Agamenon."40 Não pa­ rece que as análises de história literária e filosófica que vimos surgir depois tenham sido motivadas pela dita "inspiração", porquanto as opiniões ainda se opõem diametralmente no tocante aos verdadeiros motivos do conflito e às forças que nele inter­ vieram. Hettner declara que a questão decisiva que está em de­ bate sob o véu das querelas pessoais é facilmente apontada: tratar-se-ia do "primeiro choque realmente sério na guerra entre as influências francesa e inglesa”. Gottsched seria o partidário fer­ voroso, parcial até o exclusivismo passional, do classicismo fran­ cês. Daí seus acertos e seus equívocos históricos. Mas os papéis não se repartem assim tão facilmente porque, por um lado, Gottsched não rechaçou as influências da literatura inglesa —

436

ele cita Shaftesbury e Addison, tendo tomado deste último, ex­ plicitamente, a forma de suas crônicas semanais — e, por cutro lado, as teorias suíças estão repletas de sugestões provenientes da estética francesa. No prefácio de Gritischen Dichtkunst [Arte poética crítica], de Breitinger, Bodmer recorre explicitamente a Dubos para mostrar que "os melhores escritos não nasceram das regras mas que, pelo contrário, as regras é que são extraídas dos escritos". A verdadeira diferença entre Gottsched e os suíços não poderia ser caracterizada desde o exterior mas só de dentro, não pelo tipo de influência a que eles são submetidos mas pela maneira diversa como elaboraram suas respectivas problemáticas. E essa diferença só é plenamente esclarecida se lançarmos um olhar para além do círculo dos problemas puramente literários e puramente estéticos, se nos apercebermos de que o conflito que se reflete aqui constitui apenas um momento particular, uma ação local num mundo intelectual muito mais vasto. Só se pode com­ preender no âmbito da situação intelectual de conjunto do sé­ culo XVIII a tese que Gottsched e os suíços devem fazer triun­ far no interior da poética. Por bizarro que isso possa parecer no começo, não se pode deixar de considerar, para fazer historica­ mente toda a luz sobre o antagonismo entre Gottsched e os suí­ ços, não só o estado do problema da lógica mas também da física. Uma nova fórma de lógica tinha começado, com efeito, a desen­ volver-se no século XVIII na física e graças a esta. Ao ideal de uma lógica puramente dedutiva, progredindo do geral para o par­ ticular, inferindo este daquele, opusera-se o ideal da análise em­ pírica. Esta não renuncia, de maneira nenhuma, aos axiomas e princípios universais mas, em vez de afirmá-los como inabaláveis proposições a priori, estabelecidas de uma vez por todas, quer extraí-los da consideração dos fenômenos e aí fundamentar sua validade. A correlação entre "fenômeno” e "princípio” é assim mantida mas a ênfase foi deslocada. Os fenômenos não devem ser deduzidos de certos princípios aceitos e fixados de antemão;

437

são os princípios que devem ser extraídos e ser sempre demons­ trados por seu intermédio.47 Na explicação da natureza, é na passagem de Descartes a Newton que se manifesta com maior clareza essa mudança de espírito metódico; em estética, o seu aparecimento mais nítido e mais certo está na oposição entre Gottsched e os suíços. A ligação surpreendente que se manifesta aí entre dois domínios tão distanciados um do outro corrobora uma vez mais essa unidade de estrutura intelectual que caracte­ riza o século XVIII. Descartes tinha colocado o plano de sua física, tal como foi traçado no Tratado do mundo, sob a divisa: "Dêem-me a matéria e construirei um mundo.” Como físico e filósofo da natureza, ele pode e deve tentar uma tal construção, porquanto o plano do universo está claramente exposto nas leis universais do movimento. Ele não tem a menor necessidade de ir buscar essas leis à experiência: elas são de espécie matemática e, por conseguinte, estão envolvidas nas regras fundamentais da mathesis universalis que o espírito apreende de si mesmo e per­ cebe na sua necessidade. Gottsched, discípulo de Descartes e de Wolff, acredita poder introduzir a mesma exigência na área da poesia e submetê-la ao domínio da "razão”. "Dêem-me uma ma­ téria qualquer, um tema determinado, e eu lhes mostrarei como se forma a partir daí, segundo as regras universais da poética, uma poesia perfeita.” Ê mais ou menos nesses termos que se pode transcrever o conteúdo e as intenções profundas de sua Critischen Dichtkunst. "Em primeiro lugar, escolha-se um juízo moral instrutivo correspondente às intenções que uma pessoa propõe-se a realizar; em seguida, imagine-se um evento muito geral em que sobrevêm uma ação na qual a máxima escolhida tem o seu sentido claramente pronunciado." O "juízo”, a ver­ dade teórica ou moral, vem, portanto, em primeiro lugar; o even­ to poético segue-se, simplesmente, para ilustrá-la, torná-la per­ ceptível graças a um exemplo concreto. Nos suíços, pelo con­ trário, é a relação inversa que prevalece: eles representam a

438

doutrina do "primado do evento sobre o julgamento”. É evidente que não renunciaram à intenção didática, insistindo até incan­ savelmente nessa intenção; contudo, essa deve ser realizada por um outro caminho, não pelo caminho do entendimento mas pelo da imaginação. A tarefa da poesia — os suíços, nesse ponto, concordam com Dubos — consiste em impressionar.e comover; o "patético" não é, porém, o seu fim único e supremo. A emoção imaginativa deve, antes, abrir o caminho à intuição racional, fazê-la penetrar no espírito do ouvinte. Aquilo que o simples conceito e a doutrina abstrata não permitem deve ser adquirido pela escolha correta de metáforas, de "imagens" poéticas (poetischen “Gleichnisse”). É por isso que a imagem adquire agora uma importância decisiva e converte-se no verdadeiro centro da poética. O próprio Breitinger compôs um Kritische Abhandlung von der Natur, den Absichten und dem Gebrauche der Gleich­ nisse [Tratado crítico da natureza, das intenções e do uso das imagens] 48 a fim de explicar esse uso por exemplos extraídos de textos dos mais célebres autores antigos e modernos. Mas, uma vez mais, a imagem não tem sentido nem valor autônomo; ela constitui apenas a preparação de outra coisa, o invólucro que reveste essa outra coisa. "Assim como um médico hábil sabe açucarar ou dourar as pílulas amargas, assim devem proceder também todos aqueles que querem usar da verdade como de um medicamento para alcançar a felicidade humana." Em sua Critischen Dichtkunst, Breitinger proclamará, portanto, que a fábula de Esopo é o gênero poético mais perfeito, porquanto cumpre com perfeição essa dupla tarefa. Ela foi inventada para assegurar a certas "verdades secas demais e amargas demais" um acesso ao coração humano, graças ao invólucro artístico de uma máscara sorridente, de tal modo que ele não possa recusar sua concordância.40 O conceito de "maravilhoso", muito caracterís­ tico da poética dos suíços, também adquire desse modo, pela primeira vez, um sentido bem definido. O valor do maravilhoso

439

não decorre de que nasce do livre jogo da imaginação nem de que transgride todas as leis da razão. A invenção mais maravi­ lhosa pode não estar ligada a nenhuma realidade dada e sujeitarse unicamente às leis do "possível”, mas nem por isso estará menos ligada, para ser verdadeiramente poéticav às suas inten­ ções. Por tudo o que ela comporta de novo e de surpreendente, quer produzir um movimento de alma que conduzirá até o fim pretendido pelo poeta — uma finalidade moral. Um mesmo conflito de tendências, que não corresponde a uma incompatibi­ lidade absoluta, surge igualmente no debate em torno das rela­ ções entre o "gênio” e as "regras”. Os suíços, já para não falar de Gottsched, estão bem distantes da concepção do gênio que conhecemos na "estética intuitiva” de Shaftesbury. Bodmer e Breitinger não têm a menor intenção de libertar o gênio da se­ vera disciplina das regras: eles também querem estabelecer nor­ mas. Procuram, entretanto, descobrir essas normas nos fenôme­ nos, nos dados da arte poética, em vez de lhas impor. Partem da intuição poética para reconduzi-la em seguida, bem entendido, aos conceitos e aos "princípios especulativos”. A principal supe­ rioridade deles, em relação a Gottsched, apóia-se no fato de que eles são capazes dessa intuição num grau incomparavelmente mais elevado e num sentido muito mais profundo. Homero, Dante e Milton representam para eles verdadeiras experiências poéticas. Para o crítico, entretanto, essas experiências represen­ tam apenas um começo e não um fim. As regras que aí se en­ contram implicitamente contidas, compete-lhe transportá-las para a claridade da consciência; o que a natureza operou pelo gênio poético, a arte do crítico deve "extraí-lo do texto” e convertê-lo numa sólida e segura possessão. É assim que a força e a origina­ lidade dessa "análise empírica”, extraindo do particular o geral, da imagem concreta, do fenômeno concreto, a regra escondida, deram uma vez mais suas provas. No prefácio de Critischen Dichtkunst, de Breitinger, Bodmer declara que as regras não são

440

o fruto do arbitrário ou do cego acaso, que elas nasceram, pelo contrário, da observação atenta do que é verdadeiramente cons­ tante na impressão estética, do que exerce uma influência deter­ minada sobre o espírito. A ciência da natureza do século XVIII une experiência e geometria, relacionando-as constantemente en­ tre si, do mesmo modo que parte da experiência e da observação sensível para procurar por outra parte, no domínio do próprio observável, a necessidade matemática: os suíços exigem do ver­ dadeiro crítico de arte que ele satisfaça essa dupla obrigação. Ele deve subscrever a experiência que se lhe apresenta sob a forma das grandes obras de arte e deixar-se guiar por ela. Mas essa direção não significa uma submissão absoluta. Assim como o físico descobre o rigor matemático no seio do sensível, o crí­ tico procura nas obras de imaginação uma verdade necessária, ultrapassando todo o arbitrário. Começa pela intuição e perma­ nece-lhe fiel, mas descobre nela as formas específicas de deter­ minação e a "certeza demonstrativa” de que ela é suscetível.

Fundação da estética sistemática — Baumgarten Quando Kant fala de Alexander Baumgarten, a quem con­ fere um lugar particularmente elevado entre os pensadores ale­ mães do seu tempo, tem o costume de mencioná-lo como um "excelente analista” (vortrefflichen Analysten). Caracteriza des­ se modo conciso e pertinente um traço essencial de sua índole espiritual e de sua obra científica. As obras de Baumgarten rea­ lizam no mais alto grau a arte da definição e da análise con­ ceptual rigorosa. Entre todos os discípulos de Wolff, ele é aquele que domina com a maior segurança a técnica lógica ensinada pelo mestre que deu assim u filosofia alemã a sua espinha dorsal e a firmeza de seu conteúdo. Pela precisão de suas formulações, pelo cuidado e minúcia de suas definições, pelo rigor das provas,

441

a Metafísica de Baumgarten continuará sendo por muito tempo um modelo admirado. O próprio Kant referiu-se constantemente a essa obra e nela baseou suas lições de metafísica. Entretanto, o verdadeiro mérito de Baumgarten, sua importância histórica decisiva, está em outro ponto. Ele não é somente o mestre da lógica escolástica, que dominou com brilho em todas as suas partes e que levou ao seu mais alto grau de perfeição formal; o seu papel intelectual próprio foi o de ter tomado uma forte consciência dessa mesma perfeição, dos limites internos e neces­ sários dessa lógica. Foi pela consciência que adquiriu desses limites que Baumgarten desempenhou seu papel original e deu à estética seus fundamentos filosóficos. Ê justamente desde que domina a sua tarefa de lógico que ele descobre a sua nova tarefa e que, ao abordá-la em função de suas premissas intelec­ tuais, traz para a luz a determinação dessas premissas. É assim que a estética desenvolve-se a partir da lógica e que esse mesmo desenvolvimento revela simultaneamente os limites imanentes da lógica escolástica tradicional. Baumgarten não se restringe a ser um "artista da razão": nele se realiza de novo esse ideal da filo­ sofia que Kant caracterizou como o ideal do “autoconhecimento da razão" (Selbsterkenntnis der Vernunft). Ele é e continua sen­ do um mestre da análise; e essa mestria não o leva a superestimar o valor mas a definir claramente e a distinguir com segurança seus meios e seus fins. Essa elaboração superior da análise fornece-lhe uma nova fecundidade, ao conduzi-la até um ponto onde surge, como de si, um novo começo, onde se revela uma nova síntese intelectual. Ê essa síntese conceptual que dá sua força e sua importân­ cia à definição da estética como ciência, segundo Baumgarten. A estética não seria uma ciência nem poderia chegar a ser uma se se limitasse a fornecer um conjunto de regras técnicas para a produção da obra de arte ou um conjunto de observações psico­ lógicas sobre os seus efeitos. Tudo isso faz parte dessa espécie

442

de empirismo que se opõe diametralmente à intuição autêntica, verdadeiramente filosófica, e que forma com ela o mais perfeito contraste metodológico que se possa imaginar. Uma ciência re­ cebe o seu conteúdo e o seu sentido filosófico quando com­ preende o que representa na totalidade do saber, o lugar e a po­ sição que lhe competem nesse conjunto. Ela deve situar-se no gênero universal do saber e deve, ao mesmo tempo, no interior desse gênero, dedicar-se a uma tarefa específica e cumprir essa tarefa de maneira característica. O gênero, o conceito específico do saber corresponde ao conceito de conhecimento que deve, por­ tanto, figurar no ápice e é o único que pode constituir-se em conceito supremo da definição procurada para a estética. Mas o que é mais importante do que esse genus proximum que somente deve fornecer o quadro para a definição é o preenchimento desse quadro, a diferença específica a precisar. Baumgarten encontra essa diferença quando determina a estética como a teoria da sen­ sibilidade, do "conhecimento sensível”. Parece, nesse caso, para julgar a questão apenas do ponto de vista da escola e segundo os seus critérios tradicionais, que ele teria criado um ser logica­ mente híbrido, que retira com uma das mãos à estética o que lhe dá com a outra. Com efeito, o sensível não é justamente — de acordo com a terminologia que é também a de Baumgarten — o domínio do confuso, do indistinto, o domínio, portanto, que se opõe ao conhecimento e que este tentaria em vão penetrar? A estética poderia afirmar seu status e sua dignidade de ciência ligando-se a essa esfera inferior, constituindo-se como gnoseologia inferior? São considerações desse gênero que impediram o reco­ nhecimento fácil da estética de Baumgarten e que retardaram por muito tempo a sua influência. Bodmer registra a definição de Baumgarten com espanto e mau humor, com uma contrariedade pessoal a muito custo dissimulada. Em seu comentário crítico da obra de Baumgarten, escreve ele: "Parece querer disseminar-se a opinião de que o gosto é um julgamento inferior pelo qual só

443

conhecemos o obscuro e o confuso. Nesse pensamento, não cons­ tituirá grande mérito possuir um gosto a que falta a tal ponto um sentimento de certeza e quase não vale a pena esforçar-se por tê-lo.” 60 Mas nesse julgamento, a intenção profunda de Baumgarten está provavelmente entendida às avessas. O contra-senso lógico de um conhecimento confuso e obscuro está muito longe do pensamento do "excelente analista” que é Baumgarten; o que ele procura e exige é, antes, um conhecimento de o obscuro, de o confuso. O predicado designa o tema, o domínio objetivo, não o modo de intuição e o tipo de investigação. A ciência não deve ser rebaixada para o domínio da sensibilidade, é o sensível que deve ser elevado ao status do saber, que deve ser penetrado e dominado por uma forma específica do saber. Com o pretexto de que o sensível, de acordo com a sua matéria simples, é obs­ curo de nome e de natureza, deverá a forma pela qual o conhe­ cemos e à qual nos adaptamos permanecer igualmente obscura e confusa? Ou não se apresenta nessa forma, justamente, uma certa maneira de conceber a matéria, uma nova e sumamente penetrante maneira de compreendê-la? Tal é a questão com que Baumgarten encabeça a sua estética para responder-lhe sem reservas pela afirmativa. Ele estabelece para a sensibilidade um novo critério que não deve privá-la do seu valor mas, pelo con­ trário, assegurá-lo. Confere-lhe uma nova perfeição mas essa é condicional, porquanto deve ser entendida como um privilégio puramente imanente, como perfectio phaenomenon. Essa perfei­ ção fenomenal não coincide, de maneira nenhuma, com aquela realização para que tendem a lógica e a matemática na elaboração de suas idéias "claras e distintas”, mas afirma-se conjuntamente, subsiste como um valor próprio e irredutível. Não foi certa­ mente sem dificuldades que Baumgarten estabeleceu essa coor­ denação, e na expressão de seu pensamento, na terminologia que ele não criou mas foi buscar em grande parte à Escola, sucumbe incessantemente à tentação da subordinação e da simpies subsun-

444

çâo. E preciso que ele estabeleça aí uma certa escala, uma ordem de valores dos conhecimentos, e à estética, conhecimento do sen­ sível, será atribuído o último lugar. Ela é começo, mas esse co­ meço parece não ser mais do que uma preliminar. "Pela aurora da Beleza penetraste na terra do Conhecimento”: — mas não parece que a aurora da beleza deve empalidecer do resplendor do pleno dia? Em face da estrita e pura verdade que, em vez de nos ligar à simples aparência das coisas, nos coloca na posse de sua natureza profunda, dissipa-se a beleza que só existe e vive na aparência. Baumgarten, o metafísico, nunca abandonou com­ pletamente essa perspectiva fundamental mas o analista, o puro "fenomenologista”, transpôs, é claro, essa barreira. E ao quebrar, ao desvencilhar-se dos grilhões da lógica e da metafísica tradicio­ nais, ele realiza as condições históricas e racionais indispensáveis à estética para conquistar um "lugar ao sol" — para constituirse como disciplina filosófica, em sua posição e com seus direitos próprios.61 A doutrina de Leibniz dos graus do conhecimento, exposta em Meditationes de veritate, cognitione et ideis, constitui o ponto de partida e o quadro das investigações de Baumgarten. Mas não basta relembrar a letra da doutrina para expor as intenções pro­ fundas de Baumgarten. Leibniz opõe representação "clara" e re­ presentação "distinta", atribuindo a cada uma um sentido e um fim particular. "Clara” é a representação que basta às neces­ sidades da vida cotidiana e convém-lhes, que permite em pri­ meiro lugar dirigirmo-nos no nosso meio ambiente sensível. Para dirigirmo-nos é apenas necessário que façamos uma distinção se­ gura entre os objetos que encontramos e que conformemos a nossa conduta a essas distinções. Para aquele que só vê no ouro um objeto de uso, basta possuir certos sinais sensíveis graças aos quais poderá distinguir o ouro "verdadeiro" do ouro falso ou falsificado. Deve atentar para a cor do ouro, sua dureza, malea­ bilidade etc.; pela observação precisa dessas determinações pu­

445

ramente empíricas vai encontrar finalmente critérios suficientes para impedi-lo de confundir entre o ouro legítimo e a imitação de ouro. Mas essa verdade não é, para Leibniz, a verdade au­ têntica e perfeita que o conhecimento científico esforça-se por alcançar e que se impõe por si mesmo. Pois o verdadeiro saber, o saber supremo, não é o do simples "quê" mas o saber do "porquê". A ciência não quer colecionar simples fatos; tam­ pouco se contenta em distinguir os objetos por seus "sinais", por suas marcas sensíveis e em classificá-los segundo essas dis­ tinções. Ela tem por finalidade reduzir a multiplicidade das pro­ priedades à unidade da essência: e só pode descobrir essa essên­ cia reconduzindo-nos à razão última donde essa pluralidade e essa multiplicidade provêm. O "princípio de razão" torna-se, portanto, a par do princípio de identidade e de contradição, a norma verdadeira de toda ciência rigorosa: compreender as coi­ sas não quer dizer percebê-las a posteriori, segundo suas formas fenomenais, mas aprendê-las a priori por suas causas. "Conheci­ mento a priori" e "conhecimento pela causa" significam para Leibniz a mesma coisa: a definição "causal" é a única expressão satisfatória de toda verdadeira "definição real". O caminho do "conhecimento distinto" nada mais seria, portanto, do que a re­ solução de todo fenômeno complexo em seus elementos sim­ ples, ou seja, nos elementos singulares que o determinam e o fundamentam. Enquanto essa resolução não se consumar, en­ quanto encontrarmos ainda num desses momentos uma multipli­ cidade não analisada, o objetivo próprio da concepção "adequa­ da” não terá sido ainda atingido. A nossa concepção só está verdadeiramente em harmonia com o seu objeto quando logra não apenas reproduzir esse objeto mas fazê-lo aparecer sob os nossos olhos, acompanhá-lo até a sua origem e reconstruí-lo a partir daí. Baumgarten reconheceu esse ideal em toda a sua amplitude e jamais contestou sua significação no interior do domínio do

446

conhecimento científico. Adere à exigência leibniziana de um "alfabeto do pensamento”, tanto mais vigorosamente porquanto esse ideal tinha dado, nesse meio tempo, um grande passo adiante no sentido de sua concretização, graças ao trabalho de pioneiro realizado pertinazmente por Wolff e sua escola. Existe, porém, segundo Baumgarten, um domínio em que a redução do fenô­ meno à sua “causa" enfrenta um obstáculo. Quando, aplicandolhe o método das ciências exatas, explicamos o fenômeno da cor reduzindo-a a um certo tipo de movimento, não só suprimimos a impressão sensível mas privamo-la também de sua significa­ ção estética. Tudo que a cor representa como meio de expressão da arte, todo o papel que ela desempenha na pintura, fica des­ truído por essa redução ao seu conceito físico-matemático: tudo é reduzido de uma assentada a zero. Não só toda memória da experiência sensorial da cor mas também toda memória de sua função estética desaparecem desse conceito. Será essa função, na verdade, algo de insignificante, de totalmente indiferente? Ou não possuirá também um valor próprio, não pretenderá, em vez de ser simplesmente rejeitada, conservar sua especificidade e seu caráter próprio? A nova ciência da estética esforça-se por essa manutenção. Mergulha no fenômeno sensível e abandona-se-lhe sem fazer a menor tentativa para chegar por si mesma a algo de uma natureza muito diversa, às “causas" do fenômeno. Com efeito, essa passagem às causas, longe de explicar o conteúdo estético do fenômeno, não faz mais do que aniquilá-lo. Aquele que queria comunicar-nos a impressão que recebe de uma pai­ sagem decompondo o espetáculo em seus elementos essenciais e procurando para cada um desses elementos um conceito distinto, descrevendo, portanto, se se quiser, a paisagem no idioma e com os recursos científicos da geologia, chegaria, sem dúvida, a uma nova visão científica, mas, nessa visão, não subsistiria o menor vestígio da “beleza" da paisagem. Essa beleza só se oferece à

447

intuição indivisa, à pura contemplação da paisagem como um todo. E somente ao artista, pintor ou poeta é dado salvar essa totalidade, torná-la viva para nós em todos os traços da sua re­ presentação. Uma paisagem pictórica ou poética evoca magica­ mente, num relance, a imagem pura e, na contemplação e fruição dessa imagem, toda a questão de "causa", como a que a reflexão artística e a investigação conceptual formulam, é prontamente esquecida. Devemos abandonar-nos à impressão que o fenômeno como tal exerce sobre nós, demorar-nos nela, prender-nos a ela para que não se volatilize, não se dissipe entre as nossas mãos. As impressões fenomenais não constituem, evidentemente, a es­ sência metafísica, mas a essência estética pura está vinculada a essas impressões.52 A observação de um objeto ao microscópio pode permitir ao cientista descobrir sua composição e, assim, a sua verdadeira constituição objetiva mas a impressão estética está desse modo irremediavelmente perdida. Goethe, num poema do Leipziger Liederbuchs, deu a essa idéia uma forma poética: Es flattert um die Quelle Die wechselnde Libelle, Mich freut sie lange schon; Bald dunkel und bald helle, Wie der Chamaeleon: Bald rot, bald blau, Bald blau, bald grün; O dass ich in der Nähe Doch ihre Farben sähe! Sie schwirrt und schwebet, rastet nie! Doch stillf sie setzt sich an der Weiden. Da hab9 ich sie! Da habf ich sie! Und nun betracht* ich sie genau Und sehf ein traurig dunkles Blau — So geht es dir, Zergliedrer deiner Freuden!

448

[Volteia em tomo da fonte A cambiante libélula, Por largo tempo alegra o meu olhar; Ora escura, ora clara, Tal qual o camaleão: Ora vermelho, ora azul, Ora azul, ora verde; Oh, que de bem perto Percebo agora as tuas cores! Ela adeja e plana, nunca pousa! Sim, ei-la pousada agora no prado. Agarrei-a! Agarrei-a! Desta vez observo-a de bem perto E tudo o que vejo é um azul funéreo — Eis o que te espera, tu, que dissecas teu prazer!] De pleno acordo com o ensinamento de Baumgarten, teó­ rico da estética, eis o conteúdo essencial da sua própria doutrina convertida numa imagem pura, numa visão poética que a expri­ me imediata e concretamente. Abre-se-nos agora um domínio so­ bre o qual o "princípio de razão”, princípio e condição de todo conhecimento "distinto”, não tem nenhum poder. Esse princípio é o fio de Ariadne que foi colocado em nossas mãos para nos conduzir para fora do labirinto da realidade aparente e fazer-nos ascender até à região do "inteligível”, ao reino dos "números”. Mas a arte não alcança uma tal transcendência, da qual seria, de resto, incapaz. Seu objetivo não é trascender os fenômenos mas, pelo contrário, permanecer entre eles, não remontar até as suas causas mas apreendê-los como dados imediatos e produzir, diante dos nossos olhos, seu ser e seu modo de ser. E não temos que temer, ao abandonar o fio condutor que o "princípio de ra­ zão" fornece-nos, que o nosso mundo intelectual volte a cair no caos. A realidade intuitiva, com efeito, não é — de maneira

449

nenhuma — confusão pura e possui em si mesma um critério específico. Toda obra de arte verificável coloca esse critério ime­ diatamente sob os nossos olhos; ela não expõe somente diante de nós uma multidão de intuições — ela domina essa multidão, modela-a e assim nos faz perceber sua unidade interior na forma imposta. Toda intuição verdadeiramente estética nos mostra não apenas a multiplicidade e a diversidade mas também a regra e a ordem que aí se escondem. Se se pode designar o domínio da estética pela expressão perceptio confusa, é na condição de en­ tender-se essa expressão segundo o seu significado estritamente etimológico. O que quer dizer que em toda intuição estética se produz uma “confluência” de elementos e que não podemos abstrair os elementos singulares da totalidade dessa intuição, co­ locá-los isoladamente em destaque nem explorá-los um por um. Mas essa confluência não produz “confusão” nenhuma, porquan­ to é justamente o todo o que se nos oferece sob o seu aspecto imediato, como um todo inteiramente determinado e organizado. Essa organização — tal é a tese fundamental da estética de Baumgarten — não é acessível, de maneira nenhuma, pelo caminho e desvio do conceito. Ela pertence à esfera pré-conceptual, a qual não tem que ser conhecida pela simples lógica como tal, uma vez que a considera, do seu próprio ponto de vista, oriunda das faculdades “inferiores” da alma e do conhecimento. Mas essas fa­ culdades inferiores do conhecimento também têm seu logos — têm direito, portanto, a uma teoria do conhecimento especial, a uma gnoseologia inferior. Baumgarten ainda se inclina intei­ ramente perante a autoridade rigorosa do racional, não conce­ dendo a menor exceção nem procurando subtrair a mínima coisa às normas puras da lógica. Mas sustenta a causa da intuição estética pura perante o próprio tribunal da razão. Quer salvar a intuição provando que uma lei interior governa-a igualmente. Se essa lei não coincide com a razão, constitui, não obstante, ‘analogon” dela. Esse analogon rationis53 prova-nos que a

450

esfera da lei não equivale à do conceito lógico mas extravasa-a largamente, que existe uma legalidade que se eleva acima de todo arbitrário e exclui toda preferência subjetiva que não se deixa apresentar sob a forma de simples conceitos. E a razão como totalidade recebe nela esses dois momentos. Ela não se limita ao conceptual puro, dirige-se absolutamente a toda ordem e a toda legalidade, seja qual for a matéria onde a ordem e a lega­ lidade encontrem sua ilustração e sua realização 54 A razão con­ tinua senhora desse conjunto sem que essa dominação tenha ja­ mais o rigor de um jugo, de uma coerção puramente externa. Baumgarten tem esta frase feliz e expressiva de que a razão tem direito ao poder soberano sobre todas as faculdades infe­ riores sem que esse poder possa adquirir unicamente a forma de uma tirania.55 As faculdades sujeitas não devem ser despoja­ das de sua natureza própria nem abdicar de nenhuma de suas características; devem, pelo contrário, ser compreendidas, man­ tidas e preservadas em sua especificidade. A legitimação das fa­ culdades inferiores da alma, não a sua opressão e destruição, tal é o objetivo a que a estética se propõe.56 Todos os detalhes da doutrina de Baumgarten já estão im­ plícitos nessa primeira abordagem do problema; todas as carac­ terísticas da obra de arte que ele demonstra, em particular o modo e o mecanismo da produção poética em todos os seus mo­ mentos, deduzem-se daí. Em seu esforço para ir ao fundo das coisas e não deixar escapar nada, ele compraz-se em acumular as fórmulas que designam as características que distinguem a expressão poética da expressão lógico-científica. Desta última exige luz e claridade, plenitude e veracidade, riqueza e limpidez; e quanto às representações de que o poeta faz uso, é necessário que elas contenham gravidade, força de convicção e vivacidade. Mas todas essas determinações, ubertas e magnitudo, veritas e claritas, lux e certitudo, reduzem-se em definitivo a uma única

451

exigência, para a qual Baumgarten encontrou a designação ca­ racterística de viia cognitionis. Baumgarten não pensa, portanto, em cortar de forma alguma a poesia da fonte primordial do pensamento, pois definirá, desde o início, a estética como "a arte de pensar em beleza” (ars pulcre cogitandi)?1 Mas exige que o pensamento tenha não só forma mas também cor, que nos forneça, com a verdade objetiva, a penetração “sensitiva”; com a intuição justa, a intuição viva. Essa intuição viva quer que, não contentes em elevar-nos do particular ao geral, de acordo com as regras da conceptualização lógica, apreendamos também o geral no particular e o particular no geral. A abstra­ ção que nos abre logicamente o caminho para as espécies mais altas significa sempre, aos olhos da intuição, empobrecimento e dissecação. É que o processo de abstração é, ao mesmo tempo, processo de subtração: para atingir o geral “negligencia” o particular e, em definitivo, “esquece-o” cada vez mais. Portanto, a generalidade só pode ser alcançada à custa da riqueza das determinações; o caminho da generalidade e o da determinação são em sentido inverso.58 A estética é um remédio para essa laceração, no sentido de que não pode atingir a sua “verdade”, nem para além da determinação nem contra ela: ela só se rea­ liza no seio e por meio dessa determinação. A beleza não exige apenas, como o conceito científico, a claridade “intensiva”, ela quer também a claridade “extensiva”. A primeira, a claridade intensiva, é atingida quando se consegue reduzir a totalidade de uma intuição a um pequeno número de determinações funda­ mentais que revelam sua própria natureza. Quanto à claridade estética, extensiva, não sofre essa redução e essa concentração. O artista, com efeito, quer percorrer a realidade intuitiva em toda a sua extensão, abarcar num único olhar o seu centro e a sua periferia™ O gênio artístico possui, na doutrina de Baum­ garten, não só uma extrema receptividade, a força e a amplitude da imaginação, mas também a perspicácia intelectual, a profun-

452

didade de visão, a dispositio naturalis ad perspicaciam.60 Entre­ tanto, essa perspicácia distingue-se da penetração analítica do pensador científico uma vez que não olha para além das apa­ rências mas permanece nestas; pelo contrário, não tem a intenção de reduzi-las às suas "causas” mas tenta abrangê-las em si mes­ mas — em sua totalidade e modo de ser imanente — e unifi­ cá-las numa imagem intuitiva completa. Se Baumgarten soube descrever a oposição do espírito artís­ tico e do espírito científico e dar-lhe, pela primeira vez, uma expressão rigorosamente filosófica, foi porque pôde apoiar-se, para essa descrição, numa experiência pessoal íntima e viva. H. von Stein mostrou muito bem em Entstehung der neueren Aesthetik como é falsa e enganadora a idéia de um Baumgarten descobrindo e fundando a estética sistemática movido exclusiva­ mente pelo interesse de um teórico do conhecimento e por uma espécie de pedantismo lógico. Baumgarten parte da contempla­ ção direta das obras de arte e tenta a poesia. No prefácio das suas Meditationes, declara não ter quase passado um dia sem compor um poema. Por escassos que fossem os seus reais dotes poéticos, isso demonstra, pelo menos, que ele sabia perfeitamen­ te, graças a essa ocupação, o que é um "tem a” poético e no que esse difere de um tema lógico. Ele só tinha que considerar a sua própria atividade para descobrir imediatamente essa dife­ rença. E, do ponto de vista da filosofia da linguagem e da esté­ tica, também foi um grande passo, por parte de Baumgarten, ter-se apoiado, em primeiro lugar, para fixar aquela diferença, na forma e na direção própria da fala poética. A fala é o meio onde se encontram as produções científicas e poéticas. Os pen­ samentos que o lógico ou o cientista desenvolvem, assim como os sentimentos e as idéias que o poeta quer despertar em nós, também reclamam a mediação da palavra. Mas um mesmo veí­ culo serve num caso e no outro a objetivos muito diferentes.

453

Para tratar um tema científico, utiliza-se a palavra como signo conceptual e todo o seu conteúdo reduz-se à sua significação abstrata. As palavras apenas desempenham nesse caso, segundo a expressão de Hobbes para designar essa relação, o papel de uma “moeda de conta” do espírito; e, nas formas superiormente elaboradas da língua científica, chegamos a um nível onde são eliminados os últimos vestígios indutivos que ainda se prendem infalivelmente à palavra. O mundo em que nos movimentamos já não é mais o das palavras mas o dos signos, e todo o nosso esforço tende a dar, a cada uma das operações do nosso pensa­ mento, uma expressão unívoca tomada nessa simbólica. A scientia generalis só se aperfeiçoa, como sempre foi sustentado por Leibniz, pela instauração e desenvolvimento da characteristica generalis. O que seria para a ciência, entretanto, o auge de sua perfeição, significaria antes a morte da arte se pensassem em aplicar-lhe esse ideal esvaziando-o de todo conteúdo intuitivo concreto. A nova ciência estética quer evitar o perigo desse em­ pobrecimento; não visa, em absoluto, à perfeição do conheci­ mento mas, mais exatamente, à perfeição do conhecimento "sen­ sitivo”, do conhecimento intuitivo como tal. Aesthetices finis est perfectio cognitionis sensitivae, qua talis. Haec autem esi pulcritudo.01 A força e a grandeza do artista, do verdadeiro poeta, estão em insuflar vida na “frialdade dos signos simbólicos”, na qual se movem tanto a língua da vida cotidiana quanto a língua conceptual da ciência, em conferir-lhe, em suma, a vita cogni­ tionis. As palavras de que ele se serve, não há uma que perma­ neça morta ou vazia; cada uma delas é vivificada, animada do interior, alimentada de um conteúdo intuitivo imediato. Tudo o que é formal desaparece do discurso poético para dar lugar ao figurado da expressão. Vê-se que Baumgarten concebe ainda o poema sob o conceito genérico de “discurso”, mas não é para trair o seu pensamento estético fundamental, para voltar a cair na acusação de retórica: a definição mais exata que ele dá

454

desse "discurso" logo evita o perigo. Oratio sensitiva perfecta est poema:*2 só merece o nome de poema o discurso que possui o poder de uma perfeita expressão sensível, que suscita o apa­ recimento de uma intuição viva e nos retém constantemente na sua presença. Desse modo encontra-se enunciado, na rigorosa forma do pensamento sistemático, um problema que a estética do século XVIII agitou incansavelmente. Essa estética sempre insistira, desde Dubos e os suíços, no caráter intuitivo de toda obra auten­ ticamente poética. Mas só conseguiu dar a esse pensamento uma forma determinada com a ajuda da pintura. O emprego da fór­ mula ut pictura poesis, tão universalmente divulgada antes do Laocoonte, de Lessing, encontra aí sua causa e sua verdadeira raiz. Bodmer escreve suas considerações críticas sobre os "qua­ dros poéticos”, e Breitinger, em Critischen Dichtkunst, impõe-se expressamente o objetivo de "penetrar a fundo na pintura poé­ tica levando em conta a invenção” e de elucidá-la mediante exemplos extraídos dos antigos e dos modernos. Mas uma nova questão apresenta-se então. Será verdadeiramente possível ao poeta rivalizar com o pintor, tentar-nos comunicar com os seus " sinais artificiais” aquilo que o pintor apresenta-nos com a ajuda dos "sinais naturais”? Semelhante rivalidade não se encaminha mais no sentido de uma mistura arbitrária das artes, de uma negação e de uma destruição dos meios estilísticos propriamente poéticos? Baumgarten previne essa confusão ao sublinhar em termos precisos que é por força de um mal-entendido que se exige de uma expressão que ela seja "pictórica”, mal-entendido que consiste em tomar a parte pelo todo. Essa exigência é me­ nos filosófica e racional do que metafórica. Em vez do verda­ deiro gênero, do conceito superior de cognitio sensitiva, apenas foi estabelecida uma de suas espécies, a espécie da plástica pic­ tórica. O poeta não pode nem deve "pintar” com palavras: ele

455

pode e deve despertar no ouvinte, por palavras, representações claras, vivas, baseadas na intuição sensível. Eis o dom poético fundamental: o dom do ingenium venustum, como escreve Baumgarten. Do ponto de vista da história das idéias, essa fórmula lê-se como uma profecia: ela anuncia, 40 anos antes da Crítica do juízo e do tratado de Karl Philipp Moritz, Über die bildende Nachahmung des Schönen (Da imitação plástica do belo), o “pensamento objetivo” de Goethe. O ingenium venustum não quer somente apreender os objetos, classificá-los em espécies e gêneros; ele vive na intuição dos objetos. Essa plenitude (venusta plenitudo) jamais poderá resultar de uma simples montagem (Zusammensetzung) e jamais se deixará resolver em suas partes. O que se exprime nessa espécie de ingenium é, antes, uma ati­ tude, uma impressão espiritual de conjunto que comunica suas próprias cores a tudo o que capta ou absorve. Essa disposição da alma entendida como um todo é a marca do espírito artístico como tal; ela comunica-lhe esse caráter, que não se aprende nem se adquire mas que nasce com o artista. “Ad characterem felicis aesthetici generalem requiritur Aesthetica naturalis connata ( natura, eèfpvía ), dispostitio naturalis animae totius ad pulcre cogitandum, quacum nascitur.” 03 A estética de Baumgarten supera, portanto, uma vez mais, o âmbito da simples lógica. Ela quer ser uma lógica das “facul­ dades de conhecimento inferiores” e quer servir por esse meio não somente a um sistema de filosofia mas, antes de tudo, a uma “doutrina do homem”, uma antropologia. Não é um acaso se Herder reconhece em Baumgarten o “verdadeiro Aristóteles do nosso tempo”.64 É que encontrou nele a marca desse novo ideal de humanidade a que ele próprio consagrou todos os seus esforços. Desde o começo da estética encontramos esse novo imperativo humanista que Baumgarten atribui à filosofia enten­ dida como doutrina da sabedoria. Philosophus homo est inter

456

homines, neque bene tantam humanae cogniíionis partem alie­ nam a se putat,65 A aquisição de talentos particulares, sobretudo o talento de decompor analiticamente os conceitos, pode convir ao erudito, seduzir o especialista, mas não pode servir em nada ao filósofo para a realização da tarefa que ele se impõe. Essa tarefa exige que não se deixe nenhuma terra sem cultivar no campo do saber e que não se deixe secar nenhum dos dons do espírito. O espírito filosófico não deve crer-se acima dos dons da intuição e da imaginação; deve, pelo contrário, impregnar-se deles e colocá-los no mesmo plano que o talento de julgar e de argumentar. Só essa harmonia pode produzir um sistema filo­ sófico completo e interiormente unificado e, sobretudo, o espírito filosófico superiormente encarnado num indivíduo. Sob a sua forma mais alta e mais pura, esse espírito não poderia adquirirse cultivando somente as faculdades do entendimento, cuja ri­ queza elas não esgotam.60 O filósofo, por um dos traços mais profundos do seu pensamento, sua vontade de totalidade, apa­ renta-se ao artista.67 E se não poderia rivalizar com ele para a produção do belo, pode-se arriscar, entretanto, a obter o conhe­ cimento do belo e, graças a esse conhecimento, graças à estética teórica, realizar a sua própria visão do mundo. A nova disciplina é assim não só legitimada pela lógica mas, de certo modo, im­ posta e justificada moralmente. As "belas ciências" não mais constituem, doravante, uma fração do saber mais ou menos autô­ nomo: elas “dão vida ao homem total", fazem dele tudo o que pode e deve se r68 É assim que o problema do belo já não conduz apenas à fundamentação sistemática da estética mas também à de uma nova “antropologia filosófica", e uma idéia muito característica da cultura setecentista viu-se desse modo corroborada. Verifica-se uma vez mais, embora de um outro ponto de vista muito dife­ rente, que uma mudança radical está prestes a consumar-se, no

457

tocante à ordem dos valores no pensamento do século XVIII. É nas relações do entendimento humano com o entendimento divino, do intellectus ectypus ao intellectus archetypus, que essa mudança se impõe com superlativa nitidez. Já não se trata, como nos grandes sistemas filosóficos seiscentistas, como em Malebran* che ou Spinoza, de relacionar simplesmente o finito com o in­ finito e de elminar assim, de um certo modo, a finitude. A tarefa que doravante se impõe ao finito é a de afirmar-se no seu próprio ser em relação a esse valor supremo, de sustentar a sua natureza específica como tal, conhecendo-a como tal. Desde que a fundação da estética teórica sustenta a causa da autonomia do belo, ela anuncia implicitamente, desse modo, que a natureza finita tem fundamentalmente direito ao seu modo de ser autô­ nomo. Entre as posições de princípio que a filosofia alemã her­ dou da doutrina leibniziana, existe uma que nos ensina que o ser divino como tal está essencialmente situado acima da esfera onde devemos investigar o fenômeno do belo, a única onde ele encontra sua residência. Segundo Leibniz, é da essência do co­ nhecimento divino jamais se mover no mundo das representa­ ções sensíveis mas unicamente no das idéias adequadas, ou seja, compreender inteiramente o conjunto que esse conhecimento percebe e, ao mesmo tempo, resolvê-lo em seus últimos elemen­ tos constitutivos.69 Para um modo de conhecimento dessa espé­ cie, o fenômeno do belo deve reduzir-se a nada. Segundo a expressão de Mendelssohn, em Briefen über die Empfindungen (Cartas sobre as sensações), evitemos confundir a "Vênus celeste” que consiste na perfeição, na adequação perfeita de todos os conceitos, com a "Vênus terrestre”, com a beleza. Em suma, o belo, de um ponto de vista puramente metafísico, repousa menos num poder do que numa impotência da alma humana; a um poder cognoscitivo mais perfeito do que o nosso, a experiência do belo não seria acessível nem comunicável.70 Para essa incom­ patibilidade rigorosa da beleza sensível e da perfeição intelectual,

458

Mendelssohn pode valer-se do próprio Baumgarten. Mas neste último, essa incompatibilidade está investida numa outra tendên­ cia de pensamento e acentuada de um modo diferente. Baum­ garten fixa ao belo seus limites mas trata-se dos limites em que ele entende reter o homem. Não se trata, em absoluto, de esca­ par à finitude mas, pelo contrário, de chegar ao finito em todos os sentidos. Ao manter-se aquém do ideal do conhecimento di­ vino, adequado, ele realiza precisamente, portanto, sua natureza e seu destino. Assim se elucida, através da estética de Baum­ garten, nos vínculos estreitos com a filosofia acadêmica alemã, essa mesma idéia que já encontramos por toda parte agindo na constituição da ética, da filosofia da religião, da filosofia do direito e da filosofia política do Século do Iluminismo. Cada vez mais, a época iluminista aprende a renunciar ao “absoluto", no sentido estritamente metafísico, ao ideal de um conhecimento “à imagem do conhecimento divino”, para substituí-lo por um ideal puramente humano, que ela procura constantemente definir com maior exatidão e preencher com mais perfeição. Com essa "humanização” da sensibilidade, uma outra ques­ tão que o século XVIII debateu longamente encontrou também resposta. A filosofia setecentista não defende apenas os direitos da “imaginação” mas também os direitos dos sentidos e da pai­ xão. A doutrina cartesiana, para a qual as paixões eram apenas perturbações da alma (perturbationes animi) marca um nítido recuo; as paixões apresentam-se agora como impulsos vitais, as verdadeiras forças instintivas que estimulam a totalidade da vida da alma e mantêm-na constantemente em atividade.71 Lança-se um apelo geral em prol da emancipação da sensibilidade, sobretudo entre os psicólogos e os moralistas franceses, cuja voz se eleva com uma força crescente. O estoicismo do século XVII que, longe de subsistir como simples doutrina filosófica, surgira na tragédia clássica como tema de criação artística, cede a<*orp

459

o lugar a uma atmosfera puramente epicurista. Esse epicurismo recebe as mais diversas formas e mostra as mais variadas tona­ lidades. Pode deleitar-se, como em Vart de jouir, de La Mettrie, por exemplo, em exaltar o prazer do sentidos em sua nudez ou em elaborar uma técnica sutil de refinamento intelectual e de sublimação contínua das alegrias da existência. Os “libertinos” do século XVII, esse círculo de gente do mundo que se reunia no “Templo” ou nos salões de Ninon de TEnclos, em Paris, ou nos de Madame de Mazarin, em Londres, tinham tentado levar essa arte à sua perfeição. Encontraram em Saint-Évremond seu representante mais refinado e mais significativo.72 Saiu desse círculo toda uma série de manuais que pretendia ser uma ver* dadeira escola do prazer, que queria, num sentido também pu­ ramente teórico, ensinar o modo como o prazer pode ser alcan­ çado, como pode ser indefinidamente intensificado e como esgotá-lo até a última gota.73 O refinamento da volúpia que é assim ensinado possui também, sem a menor dúvida, importân­ cia estética; mas a estética que se desenvolveu nessa base cons­ titui uma simples estética da excitação. Ela aguça ao máximo a receptividade à exicitação sensível mas falta-lhe totalmente o acesso à fonte autêntica da vida artística, ao domínio da espon­ taneidade. É a esse defeito fundamental que responde, precisa­ mente, a estética de Baumgarten. Embora defendendo os direitos da sensibilidade, ela não concebe a libertação pura e simples da sensibilidade de seus vínculos e de seus grilhões: quer levá-la à sua perfeição espiritual. Essa perfeição não se encontra, por certo, no prazer mas na beleza. A beleza é fruição, mas fruição especificamente distinta daquela que provém dos instintos vitais. Não é governada pelo poder exclusivo do deseio mas pelo im­ pulso anímico no sentido da intuição e do conhecimento puro. É ela quem nos abre o caminho, movimento interior e esponta­ neidade pura; graças a ela, penetramos na verdadeira vita com itionis sensitivae. A estética de Baumgarten, que nos abriu há

460

pouco uma perspectiva para a antropologia de Herder, permi­ te-nos agora apreender a importância das Cartas para a edu­ cação estética de Schiller. Baumgarten é o primeiro pensador que se libertou do dilema do "sensualismo” e do "racionalismo”, ao criar uma nova e produtiva síntese entre "razão” e "sensibi­ lidade”. Mas o próprio Baumgarten não atingiu, sem dúvida, de ma­ neira completa, o objetivo teórico que se impusera; não foi até o fim da estrada que tinha claramente diante dos olhos. É ver­ dade que anunciou, desde o começo da sua Estética, que sua obra tinha apenas a ambição de rasgar o caminho para a nova ciência, não o de percorrê-lo inteiramente.74 Mas, além disso, de um ponto de vista puramente subjetivo, ele devia inevita­ velmente enfrentar certos obstáculos, porquanto sua obra foi composta no estilo da Escola e permaneceu-lhe fiel. O pensa­ mento novo que Baumgarten representa não encontrou nele uma forma adequada. Teve que conformar-se em ser comprimido em parágrafos, à maneira das botas espanholas, e parece às vezes ter perdido toda a sua liberdade de movimento nesse aperto. Bem entendido, aquele que sabe ler Baumgarten de modo per­ tinente acaba descobrindo, sob a dura casca, o cerne do seu verdadeiro pensamento, com uma apresentação original que lhe é muito própria. Quando Herder, em suas Schulreden, passa a tratar "da idéia de graça nas escolas”, quem menciona ele em primeiro lugar a fim de ilustrar esse tema senão Baumgarten? Foi a própria graça que compôs a estética do seu bem-amado, o imortal Baumgarten: "Em sua elegante simplicidade e repleta desses traços minúsculos que escapam aos olhos da gente comum e que para os profanos não parecem mais do que nuvens obs­ curas.” 75 De fato, a influência de Baumgarten ficou limitada a um círculo muito reduzido e dificilmente deixou sua marca na história viva da nova poesia alemã. Lessing foi o primeiro a

461

quebrar o tabu. Estava-lhe reservado fazer a síntese do pensa­ mento e da ação, da teoria e da vida, e realizar assim plenamente a exigência da vita cogniíionis de Baumgarten. Tudo o que este considerava pertinente ao caráter do verdadeiro esteta (ad characterem felicis Aestheíici pertinens) encontra-se realizado no espírito de Lessing. Nele reencontram-se todos os elementos da ubertas, da magnitudo, da veritas, da claritas, da certitudo, de copia e da nobilitas encarnados num único ser; nele encontra-se a mais feliz mistura de dispositio acute sentiendi e de dispositio naturalis ad imaginandum, assim como de dispositio ad saporem non publicum, immo delicatum e de dispositio naturalis ad perspicaciam. É essa síntese que dá à obra de Lessing o seu caráter incomparável e que lhe garantiu uma influência igual­ mente incomparável. Quando se tem somente sob os olhos o conteúdo de todos os conceitos estéticos fundamentais de Les­ sing, nada se enxerga que explique suficientemente essa influên­ cia. É que esse conteúdo não foi criado por Lessing mas foi-lhe quase inteiramente preparado. Será difícil encontrar em Lessing um único conceito ou uma única tese que não tenha seu para­ lelo exato na literatura do seu tempo, que não possa extrair-se de alguma maneira dos textos de Baumgarten ou dos suíços, de Shaftesbury, Dubos ou Diderot. Mas seria um equívoco e um desconhecimento total do problema pretender inferir dessa indi­ cação das fontes de Lessing alguma objeção contra a originali­ dade do seu pensamento profundo. A originalidade de Lessing revela-se menos na “invenção” de novos temas de pensamento, desconhecidos até então, do que na ordem e na conexão, na mestria soberana, na distribuição lógica e na escolha desses temas. A esse respeito, Lessing é um lógico de primeira ordem: mas o seu tipo de análise e de seleção, de crítica e de arquitc tônica, representa muito mais, evidentemente, que as conclusões e as deduções de um processo de lógica formal. Suas atenções não se dirigem exclusiva ou seletivpmenente para as relações

462

lógicas dos conceitos como tais, porquanto ele possui o dom de reconduzir cada conceito às suas fontes vivas, de compreendê-lo e de explicá-lo a partir delas. Foi a tarefa que Lessing realizou para os principais conceitos da estética do seu tempo. Os con­ ceitos assim tratados e considerados perdem tudo o que podem comportar de formal; eles enchem-se e impregnam-se de um con­ teúdo concreto e intuitivo. E graças a esse conteúdo estão em condições de intervir diretamente no processo de criação artística. O que é decisivo, na obra de Lessing, não é a matéria dos con­ ceitos como tais mas sua forma, não o seu quid no sentido da definição mas sua transformação intelectual. No cadinho de seu espírito realiza-se passa a passo esse processo de mutação, de metamorfose, de metempsicose dos conceitos. Lessing renunciou ao título de poeta no sentido superior e estrito do termo porque estava consciente de não possuir esse poder mágico originário por meio do qual o poeta, não contente em inventar ou imaginar as formas, confere-lhes uma existência e uma vida próprias. Ele sentia e sabia que esse modo de criação, cujas maiores obras épicas ou dramáticas tinha diante dos olhos, as de Homero ou de Shakespeare, estava-lhe vedado. Mas se Lessing não é pos­ suidor da magia pessoal e profunda de um grande poeta, tocalhe em contrapartida a magia de um pensamento tal como ja­ mais, por assim dizer, houve outro com essa força e essa segurança. Todo conceito, ao penetrar no círculo desse pensa­ mento, logo inicia sua mutação. De simples produtos que eram, os conceitos voltam a ser forças criadoras originais e impulsos espontâneos. Percebemo-los mais como seres acabados, como somatórios de signos determináveis e fixados; percebemos o seu devir e reconhecemos na modalidade desse devir, na maneira como intervêm e nos objetivos longínquos, ainda indecifráveis, que rumo adotam seu valor e sentido próprios. A doutrina de Lessing sobre as relações do gênio e das regras, sobre as fron-

463

teiras da pintura e da poesia, sobre as "sensações mistas", sobre a importância dos signos para a classificação e o sistema das artes; tudo isso reencontramos, sob uma forma puramente dou­ trinal, em várias obras fundamentais da estética do século XVIII. Mas a doutrina não encontra em nenhuma outra parte uma ver­ dadeira força viva, em nenhuma outra parte ela se incorpora e se assimila assim à vida da arte. A crítica de Lessing não pre­ tende apenas agir positivamente ao incentivar e "excitar" a cria­ ção artística, a qual só receberia, em todo caso, essa excitação e esse incitamento do exterior: ela é, na sua própria essência, um momento e um estado imanente dessa criação. Ela é “crítica criadora” no sentido de que está intimamente ligada à criação artística. Por esse caminho Lessing conduz a estética do Iluminismo, embora ele parece recolher-lhe a herança intelectual, muito além dos objetivos e dos limites que ela até então se fixara. Só ele podia ter êxito onde tinham falhado Gottsched e os suí­ ços, Voltaire e Diderot, Shaftesbury e seus discípulos e suces­ sores. Não só ele encerra a estética de uma época mas descobre, projetando-se para além de todos os dados e realidades da arte, as novas "possibilidades” da arte poética. O maior serviço que ele prestou à literatura alemã foi o de ter reconhecido a legiti­ midade dessas "possibilidades” e de ter-lhes preparado o cami­ nho. Entretanto, é subestimar profundamente o papel de Lessing despojar sua obra do seu verdadeiro sentido histórico, conside­ rá-la — como fez uma obra recente sobre a teoria estética de Lessing 76 — um empreendimento nacional, não "europeu”. As relações entre os conceitos gerais de Lessing e as formas e pro­ blemas da literatura alemã do século XVIII são inegáveis; mas foi justamente nesse quadro que Lessing descobriu uma nova visão, um novo aspecto e um novo horizonte do mundo da arte em gerai Goethe disse de Herder que sua importância como historiador e como filósofo da história estribava-se em que ele

464

mergulhara com todas as suas forças na ordem dos fatos, no único, no regular, sem sucumbir nunca diante da força material da realidade dos fatos, da pura matter of fact. O talento funda­ mental que ele sente e proclama em Herder é o da “palingenesia, a arte de fazer da poeira da história uma planta vicejante”.77 Essa frase tem a mesma validade a respeito de Lessing e do caráter próprio de sua obra crítica e estética. Ele possui em relação aos conceitos e teoremas a mesma aptidão que Herder a respeito do mundo da realidade histórica. Basta que lhes toque para que se lhes refira ou critique; distinga-os ou ordene-os, para que nasça espontaneamente do processo lógico uma vida nova, para que os pensamentos passem por uma palingenesia específica. Lessing não procura deliberadamente, de maneira nenhuma, essa novidade; jamais se esforça por obter a origina­ lidade pela originalidade. Pelo contrário, agarra-se com todas as suas forças à tradição; dela possui um conhecimento completo, gosta de seguir-lhe os indícios e os vestígios mais longínquos, de enveredar pelos caminhos mais difíceis e mais obscuros. Mas nem por isso deixa de considerar que a aquisição é mais pre­ ciosa do que a possessão. E é por isso que ele detém, como nenhum outro em sua época, esse poder criador que não vem de uma oposição aos dados do passado mas sente em si mesmo a força e a necessidade de recriar incessantemente a criação “para que ela não se refugie na rigidez”. Lessing liberta as idéias e as teorias da estética do século XVIII desse perigo de rigidez, de inflexibilidade: é esse o mérito que lhe reconheceu de ime* diato a jovem geração. Sabe-se como Coethe descreve a influên­ cia do Laocoonte, de Lessing, em Poesia e verdade: ele vê-se de súbito, pela majestade das “grandiosas e profundas idéias” de Lessing, “arrebatado da região da indigente contemplação para o campo livre do pensamento”. Essa força de arrebatamento que Lessing possui no domínio da poesia, ele a transmitiu a toda

465

a filosofia do século. Embora o século XVIII se defina em grande parte pelo dom de crítica que o impulsiona e o domina, ele deve a Lessing não ter caído numa interpretação puramente negativa da crítica, ter sabido reconduzir a crítica à vida, tê-la amoldado e manejado como ferramenta indispensável à vida, assim como ao desenvolvimento e à constante renovação do espírito.

466

N O TA S 1 Le Bossu, Traité du poeme épique, 1675; para aprofundar as teorias de D Aubignac e Le Bossu, cf. Heinrich von Stein, Die Entstehung der neueren Aesthetik, Stuttgart, 1886, pp. 25 e ss., 64 e ss. 2 Cf. acima pp. 324 e ss. 3 Cf. Descartes a Mersenne, julho de 1641: “Toda essa ciência que talvez se pudesse supor a mais submissa à nossa imaginação, porque ela só considera as grandezas, as figuras e os movimentos, não está de ma­ neira nenhuma baseada em seus fantasmas mas somente nas noções claras e distintas de nosso espírito; o que é sobejamente sabido mesmo por aque­ les que pouco a aprofundaram". Oeuvres, ed. Adam-Tannery, III, p. 395. 4 Cf. acima pp. 138 e ss. 5 Boileau, Epístola IX, Oeuvres, com um comentário de Saint-Surin, Paris, 1821, vol. II, pp. I l l e ss. 6 Tal é a opinião, por exemplo, de Alfred Baeumler, Kants Kritik der Urteilskraft, ihre Geschichte und Systemaiik, Halle, 1923, I, p. 43. Baeumler comete um erro ao dizer que Crousaz foi o primeiro, no seu Traité du beau (1715) a utilizar a fórmula: “variedade reduzida a alguma unidade” num contexto estético. O sentido filosófico dessa fórmula foi inteiramente desenvolvido por Leibniz e estabelecido sistematicamente em referência expressa aos problemas estéticos. Cf. Leibniz, Von der Weisheit, acima pp. 162 e ss. 7 No tocante à limitação da “originalidade" à novidade da “expressão" na estética clássica, cf. por exemplo o livro de Gustave Lanson, Boileau, Paris, 1892, em particular pp. 131 e ss.: “O artista tem sempre que criar uma forma, a mais verdadeira, a mais expressiva, a mais bela, enfim, que puder.” 8 Cf. Condillac, Essai sur Vorigine des connaissances humaines, e seu artigo “La langue des calculs” . 9 Para o desenvolvimento histórico da doutrina das três unidades, cf. por exemplo a exposição de Lanson, Histoire de la littérature fran çaise, 22.a edição, Paris, 1930, pp. 420 e ss. 10 Boileau, Arte poética, Canto III. 11 Arte poética, Canto III. 12 Goethe, Weimarer Ausgabc, vol. 45, p. 174. 13Dubos, op. cit. vol. II, sec. XIX; para o conjunto, cf. vol. II, sec. XII e ss. 14 Cf. acima pp. 81 e ss. 15 Diderot, Essai sur la peinture, cap. VII, Oeuvres (Assézat), X pp. 517 e ss.

467

16 Para mais detalhes» ver H. v. Stein, Die Entstehung der neueren Aesthetik, pp. 87 e ss. 17 [Em francês no original: “O alegórico não é falso e a metáfora tem sua verdade, do mesmo modo que a ficção.” N. do T.] Bouhours, Manière de bien penser dans les ouvrages de Vesprit, p. 12; cf. Baeumler, Kanis Kritik der Urteilskraft, I, pp. 36 e ss. 18 Cf. Baeumler, op. cit., p. 53. 19 Dubos, Réflexions critiques sur la poésie et la peinture, parte I. 20Dubos, op. cit., vol. II, sec. 23. 21 [Em inglês no original: “A beleza não é uma qualidade nas pró­ prias coisas: existe meramente na mente que as contempla, e cada mente percebe uma beleza diferente/* N. do T.] Hume, “Of the standard of taste”, em Essays moral political and literary, ed. Green & Grose, Londres, 1898, p. 269. 22 Hume, op. cit., p. 269. 23 [Em inglês no original: “Aristóteles e Platão, Epicuro e Descartes podem sucessivamente superar-se uns aos outros: mas Terêncio e Virgílio mantêm um domínio universal e indiscutível sobre as mentes dos homens. A filosofia abstrata de Cícero perdeu seu crédito: a veemência de sua oratória ainda é objeto de nossa admiração.1’ N. do T.] Op. cit., p. 280. 24 Cf. Diderot, Cartas para Sophie Volland de 2 de setembro de 1762 e 4 de outubro de 1767; quanto à estética de Diderot, consultar de pre­ ferência a nova e penetrante exposição que dela faz Folkierski, Entre le Classicisme et le Romantisme, étude sur Vesthé tique et les esthéticiens du X VIU* siècle, Paris, 1925, pp. 355 e ss. 25 [Em francês no original: “O que é, pois, o gosto? Uma facilidade adquirida por reiteradas experiências para captar o verdadeiro ou o bom, com a circunstância que o torna bom e de ser pronta e vivamente afetado por ele.*1 N. do T.] Diderot, Essai sur la peinture, cap. VII, Oeuvres (Assézat), X, p. 519. 26 Diderot, op. cit., X, p. 519. 27 [Em francês no original: "O homem belo é aquele a quem a na­ tureza formou para cumprir com a maior desenvoltura possível duas grandes funções: a conservação do indivíduo, a qual se estende a muitas coisas, e a propagação da espécie, que se estende apenas a uma.” N. do T.] Sobre o “utilitarismo” estético de Diderot, cf. Folkierski, op. cit., pp. 383 e ss. 28 Cf. acima pp. 121 e ss. 20 Ver, a esse propósito, a exposição do pensamento de Shaftesbury nas Philosophischen Briefen (Carta« filosóficas), de Schiller; Werke (Cottasche Sàkular-Ausgabe) XI, p. 118.

468

30 Cf. acima p. 374. 31 Cf. acima pp. 396 e ss. 3* Nas penetrantes e meticulosas análises de Alfr. Baeumler sobre a pré-história da Crítica do juízo, esse elemento, por estranho que pareça, passou quase inteiramente despercebido; a doutrina de Shaftesbury ficou em segundo plano e sua importância decisiva nunca foi reconhecida e apreciada nos estudos de Baeumler que, ao mesmo tempo, deve confundir e desordenar as perspectivas históricas e sublinhar os valores segundo um sistema muito especial. Não só a tese de Baeumler apresenta, em termos gerais, a estética alemã do século XVIII como orientada mais para a França que para a Inglaterra mas, além disso, procura introduzir essa tese até na corrente de pensamento que culmina com o conceito de gênio de Lessing e de Kant. “ Muito antes que a influência inglesa se tornasse mais sensível na Alemanha, precisa ele, o conceito de gênio era popular entre os seguidores da escola de Wolff. Quando uma influência estran­ geira entrou em jogo, ela veio da França não da Inglaterra. O livro de Helvétius, De Vesprit (1759), foi uma das obras mais lidas e mais citadas da segunda metade do século. Aí se encontra a definição: 'O espírito é a capacidade de produção criadora dos nossos pensamentos’, e a frase: ‘Gê­ nio supõe sempre invenção’.” (op. cit., p. 162) Mas se verdadeiramente essa influência histórica proveio do livro de Helvétius, dever-se-ia, de um ponto de vista teórico, tê-la na conta de quase um milagre. Se, com efeito, em vez de atermo-nos à letra da definição do gênio por Helvétius, tomarmos em consideração o sentido de sua obra como um todo, verifica-se que a sua “doutrina do espírito” vai inteiramente na contracorrente das idéias essenciais e das premissas lógicas e históricas da estética do gênio. A obra de Helvétius é escrita num espírito perfeitamente sensualista e explora a tese sensualista a fundo, até o ponto de afirmar que o reco­ nhecimento da existência de faculdades intelectuais “superiores”, oriundas do quadro da sensação, assenta numa ilusão, numa presunção de enten­ dimento. Todas essas pretensas faculdades superiores são definitivamente reduzidas à sensação, elemento primitivo da vida anímica. Nenhum es­ critor do século XVIII foi tão longe quanto Helvétius nesse nivelamento sensualista que suprime toda espontaneidade verdadeira do pensamento e toda autonomia do querer, e c precisamente sobre esse ponto que, mes­ mo na França e no círculo de seus amigos mais próximos, a crítica atacou sua obra. Isso torna ainda mais inconcebível que essa obra tenha influen­ ciado a doutrina alemã do gênio e a tenha marcado mais fortemente que os modelos ingleses. Esse movimento não podia, com efeito, desenvolverse e preparar o lugar para seus temas principais e as grandes linhas de sua reflexão sem quebrar todo o aparelho de pensamento teórico sobre o qual se fundamentava a obra de Helvétius. Sem dúvida, Helvétius definiu

469

o gênio pela invenção mas sublinha sempre, em termos precisos, não existir no homem nenhuma faculdade inventiva verdadeira, realmente espontânea e originária, e que aquilo a que chamamos invenção (Erfindung) consiste apenas numa combinação, na escolha e hábil associação de elementos dados. Uma tal associação produz a aparência da novidade. Nada de essencialmente novo podia nascer daí, pois tudo o que aparece dessa maneira nada mais é que um disfarce, a metamorfose do dado da sensação. Discerne-se aí o rigoroso oposto, o contrapé exato de todas as idéias que representam a filosofia alemã do gênio, de todas as exi­ gências que ela quer fazer valer. Nenhuma idéia conduz de Helvétius à idéia de “heautonomia do belo", ao passo que na doutrina de Shaftesbury do “entusiasmo”, do “prazer desinteressado”, do gênio do ho­ mem parente do “gênio do mundo” e seu igual, vamos encontrar, indubitavelmente, os germes da nova concepção que encontrou seu desen­ volvimento e seu fundamento sistemático em Lessing, Herder e Kant. 33 Young, Gedanken über die Originaiwerke (ed. alemã, Leipzig, 1760); para uma exposição mais detalhada da doutrina de Young, ver H. von Stein, op. cit., pp. 136 e ss. 34 Cf. Hutcheson, op. cit., sec. 12 e passim. 35 Dubos, op. cit., sec. I. 30 (Em francês no original: “O sublime da Poesia e da Pintura reside na emoção e no prazer que causam.” N. do T.] Dubos, op. cit., parte II, sec. 1. 37 [Em francês no original: “O verdadeiro meio de conhecer-se o mérito de um poema será sempre consultar a impressão que ele causa” . N. do T.] Dubos, op. cit., parte II, sec. 24. 38 Ibid., parte II, sec. 23; ver acima pp. 426 e ss. 39 Shaftesbury, The moralists, parte 3, sec. 2, “Characteristics” ; 2.® ed., Londres, 1714, II, p. 424. 40 Sobre essa tradução, ver H. v. Stein, op. cit., pp. 4 e ss. 41 [Em inglês no original: “Uma espécie de deleite pleno de horror, uma espécie de tranqüilidade impregnada de terror”. N. do T.] Para o problema como um todo, cf. Burke, A philosophical inquiry into the origin of our ideas of the sublime and beautiful, Londres, 1756, espe­ cialmente pp. 208 e ss.; para a distinção que Burke faz entre pleasure e delight, ver a exposição de Folkierski, Entre le Classlcisme et le Romantisme, pp. 59 e ss. 42 Cf. acima pp. 388 e ss. 43 Cf. acima pp. 25 e ss. 44 Soliloquy or advice to an author, parte 3, sec. 1 (“Characteristics” I, 290).

470

45 Bodmer, Briefwechsel von der Natur des Poetischen Geschmacks (1736). Para mais ampla informação sobre as relações da escola suíça com a filosofia Ieibniz-wolffiana, ver H. v. Stein, op. cit., pp. 279 e ss., 295. 40 Citado por Hettner, Literaturgesch. des achtzehnten Jahrhunderts, 3.a edição, Parte III, Livro I, p. 359. 47 Cf. acima pp. 80 e ss. 48 Zurique, 1740. Breitinger, Critischen Dichtkunst, Zurique, 1740, p. 166; cf. Hettner, op. cit., p. 382. 50 Nos Freymiithigen Nachrichten; cf. H. v. Stein, op. cit., p. 281. 51 À freqüentemente citada e não menos freqüentemente repetida, sem o menor sentido crítico, frase de Lotze, segundo a qual “a estética alemã começou com um explícito desdém de seu objeto” {Gesch. der Aesthetik in Deutschland, p. 12) falta, portanto, a intenção profunda da doutrina de Baumgarten. Já no prefácio do seu primeiro tratado Meditationes Philosophicae de nonnullis ad poema pertinentibus (Halle, 1735), Baumgarten levanta-se contra o preconceito de que é indigno do filósofo ocupar-se de questões de arte. uNunc autem [. . .] materiam eam elegi, quae multis quidem habetitur tenuis et a philosophorum acumine remo­ tíssima, mihi videtur [ . . . ] satis gravis. Ut enim [. . .] hoc ipso philosophiam et poematis pangendi scientiam habitas saepe pro dissitissimis amicissimo junctas connubio ponerem ob oculos, usque ad § 11, in evolvenda poematis et agnatorum terminorum idea teneor etc.” 52 C f. por exemplo Baumgarten, Aesthetica, § 588: “Nec est analogi rationis ordinário primas universi causas, elementa et stamina prima penitius examinare, dum haeret in effectis phaenomenis”. 53 A estética é definida por Baumgarten desde o começo de sua obra como ars analogi rationis, ver Prolegoniena § 1. 54 Cf. Aesthetica § 18: “Pulcritudo cognitionis sensitivae erit universalis consensus cogitationum, quatenus adhuc ab earum ordine et signis abstrahimus, inter se ad unum, qui phaenomenon sit. 05 “Imperium in facultates inferiores poscitur, non tyrannis”, Aesth. § 12. *6 Essa tendência fundamental da nova ciência aparece com especial clareza na exposição de Georg Friedrich Meier; cf. 11Anfangsgründe aller schönen Wissenschaften”, Parte I. Halle, 1748, §§ 5, 13, 16 e ss., e passim. r>1 Aesthetica 5 1: Aesthetica (theoria liberalium artium, gnoscologia inferior ars pulcre cogitandi, ars analogi rationis) est scientia cognitionis sensitivae.

471

60 A respeito da oposição que subsiste entre a “conceptualização individualizante” de Baumgarten e a “conceptualização abstrativa” de Wolff, cf. em particular a exposição de Baeumler, op. cit., pp. 198 e ss. 59 Sobre a distinção entre claridade “intensiva” e “extensiva”, ver em especial as Meditationes de nonnullis ad poema pertinentibus, §§ 13 e ss. 00 Aesthetica, § 14. 01 Aesthetica, § 14. 02 Meditationes Philosophicae de nonnullis ad poema pertinentibus, § 9. 63 Aesthetica, § 28. 64 Herder, Fragment über die Ode, Werke (Suphan), XXXII, p. 83; em especial: “Von Baumgartens Denkart in seinen Schriften”, Werke, XXXII, pp. 178 e ss., e “ Entwurf zu einer Denkschrift auf A. G. Baum­ garten, J. D. Heilmann und Th. Abbt”, Werke, XXXII, pp. 175 e ss. 05 Aesthetica, § 6. ««Ver, em especial, Aesthetica, §§ 41 e ss. 67 Cf. os comentários característicos de Baumgarten, Meditationes § XIV: "Si quis [. . .] in utraque facultatis cognoscitivae parte excellât et quamlibet suo adhibere loco didicerit, nae, illi sine alterius detrimento ad alteram exasciandam incumbet, et Aristotelem, Leibnitium cum sexcentis aliis pallium lauro jungentibus fuisse sentiet prodigia, non miracula” 68 Cf. G. F. Meier, Anfangsgründe aller schönen Wissenschaften, Vol. I, §§ 5, 13, 15, 20 e passim. 60 Cf. Leibniz, Meditationes de cognitione, veritate et ideis, Philos. Schriften (G erhardt), IV, p. 423. 70 Mendelssohn, Briefe über die Empfindungen (1755), Quinta Carta, 71 Cf. acima pp. 149 e ss. 72 Para mais detalhes sobre esse círculo dos “libertinos”, ver Mornet, La pensée française au X V IIIe siècle, Paris, 1929, p. 28. 73 Cf. Saint-Évremond, Oeuvres meslées, Amsterdã, 1706; Rémond le Grec, Agathon ou Dialogue de la volupté (1702); incluído no Recueil de divers écrits, publicado por Saint-Hyacinthe; Baudot de Juilly, Dialogue entre M. M. Patru et D'Ablancourt sur les plaisirs (1700); G. Lanson apresentou uma análise penetrante desses escritos no seu artigo: “Le rôle de l’expérience dans la formation de la philosophie du XVIIIe siècle en France” (Études d'histoire littéraire, Paris, 1930, pp. 164 e ss.). 71 Cf. acima pp. 149 e ss. ™ Herder, Werke (Suphan), XXX, pp. 32 e ss. 70 Cf. Folkierski, Entre le Classicisme et le Romantisme. “O mérito de Lessing” — assim julga Folkierski (op. cit., p. 578) — “é nacional e não europeu.” 77 Goethe a Herder, maio de 1775.

472

Related Documents


More Documents from "IulianButnaru"

February 2021 0
January 2021 3