Curso Wicca - Jan Duarte

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Curso de Wicca 1)

Apresentação do Curso

2) Fundamentos Históricos: a) Bruxaria e Paganismo b) A Inquisição perseguiu bruxas? c) A Wicca é a Antiga Religião da Deusa? 3) Fundamentos Mítico-Religiosos: a) Conceitos iniciais b) As Divindades c) Os Elementais d) A Magia 4) Fundamentos Ritualísticos: a) Instrumentos Mágicos b) A Roda do Ano c) Os Sabás d) Os Esbás e) Estrutura de um ritual f) Iniciação 5) Paralelos: a) Wicca e Xamanismo b) Wicca e Cristianismo c) Wicca e as religiões orientais 6) Fundamentos da prática e da vivência 7) Bibliografia

1)Apresentação do Curso por Jan Duarte Atualmente, existe uma grande quantidade de material sobre Wicca, na Internet, nas livrarias ou mesmo nas bancas de jornal. O crescente interesse no assunto, em especial por um público mais jovem, causou uma multiplicação de fontes de consulta, as quais, talvez pela própria demanda, não passam por um processo de seleção rigoroso antes da sua publicação. Com isso, a qualidade editorial desse material é muitas vezes duvidosa, quando não está, simplesmente, recheado de conceitos superficiais ou definitivamente errôneos. A intenção desse curso que disponibilizamos é justamente proporcionar ao interessado na Wicca, que busca conhecimento sobre o assunto, uma fonte confiável, em especial nos aspectos históricos dessa doutrina, que são comuns e constantemente deturpados. O que pretendemos, portanto, é propiciar uma sólida base teórica e rudimentos da prática, a partir do que o iniciante nesse caminho poderá desenvolver com segurança os seus conhecimentos. Não queremos, no entanto, com essa iniciativa, estabelecer códigos doutrinários ou intrometermo-nos em questões relativas a crenças individuais: isenção e rigor são os princípios que norteiam a formulação desse curso. Dessa forma, desejamos um feliz encontro a todos que se servirem desse material, na esperança que ele venha sanar as dúvidas e questionamentos com que, comumente, temos lidado. Jan Duarte 2)FUNDAMENTOS HISTÓRICOS BRUXARIA E PAGANISMO Nos meios de comunicação, em boa parte da literatura específica sobre o assunto e, em especial, nos conceitos adquiridos pela maioria das pessoas que travam seus primeiros contatos com o tema, as palavras bruxaria e Wicca apresentam-se, se não como sinônimos, pelo menos com significados bastante semelhantes. Embora o uso, no decorrer dos últimos anos, tenha consagrado essa semelhança, chegando mesmo alguns autores a definir Wicca como "a bruxaria moderna", é importante perceber essa designação pode não ser correta e, poderia, mesmo, ser evitada. Existe uma série de motivos para isso, que mostraremos ao longo dessa primeira parte do nosso curso. Nesse primeiro momento, buscaremos apenas mostrar no que consiste a figura da bruxa, dentro das concepções religiosas e míticas da humanidade, e levantar algumas questões acerca dessa figura. A bruxa surge em basicamente todos os folclores: não adianta apelarmos, nesse caso, para as raízes da palavra em português, sua etimologia, para compreendermos o seu significado, pois mesmo a origem desse termo é incerta. O que existe de definitivo, nesse caso, é um conjunto de atributos, de qualidades, que definem um determinado personagem mais do que, simplesmente, o seu nome. Nas inúmeras línguas do mundo, vivas ou mortas, esse personagem ganhou um nome que, ao ser traduzido para o português, resulta "bruxa". Aquele conjunto de atributos, qualidades

ou práticas comuns a essas bruxas de milhares de nomes é, por sua vez, chamado de "bruxaria", em português. No entanto, ao contrário do que se tem querido divulgar ultimamente, esse conjunto de atributos que definem uma bruxa é, desde a mais remota antiguidade e em todo o mundo, caracterizado pela prática do "mal", ou pelo menos de malefícios diversos, através de meios que incluem desde o uso da magia ou de algum conhecimento secreto com propósitos egoístas ou nefastos, até a associação com espíritos malignos ou, mais modernamente, demônios. "Bruxa", portanto, nunca foi um termo utilizado para designar sacerdotes ou sacerdotisas de uma determinada religião, ou pessoas que usavam seus conhecimentos para práticas benfazejas. Sempre foi um termo pejorativo, ou que inspirava temor. As pessoas chamadas de bruxas, ou acusadas de bruxaria, foram, ao longo dos milênios da civilização, justamente os "bodes expiatórios", a quem se atribuíam àqueles malefícios, reais ou imaginários, que afligiam o povo sem que este pudesse compreendê-los. O antropólogo Evans-Pritchard1 nos conta o caso por ele observado entre os Azande, um povo africano. Um jovem havia se ferido no pé ao caminhar pela mata, e essa ferida infeccionara e demorava a cicatrizar. O fato da ferida infeccionar não perturbava o jovem, pois isso fazia parte do seu cotidiano. O que lhe causava espanto, e lhe fazia atribuir aquilo à bruxaria, era justamente o fato dele, habituado a caminhar descalço pela mata, ter se distraído a ponto de ferir o pé. Portanto, os males que fugiam do habitual, certamente eram obra de bruxos. A contraparte da bruxa ou do bruxo, ao longo das eras, foi à figura do "curandeiro", ou do "xamã", ou ainda do mago ou feiticeiro. A estes era atribuído o poder de utilizar, muitas vezes, aqueles mesmos métodos das bruxas, mas para o bem da comunidade. Até mesmo a Inquisição, como veremos em outra parte, fez uma nítida distinção entre "feiticeiros" ou "curandeiros" e bruxas, em um determinado momento da sua existência, tolerando os primeiros e perseguindo as últimas2. Fazendo um apanhado ao longo das diversas tradições religiosas e folclóricas que temos notícia, portanto, podemos dizer que a bruxa foi, sempre, a anti-religiosa, ou anti-sacerdotisa, e que a bruxaria sempre figurou, simbolicamente, como a própria negação da religião, ou daqueles valores associados ao bem-comum. Justamente por causa disso é que o termo foi usado, durante os séculos de perseguição católica, para designar suas vítimas, mas esse é um assunto ao qual retornaremos em outro momento desse curso. Se deixarmos de lado, no entanto, as questões puramente semânticas, poderemos distinguir na literatura um outro aspecto da bruxa: a iniciadora, aquela que, por sua atuação, obriga a mudança. Deve ficar claro, no entanto, que essa interpretação não surge no seio das concepções populares: ela surge através da manipulação poética dessas concepções3. No conjunto dos mitos gregos, por exemplo, que nos foi legado através da poesia épica, temos as figuras de Circe e Medéia. A primeira podia transformar os homens em animais; a segunda, cozinhava as pessoas em seu caldeirão para rejuvenescê-las, ou curá-las. Essas "bruxas" surgem, claramente, como transformadoras, como símbolos da provocação de mudanças internas, inevitáveis para que um obstáculo seja superado ou para que um novo estado de consciência seja alcançado. Ulisses não deixaria jamais a ilha de Circe e retornaria a Ítaca, se não percebesse que seus homens haviam sido transformados em porcos4. Nos contos de fadas, que tomaram forma próxima da que conhecemos na Idade Média, mas cujas raízes são imemoriais, a figura da bruxa é sempre presente e, de forma geral, surge ainda nesse papel de transformadora, ou de provocadora de transformações. Ao confrontar o homem com

seus medos, com seus preconceitos ou com a morte, ela o obriga a "renascer", a transformar-se e seguir em frente com sua missão. Essa confrontação com a morte e conseqüente renascimento está enraizada, no entanto, em outro conjunto de concepções que foram, mais ou menos modernamente, agrupadas e designadas sob o rótulo geral de paganismo. Embora a palavra "pagão" tenha adquirido, já há muito tempo, o significado de "não-cristão", ou simplesmente de "não-batizado", seu significado original refere-se aos habitantes do campo, aos agricultores, cujo conjunto de concepções próprias os distinguia dos habitantes das cidades. Para essas pessoas, a idéia de sazonalidade, de um tempo que envolvia ciclos de morte e renascimento, era muito presente. A confrontação com a morte, na forma de períodos de inverno, ou de seca, era cotidiana, bem como era cotidiana a idéia de que, após esse período de morte aparente, um novo período de vida se seguiria, num ciclo infindável. É necessário compreender, no entanto, que mesmo nessas culturas generalizadas como pagãs, as bruxas tinham o seu papel de confrontação, de desafio, mas era dos sacerdotes, ou do povo, a responsabilidade de cumprir os ritos necessários para garantir o próximo ciclo. As bruxas, nesse caso, eram o que deveria ser enfrentado, o que instigava a mudança, mas era justamente a sua derrota que assegurava a sobrevivência. Elas representavam o individualismo, em sociedades onde a coletividade era fator preponderante para a sobrevivência.Voltaremos, certamente, a esses temas em outros momentos deste curso. No entanto, a partir dessas primeiras noções, podemos já esboçar um contrasenso: a Wicca, ao invés de ser "uma espécie de bruxaria", seria antes uma doutrina que se aproxima dos cultos de manutenção e sazonalidade que, por suas características essenciais, evitavam a bruxaria e seus efeitos. A partir de que princípios, então, se estabeleceu a idéia que a Wicca seria uma "religião da bruxaria", e que aquelas pessoas que foram supliciadas pela Inquisição foram chamadas de bruxas por serem pagãs? Este será, justamente, o assunto do próximo tópico do nosso curso. Por enquanto, devemos reter as duas idéias principais, e refletir sobre elas: paganismo significa manutenção de um equilíbrio natural, e bruxaria é justamente o desafio, a quebra desse equilíbrio. Lançamos, portanto, dois pontos para reflexão, duas questões que deverão continuar presentes durante toda essa primeira parte do curso: A Wicca é "bruxaria" porque rompe com padrões e conceitos pré-estabelecidos, em favor de uma ordem social relativamente distinta? ou A Wicca é "paganismo" porque busca manter padrões e conceitos atemporais, relacionados a valores que são, por natureza, perpétuos? Notas: 1 Evans-Pritchard, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. 2 ver, a esse respeito, Nogueira, Carlos R. F. O Nascimento da Bruxaria. São Paulo: Imaginário, 1995. 3 Em relação à interpretação literária da figura da bruxa, agradeço os esclarecimentos e a pesquisa de Ana Duarte. 4 Existem inúmeras traduções e publicações da Odisséia. Aconselhamos, em especial, a tradução de Carlos Alberto Nunes, publicada pela Ediouro, por ter preservado a métrica do original grego.

A INQUISIÇÃO PERSEGUIU BRUXAS? Encerramos o tópico anterior do nosso curso com duas perguntas que não são, necessariamente, auto-excludentes. Questionamos se a Wicca pode ser considerada como bruxaria, levando em conta que este termo foi empregado para designar práticas que rompiam com padrões préestabelecidos de conduta social, ou se poderia ser chamada de paganismo, uma vez que baseavase em ritos que, ao contrário, destinavam-se a manter uma ordem atemporal, ou seja, preservar os ciclos naturais. As pessoas que se detiveram nessas questões, provavelmente chegaram à conclusão que, em certos casos, ambas as respostas poderiam ser afirmativas e, em outros, pelo menos uma delas seria negativa. Se encararmos a Wicca como "bruxaria", teremos que retirar dessa palavra o cunho malévolo e demoníaco que a ela foi atribuída, conforme mostramos no texto. Se a considerarmos simplesmente como "paganismo", estaríamos deixando de lado uma série de outros fatores que compõem a prática da Wicca. Vê-se, portanto, que ainda não temos elementos suficientes para fazer uma definição clara da Wicca, em relação ao lugar que ela ocupa entre as diversas práticas religiosas da humanidade, ou mesmo em relação ao seu papel social. Nesse tópico, procuraremos fornecer mais alguns elementos que serão úteis para essa definição. Um dos temas mais explorados nos livros de autores populares sobre Wicca, se refere à perseguição movida pela Santa Inquisição aos bruxos e bruxas. Segundo esses autores, desde a Idade Média, inúmeras pessoas foram torturadas e queimadas pela Igreja, acusadas de bruxaria, e estas pessoas nada mais eram do que praticantes de antigas religiões pagãs. Alguns autores, como Laurie Cabot1, chegam a fazer uma verdadeira apologia aos wiccans atuais, colocando estes como "herdeiros dessas mulheres injustiçadas", ou mesmo como responsáveis por "resgatar essa barbaridade cometida contra nossos ancestrais pagãos", ou coisas semelhantes. Sem dúvida alguma, a disseminação dessa idéia serve como ótima peça de propaganda: desperta entusiasmo e paixões. No entanto, ela é intrinsecamente falsa, e deriva de uma fraca compreensão dos mecanismos da Inquisição e de interpretações que, embora tenham tido algum destaque nas primeiras décadas do século XX, são hoje ultrapassadas. Vale a pena, portanto, nos determos um pouco no estudo da Inquisição, para entendermos o que era realmente essa "bruxaria" que ela combateu, quem eram as "bruxas" que ela perseguiu e qual o verdadeiro papel desse fenômeno na Wicca. A Inquisição na Idade Média Ao contrário do que muitos pensam, não houve, durante a Idade Média, praticamente nenhuma perseguição às bruxas pela Inquisição. Essa instituição católica foi criada no século XIII, quando o regime feudal e a própria Idade Média já começavam a demonstrar sinais de declínio, e com objetivos que, a princípio, não incluíam nenhum tipo de opressão à população, em si. O objetivo da Igreja, ao criar a Inquisição, era combater as heresias, que eram dissidências dentro do próprio seio da Igreja. As diversas seitas heréticas, prenunciando de certa forma o movimento de Reforma do século XVI, reclamavam uma maior austeridade da Igreja e, principalmente, uma maior aproximação aos Evangelhos. A maioria dos líderes heréticos eram pessoas cultas, profundamente versados em Teologia, cuja oratória impressionava bastante a população, quando

comparada aos dos padres comuns, geralmente ignorantes. Além disso, sua postura, de retidão moral e desprendimento material, era também profundamente contrastante com a da maioria dos párocos locais, muitos dos quais mantinham amantes e filhos, além de serem, certamente, apreciadores da boa mesa e da fartura. Alguns heréticos, como os cátaros, passaram a ser conhecidos entre o povo como os "perfeitos". As heresias, portanto, representavam um duplo desafio para a Igreja. Granjevam simpatia e atraíam fiéis pela sua representatividade espiritual e, ao mesmo tempo, atraíam a adesão de alguns nobres, senhores feudais, que estavam cansados da intervenção da Igreja nos negócios de Estado, assim como, certamente, cobiçavam as suas terras. Na região da Occitânia, na França, esse processo tomou proporções verdadeiramente alarmantes, com diversos senhores de famílias tradicionais da aristocracia fundiária declarando-se cátaros e protegendo os heréticos. Foi dentro desse contexto que a Inquisição foi criada. Com o propósito de erradicar as heresias, ela chegou a levantar uma cruzada contra os cátaros, que culminou com o cerco de Montségur, onde os últimos que resistiram foram forçados a se render e, em seguida, foram mortos e queimados. No decorrer desse processo, que levou anos, e no período seguinte, quando focos esparsos de resistência herética foram sendo paulatinamente eliminados, os poderes dos inquisidores foram crescendo. Dependendo do local onde atuavam, poderiam ou não estar subordinados às autoridades seculares; da mesma forma, eram razoavelmente livres para promover confisco de bens e de terras, não só dos acusados, mas também de sua família e de quem suspeitava-se ser associado a eles. O ofício de Inquisidor, portanto, era, além de prestigioso, altamente lucrativo. Quando as heresias foram completamente sufocadas, portanto, era interessante para os inquisidores conseguir novos inimigos para combater. Um dos alvos escolhidos foram os judeus. O outro, as bruxas, sendo a bruxaria considerada a maior das heresias. A Idade Moderna e as bruxas Foi somente a partir da segunda metade do século XV que a Inquisição voltou-se contra a bruxaria, num processo que atingiu o seu auge no século XVI e que, no século seguinte, já havia arrefecido bastante. O racionalismo instaurado na Europa a partir do século XVIII deu o golpe fatal nesse processo, embora as últimas leis contra a bruxaria somente tenham sido revogadas em princípios do século XX. Essas leis, no entanto, já visavam mais proteger as pessoas de boa fé da ação de místicos aproveitadores do que, propriamente, combater a bruxaria. É de fins do século XV a obra emblemática dessa fase da chamada "caça a bruxas", o Malleus Maleficarum, conhecido também como "O Martelo das Feiticeiras", dos inquisidores alemães Kramer e Spranger, publicado em 1484. Na sua introdução à edição atual dessa obra2, Rosemarie Muraro faz uma análise bastante elucidativa das causas que motivaram essa verdadeira histeria coletiva, que levou à morte cerca de 30 mil mulheres na Europa Ocidental. Ela aponta, em especial, a profunda misoginia da Igreja, nessa época, como uma das causas principais da perseguição: o Malleus está repleto de citações e trechos que apontam a mulher como fraca e naturalmente propensa a ser tentada e, assim, associar-se ao demônio. Essa misoginia da Igreja, aliás, não era nova, e remonta aos escritos teológicos de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, entre outros. Outra causa apontada por aquela autora é o início da ascenção da classe médica, que buscava desmerecer como superstições toda a sabedoria popular a respeito de ervas e remédios naturais. As parteiras, em especial, foram alvo de dura perseguição e acusadas de provocar a morte dos

bebês para ofertá-los ao demônio. Henrique Carneiro, professor da USP, faz uma análise bastante acurada desse fenômeno, em especial, em sua obra A Igreja, a Medicina e o Amor. Somente essas causas, no entanto, aliadas à possibilidade de ganhos pessoais pelos inquisidores e pela própria Igreja, não são suficientes para explicar completamente porque muitas pessoas foram acusadas de bruxaria por seus pares e, além disso, porque elas, muitas vezes, confessaramse bruxas, dando detalhes dos ritos pretensamente diabólicos que praticavam. Para isso, precisamos entender quem eram essas "bruxas" e o contexto social em que elas viveram. Quem eram as bruxas? Nas primeiras décadas do século XX, a antropóloga e folclorista inglesa Margareth Murray publicou uma série de obras onde defendia que aquelas bruxas que foram queimadas nos séculos de perseguição eram, na verdade, praticantes de antigos ritos pagãos de fertilidade. Seu livro "The Witchcraft Cult in Western Europe" veio a influenciar, posteriormente, a própria criação da Wicca, no sentido que descrevia as bruxas como sacerdotisas de uma religião pagã, cujos deuses haviam sido, pela Igreja, associados ao demônio. Embora não totalmente desprovida de valor, essa obra tinha sérios problemas, que foram imediatamente apontados por outros estudiosos. As que se seguiram, porém, continham verdadeiras excentricidades e absurdos, tais como afirmar que toda uma dinastia inglesa tinha sido formada por sacerdotes dessa "religião da bruxaria" e que Joana D'Arc havia sido vítima de um sacrifício ritual. Mrs. Murray, portanto, acabou por ser ridicularizada e seu trabalho, embora contivesse alguns poucos elementos pertinentes, deixado de lado. Não se pode afirmar, portanto, que as bruxas mortas pela inquisição eram, de qualquer maneira, seguidoras de uma religião pré-cristã, e que por isso tenham sido perseguidas. Na verdade, ainda na Idade Média, toda a população da Europa Ocidental era já profundamente cristã - a conversão dos últimos povos "bárbaros" já se iniciara desde o século IX, com Carlos Magno, e foi levada a cabo efetivamente, inclusive com o uso da força. Na verdade, o pensamento cristão e o próprio cristianismo são fatores determinantes da mentalidade da época medieval. Portanto, todas as mulheres (e homens) que caíram nas garras da Inquisição eram, indubitavelmente, cristãs. O que havia, certamente, e que já fora apontado por vários outros estudiosos antes de Margareth Murray, como Carlo Ginzburg ou mesmo Jacob Grimm, era uma sobrevivência de determinados costumes pagãos, no seio da população, como aliás existem até hoje, mas de forma alguma uma sobrevivência do paganismo, como um conjunto. O professor Carlos Roberto Nogueira3, aliás, eminente pesquisador da bruxaria e da Inquisição na Espanha, nos aponta que a própria Inquisição, por orientação papal, tendia a ser tolerante com aquelas populações que conservavam antigos ritos pagãos, indicando que estas o faziam apenas por terem tido uma "cristianização deficiente". No entanto, o rigor se aplicava plenamente quando os acusados de bruxaria eram cristãos por formação e costumes, pois estes eram, na verdade, os supremos heréticos: haviam negado a Deus e à sua religião e entregado-se, voluntariamente, ao conluio com o demônio. Mas quem eram essas pessoas? Laura de Mello e Souza, ainda que atendo-se unicamente ao contexto das colônias portuguesas, nós dá claros exemplos4. Eram, sobretudo, pessoas que despertavam a ira, a inveja e a maledicência de seus conterrâneos, ou por serem mulheres sensuais, ou ainda por serem pessoas excêntricas, e, sobretudo, por serem pessoas que usavam de um certo sincretismo religioso, geralmente fruto da ignorância, em suas práticas comuns. Essa pesquisadora nos cita, entre muitos outros, o caso de um certo José Januário da Silva, que

confessou voluntariamente à Inquisição que usava, entre outras práticas, padres-nossos e avesmarias para curar insolações. Cita-nos, igualmente, o caso de um padre condenado pela Inquisição como bruxo, cujas "curas milagrosas" geralmente incluíam variadas práticas sexuais com suas pacientes. As pessoas, portanto, condenadas pela Inquisição, passavam longe da figura romântica de sacerdotes e sacerdotisas de cultos secretos, preservados desde tempos neolíticos através de uma suposta tradição oral. Ao contrário, eram pessoas comuns, geralmente iletradas e ignorantes, profundamente cristãs, que por algum motivo despertavam a ira de seus semelhantes, que lhes atribuíam toda sorte de malefícios, ou eram assaltadas por terríveis crises de consciência, frente aquilo que, no seu imaginário, contrariava a doutrina que deviam professar. Os motivos da ira ou das crises de consciência, invariavelmente, gravitavam em torno da sexualidade, de diferenças raciais, ou do sincretismo religioso. As "bruxas", nesse contexto, e seus vôos em vassouras, suas reuniões em lugares ermos - os sabás - e seus constantes e animalescos contatos com o demônio, foram unicamente fruto da imaginação do povo e da doutrina da Igreja. Nunca existiram. Sua "realidade" foi somente estabelecida face um determinado contexto social que, como em várias outras épocas e lugares da História, as produziu. O porquê das bruxas Em 1770, os índios Anasazi, do Novo México, chacinaram uma aldeia vizinha sob a acusação de bruxaria. Era a única aldeia Anasazi que havia se convertido ao cristianismo. Tendo a sua pátria invadida, seus costumes confrontados com aqueles dos brancos e a sua própria sobrevivência cultural ameaçada, essa foi à reação daquele povo5. Da mesma maneira, nos séculos XV e XVI, a Europa presenciava as profundas mudanças que iriam conduzi-la do feudalismo à formação do Estado Moderno; da absoluta participação da Igreja nos assuntos relacionados ao governo até a seu progressivo afastamento dessa esfera de influência; da ilha constituída por uma Europa continental centrada e cercada pelos mares e pelos infiéis até uma Europa que confrontava, pela primeira vez, novas terras e novos povos. Num campo paralelo, os grandes pensadores europeus, liderados por uma elite erudita italiana, que nunca se afastara da influência direta de Roma, começava a contrapor aos valores cristãos uma série de valores pagãos, herdados da Antiguidade Clássica, por intermédio do movimento que se chamou de Humanismo. Por um outro lado, uma série de crises intestinas, guerras e pestes, assolavam essa mesma Europa. Além disso, alguns religiosos atreviam-se a atentar contra a própria Igreja, iniciando o movimento conhecido como Reforma. Nesse contexto de crise, onde uma série de valores tradicionais arraigados ao longo de, pelo menos, cinco séculos, eram colocados em xeque, a Europa reagiu da forma que era esperada: criou as suas bruxas e procurou matá-las. Tudo que recendesse, ainda que longinquamente, a uma forma de desafio, de transformação desses valores, foi taxado de bruxaria. Onde se via uma reminiscência de paganismo, ou de sincretismo religioso, que era uma ameaça à integridade cristã, isso era bruxaria. Onde se via uma forma de sexualidade explícita, em oposição a uma moral rígida, isso era bruxaria. Todas as fantásticas e aterradoras descrições de rituais que, a partir desse ponto, foram feitas pelos acusados e condenados, nada mais eram do que aquilo que os seus acusadores queriam ouvir. As orgias dos sabás, os sacrifícios humanos, a presença física do Diabo nesses sabás, na forma de um homem, de um cachorro ou de um bode, as relações sexuais antinatura, as práticas

mágicas que destruíam colheitas, adoeciam as mulheres, tornavam os homens impotentes, tudo isso existiu apenas na imaginação dos inquisidores. No entanto, foi colocado na boca das suas vítimas da forma mais violenta possível, com requintes de crueldade e horror. As pessoas submetidas a esse tratamento confessariam de bom grado qualquer coisa, por mais absurda que fosse, unicamente para serem livradas da tortura e poderem usufruir, o mais rápido possível, da morte. A Inquisição, portanto, nunca perseguiu bruxas, como alguns manuais de Wicca querem fazer crer. A Inquisição criou as suas próprias bruxas e criou, mesmo, a figura da bruxa e da bruxaria como foi legada à posteridade, a partir dos seus próprios temores. Nesse ponto, a criação romântica foi muitas vezes suplantada pela realidade: mais do que simples sacerdotes e sacerdotisas de um culto mal interpretado e estigmatizado, as bruxas foram representantes da mudança, dos tempos que estavam por vir. Essas sacerdotisas da religião do inconformismo, pobres, ignorantes e, sobretudo, inocentes, foram à parcela popular de um tempo que, enquanto as queimava, glorificou nomes como o de Erasmo de Rotterdam e de Thomas More. Esse é o ponto para reflexão que surge desse tópico do nosso curso. As idéias e valores vistos naquelas bruxas, mortas pela Inquisição, sobreviveram como símbolos de mudanças sociais, ao passo que a própria instituição eclesiástica da Inquisição, embora não tenha acabado, mas apenas mudado de nome, perdeu a maior parte da sua força e representatividade. Portanto, o que serve melhor aos atuais praticantes da Wicca? Serem os "descendentes" de supostos praticantes de um culto que nunca existiu, ou serem, de alguma forma, participantes nas mudanças que se fazem necessárias em nossa sociedade? Notas: 1

Cabot, Laurie. O Poder da Bruxa. São Paulo: Campus, 1990. Muraro, Rosemarie. Uma Breve Introdução Histórica in Kramer, Heinrich e Sprenger, James. Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1995. 3 ver, a respeito, Nogueira, Carlos Roberto F. O Nascimento da Bruxaria. São Paulo: Imaginário, 1995. 4 Souza, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 5 ver, a esse respeito, meu artigo intitulado Sacrifícios Humanos, Canibalismo e Bruxaria, na seção "Os Textos" do Mito e Magia. 2

A WICCA É A ANTIGA RELIGIÃO DA DEUSA? Seria inútil começarmos a falar diretamente nos conceitos e práticas da Wicca sem que determinadas meias-verdades, crendices e mistificações fossem abordadas e esclarecidas. Dessa maneira, embora essa primeira parte do nosso curso possa ter o demérito de desfazer algumas ilusões ou, de qualquer forma, diminuir o glamour intrínseco à bruxaria, ela é extremamente necessária para que seja atribuída uma dimensão correta aos conceitos que desenvolveremos em outras partes. No tópico anterior, aludimos ao fato que a "bruxaria" que foi perseguida pela Igreja, durante a Idade Moderna, foi um fenômeno criado pela Igreja e pela população, e pouco ou nada tinha de paganismo, bem como não tinha relação alguma com a prática de qualquer religião estranha ao cristianismo. No entanto, nos resta aludir ainda a uma argumentação freqüente nas obras sobre o assunto: a de que a Wicca seria o "resgate" de uma Antiga Religião da Deusa, que seria corrente na Europa Ocidental pré-cristã, tendo mesmo raízes neolíticas. A "Religião da Deusa" Antes de nos situarmos no espaço e entrarmos no contexto da Europa, cabe percorrermos o tempo e tentar localizar, seja em que parte do mundo for, a existência de uma "Religião da Deusa", específica, que se enquadre, mesmo que vagamente, naqueles preceitos que se diz serem resgatados pela Wicca. Na verdade, as únicas evidências que apontam para um culto exclusivo a uma divindade de caráter feminino, seja na forma de "Deusa-Terra" ou mesmo de "Deusa-Mãe", datam do período conhecido como Paleolítico, que se estende, de forma mais ou menos flexível, desde 100.000 até 10.000 anos a.C. Evidentemente, não existe nenhum tipo de registro escrito desse longo período de tempo, e tudo que se tem de "positivo" a respeito da religiosidade humana dessa época são simples conjecturas, apoiadas em algumas poucas evidências arqueológicas, como estatuetas de pedra e barro, a exemplo da famosa Vênus de Willendorf. O que eram essas estátuas, como eram utilizadas e em que contexto, ninguém pode precisar. Esta é uma época pré-agrícola. O ser humano dependia, em tudo, da caça e da colheita, ou seja: dos frutos da terra, daquilo que lhe era oferecido pela natureza. A partir disso, supõe-se que se tenha desenvolvido um culto da fertilidade, que estaria, portanto, vinculado à figura feminina. A Terra - entendida como "todo o lugar", ou seja, terra e céu - era a divindade central (ou talvez única) desse culto e, por ser a fonte da vida, a geradora, foi associada à mulher. A partir do Neolítico, quando a agricultura começa a se desenvolver e os processos da fecundação e da concepção passam a ser melhor entendidos pelo ser humano, já não se pode traçar com exatidão a existência de um culto matriarcal exclusivo. Registros que datam da Civilização Minóica (cerca de 4000 a.C.), em Creta, mostram um certo privilégio de uma divindade feminina, uma "senhora das serpentes", mas surgem ao lado da representação de virilidade do touro sagrado. Em épocas posteriores e em outras culturas, a figura de uma Deusa-Mãe, autogerada e criadora da vida, permanecerá existindo, mas sempre secundada pela figura de um deus-consorte,

geralmente associado ao céu estrelado, ou ainda por um filho-divino, que a fecunda, morre e torna a nascer dela, numa representação dos ciclos naturais. Dessa forma, uma "religião da Grande Deusa", completamente centrada na figura feminina, se algum dia existiu, foi numa época suficientemente remota para que toda noção dela tenha desaparecido, sendo substituída por um culto dos opostos, onde a dualidade Deusa-Deus dava a tônica da manutenção da vida. Hoje em dia, mesmo entre povos que mantém um estilo de vida aproximado ao que se poderia supor existir há milhares de anos atrás, como os aborígines australianos, não se encontram nenhum resquício dessa unilateralidade. A Europa Pré-Cristã Cumpre definir, antes de mais nada, o que seria essa "Europa Pré-Cristã", antes de analisarmos diretamente a presença de uma religião orientada para a figura de uma Deusa, nesse local. A idéia de "pré-cristã" é bastante vaga, mas podemos situá-la, talvez, em todo o período que antecede o século IV d.C., quando o Cristianismo foi adotado como religião oficial do Império Romano. Nesse momento, no entanto, este Império já está em plena decadência, e pouco depois iria desmoronar, dando início ao que chamamos de Idade Média. Se formos nos estender, portanto, a todo o período que vai do início da Idade do Bronze até fins do Império Romano, teríamos pelo menos 4500 anos de História para considerar como abrangendo essa "Europa Pré-Cristã". No entanto, talvez apenas nos últimos dois mil anos desse período é que podemos falar, efetivamente, em Europa Ocidental. Antes disso, o foco da civilização européia girava em torno do mar Egeu e do Mediterrâneo, com gregos e, posteriormente, romanos. A religião grega - ao menos sob a forma que foi chamada de mitologia - é bastante conhecida, mas, de uma forma geral, bem pouco compreendida. Como nos mostra Jean Pierre Vernant 1, não havia entre os gregos nada que se aproximasse de um "texto sagrado", ou ao menos uma classe sacerdotal. Não havia nenhum tipo de centralização ou um culto unificado, que incluísse todas as inúmeras divindades descritas nos mitos, mas antes cultos locais, de divindades tutelares que protegiam a pólis ou daquelas que eram especialmente reverenciadas pelos camponeses. Entre estes últimos, existiam figuras de deusas-mãe, como Deméter, mas seu culto era dividido com deuses extremamente populares, como Dioniso. Entre as famílias aristocráticas, por outro lado, era comum o culto aos heróis, dos quais essas famílias diziam descender. Na verdade, tanto a Grécia quanto Roma, que lhe herdou em grande parte os mitos, não constituíram sociedades propícias para o desenvolvimento de qualquer tipo de religião matrifocal dominante. Pelo contrário, os valores dominantes nessas sociedades eram essencialmente valores masculinos, o que gerou, inclusive, o anacronismo costumeiro de definir gregos e romanos como "machistas". Devemos nos voltar, portanto, para os povos que, através de migrações e invasões, vieram a ocupar o oeste da Europa, sendo que alguns desses povos resistiram ao cristianismo até o século X d.C. Desses povos, que foram agrupados sob o título geral de "bárbaros", podemos destacar os Celtas e os povos nórdicos. No entanto, cairemos aqui num novo impasse. Embora muito tenha se escrito sobre os Celtas e o papel que a mulher ocupava em sua sociedade, quase nada se conhece de efetivo sobre sua religião, em especial da religião dos Celtas do continente. O que se conhece, principalmente, é o relato tardio de Júlio César, no seu De Bello Gallico, que é uma interpretação romana daquilo que ele supunha ser a religião celta. Se alguma coisa se recuperou da religião dos Celtas

insulares, isso foi, igualmente, devido à cristianização tardia da Irlanda, da interpretação que os missionários católicos fizeram dessa religião e, principalmente, da tradição literária da Irlanda e do País de Gales que é, por sua vez, uma coleção de poesias épicas, similares às gregas, e não um texto canônico. De qualquer forma, não há nenhuma garantia que os Celtas do continente tivessem crenças semelhantes, e muito menos os mesmos deuses, daqueles da ilhas. Mircea Eliade2 nos mostra a dificuldade em estabelecer ou reconstituir esse panteão e, indo além, demonstra os diversos paralelos entre o que nos restou da religião celta e as religiões do Vale do Indo. A presença das deusas-mães, nesse caso, está atestada e possui um caráter mágico-simbólico incontestável, mas nenhum tipo de supremacia específica. Barry Cunliffe3, professor de Arqueologia Européia da Universidade de Oxford, ao descrever o sistema religioso dos Celtas, nos fala, ainda, na formidável tropa de divindades femininas que aparecem sob vários nomes, como consortes de deuses tribais masculinos, sendo protetoras de nascentes e rios, ou simplesmente como 'mãesdivinas'. Entre os povos do norte, especialmente os Germanos, o que havia era uma religião guerreira, onde ao menos surge a idéia de uma deusa primordial, nos seus mitos da criação4, mitos estes que, a exemplo dos outros povos que citamos, são encontrados igualmente na forma de poesia épica e não de textos sagrados. Suas deusas ocupam lugares secundários frente os poderosos Odin, Thor, Loki e outros, e algum destaque é obtido apenas por Freyja. Na verdade, nessa mitologia nórdica, ao menos é mencionado um local de morada após a morte para algum outro membro da sociedade a não ser os guerreiros. Voltaremos, no entanto, aos Celtas, Germanos e outros povos que ocuparam a Europa Ocidental no período pré-cristão, bem como à sua mitologia e religião, em outros momentos desse curso, bastando, nesse ponto, a constatação que não existia, entre eles, nenhum tipo de religião exclusivamente matriarcal. Então, o que é a Wicca? Como vimos, é insustentável a tese de que a Wicca seja um "resgate" de uma Antiga Religião da Deusa em voga na Europa pré-cristã, e muito menos uma "sobrevivência" desta suposta religião, uma vez que não existe nenhum indício que indique que ela sequer tenha existido. Indiscutivelmente, no entanto, há uma série de costumes e superstições que faziam parte do cotidiano dos povos que vieram a habitar a Europa Ocidental, sendo que alguns destas tradições devem provavelmente remontar a épocas ainda anteriores e outras terras, de onde esses povos se originaram. Muito disso sobreviveu ao longo das eras no seio da população, da mesma maneira que, hoje em dia, fazem parte do nosso imaginário popular e dos nossos costumes diversas sabedorias que nos foram legadas pelas etnias que formaram nossa população. Algumas dessas antigas tradições européias foram, mesmo, incorporadas pelo Cristianismo e transformadas em parte integrante desta doutrina, ao longo, principalmente, da Idade Média, num processo de fusão e sincretismo. Portanto houve, como já falamos em nosso tópico sobre a Inquisição, uma sobrevivência de tradições pagãs, mas não uma sobrevivência do paganismo. Em meados da década de 1950, um funcionário da Coroa Britânica chamado Gerald Brosseau Gardner lançou, em um breve intervalo, dois livros, chamados "Witchcraft Today" e "The Meaning of Witchcraft". Nesses livros, aparece pela primeira vez a palavra Wicca, e a idéia que ela seria um resgate e uma preservação da antiga religião pré-cristã da Europa. Pouco se sabe de concreto a respeito da vida de Gardner, a não ser aquilo que pode ser comprovado por registros,

ou seja, o fato dele ter vivido muitos anos no Oriente como funcionário britânico e, posteriormente ao lançamento dos seus livros, alguns dos seus atos públicos. As opiniões sobre ele são polêmicas. Houve quem o chamasse de "grande mestre", bem como muitos o chamavam de "dirty old man" (velho sujo). Mas suas alegações de ter sido iniciado numa espécie de "bruxaria tradicional" por uma certa "Old Dorothy", e coisas semelhantes, foram confirmadas apenas pelos seus admiradores e seguidores. O que se pode afirmar, a partir de seus livros, é que ele utilizou amplamente duas referências, embora nem sempre citando as fontes: um livro do folclorista amador inglês George Leland, chamado "Aradia, o Evangelho das Bruxas" e as obras da antropóloga e folclorista inglesa Margareth Murray, que, à época de Gardner, já estavam completamente desacreditadas. O primeiro livro, de Leland, data de 1899 e é igualmente obscuro em suas fontes. Trata de uma suposta tradição de feiticeiras italianas, as Strega, que lhe teria sido confiada por uma dessas mulheres (cuja existência real não pode ser estabelecida). Quanto à obra de Margareth Murray, já nos referimos a ela no tópico anterior deste curso. Deve-se acrescentar, ainda, que, na época que Gardner escreveu, havia na Inglaterra e na França um enorme interesse por ocultismo, em suas mais variadas vertentes. Esse interesse já não se comparava com a verdadeira febre de ocultismo das décadas anteriores, que deu origem a algumas ordens herméticas, seitas satânicas e personagens como Mme. Blavatsky e Alesteir Crowley, mas ainda era vivo o suficiente para promover a notoriedade quase imediata de tudo que se relacionasse ao "oculto" ou ao "mágico". Prenunciava-se, igualmente, nesses tempos em que o continente europeu ainda se recuperava dos traumas da Segunda Guerra, aquilo que viria, na década seguinte, constituir a contracultura e o seu interesse premente por uma religiosidade alternativa. Todos esses fatores, no entanto, podem ser considerados de menor importância. Se extrapolarmos livremente o que se retira do trabalho original de Gardner, talvez seja lícito chegar às seguintes conclusões: sendo uma pessoa naturalmente interessada por folclore e misticismo, Gardner provavelmente descobriu, ao longo de seus anos no Oriente, várias similitudes entre as tradições orientais e as lendas e mitos das Ilhas Britânicas. A partir disso, ele costurou tais elementos, junto com ritos e símbolos tirados da tradição esotérica ocidental e da Magia Cerimonial para, como era comum na sua época, criar o seu próprio sistema. Acrescentou a esse sistema, a Wicca, outros elementos que faziam parte de seu cotidiano e dos modismos culturais de sua época, como o naturismo. Isso não bastaria, no entanto, para dar a esse sistema a autenticidade, ou a autoridade necessária e, por isso, ele se utilizou de um recurso que já havia, antes, sido usado por vários outros autores e que era, igualmente, comum: atribuiu a esse sistema uma antiguidade que o validaria, a partir das teses de Murray e outros. Com isso, no entanto, ele conseguiu atribuir à sua obra um caráter muito mais completo, em termos de doutrina, e muito mais acessível, do que vários de seus contemporâneos e antecessores. Não descambou para escândalos públicos, ou para o culto aberto ao Demônio, como Alesteir Crowley, antes dele, ou Anton La Vey, depois. Pelo contrário, criou um sistema de culto às divindades naturais, que tirava o caráter diabólico do demônio, resgatava a figura das bruxas como mulheres incompreendidas e trazia regras explícitas que garantiam que seus seguidores não podiam praticar o mal. Igualmente, não se isolou em uma sociedade extensivamente hermética, acessível a uns poucos escolhidos, mas deixou em aberto a possibilidade de um culto livre, ao qual todos poderiam ter acesso. A obra de seus seguidores, revisitadores e mesmo de seus plagiadores, no entanto, nem sempre fez jus aos princípios que parecem ter norteado a sua criação. A grande maioria dos livros que se

seguiram começaram a esvaziar a Wicca de seus princípios doutrinários e locupletá-la de aspectos simplesmente populescos ou panfletários. O culto à natureza, o caráter ctônico das divindades, começou a ser transformado em uma proposta simplesmente ecológica ou recheada por lendas que passaram a ser encaradas como realidade. O papel da magia como autotransformadora, já longamente descrito e discutido desde os alquimistas, passou a um caráter puramente prático e imediatista, onde a forma, a receita, era privilegiada em relação ao contexto. O destaque dado às deusas-mães, representantes da fecundidade e da perenidade da Natureza, foi apropriado por grupos feministas e contraposto à figura do Deus-Pai. A idéia romântica e figurativa das bruxas supliciadas transformou-se em acusação e repúdio ao cristianismo. Portanto, podemos afirmar com uma certa segurança, que a Wicca é um sistema filosófico, mágico-religioso, criado em meados do século XX. Sua antiguidade, como reminiscência de uma antiga religião européia, certamente está dispersa entre algumas de suas práticas, mas foi, antes de mais nada, provavelmente um recurso utilizado pelo seu autor, de forma consciente ou não, para justificar a sua criação. Podemos ainda dizer que muito do que se diz e faz a seu respeito foi acrescentado posteriormente e, ao passo que algumas coisas vieram a completá-lo, a grande maioria acabou por desvirtuar a intenção original, partindo para uma interpretação simplista dos seus elementos constitutivos. Dessa forma, encerrando essa nossa parte voltada a uma visão histórica, que foi necessariamente breve e até certo ponto superficial, resta dizer que procuraremos, no decorrer desse curso, desenvolver o que é nossa visão pessoal da Wicca, certamente interpretando e acrescentando elementos, mas buscando, ao máximo, deixar de lado e desmistificar aquelas noções que não são úteis ou produtivas para a compreendermos como um sistema, antes de mais nada, válido. Notas: 1

Vernant, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1992. Eliade, Mircea. História das Idéias e Crenças Religiosas, T.II, vol.1. São Paulo: Zahar, 1978. 3 Cunliffe, Barry. The Ancient Celts. New York: Oxford University Press, 1997. 4 Eliade, Mircea. opus cit. 2

3)

Fundamentos

Mítico-Religiosos:

CONCEITOS INICIAIS Antes de começarmos a descrever e nos aprofundar naquilo que chamamos de fundamentos mítico-religiosos da Wicca, uma pergunta talvez precise ser respondida, pergunta esta que, aliás, surge constantemente e é debatida nos diversos meios onde se trata do assunto: a Wicca, afinal, é uma religião? Ao contrário do que possa parecer, não é fácil nem simples responder essa pergunta, e ela, fatalmente, conduz à outra: em que consiste, enfim, uma religião? Utilizando uma única fonte bastante conhecida1, encontramos pelos menos três definições de religião que cabem aos nossos propósitos: "crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada(s) como criadora(s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s)"; "a manifestação de tal crença por meio de doutrina e ritual próprios, que envolvem, em geral, preceitos éticos" e "qualquer filiação a um sistema específico de pensamento ou crença que envolve uma posição filosófica, ética, metafísica, etc." Levando em conta que tais definições possam ser alternativas válidas para se classificar algum conjunto de idéias, ou uma prática específica, como religião, podemos tentar, então, confrontá-las com alguns fundamentos da Wicca, o que talvez venha a responder a nossa pergunta e, igualmente, possa servir para que esses fundamentos sejam gradualmente apresentados. A primeira definição, portanto, é a crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada(s) como criadora(s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s). Uma crença é, antes de mais nada, uma concordância com algo em que se tem fé. Portanto, ela é muito mais subjetiva do que objetiva. Na Wicca, assume-se a existência de determinadas forças, que permeiam o mundo material, mas que não são, de forma alguma, consideradas como sobrenaturais. Pelo contrário, essas forças seriam inerentes à natureza, e da mesma qualidade das leis físicas que a regem, em nada se distinguindo dessas últimas exceto pelo fato que, em parte, não tenham sido ainda objeto explícito de comprovação científica. Tais forças são, afinal, modelos que explicam determinados fatos, o que não as diferencia da hipótese inicial de qualquer proposição da ciência: afinal, uma hipótese é uma crença em que algo pode ser explicado de uma determinada maneira. No entanto, o corpo da definição que reproduzimos inclui a idéia que tais forças devem ser adoradas e obedecidas, o que envolve uma idéia de personificação. Para que se deva "adorar e obedecer" alguma coisa, está implícita a idéia que o contrário seria possível, que poderíamos "desprezar" ou "desobedecer" essa mesma coisa. Nesse caso, teríamos aqui um contra-senso, a partir da proposição que fizemos acima: podemos até mesmo não levar em consideração a explicação científica para a Lei da Gravitação Universal, ou considerá-la errada, mas seria impossível "desprezar" a ação da gravidade, ou ainda "desobedecer" essa Lei. Dessa maneira, embora possamos afirmar que a Wicca se baseia na crença em determinadas forças, que por serem inerentes à natureza, certamente participaram da sua criação, ela não se baseia na idéia que essas forças sejam personificadas ou misteriosas, e portanto que precisem ser

obedecidas ou adoradas. Não há, na Wicca, o estabelecimento de uma hierarquia que submeta o ser humano à ação e ao escrutínio de entidades sobrenaturais e super-humanas, mas antes a idéia de que o ser humano não se distingue do todo da natureza e da criação, não estando, portanto, submetido, mas antes interagindo com qualquer parte desse todo. A conseqüência direta desta nossa primeira proposição é que, ao contrário da maioria das doutrinas religiosas, não existe na Wicca nenhum tipo de conseqüência caso tais forças sejam, simplesmente, ignoradas. Nenhum tipo de "castigo" se abate sobre quem não segue os seus preceitos, nem nenhum tipo de "elite de bem-aventurados" é determinada entre aqueles que os seguem. Alguém pode, por toda a vida, ignorar a existência da Lei da Gravitação, mas essa pessoa não deixará de cair se tropeçar, exatamente como o físico que passar toda a sua vida estudando as causas e conseqüências dessa lei. A segunda definição que escolhemos é a manifestação de tal crença por meio de doutrina e ritual próprios, que envolvem, em geral, preceitos éticos. Já estabelecemos acima que a idéia de crença, na Wicca, está ligada à existência de determinadas forças que são inerentes à natureza. Essa idéia, em si, já estabelece a existência de uma doutrina, entendida essa palavra como um conjunto de princípios que servem de base a um sistema qualquer. Existe, efetivamente, uma doutrina wiccan, uma vez que existe toda uma série de idéias e proposições que complementam e desenvolvem essa nossa primeira proposição, e essa doutrina, em seu conjunto, lhe é própria. Como qualquer outro sistema, no entanto, a idéia de propriedade não inclui necessariamente a idéia de exclusividade, ou mesmo de originalidade. Ainda usando como comparação às ciências físicas, a Mecânica Quântica não poderia ter sido desenvolvida sem a base estabelecida pela Mecânica Clássica e por outros ramos do conhecimento. Assim, embora ela possua um corpo de concepções que lhe são próprias, existe igualmente em sua base um outro corpo de proposições que serviram à sua formação. Assim, embora a Wicca possua o seu corpo doutrinário próprio, este corpo é composto, certamente, de proposições que são comuns a diversas outras manifestações, religiosas ou não, sendo que o que cabe levar em consideração é a síntese que a Wicca faz dessas proposições. Já no campo da maioria das religiões estabelecidas, o que se vê é uma necessidade quase absoluta de originalidade, de afirmação de seus princípios como tendo sido "revelados", bem como, muitas vezes, da afirmação desses princípios como sendo os únicos válidos. Podemos afirmar com bastante segurança, no entanto, que isso nada mais é que resultado de um profundo desconhecimento das próprias bases que formam uma determinada religião, seja ela qual for. Aquele que resolve praticar a Wicca, portanto, deve ter em mente que a sua doutrina não é, de forma alguma, exclusivista, bem como não pressupõe nenhum tipo de ascendência sobre qualquer outra. Ao contrário, a ele cabe compreender e distinguir os diversos conceitos (bem como a sua origem), que vieram a dar origem a Wicca e, além disso, ter bastante clara a noção que esses conceitos não se prendem a nenhum tipo de revelação, a não ser se tomarmos essa palavra no sentido de "o que se revela" a partir da própria natureza e existência, mas nunca no sentido "do que é revelado". A partir desse corpo doutrinário, estabelece-se certamente um ritual, mas ainda aqui é preciso dar um sentido restrito a essa palavra. Seria melhor encará-la, no caso da Wicca, como um conjunto de práticas que são estabelecidas e consagradas pelo uso, mas de forma alguma como um conjunto de normas fixas, estabelecidas canonicamente, e que precisam ser seguidas de forma estrita e imutável. Ao contrário, existem inúmeras variações pessoais (ou grupais) a partir de um conjunto básico de preceitos que, assim como a doutrina, foram recolhidos e adaptados de várias fontes. Cumpre ressaltar que, havendo na Wicca um conceito de crença bastante geral (como vimos) e que, assim, comporta e acolhe inúmeras variantes de

crenças pessoais específicas, necessariamente haverá, também, uma rica gama de práticas pessoais que se adaptem a essas variações. Agora, podemos depreender desses conceitos doutrinários e rituais a existência de preceitos éticos? Por ética, normalmente se entende uma análise qualitativa de valores, em especial daquilo que se julga certo ou errado, ou ainda do que constituiria o bem ou o mal. Podemos dizer, sem medo de errar, que o estabelecimento dessas oposições, em especial sob a forma de normas de conduta, é a tônica da imensa maioria das religiões estabelecidas, e constitui, mesmo, parte indissociável do seu corpo doutrinário. Se levarmos em consideração, no entanto, a época de formação da maioria dessas religiões e o estágio de civilização (se é que esse conceito é válido) dos povos que as criaram, torna-se óbvia a necessidade de estabelecer, a partir de uma autoridade divina, uma série de regras de convivência que, política e economicamente, servissem aos propósitos desses povos. A religião, ao sustentar esses princípios éticos, foi determinante e influiu diretamente na formação das sociedades, ao longo de inúmeras eras da existência do ser humano. Tais regras chegaram, inclusive, a caracterizar determinados povos e determinadas sociedades, e a lhes dar identidade própria. Sem elas, seria a barbárie, na acepção estrita da palavra, e a indistinção. No entanto, em nossa sociedade, existe uma real necessidade da interferência de princípios religiosos na sua regulamentação? O Estado, e em especial o Estado democrático, não construiu e constrói, por si só, o conjunto de normas que regulamentam o seu funcionamento e a convivência entre os seus cidadãos? Poderíamos mesmo dizer que, sendo o "Estado" uma entidade incorpórea, formado a princípio pela soma das vontades daquelas pessoas e instituições que o compõem, é muito mais isento para estabelecer essas normas do que grupos formados por relativamente poucas pessoas, e sujeitos a concepções baseadas em crenças que podem, inclusive, ser arbitrárias. Não se pode dizer, portanto, que a doutrina e o ritual próprios da Wicca resulte ou estabeleça princípios éticos distintos daqueles que, de qualquer forma, já fazem parte da sociedade em que seus praticantes estão inseridos. Suas regras, se é que existem, são as mesmas que possibilitam a coexistência de quaisquer indivíduos dentro de um grupo social, e não decorrem, em absoluto, da doutrina, mas sim da convivência. Por estar, por princípio, intimamente ligada à natureza, ou ainda resultar desta, não cabe a Wicca fazer distinções que a própria natureza não faz, como entre bem e mal, mas antes aceitar uma noção direta de conseqüências irrefutáveis de toda e qualquer atitude humana, seja qual for o instituto que regule essas conseqüências - natural ou humano. É bastante comum encontrarmos, em qualquer livro popular sobre Wicca, a afirmação que "bruxos (sic) são pessoas comuns". Embora essa afirmação não seja feita com essa intenção, eu concordaria com ela e a complementaria: por serem pessoas comuns, inseridas em outros grupos sociais e atividades que regulamentam a sua conduta social, elas não precisam de nenhum tipo de contribuição específica da sua doutrina ou da sua prática como wiccans para participarem desses grupos. Evidentemente, isso implica numa responsabilidade específica: uma pessoa que não possua uma consciência formada de sua cidadania, de seu papel social, dificilmente poderá contar com sua opção doutrinária para formar essa consciência. Aqueles que precisam da religião como uma espécie de "muleta social", não devem optar pela Wicca. Passemos então à última definição que escolhemos para religião: qualquer filiação a um sistema específico de pensamento ou crença que envolve uma posição filosófica, ética, metafísica, etc. Essa definição pouco acrescenta àquilo que já discutimos. Ser wiccan, sem dúvida, significa filiar-se a um sistema específico que, como já vimos, envolve uma forma de pensamento, num sentido amplo, e alguma forma de crença, num sentido mais restrito. Esse sistema, sem dúvida,

envolve um posicionamento filosófico: aliás, creio não existir nenhuma dúvida que o que temos feito, até agora, é uma discussão filosófica, em sua essência, desse sistema. Envolve igualmente um posicionamento ético, ainda que não envolva uma interferência direta na ética. Envolve, certamente, uma posição metafísica, uma vez que envolve conhecimentos racionais, e não conhecimentos revelados, e busca, de qualquer forma, uma visão do mundo que vai além das aparências, ou que expande essas aparências para uma percepção do que seria o real. Portanto, embora certamente vaga e abrangente, essa última definição seria a que mais se adequaria para definir a Wicca como uma religião. No entanto, devemos refletir que essa definição poderia igualmente transformar quase qualquer coisa em religião, em especial a ciência, que da mesma forma é um sistema de pensamento baseado em posições específicas, que incluem aquelas citadas.Nesse ponto, restaria-nos ainda fazer algumas indagações, que se referem principalmente ao porquê da necessidade de considerar a Wicca como religião, se levarmos em consideração todas as limitações que apontamos acima, em relação à observância estrita das várias definições dessa palavra. Esta necessidade não estaria centrada na idéia, profundamente arraigada em cada um de nós e constantemente reforçada pela sociedade em que estamos inseridos, de que "precisamos ter uma religião"? Vale lembrar a frase de Sêneca, o Jovem (4 a.C. - 65 d.C.): "A religião é vista pelas pessoas comuns como verdadeira, pelos inteligentes como falsa, e pelos governantes como útil"; ou ainda Napoleão Bonaparte: "Religião é uma coisa excelente para manter as pessoas comuns quietas". Dessa maneira, ao insistirmos em ver um caráter "religioso" em um determinado sistema, não estaremos apenas reproduzindo mecanismos que acabam por sujeitar as pessoas a verdades préestabelecidas, a mecanismos de controle social, e à submissão a certos indivíduos ou classes? Quando nos referimos, em especial, a um sistema recentemente criado - ainda em formação, na verdade - como a Wicca, estabelecer a priori que ele é uma "religião", ao adotá-lo, não é simplesmente uma forma de ir ao encontro da aspiração social de que sejamos religiosos, de que tenhamos religião? Nesse caso, não estaremos simplesmente substituindo os velhos conceitos por outros, colocando-os exatamente no mesmo nível e, com isso, correndo o risco de tirar desses novos conceitos à idéia primordial de liberdade de pensamento? Tais questões precisam ser colocadas. Afinal, qualquer pessoa que se debruce sobre o estudo da Wicca, seja em que nível for, na esperança de encontrar uma religião alternativa, não encontrará nada nela além de uma religião. O seu objetivo já estará definindo, desde o início, aquilo que ela conseguirá atingir, e ela estará irremediavelmente presa à sua necessidade de adotar uma religião. Dessa forma, qualquer outra experiência, qualquer outro significado, somente será alcançado por essa pessoa por acaso, no decorrer de um processo que, por si, já está limitado - e mais provavelmente não será alcançado nunca. Tal pessoa, que "busca uma religião", pode indistintamente procurar qualquer uma das religiões estabelecidas, uma vez que o que ela quer é tornar-se religiosa, e nada além disso. Vale a pena, portanto, refletir nos conceitos que apresentamos ao longo desse tópico. Ao discutirmos o significado da palavra religião, apresentamos uma série de pressupostos que podem aproximar a Wicca dessa palavra e, igualmente, afastá-la. A resposta, a interpretação desses pressupostos é, certamente, pessoal, e será igualmente um espelho do que cada pessoa espera encontrar. Notas: 1

Para todas as referências semânticas desse texto, foram utilizadas definições retiradas do Novo

Dicionário Aurélio - Século XXI, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, na sua versão eletrônica produzida pela Lexykon Informática Ltda. (1999). AS DIVINDADES É bastante difícil tentar apreciar a noção de "divindades", dentro de um contexto ligado a Wicca. A maioria das obras mais modernas (ou populares) sobre o assunto concentra-se no obscuro panteão celta ou adota um panteísmo que acaba por provocar mais confusões do que uma definição clara do que (ou de quem) seriam os "deuses" wiccans. Essa fixação nos Celtas - em especial no panteão insular que, como vimos anteriormente, é o melhor conhecido - ou ainda uma simples adoração a deusas e deuses de diversas culturas e de diferentes momentos da história humana, apreciados fora de seu contexto original e tomados apenas pelas suas "características", parece resultar, afinal, de uma compreensão incompleta das obras dos precursores da Wicca. Se olharmos, por exemplo, a totalidade da obra de Gardner, não encontraremos referência direta a nenhuma divindade em especial, ou ao menos uma referência a um culto direto a algum tipo de divindade. Vagamente, ele cita um culto a uma antiga Deusa-Mãe e, mesmo quando faz uma referência direta à Diana, em seu "A Bruxaria Hoje"1, ele reitera que "o problema de investigar tal caso é saber se o culto é antigo ou se tem origem recente", e ainda que "o nome Diana parece invenção moderna". Na obra do casal Janet e Stewart Farrar, que consideramos de especial importância pela sua análise e interpretação dos temas pertinentes a Wicca, a polaridade deusa-deus é especialmente privilegiada, mas de forma arquetípica: existem inúmeras representações alegóricas divinas desses dois princípios, que traduzem de forma mais ou menos regular o tema solar e o tema da fertilidade natural. Tais temas, segundo eles, teriam origens pré-históricas e figuras como Osíris, Dioniso e Cristo seriam "apenas algumas de suas formas posteriores"2. A idéia de que as divindades da Wicca seriam apenas figurações de conceitos que transcendem a imagem geralmente aceita de divindades, como potestades celestes com existência própria e sobre-humana, aparece bem clara em uma outra obra clássica da Wicca, o "Os Mistérios Wiccanos"3, de Raven Grimassi. Embora tenhamos algumas sérias restrições a diversas passagens desse livro, o autor parece ir direto ao ponto quando apresenta os diversos deuses e deusas existentes na história humana como criações, que "precisam de nós tanto quanto precisamos deles". Indo além, Grimassi coloca a idéia de um "Deus-Pai" e de uma "Deusa-Mãe" como arquétipos, preexistentes à criação de qualquer um dos deuses individualizados. Há, portanto, uma quebra entre os principais teóricos da Wicca e as alusões que fazem alguns autores que a popularizaram. Enquanto os primeiros apóiam-se em bases que, afinal, possuem um certo arcabouço antropológico, e buscam estabelecer uma reverência (e não um culto, propriamente dito) a determinados princípios naturais, os segundos imaginam a Wicca como uma religião que, basicamente, segue as mesmas regras de adoração e subserviência a divindades personificadas que interferem diretamente na vida humana. Estes, em última análise, apenas tornam a Wicca um substitutivo plausível para as grandes religiões estabelecidas, uma forma de culto paralelo, ou ainda de culto antagônico e, assim, podem, quando muito, satisfazer a necessidade de pessoas que buscam outras divindades que não aquelas que lhes foram legadas pela tradição familiar, mas que em nada diferem dessas.

Os Aspectos da Divindade Antes de mais nada, é necessário entender que a Wicca, em seus princípios, deixa um espaço enorme e abrangente para as crenças pessoais. Nesse espaço, embora seja exigido daquele que procura se denominar "bruxo" um mínimo de consciência crítica, cabe toda uma série de concepções que necessariamente precisam ser respeitadas. Não se pode falar em dogma, pois se utilizarmos esse conceito, estaremos negando uma das principais características da magia, que é ser uma forma de arte. Na arte não há dogmas, pois na arte não há inabaláveis e intocáveis questões de fé: seria impossível argumentar que Picasso pintava errado pois o certo seria a forma de Rembrandt interpretar a realidade. Se cem fotos forem tiradas de uma mesma árvore, por cem pessoas diferentes, teremos cem fotos diferentes, mas uma única árvore. Alguns prezarão o tronco, outros as folhas, uma única folha ou flor, um detalhe de uma raiz, o conjunto encaixado na paisagem; uns buscarão os verdes e marrons vibrantes, outros a luz e a sombra em preto e branco; haverá outros ainda que, ao ver a árvore, esquecerão a máquina fotográfica e preferirão simplesmente sentar-se sob seu tronco e aproveitar a sua sombra. E ainda haverá quem, ao ver a árvore, pense em derrubá-la e transformar sua madeira em pequenos palitos de fósforo, pois a árvore é livre e é de todos, pois a árvore pode ser sentida e aproveitada por cada um como bem entender, ao passo que palitos são acondicionados em pequenas caixas e vendidos. Ainda abusando do exemplo, a única realidade que pode ser apontada é que, enquanto for uma única árvore, mesmo assim ela será milhões de percepções. Se transformada em palitos de fósforo e acondicionada em caixinhas, ela deixa de ser árvore e passa a ser objeto. Existem religiões que se baseiam na idéia da existência absoluta da divindade, enquanto outras há em que essa noção é secundária. O budismo, por exemplo, é uma religião em que a existência da divindade é secundária: existem "deuses", mas estes são finitos e mortais, ao passo que a criação é infinita e constante, e os homens são regidos não pelos deuses, mas pelas suas próprias ações. Exatamente por causa disso, muita discussão ainda existe (entre os não-budistas, é claro) se o budismo seria ou não uma verdadeira religião, ou seria antes uma filosofia. Já no caso da Wicca, temos visto um recrudescimento da noção que ela seria uma "religião da Deusa". Já discutimos anteriormente a noção de que essa religião matrifocal centralizadora nunca existiu, em momento algum da história da humanidade e, portanto, se atribuirmos um caráter matrifocal a Wicca estaremos, sim, criando uma nova religião. No entanto, embora a palavra "Deusa" tenha se tornado de uso corrente entre os adeptos da bruxaria, o que vem se observando é um uso dessa palavra tão limitador quanto o uso da palavra "Deus" entre os cristãos. Ao criarse uma divindade suprema feminina, à qual - admitindo-se a idéia que o paganismo é politeísta os demais deuses e os seres humanos estariam subordinados, estaria-se novamente afastando essa divindade dos Homens. A Deusa nada mais seria, dessa forma, que uma espécie de Jeová de saias. Qual seria, portanto, a noção de divindade, ou de divindades, dentro da Wicca? A

Deusa

e

o

Deus

Nas palavras do bruxo americano A. J. Drew4, "wiccans acreditam na divindade tanto quanto outras pessoas acreditam numa árvore. A árvore é real, podemos tocá-la, subir nela e cair dela. Não é preciso fé para saber que ela existe. Ela está lá." Essa colocação é bastante feliz, visto que revela um modo de pensar na divindade, dentro da

Wicca: não é necessário, realmente, ter fé na existência da divindade, visto que ela está presente em tudo que nos cerca e em nós mesmos. Cada coisa é parte da divindade e, portanto, a nossa existência é prova suficiente da existência da divindade. No entanto, devemos compreender essa divindade e, dessa maneira, ela precisa ser representada de alguma forma. Seria impossível compreender algo de tal forma abrangente se não fosse por intermédio de representações, que traduzissem os princípios criadores, geradores e reprodutivos da natureza para uma escala que fosse possível de abarcar pelo ser humano. Assim, costuma-se dividir esse princípio divino em dois aspectos complementares: a Deusa e o Deus. A Deusa é a própria representação da vida, do ato gerador e criador. Desde a mais remota antiguidade, a capacidade de conceber a vida é tida como atributo feminino, mesmo porque o papel do homem na concepção dos filhos foi apenas muito mais tarde compreendido. Nada mais natural, portanto, que a Criação fosse atribuída a uma Grande Mãe, uma Senhora que dera à luz todas as coisas que existem e que, a partir de seu próprio corpo, mantém todas as coisas vivas5. A Deusa é, dessa forma, o próprio princípio vital. Ela é a Terra que, emergindo do informe caos primordial, manifesta-se na Natureza em seu ciclo de nascimento, crescimento, morte e renascimento. Também dessa forma, ela apresenta-se em três aspectos, cada um deles representando uma fase específica desse ciclo. A Deusa é a Donzela, representando tudo que está por nascer. É a luz da aurora anunciando um novo dia que chega; as flores da primavera, repletas do pólen que gerará novos frutos; o frescor de um riacho, recolhendo as águas que se tornarão um rio caudaloso. A Donzela é a juventude, a Natureza vestida de seus mais fortes atributos sexuais. Ela é também a Caçadora, a representação da força necessária à conservação das espécies. A Deusa é também a Mãe, em outro momento. Apresenta-se aqui como a nutridora, farta em frutos que alimentam o Homem e todas as espécies. É a maturação, o Verão pleno de calor e acolhimento. A colheita farta e o amadurecer dos frutos. E, por fim, a Deusa é a Anciã, representação do Inverno que se instaura, da chegada da morte e, também, da sabedoria que se acumula com o passar dos anos. É a Senhora da Magia e da transformação, pois tudo que morre há de renascer, como a própria natureza, ao chegar uma nova Primavera. Dessa forma, a Senhora da Morte é também a Senhora do Renascimento. Além dessa associação clara com as estações do ano, os três aspectos da Deusa associam-se também com as fases da Lua. A Donzela abrange desde a Lua Nova até a Crescente, a Mãe da Crescente à Cheia e a Anciã, da Cheia à Minguante. Muitas religiões ancestrais possuíam uma deusa feminina primordial, normalmente considerada a divindade criadora do universo. Esta deusa normalmente, nessas mitologias, gerara a si própria ou existira desde sempre. Posteriormente, esta deusa gerara outros deuses, inclusive, em alguns casos, aquele que viria a ser seu consorte. Na cosmogonia grega, expressa em Hesíodo, por exemplo, Gaîa, a Terra, surge de Kháos, o abismo primordial, e é, de certa forma, o seu oposto: é a primeira coisa com forma que surge do informe, do não-organizado. Ela é, evidentemente, feminina, ao passo que Kháos é uma palavra neutra, assexuada. Em seguida, surge uma outra personagem assexuada, Éros, que expressa o "amor primordial", como força que coloca o universo em movimento, e não como atração entre os sexos. No entanto, é a partir de Gaîa que vai surgir o primeiro personagem masculino, Óuranos, ou o céu estrelado, réplica da Terra que se deita sobre ela, para gerar os seus demais filhos6. Seguindo essa tradição, a Wicca vê o Deus como filho e consorte da Deusa. Tal visão, entretanto, veio dar margem a interpretações equivocadas, nas quais a Deusa seria, de alguma maneira, superior ao Deus, ou que o culto ao aspecto masculino da divindade seria

acessório. Na verdade, o que existe é uma espécie de duoteísmo, a crença em duas divindades básicas, referindo-se ao aspecto gerador representado pela Deusa e ao aspecto fertilizador representado pelo Deus - sendo conseqüentemente uma dualidade cooperativa. Dessa forma, não existe competição ou prevalência de um dos aspectos - masculino ou feminino - sendo ambos igualmente importantes, necessários e, mais ainda, indispensáveis um ao outro. Da mesma maneira que a Deusa, o Deus guarda diversas faces, que também podem ser associadas ao eterno ciclo de nascimento, crescimento, morte e renascimento da natureza. Ao passo que a Deusa mostra suas faces nas variações da vegetação e do comportamento dos animais, e nas fases da Lua, o Deus as mostra no caminho do Sol ao longo do ano. Assim, nos primeiros dias da Primavera, ainda tênue no céu, o Sol, nos mostra a face do Deus menino, que venceu o frio do Inverno e renasce. Conforme essa estação avança, o Sol, ganhando vigor e permanecendo cada vez mais tempo no céu, nos mostra a face do Deus jovem, pronto a fertilizar a Terra para que esta gere seus frutos. Com a chegada do Verão, o Deus atinge a sua maturidade e torna-se o guerreiro, o protetor e o provedor. Temos os dias mais longos do ano, o tempo de maior permanência do sol no céu e, a partir daí, sua tendência será diminuir essa permanência. No Outono, com o encurtar dos dias, o Deus começa a assumir sua face de ancião para que, nas longas noites de Inverno, ele finalmente morra para renascer na próxima primavera. Este ciclo de morte e renascimento, espelhando a natureza no decorrer de um ano, ficará mais claro quando falarmos, num próximo momento, da Roda do Ano. No entanto, a descrição feita é suficiente para entender que, independentemente de denominações que as diversas culturas possam ter adotado, a Deusa e o Deus, ao contrário de existirem apartados da vida na Terra, estão profundamente ligados a ela. Aliás, poderíamos dizer que as figuras da Deusa e do Deus são a própria representação da vida, com o seu delicado equilíbrio e com a relação de interdependência de cada um dos seus aspectos, um não podendo existir de forma adequada, ou de nenhuma forma, sem o outro. A idéia do Deus como filho da Deusa, portanto, nasce unicamente do princípio básico que tudo aquilo que existe deve nascer, e que a capacidade de gerar é tipicamente feminina. Tal noção é mítica e simbólica, e pode ser levada em conta apenas nesse sentido, caso não se queira cair numa regressão infinita. Aliás, toda tentativa de se explicar a Criação, seja ela mítica, simbólica ou científica, cairá necessariamente nessa regressão infinita. Perguntar-se o que existia antes da Deusa, ou antes de Deus, ou antes de Kháos, ou mesmo antes do Big-Bang, apenas nos empurrará para ela. A idéia central aqui é o estabelecimento do equilíbrio, da organização do mundo conhecido, quando o filho se torna amante, estabelecendo a capacidade da vida de se auto-sustentar, num ciclo infindável. Ao falarmos na dualidade Deusa-Deus, enfim, é importante que esta dualidade não seja antropomorfizada. Representarmos cada uma dessas faces como um deus ou uma deusa específica sempre dará uma idéia limitada, ou a visão de apenas uma parte de um conceito muito mais abrangente. Mesmo se voltarmos ao exemplo dado da cosmogonia grega, com o casal Gaîa - Óuranos, Terra e Céu, veremos que essas divindades primordiais não possuíam forma, nem nenhum tipo de semelhança com os seres humanos, sendo simplesmente conceitos: embora permeassem a vida humana, assim como toda a vida na Terra, não possuíam um papel ativo, de interferência consciente nos assuntos humanos. Na verdade, a idéia de equilíbrio representado pela adoção do conceito Deusa-Deus somente poderia ser figurada (mesmo assim de forma incompleta) se usássemos como exemplo algum grande ecossistema, como o da floresta tropical. Cada folha que cai, cada animal que morre, reintegra-se ao ciclo da vida, transforma-se em sustento para cada ser que vive ou viverá. E a

vida seria impossível se a continuação desse ciclo for interrompida ou gravemente alterada.

A

Existência

dos

Deuses

Específicos

Vemos, portanto, que a noção básica de divindade, dentro da Wicca, é bastante diversa daquela adotada em outras tradições religiosas ou mesmo filosóficas. Não se pode, aqui, falar em um deus tonitruante, que vigia, agracia e pune os seres humanos, a partir de uma morada divina situada em algum ponto da Terra ou do céu, de acordo com seus próprios desígnios. O que temos aqui é uma noção que, embora seja muito mais difusa, é igualmente muito mais complexa, e que pode ser figurada a partir da dualidade Deusa-Deus que descrevemos acima, mas ainda assim de forma incompleta. No entanto, se uma pessoa com algum conhecimento de mitologia, mas leigo em matéria de Wicca, for consultar qualquer literatura específica sobre Wicca, irá deparar, certamente, com uma profusão de nomes de deuses e deusas de diversos panteões, evocados de acordo com a conveniência. A conclusão dessa pessoa certamente seria a de que wiccans cultuam, veneram, ou crêem em antigas divindades, algumas pertencentes a outras religiões vivas (como o hinduísmo ou o budismo) e outras pertencentes a religiões mortas (como os deuses celtas, gregos e nórdicos), ou ainda que fazem uma mistura indistinta desses diversos panteões. Essa conclusão, no entanto, seria equivocada, embora seja justo admitir que mesmo entre os wiccans ela não seja incomum. Seria importante distinguir, portanto, rito de crença: o rito da Wicca baseia-se nas figuras da Deusa e do Deus, que podem ser figurados por uma infinidade de nomes. No entanto, a crença da Wicca baseia-se na afirmação, encontrável em qualquer livro sobre o assunto, de que todas as deusas são a Deusa e todos os deuses são o Deus, ou seja, de que qualquer divindade específica que se use para figurar esses dois aspectos centrais da divindade é, simbolicamente, válida. Tomando-se essas duas afirmativas em conjunto - referentes a rito e crença - poder-se-ia justificar o uso de uma profusão de nomes de deuses e deusas, desde que, independentemente do nome, haja a compreensão básica de que tais deuses e deusas são apenas manifestações de determinados aspectos da divindade. Assim, por exemplo, ao celebrar-se um ritual de fertilidade, poder-se-ia usar como parâmetro à figura da deusa Eostre, deusa saxônica associada a esse aspecto, sem que isso queira necessariamente dizer que se cultua ou venera-se essa deusa, individualmente. Naquele momento e com aquele objetivo, a figura do feminino é eficazmente representada pelos atributos conferidos àquela deusa, então o seu nome é utilizado, a partir de uma escolha pessoal, para que esse simbolismo específico, esses atributos, não se percam em meio a uma infinidade de outros símbolos e atributos que fazem parte do aspecto feminino da divindade. Ou seja: a fertilidade, em sua imagem da primavera que se instala nos campos, é apenas um dos muitos aspectos da Deusa, que por sua vez é apenas uma polaridade do todo. Mas, nesse momento, é este aspecto que nos interessa para a realização daquele ritual em especial e, dessa forma, a "nomeamos" de Eostre, como poderíamos nomear de Perséfone ou de tantas outras "divindades individuais" que possuem as mesmas características simbólicas.

Esse é um enfoque. Mas permanece o nosso subtítulo, visto que ainda pode pairar a pergunta: a Wicca aceita a existência individual dessas divindades? Para os wiccans, tais deuses e deusas são apenas nomes que representam determinadas coisas ou são seres reais? Embora, nesse ponto, caiamos em um terreno que é profundamente marcado por concepções e crenças pessoais, vale fazermos algumas considerações para que possamos chegar a uma concepção mais abrangente do assunto. Admitamos o seguinte: a divindade - aquele princípio criador e mantenedor da vida ao qual nos referimos - existe. Esse princípio manifesta-se em todas as coisas vivas e inanimadas, porém de formas diferentes. Para acessarmos esse princípio, essa divindade intangível, são necessários canais de comunicação, formas tangíveis que permitam, que possibilitem o nosso contato com ela, uma vez que ela é ampla o suficiente para ser incompreensível. Esses canais seriam os diversos deuses. Dessa forma, o ser humano, ao criar - sim, o termo é esse - inúmeros deuses e deusas, criou formas de pensamento que lhe possibilitavam acessar, ou compreender melhor, a Divindade. A crença das pessoas nesses deuses e deusas manteve abertos os canais de comunicação entre o ser humano e a divindade, nas suas múltiplas facetas, dessa forma individualizadas. Mas a Divindade em si não é a mera reunião de inúmeras figuras com forma humana, divinizadas ou superlativadas, mas sim o amálgama dessas figuras, perdendo as características humanas. O ser humano, portanto, que é criação da divindade, pois é parte do universo e guarda em si a polaridade representada pela Deusa e pelo Deus, é igualmente criador de formas simbólicas, cuja "divindade" é atenuada até o ponto que ele as possa compreender. Essas formas simbólicas são por ele chamadas "deuses", e lhe possibilitam a comunicação com a Divindade. Poderia-se dizer, dessa forma, que essas formas, esses inúmeros deuses, têm existência real, mas não existência independente da humanidade. São reais pois são resultado da crença de milhares de pessoas, por um longo período de tempo, e através deles canalizou-se uma incontável quantidade de energia. Não são independentes da humanidade basicamente pelo mesmo motivo: como são frutos da crença, apenas existirão enquanto essa crença se mantiver. Imaginemos que um determinado povo, ou tribo, viveu durante séculos isolada em algum lugar. No decorrer desse tempo, instituiu o culto aos deuses X, Y e Z, aos quais se dirigiam, prestavam culto e homenagem, ofereciam sacrifícios, para abençoar suas colheitas, apaziguar as tempestades, cuidar da fertilidade de seus animais e das almas imortais dos seus entes queridos que se foram. Os deuses X, Y e Z não eram, certamente, A Divindade, pois esta não é propriedade de um único povo, mas eram as formas que esse povo criou para acessá-la, e assim existiam. Imaginemos agora que esse povo foi dizimado por uma catástrofe ou doença, e que nunca se tenha ouvido falar dele, dos seus costumes ou crenças. Os deuses X, Y e Z teriam morrido com ele. Imaginemos ainda que, pouco antes da catástrofe, um pequeno grupo tenha sido expulso da aldeia ou cidade, justamente por crer apenas no deus X, e que esse grupo tenha se fixado e florescido em outro lugar, e que resquícios de sua crença subsistam até hoje. Nesse caso, o deus X teria sobrevivido e ainda existiria, por ser ainda um canal de comunicação em uso, ao passo que os deuses Y e Z teriam morrido. A

bruxaria

e

os

Deuses

Antigos

Uma vez questionada a existência dos deuses ditos "pagãos", valeria a pena questionar a validade da utilização ou do culto a esses deuses? Por qual motivo, sendo a Deusa e o Deus da Wicca uma

síntese já bipolarizada de todos os arquétipos masculinos e femininos que compõem o todo da Divindade, seria usual dirigir-se aos arquétipos individuais? Por quê, havendo a identificação da Deusa e do Deus com os ciclos naturais e sendo a sua união a síntese da própria Natureza, ou da Divindade, não se estabelece simplesmente que a Wicca é o culto a esta divindade abrangente e incorpórea? Poderiam haver inúmeras respostas a estas perguntas. Uma delas, que vale não ser esquecida, é que realmente existem wiccans que estabelecem sua prática como um contato direto à essência da divindade, sem o uso específico de divindades simbólicas que auxiliem a sua compreensão. Por outro lado, precisamos admitir que um culto a deuses e deusas, ou a um grupo de divindades de um determinado panteão, pode ser uma maneira de canalizar de forma mais adequada a nossa energia pessoal. Como no exemplo do ritual de fertilidade, que citei anteriormente, "enxergar" a figura de um determinado deus ou deusa, com suas características e atributos bem palpáveis em termos humanos, sempre é um meio eficaz de focarmos nossa atenção sobre aquilo que desejamos. Nesse ponto de vista, a associação seria simples: como é mais fácil descrever uma pessoa? Tentando enumerar suas inúmeras características através da nossa memória ou simplesmente mostrando uma fotografia? No que pese a validade de tais argumentos ou justificativas para a utilização de diversos deuses e deusas como objeto de culto, há ainda um outro ponto de vista, o qual, este sim, consideramos importantíssimo: se o que se busca é uma harmonização com a energia primordial, com aquilo que, por falta de um nome melhor, chamamos de Divindade, deveríamos fazer o possível para ampliar a nossa visão dessa divindade, e não para restringi-la. É necessário compreender o que é uma "declaração de amor aos Deuses Antigos", tão falada nos meios wiccans, uma vez que o praticante da Wicca precisa ter em mente que nenhuma religião moderna é depositária dos conhecimentos e das práticas de milênios atrás. Muito disso se perdeu, em especial no Ocidente, devido à interpretação dos cultos ditos "pagãos" pelo Cristianismo. Além disso, a mente do homem atual é radicalmente diferente da de seus antepassados longínquos: as concepções individuais de tais antepassados simplesmente não nos servem mais. Cumpre, portanto, a qualquer pessoa que se disponha a praticar a Wicca, ou simplesmente a conhecê-la, discernir que "declarar o amor aos deuses antigos" é simplesmente uma maneira de dizer que se aceita a primitiva concepção de divindade. Essa concepção é a aceitação da presença da divindade no mundo natural e a interação com a divindade. Estas eram as características das crenças ancestrais, e é isso que deve ser valorizado, ao contrário de simplesmente adotar, de forma indistinta e anacrônica, a forma de crer, pensar e ver o mundo de culturas que já não existem. A mentalidade ocidental, no entanto, acostumou-se à veneração. O Cristianismo, ao disseminarse no Ocidente, "empurrou Deus para longe dos homens", tornando a divindade uma coisa longínqua, que mora num céu apenas atingível a custa de penas e obediência. O conceito da divindade participante, presente em cada aspecto da vida por ser a totalidade da existência, afigura-se estranho para as mentes educadas dentro dos padrões cristãos. Muitas vezes, por isso mesmo, as mentes de alguns praticantes da Wicca cultuam a figura dos "deuses pagãos" como se estes fossem os santos da Igreja Católica, e como se a Deusa fosse uma espécie de Jeová travestido. Aferram-se a pedidos, oferendas, preces, exatamente da mesma forma que fazem os seguidores de religiões "estabelecidas", apenas substituindo os nomes dessas últimas "divindades" pelos daquelas. Tais pessoas, ao dizerem-se "bruxos", passam a acreditar serem os verdadeiros descendentes de seitas que são pouco conhecidas até mesmo pelos arqueólogos; recheiam o vazio de suas vidas (sem mito) com nomes estrangeiros; alienam-se na

defesa de supostos antepassados "espirituais" celtas, quando deveriam, talvez, com mais propriedade e com a mesma riqueza cultural, buscar seus antepassados entre índios ou africanos. Esse tipo de concepção adultera a própria base da Wicca como religião. Ao contrário do deus cristão, a Deusa não está no seu trono celeste manipulando e julgando os seres humanos, mas sim está em cada um dos seres humanos, permeia-os, como permeia todas as coisas. Os diversos deuses e deusas não são seres humanos divinizados e colocados a postos para atender pedidos, mas sim manifestações da Deusa e do Deus, ou suas múltiplas faces, igualmente presentes em cada um de nós e em todas as coisas. Ao assumir isto, assume-se igualmente que a Wicca não é uma antiga religião européia, mas sim uma forma de religiosidade viva e aplicável em qualquer parte do mundo e por qualquer pessoa. Aqueles que, ao aderirem a Wicca, o fazem como quem se associa a um clube, achando que com isso estão conquistando o direito de ser o depositário de algum conhecimento milenar, poder usar determinados símbolos e artefatos, ter de se alcunhar de algum nome repleto de consoantes, estão vendo apenas a casca e o glamour da Wicca. Não estão, realmente, buscando um novo caminho, mas apenas travestindo seu velho e desgastado caminho normal. Poderiam, com a mesma facilidade e com o mesmo efeito, mergulhar em algum riacho, vestir um manto de algodão cru e trocar seus nomes para Jacó, ou David, ou Aarão. Assumir a presença da divindade, sentir a sacralidade de todas as existências, a permeabilidade da Deusa e do Deus (ou dos deuses), é a verdadeira declaração de amor aos deuses antigos. Essa deve ser a meta daqueles que praticam a Wicca. Notas: 1

Gardner, Gerald. A Bruxaria Hoje. São Paulo: Madras, 2003. Farrar, Janet e Stewart. Oito Sabás para Bruxas. São Paulo: Anúbis, 1983. 3 Grimassi, Raven. Os Mistérios Wiccanos. São Paulo: Gaia, 2000. 4 Drew, A.J. Wicca for Men. New Jersey: Citadel Press, 1998. Não confundir com o "Wicca para Homens", publicado pela Editora Madras em português, que é na verdade a tradução de uma outra obra do autor, Wicca Spellcraft for Men. 5 ver, a respeito, Barros, Maria N. Alvim. As Deusas, as Bruxas e a Igreja. cap. I e II. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2001. 6 cf. Vernant, Jean-Pierre. O Universo, os Deuses e os Homens. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 2

OS ELEMENTAIS Uma vez que já discutimos o papel das divindades na Wicca, cabe agora discutirmos a relevância e o papel de outros seres - os Elementais. Na verdade, pouco ou nenhum destaque é dado aos Elementais nas obras comuns sobre Wicca, com exceção feita àquelas que se dedicam a uma tradição específica, a Faery Wicca, ou "wicca das fadas"1. De toda a extensa bibliografia específica que dispomos, apenas Raven Grimassi2 cita, mesmo assim de forma vaga, o papel dos Elementais na Wicca, ao passo que Scott Cunningham3, o polêmico divulgador da "magia natural", faz apenas alusão aos elementos, mas não a esses seres que, tradicionalmente, estariam a eles associados. Essa omissão, ao nosso ver, é imperdoável. Como já vimos anteriormente, a Wicca tem suas raízes na Magia Cerimonial, ou Alta Magia, em especial no seu aspecto ritualístico, e em diversos cultos baseados na natureza, comuns a todas as regiões do Globo, que poderíamos (talvez) agrupar sob a alcunha de "xamânicos". Ambas estas tradições dão importância especial ao papel dos elementos e, conseqüentemente, aos Elementais, embora sobre diferentes pontos de vista. Dessa forma, uma abordagem da Wicca que menospreze esse papel é, pelo menos, incompleta. No entanto, esse é um assunto delicado e bastante vasto. Não poderíamos pretender, aqui, fazer um amplo estudo sobre o tema, mas tentaremos, ao menos, estabelecer uma série de conceitos que certamente auxiliarão aqueles que se dispuserem a fazer uma pesquisa mais aprofundada sobre o assunto. Os Quatro Elementos A noção de que o Universo é formado por quatro elementos - Ar, Fogo, Água e Terra - nos foi transmitida, no ocidente, a partir do legado grego, em especial o trabalho de Aristóteles. Essa noção, no entanto, é muito mais antiga que o filósofo grego, e esteve disseminada, com todo o seu simbolismo, por todas as sociedades ancestrais, persistindo ainda hoje, entre as sociedades indígenas. Ela deriva de um profundo contato com o mundo natural, de uma observação constante e acurada que, no entanto, não possuía um caráter explicativo, ou científico, mas antes preocupava-se em perceber e conhecer os processos e os ciclos da natureza, e atribuir a estes processos um caráter simbólico, abrangente e facilmente compreensível. Esse contato com a natureza foi perdido, ou pelo menos relegado a um segundo plano, a partir do momento em que o ser humano passou a se fixar em cidades. Segundo o antropólogo Felicitas Goodman4, "Os urbanos se divorciaram do seu habitat. A terra, o céu, a chuva, as plantas e os animais não são seus parceiros na luta pela sobrevivência. Esta alienação se tornou ainda mais pronunciada com o advento da industrialização, que eventualmente causou a destruição dos cultivos tradicionais e a invasão do agro-negócio. (...) A terra, o solo, nada é além do local onde se situam a manufatura, o comércio e os serviços."

Pode-se dizer, portanto, que a noção dos elementos naturais passou a ser encarada fora do seu contexto original e, com isso, tais elementos vieram a ser adotados, incorretamente, como constituidores da natureza, em primeiro lugar e, depois, com o avanço da ciência, foram simplesmente abandonados e, nesse papel, substituídos por aqueles elementos constantes da tabela periódica. No entanto, os elementos não constituem uma forma de explicar do que as coisas são feitas, mas antes qual é o caráter intrínseco de cada um dos seres e dos diversos fenômenos que regem a natureza. Nascimento, vida, morte e renascimento de cada criatura, assim como o início, o desenrolar, o transformar e o permanecer de cada ato estão convenientemente simbolizados pelo papel do ar, da água, do fogo e da terra, no contexto natural, e devem ser compreendidos a partir da interação com esse contexto. Ainda segundo Goodman, essa interação com o ambiente constitui-se, na verdade, numa variável independente a ser considerada quando falamos da religiosidade humana. Dessa forma, segundo a tradição, o Ar seria o elemento dos inícios, o sopro divino, o próprio elemento da criação. Ele está associado à vontade, ao pensamento criador e, em última análise, ao próprio Verbo, a palavra que dá início à ação. Segundo os povos nativos da América do Norte, o nosso espírito é feito de vento, e é dessa forma que penetramos no mundo material 5. A Água, por sua vez, representa o movimento, a fluidez, os sentimentos que orientam a vida e que impulsionam as ações. É a água que rega a terra e, fazendo a ponte entre esta e o céu, a fecunda e propicia seus frutos. Se a Água é movimento contínuo e incessante, o Fogo, por sua vez, é a ação transformadora, aquele que destrói para que um novo começo seja possível. Queimam-se os campos, após a colheita, para que uma nova safra possa ser semeada. A Terra, por outro lado, representa tudo que é perene, imutável, e que, portanto, está além do ciclo de mudanças da vida. Ela abriga no seu ventre tudo que ainda está por nascer, bem como tudo que morre, e é no seu seio que se processa a transformação de morte em vida. É, portanto, o elemento da magia e da espiritualidade, por excelência. Ao longo de incontáveis anos da história humana, as diversas sociedades atribuíram a cada um desses elementos, seres que lhes eram próprios. Essas associações passam por criaturas "de carne e osso", ou ainda árvores e pedras, e vão até determinados seres incorpóreos, ou ainda com corpos sutis, que seriam, de acordo com a tradição específica, guardiões, regentes ou ainda agentes desses quatro elementos, personificando as suas características intrínsecas. Esses seres, e suas inúmeras variações, são os que agrupamos sob o título geral de "Elementais". Os Elementais e as Tradições Devemos à tradição esotérica ocidental a sistematização dos chamados Elementais, e é através desse sistema que a maioria das pessoas veio a saber alguma coisa desses seres. Arthur Edward Waite, renomado ocultista que viveu na virada do século XIX para o XX, nos diz: "(...) é do conhecimento geral, desde os tempos mais remotos, que os quatro elementos eram supostamente habitados por um enxame de vários tipos de inteligências, quase todas subumanas, classificadas em quatro grandes espécies. O ar é habitado pela amável raça dos Silfos, o mar pelas belas e encantadoras Ondinas, a terra pela raça laboriosa dos escuros Gnomos, e o fogo pela gloriosa e sublime nação das Salamandras.6"

Esse autor, citando um livro do Abade de Villars, publicado no final do século XVIII e intitulado Comte de Gabalis, nos faz ainda uma rica descrição desses seres, das suas personalidades e características físicas, bem como de suas esposas e filhos. Alerta, no entanto, sobre a "riqueza de imaginação desses fantásticos devaneios", embora pouco a frente venha igualmente descrever certos elementais com a mesma dose de imaginação, embora de maneira mais grotesca. Antes de Waite, o célebre Eliphas Lévy já havia consagrado um capítulo do seu Ritual7 aos "espíritos" que ele designa como elementos ocultos. Ele nos diz que tais espíritos têm "vontades imperfeitas que podem ser dominadas e empregadas por vontades mais poderosas", acrescentando que "os espíritos elementais são como crianças e atormentarão mais facilmente aqueles que deles se ocupam, a menos que sejam dominados mediante uma elevada razão e muito severamente". Prossegue descrevendo uma série de rituais, invocações e orações para convocar e dominar os espíritos elementais. Dentro do esoterismo ocidental, portanto, essas criaturas - silfos, ondinas, gnomos e salamandras - são tidas geralmente como seres inferiores aos humanos, espécies incorpóreas aparentadas aos anjos ou aos demônios, às quais deve-se dominar, sendo esse domínio o que possibilita a realização do tipo de magia denominada Magia Branca, em oposição à Magia Negra, que resultaria da dominação dos demônios, propriamente ditos. Esse enfoque da Magia Cerimonial, embora não deva ser desprezado, não é em absoluto um ponto de vista que mereça ser compartilhado por uma forma de religiosidade que estabelece as suas bases no contato e na cooperação com a Natureza. Ao contrário, ele é fruto, justamente, daquele processo que descrevemos acima, através do qual o homem urbano passa a enxergar o seu habitat como uma espécie de serventia sua, como algo que deve ser subjugado para que sirva aos seus propósitos e que é, por princípio, inferior a ele próprio. Foi, no entanto, a descrição dos silfos, ondinas, salamandras e gnomos, suas "nações" e mesmo os seus "reis" - visão claramente medieval, portanto - divulgada por essa tradição, que chegou com mais força até os dias de hoje como sendo aquilo que constitui os chamados "elementais". Busquemos, portanto, um outro enfoque, em outras tradições ou dentro do folclore e da mitologia de outros povos, que possam nos dar uma idéia melhor do que seriam os Elementais e de qual seria a sua relação com o nosso assunto, em especial. Na verdade, veremos que quase todas as tradições - de caráter místico-religioso ou não - guardam em seu seio a idéia de que toda e qualquer matéria possui alguma espécie de vida. Aliás, o próprio Levy8 nos afirma isso, ao dizer que "em todas as partes o espírito trabalha e fecunda a matéria para a vida; toda matéria é animada; o pensamento e a alma estão espalhados por todas as partes". Esses espíritos das coisas, de forma mais ou menos antropomorfizada, foram descritos e relacionados por todas as sociedades humanas, de forma tão mais completa quanto sua proximidade à natureza. A antiguidade grega nos legou, por exemplo, a figura das ninfas, faunos e sátiros, espíritos protetores: as árvores possuíam as suas dríades, enquanto o seu conjunto - bosque ou floresta tinha personalidade própria, a hamadríade. As montanhas tinham as suas orestíades, os cursos d'água, suas náiades. Tais figuras, que esporadicamente se mostravam aos homens, não eram divinas ou semidivinas, mas sim entidades que partilhavam o mundo humano, embora com uma existência mais sutil, mais diáfana, e cuja corporificação era aquele "ente" natural que elas, de alguma forma, habitavam, fosse ele mineral ou vegetal. A tradição budista, em grande parte herdada do Hinduísmo, ao descrever os diversos planos de existência, nos fala dos planos dévicos, nos quais, entre outras espécies de seres ainda governados pelos desejos ou pelos sentidos, habitariam os caturmaharajika-deva, e entre estes os

yaksa, "espíritos dos bosques e da terra, dotados de um grande poderio ou potência, que ora são benfazejos ou benéficos, ora são terríveis ou perigosos"9. Por outro lado, diversos grupos indígenas que se utilizam de plantas de poder em rituais xamânicos, descrevem suas experiências com esses alucinógenos como sendo proporcionadas não pela planta em si, mas pelo espírito da planta, ou pela entidade que a habita como organismo individual ou como espécie. Se levarmos em consideração as descrições publicadas por Carlos Castañeda, por exemplo, veremos que o brujo Don Juan refere-se ao peyote como uma entidade chamada Mescalito, vinculada àquele vegetal10. Aliás, as concepções xamânicas tradicionais admitem a existência de três planos de existência, que interagem entre si, sendo o nosso próprio plano o intermediário. No plano "inferior" - e aqui a palavra não tem sentido depreciativo habitariam justamente esses "espíritos das coisas", comumente chamados de animais, plantas e cristais de poder, sendo estes uma espécie de guias, conselheiros e protetores do xamã. Em outras mitologias e religiões, abundam igualmente os exemplos. Os celtas do continente possuíam várias divindades femininas que eram, na realidade, personificações de cursos d'água. O próprio Cernnunos, muitas vezes evocado como um deus, provavelmente era, antes, uma espécie de espírito guardião dos bosques e dos animais que neles habitavam. As lendas dos celtas insulares descrevem a raça mítica, profundamente versada em magia, dos Tuatha de Dannan, que teria reinado sobre a terra e que, com o advento dos humanos, teria ido habitar o "submundo", mantendo apenas contatos esporádicos com nossa realidade habitual. Nestes últimos, alguns vêem a origem das insistentes lendas e contos sobre o "povo pequeno" - anões, duendes, gnomos, etc. Aliás, os contos populares, em todo o mundo, são povoados de fadas, bruxas, ogros e duendes por vezes agradáveis protetores benfazejos, por vezes ardilosos, cruéis ou assustadores - todos eles compartilhando, no entanto, de um elemento comum: habitam a natureza, o interior das florestas, os lugares ermos, sendo, de certa forma, a representação desses locais intocados no imaginário popular. Nesses contos, a transformação, a jornada iniciática do personagem principal nunca se dá no meio urbano, mas sempre junto à natureza, onde tais seres podem ser encontrados. Por fim, podemos ainda citar diversos seres fantásticos das lendas indígenas brasileiras, como o Curupira, o Saci, o Caipora ou a Iara que, embora tenham sofrido influência européia após a chegada dos portugueses, guardam ainda essa conotação de protetores das matas e das criaturas que nelas habitam. Vê-se, portanto, que a noção de elementais pode ir bem além da concepção até certo ponto rígida e limitada que foi estabelecida pela Magia Ritual. Muito mais do que silfos, ondinas, salamandras e gnomos, em estreita dependência dos elementos por eles habitados, podemos estender o conceito de elementais para toda uma série de entidades que personificam a natureza. Essa personificação se dá de forma bastante distinta daquela das divindades que antropomorfizam fenômenos naturais tais como o raio, o trovão, o dia, à noite ou as estações: ao passo que esses deuses situam-se num plano intangível e possuem, mesmo, um caráter imutável, os elementais interagem diretamente com os seres humanos, por serem uma espécie de consciência daqueles objetos que só aparentemente são inanimados, e que se situam no plano do terreno, do cotidiano. A Wicca e os Elementais

Levando em consideração a exposição que fizemos até aqui, podemos começar a questionar qual seria o papel dos assim chamados elementais na Wicca, e porque esse papel seria, como colocamos no início desse texto, preponderante. Ao contrário do que fizemos ao falar sobre as divindades, no entanto, não iremos discutir aqui a existência real desses seres, na forma como são representados ou descritos, até mesmo porque tal discussão seria inócua para o nosso objetivo. Pelo descrito, poderíamos logo de início definir os elementais como sendo a manifestação energética, ou a essência, de determinados entes, animados ou inanimados, do mundo natural. Colocando isso de uma forma mais simples, mesmo correndo o risco de uma supersimplificação, eles seriam o "espírito das coisas", sua alma. A partir desse ponto de vista, cada um de nós teria, desde que aceita a existência de uma alma, igualmente a sua parte "elemental". Vale dizer, no entanto, que cada uma dessas manifestações (inclusive as nossas) nada mais é do que uma ilusão de individuação, uma vez que cada entidade individual se confunde no grande todo que é a Vida - aquilo que, no capítulo anterior, definimos como a única e verdadeira divindade. No entanto, apenas conhecendo as partes é que poderemos vir a conhecer o todo. Dessa maneira, enquanto o culto às divindades pode quando muito representar uma forma ampla e abrangente de contato com os grandes ciclos naturais, ou estabelecer uma visão que nos aproximará da compreensão de conjunto da natureza através de suas grandes manifestações, será apenas o contato com essas energias elementais que proporcionará a visão do detalhe, a compreensão da interdependência de todas as formas de vida e de como se processam as relações entre elas. Pode-se celebrar belíssimos rituais, respeitando equinócios e solstícios. Pode-se cantar a beleza e a plenitude da natureza, através das figuras da Deusa e do Deus, a cada amanhecer e pôr-do-sol. No entanto, se a prática da Wicca se resumir nisso, o praticante que o fizer estará simplesmente reproduzindo qualquer outra religião centrada na adoração, e com isso empurrando a verdadeira divindade para um local inatingível e para um conceito que, por ser amplo demais, é incompreensível. Se, pelo contrário, o praticante da Wicca se dispuser simplesmente a olhar cada tronco, cada pedra, cada fonte, como sendo dotado de uma espécie de consciência e de uma espécie de vida; se ele se dispuser a ouvir as mensagens que esses objetos aparentemente inanimados transmitem, a ver aquilo que eles têm a mostrar, a sentir que não existe uma diferença intrínseca entre ele próprio e essas coisas, em pouco tempo ele dominará a linguagem dos elementos, não para submetê-los, mas para interagir com eles. A partir dessa visão micro, que pode ser obtida sem nenhum tipo de ritual a não ser, talvez, algumas longas caminhadas por algum parque, ele chegará aos poucos à noção de conjunto, por conseguir se sentir integrado a esse conjunto, e em breve distinguirá não apenas os entes individuais, mas ainda os próprios guardiões de um determinado lugar, os espíritos coletivos que o habitam e protegem. Esse será um passo para uma visão realmente macro. Indo além, poderia-se mesmo dizer que aqueles que concentram-se nos deuses podem, quando muito, esperar receber graças. Sua visão será constantemente passiva, seus atos serão constantemente esmagados ou tornados inócuos por um poder que está muito acima de suas próprias possibilidades. Aqueles que, ao contrário, baseiam-se inicialmente nas energias cotidianas, estão atuando magicamente, através da compreensão dos pontos mais próximos da grande teia que une tudo que existe sobre a face da Terra. Ao longo da história, essas forças das quais falamos, e que em nada diferem das que residem em cada um de nós, se mostraram aos homens sob diferentes formas. Cada sociedade as descreveu

de acordo com seus próprios costumes e cultura. Elas foram belas mulheres cobertas por véus diáfanos em alguns lugares; seres mistos de homens e animais em outros; imponentes animais cheios de força e vigor, em outras ocasiões. Às vezes foram pequeninos e atarefados, às vezes gigantes impassíveis. Em determinadas ocasiões, foram ardilosos, incômodos ou traiçoeiros; em outras foram sábios guias e protetores. Portanto, é inútil perguntar se existem fadas: veremos fadas, se assim o desejarmos, independentemente se aquele ser com asas de borboleta possui uma existência corpórea. No entanto, apenas estabeleceremos um real contato com a natureza se nos dispusermos a ver alguma coisa do que ela nos mostra, sob a forma simbólica dos seus elementos componentes. A atenção a esses elementos, portanto, e a busca da interação com eles, deve ter importância especial para aquele que se disponha a praticar a Wicca. Notas: 1

a respeito dessa tradição específica, consultar Stepanich, Kisma K. Faery Wicca. Minnesota: Llewellyn, 1997. 2 Grimassi, Raven. Os Mistérios Wiccanos. São Paulo: Gaia, 2000. 3 Cunningham, Scott. Magia Natural. São Paulo: Gaia, 1997. 4 Goodman, Felicitas D. Ecstasy, Ritual and Alternate Reality. Bloomington: Indiana University Press, 1988. 5 cf. Sams, Jamie. As Cartas do Caminho Sagrado. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. 6 Waite, Arthur E. As Ciências Ocultas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985. 7 Lévy, Eliphas. Dogma e Ritual de Alta Magia. São Paulo: Madras, 1998. 8 idem. 9 cf. Lamotte, Etienne. Histoire du Bouddhisme Indien. Louvain-la-Neuve: Université de Louvain, 1976. (tradução livre do prof. Dr. Paulo Ramos C. Filho, Universidade de Brasília, exemplar mimeografado) 10 ver, a respeito, Castañeda, Carlos. A Erva do Diabo. São Paulo: Clube do Livro, 1988.

A MAGIA Já determinamos, em outro ponto deste curso, que nunca existiu uma "religião da magia", seja em que parte for do mundo ou em qualquer época da história, da qual a Wicca possa descender ou ainda que ela possa "resgatar". No entanto, é inegável que a magia seja parte integrante dos fundamentos da Wicca e, portanto, é imprescindível que este conceito seja perfeitamente compreendido. Na realidade, a magia é uma parte indissociável da herança cultural de todas as sociedades. É impossível conceber qualquer agrupamento humano que não tenha desenvolvido alguma forma de magia, e isso de forma mais ou menos independentes de suas concepções e crenças religiosas. Aliás, é necessário estabelecer desde já essa distinção: pelo menos nas sociedades mais "primitivas", a magia não se confunde com a religião, tendo cada uma delas seu campo de atuação específico. Uma mesclagem entre magia e religião só vai acontecer em sociedades mais desenvolvidas culturalmente ou em certas teocracias da antiguidade. Ainda no final do século XIX e início do século XX, antropólogos e sociólogos como Durkheim e Malinowsky estabeleceram a distinção, nas sociedades então chamadas de "primitivas", entre magia e religião. Estes pesquisadores puderam estabelecer (em especial a partir dos trabalhos de campo de Malinowsky nas Ilhas Tobriand1) que haviam papéis distintos para a magia e a religião, embora ambas fossem consideradas indispensáveis e profundamente vinculadas ao contexto cultural dessas sociedades. Dessa maneira, a magia intervinha onde a técnica, pura e simples, se mostrava ineficiente, e a religião, por sua vez, nos campos onde mesmo a magia não podia atuar. Exemplificando, se um indígena usa a técnica que possui - seu conhecimento das estações, das melhores formas de plantio, etc. - para semear a sua roça, ele usará a magia para protegê-la de pragas, e apelará aos deuses para garantir uma primavera favorável. Esse mesmo indígena não pensará em usar magia para construir uma canoa: ele possui a técnica necessária para fazê-lo; mas certamente usará alguma magia para protegê-la das tempestades, afugentar os tubarões ou atrair boa pesca. Portanto, o papel da magia interfere nos assuntos cotidianos, mas apenas onde a técnica comum não consegue atuar. Seu papel é o controle do imponderável - tempestades, pragas, doenças - mas é limitado por aquilo que pertence ao domínio divino, ou seja: os grandes ciclos e fenômenos naturais. Magia de Cura e Magia de Maldição Uma das formas mais antigas e básicas de magia, portanto, era constituída por práticas que visavam a abundância da caça e da pesca, a conseqüente proteção contra os perigos envolvidos nessas atividades e, posteriormente, a proteção da lavoura. Tais práticas, normalmente, se dirigiam aos espíritos dos animais e das plantas, refletindo a simbiose existente entre o ser humano e as demais formas de vida. Essa interação passava, portanto, por ritos de caráter mágico que demonstravam o respeito pelo animal a ser abatido e presumiam, pela sua realização, a

anuência prévia desse animal ao abate. Esse tipo de magia natural simpatética ficou registrada em inúmeras pinturas rupestres, em cavernas e outros locais ao redor do mundo2. Essa espécie de magia talvez se confundisse, até certo ponto, com as concepções religiosas, mas apenas no tocante à noção intuída de interdependência entre as espécies vivas. O caráter da religião, como já ressaltamos, se referia em especial aos grandes ciclos naturais e, ainda, aos mistérios relacionados à morte e à presunção de renascimento. Paulatinamente, no entanto, a aplicação de práticas mágicas foi se estendendo a outros aspectos da vida cotidiana sobre os quais o ser humano desejava ter controle. O mais corriqueiro e, talvez, o mais relevante desses aspectos era a doença. Fosse qual fosse a causa que cada povo atribuía às doenças, a magia que se destinava à cura ganhou preponderância, e seu desenvolvimento trouxe algumas conseqüências cruciais. Em primeiro lugar, a busca do combate às doenças (ou sua profilaxia) gerou um conhecimento específico, que embora fosse de caráter empírico, já relacionava claramente causa e efeito. A geração desse conhecimento específico acabou criando, igualmente, uma separação nítida entre aqueles que o possuíam - os curandeiros - e os demais membros da comunidade. Por fim, essa separação alargou o abismo existente entre magia e religião, uma vez que essa última era de posse comum do povo, ao passo que a primeira tornou-se cada vez mais exclusiva dos curandeiros. Foge ao nosso objetivo analisar porque esse conhecimento tornou-se, cada vez mais, secreto. Basta, no entanto, lembrar que aquelas pessoas que, em tais sociedades, vinham a dedicar-se à arte mágica da cura, acabavam por ter certos privilégios e prerrogativas, que certamente desapareceriam se o seu conhecimento se torna-se de domínio público e sua arte acessível e praticada por todos. Se o desenvolvimento dessa magia de cura proporcionou a criação de um saber específico, o desenvolvimento de uma classe especial de pessoas e ainda uma maior separação entre magia e religião, ela trouxe igualmente duas conseqüências diversas: um provável aumento da superstição entre os que não possuíam o conhecimento, e o seu uso para fins que apenas atendiam os interesses e a vontade do mago ou curandeiro. Ambas as conseqüências ficam bastante claras quando observamos, por exemplo, o estudo realizado pelo antropólogo EvansPritchard3 entre o povo Azande, da África: todo e qualquer infortúnio era atribuído à magia e, por isso mesmo, os magos, entre esse povo, eram tão temidos quanto necessários. Possamos atribuir isso a uma natureza humana ou não, a verdade é que um conhecimento que garanta o uso, digamos, de uma determinada planta para curar, garantirá igualmente o uso de outra para envenenar, e ambos os conhecimentos serão usados por aqueles que os detém. Em determinado estágio da civilização, portanto, os magos tornaram-se indivíduos possuidores de considerável poder, capazes de provocar a cura ou a morte ou, na maioria dos casos, ambos. Além disso, estando protegidos por associações tácitas ou explícitas, tinham o respaldo suficiente para se tornarem figuras proeminentes em suas sociedades. O poder dos magos, dessa forma, em sociedades onde a natureza, por força da agricultura e da técnica, já se encontrava relativamente "domesticada", parecia emanar ou mesmo transcender o poder dos deuses. Dessa maneira, se os papéis do mago e do sacerdote, em princípio, se dividiram, eles começaram novamente a convergir, mas agora em um novo enfoque: o mago passava a ser, de certa forma, o intermediário ou mesmo o manipulador daquelas energias divinas e, por conseqüência, o líder natural de certas sociedades. Os Taumaturgos

Os sacerdotes egípcios, fechada classe de homens que aparentemente obedeciam apenas à própria divindade encarnada - o faraó - foram verdadeiros símbolos arquetípicos dessa nova espécie de magos-sacerdotes. Em seus templos, operavam verdadeiros "milagres": levitação de grandiosas estátuas, comunicação altissonantes da própria voz divina, ou com os mortos, e assim por diante. Obviamente, tudo isso era resultado do domínio de uma técnica mistificadora que, hoje em dia, chamaríamos de "efeitos especiais". Além disso, eram os possuidores da técnica que, segundo se acreditava, garantia aos mortais o ingresso na vida eterna: a mumificação. Esses magos-sacerdotes fizeram do Egito, em sua época áurea, uma teocracia mágica, ao conjugar os efeitos práticos da magia aos aspectos devocionais da religião. Bebendo dessa mesma fonte e talvez iniciado na mesma escola, o líder de um povo de escravos, Moisés, conseguiu libertar sua gente do cativeiro no Egito e guiá-lo numa longa peregrinação pelo deserto palestino, usando uma mistura de palavra divina e efeitos pirotécnicos que, ainda hoje, causariam comoção. Manipulando artes elitistas e negociando com o poder divino, tais magos vieram, mesmo, a estabelecer algumas das bases da civilização atual. Distribuindo uma sabedoria dúbia à custa de ricos presentes, como as pitonisas de Apolo, em Delfos, ou fazendo a manifesta "vontade do pai" para obter conversões, como Jesus, 300 anos depois, os magos acabaram por mudar os rumos da humanidade. Já numa época mais recente, os grandes magos vestiram a batina dos prelados - ou vice-versa - para controlar a sociedade, a partir de sua magia de redenção apoiada no verbo divino, ou seja: no conhecimento oculto e na intermediação com a divindade, que só a eles era possível. No Ocidente, a Igreja conseguiu transmutar a crença na magia em dogma religioso, quando isso lhe era conveniente, e execrar e perseguir os magos quando a magia praticada por estes a desafiava. No entanto, a assimilação foi muito maior do que a perseguição, uma vez que, benignas ou malignas, lícitas ou ilícitas, todas as formas de magia passaram a ser explicadas segundo a religião. A Igreja apropriou-se de convicções que eram gerais para incluí-las no seu sistema, passando a atribuir a ação da magia a seres que pertenciam a esse sistema e, assim, conseguindo classificá-la segundo suas próprias convicções, associando-a a luz e às trevas. Os Agentes da Magia Como resultado óbvio do animismo ou do pan-psiquismo, ou seja, na crença da existência de uma alma ou "espírito" em todas as coisas, ou ainda frente ao medo instintivo da morte e da possibilidade dos mortos influírem no mundo dos vivos, os antigos (ou os povos que encontramse num estágio de civilização equivalente) acabaram por atribuir à ação desses "espíritos" a força motora por trás da magia. A partir daí, não houve sociedade que não viesse a atribuir os efeitos da magia ao controle, pelos magos, dessas entidades incorpóreas que poderiam beneficiar ou prejudicar. Talvez se possa estabelecer unicamente uma distinção, nesse caso, que depende diretamente do maniqueísmo maior ou menor de cada uma dessas sociedades, sendo que algumas vieram a atribuir caracteres positivos ou negativos aos espíritos, enquanto outras apenas atribuíam a estes um caráter amoral, que poderia ser "maléfico" ou "benéfico", conforme a vontade do mago. Nas sociedades indígenas, por exemplo, embora o controle dessas entidades seja, via de regra, um dos atributos dos magos, ele normalmente não é o único modo admitido para fazer magia, bem como os espíritos dominados pelos magos (ou a eles aliados) não sejam necessariamente

bons ou maus. Já no Ocidente Cristão, a visão que se sedimentou sobre a magia, em especial a partir da Idade Média, e que perdurou através dos tempos até os dias atuais, é a de que os magos agem pelo domínio sobre anjos ou sobre demônios. Não entraremos no mérito da existência, no entanto, de entidades malévolas ou benévolas, e menos ainda na possibilidade de controlá-las através de determinadas fórmulas, para que obedeçam à nossa vontade. Guardemos, por enquanto, apenas a palavra "vontade" e descartemos tudo mais, que pode apenas ser fruto de superstição e medo, e da necessidade de dividir o mundo em duas metades distintas, necessariamente branca e negra. Se formos buscar numa das figuras mais proeminentes e, igualmente, mais controversas de nosso tempo no campo do ocultismo, uma palavra que sintetize a magia, encontraremos nos Livros Sagrados de Thelema, de Alesteir Crowley4, a palavra exata: "vontade". Lá estão as duas frases que se tornaram populares e até mesmo populescas: "O Amor é Lei, Amor sob Vontade" e "Faz o que tu queres é o todo da Lei". Analisemos essas frases sem nos preocupar com o seu conteúdo místico ou ocultista. O amor significa a paixão, a expressão fluente dos sentimentos, à intensidade. Esse é um componente básico da magia e, talvez, a verdadeira medida de sua eficácia. Malinowsky, ao abordar o assunto, já escrevia: "O homem, sob a onda de fúria impotente ou dominado pelo ódio frustrante, cerra espontaneamente o punho e desfecha golpes imaginários sobre o seu inimigo, balbuciando imprecações, lançando palavras de ódio e raiva contra ele. O amante que sofre com a inacessibilidade e a impassividade da sua amada, tem visões dela, dirigelhe a palavra, suplica-lhe e ordena-lhe favores, sente-se correspondido, abraça-a. (...) Quando a paixão atinge o ponto de ruptura, em que o homem se descontrola, as palavras que profere, o comportamento cego, permitem o afluxo da tensão psicológica acumulada. (...) A medida que a tensão se desgasta nas palavras e nos gestos, o fim desejado parece mais próximo da concretização, e permanece em nós a convicção de que as palavras de maldição e os gestos de fúria se deslocam para a pessoa odiada e acertam o alvo; que a imploração de amor não pode ter ficado sem resposta, que o êxito da consecução visionária de nossa demanda não pode ter ficado sem uma influência para a questão pendente".5 Esse componente psicológico da magia, independente da abordagem científica do antropólogo que não admite a real consecução do ato mágico, mas apenas a crença na sua realização, é essencial: ele concentra a energia do mago e, numa explosão, direciona-a ao seu objetivo. Se acrescentarmos a esse componente a determinação, o autocontrole necessário para que esse direcionamento de energia seja o mais preciso possível, teremos o "amor sob vontade" preconizado por Crowley. Se unirmos isso à noção de integração entre todos os aspectos da Natureza, conforme debatemos no tópico anterior deste curso, começaremos a compreender melhor aquilo que, mais possivelmente, seja o principal agente da magia e, ao menos teoricamente, a causa de sua real eficiência. Teríamos uma poderosa energia trafegando de uma fonte emissora (o mago) para uma fonte receptora (o objeto da magia), através da grande teia da existência, sem a necessidade de qualquer espécie de "emissário", fosse ele de caráter sobrenatural ou não. O que dizer, então, se aceita essa hipótese, dos elaborados encantamentos, da observância de conjunções planetárias e fases lunares, do uso de fetiches, bonecos, instrumentos, e toda a panóplia associada comumente à prática da magia? Serviriam, antes de mais nada, elementos

consagrados pelo uso e, conseqüentemente, pelo efeito psicológico, para proporcionar uma melhor concentração, uma maior determinação, um uso mais consciente e focado da soberana Vontade. Obviamente, essa teoria não poderia ser profundamente discutida nesse espaço, mas serve como um guia para uma reflexão mais profunda sobre o assunto6. Detendo-nos ainda sobre a segunda frase de Crowley, ela expressa a liberdade, ou ainda a amplidão de horizontes que se descortina ante aquele que compreende os mecanismos mágicos: sua capacidade de realização se torna ilimitada. Mas essa falta de limites é justamente a limitação do mago, a partir do momento que ele compreende que tal descortino não é propriedade apenas sua, mas de todos que se proponham a seguir o mesmo caminho. Logo, sua liberdade, o seu "faz o que queres", necessariamente esbarrará no "faz o que queres" alheio. Não será o capricho de alguma divindade ou a vingança de um ser luminoso ou tenebroso, mal controlado, que refreará a atitude do verdadeiro magista, mas antes a sua própria consciência e, igualmente, a própria teia de relacionamentos em que ele está inserido, em escala global. A Wicca e a Magia Por tudo que já expusemos até agora, qual seria então o papel verdadeiro da magia dentro da Wicca? Antes de uma simples demonstração de poder, ou da possibilidade de exercer esse poder, como temos, muitas vezes, observado entre as pessoas que demonstram algum interesse sobre o assunto, a magia, dentro da Wicca, é uma forma de se estabelecer um contato mais profundo com a Natureza, pela compreensão de que suas leis não são imutáveis, mas antes sujeitas à manobra consciente de suas partes componentes, seres humanos entre elas. Por outro lado, nada mais longe da realidade do que se atribuir a Wicca o papel de "religião da magia", ou ainda estabelecer que o "fazer magia" é parte indispensável ou preponderante da doutrina, dentro de certos limites. O que há de se compreender, para compreender igualmente o papel desempenhado pela magia na Wicca, é que tudo é magia, ou seja: que qualquer ato humano envolve a sua dose de manipulação, consciente ou não, de energias que percorrem o fluxo da teia da existência. Portanto, mais do que "fazer magia", o wiccan deve ser consciente da magia que é praticada cotidianamente, rotineiramente, e das diversas formas que esse "viver mágico" afeta o seu cotidiano e o das pessoas que, de alguma forma, se achem diretamente no seu campo de ação. Saber fazer magia não distingue o wiccan, mas sim saber lidar com a magia, e isso independe até mesmo da aceitação de teorias como a que expusemos. Ainda que se tenha convicção de que outros agentes existem que possibilitam a consecução do ato mágico, ainda que os corolários estabelecidos pelo rol das crenças pessoais de cada um vão de encontro a uma compreensão mais simples ou mais natural das forças envolvidas nesse ato, o poder do mago reside em ter controle sobre esse ato, e não em executá-lo. Novamente, portanto, voltamos ao conceito da Vontade soberana e do amor sob controle. Nesse ponto, talvez o mais importante para o conhecedor da magia seja saber a hora de não executá-la. Notas: 1

ver, a respeito, Malinowsky, Bronislaw. Magia, Ciência e Religião. Lisboa: Edições 70, 1984. existem várias referências a esse tipo de magia, por exemplo, no livro Mitologia na Vida Moderna, de Joseph Campbell (Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002), entre vários outros. 2

3

Evans-Pritchar, E.E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. Crowley, Alesteir. Os Livros Sagrados de Thelema. São Paulo: Madras, 1998. 5 Malinowsky, Bronislaw. opus cit. 6 vale a pena ler a esse respeito à série de artigos intitulada "O Caminho da Magia", que consta da seção "Os Textos", da Mito e Magia. 4

4)

Fundamentos

Ritualísticos:

INSTRUMENTOS MÁGICOS Uma vez examinados aqueles fundamentos sobre os quais se assenta a doutrina da Wicca, dentro de nosso ponto de vista, passaremos agora a abordar os aspectos que se referem mais diretamente à sua prática ou, para ser mais exato, aos elementos que são de conhecimento fundamental para que essa prática se estabeleça. Escolhi o tema "instrumentos mágicos" para abrir essa seção do curso porque é, inegavelmente, um tema que desperta interesse imediato em todos os iniciantes. Na verdade, poucos foram aqueles que eu conheci que, tendo travado um contato inicial (e muitas vezes superficial) com a Wicca, não ficassem aflitos para conseguir seu atame, seu caldeirão, e todo um arsenal de bugigangas que, muito mais do que um valor simbólico, passam a ter para o iniciante um verdadeiro valor ritual, assumindo assim um caráter quase indispensável, o que, obviamente, faz a alegria dos proprietários de lojas esotéricas... Vale, portanto, fazer uma análise do simbolismo desses instrumentos, da necessidade de possuílos e da importância que eles possam ter como fundamento ritualístico ou doutrinário, antes de seguir em frente para situações em que eles possam, eventualmente, ser citados. Os quatro símbolos do mago Embora outros instrumentos tenham se incorporado à prática da Wicca, quatro deles possuem uma tradição simbólica específica por estarem, desde uma época bastante remota - e portanto bastante anterior à criação da própria Wicca - associados à magia. Esses quatro instrumentos são a espada ou punhal, o bastão, o cálice e o pentáculo. No meu artigo "A Magia dos Instrumentos"1, eu me referi a esses quatro instrumentos tradicionais dos magos como sendo, na verdade, objetos indispensáveis a qualquer viajante que percorresse os longos e inseguros caminhos da Europa medieval (ou mesmo de épocas anteriores). Um instrumento de defesa (a espada ou punhal), um bastão ou cajado para auxiliar nas passagens mais íngremes, um recipiente para água e algum dinheiro eram, sem dúvida alguma, requisitos básicos e de uso tão corrente que ficaram, inclusive, imortalizados nos quatro naipes do baralho comum ou do tarô. Se nos ativermos apenas ao contexto da Idade Média, período em que se consolidou a maior parte da tradição mágica ocidental, veremos que a figura do mago ou do curandeiro está profundamente associada a do viajante ou mesmo do peregrino. O eminente historiador Jacques Le Goff nos descreve a formação do Ocidente medieval como "desbravamento, luta e vitória sobre matagais e arbustos ou, quando necessário e quando os apetrechos técnicos e a coragem permitem, sobre os altos troncos, a floresta virgem (...). Por muito tempo, o Ocidente medieval foi um aglomerado, uma justaposição de domínios, castelos e cidades que iam surgindo no meio de extensões incultas e desertas"2. Tínhamos então um panorama formado por pequenas "ilhas" as clareiras onde se situavam os povoados - em meio a um mar de florestas que, então, já havia

inclusive engolido as estradas romanas que haviam caído em desuso. Esse mar de florestas era cortado por trilhas, cercadas de perigos reais e imaginários, que precisavam ser percorridas a pé. Alguns desses caminhos faziam parte de uma espécie de "circuito", similar aos das peregrinações empreendidas pelos cristãos, e ligavam pontos associados, muitas vezes, a antigos lugares sagrados, geralmente marcados por dólmens. Louis Charpentier nos aponta3 como estes locais parecem desenhar uma verdadeira espiral no solo da França, unindo cidades cujo nome está associado ao deus gaulês Lugh, como Lugrin, Lyon (antiga Lugdunum), Loudun e muitas outras. Esse caminho deixou resquícios também na cultura popular, como no Jogo do Ganso, espécie de ancestral dos jogos de tabuleiro onde, ao jogar-se um dado, um determinado número de casas deve ser percorrido, até que se chegue ao final de um caminho em espiral. Essa peregrinação pelos lugares mágicos era empreendida pelos antigos magos, como provavelmente já o fora pelos sacerdotes druidas, e assim a figura do mago ficou associada ao do viajante-peregrino, munido daqueles instrumentos que citamos. Posteriormente, a magia cerimonial veio, com algumas variações, atribuir um simbolismo específico a cada um desses instrumentos, bem como estabelecer técnicas específicas para a sua consagração. A partir desse ponto, eles deixam de ter o seu caráter essencialmente funcional e passam a adquirir um caráter simbólico. No âmbito da magia cerimonial, cuja tradição ritualística foi em grande parte herdada pela Wicca, como já esclarecemos, surgem algumas variações na descrição desses quatro instrumentos simbólicos principais. Eliphas Lévy, por exemplo, não cita a taça, mas acrescenta à espada e à "varinha mágica" (bastão) a "lâmpada", ou candeeiro de nove braços, o qual seria capaz de "criar diante das pessoas magnetizadas formas de uma realidade espantosa (...); os fantasmas falarão e, depois, caso se cerre a coluna da lâmpada, redobrando o fogo dos perfumes, se produzirá algo inesperado e extraordinário"4. Esse mesmo autor, no entanto, dedica especial atenção aos pantáculos, desde trigramas até hexagramas, com ênfase no chamado "pentagrama flamejante", que ficou popularmente conhecido como Tetragramaton, a estrela de cinco pontas coberta de símbolos cabalísticos e astrológicos que é inevitavelmente associada à magia. Aliás, se adotarmos como correta essa origem dos instrumentos mágicos principais como sendo aparatos típicos dos magos viajantes, veremos que aquele que se tornou mais simbólico, distanciando-se sobremaneira com o tempo do objeto que lhe deu origem, foi justamente o pentagrama. Essa origem conservou-se nos baralhos comuns e no tarô - como o naipe de ouros, moedas, etc. - mas no âmbito da magia tornou-se o verdadeiro símbolo do mago, aquele objeto que lhe identifica por conter uma súmula da sua arte ou do seu conhecimento, através de grafismos pessoais. Pode-se considerar, no entanto, que essa característica está igualmente presente nas moedas, que são (e sempre foram) cunhadas com efígies e sinais que identificavam aquele soberano ou país da qual se originavam5. Outros símbolos e instrumentos Além desses quatro instrumentos que descrevemos, vários outros foram incorporados à prática da Wicca. Esses outros possuíam ou ainda possuem, igualmente, um caráter essencialmente funcional mas, ao contrário dos primeiros, originam-se de um aspecto distinto das tradições que deram origem a essa doutrina. Podemos citar, nesse caso, especialmente a chamada "faca de cabo branco", ou bouline, ou ainda a foice e o caldeirão. Esses objetos se referem, obviamente, a uma atividade típica dos sacerdotes-curandeiros: a de herbolário, manipulador de plantas medicinais ou "fazedor de

poções". Consta que os druidas, detentores da ciência médica entre os gauleses, portavam sempre uma pequena foice, com a qual colhiam ervas para preparar suas receitas. O caldeirão, por sua vez, está intimamente associado à figura da bruxa, desde épocas muito remotas: ele surge na mitologia grega com Medéia; é uma das armas mágicas de Lugh, na mitologia celta, e é associada igualmente à deusa irlandesa Ceridwen, em todos os casos com um sentido simbólico de transformação, cura ou renascimento. Aquilo que é colocado no caldeirão, passa pelo preparo e pela cocção em seu interior, sai de lá transformado, curado ou capaz de curar, exatamente como as ervas que se transformam em poção, ou como os ingredientes que se transformam em comida. Dentro da mesma analogia, ele foi associado ao útero materno. A faca de "cabo branco" - para distinguir-se do punhal ritual de "cabo preto" - é simplesmente um instrumento de manipulação: algo para cortar e picar as ervas que devem ser usadas nos preparados. Há de se levar em consideração também que, desde fins da Idade Média até fins da Idade Moderna, quando a chamada "Alta Magia" começou a ganhar novamente popularidade, esse tipo de "bruxaria", baseada em práticas de medicina tradicional, esteve, pelo menos na Europa, basicamente concentrada nas mãos das mulheres. Isso fez com que a espada, por exemplo, objeto geralmente associado aos homens, fosse geralmente substituída na Wicca pelo punhal - o atame instrumento (de defesa) muito mais adequado às mulheres tanto pelo peso quanto pelo volume reduzido, e portanto mais fácil de manusear ou mesmo de esconder. Também fez com que vários instrumentos de cozinha ganhassem esse cunho ritual, ou mesmo que, ao contrário, instrumentos rituais fossem disfarçados como instrumentos de cozinha. Um exemplo típico geralmente citado nesse caso é o da vassoura. Existe alguma possibilidade de que o bastão ou cajado do mago tenha se transformado, ou se disfarçado, na vassoura da bruxa. Existe também alguma possibilidade de que o famoso "vôo das bruxas", montadas em suas vassouras, se devesse a um ungüento baseado em plantas alucinógenas que era esfregado na mucosa da vagina. Nesse caso, o tal "vôo" teria um cunho marcadamente sexual, e a vassoura seria um nítido símbolo fálico. Obviamente, a utilização de tais instrumentos dentro de um contexto ritual, ou mesmo religioso, acabou por determinar a sua consagração. Apenas para fazer uma analogia, seria inconcebível que um padre utilizasse a taça da comunhão para tomar água, cotidianamente. Ou seja: a consagração desses objetos representa, simplesmente, que eles têm uma finalidade específica e que devem ser usados dentro de um determinado contexto. Não há uma "sacralidade" explícita neles, mas apenas a sacralidade que seus possuidores podem atribuir ao seu uso. Os instrumentos e suas correlações Deixando de lado momentaneamente, portanto, aqueles objetos que possuem uma função óbvia e específica, constituindo-se na verdade em instrumentos de trabalho, que podem ter um valor simbólico mas que são principalmente "ferramentas", voltemos a nos concentrar naqueles quatro instrumentos de função essencialmente simbólica e uso ritual. Deixemos igualmente de lado as correlações desses instrumentos com a magia cerimonial e vamos analisá-los dentro do contexto específico da Wicca. Nesse contexto, portanto, os quatro instrumentos são o atame, o bastão, a taça e o pentáculo. Daremos posteriormente descrições mais detalhadas, mas essencialmente o atame é um punhal de fio duplo, o bastão é essencialmente uma vara de madeira (ou por vezes de metal) de cerca de 40 cm de comprimento, a taça é um cálice de metal (ou vidro, ou cristal) e o pentáculo é,

normalmente, um pentagrama (estrela de cinco pontas) inscrito em uma circunferência, podendo ser pintado em uma superfície plana, gravado ou entalhado, ou ainda forjado em metal. Na qualidade de símbolos, esses instrumentos têm correlações específicas com os quatro elementos: ar, fogo, água e terra. O atame é associado ao elemento ar, o bastão ao fogo, a taça à água e o pentáculo a terra. Portar tais símbolos, possuí-los, representa justamente a conexão com esses elementos, a "autoridade" sobre eles, ou ainda o poder de manipulá-los ou simplesmente a habilidade de conhecê-los profundamente. O ar, representado pelo punhal, é o elemento dos inícios, do pensamento, do raciocínio lógico e da palavra, por excelência. O punhal, portanto, traduz que a maior arma, a melhor defesa do iniciado, sacerdote ou mago, é o seu conhecimento. Diversas escrituras sagradas dizem que o princípio era o verbo, e o punhal é a própria palavra cortante, que expressa a vontade soberana de quem a utiliza. Vale lembrar de diversas espadas mágicas lendárias, como a Excalibur, símbolos patentes de autoridade, que não precisavam, em verdade, ser efetivamente usadas em combate, mas cuja simples presença intimidava os inimigos e conferia poder aos seus possuidores. O fogo é o poder da transformação, o elemento da força, que destrói mas faz renascer. O bastão, seu símbolo, é desde tempos imemoriais o símbolo da autoridade dos reis e dos líderes. Ele surge no cajado de Moisés, na lança mágica de Lugh, no caduceu de Hermes, na avassaladora clava de Hércules e, fora do âmbito das lendas e mitos, no cetro dos reis. Se através do ar e da palavra a Vontade se manifesta, é através do fogo que ela se realiza. O bastão é aquele ramo da planta que pode brotar, gerando uma nova planta. É igualmente um símbolo fálico, uma representação do membro viril que fecunda, e talvez possamos afirmar com uma certa segurança que o rei que empunha o cetro assemelha-se ao macho dominante de um grupo de babuínos que exibe o pênis ereto como símbolo de sua primazia sobre os demais membros do grupo. A água representa a fluidez, a suavidade, os sentimentos. De nada adiantaria a vontade que cria os princípios, se estes não puderem se conduzir, caminhar em direção a um objetivo. De nada adiantaria a força do fogo, se este fosse apenas destruição e nada pudesse, no momento conveniente, apagá-lo. A água conduz, dá movimento suave e contínuo, ou arrebata e destrói como a enxurrada se não for convenientemente contida. Ora, a taça contém a água: é a emoção contida, sob controle, que pode ser dosada. É o próprio recipiente que contém a vida e sua continuidade, como foi descrito nas lendas dos cavaleiros da Távola Redonda, em sua busca pelo Santo Graal. Representa, portanto, a compreensão que o mago tem dos fluxos naturais, dos ciclos, do surgimento, manutenção e continuidade da vida, surgida do meio líquido no okéanos primitivo que, para os gregos, circundava e delimitava o mundo. Por fim, na terra repousam os mistérios da vida e da morte. Nela se depositam as sementes, pequenas parcelas secas e aparentemente sem vida das plantas, que irão dela brotar como novas plantas. Nela se colocam os corpos daqueles que se foram, na esperança que um dia renasçam. Escuro, frio, úmido, misterioso como as grutas e altaneiro como as montanhas, é o elemento da magia por excelência. É representado pelo pentáculo, a estrela de cinco pontas que simboliza o próprio corpo humano em suas proporções ideais, como no famoso desenho de Leonardo da Vinci. Contém em si todos os elementos e acrescenta mais um: o elemento imortal, o espírito. Nesse aspecto, o pentáculo confunde-se com a terra por ser esta o início e o fim, a compreensão última da integração de todas as coisas com a natureza, e o círculo em volta da estrela dá exatamente essa noção da totalidade. Deve-se entender, igualmente, o caráter dúbio de todos esses símbolos. O punhal é tanto arma de ataque como de defesa. O bastão pode ser o apoio nos momentos difíceis da caminhada ou a

clava que golpeia. A taça pode conter a água que sacia a sede ou pode ser o instrumento que, num gesto de ofensa, arremessa a bebida na face do adversário. O pentáculo pode ser o símbolo da autoridade ou a moeda que compra os favores. Da mesma maneira, o ar é a brisa fresca e o furação destruidor. O fogo cozinha e acalenta, ou mata e destrói. A água sacia a sede ou leva tudo de roldão. A terra é a guardiã da vida e também da morte. Portar os símbolos, para o mago, é sinal da compreensão desse caráter dúbio e da maneira correta de utilizá-lo. A necessidade e a confecção dos instrumentos Como dissemos no início deste texto, a maior parte dos iniciantes na Wicca têm a impressão que possuir os instrumentos mágicos é uma espécie de pré-requisito para a prática. Isso me passa a impressão de uma "lista de material", como as escolas distribuem no início do ano letivo e, pior ainda, me lembra o início de cada livro da série Harry Potter, quando o jovem bruxo precisa passar pelo Beco Diagonal para comprar o material que irá usar, aquele ano, em Hogwarts. Infelizmente, a maior parte dos livros de Wicca reforça essa impressão, havendo neles o inevitável capítulo que indica os artefatos "necessários" para a "bruxaria". A humanidade tem necessidade de símbolos de caráter religioso. Basta olharmos a imensa profusão de estátuas de todos os tamanhos, crucifixos, medalhas e outros acessórios que são vendidos, todos os dias, na vizinhança ou nos próprios templos cristãos, em todo o mundo. A isso podemos acrescer cristais, bruxinhas, duendes, baguás, mandalas, e inúmeras outras quinquilharias que se vende nas lojas esotéricas, e que são adquiridas como tendo poderes específicos ou como simples símbolos de uma fé alternativa. No entanto, da mesma forma que o cristão não precisa do crucifixo para exercer a sua religião, ou o monge tibetano da roda de oração, o wiccan igualmente não precisa de instrumento algum para sua prática. Nenhum instrumento ou artefato tem poder por si próprio: ele apenas reflete aquilo que o seu possuidor lhe confere ou, ainda, serve como um canal, uma forma de focar o seu pensamento ou a sua vontade com uma finalidade específica. Voltando ao exemplo cristão, o uso de um rosário para rezar é simplesmente uma forma de manter as mãos ocupadas e o pensamento fixo na oração: o rosário é um meio, e não um fim, e não possui, por si só, nenhuma propriedade específica além dessa que mencionamos. Partindo desse princípio, se considerarmos a Wicca como uma religião - conceito que vem se firmando - e a magia como uma arte, poderíamos dizer que a primeira não tem necessidade alguma de instrumentos (embora possa ter de símbolos) e a segunda terá essa necessidade de acordo com o seu uso. Nesse aspecto, vale a pena repetir que a magia não é necessariamente parte integrante da Wicca, mas uma prática correlata. Dessa maneira, não aconselho de forma alguma que alguma pessoa invista tempo e dinheiro em adquirir ou confeccionar instrumentos "mágicos" que não terão nenhuma utilidade, a não ser que essa pessoa dedique, antes de mais nada, o tempo necessário para aprender a dar a eles alguma utilidade. É inútil comprar um piano se não nos dispusermos a aprender a tocá-lo, da mesma forma que possuir um piano não faz de ninguém um pianista. Um piano não faz música sozinho, bem como um atame ou um bastão não farão nada por si só. Comprar um caldeirão, exibi-lo orgulhosamente no meio da sala de estar e declarar-se "bruxa" é inócuo, para não dizer ridículo. No entanto, se alguém se dispuser a aprender sobre ervas, poções e outras práticas, provavelmente, em algum momento, terá necessidade de um caldeirão e de outros instrumentos específicos. Ir até a loja do shopping e comprar um maravilhoso punhal, um

ornamentado bastão, um vistoso pentagrama e um cálice reluzente e dizer-se um mago, ou sacerdote, é risível. Tentar utilizar tais instrumentos sem um conhecimento específico não resultará em nada ou, na pior das hipóteses, pode ser mesmo perigoso. Agora, se a pessoa está trilhando um caminho de conhecimento, adquirindo um treinamento específico, preparando-se conscientemente para exercer um papel que, afinal, é sacerdotal, ela certamente sentirá, em algum momento, a necessidade de possuir tais instrumentos. No entanto, caso a pessoa sinta necessidade de possuir tais instrumentos como um símbolo, um testemunho palpável e material de uma doutrina que ela está abraçando (da mesma forma que os cristãos ostentam o crucifixo), não vejo mal algum nisso. Muitos livros aconselham o iniciante em Wicca a montar um altar - falaremos sobre isso em outra parte desse curso - e nele colocar os seus objetos mágicos, e considero que isso seja uma prática válida, já que é sempre interessante reafirmar que nossa própria casa, como nosso próprio corpo, é um templo. É compreensível que queiramos alguma coisa para olhar quando nos referimos à divindade, embora, no caso da Wicca, talvez bastasse olhar pela janela e contemplar o pôr-do-sol. Se for esse o caso, aconselho fortemente que, na medida do possível, esses instrumentos não sejam comprados, simplesmente. É claro que hoje em dia pouquíssimos de nós dominam a arte de forjar metais e, portanto, se torna quase impossível fazer um punhal ou uma taça, no entanto esses objetos precisam, de alguma forma, ter a marca pessoal do seu possuidor para que sejam, efetivamente, um símbolo da sua conexão com os elementos que representam. Portanto, pode-se comprar um punhal, mas deve-se procurar personalizá-lo de alguma maneira: enfeitar seu cabo, revesti-lo com seda ou couro, decorar sua bainha, gravar algum símbolo pessoal sobre a lâmina. Isso o tornará seu, e o ato de fazê-lo com as próprias mãos reforçará o seu laço com o elemento ar. A mesma coisa se aplica a uma taça. Quanto ao bastão, nada mais simples que conseguir um galho razoavelmente reto de árvore. Num simples passeio por um bosque pode-se encontrar vários, e certamente um lhe atrairá de alguma forma. Pode-se evitar cortar um galho mas, se for necessário fazê-lo, é costume pedir licença à árvore e deixar algo em troca: alguns fios de cabelo são o bastante. Depois disso, é fácil enfeitar esse galho, igualmente gravar nele alguns símbolos pessoais, talvez acrescentar um prisma de cristal à sua ponta. Basta usar um pouco de criatividade e alguma paciência, lembrando que todo o tempo dedicado a esse trabalho estará, na verdade, criando uma relação profunda entre esse objeto e o seu possuidor. Hoje em dia, vende-se pentáculos até em feiras livres: eles são pingentes de cordões ou portaincensos. Ao invés de simplesmente comprar um, o melhor é pintá-lo sobre madeira, ou argila, ou ainda sobre uma pedra razoavelmente plana. Além do simples pentágono estrelado envolto pelo círculo, acrescentar outros símbolos que o identifiquem com aquele que o pintou criará aquele vínculo ao qual nos referimos. Por fim, voltamos a afirmar: nada disso é indispensável, nada disso é pré-requisito. Ninguém precisa de tais objetos e, com o passar do tempo e com a experiência, eles serão cada vez mais simples muletas, nas quais poderemos ou não nos apoiar, conforme nossos passos se tornem mais seguros. A verdadeira força, o verdadeiro poder, a verdadeira conexão e o real espírito da Wicca reside dentro de cada um de nós, partes integrantes que somos do Todo. Notas: 1

in www.mitoemagia.com.br, seção "Os Textos", subseção "Bruxaria e Paganismo", sob o título "O Caminho da Magia Parte V".

2

Le Goff, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. Charpentier, Louis. Os Gigantes e o Mistério das Origens. Lisboa: Bertrand, 1974. 4 Lévy, Eliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. São Paulo: Madras, 1998. 5 justamente por causa disso as moedas são importantes evidências arqueológicas, que permitem datar escavações e estabelecer a origem de determinadas ruínas, ou ainda com que outros povos certos povos antigos comerciavam. 3

A RODA DO ANO O principal fundamento ritualístico da Wicca, e aquele que mais aproxima esse sistema de um princípio que poderia ser definido como "religião", é um calendário constituído por oito celebrações, distribuídas ao longo do ano em intervalos aproximadamente eqüidistantes, chamado comumente de A Roda do Ano. Esse calendário é constituído por uma união de celebrações que são comuns a inúmeros povos e culturas ao redor do mundo - os equinócios e solstícios, que marcam o auge das estações do ano - e por datas que eram celebradas, especialmente, pelos povos de origem celta e que marcam o ponto de transição entre as estações, ou o início real de cada uma delas. A essas celebrações, foi dado o nome de sabás. Esse era o nome atribuído popularmente às supostas assembléias de bruxas, desde fins da Idade Média até o período de arrefecimento da perseguição da Santa Inquisição, em princípios do século XVIII. No imaginário popular da época, tais assembléias eram ritos de adoração ao demônio, caracterizados por orgias e sacrifícios humanos, e a escolha desse nome para as celebrações da Roda do Ano (provavelmente por Gardner), deve ter se baseado na idéia corrente no início do séc. XX que tais imagens eram apenas o exagero e a má interpretação de cerimônias pagãs que ainda ocorreriam na Europa medieval-moderna. Hoje em dia, é bastante incerto que em qualquer época tenha havido qualquer coisa parecida com os sabás descritos nos processos da Inquisição, sendo mais provável que todas as descrições não tivessem nenhum fundo de realidade e fossem apenas fruto de superstições. Os sabás da Wicca, no entanto, apesar do nome (propositalmente ou não) polêmico, são antes reminiscências ou tentativas de reconstituição de cerimônias de caráter religioso bastante antigas, algumas provavelmente remontando a períodos anteriores à dominação romana da Europa Ocidental. Obviamente, não se pode de forma alguma afirmar que venham a ser reconstituições fiéis, uma vez que pouco se sabe de tais tradições além do que foi conservado ao longo dos séculos através de celebrações cristãs que incorporam tais ritos em sua liturgia. Além disso, a própria sistematização da Wicca acrescentou a estes ritos elementos de culturas diferentes, ou ainda elementos que, por sua abrangência cultural, podem ser considerados universais. No entanto, não é nossa intenção, nesse tópico do curso, focalizar especificamente os sabás, sua celebração ou seus elementos. Isso será assunto do nosso próximo tópico. Nesse texto, o que pretendemos é fazer uma explanação e uma análise geral do caráter ritualístico associado ao conjunto das oito celebrações, bem como determinados paralelos entre essas celebrações e aspectos da vida humana, seja individual ou coletiva. A Roda do Ano como reflexo da Natureza

A noção de um tempo linear, que pode ser parcelado e no qual os acontecimentos se sucedem a partir de uma ordem inflexível, onde o passado é algo irrecuperável, é bastante recente. Ela se instalou na mentalidade ocidental a partir do cristianismo, que preconizava o tempo como uma linha reta, que havia se iniciado com a criação e teria fim com o juízo final. Jacques Le Goff1 e outros historiadores nos apontam como, ainda na Baixa Idade Média, essa noção de tempo linear chocava-se profundamente com a mentalidade do camponês comum, acostumado ao tempo cíclico, regido pelas estações e pela noção do eterno retorno. Tal apego ao tempo cíclico é simbolizado pela imagem sempre presente na iconografia medieval da "Roda da Fortuna", ou ainda, como nos cita o historiador, no dístico encontrado numa miniatura italiana do século XIV: sum sine regno, regnabo, regno, regnavi2. Em outro momento deste curso, já discutimos o fato de que sistemas de crença semelhantes ao da Wicca apenas puderam se estabelecer após a descoberta da agricultura pelos agrupamentos humanos. Isso se deve ao fato que o tempo agrícola é essencialmente um tempo solar: o calendário das atividades ao longo do ano é estabelecido pelas estações, pelo tempo de duração dos dias e, conseqüentemente, pela presença ou ausência do calor do sol. Essa é a noção de tempo solar cíclico que é perfeitamente representada pela Roda do Ano e, em última análise, as cerimônias que a pontuam, ao longo do ano, visavam primordialmente a manter esse ciclo, preservá-lo, garantir que ele seria perene - em suma, eram basicamente cerimônias solares, que visavam assegurar o retorno, a manutenção da seqüência das estações. A lenda (ou versão romanceada) associada à Roda do Ano, no entanto, preserva a dualidade cooperante entre o feminino e o masculino, e seus protagonistas são o Sol, como princípio fertilizador e mantenedor, e a Terra, como princípio gerador da vida. Dessa forma, temos espelhados os conceitos que apresentamos, anteriormente3, ao descrever as figuras do Deus e da Deusa, na Wicca. Antes de começarmos a descrever essa lenda, no entanto, vale lembrar que ela se consolidou em países onde o clima é muito mais rigoroso do que o clima brasileiro, e onde as estações são muito mais diferenciadas do que aqui. De qualquer forma, mesmo em latitudes tropicais, diversas mudanças climáticas são perfeitamente observáveis no decorrer do ano. Comecemos nossa história bem no início da primavera. Depois dos dias curtos e frios do inverno, o sol vai pouco a pouco ganhando força no céu e a terra, paulatinamente, se liberta de sua capa de gelo. Nesse momento, tanto o sol quanto à terra são crianças, nascidas há pouco, que dão os seus primeiros passos na jornada anual. Esse processo se prolonga até o equinócio de primavera, quando o solo já completamente descongelado pode receber plenamente os raios do sol, e a terra pode começar a ser preparada para o plantio. Os dias, agora, são tão longos quanto às noites, e diz-se que a Deusa-Terra e o Deus-Sol são adolescentes, que se encontram pela primeira vez e se apaixonam. Essa paixão se consolida no início do verão: o momento do plantio das sementes é o momento do casamento divino, quando o Deus-Sol engravida a Deusa-Terra. A primeira metade do ano termina, portanto, com a jovem terra grávida das sementes e com o sol assumindo seu papel de provedor e mantenedor da vida, atingindo a idade adulta - seu máximo tempo de permanência no céu - no auge do verão. Na segunda metade do ano, conforme a Deusa se prepara para dar à luz o seu filho divino, ela oferece aos homens os seus frutos, sob a bênção do sol. São as colheitas, primeiramente dos produtos de consumo rápido, no início do outono e, no auge dessa estação, daqueles grãos e frutos que serão conservados e constituirão a reserva alimentar para o inverno que se aproxima. O sol começa a diminuir seu tempo de permanência no céu, os dias se tornam mais curtos. No seu papel de provedor da humanidade, diz-se que o Deus-Sol envelhece e cresce em sabedoria.

No entanto, o início do inverno marca o momento de sua morte: com a perda do seu consorte, a Deusa-Terra se recolhe ao submundo para dar à luz a criança que cresce em seu ventre. O auge do inverno, fim da segunda metade do ano, é o momento do mistério e da transformação. É o momento do nascimento da criança divina, e esta é o próprio sol, o Deus-Filho e consorte, que, tendo atingido o seu ponto mais baixo no céu, de agora em diante só irá crescer. A DeusaTerra, após o seu exílio, surgirá novamente como criança, dando início a um novo ciclo. Essa alegoria, portanto, nítida representação do suceder das estações associado ao ciclo de plantio e colheita, atribui um caráter reverencial, ou mesmo divino, a fenômenos naturais que, com maior ou menor intensidade, são sentidos em qualquer região do planeta. Na verdade, qualquer cultura agrícola pontuava esses momentos nodais do ano com cerimônias específicas, realizadas nos momentos de auge das estações - equinócios e solstícios, respectivamente os momentos de igual duração ou de maior diferença entre o dia e a noite - ou, mais raramente, como no caso dos celtas, nos momentos de início real das estações, ou de transição entre uma e outra estação. No caso da Wicca, como falamos, preferiu-se privilegiar ambos os momentos. A Roda do Ano como reflexo do homem e da sociedade Independentemente do fato que há uma óbvia diferenciação entre a forma como as estações do ano se apresentam e a variação das temperaturas é sentida, e entre as próprias culturas e costumes que se formaram a partir desses fatores climáticos, o mito que descrevemos acima encontra seus paralelos, igualmente, na vida humana e na vida cotidiana das sociedades. Costuma-se dividir a Roda do Ano em duas metades. A primeira, representando a "metade clara do ano", estende-se desde o solstício de inverno (o nascimento do Deus) até o solstício de verão (sua maturidade), englobando o início da primavera, seu auge (equinócio) e o início do verão. A segunda seria a "metade escura do ano", indo desde o solstício de verão até o solstício de inverno, e englobando o início e o equinócio de outono, bem como o início do inverno. A metade clara do ano corresponde justamente àqueles momentos cruciais da primeira fase da vida: nascimento, puberdade e maturidade sexual, casamento. São momentos que, não importando a sazonalidade específica, são geralmente marcados por cerimônias próprias e correspondem igualmente a uma fase da vida de consolidação do eu, do indivíduo. Já a metade escura representa em especial as realizações: o nascimento dos filhos, o usufruir dos frutos do trabalho, a substituição gradativa da força física e do vigor pela sabedoria. É, dessa forma, mais voltada à coletividade, ao grupo familiar, do que ao indivíduo. É nessa fase, já estabelecido como membro produtivo da comunidade, que a pessoa está apta a exercer seu papel de conselheiro, líder ou mesmo sacerdote. Se extrapolarmos esse raciocínio para o rol de atividades da comunidade 4, no decorrer do ano, veremos que este estará, da mesma forma, convenientemente representado. A metade "clara" do ano é dedicada a atividades essencialmente individuais (o preparo da terra e o plantio), ao passo que a metade "escura" se dedica especialmente às atividades coletivas, como a colheita e o armazenamento. Os intervalos entre essas atividades são marcados por pausas no trabalho agrícola: os períodos do verão e do inverno, sendo o primeiro devotado a atividades que não a agrícola e o segundo, ao recolhimento. A importância da Roda do Ano

No início deste tópico, dissemos que a Roda do Ano constitui o principal fundamento ritualístico da Wicca. Uma vez explanados os princípios e o simbolismo geral que regem esse calendário de comemorações, vale a pena nos determos um pouco mais na sua importância dentro da doutrina, antes de começarmos a examinar mais detalhadamente cada um dos seus elementos constitutivos, o que faremos no próximo tópico. Em primeiro lugar, como já afirmamos, a observância da Roda do Ano é o principal argumento que se poderia utilizar para defender a Wicca como uma forma de religião, e não simplesmente como um sistema mágico com características próprias, a exemplo da Magia Cerimonial, da Thelema e outros. Excluindo a adoração de deuses específicos e o estabelecimento de dogmas, uma vez que existem religiões que não possuem nenhuma das duas coisas, uma das características que podemos observar em qualquer religião é a existência de um calendário litúrgico próprio: determinadas celebrações que são realizadas ao longo de um determinado período, com maior ou menor regularidade, e que estão diretamente vinculadas às crenças específicas dessa religião. Como pudemos ver ao discorrer sobre o simbolismo geral da Roda do Ano, e como veremos ao analisar cada uma das comemorações que a compõem, esta é justamente um sistema de compreensão e integração com a natureza, e ainda de aproximação do microcosmo humano ao macrocosmo natural, o que é, a princípio, justamente o objetivo da Wicca e sua principal forma de ação5. Em segundo lugar, a tão alegada "ancestralidade" da Wicca apenas se manifesta através da Roda do Ano. Qualquer outra tentativa de defender essa ancestralidade, como a manutenção de ensinamentos antiqüíssimos através de tradições familiares ou sociedades secretas de qualquer espécie, é basicamente indefensável e alheio a qualquer tipo de consideração histórica séria. Transmissões desse tipo, através de supostas linhagens, mesmo que possíveis, resultariam quando muito na conservação por um pequeno grupo de uma ou outra tradição específica, necessariamente deturpada pela forma de transmissão, mas nunca no conjunto da Wicca que, como já pudemos discutir, somente começou a ser estabelecido em meados da década de 1950. Portanto, o único momento em que a Wicca apresenta características cuja antiguidade pode ser traçada além da Baixa Idade Média, é justamente ao manter no seu corpo doutrinário esse conjunto de celebrações ou, melhor dizendo, é ao buscar resgatar o sentido original dessas celebrações. Em especial a celebração dos equinócios e solstícios é quase tão antiga quanto à civilização, e influenciou profundamente quase todas as religiões modernas, em especial as que se desenvolveram no Ocidente. Vemos evidências dessas celebrações em inúmeros alinhamentos megalíticos da Europa, em especial em Stonehenge; as encontramos nos templos maias, astecas e incas; até mesmo entre os mais primitivos habitantes do Brasil, no sítio piauiense conhecido como as "Sete Cidades", encontram-se evidências arqueológicas desse tipo de culto. Portanto, a Roda do Ano é o principal (senão o único) elo de ligação da Wicca com essa antiguidade verdadeiramente pagã, governada pelo ritmo da terra e do sol, que desconhecia o tempo linear e vivia ao ritmo dos ciclos de plantio e colheita, de nascimento e renascimento. Notas: 1

Le Goff, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. "Estou sem reino, reinarei, reino, reinei". 3 ver o tópico "As Divindades", deste curso. 4 vale lembrar que, nestas considerações, ao me referir a "comunidade", estou considerando uma 2

comunidade em um estágio cultural pré-urbano, ou semi-urbano, a exemplo das existentes na Europa Ocidental antes da conquista romana, ou as sociedades indígenas, de uma forma geral. 5 basta rever os tópicos do capítulo "Fundamentos Mítico-Religiosos" deste curso.

OS SABÁS Uma vez que, no tópico anterior, abordamos a Roda do Ano como um todo, chega o momento de nos focarmos nas oito celebrações que a compõem, nos seus simbolismos próprios, e nas formas como elas foram assimiladas e incorporadas ao imaginário da civilização ocidental. De início, voltemos ao termo "sabá", nome utilizado para essas oito celebrações. Seria inócuo tentar substituí-lo, mas vale deixar claro a sua inadequação, como aliás já aludimos anteriormente. Em primeiro lugar, trata-se de um termo cujo significado, se relacionado com magia ou bruxaria, é de origem marcadamente cristã. Na época de maior atuação da Inquisição, em meados do século XVI, era indistinto para a Igreja a figura do bruxo e o judeu, ou outras minorias étnicas indesejáveis: dessa forma, o nome do dia sagrado do judaísmo, o dia, por excelência, consagrado ao culto - o sabbath - veio a tornar-se, igualmente, o nome do culto ao demônio praticado pelas "bruxas". O prof. Carlos Roberto Nogueira nos lembra, inclusive, que "o uso freqüente do termo sinagoga nos registros dos tribunais para designar a assembléia bruxesca indica como os juízes identificavam um parentesco próximo das bruxas com outros tipos de infiéis e heréticos, equiparando o seu culto perverso à conhecida e odiosa assembléia dos judeus1". Se formos além em nossa crítica, e nos detivermos na significação pura e simples atribuída ao sabá, independente do significado que pretende lhe atribuir a Wicca, encontraremos em inúmeras obras referências a essas supostas cerimônias, dificilmente elogiosas. No clássico estudo de Jean Palou, A Feitiçaria, lemos que "o sabá é a missa diabólica celebrada pelo padre demoníaco que é o feiticeiro2". Uma obra anônima, Magia e Sortilégios3, nos diz que "o essencial do sabá e de todas as práticas semelhantes consistia em atos sexuais", e o próprio Eliphas Levi nos diz que o sabá "tratava-se de uma assembléia de malfeitores que explorava os idiotas e os loucos4". No entanto, o mais aceito hoje em dia é que as descrições dos sabás, encontráveis em inúmeros registros da Inquisição, nada mais eram do que fruto de imaginações doentias, ou delírios extraídos de mentes e corpos alquebrados pela tortura. Se em algum momento, entre a Idade Média e o Renascimento, aconteceram sabás, esses provavelmente seriam uma reação de revolta contra o pesado jugo imposto pela Igreja e pelo Estado, como nos diz Jacques Finné em sua obra clássica Erotismo e Feitiçaria: "o sabá constituía, antes de qualquer coisa, uma revolução dirigida contra vários focos, entre os quais a Igreja, as estratificações sociais, a subnutrição e a maldição da carne5".

Independentemente da realização ou não, em tempos antigos, de cerimônias mais ou menos diabólicas, mais ou menos libidinosas, por supostas bruxas; independentemente da continuação de tais ritos blasfemos pelos Cavaleiros Templários e tantas outras alegações, a verdade é que a palavra sabá tornou-se carregada de implicações tão negativas quanto à própria palavra bruxa, e é interessante notar como ambas as palavras foram preservadas por Gardner ao sintetizar a Wicca, o que, certamente, acabou trazendo uma série de interpretações errôneas para essa doutrina. No entanto, não podemos nos esquecer que Gardner estava convencido da idéia que os relatos da Inquisição eram interpretações errôneas da sobrevivência de um "culto das bruxas", e muito do que ele escreveu baseava-se nessa idéia. Deixando de lado, porém, as implicações ou significados que possa ter a palavra sabá, e as várias interpretações a ela atribuídas, passemos a nos concentrar naquilo que esta palavra representa para o nosso assunto, ou seja: a denominação utilizada dentro da Wicca para aquelas oito celebrações, ou festivais, que marcam o calendário litúrgico conhecido como Roda do Ano, que descrevemos no tópico anterior. O calendário dos Sabás Conforme dissemos, a Roda do Ano é marcada por oito pontos nodais, que reúnem os equinócios e solstícios (auge das estações) e os pontos de transição, ou início de cada uma das quatro estações do ano. Para uma compreensão melhor, vale dizer que o momento que atualmente, no calendário civil, é considerado como o início de cada uma das estações, corresponde realmente ao seu auge. Exemplificando, quando nos reportamos ao início da primavera, comumente, por volta do dia 20 de setembro, este é, na realidade, o equinócio de primavera, ou seja, quando a estação está plenamente estabelecida. Dessa maneira, teríamos a seguinte ordem para os sabás: Data 02/02 ± 21/03 01/05 ± 21/06 01/08 ± 21/09 31/10 ± 21/12

Nome do Sabá Lughnasad ou Lammas Mabon Sanhaim Yule Imbolc Ostara Beltane Litha

Ocasião início do outono equinócio (auge) do outono início do inverno solstício (auge) do inverno início da primavera equinócio (auge) da primavera início do verão solstício (auge) do verão

Logo de início, preciso ressaltar que a ordem que descrevi acima leva em consideração o suceder das estações no hemisfério sul. A maior parte dos livros de Wicca que encontramos no mercado se baseia no hemisfério norte, uma vez que são escritos por autores americanos ou ingleses, sendo que mesmo alguns autores nacionais defendem que essa ordem deveria ser mantida, por uma questão de "tradição". No entanto, isso é indefensável, se levarmos em consideração que o principal objetivo dessas celebrações é estabelecer um vínculo, uma conexão com os ciclos naturais. Obviamente, não faz nenhum sentido essa conexão com uma natureza diferente da que nos cerca.

Conforme citamos no tópico anterior, os quatro festivais que marcam o início real das estações, ou o momento de transição entre elas (Lughnasad, Samhain, Imbolc e Beltane), provém especialmente da tradição celta insular, sendo essencialmente festivais do fogo, ou festivais solares, relacionados principalmente com a figura de deuses como Lugh e Belenus. Conforme nos narra Barry Cunliffe6, no entanto, há relativamente poucas referências arqueológicas diretas a esses festivais, o que impossibilita sabermos com maior segurança como eles se davam originalmente. Na verdade, no Calendário de Coligny, datado do século I a.C. e principal referência arqueológica à divisão celta do tempo, estão indicados apenas os festivais de Beltane e Lughnasad, o que parece indicar que, nessa época, os velhos costumes já estavam sendo abandonados na parte mais civilizada do mundo celta. No entanto, por remeterem diretamente à tradição celta - e dessa forma ter uma certa "ligação ancestral" com os fundadores - esses quatro festivais são denominados, na Wicca, de Grandes Sabás. Os quatro outros festivais (Mabon, Yule, Ostara e Litha) - os Pequenos Sabás - parecem ser simplesmente um amálgama de diversas tradições de ritos equinociais e solsticiais, com elementos tirados de ritos nórdicos e de outras tribos bárbaras da antiga Europa, bem como de outras tradições não-européias, como a própria Páscoa judia. Como já citamos, festivais marcando os equinócios e solstícios são ritos cuja antiguidade é imensa, e são comuns a quase todas as sociedades agrícolas ao redor do mundo. Para sermos exatos, é difícil precisar em que momento começa a haver uma sistematização desses festivais dentro da Wicca. No primeiro livro de Gardner, "Bruxaria Hoje", há referências aos sabás mais ou menos nos moldes das "reuniões de bruxas" descritas pela Inquisição, mas apenas uma breve alusão a uma cerimônia específica, em verdade um Yule, ao qual o autor teria assistido7. Obras posteriores, no entanto, como o "Oito Sabás Para Bruxas", do casal Farrar 8, já trazem uma imagem acabada do que seriam essas cerimônias, o que reflete certamente a forma como as idéias de Gardner foram sendo consolidadas e outras fontes folclóricas foram incorporadas à doutrina, ao longo das décadas de 1960 e 1970, principalmente. De qualquer maneira, vale ressaltar que, embora dentro da Wicca haja uma tentativa de resgate dos valores originais associados a essas cerimônias, elas não são, de forma alguma, estranhas ao nosso próprio calendário civil ou mesmo àquelas datas que, comumente, associamos à cristandade. Pelo contrário, tanto os sabás quanto às festas religiosas que se integraram à tradição cultural do Ocidente possuem uma base folclórica comum e significados semelhantes. O que ocorreu, na realidade, foi uma incorporação ou ainda uma "releitura" sob a ótica cristã, de datas, ritos e festividades "pagãs", como veremos a seguir. Yule, o Solstício de Inverno O sabá comemorado na noite mais longa do ano é o sabá do renascimento. É interessante reparar que essa época do ano, para inúmeras religiões nascidas de civilizações agrícolas, está associada ao nascimento de seu deus-solar, de alguma forma. A verdade é que a associação do renascimento à noite mais longa do ano é bastante natural, posto que ela é o ápice da estação fria e, a partir desse momento, os dias começarão a alongar-se e a natureza progressivamente se revitalizará. No hemisfério norte, o solstício de inverno ocorre próximo ao Natal cristão. Aliás, Janet e Stewart Farrar9 usam mesmo o termo natal, ao invés de Yule. Essa data, em especial, foi uma das mais sincretizadas pela cristandade, já que podemos afirmar que a "data de nascimento" de Jesus foi convencionada para se ajustar ao solstício. Basicamente todos os símbolos associados ao

Natal têm origem pagã e refletem justamente aqueles elementos naturais que permanecem vivos ao longo do inverno, ou que mantém os homens durante esse período. Assim, temos o pinheiro, que se conserva verde durante o inverno, e as frutas secas, as nozes e outros alimentos, bastante calóricos e de fácil conservação. A celebração do Yule pode parecer dúbia, por se situar numa época do ano que incita ao recolhimento, principalmente nos lugares de clima mais frio, e ser também a alegre celebração do nascimento do Deus. No entanto, deve-se ter em mente que ela é o início de uma fase de recuperação e crescimento, e é justamente isso que se saúda: a chegada do auge do período de estagnação, numa concepção cíclica, representa que o seu fim igualmente chegará. Um antigo costume reza que as cinzas da fogueira acesa na noite do Yule devem ser espalhadas pelos campos, o que nos traz justamente o espírito dessa celebração: o calor, simbolizado pela fogueira, está prestes a retornar e, ao espalhar as cinzas dessa fogueira, a idéia é que o sol venha fertilizar a terra, na primavera vindoura. A troca de presentes parece trazer, igualmente, a idéia de fortalecimento do espírito de coletividade, o compartilhar das reservas para a superação da fase de privações10. Imbolc Como vimos anteriormente, os solstícios e equinócios marcam o auge das estações, apesar de serem atualmente considerados como o início destas. Assim, o sabá Imbolc comemora a chegada da primavera e o final do inverno. Temos ainda as noites mais longas que os dias, mas o ciclo de aquecimento, a metade clara do ano, já começou. O Imbolc é um festival do fogo, representando o Deus que começa a crescer e, com o seu calor, prepara a fertilidade da terra. Há relatos de que, entre os celtas insulares, era uma data dedicada à deusa Brigid (posteriormente cristianizada como Santa Brígida), divindade do fogo, comemorada com procissões onde os participantes portavam tochas. Tradicionalmente, também, fazia-se nessa época a limpeza ritual dos locais de culto, simbolizando que as reminiscências negativas do ciclo anterior deviam ser apagadas, para que um novo ciclo de vida possa se instalar. Em relação a este sabá, várias considerações interessantes podem ser feitas. Da deusa Brigid dizse que teria nascido exatamente ao nascer do sol, e uma grande torre de chamas teria se elevado aos céus do topo de sua cabeça. Diz-se também que sua respiração traria nova vida para os mortos. Eis aqui claras alusões ao retorno do sol, após o inverno. É interessante também notar que aproximadamente nesta data os Astecas celebravam o seu ano-novo, onde vemos mais uma alusão a um período de reinícios. A alegria pelo final do inverno também transparecia nas Lupercalia romanas, que vieram depois dar origem ao Carnaval. Comemorado no hemisfério norte a 2 de fevereiro, essa data ficou marcada para a cristandade como a purificação de Maria - a idéia da limpeza ritual, que se reflete no Brasil em festas como a da Lavagem do Bonfim, que ocorre aproximadamente na mesma época - e como a apresentação de Jesus no Templo (a idéia do deus-solar que deixa a infância), em mais uma tradução cristã dos ritos pagãos. O cristianismo associou igualmente a figura de Iemanjá (cuja festa acontece no Brasil em 2 de fevereiro) à Maria. Levando-se em conta que tanto Iemanjá como a deusa celta Brigid eram associadas pelos povos que as cultuavam a rios locais, esse é um interessante paralelo. Ostara, o Equinócio de Primavera

O sabá do equinócio de primavera parece ter o seu nome derivado da Deusa Eostre, deusa saxônica da fertilidade, cujos símbolos eram o ovo e o coelho. É portanto, um festival de fertilidade, um festival de plantio, onde se pediam as bênçãos para a germinação das sementes recém-plantadas. Pela tradição da Roda do Ano, poderia-se dizer que em Ostara anula-se de vez a imagem da Deusa como mãe e do Deus como filho. A face de mãe ou de anciã da Deusa, ou ainda a de criança virginal, que prevaleciam até aqui, é substituída pela face da donzela, pronta a assumir seus atributos sexuais, como a própria terra a ser semeada. O Deus por sua vez, encontra-se aqui na figura do jovem vigoroso, apesar de ainda não apresentar a plena força e maturidade. A duração igual de dias e noites, alcançada neste período, é mais um aspecto a ser levado em conta, visto que pode ser interpretado como o próprio equilíbrio da natureza se restabelecendo. A partir daqui, o Sol e a Terra caminharão juntos, como casal divino. A festa cristã da Páscoa, que no hemisfério norte coincide aproximadamente com o equinócio de primavera, traz em si símbolos que pertencem tanto às tradições pagãs européias quanto à Páscoa judaica. O simbolismo do ovo e do coelho foi assimilado das tradições pagãs e por isso, hoje, parecem deslocados do ritual cristão, que nesse ponto se assemelha mais à imolação do cordeiro, típica da Páscoa judaica. Convém lembrar, no entanto, que os cristãos celebram nesta época a morte e a ressurreição de Jesus (o cordeiro de Deus), e que a lebre é um antigo símbolo de ressurreição. Da mesma forma, diz-se que Jesus morreu como Filho, tendo ressuscitado como Deus - o que tem um inegável paralelo com a situação descrita para o Deus pagão, que nesta época deixa de ser o filho divino da Deusa e torna-se seu futuro deus-consorte. De qualquer forma, este sabá e o próximo são dos poucos que preservaram, no hemisfério sul, comemorações independentes das datas estabelecidas no hemisfério norte, o que mostra a força das tradições ligadas a eles. O equinócio de primavera, aqui, acontece em setembro, e existem inúmeras comemorações no Brasil nessa época que, de uma forma ou de outra, remetem a antigos ritos pagãos, como o próprio costume de eleger-se nas escolas uma Rainha da Primavera. Beltane Beltane representa a transição entre a primavera e o verão e simboliza a consumação da união sexual entre a Deusa e o Deus. Poderia-se mesmo dizer que o verão, estação da frutificação, começa a manifestar-se aqui, para atingir o seu ápice no próximo solstício. Dessa forma, toda a simbologia do Beltane tem, inegavelmente, um cunho sexual. Enquanto em Ostara a fertilidade era apenas palpável e desejada, aqui ela se transforma em ato, representando que o calor do sol penetrou na terra para nela engendrar seus frutos (plantio). Embora diversos costumes da celebração de Beltane tenham subsistido e sido assimilados pelo ocidente cristão, as celebrações típicas de Beltane, que ocorrem em 1º de maio no hemisfério norte, foram empurradas pela cristandade para o mês seguinte, dando origem às festas juninas. As fogueiras de Beltane subsistiram nessas festas, bem como o costume de pulá-las. Os Maypoles, em torno dos quais dançava-se, tornaram-se os mastros onde colocam-se "bandeiras" dos santos católicos, costume ainda popular no interior do Brasil, e em torno dos quais dança-se a "quadrilha". Esta é, de forma inegável, uma mistura de dança circular com elementos de dança de salão francesa, e há de se notar que o elemento central sobre o qual as "quadrilhas" desenvolvem-se é o casamento. Vale dizer, ainda, que este "casamento", na versão humorística das quadrilhas, não é um casamento consensual, mas sim um casamento obrigado (e geralmente

associado a uma gravidez prematura): talvez aqui tenhamos uma lembrança dos ritos sexuais de Beltane, e de uma posterior "moralização", associando o sexo obrigatoriamente ao casamento. A adivinhação era igualmente uma prática comum nesse festival pagão, e isso manteve-se na tradição popular, pois é comum acreditar-se que as moças solteiras, nas noites de festa dos santos "casamenteiros", poderão visionar seus "futuros maridos". O método usado para isso, à visualização na água, é hoje basicamente o mesmo daqueles tempos. Talvez esse deslocamento da data para o mês seguinte tenha origem na tradição celta que proibia casamentos no mês de maio, por ser este consagrado unicamente ao casamento da Deusa e do Deus, ou ainda às uniões sexuais "sem compromisso". Dessa forma, nada mais natural que o mês seguinte fosse dedicado aos casamentos e, posteriormente, aos "santos casamenteiros". Por outro lado, a celebração do casamento divino ficou nitidamente marcado, pois maio é hoje considerado o Mês das Noivas pelos cristãos, bem como é o mês dedicado a Maria (a esposa-divina). Outro aspecto interessante a ser lembrado é que o 1º de maio é, hoje, comemorado internacionalmente como o Dia do Trabalho. Lembrando-se que o Beltane era um festival de plantio, a associação entre agricultura e trabalho é bastante notável, visto ter sido esta atividade um dos primeiros trabalhos organizados do homem, ou mesmo a atividade que introduziu, para a humanidade, a noção de trabalho obrigatório e sistematizado.

Litha, o Solstício de Verão O dia mais longo do ano marca o auge do poderio do sol. Em Litha, o Deus atinge a maturidade e prenuncia o seu declínio, ao passo que a Deusa, grávida, assume a face da futura mãe. Como no solstício de inverno, o solstício de verão marca uma pausa, um momento de repouso entre as duas metades da Roda do Ano. Aqui, o período não é o repouso forçado pelo inverno, mas sim o repouso prazeroso do verão, o intervalo entre o plantio e a colheita. É de se notar que até hoje, se considerarmos os calendários escolares, teremos férias justamente nesses dois períodos (auge do inverno e auge do verão). Segundo uma das tradições ligadas ao solstício de verão, esse seria o momento em que o Rei do Carvalho, aspecto do Deus que reinou durante a primeira metade do ano (a fase de crescimento, ou seja, do nascimento à maturidade), seria derrotado e substituído pelo Rei do Azevinho, que governará a outra metade (da maturidade à morte). Há aqui um interessante sincretismo apontado por Robert Graves, conforme citado por Stewart Farrar11: ocorrendo sempre em torno de 20 de junho, no hemisfério norte, a data deste sabá praticamente coincide com o Dia de São João Batista. É interessante notar que, segundo a mitologia cristã, João Batista, o feroz pregador, foi substituído em sua missão por "aquele que veio depois dele", ou seja, o sábio e manso Jesus. Eis aqui, portanto, uma assimilação ou um notável paralelo na doutrina cristã da derrota do impetuoso Rei do Carvalho pelo sábio Rei do Azevinho. Lammas ou Lughnasad O Lammas é o sabá que comemora a chegada das primeiras colheitas, juntamente com a chegada do outono. Marca, portanto, a chegada dos primeiros frutos da Mãe-Terra que alimentarão os homens, bem como a transição do Deus-Sol para o papel de protetor e provedor. Convém lembrar que o termo Lammas já é um nome um tanto moderno (e mesmo cristianizado) para esse

sabá, motivo pelo qual pode-se dizer que ele foi antes absorvido do que anulado ou sincretizado, mantendo-se vivo entre a cristandade na forma de inúmeros festivais de colheita, em todo o mundo ocidental. Entre os celtas insulares, porém, era conhecido e celebrado como Lughnasadh. Este festival era dedicado ao deus Lugh, deus guerreiro associado ao sol, que teria tido importância decisiva na vitória dos Thuatha De Dannan sobre os Fomorianos (duas tribos míticas que haveriam povoado a Irlanda). Uma das lendas associadas a Lugh conta que ele teria poupado a vida do chefe inimigo Bres, em troca do segredo de arar a terra, semear e colher. Eis aqui, portanto, uma referência direta à agricultura neste festival, mesmo em sua forma mais ancestral. Aliás, pesquisadores independentes como Louis Charpentier e Juan G. Atienza, no que pesem as críticas que podem ser feitas a um certo diletantismo de seus trabalhos, apontam interessantes paralelos entre a figura de Lugh e numerosas divindades ou "heróis" civilizadores, como, por exemplo, o egípcio Osíris ou o grego Héracles12. Esses autores nos mostram toda uma série de similaridades entre essas divindades solares e sugerem uma ligação destas a uma suposta raça de "construtores de megalitos" que teriam trazido as técnicas da agricultura à Europa Ocidental. A levar-se em consideração tais hipóteses, não de todo absurdas, teríamos uma forte razão para que este festival fosse um dos que subsistiram mais fortemente nas tradições populares. Uma outra tradição ligada ao Lammas era o costume de se atear fogo a uma roda de madeira e fazê-la rolar colina abaixo. Essa prática representava a descida do sol, o encurtamento progressivo dos dias, significando que o Deus entrava em sua fase de decadência. Mabon, o Equinócio de Outono O Mabon é o festival da segunda colheita, ou ainda do encerramento da colheita iniciada em Lammas. Aqui se colhiam os alimentos que garantiam o sustento durante o inverno, bem como se sacrificavam aqueles animais domésticos que não resistiriam à próxima estação, consumindose ou conservando-se a sua carne. De uma forma geral, pode-se dizer que, apesar da aproximação do tempo de privação, o Mabon seria o momento de maior fartura de todo o ano, estando as colheitas completas e o alimento estocado. Dessa forma, a celebração do Mabon resulta num agradecimento pelas dádivas proporcionadas pela Deusa e pelo Deus no decorrer do ano. No Mabon, temos novamente o equilíbrio entre o dia e a noite, significando aqui que ambos os aspectos entram em sua fase final. O Deus encaminha-se para a morte próxima, enquanto a Deusa assume seu aspecto de anciã, preparando-se para a jornada no mundo interior, onde passará o inverno aguardando o nascimento de seu filho. Apesar da origem do nome do sabá ser celta, o folclore do Mabon remete à lenda grega de Perséfone, que conta que esta deusa passava metade do ano proporcionando a fertilidade dos campos e outra metade do ano no Hades (mundo interior) em companhia de seu marido. A época do equinócio de outono era justamente o início do período do ano em que ela morava no submundo. Na Grécia, nessa época, eram celebrados os Ritos de Elêusis, talvez o mais importante festival religioso grego, que perdurou por mais de 2000 anos. Na cristandade, essa data é dedicada ao arcanjo Miguel, considerado pelos cristãos o vencedor de Lúcifer (o portador da luz). É interessante notar que uma das lendas celtas associadas ao Mabon contava que, no equinócio de outono, o deus Lugh (o sol, a luz) era derrotado por seu irmão gêmeo, o deus da escuridão Tanist. De uma maneira ou de outra, surge aqui à idéia da noite sobrepondo-se ao dia.

Samhain O Samhain costuma ser considerado pela Wicca, hoje, como o sabá mais importante. Se formos buscar razões "tradicionais" para isso, dificilmente as encontraremos, uma vez que, como já dissemos anteriormente, esse festival ao menos era citado no calendário de Coligny, principal referência que temos à contagem do ano celta. No entanto, se formos buscar tais razões no simbolismo específico desta data, sua prevalência talvez se justifique. O Samhain era o ano-novo celta. Num aspecto puramente prático, isto significava que as colheitas estavam encerradas, os animais domésticos guardados em seus abrigos de inverno, e as provisões estocadas. Um ciclo de vida estava encerrado, portanto, e restava aguardar o início do novo ciclo. No aspecto místico, no entanto, esta data é carregada de significações. Apesar do Samhain ser celebrado como o final do ano, supõe-se que não se comemorava o início de um novo ano até o próximo Yule, haja visto esse período entre os dois sabás ser considerado como sendo um tempo fora do tempo, um período de suspensão da vida, repleto de magia e de perigos. A relação com os perigos do inverno, com o recolhimento exigido nessa estação nos países de clima frio, com a duração das longas noites invernais, é patente. O próprio nome gaélico significa, literalmente, "fim do verão", evocando o final dos dias de calor. Assim, o momento de maior fartura relativa, em todo o ano, marcava igualmente o momento de maior comedimento, já que os estoques deveriam durar até a próxima primavera. Na noite de Samhain, considerava-se que o véu entre os mundos estaria em seu momento mais tênue, possibilitando a comunicação com os antepassados. Lanternas eram acesas e colocadas nas janelas, para guiar os que já partiram até suas antigas casas. As mesas eram postas com lugares extras para os antepassados, e comida era ofertada a estes. A própria celebração do sabá tem a característica de ser um misto de pesar pela morte e alegria pelo renascimento vindouro refletindo o que seria o momento da morte do Deus solar e do auto-exílio da Deusa no submundo, aguardando o seu retorno. De uma forma geral há, nesse período de inverno e nas celebrações que surgiram a partir do tema, uma característica geral de inversão, ou de subversão da realidade. Os mortos convivem com os vivos, a autoridade (simbolizada pelo poder divino) está ausente, e assim por diante. No entanto, essas características, que se encontram em todas as festividades (muitas das quais permanecem até hoje) que abrangem o período de novembro a fevereiro, no hemisfério norte, são por si só um assunto por demais extenso para tratarmos dele aqui13. Nos atendo ao nosso ponto de interesse, essa dualidade do Samhain nos fala justamente do tema central da Wicca, da revelação do mais profundo dos mistérios. O momento da morte do Deus é o momento do conhecimento que ele gera a si mesmo, pois é ele a criança que gesta no útero da Deusa e nascerá no Yule. O simbolismo da perpetuação da vida, da cadeia circular que se autosustenta, da natureza que é inextinguível pois está continuamente gerando a si própria, se expressa aqui tanto no plano divino quanto no plano humano. A mensagem passada é: somos eternos pois aqueles que partiram continuam vivos em sua descendência, e poder-se-ia dizer que o encontro com nossos antepassados é o próprio encontro com nossos filhos. Ecos desse festival estão ainda bastante presentes no imaginário popular. O Dia das Bruxas, o Halloween, tão tradicional nos países de língua inglesa, mostra-nos isso na forma de crianças fantasiadas de seres fantásticos - fantasmas - o que seria uma forma distorcida de se interpretar os antepassados mortos e mesmo, como dissemos acima, de representar as crianças como continuadoras da presença dos que se foram. Além disso, a tradição cristã associou a essa data

tanto o Dia de Todos os Santos (01/10) quanto o Dia de Finados (02/10). Pode-se ver nas duas celebrações cristãs o culto aos antepassados, tanto na forma de "santos" - antepassados protetores - quanto na forma direta, ou seja: a reverência aos mortos. A celebração dos Sabás Independentemente do caráter simbólico de cada uma dessas celebrações, ou mesmo do fato que elas possam ser utilizadas como condutoras de um calendário litúrgico, ou seja, como bases para estabelecimento de um culto religioso, há ainda um aspecto que considero fundamental ao nos referirmos aos sabás da Wicca: seu cunho congregatório - como cerimônias de participação coletiva - e, ainda, seu caráter que poderíamos chamar de lúdico. No Ocidente, acostumamo-nos a um formalismo religioso. É impossível negar que qualquer um de nós é herdeiro do Cristianismo, já que toda a nossa civilização se estabeleceu sobre bases cristãs. Mesmo aqueles raros que, entre nós, não possuíam pais ou avós cristãos, certamente os tinham professando alguma forma religiosa que já foi, ao longo dos últimos séculos, fortemente influenciada pela prevalência civilizatória do cristianismo. Dessa maneira, acostumamo-nos a separar o que é divino do que é profano, a separar o que é religião do que é o nosso dia-a-dia. Nunca é demais dizer que essa não é, em absoluto, uma visão pagã da religiosidade. A crença nos seus deuses, os ritos a eles dedicados, são partes tão corriqueiras da vida de - digamos - um aborígene australiano, quanto qualquer outra de suas atividades. O formalismo excessivo, manifestado através do "tempo para o louvor", da contrição, da subserviência ou mesmo do "temor" à divindade é essencialmente características cristãs. Se quisermos considerar a Wicca como uma forma de religiosidade pagã, ou ainda (o que seria mais apropriado) como uma forma de resgate de uma religiosidade pagã, adaptada aos tempos atuais, a primeira coisa a fazer é se libertar desse formalismo. Celebrar os sabás não é nem pode ser, de forma alguma, uma prática que incorpora um clima de profunda introjeção e introspecção, para louvar deuses todo-poderosos através de ritos pré-estabelecidos que demonstram nossa submissão e adoração a esses deuses. Se fizermos isso, estaremos apenas estabelecendo uma espécie de corruptela de uma missa católica ou de um culto protestante. A celebração de um sabá é, antes de mais nada, uma festa. É o momento de congregação de uma determinada comunidade, em momentos específicos do ano, para celebrar seus objetivos comuns e sua integração com a natureza. Na verdade, é o momento de dizer: "estamos juntos, compartilhamos de determinados ideais e estamos felizes por causa disso". Um sabá é uma reunião de amigos e, dessa forma, é o momento de bebermos juntos, de comermos juntos, de trocarmos idéias sobre temas que nos são comuns, de privarmos de uma interação que - como nas reuniões de verdadeiros amigos - chega a ser licenciosa. É a manutenção do ciclo comunitário, daquilo que transcende a existência individual. Embora possa haver um tema, ou mesmo um momento explicitamente ritual num sabá, isso quando muito pode ser um fio condutor para a celebração, mas nunca o motivo desta. Nesse ponto, tenho visto muito mais sentido em festinhas de Halloween em escolas do que em rituais seriíssimos de "bruxas" vestidas de preto e altamente compenetradas, condoendo-se pela "morte do deus". Estas últimas talvez estivessem mais bem ambientadas em alguma igreja, igualmente vestidas de preto e com um véu sobre o rosto, lamuriando-se em alguma novena na sexta-feira santa. Por mais que possa soar estranho aos que buscam na Wicca uma "religião", celebrar um sabá, ou participar de um, não é muito diferente de ir a uma festa junina, ou a uma rave, ou a um baile de

carnaval: afinal, todas essas manifestações derivam, de uma forma ou de outra, daquelas comemorações que deram origem aos chamados sabás. A diferença está na existência de um objetivo simbólico definido, que deve estar presente - o porquê de celebrar - e da existência de um grupo definido a ser reunido - o com quem celebrar. Satisfeitos estes dois pontos, teremos as condições necessárias para um sabá, deixando para outras ocasiões específicas aquelas reuniões que terão um objetivo "mágico" ou "ritual" mais explícito. Estas, no entanto, serão assunto de nosso próximo tópico. Notas: 1

Nogueira, Carlos Roberto F. O Nascimento da Bruxaria. São Paulo: Imaginário, 1995. Palou, Jean. A Feitiçaria. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. 3 publicada no Brasil pela Editora Fase, provavelmente em 1982. A edição que possuímos não possui nenhum dado bibliográfico mais acurado. 4 Levi, Eliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. São Paulo: Madras, 1998. 5 Finné, Jacques. Erotismo e Feitiçaria. São Paulo: Mundo Musical, s/d. 6 Cunliffe, Barry. The Ancient Celts. New York: Oxford University Press, 1997. 7 Gardner, Gerald. A Bruxaria Hoje. São Paulo: Madras, 2003. 8 Farrar, Janet e Stewart. Oito Sabás para Bruxas. São Paulo: Anúbis, 1999. 9 idem. 10 Lembremo-nos, a esse respeito, da conhecida fábula da cigarra e das formigas e dos seus dois finais. Num deles a cigarra, que cantou durante o verão para alegrar o trabalho das formigas, é acolhida por estas durante o inverno, numa representação da importância do papel social de cada membro de uma coletividade. No outro final, ao contrário, a cigarra é abandonada para morrer de frio e fome pelas formigas. Enquanto o primeiro final nos parece remeter a uma noção de solidariedade típica de comunidades pagãs, o segundo parece ser uma releitura já contaminada, em especial, pelos ideais até certo ponto individualistas do protestantismo, refletindo talvez a época em que essa fábula foi recolhida e publicada. 11 Farrar, Janet e Stewart. opus cit. 12 ver, a esse respeito, Os Gigantes e o Mistério das Origens, de Louis Charpentier (Lisboa: Bertrand, 1974). 13 é interessante consultar, a esse respeito, meu artigo "Os Ritos de Inverno e a Preservação da Vida", na seção "Os Textos" da Mito e Magia, subseção "Bruxaria e Paganismo". 2

OS ESBÁS No tópico anterior, ao discorrermos sobre os Sabás, apresentamos uma visão geral daquilo que constitui o que chamamos de calendário litúrgico da Wicca. Embora, como dissemos, esses festivais constituam o principal foco ritualístico da doutrina, eles não são - nem poderiam ser, como ficará mais claro adiante - os únicos momentos de celebração ou "culto" associados a Wicca. Dentro do conceito de tempo cíclico, que já explanamos, a Roda do Ano e os sabás representam o grande ciclo solar anual, na verdade presente em todas as concepções religiosas surgidas nas sociedades pós-agrícolas. Poderíamos dizer, grosso modo, que este ciclo solar reflete a coletividade, a vida social ou comunal. No plano individual, ou interno, no entanto, existem também ciclos a serem considerados, igualmente na intenção primordial de harmonização e integração da nossa "natureza interna" com a natureza que é, de certa forma, externa a nós.. Para atender a essa busca de harmonização pessoal, existe na Wicca um tipo de cerimônia específica, que recebe o nome de Esbá. Em contraponto ao grande ciclo solar figurado nos sabás, os esbás estão ligados ao ciclo lunar, mais restrito, o que faz com que suas bases remetam a um período pré-agricola da humanidade, onde o paralelo entre os ciclos lunares e a fertilidade eram vitais para os grupos de caçadores-coletores. Dessa maneira, se os sabás representam o caminho solar, um caminho de realização coletiva, social e material, os esbás seriam a ritualização do caminho lunar, por excelência o caminho da realização interior, do desenvolvimento pessoal e, sobretudo, dos mistérios da vida, do nascimento e, em última análise, da magia. O Caminho Lunar

O conhecido autor Raven Grimassi nos afirma que "a Wicca é, entre outras coisas, essencialmente um culto lunar"1. Essa afirmação, amplamente difundida, chega a parecer paradoxal quando nos defrontamos com o caráter solar da Roda do Ano, e apenas se torna parcialmente verdadeira ao levarmos em consideração o caminho lunar representado nos esbás. Mas o que é, exatamente, o caminho lunar? Maria Nazaré Alvim de Barros, no seu premiado estudo "As Deusas, as Bruxas e a Igreja"2, nos mostra como foram as fases da Lua, em seu "eterno retorno, que propiciaram ao homem tomar contato com um tempo concreto". Além da simples contagem do tempo, no entanto, o suceder das fases da lunares e sua relação com o ciclo menstrual e à fertilidade, ficou associado ao feminino e à Deusa-Mãe. O papel da mulher nas sociedades primitivas como geradora da vida espelhava o próprio papel da Terra. O mistério do sangramento mensal, sem ferimento e sem debilitação, evocava o controle sobre a morte, transformava a mulher, sob o signo da Lua, num ser mágico. Dessa maneira, os primeiros objetos de culto manufaturados que se têm notícia são representações de atributos femininos, muitas vezes exagerados, diretamente ligados à fertilidade e, portanto, aos ciclos lunares. Ainda segundo a mesma autora, o desaparecer da Lua por três dias, a cada ciclo, durante a Lua Nova, veio a estabelecer associações, igualmente, com a idéia de renascimento e de transformação: "A morte da Lua, como a dos homens, é provisória, implica transformação, modificação da existência, logo, é morte iniciática, (...) que permite incorporar as forças desconhecidas e obscuras. (...) Como a mulher, ela é o cálice, o ventre, o receptáculo dos germes do renascimento cíclico, que contém a bebida da imortalidade."3 Dessa maneira, o caminho lunar, que se procura evocar com a celebração dos esbás, é um caminho da interiorização, o caminho iniciático por excelência. Representado no tarô pela seqüência dos arcanos de XII à XXII, ele nos fala das provas que devemos enfrentar em nossa busca do que transcende a existência cotidiana. Aliás, além da própria carta da Lua (arcano XVIII), encontramos nessa seqüência a carta do Louco - o lunático - símbolo do próprio caminho iniciático e do eterno recomeço. O caminho lunar é, portanto, um caminho de aprendizado e desenvolvimento pessoal (que poderíamos chamar de autoconhecimento). Ao contrário do caminho solar, cujas fases e a sistemática estão prévia e seguramente traçadas, existe aqui uma grande individualização e, mesmo, uma insegurança implícita. Basta imaginarmos, traçando um paralelo, o seguinte: se olharmos uma paisagem durante a noite, tendo exclusivamente a luz da Lua, muitas vezes nos surpreenderemos com a mesma paisagem, à luz do dia. À noite, perdemos nossa noção de profundidade; objetos que estão distantes entre si podem parecer estar lado a lado. Para nos guiarmos à noite, não basta ver o caminho, é preciso conhecê-lo, e conhecê-lo com segurança o suficiente para que possamos segui-lo sem confiar na visão. A tônica dos esbás, portanto, é o aprendizado desse caminho lunar, o desenvolvimento pessoal e individualizado de percepções e aptidões que, mais do que servirem simplesmente ao culto, evocam diretamente a transcendência do cotidiano e do cognoscível apenas pela experiência direta. Os esbás e a Deusa Tríplice

Numa abordagem prática, os esbás seriam basicamente reuniões, ou encontros rituais, marcados de acordo com as fases da Lua, em especial na Lua Cheia. Em Gardner 4, eles são citados brevemente em um trecho não creditado, retirado da obra "Aradia, o Evangelho das Bruxas" 5, do folclorista inglês Charles Leland. Nessa obra, publicada em 1899, esse trecho aparece como uma exortação de Aradia, filha da deusa Diana - apresentada como a "rainha de todas as bruxas" -, aos seus seguidores: "Uma vez por mês, quando a Lua Reuni-vos em algum lugar Ou em assembléia num Para adorar o poderoso espírito de Minha mãe, a grande Àquela que de bom Aprender toda a magia, mas que ainda Seus mais profundos segredos, minha Ensinar, na verdade, todas as coisas ainda desconhecidas."

estiver

plena, deserto, bosque sua rainha, Diana. grado não domina mãe irá

Independentemente da validade do relato de Leland, grandemente contestada, no trecho transcrito encontramos alguns elementos que dão idéia da tônica de um esbá. Em primeiro lugar, temos a idéia já referida de uma reunião realizada na noite de Lua Cheia. Em segundo lugar, essa reunião, aparte o seu caráter de culto, possui igualmente um caráter de aprendizado, de ensino de determinados "segredos" ou "técnicas" de magia. Por fim, surge implícito no trecho a figura de uma Deusa Lunar, tanto no aspecto da mãe (Diana) como no da filha (Aradia). Essa idéia de uma deusa lunar de várias faces, que possui grande antiguidade, é bastante difundida na Wicca e deve ser bem compreendida, por possuir uma ligação profunda com a ritualística dos esbás. Claudio Crow Quintino6 nos fala, por exemplo, que todas as deusas celtas são tríplices em sua essência, e cita o caso da Morríghan, que em algumas passagens dos mitos que citam seu nome aparece como uma jovem e sedutora donzela, em outras como uma imponente guerreira e ainda, em outras, como uma desfigurada anciã. Examinando os mitos gregos encontraremos, igualmente, por diversas vezes essa figura de três deusas, ou de uma divindade tripla: temos as três Parcas, as três Graças, temos a tríade formada por Perséfone (donzela), Deméter (mãe) e Hécate (anciã) no mito sazonal da descida ao Hades, ou mesmo as três deusas que disputam o Pomo de Ouro sob o julgamento de Páris: Afrodite (o amor), Hera (o poder) e Atena (a sabedoria). De uma maneira ou de outra, essas trindades femininas divinas nos remetem às fases da Lua e ao simbolismo que a elas, ao longo dos séculos, foi associado. Dessa maneira, teríamos o período compreendido entre a Lua Nova e a meia-Lua correspondendo à Donzela, o período entre esta e a meia-lua seguinte, passando pela Lua Cheia, correspondendo à Mãe, e por fim, o período entre a meia-lua minguante e a próxima Lua Nova, correspondendo à Anciã. No gráfico, além da associação com as três faces das deusas lunares, indiquei igualmente os quatro "momentos", ou as quatro características que podem ser distinguidas num ciclo lunar completo. Se fizermos, neste ponto, uma comparação com o gráfico do ciclo solar que apresentamos no tópico sobre a Roda do Ano, veremos que essas características são semelhantes: o que o ciclo solar nos mostra através de uma perspectiva coletiva e abrangente, o ciclo lunar nos

traz através de uma perspectiva pessoal e individualizada. Se lá aprendíamos a lidar com o coletivo, através do suceder das estações e da saga do deus solar, espelhados nos festivais, aqui aprendemos a lidar com o microcosmo, com o desenvolvimento pessoal, através do suceder das fases lunares e dos aspectos da deusa tríplice, espelhados nos esbás. As energias lunares e a celebração dos esbás Há muito se fala na influência da Lua sobre a personalidade humana. Mesmo não levando em conta considerações místicas ou mesmo astrológicas sobre essa influência, é certo que a Lua, pela sua proximidade com a Terra, possui um papel relevante em diversos processos físicos do nosso planeta, a exemplo das marés. Na verdade, várias pesquisas conseguiram demonstrar que determinados acontecimentos, tais como partos, crises psicóticas e outros parecem ser, de alguma forma, afetados pelas fases lunares. O próprio termo "lunático", aplicado aos loucos, vem de um conhecimento ancestral da influência da Lua nos humores humanos. Donna Cunningham7, referindo-se ao trabalho do Dr. Arnold Lieber, nos diz que: "Lieber cita dezenas de estudos que mostram um aumento do estresse emocional durante as Luas cheia e nova. Um hospital psiquiátrico da rede pública no Texas, constatou um significativo aumento de internações durante a Lua cheia e o quarto minguante. Outro psiquiatra, M. H. Stone, registrou aumento de episódios maníacos durante as Luas cheia e nova. A pesquisa de Lieber também mostrou que a criminalidade segue as fases da Lua. (...) Em Nova York, Filadélfia, Los Angeles e Miami os incêndios criminosos aumentam durante a Lua cheia." Se tais efeitos, comprovados estatisticamente, devem-se à atração gravitacional da Lua ou a outros fatores conhecidos ou não, não cabe a nós discutir. Dentro do nosso interesse imediato, o que poderíamos dizer é que, aparentemente, existe uma espécie de "energia" lunar que, de alguma maneira, influencia no comportamento humano. Essas energias, que a sabedoria popular retratou em suas deusas lunares e associou a períodos de crescimento, plenitude, recolhimento e transformação, é o que se busca trabalhar nos esbás. Embora a palavra esbá se refira especificamente a reuniões realizadas na Lua cheia, estamos empregando aqui esse termo com o significado de qualquer reunião realizada em sintonia com as fases lunares. Na verdade, não existe qualquer padrão geral na periodicidade com que grupos de praticantes da Wicca, círculos ou covens8 se reúnem: alguns o fazem semanalmente, outros quinzenalmente ou mensalmente. No entanto, mesmo respeitando as conveniências de seus membros, essas reuniões costumam ser marcadas, de alguma maneira, de acordo com o calendário lunar. Isso tem uma razão prática específica: utilizar a característica lunar dominante no momento para ser o fio condutor geral da temática da reunião. Dessa maneira, associando-se o momento do ano que se atravessa, caracterizado pelo ciclo solar, ao período específico determinado pela fase da Lua, abre-se um amplo leque de possibilidades temáticas para cada reunião o que, obviamente, resulta numa diversidade de assuntos a serem abordados. Levando em consideração que o período compreendido entre cada sabá abrange quase dois ciclos completos da Lua, temos, ao longo de um ano, cerca de 53 diferentes conjugações entre o momento solar e o momento lunar que podem ser aproveitadas para aprendizagem ou para "trabalhos mágicos" específicos. De uma maneira geral, aceitando-se a validade da influência da Lua como "reforço" em tais ocasiões, ou apenas adotando-se um significado simbólico, o que normalmente se observa é que em rituais realizados na Lua cheia trabalha-se em prol de objetivos a serem plenamente

concretizados, privilegiando a idéia de abundância, plenitude ou prosperidade. Na Lua minguante, normalmente são enfocadas aquelas coisas que precisam ser tolhidas, controladas ou abandonadas, como vícios ou comportamentos e atitudes prejudiciais, ao passo que na Lua Crescente, ao contrário, o enfoque é dado para tudo aquilo que precisa ser reforçado e incentivado. Por fim, na Lua Nova, a tônica é geralmente a mudança, a transformação, ou ainda a eclosão de potencialidades ocultas. Note-se que as características descritas para essas reuniões são de cunho marcadamente pessoal. Ao contrário do que dissemos sobre os sabás, dificilmente um determinado grupo que se reúna a algum tempo admitirá a presença de estranhos a uma delas, não apenas pelo seu caráter mais marcadamente ritual como, igualmente, pela provável exposição de particularidades pessoais de seus membros. Na verdade, em alguns grupos, mesmo os novos membros são admitidos nas reuniões de "luas escuras" (minguante e nova) apenas após algum tempo de convivência. Nesse ponto, mais do que em qualquer outro, deve-se aplicar uma máxima da Wicca que preconiza que entre os participantes de um coven haja "perfeito amor e perfeita confiança". Por fim, vale dizer que, sendo por excelência os momentos em que se desenvolve o aprendizado e a prática dentro da Wicca, além das potencialidades individuais e da convivência dentro de uma célula comunitária de características quase familiares - e deve ficar claro que a idéia primordial da Wicca é a criação dessas células e não a de um culto coletivo nos moldes das religiões estabelecidas - os esbás são, igualmente, o protótipo do ritual wiccan. Ao contrário dos sabás, que embora possuam simbologia e elementos próprios têm uma estrutura muito mais aberta, os esbás possuem uma ritualística específica, constando de determinadas fases ou partes que devem suceder-se e que têm finalidades específicas. Tais fases ou etapas de um ritual típico, seu simbolismo e seus desdobramentos, serão o nosso próximo assunto. Notas: 1

Grimassi, Raven. Os Mistérios Wiccanos. São Paulo: Gaia, 2000. Barros, Maria N. A. As Deusas, as Bruxas e a Igreja. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2001. 3 idem. 4 Gardner, Gerald. A Bruxaria Hoje. São Paulo: Madras, 2003. 5 Leland, Charles G. Aradia, o Evangelho das Bruxas. São Paulo: Outras Palavras, 2000. 6 Quintino, Claudio C. A Religião da Grande Deusa. São Paulo: Gaia, 2000. 7 Cunningham, Donna. A Lua na sua vida. Rio de Janeiro: Record, 1999. 8 A palavra coven, de origem não muito precisa, tem sido utilizada para designar associações ou grupos regulares de praticantes da Wicca, geralmente com regras determinadas para ingresso de novos membros e métodos próprios de ação. 2

ESTRUTURA DE UM RITUAL Podemos entender um ritual, dentro da Wicca, como uma conjugação de diversos elementos, dentre os quais três se destacam: ele é um momento de culto simbólico, um momento de aprendizagem e também um momento de prática mágica. Para suprir essas funções, ele é constituído de fases, ou partes específicas, que detalharemos nesse tópico de nosso curso. No entanto, dependendo de sua finalidade e da concepção particular de quem o celebra, um ou mais desses elementos podem não estar presentes em um ritual: um sabá, por exemplo, que possui um caráter intrínseco principal de celebração, não é o momento mais apropriado para se fazer magia e, dessa forma, dispensaria aquelas partes que se referissem unicamente a ela. Pode-se dizer que o "ritual típico" é aquele que é realizado por um coven, ou grupo de praticantes, que se reúne regularmente no contexto das cerimônias lunares, ou esbás, como descrevemos no tópico anterior, e que é parte de um processo mais ou menos longo de instrução e de convivência mútua entre os seus membros. Dessa maneira, ele precisa ter um objetivo, que se encaixe e coadune com o fio condutor do próprio grupo, e não ser uma mera repetição de fórmulas pré-estabelecidas. O local e os participantes Seria inútil dizer que, por ser basicamente um ato de integração com as forças naturais, um ritual wiccan deveria ser realizado, de preferência, em um local aberto e junto à natureza. Um bosque ou parque seria certamente o ideal, mas isso nem sempre é possível, por motivos que vão desde as condições climáticas até a privacidade.

De qualquer maneira, seja ao ar livre ou em um local fechado, esse local escolhido estará, de algum modo, fazendo as funções de templo pelo período do ritual. Dessa forma, ele precisa ser convenientemente preparado para isso, exatamente da mesma forma que, ao darmos uma festa, arrumamos nossa casa para receber os convidados: providencia-se espaço para que todos possam se acomodar, deixa-se à mão tudo que será necessário, coloca-se para tocar a música conveniente. Como poucos são os grupos que dispõem de um lugar fixo, destinado exclusivamente a estas reuniões e já preparados para isto, essas recomendações se tornam mais importantes. O "clima", ou seja, o ambiente específico de um ritual é certamente diferente daquele que reina habitualmente na sala de estar de uma casa. Embora muito se possa teorizar a respeito disso, a verdade é que as atividades normalmente desenvolvidas em um determinado local parecem "impregnar" de alguma forma esse local, não importando se isso acontece realmente ou se é apenas a impressão que nos passa. Basta lembrarmos que a sensação que temos dentro de uma igreja é certamente diferente daquela que temos no pronto-socorro de um hospital. Seja como for, uma vez que o componente psicológico é parte essencial da magia, é importante que o ambiente propício esteja formado. Dentro dessa linha de pensamento, costuma-se proceder, além de uma limpeza "real", uma "limpeza ritual" no local onde será celebrado um ritual. Uma das maneiras de fazê-lo, embora existam várias outras, é utilizar uma vassoura especificamente destinada para este fim e "varrer" o local com movimentos circulares no sentido anti-horário, visualizando que todas as "energias" estranhas ao objetivo desejado estão sendo removidas pelo movimento. Elementos que são tradicionais em diversas manifestações de caráter ritual, como o uso do incenso, foram igualmente incorporados a Wicca para se criar esse ambiente propício. Da mesma maneira que o local, é importante que as pessoas que participarão do ritual passem, igualmente, por esse processo de limpeza. Para isso, a própria pessoa que oficiará o ritual ou alguém por ela designada repetirá em cada um dos participantes o processo de "limpeza ritual", geralmente antes que eles sejam admitidos no local onde os ritos se darão. O processo de limpeza pessoal comporta ainda mais variações do que o do local, mas geralmente admite-se que essa limpeza será feita com o auxílio de um ou mais dos quatro elementos: movimentos em torno da pessoa com um bastão de incenso aceso ou com o atame caracterizariam uma limpeza através do elemento Ar; movimentos semelhantes com o bastão teriam o caráter de uma limpeza através do Fogo; aspergir-se algumas gotas de água do cálice seria uma limpeza pelo elemento Água e o uso de uma pitada de sal, ou cinzas, teriam o efeito de uma limpeza pela Terra. É importante acrescentar que não se pode, de forma alguma, afirmar que qualquer uma dessas práticas produza qualquer resultado efetivo a não ser começar a criar um clima psicológico apropriado, entre os participantes, para a cerimônia que se realizará. Quando se fala em ritual, fala-se em um conjunto de atos estabelecidos pelo uso, que têm uma finalidade em si, e não necessariamente nos efeitos palpáveis de cada um desses atos. O Altar No local onde se realizará o ritual wiccan, costuma-se dispor alguns elementos de forma determinada, constituindo um altar, em torno do qual se realizará a cerimônia. Vários praticantes costumam, mesmo, ter um altar fixo em suas casas, geralmente servindo como depositário de seus instrumentos mágicos e de outros objetos representativos do culto. Os objetos e o próprio

altar são dispostos de acordo com os pontos cardeais, referindo-se à ligação de cada um desses objetos com os elementos e suas direções, como já explanamos em outro tópico deste curso1. Além dos instrumentos mágicos, há uma relativa diversidade nos objetos que são colocados no altar. Os elementos que representamos são aqueles que consideramos básicos, tanto pelo seu significado quanto pela sua possível utilização efetiva em um ritual. Temos visto vários acréscimos, de acordo com cada pessoa que monta o seu altar e com a ocasião específica para o qual ele é montado: pedras, galhos e sal são acrescentados ao elemento Terra; incenso, penas de pássaros, sinos e outros instrumentos musicais colocam-se no elemento Ar; determinados tipos de cristais, bem como alguns símbolos fálicos são esporadicamente colocados juntos ao bastão e conchas e cristais transparentes junto à taça. No centro, junto ao caldeirão e às velas, não é incomum acrescentar-se estátuas ou imagens representando a Deusa e o Deus, ou símbolos correspondentes, como, por exemplo, um chifre para o Deus e uma concha em forma de vulva para a Deusa. Em certas situações, coloca-se igualmente no altar alimentos que serão consumidos após o ritual, e sua decoração pode variar de acordo com a estação específica do ano que se está atravessando. Independentemente dos acessórios que se coloque num altar, o essencial é que ele é um tipo de síntese dos próprios elementos formadores e significativos da doutrina, uma representação do macrocosmo, tendo, em si, um alto grau de simbolismo. Nesse ponto, embora seja inegável o paralelo entre o altar wiccan e a mesa de trabalho dos ocultistas, ou da Magia Cerimonial2, o primeiro transcende o aspecto puramente prático desta última, não sendo, em absoluto, um simples local de apoio dos instrumentos a serem utilizados durante o ritual, mas antes consistindo no próprio centro focal do local onde este será realizado.

A Invocação dos Elementos e o Círculo Conjurar, ou traçar, um círculo mágico, no interior do qual o ritual se processa, é uma prática wiccan que remete diretamente àquelas influências da Magia Cerimonial em sua formação. Por isso mesmo, é um elemento ritual que provoca alguma controvérsia, sendo muitas vezes bem pouco compreendido mesmo por praticantes experientes da Wicca. Isso se dá porque o costume de traçar o círculo já se tornou arraigado o suficiente para não ser mais motivo de discussão em seus significados. Na verdade, o significado do círculo mágico, na Magia Cerimonial e mesmo em outras formas mais antigas de magia, é proporcionar proteção ao mago. Seria um espaço de isolamento, onde ele estaria a salvo das próprias energias ou seres que ele pretende, com seu rito, invocar e dominar. Encontramos vestígios dessa prática até mesmo na literatura, o que atesta o quanto ela é popularmente difundida: nos capítulos finais do seu Drácula, Bram Stoker faz seu personagem, Dr. Van Helsing, traçar um círculo de sal em torno da jovem Mina Harker, para protegê-la da aproximação das vampiras3. Paralelamente a essa idéia, a noção de locais circulares de culto, ou círculos rituais, é quase tão antiga quanto à humanidade e diretamente ligada à cultura megalítica da Europa Ocidental. Inúmeros cromlechs, popularmente conhecidos como "círculos das fadas", dos quais o mais popular é certamente Stonehenge, atestam o uso das delimitações circulares espacialmente

orientadas de acordo com os pontos cardeais e com eventos astronômicos específicos para fins rituais. Na Wicca, ambos os significados devem ser conciliados. Os livros sobre o assunto costumam tratar o círculo como um "espaço entre os mundos", o que parece privilegiar a idéia de um espaço de culto, de interligação entre o visível, cotidiano e individualizado, e o invisível, abrangente e coletivo. Por outro lado, tratam-no também como uma barreira de isolamento e proteção, e o casal Farrar (de tradição Gardneriana), ao descrever seu Rito de Abertura4, admite abertamente que suas invocações são derivadas daquelas constantes nas Chaves de Salomão5 e em ritos semelhantes da Golden Dawn. Essa conciliação não significa necessariamente, no entanto, mistura ou falta de critério. A criação de um círculo envolve, de qualquer maneira, um dispêndio de energia por quem o faz e, ainda, uma certa habilidade ou preparo específico para fazê-lo. Dessa forma, erguermos pesados muros quando nada nos ameaça é simplesmente um desperdício, bem como nos expor ao perigo quando não temos a habilidade para enfrentá-lo é pura temeridade. Um praticante consciente há de distinguir entre as características específicas de um círculo ritual e de um círculo mágico, bem como o momento de se utilizar cada um dos dois, e ainda ser capaz de avaliar a sua própria capacidade de fazê-lo. Não há a menor necessidade de se erguer às barreiras protetoras de um círculo mágico quando tudo que se pretende é uma simples comemoração de um Sabá, ocasião em que um círculo ritual, como delimitação de um espaço de culto, é mais do que suficiente. Por outro lado, estando envolvido no ritual um trabalho mágico, que envolva a preservação da individualidade (ou mesmo da integridade) de cada um dos presentes, deve se levar em consideração se algum dos participantes tem o conhecimento e o preparo necessário para traçar um círculo mágico conveniente, ou talvez seja melhor desistir. Obviamente, não estamos aqui advocando a existência real de "forças ocultas" e, de alguma forma, "sobrenaturais", que possam intervir benéfica ou prejudicialmente em cada uma das pessoas que participam de um ritual wiccan. Isso, de qualquer maneira, continua dentro do campo das crenças pessoais de cada um, no qual não pretendemos nos imiscuir, e ainda dentro de um grau de conhecimento que não seria possível adentrar num curso como este. Pretendemos apenas alertar que, dependendo da intensidade do trabalho que se pretende fazer - e cada ritual, como já falamos, tem um objetivo específico - há de se ter em mente a graduação do isolamento que se busca, bem como a capacidade pessoal do celebrante para se obter esse isolamento. Esse isolamento, de qualquer forma, pode ser relacionado com o alto grau de sugestão envolvido em um "trabalho mágico" e com a concentração necessária para obtê-lo. Deixando de lado, no entanto, as considerações teóricas sobre o círculo, que de qualquer forma seriam demasiadamente longas para serem convenientemente abordadas, concentremos-nos no que é em termos práticos traçar o círculo. Algumas obras aconselham que o espaço do círculo seja efetivamente delimitado, traçando-se um círculo no chão com giz ou mesmo delimitando-se seu perímetro com objetos, como peças de mobília. Outras, por sua vez, geralmente aquelas que se referem a tradições específicas, dão instruções até mesmo quanto às dimensões que ele deve ter. Eu diria que tudo isso é opcional, em especial se tratando de um círculo ritual: basta ter-se em mente as fronteiras do local destinado ao ritual e, levando-se em conta que, na maioria das vezes, estes são celebrados em locais fechados, tais fronteiras são óbvias. Estabelecido o local, o celebrante procede à invocação dos elementos. Apontando com o seu atame (ou espada, ou bastão) para cada uma das quatro direções, ele chama os quatro elementos

para o círculo, um de cada vez, geralmente começando pelo Ar. Embora o Ar seja o ponto cardeal mais comum para iniciar-se o traçado do círculo, podem ocorrer variações de acordo com a tradição específica e com o tipo de ritual que se realizará. Um ritual, por exemplo, em que predominam as correlações normalmente associadas ao elemento Terra, poderá ter seu círculo aberto por esse elemento. Existem fórmulas próprias para o chamamento, usadas por tradições distintas, mas de uma forma geral, não há nenhuma regra estrita a ser seguida, ficando a cargo do celebrante as palavras que usará. Uma vez invocados os quatro elementos, costuma-se saudar ou invocar as duas outras direções - acima e abaixo - e pronunciar-se uma frase que marque o fechamento do círculo. Obviamente, a descrição feita é uma simplificação extrema. A performance do celebrante, ao traçar o círculo, certamente será determinante no próprio sentimento de participação de cada uma das pessoas que assistem o ritual, e poderíamos dizer que, depois de preparados individualmente pela limpeza, os participantes começarão (ou não) a assumir uma postura de grupo de acordo com a forma como o círculo foi traçado. Eu arriscaria a dizer que um círculo traçado de forma pobre acarreta uma dispersão natural dos participantes do ritual. Algumas outras considerações ou recomendações de ordem prática poderiam ser feitas, em especial se tratássemos especificamente de um círculo mágico. No entanto, pelos motivos que já apresentamos, não nos estenderemos nessa distinção, ainda mais que, para o participante neófito, nenhuma diferença explícita ficaria clara. No entanto, vale dizer que algumas regras são geralmente seguidas: após fechado o círculo, não se costuma permitir que ninguém entre ou saia dele, a não ser em ocasiões extremas. Além disso, todos os movimentos dentro do círculo, desde objetos que são passados de mão em mão até a própria movimentação efetiva das pessoas, devem ser feitos no mesmo sentido em que o círculo foi traçado. O sentido que normalmente se utiliza é o horário, mas vale dizer que esse sentido tem suas raízes no hemisfério norte (representando o caminho do Sol) e que poderia ser reavaliado em termos de hemisfério sul, a exemplo das direções associadas aos elementos. Harmonização e Meditação Uma vez traçado o círculo e os participantes tendo assumido os seus lugares no seu interior, o celebrante costuma fazer uma breve preleção sobre o sentido e o objetivo do ritual. Isso é especialmente importante se houverem novatos ou convidados na cerimônia. A isso, segue-se uma fase geralmente conhecida como Harmonização. A harmonização destina-se a completar o trabalho que já foi iniciado pela limpeza ritual e pelo traçar do círculo, ou seja: "colocar em sintonia" todos os participantes do ritual, libertando-os das preocupações cotidianas e trazendo-os para o estado de espírito apropriado para a celebração ou para a prática mágica. Poderia-se dizer que a harmonização consiste em uma fase de relaxamento e congraçamento entre os participantes, e diversas técnicas podem ser utilizadas para isso, embora o canto e a dança em conjunto sejam as mais comuns. Em grupos fechados, ou com objetivos específicos como o aprendizado, essa harmonização pode ser feita também através do debate entre os participantes de algum tema já colocado, ou do tema em pauta no dia do ritual. Porém, o mais comum é que a harmonização assuma realmente um aspecto de catarse, de libertação do mundo exterior, para que se possa penetrar com maior e melhor intensidade nos domínios do que é interno, ou ainda sagrado.

Em geral, a essa fase segue-se uma meditação. Essa, ao contrário do aspecto catártico, já busca a introjeção. Normalmente dirigida pelo celebrante, sua intenção é que cada um dos participantes vivencie os objetivos do ritual e, se for o caso, assimile determinados pressupostos que foram anteriormente explanados. Uma forma que é normalmente adotada para essa meditação é a visualização criativa, a qual, inclusive, é um componente essencial na prática da magia. É costume, após essa meditação, que os participantes partilhem as suas experiências individuais, a forma como se conectaram mentalmente ao objeto e as sensações vivenciadas. Além de fortalecer ainda mais a noção de grupo, essa prática propicia a oportunidade para que dúvidas sejam esclarecidas e considerações sejam feitas, em geral por parte do celebrante. O trabalho mágico Se tomarmos um ritual wiccan como um tipo de celebração religiosa, devemos admitir que ele pode ou não envolver algum tipo de prática de magia. Caso o trabalho mágico venha, no entanto, a ser parte do ritual, poderíamos levar em consideração três níveis distintos desse trabalho. Num primeiro nível, teríamos o tipo de magia praticada em rituais "abertos", ou seja, onde não é exigida uma filiação a um grupo ou mesmo conhecimento prévio entre os participantes. Esse é, na verdade, o tipo de ritual que mais se aproxima da noção geralmente aceita de cerimônia religiosa. Nesse nível, seria mais exato se falar em direcionamento de energia coletiva em prol de um objetivo comum do que, propriamente, em magia. Surgiriam, então, expressões como "cura da Terra", ou "prosperidade" e "fartura" como objetivo desse trabalho mágico, expressões que são, certamente, lugares-comuns, mas que, em verdade, acabam sendo as únicas que caberiam nesse tipo de reunião. Não há, aqui, nenhum tipo de menosprezo aos rituais "abertos": deve-se levar em consideração, por exemplo, que a maior parte das cerimônias religiosas dos povos indígenas visam justamente esse tipo de objetivo de caráter amplo e coletivo. Num segundo nível, teríamos o trabalho mágico que é praticado em rituais "fechados", ou restritos a um determinado grupo, onde já existe uma interação entre os participantes e onde os propósitos, normalmente, são mais específicos. Nesse nível, a prática da magia pode ser parte de um processo de aprendizagem, como ensino de técnicas mágicas a novos membros, ou ainda como uma forma de fixação ou introjeção da temática ritual. Mais raramente, pode ocorrer um aproveitamento e direcionamento da vontade coletiva para um determinado objetivo de algum dos membros do grupo, mas de uma forma geral pode-se dizer que tais rituais se enquadram dentro de um processo de preparação para a iniciação6. Por fim, teríamos o ritual que é feito unicamente na intenção da prática da magia. Nesse caso, dificilmente ele será feito por um grupo, mas antes por uma única pessoa, geralmente um sacerdote iniciado. Esse nível, no entanto, e a preparação e conhecimento que ele envolve para que não se torne uma pantomima auto-ilusória, a exemplo dos inúmeros "feitiços" amplamente descritos na literatura wiccan, foge ao escopo do nosso curso. Partindo desses princípios e levando em consideração as infinitas variações possíveis na preparação de um trabalho mágico, é mais importante nos concentrarmos no seu desfecho, uma vez que este tem um significado ritualístico muito mais palpável. A esse desfecho costuma-se chamar "erguer o cone de poder": em geral, os participantes dão-se as mãos em círculo e visualizam a sua intenção como uma energia palpável, que permeia esse círculo e o percorre, de forma cada vez mais rápida ou mais concentrada. Por fim, a um só tempo, todos arremessam as mãos para o ar, "liberando" essa energia como uma flecha, na direção de seu objetivo.

Para manter a coerência, preciso deixar claro que estou usando as palavras "energia", "intenção", "vontade", etc., num sentido amplamente figurativo. O mais correto talvez fosse falar-se em uma tensão psicológica, que é progressivamente acumulada no decorrer do ritual, ao longo de suas outras fases, e que é repentinamente aliviada, ou liberada, através do cone de poder. Isso, logicamente, é proposital, pois já vimos em outro ponto7 que o componente psicológico é essencial para a magia. De qualquer forma, se a prática mágica dentro de um ritual efetivamente provoca algum tipo de transformação, seja lá por meio de quais mecanismos, ou se essa transformação se dá apenas na percepção de cada um dos participantes, isso é irrelevante e seria inócua uma discussão nesse sentido. O Grande Rito O Grande Rito é, simbólica e estruturalmente, o ponto alto de um ritual. Segundo os Farrar8, o Grande Rito é há um tempo um ritual de polaridade masculino-feminino e um rito sexual, onde o casal que o representa está "oferecendo a si mesmo como expressões dos aspectos de Deus e Deusa da Fonte Suprema, (...) fazendo de si próprios canais para aquela polaridade divina em todos os níveis". Pode-se dizer que o Grande Rito, na Wicca, é um reflexo e uma reminiscência de inumeráveis formas de sexo ritual, encontradas em diversas manifestações religiosas, que celebravam a união das polaridades, sem a qual a vida não poderia existir. O Grande Rito, portanto, é a própria representação do hieros-gamos, do casamento sagrado entre a Deusa Lunar e o Deus Solar, ou entre a Deusa geradora da vida e o Deus mantenedor, na forma como é apresentado no mito da Roda do Ano. A união dos opostos, sua integração, como representação máxima da continuidade dos processos naturais, a sacralidade do sexo e do próprio corpo, por serem causa e conseqüência desses mesmos processos, é o que é celebrado. Por motivos óbvios, pouquíssimos rituais comportariam um Grande Rito "real", ou seja, que envolvesse efetivamente a cópula entre um sacerdote e uma sacerdotisa. Dessa maneira, não vale a pena tecermos considerações sobre essa prática, bastando nos deter sobre aquilo que é comum e usual, ou seja, o Grande Rito "simbólico". Neste, o atame, erguido pelo sacerdote, representa o pênis, enquanto a taça, empunhada pela sacerdotisa, representa a vagina. Após determinadas invocações rituais, que podem variar grandemente, o sacerdote introduz o atame no cálice. Retira-o em seguida e, colocando ambas as mãos em torno das mãos da sacerdotisa, em volta da taça, ambos bebem um gole de seu conteúdo, cada um por sua vez. Simbolicamente, esse gesto traz em si a analogia entre o corpo da mulher e a Terra, ambos como o próprio altar da vida, onde se depositam as oferendas sob a forma de sementes, bem como a analogia entre o corpo masculino e o céu fecundador. O simbolismo vai além, referindo-se, igualmente, ao plantio e, mesmo, aos mistérios da morte, quando a Terra acolhe em seu seio os que já partiram, modificando-os e revertendo os seus corpos em vida. Os próprios instrumentos utilizados, o punhal e a taça, são representações dessa dualidade cooperativa e dinâmica necessária, um sendo a energia dos inícios e o outro a fluidez e a continuidade. Ritos de encerramento Após o Grande Rito, a taça é passada entre todos os participantes do ritual, bem como parte dos alimentos que foram trazidos, geralmente pães ou bolos. Não se trata, nesse momento, de um efetivo "banquete ritual", ou refeição coletiva, mas antes de um gesto simbólico, significando

que todos os presentes compartilham daquela integração representada pelo Grande Rito. É, portanto, uma forma de comunhão, mal comparando com outras cerimônias religiosas similares. Feito isso, o sacerdote geralmente procede à abertura do círculo: agradece a participação das forças elementares no ritual e as dispensa, no sentido inverso ao qual traçou o círculo, no início. Em seguida, costuma-se pronunciar a frase "o círculo está aberto mas não foi quebrado. Feliz encontro, feliz partida e um feliz reencontro!", e os participantes trocam entre si o beijo circular, ou seja, cada um dos presentes beija a face daquele que está à sua esquerda, até completar o círculo. Essas práticas encerram o ritual, mas não necessariamente a reunião, sendo costume, então, haver ainda um momento de congraçamento, em que os presentes distribuem entre si a comida e a bebida restantes que foram trazidas para o ritual. Particularmente, achamos essa parte específica da reunião de especial importância, tanto por dar oportunidade para que os participantes se conheçam melhor e troquem idéias sobre o que acabaram de vivenciar, fora do formalismo que costuma permear os rituais, quanto pelo fato que refeições comunitárias são uma forma antiqüíssima de criar e manter um espírito de comunidade. Aliás, é importante observar esse aspecto social dos rituais, que muitas vezes é menosprezado ou esquecido em detrimento do seu aspecto "religioso" ou devocional. Um ritual pagão é, ou deveria ser, antes de mais nada, uma expressão coletiva de integração com a natureza e, igualmente, de integração entre os participantes, e não uma vetusta cerimônia de adoração a deuses. Todos os elementos que descrevemos, se coerentemente analisados, reforçam e buscam promover essa idéia, desde a criação de um espaço privado, compartilhado por aqueles que o ocupam, até a execução de vários atos coletivos buscando polarizar e dirigir para um único foco as intenções dos participantes. Na verdade, um "bom ritual", aquele do qual os participantes saem com uma sensação de vigor renovado, costuma ser justamente aquele que foi conduzido com habilidade suficiente para que essa "consciência grupal" fosse atingida. Por fim, a idéia privilegiada pelo ritual não é a do indivíduo que busca o seu encontro pessoal com a divindade ou mesmo a sua "salvação", como observamos em outras formas religiosas, mas sim a do grupo de indivíduos que, agindo como grupo e procurando sua integração, celebra igualmente a integração desse grupo no conjunto da natureza. O objetivo que se busca não é o ingresso em um local privilegiado onde se pode ter um contato pessoal com o divino, mas sim o reconhecimento que o divino está presente em cada um de nós e que é a união dessas diversas partes que o constitui e caracteriza. Notas: 1

Ver o tópico "Os Instrumentos Mágicos". Consultar, a respeito, Levi, Eliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. São Paulo: Madras, 1998. 3 Stoker, Bram. Drácula. São Paulo: L&PM, 1998. 4 In Farrar, Janet e Stewart. Oito sabás para bruxas. São Paulo: Anúbis, 1999. 5 As Chaves de Salomão é um grimório ou compêndio medieval sobre magia, traduzido no século XIX a partir de manuscritos do Museu Britânico por MacGregor Mathers. 6 A Iniciação será tema do nosso próximo tópico. 7 Ver o tópico "A Magia", deste curso. 8 Farrar, Janet e Stewart. opus cit. 2

INICIAÇÃO O assunto "iniciação" é um dos mais mistificados e mais mal compreendidos na Wicca. Muitas pessoas, por desconhecerem seu verdadeiro significado, associam iniciação a uma cerimônia ou ritual necessário para começar a prática da Wicca. Outras, mesmo tendo uma visão melhor sobre o assunto, acabam por menosprezar ou banalizar o seu sentido, dando origem a cursos - às vezes até por correspondência - e workshops que prometem a iniciação, ou ainda defendendo e preconizando o instituto indefensável de uma auto-iniciação. Por ser um tema de constante interesse e que suscita sempre uma série de dúvidas e questionamentos pelas pessoas que travam um primeiro contato com a Wicca, ele precisa ser convenientemente explanado, em todas as suas possíveis variações e significados. O significado tradicional de iniciação A palavra iniciação, na verdade, possui uma série de sentidos, que vão desde "preparação pela qual se inicia alguém nos mistérios de alguma religião ou doutrina e a cerimônia dela decorrente" até "admissão em uma sociedade secreta", passando por "recebimento das primeiras noções de

uma ciência, uma arte ou uma prática". A iniciação wiccan comporta esses três sentidos, como veremos adiante, mas nos deteremos, por enquanto, numa outra definição: "processo, ou série de processos de natureza ritual, que efetivam e marcam a promoção de indivíduos a novas posições sociais, como, por exemplo, sua passagem às diferentes fases do ciclo de vida e, em particular, sua incorporação à comunidade dos adultos ou o acesso a determinadas funções religiosas ou políticas".1 Essa última definição, que pertence em especial ao campo da Antropologia nos dá uma noção bastante precisa de qual seria o significado clássico, ou tradicional, de iniciação. Nesse sentido, a palavra se confunde com o termo rito de passagem, ou seja: uma cerimônia que marca a transição entre duas fases da vida. Essas cerimônias estão presentes e são extremamente importantes em todas as sociedades de caráter tribal e aparecem igualmente na nossa sociedade, embora já despidas de grande parte do seu significado. Especial importância têm aqueles ritos que marcam o início da idade adulta, no qual os jovens deixam a companhia exclusiva do grupo familiar imediato e integram-se ao clã, ou à tribo. Segundo Joseph L. Henderson2, o rompimento com o mundo infantil pode provocar um dano (de ordem psicológica) com o arquétipo parental, e este dano é sanado pelo rito que transforma o grupo em um segundo pai ou mãe. Para isso, "o ritual faz o noviço retornar às camadas mais profundas da identidade original existente entre a mãe e a criança (...) forçando-o, assim, a conhecer a experiência de uma morte simbólica". Ainda segundo o autor, o jovem iniciando é então retirado desse estado de inconsciência e morte, onde "a sua identidade é temporariamente destruída", pelo grupo, no rito solene de um novo nascimento. Morte e renascimento, portanto, são a tônica dos rituais de iniciação. Através de práticas e cerimônias específicas, o que se busca é dissolver a identidade que servira para o indivíduo conduzir sua vida até aquele momento, e reagrupá-la em uma nova forma, que passará a ser válida dali por diante. Para isso, muitas vezes esses ritos são marcados pela dor e pelo isolamento reais, como no caso da circuncisão dos aborígines australianos. Em outros casos, essa dor e isolamento se apresentam principalmente em nível psicológico, como nas cerimônias religiosas de ordenamento. Sintetizando, podemos dizer que a iniciação, em seu sentido tradicional, consiste num rito que marca profundamente, através de práticas de forte impacto emocional, a passagem de uma a outra fase da vida. O simbolismo nela contido, portanto, é o da morte do estado anterior, ou do indivíduo que existira até então e sua concepção específica do mundo, e do nascimento de um novo indivíduo, apto a assumir novas responsabilidades e olhar o mundo com novos olhos, estando inserido em uma realidade distinta da anterior. Iniciação como processo de aprendizagem Nas sociedades ditas "primitivas", bem como na nossa, a iniciação está igualmente associada a um processo específico de treinamento ou aprendizagem, que precede ou se sucede ao rito em si. No caso que citamos da circuncisão dos jovens aborígines, após o ritual de iniciação eles são isolados do conjunto da tribo e, por um período determinado, passam a conviver apenas com aqueles membros mais velhos que podem passar-lhes os ensinamentos - de caráter prático ou filosófico - que lhes permitirão conviver no "mundo dos adultos". A eles são ensinadas as habilidades necessárias a desempenhar suas novas funções, bem como são introduzidos nos mistérios da religião tribal. Entre algumas etnias nativas da América do Norte dava-se processo semelhante, porém precedendo o rito em si, com a formação dos jovens guerreiros. Estes, ao atingirem determinada

idade, passavam a conviver com os mais velhos e a participar das expedições de caça, primeiramente como valetes ou carregadores e, conforme a instrução avançava, exercendo funções cada vez mais complexas. Finalmente, se provavam o seu valor, precisavam enfrentar a mata sozinhos e caçar um animal específico, sendo geralmente "batizados" com o sangue deste ao retornarem ao grupo e, assim, passando a fazer membro do clã dos guerreiros. Esse processo de aprendizagem é, portanto, necessário e complementar ao rito de iniciação em si. Obviamente, não se poderia esperar que o simples fato de participar de uma cerimônia, mesmo sendo ela extremamente marcante, fornecesse ao neófito as qualidades esperadas para exercer suas novas funções. Por outro lado, ele surge como uma forma de preservação de conhecimentos específicos, ao restringir a obtenção desses conhecimentos a um grupo limitado, que terá a obrigação de conservá-los e passá-los às gerações vindouras. Um exemplo dessa preservação de conhecimento através da ritualização do ingresso em um determinado grupo, já no escopo da sociedade ocidental, são as corporações de ofício, surgidas na Europa medieval. Artesãos, tais como ferreiros e seleiros, reuniam-se em sociedades fechadas, onde havia uma hierarquia rígida e regras bastante precisas quanto ao ingresso de novos membros e a ascensão aos diversos postos. Dessa maneira, evitava-se não apenas que o conhecimento daquelas artes e técnicas se dispersasse e degradasse ao se tornar público, como se instituía um certo padrão de qualidade para a manufatura. É claro que tal organização visava, igualmente, manter o domínio dessas técnicas dentro de um círculo restrito que, dessa maneira, reservava aos seus membros um status especial e garantia sua sobrevivência. De qualquer maneira, pensemos no clã dos guerreiros, nos mestres-artesãos medievais ou nos atuais sindicatos e conselhos de classe, bem como nas ordens religiosas de todos os tempos, a idéia de se restringir o acesso a determinados conhecimentos ou a prática de determinadas artes a um grupo restrito, no qual os membros são selecionados através de provas de valor, destina-se fundamentalmente a manter mais ou menos intocada uma tradição. É notório que, quanto mais um conhecimento é disseminado, mais ele se modificará a partir das interpretações pessoais de cada pessoa que a ele tiver acesso, podendo vir, ao longo desse processo, a diferir radicalmente da noção original. Se isso, em determinados grupos, se tornou uma forma de obtenção de poder ou de se conseguir uma estagnação que era politicamente conveniente, há de se levar em conta que, em sociedades onde a única forma de transmissão de conhecimento era a tradição oral, é indispensável essa relativa imutabilidade como forma de preservação da memória coletiva e da própria identidade do grupo. Disseminar aleatoriamente as tradições específicas de um grupo seria, de qualquer forma, condenar esse grupo à extinção. Esse processo de aprendizado de conhecimentos que são exclusivos de um determinado grupo de pessoas, no qual o postulante deve mostrar possuir certos requisitos ou provar ter o valor necessário para adquiri-los ou colocá-los em prática, cobre portanto aquelas definições de iniciação que colocamos no início. Devemos frisar, no entanto, que qualquer dessas definições pressupõe basicamente a existência de um grupo, que é o detentor coletivo desses conhecimentos e técnicas. Iniciação como processo de integração em um grupo Seja o novo adulto, o novo guerreiro ou caçador, o novo artífice, ou ainda o novo sacerdote, seria impossível imaginar tais figuras sem a existência de outros adultos, guerreiros, artífices ou sacerdotes que, tendo obtido tal distinção antes dos neófitos, os introduziriam ou aceitariam em seu próprio grupo, como vimos até aqui.

Não se pode, portanto, de forma alguma, falar de iniciação como um processo que não seja coletivo, envolvendo transmissão de conhecimento e integração em uma nova classe social, distinta da que se pertencia antes. É indiscutivelmente um processo que envolve a aceitação de um elemento por um grupo, o qual admitirá esse elemento no seu convívio e passará a ele conhecimentos, regras de conduta e uma "filosofia" que lhe é própria, mediante um compromisso de zelar por essas coisas, e de não repassá-las para os que não pertencem ao grupo. Por outro lado, poderia-se argumentar que, hoje em dia, existe uma difusão de conhecimentos, através da imprensa tradicional e eletrônica e da mídia. Tais meios fixam o conhecimento, impedindo a sua deterioração, e o torna acessível a uma quantidade cada vez maior de pessoas, ao contrário de restringi-lo a pequenas comunidades. Defender que essa disponibilidade torna a relação interpessoal da iniciação desnecessária é, no entanto, uma rematada tolice: mal comparando, seria defender que qualquer pessoa que lesse todas as revistas médicas disponíveis poderia clinicar. O conhecimento iniciático, por definição, não está acessível. Em primeiro lugar, ele só é compreensível para aqueles que possuem as noções prévias indispensáveis para compreendê-lo. Em segundo lugar, ele parte da transmissão da experiência pessoal. Por último, ele depende da autorização de um determinado grupo para ser transmitido e para ser posto em prática, e da prova de capacidade de um indivíduo para recebê-lo. Dessa forma, ainda mal comparando, não será médico quem não conseguir ingressar numa faculdade de Medicina, cursar os anos de estudo sob a orientação dos professores, passar por um período de prática, provando que tem competência para fazê-lo e, assim, obter o reconhecimento da comunidade médica com a obtenção de um diploma e de uma licença. Havemos de nos lembrar que trotes acadêmicos (hoje em desuso mas que, antigamente, chegavam a ser bastante violentos) e cerimônias de formatura são, em essência, ritos de passagem. A partir desses pressupostos, podemos já comentar sobre uma noção que se difundiu no meio wiccan: a idéia que seria possível à auto-iniciação, ou seja, um rito através do qual o neófito "se declararia" praticante da Wicca, "bruxo" ou mesmo "sacerdote"(!). Por tudo que já vimos, essa noção é inconcebível e francamente sem sentido. Consistiria, antes de mais nada, em declarar-se aceito por si mesmo em um grupo do qual apenas o declarante faz parte. Além disso significaria dizer que bastam os conhecimentos que estão disponíveis para toda e qualquer pessoa para formar a identidade desse grupo, ou seja: "bruxos" seriam todos aqueles que leram os livros sobre Wicca disponíveis no mercado, tendo compreendido ou não o seu conteúdo e podendo, cada qual a sua maneira, interpretar esses conhecimentos como bem lhes aprouvesse. Dessa forma, o "auto-iniciado" seria o participante de um grupo indistinto, cujos integrantes compartilham noções básicas sobre um assunto e que não possui nenhum tipo de coesão, a não ser a declaração pessoal de cada um de acreditar-se parte dele. Por fim, se auto-declarar sacerdote é tão inútil quanto se declarar médico, exceto para os que porventura se arriscarem a aceitar essa condição em alguém. A iniciação na Wicca Diante do exposto, já possuímos elementos suficientes para caracterizar o que é a iniciação no contexto da Wicca, sem corrermos o risco de sermos compreendidos como se enunciássemos algum tipo de conceito exclusivista ou elitista. Muitas vezes, os defensores da "auto-iniciação" a propagam como uma forma de democratização da Wicca, de torná-la acessível a qualquer pessoa, em qualquer lugar, mesmo que não haja por perto nenhum grupo de praticantes onde essa pessoa pudesse obter sua iniciação. Existe uma

falácia básica nesse argumento: ninguém precisa ser iniciado para praticar a Wicca como religião, ou, na verdade, para praticar qualquer outra religião, embora todas contenham, em seus ritos específicos, alguma forma de iniciação. Se tomarmos a Wicca simplesmente como forma religiosa, os elementos constantes de qualquer um dos livros populares sobre o assunto, ou mesmo deste curso (embora não seja essa a sua finalidade), são mais do que bastantes para se estabelecer um ritual e, em conseqüência, um sistema de aproximação com o "divino". Por outro lado, que se tenha notícia, não existe religião alguma no mundo que contenha o conceito de que seus fiéis precisam de uma "autorização" dos deuses para cultuá-los, como parece estar expresso, pelo menos de forma implícita, em diversas obras que propõem a auto-iniciação. Pelo contrário, se tomarmos o cristianismo como exemplo, essa doutrina, embora possua ritos de passagem específicos para os seus membros leigos, como o batismo ou a eucaristia, não proíbe que ninguém assista os seus ritos ou creia nos seus pressupostos. Tomando o budismo como exemplo, veremos que para esta doutrina basta se declarar budista para ser aceito e reconhecido como tal. Portanto, um wiccan não precisa ser um iniciado. Temos falado exaustivamente, aqui e em outros lugares, sobre as diferenças existentes entre o caminho solar e o caminho lunar, sendo o primeiro um caminho de integração na coletividade através de realizações cotidianas e o segundo um caminho pessoal e, na verdade, opcional, calcado em realizações espirituais ou introjetivas. Pois bem, dentro dessa ótica, a escolha de uma religião e a resolução de segui-la ou professá-la faz parte, indubitavelmente, do caminho solar. Embora possua um caráter certamente pessoal e particular, faz parte daquelas decisões que dizem respeito à nossa vida social. A iniciação, por outro lado, é o passo além, aquilo que representa um anseio individual que transcende o coletivo. Apesar disso, poderíamos ainda distinguir duas facetas na iniciação, no contexto da Wicca. Uma delas, que se aproximaria mais do conceito que acabamos de expressar, é a iniciação como entronização no sacerdócio. A outra é a iniciação como rito de aceitação em um determinado grupo. Ambos os casos ocorrem, porém com diferentes graus de aplicação e mesmo com nomes distintos. No primeiro caso, teríamos a "iniciação propriamente dita", sendo nesse caso aparentada aos ritos de ordenação de sacerdotes de qualquer religião. No segundo, teríamos a cerimônia bem mais simples, algumas vezes chamada "dedicação", e que se aparentaria a um noviciado. De qualquer forma, ambas as cerimônias (e os processos que as antecedem ou sucedem) somente fazem sentido no contexto de um coven, envolvendo a participação direta de um ou mais iniciados, como orientadores do processo. Não se trata, nesse caso, de simplesmente "seguir a religião", mas sim de partilhar conhecimentos e práticas mais profundos, que não estão acessíveis através da literatura comum, inclusive por fazerem parte da própria vivência particular daquele grupo. Entre a prática, portanto, e a iniciação, existe uma lacuna que pode ou não ser preenchida, que procuraremos deixar o mais clara possível, para que seja bem entendida. Entre a prática e a iniciação No seu contexto original, estabelecido em meados da década de 1950, a Wicca não tinha pretensões de se tornar uma religião de massas. Na verdade, poderíamos mesmo questionar se, de alguma forma, havia em seus precursores qualquer interesse em, efetivamente, criar uma religião. No máximo, creio poder afirmar que a intenção original era que ela se restringisse a algumas células bastante fechadas e relativamente independentes - os covens - no interior das quais o culto se desenvolveria. Nesse ponto, não havia grande diferença entre a organização

original da Wicca e a de outras sociedades esotéricas ou ocultistas que eram comuns na Inglaterra de meados do século XX, como a Golden Dawn, os Rosacruzes e outras tantas. A divulgação da Wicca ao longo das décadas que se seguiram à sua criação acabou por modificar substancialmente esse quadro. Ao lado dos covens originais e suas ramificações, que acabaram por formar as assim chamadas tradições principais - como Gardnerianos e Alexandrinos - surgiu toda uma profusão de covens, círculos e grupos de estudo que não tinham ligações diretas com estas, e ainda uma multidão de "praticantes solitários". Várias pessoas, bem intencionadas ou não, a partir principalmente da década de 1970, começaram a propagar a idéia da independência entre a prática wiccan e o convívio em um determinado coven, procurando mostrar que a Wicca, enquanto doutrina de caráter religioso, era acessível a toda e qualquer pessoa que por ela se interessasse. Criou-se então, de forma calculada ou não, uma separação entre a "Wicca dos covens", ou das tradições, e a "Wicca religião", a primeira sendo muitas vezes enxergada como uma vertente elitista, praticada no âmbito de uma sociedade secreta, e a outra como sendo popular e acessível. Embora seja louvável e até bastante preclara a idéia de que a doutrina pudesse ser assimilada e praticada, em suas bases, por qualquer pessoa que por ela se interessasse, a existência do coven como local de formulação e conscientização dessa doutrina não deveria, nunca, ter sido menosprezada. A partir disso, o que se observa, hoje em dia, é que uma pessoa tem o seu interesse despertado pela Wicca principalmente através da mídia. Através dessa mesma mídia, ela pode ter acesso a uma ou outra reunião aberta (ou "ritual público") praticada por algum grupo de sua região ou, caso não exista nenhum, conseguir informações suficientes para orientar a sua própria prática. Em ambos os casos, essa prática desenvolvida através de um contato esporádico com outros praticantes, ou por conta própria, pode ser o bastante para essa pessoa. Em outros, ela sentirá necessidade de um aprofundamento. O que pretendo deixar bem claro é que esse aprofundamento não se fará por conta própria, nem através dos recursos disponíveis pela mídia. É justamente nesse momento que se separam os que serão iniciados dos que nunca precisarão ser, pois os primeiros, por mais difícil que seja o acesso a quem possa lhes orientar, buscarão esse acesso, enquanto os demais seguirão perfeitamente bem na sua prática, tendo feito a sua opção religiosa e completado o seu "caminho solar". Não há aqui, quero frisar, nenhum tipo de prevalência entre os que buscam uma religião na Wicca e aqueles que buscam uma iniciação: trata-se de uma opção pessoal, que somente será válida de acordo com os parâmetros de cada um. Uma vez feita à opção, no entanto, o futuro iniciado precisará buscar um coven, um grupo que lhe orientará na caminhada. Nesse ponto, não farei distinção entre os grupos "tradicionais" (se é que se pode falar em tradição a respeito de algo que tem menos de 50 anos) e aqueles que, norteados por princípios legítimos, se estabeleceram com o propósito específico de propiciarem a iniciação, a partir de uma figura que possui o carisma pessoal e o conhecimento necessário para isto. Nesse aspecto, eu diria que a Wicca é jovem o suficiente para seus mentores serem antes pesquisadores (como o próprio Gardner o era) do que místicos. Durante algum tempo, tendo de início provado que pode ser aceito por esse grupo por suas qualificações prévias, essa pessoa participará de algumas reuniões do grupo, como postulante, mas não de todas. A ele serão vedadas aquelas que disserem respeito aos seus mais íntimos segredos... E não devemos nos iludir ou fantasiar: tais segredos não dizem respeito à magia, simplesmente, mas sim à individualidade de cada um dos membros, à convivência em "perfeito amor e perfeita confiança", que só pode ser conquistada através de um tempo de convívio que

este novo membro ainda não possui. No interior e na privacidade de um grupo verdadeiro e nobre de princípios, nada será dogma, e tudo será assunto de discussão... o que nem sempre é agradável para algumas pessoas. Por outro ângulo, que verdadeira integração com a Natureza (e com a divindade) seria possível sem uma integração verdadeira entre fragmentos desta, ou pessoas? Passado esse tempo necessário, e resistindo ainda o novato no grupo, ele será convocado a uma cerimônia. É a sua "dedicação" - uma primeira iniciação, poderíamos dizer. A partir desse momento, ele será aceito como membro do grupo em sua plenitude, podendo compartilhar de tudo que o grupo compartilha, já que assumiu o compromisso de se preparar para a escolha (ou não) da iniciação. A partir desse momento, ao contrário da convivência no grupo ser sua meta, ele passará a ser a meta do grupo: todos aqueles mais antigos se voltarão para que ele possa atingir o mesmo nível que todos já atingiram. Normalmente, nesse momento, será dado para ele um prazo... Esse prazo é, de forma geral, de um ano e um dia (um ciclo solar) de aprendizado e convivência plena, ao fim do qual ele escolherá ser iniciado ou não. Embora haja esse prazo, o iniciante já saberá que este é um prazo mínimo. Não cabe a ele reivindicar que cumpriu os requisitos necessários, mas apenas ao seu sacerdote (como porta-voz dos demais) caberá dizer o momento exato de sua iniciação. Pois, agora, já não falamos de uma iniciação como algo que lhe permite participar do grupo, mas sim como algo que lhe dá a prerrogativa de falar pelo grupo, de ser seu tradutor e seu intérprete, de ser um exegeta da doutrina. Enfim, de ser um sacerdote. Chegado o momento, a escolha é dele. Alguns preferirão não abraçar o sacerdócio, uma vez que ele não é necessário, e prosseguirão na sua prática. Alguns escolherão justamente esse momento para se afastar do grupo, já que chegaram ao fim do caminho que poderiam traçar junto a ele. Outros seguirão em frente, rumo à morte e ao renascimento. Tudo se torna uma questão de escolha, e toda escolha será igualmente respeitada, já que qualquer um deles sabe que o último passo será apenas para os que desejarem morrer, e que não têm a menor certeza do que será a vida após a morte... Notas: 1 Todas as definições retiradas do Dicionário Aurélio - Século XXI, versão eletrônica, 1999. 2 Henderson, Joseph L. Os mitos antigos e o homem moderno in Jung, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. 5) Paralelos:

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