Deuses, Fantasmas E Outros Mitos

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Copyright © 2018 by Gabriel Filipe. EDITOR Dr. Gustavo Leal Toledo PREFÁCIO Dr. Wagner Kirmse Caldas REVISÃO Edson Amaro de Souza Flávio Almeida Rafael Futino de Paula Garcia CAPA: Produção Editorial Pense SINOPSE: Mario Feitosa F483d Filipe, Gabriel Deuses, fantasmas e outros mitos: o pensamento mágico no jogo das lacunas / Gabriel Filipe. – Linhares, ES: Pense, 2018. 200 p. ISBN 978-85-906620-0-6 1. Mitologia. 2. Filosofia e ciência. I. Título. CDD – 100.201 CDU – 101.13

Todos os direitos desta edição reservados à Pense. Linhares - ES Tel.: 27 9 9525 0250

As opiniões mantidas de forma passional são sempre aquelas para as quais não existem bons fundamentos; na verdade, a paixão é a medida da falta de convicção racional de seu defensor. Opiniões sobre política e religião são quase sempre defendidas de forma apaixonada. - Bertrand Russell (1872-1970)

Sumário 1. Prefácio....................................................................8 2. Introdução..............................................................16 3. Qual a origem das nossas crenças, e por que é tão difícil abandoná-las?.............................................24 4. Eu tenho uma mensagem do além para você.........40 5. É na escuridão que os fantasmas se revelam (parte 1).................................................................68 6. É na escuridão que os fantasmas se revelam (parte 2).................................................................72 7. Homeopatia e curandeirismo, a farsa da medicina alternativa..............................................................86 8. Um apostador chamado Pascal...........................112 9. A moralidade depende de um ser sobrenatural? .....................................................124 Sobre o autor.......................................................144 Índice remissivo...................................................146 Referências...........................................................150

Prefácio

Deuses, fantasmas e outros mitos

Wagner Kirmse Caldas i

O

autor nos convida a uma reflexão crítica sobre nossos valores mais caros e antigos. Recomendo que, ao ler esse livro, esteja com os olhos e mente abertos e desprovidos de entolhos conceituais, uma vez que ele nos leva a percorrer o caminho da origem das crenças primitivas, aquelas que Professor do Instituto Federal do Espírito Santo. Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Criador do blog e página “Bar do Ateu”.

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eram usadas como explicação para todos os fenômenos que não conseguíamos explicar, mesmo a simples chuva ou o complexo eclipse. Esse convite nos leva ao questionamento sobre o quanto de nossas crenças são apenas expressões simbólicas de nossa incapacidade momentânea de conhecer algo. Na leitura da obra, fui provocado a pensar no quanto esse exercício de reflexão crítica é um caminho complexo de se trilhar, uma vez que muitos ainda parecem prisioneiros no conforto de suas cavernas conceituais, quase em uma Síndrome de Estocolmo ii. Aparentemente, é um “rito do impossível” que as pessoas procedam a um exercício de questionamento sobre suas crenças, aquelas que lhe foram inculcadas desde a mais tenra infância pela família e sociedade. O autor percorre esses corredores sombrios e busca desvelar as formas pelas quais podemos acabar como “escravos” de nossas crenças, o que facilita que acreditemos em alegações fantásticas, como milagres, revelações, profecias e nos charlatões que os anunciam. O pensamento crítico e o ceticismo são como um feixe de luz na escuridão, lançando clareza na obscuridade, afastando os fantasmas dos armários, É o nome normalmente dado a um estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo amor ou amizade perante o seu agressor.

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expurgando as sombras de nossos instintos atávicos, ajudando-nos a ter uma visão menos assombrada, menos incauta dos fenômenos e dos aproveitadores que nos cercam. Se as pessoas dispusessem-se a esse exercício de questionamento constante, a uma racionalização dos eventos, muito provavelmente as evidências anedóticas iii não teriam sustentação, as justificativas de que “eu senti”, “alguém me disse”, “foi uma experiência muito real” etc, seriam confrontadas com uma reflexão mais profunda, uma procura por motivos concretos que expliquem, ou tentem explicar, os fenômenos julgados como sobrenaturais. Entretanto, ainda temos um longo caminho a trilhar para alcançarmos a condição de um nativo de Vulcano iv. Justamente por isso é tão comum que pessoas sejam suscetíveis a astrologia, homeopatia e curandeirismo. Algumas pessoas confundem a descrença, o ceticismo, com alguma forma de teimosia, de cegueira, de inconformidade. Elas não conseguem fazer a É o tipo de prova irreprodutível, intestável, de amostra pequena, muitas vezes adquirida na terceira pessoa (“diz que disse”, mas pode ser na primeira também) e de modo não sistemático. iv Os vulcanianos (ou vulcanos) são os habitantes de Vulcano, raça alienígena humanoide do universo ficcional de Star Trek. Eles seguem uma doutrina lógica que, em determinado período de sua história, tirou o povo da barbárie e das guerras, ensinandolhe o controle das emoções e o uso da lógica. iii

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alteridade com pessoas que pensam diferente; ao contrário, fecham-se em seu mundo e não acreditam que alguém possa ter um raciocínio diferente do delas, afinal, a “maioria das pessoas pensam assim”; acabam insurgindo-se pela falácia de argumentum ad populum v. Porém, existem pensamentos mais elaborados na hora de tentar questionar a não fé, como foi o caso do filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662), o qual elaborou argumentos para defender o pensamento cristão. Ele concluiu que tanto a crença como a não crença são “inconsistentes e irracionais”, por isso, o melhor a se fazer seria não apostar, uma vez que crença não traria prejuízos, caso ela estivesse errada, ao contrário da descrença, a qual condenaria a pessoa ao inferno; nascia aí a “Aposta de Pascal vi”. Outros pensadores, também, usaram de lógica para defender a crença, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino: o primeiro baseava parte da justificativa da existência do bem em oposição ao mal, de modo que a própria moral humana seria uma prova da É uma expressão latina que define um raciocínio falacioso que consiste em dizer que determinada proposição é válida ou boa simplesmente porque muitas pessoas (ou a maioria delas) a aprovam. Também chamado de apelo à quantidade, o argumento é inválido pois nada garante que algo seja verdadeiro ou correto apenas pela sua popularidade. vi A Aposta de Pascal é uma proposta argumentativa de filosofia apologética criada pelo filósofo, matemático e físico francês do século XVII Blaise Pascal. v

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existência de deus, o segundo estabeleceu suas cinco vias que provam a existência de um deus. Seria, então, a moral um presente de deus? Nós só teríamos como desenvolvê-la a partir de princípios divinos? Ou será que a moral, que boa parte da humanidade compartilha, pode ter surgido a partir dos hábitos adquiridos pelos agrupamentos sociais que existiram ao longo das eras? Poderia alguém ter observado que as disputas internas sobre os objetos individuais ou coletivos eram nocivas para a sustentação do grupo? Que nessas disputas internas o clã enfraquecia-se e ficava exposto aos ataques de clãs vizinhos? São especulações, claro, mas parece um pouco óbvio que os agrupamentos desenvolvessem certas normas de convivência com a clara intenção de manterem-se unidos e coesos. Chamemos a isso de uma “moral primitiva”, a qual poderia ter evoluído com o desenvolvimento das sociedades, tornando-se códigos de conduta, leis, etc. Os escritos mais antigos da humanidade estão relacionados a transações comerciais e a legislações, entre eles podemos citar as “Instruções de Shuruppak”, datado por volta de 2600 antes da era comum; dos originais ainda podemos encontrar a tábua de Abu Salabikh, no Museu Britânico, em Londres. Nesse documento sumério, encontramos dezenas de instruções, entre as quais apresento as seguintes: “não deves usar a violência; não deves sentar-se sozinho com 13

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uma mulher casada; não deves roubar nada; não deves cuspir mentiras; não deves entrar numa casa e desejar o cofre de dinheiro”. Claro que elas foram escolhidas de forma intencional, pois, se observarmos, elas são análogas à parte moral do decálogo (“Não matarás; Não adulterarás; Não furtarás; Não darás falso testemunho; Não cobiçarás a casa do teu próximo”), o qual, por sua vez, é datado no séc. XV antes da era comum, ou seja, pelo menos, mil anos depois do código sumério. Não obstante, também é posterior ao Código de Hamurabi, datado do séc. XVII AEC. O que isso prova? Absolutamente nada, mas é um indício de que a sociedade já vinha construindo suas leis, seus códigos, sua sabedoria ao longo dos milênios. Isto pode nos levar a pensar sobre nosso processo civilizatório e a formação dos preceitos sociais que viriam a permitir nossa organização como povo. Não foi algo que “desceu” pronto para o homem; ao contrário, se formos críticos, podemos perceber que nossos códigos morais continuam em evolução, ainda não chegamos ao nosso ideal, o que nos ajuda a perceber que a divindade não é algo necessário nesse processo, pois, se assim fosse, os códigos seriam pétreos e definitivos. A leitura desse livro conduz-nos por esses questionamentos, lançando focos de luminosidade em questões ainda obscuras. Assim, podemos terminar como começamos, a partir do convite a uma reflexão crítica 14

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sobre nossos valores mais caros e antigos, mas, reitero, com os olhos e a mente abertos.

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Introdução

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cabo de ouvir pelo rádio a previsão do tempo: segundo a apresentadora, o prognóstico para este final de semana é de pancadas de chuva. Apesar de não ser um especialista em meteorologia, presumo que ela não tenha tirado essa informação de um baralho mágico, nem mesmo consultado o ancião da montanha que alega sentir dor nas costas sempre que a chuva se aproxima. Penso também que a conclusão não deriva de rituais antigos que visam invocar a chuva. Minutos após a previsão do tempo, o tema passou a ser economia, e um jornalista com um tom amistoso disse que a produção de soja estava crescendo 13% ao 17

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ano (2017) 1. Novamente, presumi que esse aumento não era decorrente de sacrifícios humanos aos deuses. Presumi tais coisas, pois hoje, para a maioria de nós, essas ideias são consideradas obsoletas e mitológicas. Todavia, nem sempre foi assim, tais narrativas outrora carregavam o título de sagradas e questioná-las era entendido como uma blasfêmia contra os deuses. No Período Neolítico (8000 a.C.-4000 a.C.), essa chuva de que hoje conseguimos prever a intensidade e o seu período de duração, era entendida como parte de um rito sexual entre os deuses 2 e, dessa forma, as gotas de água que desciam do céu eram interpretadas como o sêmen divino que fecundava a terra, e que, por sua vez, gerava a agricultura. Alguns povos ainda faziam sexo enquanto plantavam, pois acreditavam que, com isso, despertariam as energias adormecidas na terra. Já outros entendiam que, para se obter a chuva, e, por consequência, uma agricultura farta, era necessário fazer sacrifícios animais e até humanos aos deuses. Hoje, sabemos que nada disso é real, entretanto, para chegarmos a esta conclusão, foi necessário ter coragem e blasfemar contra aquilo que era posto por muitos como sagrado. Para conseguirmos prever a chuva e obter uma colheita que cresce 13% ao ano, foi preciso parar de teorizar sobre o sobrenatural e olhar o mundo que estava diante dos nossos olhos, e esse foi o 18

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procedimento adotado pelo filósofo Tales (624 a.C.-558 a.C.) da cidade de Mileto (antiga colônia grega e atual Turquia) — conhecido como o primeiro filósofo 3. Foi por meio do pensamento sistemático que esse homem compreendeu que o sucesso das plantações não estava associado ao sexo, às orações ou até mesmo aos sacrifícios: o que determinava tal sucesso eram as condições climáticas. Muitos críticos da ciência alegam que o pensamento científico esvazia a beleza do mundo. Faço parte do grupo que pensa exatamente o oposto. Considero que a beleza é um atributo que só pode ser empregado à coisa em si, e não na idealização que temos dela, caso contrário, correríamos o risco de exaltar o vício e maldizer a virtude. Tales parece ter compreendido a importância de entender a coisa em si, e em posse de tal compreensão foi o primeiro homem que se tem registro a prever um eclipse solar, eclipse esse que ocorreu em 585 a.C. 4 5 Evidentemente, os eclipses também foram interpretados de forma mágica por muitas sociedades, pois, se a chuva, que é um fenômeno consideravelmente comum, despertava a imaginação dos povos, imagine o que é estar diante de um eclipse solar e não compreender o que de fato está acontecendo. Dessa forma, as narrativas sobre os eclipses são variadas, e não precisamos ir muito longe para conhecê19

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las: basta olharmos para os nossos irmãos, o povo tupiguarani. Segundo um dos mitos do povo tupi-guarani, os eclipses são causados por uma onça celeste 6 (Xivi, em guarani) que persegue seus irmãos Sol e Lua. Ainda segundo tal narrativa, o fim do mundo acontecerá quando Xivi finalmente engolir todos os astros, deixando a terra em uma profunda escuridão. Todavia, diante de tal acontecimento, o povo tupi-guarani deve se reunir com objetivo de fazer muito barulho e assim espantar Xivi, salvando o mundo da escuridão. A mitologia nórdica também apresenta uma crença parecida a essa: o eclipse solar é causado por Sköll, um lobo celeste que tenta engolir o Sol, e o eclipse lunar por Hati, irmão de Sköll. De acordo com a mitologia nórdica, quando os lobos finalmente engolirem os astros se iniciará o ragnarok (fim do mundo). Assim como o mito tupi-guarani, durante os fenômenos, os nórdicos precisavam se organizar e tentar espantar os animais celestes. Cada povo parece ter criado sua própria forma de entender este fenômeno. A mitologia Hindu credita o evento ao demônio Rahu 7 que persegue o Sol e a lua com o objetivo de se vingar. Segundo o mito, o Sol e a Lua haviam entregado Rahu aos deuses, pois esse teria tomado o elixir da imortalidade. Os deuses por sua vez, decapitaram Rahu como forma de castigo. E hoje a cabeça de Rahu viaja pelos céus em busca de vingança. 20

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Mas como o demônio está decapitado, não pode fazer muita coisa, sua única forma de vingança é tentar engolir os astros, que, ao serem engolidos, conseguem escapar pela garganta do demônio. Na mitologia egípcia, o eclipse solar é atribuído à serpente gigante Apep. Tal serpente tampa o Sol com seu corpo ao tentar engolir a barca sagrada do deus do Sol Rá, porém, ao final de cada eclipse, Rá vence a luta. Para os aborígenes, os eclipses significavam um mau presságio, doenças, sangue e morte 8. Os mitos são vastos, e, além de conterem explicações do mundo, são responsáveis por criar um sentimento de pertencimento ao Cosmos. Observe especialmente o mito tupi-guarani, que exalta a importância do coletivo. Tal narrativa nos ensina que a união nos deixa mais fortes, fortes ao ponto de salvar o mundo da destruição. Entretanto, embora tais narrativas possam nos encantar e motivar, nenhuma delas é real. Todavia, nesse livro não me preocuparei em criticar as crenças que a maioria de nós considera como mitológicas. Meu objetivo aqui é investigar as crenças que ainda hoje são consideradas como reais, mas que, se analisadas por meio de um pensamento científico, são tão frágeis como as explicações apresentadas acima. É evidente, como muitos dizem, e com certa razão que “a ciência não explica tudo”. Ora, isso de forma alguma é uma crítica ao pensamento científico, afinal os 21

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mitos explicam tudo e nem por isso são verdadeiros. É necessário se ter em mente que a falta de explicação científica não é um salvo-conduto para o pensamento mágico, ou seja, o fato de alguém não saber explicar um eclipse solar não aumenta a probabilidade da existência de animais celestes devoradores de astros. De certa forma, entendo que viver em um mundo sem explicações pode ser de fato perturbador. Nós, humanos, somos animais curiosos; entretanto, não parecemos ligar muito para a qualidade das explicações; parece-me que o nosso único objetivo é conseguir respostas que tapem as lacunas do conhecimento. Minha defesa é que, diante da falta de evidências para suportar nossa crença, é necessário abdicar de nosso julgamento; afinal, como defende a personagem Sherlock Holmes 9: “É um erro capital teorizar antes de ter dados. Insensivelmente, começa-se a distorcer fatos para ajustá-los a teorias, em vez de teorias para que se ajustem a fatos.” (DOYLE, 2018).

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Qual a origem das nossas crenças, e por que é tão difícil abandoná-las?

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Já há algum tempo tenho advertido que, desde a mais tenra idade, admiti muitas falsas opiniões como verdadeiras, e que aquilo que foi construído posteriormente em bases tão fracas deve necessariamente ter sido muito duvidoso e incerto; de modo que tive de me comprometer seriamente, uma vez em minha vida, com a tarefa de me livrar de todas as opiniões que eu já havia dado crédito, e começar tudo de novo das fundações, se quisesse estabelecer algo firme e constante nas ciências. - DESCARTES, Meditaciones metafísicas con objeciones y respuestas, 1977, p. 17 1

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primeiro texto filosófico que tive acesso, e penso que a maioria dos estudantes de filosofia do Ensino Médio também, foi o famoso Mito da 2 Caverna , presente no livro A República de Platão (427 a.C.-347 a.C.). Nesse texto, o escritor apresenta um diálogo entre as personagens Sócrates e Glauco. Sócrates descreve uma caverna habitada por prisioneiros. Não obstante, a primeira ideia que formulamos sobre prisioneiros é a de indivíduos que perderam a sua liberdade, por isso conscientes de sua desgraça; entretanto, esses descritos pelo filósofo não têm tal ciência, dado que a primeira impressão de mundo a que 25

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tiveram acesso foi a própria caverna, assim sendo, seria impossível imaginar que tal lugar se tratava de uma prisão. Com propósito de deixar a narrativa ainda mais dramática, Sócrates descreve que tais homens viviam acorrentados, de modo que era impossível virar o rosto e ver seus semelhantes; só conseguiam enxergar diante de si as sombras que eram projetadas na parede da caverna, e, por consequência, imaginavam que os sons (vozes) eram produzidos pelas próprias sombras. Em tal exercício mental, o filósofo pede ainda que imaginemos que, em certo momento, um preso é liberto e arrastado à força para fora da caverna. Esse, pela primeira vez, tem acesso ao mundo externo. Como vivia em uma caverna escura, a luz intensa com que ele se depara no exterior molesta os seus sensíveis olhos e, em um primeiro momento, o desejo desse prisioneiro é só um: voltar correndo para o conforto da sua “prisão”. Todavia, conforme o tempo passa, ele se familiariza com o mundo que está diante de si, e chega à dolorosa conclusão de que todas as suas crenças anteriores eram falsas, que as opiniões que mantinha de forma apaixonada no passado se tratavam apenas de sombras distorcidas. Em um ato de coragem, tal homem decide retornar à caverna e apresentar sua descoberta aos seus velhos

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amigos, na intenção de libertá-los da ignorância que o aprisionava. Para sua tristeza, quando ousou questionar as crenças tomadas por todos como certas, o mesmo passa a ser visto como louco. Quando ele argumenta que aquilo que eles declaram ser real era apenas um fragmento distorcido da realidade, seus companheiros rebatem dizendo que o mundo externo havia corrompido sua visão e deformado sua sensível mente. Em determinado momento da narrativa, Glauco questiona Sócrates sobre a estranheza de tais prisioneiros, e Sócrates diz que a condição deles se assemelha à nossa. Tal alegoria permite várias interpretações, e a maioria de nós quando a lê tende a se colocar automaticamente no lugar do ser iluminado consciente do mundo exterior e capaz de levar nossos amigos à realidade, afinal, como manifesta René Descartes (15961650) ainda nas primeiras linhas do Discurso do método, o bom senso é algo tão importante e bem dividido que todos acreditamos ter o suficiente 3. Não obstante, penso que tal escrito nos permite refletir sobre uma questão que, apesar de difícil, pode ser libertadora: “Qual é a origem das nossas crenças?”. Apesar de não refletirmos muito sobre isso, nossas crenças são idealizadas e disputadas antes mesmo do nosso nascimento, afinal, nossos pais mal recebem a 27

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notícia da gravidez e já arquitetam nosso papel na comunidade. Todavia, quando recebemos tais papéis sociais ainda na tenra idade, não temos capacidade crítica para questionar o seu fundamento teórico, e, por confiar na autoridade daqueles que nos alimentam e nos protegem, absorvemos tais sombras como a própria descrição da realidade. Somos orientados por nossos mentores a não passar próximo da saída da caverna, pois lá fora estaremos sujeitos a todo tipo de desgraça. Somos instruídos a não absorver nenhum conteúdo feito fora da caverna, uma vez que tais ideias podem nos levar à perdição. Ouvimos histórias de pessoas que se rebelaram e foram castigadas, devoradas vivas pelo ser que habita lá fora. Quando crescemos estamos ocupados demais para questionar, e só nos resta reproduzir tais opiniões de forma acrítica, afinal, conforme apresenta o historiador James Harvey Robinson (1863-1936) em A Formação da Mentalidade: Poucos homens dão-se ao trabalho de estudar a origem das suas mais queridas convicções; temos, mesmo, uma natural repugnância para fazê-lo. Gostamos de continuar a crer no que nos acostumamos a aceitar como verdade, e a revolta sentida quando duvidam das nossas verdades estimula-nos a ainda mais nos apegarmos a elas. (ROBINSON, 1957, p. 13)

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Isto é, apesar de não ligarmos para a formação de nossas crenças e muitas vezes absorvê-las sem nenhum critério crítico, quando alguém tenta nos roubá-las, tornamo-nos defensores passionais, dispostos a tudo para defendê-las. “Torna-se óbvio que não são propriamente as ideias que nos são caras, sim o nosso amor-próprio.” (ROBINSON, 1957). O engraçado é que se tivéssemos nascido em outro espaço geográfico, em uma família/comunidade com crenças antagônicas, também as defenderíamos com o mesmo ímpeto. Lembro-me que quando me deparei pela primeira vez com ideias que afrontavam minhas convicções religiosas, orava a Deus incessantemente para ele silenciar aquela dúvida que estava me corroendo. Havia aprendido que a dúvida era um sinal de fraqueza espiritual e só a fé levaria o homem à salvação. Em virtude disso, comecei a pesquisar formas de defender minha crença em Deus de maneira racional, li argumentos teológicos e assisti horas e mais horas de debates. Entretanto, com um tempo isso me incomodou, pois percebi que não estava muito interessado em chegar a uma conclusão objetiva, apenas queria mostrar que era impossível que eu estivesse errado. Todavia, minha atitude não era apenas motivada pela vaidade; poucos percebem, mas crenças políticas e religiosas não são apenas um conjunto vazio de ideias abstratas. Essas crenças representam uma identidade 29

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social, ou seja, vínculos de amizades e rituais familiares. Dizer a um indivíduo que ele foi criado dentro de uma caverna, é proferir que a sua estrutura social – leia-se vida – é uma mentira. Se formularmos uma analogia sobre a facilidade e a dificuldade em mudar de ideia/crença, poderíamos comparar com um castelo de cartas, diante do qual as pessoas poderiam estar mais dispostas a se livrar das crenças/cartas que estão no topo desse castelo (adicionadas por último), mas, se alguém tentar retirar aquelas que dão suporte a todas as outras, esse responderá à altura. Quando aceitei que não existiam boas evidências para a existência do sobrenatural, meu comportamento foi bem diferente do prisioneiro liberto, pensei que não seria justo submeter meus amigos e familiares a tais dúvidas; entretanto, com o passar do tempo percebi que impedir o fluxo das ideias poderia ser muito prejudicial, porém, veremos mais sobre isso adiante. Focaremos agora em entender o processo que forja a resistência em mudar de opinião. Encontraremos explicações para esse fenômeno na Teoria da Dissonância Cognitiva formulada pelo psicólogo social Leon Festinger (1919-1989), que estudou a forma como nos comportamos quando nos deparamos com opiniões/crenças antagônicas às nossas. O trabalho de Festinger foi apresentado em seu livro Teoria da Dissonância Cognitiva 4 em 1957 pela 30

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Stanford University e o seu artigo científico publicado em 1962 na revista SCIENTIFIC AMERICAN 5. Não obstante, antes de adentrarmos em tal teoria, é importante ter em mente que a mesma não visa validar a veracidade ou a falsidade de uma crença/opinião, busca apenas descrever os processos cognitivos que os indivíduos enfrentam quando estão diante de crenças antagônicas (dissonantes). Para Festinger, nós, animais humanos, estamos constantemente em busca de consonância (harmonia) entre nossas opiniões, de forma análoga a quando estamos com fome e buscamos alimento. Por conseguinte, sempre que temos uma crença e nos deparamos com uma ideia que a desafia, buscamos sanar tal dissonância. Entretanto, as formas de buscar essa consonância são plurais: para utilizar dois extremos, os indivíduos podem mudar de opinião, abandonando assim sua velha crença, ou podem ignorar por completo as novas evidências ou opiniões que lhe foram apresentadas. Tudo vai depender da importância emocional que a crença tem para o sujeito e do contexto social em que ele está inserido, ou seja, da força social que tal ideia emprega e é empregada sobre si e seus pares. Um exemplo corriqueiro é o do cônjuge que nutre a seguinte ideia: A — Meu parceiro é extremamente fiel. Entretanto, tal sujeito é apresentado a evidências 31

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que dizem: B — O parceiro está tendo um caso extraconjugal. Dessa forma, de modo a resolver esse conflito, o cônjuge pode levantar novas informações sobre o caso, e abandonar a crença “A”, ou pode ignorar “B” e partir para o processo de racionalização com o propósito de justificar que não está errado em relação a “A”. Assim, esse pode alegar que a informação da traição é mentirosa e foi criada por alguém que inveja a sua relação, e, se lhe forem apresentadas fotos, ele pode alegar que se tratam de montagens. O caminho que tal sujeito percorrerá pode ser influenciado pelo contexto social em que ele se encontra: se esse viver em uma sociedade que considera o matrimônio sagrado e o divórcio um pecado mortal, existirão mais motivos para negar a traição. Por nos tratarmos de uma espécie racional, nossa capacidade de justificar crenças, mesmo essas sendo irracionais, é assustadora. Essa racionalização se apresenta de modo a justificar nossas ideias, sendo elas verdadeiras ou falsas; por isso não é incomum se deparar com pessoas inteligentes que defendam de modo sistemático que a Terra é plana, que o homem nunca foi à Lua, ou que extraterrestres vem à terra para fazer círculos em plantações, afinal, como apresenta J. H. Robinson, “(…) a maior parte do chamado raciocínio 32

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humano consiste em descobrirmos argumentos para continuarmos a crer no que cremos.” 6. Agimos, mesmo que sem razão, como advogados apaixonados, dispostos a distorcer os fatos se necessário, tudo com o objetivo de saciar o apetite por consonância. O preocupante é que, se em questões objetivas como o formato da Terra, existe essa resistência, imagine você quando se tratam de assuntos subjetivos, que não necessitam de evidências (baseiam-se apenas na fé). Em outro trabalho de Festinger, publicado em 1956, conhecido como When Prophecy Fails: A Social and Psychological Study of a Modern Group that Predicted the Destruction of the World 7 (em tradução livre: Quando a profecia falha: um estudo social e psicológico de um grupo moderno que previu a destruição do mundo). Ele e outros dois psicólogos analisaram um grupo religioso chamado Seekers, que era liderado por Dorothy Martin (Marian Keech). Dorothy alegava ter recebido uma mensagem de seres extraterrestres chamados por ela de Guardiões. Segundo ela, os Guardiões a haviam alertado de um dilúvio em proporções apocalípticas que ocorreria no dia 21 de dezembro de 1954. Entretanto, Dorothy e os Seekers não precisavam se preocupar, dado que os Guardiões viriam à Terra para resgatá-los antes de o desastre acontecer. Contudo, tal dia foi como os outros, sem nenhuma anomalia, mas isso não fez com que os fiéis 33

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abandonassem a fé. A líder Dorothy Martin (Marian Keech) justificou a “falha da profecia”, nesse caso, “cancelamento”, dizendo que havia recebido outra mensagem dos Guardiões, que dizia que o grupo “espalhou tanta luz que Deus salvou o mundo da destruição” 8. Ainda de acordo com Festinger, para amenizar a sua dissonância cognitiva causada pela “falha da profecia”, o grupo se dedicou ainda mais em difundir sua religião, o que, segundo ele, significava que se mais membros aderissem à fé, o ambiente social se tornaria menos inquisidor, e isso amenizaria a dissonância cognitiva do grupo. Porém, a ideia de propagação da fé como meio de reduzir a dissonância em grupos que apresentam “falha de profecia” é questionada pela academia, o que os novos pesquisadores defendem é que “as profecias nunca falham”, ou pelo menos, não para os membros, conforme sustenta a pesquisadora Diana Tumminia em seu artigo publicado na Sociology of Religion de Oxford 9: a realidade de tais grupos é socialmente construída dento de uma lógica interpretativa, que ganha ressignificações irrefutáveis, ou seja, se a guerra não ocorreu no dia previsto pela profecia, o evento não se tratava de um acontecimento físico e sim espiritual. De tal forma, os que criticam a reinterpretação é porque não são iluminados o suficiente, e nem capazes de ver pelos olhos da fé a guerra espiritual que é travada por nós. 34

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Assim, tais crenças seguem fortes, absolutas e protegidas de toda e qualquer crítica. Tendo em vista que tal estado de dissonância é desconfortante, é natural a busca de subterfúgios que nos façam fugir de situações que desafiem nossas crenças. Em tempos de mídias sociais, com a facilidade do bloqueio e exclusão daqueles que contestam nossos dogmas, fazemos isso sem peso na consciência. Naturalmente, sentimo-nos mais à vontade em seguir pessoas que confirmem nossos pontos de vista, por vezes essa seletividade pode ocorrer até de forma inconsciente, uma demonstração empírica disso é o estudo publicado na Journal of Personality and Social Psychology em 1967, que demonstra como a dissonância torna a nossa atenção seletiva. No estudo, os pesquisadores Timothy C. Brock e Joseph Balloun fizeram uma série de experimentos com 112 estudantes universitários 10. Os pesquisadores entregaram uma gravação feita em fita cassete para os estudantes, que foram informados que a fita havia sido mal gravada, por isso, tinha um barulho de estática (ruído) no fundo; não obstante, os estudantes poderiam de forma deliberada apertar um botão que, quando pressionado, reduzia o ruído, deixando a mensagem temporariamente mais nítida. A pesquisa constatou que quando o áudio apresentava um posicionamento favorável às crenças dos alunos, eles utilizavam mais o botão de redução de ruído, 35

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de modo a ouvir o áudio com mais clareza, e utilizavam menos o recurso quando as opiniões eram antagônicas às suas crenças. Dessa forma, os estudantes fumantes buscavam ouvir melhor os áudios que tentavam refutar a ligação entre câncer de pulmão e tabaco, e não se esforçavam tanto para ouvir a mensagem oposta. Equivalentemente, mensagens que depreciavam o cristianismo passavam quase despercebidas para pessoas com um posicionamento religioso maior. Levando isso em consideração, é possível pensar que nós, brasileiros, criamos a nossa forma própria de nos defendermos de tal dissonância, dado que temos um dito popular que funciona como um mantra: “política, futebol e religião não se discutem”, assim ninguém nos perturbará no conforto das nossas cavernas. Todavia, na atualidade, nem precisamos selecionar os assuntos de nosso interesse: a maioria dos sites são programados para nos apresentar conteúdos que gostamos de consumir. A inteligência artificial cria o seu cadastro e é programada para lhe entregar somente o que você gosta de ler, assim, você passa mais tempo no site, tempo esse que é convertido em receita por meio de verba publicitária. Infelizmente, isso nos aprisiona em uma realidade paralela, um mundo criado com base nas suas expectativas – um termo mais apropriado seria bolha social, a caverna platônica da modernidade.

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Graças a esse fenômeno em momentos de campanha política, o eleitor tem suas expectativas quebradas no dia após as eleições, pois, geralmente o eleitor de “A” está convicto que o seu candidato será o mais votado, visto que todas as pessoas com quem ele se relaciona são apoiadores de “A”. No entanto, o mundo real demostra que “A” foi o menos votado. Tal indivíduo foi iludido pelas sombras da caverna, e agora se apegará a teorias da conspiração, de modo a justificar seu erro. Para deixar tudo mais complexo, eis que sujem os bots, robôs digitais criados com intuito de mostrar apoio popular na internet, levando assim o eleitor a ter um conforto social, por esse considerar que tem suas ideias respaldadas por um grande grupo. Tais candidatos parecem ter estudado a fundo O Mito da Caverna de Platão e a Teoria da Dissonância Cognitiva de Festinger: Quanto maior o número de pessoas que um indivíduo sabe já concordarem com uma dada opinião que ele sustenta, menor será a magnitude da dissonância introduzida pela expressão de discordância de alguma outra pessoa. (FESTINGER, Teoria da Dissonância Cognitiva, 1975, p. 163)

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Ou seja, dentro da caverna, bolha, grupo ideológico, encontraremos harmonia e seremos os senhores da razão. Consequentemente, qualquer voz dissonante que surja dentro do grupo deve ser calada para que não exista nenhuma fragmentação. Depois de tantas variáveis a que estamos sujeitos, é estranho pensar que quando nos descrevemos aos outros, a maioria alega ser detentor da habilidade de mudar de opinião, e com capacidade de ouvir o contraditório. Talvez seja porque reconhecemos que tais atributos são nobres e capazes de advogar sobre nossa honestidade e superioridade intelectual. Entretanto, a verdade é que mudar de opinião e abandonar velhas crenças é de fato algo muito difícil, às vezes para fazer isso é necessário trocar até de espaço geográfico. Então, já que se livrar de uma opinião é tão difícil, talvez o que devemos fazer é criar critérios mais sistemáticos para formular nossas ideias, caso contrário seremos reféns das próprias prisões. Em virtude do exposto, penso que tal critério de formulação de conhecimento deva ser também pautado em um mecanismo de correção de erros, dado que, por mais criteriosos que possamos ser, estaremos sempre sujeitos ao erro, afinal, somos falíveis. Precisamos de um critério que aceite a crítica com bons olhos, e que a estimule. Um bom exemplo do que estou a dizer

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encontra-se no relato apresentado pelo professor de Harvard Richard Dawkins (1941): Lembro-me de uma influência na minha vida universitária. Havia um professor idoso no meu departamento, que, durante anos, fora apaixonado por uma teoria. Um dia, um pesquisador americano chegou e refutou totalmente as hipóteses do nosso mestre. O professor foi até ele, apertou a mão dele e disse: “Caro colega, eu lhe agradeço. Eu estive errado durante 15 anos.” Todos aplaudiram. Aquele era o ideal científico de quem dedicou quase toda a vida a uma teoria e se alegrou por ter sido desmentido e pela descoberta da verdade científica. (The God Delusion – The Root of All Evil?, 2007) 11

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Eu tenho uma mensagem do além para você

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m um momento de angústia você caminha pelas ruas da cidade e se depara com um rapaz entregando folhetos, ele se aproxima e lhe entrega um que diz: “Se tem dúvidas e necessita de respostas para tomar as melhores decisões, venha se consultar com Madame Íris (…)”. Apesar da sua curiosidade em ter uma experiência mística, você decide jogar o folheto em uma lixeira e continua a caminhada, mas, após dez minutos, depara-se com outro folheto, dessa vez, jogado na calçada e nesse está escrito: “Queremos lhe ajudar a encontrar o caminho para sua verdadeira felicidade. Venha se consultar com Madame 41

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Íris (…)”. Nesse instante, você começa a presumir que tais anúncios não foram ao seu encontro por acaso, afinal, você é alguém que rejeita o acaso e acredita que tudo tem um propósito. Você toma coragem e vai até o endereço, e, enquanto sobe as escadas do escritório, consegue sentir um cheiro agradável de incenso. Ao entrar na recepção, um jovem simpático lhe atende e acompanha até a sala de Madame Íris. O recepcionista lhe pede para desligar o celular, sentar-se na cadeira de couro macia que fica ao redor da mesa de centro e esperar. Enquanto espera, seus olhos navegam pelas paredes e se deparam com quadros multicoloridos, símbolos, velas, cristais, e, ao fundo, uma bela estante de livros que parecem ser raros e conter um conhecimento singular. Suas mãos ainda nervosas deslizam sobre a toalha da mesa, que contém uma estampa enigmática e renda dourada nas bordas; quase que inaudível você percebe uma música, uma melodia bem relaxante. Madame Íris adentra à sala com um sorriso no rosto, um sorriso de quem lhe conhece há décadas e pede desculpas por lhe fazer esperar. Você sorri de volta e diz: “Imagina, até que foi rápido”. Madame Íris senta do outro lado da mesa na sua frente, segura suas mãos de forma suave e, com uma voz delicada, olhando nos seus olhos, diz:

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— Muitas vezes, o mundo espiritual me apresenta coisas de forma misteriosa, por isso a sua ajuda é muito importante na revelação da mensagem. Ainda mantendo o contato visual constante, Madame Íris afirma que todas as pessoas têm a capacidade de falar com o mundo exterior, entretanto, o que ela fez para evoluir nesse dom natural foi sacrificar os prazeres do mundo terreno e se dedicar exclusivamente aos estudos milenares da comunicação transcendental. Ela continua: — Sinto que o seu caminho até aqui foi repleto de dúvidas, e por vezes quis desistir. Sinto também seu coração apertado, como se houvesse uma pendência que te impossibilita de buscar a felicidade, estou sendo clara? Você balança a cabeça positivamente e fala que a primeira vez que encontrou o folheto dela o amassou e jogou fora, porém depois percebeu que ir até ela era uma espécie de chamado. Madame Íris argumenta que isso ocorreu pelo orgulho que tem de ser um pensador independente, e não aceitar o que as pessoas lhe oferecem sem a apresentação de uma comprovação satisfatória. Meia hora depois, você sai do escritório convicto que viveu uma experiência incomum, acreditando que esteve frente a frente com uma pessoa que revelou os seus segredos mais íntimos, de alguém que soube 43

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descrever seus sentimentos de uma forma tão clara e objetiva que nem você conseguiria. Entretanto, você foi vítima de um golpe, e não percebeu que cada detalhe na sua consulta foi minuciosamente desenvolvido para te enganar. No decorrer deste capítulo você saberá como isso foi possível. No ano de 2006 no Brasil, uma emissora de TV convidou 40 pessoas para participarem de uma experiência paranormal chamada pelos produtores de Operação Bola de Cristal 1. A produção do programa montou um cenário com cadeiras, som e iluminação. As pessoas que haviam se candidatado voluntariamente para participarem do quadro se assentaram, e o apresentador do programa chamou ao centro do palco o homem que seria responsável pela experiência, o suposto paranormal Ângelo. Ângelo adentra ao centro do palco e, com uma performance mística, inicia sua apresentação falando que, quando olha para uma pessoa, ele vê, sente e percebe “coisas” de cores diversas, e assim como a Madame Íris, ele diz: “(…) Essas mensagens estão sempre corretas, mas, às vezes, é difícil interpretá-las. Então, eu peço por isso a colaboração de todos vocês.” Durante a apresentação, Ângelo escolheu 9 indivíduos, e falou com eles de forma direta e pessoal. Ao final da apresentação os 9 foram até uma sala isolada, onde foi solicitado que julgassem o nível de 44

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acertos de Ângelo com notas de 0 a 10, onde 0 seria muito ruim e 10 excelente. Todos atribuíram nota máxima à qualidade das previsões de Ângelo. Alguns participantes ainda relataram a experiência da seguinte forma: “Como se eu estivesse ali falando com uma pessoa que soubesse muito da minha vida, que estivesse comigo 24 horas por dia. Ele leu a minha alma, essa é a grande verdade”, afirmou a participante Sílvia de Moura. Segundo Fernanda Santos da Silva, “A opinião dele é a opinião de alguém que falou de toda minha vida e nunca me viu”. Já para Darana de Araújo, “(…) falou do meu quarto, ele falou tudo certinho, nenhum equívoco. A sensibilidade dele capta”. Após colher os depoimentos, a emissora revelou ao público que Ângelo, na verdade, era um personagem interpretado pelo ator Osvaldo Mil e treinado e orientado via ponto eletrônico pelo Mágico Kronnus (Thiago Neves) e pelo psicólogo e parapsicólogo Jayme Roitman. A emissora também disse que o objetivo do experimento era demonstrar como charlatões fazem para enganar as pessoas comuns. Entretanto, mesmo após a fraude revelada alguns indivíduos que passaram pela experiência se recusavam a aceitar que tudo se passava de uma mentira. foi quando Roitman disse, de forma brilhante, que o poder do charlatão é tão grande que, mesmo ele dizendo que é uma farsa, as pessoas se recusam a aceitar. 45

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Em 1988, o mágico especialista em fraudes James Randi (1928) havia feito uma trama parecida, porém com o objetivo de mostrar como a mídia australiana era crédula e acrítica quando o assunto era paranormalidade. Randi instruiu e treinou seu amigo José Alvarez para que o mesmo simulasse ser um paranormal capaz de se comunicar com o espírito milenar de Carlos 2. Para deixar a armação mais convincente e aplicar um pouco de credibilidade à personagem, Randi e Alvarez criaram reportagens de jornais e revistas falsas, gravaram simulações de entrevistas em rádios e apresentações em teatros que nunca haviam acontecido. Nas palavras do próprio Randi, o material produzido por eles era bem amador; todavia, como era de se esperar, a imprensa mordeu a isca e, em pouco tempo, “Carlos” passou a ser um sucesso na TV australiana, com fãs em toda a região. Ele (José Alvarez) assistiu a vídeos de outras pessoas falando com vozes estranhas, fingindo estar em contato com outros mundos, e aprendeu com perfeição. Finalmente, foi à Austrália, apresentou-se no Opera House de Sidney diante de uma plateia encantada, todos segurando cristais, contas e coisas do tipo, com expressões enfeitiçadas nos rostos, atraídos e cativados por esse homem (…). A performance dele foi muito convincente, e até melhor que a dos

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canalizadores “verdadeiros”!

— James Randi

Ainda de acordo com Randi, mesmo após a farsa revelada, muitos telespectadores continuavam acreditando na existência de “Carlos” e em suas mensagens. Não obstante, se não existem paranormais e tudo isso é, de fato, uma farsa, como grande parte da população ainda acredita em videntes e paranormais, por que tudo se parece tão real? Bom, tais “adivinhações” só são possíveis graças a um fenômeno psicológico apelidado de Efeito Barnum, em referência ao grande empresário dos circos e político americano Phineas Taylor Barnum (1810-1891), que, comumente, é lembrado por ser o autor de uma frase que talvez nunca tenha dito, mas que, de certa forma, o define: “Nasce um otário a cada minuto”. Não obstante, o fenômeno também pode ser conhecido por Efeito Forer 3, dado que foi descrito experimentalmente pelo psicólogo americano Bertram R. Forer (1914-2000). Forer descobriu que, diante de uma generalização, por vezes abstrata, o ouvinte ou leitor tende a atribuir caráter pessoal à descrição, uma espécie de validação subjetiva, aquela sensação de “ele (a) está falando para mim”. Em 1948, Forer convenceu seus 39 alunos que descreveria os traços de personalidade de cada um deles, 47

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solicitou que os mesmos respondessem a um teste de personalidade que posteriormente seria avaliado, interpretado e descrito. Os estudantes responderam e entregaram os testes; entretanto, Forer descartou todas as respostas e decidiu enviar a mesma descrição de personalidade para todos os alunos sem que os mesmos soubessem. Solicitou ainda que os alunos após lerem atribuíssem notas de 0 (muito ruim) a 5 (muito boa) para o grau de proximidade de sua personalidade com a descrição feita pelo professor, todos haviam recebido o seguinte texto: Você tem uma necessidade de ser querido e admirado por outros, e mesmo assim você faz críticas a si mesmo. Você possui certas fraquezas de personalidade, mas, no geral, consegue compensá-las. Você tem uma capacidade não utilizada que ainda não a tomou em seu favor. Disciplinado e com autocontrole, você tende a se preocupar e ser inseguro por dentro. Às vezes, tem dúvidas se tomou a decisão certa ou se fez a coisa certa. Você prefere certas mudanças e variedade, e fica insatisfeito com restrições e limitações. Você tem orgulho por ser um pensador independente, e não aceita as opiniões dos outros sem uma comprovação satisfatória. Mas você descobriu que é melhor não ser tão franco ao falar de si para os outros. Você é 48

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extrovertido e sociável, mas há momentos em que você é introvertido e reservado. Por fim, algumas de suas aspirações tendem a fugir da realidade.

E pasmem, a avaliação média dada pelos estudantes foi de 4,26 acertos. O teste foi repetido várias vezes com acadêmicos de Psicologia e o resultado continuava apontando para uma precisão de aproximadamente 85%. Em 1979, o cientista francês Michel Gauquelin (1928-1991) 4 anunciou em um jornal que fazia horóscopo grátis. Os interessados só precisavam enviar data e local de nascimento. O cientista recebeu cerca de 150 cartas com esses dados e, assim como Forer, o mesmo enviou um horóscopo idêntico para todos os participantes, solicitando apenas que os mesmos enviassem de volta uma avaliação sobre a precisão das afirmações e, pasmem, 95% das respostas foram positivas; entretanto, o horóscopo enviado havia sido feito para um assassino em série chamado Marcel Petiot. Em 1997, o programa alemão Quark&Co também entregou uma descrição astrológica de um assassino em série para 200 convidados e 75% a avaliaram de forma positiva e pessoal 5. Tais descrições, além de colocar a validação de médiuns em xeque, também refutam a validade de práticas como a astrologia, que diz ser capaz de 49

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descrever a personalidade, profissão e também a compatibilidade amorosa das pessoas, avaliando apenas o plano astral. Entretanto, quando vamos averiguar tais correlações, elas não existem. Observem: o físico autor do livro Probabilidades na vida cotidiana (tradução livre sem publicação em português), John McGervey (1931), avaliou a biografia de 6475 políticos e 16634 cientistas e simplesmente não encontrou nenhuma correlação entre signo e profissão 67. O psicólogo e estatístico britânico Dr. Bernard Silverman, em um artigo científico publicado 1971 na The Journal of Psychology: Interdisciplinary and Applied, avaliou duas amostragens sistemáticas de 1586 e 1392 casamentos ocorridos entre 1967 e 1968 e, em seguida, analisou 478 registros de divórcio que ocorreram em Michigan em 1968 e não identificou nenhuma correlação entre incompatibilidade astrológica e divórcio, dado que pessoas supostamente “compatíveis” se divorciam com a mesma frequência de pessoas “incompatíveis” 8. Voltando aos médiuns, esses, além de utilizar validação subjetiva, também utilizam outras técnicas para terem acesso a certas informações. Uma delas é a leitura quente. Todavia, essa não é muito utilizada, pois demanda muito tempo e trabalho, dado que leitura quente é a arte de obter informações previamente sem que a vítima desconfie. Dependendo da relevância da vítima, alguns médiuns optam até em contratar um 50

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detetive para vasculhar lixo e seguir o sujeito. A própria Madame Íris poderia utilizar o rapaz que entregava os folhetos na rua para observar o comportamento dos seus clientes em potencial, mas, existem formas mais fáceis de leitura quente como a utilizada pelo reverendo evangélico Peter Popoff (1946). Em 1986, Peter Popoff era conhecido e aclamado por muitos fiéis. Seu sucesso era tanto que seus cultos eram transmitidos por rádio e TV 9. Em suas apresentações, Peter alegava conversar com Deus, e isso lhe permitia chamar pessoas que ele nunca havia visto antes pelo nome e sobrenome, e até dizer o número e o endereço da casa. Peter falava sobre a enfermidade que a pessoa estava vivendo e a declarava curada. Após a revelação, as pessoas se sentiam curadas, homens abandonavam suas muletas e diziam não sentir mais dor; em alguns casos, os doentes desprezavam os tratamentos convencionais. No entanto, todas essas habilidades sobrenaturais chamaram a atenção dos céticos, em especial do já citado James Randi. Randi solicitou que sua equipe de investigação acompanhasse o reverendo Peter Popoff de perto, e foi assim que um dos seus assistentes percebeu que Popoff utilizava em uma de suas orelhas algo parecido com um ponto de rádio ou um aparelho de surdez. Como eles constataram, seria incrível que um homem que ouve a

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voz de Deus e cura em nome deste tivesse problema de audição, e assim decidiram investigar mais a fundo. Parte da equipe de Randi se infiltrou no culto de Popoff dizendo que se tratava da produção de um documentário. Eles aproveitaram a oportunidade e instalaram um receptor de rádio com objetivo de captar as informações que o reverendo recebia em seu suposto ponto. Como era de se esperar, a voz que o sacerdote simulava ouvir não era de Deus, e sim da sua esposa Elizabeth Popoff. Transcrição da gravação na voz de Elizabeth: “Olá, Petey. Eu amo você. Estou falando com você. Você pode me ouvir? Se você não pode, está com problemas (…)”. “Estou procurando nomes agora (…)”, e assim Elizabeth informava os nomes dos indivíduos que o reverendo deveria chamar, também noticiava os problemas de saúde e endereço. Segundo Randi, as informações sobre as vítimas eram tiradas dos formulários de pedidos de oração e conversas que ocorriam previamente na recepção da igreja. Em tempos modernos, obter informações das vítimas é ainda mais fácil. Em 2012, na Bélgica, uma agência publicitaria 10 montou uma tenda “paranormal” em uma praça em Bruxelas, e, para justificar as câmeras, 52

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alegaram que se tratava de um programa de TV. Durante o dia, a tenda recebeu várias pessoas. Dentro desta, estava um homem de branco chamado Dave. Os indivíduos, ao adentrarem a tenda, informavam seus nomes à recepcionista, que os levava até o interior desta para se consultar com o vidente Dave. Esse, por sua vez, realizava adivinhações incríveis: revelou o nome e sobrenome de amigos, falou de viagens, animais de estimação, objetos pessoais e até o número da conta bancária do sujeito. As pessoas ficaram admiradas, algumas disseram que ele revelou coisas que poucas pessoas sabiam; entretanto, ao final de cada consulta, o vidente apresentava seu segredo. Dave abria uma cortina que está atrás dele e lá estava uma equipe de hackers levantando informações da vítima a partir do nome que a mesma havia cedido na entrada. À medida que os especialistas conseguiam informações, eles revelavam ao ator por um rádio transmissor. Toda aquela produção foi a forma que a Febelfin, federação de setor financeiro da Bélgica, encontrou para chamar a atenção das pessoas sobre as informações que elas disponibilizam na internet. “Sua vida está online. E pode ser usada contra você”, dizia a campanha. Como disse, a leitura quente é um processo um pouco rebuscado, por isso não é muito utilizada pela maioria dos charlatões. Esses preferem uma técnica mais 53

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simples chamada de leitura fria 11; assim, conseguem retirar informações da vítima por meio da leitura corporal, aparência e até o tom de voz. Também utilizam uma série de elementos que facilitam esse método de leitura. Apresentarei uma série de artimanhas utilizadas por eles. Os supostos médiuns, de modo geral, apostam no ambiente, um ambiente que lhes apresente credibilidade e com um clima místico. Sabem que a atmosfera somada aos preconceitos da vítima a deixarão mais suscetível e crédula. Um espaço igual ao da Madame Íris, com muitos livros e cristais cumprem esse papel de impressionar. Quando esse suposto médium se depara com a vítima, ele a analisa nos mínimos detalhes, visto que a aparência pode proporcionar a ele informações valiosas sobre a personalidade. Por isso, analisa a idade, elementos como pingentes, brincos, a presença ou ausência de aliança de compromisso ou casamento, marca de anel no dedo, corte de cabelo, roupa, suor e até o perfume. Outra coisa que os charlatões sabem é o motivo que faz alguém ir ao seu encontro, e esses geralmente são três: saúde, dinheiro e amor. Só com esses detalhes, uma pessoa treinada é capaz de fazer uma rica análise. Mas não se engane: em alguns casos eles conseguem fazer isso até de olhos fechados, sem olhar 54

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para a vítima, conforme nos revela o mágico William W. Larsen (1904-1953) 12 citado por Denis Dutton em um artigo de 1988: o médium pode subir ao palco de olhos vendados e solicitar ao seu assistente que leve até ele qualquer pessoa que deseje participar da experiência e, sem que o público perceba, por meio de um código prédefinido, o assistente revela traços da vítima. Por exemplo, ao dizer: “Estou aqui com uma moça…” o assistente quer dizer que o indivíduo tem entre 20 e 30 anos, “…uma senhora” 30 a 55, e “… uma senhora muito bonita”, quer dizer mais de 55 anos. Larsen revela que o mesmo serve para os homens, e só por meio dessa informação é possível fazer afirmações surpreendentes de até 150 palavras. Para o sujeito de 30 a 55 anos, ele diz que é possível falar de talentos artísticos que não foram aproveitados ou stress relacionado ao desejo de ganhar dinheiro. Larsen escreve isso em 1929, quando o gênero ainda definia as tarefas e vida dos indivíduos. Em virtude disso, utilizava gatilhos como “stress financeiro” apenas para homens de meia-idade. Entretanto, hoje com a quantidade de pesquisas de opinião pública sobre medos, previsões econômicas, índices de desemprego, dívida, e até pesquisas eleitorais, podem fornecer a um leitor experiente um campo fértil para suas “adivinhações”. Munir-se de pesquisa para ler o público não é muito diferente da forma que as agências

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publicitárias fazem, afinal, estudar o público e o mercado é a condição de sucesso de qualquer produto. Ter habilidades artísticas e boa desenvoltura diante do público também tem o seu valor, como revela Ian Rowland, conhecido como o melhor profissional de leitura fria do mundo. A postura amigável, tom de voz calmo e simpático, contato visual constante e cabeça levemente inclinada para o lado enquanto escuta são imprescindíveis. Rowland e outros especialistas como o psicólogo Michael Shermer 13 dizem que parte do sucesso do charlatão é iniciar o discurso apresentando seus poderes, e deixar claro que o mundo espiritual se comunica de forma misteriosa, por isso é necessário que a vítima o ajude na revelação da mensagem do além. Dessa forma, o charlatão. além de quebrar a resistência da vítima em ceder informações, também se protege caso a consulta seja um fracasso. Um comportamento parecido é o dos reverendos que alegam curar pela fé que, em face do fracasso, responsabilizam o doente por não ter fé suficiente. Além do mais, o charlatão é especialista em transformar o fracasso em oportunidade. Ele pode alegar que não consegue ler a vida da vítima, pois a mesma está “carregada” por espíritos de inveja, e por isso receitará a ela um banho de sais para descarrego. Nesse meio tempo, ele pode obter informações a respeito dessa pessoa de outras formas, ou até mesmo insistir na ideia da inveja e perguntar se o 56

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sujeito conhece muitas pessoas que a invejam, e assim a vítima lhe revelará elementos que podem ser utilizados sem que o mesmo perceba que forneceu. Outras estratégias que esses médiuns utilizam com o objetivo de retirar informação das vítimas é fazer perguntas disfarçadas em suas afirmações: “Vejo aqui que é alguém em quem geralmente se pode confiar. Não é um santo, não é perfeito, mas vamos apenas dizer que quando realmente importa é alguém que entende a importância de ser confiável. Isto faz sentido para você?”, ou “Por que é que isto seria importante para você?”, “Estou sendo claro?”. Depois de tais indagações, o sujeito sempre tentará justificar a predição do médium com um fato vivenciado por ele, que servirá de munição para novas “previsões”. O que a vítima tem dificuldade de perceber é que o processo de previsão só acontece na mente dela e as informações relevantes geralmente são apresentadas pela própria vítima impressionada pelo Efeito Forer. Observe o que ocorreu na já citada Operação Bola de Cristal: o ator se direcionou a uma senhora de aproximadamente 50 anos e ao seu filho com cerca de 30 anos e disse uma frase vaga com objetivo de pescar informações: “Me vem uma casa e que tinha muita gente, e deixou de ter gente”. Após sua fala, a senhora revelou que Ângelo estava descrevendo a casa de seus pais antes do falecimento deles. Com essa informação, o 57

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ator olha para o filho e deduz: “Você não tirou tanto proveito disso?”, e a mãe responde pelo filho dizendo “Ele tinha cinco anos, só”. O ator pensa mais um pouco e indaga: — Você (filho) se sente culpado por não ter chorado, na morte deles? […]. De você se sentir insensível, falar, “caramba uma coisa tão séria e eu subjuguei daquela forma”. O filho fica extremamente impressionado e se abre para o ator. No final da apresentação, o mesmo disse à equipe que o vidente havia revelado algo que ele nunca havia compartilhado com ninguém. De fato, parece uma revelação surpreendente, mas a equipe tinha conhecimento que crianças de pouca idade diante da morte de um parente não entendem o que está acontecendo, e, em vista disso, tendem a não chorar. Outro artifício utilizado por esses supostos médiuns é falar sobre objetos pessoais. Geralmente nesse momento tudo fica mais impressionante, mas, na verdade, é a mesma manipulação. Ao indagar frases como “Vejo um móvel antigo” ou “uma foto com pessoas felizes”, eles sabem que a maioria de nós carrega lembranças de um móvel antigo, e que todos podem contar histórias sobre uma foto. Entretanto, quando as vítimas são perguntadas sobre esses objetos, elas geralmente criam a falsa memória de que o vidente havia descrito o móvel que ficava na sala da avó em 58

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detalhes. Esses charlatões têm listas de objetos e acontecimentos que podem se encaixar para todos: “acidente na infância envolvendo água”, “chaves que você não consegue lembrar o que abrem”, “uma caixa de fotografias antigas, a maioria não colocada em álbuns”, “objetos de um familiar falecido”. Além disso, podem transformar erros em acertos, “Você não se lembra daquele acidente na infância envolvendo água? Bom, você era muito jovem e deve ter esquecido”, e assim eles podem falar até sobre pessoas “Vejo um nome é… Marcos…, isso faz sentido para você?” Ser for em público e a pessoa que está na sua frente não esboçar reação, o charlatão exclama “Acho que essa mensagem não é para você”, e assim sai procurando na plateia alguém que tenha alguma ligação com o nome Marcos, mas se o médium estiver sozinho com o sujeito ele ainda pode pedir que o cliente guarde esse nome, porque será importante no futuro. Charlatões também sabem da importância de utilizar nossa vaidade contra nós, por isso capricham nos elogios, “Consigo ver que você é muito esforçado… perfeccionista… sonhador, mas tem o pé no chão”. Dificilmente um charlatão dirá à sua vítima que ela é preguiçosa, que não consegue um emprego melhor porque não se esforçou o suficiente, afinal, o cliente não está pagando para ser ofendido. Em virtude disso, apostam em frases de autoajuda e conhecimento popular, 59

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e, se o cliente está ansioso porque não dizer: “Tenha calma que o sucesso é garantido, você pode precisar ser paciente. Nunca esqueça que a mais longa jornada começa com um único passo / Roma não foi construída em um dia”, “Existe luz no fim do túnel, como o velho ditado diz, o céu é sempre mais escuro antes do amanhecer.” 14. Uma outra estratégia muito utilizada por médiuns é apresentar uma grande quantidade de informação; dessa forma nosso cérebro se encarregará de dar significado a elas, e as que não tiverem correlação simplesmente serão ignoradas, conforme apresenta Ian Rowland 15: “No decorrer de uma leitura bem-sucedida, o psíquico pode fornecer a maioria das palavras, mas é o cliente que fornece o maior significado e toda a importância”. Com poucas horas de leitura, qualquer pessoa consegue se passar por um vidente, e com estudo e treino é possível se aperfeiçoar e ganhar bagagem. O próprio psicólogo Michael Shermer 16 se valeu das dicas apresentadas por Ian Rowland e, em um curto período de tempo, conseguiu fazer o público acreditar que ele era um vidente chamado “Michael Hollywood”. Shermer havia sido convidado pela equipe do programa Billly Nye, The Science Guy para gravar uma série científica chamada Eye on Nye e, como ele mesmo disse, sem nenhuma habilidade ou treino em leitura fria, conseguiu deixar o público impressionado. Em seu livro, Shermer 60

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conta que abriu todas as análises utilizando a seguinte sugestão: Você pode ser uma pessoa bastante atenciosa e estar sempre pronto para ajudar os outros, mas há momentos em que, se for honesto, é possível identificar um traço de egoísmo em si mesmo. Diria que você pode até ser bastante quieto e discreto, mas, em certas circunstâncias, você pode ser a vida de uma festa, se estiver com o humor em alta. Às vezes, você é muito honesto sobre seus sentimentos e revela muito a seu respeito. Você é bom em pensar nas coisas e gosta de ter provas antes de mudar de ideia sobre qualquer assunto. Quando se encontra numa situação nova, costuma agir com cautela até entender o que está acontecendo, e só então começa a agir com confiança. O que fica evidente aqui é que você costuma ser alguém de confiança. Não um santo nem alguém perfeito, mas digamos que, quando o assunto é sério, você entende a importância de ser confiável. Você sabe como ser um bom amigo. Você é capaz de se disciplinar para parecer aos olhos dos outros que está no controle mas, na 61

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verdade, costuma se sentir inseguro de alguma forma. Você gostaria de ser um pouco mais popular e estar mais à vontade com suas relações interpessoais do que nesse exato momento. Você entende como o mundo funciona, uma sabedoria conquistada mais através de duras experiências do que de livros.

Conforme Rowland e Shermer relatam, a sentença “Você é sábio nas coisas do mundo, uma sabedoria conquistada mais através de duras experiências do que de livros” é uma frase de ouro. Em outras palavras, toda vítima diz: “Essa frase resume minha vida.”. Ao simular conversar com os mortos, Shermer conta que se sentiu mal, pois percebeu que tinha muito poder sobre a vítima, que estava em prantos. Era uma mulher emotivamente frágil de quem facilmente podia ter tirado proveito soltando alguma frase vazia como “seu pai está aqui conosco agora e quer que você saiba que ele a ama”. Mas sabia que teria que olhar no espelho na manhã seguinte e simplesmente não podia fazer isso […].

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Shermer conseguiu esse resultado apenas fazendo suposições frágeis que poderiam ser atribuídas a qualquer pessoa. O sujeito ficou tão impressionado que, quando a consulta terminou, relatou à produção do programa que, por mais de dez anos, buscava médiuns para resolver pendências com seu pai, e que a consulta com o “Michael Hollywood” foi a melhor experiência sobrenatural que teve. Até o momento, não temos nenhum motivo para acreditar na existência de médiuns, psíquicos, canalizadores, ou qualquer outra coisa mística, entretanto, posso dizer que entendo o desejo de se comunicar com pessoas incríveis que passaram por nossas vidas e deixaram saudade. Compreendo também que temas como saúde, dinheiro e amor têm o poder de desestabilizar nossas emoções, todavia, a realidade do mundo não é reflexo dos nossos desejos e angústias. E, para não sermos enganados por esses sentimentos, precisamos de uma certa dose de ceticismo, mesmo diante de fatos que não conseguimos explicar. Pessoas que têm a esperança ou a crença de se comunicar com os mortos são as que mais precisam de ceticismo. Penso que aqueles que compartilham dessas crenças têm de fato o anseio de conversar com os seus entes e não com charlatões; por essa razão, devem tomar cuidado. Um exemplo dessa postura que descrevo é do mágico escapista Harry Houdini (1874-1926), que 63

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segundo o autor Christopher Sandford 17, aos 11 anos havia participado de uma “série de sessões” na tentativa de entrar em contato com seu meio-irmão morto Hermann e, depois, aos 18 anos, vendeu seu relógio para pagar uma “reunião psíquica profissional” a fim de falar com seu pai recém-falecido. Houdini teve várias experiências fracassadas com charlatões e, conforme se especializava na arte da mágica, seu ceticismo aumentava, mas, apesar disso, com a morte de sua mãe, Cecilia Weiss, que era considerada a pessoa mais importante em sua vida, e sob influência de um casal de amigos espíritas, Arthur Conan Doyle i (1859-1930) e a esposa de Doyle, a suposta médium Jean Leckie, Houdini decidiu participar de uma nova sessão. Nessa, Jean Leckie começou a psicografar 18 uma carta que supostamente estava sendo ditada pela mãe de Houdini. A carta contava que ela estava feliz pelo sucesso do filho. Houdini percebeu que a carta era falsa, dado que ela havia começado a carta o chamando de Houdini, seu nome artístico; entretanto, sua mãe sempre o chamava de Erik, seu nome de batismo. Sua esposa também o havia advertido que, na noite anterior, Jean Leckie a havia interrogado sobre sua mãe. Houdini ficou Médico britânico, escritor e autor das histórias do detetive Sherlock Holmes. i

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muito decepcionado, porém não esboçou reação, não queria chamar a esposa do amigo de farsante. Contudo, tempos depois, Houdini passou a declarar guerra contra esses charlatões abutres da dor alheia. Ele passou a utilizar seu conhecimento de mágico e ilusionista para desmascarar o espiritismo. Houdini criou também um desafio e ofereceu 10 mil dólares para qualquer pessoa que demostrasse poderes paranormais que ele não conseguisse reproduzir. Para alguns biógrafos, ele, de fato, desejava encontrar alguém capaz de colocá-lo em contato com a mãe e “perder” a aposta. O mágico serviu de referência a todo uma geração e inspirou James Handi que, posteriormente, ofereceu um prêmio de um milhão de dólares para qualquer pessoa capaz de demonstrar fenômenos paranormais em condições adequadas de observação. Com base em tudo que li e vi até hoje, posso concluir que existem apenas dois tipos de místicos: aqueles que sabem que são uma fraude e enganam os outros sem nenhuma piedade, e aqueles que se auto,enganaram. Recordo-me que quando tinha 16 anos e havia me convertido ao protestantismo pentecostal, sentia que existia uma comunicação direta entre Deus e os líderes da igreja a qual frequentava. Percebia que Deus fazia revelações sobre nossas vidas por meio desses líderes. Havia também aprendido que todas as coisas eram possíveis para aqueles que acreditavam, e, 65

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por isso, passei a dedicar minha vida em busca de ter uma comunicação real com Deus, assim como meus líderes. Passei a orar e jejuar dia após dia em busca dessa intimidade. Um dia, enquanto voltava da minha aula de música em uma cidade vizinha, encontrei uma mulher que estava um pouco abatida, senti que Deus queria que eu fosse falar com ela, tive um pouco de vergonha, mas, ao mesmo tempo, identifiquei a voz de Deus mais alto, atravessei a rua e fui até aquela mulher que nunca tinha visto antes, lembro-me que falei algo do tipo: “Mulher, Deus manda te falar que ele está colhendo suas lágrimas e ouvindo suas orações, não tema porque os planos dele na sua vida são grandes…” Continuei falando por alguns minutos, a mulher começou a chorar, e eu também, uma vez que havia atingindo o meu objetivo de ser usado por Deus. Hoje percebo que vitimei e fui vítima das minhas próprias crenças e do meu desejo de acreditar. A voz de Deus que pensei ter ouvido era apenas minha mente reagindo aos sinais de tristeza no rosto daquela mulher e, sem perceber, havia reproduzido palavras vagas que outros pastores e ministros viviam emitindo. Por essas e por outras, o melhor caminho para chegarmos à verdade, é examinar os problemas com métodos que se aplicam independentemente da nossa crença, e quanto mais desejo temos de que algo seja verdade, mais criteriosos temos que ser. 66

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É na escuridão que os fantasmas se revelam (parte 1)

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uase todos nós já tivemos medo de fantasmas. O engraçado é que isso geralmente acontecia durante a noite em locais escuros. Bom, é natural que nós humanos tenhamos medo do escuro, afinal, em condições de pouca luz, perdemos o controle da situação e interpretamos cada vulto como uma ameaça eminente. Evolutivamente isso se justifica, dado que os predadores que atacam os humanos fazem isso na maioria das vezes à noite 1. Dessa forma, o medo do escuro privilegiou alguns de nossos antepassados nas savanas, de modo que os menos propensos a esse medo se arriscavam mais, por 69

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isso tinham mais chances de serem devorados por um predador, e os medrosos, aqueles que se protegiam durante a noite, tinham mais chances de sobreviver e levar os seus genes e histórias adiante. Mas voltando aos fantasmas, por que será que eles gostam de nos perturbar a noite? Será que é porque conhecem a nossa fraqueza evolutiva (escuro) e flertam com isso? Lembro-me que, quando criança, bastava minha mãe apagar as luzes do quarto que eles apareciam em forma de grandes sombras, minha única saída era rezar até desmaiar de sono. Lembro-me também que, certa vez, já na adolescência, consegui fotografar um fantasma. Isso era até comum, existiam centenas de fotos de assombrações em toda parte do mundo. É claro: a definição não era tão boa, pois se tratavam de câmeras analógicas, com baixa capacidade de absorver luz, obturadores lentos, filmes que, em certas vezes, até queimavam a foto, e um processo de revelação fotográfica que não era dos melhores. Para se ter uma foto, era preciso de uma gama de processos químicos, mas sim, os fantasmas estavam lá. Tínhamos certeza de que aquilo era a prova da existência de seres sobrenaturais. O estranho é que, hoje com a popularização das câmeras digitais e smartphones, e, conforme aponta um levantamento de 2012, que “a, cada 2 minutos, são tiradas mais fotos que todos os cliques obtidos no século XIX” 2, os espíritos tenham 70

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desaparecido das fotografias, e também das filmagens, dado que as câmeras antigas eram capazes de filmar essas assombrações, e hoje com câmeras que filmam em 4K e registram 120 frames por segundo, não conseguimos ver nada disso. Evidentemente que, em face de tais mudanças tecnológicas, os fantasmas deveriam aparecer em alta definição e com mais frequência. Será que os espíritos ficaram tímidos? Ou evoluíram, e estão considerando a selfie a doença da modernidade? A verdade é que basta acendermos a luz para descobrirmos que aquela figura assustadora parecida com um fantasma no quarto é apenas a sombra do cabideiro.

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É na escuridão que os fantasmas se revelam (parte 2)

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Gostaria de acreditar que, ao morrer, vou viver novamente, que a parte de mim que pensa, sente e recorda vai continuar. Mas, por mais que deseje acreditar nisso, e apesar das antigas tradições culturais difundidas em todo o mundo que afirmam haver vida após a morte, não sei de nada que me sugira que essa afirmação não passa de wishful thinking (pensamento positivo). - SAGAN, 1998 1

Relato 01 — Lembro que acordei e me senti paralisado, queria gritar e sair correndo, mas era impossível, havia um espírito do mal sobre meu peito que me sufocava. Pensei que ele iria me matar. Relato 02 — Fui abduzido por alienígenas, eles me levaram para a espaçonave e fizeram algumas experiências comigo. Relato 03 — Eu morri, os médicos atestaram minha morte, eu passei por um túnel, e fui em direção a uma luz, senti uma paz profunda, mas o próprio Deus solicitou que eu voltasse, dado que eu não havia terminado minha missão.

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arrativas análogas às citadas acima podem ser comuns. Para parte dos espíritas, esses testemunhos são a prova da existência da vida após a morte, já se decidirmos ouvir outros grupos cristãos, os relatos podem ser interpretados como uma manifestação demoníaca com o objetivo de distanciar as pessoas da verdadeira religião cristã 2. Todavia, ambas explicações parecem carecer de evidências e, conforme diz Carl Sagan (1934-1996), “alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias.” 3. Infelizmente, nos casos citados não temos nenhuma evidência, ou melhor, a evidência é anedótica e sem nenhum valor científico, dado que só existe o relato de alguém que alega ter vivenciado o testemunho. Entretanto, mesmo com a falta de evidência para sustentar tais narrativas, e o ônus da prova ser de quem afirma a proposição, apresentarei possíveis explicações científicas que podem justificar essas experiências “sobrenaturais”. O primeiro caso, possivelmente, é o mais comum: pessoas relatam que, ao abrir os olhos, se encontram paralisadas, presas na cama, falam sobre a sensação de estarem sendo vigiadas, ouvem passos, e cheiros estranhos. Geralmente relatam que sentem uma forte pressão no tórax, como se tivesse alguém as empurrando, e chegam a ver aparições fantasmagóricas, bruxas, duendes e demônios. 74

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Essa gama de sensações é bem documentada e estudada na ciência do sono: trata-se de um fenômeno conhecido por Paralisia Do Sono ou Atonia REM, e é descrita como uma paralisia transitória durante a qul o indivíduo encontra-se em vigília, entretanto, ciente de que não é possível se mexer 4. Isso ocorre porque, durante o sono REM (momento em que temos os sonhos mais vívidos), o nosso corpo está em profundo relaxamento. Uma explicação evolutiva para esse relaxamento/paralisia é que ela funciona de forma semelhante a um mecanismo de segurança, impedindo que, durante um pesadelo, tenhamos movimentos bruscos que poderiam colocar a nossa vida em risco. Se um mamífero enquanto dorme reproduzir os movimentos dos sonhos como andar, correria um sério risco de cair de um penhasco ou uma árvore. O que acontece na paralisia do sono é que o nosso cérebro não está totalmente acordado, embora estejamos em estado parcial de vigília; dessa forma, o corpo continua no “modo de segurança”, e dado que parte do nosso cérebro ainda se encontra no sono REM (momento dos sonhos mais vívidos) é natural que ocorra alucinações hipnogógicas (no início do sono) e hipnopômpicas (ao acordar). São essas alucinações responsáveis por momentos tão aterrorizantes. Conforme apresentam os pesquisadores Julia Santomauro e Christophe C. French 5, em artigo publicado na The 75

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British Psychological Society em 2009, essas alucinações podem aparecer de várias formas, 1 proprioceptivas (sensação de movimento, flutuar, cair…), 2 - alucinações táteis (toque, pressão no peito, asfixia…), 3 - auditivas (vozes, passos…), visuais e até olfativas e gustativas. Embora o fenômeno da paralisia do sono seja comum na população em geral, uma revisão de 35 estudos, que foi publicada na Sleep Medicine Reviews em 2011 aponta que é mais frequente em estudantes e pacientes psiquiátricos 6. A falta de informação sobre esse fenômeno fez com que diversas culturas interpretassem o acontecido de forma sobrenatural. Conforme apresentam os pesquisadores brasileiros Sá José e Mota-Rolim em uma publicação na revista Frontiers in Psychology 7, os esquimós canadenses associavam o fenômeno como resultado dos feitiços dos Xamãs; na tradição japonesa, o responsável é um espírito vingativo que sufoca seus inimigos; na cultura nigeriana, o inimigo é um demônio que ataca durante o sonho. Na ilha de Santa Lucia, é atribuído aos espíritos dos bebês não batizados, que se assentam sobre o peito do dorminhoco; nossos irmãos portugueses atribuíam ao Fradinho da mão furada, uma espécie de duende que coloca as mãos pesadas sobre o peito da vítima e impede que a mesma se mexa e grite; já no Brasil é conhecido pela lenda da Pisadeira, uma velha 76

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com aparência de bruxa que fica escondida no telhado e que, durante a noite, quando alguém dorme de barriga cheia (e com a barriga para cima), ela pisa sobre o tórax da pessoa – o que em certo ponto faz sentido, dado que a maioria dos casos de paralisia do sono ocorre quando o sujeito dorme na posição supina. Segundo o chefe da Unidade de Pesquisa em Psicologia Anomalista, Chris French, “a paralisia do sono oferece uma oportunidade quase única de estudar a interação recíproca entre biologia e cultura.” 8 Dessa forma, é evidente que, com o desenvolvimento de novas culturas, tais aspectos possam ser explicados sob prismas modernos. Certamente, ter alucinações com duendes, bruxas e bebês não batizados não faz nenhum sentido para um jovem americano; entretanto, ter a alucinação de que foi abduzido por alienígenas possa fazer todo sentido cultural e, conforme essa cultura é divulgada e ampliada, mais comum se torna a narrativa. O psicólogo e escritor americano Michael Shermer 9 chama isso de feedback positivo: (...) está tendo agora um ciclo de feedback positivo. Quanto mais pessoas que tiveram essas experiências mentais incomuns veem e leem sobre outras que interpretaram incidentes similares como abdução por alienígenas, mais provável é que elas acabem convertendo as suas

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próprias histórias em suas próprias abduções por alienígenas. Esse ciclo de feedback ganhou um forte impulso no final de 1975, depois que milhões de pessoas assistiram pela NBC ao filme The UFO Incident, sobre os sonhos de abdução de Betty e Barney Hill. (SHERMER, 2011)

Ainda hoje, no senso comum, existe uma crença de que pessoas que relatam encontros com alienígenas sofrem de transtornos mentais. É importante frisar que essa crença é falsa. Como apontam os pesquisadores Bloecher, Clamar e Hopkins (1985) (apud BLACKMORE, 1998) 10 não foi encontrado nenhum sinal patológico nesses indivíduos, e, de modo geral, apresentam inteligência acima da média, não obstante, em conformidade com a pesquisadora e pós-doutoranda em Psicologia pela Universidade de Harvard, Susan A. Clancy, “eles são, no entanto, mais imaginativos, criativos e propensos à fantasia do que a população em geral”, e apresentam também um traço maior de esquizotipia (apud HINES, 2006). 11 Um outro ponto importante, que deve ser avaliado pela perspectiva cultural, são as narrativas de abduções que apresentam um contexto sexual, ou seja, onde o alienígena se relaciona sexualmente com o sujeito. Se observarmos esse relato ao longo da história, constataremos que, por volta de 2400 a.C., veremos que 78

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essas supostas relações sexuais eram atribuídas aos íncubos e súcubos i, demônios que vinham à terra e se relacionavam sexualmente com os mortais; algumas pessoas acreditavam até existir uma espécie de ritual para invocar tais demônios. É sempre importante lembrar que, como estamos falando de evidências anedóticas, o testemunho sempre estará em xeque. Dessa forma, a narrativa da abdução pode se tratar de uma mentira, ou até mesmo uma falsa memória que, diferentemente da mentira, o interlocutor não tem ciência de que o acontecimento é falso. A falsa memória ocorre principalmente se o sujeito for submetido a hipnose. A falibilidade humana ao relatar fatos é uma realidade, por isso é necessário a existência de evidências capazes de serem testadas pelo método científico, dado que conforme aponta a Drª Susan A. Clancy, ninguém acorda de manhã com uma experiência de abdução completa. “Às vezes, a experiência é criada e moldada a partir do ponto de partida de um sonho ou alucinação hipnogógica/hipnopômpica experimentada durante a paralisia do sono. Outras vezes, começa com

Os íncubus são demônios de forma masculina, que se relaciona sexualmente com mulheres durante o sono, já os súcubos são a forma feminina desses demônios. i

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uma vaga sensação de que algo aconteceu que precisa ser explicado.” (apud HINES, 2006). Já o terceiro relato apresentado na introdução é conhecido como experiência quase-morte (EQM), e casos assim são explorados ao máximo por programas de TV sensacionalistas: “Não perca! Depois do comercial, falaremos com um homem que desafiou a morte. Ele sofreu uma parada cardíaca e, depois de ser dado como morto, retornou à vida e, daqui a pouco, vai nos contar tudo o que viu do outro lado”. De modo geral, as pessoas que passaram por essa situação relatam uma sensação de paz extrema, experiência de se sentir fora do corpo, viajar por um túnel e uma luz intensa. Em alguns casos, os pacientes alegam se comunicar com o ser espiritual ligado à sua religião, e até encontrar familiares falecidos. Não obstante, antes de adentrarmos de forma mais profunda no tema, faz-se necessário definirmos o conceito de morte que é utilizada nessas experiências. Portanto, o termo morte nesses casos é o de morte clínica, ou seja, quando o coração para de bater, o que não significa o cerceamento das atividades cerebrais. Dito isso, existe um arcabouço de fenômenos físicos que podem servir de base para entendermos tais acontecimentos “sobrenaturais”. O psiquiatra Dr. Karl L. R. Jansen 12 13 apresenta em artigo publicado no The New Lycaeum que a ministração de quetamina, um anestésico 80

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dissociativo, foi capaz de reproduzir as mesmas experiências narradas pelas pessoas que viveram as EQMs. Ainda segundo ele, quando as EQMs acontecem, o cérebro se encontra em um estágio de “baixo nível de oxigênio, baixo fluxo sanguíneo, baixo nível de açúcar no sangue, epilepsia do lobo temporal, etc.”, e essa gama de variáveis faz com que o mesmo gere substâncias químicas semelhantes à quetamina com o propósito de proteger as células. Um estudo, realizado nos três maiores hospitais da Eslovênia e publicado em 2010 na revista científica Critical Care 14, avaliou 52 pacientes sobreviventes de parada cardíaca com idade média de 53 anos. Desses pacientes, apenas 11 (21,1%) haviam relatado EQMs. Uma observação interessante extraída do estudo é que os pacientes que sofreram as EQMs apresentaram uma taxa maior de dióxido de carbono no sangue. Os pesquisadores ainda apontaram para o fato de que o dióxido de carbono “(...) altera o equilíbrio ácido-base no cérebro, o que pode provocar experiências incomuns sob a forma de luz brilhante, visões e experiências fora do corpo ou mesmo místicas.” (KLEMENC-KETIS, KERSNIK, & GRMEC, 2010). Além do mais, segundo aponta a pesquisadora Susan Blackmore, o sentimento de paz (ou bem-estar) apresentado pelas vítimas pode estar ligado “(...) à liberação de endorfinas em resposta ao estresse extremo 81

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da situação”. E as luzes e túneis podem ser atribuídos aos ruídos neurais que evoluem gradualmente. 15 Mas é natural que, em virtude de explicações tão complexas, o grande público negue tais explicações teóricas. Alguns crentes chegam a afirmar que “a ciência não pode explicar todas as visões da vida após a morte, uma vez que existem histórias repletas de detalhes”. Bom, talvez uma experiência que ilustre esse argumento seja a história do jovem Alex Malarkey, uma criança de apenas 6 anos de idade. De acordo com reportagens de novembro de 2004, o pequeno Alex, filho de pais divorciados, sofreu um grave acidente de carro enquanto viajava com o seu pai Kevin, um terapeuta cristão. Nas palavras do pai, o acidente foi em proporções tão aterrorizantes que o médico-assistente que os atendeu havia sugerido que fosse chamado um legista. O pequeno Alex havia sofrido uma grave parada cardíaca e ficado tetraplégico, devido a uma grave fratura na coluna 16, e como se isso não fosse suficiente, Alex ficou em coma profundo durante 2 meses. Todavia, sua história só ficou conhecida em 2010, quando a editora cristã Tyndale House Publishers decidiu publicar o livro The Boy Who Came Back From Heaven: A True Story. Traduzido para o português pela Editora Nascente como O Menino que Voltou do Céu: A história verdadeira de um encontro com Deus, o livro 82

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traz o menino Alex e seu pai Kevin como autores. É narrada a experiência de 2 meses de Alex no céu. Os supostos testemunhos e observações apresentadas pelo garoto no livro são de fato emocionantes. Kevin (o pai), ciente das críticas que receberia dos céticos, decidiu desafiá-los logo na introdução do livro. Sei que o leitor pode estar a pensar: Um rapazinho vai para o Céu e volta para nos falar sobre ele? Ora, convenhamos! Não estou aqui para advogar uma causa, para convencer o leitor de um argumento teológico ou forçá-lo a validar as experiências do Alex. Mas humildemente ofereço um desafio: suspenda a sua crítica por apenas alguns capítulos. Penso que a sua vida poderá modificar-se para sempre. Às vezes, não tenho ideia do que pensar sobre a vida sobrenatural do Alex — não tenho uma caixa teológica onde guardar isso. Mas todos os que dedicaram algum tempo a conhecer o Alex concordam: ele é um menino notável, sobre o qual Deus colocou a mão para os Seus propósitos. 17

Em pouco tempo, o livro se tornou um bestseller, movimentando mais de UM MILHÃO de cópias vendidas só nos Estados Unidos e ficando durante meses entre os mais vendidos do New York Times 18. O livro 83

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fez tanto sucesso que recebeu um prêmio da Evangelical Christian Publishers Association e foi publicado em vários países, virando até filme nas mãos do cineasta cristão Ken Carpenter 19. Lembro-me que, na época, era comum ver comentários dos leitores categorizando o livro como “surpreendente”, “emocionante”. Alguns religiosos afirmavam que “é incrível a forma que Deus usa as crianças para se comunicar conosco”, ou “é possível sentir a presença de Deus enquanto lemos o livro”. Todas as explicações apresentadas pelos céticos e cientistas eram desqualificadas, vistas apenas como “explicações de pessoas sem fé”. De fato, a ciência aparentemente não dava boas explicações para aquela riqueza de detalhes relatados no livro, sem falar que o apelo emocional que o acidente gerou fazia com que qualquer um que ousasse chamar um menino tetraplégico de apenas 6 anos de mentiroso fosse classificado como sendo um monstro sem coração. Entretanto, em 2015, o pequeno Alex que já se encontrava com 16 anos, revelou que a história era falsa: “Eu disse que fui para o céu porque achei que isso chamaria atenção. Quando eu fiz as declarações que fiz, nunca havia lido a Bíblia. As pessoas têm lucrado com mentiras, e continuam. Eles deveriam ler a Bíblia, que é o bastante. A Bíblia é a única fonte de verdade. Qualquer coisa escrita pelo homem é falível”. 20 Tal relato fez com que editoras e livrarias retirassem o livro de circulação 84

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sob o comunicado de que estavam tristes em saber que a história era inventada. Entretanto, essa é uma história um pouco mais complexa, dado que existem vários processos evolvendo-a e, como apresentou o site Daily Mail Online em 2015 21, onde apresenta o próprio pai de Alex, Kevin, que, em conluio, com a editora montou toda a fraude e tentou calar a mãe do garoto, que já havia tentado denunciar imprecisões na história desde 2012. Já em 2018, segundo o jornal The Guardian, Alex, já com 20 anos, abre um processo contra a editora e responsabiliza seu pai pela invenção da história. Segundo o processo, Alex e a mãe “estão prestes a ficarem desabrigados” e nunca receberam nada das vendas do livro enquanto a editora cristã faturou “milhões de dólares”. A história verdadeira de um encontro com Deus (subtítulo do livro) era uma farsa. Não é de se admirar que seja, principalmente se olharmos os lucros que envolvem tal farsa. Todavia, mesmo depois da história de Alex, apareceram outras dezenas de livros e filmes que narram “a história verdadeira...” de alguém que voltou da morte. O desejo de comprovar nossas crenças e prolongar a nossa vida faz com que sejamos presas fáceis nas mãos de charlatões.

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Homeopatia e curandeirismo, a farsa da medicina alternativa

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A ciência é uma maneira de descobrir as coisas. É uma maneira de testar o que é real. É o que Richard Feynman chamou de “uma maneira de não nos enganarmos”. Nenhum astrólogo previu a existência de Urano, Netuno ou Plutão. Nenhum astrólogo moderno tinha uma pista sobre Sedna, uma bola de gelo com metade do tamanho de Plutão que orbita ainda mais longe. Nenhum astrólogo previu os mais de 150 planetas agora conhecidos por orbitarem outros sóis. Mas os cientistas fizeram. Nenhum psíquico, apesar de suas alegações, já ajudou a polícia a solucionar um crime. Mas os cientistas forenses sim, e o tempo todo. Não foi alguém que pratica homeopatia que encontrou uma cura para a varíola ou a poliomielite. Os cientistas fizeram, cientistas médicos. Nenhum criacionista jamais decifrou o código genético. Químicos fizeram. Os biólogos moleculares fizeram. Eles usaram Física. Eles usaram Matemática. Eles usaram Química, Biologia, Astronomia, Engenharia. Eles usaram a Ciência. -PLAIT, 2005 1

A

ntes de adentrarmos ao núcleo da questão, penso ser necessário derrubar algumas falácias que impedem a utilização do pensamento

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lógico. Tenho reparado, com certa frequência, que sentenças como “quem critica a homeopatia é financiado(a) pela indústria farmacêutica” estão sempre presentes em debates que envolvem medicamentos alternativos; em virtude disso, começo derrubando esse obstáculo. Ao emitir tal sentença, o interlocutor utiliza um atributo retórico que é uma variação do argumentum ad hominem. Esse atributo é intitulado de falácia do envenenamento do poço. Dessa forma, quem o emite não precisa se dar ao trabalho de responder os argumentos do adversário; ao indicar que o poço está envenenado, está dizendo que tudo que sai da boca do seu antagonista é contaminado. Todavia, se o nosso objetivo é construir um pensamento lógico em busca de uma verdade objetiva, pouco nos importa se quem apresenta o argumento é um milionário da indústria farmacêutica ou um humilde vendedor de homeopatia. Se um argumento é equivocado ou se uma evidência é falsa, o nosso objetivo é apontar o erro deste, e não atacar os possíveis interesses do mensageiro. Outro ponto que causa muita confusão é que muitos defensores da homeopatia desconhecem seus pressupostos teóricos, por isso confundem homeopatia com fitoterapia e plantas medicinais. Em vista disso, penso ser necessário apresentar uma breve introdução 88

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sobre o que de fato é a homeopatia. Dessa forma, mesmo se, ao final do capítulo, o leitor discordar da minha conclusão, a introdução servirá de embasamento teórico para suas crenças. A homeopatia faz parte do grupo de medicamentos alternativos, ou seja, ela é vista por seus adeptos como uma alternativa à medicina convencional. A mesma foi estudada e desenvolvida por um médico alemão chamado Christian Friedrich Samuel Hahnemann (17551843) e sua estrutura teórica tem pelo menos duas características relevantes que não podem passar despercebidas. A primeira é o princípio de Similia Similibus Curentur (semelhante cura semelhante) 2. Essa ideia foi defendida originalmente pelo filósofo e pai da Medicina, Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.), e, em tese, deveria funcionar da seguinte forma: Premissa 1 (P1): Marcos tem sintomas de vômito. Premissa 2 (P2): Arsênico pode causar vômito em pessoas saudáveis. Conclusão (C): Se aplicarmos arsênico em doses homeopáticas (diluídas) em Marcos, ele será curado. (P1) Similia + (P2) Similibus = (C) Curentur Apesar de tal princípio ser obsoleto e não dispor de nenhuma evidência que comprove sua validade, médicos homeopatas estufam o peito para dizer que a homeopatia 89

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obedece ao princípio do pai da Medicina, Hipócrates. Ou seja, tentam se agarrar com unhas e dentes na autoridade do pai da Medicina; entretanto, parecem esquecer que não se faz Ciência se apoiando na autoridade de pensadores e sim em evidências. A segunda característica que a homeopatia dispõe é a ideia de diluição e de dinamização. Conforme apresenta um artigo publicado na Revista da Associação Médica Brasileira, Samuel Hahnemann chegou a tal princípio ao observar que algumas substâncias apresentavam certa toxidade e poderiam gerar efeitos indesejáveis e até a morte de alguns pacientes; por isso, optou em diluir tais substâncias ao máximo, a fim de eliminar toda sua toxidade, de modo a permanecer na fórmula apenas o efeito terapêutico da substância. Ainda segundo o artigo: Conta a história que, nessa época, aconteceu o que alguns consideram um “triunfar do acaso e de inteligente observação”, que impulsionou fortemente o estudo da homeopatia. Hahnemann possuía uma pequena carroça, com a qual percorria o interior do país para tratar a população. Ele começou a observar que os pacientes que moravam mais distantes eram mais eficaz e rapidamente curados, e associou isto ao movimento que a carroça fazia ao passar pelos buracos da estrada. Passou, então, a sacudir os 90

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medicamentos (dinamizar) e basear o preparo destes em dois preceitos: diluição e dinamização. A partir desse momento, os resultados obtidos foram muito positivos, e a Medicina Homeopática começou a se difundir e a ganhar popularidade. (CORREA, SIQUEIRABATISTA, & QUINTAS, 1997, pp. 347-351)

Sim, essa anedota é parte do critério científico da prática, entretanto, sua afronta lógica não para por aí, pois o princípio da diluição homeopática é pautado em um pressuposto conhecido por lei dos infinitesimais. Claro que “lei” nesse contexto é mera conjunção semântica, pois, novamente, tal pressuposto não apresenta nenhuma evidência científica. Mas, na concepção daqueles que creem, deveria funcionar da seguinte forma: quanto mais diluída for uma substância, mais forte ela se torna. Todavia, tal princípio viola uma premissa simples da química básica, que defende existir um limite para diluição de substâncias, e passando desse, ao contrário do que pensam os homeopatas, a substância se perde por completo. Tal limite (6.022 x 10²³) é conhecido como Constante de Avogadro e foi estudado pelo cientista italiano Amedeo Avogadro (1776-1856). Segundo tal constante, qualquer substância diluída a 6.022 x 10²³ não

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apresenta nada além de ÁGUA. Entretanto, é comum encontrarmos remédios homeopáticos que supostamente extrapolam esse ponto. Houve uma época em que alguns cientistas defendiam que a diluição homeopática era plausível devido à “memória da água”. Em 1988, o cientista Dr. Jacques Benveniste (1935-2004) alegou poder provar esse princípio. Benveniste fez um acordo com o editorchefe da revista Nature, que publicou o artigo “provando a memória da água”, sob a condição de Benveniste abrir o seu laboratório e demostrar o experimento realizado por ele na frente de alguns especialistas em fraude científica. O artigo foi publicado e homeopatas de todo mundo comemoraram a descoberta científica que colocaria a homeopatia no altar da ciência médica. Alguns entusiastas apostaram que tal descoberta poderia render a Benveniste o Prêmio Nobel, mas, pasme, o experimento estava repleto de erros metodológicos, e a equipe do seu laboratório não conseguiu reproduzir o estudo na presença da banca de especialistas em fraude científica, que era formada pelo editor-chefe da revista John Maddox, Walter Stewart e o mágico James Randi 3. No lugar do Prêmio Nobel, Benveniste recebeu dois Ig Nobel Prize (uma paródia do Prêmio Nobel) e perdeu toda sua credibilidade e junto o seu financiamento em pesquisas. 92

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Em virtude dessa série de contradições e inspirados na constante de Avogadro 10²³, a Merseyside Skeptics Society organiza anualmente uma série de protestos com objetivo de questionar a eficácia da homeopatia. Esses protestos são chamados de Desafio 10²³ e acontecem em quase todo mundo. Nele pessoas se organizam em grandes grupos e ingerem quantidades excessivas de medicamentos homeopáticos a exemplo de soníferos. É uma espécie de “overdose coletiva”, mas como os participantes sabem que acima da diluição 10²³ só existe água, até hoje nunca ninguém precisou ser levado para a emergência. O mágico James Randi, que foi citado neste e em outros capítulos, além de participar do Desafio 10²³, também prometeu pagar 1 milhão de dólares para qualquer homeopata que conseguisse provar a eficácia dos medicamentos. Outra observação sobre a fraude da diluição homeopática foi apresentada por Stephen Joel Barrett 4, Doutor em medicina, psiquiatra e cofundador do Conselho Nacional de Combate à Fraude na Saúde (NCAHF), que demostrou de maneira lógica que é fisicamente impossível realizar a diluição de certos medicamentos:

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Uma diluição de 30X significa que a substância original foi diluída de 1.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 de vezes. Supondo que um centímetro cúbico contém 15 gotas, este número é maior do que o número de gotas de água que preencheriam um recipiente mais de 50 vezes o tamanho da terra e uma solução de 30C exigiria um recipiente com mais de 30 bilhões de vezes o tamanho da Terra. (BARRETT, 2002)

Ou seja, “soluções ʽ30Xʼ e ʽ30Cʼ não existem”, pois são impossíveis de serem fabricadas, pelo menos no planeta Terra. Mas se a homeopatia de fato é uma farsa, porque tantas pessoas que a utilizam alegam apresentar melhoras? Bom, para entender o que está em voga é necessário conhecermos o básico sobre testes clínicos e o efeito placebo. Um comprimido placebo é um comprimido inócuo, com o objetivo de simular um remédio real, todavia, sua composição pode ser farinha, açúcar, água ou outras substâncias sem qualquer valor terapêutico. Imagine você que a nossa personagem Marcos, após reclamar de insônia, decida buscar ajuda médica. O médico o avalia e, ao invés de receitar um comprimido com substâncias que combatem a insônia, entrega um placebo a ele, e diz que tal remédio é espetacular e que o 94

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fará dormir em segundos. Marcos vai para casa e, por acreditar estar sendo tratado e confiar na autoridade do seu médico, toma o placebo pensando ser de fato um remédio; minutos depois de ingeri-lo, Marcos dorme. Sabemos que a pílula de farinha não teve nenhum efeito no sono de Marcos, entretanto, seu condicionamento, a confiança depositada no médico e a sua expectativa podem ter influência direta no seu sono. Claro que isso não funciona em todos os casos, porém, o efeito placebo é real e amplamente estudado e explorado por pesquisadores e médicos. Agora, alguns podem fazer a seguinte pergunta: se um produto sem nenhum composto medicamentoso é capaz de curar, apenas pelo seu efeito placebo, como saberemos se um medicamento tem de fato efeito curativo? E essa é a pergunta de 1 milhão de dólares: para chegar a uma conclusão científica sobre a eficácia de um medicamento precisamos fazer um teste clínico duplocego randomizado. Apesar de parecer assustador, é bem simples. Primeiramente, escolhemos de forma aleatória um grupo de estudo com mais ou menos 100 pessoas, depois, dividimos essas pessoas em dois grupos (A e B). O Grupo A será o nosso grupo de controle, portanto, aplicaremos a ele somente o placebo, já no Grupo B aplicaremos o medicamento que será testado. É importante termos em mente que nem o pesquisador e 95

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nem os grupos devem saber quem está recebendo placebo ou medicamento (por isso duplo-cego); caso contrário correríamos o risco de comprometer nossos resultados. O pesquisador deve apenas anotar o número do medicamento que está sendo ministrado para futuramente avaliar os resultados. Se o grupo que utilizou o medicamento obteve uma melhora de 80% e o grupo do placebo apenas 20%, isso mostra que o medicamento testado tem uma capacidade de cura superior ao placebo. Se o experimento foi realizado corretamente, outros pesquisadores podem fazer o mesmo teste e chegar a um resultado próximo do nosso. Se o nosso medicamento apresentar um efeito terapêutico de 20% e o placebo 20%, reprovamos no teste: nossa substância não funciona. Nesses casos, podemos amaldiçoar os testes ou modificar nossa fórmula e submetê-la novamente a novos ensaios clínicos. Tais ensaios são uma dor de cabeça para a indústria farmacêutica, pois, pesquisas que demoram anos e têm um investimento muitas vezes maior que US$ 1 bilhão são reprovadas 5 ainda em testes preliminares. Quando falamos da homeopatia e observamos o seu relacionamento com os testes clínicos, podemos concluir de forma inequívoca que o seu efeito terapêutico é inócuo.

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Em 2015, o Conselho Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da Austrália (NHMRC) 6, com objetivo de garantir um tratamento seguro e baseado em evidências, decidiu examinar a homeopatia por meio de um amplo conselho formado por diversos cientistas. Ao todo, foram 57 revisões, contendo 176 estudos individuais que testam a homeopatia em 68 condições de saúde diferentes. O artigo foi publicado com o nome Evidence on the effectiveness of homeopathy for treating health conditions 7 e teve como cientista responsável o Professor Honorário das Universidades de Oxford e Sydney, Paul Glasziou, um dos principais especialistas em Medicina baseada em evidências e chegou à conclusão que a homeopatia não consegue superar o efeito placebo. Já em julho de 2017, a NHS (Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra) retirou e proibiu o investimento de dinheiro público destinado à homeopatia 8. Segundo a organização, “(...) na melhor das hipóteses, a homeopatia é um placebo e um mau uso dos escassos fundos do NHS, que podem ser melhor devotados aos tratamentos que funcionam”. Entretanto, no mesmo mês, a prefeitura de São Paulo (Brasil), sancionou uma lei com o objetivo de ampliar o atendimento homeopático na cidade 9. Decisões como essa nos colocam na contramão da evidência e do consenso científico.

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Mas “se a homeopatia é apenas efeito placebo, porque ela funciona com animais que são imunes ao placebo?”: essa é a pergunta que recebo com frequência quando apresento ao público que os efeitos da homeopatia são apenas placebo. Todavia, esse questionamento apresenta duas falhas: a primeira é que a pergunta utiliza como premissa de sustentação uma evidência anedótica i, que é diferente de uma evidência científica, pois, enquanto a segunda pode ser testada por meio do método científico, a primeira, devido à sua informalidade, baseia-se apenas na palavra do interlocutor. Ou seja, dizer que seu cão foi curado após a utilização da homeopatia não é análogo ao um teste clínico. A segunda falha está relacionada com a afirmação de que animais são imunes ao efeito placebo. Essa sentença é um pouco apressada e pode não condizer com a realidade. Portanto, para termos uma visão mais exata disso, teríamos que buscar estudos relacionados à medicina veterinária, que, apesar de poucos, existem. Um desses é o artigo publicado no Journal of Veterinary Internal Medicine em 2010 10, que visava estudar como cães epiléticos reagiriam ao tratamento com placebo: os pesquisadores analisaram uma série de É o tipo de prova irreprodutível, intestável, de amostra pequena, muitas vezes adquirida na terceira pessoa (“diz que disse”, mas pode ser na primeira também) e de modo não sistemático. i

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três estudos clínicos, e observaram que dos 28 cães que receberam placebo, 79% demonstraram uma diminuição da frequência de convulsões em comparação com a linha de base, e desses 28 cães, 29% teriam apresentado uma redução de 50% ou mais das convulsões, mas, claro, isso não é prova que o efeito placebo funciona em animais, precisamos ter calma e ceticismo até diante de estudos científicos. Uma das autoras deste estudo, Karen Muñana, neurologista da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Estadual da Carolina do Norte, nos EUA 11, apontou 2 pontos importantes sobre por que devemos tomar cuidado ao analisar testes clínicos com animais. O primeiro é que a doença muda naturalmente ao longo do tempo. Sendo assim, os animais podem se curar sozinhos sem a necessidade de um remédio, o próprio corpo do animal pode vencer a doença; por isso precisamos de testes mais rígidos que demonstrem se a cura foi causada pelo placebo, medicina alternativa, ou nenhuma das alternativas, apenas obra natural. Obviamente que, para um leigo em metodologia, que ministra medicina alternativa no seu pet e, dias depois, percebe que esse apresenta melhora, criará uma correlação apressada e equivocada entre causa e efeito (post hoc ergo propter hoc) 12. A segunda precaução é o que chamamos de efeito placebo do tutor, que, ao saber que seu cão está 99

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participando de um experimento que visa curá-lo, muda a sua percepção em relação ao pet e, de forma inconsciente, se vale de um viés de confirmação capaz de interpretar qualquer mínima mudança como uma melhora substancial causada pela droga. Esse viés de confirmação, ou efeito placebo do tutor, pode ser mais bem compreendido no estudo realizado pela pesquisadora veterinária especializada em nutrição e dietética da Universidade Ludwig Maximilians de Munique, Ellen Kienzle. Em seu estudo clínico, Ellen modificou a alimentação de três grupos de cavalos para testar um suplemento que visava aumentar a força dos animais 13. Segundo seu artigo que foi publicado no Journal of Nutrition, Dos 6 cavalos que não terminaram o estudo, 3 foram retirados porque se tornaram muito fortes. Um deles estava no grupo do placebo, os outros 2 eram montados pela mesma pessoa. A questão óbvia é se os cavaleiros imaginaram mudanças no comportamento de seus cavalos ou se o comportamento dos cavalos era realmente diferente após a ingestão dos suplementos ou do placebo. (KIENZLE, FREISMUTH, & REUSCH, 2006)

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Esses conflitos demonstram muito bem a dificuldade de dizer com certeza se o animal respondeu ao placebo ou se o efeito foi aplicado apenas na percepção do tutor. Se tal avaliação é difícil para cientistas preparados, imagina para o tutor de um pet que está esperançoso pela melhora do animal. A homeopatia e outras são chamadas de medicina alternativa justamente porque a mesma nunca conseguiu provar os seus efeitos de forma conclusiva, pois, o dia que conseguirem, deixarão de serem alternativas e passarão a fazer parte da medicina convencional. Esses testes são análogos ao diploma de Medicina de um médico; da mesma forma que você não confia sua saúde a uma pessoa que não foi graduada em Medicina, não faz sentido se submeter a um medicamento que não tenha passado pelos testes clínicos. A aplicação da medicina alternativa é perigosa para a saúde de pessoas que não conseguem distinguir a ciência da pseudociência. Muitos negam o tratamento ortodoxo para se tratar por meio da medicina alternativa e acabam morrendo. Essas pessoas simplesmente têm fé no tratamento e, por definição, essa não precisa ser pautada em evidência. O próprio Steve Jobs, cofundador da Apple, por ter fé em tal Medicina, insistiu em tratar o seu câncer no pâncreas com medicina alternativa, e, quando optou pela cirurgia, já era tarde demais. Conforme apresentou o Doutor em Medicina de 101

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Harvard, PhD e cientista principal do Grupo Geral de Pesquisas sobre o Câncer Colorretal do Hospital Geral de Massachusetts, Ramzi Amri, Steve Jobs poderia estar vivo se tivesse utilizado a medicina tradicional 14. É evidente que pessoas também morrem fazendo o tratamento convencional, ainda não somos capazes de curar todos, mas, como aponta um estudo publicado na revista JAMA Oncol 15, pessoas que utilizam medicina alternativa como parte do tratamento têm duas vezes mais chances de morrer pelo câncer, dado que esses são mais propensos a rejeitar alguns tratamentos convencionais. Penso que, de fato, uma pessoa deve ter a liberdade para escolher que tipo de tratamento quer, ou mesmo, se quer ser tratada. Às vezes, o tratamento da doença é tão debilitante que parece não compensar viver e, em minha opinião, isso deve ser respeitado pelos médicos e familiares. Todavia, o que não pode ser feito, de forma alguma, é enganar tais indivíduos, pois, para eles tomarem uma decisão sobre que medicamento devem escolher, precisam antes de tudo ter informação honesta. Hoje, o que ocorre é justamente o contrário, pessoas mal-intencionadas consolam pacientes desesperados com mentiras consoladoras, que podem custar as suas vidas. Há pouco tempo, nós, brasileiros, vivenciamos uma situação que nos envergonhou do ponto de vista científico e ético, o caso da fosfoetanolamina, conhecida 102

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como “pílula do câncer”. Tal composto, desenvolvido pelo professor Gilberto Orivaldo Chierice do Instituto de Química de São Carlos — USP, prometia “curar o câncer” e, embora não tenha passado por nenhum teste clínico, era ministrado irresponsavelmente a pacientes há mais de 20 anos. Felizmente, a USP proibiu a fabricação do mesmo, pois, já que não havia testes clínicos, não sabia se, de fato, existia efeito terapêutico ou até mesmo risco para o paciente. Entretanto, foi nesse momento que o circo começou: a pauta que deveria ser científica virou política e jurídica. Os pacientes que estavam sendo “tratados” com o medicamento acionaram a Justiça solicitando que o fármaco voltasse a ser produzido pela universidade, e sim, um ministro do STF obrigou a universidade a fabricar o medicamento, diga-se de passagem, de forma “ilegal”. Nossos ilustres parlamentares, absolutamente desprovidos do mínimo de conhecimento científico, organizaram-se politicamente para aprovar o uso do medicamento milagroso. Figuras ilustres ignoraram a avaliação técnica dos cientistas, e se valeram dos depoimentos comoventes dos pacientes, que alegavam melhoras por meio de evidências anedóticas. Fomos tomados por uma histeria coletiva capaz de ignorar toda e qualquer evidência contrária. Muitos estavam convictos que a monstruosa indústria farmacêutica estava envolvida, pois, segundo aqueles, se a fosfoetanolamina cumprisse seu papel, essa 103

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perderia milhões. Mal sabem eles que essa indústria é um pouco mais esperta que isso, e ganharia muito mais dinheiro se o medicamento fosse de fato eficaz. Todavia, tempos após essa polêmica, o medicamento foi submetido a testes clínicos e, pasmem, não apresentou nenhuma eficácia. Logicamente, isso não fez os conspiradores abandonarem sua crença. O estranho é que, em meio a tanto alarde, as autoridades ignoraram os crimes que foram cometidos pela distribuição da droga, crimes esses previstos no código penal. Exercício ilegal da Medicina, arte dentária ou farmacêutica. Art. 282 - Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites: Pena - detenção, de seis meses a dois anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa. Charlatanismo Art. 283 - Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. Curandeirismo Art. 284 - Exercer o curandeirismo: I - prescrevendo, ministrando ou aplicando,

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habitualmente, qualquer substância; II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III - fazendo diagnósticos: Pena - detenção, de seis meses a dois anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.

Entretanto, o que ocorreu é que toda a mídia em torno do caso fez com que ele gerasse publicidade gratuita para o produto, que, após reprovar nos testes clínicos, conseguiu ser legalizado como “suplemento alimentar”, visto que os responsáveis fizeram uma pequena modificação na fórmula e foram até os EUA para regulamentá-la, dado que a regulamentação de suplemento alimentar nos Estados Unidos não exige testes em seres humanos. Assim, eles conseguiam produzir o produto fora e importar para seus compradores no Brasil. A desonestidade de tais produtores era tão alta que, embora o produto fosse registrado como suplemento alimentar, sem necessidade de demostrar eficácia terapêutica, sua publicidade induzia o paciente leigo a pensar que se tratava de um medicamento capaz de curar o câncer 16. Todavia, esse tipo de procedimento é mais comum do que pensamos, e ele sempre acontece em duas

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frentes: a primeira é o registro e a segunda a publicitária. Devido ao baixo rigor científico, muitos optam em registrar suas substâncias como suplemento ou até mesmo como cosmético (no caso de pomadas). Como tais registros não exigem efeito terapêutico, os produtores os fazem como manda a legislação: em sua embalagem, leva o nome de cosmético ou suplemento, mas quando realizam a publicidade em rádios, jornais, TV e internet a comunicação é outra: alegam curas. Alguns ainda utilizam pessoas de certa relevância midiática como atores, radialistas, vlogers e outros capazes de gerar influência, e isso também é ilegal e infringe a resolução RDC 96/2008 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) que veda no art.26 o uso da imagem ou voz de celebridades leigas em Medicina “afirmando ou sugerindo que utiliza o medicamento ou recomendando o seu uso”. O regulamento da ANVISA é, de fato, muito responsável e ponderado, e proíbe expressões como “demonstrado em ensaios clínicos”, “comprovado cientificamente”, pois, sabem que isso pode levar o receptor ao erro, mas, infelizmente, apesar da ANVISA ter um bom arcabouço teórico, ela não consegue fiscalizar eventuais abusos. Engana-se quem pensa que só as indústrias farmacêuticas possuem influência política e econômica. Grupos de medicina alternativa se organizam 106

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politicamente e conseguem fazer lobby com a intenção de terem suas práticas aceitas e financiadas pelo Estado. Já que eles não conseguem demonstrar resultado pelas vias da ciência, investem na política. Tais grupos se defendem dos resultados científicos fazendo o que todo charlatão gosta de fazer: colocando a culpa da sua incompetência nos métodos “defasados” da ciência, pois, como afirma Bertrand Russell (1872-1970) em seu artigo A Filosofia entre a Religião e a Ciência, diante de não conseguir provar determinado dogma, os seguidores deste geralmente são hostis à Ciência, já que seus dogmas não podem ser provados empiricamente. Esse argumento geralmente é o último fôlego do defensor da pseudociência, dado que o mesmo a todo o momento tenta obter o carimbo da Ciência em seus métodos, e, ao não conseguir, se volta contra ela. Essas pessoas querem passar suas ideias por científicas, porque sabem que a Ciência tem uma grande credibilidade, entretanto, sua credibilidade advém justamente do rigor do seu método. O mesmo acontece com médicos que, por agirem de forma irresponsável, culpam o Conselho de Medicina por terem seus registros cassados. Basta lembrarmos o caso do médico Denis Furtado, vulgo Dr. Bumbum, acusado de causar a morte de uma paciente devido a um tratamento estético irresponsável. Denis justificava ao público leigo que estava sendo vítima de uma perseguição do Conselho, pois este era defasado e 107

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não conseguia entender suas habilidades: “A Medicina é cerceada pelo Conselho, e médicos como eu, que buscam inovar, são tão perseguidos que pensam em desistir e deixar pra lá estudar e se atualizar, e se render ao sistema que, na minha opinião, lucra mais com doença que com a saúde, perseguindo e vetando qualquer novidade que ameace a indústria e as mentiras já impostas como fatos...” 17 Denis ainda defendia que a qualidade do médico é vista pelo tamanho da perseguição que o mesmo tem do Conselho de Medicina. Outros charlatões argumentam que a Ciência muda e, por mudar, um dia ela reconhecerá as grandes vantagens da homeopatia. De fato, a Ciência muda, pois possui um mecanismo teórico de autocorreção de erros, mas suas mudanças não acontecem por rupturas bruscas de pensamento e sim de forma gradual, sem rejeitar o conhecimento acumulado que se mantém eficaz. Por isso, afirmo sem medo que a homeopatia como está posta hoje nunca terá o aval científico, dado que seus pressupostos negam o conhecimento empírico acumulado. Para aceitar a sua veracidade, teríamos que negar a Química básica, a Física, a Medicina moderna e outras áreas do conhecimento. Outros, ainda, argumentam que a homeopatia não consegue passar em ensaios duplo-cego randomizados porque os seus tratamentos são individualizados, logo um medicamento não serve para todas as pessoas, já que 108

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as pessoas não são iguais e a homeopatia não trata a doença e sim a pessoa como um todo. Uma coisa precisamos admitir: é impressionante a capacidade de se esquivar que a homeopatia tem, mas como lembra muito bem a Doutora em medicina Harriet Hall 18 em seu artigo para a revista Skeptical Inquirer em 2014: Os homeopatas poderiam individualizar suas prescrições como de costume, os remédios poderiam ser randomizados e codificados por um segundo partido, e eles poderiam ser dispensados por um terceiro cego que não saberia se o que estava entregando era o que o homeopata ordenou ou um substituto (placebo). Os homeopatas envolvidos na concepção de estudos de homeopatia escolheram claramente não fazer testes desta forma. (HALL, 2014)

E para quem ainda insiste em defender a homeopatia, só me resta deixar uma pergunta inspirada na analogia do “dragão na garagem” 19 publicada em O mundo assombrado pelos demônios, de Carl Sagan (1934-1996). Qual a diferença de um medicamento que, segundo você, funciona, mas não é capaz de passar em um teste clínico, que desafia pressupostos da Química, que não apresenta evidências testáveis, que não se encaixa no 109

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realismo científico, e um medicamento que de fato não funciona? Alegações que não podem ser testadas, afirmações imunes a refutações não possuem caráter verídico, seja qual for o valor que possam ter por nos inspirar ou estimular nosso sentimento de admiração. (SAGAN, 2006, p. 199)

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Um apostador chamado Pascal

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A

o longo da história, muitos pensadores tentaram defender a existência de Deus. Um exemplo disso é o do físico, matemático, inventor, escritor, teólogo e filósofo francês Blaise Pascal (16231662). Pascal, incomodado com o crescimento do ateísmo, elaborou uma série de argumentos que buscavam defender a fé cristã. Entretanto, não teve tempo para finalizar seu trabalho de forma objetiva, e Pensées (Pensamentos), uma coleção de ensaios teológicos, só foi publicada em 1670, oito anos após sua morte 1 2.

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Todavia, um argumento presente nesses manuscritos inacabados é utilizado por apologistas cristãos com o objetivo de persuadir descrentes até os dias de hoje. O capítulo no qual está presente o argumento que abordaremos já foi apresentado com 3 títulos distintos, entretanto, prefiro o da edição de 1779, por pensar que esse represente melhor o texto: “Como é difícil demonstrar a existência de Deus pelas luzes naturais, mas como o mais seguro é crer nela” 3. Nele, o filósofo apresenta a dificuldade de conhecer a natureza de Deus por intermédio da razão – “luzes naturais” 4 –, uma vez que, segundo ele, Deus, ao contrário de nós, “não tem extensão nem limites” 5. Em virtude dessa dificuldade epistemológica, Pascal argumenta que crentes e descrentes estão em pé de igualdade, uma vez que Deus é infinitamente incompreensível: “somos, pois, incapazes de conhecer não só o que Ele é, como também se Ele é” 6. Entretanto, ele defende que existem duas possibilidades, a de “existência” e a de “não existência”; dessa forma, mesmo que não tenhamos capacidade de resolver esse problema de forma racional, devemos apostar em uma dessas possibilidades, assim como em um jogo de cara e coroa.

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Mas, para que lado penderemos? A razão nada pode determinar aí. Há um caos infinito que nos separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se cara ou coroa. Que apostareis? Pela razão, não podeis fazer nem uma nem outra coisa; pela razão, não podeis defender nem uma nem outra coisa. (PASCAL) 7

O filósofo deixa bem claro para o seu leitor que tanto a crença e a descrença não seguem os critérios da razão, e faz isso justamente em resposta aos descrentes que categorizam a crença em Deus como sinal de “tolice” 8. Quando Pascal desenvolve seus escritos, além de pensar no ateu, ele também se lembra do cético, que, em meio a um impasse, sem saber em qual possibilidade apostar, poderia dizer “já que ambas as crenças são inconsistentes e irracionais, o melhor a se fazer é suspender o julgamento e não apostar”. Pensando nessas possíveis críticas, Pascal enfatiza que é preciso apostar, pois entende que uma vez que nossas almas foram jogadas nesse mundo, não temos a escolha de não nos comprometer, pois não controlamos o jogo. Então, já que devemos apostar, ou seja, escolher entre “Cara” ou “Coroa”, o melhor a se fazer é traçar as probabilidades de ganho e perda; dessa forma podemos escolher a face da moeda que nos trará um melhor resultado de ganho.

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1) Traçando resultados: a) Coroa (Deus é) Se você acredita em Deus e Deus existir, você será recompensado com a vida eterna no Céu: Portanto, será um vencedor e terá um ganho infinito. b) Cara (Deus não é) Se você não acredita em Deus e Deus existir, você será condenado a permanecer no Inferno para sempre: Portanto, terá uma perda infinita. c) Se você acredita em Deus e Deus não existe (Coroa), você não vai ser recompensado: Assim, uma perda finita. d) Se você não acredita em Deus e Deus não existe (Cara), você não vai ser recompensado, mas você viveu sua própria vida: Assim, um ganho finito. Deus existe

Deus não existe

Acredite em Deus (Coroa)

Ganho infinito no Céu

Perda insignificante

Não crer em Deus (Cara)

Perda infinita no Inferno

Ganho insignificante

Um apostador consciente das suas possibilidades de ganho e perda só poderia escolher coroa (acreditar) como sendo a melhor opção. Entretanto, um ateu ou agnóstico mesmo enxergando razão em tal argumento, 116

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poderia dizer que se sente incapaz de apostar na existência de Deus, pois esse não consegue dominar sua crença, uma vez que essa é fruto do seu conhecimento e não dos seus interesses e vontades. Para Pascal, mesmo que a sua natureza se sinta resistente a tal crença, é necessário se esforçar, ir à igreja, participar dos rituais, beber água benta, viver como um verdadeiro crente e “naturalmente, isso vos fará crer” 9. Esse argumento vulgarmente conhecido como Aposta de Pascal, embora já refutado por muitos pensadores, ainda é reproduzido nos dias de hoje e, por isso, embora também já tenha escrito sobre ele em outros lugares, penso que se faz necessária uma avaliação mais completa deste. Antes disso, é importante salientar que tais erros cometidos por Pascal não o tornam um pensador menos brilhante. Costumo dizer que Pascal é a ilustração perfeita de que até brilhantes pensadores estão sujeitos a erros quando o objetivo é validar crenças em que eles estão ligados de forma passional. A melhor forma de não se deixar enganar por tais pensadores é tentar se distanciar da autoridade que emitiu o argumento e analisar os pressupostos de forma crítica. O caminho é estabelecermos uma dissociação entre sujeito e ideia, assim, evitaremos tropeçar em falácias comuns como argumentum ad hominem (argumento ao homem) e argumentum ad verecundiam (argumento de apelo à autoridade). 117

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O argumento do apostador esbarra em dois adventos, um de raiz moral e o outro lógico. O de raiz moral é levantado no próprio campo teológico, pois ao justificar a crença em Deus visando apenas o benefício próprio, essa crença seria entendida por Deus como sendo uma crença ilegítima, baseada apenas no oportunismo e não no amor. O próprio defensor da fé cristã e psicólogo americano William James (1842-1910) em seu livro A vontade de crer, apresenta que “quando a fé religiosa se expressa dessa maneira, na linguagem da mesa de jogo, é sinal de que está reduzida a seus últimos trunfos” (JAMES, 2001, p. 14). Mais adiante, apresenta que “se estivéssemos nós mesmos no lugar da Divindade, provavelmente teríamos um prazer especial em excluir os crentes dessa espécie de sua recompensa infinita” (JAMES, 2001, p. 15), ou seja, seria um prazer castigar aqueles que te seguem apenas por interesse. Apesar de gostar da crítica realizada por James, penso que Pascal está sendo injustiçado nesse ponto, ou talvez James tenha sido apresentado a um cristianismo que eu desconheço, pois, o que Pascal fez foi apenas traduzir para termos comuns a gênese da religião, que é a dominação pelo medo (argumentum ad metum), seja esse medo do Inferno metafísico, ou terreno, vide as fogueiras e espadas utilizadas outrora contra aqueles que negavam tal fé.

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Agora, sobre a conversão por meio da repetição e internalização de rituais como orações, Pascal ignora que para tal ato fazer sentido, o sujeito deve ter uma crença anterior em tais rituais, isto é, como um ateu/agnóstico passaria a crer em Deus por meio da repetição da oração se esse também não crê na oração? Se me permitem uma analogia, seria como dizer a um cristão que, se ele resolver se banhar diariamente no rio Ganges, abandonará a crença em Cristo e passará a reconhecer Brahma, Shiva e outros como entidades verdadeiras, ou se esse for a Meca contra o seu gosto (como sacrifício necessário) se converterá ao Islã. Tais atos não fazem sentido, dado que, antes do cristão “rejeitar” a crença em Shiva, esse também “rejeita” a crença nos poderes do rio Ganges. Já no âmbito da lógica, Pascal comete erros cruciais ao confundir probabilidade com possibilidade, e cria uma falsa dicotomia obrigando o seu leitor a escolher entre duas opções falsas. Uma boa ilustração de tal falha foi utilizada em uma série americana de 2017 chamada Young Sheldon. Nela, o personagem principal, Sheldon, um garoto de 9 anos, é confrontado por um pastor batista a responder a aposta de Pascal, mas Sheldon diz: “Você confundiu possibilidades com probabilidades. Por sua analogia, quando eu for para casa posso encontrar um milhão na minha cama, ou não. Desde quando as chances são 50% e 50%?”, até porque, se decidirmos 119

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converter as possibilidades de crenças em um jogo, esse não poderia ser cara ou coroa, dado que teríamos que considerar os milhares de deuses que não podem ser “provados pela razão”, e, se seguirmos os critérios de Pascal, também não podem ser “desaprovados”, ou seja, em virtude disso, dizer que Odin existe e que Jeová existe tem a mesma força. Será que deveríamos apostar nossas fichas no deus que detém o melhor “plano de governo”? Bom, conforme apresenta Hicks 10, isso está longe de ser racional. Uma pessoa racional não vai virar uma moeda, ou até várias moedas, para decidir o que é verdade. Uma pessoa racional vai insistir em evidências factuais juntamente com argumentos convincentes para acreditar que qualquer coisa de consequência é verdadeira. Uma pessoa racional dará mais valor ao exercício do rigor intelectual do que a uma promessa questionável de riqueza, felicidade ou vida mais longa. (HICKS, 2018)

Outra falha apresentada por Pascal é a falácia da inversão do ônus da prova. Ao comparar crentes e descrentes em pé de igualdade na lógica do conhecimento, Pascal age com um senso comum moderno, que, ao ser questionado sobre a crença em 120

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“animais celestes devoradores de astros”, diz que sua fundamentação em tais animais é forte, visto que a Ciência nunca conseguiu provar a inexistência de tais seres. O que esse não percebe é que o ônus da prova é de responsabilidade daquele que faz a alegação, e não daqueles que a negam por não existir evidências que a sustentem, uma vez que provar uma negativa poderia ser até impossível, ou seja, todos nós sabemos que personagem como Papai Noel e Coelhinho da Páscoa são criaturas fictícias, entretanto, nenhum de nós é capaz de provar a inexistência de tais seres; em virtude disso, seria desonesto colocar crentes (em tais entidades) e descrentes em pé de igualdade etimológico. Um exercício mental proposto pelo lógico Bertrand Russell (1872-1970) ilustra muito bem tal raciocínio. De minha parte, poderia sugerir que entre a Terra e Marte há um pote de chá chinês girando em torno do Sol em uma órbita elíptica, e ninguém seria capaz de refutar minha asserção, tendo em vista que teria o cuidado de acrescentar que o pote de chá é pequeno demais para ser observado mesmo pelos nossos telescópios mais poderosos. (RUSSELL, 1952) 11

E se, porventura, formos confrontados por novas tecnologias, poderíamos postular também que tal objeto 121

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é invisível e incorpóreo. Todavia, Russel vai além de tal responsabilidade do ônus da prova e coloca que tal afirmação da existência de um bule voador só é vista por nós como ridícula porque essa não foi afirmada em livros antigos, ou ensinada como verdade sagrada, e, portanto, inquestionável. Bom, mesmo se todo esse processo de doutrinação fosse realizado, e mesmo se todos os descrentes do bule fossem mortos por fanáticos por chá, seria risível dizer que a possibilidade de existência de tal bule é de 50% para cada lado. Pois o fato da maioria das pessoas aceitar uma crença como verdadeira, não eleva o seu status. Uma vez que a verdade se impõe à democracia e não o contrário.

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A moralidade depende de um ser sobrenatural?

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entendimento que a maioria das pessoas têm sobre a moral é a mesma que o filósofo Agostinho de Hipona (354-430) teve com o significado do tempo: “O que é o tempo, então? Se ninguém me perguntar, eu sei; mas, se quiser explicar a alguém que me pergunte, não sei (…)” 1. Embora não saibamos conceituar, todos sabem a importância de viver de forma moral, e é a partir deste saber que apresentarei um conceito pragmático de moral. Em um primeiro momento, sabemos que a moral é algo que está correlacionada aos humanos (animais racionais), até porque, ao presenciarmos uma luta por 125

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território entre leões, não saímos dizendo que o animal que começou a briga é imoral ou antiético; da mesma forma, não consideramos que bebês e indivíduos com transtornos mentais graves sejam imorais. Assim sendo, nossa primeira ideia de moral é de algo que está ligado a animais humanos com consciência de si e dos outros, não obstante, sabemos que a moral só faz sentido em sociedade, visto que seria impensável falar de moral no isolamento, afinal, um indivíduo que esteja sozinho no Cosmos seria incapaz de matar, mentir ou roubar de outrem. Mas qual o objetivo da moral, o que ela nos permite realizar? Embora essa resposta seja demasiadamente longa, em relação ao conceito, penso que seria correto afirmar que a moral nos permite criar um ambiente com condições sociais amistosas para o desenvolvimento da vida. Se os pontos apresentados estiverem corretos, podemos afirmar que a moral é um conjunto de normas que visa proporcionar a um coletivo de animais humanos com consciência de si e dos outros uma condição social amistosa para o surgimento e o afloramento da vida em sociedade. Agora que temos uma definição, é necessário buscarmos a fundamentação dessas “normas” morais. Será que são naturais ou sobrenaturais? A ideia de uma fundamentação sobrenatural não é recente. Esse conceito 126

Deuses, fantasmas e outros mitos

aparece na filosofia de várias formas e, geralmente, o seu propósito não é apenas tapar as lacunas do conhecimento moral; como veremos, também existe uma relação de poder. A forma do argumento mais conhecida é chamada de teoria ética do mandamento divino e é um modelo deontológico, ou seja, se manifesta por meio de um conjunto de regras que são apresentadas por Deus, assim, o homem com o objetivo de viver eticamente deve praticar a vontade e os preceitos desta suposta divindade. Dessa forma, indivíduos que neguem a existência desse ser, ou por ventura acreditem em divindades distintas, são indignos de confiança, dado que, se rejeitam o legislador, rejeitam também as leis postuladas por esse, leis essas que são o caminho para a construção da harmonia e justiça na sociedade. Também é comum em tal fundamentação a indagação de que “se Deus não existisse, tudo seria permitido” i. Os que assim entendem pensam que, sem um ser superior com o conhecimento objetivo do bem e do mal, capaz de punir os homens por seus erros, não importaria se o homem vivesse como santo ou demônio. 2 Todavia, penso que a própria provocação abre espaço para uma segunda possibilidade, que é: “Deus i Indivíduos que emitem tal pensamento se referenciam na pergunta de Dostoiévski, “Se Deus não existe tudo é permitido”?

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não precisa existir para que nem tudo seja permitido, as pessoas só precisam acreditar que ele exista”. Isso posto, fica fácil perceber que a existência ou inexistência de um ser sobrenatural é irrelevante para criar coesão social, uma vez que o que está em voga não é a existência da entidade, e sim a manipulação do medo, que pode se dar de várias formas. Não obstante, refletir sobre a premissa “se Deus não existisse, tudo seria permitido” pode ser demasiadamente proveitoso. E para tal, precisamos desenvolver alguns pressupostos, e o primeiro deles é se perguntar: é possível a existência de um ambiente social onde tudo é permitido? Diante desta provocação, convido o leitor a imaginar esse cenário. Por sorte não precisaremos de muito, dado que esse quadro já foi pintado pelo pai da filosofia política moderna, o inglês Thomas Hobbes (1588-1679). A visão hobbesiana, de certa forma, é muito parecida com a dos teóricos do ordenamento divino, e isso tornará nossa investigação mais interessante. Poderíamos dizer de forma poética que Hobbes acreditava que “se o Estado absolutista não existisse, tudo seria permitido”; no entanto, sua fundamentação teórica é mais bem estruturada, em razão de partir de uma investigação empírica.

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Hobbes observou que sempre que os governos colapsavam, os indivíduos se armavam, estocavam comida e partiam para “uma guerra de todos contra todos” 3, e assim as cidades se transformavam em um ambiente onde a esperteza e a violência eram vistas como sinais de virtude. Diante desta constatação, o filósofo põe em xeque a ideia aristotélica de que o homem é naturalmente um ser sociável (animal político); para Hobbes o homem no estado de natureza ii (antes da existência do Estado e da sociedade civil) é exatamente o oposto, um animal que pulsa liberdade, despido de freios sociais, morais, políticos e religiosos. E em tal ambiente “tudo é permitido”. O próprio Hobbes descreve que, no estado de natureza, não havia justiça ou injustiça, dado que não existiam leis e nem acordos preestabelecidos. Numa tal situação, não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias (…); e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, O termo “estado de natureza” é utilizado pelos filósofos contratualistas para descrever a condição (hipotética) que homem se encontrava, antes do surgimento da sociedade civil. (Estado). ii

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embrutecida e curta. (HOBBES, 2018, posição 1540/8665) 4

É importante ter em mente que o objetivo do filósofo não era desenvolver uma narrativa histórica do surgimento da sociedade, e sim inferir por meio de um pensamento hipotético-dedutivo as circunstâncias que fizeram os homens criarem uma criatura tão forte como o Estado (um Deus artificial). Nessa análise, Thomas Hobbes chega à conclusão de que, em tais circunstâncias, a vida estava fadada ao fracasso, ao desaparecimento, pois, por mais forte ou sábio que você pudesse ser, sempre temeria seus rivais, visto que até os mais fortes passam por momentos de vulnerabilidade, precisam dormir e se alimentar. No entanto, Hobbes sabia que não estava investigando um animal qualquer, suas aferições eram sobre o homem, um ser racional detentor de emoções como esperança e medo, isto é, um animal que teme a morte violenta e tem esperança em um futuro melhor. Hobbes apresenta que, em face de tais sentimentos, esse animal buscaria formas de resolver seus conflitos, e a forma mais assertiva segundo Hobbes seria a busca pela paz. Todavia, para se obter a paz seria necessário um acordo, onde todos se proponham abrir mão de certas liberdades e desejos.

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Ainda em conformidade com o filósofo, tal contrato só poderia funcionar se todos aceitassem, afinal, para um soldado só faz sentido abaixar suas armas se o seu inimigo também concordar. Em vista disso, para evitar os eventuais desertores, seria necessário a existência de um poder que todos temessem, visto que o homem é um ser motivado pelo medo, e “(…) os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém” (HOBBES, 2018) 5; por isso, a necessidade de criar um ser capaz de punir de forma legítima qualquer um que ouse descumprir os pactos. E assim surge o Estado, uma entidade responsável pela manutenção dos pactos, um Deus artificial capaz de punir os desertores, uma força que age de modo a mostrar ao homem que nem tudo é permitido. Em um contexto histórico, a legitimidade do poder do rei sempre esteve bem apoiada em uma ordem divina, ou seja, o rei é o sucessor legítimo de Deus. Dentro da perspectiva apresentada acima, tal ideia se dissolve, agora a legitimidade está pautada na necessidade da ordem social, uma vez que esse poder é condição necessária para a vida. A prova de tal conclusão são as guerras civis, que surgem com a fragmentação do poder, pois se esse se mantiver forte de modo a impor o medo e flertar com as esperanças, pouco importa a crença ou a descrença dos cidadãos.

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A filosofia política hobbesiana é extremamente envolvente, dado que ela trata de temas importantes como a manipulação do medo e o poder. Com ela, percebemos que, para se chegar a tais fins, o homem é capaz de fazer qualquer coisa, até de criar deuses artificiais e metafísicos. Todavia, penso que essa investigação sobre as normas morais pode nos levar ainda mais longe, especialmente se olharmos para Biologia. É claro que alguém pode se perguntar: mas o que a Biologia tem a ver com a moral? Talvez mais do que imaginamos, principalmente se utilizarmos o conceito que apresentei no início deste capítulo de que a moral é um conjunto de normas que visam proporcionar a um coletivo de animais humanos, com consciência de si e dos outros, uma condição social amistosa para o surgimento e o afloramento da vida em sociedade. Contudo, inicialmente não analisaremos os animais humanos, investigaremos o comportamento dos animais categorizados como irracionais. Quando olhamos para a natureza, especificamente para o comportamento dos animais, podemos observar que condutas que nós, humanos, categorizamos como “morais” e até mesmo “definidas por Deus”, nada mais são que condição sine qua non para o desabrochar da vida. Uma dessas condições é a cooperação, pois, como apresenta o biólogo e professor de Oxford, Dr. Richard 132

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Dawkins, os genes dos animais que vivem em grupos de forma cooperativa conseguem obter mais benefícios: Um bando de hienas pode caçar presas muito maiores do que uma hiena sozinha poderia fazer, motivo pelo qual será compensador, para cada indivíduo egoísta, caçar em bandos, muito embora isso signifique compartilhar o alimento. Provavelmente é por razões semelhantes que algumas aranhas cooperam na construção de uma teia comunal gigante. Os pinguins-imperadores conservam o calor aconchegando-se uns aos outros, em grandes bandos. Cada um lucra ao expor às intempéries uma superfície corporal menor do que ocorreria se estivesse sozinho. Um peixe que nade obliquamente atrás de outro poderá obter uma vantagem hidrodinâmica, devido à turbulência produzida pelo peixe à sua frente. Talvez seja por isso, pelo menos em parte, que os peixes formam cardumes. (DAWKINS, 2007, p. 192) 6

Aristóteles (384-322 a.C.), quando apresentou sua tese de que o homem é um animal social, pensava justamente nas vantagens naturais que o homem teria por viver em agrupamentos sociais, visto que só em sociedade ele poderia encontrar a eudaimonia

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(εὐδαιμονία) iii 7. Todavia, essa sociabilidade e, nesse contexto utilizo como sinônimo de cooperação, foi sendo aprimorada devido a um longo processo evolutivo, afinal, conforme apresenta o historiador Yuval Noah Harari 8 em seu livro Sapiens - Uma Breve História da Humanidade, a seleção natural favoreceu os animais humanos com fortes laços sociais. Hararri inicia a justificação do seu argumento explicando o impacto que a adaptação de uma postura ereta trouxe para os Sapiens, principalmente para as fêmeas; Um andar ereto exigia quadris mais estreitos, constringindo o canal do parto – e isso justamente quando a cabeça dos bebês se tornava cada vez maior. A morte durante o parto se tornou uma grande preocupação para as fêmeas humanas. As mulheres que davam à luz mais cedo, quando o cérebro e a cabeça do bebê ainda eram relativamente pequenos e maleáveis, se saíam melhor e sobreviviam para ter mais filhos. (HARARI, 2015, posição 233/8189)

Eudaimonia é uma palavra de origem grega que geralmente é traduzida como bem-estar, felicidade e também excelência. iii

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Dessa forma, a seleção natural privilegiava as mulheres que conseguiam dar à luz em períodos mais curtos, o que de certa maneira gerava outra consequência: os bebês humanos precisavam de mais cuidados, cuidados esses que, em uma savana, a fêmea sozinha não conseguiria dar. “Criar filhos requeria ajuda constante de outros membros da família e de vizinhos. É necessária uma tribo para criar um ser humano. A evolução, assim, favoreceu aqueles capazes de formar fortes laços sociais” (ibidem). Ou seja, não precisamos de seres externos para descobrir que a cooperação é um valor moral objetivo, sabemos que é, pois tal comportamento maximiza as nossas oportunidades de sobrevivência, ou seja, em conformidade com a ideia apresentada por Charles Darwin (1809-1882) ainda na introdução do seu livro A Origem Das Espécies, a evolução favorece as formas de vida mais bem organizadas e causa a extinção das demais 9. Todavia, quando convidei o leitor a olhar para a Biologia, não tive como pretensão demostrar o processo moral como uma forma mecânica não reflexiva. O fato de o homem ser um animal racional nos possibilita a capacidade de analisar nossas atitudes e prever os possíveis resultados advindos dela, sejam eles positivos ou negativos. Tal capacidade vem acompanhada de uma responsabilidade moral, assim podemos nos reunir e 135

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debater sobre nossa responsabilidade para com o ambiente ou as futuras gerações. Será que o desmatamento irresponsável proporcionará a um coletivo de animais humanos com consciência de si e dos outros uma condição social amistosa para o surgimento e afloramento da vida em sociedade? Por sermos uma espécie racional não precisamos ver sociedades serem extintas para chegar a uma conclusão, conseguimos prever os resultados apenas com o uso da razão. Consequentemente, também não necessitamos de um legislador externo para dizer que a mentira, o roubo, e o assassinato são imorais; sabemos que são, pois tais atitudes colocam em xeque a condição social amistosa para o surgimento da vida. Uma forma sistematizada de se pensar a moral de modo lógico é o Imperativo Categórico proposto pelo filósofo Immanuel Kant (1724-1804): “Aja segundo uma máxima que possa valer ao mesmo tempo como lei universal. Cada máxima que não se qualifica a isso é contrária à moral” 10; assim sendo, o indivíduo que está na dúvida sobre o caráter moral da mentira, deveria se perguntar se é possível a existência de uma sociedade que postule a mentira como uma lei. Se a resposta for não, então a conclusão é que mentir é contrário à moral. Quando tinha 9 anos, embora não conhecesse Kant, havia entendido sua ideia. Foi aos 9 anos que aprendi o motivo da mentira ser considerada imoral. Antes disso, 136

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já havia sido orientado que mentir era errado, pois o legislador supremo não gostava de pessoas mentirosas, ouvi até que o inferno tinha um lugar especial para crianças que mentiam. Mas foi nas minhas férias escolares que aprendi o verdadeiro motivo. Lembro-me que estava na praia tomando banho de mar, foi aí que resolvi pregar uma peça na minha mãe, comecei a fingir estar me afogando; quando ela viu a cena, largou tudo e saiu correndo desesperada para me socorrer, mas, quando ela chegou perto, eu comecei a cantar “enganei o bobo, na casca do ovo, quem caiu, caiu, primeiro de abril!”, minha mãe me colocou de castigo e eu fui obrigado a sair do mar. Entretanto, no final daquela mesma tarde, retornei à água, e, por um pequeno descuido, cai em um buraco de areia que estava no mar. Desesperado, comecei a pedir ajuda, minha mãe olhou com raiva e gritou: “Já falei que esse tipo de brincadeira não tem graça”! Para minha sorte, depois de alguns segundos, ela percebeu que não se tratava de uma brincadeira. Neste dia, compreendi de forma lógica a razão por quê mentir é tido como imoral. Percebi que a mentira enfraquece os laços de confiança entre os entes sociais, e, se universalizada, torna a vida em sociedade impossível. Evidentemente, não foram com essas palavras, mas havia entendido a proposta; já minha mãe,

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disse que o meu afogamento era um castigo divino por eu ter mentido da primeira vez. Levando em consideração os pressupostos apresentados, podemos concluir de forma inequívoca que qualquer sociedade que valorize a mentira como valor moral objetivo está fadada ao fracasso, e, talvez por isso, seja natural que sociedades desenvolvam métodos com finalidade de punir os mentirosos e trapaceiros. Conforme apresenta o Dr. Dawkins 11, a ideia de punição está presente até na natureza, vide os morcegos vampiros que, ao “emprestar” sangue regurgitado aos outros membros do grupo, conseguem se lembrar quais indivíduos pagam suas dívidas e quais trapaceiam: A seleção natural favorece os genes que predisponham os indivíduos, em relacionamentos em que haja necessidade assimétrica e oportunidade, a ajudar quando podem, e a solicitar favores quando não podem. Ela também favorece a tendência a lembrar-se de obrigações, a guardar ressentimentos, a policiar relacionamentos de troca e a punir traidores que aceitam favores, mas não os fazem quando chega sua vez. (DAWKINS, 2007, p. 283)

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O cientista ainda argumenta que, dentro de uma sociedade humana, com o intermédio da fala, o indivíduo desonesto será conhecido em breve por toda a comunidade e isso fará com que dificilmente ele consiga negociar com outros daquele grupo. E, dessa forma, temos em menor ou maior escala uma forma de recompensar e punir os indivíduos pautada por meio da seleção natural. Em escala contemporânea, ter um bom comportamento lhe proporciona novos contratos e acordos cada vez mais lucrativos, visto que hoje, antes de fechar qualquer negócio, pesquisamos as referências da parte, seja com amigos ou em bancos de dados (governamentais e não governamentais). E assim seguimos, substituímos o olhar onipresente de seres sobrenaturais por sistemas de câmeras cada vez mais modernos, elaboramos códigos morais objetivos (leis) e criamos um sistema prisional para punir quem as descumpra: nosso sistema prisional faz tais indivíduos conhecerem o inferno em vida; temos o nosso próprio deus artificial. Não obstante, nossos sistemas humanos estão longe de serem perfeitos, mas nós sabemos disso, e, por isso, podemos debatê-los e, por meio de um processo dialético, nos aproximar de resultados cada vez melhores. Todavia, isso não acontece em um sistema deontológico, e esse é o problema, pois, quando atribuímos um caráter dogmático (sagrado) a um sistema 139

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moral, corremos o risco de cristalizar um modelo sádico que promove a injustiça. Um exemplo ainda fresco em nossas memórias é o divórcio. Nos primeiros casos, entidades religiosas interpretavam tal ato como uma ofensa ao próprio Deus, uma abominação moral. Isso fazia com que muitos casais, para não desobedecerem aos preceitos divinos, obrigassem-se a manter algo que, em grande ou menor escala, lhes trazia sofrimento psicológico e físico, vide os casos de agressão. Muitas instituições religiosas, por vezes, trabalhavam como grupo de pressão para impossibilitar que as leis dos homens tornassem tal ato legal do ponto de vista jurídico, conforme aponta a socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes 12 (2011): “Na Itália, nos anos 1970, a esquerda uniu-se, apoiou as feministas, enfrentou o Papa e venceu. Divórcio e aborto foram legalizados. No Brasil, foi necessário que um ditador protestante, o general Geisel, que não suportava a Igreja Católica, impusesse o divórcio, em 1977”. Apesar disso, com o passar do tempo e devido à demanda social, essas instituições religiosas, outrora contra, começaram a trabalhar com a nulidade do casamento. Já em 2015, o chefe da Igreja Católica, o Papa Francisco (1936 –), passou a elaborar regras para facilitar a anulação do matrimônio 13. Outro exemplo ainda mais recente é a homossexualidade, visto, no primeiro momento, como 140

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abominação pela sociedade e também por Deus; contudo, conforme o corpo social evoluiu seu paradigma moral por intermédio do conhecimento, os textos ditos sagrados começaram a ser interpretados de forma mais branda, e as interpretações radicais do passado passaram a ser vistas como uma falta de conexão “verdadeira” com o Deus de amor. O mesmo ocorreu com a escravidão, perseguição religiosa e o direito da mulher por igualdade, afinal, como sustenta o filósofo e matemático Bertrand Russell (1872-1970), a moral religiosa “(…) foi e é o maior inimigo do progresso moral no mundo.” 14 Diante disso, é possível constatar que a moral teísta não é nada mais do que um subproduto que vem sendo construído sob o sofrimento de muitos. Até porque, tendo a pensar que nenhum ser vive segundo os preceitos de um Deus; vive sim, segundo a vontade dos sacerdotes, homens esses que expressam seus desejos como se fossem os de deus, ou seja, o homem cria deuses à sua imagem e semelhança, com o objetivo de santificar o seu sadismo e promover o seu ideal de mundo. Quando falamos de moral, ainda não temos todas as respostas; no entanto, por intermédio da razão, conseguimos melhorar o nosso ambiente e normas de convivência. É essa razão que nos fez perceber que a mulher não é um subproduto do homem, ou que a homossexualidade não é algo anormal. É essa busca 141

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constante de conhecimento, é a coragem de debater, de questionar que nos faz revisar a forma que vivemos, tal processo só é possível se observarmos que os fins das nossas ações são práticos e de nossa responsabilidade. Não obstante, agir de modo a proporcionar a um coletivo de animais humanos com consciência de si e dos outros uma melhor condição de vida não é algo fácil, pois muitas vezes você terá que abrir mão dos seus desejos em prol do outro. Compreendo que uma força onisciente e onipresente capaz de castigá-lo eternamente, caso você ignore suas regras, pode ser até bem persuasivo; entretanto, algo não se torna real apenas pela capacidade de nos encantar ou amedrontar: precisamos parar de temer as palmadas de nossos pais e entender que tipo de sistema podemos construir por intermédio da razão. Podemos utilizar como base nossa história, nossa empatia. Os mitos não nos revelam os mistérios da natureza, apenas embaçam nossa visão; ainda temos muito progresso na ética, pois como lembra o filósofo Derek Parfit (1942-2017): “Algumas pessoas acreditam que não pode haver progresso na ética, visto que tudo já foi dito (…) Eu acredito no contrário (…) Comparada com às outras ciências, a ética não religiosa é a mais jovem e menos avançada.” (1984 apud RACHELS; RACHELS, 2013) 15.

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Sobre o autor

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Gabriel Filipe é graduado em Filosofia com especialização em Ciência Política, acadêmico de Direito, poeta, jornalista, radialista, membro fundador da ACAL (Academia Aracruzense de Letras) e fundador da Revista Ateísta, a primeira publicação para ateus e agnósticos do Brasil.

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Índice remissivo

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A Agostinho de Hipona · 12, 125 argumentum ad · 12, 88, 117, 118 Aristóteles · 133

B Barnum · 47 Bertrand Russell · 5, 107, 121, 141 Bíblia · 84 BLACKMORE · 78 brasileiros · 36, 76, 102

C cientista · 49, 91, 92, 97, 101, 139

D Daily Mail · 85 Deus · 29, 34, 51, 52, 65, 66, 73, 82, 83, 84, 85, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 127, 128, 130, 131, 132, 140, 141 Dissonância Cognitiva · 30, 37 duplo-cego · 95, 108

E

C Carl Sagan · 74, 109 ceticismo · 10, 11, 63, 64, 99

eclipse · 10, 19, 20, 21, 22 Efeito Barnum · 47 EQMs · 81

Ch charlatões · 10, 45, 53, 54, 59, 63, 64, 65, 85, 108 Charles Darwin · 135

F fantasmas · 4, 10, 68, 69, 70, 71, 72

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fé · 12, 29, 33, 34, 56, 84, 101, 113, 118 fenômenos · 10, 11, 20, 65, 80 Festinger · 30, 31, 33, 37 filosofia · 12, 25, 127, 128, 132 filosófico · 25 filósofo · 12, 19, 25, 26, 89, 113, 114, 115, 125, 129, 130, 131, 136, 141, 142

H Hararri · 134 Hipócrates · 89, 90 homeopatas · 89, 91, 92, 109 homeopatia · 11, 87, 88, 89, 90, 92, 93, 94, 96, 97, 98, 101, 108, 109 horóscopo · 49 Houdini · 63, 64

I

K Kant · 136 Kevin · 82, 83, 85

M médiuns · 49, 50, 54, 57, 58, 60, 63 Michael Shermer · 56, 60, 77 Michel Gauquelin · 49 Mito da Caverna · 25, 37 mitologia · 20, 21 moral · 12, 13, 118, 125, 126, 127, 132, 135, 136, 138, 140, 141

N Nature · 92 Neolítico · 18

ignorância · 27 Inferno · 116, 118

J

O ônus da prova · 74, 120, 122 Operação Bola de Cristal · 44, 57

James Harvey Robinson · 28 James Randi · 46, 47, 51, 92, 93

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P Paralisia Do Sono · 75 Pascal · 12, 112, 113, 114, 115, 117, 118, 119, 120 Pensées · 113 placebo · 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 109 PLAIT · 87 Platão · 25, 37

R René Descartes · 27 Richard Dawkins · 39, 133 ROBINSON · 28, 29 Rowland · 56, 60, 62

S Samuel Hahnemann · 89, 90 Sherlock Holmes · 22, 64 SHERMER · 78 Similia Similibus Curentur · 89 Sócrates · 25, 26, 27

T Tales · 19 The Guardian · 85 Thomas Hobbes · 128, 130 Tomás de Aquino · 12

Y Yuval Noah Harari · 134

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Referências

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Introdução Produção de soja no Brasil cresce mais de 13% ao ano. Embrapa. [S.l: s.n.]. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2018. , 18 jul. 2017 2 ARMSTRONG, Karen; NOGUEIRA, Celso. Breve História do Mito. Edição: 1 ed. São Paulo (SP): Companhia das Letras, 2005. 3 DK LONDRES (Org.). O Livro da Filosofia. Tradução Douglas Kim. Edição: 1a ed. São Paulo: Globo, 2011. 1

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Qual a origem das nossas crenças, e por que é tão difícil abandoná-las? 1

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Deuses, fantasmas e outros mitos

Eu tenho uma mensagem do além para você 1

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Gabriel Filipe

of the Paranormal, p. 49–54, 1977. 8 SILVERMAN, Bernie I. Studies of Astrology. The Journal of Psychology, v. 77, n. 2, p. 141–149, 1 mar. 1971. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2018. 9 DART, John. Skeptics’ Revelations : Faith Healer Receives “Heavenly” Messages Via Electronic Receiver, Debunkers Charge. Los Angeles Times, 11 maio 1986. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2018. 10 ROHR, Altieres. Campanha alerta para exposição de dados na web com falso “vidente”. G1, 26 set. 2012. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2018. 11 CARROLL, Robert Todd. Cold reading. The Skeptic’s Dictionary. [S.l: s.n.]. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2018b. , [s.d.] 12 DUTTON, Denis. The Barnum Effect. Experientia. [S.l: s.n.]. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2018. , [s.d.] 13 SHERMER, MIchael. Learn to be Psychic in 10 Easy Lessons. . [S.l.]: Skeptics Societ. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. , [s.d.] 14 ROWLAND, Ian. The Full Facts Book Of Cold Reading. Londres, Inglaterra: Ian Rowland Limited, 2002. v. 3. 15

Ibidem.

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Deuses, fantasmas e outros mitos

16

SHERMER, Michael. Science Friction: Excerpt. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2018. 17 COX, John. REVIEW: Houdini and Conan Doyle by Christopher Sandford. Wild about Harry: [S.l: s.n.]. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2018. , 15 out. 2011 18 COX, John. The Real Story of Houdini & Doyle. Wild about Harry: [S.l: s.n.]. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2018. , 29 abr. 2016

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É na escuridão que os fantasmas se revelam (parte 1) 1

PACKER, Craig et al. Fear of Darkness, the Full Moon and the Nocturnal Ecology of African Lions. PLOS ONE, v. 6, n. 7, p. e22285, 20 jul. 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. 2 CANALTECH. A cada 2 minutos, o mundo tira mais fotos do que todos os clicks do século XIX. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018.

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Deuses, fantasmas e outros mitos

É na escuridão que os fantasmas se revelam (parte 2) 1

SAGAN, Carl. Bilhões e Bilhões. Tradução Rosaura Eichermberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

2

JW.ORG. Os demônios sustentam falsamente que os mortos estão vivos. . [S.l: s.n.]. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. , [s.d.] 3 SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios. Tradução Rosaura Eichenberg. Edição de Bolso ed. São Paulo, Brasil: Companhia das Letras, 2006. 4 SANTOMAURO, Julia; FRENCH, Christopher C. Terror in the night. The British Psychological Society, v. 22, 2009. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. 5 SANTOMAURO, Julia; FRENCH, Christopher C. Terror in the night. The British Psychological Society, v. 22, 2009. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. 6 SHARPLESS, Brian A.; BARBER, Jacques P. Lifetime prevalence rates of sleep paralysis: A systematic review. Sleep Medicine Reviews, v. 15, n. 5, p. 311–315, 1 out. 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018.

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7

SÁ, De; R, José F.; MOTA-ROLIM, Sérgio A. Sleep Paralysis in Brazilian Folklore and Other Cultures: A Brief Review. Frontiers in Psychology, v. 7, 2016. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. 8 FRENCH, Chris. The Waking Nightmare of Sleep Paralysis. The Guardian, 5 out. 2009. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. 9 SHERMER, Michael. Por que as Pessoas Acreditam em Coisas Estranhas. Pseudociência, Superstição e Outras Confusões dos Nossos Tempos. Tradução Luis Reyes Gil. Edição: 1a ed. [S.l.]: JSN, 2011. 10 BLACKMORE, Susan. Abduction by Aliens or Sleep Paralysis? Volume 22.3, May / June 1998, v. 22, 3 maio 1998. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. 11 HINES, Terence. Abducted: How People Come to Believe They Were Kidnapped by Aliens. Skeptical Inquirer, v. 30, 2 mar. 2006. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. 12 JANSEN, K. L. R. Using Ketamine to Induce the Near-Death Experience: Mechanism of Action and Therapeutic Potential. Lycaeum’s. [S.l: s.n.]. Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2018. , 17 set. 2010 13 OUELLETTE, Jennifer. Titanic and the Science of Near-Death Experiences. Scientific American Blog Network, 6 abr. 2012. Disponível em: 160

Deuses, fantasmas e outros mitos

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Retailers. Pulpit & Pen. [S.l: s.n.]. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. , 14 jan. 2015 21 COLLINS, Laura. EXCLUSIVE: Father of boy who says he made up memoir of time in heaven now accused of profiting from “scam” - as mother fought for years to prove book about paradise was a lie. Mail Online, 23 jan. 2015. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018.

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Deuses, fantasmas e outros mitos

Homeopatia e curandeirismo, a farsa da medicina alternativa 1

PLAIT, Phil. Science Fare. Bad Astronomy. [S.l: s.n.]. Disponível em: . Acesso em: 2 out. 2018. , 9 maio 2005

2

CORRÊA, A. D.; SIQUEIRA-BATISTA, R.; QUINTAS, L. E. M. Similia Similibus Curentur: notação histórica da medicina homeopática. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 43, n. 4, p. 347–351, dez. 1997. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018. 3

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4

BARRETT, Stephen. Homeopathy’s “Law of Infinitesimals”. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018. 5

KREMER, William. Por que placebos estão fazendo mais efeito em pesquisas? BBC News Brasil, 26 out. 2015. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018. 6

NATIONAL HEALTH AND MEDICAL RESEARCH COUNCIL. NHMRC Statement on Homeopathy and NHMRC Information Paper 163

Gabriel Filipe

Evidence on the effectiveness of homeopathy for treating health conditions | National Health and Medical Research Council. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018. 7

FENTON, Siobhan. Homoeopathy Officially Doesn’t Work. The Independent, 19 fev. 2016. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018. 8

DONNELLY, Laura. NHS to Ban Homeopathy and Herbal Medicine, as “Misuse of Resources”. The Telegraph, 21 jul. 2017. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018. 9

PSDB. Doria sanciona lei que vai ampliar atendimento homeopático em São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018. 10

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11

HENRIQUES, Martha. How a Dog’s Mind Can Easily Be Controlled. BBC, 18 out. 2016. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018.

12

DOWNES,

Stephen. 164

Falácias

causais.

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Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018. 13

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14

SMITH, Graham. Steve Jobs doomed himself by shunning conventional medicine until too late, claims Harvard expert. Mail Online, 14 out. 2011. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018. 15

JOHNSON, Skyler B. et al. Complementary Medicine, Refusal of Conventional Cancer Therapy, and Survival Among Patients With Curable Cancers. JAMA Oncology, 19 jul. 2018. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018.

16

GLOBO. Brasileiros lançam nos EUA pílula do câncer como suplemento alimentar. Fantástico (Globoplay), 19 fev. 2017. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018.

17

BARREIRA, Gabriel. Na web, “Dr. Bumbum”

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citava ética e se via perseguido pelo conselho de medicina por “inovar”. G1, 18 jul. 2018. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018. 18

HALL, Harriet. An Introduction to Homeopathy - CSI. Skeptical Inquirer, v. 38, 2014. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2018.

19

SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios. Tradução Rosaura Eichenberg. Edição de Bolso ed. São Paulo, Brasil: Companhia das Letras, 2006.

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Deuses, fantasmas e outros mitos

Um apostador chamado Pascal 1

PASCAL’S WAGER. In: HÁJEK, Alan. (Edward N. Zalta, Org.)The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Summer 2018 ed. [S.l.]: Metaphysics Research Lab, Stanford University, 2018. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. 2 PASCAL’S WAGER ABOUT GOD. In: SAKA, Paul. Internet Encyclopedia of Philosophy. [S.l: s.n.], [s.d.]. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. 3 PASCAL, Blaise. Pensamentos. [S.l.]: eBooksBrasil.org, 2002. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. 4 Ibidem 5 Ibidem 6 Ibidem 7 Ibidem 8 Ibidem 9 Ibidem 10 HICKS, Brian Edward. An Earthly Version of Pascal’s Wager. The Secular Web Kiosk. [S.l: s.n.]. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018. , 22 abr. 2018 11 RUSSELL, Bertrand. Is There a God? Illustrated, 1952. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2018.

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A moralidade depende de um ser sobrenatural? 1

AGOSTINHO, Santo. Confissões. [S.l.]: Editora Schwarcz - Companhia das Letras, 2017. 2 CRAIG, William Lane. Can We Be Good without God? Reasonable Faith. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2018. 3 HOBBES, Thomas. Leviatã ou a Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Edição: ebook Kindle. [S.l.]: Blue Editora, 2018. 4 Ibidem 5 Ibidem 6 DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. Tradução Rejane Rubino. Edição: 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 7 ARISTÓTELES. A Política. Tradução Roberto Leal Ferreira; Marcel Prélot. Edição: 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (Clássicos). 8 HARARI, Yuval Noah. Sapiens - Uma Breve História da Humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. Edição: ebook Kindle. [S.l.]: L&PM, 2015. 9 DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Tradução Joaquim Dá Mesquita Paul. Edição: ebook Kindle ed. [S.l.]: Textos para Reflexão, 2017.

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KANT, Immanuel. Metafisica Dos Costumes. Tradução Clélia Aparecida Martins. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. 11 DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Tradução Fernanda Ravagnani. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2007. 12 MORAES, Maria Lygia Quartim de. A nova família e a ordem jurídica. Cadernos Pagu, n. 37, p. 407–425, dez. 2011. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2018. 13 ORDAZ, Pablo. Papa Francisco simplifica a anulação do casamento, que agora será gratuito. EL PAÍS Brasil, 8 set. 2015. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2018. 14 RUSSEL, Bertrand. Por Que Não Sou Cristão E Outros Ensaios Sobre Religião E Assuntos Afins. Tradução Ana Ban. Porto Alegre, RS: L&PM Pocket, 2011. 15 RACHELS, James; RACHELS, Stuart. Os Elementos da Filosofia Moral. Edição: 7 ed. Porto Alegre, RS: AMGH, 2013.

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