Ebook O Mundo Que Nao Pensa

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NÃO PENSA

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NÃO PENSA A

A HUMANIDADE DIANTE DO PERIGO REAL

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DA EXTINÇÃO DO HOMO SAPIENS

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FRANKLIN FOER L

Tradução Debora Fleck

Copyright © 2017 by Franklin Foer © desta edição 2018 Casa da Palavra/LeYa Título original: World Without Mind Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora. Direção editorial: Martha Ribas Editora executiva: Izabel Aleixo Gerência de produção: Maria Cristina Antonio Jeronimo Produção editorial: Guilherme Vieira Diagramação: Futura

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Revisão: Eduardo Carneiro Indexação: Jaciara Lima

Capa: Leandro Liporage

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Imagem de capa: Rafael Ramirez Lee | Shutterstock.com

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

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Foer, Franklin O mundo que não pensa / Franklin Foer ; tradução de Debora Fleck. – Rio de Janeiro : LeYa, 2018.

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ISBN 978-85-441-0767-6 Título original: World Without Mind

1. Tecnologia – Aspectos sociais. 2. Indústria de serviços da informação – Aspectos sociais. 3. Sociedade da informação. I. Título. II. Fleck, Debora. 18-1749

CDD 303.483 Índices para catálogo sistemático: 1. Indústria de serviços da informação – Aspectos sociais

Todos os direitos reservados à EDITORA CASA DA PALAVRA Avenida Calógeras, 6 | sala 701 20030-070 – Rio de Janeiro – RJ www.leya.com.br

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Para Bert Foer, antitruste ferrenho, pai afetuoso.

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“Para mim, o lampejo de uma boa ideia vale mais que dinheiro.” Thomas Jefferson, 1773.

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Sumário

Prólogo............................................................................................................................................. 11

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Parte I

Monopolizadores da mente

1. O Vale é pleno, o mundo é um só........................................................................................... 21 2. A teoria Google da história...................................................................................................... 39

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3. A guerra de Mark Zuckerberg contra o livre-arbítrio.......................................................... 59

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4. Jeff Bezos subverte o conhecimento....................................................................................... 79 5. Sentinelas dos portões celestiais.............................................................................................. 91

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6. Confabulações das gigantes da tecnologia........................................................................... 107 Parte II

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O mundo que não pensa

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7. O vírus do viral........................................................................................................................ 123 8. A morte do autor..................................................................................................................... 145 Parte III Recuperando a mente 9. Em busca do anjo dos dados.................................................................................................. 167 10. A mente orgânica.................................................................................................................. 187 11. A revolta do papel................................................................................................................. 201 Agradecimentos........................................................................................................................... 211 Notas............................................................................................................................................. 213 Índice............................................................................................................................................ 229

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PRÓLOGO

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ATÉ POUCO TEMPO ATRÁS, era fácil definir as empresas mais proeminentes da

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nossa época. Qualquer estudante de oito ou nove anos de idade sabia descrever a essência delas. A Exxon comercializa petróleo; o McDonald’s faz hambúrgueres; o Walmart é o lugar onde se encontra de tudo um pouco. Só que o mundo mudou. Hoje, monopólios cada vez mais poderosos querem abarcar a existência em sua totalidade. Algumas dessas empresas foram batizadas em função de aspirações ilimitadas. A Amazon – cujo nome se refere ao rio mais volumoso do mundo – tem uma logo que aponta da letra A à letra Z; Google deriva de googol, número (1 seguido de 100 zeros) que os matemáticos usam como símbolo para quantidades enormes, inimagináveis. Onde essas empresas começam e onde elas terminam? Larry Page e Sergey Brin fundaram o Google com a missão de organizar o conhecimento, mas isso se provou bastante limitado. Agora a empresa planeja montar carros que prescindam de motorista, fabricar smartphones e vencer a morte. No passado, a Amazon se contentava em ser “a loja que vende de tudo”, mas atualmente produz programas de televisão, projeta drones e potencializa a nuvem. As empresas de tecnologia mais ambiciosas – como Facebook, Microsoft e Apple – estão numa disputa para se tornar nosso “assistente pessoal”. Querem nos despertar de manhã, usar um software de inteligência artificial para nos guiar ao longo do dia e permanecer o tempo todo em nosso encalço. Pretendem se tornar um repositório de itens preciosos e pessoais, nosso calendário e contatos, fotos e documentos. A ideia é que a gente recorra a elas quase no automático, em busca de informação e entretenimento; enquanto isso, essas empresas criam vastos catálogos com nossas intenções e aversões. O Google

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Glass e o Apple Watch antecipam o dia em que a inteligência artificial será implantada dentro de nós. Mais do que qualquer “panelinha” de empresas do passado, os monopólios de tecnologia querem moldar a humanidade a seu bel-prazer. Acreditam ter a oportunidade de completar a extensa fusão entre homem e máquina, redirecionando a trajetória da evolução humana. Como sei disso? Esses indícios são lugar-comum no Vale do Silício, ainda que grande parte da imprensa de tecnologia não dê muita bola para isso, obcecada que está em cobrir a última novidade. Em discursos anuais e debates públicos, os fundadores dessas empresas costumam fazer grandes pronunciamentos acalorados sobre a natureza humana – na verdade, sobre a visão de natureza humana que pretendem impor a nós. É comum tentarmos resumir a visão de mundo compartilhada por quem é da área de tecnologia. Presume-se que o liberalismo predomine no Vale do Silício, o que não é de todo equivocado. Encontram-se ali ilustres devotos de Ayn Rand. Porém, quando ouvimos com atenção os gigantes da tecnologia, não é essa visão de mundo que vem à tona. Na verdade, o que desponta é quase o oposto da veneração liberal do indivíduo heroico e solitário. As grandes empresas de tecnologia acreditam que somos, em essência, seres sociais, destinados à existência coletiva. Elas creem na rede, na sabedoria das massas e na colaboração. Acalentam o desejo profundo de que o mundo atomizado consiga se curar. Ao agrupar esse mundo num todo unificado, estarão aptas a tratar suas enfermidades. No plano retórico, as empresas de tecnologia acenam para a individualidade – para o fortalecimento do “usuário” –, mas sua visão de mundo se afasta disso. Mesmo a onipresente invocação de usuários revela muita coisa: uma descrição passiva e burocrática de nós. As gigantes da tecnologia – agrupadas pelos europeus sob a palatável sigla GAFA (Google, Apple, Facebook e Amazon) – estão triturando os princípios que protegem a individualidade. Seus dispositivos e sites acabaram com a privacidade; e, quando elas demonstram resistência em relação à propriedade intelectual, estão desrespeitando o princípio de autoria. No campo econômico, justifica-se o monopólio com o ponto de vista muito bem articulado de que a competição enfraquece nossa busca pelo bem comum e por objetivos grandiosos. No que diz respeito ao principal pressuposto

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Prólogo

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do individualismo – o livre-arbítrio –, as empresas de tecnologia têm outra abordagem. Elas esperam automatizar as escolhas que fazemos ao longo do dia, quer sejam decisões grandes, quer sejam pequenas. São seus algoritmos que recomendam as notícias que lemos, os bens que compramos, o caminho que pegamos e os amigos que trazemos para perto. É difícil não se deslumbrar com essas empresas e suas invenções, que não raro facilitam demais nossa vida. Acontece que já passamos muito tempo nessa fase de deslumbramento. Chegou a hora de levar em conta as consequências desses monopólios, de reafirmar nosso papel na determinação dos rumos da humanidade. Depois de cruzar certos limites – de transformar os princípios das instituições, de abandonar o conceito de privacidade –, não há como voltar atrás, como recuperar a individualidade perdida.

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Ao longo das gerações, já houve outras revoluções como essa. Algum tempo atrás, nos encantamos com as maravilhas da comida congelada e de alimentos ultramodernos que de uma hora para outra povoaram as cozinhas: fatias de queijo embaladas em plástico, apetitosas pizzas saídas direto do freezer e pacotes industrializados de guloseimas fritas. Na história humana, essas pareciam inovações revolucionárias. Como num passe de mágica, tarefas que consumiam um tempo danado viraram coisa do passado: ir às compras para procurar ingredientes; depois enfrentar o passo a passo maçante das receitas e ainda ter de lidar com o rastro deixado por potes e panelas com crostas de sujeira. A revolução alimentar não foi apenas fascinante: tratou-se de algo transformador. Novos produtos foram incorporados à vida cotidiana, tanto assim que levou muitas décadas até entendermos o preço que se paga por sua conveniência, eficácia e abundância. Esses alimentos eram obra de uma engenharia perfeita, mas foram projetados para nos fazer engordar. O gosto delicioso era obtido à custa de muito sódio e reservas consideráveis de lipídios, que acabaram redefinindo nosso paladar e dificultando a saciedade. Para fabricar esse tipo de comida, eram usadas quantidades inéditas de carne e milho, um pico de demanda que recriou a própria essência da agricultura norte-americana e cobrou um preço altíssimo em termos ambientais. Surgiu um sistema de agricultura industrial totalmente novo, com conglomerados

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sem a menor responsabilidade, que amontoavam galinhas em aviários cobertos de fezes e as entupiam de antibióticos. Quando começamos a entender as consequências dessa reformulação de nossos padrões de consumo, o estrago já tinha sido feito. As vítimas foram as medidas da nossa cintura, nossa longevidade, nossa alma e também o planeta. Algo semelhante à revolução alimentar de meados do século XX está agora reorganizando a produção e o consumo de conhecimento. Nossos hábitos intelectuais estão sendo embaralhados pelas empresas hegemônicas. A Nabisco e a Kraft queriam mudar a forma como nós comíamos e o que comíamos; hoje, Amazon, Facebook e Google querem ditar nossa maneira de ler e também escolher o que iremos ler. As grandes empresas de tecnologia são, entre outras coisas, os maiores vigias de todos os tempos. O Google nos ajuda a organizar o que há na internet, hierarquizando as informações; o Facebook usa seus algoritmos e sua inteligência refinadíssima nos nossos círculos sociais para selecionar as notícias que encontramos; e a Amazon domina a publicação de livros, com sua influência esmagadora sobre esse mercado. Com tamanha supremacia, essas empresas têm a capacidade de refazer os mercados que controlam. Assim como as gigantes do ramo alimentício, as grandes empresas de tecnologia deram origem a uma nova ciência que busca criar produtos para atender com precisão ao gosto de seus consumidores. Elas querem reformular toda a cadeia de produção cultural, com a meta de angariar mais lucros. Intelectuais, escritores autônomos, jornalistas investigativos e romancistas de vendagem mediana equivalem aos agricultores familiares, que nunca deixaram de lutar, mas não têm condições de competir nessa nova economia. No império do conhecimento, o monopólio e a conformidade são perigos inseparáveis. Monopólio implica o risco de empresas poderosas usarem sua hegemonia para acabar com a diversidade competitiva. Conformidade implica o risco de uma dessas empresas usar sua hegemonia – intencionalmente ou não – para acabar com a diversidade de opinião e de gosto. Após a concentração vem a homogeneização. No caso da comida, essa lógica só foi compreendida tardiamente.

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Nem sempre fui tão cético quanto sou hoje. No meu primeiro emprego, almoçava olhando para o Muro de Berlim, com sua extensão impressionante

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e todas aquelas falhas e marcas. No passado, o Muro tinha definido a fronteira impenetrável de um império; naquele momento posterior, servia de elemento decorativo para um novo centro de poder mundial. Essa parte do Muro pertencia a Bill Gates e ficava no café da Microsoft. Minha carreira no jornalismo começou na empresa de software de Gates. A Microsoft tinha acabado de construir um novo campus – concentrado numa quadra, com um córrego passando pelo terreno – nos arredores de Seattle, para abrigar todos os veículos de mídia recém-lançados na época. A empresa havia criado uma revista feminina on-line chamada Underwire (que com esse nome não tinha como dar certo; em inglês, é como chamamos o aro do sutiã), uma revista automotiva e outros sites voltados para a vida urbana. Depois de me formar, segui para a Costa Oeste, para ocupar o cargo mais baixo dentro da equipe de um novo veículo de mídia chamado Slate, que viria a ser a revista de interesse geral mais intelectualizada da Microsoft. Essas primeiras tentativas de fazer jornalismo na internet foram muito empolgantes. Nossos leitores nos liam por uma tela, o que sugeria a necessidade de adotar estilos diferentes de escrita. Mas de que tipo? Não estávamos mais sujeitos às restrições do correio nem das máquinas de impressão, então com que frequência publicaríamos? Todo dia? Toda hora? Era um momento incrível: todas as convenções desse novo tipo de escrita ainda estavam por ser estabelecidas. Como aconteceu a muitos aspectos da internet, a Microsoft avaliou mal o que estava por vir. Tentou se reinventar como empresa de comunicação de ponta, mas seus esforços foram canhestros e caros. Cometeu o erro de efetivamente produzir conteúdo editorial. Os sucessores – Facebook, Google e Apple – não repetiram o equívoco. Superaram a Microsoft ao adotar uma abordagem revolucionária: deter a supremacia sobre a mídia sem ter que contratar escritores e editores, sem precisar possuir muita coisa. Nas últimas décadas, a internet revolucionou os padrões de leitura. Em vez de começarem pela página principal da Slate ou do New York Times, uma parcela cada vez maior de leitores encontra as matérias jornalísticas por meio do Google, do Facebook, do Twitter e da Apple. Entre os americanos, 62% leem notícias a partir das mídias sociais, sendo a maioria via Facebook; um terço de todo o tráfego que chega nos sites de veículos midiáticos vem do

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Google. Isso deixou a mídia num estado de abjeta dependência financeira em relação às empresas de tecnologia. Para sobreviver, as empresas de comunicação se desvirtuaram de seus valores. Mesmo os jornalistas mais íntegros internalizaram uma nova mentalidade; estão preocupados em satisfazer a contento os algoritmos do Google e do Facebook. Na busca por cliques, alguns dos mais importantes provedores de notícias americanos abraçaram o sensacionalismo, publicando histórias duvidosas e canalizando atenção em torno de propagandistas e conspiradores, um dos quais foi eleito presidente dos Estados Unidos. Facebook e Google criaram um mundo no qual as antigas fronteiras entre fato e mentira caíram por terra, em que as informações falsas se propagam de forma viral. Eu vivi uma versão poderosa dessa narrativa. Passei a maior parte da minha carreira na New Republic, uma pequena revista com sede em Washington, sempre com menos de cem mil assinantes, com foco em política e literatura. Cavamos nosso espaço em meio às convulsões da era da internet até 2012, quando a revista foi comprada por Chris Hughes. Chris não foi apenas o salvador da pátria; ele era o rosto do Zeitgeist. Em Harvard, tinha dividido o quarto com Mark Zuckerberg, que o ungira como um dos primeiros funcionários do Facebook. Chris deu a nossa revista antiga e ultrapassada uma roupagem mais moderna, um orçamento maior e informações privilegiadas sobre mídias sociais. A sensação era de que carregávamos as esperanças do jornalismo, que clamava por uma solução digna para todas as suas agruras. Chris me contratou para editar a New Republic – cargo que eu já havia ocupado antes –, e começamos a reestruturá-la, na tentativa de satisfazer nossas elevadíssimas expectativas. No fim das contas, essas expectativas se provaram insustentáveis. Não conseguimos nos mover com tanta agilidade quanto Chris gostaria. Nosso tráfego cresceu muito, mas não exponencialmente. Na visão dele, nunca chegamos a dominar bem as mídias sociais. Minha relação com Chris se desgastou de forma desastrosa. Ele me demitiu depois de dois anos e meio, um rompimento amplamente interpretado como parábola da incapacidade do Vale do Silício de entender o mundo jornalístico, sobre o qual passou a exercer tanto poder. Não há dúvida de que essa experiência influenciou o argumento deste livro.

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Prólogo

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Espero que estas páginas não sejam interpretadas como material movido pela raiva, mas tampouco gostaria de negá-la. As empresas de tecnologia estão destruindo algo muito precioso, que é a possibilidade de contemplação. Elas criaram um mundo onde estamos o tempo inteiro distraídos e sendo vigiados. Por terem acumulado muitos dados, construíram um retrato da nossa mente, que usam para guiar de forma invisível o comportamento das massas (e cada vez mais o comportamento individual), com o intuito de promover seus interesses financeiros. Elas corroeram a integridade das instituições – de mídia e do mundo editorial – que fornecem matéria-prima intelectual capaz de estimular o pensamento e guiar a democracia. O ativo mais valioso dessas empresas é justamente o nosso ativo mais valioso – nossa atenção –, e elas passaram dos limites. As empresas já alcançaram o feito de alterar a evolução humana. Todos já viramos um pouco ciborgues. O celular funciona como uma extensão da nossa memória; terceirizamos funções mentais básicas para diversos algoritmos; entregamos de bandeja nossos segredos, para serem armazenados em servidores e analisados por computadores. O que nunca podemos esquecer é que não estamos apenas nos fundindo a máquinas, mas às empresas que controlam as máquinas. Este livro é sobre as ideias que alimentam essas empresas – e a urgência de resistir a elas.

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Parte I

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MONOPOLIZADORES DA MENTE

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O VALE É PLENO, O MUNDO É UM SÓ

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ANTES DA ASCENSÃO DO VALE DO SILÍCIO, monopólio era um termo pejorativo no

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dicionário da vida americana. Mas é claro que se perseguia com unhas e dentes essa palavra malquista. De forma um tanto agressiva, os negócios sempre almejaram alcançar um estado de total e completa hegemonia sobre os mercados. A maior parte dos livros de economia modernos descrevia essa ambição como saudável e natural. Ainda assim, o monopólio continuou sendo culturalmente inaceitável e politicamente arriscado, meta que nunca se devia proclamar em alto e bom som. Exceto em poucos casos isolados, como dos legítimos precursores dos gigantes atuais, esse objetivo raras vezes era verbalizado na pátria de Thomas Jefferson, onde se romantizava a competição como melhor salvaguarda contra temerárias concentrações de poder. Quando o governo americano deixou de agir de maneira tão ativa para inibir os monopólios, nos anos 1980, as empresas continuaram respeitando a antiga tradição de celebrar as virtudes da competição rigorosa. Então surgiram as gigantes da tecnologia. As maiores empresas do Vale do Silício não buscam o monopólio exclusivamente por uma questão de lucro; seus especialistas e teóricos não toleram o gigantismo exclusivamente por ser um fato da vida econômica. Nos grandes parques de escritórios ao sul de São Francisco, o monopólio é um anseio espiritual, um conceito adotado sem pudores. A concentração de poder dessas empresas – nas redes que controlam – é tida como um bem social urgente, o precursor da harmonia global, uma condição necessária para desfazer o isolamento da humanidade. Em momentos de maior idealismo, as gigantes da tecnologia revestem a busca pelo monopólio com uma retórica pomposa sobre direitos humanos

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e conexão. A ideia nobre de missão torna o crescimento dessas redes um imperativo; seu tamanho se transforma num fim em si mesmo. Elas querem escapar da competição, existindo num plano particular, para conseguir cumprir seu potencial transcendente. O sonho nefasto tem bases sólidas por contar com um longo pedigree. Por mais estranho que pareça, o anseio monopolístico do Vale do Silício remonta à contracultura da década de 1960, em que ele teve origem na visão mais lírica do conceito de paz e amor. Para ir direto ao ponto, tudo começou com um príncipe herdeiro do movimento hippie.

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Stewart Brand pilotava sua caminhonete pelo centro da península de São Francisco, em meio à leve bruma do início dos anos 1960. No adesivo colado ao para-choque, um protesto: “Custer morreu pelos pecados de vocês”, título do livro-manifesto sobre os índios americanos. Em seu peito à mostra, via-se um colar de miçangas. Os participantes da cena do ácido, da qual Brand era uma liderança importante, consideravam-no um “fanático da questão indígena”.1 Tudo começou com um caso de amor, quando um amigo da família pediu que Brand fotografasse a Reserva Indígena de Warm Springs para um panfleto, o que culminou em seu casamento com Lois Jennings, da tribo Odawa. Para Brand, filho de um publicitário, os índios americanos foram uma revelação.2 Seu pai tinha escrito um roteiro para o consumismo resiliente dos anos 1950, e os índios eram a refutação viva e concreta disso. Como muitos brancos antes dele, Brand encontrou na reserva a autenticidade que infelizmente faltava em sua vida. A reserva era um refúgio, um bastião que se recusava, com teimosia, a participar da destruição planetária e aderia à “consciência cósmica”.3 Com um espírito especialmente despojado, Brand certa vez disse, brincando: “[Os índios] são tão terrestres que tendem a ser também extraterrestres.”4 Para difundir os princípios que conheceu em Warm Springs, ele reuniu uma pequena trupe de dançarinos que apresentava um espetáculo multimídia chamado por ele de “A América Precisa dos Índios”. Repleto de luzes piscantes, música e imagens projetadas, o espetáculo era “uma reunião de peiote, sem peiote”, nas palavras de Brand.5

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Tratou-se da primeira incursão de Brand pela carreira de produtor cultural – um produtor que daria forma ao futuro da tecnologia. Ele tinha talento para canalizar os anseios espirituais da sua geração e depois explicar como poderiam ser atendidos pela tecnologia. Registrou seus argumentos em livros e artigos, mas esses eram projetos um tanto caretas. Criou também um novo gênero de publicação que, de certa forma, trazia hyperlinks para trabalhos semelhantes, de pares com interesses comuns. Muito antes do advento do TED, idealizou um circuito de conferências de cair o queixo. Brand inspiraria uma revolução computacional. Engenheiros espalhados por todo o Vale do Silício eram seus fãs, porque ele lhes explicava o enorme potencial do trabalho que faziam, usando argumentos que nem sempre eram fáceis de ser enxergados ou articulados. Brand reuniu seguidores devotos, pois levou para o campo da tecnologia uma noção estimulante de idealismo. Se a política não era capaz de transformar a humanidade, entrariam em ação os computadores. Esse sonho de transformação – um mundo que seria “salvo” pela tecnologia, que se uniria em torno de um modelo pacífico de colaboração – carrega uma ingenuidade fascinante. No Vale do Silício, essa crença inocente foi sendo transmitida de geração em geração. Mesmo as empresas mais pragmáticas acabaram internalizando a ideia. O que começou como um sonho inspirador – a humanidade ligada por uma rede única transcendental – se transformou em fundamento para o monopólio. Nas mãos do Facebook e do Google, a visão de Brand serve de pretexto à dominação.

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Antes de reinventar a tecnologia, Stewart Brand precisava inventar os anos 1960. Essa história começa um tanto por acaso, como acontece a muitas histórias da era pré-hippie. Depois de embarcar em Exeter e se formar em Stanford, Brand se alistou no Exército. Sua experiência nos quartéis não foi muito feliz, mas deu a ele algum nível de desenvoltura organizacional e destreza administrativa. Essas habilidades nunca o abandonaram, mesmo depois que ele botou tabletes de LSD na língua. (Seu envolvimento com ácido começou em 1962, quando a droga ainda podia ser obtida com pesquisadores sérios.)6 Brand era mestre nas tarefas rígidas e antiquadas que tiravam do sério a maior

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parte de seus amigos cabeludos, como alugar um auditório ou divulgar um evento. Quando se juntou ao escritor Ken Kesey e seu célebre grupo Merry Pranksters – que usava drogas de forma recreativa –, ele representava a “ala sóbria e pensante” daquele bando psicodélico de hippies, pelo menos segundo o livro O teste do ácido do refresco elétrico, relato de viagem em que Tom Wolfe mergulha na contracultura nascente.7 Embora Brand usasse uma espécie de cartola com uma flor cravada na frente e falasse por meio de aforismos gaiatos, não deixava de ser um obcecado por organização, adepto dos armários de arquivos. Sua pièce de résistance foi organizar o Festival Trips, o ápice das festas chamadas de Testes do Ácido, ciceroneadas pelo grupo de Kesey, em São Francisco, para exaltar a droga queridinha de todos. Brand montou um programa de três dias de psicodelia, que ajudou a definir o que hoje conhecemos como “anos 1960”. Entre outras coisas, o sofisticado espetáculo apresentou ao mundo a banda Grateful Dead; reuniu seis mil hippies, criando entre eles a noção de pertencimento a uma cultura; ou melhor, a uma contracultura. Brand levou suas obsessões ao palco principal na primeira noite do Trips, oferecendo o papel de destaque à trupe A América Precisa dos Índios. As luzes e imagens projetadas por Brand eram como o LSD, uma tentativa de induzir artificialmente uma noção ampliada de consciência. A América precisava dos índios, mas precisava também de ácido. Uma sacudida capaz de despertar o país da apatia própria a quem veste pijamas cinza flanelados. Tempos depois, Brand atribuiria os mesmos poderes alucinógenos aos computadores. Porém, antes de louvar essas máquinas, não era muito chegado a elas. Tudo que a contracultura nascente mais desprezava – a submissão irrefletida da manada, a tirania do aparelho burocrático – podia ser reduzido a um símbolo pungente: o computador. Mais tarde, ao olhar para os anos 1960, Brand recordou: “A maior parte da nossa geração rejeitava os computadores: eles eram a encarnação do controle centralizado.”8 Do outro lado da baía, em Berkeley, nos primeiros pronunciamentos da Nova Esquerda já se ouviam críticas ao computador. Mario Savio, líder grandiloquente do Movimento pela Liberdade de Expressão no campus, comparou as forças opressivas na universidade (e na sociedade) à tecnologia: “Há um momento em que o funcionamento da máquina se torna tão odioso,

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faz tão mal ao coração, que você não pode mais fazer parte daquilo; nem passivamente é possível fazer parte, e é preciso jogar seu corpo contra as engrenagens e contra a maquinaria.”9 Muitas vezes, a metáfora era ainda mais específica. Como disse Savio: “Na Califórnia, você é pouco mais que um cartão perfurado da IBM.” Vale lembrar que estudantes em protesto penduraram cartões de computador em volta do pescoço, com buracos, para formar a palavra STRIKE [greve]. Num tom jocoso, escreveram: “Favor não me dobrar, entortar, perfurar ou mutilar.”10 A crítica era mais do que justa. Para começo de conversa, havia a IBM, a obscura empresa que fabricava as máquinas. No fim dos anos 1950, a IBM controlava 70% do mercado doméstico de computadores, sem qualquer concorrente a reboque. Esse monopólio era fruto de uma hábil engenharia, mas também do apoio irrestrito do Pentágono e de outros braços do Estado. (Os subsídios ajudaram os Estados Unidos a ultrapassar engenheiros europeus de primeira linha, que não desfrutavam o mesmo apoio estatal.) A IBM chamou um de seus primeiros modelos, o 701, de “Defense Calculator”, para satisfazer seu mercado principal.11 Quase todos os 701 que a empresa produzia eram alugados para o Departamento de Defesa ou para empresas aeroespaciais. Anos depois, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês) subsidiou o desenvolvimento de um novo modelo, uma colaboração chamada “STRETCH”, de modo que as máquinas pudessem ser calibradas para atender às diferentes necessidades das agências. Paul Ceruzzi, cuidadoso historiador da tecnologia, um sujeito desprovido de ideologia, assim descreveu essa época: “Nos Estados Unidos, de 1945 até a década de 1970, a computação foi dominada por sistemas enormes, centralizados, sob controles rigorosos, o que não era muito diferente do sistema político soviético.”12 É verdade que as máquinas pareciam, de fato, instrumentos do mal. Até a década de 1970, os computadores eram blocos gigantescos, fixos, como as instituições mastodônticas que os utilizavam. Para abrigar os primeiros modelos, eram necessárias salas inteiras só com esse propósito. Como se tratava de equipamentos muito caros e delicados, todo cuidado era pouco. Quando precisavam alimentá-los com dados, os requerentes se aproximavam de uma janela e entregavam os cartões perfurados para técnicos que usavam

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jalecos e gravatas finas, um grupo vira e mexe descrito como “sacerdotes”. Esses cartões perfurados faziam lembrar um formulário de múltipla escolha, instrumento essencial da burocracia. A abordagem “fria” servia bem à elite pós-guerra, com sua tendência tecnocrática e obsessão por eficiência. Stewart Brand acreditava em muitas das piores coisas que eram ditas sobre os computadores. Ainda assim, nutria a esperança de que eles poderiam mudar o mundo para melhor. Em parte, a centelha de otimismo era geracional. Os baby boomers cresceram num mundo imerso em tecnologia: rock and roll, automóveis e televisão. Desfrutavam de tal forma da modernidade que jamais organizariam um contra-ataque estrondoso. É como Theodore Roszak, teórico da Nova Esquerda, explicou tempos depois: “Lado a lado com o apelo da música folk e dos modos de vida primitivos, dos trabalhos manuais e da agricultura orgânica, havia uma confabulação meio infantil ligada a espaçonaves e mecanismos miraculosos que transformariam em queridinhos da cena cult o filme 2001: Uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick, e a série de televisão Star Trek.”13 A própria profecia de Brand sobre questões tecnológicas surgiu a partir de uma série de epifanias, sendo que apenas uma delas foi induzida por drogas. Sentado no alto do prédio em que morava, no enclave hipster de North Beach, ele se cobriu com uma manta. Uma série de pensamentos cruzou sua mente. Por que os prédios logo à frente não se dispunham em linhas paralelas perfeitas? Caramba! Deve ser a curvatura da Terra. Sem dúvida, a curvatura da Terra. Huuuummm, quer saber de uma coisa? Com todos esses satélites olhando o planeta, lá de cima, por que não existe uma fotografia da Terra? Não apenas uma foto, mas uma foto colorida. Não apenas da Terra, mas de TODA a Terra. Se houvesse uma foto de toda a Terra, tudo mudaria de figura. Assim teve início a campanha de Brand para convencer a Nasa a divulgar uma fotografia em cores de toda a Terra. Ele logo começou a pegar uma carona atrás da outra, rumo ao leste, para vender broches nos campi universitários, defendendo sua bandeira. Essa cruzada, por mais quixotesca que hoje pareça, contribuiu para o despertar do movimento ambientalista. Uma segunda epifania se seguiu à primeira. Ao voltar do enterro do pai, ele ficou ponderando como gastaria a bolada que acabara de receber de herança. Começou a pensar em todos os amigos que tinham ido morar em

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comunidades. Era fácil entender por que as comunidades atraíram a atenção dele. Começando com o Verão do Amor, em 1967, e continuando pelo annus horribilis de 1968, centenas de milhares de jovens americanos, guiados pela esperança e pelo medo, foram morar em lugares sem energia elétrica, em comunidades coletivas autossuficientes. Eles fizeram surgir cidades com nomes como Drop City e Twin Oaks, em lugares como o deserto do Novo México, as montanhas do Tennessee e as florestas do norte da Califórnia. (Estima-se que a população vivendo em comunidades aumentou para 750 mil no início dos anos 1970.)14 Ainda no avião, Brand teve a ideia de dirigir um caminhão até esses povoados, para vender ferramentas e outros bens capazes de ajudar os membros das comunidades a prosperar. “Foi uma maneira que encontrei de ser útil para as comunidades, sem ter de efetivamente viver numa delas”, brincaria ele mais tarde.15 Seu caminhão mal chegou a sair do lugar, mas o conceito principal se transformou em algo muito maior e mais relevante. Brand criou o Whole Earth Catalog [Catálogo da Terra Inteira], que estava mais para um gênero literário totalmente novo – ou o que Steve Jobs chamou de “uma das bíblias da minha geração”.16 Em seus quatro anos de existência, o Whole Earth Catalog vendeu 2,5 milhões de exemplares e arrebatou um National Book Award. O subtítulo do catálogo dizia “acesso a ferramentas”. Havia muitas delas descritas naquelas páginas, embora nenhuma estivesse à venda, exceto pelo que se encontrava na vendinha gerenciada por Brand no coração do que se tornaria o Vale do Silício. O catálogo apresentava aos leitores calculadoras, paletós e cúpulas geodésicas, bem como livros e revistas. As mercadorias, em si, eram menos importantes que os argumentos teóricos sobre elas. Na primeira edição, lemos o seguinte:

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Nós somos como deuses, e talvez até fiquemos bons nisso. Até o momento, poder e glória controlados remotamente – via governo, grandes negócios, educação formal e Igreja – obtiveram tamanho êxito que defeitos flagrantes obscurecem ganhos reais. Em resposta a esse dilema e a esses ganhos, está se desenvolvendo um campo de poder íntimo e pessoal – poder do indivíduo de conduzir sua educação, descobrir sua inspiração, dar forma a seu ambiente e compartilhar a aventura com quem se interessar. O

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WHOLE EARTH CATALOG busca e promove ferramentas que ajudam nesse processo.17

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O manifesto de Brand condensou as ideias do movimento de comunidades e depois o fez progredir de forma crucial. A tecnologia, argumentava ele, tinha criado as doenças do mundo. Apenas a tecnologia seria capaz de resolvê-las. Livres das mãos dos monopolistas e militaristas, as ferramentas poderiam empoderar os indivíduos, tornando-os mais autossuficientes e com mais capacidade de se expressar. Poderosas Ferramentas para as Pessoas, poderiam dizer. Se alguns desses pontos de vista parecem familiares, é porque tiveram eco em dezenas de propagandas da Apple ao longo dos anos. De certa forma, essa era uma teoria de individualismo radical e autonomia – precursora do liberalismo do Vale do Silício. Mas Brand tinha estudado a obra de pensadores como Buckminster Fuller, Norbert Wiener e Marshall McLuhan. Todos seus heróis intelectuais escreveram sobre a importância de atentarmos para sistemas e redes. Foi aí que surgiu a noção de Terra Inteira. Brand queria que seus leitores pensassem de forma ecológica, que vissem como tudo está inter-relacionado, que entendessem o lugar que ocupam na rede da vida. É como vinha escrito na quarta capa do catálogo: “Não podemos juntar nada. As coisas já estão juntas.”18 O Whole Earth Catalog é um texto seminal do Vale do Silício, que ajuda a explicar aquela cultura. A despeito dos que trabalham com capital de risco e de empresas como a Tesla, o Vale do Silício continua permeado pelos vestígios residuais da vida em comunidade. É por isso que os CEOs sentam no meio de escritórios sem divisórias que rejeitam ostensivamente a hierarquia organizacional e vestem camisetas iguais às do programador iniciante que fica do outro lado do saguão. E embora os monopólios do Vale do Silício existam para obter lucro, eles se enxergam como agentes revolucionários, que elevam o mundo ao estado de unidade que Brand buscou a vida inteira. Como escreveu Fred Turner em seu importante livro From Counterculture to Cyberculture [Da contracultura à cibercultura]: “[O catálogo] ajudou a criar as condições para que os microcomputadores e as redes de computadores fossem pensados como instrumentos de libertação.”19

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Quando Steve Jobs descreveu o Whole Earth Catalog como a “bíblia” da sua geração, estava se referindo a sua geração de amantes de tecnologia e hackers, a vanguarda de geeks que revolucionou a computação. Os rudimentos dos computadores pessoais foram, em certa medida, desenvolvidos no final da década de 1960. Graças à DEC, empresa de hardware de Massachusetts, surgiram novos exemplos de mainframes gigantescos reduzidos a microprocessadores mais acessíveis. Em Stanford, designers tinham criado o mouse. O Departamento de Defesa havia conectado a primeira internet. Visionários especialistas em tecnologia, como Doug Engelbart (criador do mouse), tinham imaginado um futuro em que as máquinas desempenhariam um papel muito mais íntimo na vida das pessoas comuns. Mas eles falavam um jargão – e as máquinas ainda eram muito caras, grandes e complexas para serem usadas em mesas de escritório, que dirá em casa. As inovações não surgem num passe de mágica nem progridem apenas com base em alguma lógica científica; a cultura sempre dá um empurrãozinho. A noção de computador pessoal ainda precisava ganhar corpo. Pode-se dizer que foi Brand quem cristalizou as ideias que inspirariam os engenheiros a dar esse salto. O Whole Earth Catalog fez a ponte entre os valores da contracultura e a tecnologia. E, com o passar do tempo, ele começou a mostrar que o computador – essa invenção monstruosa das grandes instituições – poderia ser aproveitado como ferramenta de libertação pessoal e conexão com a comunidade. Um importante dado sobre a história da tecnologia é que os arredores de São Francisco foram o epicentro americano tanto da psicodelia quanto da computação. Graças a essa confluência geográfica, jovens engenheiros se mostravam inusitadamente abertos à mensagem de Stewart Brand. Isso valia, por exemplo, para o caso do famoso caldeirão de criatividade da Xerox, seu Centro de Pesquisas em Palo Alto (PARC, na sigla em inglês). Um dos principais engenheiros de lá, Alan Kay, encomendava todos os livros listados no Whole Earth Catalog e os reunia numa biblioteca do escritório. Ao longo dos anos, Kay não hesitaria em dar os créditos a Brand por apontar para o futuro: “Para nós, do PARC, ele era o cara que nos alertou pela primeira vez sobre como viriam a ser os computadores.”20

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Uma vez que absorveram Brand no próprio trabalho, os engenheiros do PARC deixavam-no transitar pelo laboratório. Ele descreveria o que viu num artigo seminal que escreveu para a Rolling Stone em 1972. O artigo era um nítido e vigoroso exemplo do Novo Jornalismo: “O ambiente mais eletrizante em que estive desde os Testes do Ácido da Merry Prankster.” Brand descreveu os cientistas da computação exatamente como queria enxergá-los – como os grandes emancipadores da tecnologia: “Esses homens incríveis, com suas máquinas voadoras, de olho na tecnologia de ponta que carregue em si uma curiosa suavidade; território sem lei, onde as regras não são decretos nem rotina, diferente das demandas rigorosas do que é possível.”21 De fato, os engenheiros tinham começado a desenvolver máquinas que estavam uma década à frente daquele tempo, algo tão revolucionário que os engravatados da Xerox não eram capazes de entender por completo. O protótipo mais lendário foi um computador com muitos dos elementos que mais tarde apareceriam no Macintosh – o que não era coincidência, porque Steve Jobs ficou encantado com as inovações que testemunhou numa visita antológica ao PARC no inverno de 1979. Porém, o que fez do artigo de Brand um material tão influente é que ele tomou os estímulos dos engenheiros e os traduziu em frases incisivas – e essas frases incisivas, por sua vez, serviram de diretriz para o trabalho dos engenheiros. Brand pintou uma imagem gloriosa da computação. O que as comunidades não conseguiram realizar, os computadores fariam. “Quando os computadores ficarem acessíveis a todo mundo, os hackers assumirão: somos todos ratos da computação, todos mais empoderados como indivíduos e cooperadores. Isso pode melhorar as coisas (...) como a riqueza e o rigor da criação espontânea e da interação humana (...) da interação consciente.”22 Dois anos depois, ao transformar esse artigo em livro, ele introduziu no léxico um importante termo: “computador pessoal”.23

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Não foi um bom presságio para o mundo que as empresas de tecnologia tenham se originado nas comunidades. Esse experimento acabou em confusão – as comunidades se dissolveram, transformando-se em cultos a personalidades em pequenas cidades pautadas por rixas. As grandiosas

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perspectivas de democracia e coletivismo culminaram em autoritarismo e devastadora decepção. Em 1971, Stewart Brand encerrou as atividades do Whole Earth Catalog, após quatro anos de publicação. Para honrar a aposentadoria de sua criação que subverteu o Zeitgeist, ele deu uma “festa de despedida”. Mil devotos do catálogo participaram do espetáculo, mais uma de suas performances. Ele reuniu os amigos hippies no Palácio de Belas-Artes, uma imponente construção típica do Velho Continente, situada junto à marina de São Francisco. Brand circulou pelo evento usando uma batina preta, espécie de anjo da morte antenado. Nesse ponto, mesmo um otimista inabalável como Brand achava difícil afastar os pensamentos sombrios. O casamento dele foi para o espaço. Ideias suicidas não largavam sua mente. Mas a fé na tecnologia permanecia intacta. Brand não se importava tanto com a política e nunca gastou o mesmo tempo ponderando a natureza do capitalismo. Suas preocupações eram muito mais de ordem espiritual. O que ele ainda desejava era a sensação de plenitude – as noções profundas de pertencimento e autenticidade que associava às reservas indígenas e às comunidades. Elas não abrigavam nenhum traço de alienação. Estavam em harmonia com a humanidade. Era o mesmo desejo que ele sentia ao pensar na fotografia da Terra que faltava. Esse pensamento era o perfeito oposto da visão liberal de Ayn Rand; uma sede de cooperação, compartilhamento, e uma autoconsciência do nosso lugar no sistema mais amplo. Brand só conseguia manifestar esse sentimento em sopros de retórica que jamais sobreviveriam a uma análise mais rigorosa, exceto pela força com que isso era botado para fora: “Desde o instante em que passaram a existir dois organismos, a vida tem sido uma questão de coevolução, a vida se tornando cada vez mais rica a partir da vida (...) Podemos perguntar que tipos de dependência preferimos, mas essa é a nossa única escolha.”24 Por mais que fossem pronunciadas com muita eloquência, essas ideias não eram completamente originais. Brand tomou de empréstimo muitos conceitos de terceiros, em especial de Marshall McLuhan, o intelectual canadense que virou ícone pop. Diferente de seus colegas antiquados, McLuhan se envolveu com a cultura conforme ela ia se manifestando nos anos 1960 – não com o trabalho de escritores modernistas ou pintores gestualistas, mas com a televisão, o rádio e o cinema. Era um sujeito ágil e enigmático, figurinha

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fácil nos programas de TV, que curiosamente atraía muita atenção, sem mencionar a participação como ator inexpressivo no filme Noivo neurótico, noiva nervosa, de Woody Allen. Era um tanto difícil bater o martelo sobre o que ele de fato acreditava, pois tinha a tendência de se explicar por meio de paradoxos aparentemente profundos, mas profundamente obscuros. (“Eu nem sempre concordo com tudo o que falo”, admitiu uma vez.) Mas até de suas profecias mais turvas era possível extrair com facilidade formulações ligeiras, dignas de citação. McLuhan alegava que não fazia qualquer julgamento moral sobre o futuro iminente que descrevia, mas suas passagens sobre as novas tecnologias em geral vinham tingidas de euforia. Em seus livros, tinha previsto que, se usadas de forma criteriosa, as novas tecnologias poderiam unir o mundo todo numa rede: “Hoje, mais de um século depois do advento da eletricidade, já estendemos nosso sistema nervoso central num todo global, abolindo o espaço e o tempo no que concerne ao nosso planeta.”25 McLuhan insinuou que essa rede tinha o potencial de envolver o mundo todo, como um curativo mágico, fechando suas feridas sem deixar qualquer cicatriz. A fragmentação da humanidade era uma preocupação compreensível para uma geração que nasceu sob a sombra de uma guerra mundial e vivia sob a ameaça constante de um conflito nuclear. Havia também uma espécie mais particular de fragmentação que atormentava os Estados Unidos no pós-guerra: a sensação de que as atividades burocráticas e os armários de arquivos tinham afastado os trabalhadores de sua criatividade, transformando a todos em autômatos infelizes e isolados. Mas essa praga do isolamento, sugeria McLuhan, não era exatamente implacável. Os poderes de cura da rede estavam expressos na famosa máxima de McLuhan: o meio é a mensagem. Era a tecnologia que importava. Ele botava toda a culpa na invenção de Gutenberg, a imprensa, um meio que ele acreditava dividir o mundo, nos isolando dos outros seres humanos no ato antissocial da leitura. “O alfabeto é uma tecnologia de fragmentação visual e especialização”, lamentava. Produzia um “deserto de informação confidencial”.26 Sua crítica era na verdade um lamento – ele idealizava o mundo anterior à imprensa, a cultura oral, com suas interações face a face. A tecnologia perfeita faria reviver o espírito dessa cultura do passado, mas numa escala planetária,

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transformando o mundo numa grande tribo feliz. Seria uma “aldeia global”, para usar outra frase clichê dele – e o aconchego dessa aldeia neutralizaria o individualismo destrutivo e as demais forças fragmentárias do mundo. Das novas tecnologias, a mais promissora era o computador. É verdade que McLuhan enxergou possíveis aspectos negativos da invenção e da aldeia global que descreveu – boatos poderiam se deslocar muito rápido, e a privacidade talvez não sobrevivesse às novas oportunidades de controle. Ainda assim, suas descrições sobre o computador faziam eco com as de Brand. McLuhan também desejava com ardor a plenitude e outras coisas mais, que descreveu com entusiasmo:

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Os computadores de hoje prometem ser um meio de tradução instantânea de qualquer código ou linguagem para qualquer outro código ou linguagem. Em suma, o computador promete, com a tecnologia, uma condição pentecostal

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de entendimento e unidade universais. O próximo passo lógico seria, em vez

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de traduzir, contornar as linguagens em prol de uma consciência cósmica geral, possivelmente próxima do inconsciente coletivo com o qual sonhava

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Bergson [filósofo francês do século XX, Henri Bergson]. A condição de

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“ausência de gravidade”, que os biólogos afirmam prometer a imortalidade física, pode vir acompanhada da condição de ausência de discurso, capaz

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de conferir a perpetuidade da harmonia e da paz coletivas.27

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Vida eterna... paz eterna... O católico devoto McLuhan tinha se aventurado para além da profecia política, rumo a uma forma mais bíblica.

Desde então, todas as inovações tecnológicas significativas vieram embaladas com a aspiração de McLuhan: o desejo de que as máquinas conduzissem a uma nova era de cooperação. Foi o que J.C.R. Licklider quis dizer quando explicou como sua invenção, a internet, acabaria com o isolamento social: “A vida será mais feliz para o indivíduo on-line.”28 E como Tim Berners-Lee descreveu as possibilidades da world wide web criada por ele: “A esperança na vida vem das interconexões entre todas as pessoas do mundo.”29 O sonho de alinhavar o mundo numa aldeia global foi incorporado à nomenclatura

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da tecnologia moderna – a rede é interconectada, a web é mundial, e a mídia é social. Esse sonho abasteceu uma sucessão de projetos colaborativos ambiciosos, catedrais de conhecimento edificadas sem qualquer intenção de lucrar com a criação: desde as comunidades virtuais dos anos 1990, passando pelo Linux, pela Wikipédia, até a Creative Commons. Tudo isso se pauta na ideia de software de código aberto. No passado, esses conceitos de compartilhamento soavam como gestos idealistas e devaneios de inventores desgrenhados, mas acabaram de tal forma se transformando em regra que foram encampados pelo capitalismo. O plano de negócios das empresas mais bem-sucedidas da história – Google e Facebook – menciona o tempo todo a ideia de conectar o mundo numa grande rede: uma rede na qual os indivíduos trabalhem juntos, sob um espírito altruísta, para compartilhar informações. Há uma teoria do conhecimento enraizada nessa celebração do compartilhamento: a noção de que os indivíduos só conseguem alcançar um conhecimento limitado do mundo quando estão ali diante de suas mesinhas, lendo e pensando sozinhos. Antes do advento das novas tecnologias, a informação era atomizada, assim como o estudioso isolado. Mas hoje a informação pode ser organizada e processada por uma comunidade muito maior – capaz de corrigir erros, acrescentar impressões e rever conclusões. A tecnologia permitiu o surgimento do que H.G. Wells chamou de Cérebro Mundial, ou o que Kevin Kelly, editor da Wired, chamou de mente da colmeia. A premissa que sustenta essa linhagem do pensamento tecnológico é que os seres humanos não são apenas criaturas econômicas autocentradas. Linus Torvalds, o engenheiro que criou o Linux, argumentou: “O dinheiro não é a maior motivação de todas. Já ficou bem claro que as pessoas dão o melhor de si no trabalho quando se veem guiadas por uma paixão.”30 Em alguns momentos, era difícil discernir essa visão coletivista da natureza humana. A figura representativa dos primórdios da computação era o hacker – um individualista radical, que torcia o nariz para grandes instituições. Os hackers eram retratados como indivíduos solitários, colados à cadeira ou à tela; eram gênios que só dependiam de sua perspicácia autodidata. (Uma conhecida metáfora representava os primeiros habitantes do ciberespaço como pioneiros diante de uma fronteira eletrônica, abrindo caminho por

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conta própria, cheios de coragem.) Mas, no fim das contas, os hackers não foram muito bem compreendidos. Só queriam pertencer, subordinar seu brilhantismo particular a um todo ainda mais incandescente, queriam se perder na poesia do comunitário.

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No sonho, porém, também havia tensão. Contradições que não se dissolveriam com facilidade. Por um lado, os tecnólogos desejavam criar um mundo que fosse livre do controle das megainstituições. A antiga aversão por empresas nos moldes da IBM, por exemplo, nunca desapareceu. Por outro lado, as redes que eles criaram foram projetadas para serem globais e incomparáveis. Só pode haver uma aldeia global. Essas estruturas traziam as maiores oportunidades de negócios de todos os tempos – e apenas a ingenuidade da fé poderia cegar a todos sobre a possibilidade de que caíssem nas mãos das grandes empresas. No fim das contas, o desdém dos tecnólogos pela autoridade era somente um ponto de vista, gratificante em termos emocionais, sim, mas que não representava a essência da coisa. O mais importante era a questão da plenitude. É por isso que a história da computação segue um padrão tão previsível. A cada inovação revolucionária, a promessa de livrar a tecnologia das garras dos monopolistas, de criar uma rede extremamente democrática, a ponto de transformar a natureza humana. Por algum motivo, e em qualquer instância que seja, a humanidade continua sendo a mesma. Em vez de promover uma profunda redistribuição de poder, as novas redes são capturadas pelos novos monopólios, sempre mais poderosos e sofisticados do que os que vieram antes. O computador pessoal acabou sob o domínio de uma empresa inibidora de inovação (Microsoft). O acesso à internet logo exigiu que fossem pagas quantias mensais significativas para empresas de telecomunicação que fatiaram o mapa em zonas de supremacia quase inquestionável (Comcast, Verizon, Time Warner). Ao mesmo tempo, apenas um site (Google) despontou como o portal para o conhecimento; outro (Amazon), como ponto de partida para todo o comércio. E embora possamos falar em redes sociais no plural, a verdade é que apenas uma delas (Facebook) abarca cerca de dois bilhões de indivíduos.

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Sempre houve uma estranha e inconfessa convergência entre o pensamento dos sonhadores tecnológicos e dos gananciosos monopolistas industriais da Gilded Age, a Era de Ouro. Ambos gostam de se imaginar escapando aos rigores do capitalismo competitivo; ambos rasgam elogios sobre as virtudes da “cooperação”, que invocam como questão de necessidade econômica. Existem determinados sistemas – como o telefone e o telégrafo, exemplos clássicos – que jamais teriam florescido num mercado competitivo. Os custos de montar uma rede abrangente são exorbitantes. Imagine quanto não se gastou para instalar todas aquelas linhas cruzando o continente. A ineficiência de redes concorrentes é imensa. Portanto, devemos relevar o tamanho das empresas que fornecem esses serviços essenciais e dar-lhes espaço para cooperar com o governo e com outras grandes empresas, de modo que possam eliminar o desperdício e fazer escolhas estratégicas imparciais. É o que afirmava o visionário Theodore Vail, que criou a AT&T nas primeiras décadas do século passado: “Competição significa briga, guerra industrial; significa disputa, e muitas vezes implica tirar vantagem dos concorrentes, ou recorrer a qualquer meio que a consciência deles permita.”31 Até os barões das ferrovias, as criaturas mais calculistas que o capitalismo já produziu, exaltavam as virtudes da colaboração altruísta. O próprio J.P. Morgan acreditava piamente nessa cantilena, como bem escreveu seu biógrafo Ron Chernow: “O financista mais famoso dos Estados Unidos era um inimigo declarado dos livres mercados.”32 Esses argumentos são cada vez mais familiares no Vale do Silício. É a premissa por trás de uma prateleira inteira de livros sobre estratégia (exemplo: Modern Monopolies [Monopólios modernos], de Alex Moazed e Nicholas L. Johnson). O mais importante profeta do novo monopólio é um investidor chamado Peter Thiel. Não se trata de um investidor qualquer. Seus casos de sucesso incluem PayPal, Facebook, Palantir e SpaceX, uma capacidade sem igual para farejar vencedores antes de virarem moda, o que sugere um profundo entendimento de tecnologia e sua trajetória. Thiel muitas vezes pode se mostrar um pensador desenfreadamente idiossincrático, o que nos últimos anos manchou bastante sua reputação, não sem motivo. Nas eleições de 2016, ele apoiou Donald Trump. Também financiou, sem alarde, o processo do ex-lutador Hulk Hogan contra um site de fofocas. Todas essas atividades extracurriculares perniciosas desviam a atenção

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daquela que é sua maior força: no campo em que atua, ele é um pensador mais criterioso que os demais. Embora encha a boca para falar de muitos clichês liberais do seu círculo social, tem talento para explicar as hipóteses subjacentes. Thiel abomina os valores da competição darwinista. Inclusive despreza tanto a concorrência que a trata como “relíquia histórica”. Num pequeno livro chamado De zero a um, ele escreveu: “Mais do que tudo, a concorrência é uma ideologia – a ideologia – que permeia nossa sociedade e distorce nosso pensamento. Pregamos a concorrência, internalizamos sua necessidade e aplicamos seus mandamentos. Como resultado, ficamos prisioneiros dela – ainda que, por mais que concorramos, menos realmente ganhamos.”33 Ao idolatrar a concorrência, não levamos em conta os valores dos monopólios. Como não precisam se preocupar com os concorrentes, os monopólios conseguem se dedicar a questões importantes – conseguem tratar bem seus funcionários e conseguem se concentrar em resolver problemas relevantes e gerar inovações revolucionárias. São capazes de “transcender a árdua luta diária pela sobrevivência”.34 Está bem claro que a maioria dos colegas dele no Vale do Silício concordam que o monopólio é a ordem natural das coisas, a alternativa mais conveniente. Por isso, as startups não sonham mais em desbancar o Google ou o Facebook, mas entram em atividade com a aspiração máxima de serem compradas pelas gigantes. (Em suas expedições de compra ao longo dos anos, o Google já comprou duzentas empresas.) Na indústria da tecnologia, a concorrência corporativa acirrada é vista como uma impossibilidade, contrária à própria essência da rede. Na maior parte dos casos, as gigantes da tecnologia respeitam uma entente cordiale entre elas. A Apple, por exemplo, insistia que os concorrentes nunca cortejassem os funcionários de seu quadro. A cordialidade pode ser comprovada por meio dos balanços financeiros: o Google paga um bilhão de dólares todo ano para que a Apple continue usando sua ferramenta de busca. Enquanto era CEO do Google, Eric Schmidt também participava do conselho da Apple. Assim como as potências europeias do século XIX, cada uma dessas grandes empresas evita invadir a esfera de influência das demais, competindo apenas nas margens do império. Marc Andreessen, uma das figuras mais veneradas do Vale do Silício, é taxativo quanto a essa tendência de monopólio: “Os grandes mercados de tecnologia tendem a ser

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do tipo que o vencedor leva tudo. Há essa suposição – em mercados normais pode existir a Pepsi e a Coca. Nos mercados de tecnologia, no longo prazo, a tendência é que haja apenas uma, ou então uma empresa número um.”35 O cerne da questão é: no Vale do Silício, tudo é único; sempre foi assim.

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de tudo e de todos. No verão de 2015, o Google se rebatizou de Alphabet, o que pode ser visto como uma declaração quanto ao lugar da empresa na história. A ferramenta de busca Google continuava existindo, mas a empresa tinha se tornado muito mais do que isso. É um bazar, um dos pilares da infraestrutura da internet, uma empresa de software, uma empresa de hardware, uma operadora de telefonia, uma agência de publicidade, uma empresa de eletrodomésticos, de ciências da vida, de aprendizagem automática, uma empresa automobilística, uma empresa de mídias sociais e uma rede de TV. Uma de suas subsidiárias afirma combater o extremismo político; outra lança balões para levar a internet a pontos longínquos do planeta. O alfabeto foi uma das maiores inovações da humanidade, o tipo de façanha perene que a empresa pretende continuar fomentando. A elite tecnológica costuma se gabar muito, e grande parte do mundo tende a olhar para seu vasto inventário de projetos ambiciosos como vaidade. Se Jeff Bezos quer lançar foguetes no espaço, então Elon Musk fará algo ainda mais impressionante: vai colonizar Marte. Mas o Vale do Silício não se destaca pelos egos hegemônicos de seus líderes, em especial no que diz respeito a finanças e mídia. O que difere as gigantes da tecnologia é que elas se lançam nesses projetos com uma convicção quase teológica – o que torna seus esforços ao mesmo tempo louváveis e perigosos. No epicentro do protuberante portfólio do Google, um projeto sobressai: a empresa quer criar máquinas que repliquem o cérebro humano, para depois ir além. Essa é a essência das tentativas de montar um banco de dados completo

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do conhecimento global e dos esforços para treinar algoritmos para encontrar padrões, ensiná-los a discernir imagens e entender línguas. Ao assumir essa imponente missão, o Google se mostra a postos para transformar a vida no planeta, exatamente como se vangloriou que faria. As leis do homem são um mero incômodo, que podem apenas retardar um pouco esse trabalho. Instituições e tradições não passam de sucata a ser descartada. A empresa avança a passos largos rumo à Nova Jerusalém, sem se preocupar muito com o que vai deixando pisoteado pelo caminho.

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O legado herdado por Larry Page foi a fé nessa missão. Seu pai era um sujeito diferente, a começar pela aparência. Numas férias de infância no Tennessee, contraiu pólio, o que acabou atrofiando uma de suas pernas. Seu andar era irregular; às vezes, tinha dificuldade de respirar.1 Quando se sentia bem, o sr. Carl Page era um apanhado de paixões fantásticas. Saía correndo pelos corredores do departamento de ciência da computação, convocando os colegas a sua sala, para anunciar uma de suas grandes ideias. Às vezes, parecia um oráculo enfeitiçado. Na década de 1980, anos antes de Tim Berners-Lee inventar a web, ele já prenunciava o potencial dos hyperlinks. Os alunos da Universidade Estadual de Michigan consideravam as paixões de Carl inspiradoras, mas também um pouco assustadoras. A crença nas habilidades deles às vezes ultrapassava a realidade de suas competências. Houve um momento, por exemplo, em que ele passou a alguns alunos a tarefa de escrever um código que permitisse a um robô se plugar em tomadas elétricas. Carl Page concentrou seus esforços pedagógicos em Larry e no filho mais velho, Carl Jr. Queria que os dois crescessem no futuro, um lugar onde sua mente tendia a se situar. Sob sua supervisão, e segundo os padrões tecnológicos da época, o rancho da família na região de Pine Crest, em East Lansing, foi transformado em paraíso eletrônico. Quando Larry tinha seis anos, o pai levou para casa um computador Exidy Sorcerer – queridinho cult dos programadores europeus –, uma máquina tão exótica que Carl Jr. teve de criar seu sistema operacional do zero.2 “Devo ter sido a primeira criança do ensino fundamental a entregar um trabalho feito num

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processador de texto”, relataria Larry mais tarde.3 A casa era cheia de edições da revista Popular Science, com suas capas em tecnicolor fazendo as vezes de pôsteres de cinema, com imagens de submarinos robotizados e aviões furtivos. O louvor da revista aos pequenos reparos traduzia perfeitamente o espírito daquele lar, e toda aquela inventividade acabava sendo transmitida ao filho mais novo. Larry certa vez recolheu ferramentas elétricas de todos os cantos da casa, para desmontá-las e examinar suas entranhas. Embora essa atividade não contasse com a permissão oficial dos pais – e por mais que não pusesse as coisas de volta no lugar –, Larry nunca era repreendido. Se o que estava em jogo era a busca por conhecimentos tecnológicos, as transgressões não eram malvistas. Quando ele saiu de casa e foi para a universidade, em 1991, já tinha acumulado destreza suficiente para converter Legos numa impressora a jato de tinta.4 Se no final da década de 1970 os computadores eram raros no Meio-Oeste, cientistas da computação eram verdadeiros alienígenas. Os pais de Page tinham partido para o Oeste, deixando seu lar espiritual de Ann Arbor, onde haviam se formado, mas não foram para longe o suficiente. Carl aceitou um emprego na Michigan, que não era exatamente Stanford. Ele ajudaria a construir um posto avançado de computação numa periferia do mundo digital.5 East Lansing também não tinha o mesmo frescor que o centro da península de São Francisco. Carl não se encaixava muito nos padrões dos vizinhos, típicos americanos de subúrbio. Em termos políticos, tendia mais para a esquerda. Herdara isso do pai, operário na linha de montagem da fábrica da Chevrolet em Flint, que durante a longa greve de 1936-1937 levou de casa um porrete de ferro, artesanal, para afugentar uns capangas. Carl até conseguiu um gostinho das atrações californianas em sua nova vizinhança: ele levava Larry aos shows do Grateful Dead.6 Ser pouco convencional não era apenas um estilo particular; era uma necessidade imposta pela carreira que ele tinha escolhido. Carl abraçara uma especialidade nova, audaciosa, um ramo da ciência da computação dedicado a construir máquinas capazes de simular o raciocínio humano. Esse subgênero da ficção científica que virou disciplina acadêmica atende pelo nome de inteligência artificial (IA). Era fácil entender por que essa área atraía alguém como Carl, ávido por aventuras intelectuais. O campo da inteligência artificial exigia perspicácia

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computacional e raciocínio algorítmico avançado, claro. Porém, como a ideia era replicar o funcionamento do cérebro humano, era preciso entender o modelo a fundo. Em outras palavras, a inteligência artificial precisava da psicologia. Os engenheiros liam Freud, assim como os críticos literários – e o reinterpretavam para suas necessidades específicas. Debatiam Chomsky, a respeito da natureza da mente humana. Os pioneiros da IA formularam uma teoria própria, inebriante, sobre a mente humana. Acreditavam que o cérebro era, em si, um computador – um dispositivo controlado por alguns programas. Essa metáfora trazia uma descrição bem clara da tarefa deles: estavam construindo uma máquina mecânica para imitar uma máquina orgânica. Mas a mente humana é muito misteriosa. Portanto, era uma tarefa complicada e controversa criar algoritmos que replicassem o funcionamento interno de uma massa tão inescrutável de tecidos. Carl Page tinha uma ideia sobre como proceder. Ele sugeriu que fossem adotados os procedimentos do Robert’s Rules of Order [Regras de ordem de Robert] – um manual do fim do século XIX para conduzir reuniões de forma eficiente – como base para criar IA. Naquela época, não havia muitos cientistas trabalhando com inteligência artificial. Eles acabaram se tornando uma subcultura pequena, porém fascinante. Foi por esse viés que a socióloga Sherry Turkle os estudou em seu livro clássico, The Second Self [O segundo eu]. Como ela ocupava um posto elevado no MIT, tinha uma visão bem livre sobre seus temas. O retrato que ela compôs era tão perfeito, que os envolvidos talvez não tenham conseguido se enxergar nele. A inteligência artificial, concluiu ela, não era apenas uma meta elevada de engenharia; era uma ideologia. Ela comparou a IA – com sua teoria sobre a mente programável – com a psicanálise e o marxismo: uma “nova forma de entender quase tudo”.

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Em cada caso, um conceito principal reestrutura o conhecimento em larga escala: para os freudianos, o inconsciente; para os marxistas, a relação com os meios de produção (...) Para o pesquisador de IA, a ideia de programa tem um valor transcendente: ele é tido como a chave, aquilo que faltava até então para desvendar os mistérios do intelecto.7

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Carl Page era racionalista, ainda que alguns relatos biográficos sobre a infância de Larry afirmem que seu pai o instruíra com certa religiosidade.8 Em torno da mesa de jantar, Carl compartilhava as boas-novas sobre IA que chegavam dos pujantes laboratórios situados nas costas Leste e Oeste do país. Não se tratava apenas de jogar conversa fora. Era uma maneira de ensinar. O currículo do menino incluía viagens de campo para participar de vários debates sobre IA. Quando os organizadores da Conferência Internacional sobre Inteligência Artificial impediram Larry, com dezesseis anos na época, de entrar no salão de convenções, Carl abandonou a expressão alegre e repreendeu os obstrucionistas.9 Os ensinamentos de Carl Page surtiram efeito: a maior prova é que seu filho fundou a empresa de IA mais bem-sucedida e ambiciosa da história. Embora não pensemos no Google dessa forma, a IA é justamente a fonte do seu poderio. O Google usa algoritmos treinados para pensar como nós, humanos. Para realizar uma tarefa tão assombrosa, a empresa precisa entender as intenções por trás das nossas pesquisas: quando digitamos “rock”, por exemplo, estamos pensando no gênero musical ou no lutador que depois virou astro de cinema? A IA do Google é tão competente que consegue trazer os resultados das nossas buscas antes mesmo de terminarmos de digitar. Contudo, sendo herdeiro da grande tradição da IA, Larry Page considera esse feito um passo insignificante no caminho para uma missão muito mais profunda – missão tanto no sentido científico quanto no religioso da palavra. Ele montou a empresa para que ela alcançasse o que se conhece por “IA plena”: a criação de máquinas com capacidade para igualar ou, quem sabe, ultrapassar a inteligência humana.10 Alguns anos depois de fundar o Google, ele deu uma palestra em Stanford, lugar onde ele e Sergey Brin tinham parido o mecanismo de busca. Ele disse o seguinte a um grupo de estudantes: “Bom, eu diria que a missão que apresentei para vocês vai nos tomar um pouco mais de tempo, porque se trata de IA plena. Quer dizer que essa inteligência artificial... Se vocês resolverem o problema, significa que conseguem responder a qualquer pergunta, ou seja, conseguem fazer basicamente qualquer coisa.” A ousadia daquela afirmação fez a plateia rir, com certo desconforto. Mas o desconforto só estimulou Page a reforçar ainda mais esse conceito. “Se resolvermos o problema que eu esbocei, saberemos fazer tudo.”

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Em momentos de pura franqueza, Page e Brin admitem que cogitam ir além disso – não se trataria apenas de criar um cérebro artificial, mas de fundi-lo ao cérebro humano. Como Brin certa vez contou ao jornalista Steven Levy: “Se a gente tivesse todas as informações do mundo acopladas diretamente em nosso cérebro, ou um cérebro artificial mais inteligente que o nosso, sem dúvida estaríamos melhor.”11 Ou como acrescentou em outra ocasião: “No futuro, talvez a gente possa acoplar uma pequena versão do Google, que bastaria plugar ao nosso cérebro.”12 Pode ser que o Google alcance essas metas ambiciosas, como pode ser que não alcance, mas é assim que a empresa enxerga seu papel. Quando Page descreve o Google reconfigurando o futuro da humanidade, não é apenas uma descrição dos serviços oferecidos; o que a empresa pretende redirecionar é o curso da evolução, no sentido darwinista da palavra. Não é demais afirmar que eles estão tentando criar uma espécie superior, uma espécie que transcenda nossa forma natural.

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Page e Brin estão criando um cérebro imune às parcialidades humanas, que não se deixa influenciar por desejos irracionais nem por instruções sensoriais dúbias que emanam do corpo. Ao perseguir essa meta, buscam completar uma missão que teve início muito antes da invenção do computador. O Google tenta resolver um problema que surgiu pela primeira vez muitos séculos atrás, em meio à ardente batalha entre a Igreja, entrincheirada, e a ciência emergente. É um projeto que teve origem com a própria filosofia moderna e a figura de René Descartes. É possível perceber um certo rastro da visão de Larry Page numa pequena embarcação que atravessava o mar do Norte nos primeiros anos do século XVII. Debaixo do convés, Descartes dormia. Ele fazia várias viagens como essa. Ao longo da vida, nunca sossegou de verdade. Era arrogante e briguento, mas ao mesmo tempo muito reservado e deliberadamente enigmático. Mesmo com alguns séculos de distância, não conseguimos saber o que alimentava seus conturbados anos de viagens, todo o tempo que passou se deslocando de uma morada para outra, feito um fugitivo.

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Entre seus muitos destinos, a Holanda protestante foi onde se sentiu mais em casa, algo talvez inesperado considerando sua profunda formação jesuíta. Foi lá onde permaneceu mais tempo e preparou o terreno para sua filosofia. Alguns historiadores também afirmam, com base em evidências, que teria sido o lugar onde ele perdeu a virgindade, com uma serviçal de Amsterdã. Descartes registrou os detalhes desse episódio com distanciamento científico, numa página em branco de um livro, como se estivesse acumulando os resultados de um experimento. A filha desse encontro recebeu o nome de Francine, e ele fazia planos de que ela estudaria na França, mas a vida da menina foi muito breve: ela morreu de escarlatina, antes mesmo de completar seis anos. Descartes gostava de dormir; revelações profundas apareciam em seus sonhos. Ele passava manhãs inteiras deitado na cama, mas isso não aconteceu nessa viagem específica. O capitão do navio vinha observando o filósofo com certa desconfiança. Estava ansioso para descobrir o que havia dentro do baú que repousava ao lado de sua cama. No meio da noite, invadiu a cabine e abriu o baú, para bisbilhotar. Lá dentro, encontrou uma máquina assustadoramente realista – um robô feito de molas, um autômato. Segundo alguns relatos, a máquina guardava muitas semelhanças com Francine, e era assim que Descartes a chamava, inclusive. Aterrorizado com a descoberta, o capitão arrastou a criação de Descartes pelo convés, arremessando-a ao mar.13 Essa história já foi muito contada e recontada, sobretudo pelos detratores de Descartes. Com certeza é falsa, uma calúnia fabricada. Como um de seus biógrafos ressaltou, a lenda carrega insinuações sexuais perturbadoras. Mas os inimigos dele tramaram essa narrativa por um motivo convincente: Descartes era de fato fascinado por autômatos, ainda que nem sempre mantivesse um ao lado da cama. Na época em que viveu, a era das máquinas estava chegando à Europa, uma pequena amostra da grande revolução científica. Nos jardins dos palácios reais, inventores apresentavam suas complexas engenhocas: estátuas com mecanismos hidráulicos, estatuetas que tocavam música e personagens movidos a corda, que giravam e acenavam. Descartes sonhava em construir um dispositivo próprio à base de molas e ímãs. E o que era mais importante: os autômatos desempenhariam um papel central em seu esforço para solucionar as guerras que assolavam a Europa – guerras entre religiões, além de guerras entre a ciência e a religião.

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O turbulento século XVII, devastado por guerras, afetou Descartes na própria pele. Na Guerra dos Trinta Anos – uma batalha intramuros sobre o futuro religioso da atual Alemanha, que envolveu as maiores potências europeias –, ele serviu tanto no exército católico quanto no protestante. Naqueles anos, havia muita instabilidade e truculência na região. Apesar da relativa tolerância encontrada na Holanda, Descartes morria de medo de virar alvo da Inquisição. Para escapar ao destino de Galileu, ele evitou por muitos anos que seus manuscritos fossem publicados. Não se sabe ao certo até que ponto Descartes permaneceu um católico devoto ou, no mínimo, alguém de fé. (Poderiam argumentar que as provas dele sobre a existência de Deus são tão forçadas que devem ter sido concebidas de propósito para ressaltar o absurdo de seu projeto.) Independente do fervor com que se agarrava à fé, seus estudos e andanças o prepararam à perfeição para negociar um cessar-fogo no conflito que opunha ciência e religião. No centro de sua teoria estavam os autômatos. O corpo dos seres vivos, inclusive dos seres humanos, não passava de uma máquina. A forma humana – “uma coisa extensa, não pensante”14 – se movia irracionalmente, em resposta a estímulos, como se composta de molas e alavancas. Nosso corpo podia ser descrito por meio de leis científicas, da mesma forma que o movimento dos planetas. Se Descartes tivesse parado por aí, sua teoria teria enfurecido a Igreja. A doutrina católica insistia que os seres humanos eram a forma mais elevada de vida, acima de todos os outros animais. Mas Descartes não parou. Ele afirmou que a carcaça humana contém um dispositivo divino que eleva a humanidade para além do reino animal. Dentro do nosso hardware mortal, a “prisão do corpo”, como ele chamava, reside o software da mente.15 Em sua teoria, a mente era o lugar onde se encontravam tanto o intelecto quanto a alma imortal, a capacidade de raciocínio e também as virtudes mais divinas do homem. Era uma forma maravilhosa de buscar a quadratura do círculo. Descartes, de certa forma, conseguiu usar o ceticismo a serviço da ortodoxia; ele preservou fragmentos cruciais da doutrina da Igreja – a alma imortal, para começar –, ao mesmo tempo em que abria espaço intelectual para que as ciências físicas continuassem a marcha rumo ao conhecimento. No entanto, ao resolver um problema, Descartes criou muitos outros, questões que têm atormentado filósofos e teólogos desde então. “Eu sou

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uma coisa pensante que pode existir sem um corpo”, escreveu ele.16 Se isso era verdade, por que não libertar a mente da prisão do corpo? Descartes fez o melhor que pôde. Concebeu um método filosófico que soava um pouco como tratamento de autoajuda. Ele começou a escrever regras para se chegar a um estado que chamava de “puro entendimento” ou “pura intelecção”. Limpava a mente das urgências corporais para abrir caminho às ideias com as quais Deus pretendera ocupar essa mesma mente. Assim instruía a si mesmo: “Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos os sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais.”17 Não era apenas uma manobra para libertar sua mente, mas um método que pretendia elevar a humanidade. O historiador David Noble assim descreve o projeto de Descartes: “Ele acreditava que seu método filosófico poderia ajudar a humanidade a superar as limitações epistemológicas de seu estado decaído e retomar o controle de alguns de seus poderes divinos inatos.”18 A obsessão de Descartes se transformou na obsessão da filosofia. Ao longo dos séculos, matemáticos e especialistas em lógica – Gottfried Leibniz, George Boole, Alfred North Whitehead – buscaram criar um sistema que pudesse expressar o pensamento em sua forma mais pura (e, portanto, mais divina). Porém, por mais inteligentes que fossem esses sistemas, a prisão do corpo continuava. A filosofia não foi capaz de emancipar a mente, mas a tecnologia talvez seja. O Google se mostra empenhado em triunfar onde Descartes falhou, com a ressalva de ter descartado todas as questões filosóficas que perturbavam a mente dele. Se Descartes enfatizava o ceticismo e a dúvida, o Google, por sua vez, nunca é afligido por adivinhações. A empresa transformou a libertação do cérebro num desafio de engenharia – um exercício que não raro falha em fazer perguntas básicas sobre as implicações humanas do projeto. Trata-se de uma deficiência moral que aflige o Google e persegue a ciência da computação desde os primórdios.

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Alan Turing foi um ateu solitário. Gostava de ser um outsider. Quando sua mãe o despachou, aos treze anos, para enfrentar o calvário dos banhos frios e da cama dura no colégio interno inglês, ele foi sozinho de bicicleta até o

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campus, percorrendo quase cem quilômetros em dois dias. Era tímido e estranho. Para combater a rinite alérgica que aparecia todo mês de junho, usava uma máscara antigás. Sua mãe escreveu: “A reclusão de um monastério medieval teria lhe caído muito bem.”19 Para exacerbar ainda mais a sensação inata de isolamento, ele era gay numa sociedade que criminalizava e perseguia os homossexuais. Descartes enaltecera o tipo de isolamento a que Turing parecia estar fadado. E, de fato, seus momentos de tranquilidade produziam epifanias. Nas palavras do filósofo inglês Stuart Hampshire, Turing possuía “o dom do pensamento solitário”.20 Era capaz de uma intensa concentração, que impedia os axiomas e as ortodoxias de seus colegas de se infiltrarem em seus pensamentos. Num passeio de verão em 1935, Turing se deitou entre algumas macieiras e concebeu algo que chamou de Máquina de Computação Lógica. Sua visão, registrada em papel, se tornou o esboço da revolução digital. A engenharia é tida como o paradigma da racionalidade – uma profissão dedicada a sistemas e planejamento, inimiga da espontaneidade e do instinto. Turing com certeza gostava de desempenhar o papel do cientista rabugento, deleitando-se ao zombar de todos que se mostravam preocupados e apreensivos com as implicações dos novos inventos. “Um dia, as senhoras levarão seus computadores para passear no parque e falarão umas para as outras, ‘Meu computadorzinho disse uma coisa tão engraçada hoje cedo!’”, gracejava ele.21 Essa atitude tinha um quê de ironia. Em seus ensaios mais influentes, Turing não estava apenas divulgando evidências – ou empregando com cautela o método indutivo. Uma vez transposta sua inteligência provocadora e seu virtuosismo lógico, era possível ver que ele estava pensando em termos espirituais. Os matemáticos e engenheiros podem ter negado a existência de Deus, mas se puseram no papel celestial de dar vida a uma pilha de material inorgânico. E isso os transformou. Turing acreditava que o computador não era apenas uma máquina; era também uma criança, com capacidade de aprender. Às vezes, descrevia sua invenção como se fosse um estudante de escola pública da Inglaterra, fazendo progressos graças apenas a uma dose saudável de punição e recompensas ocasionais. Ainda assim, ele nunca duvidou do potencial de êxito: “Podemos esperar que as máquinas acabem competindo com o homem em todos os

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campos puramente intelectuais.”22 Ele escreveu essas palavras em 1950, quando os computadores eram um tanto ineficazes, uns caixotes enormes que faziam algumas operações matemáticas. Naquele momento, havia pouca evidência de que essas máquinas algum dia conseguiriam ter as habilidades do cérebro humano. Apesar disso, Turing tinha fé. Ele bolou um teste para verificar a inteligência do computador: alguém mandava perguntas por escrito para um ser humano e para uma máquina na sala ao lado. Ao receber duas séries de respostas, o interrogador tinha de adivinhar quais respostas vinham do ser humano. Turing previu que dali a cinquenta anos a máquina conseguiria enganar de forma rotineira o autor das perguntas.

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Essa previsão estabeleceu os termos da era do computador. Desde então, os engenheiros vêm tentando, sem sucesso, construir máquinas capazes de passar no teste de Turing. Para muitos dos que buscam inventar IA, o trabalho não passa de um amontoado de operações matemáticas, de um desafio intelectual empolgante. Mas para uma outra parcela significativa de profissionais trata-se de uma busca teológica. Eles se veem no centro de um projeto transformador, que culminará no alvorecer de uma nova era. O sumo sacerdote dessa religião chama-se Ray Kurzweil, um sujeito muito bom de retórica e hábil comunicador. Sua visão extasiante sobre o futuro nasceu em meio à maior catástrofe do passado. A penumbra do Holocausto paira sobre ele. Seus pais, judeus de Viena, fugiram na véspera do Anschluss.23 O acúmulo de tantos anos difíceis deixou muitas marcas em seu pai, maestro clássico e intelectual. Ele morreu de infarto, aos 58 anos, uma perda que parece nunca abandonar a mente de Kurzweil. Como acontece a muitos filhos de pais que passaram por situações dramáticas, ele contrabalançou a crueldade da história com um grande e obstinado otimismo. Desde muito cedo, foi tomado pelo espírito da invenção. Aos dezessete anos, apareceu no programa de TV de Steve Allen, I’ve Got a Secret.24 Naquela ocasião, tocou piano com maestria; na sequência, Allen pediu que os jurados adivinhassem o segredo que o menino guardava. Ao ser questionado pelos jurados do programa, Kurzweil finalmente revelou que a música tocada por ele fora composta por um computador. A plateia

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ficou estupefata com a revelação, e mais ainda pelo fato de um adolescente magricela do Queens ter inventado aquela máquina revelada ali, no set de gravação. Orgulhoso, Kurzweil conduziu Allen em torno do trambolho barulhento, um aglomerado de fios, luzes piscantes e relés, obra de um gênio. Kurzweil era o engenheiro perfeito, e tinha confiança de que poderia solucionar qualquer enigma que aparecesse à sua frente. Recém-saído do MIT, declarou a um amigo que queria “inventar coisas para que os cegos conseguissem enxergar, os surdos conseguissem ouvir e os deficientes conseguissem andar”.25 Aos 27 anos, criou uma máquina que lia para os cegos. Uma simples descrição desse invento não dá conta de captar tamanha ousadia. Os cegos colocavam o livro num escâner, que por sua vez transmitia o texto para um computador, o qual por fim articulava as palavras – antes da máquina de Kurzweil não havia escâner de mesa. Essa máquina fez dele uma espécie de herói para os cegos, cujas vidas conseguiu transformar. Stevie Wonder, para citar apenas um, se ajoelhou na direção de Kurzweil, e eles logo começaram uma amizade. Em prol do novo amigo, Kurzweil criou um teclado eletrônico, que supostamente não deixava nada a dever aos grandes pianos das maiores salas de concerto do mundo. Apesar de todo o otimismo, Kurzweil não conseguia se livrar dos seus medos – ou, melhor, não conseguia se livrar do maior medo de todos. Com frequência, seus pensamentos se voltavam para a morte, “um sentimento profundamente triste, de solidão, que eu não consigo suportar”.26 Mas, segundo ele, esse também era um problema que a engenharia poderia solucionar. Para prolongar a própria vida, ele começou a tomar comprimidos de modo frenético – vitaminas, suplementos e enzimas. Todos os dias, enfia goela abaixo cerca de 150 dessas cápsulas. (Além disso, recebe uma injeção regularmente, acreditando que o ajudará a evitar o inevitável.) Num documentário hagiográfico sobre ele, há um momento em que está circulando por um coquetel, com uma taça de vinho tinto na mão. Ingere comprimidos como se fossem biscoitos, enquanto joga conversa fora com estranhos. Mais tarde descobrimos que isso é uma espécie de marketing indireto, pois ele montou uma empresa que produz muitos dos comprimidos e elixires que consome, a Ray and Terry’s Longevity Products.

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Contudo, para Kurzweil os medicamentos são apenas uma atividade paralela. Seu negócio principal é a profecia. Ele acredita fervorosamente na IA, assunto que estudou no MIT com os pioneiros da área, e anseia pelo paraíso na terra que ela criará. O paraíso tem um nome: chama-se singularidade. Kurzweil pegou o termo emprestado do matemático Vernor Vinge, também escritor de ficção científica, que por sua vez o afanou dos astrofísicos. A singularidade diz respeito a uma ruptura no continuum tempo-espaço – ela descreve o momento em que o finito se torna infinito. Segundo Kurzweil, a singularidade é quando a inteligência artificial se torna todo-poderosa, quando os computadores são capazes de projetar e criar outros computadores. Essa superinteligência criará, com certeza, uma superinteligência ainda mais poderosa do que ela mesma – e assim por diante, pelas gerações pós-humanas afora. Nesse ponto, tudo pode acontecer – “uma IA e nanotecnologia fortes são capazes de criar qualquer produto, qualquer situação, qualquer ambiente que possamos imaginar”.27 Cientista que é, Kurzweil acredita em precisão. Quando faz previsões, não está tateando no escuro; ele extrapola dados. O fato é que acumulou em seu computador tudo o que sabemos sobre a história da tecnologia humana, e pôs os números para rodar. Concluiu que o progresso tecnológico não cresce de forma linear; trata-se de uma explosão exponencial infinita. “Cada época evolutiva progrediu mais rápido, avançando a partir dos produtos do estágio anterior”, escreve ele.28 Kurzweil chamou essa observação de Lei dos Retornos Acelerados. De acordo com sua narrativa, a humanidade está prestes a pisar fundo no acelerador tecnológico – estamos no limiar de saltos gigantescos em termos de genética, nanotecnologia e robótica. Esses avanços nos permitirão, finalmente, mudar nosso corpo e nosso cérebro, tão “frágeis” e “limitados”, o que ele chama de nossa “versão 1.0 do corpo biológico”.29 Haverá uma fusão completa do homem com a máquina; nossa existência se tornará virtual e nosso cérebro receberá atualizações. Graças à leitura que ele faz da ciência, consegue afirmar que o alvorecer da singularidade se dará no ano 2045. A humanidade concretizará, por fim, os sonhos de Descartes de libertar a mente da prisão do corpo. É o que afirma Kurzweil: “Seremos software, não hardware”, capazes de habitar qualquer hardware que preferirmos.30 Não haverá qualquer diferença entre nós e os robôs. “Afinal de contas, qual

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a diferença entre um ser humano que atualizou o corpo e o cérebro usando nanotecnologia nova e tecnologias computacionais e um robô que ganhou uma inteligência e atratividade que superam as de seus criadores humanos?”31 Daí em diante o mundo mudará muito depressa: os computadores farão todas as tarefas humanas básicas, o que permitirá vidas de puro prazer; a dor desaparecerá, bem como a morte; a tecnologia resolverá o problema vital da escassez, que sempre assombrou a vida no planeta. Até a vida entre quatro paredes será melhor: “O sexo virtual proporcionará sensações mais intensas e prazerosas que o sexo convencional.”32 Os seres humanos podem até fingir que têm algum poder para alterar esse rumo, mas estarão apenas se enganando. Peter Diamandis, um dos pensadores mais respeitados do Vale do Silício, afirma sem meias palavras: “Qualquer um que venha a resistir a esse progresso estará resistindo à evolução. E acabará sumindo do mapa.”33 Kurzweil tem consciência das implicações metafísicas de sua teoria. Deu a um de seus livros o título A era das máquinas espirituais. Suas descrições da vida pós-singularidade são extremamente entusiásticas. “Nossa civilização se expandirá para fora, transformando toda matéria inútil e energia que encontrarmos em matéria e energia sublimemente inteligentes, transcendentes. Então, num certo sentido, podemos dizer que a singularidade acabará infundindo o universo de espírito.”34 Kurzweil mantém, por exemplo, um depósito em que armazena os papéis de seu pai, incluindo até mesmo sua contabilidade financeira, para o dia em que conseguirá ressuscitá-lo. Quando o antropólogo da religião Robert Geraci se debruçou sobre Kurzweil e outros adeptos da singularidade, percebeu que suas crenças pareciam ecoar justamente os textos apocalípticos cristãos. “A IA apocalíptica é a herdeira legítima dessas promessas religiosas, e não uma versão bastarda delas”, concluiu ele. “Na IA apocalíptica, pesquisa tecnológica e categorias religiosas se juntam numa unidade muito bem articulada.”35 A singularidade está longe de ser a religião oficial do Vale do Silício. Em algumas vizinhanças da terra da tecnologia, Kurzweil é alvo de desdém. Certa vez, John McCarthy, padrinho da IA, disse que queria viver até os 102 anos, só para poder rir de Kurzweil quando a singularidade não chegasse no momento previsto por ele.36 Ainda assim, a lista de devotos de Kurzweil inclui membros da elite tecnológica. Bill Gates, por exemplo, descreve-o

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assim: “A pessoa que melhor sabe prever o futuro da inteligência artificial.”37 John Markoff, do New York Times, cronista mais importante da área de tecnologia, diz que Kurzweil “representa uma comunidade com muitos dos melhores e mais inteligentes do Vale do Silício”, ranking que inclui as mentes mais brilhantes do Google.38

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Larry Page gosta de imaginar que nunca escapou da academia. O Google, afinal de contas, começou com uma tese de doutorado – e a inspiração para o mecanismo de busca veio de seus conhecimentos sobre os artigos acadêmicos. Filho de professor universitário, ele sabia muito bem como os pesquisadores julgam os próprios trabalhos. Eles observam o número de vezes que o artigo é citado em outros artigos. Esse momento “eureca” aconteceu quando ele percebeu que a web reproduzia o comportamento dos professores. Os links equivaliam às citações – ambos eram, à sua maneira, uma espécie de recomendação. A utilidade de uma página da web poderia ser medida pelo número de links que apontavam para ela em outras páginas. Quando ele transformou essa sacada em algoritmo, fez um trocadilho com o próprio sobrenome: PageRank. Page valoriza muito a atividade de pesquisa, na qual o Google investe somas vultosas – em 2017, foram quase 12,5 bilhões de dólares em P&D e em projetos que nem tão cedo serão monetizados.39 É como se a empresa tivesse construído uma porta de entrada giratória, pela qual costumam passar professores famosos, que participam de suas mais audaciosas empreitadas. Se há tensão entre o lucro e a busca da pureza científica, Page sabe como fazer alarde e escolher o caminho da pureza. Evidente que essa é uma das fontes do sucesso do Google ao longo dos anos. Enquanto outros mecanismos de busca vendiam colocações mais elevadas em seus rankings, o Google nunca optou por um caminho descaradamente transacional. A empresa podia alegar, de forma plausível, que os resultados de suas buscas tinham bases científicas. Esse idealismo é um pouco para inglês ver, mas é principalmente algo que tem origem na essência da empresa. “O Google não é uma empresa convencional, nem pretendemos ser”, declararam Page e Brin numa carta enviada à Comissão de Títulos e Valores Mobiliários dos Estados Unidos,

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anexada à oferta pública inicial da empresa, em 2004.40 Essa declaração podia ser lida como retórica vazia, mas causou certo mal-estar em Wall Street. Observadores atentos da empresa entenderam que o Google abominava os típicos estudantes de MBA. A empresa resistiu, com teimosia, em criar um departamento de marketing. Page se orgulhava de contratar engenheiros para vagas com foco em gestão, que tradicionalmente iam para pessoas capacitadas em finanças, por exemplo. Mesmo quando o Google já empregava dezenas de milhares de pessoas, Larry Page examinava de perto o dossiê de cada potencial contratação, para garantir que a empresa não desviasse muito das raízes fincadas na engenharia. A melhor expressão do idealismo da empresa era seu lema “Não seja mau”, constantemente ridicularizado. Esse lema se torna mais fácil de entender, e uma definição de valores mais potente, ao sabermos que a ideia do Google era que a frase servisse apenas para “consumo interno”. A empresa queria fazer os funcionários se concentrarem em sua missão beneficente e ambiciosa – um lembrete em post-it para o eu corporativo, reforçando ao Google que não se comportasse de forma tão egoísta e tacanha quanto a Microsoft, o rei da tecnologia que a empresa pretendia destronar. O aforismo só se difundiu quando, sem querer, o CEO da empresa, Eric Schmidt, fez menção a ele numa entrevista concedida à Wired.41 Ao dar com a língua nos dentes, ele frustrou muitos dentro da empresa, que sabiam que o lema viraria um alvo fácil de piadas. (O Google acabou aposentando o mote.) Quando Larry Page faz seus pronunciamentos, eles costumam ser marcados pela profunda seriedade. E os tópicos que ele repete são uma boa medida de suas verdadeiras intenções megalomaníacas. Ele tem talento para frases ao mesmo tempo modestas e extremamente pretensiosas: “Devemos estar a 1% do que é possível. Apesar das mudanças aceleradas, ainda nos movemos devagar em relação às oportunidades que temos.”42 Para entender as intenções de Page, é preciso examinar as variedades existentes de inteligência artificial. Grosso modo, esse campo pode ser dividido em dois. Existe a escola dos incrementalistas, que valorizam tudo que já foi realizado até hoje – conquistas como o algoritmo PageRank ou o software que permite aos caixas eletrônicos lerem os rabiscos escritos nos cheques. Essa escola tem pouca esperança – ou nenhuma – de que um dia

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os computadores cheguem perto de adquirir consciência humana. Do outro lado estão os revolucionários, que gravitam na direção de Kurzweil e da visão da singularidade. Planejam criar computadores com “inteligência artificial geral” ou “IA forte”. Durante a maior parte de sua história, o Google concentrou seus esforços em melhorias incrementais. Nessa fase anterior, a empresa era comandada por Eric Schmidt, um gestor mais velho, experiente, que os investidores da empresa obrigaram Page e Brin a aceitar como um supervisor “adulto”. Não significa que Schmidt fosse fraco. Nesses anos, testemunhamos os planos do Google de fazer upload de todos os livros do mundo e a criação de produtos que hoje são corriqueiros, como o Gmail, o Google Docs e o Google Maps. Contudo, essas ambições nunca foram suficientes para satisfazer Larry Page. Em 2011, ele retomou o posto de CEO que tinha na época do nascimento do Google. Redirecionou a empresa rumo a objetivos ligados à ideia de singularidade. Ao longo desses anos, criou laços de amizade com Kurzweil e trabalhou com ele em projetos variados. Depois de retomar o antigo posto, Page contratou Kurzweil, ungindo-o com o cargo de diretor de engenharia. Atribuiu a ele a missão de ensinar os computadores a ler – o tipo de avanço exponencial capaz de acelerar a chegada da superinteligência que Kurzweil tanto celebra. “É a culminância de literalmente cinquenta anos da minha vida dedicados à inteligência artificial”, afirmou ele ao assinar com o Google.43 Quando se dirige a seus funcionários, Page sempre volta à metáfora do voo à Lua. A empresa tem um programa nos moldes do projeto Apollo, para alcançar a inteligência artificial geral: um projeto chamado Google Brain, um nome com implicações assustadoras. (“A política do Google em muitas coisas é de chegar até a linha do assustador e não cruzá-la”, provocou Eric Schmidt.)44 O Google liderou o ressurgimento de um conceito explorado pela primeira vez nos anos 1960, que até bem pouco tempo não tivera sucesso: as redes neurais, que envolvem computação baseada no funcionamento do cérebro humano. Os algoritmos replicam o processamento de informações do cérebro e seus métodos de aprendizagem. O Google contratou o professor inglês Geoff Hinton, que fez os maiores progressos nessa direção. Além disso, adquiriu a empresa DeepMind, com sede em Londres, a qual criou redes neurais que ensinavam a si mesmas a jogar videogames, sem instrução

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humana. Como a DeepMind acha temerário que uma única empresa possua algoritmos tão poderosos, insistiu que o Google nunca permita que esse trabalho seja militarizado ou vendido para serviços de inteligência. Até que ponto vai a crença do Google na singularidade? Não são todos lá dentro que concordam com a visão de Kurzweil. Um dos engenheiros mais talentosos da empresa, Peter Norvig, levantou argumentos contra a Lei dos Retornos Acelerados. E o próprio Larry Page nunca fez comentários públicos sobre Kurzweil. Ainda assim existe um padrão inegável. Em 2008, o Google ajudou a financiar a criação da Universidade da Singularidade, com sede num campus da Nasa no Vale do Silício – uma especialização de dez semanas, fundada em parceria com Kurzweil, para promover suas ideias.45 O Google já doou alguns milhões de dólares para que estudantes consigam cursar a universidade gratuitamente.46 “Se eu fosse estudante, é ali onde eu gostaria de estar”, afirmou Page.47 A empresa já sucumbiu a uma série de obsessões ligadas à singularidade. Investiu pesado, por exemplo, na Calico, uma startup que pretende resolver o problema da morte, em vez de atacar questões comparativamente triviais como o câncer. “Eu achava incrível pensar que se resolvêssemos o problema do câncer, estaríamos acrescentando cerca de três anos à expectativa média de vida das pessoas”, declarou Page numa entrevista para a Time. “A gente pensa na cura do câncer como uma descoberta extraordinária, capaz de transformar completamente o mundo. Mas quando damos um passo atrás e avaliamos o quadro, vemos que existem, sim, muitos e muitos casos trágicos de câncer, e é muito, muito triste, mas, no todo, não é um avanço tão grande quanto se imaginava.”48 É provável que o Google só alcance alguns poucos de seus objetivos – e o “voo à Lua” se prove na verdade um voo desgovernado. Contudo, esses projetos revelam uma visão de mundo, um conjunto extremamente coerente de crenças e valores. A singularidade não é apenas uma visão sobre o futuro. Ela implica também uma visão sobre o presente. De acordo com a teoria panglossiana de Larry Page sobre a vida no planeta Terra, estamos chegando bem perto de um mundo sem escassez e repleto de maravilhas – as promessas são de tal ordem que seríamos loucos, e até insensíveis, de não apressar a chegada desse novo dia. Alguns estão cegos em relação às possibilidades, seja por

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ludismo, seja por estreiteza imaginativa. Mas esta é a natureza das revoluções científicas: são impulsionadas por rebeldes e por aqueles que violam as regras. Essa intensa missão é pautada em arrogância e uma imprudência um tanto chocante. Na busca pelo futuro, o Google se vê muitas vezes considerando e desenvolvendo tecnologias que transformarão de forma considerável algumas práticas humanas de longa data. A abordagem da empresa é marchar adiante com rapidez e entusiasmo, segura da própria bondade. Quando decidiu digitalizar todos os livros existentes, o Google considerou a lei do copyright um incômodo trivial, que nem sequer merecia um minuto de hesitação. Evidente que a empresa deve ter tido uma vaga ideia de como o projeto seria percebido. Por isso, se dedicou à missão discretamente, para evitar o escrutínio. “Havia um elemento de mistério naquele procedimento, certo gosto amargo de clandestinidade. Quase como sair de uma boate, nos anos 1950, para fumar maconha”, conta Steven Levy.49 Os caminhões do Google estacionavam junto às bibliotecas e depois partiam em silêncio com caixas de livros para serem escaneados depressa e logo devolvidos. “Se não existe uma razão para falar sobre o assunto, por que falar?”, argumentava Larry Page, ao se ver confrontado com os apelos para anunciar publicamente a existência do programa.50 O principal advogado da empresa sobre o assunto descreveu sem rodeios a atitude de seus colegas, de passar por cima de tudo: “Os líderes do Google não se preocupam muito com precedentes ou leis.”51 Nesse caso, o precedente seriam as proteções seculares à propriedade intelectual, e a consequência seria a potencial devastação do mercado editorial e de todos os escritores que dele dependiam. Em outras palavras, o Google tramara um roubo intelectual de proporções históricas. O que teria motivado a empresa a assumir essa empreitada? Por um lado, a resposta é clara: para manter a supremacia, seu mecanismo de busca precisa ser definitivo. Havia um estoque gigantesco de conhecimento humano esperando para ser armazenado e pesquisado. Por outro lado, existem motivações menos óbvias. Quando o historiador da tecnologia George Dyson visitou o Googleplex para dar uma palestra, um engenheiro admitiu informalmente: “Não estamos escaneando todos esses livros para serem lidos por seres humanos. A ideia é que eles sejam lidos por IA.”52 Se isso for verdade, fica mais fácil entender o sigilo do Google. A maior coleção mundial de conhecimento

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não passaria de mero instrumento para treinar máquinas, um sacrifício em prol da singularidade. O Google é uma empresa sem fronteiras claras; ou melhor: com fronteiras em contínua expansão. Por isso é tão perturbador ouvir Larry Page denunciar a concorrência como conceito supérfluo e ouvi-lo celebrar a cooperação como caminho a seguir. “Não fazemos progresso sendo negativos, e as coisas mais importantes não são soma zero”, afirma ele.53 “Não tem como ser estimulante sair para trabalhar se o melhor que você consegue fazer é derrotar umas outras empresas que fazem, grosso modo, a mesma coisa.”54 É mais perturbador ainda ouvi-lo considerar que o Google um dia empregará mais de um milhão de pessoas, chegando a um tamanho vinte vezes maior que o de hoje.55 Não se trata apenas de se vangloriar da soberania sobre uma indústria em que não enfrenta concorrentes de verdade; é uma questão de se vangloriar da soberania sobre algo muito mais vasto, uma declaração das intenções do Google de impor seus valores e convicções teológicas ao mundo.

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O VALE DO SILÍCIO SUPEROU a contracultura, mas não tanto. Todos os valores

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que professa são os valores dos anos 1960. As grandes empresas de tecnologia se apresentam como plataformas para libertação pessoal, exatamente como Stewart Brand pregava. Nas mídias sociais, todo mundo tem direito a falar o que pensa, a satisfazer seu potencial intelectual e democrático, além de expressar a própria individualidade. Enquanto a televisão promovia uma certa passividade, que deixava as pessoas inertes, o Facebook estimula a participação e o empoderamento. Permite que os usuários leiam sobre os mais variados assuntos, pensem por si mesmos e formem opiniões. Não podemos desprezar por completo essa retórica. Em algumas partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos, o Facebook encoraja os cidadãos, possibilitando que se organizem em oposição ao poder estabelecido. Mas tampouco devemos encarar como plenamente sincera a concepção da empresa sobre si mesma. Trata-se de um sistema administrado com toda a minúcia, de hierarquia muito clara, e não uma robusta praça pública. Ele imita alguns padrões de conversação, mas só na superfície. A verdade é que o Facebook é um emaranhado de regras e procedimentos para selecionar informações, e essas regras são desenvolvidas pela empresa, para benefício final da empresa. Ela está o tempo todo vigiando os usuários, sempre auditando o que estão fazendo e usando-os como ratos de laboratório em seus experimentos comportamentais. Embora dê a impressão de que oferece escolhas, o Facebook, de forma paternalista, empurra os usuários na direção que considera melhor para eles, que não por acaso costuma ser a direção que os torna completamente

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dependentes. Esse é o engodo mais óbvio na meteórica carreira do cérebro que está por trás disso tudo.

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Mark Zuckerberg é um bom garoto, mas o que queria mesmo era ser mau, ou pelo menos um pouco rebelde. Os heróis de sua adolescência eram os autênticos hackers. Sejamos precisos sobre esse termo. Seus ídolos não eram ladrões de dados do mal nem ciberterroristas. No linguajar da cultura hacker, esses criminosos hostis são conhecidos como crackers. Zuckerberg nunca pôs os crackers num pedestal. Ainda assim, seus heróis hackers não respeitavam a autoridade. Eram virtuosos em termos técnicos, caipiras nerds extremamente talentosos, sem as amarras do pensamento convencional. Nos anos 1960 e 1970, nos laboratórios do MIT, infringiam qualquer regra que interferisse nos primeiros passos da computação, o que incluía novidades como os primeiros videogames e processadores de texto. No tempo livre, eles pregavam as maiores peças, que acabaram chamando atenção para sua inteligência – puseram, por exemplo, uma vaca viva no telhado de um dormitório em Cambridge; fora isso, lançaram um balão meteorológico, que milagrosamente saiu de dentro da relva com o brasão do MIT no meio de uma partida de futebol entre Harvard e Yale. Os arqui-inimigos dos hackers eram os burocratas que comandavam as universidades, as empresas e os governos. Os burocratas falavam sobre como deixar o mundo mais eficiente, da mesma forma que os hackers. Mas não passavam de tarefeiros tacanhos, que guardavam a sete chaves as informações que possuíam, mesmo quando mereciam ser compartilhadas.1 Assim que os hackers nitidamente descobriram melhores formas de fazer as coisas – um dispositivo que permitia ligações grátis de longa distância, um código capaz de melhorar um sistema operacional2 –, os burocratas puseram-se no caminho, mostrando-se resistentes e inflexíveis. Os hackers passaram a sentir um prazer estético e cômico de serem mais espertos que os engravatados. Quando Zuckerberg chegou a Harvard, no outono de 2002, o auge dos hackers tinha ficado no passado. Naquele momento, eles já estavam mais velhos, uns servindo de objeto para histórias lendárias enquanto outros

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estavam metidos em brigas obscuras contra as autoridades. Mas Zuckerberg também queria hackear, e com a mesma indiferença dos velhos tempos em relação às normas. No ensino médio – usando o nom de hack Zuck Fader –, ele descobriu a senha que impedia intrusos de fraudar o código da AOL e acrescentou suas próprias melhorias ao programa de mensagens instantâneas da empresa.3 No segundo ano da faculdade, criou um site chamado Facemash, com o nobre propósito de determinar os estudantes mais atraentes do campus. Zuckerberg pedia aos usuários que comparassem as imagens de duas pessoas e então indicassem a que consideravam ter a melhor aparência. O vencedor de cada par desses seguia para a fase seguinte de seu campeonato hormonal. Para arrematar rapidamente a criação do site, ele precisava de imagens, e para isso roubou as fotos dos servidores de diferentes alojamentos de Harvard. “Uma coisa é certa: eu sou um babaca por ter criado esse site”, escreveu ele num blog, ao dar os retoques finais em sua obra.4 Sua breve incursão pelo mundo da rebeldia terminou com um pedido de desculpas perante um comitê disciplinar em Harvard, bem como para grupos de mulheres do campus, além de tê-lo feito refletir sobre estratégias para redimir a reputação manchada. Nos anos seguintes, ele mostrou que sua inclinação natural nada tinha de provocadora. A falta de confiança nas autoridades era tal que ele procurou Don Graham, o então respeitado presidente da empresa Washington Post, para servir como seu mentor. Depois de criar o Facebook, já acompanhou vários gigantes do mundo corporativo americano, para estudar seus estilos gerenciais bem de perto. Embora não tenha perdido de todo o jeitão meio esquisito, conseguiu superar um pouco a introversão, a ponto de aparecer em jantares sofisticados, entrevistas com Charlie Rose e na capa da Vanity Fair. Contudo, o fascínio juvenil pelos hackers nunca morreu; ou melhor: ele o levou adiante, até chegar a sua encarnação renovada e mais madura. Quando finalmente passou a ter um campus corporativo próprio, conseguiu um endereço narcisista para abrigar a empresa: 1 Hacker Way [trocadilho para “um jeito hacker”]. Projetou uma praça com as letras h-a-c-k incrustadas no concreto. No centro do seu complexo de escritórios, criou um espaço para reuniões a céu aberto chamado Hacker Square. Trata-se, é claro, do local onde seus funcionários se encontram para “hackatonas” que varam a madrugada.

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É como ele mesmo declarou para um grupo de aspirantes a empreendedores: “Essa é a nossa filosofia, e queremos criar uma cultura hacker.”5 Muitas empresas também se apropriaram de forma parecida da cultura hacker – os hackers são os “pioneiros da rebeldia” –, mas nenhuma foi tão longe quanto o Facebook. E é evidente que isso envolve alguns riscos. O verbo “hackear” tem uma conotação negativa, com potencial hostil, pelo menos para acionistas que almejam uma liderança sensata e cumpridora das leis. Mas quando Zuckerberg começou a exaltar as virtudes dessa atividade, já havia despido o verbo de grande parte de seu significado original, traduzindo-o para o campo da filosofia empresarial, sem aludir a qualquer traço de rebeldia. Em uma entrevista, afirmou que os hackers “não passavam de um grupo de cientistas da computação que estavam tentando desenvolver protótipos com rapidez e ver o que era possível. É isso que eu estimulo nossos engenheiros a fazer aqui”.6 Hackear é ser um bom profissional, um cidadão responsável do mundo Facebook – um microcosmo de como a companhia tomou a linguagem do individualismo radical e a empregou a serviço da conformidade. Zuckerberg alegava ter transformado esse espírito hacker em um lema motivacional: “Mova-se rápido e quebre paradigmas.”7 De fato, o Facebook fez isso com maestria. A verdade é que a empresa se moveu mais rápido do que Zuckerberg jamais poderia ter sonhado. Sua criação surgiu um pouco por acaso: como todos sabem, a empresa nasceu num dormitório universitário, uma brincadeira que ele bolou num momento de insônia regado a Red Bull. Conforme a criação foi crescendo, precisava justificar sua nova escala aos investidores, aos usuários e ao mundo. Precisava crescer depressa. Segundo Dustin Moskovitz, cofundador da empresa junto com Zuckerberg, em Harvard, “era muito importante que a nossa marca se livrasse da imagem de frivolidade que tinha, em especial no Vale do Silício”.8 Ao longo da breve vida, a empresa já se definiu de várias formas diferentes. Já se declarou uma ferramenta, um serviço e uma plataforma. Já falou de franqueza e conectividade. Em todas essas tentativas de se definir, ela conseguiu deixar claras suas intenções. Embora por vezes o Facebook fale sobre transparência dos governos e das empresas, o que realmente quer promover é a transparência dos indivíduos – ou o que chamou, em vários momentos, de “transparência radical” ou

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“transparência máxima”.9 A teoria sustenta que ao compartilharmos nossos detalhes íntimos, desinfetamos a confusão moral da nossa vida. Mesmo sem a intenção de que nossos segredos se tornem conhecimento público, a exposição deles é capaz de melhorar a sociedade. Com a iminente ameaça de que nossas informações constrangedoras sejam divulgadas, acabamos nos comportando melhor. E talvez a ubiquidade de fotos incriminadoras e revelações danosas venha a servir de estímulo para que sejamos mais tolerantes com os pecados alheios. Além disso, viver a vida com verdade é uma virtude. “Provavelmente está chegando ao fim essa ideia de ter uma imagem para os amigos ou colegas de trabalho e outra, diferente, para as demais pessoas”, afirmou Zuckerberg. “Ter duas identidades para si mesmo é um exemplo de falta de integridade.”10 A questão é que o Facebook tem uma ideia muito forte e paternalista sobre o que é melhor para as pessoas, e está tentando transportá-las para esse lugar. “É um grande desafio conduzir as pessoas a esse ponto de maior franqueza. Mas acho que conseguiremos”, disse Zuckerberg.11 E ele tem muitas razões para acreditar nisso. Com o tamanho que atingiu, o Facebook acumulou poderes gigantescos. Os poderes são de tal ordem, que Zuckerberg nem se preocupa em negar a realidade: “Em muitos aspectos, o Facebook se assemelha mais a um governo do que a uma empresa tradicional. Temos uma ampla comunidade de pessoas, e mais do que outras empresas de tecnologia, estamos de fato definindo certas políticas.”12

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Mesmo sem saber, Zuckerberg é herdeiro de uma longa tradição política. Nos últimos duzentos anos, o Ocidente não conseguiu se esquivar de uma fantasia persistente, uma sequência de sonho em que nos livramos dos políticos do tipo parasita, substituindo-os por engenheiros – no lugar da régua da lei, a régua de cálculo. Os franceses foram os primeiros a considerar essa ideia, na fase sangrenta e agitada que se sucedeu a sua revolução. Uma panelinha com os filósofos locais mais influentes (como Henri de Saint-Simon e Auguste Comte, por exemplo) estava genuinamente dividida sobre os rumos do país. Eles detestavam todos os antigos baluartes do poder parasitário – os senhores feudais, os padres e os guerreiros –, mas também temiam o caos das massas.

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Para chegar a um meio-termo, propuseram uma forma de tecnocracia: quem governaria, com imparcialidade beneficente, seriam engenheiros e técnicos selecionados. Os engenheiros acabariam com o antigo sistema de poder, ao mesmo tempo em que governariam sob o espírito da ciência. Conseguiriam impor racionalidade e ordem. Desde então esse sonho vem fascinando inúmeros intelectuais, sobretudo americanos. O grande sociólogo Thorstein Veblen era obcecado pela ideia de levar engenheiros ao poder, e em 1921 escreveu um livro para defender sua posição. Durante certo tempo, sua visão se tornou realidade. Na esteira da Primeira Guerra Mundial, a elite americana estava perplexa com os impulsos irracionais desencadeados pelo conflito – xenofobia, racismo, ímpeto de linchamento e de rebelião. Além disso, se a realidade econômica havia ficado tão complicada, como os políticos dariam conta de administrá-la? Americanos das mais diversas tendências começaram a ansiar pela influência redentora do engenheiro mais famoso daquela época: Herbert Hoover. Durante a guerra, ele tinha organizado um sistema que conseguiu alimentar a Europa faminta, apesar da aparente impossibilidade da tarefa. Em 1920, Franklin Roosevelt – que acabaria varrendo-o da política – organizou um movimento para levar Hoover à presidência. No fim das contas, o experimento Hoover não conseguiu concretizar as fantasias otimistas sobre o Engenheiro Redentor. Contudo, uma versão muito diferente desse sonho acabou se materializando na forma dos CEOs das grandes empresas de tecnologia. Os Estados Unidos ainda não são comandados por engenheiros, mas eles se tornaram a força dominante na vida americana, a camada mais elevada e influente da elite do país. Marc Andreessen cunhou um famoso aforismo: “Os softwares estão engolindo o mundo.”13 Nessa fórmula há uma certa imprecisão; na verdade, são os criadores dos softwares que estão engolindo o mundo. Há outra maneira de descrever essa progressão histórica. A automação se dá por ondas. Durante a Revolução Industrial, a maquinaria substituiu os trabalhadores braçais. De início, as máquinas precisavam de operadores humanos. Com o passar do tempo, começaram a funcionar quase sem intervenção humana. Por alguns séculos, os engenheiros automatizaram o trabalho físico; o que a nova elite de engenharia fez foi automatizar o

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pensamento. Aperfeiçoando tecnologias que assumem processos intelectuais, o cérebro se torna redundante. Ou como Marissa Mayer certa vez argumentou: “É preciso tentar fazer as palavras serem menos humanas, mais uma parte da máquina.”14 De fato, passamos a terceirizar nosso trabalho intelectual para empresas que sugerem o que devemos aprender, os temas que devemos considerar e os itens que precisamos comprar. Essas empresas justificam as incursões em nossa vida com os mesmos argumentos que Saint-Simon e Comte utilizaram lá atrás: estão nos proporcionando eficiência; estão impondo ordem à vida humana. Ninguém melhor que Zuckerberg para verbalizar a fé moderna no poder da engenharia em transformar a sociedade. Eis o que ele disse a um grupo de desenvolvedores de software: “Como vocês sabem, eu sou engenheiro, e acho que uma parte fundamental da filosofia da engenharia é essa esperança e essa crença de que podemos pegar qualquer sistema que existe por aí e deixá-lo mil vezes melhor do que é hoje. Qualquer coisa, seja um hardware, seja um software, uma empresa, um ecossistema de desenvolvedores, podemos pegar o que for e transformá-lo em algo mil vezes melhor.”15 O mundo ficará melhor, contanto que a lógica de Zuckerberg consiga prevalecer – e ela conseguirá.

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O poder do Facebook emana precisamente dos algoritmos. Essa ideia se repete em quase todas as histórias sobre as gigantes da tecnologia, ainda que permaneça no mínimo confusa para os usuários desses sites. Assim que o algoritmo foi inventado, já era possível enxergar seu poder, seu potencial revolucionário. Ele foi desenvolvido para automatizar o pensamento, tirar decisões difíceis das mãos dos seres humanos e resolver debates conflituosos. Para entender a essência do algoritmo – e sua pretensão utópica –, é necessário viajar até seu local de origem, o cérebro de um dos maiores gênios da história, Gottfried Leibniz. Cinquenta anos mais novo que Descartes, Leibniz cresceu no mesmo mundo pautado por conflitos religiosos. Sua Alemanha natal, pátria de Lutero, tinha se tornado um dos mais terríveis abatedouros da história, um território em disputa no centro da Guerra dos Trinta Anos. Embora o campo de batalha tenha contribuído para o número de baixas, o momento posterior

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à guerra também foi trágico. Os principados alemães foram assolados por disenteria, tifo e pragas. A fome e o colapso demográfico se seguiram ao conflito, e o número de mortos chegou a cerca de quatro milhões. Os estados mais devastados chegaram a perder mais da metade da população. Leibniz nasceu no momento em que a Europa negociava a Paz de Vestfália, terminando a matança, então era inevitável que ele exercitasse sua capacidade intelectual prodigiosa no sentido de reconciliar protestantes e católicos, criando modelos para unificar a humanidade. Prodigiosa talvez seja uma palavra inadequada para descrever a aptidão mental de Leibniz. Ele produzia modelos mais ou menos na mesma proporção em que contraía o diafragma. Seus arquivos, que ainda não foram publicados na íntegra, contêm cerca de duzentas mil páginas escritas, repletas de criações espetaculares. Leibniz inventou o cálculo – na verdade, não tinha se dado conta que Newton descobriu o assunto antes, mas a notação que usamos até hoje é a de Leibniz. Ele produziu tratados definitivos sobre metafísica e teologia, projetou relógios e moinhos de vento, além de defender a saúde universal e o desenvolvimento de submarinos. Como diplomata em Paris, pressionou Luís XIV a invadir o Egito, uma manobra indireta para distrair o poderoso vizinho da Alemanha, lançando-o em uma aventura além-mar e, portanto, reduzindo as chances de os exércitos marcharem na direção leste. Denis Diderot, a quem não faltava competência, se queixou: “Quando alguém compara os pequenos talentos que possui com aqueles de um Leibniz, a vontade que dá é de jogar fora os próprios livros e ir morrer em paz nas profundezas de algum canto escuro.”16 De todos os modelos de Leibniz, o queridinho mesmo foi um novo léxico que ele chamou de característica universal, fruto também do seu desejo de paz. Ao longo da história, pensadores imaginativos criaram linguagens a partir do zero, com a esperança de que suas invenções suavizassem a comunicação entre os povos, promovendo os pré-requisitos para a harmonia global. Leibniz também criou sua linguagem por esse motivo, mas nutria esperanças mais elevadas: argumentava que um novo conjunto de símbolos e expressões levariam a ciência e a filosofia a novas verdades, a uma nova era da razão, a uma apreciação mais profunda da elegância e harmonia do universo, ao divino. Ele imaginou um alfabeto do pensamento humano. A primeira vez que teve essa ideia, ainda era um jovem estudante, e ela serviu de base para sua

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tese de doutorado em Altdorf. Ao longo dos anos, foi elaborando um plano detalhado para concretizar sua imaginação. Um grupo de acadêmicos criaria uma enciclopédia com os conceitos fundamentais e incontestavelmente verdadeiros do mundo, da física, da filosofia, da geometria e tudo o mais. Ele chamou esses conceitos principais de “primitivos”, o que incluía coisas como a terra, a cor vermelha e Deus. Cada um deles receberia um valor numérico, permitindo que fossem combinados para criar novos conceitos ou expressar os que já existiam e eram complexos. Esses valores numéricos formariam a base para um novo cálculo de pensamento, chamado por ele de calculus ratiocinator. Leibniz ilustrou seu modelo com um exemplo. O que é o ser humano? Um animal racional, claro. E podemos escrever isso da seguinte forma: animal × racional = homem

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Mas Leibniz traduziu essa expressão em uma sentença mais matemática ainda. “Animal”, para ele, poderia ser representado pelo número dois; “racional”, pelo número três. Portanto: 2×3=6

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O pensamento foi traduzido em matemática, o que possibilitou um novo método infalível para adjudicar questões ligadas à verdade. Leibniz fez, por exemplo, a seguinte pergunta: todos os homens são macacos? Ora, ele sabia o número atribuído aos macacos, o dez. Se o dez não pode ser dividido por seis e o seis não pode ser dividido por dez, então fica claro: não há elementos do macaco no homem, como também não há elementos do homem no macaco.17 Este era o cerne da sua linguagem: o conhecimento, qualquer conhecimento, poderia em última instância derivar da computação. Seria um processo desprovido de esforço, cogitatio caeca ou pensamento cego. Os seres humanos não seriam mais necessários nem para conceber novas ideias. Uma máquina daria conta disso, ao combinar e dividir conceitos. Leibniz chegou a construir um protótipo dessa máquina, uma compilação intrincada e fabulosa de bronze e aço polido, engrenagens e botões. Deu a ele o nome de calculador escalonado

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e gastou uma verdadeira fortuna, do próprio bolso, para construí-lo. Quando a manivela girava numa direção, a máquina multiplicava, e na outra direção, dividia. Leibniz projetou uma interface tão meticulosa para o usuário que Steve Jobs teria se ajoelhado diante dela. O lado triste é que, sempre que ele testava a máquina diante de uma plateia – como fez na Real Sociedade de Londres, em 1673 –, ela falhava.18 Mas o resiliente Leibniz perdoava a si mesmo por essas demonstrações humilhantes. A importância da característica universal exigia que ele seguisse em frente. “Quando isso for concluído, se mesmo assim surgirem novas controvérsias, não deveria haver mais motivo para dois filósofos brigarem, o mesmo valendo para duas calculadoras.”19 Disputas intelectuais e morais seriam resolvidas com as partes discordantes declarando: “Vamos ao cálculo!” Não haveria mais necessidade de guerras, que dirá de controvérsias teológicas, porque a verdade seria alçada à terra firme da matemática. Leibniz foi um profeta da era digital, embora suas ideias significativas tenham aguardado muitos séculos na sala de espera. Ele propôs um sistema numérico que usava apenas os números zero e um, justamente o mesmo sistema binário que é a base da computação. Leibniz também explicou como a automação dos empregos burocráticos aumentaria a produtividade.20 Mas sua ideia mais importante foi a do pensamento mecânico, a automação do raciocínio, o que torna a internet algo tão milagroso; o outro lado da moeda é que o poder das empresas de tecnologia vira uma ameaça em potencial.

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L Os procedimentos que possibilitam o raciocínio mecânico ganharam um nome: foram chamados de algoritmos. A essência dos algoritmos não tem nada de complicado.21 Os livros de referência os comparam a receitas – uma série de passos precisos, que podem ser seguidos sem demandar muito esforço mental. São diferentes das equações, que têm um único resultado correto. Os algoritmos apenas captam o processo de resolução de um problema, mas não dizem nada a respeito de onde aqueles passos irão levar. Essas receitas são a pedra angular dos softwares. Os programadores não podem simplesmente ordenar que os computadores procurem na internet, por exemplo. Precisam dar aos computadores uma série de instruções específicas para concluir as tarefas. Essas instruções precisam transformar a caótica

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atividade humana de buscar informação em um processo ordenado que possa ser traduzido num código. Primeiro faça isso, depois faça aquilo. O processo de tradução – do conceito ao procedimento e então ao código – é inerentemente reducionista. Processos complexos precisam ser subdivididos em uma série de escolhas binárias. Não existe uma equação capaz de sugerir uma roupa, mas seria fácil escrever um algoritmo para isso: ele funcionaria por meio de uma série de perguntas do tipo “isso ou aquilo” (manhã ou noite, inverno ou verão, sol ou chuva), com cada escolha conduzindo à escolha seguinte. Ao fazer uma pausa em seu passeio pelos campos de Cambridge, em 1935, exausto, a primeira coisa que veio à mente de Alan Turing foi o pensamento mecânico, e ele se pôs a sonhar com uma nova calculadora utópica. Nas primeiras décadas da história da computação, não se ouvia falar muito em “algoritmo”. Mas nos anos 1960, conforme os departamentos de ciência da computação começaram a surgir nos campi, o termo foi ganhando prestígio. O modismo era resultado de certa ânsia por status. Os programadores, em especial na academia, queriam demonstrar que não eram simples técnicos de informática. Começaram a descrever o próprio trabalho como algorítmico, em parte porque isso os atrelava a um dos maiores matemáticos de todos os tempos: o polímata persa Muhammad ibn Mūsā al-Khwārizmi, ou, como ficou conhecido em latim, Algoritmi. No século XII, as traduções de al-Khwārizmi apresentaram os numerais arábicos ao Ocidente; seus tratados foram pioneiros no campo da álgebra e da trigonometria. Ao descrever o algoritmo como elemento fundamental da atividade de programação, os cientistas da computação estavam se associando a uma história grandiosa. Foi uma hábil demonstração de como usar um nome em benefício próprio: vejam, não somos arrivistas, estamos trabalhando com abstrações e teorias, igualzinho aos matemáticos! Havia um certo malabarismo nesse autorretrato. O algoritmo pode ser a essência da ciência da computação, mas não é exatamente um conceito científico. O algoritmo é um sistema, assim como o sistema de esgoto ou uma cadeia militar de comando. É preciso know-how, cálculo e criatividade para que um sistema funcione de maneira adequada. Mas alguns sistemas, assim como alguns exércitos, são muito mais confiáveis que outros. Um sistema é um artefato humano, e não um truísmo matemático. As origens do algoritmo

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são sem dúvida humanas, mas a falibilidade humana não é uma característica que se costuma associar a ele. Quando os algoritmos negam uma solicitação de crédito ou determinam o preço do voo de uma companhia aérea, parecem impessoais e inflexíveis. Supostamente, o algoritmo é desprovido de viés, intuição, emoção ou misericórdia. Afinal de contas, são chamados de “motores de busca” – uma alusão aos pistões, engrenagens e à indústria do século XX, com a maquinaria livre das impressões digitais humanas. No Vale do Silício, os entusiastas dos algoritmos deixaram a modéstia de lado ao descrever o potencial revolucionário de seu objeto de afeição. Os algoritmos sempre foram interessantes e valiosos, mas os avanços na computação os tornaram infinitamente mais poderosos. A grande mudança foi o custo da computação, que desabou, ao mesmo tempo em que a velocidade das máquinas aumentou muito e elas passaram a se conectar numa rede global. Os computadores armazenavam uma imensidão de dados desordenados, e os algoritmos eram capazes de analisar esses dados para descobrir padrões e conexões que escapariam aos analistas humanos. Nas mãos do Google e do Facebook, esses algoritmos ficaram ainda mais poderosos. Ao empreender suas buscas, eles foram acumulando cada vez mais dados. As máquinas assimilavam todas as lições das buscas anteriores, usando esse aprendizado para apresentar com maior precisão os resultados desejados. Ao longo de toda a existência humana, a criação de conhecimento sempre foi um árduo trabalho de tentativa e erro. Os seres humanos imaginavam algumas teorias de como o mundo funcionava e depois examinavam as evidências para verificar se suas hipóteses se confirmavam ou não diante da exposição à realidade. Os algoritmos subvertem o método científico – os padrões emergem dos dados, das correlações, e não são guiados por hipóteses. Eles excluem os seres humanos de todo o processo de indagação. Ao escrever para a Wired, Chris Anderson argumentou: “Podemos parar de buscar modelos. Podemos analisar os dados sem precisar de hipóteses sobre o que eles possam vir a apresentar. Basta jogar os números nos maiores clusters computacionais que o mundo já viu e deixar que os algoritmos estatísticos encontrem padrões que a ciência não é capaz de encontrar.”22 Em certo nível, isso é inegável. Os algoritmos conseguem traduzir línguas sem entender as palavras, apenas desvendando os padrões que servem de base

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para a construção das frases. Eles encontram coincidências que os seres humanos jamais pensariam em procurar. Os algoritmos do Walmart descobriram que as pessoas saem feito loucas comprando um determinado biscoitinho de morango quando há previsão de tempestades muito intensas.23 Ainda assim, mesmo que um algoritmo implemente seus procedimentos de forma meio irrefletida – e mesmo que aprenda a enxergar novos padrões nos dados –, ele reflete a mente dos seus criadores, as motivações daqueles que o treinam. Tanto a Amazon quanto a Netflix usam algoritmos para recomendar livros e filmes. (Um terço das compras na Amazon partem dessas recomendações.) Esses algoritmos tentam entender o nosso gosto e também o gosto de outros consumidores de cultura semelhantes a nós. Os algoritmos, porém, fazem recomendações muito diferentes entre si. A Amazon nos conduz aos tipos de livro que já vimos antes. Já a Netflix direciona os usuários ao que não é familiar. Existe uma razão empresarial para essa diferença. A exibição de filmes do tipo blockbuster custa mais para a Netflix. Os maiores lucros vêm quando o usuário opta por ofertas mais obscuras. Cientistas da computação repetem uma máxima que descreve como os algoritmos são incansáveis na tarefa de buscar padrões: eles torturam os dados até fazê-los confessar. Mas essa metáfora tem implicações que ainda precisam ser examinadas. Assim como as vítimas de tortura, os dados falam ao interrogador aquilo que ele quer ouvir. Às vezes, o algoritmo reflete o subconsciente de seus criadores. Para dar um exemplo extremo: em uma pesquisa, Latanya Sweeney, professora de Harvard, descobriu que usuários com nomes afro-americanos eram alvos frequentes de anúncios do Google sugerindo, sem rodeios, que eles teriam alguma necessidade de limpar sua ficha criminal (“Latisha Smith, presa?”).24 O Google não explica muito bem por que isso acontece. O algoritmo da empresa é um segredo guardado a sete chaves. Contudo, sabemos que ela construiu sua ferramenta de buscas para refletir os valores que lhe são caros. A empresa acredita que a popularidade de um site é uma boa medida da sua utilidade; ela decide barrar a pornografia dos resultados das buscas, mas não veta conspiracionistas antissemitas; acredita que os usuários se beneficiarão ao encontrar artigos recentes, em vez de preciosidades mais antigas. Trata-se de escolhas legítimas – e talvez sábias decisões de negócios –, mas são escolhas, não ciência.

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Assim como acontece à economia, a ciência da computação tem seus modelos de preferência e suas suposições implícitas sobre o mundo. Quando os programadores aprendem raciocínio algorítmico, são ensinados a venerar a eficiência como preocupação primordial, o que faz todo sentido. Um algoritmo com um número excessivo de passos atravancará as máquinas, e um servidor lerdo é um servidor inútil. Mas a eficiência também é um valor. Quando aceleramos as coisas, estamos necessariamente cortando caminho, generalizando. Os algoritmos podem ser manifestações incríveis de raciocínio lógico, além de uma fonte de comodidade e fascínio. Conseguem rastrear, em poucos milissegundos, exemplares de livros obscuros do século XIX; nos colocam em contato com amigos da escola que não víamos há tempos; e permitem que varejistas nos entreguem encomendas em nossa porta num piscar de olhos. Muito em breve, conduzirão veículos autônomos e localizarão cânceres em crescimento nas nossas vísceras. Mas para fazer tudo isso os algoritmos estão o tempo todo nos avaliando. Tomam decisões sobre nós e em nosso nome. O problema é que quando terceirizamos o raciocínio para as máquinas, na verdade estamos terceirizando o raciocínio para as organizações que operam as máquinas.

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De forma um tanto dissimulada, Mark Zuckerberg posa de crítico amistoso dos algoritmos. É assim que ele implicitamente contrasta o Facebook com o Google, por exemplo. Na butique de Larry Page, o algoritmo é rei, um governante frio e inanimado. Não há nenhum traço de energia vital nas suas recomendações e aparentemente pouco entendimento sobre a pessoa que utiliza sua ferramenta para fazer uma busca. Já o Facebook, em seu autorretrato bajulador, se considera uma trégua em meio a um mundo cada vez mais automatizado e atomístico. “Todo produto que você usa é melhor quando usado com seus amigos”, diz Zuckerberg.25 A referência é ao feed de notícias do Facebook. Eis uma breve explicação para a lasca de humanidade que aparentemente resistiu à plataforma: o feed de notícias oferece um índice cronológico reverso de todas as atualizações de status, artigos e fotos que seus amigos postaram. A ideia é

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que o feed seja divertido, mas também que seja voltado para resolver um dos maiores problemas da modernidade: nossa incapacidade para filtrar uma quantidade cada vez mais avassaladora de informação. Em tese, quem melhor que nossos amigos para nos recomendar o que deveríamos ler e assistir? Zuckerberg se vangloria de que o feed de notícias transformou o Facebook num “jornal personalizado”.26 Infelizmente, nossos amigos têm uma capacidade limitada para filtrar as informações para nós. Acontece que eles gostam de compartilhar muita coisa. Se apenas lêssemos as reflexões deles e seguíssemos os links para os artigos, talvez estivéssemos só um pouco menos assoberbados do que antes, ou, quem sabe, ainda mais afogados. O Facebook faz suas escolhas próprias sobre o que deveria ser lido. Os algoritmos da empresa classificam os milhares de coisas que um usuário conseguiria ver e reduzem isso a um lote menor de itens selecionados. Depois, dentro desses poucos itens, decidem o que a gente possivelmente gostaria de ler primeiro. Por definição, os algoritmos são invisíveis, mas em geral conseguimos sentir sua presença – a sensação de que em algum lugar distante estamos interagindo com uma máquina. É isso que torna o algoritmo do Facebook tão poderoso. Muitos usuários – 60%, de acordo com a melhor pesquisa – não fazem a menor ideia de sua existência.27 Mas mesmo que tivessem essa noção, não faria a menor diferença. O algoritmo do Facebook não poderia ser mais opaco. Quando a empresa admite sua existência diante de jornalistas, tenta deixar tudo ainda mais nebuloso, fazendo uso de descrições herméticas. Sabemos, por exemplo, que seu algoritmo já foi chamado no passado de EdgeRank, mas o Facebook deixou de usar o termo. Faz muito sentido que o algoritmo não tenha nome. Ele cresceu a ponto de virar quase um emaranhado irreconhecível. O algoritmo interpreta mais de cem mil “sinais” para decidir o que os usuários veem. Alguns desses sinais se aplicam a todos os usuários da rede; outros refletem os hábitos pessoais dos usuários e de seus amigos. Hoje em dia, talvez nem mesmo o Facebook entenda completamente seu próprio emaranhado de algoritmos – o código, com seus sessenta milhões de linhas, é um palimpsesto, sobre o qual os engenheiros acrescentam camadas e camadas de novos comandos. (Não se trata de condição exclusiva do Facebook. Jon Kleinberg, cientista da computação da Universidade de Cornell, foi coautor

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de um artigo em que argumentou o seguinte: “Talvez, pela primeira vez na história, tenhamos construído máquinas que não entendemos. Num sentido mais profundo, nem chegamos a entender de verdade como elas estão produzindo o comportamento que observamos. Essa é a essência de sua incompreensibilidade.”28 O impressionante é que o “nós” dessa frase se refere aos criadores de códigos.) Para refletir sobre o conceito desse algoritmo, imagine um daqueles primeiros computadores que surgiram, com luzes que não paravam de piscar e inúmeros botões. Quando queriam ajustar o algoritmo, os engenheiros giravam o botão uma ou duas vezes. Os engenheiros estão o tempo todo fazendo pequenos ajustes, aqui e ali, de modo que a máquina tenha um desempenho satisfatório. Mesmo que não pese a mão sobre esse botão metafórico, o Facebook altera o que seus usuários veem e leem. As fotos dos nossos amigos podem ficar mais onipresentes ou menos; posts cheios de ruminações autocomplacentes talvez sejam penalizados, e aquilo que é tido como falso pode ser banido; vídeos têm mais chances de ser promovidos do que texto; artigos do New York Times e do BuzzFeed podem ganhar destaque, por exemplo, se for esse o desejo. Ou se quisermos ser melodramáticos, poderíamos dizer que o Facebook está sempre fazendo pequenos reparos quanto à forma como seus usuários enxergam o mundo – sempre mexendo na natureza das notícias e das opiniões que permite vir à tona, ajustando a qualidade do discurso político e cultural para prender a atenção dos usuários por mais tempo. Mas como os engenheiros sabem qual botão devem girar e com que intensidade? Existe uma disciplina chamada ciência de dados, que guia justamente a escrita e revisão de algoritmos. O Facebook tem uma equipe, usurpada da academia, que conduz experimentos com os usuários. É o sonho mais erótico possível dos estatísticos: um dos maiores conjuntos de dados da história da humanidade e a capacidade de rodar testes em coortes matematicamente significativos. Ao descrever essa oportunidade, Cameron Marlow, antigo chefe da equipe de ciência de dados do Facebook, se pôs a falar com muito entusiasmo: “Pela primeira vez, temos um microscópio que não apenas nos permite examinar o comportamento social num nível muito detalhado, que jamais conseguimos ver antes, como também possibilita fazer experimentos a que milhões de usuários estão expostos.”29

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O Facebook gosta de se gabar de seus experimentos, mas não costuma entrar em muitos detalhes sobre eles. Alguns, porém, acabaram escapando dos limites de seus laboratórios. Sabemos, por exemplo, que a empresa queria descobrir se as emoções são contagiosas.30 Para conduzir esse teste, tentou manipular o estado mental dos usuários. Para um dos grupos, excluiu as palavras positivas dos posts que aparecem no feed de notícias; para outro grupo, removeu as palavras negativas. A conclusão foi que os usuários de cada grupo escreveram posts ecoando o espírito daqueles que a empresa havia parafraseado. Esse estudo foi amplamente condenado como invasivo, mas não é algo tão incomum assim. Como confessou um dos membros da equipe de ciência de dados da empresa: “Qualquer um daquela equipe podia rodar testes. Eles estão sempre tentando alterar o comportamento das pessoas.”31 Ninguém duvida do poder emocional e psicológico do Facebook – pelo menos a própria empresa não duvida disso. Ela já se vangloriou de ter aumentado o comparecimento dos eleitores às urnas (e a doação de órgãos), elevando sutilmente a pressão social que compele ao comportamento virtuoso. O Facebook inclusive divulgou os resultados desses experimentos em periódicos respeitados: “É possível que mais de 0,60% do crescimento do comparecimento às urnas [norte-americanas] entre 2006 e 2010 possa ter sido causado por uma única mensagem no Facebook.”32 Nenhuma outra empresa jamais demonstrou tanto orgulho da própria capacidade de moldar a democracia dessa forma – e com toda a razão. É poder demais para confiar a uma só organização. Os experimentos do Facebook só fazem crescer. A empresa acredita ter desvendado o aspecto psicológico de seus usuários, adquirindo mais conhecimento sobre eles do que eles próprios possuem. Só na base dos “likes”, consegue adivinhar a raça, a orientação sexual, o status de relacionamento e o uso de drogas de seus usuários.33 O sonho de Zuckerberg é que esses dados sejam analisados para que se descubra a maior de todas as revelações, “uma lei matemática fundamental, inerente às relações sociais humanas, que governa o equilíbrio envolvendo com o que e com quem nos preocupamos”.34 É evidente que se trata de um objetivo a longo prazo. Enquanto isso, o Facebook vai sondando: está sempre fazendo testes para saber o que a gente deseja e o que a gente ignora, uma campanha sem fim para melhorar a capacidade da

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empresa de nos dar aquilo que queremos e aquilo que nem sequer sabemos que queremos. Se a informação é verdadeira ou fabricada, referendada ou fruto de opinião conspiratória, o Facebook parece não se importar muito. A massa tem o que quer e merece.

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A automação do pensamento: estamos apenas no início dessa revolução, claro, mas já podemos ver para onde estamos caminhando. Os algoritmos aposentaram muitos postos burocráticos e administrativos que antes eram encabeçados por seres humanos – e em breve começarão a substituir tarefas mais criativas. Na Netflix, os algoritmos sugerem os gêneros de filmes a serem encomendados. Algumas agências de notícias usam algoritmos para escrever matérias sobre crimes, jogos de beisebol e terremotos, as tarefas jornalísticas mais rotineiras.35 Há algoritmos que já produziram obras de arte e compuseram música sinfônica, ou pelo menos chegaram perto disso. É uma trajetória assustadora, sobretudo para aqueles de nós que trabalham nessas áreas. Se os algoritmos conseguem replicar o processo criativo, passa a haver poucos motivos para nutrir a criatividade humana. Por que se preocupar com o processo tortuoso e ineficiente de escrever ou pintar, se um computador consegue produzir algo aparentemente tão bom quanto, num lampejo indolor? Por que nutrir o inflacionado mercado da alta cultura, quando ele poderia ser tão mais abundante e barato? Nenhuma atividade humana resistiu à automação, então por que seria diferente com as atividades criativas? Em geral, os engenheiros têm pouca paciência para a fetichização de palavras e imagens, para a aura que envolve a arte e para a complexidade moral e expressão de emoções. Eles enxergam os seres humanos como dados, componentes de sistemas, abstrações. É por isso que o Facebook não tem muitos pudores em conduzir desenfreadamente os mais diversos experimentos com seus usuários. Todo o esforço é no sentido de tornar os seres humanos previsíveis – prevendo seu comportamento e fazendo com que sejam mais fáceis de manipular. Com tanto sangue-frio, e um pensamento tão apartado das contingências e dos mistérios da existência humana, é fácil ver como alguns valores ancestrais começam a parecer simples perturbações – por que um conceito como privacidade pesa tão pouco no cálculo do engenheiro, por

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que as ineficiências do mercado editorial e jornalístico parecem na iminência de serem subvertidas. O Facebook jamais afirmaria isso com todas as letras, mas os algoritmos são feitos para corroer o livre-arbítrio e aliviar os seres humanos do fardo da escolha, empurrando-os na direção certa. Eles alimentam uma sensação de onipotência, a crença paternalista de que nosso comportamento pode ser alterado, sem mesmo nos darmos conta da mão que nos guia, numa direção superior. Esse é o perigo que surge quando a mentalidade engenheira começa a se mover para além de suas raízes, no sentido de construir coisas inanimadas, e resolve projetar um mundo social mais próximo da perfeição. Somos os parafusos e os rebites de um ambicioso projeto.

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AS DELIRANTES AMBIÇÕES DO FACEBOOK, do Google e da Amazon – com suas fantasias

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típicas de ficção científica sobre uma vida infinita, seus drones e realidades virtuais – nos distraem daquilo que é o cerne de sua hegemonia. Essas empresas são nossos principais portais para a informação e o conhecimento. Os monopolistas da tecnologia partem da abundância existente na internet, essa confusão descentralizada de palavras e imagens, e transformam-na em algo acessível e útil. A organização do conhecimento é uma atividade muito antiga. Aqueles que se ocuparam dessa seara ao longo dos séculos – bibliotecários e livreiros, intelectuais e arquivistas – foram ensinados a tratar o próprio ofício com um amor que beirava a devoção. Um código profissional suplicava que encarassem seus produtos como se o mundo dependesse do trânsito seguro deles através das gerações. As empresas de tecnologia não estão muito preocupadas com isso. Elas encabeçaram o declínio do valor econômico atribuído ao conhecimento, enfraquecendo enormemente os jornais, as revistas e os editores de livros. Ao derrubar o valor do conhecimento, acabaram diminuindo sua qualidade. Muita gente argumenta que elas não são as culpadas por esse declínio. Para essa corrente do senso comum, era inevitável que o preço do conhecimento evaporasse, considerando a existência da internet. Essa narrativa atribui a essas empresas o papel de espectadores inocentes, quando, na verdade, elas foram cúmplices ativas e agressivas. Para construir seus impérios, miraram nos frágeis alicerces econômicos do conhecimento e os eliminaram sem dó nem piedade. Jeff Bezos foi o pioneiro nessa abordagem, antes mesmo que a internet começasse a ganhar forma de verdade – e ele escolheu o ponto de partida mais inusitado.

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As livrarias têm um papel indispensável em nosso sistema capitalista. São uma opção de emprego para pós-graduandos fracassados; mostram como margens baixas e lucros irrisórios não arrefecem o espírito empreendedor. Qualquer um que já tenha percorrido o corredor de teoria literária ou que tenha estudado as estatísticas de venda dos romances russos consegue ver que o caminho para o topo da economia começa pela venda de livros. Só um visionário para entender o inexplorado potencial de lucros do livro. E, na verdade, só Jeff Bezos conseguiu enxergar como a antiga tecnologia de imprimir palavras sobre vegetação morta era o veículo ideal para conquistar a internet, uma manobra para remover e depois ultrapassar o Walmart como rei do varejo. É natural imaginar que apenas um intelectual se iludiria tanto a ponto de acreditar no potencial da venda de livros. Mas esse não é o perfil de Bezos. Embora vez ou outra ele até fale sobre algum livro que considera inspirador, o poder literário e político de seus produtos jamais chegou a fasciná-lo. A bem da verdade, ele nunca teve nenhum apreço especial pelos objetos que o lançariam no caminho da fortuna: “Fico meio mal-humorado quando sou obrigado a ler um livro físico, porque não é muito confortável. Essa coisa de virar as páginas... o livro fica sempre fechando sozinho na hora errada.”1 Quando pensou pela primeira vez na Amazon, em 1994, ele era a grande estrela de um fundo de investimento estilo butique. Tinha a mente lógica de um engenheiro preparado e a fé de um fundamentalista das planilhas. Já nessa época, entendeu que a internet transformaria o mundo. Essa clareza não atingiu da mesma forma a maioria dos veteranos em Wall Street, embora o próprio fundo de investimento onde trabalhava estivesse interessado em investir em websites. Bezos e seu chefe, um excêntrico cientista da computação chamado David Shaw, inclusive cogitaram a ideia de criar uma “loja que vendesse tudo” – um site que serviria de intermediário entre produtores de todo o mundo e seus consumidores.2 Primeiro, Bezos resolveu estudar de forma metódica as possibilidades de comércio naquele meio ainda em desenvolvimento, dando uns passos para trás em sua grande ideia. Antes que os consumidores comprassem numa “loja que vende tudo”, precisavam se acostumar a fazer compras on-line. Ele começou a pesquisar qual seria o produto ideal para dar o primeiro passo. A chave era encontrar um negócio que pudesse ser facilmente controlado por

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uma operação pequena e de parcos recursos, que conquistasse rapidamente a confiança dos consumidores, que não exigisse rodar mundo afora correndo atrás de estoque e possibilitasse experimentações de baixo custo. Depois de uma análise meticulosa, ele chegou à conclusão de que os livros – e não material de escritório, música ou meias – eram a melhor aposta possível. Afinal de contas, ninguém devolve um livro porque ficou apertado ou largo demais, além de ser um objeto resistente, então quem compra um livro não fica ansioso pensando que ele pode ser danificado durante o trajeto. Bezos largou o emprego, embalou tudo que havia em seu apartamento no Upper West Side e se mudou para Seattle, onde deu início à empresa que mais tarde chamaria de Amazon. O fascínio e o poder da internet se devem a suas possibilidades infinitas. Mais do que qualquer espaço físico, ela abrange tudo e seu território é inesgotável. Bezos também teve essa intuição. Chamou a nova empresa de “Maior Livraria do Mundo”. Nessa descrição, estava a essência da loja que vende tudo. De início, essa era uma poderosa artimanha. A Amazon não tinha estantes nem depósitos; o que tinha era apenas o relacionamento com as grandes distribuidoras. Essa foi a primeira dos milhares de escolhas inteligentes que transformaram a promessa vazia de Bezos, de proporções colossais, em profecia autorrealizável.

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Jeff Bezos havia pescado uma verdade crucial: o mundo estava à beira de um boom de conhecimento, uma explosão nuclear de informações que reformularia as economias. De fato, foi o que a internet (e Bezos) provocou. O conhecimento nunca foi tão abundante, tão central para a criação de riqueza. Bezos inclusive teve a percepção, ainda que incipiente, de que essa revolução faria nascer um novo estilo de empresa: o monopólio do conhecimento.* Foram várias as tentativas de cunhar um termo que captasse o papel hegemônico do Google, da Amazon, do Facebook e da Apple. Mark Zuckerberg afirmou que sua empresa era uma “prestadora de serviços essenciais” (utilities),

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*  Economistas e advogados antitruste não precisam se preocupar com o uso que faço do termo “monopólio”. A palavra tem um significado técnico, reclamarão. “Oligopólio” seria mais adequado para alguns dos mercados que menciono. A crítica é justa, mas a questão é que não estou usando um argumento técnico. Acredito, inclusive, que argumentos técnicos abafaram a discussão. Minha esperança é que façamos reviver o termo “monopólio” como peça central da retórica política que faz referência, de modo geral, às empresas hegemônicas com poderes perniciosos. Isso pode até não ser aceito na ordem dos advogados, mas esse uso tem uma linhagem respeitável e fértil, que remonta a Thomas Jefferson.

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talvez sem ter muita noção de que, historicamente, o termo é um convite à regulação invasiva. Mas a sugestão dele faz algum sentido. Na era industrial, esses serviços eram exemplos de infraestrutura que o público considerava cruciais para o funcionamento da vida cotidiana: eletricidade e gás, água e esgoto. No fim das contas, como o país não poderia funcionar sem esses serviços, o governo excluiu essas empresas das vicissitudes do mercado, amarrando-as a comissões designadas publicamente, responsáveis por definir os preços que seriam praticados. Na economia do conhecimento, as peças fundamentais de infraestrutura são de ordem intelectual. Com as inesgotáveis opções criadas graças à internet, surge um novo imperativo: a necessidade de novas ferramentas capazes de navegar a vastidão. A incrível coleção digital de conhecimento não é muito útil se não houver mecanismos para buscar e ordenar os estoques etéreos. É o artifício adotado pela Amazon e pelos outros monopolistas do conhecimento. A Amazon não criou apenas a maior livraria do mundo; ela deixou sua loja muito mais funcional e eficiente do que a tarefa de percorrer os corredores de uma livraria física tradicional ou pesquisar as fichas catalográficas de uma biblioteca. Além disso, a empresa antecipa nossos desejos, usando sua base de dados para recomendar nossa próxima compra e sugerir incisivamente uma rota de navegação pelo mundo do conhecimento. Eis a curiosa essência dos novos monopólios de conhecimento: eles na verdade não produzem conhecimento; apenas filtram e organizam o que há disponível.* Dependemos de um pequeno grupo de empresas para nos dar um senso de hierarquia, identificar o que deveríamos ler e o que deveríamos ignorar, para determinar ganhadores e perdedores nessa corrida pela informação. É incrível o poder econômico e cultural que essas empresas acumularam, por conta de uma mudança repentina na estranha economia do mercado em que estão inseridas, uma mudança que elas mesmas aceleraram.

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Adam Smith não poderia prever o surgimento de Jeff Bezos.3 Quando o escocês esboçou pela primeira vez o funcionamento do capitalismo, falou * 

A Amazon publica livros, em sua maioria de ficção comercial. Chegou também a trafegar pela publicação de compactos para o Kindle, incluindo jornalismo narrativo sério, um projeto que vem perdendo força.

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muito sobre terra, trabalho e capital. Esses eram os elementos fundamentais dos mercados, e se tornaram os alicerces da economia convencional. No pensamento de Smith sobre as trocas comerciais, o conhecimento nunca teve muito espaço. E durante quase duzentos anos, a disciplina econômica não chegou a cogitar a possibilidade de que o conhecimento pudesse vir a ser o ingrediente necessário ao crescimento. Jeff Bezos, porém, nasceu num mundo obcecado por conhecimento. Depois da Segunda Guerra Mundial, a elite americana passou a se definir com base em seus cérebros, e não mais nas circunstâncias proporcionadas pelo papai. Foi por isso que as universidades de excelência passaram a exigir testes padronizados como forma de ingresso em seus cursos. Essas universidades, que no passado tinham sido escolas de boas maneiras para os ricos, sofreram uma profunda reformulação, tornando-se “fábricas de conhecimento”, nas palavras de Clark Kerr, reitor da Universidade da Califórnia na década de 1950. O governo considerava uma boa opção destinar aportes massivos de dinheiro à pesquisa, à produção de conhecimento. Washington distribuía dinheiro para a ciência e para a ciência social, para a engenharia prática e ao mesmo tempo para ramos teóricos nada práticos. Os economistas talvez não tivessem muito o que falar sobre o conhecimento, mas o fato é que ele ditava a trajetória econômica do final do século XX. As fontes de crescimento eram cada vez mais intangíveis: a manipulação de símbolos, a coleta e exploração de dados, a invenção de fórmulas e teorias. Em outras palavras, era mais provável que a riqueza viesse de códigos de computador, séries de TV, patentes ou instrumentos financeiros. O Rei Conhecimento determinava inclusive os frutos do solo. Basta pensar na Monsanto, que produz as sementes responsáveis por 80% de todo o milho e 90% de toda a soja dos Estados Unidos. O que a Monsanto possui, o que ela guarda a sete chaves, são as características genéticas dessas sementes. Sua vantagem competitiva não está nas fábricas, e sim nos laboratórios. Evidente que os economistas conseguiam enxergar com nitidez o que estava acontecendo, mas não sabiam muito bem o que fazer com essa mudança, pelo menos não no início. O conhecimento era algo que deixava perplexos os cientistas sorumbáticos. Era diferente de qualquer outro bem. As pessoas pagavam por carros e apartamentos porque esses bens eram escassos. Ou

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tinham uma característica que Paul Romer, economista que se debruçou muito sobre a questão do conhecimento, chamou de “rivalidade”: se eu tenho uma pá, você não pode ser dono da mesma pá.4 Essa rivalidade não se aplica no caso do conhecimento. Claro, é preciso muito dinheiro para criar uma nova semente ou financiar um longo trabalho de jornalismo investigativo. Mas uma vez que a fórmula está completa e o artigo está publicado, eles podem ser copiados de graça, ou quase de graça. Se ficasse a cargo do mercado, o preço do conhecimento desabaria muito depressa, impulsionado pela facilidade com que ele poderia ser livremente copiado. Mas o governo não permite que isso aconteça. Uma de suas responsabilidades econômicas primárias é preservar o valor do conhecimento. Ele protege os criadores de conhecimento dos rigores do mercado competitivo, concedendo-lhes um monopólio temporário, financiado pelo Estado, sob a forma de patentes e direitos autorais. A propriedade intelectual é uma tradição antiga, tão reverenciada que James Madison fez com que fosse consagrada no artigo I, seção 8, da Constituição dos Estados Unidos. Esse cânone da lei visa equilibrar dois interesses conflitantes. Por um lado, cria as condições que incentivam a criatividade e a inovação. Quem dedicaria a vida a uma criação se algum artista pirateador pudesse ficar rico a partir de uma simples cópia? Por outro lado, a lei elimina gradualmente os monopólios (embora a Disney consiga sempre ampliar os termos da lei de direito autoral para manter o Mickey sob seu rígido controle). O conhecimento é algo importante demais para permanecer como posse eterna de qualquer empresa ou indivíduo. Sabemos que futuras conquistas são construídas com base no que já foi feito no passado; que os monopólios, a longo prazo, drenam a capacidade criativa de uma economia. Esse sistema até que funcionou bem ao longo dos anos, apesar das barreiras extremamente agressivas que Hollywood e a indústria musical costumavam montar para proteger a inviolabilidade de seus bens. Mas a modernidade também trouxe um desafio a essas barreiras. Muito antes da internet, o ato de copiar foi se transformando aos poucos em fato da vida moderna. As gerações que se lembram da existência do analógico podem perceber que os aparelhos de videocassete, as máquinas de xerox e as fitas cassete fizeram da imitação uma atividade cotidiana. Ainda assim, essas

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tecnologias tinham suas limitações. Copiar um filme ou gravar uma fita exigiam tempo, esforço e dinheiro. Com a internet, esses obstáculos desapareceram por completo. Um adolescente com banda larga à disposição conseguia baixar praticamente qualquer música que tivesse sido gravada um dia, sem gastar um centavo. E esse exemplo nem de longe dá conta das possíveis ramificações das novas tecnologias. Cory Doctorow, pioneiro da fronteira cibernética, descreveu muito bem o cenário: “É impossível parar de copiar na internet, porque a internet é literalmente uma máquina de copiar. Não dá para se comunicar na internet sem mandar cópias. As pessoas podem até achar que estão ‘carregando’ uma página, mas o que está de fato acontecendo é que uma cópia está sendo colocada no computador delas, que então disponibiliza essa cópia no navegador.”5 Não demorou muito para que as implicações desse cenário aterrorizassem a indústria de entretenimento. O pânico tomou conta dos magnatas da música, conforme sites então recém-criados, como Napster e Grokster, começaram a fazer picadinho de seus negócios. Os mastodontes da gravação processavam a torto e a direito quem quer que fosse. (Absurdo dos absurdos: George Clinton, famoso pelo coletivo musical Parliament-Funkadelic, foi processado por copiar a si mesmo.) Essa enxurrada de litígios parecia uma ameaça naquele momento, o início de uma nova era de controle hostil. Mas, no fim das contas, foram apenas os gritos desesperados de um modelo agonizante. A cultura já não era a mesma. Se antes tinha sido uma atividade clandestina, um passatempo de amadores, a pirataria (bootleg) de propriedade intelectual se tornou uma prática de negócios aceita. Sites como o Huffington Post “chupavam” sem pudores os melhores parágrafos de outras matérias, deixando, com certa má vontade, um link que remetia à fonte original. O Google se pôs a escanear todos os livros que via pela frente. Os anúncios da Apple pregavam o lema “Copie, remixe e grave – afinal, a música é sua”. Larry Lessig, professor de direito e um dos grandes defensores dessa causa, declarou: “A característica determinante da internet é que ela deixa os recursos livres.”6 Poderíamos retratar as mudanças como uma questão de pirataria – e sem dúvida que houve muito disso. Mas esse não foi o desdobramento mais significativo. A mídia aceitou o colapso econômico do conhecimento, como se

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fosse algo tão incontrolável quanto o clima. Os jornais e as revistas refizeram sua estratégia de negócios para se adaptar às mudanças. Desde os primórdios do jornalismo, os editores sempre recuperaram seus custos cobrando dos leitores pela compra dos produtos. Mesmo que esse valor não cobrisse os custos das matérias e da publicação, era uma importante fonte de receita e algo crucial para os anunciantes. A Madison Avenue, meca da publicidade, enxergava o assinante como um leitor engajado pelo qual valia a pena lutar. Mas esse pensamento não combinava com a internet. Stewart Brand lançou a seguinte máxima que ficou famosa: “A informação quer ser livre.” Cobrar pela informação era abandonar uma histórica oportunidade de negócios. A internet presenteou a mídia com uma escala sem precedentes. Era uma espécie de autoestrada para um mundo de leitores que jamais comprariam jornal numa banca nem pagariam altas assinaturas para recebê-lo em casa. Nenhuma campanha de mala direta, nenhum anúncio de televisão chegava aos pés do potencial de marketing da internet. “O valor vem da abundância”, aconselhou Kevin Kelly, editor da Wired.7 Seu conselho foi adotado na escala mais ampla possível. Essa foi uma mudança consciente, mas os jornais não tinham entendido exatamente que estavam abandonando um antigo dogma de seu negócio. Fazia muito tempo que a mídia seguia uma brilhante estratégia que sugeria o seguinte: os lucros vêm de um agrupamento de produtos – da mesma forma que o Microsoft Office forçava os consumidores a comprar o Excel junto com o Word, mesmo que eles não tivessem a menor necessidade de usar planilhas. Os jornais e as revistas eram agrupamentos de artigos. Para a mídia impressa, a estratégia funcionava muito bem. Os leitores do Washington Post talvez quisessem ler apenas a seção de esportes, mas era impossível comprá-la em separado, então eles pagavam um valor mais salgado e tinham também a cobertura internacional, as notícias locais e todo o resto do pacote obrigatório. Com o advento das páginas na internet, o agrupamento desapareceu como estratégia. Jornais e revistas on-line deixaram de existir primordialmente como antologias de artigos. Não havia assinaturas a comprar; e os leitores logo se habituaram a pular de site em site, link em link. As matérias passaram a existir como entidades livres. Quando ainda estava no Google, Marissa Mayer chamou isso de “unidade atômica de consumo de notícias”, capaz de

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florescer ou afundar por conta própria. “Cada artigo individual deveria ser autossuficiente”, afirmou ela.8 Em termos superficiais, isso era uma dádiva para o conhecimento. Nunca antes fora possível aprender tanto, adquirir um material tão valioso, sem custo algum. Um aumento exponencial desses mal podia ser medido com precisão estatística. Mas havia alguns números sugestivos. Em 2002, nosso estoque digital de conhecimento passou a ser maior que a memória analógica da humanidade. E a internet estava apenas engatinhando. Entre 2006 e 2012, a produção de informação no mundo cresceu dez vezes.9 Sem se valer de hipérboles, analistas sérios compararam esse momento à saída da Idade das Trevas. No entanto, a abundância de material gratuito criou uma nova forma de escassez: com tanta coisa para ler, assistir e ouvir, com uma rede infinita de links, tornou-se quase impossível fisgar a atenção do público. David Foster Wallace chamou esse estado de “ruído total”. Diante disso, nossa forma de ler passou a ser peripatética, com menos foco. Já nos anos 1970, Herbert Simon, economista vencedor do Prêmio Nobel, reuniu esses sentimentos rudimentares e os explicou com precisão: “O que a informação consome é algo bem óbvio. Ela consome a atenção dos seus destinatários. Portanto, a riqueza de informações cria pobreza de atenção.”10 A pobreza de atenção, a incapacidade de prender a atenção do leitor por um tempo prolongado, é um conceito fundamental. Trata-se de um problema existencial para quem produz conhecimento – e é uma fonte de desgaste e confusão para quem consome. Navegar pela internet pode dar a sensação de que estamos ilhados no meio do oceano, ao mesmo tempo aterrorizante e sublime em sua imensidão. Esse cenário trouxe consequências muito sérias para a mídia tradicional, que passou mais de uma década procurando uma estratégia plausível para fisgar de novo seu público, numa guerra contra a pobreza de atenção. Mas os mesmos fatores que pressionam essas empresas – a fartura de conhecimento e a escassez de atenção – alimentaram o crescimento dos novos monopólios da informação. São organizações que pegam essa massa amorfa de conhecimento, cada dia maior, e impõem uma ordem a ela. A Amazon organiza o comércio, transformando-o num mercado coerente e funcional, sem falar que é a maior e mais frequentada livraria da história da humanidade; o Google faz uma

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seleção em toda a web para que haja uma progressão racional naquilo que nos é apresentado; o Facebook disponibiliza um catálogo de pessoas, além de um método para lidar com nossas relações sociais. Sem essas ferramentas, a internet fica inutilizável. “Pesquisas e filtros são o que diferenciam esse mundo da Biblioteca de Babel”, pontuou o escritor James Gleick, que escreve sobre ciência.11

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As grandes empresas de tecnologia não apenas se beneficiaram do colapso econômico do conhecimento, como também operaram para triturar o valor dele, de modo que a mídia tradicional não tivesse alternativa, passando a depender de suas plataformas. Houve um precedente para essa estratégia. Quando a Apple lançou o iPod, estava lançando um aparelhinho com a capacidade de armazenar milhares de músicas digitalizadas – o produto ideal para reunir música pirateada, que naquele momento circulava livremente. Com um pé nas costas, Steve Jobs podia ter projetado o iPod de tal forma que fosse impossível salvar música pirateada. Mas, de início, ele se recusou a fazer um dispositivo que bloqueasse conteúdo sem licença.12 Ao mesmo tempo em que seu aparelhinho possibilitava a pirataria, Jobs criticava o roubo digital. Ele foi extremamente ardiloso: depois de ajudar a empurrar o negócio da música para o buraco, seria o salvador da pátria, passando a dominar o mercado. Dezoito meses após criar o iPod, inaugurou sua loja on-line, o iTunes, que virou o lugar de referência para se comprar música pela internet, concentrando um vasto percentual de toda a venda. Diante da pirataria, os produtores enfraquecidos se viram prostrados à frente daquele novo herói, ainda que a Apple desmembrasse os álbuns rentáveis do passado, vendendo as músicas de forma individual a 99 centavos cada uma. A partir dos destroços criados por ela mesma, a empresa construiu um novo monopólio – 60% de toda música baixada na internet é comprada pelo iTunes –, embora os serviços de streaming tenham começado a enfraquecer esse poder sobre o mercado que já dura uma década. Às vezes é difícil compreender as motivações pecuniárias das grandes empresas de tecnologia, porque elas costumam posar de idealistas. Não há dúvida de que acreditam na própria retidão, mas também jogam o jogo sujo

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do mundo corporativo, lançando mão de todos os truques já consagrados: fazem lobby, compram apoio em think tanks e universidades e doam dinheiro discretamente para grupos de interesse que lhes são favoráveis. O jornalista Robert Levine escreveu: “O Google tem tanto interesse pela mídia on-line gratuita quanto a General Motors tem pela gasolina barata. É por isso que a empresa gasta milhões de dólares fazendo lobby para enfraquecer os direitos autorais.”13 O Google e o Facebook penalizam as empresas que não compartilham a visão que eles têm da propriedade intelectual. Quando jornais e revistas exigem assinatura para que os usuários tenham acesso às matérias, o Google e o Facebook tendem a enterrá-los; artigos de acesso restrito quase nunca têm a popularidade que os algoritmos recompensam com destaque. De acordo com alguns documentos que vieram à tona em processos contra o Google, a empresa não nega que faz uso de seu poder para curvar a mídia ao seu modelo de negócio. Em 2006, Jonathan Rosenberg, vice-presidente responsável pelos produtos do Google, disse aos líderes da empresa que eles precisavam “pressionar os provedores de conteúdo premium a transformar seus modelos em modelos gratuitos”.14 É um ponto de vista extremamente racional. As grandes empresas de tecnologia ganham muito mais valor ao servir de porta de entrada para o conhecimento gratuito, ao proporcionar um portal para uma ampla coleção de conteúdo aberto. A Amazon não prega exatamente o mesmo discurso, mas compartilha a mesma abordagem básica. Ela reduziu o preço dos livros que vende, dando argumentos implícitos quanto ao valor deles. Ao fixar unilateralmente o preço do e-book em 9,99 dólares, muito abaixo do livro de papel, Bezos deu a falsa ideia de que o custo de produção do livro residia na impressão e na distribuição e não no capital intelectual, na criatividade e nos anos de esforço. Bezos argumentava implicitamente que a tecnologia continuaria jogando os preços para baixo ao longo do tempo. No mercado editorial, os concorrentes que resistiam a esse tipo de pressão deflacionária ficaram com a imagem de gananciosos inimigos do leitor. A verdade é que a receita vinda dos livros era uma preocupação secundária para Bezos. A margem de lucro de cada exemplar vendido de uma Zadie Smith ou de um Robert Caro faz pouca diferença no quadro geral das coisas. O importante é viciar os leitores em seus dispositivos e em seu site, para que a Amazon se torne uma peça

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fundamental na vida deles, um epicentro de lazer e consumo – exatamente o mesmo desejo que Google e Facebook nutrem. Essas empresas estão se aproximando cada vez mais desse objetivo. Amazon, Google e Facebook são hoje as principais agregadoras de artigos, livros e vídeos. São elas que criam um produto funcional e coerente a partir de suas partes díspares. Seu modelo de negócios é infinitamente melhor do que o que veio antes. Google e Facebook não pagam por nenhum dos artigos que apresentam aos consumidores, e sua escala de ofertas é mil vezes maior que qualquer outra coisa que as empresas de mídia tradicional jamais poderiam reunir. Elas estão, afinal de contas, organizando toda a produção de conhecimento da humanidade. É claro que não se trata de uma atividade inocente, por mais que as empresas de tecnologia neguem ter qualquer responsabilidade pelo material que publicam e divulgam. Alegam que são simples plataformas, com serviços neutros para uso e benefício de todos. Quando o Facebook foi atacado por instigar a avalanche de fake news durante a campanha presidencial de 2016 para a Casa Branca – um fluxo constante de conspirações de direita que alavancaram a candidatura de Donald Trump –, Mark Zuckerberg a princípio negou qualquer culpa. “Nosso objetivo é dar voz a todo mundo”, postou ele no Facebook, lavando as mãos sobre o assunto.15 É exasperante ver Zuckerberg se esquivando do catastrófico colapso da indústria de notícias e da degradação da cultura cívica americana, quando sabemos que seu site teve papel fundamental nesses dois acontecimentos. Por mais que ele negue, o processo de guiar o público até a informação é uma fonte de extraordinário poder cultural e político. Nos velhos tempos, esse poder era descrito como gatekeeping – e era um dever sagrado.

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ASSIM COMO DONALD TRUMP, o Vale do Silício faz parte da vasta tradição

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americana de falso populismo. Sem exatamente o mesmo furor que o atual presidente dos Estados Unidos, o Vale ganhou poder com base em seu antielitismo. Apresentou-se como o antídoto para o establishment anterior, ao qual acusava de ser paternalista com as massas e ao mesmo tempo proteger com muito zelo as próprias prerrogativas, à custa de quem quer que fosse. O Facebook foi saudado como um mecanismo que ajudaria a esvaziar a importância de comentaristas prolixos e populares; a Amazon romperia o cartel dos editores de livros de Nova York, a quem sobrava afetação. Essas críticas não eram apenas um exercício de denúncia. Junto a isso, havia também uma visão alternativa sobre a sociedade, uma visão de amadores produzindo conhecimento por puro entretenimento, uma fé na sabedoria das massas. O Vale do Silício enxerga seu papel na história como o de um agente desestabilizador que põe em xeque o poder da elite americana, com sua mediocridade esclerótica que se autoperpetua. Em termos superficiais, as empresas de tecnologia estão cientes dos riscos de repetirem os pecados daqueles a quem criticam. Depois de fornecer aos usuários as ferramentas para que possam tomar decisões por si mesmos, o Vale do Silício afirma que deixa o meio de campo e recua humildemente. Essa humildade ostentatória serve a um importante propósito: ela mascara a natureza de seu poder. O Vale do Silício detona sistematicamente gatekeepers culturais e econômicos – ainda que suas empresas sejam os maiores gatekeepers da história da humanidade.

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Entre os CEOs de empresas de tecnologia, Jeff Bezos é o mais populista, além de ser também o crítico mais estridente dos gatekeepers. Mas essas críticas dirigidas à elite tradicional parecem mascarar emoções e desejos mais intrincados: a atração incompatível que ele tem pelo objeto do qual desdenha.

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No verão de 2013, Bezos comprou o Washington Post. A transação foi um choque para o sistema de elite. Durante oito décadas, o jornal esteve nas mãos da família Graham – clã que passou a representar a corrente mais nobre e de espírito público da aristocracia americana, ou pelo menos era a reputação que a família tinha entre os próprios pares dentro da sociedade. Era muito estranho pensar que Bezos assumiria o controle do tradicional Post. Para início de conversa, ele vinha do que chamava, com certo orgulho, de “a outra Washington”. A distância descrita por ele era mais do que geográfica. A política e as políticas, duas fontes de prestígio do Post, não eram muito a praia de Bezos. Se grandes referências da área ainda enxergavam a propriedade do jornal como um troféu invejável, ele posava de sujeito que pensava o contrário: via o institucionalismo consagrado como preguiçoso, acanhado e autodestrutivo. Mas eis que ele próprio comprou uma instituição respeitável, ícone cultural que grafava o próprio nome numa fonte gótica e se regozijava de um passado altivo. A venda foi muito além de uma simples troca de propriedade: uma elite moribunda passava o poder a uma elite em ascensão. Don Graham, diretor-executivo do Washington Post, admitiu que não conseguia encontrar uma forma de seguir em frente, rumo ao glorioso futuro digital. Embora nunca tivesse pensado em vender a empresa, não teve alternativa. “Com sete anos de queda nas receitas, começam a surgir outras ideias”, disse a um entrevistador.1 Em vez de ficar se debatendo, mantendo a todo custo a ilusão de que sua família se sairia com algum plano inovador para salvar a própria fortuna, ele pediu socorro a um magnata do setor de tecnologia. Depois que Graham anunciou que estava deixando o comando da relíquia familiar, Bezos demorou a dar as caras no prédio da empresa. Manteve de início uma distância continental e a única coisa que fez foi mandar um e-mail caloroso para a nova equipe. Algumas semanas transcorreram até ele

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aparecer na redação que passara a bancar. A bem da verdade, o Post não foi uma compra muito significativa para seus padrões. O jornal custou cerca de 250 milhões de dólares, o que não fazia nem cócegas para um homem cuja fortuna era avaliada em 25 bilhões. A ideia de que Graham e Bezos vinham de mundos diferentes, com valores diferentes, foi explorada à exaustão. Mas o que os observadores deixaram passar batido foi que Bezos tinha estudado para seu novo papel, agindo com atitude e minúcia. É verdade que era um sujeito da tecnologia e do varejo, não do mundo das notícias. Porém, tal como Graham, era um gatekeeper da informação: uma figura que se posicionava entre os consumidores e o conhecimento que eles buscavam. A questão é que ninguém jamais imaginaria Graham e Bezos como representantes da mesma tribo, uma vez que encaravam o trabalho de forma tão diferente. E é nessa diferença que mora o perigo de Bezos e de sua visão de mundo.

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O termo gatekeeping, aplicado à mídia, entrou para o vernáculo na esteira da Segunda Guerra Mundial. Depois de testemunhar grandes culturas se submeterem ao fascismo, cientistas sociais americanos começaram a esquadrinhar a sociedade em busca de possíveis fraquezas. Como a opinião pública funcionava no país? Que tendências fascistas estariam à espreita? Uma onda de estudos acadêmicos tentava entender como a informação chegava até o homem comum, em busca de alguns pontos que os demagogos poderiam explorar. Naquela época – logo antes de Edward R. Murrow e Walter Cronkite se tornarem autoridades jornalísticas –, os jornais eram a principal fonte de informação do país. Eram, portanto, peças fundamentais para estudos pujantes. Numa aldeia medieval, o gatekeeper, ou sentinela, tinha poder para permitir (ou impedir) a entrada de pessoas no seio da comunidade. Num jornal, esse papel cabia ao editor. David Manning White, professor da Universidade de Boston, teve essa sacada em 1950, quando publicou um estudo que versava sobre essa função – um material simples e fascinante, mas um tanto questionável em termos metodológicos. Os defeitos do trabalho não impediram que ele se tornasse um marco no campo dos estudos midiáticos que então surgia.

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White havia se correspondido com o editor de um pequeno jornal.2 Ao reportar suas descobertas, ele deu a seu editor um pseudônimo, Sr. Gates. Durante uma semana, o Sr. Gates tomou notas minuciosas sobre as matérias que escolheu publicar e as que ignorou. Ele entregou esses registros para White, que os leu cuidadosamente, para encontrar pistas sobre os impulsos subconscientes que guiariam as escolhas do Sr. Gates. O material bruto ofereceu uma visão cristalina da mente de um gatekeeper de baixo escalão, e a partir daí o professor extraiu grande parte de seus dados. White concluiu que o jornal era um produto das inclinações do Sr. Gates – sua preferência por narrativa em detrimento de estatística, sua cautela profissional. É uma tese curiosa: a ideia de que certos indivíduos bem situados, cheios de inclinações conscientes e submersas, exercem controle sobre o fluxo de informações. Mas isso não deixa de ser verdade. Algumas informações tomam a dianteira enquanto outras retrocedem. Os gatekeepers fazem essas escolhas. Mesmo que conscientemente nunca levem muito em conta o próprio poder, eles precisam acreditar que sabem o que seu público deseja, e precisam acreditar que sabem o que é melhor para esse público. Nos jornais, as restrições eram muito claras. A primeira página só pode dar destaque a um número limitado de notícias, e algumas posições nessa página implicam maior relevância do que outras. Além disso, muito antes de as matérias serem encaminhadas para publicação, os editores fazem uma escolha ainda mais primária: como alocar os recursos limitados para as reportagens? Sem saber até onde o trabalho vai levar, precisam julgar seu valor potencial. Walter Lippmann, que escreveu um dos primeiros grandes livros de crítica midiática, em 1920, alertou sobre os riscos inerentes à tarefa: “Enquanto houver entre o cidadão comum e os fatos uma empresa de notícias que determina, segundo padrões absolutamente privados e não revelados, independente da nobreza de valores, o que ele deve saber e, portanto, no que deve acreditar, ninguém poderá dizer que a substância do governo democrático está resguardada.”3 É fácil romantizar o Washington Post como contraexemplo que refutaria o alerta de Lippmann – em especial porque Hollywood já nos conduziu a uma narrativa heroica e cheia de glamour, com Robert Redford como repórter do jornal. Sob o comando da família Graham – que abocanhou a empresa em

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1933, num leilão de falência –, o Post acabou se tornando um órgão sério de jornalismo. Na época, o avô de Don Graham, Eugene Meyer, falou de seus novos deveres com compromisso solene: O jornal deve servir aos seus leitores e ao público em geral, e não aos interesses particulares de seus proprietários. Na busca pela verdade, o jornal precisa estar preparado para sacrificar suas fortunas materiais, caso isso se faça necessário em prol do bem público. O jornal não deve se aliar a qualquer interesse especial, mas deve ser justo, livre e íntegro em sua perspectiva sobre questões públicas e homens públicos.4

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Meyer – e seu genro Philip Graham – podiam se dar ao luxo de falar da missão da empresa nessa linguagem cheia de princípios. A família perdeu um milhão de dólares por ano nos primeiros vinte anos em que foi dona do jornal. Mas depois que o Post se juntou com seu concorrente do outro lado da cidade, o Washington Times-Herald, se transformou num dos mais sólidos monopólios midiáticos do país. Já em 1964, quase metade da população que morava na região metropolitana de Washington recebia o Post em casa. A edição de domingo alcançou o marco de 1,2 milhão de cópias. Assim como os Sulzberger, a família Graham pregava um ideal de “isenção”, um etos que exigia que não se afetassem pelas inclinações de sua classe social. Era um código semirreligioso. Foi o que o analista político John B. Judis escreveu sobre essa marcante geração de proprietários do jornal: “As notícias tinham de ficar separadas da opinião editorial, e a opinião editorial, embora privilegiasse diferentes alternativas de políticas, tinha de ser livre de amarras partidárias.”5 Em seus momentos mais ilustres, o Washington Post chegou a derrubar o poder, ainda que nunca deixasse de cortejá-lo. A viúva e sucessora de Phil, Katharine, tomava sopa de tartaruga com Henry Kissinger, ao mesmo tempo em que seu jornal destrinchava as mentiras dele sobre o Vietnã. Vez ou outra ela enfrentava os presidentes do país, que lhe imploravam para silenciar os repórteres, em nome da segurança nacional. John Mitchell, o escabroso procurador-geral de Nixon, fez uma ameaça a Carl Bernstein que ficou famosa, quanto aos riscos de que certas revelações viessem à tona: “Se

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isso for publicado, Katie Graham vai ter as tetas prensadas numa máquina de espremer roupa.”6 Para a eterna humilhação de Mitchell, o Post veiculou a matéria, apesar de sua bravata, e ainda imprimiu uma versão de sua advertência vulgar, mas sem a parte das tetas. Depois da queda de Nixon, Katie vira e mexe usava um colar com um pingente de seio, de ouro. A coragem diante do poder é algo muito estimulante para os jornalistas, mas também carrega um potencial de uso abusivo. É de admirar qualquer organização capaz de derrubar um presidente, só que, por outro lado, isso traz certos riscos. Basta ver as supostas manobras dos jornais de Rupert Murdoch em Londres, agindo segundo acordos secretos que o proprietário é acusado de travar com alguns políticos. Não é preciso muita imaginação para ver que os donos dos veículos de mídia, nada cuidadosos, são capazes de conduzir campanhas autoelogiosas, pautadas em interesses próprios. Nesse sentido, é possível argumentar que Phil Graham fez uso abusivo do Post. Ele era ótimo na tarefa de fabricar grandes líderes e usava o jornal para promover as ardilosas manobras secretas que tanto lhe davam prazer. Como escreveu David Halberstam, Graham “odiava que o Post, ou seus jornalistas, desse a impressão de que não estava por dentro das coisas e conectado”.7 Em 1952, ele apoiou a candidatura de Dwight Eisenhower à presidência, a ponto de nas duas últimas semanas da campanha suprimir o trabalho do cartunista Herblock, que não gostava de Ike. Mais adiante, foi Lyndon Johnson quem caiu nas graças de Graham. O magnata do jornal ajudou inclusive a escrever o discurso em que o líder da maioria no Senado anunciou suas ambições presidenciais. Ainda mais humilhante do que isso foi o episódio em que Graham se pôs de quatro para procurar as lentes de contato que saltaram dos olhos de Johnson, momentos antes de ele pronunciar o discurso. Essa intimidade ajuda a explicar o apoio editorial do Post à Guerra do Vietnã, durante o ano de 1969. (Johnson nomeou Russ Wiggins, editor-executivo do jornal, para o cargo de embaixador nas Nações Unidas, como recompensa por seu apoio leal à guerra.) Não é porque o jornal acabou adotando uma posição veemente contra a guerra, publicando reportagens cruciais, que esse fato merece ser ignorado. Contudo, ideais elevados foram transmitidos de geração em geração na família Graham. Antes que Don Graham assumisse o patrimônio familiar,

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precisava conhecer sua cidade profundamente, assim como o jornal. Trabalhou como policial no 9o Distrito e como editor de esportes, numa lição de humildade. Os Graham acabaram reconhecendo que o poder que tinham exigia algum tipo de coibição, por melhores que fossem as intenções da família. Havia um código de conduta que guiava o Post, como existia na maioria dos grandes jornais da cidade. Quase todos os dias eram publicados textos de mea-culpa no interior do jornal, sob a forma de erratas. A figura do ombudsman foi criada para publicar, semanalmente, avaliações quanto à fidelidade do Post a seus ideais. A parte empresarial do jornal era separada do restante da operação – para descrever a estrutura de poder da organização e a inviolabilidade das prerrogativas editoriais, eles usavam a metáfora da separação entre Igreja e Estado. Parte disso era uma questão de protocolo do jornal, que muitas vezes não conseguia impedir falhas terríveis, mas também sinalizava a reverência à nobre vocação do gatekeeping.

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O sucessor de Don Graham não se enxerga como um gatekeeper. A bem da verdade, detestaria ter essa alcunha associada a sua figura inovadora. Ele acredita tratar-se de uma espécie inimiga do progresso. A seu ver, os gatekeepers são os guardiões do status quo medíocre. Eles suprimem as ideias revolucionárias. Uma carta escrita por Bezos para investidores da Amazon pode ser lida também como um manifesto – e como um ataque verbal contra pessoas como Don Graham. Ele vociferou: “Até gatekeepers bem-intencionados freiam a inovação.”8 Não é um simples lema, e sim uma teoria da história muito refinada. A narrativa é a seguinte: Era uma vez um mundo que precisava de gatekeepers. Os recursos eram limitados, então tinham que ser distribuídos com prudência pelas elites ilustradas. No entanto, a escassez ficou para trás, graças à queda dos preços da computação. Foi uma revolução nos meios de produção. De forma barata e fácil, qualquer um consegue hoje em dia publicar livros, divulgar opiniões, abrir empresas e criar sites. Burocracias e empresas ultrapassadas continuam existindo, aos trancos e barrancos. Mas quem é que precisa delas? Uma por uma, já começaram a sentir o baque e a desaparecer. “Para todo lugar que olho, vejo gatekeepers sendo eliminados”, afirmou Bezos.9

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A Amazon, é claro, se coloca como antítese dessas organizações antiquadas. Bezos enxerga sua empresa como uma plataforma – o maior bazar do mundo, onde qualquer um pode vender seus produtos a qualquer pessoa que queira comprá-los. Não há gatekeepers à espreita, sempre prontos a espezinhar os sonhos alheios por mero capricho. “As invenções mais radicais e transformadoras costumam ser aquelas que empoderam os outros a liberar sua criatividade”, escreveu ele.10 É esse sentimento que explica seu desdém pelo mercado editorial. Nos velhos tempos, as grandes editoras de Nova York obstruíam a criatividade – editando, imprimindo e distribuindo um punhado de títulos por ano. Se um autor não desse a sorte de cair nas graças de uma editora nova-iorquina, ficava fadado à irrelevância. A Amazon desvirtuou completamente esse modelo. Qualquer pessoa com um romance na gaveta pode publicar direto por lá. É quase tão fácil quanto postar no Facebook. Diferente das editoras esnobes de Nova York, a Amazon não impõe regras, não exige revisões nem faz perguntas sobre os pontos de vista dos autores. Sem os inchados intermediários de Manhattan – com suas mil despesas e seus subalternos apanhadores de café –, os escritores conseguem levar para casa receitas maiores. Na narrativa de Bezos, esse é um dos triunfos inegáveis da democracia: “Dê uma olhada na lista de best-sellers do Kindle e compare com a lista do New York Times. Qual delas é mais diversificada?”11 A lista do Kindle com certeza é mais comercial – recheada de romances mecanicistas e de ficção científica artificial, publicados por escritores que produzem livros num ritmo tão frenético que sobra pouco tempo para pensar, comer e dormir. Essa é uma abordagem radicalmente diferente quanto à gestão do conhecimento. Gatekeepers feito Graham se forjaram como líderes, como uma elite privilegiada e ilustrada. Eles tinham obrigações perante a comunidade; preocupavam-se muito com os lucros, claro, mas também com os perigos do mercantilismo desenfreado. Bezos enxerga seu negócio – e até mesmo o Washington Post – de forma diferente. Por princípios, não posa de guardião da comunidade nem de ideais elevados. Isso só amordaçaria o mercado, impedindo-o de comunicar seus desejos. Ele acredita em deixar que os consumidores – os clientes em torno dos quais o mundo gira – tenham a palavra final. Quando assumiu o Post, deu uma deixa sobre seu raciocínio: “Nossa pedra de toque será o leitor, entender com o que ele se preocupa

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– governo, líderes locais, inauguração de restaurantes, grupos escoteiros, negócios, caridade, governantes e esportes – e trabalhar daí para trás.”12 Há um argumento falso bem no âmago da narrativa de Bezos. Ele pode até não querer para si o papel de gatekeeper, mas é exatamente isso que é. Ora, o antigo sistema de gatekeeping excluía livros das prateleiras e artigos das revistas. A Amazon, ao contrário, vende praticamente qualquer produto cultural produzido pelo Ocidente. Mas não podemos confundir a Amazon com um experimento utópico de democracia participativa. A empresa sempre dá um tratamento melhor a produtos específicos, em detrimento de outros – promovendo-os por e-mail, em sua página e através da recomendação feita pelos algoritmos. Trata-se de um tremendo poder cultural, sobretudo quando vemos o tanto de concorrentes que derreteram diante de seu tamanho e talento. A Amazon não quer necessariamente ser dona de indústrias inteiras, mas gosta de controlá-las. No setor de publicações norte-americano, tornou-se a loja obrigatória. Ela vende 65% de todos os e-books e mais de 40% de todos os livros. O mercado editorial depende da Amazon para manter a saúde – uma posição vulnerável e embaraçosa. Ao mesmo tempo em que os editores dependem da Amazon, a Amazon adoraria destruí-los, ou pelo menos reduzir drasticamente sua influência. A empresa é a principal loja para os editores e também sua concorrente número um.

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Jeff Bezos conseguiu convencer Wall Street de que sua operação de varejo não exige lucros a curto prazo; que lucros trimestrais não são nada comparados às riquezas que virão quando a Amazon consolidar sua hegemonia. Com esse nível de tranquilidade, ele pode se dar ao luxo de experimentar, de examinar o mercado editorial para encontrar seus pontos fracos. Nem todos os esforços da Amazon para abocanhar território dos editores funcionaram. Em 2011, a empresa fundou uma editora à moda antiga, em Nova York. Contratou editores de prestígio, instalou-os num escritório caro e lhes deu uma montanha de dinheiro para adquirir novos livros. O negócio patinou depois que eles pagaram gordos adiantamentos para comprar autobiografias de celebridades (Penny Marshall, Billy Ray Cyrus) e ficção literária que se provou um fiasco, mesmo com todo o poderio da empresa na retaguarda.

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Essa foi uma iniciativa convencional, mas acontece que a Amazon não é uma empresa convencional. Ela se saiu bem ao criar um novo conjunto de regras. Em vez de trabalhar com autores já estabelecidos, cultiva novos escritores. Ou melhor: ela estabeleceu selos próprios para o mercado de massa, recrutando um exército de escritores comerciais, o que incentivou advogados frustrados e professores saturados a autopublicar seus romances direto no Kindle. Muitos desses escritores guardavam pastas cheias de cartas de recusa que recebiam de editores de Nova York. Na maioria dos casos, eles estão dispostos a trabalhar sem receber adiantamentos. Portanto, a Amazon não tem quase nenhum risco financeiro ao apostar nesses livros. Ela encontra público para seus autores botando o preço dos livros lá embaixo, ou até disponibilizando-os de graça. Afinal de contas, um escritor de suspense desconhecido só pode ter esperanças de competir com Stephen King se vender seus romances a uma fração do preço. Isso casa muito bem com o método preferido da Amazon: a venda de produtos baratos, com lucros gerados a partir do volume. A empresa queria fazer com que todo o mercado editorial se curvasse a sua política de preços baixos. Também tentou impor esse conceito aos editores tradicionais. Quando lançou o Kindle, Bezos surpreendeu os editores ao anunciar que a Amazon venderia e-books pelo preço de 9,99 dólares – valor que ele estipulou arbitrariamente e depois anunciou em alto e bom som para o público, sem qualquer aviso prévio aos editores. Foi um golpe de mestre. Ele consolidou uma impressão pública sobre o valor dos e-books. Havia uma premissa desonesta nesse argumento: que o preço do livro se relacionava exclusivamente aos custos materiais e não à atividade da escrita e da edição. Bezos não enxergava qualquer valor econômico no capital intelectual, na criatividade e no tempo que requer essa complexa atividade do pensamento. Se Bezos enxerga a si mesmo como a vanguarda da mudança, os editores se enxergam como a resistência a isso. Eles se agarram à ideia de que estão num ramo de atividade artesanal, praticando um ofício que demanda experiência adquirida a duras penas e um meticuloso processo de revisão. Sabemos que nem sempre é o caso – talvez quase nunca –, mas essa ideia traz algumas implicações. A premissa básica do mercado editorial é que escrever não é

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uma tarefa fácil, e que falta aos escritores a capacidade cognitiva de detectar as falhas em seu próprio trabalho; para isso, precisariam de uma mãozinha. Um livro só consegue trilhar seu caminho no mercado se for beneficiado por certos conhecimentos (de marketing, publicidade e distribuição) que o escritor não possui. A Amazon, por outro lado, considera que o mercado está cheio de “fracassados antediluvianos”, como descreveu um dos primeiros funcionários da empresa, demonstrando a imagem que cultiva dos editores tradicionais.13 As táticas de negociação da Amazon com os editores são quase sádicas. Quanto menor o editor, mais exagerada é a pressão para que as vontades da empresa sejam cumpridas. As editoras universitárias veem seus livros sumirem de vista, conforme a Amazon negocia termos ainda mais favoráveis para si. Em certo momento, a empresa agrupou os contratos com pequenos editores sob uma iniciativa chamada Projeto Gazela, apelido criado depois que Bezos brincou com sua equipe, dizendo que “deveriam se aproximar desses pequenos editores da mesma forma que um guepardo perseguiria uma gazela doente”.14 Ao lidar com as editoras maiores, a Amazon tem sido um pouco mais elegante, mas não tanto. Quando estava debatendo algumas condições com o conglomerado Macmillan, excluiu os botões que permitiam aos consumidores comprar os livros da editora. Em meio às negociações com a Hachette, ela chegou a atrasar o envio de encomendas. No trato com editores, a empresa não faz rodeios. De acordo com algumas pessoas que já se sentaram à mesa de negociações com a Amazon, ela não deixa dúvidas de que pode influenciar o desempenho da editora com base em seus algoritmos e eliminar os livros de seus e-mails de divulgação se o outro lado não concordar com as condições apresentadas. É um negócio legítimo, sem dúvida, mas a Amazon é evasiva quanto a seu poder cultural. Trata-se de gatekeeping numa escala que Don Graham e sua turma jamais imaginaram. A Amazon não tem apenas o poder de apresentar livros para o público, ou de lhe negar acesso a determinadas obras. O que ela quer é reformular radicalmente a produção cultural. Nos momentos mais presunçosos, Bezos admite suas ambições revolucionárias: “Nenhuma tecnologia dura para sempre, nem mesmo o livro, com sua natureza tão sofisticada.”15

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Logo que comprou o Washington Post, ele deu a seguinte ordem: o jornal podia contratar escritores, designers e engenheiros, mas nada de editores. Bezos não acreditava em edição – preconceito que deve ter herdado da guerra que travou contra o mercado editorial –, mas com o tempo foi suavizando esse juízo. (Segundo uma reportagem da revista New York, ele também sugeriu que o jornal experimentasse uma espécie de brincadeira interativa: o leitor que não gostasse de determinado artigo poderia pagar para retirar todas as suas vogais; outro leitor, então, teria a chance de pagar para restaurá-las.) Estamos no início da era de Jeff Bezos como proprietário, e ainda é cedo demais para fazer qualquer julgamento. Há uma percepção generalizada de que o jornal melhorou muito sob a liderança dele. Bezos manteve o veículo nas mãos do renomado editor Marty Baron, famoso por seus furos de reportagem, que acredita piamente nos métodos do jornalismo à moda antiga. O jornal aprofundou o compromisso de cobrir política e publicar investigações minuciosas. Ao mesmo tempo, Bezos deixou claro o compromisso de transformar o Washington Post numa empresa da Amazon. O tráfego na web aumentou a passos largos, o que se deve, em parte, às matérias descartáveis fabricadas para atrair o público mais amplo, com suas manchetes apelativas e assuntos geralmente bombásticos. Talvez as duas visões de jornalismo possam coexistir, com o sensacionalismo subsidiando o conteúdo de qualidade. Mesmo que Bezos salve o jornal, não devíamos aplaudir tanto. A população dos oligarcas da informação diminui um pouco mais a cada ano. No passado, Washington chegou a ter quatro jornais diários. Sob o governo Reagan, passou a ter só o Post, seguido apenas por um concorrente de direita, pouco lido. E essa já era uma situação inusitada. “No início do século XXI, 99,9% dos jornais diários são monopólios em suas cidades”, afirmou certa vez o crítico da mídia Ben Bagdikian.16 De quando ele fez esse cálculo até hoje, um vasto percentual desses jornais já desapareceu. Nos anos 1980, uma reunião com os mais poderosos magnatas da mídia americana teria enchido um pequeno salão – oligarcas locais teriam se misturado aos nacionais.17 Depois, no final dos anos 1990, uma onda de fusões reduziu esse grupo a um tamanho que caberia em torno de uma simples mesa redonda.

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Nas primeiras décadas de consolidação, o novo ideal corporativo passou a ter a cara da Time Warner, com seu portfólio de revistas, gravadoras, redes de notícias a cabo, estúdios de cinema, canais premium de filmes, uma editora e uma empresa de serviços a cabo, sem falar da malfadada fusão com a AOL. O entretenimento é um grande negócio, mas que também traz um componente de imprevisibilidade. O sucesso dependia da criação de produtos como Harry Potter ou Batman, façanhas de grande orçamento e estouros de marketing. Era difícil conquistar esses triunfos com regularidade, e os estúdios tinham que se preparar para os inevitáveis Ishtars. Portanto, os magnatas buscaram se proteger. Para sobreviver a esses inevitáveis fracassos de bilheteria, uma empresa de mídia tenta distribuir seus arriscados investimentos por uma ampla gama de negócios mais estáveis que pertençam à mesma vizinhança de entretenimento, com a remota promessa de sinergia.18 A consolidação da mídia também é consequência de o governo ter visto diminuir seu poder regulatório. A família Graham, por exemplo, não podia reunir um poder local ilimitado, pelo menos até o governo de George W. Bush. Antes de os republicanos mudarem as regras, a Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC, na sigla em inglês) proibia donos de jornais de adquirir canais de televisão no mesmo mercado, e vice-versa. Essa era a essência da política federal: quando uma fusão indicava que acabaria reduzindo o número de veículos de mídia, independente de quão marginal isso fosse, a tendência era rejeitá-la. Reguladores e juízes entoavam o lema da “diversidade de vozes”. A Suprema Corte via na Primeira Emenda da Constituição razão suficiente para o governo impedir as empresas midiáticas (em especial as de radiodifusão) de se tornarem monopólios. Foi o que o juiz Byron White declarou em 1969: “O direito dos telespectadores e ouvintes que é soberano, e não o dos controladores da radiodifusão.”19 Para proteger esses direitos, o governo obrigou Rupert Murdoch a vender o Boston Herald em 1994, antes de permitir que ele comprasse de volta a afiliada da Fox na cidade. Em outra ocasião, impediu Joe Allbritton, concorrente da família Graham, de ser ao mesmo tempo proprietário do Washington Star e de uma afiliada local de televisão. Não nos cabe fingir que essas regras eram bastiões intransponíveis. Algumas brechas permitiram, por exemplo, que o conglomerado Tribune

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Company dominasse Chicago. Mas não há dúvida de que o governo fez os criadores de impérios pensarem duas vezes antes de embarcarem na compra compulsiva de empresas midiáticas. O governo se mostrou atento, inclusive, aos excêntricos editores de livros. Quando a Random House comprou a Alfred A. Knopf, em 1960, o procurador-geral de Dwight Eisenhower, William Rogers, ficou tão preocupado que mobilizou sua equipe para descobrir as implicações do negócio.20 (Ele deixou o assunto de lado quando soube que a nova entidade controlaria menos de 1% do mercado.) Quando a Time-Life, baleia-azul das publicações, queria engolir a Random House anos mais tarde, acabou desistindo depois que o Departamento de Justiça declarou seu desagrado em relação à ideia.21 Contudo, no início do século XXI, todas essas restrições tinham caído por terra. Independente do partido que estivesse no poder, os perigos da concentração midiática deixaram de preocupar os governos. Enquanto os reguladores guardavam as algemas, a tecnologia permitia o surgimento de uma nova espécie de gigantes, os maiores que a humanidade já viu. No passado, a mídia se movia pelo mundo por meio de rios que nunca se cruzavam – sinais de rádio não tinham nada a ver com o serviço postal, que não tinha nada a ver com as salas de cinema. Mas, com a internet, toda a mídia acabou desaguando pelas mesmas cataratas digitais. A tela do computador tomou o lugar, ao mesmo tempo, da agência de correios, do aparelho de televisão, do aparelho de som e do jornal. Nos anos 1990, esse estado de coisas foi chamado de convergência, sendo acertadamente apregoado como mina de ouro. Para se beneficiar dessa oportunidade, era preciso ter uma nova estrutura de pensamento e de organização corporativa. Os conglomerados não conseguiram criar um todo significativo a partir de sua gama de selos editoriais, revistas e estúdios cinematográficos. É por isso que um gigante como a Time Warner assustava, mas nunca chegou a dominar o mercado da forma como os concorrentes temiam ou como os investidores esperavam. Na melhor das hipóteses, os conglomerados eram um conjunto de feudos poderosos e lucrativos, que se reportavam a uma nave-mãe em Manhattan. Às vezes, até trabalhavam no mesmo arranha-céu. Contudo, as sinergias prometidas ficaram relegadas a um slogan bacaninha.

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A tecnologia foi o que fez com que a Amazon e o Google se saíssem bem nos pontos em que a geração anterior de conglomerados falhou. De forma orgânica, elas contêm uma profusão de mídias, todas profundamente integradas dentro de um negócio coerente. Livros, televisão e jornal estão a um clique de distância das páginas iniciais dessas empresas. A Amazon não cria apenas programas de televisão e publica livros; ela é o canal de vendas que todas as demais empresas de mídia precisam usar para atingir um público maior; fabrica dispositivos que nenhum editor e poucos estúdios de cinema podem se dar ao luxo de ignorar. A empresa quer que tenhamos todo o leque de experiências midiáticas – visual, sonora e lexical – num único lugar: a sua plataforma. Os antigos gatekeepers nem sempre foram dignos de elogios, mas pelo menos havia vários deles. E é nessa multiplicidade que residia a base da democracia. Na visão de futuro da Amazon só existe um portão. Ainda que Jeff Bezos ponha todo mundo para dentro, a saúde do setor editorial já passou a depender dos caprichos de uma única empresa. Mesmo que se tratasse de um monopolista benevolente, as perspectivas seriam assustadoras.

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OS ALGORITMOS SÃO UM PROBLEMA novo para a democracia. As empresas de

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tecnologia se vangloriam, sem muita vergonha, de como conseguem conduzir os usuários a um comportamento mais virtuoso – como nos induzem a clicar, ler, comprar ou até votar. São estratégias muito poderosas, porque não vemos a mão que nos conduz. Não sabemos como a informação foi moldada para nos instigar. Apesar de todo o alarde do Vale do Silício sobre a missão de construir um mundo mais transparente, os ideais dessas empresas terminam no umbral de seus escritórios. Em qualquer outro ramo de atividade, esse sigilo todo não importaria muito. Mas os monopolizadores do conhecimento detêm um poder ímpar em nossa democracia. Não apenas têm a capacidade de escolher o destino de um livro, como podem influenciar o destino da República. Ao organizar as informações, eles tomam decisões que moldam nossa forma de pensar sobre certos assuntos e certos políticos. Mesmo conservadores que advogam pelo livre mercado ficarão preocupados com a concentração de poder entre empresas que controlam o fluxo de palavras e ideias, porque já se abusou muito desse poder no passado – tanto no passado distante quanto naquele não tão distante assim. Antes de a internet existir, havia o telégrafo, ou o que um livro chamou de “a internet vitoriana”.1 Hoje é difícil evocar seu longo reinado. Diferente do rádio ou do serviço postal, outras formas supostamente antiquadas de comunicação, o telégrafo já está morto e enterrado no cemitério da tecnologia. Não havia nada na telegrafia – nenhum charme, nenhuma necessidade – que pudesse sobreviver às mudanças ou mesmo persistir como lembrete

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decorativo de dias passados. O último telegrama foi enviado em 2006, sem qualquer lamento fúnebre. Embora essa morte tenha passado batida, não é o caso de apagar toda uma vida brilhante. O telégrafo foi o primeiro exemplo de comunicação eletrônica. Ele transmitia as informações de forma instantânea entre as nações e os oceanos. Assim que apareceu, sua velocidade e seu alcance despertaram muita euforia, de forma similar às previsões entusiásticas que saudaram o surgimento da world wide web. Intelectuais de meados do século XIX atribuíam àquela tecnologia recém-criada o colapso do tempo e do espaço: lugares distantes em termos geográficos se transformavam em vizinhança hospitaleira. A famosa mensagem de Samuel Morse, enviada de Washington a Baltimore, em 1844, revelou seu frêmito diante da importância de sua invenção: O que Deus possibilitou? Foram necessárias algumas décadas – e uma guerra catastrófica – até a pergunta de Morse ser respondida. Quando Abraham Lincoln virou presidente, fazia apenas três anos que tinha visto sua primeira chave telegráfica, mas ele acabou se tornando dependente do telégrafo. Sentado no subsolo do Departamento de Guerra dos Estados Unidos, mandava instruções aos generais no front, um método de comando extremamente pessoal e efetivo. No decorrer da longa guerra, o Exército da União estendeu quase 25 mil quilômetros de linhas telegráficas, em comparação aos cerca de 1.500 quilômetros que os rebeldes controlavam. Isso se provou uma enorme vantagem tática, possibilitando o deslocamento inteligente de tropas e suprimentos por todo o mapa. Terminada a guerra, o telégrafo já funcionava em escala nacional – um emaranhado de troncos e ramificações que transmitia com a maior rapidez preços comerciais e notícias. Havia uma empresa bem posicionada para privatizar essa rede, a Western Union, que viria a dominar a telegrafia pelos cem anos seguintes. O monopólio da Western Union contou com muitos cúmplices.2 Ela recebeu apoio do governo, antes mesmo da guerra. O Congresso havia lançado um grande incentivo para conectar as duas costas do país por meio de cabos. Para isso, autorizou o uso gratuito de terras federais – e recompensou a Western Union com um bônus de quatrocentos mil dólares quando a empresa completou a missão, em 1861. Não se tratava de uma empresa com mais capacidade tecnológica do que as concorrentes; ela simplesmente agarrou

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as oportunidades que surgiram. Quando a indústria ficou superlotada de competidores desafortunados, a Western Union engoliu as empresas mais fracas e se tornou um gigante imbatível. Naquele momento inicial na história do Estado regulador americano, não havia leis antitruste para restringir a atuação da Western Union. Mesmo assim a empresa vira e mexe se esquivava de ataques políticos. Em 1870, os ingleses nacionalizaram seu sistema de telégrafos, passando a abrigá-lo nos serviços postais. Ulysses S. Grant e vários políticos cogitaram abertamente a ideia de fazer o mesmo nos Estados Unidos. Entre 1866 e 1900, os congressistas apresentaram setenta projetos de lei para que o serviço postal assumisse os telégrafos.3 Portanto, o sucesso da Western Union dependia de sua capacidade para controlar os termos do debate político. E suas estratégias para influenciar os membros do Congresso não tinham muito refinamento. Até a década de 1910, a telegrafia era uma atividade tão cara, que somente as empresas conseguiam arcar com esses custos. Mas a Western Union cabeou escritórios no Capitólio e deu aos candidatos eleitos acesso gratuito e ilimitado ao sistema. De acordo com memorandos dos arquivos da empresa, ela considerava, no âmbito privado, que essa era a “forma mais barata” de acalmar os ânimos de seus críticos em Washington. Os serviços gratuitos eram apenas uma primeira linha defensiva – e relativamente inócua se comparada com os demais recursos utilizados pela Western Union. Seu escudo protetor era a imprensa. Para sermos mais específicos, a empresa formou uma aliança invencível com a Associated Press (AP), organização que também tinha se transformado num imponente monopólio. A AP fornecia aos jornais americanos um fluxo infinito de matérias que os ajudavam a preencher suas páginas sem ter gastos exorbitantes. A maioria dos jornais americanos não tinha condições de enviar correspondentes para Washington ou para a Europa, então a rede de repórteres da AP permitia que suprissem essa lacuna. Segundo uma pesquisa, mais de 80% das matérias nos jornais ocidentais vinham da agência de notícias.4 Os jornais dependiam da AP, e a AP explorava essa dependência. Insistia que seus clientes não usassem os serviços de nenhuma outra agência. Mais do que isso: insistia que seus clientes nunca falassem mal da organização.

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Era um modelo de negócios invejável. Por certo, a Western Union salivava diante da possibilidade de abocanhar uma fatia desse bolo. Mas a perspectiva de uma empresa monopolista conquistar ainda mais poder era terrível. Assim, a Western Union chegou a uma solução mais sutil. As duas monopolizadoras fariam um acordo entre si, de forma a se protegerem mutuamente. A Western Union daria à AP uso exclusivo de suas linhas, com um bom desconto. Em troca, a AP assinou um contrato declarando que seus membros “não incentivariam, sob hipótese alguma, nem apoiariam qualquer oposição ou empresa de telégrafos concorrente”.5 O toma lá dá cá não podia ser mais claro. Jornais que falassem mal da Western Union eram descartados da AP – como aconteceu com o Omaha Republican, punido por ter tido a audácia de descrever a empresa de telégrafos como um monopólio “oneroso” e “preocupante”.6 A aliança entre os monopolizadores surtiu os efeitos desejados. Em seu livro magistral sobre a história da mídia, Paul Starr concluiu: “Diferente das empresas de telégrafo inglesas, a Western Union tinha a imprensa a seu lado e, em grande medida, por conta desse meio de atenuar a opinião pública hostil, conseguiu evitar o destino de seus homólogos ingleses.”7 Naqueles anos, o senso de dever público não entrava nos cálculos da AP como grande motivo de preocupação. Os arquivos da empresa estão cheios de exemplos de ilegalidades dos republicanos que a organização tinha descortinado por meio de algumas pistas e vários outros canais de reportagem. Mas os próprios homens que comandavam a AP eram republicanos intransigentes. Sem um pingo de constrangimento ou culpa, os dirigentes da empresa se empenhavam em esconder qualquer evidência de delito que surgisse contra os líderes do partido. Muitos comentaristas políticos e jornalistas sonhavam em fazer um candidato – pegar uma massa de argila política e usar seus poderes jornalísticos para moldar um vencedor. Mas só a AP tinha poderes suficientes para conseguir um feito dessa magnitude. Nas eleições de 1876, o responsável pelo braço ocidental da AP, um homem pequeno e cadavérico chamado William Henry Smith, tinha planos de botar seu amigo de Ohio, o governador Rutherford B. Hayes, na Casa Branca. Hayes não era unanimidade para a indicação republicana, muito menos para ambições maiores. Um jornalista

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chegou a chamá-lo de “insignificante de terceira categoria”.8 Ainda assim, havia algum material bruto a ser lapidado, bem como uma força bruta jornalística a ser empregada. Smith usou a AP para pintar uma imagem gloriosa de seu candidato. Pediu a políticos republicanos importantes que escrevessem testemunhos particulares elogiosos sobre o excelente caráter de Hayes. Essas cartas acabaram se materializando nos telégrafos e depois nos jornais em todo o país. Sempre que vinha à tona uma charge potencialmente explosiva contra Hayes, a AP lançava mão de seus poderosos recursos para refutá-la. (Smith era muito sagaz, e com toda a cautela vazava boatos envolvendo os concorrentes de Hayes para jornais que não tinham conexões claras com ele.) A propaganda era tão óbvia que a empresa passou a ser conhecida como “Hayesociated Press”.9 A campanha de Hayes entrou para a história como uma das batalhas mais árduas da política americana. Só depois de sete votações é que ele foi escolhido como candidato republicano, o que prenunciava as enormes dificuldades ainda por vir. Na noite da eleição, Hayes ficou atrás do candidato democrata, Samuel Tilden, por 250 mil votos. Hayes estava quase reconhecendo a derrota, mas não o fez. Um editor do New York Times passou adiante informações que o jornal tinha colhido de agentes democratas no Sul. Em particular, o pessoal da campanha de Tilden respirou aliviado porque Hayes não olhou com mais atenção os resultados eleitorais em três estados sulistas. A contagem dos votos poderia migrar para Hayes e virar o Colégio Eleitoral. Essas informações foram suficientes para evitar que Hayes reconhecesse a derrota. Durante quatro meses, o resultado das eleições continuou sendo fervorosamente contestado – com tanto fervor que havia o receio de que a controvérsia culminasse em violência e numa segunda guerra civil. Nessa discussão prolongada, a Western Union deu a Smith acesso irrestrito aos telegramas enviados por estrategistas democratas. Em seguida, Smith passava as informações surrupiadas para Hayes – o que permitiu aos republicanos derrotar Tilden e seus aliados. Nos bastidores, executivos da Associated Press ajudaram a conduzir as negociações entre homens sensatos e benevolentes, de ambos os lados, para que se chegasse a um resultado justo – foi assim que descreveram o nobre acordo. Olhando em retrospecto, a negociação resultante foi diabólica. Hayes só venceu quando seu partido concordou em retirar as tropas federais do Sul.

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Na verdade, o grupo de Hayes abdicara do sonho de reconstruir o Sul num espírito de igualdade racial – barganha que, embora injusta, foi um preço baixo em troca de alçar o homem da AP à Casa Branca. Parece paranoia temer que essas maquinações se repitam – e com certeza era mais fácil conquistar uma façanha dessas mais de cem anos atrás, numa era em que salões cheios de fumaça eram o lugar preferido para se fazer política. Ainda assim, há lições que se estendem para o nosso tempo. Os donos de empresas poderosas sempre defenderão seus interesses e agendas. Se tiverem meios de promover e proteger esses interesses e suas crenças profundas, só abrirão mão da oportunidade se conseguirem se conter, o que não é tão comum em se tratando de seres humanos. A tentação aumenta ainda mais quando a tecnologia possibilita intervenções veladas no processo político. É ingênuo pensar que isso não pode acontecer de novo, uma vez que já aconteceu.

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Minha pequena desavença particular com o monopólio chegou num momento inoportuno da minha carreira como editor da New Republic. Em cem anos, a revista nunca tivera um CEO. O que tínhamos eram donos que administravam a instituição com senso de missão pública e vaidade pessoal. (No único ano em que demos lucro, comemoramos com uma festa regada a pizza que nos empurrou de novo para o vermelho.) Mas Chris Hughes, dono da revista e meu chefe, queria ter lucro. Admitia abertamente que para isso era necessário mais tino de negócios do que ele possuía, ou do que poderia contratar sem precisar oferecer um cargo muito alto e cobiçado. A questão dos CEOs é que eles têm a palavra “chefe” no título e, com isso, o poder implícito de demitir o editor. Essa me parecia uma mudança perturbadora na cadeia de comando. (Antes da chegada do CEO, eu me reportava diretamente ao Chris.) Não achava muito promissor que o novo CEO demorasse quase duas semanas para me encontrar pela primeira vez depois de ter sido contratado. Havia, no entanto, algumas circunstâncias atenuantes. Eu trabalhava em Washington, onde ficava a redação principal da revista, e ele trabalhava em Nova York, onde ficava o nosso braço comercial. Agarrei-me a esse fato e ainda nutria esperanças de continuar sob o novo regime.

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Depois da primeira reunião com o CEO, já não tinha tanta certeza. Ele se chamava Guy Vidra, era ex-membro de várias startups de tecnologia, usava o indefectível Fitbit no pulso, óculos retangulares e tinha a barba bem aparada. Seu último pouso havia sido no Yahoo!. Quando entrei em sua sala, parecia um outro planeta. Ao afundar na poltrona de couro e depois me inclinar à frente para ficar numa postura de quem quer agradar, esperava uma conversa amena, para antes de tudo nos conhecermos. Minha missão era encantá-lo e persuadi-lo do meu espírito comercial. Mas antes que eu conseguisse cortejá-lo, ele saiu de trás da mesa de madeira e aço, pegou um marcador e foi até o quadro branco que ficava na parede. “É isso que estou pensando”, disse ele, começando a esboçar um plano para refazer a estrutura editorial da revista. Num piscar de olhos, vi um emaranhado incompreensível de setas e círculos se materializar. Mas conforme ele começou a falar, fui pescando a ideia. O que atraía Vidra era a transformação da New Republic numa empresa de tecnologia, com o etos de uma startup. Para isso, era preciso reformular nossa missão e nossa natureza básica. Minha reputação no escritório era de nostálgico e tradicionalista. Gostava de contar a história de como meu pai tinha me ajudado a virar leitor da New Republic: quando terminava de ler as edições da revista, ele as empurrava por debaixo da porta do meu quarto. Eu também acabara de editar uma antologia centenária com textos do catálogo da revista. Essa reputação reforçava uma impressão da qual eu me ressentia: Vidra me considerava insensível ao imperativo de fazer dinheiro. Eu não queria de forma alguma confirmar essa impressão, mas a revista tinha um buraco na programação das matérias de capa, então tirei do papel um ensaio sobre a Amazon. Estávamos em meados de 2014, e as negociações contratuais entre a Amazon e a Hachette, gigante do mundo editorial, estavam cada vez mais demoradas e sórdidas. Não dei muita bola para os meses iniciais de discussão, que confrontavam um monopólio versus um oligopólio. Nenhum dos lados chegava a me causar simpatia, mas dali em diante a frente de batalha se aproximou muito do meu território. Vi a Amazon punir os autores da Hachette, na tentativa de prejudicar a editora. Os livros, frutos de anos e anos de trabalho apaixonado, eram impedidos de chegar ao mercado. A Amazon

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usava sua força opressora para atrasar os envios ou direcionar os leitores a livros mais antigos sobre assuntos similares, além de usar diversas outras táticas de retaliação. É uma falha de imaginação moral que os escritores só respondam às injustiças que conseguem visualizar sofrendo eles mesmos. Mas o fato é que eu tinha publicado pela Hachette, e não foi difícil dar o salto empático que me fez ser solidário aos escritores cujas vendas foram dificultadas pela Amazon. Meu ensaio saiu com um título forte. A capa dizia com estrondo: “A Amazon precisa ser contida.” O texto explicava por que o governo deveria ser firme com a Amazon, uma vez que a empresa transgredia leis antitruste. Ele chegou a ter uma boa visibilidade, mas logo saiu da minha cabeça. Eu nitidamente precisava dar atenção a outras questões. Minha campanha interna de sobrevivência parecia estar patinando. Numa tarde, sentei em frente ao computador depois de receber e-mails de seis jornalistas diferentes, tentando confirmar os boatos de que eu seria demitido. “Não é a pergunta mais agradável de se fazer, mas lá vai...” Foi nesse momento conturbado que a Amazon decidiu punir a New Republic. Nosso departamento de venda de anúncios recebeu uma nota da empresa, dizendo que retiraria a publicidade de sua nova comédia política, a Alpha House. A nota não deixou qualquer dúvida. “Em vista da matéria de capa sobre a Amazon, a empresa decidiu encerrar a campanha da Alpha House, atualmente em vigor na New Republic. Favor confirmar o recebimento deste e-mail e que a campanha foi encerrada.” A mensagem era assinada pela “Equipe da Amazon”. Quando perguntei a Chris Hughes se poderia comprar uma briga diante do cancelamento da Amazon, ele me mandou uma mensagem seca, me instruindo a ficar quieto. Infelizmente, eu já tinha encaminhado a mensagem da Amazon para um amigo – que, por sua vez, agindo por empolgação e imprudência, encaminhou-a ao New York Times. Antes que eu tivesse tempo de apaziguar a situação, um repórter já tinha escrito para o Chris, pedindo que ele comentasse. Enquanto meu chefe fumegava diante da minha desobediência, eu estava num voo que saiu de São Francisco e cruzava o país, com um wi-fi funcionando a duras penas. Mandei um e-mail furioso ao meu amigo, implorando que me ajudasse a liquidar aquela história. Dava para ouvir o golpe certeiro do carrasco.

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Não devemos nos valer de hipérboles para falar dos monopólios de conhecimento. Os esquemas da Associated Press no século XIX são um caso extremo. A maioria dos barões midiáticos não tem a pretensão de manipular eleições presidenciais. Seus interesses são muito mais provincianos. Nesse sentido, se assemelham a quaisquer grandes negócios. Querem distância dos reguladores e dos cobradores de impostos; querem proteger seus negócios das incursões do governo e se aproveitam de sua generosidade, quando há possibilidade de lucros. Contudo, vale a pena repetir: os monopolizadores do conhecimento não são iguais a qualquer outro negócio. Escritores, meios de comunicação, editores de livros, todos dependem dessas empresas para sua sobrevivência financeira. Logo, essas empresas têm a capacidade ímpar de inibir as críticas que lhes são feitas. Não precisam levantar um dedo sequer para afastar os detratores. Por conta do tamanho que têm, e como dominam grande parte do mercado para a disseminação de ideias, criticá-las costuma ser um tiro no pé. Depois de escrever a matéria sobre a Amazon, passei de crítico a ativista. Acompanhei a Associação de Escritores em incursões à Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos e ao Departamento de Justiça, para discutir os perigos trazidos pelo tamanho da empresa. Eram sempre reuniões secretas, o que permitia aos escritores chegar em segurança a Washington, para fazer pressão contra a Amazon. Presumi que qualquer escritor disposto a prestar queixas ao governo americano estaria disposto a fazê-lo em público. Foi nesse ponto que subestimei demais o poder de Jeff Bezos. Enquanto trabalhava com colegas para preparar uma conferência sobre a Amazon num think tank de centro-esquerda, alguns deles de repente se acovardaram. Tinham livros para sair. Não queriam de jeito nenhum arriscar todo um esforço monumental atrelando seus nomes àquela causa. E esse receio não era um incidente isolado. Quando convidamos um advogado de Washington para falar no evento, pouco importava o fato de ele ter um longo histórico de enfrentamentos contra grandes empresas. “Acho que vou pular essa, por motivos pessoais”, escreveu. “Minha filha está trabalhando num livro e o agente dela vai mandá-lo às editoras em breve. Assim, o manuscrito estará sob avaliação mais ou menos na mesma época que o seu programa. Os editores são tão paranoicos com o que a Amazon é capaz de fazer que

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acho que isso pode afetar o comportamento deles. Então creio que nesse momento preciso ficar na minha sobre o assunto.” Essa lógica me estarrecia. Falei com um agente literário para retransmitir o incidente. Ao longo dos anos, esse agente tinha mandado comentários cáusticos anti-Amazon para alguns jornalistas, mas fui surpreendido por seu fatalismo: “Você já fez a sua parte”, disse ele, logo antes de desligar. “Agora é importante pensar nos seus interesses particulares.” A Amazon não é imune aos protestos públicos. O New York Times já se debruçou muito sobre a empresa, com extremo rigor. E ações conjuntas acabam sendo mais seguras. Quando grupos ativistas circulam cartas criticando a Amazon, conseguem a assinatura de inúmeros escritores. Ainda assim, dá para vislumbrar um futuro ainda mais hostil, quando vemos a inclinação atual rumo a um monopólio. Mesmo que a Amazon se comporte da forma mais correta possível, seu tamanho por si só já intimida. Não existe coragem possível quando se olha para o Washington Post. Desde que Bezos comprou o jornal, ele nunca reproduziu a cobertura rigorosa do Times. Bezos podia ter declarado que merece o mesmo tratamento que o jornal dispensa ao resto do mundo. Em vez disso, o jornal fica pisando em ovos com ele, exatamente como ele aparenta gostar. Isso talvez pareça um ponto menos importante, mas conforme segue sua marcha as ambições da Amazon não param de crescer. Ela quer povoar os céus com drones. Fornecerá a infraestrutura tecnológica fundamental para os governos. Ditará o tom para o futuro do ambiente de trabalho, da economia e também da cultura. O poder da Amazon não é um assunto menor em termos de debate público; trata-se de um assunto crucial.

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Jonathan Zittrain, professor de direito em Harvard, imaginou o seguinte cenário hipotético: os Estados Unidos se veem diante de uma eleição disputadíssima, e Mark Zuckerberg tem uma opinião muito forte sobre quem ele quer que vença.10 Como já vimos, o Facebook alega ser capaz de aumentar o comparecimento às urnas, colocando alguns lembretes sobre o dever cívico nos feeds de notícias no dia da eleição, o que gera pressão social para as pessoas saírem de casa. O fato de esse experimento ter funcionado não

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é apenas uma alegação de relações públicas, mas se trata de uma descoberta comprovada da área de ciência social. No cenário de Zittrain, Zuckerberg lança um novo esforço de estímulo ao comparecimento dos eleitores. Só que dessa vez os lembretes são colocados de forma seletiva. O Facebook tem bastante noção sobre a afiliação política de seus usuários, com base nos itens que eles curtem, e também consegue saber onde eles votam. Portanto, em vez de encorajar todos os cidadãos a cumprir seu dever cívico, a empresa calibra seus links de chamada (CTAs) para atingir apenas os eleitores que provavelmente escolherão o candidato de Zuckerberg. A ideia de uma empresa de tecnologia favorecendo um candidato não é nova. Eric Schmidt, diretor-presidente do Google, entrou com força nos bastidores da campanha de Barack Obama nas eleições de 2012. Ele se embrenhou nos detalhes mais secretos, não só assinando cheques, mas também recrutando talentos e ajudando a construir todo um aparato tecnológico. As pessoas contratadas por ele esquadrinharam uma enorme série de dados para atingir eleitores com uma precisão sem precedentes. “Na noite da eleição, ele estava nos nossos bastidores”, disse David Plouffe, guru da campanha de Obama.11 Esses esforços fizeram muita diferença. “Veteranos que participam da campanha de Obama afirmam que aplicar esse rigor ao orçamento de mídia de meio bilhão de dólares aumentou em 15% a eficiência, economizando dezenas de milhares de dólares”, noticiou a Bloomberg depois da campanha. Não se tratou apenas de um esforço isolado. O Google publicou um estudo de caso – com o título “A campanha de Obama usa o Google Analytics para democratizar a tomada de decisões rápida e fundamentada” – falando sobre o papel que teve na reeleição do presidente. O estudo não ganhou muito destaque, mas traz afirmações audaciosas sobre a importância do Google para o resultado das eleições. “Logo no início, [a campanha de Obama] recorreu ao Google Analytics para ajudar as equipes de web, e-mail e anúncios a entender o que motivava novos apoiadores a fazerem mais barulho e se tornarem doadores regulares com o tempo.”12 O Google se vangloriou de como seus dados ajudaram a campanha de Obama a moldar as informações que os eleitores procuravam quando queriam verificar as alegações feitas durante os debates e quando refletiam sobre suas escolhas nos dias que antecederam a eleição. “Relatórios em tempo real do Google Analytics abriram uma janela

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para as questões e preocupações dos eleitores, permitindo que a campanha desse respostas diretas, por meio de links patrocinados.” O Google deixou a modéstia de lado ao avaliar como contribuiu para o sucesso da campanha: “Os resultados do dia da eleição falam por si; uma vitória retumbante, com praticamente todos os estados que são campos de batalha sendo abocanhados pelo presidente.” Não é preciso pensar o pior das empresas de tecnologia para temer sua capacidade de mudar votos. Como vimos com a saga de Edward Snowden, um programador desonesto consegue descobrir formas de sabotar sistemas extremamente seguros. Marius Milner, engenheiro do Google, abusou do acesso que tinha aos veículos da empresa que mapeavam as ruas.13 Esses carros cruzavam as ruas dos Estados Unidos tirando fotos, que depois o Google agrupava para formar um todo coerente. Milner programou os carros para captarem o sinal de wi-fi das casas por onde passavam, levantando dados pessoais, inclusive de trocas de e-mail. Em vez de cooperar com uma investigação do governo, o Google “deliberadamente obstruiu e protelou o processo”, recebendo então uma multa da Comissão Federal de Comunicações. Mesmo assim, a empresa não demitiu Milner. O caso não ajuda em nada a construir a confiança de que o Google tem compromisso com a transparência ou com salvaguardas contra possíveis abusos. Não é muito difícil para um mecanismo de busca influenciar a opinião pública. Um estudo publicado na revista oficial da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos tentou simular o funcionamento do Google. Pesquisadores criaram uma ferramenta falsa, que chamaram de Kadoodle, e simularam uma eleição com candidatos inventados. No experimento, os autores ficavam o tempo todo reordenando os resultados das buscas e então pediam aos entrevistados que revelassem sua opinião. Ficou claro que a ordem dos resultados num mecanismo de busca faz muita diferença: “Em todos os casos, as opiniões migravam na direção do candidato favorecido nos rankings. As preferências em termos de confiança, gosto e voto mudavam de forma previsível.”14

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Já fomos muito intolerantes às furtivas tentativas midiáticas de nos manipular, mesmo em contextos comerciais. Em 1973, os anúncios de um

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jogo de tabuleiro chamado Hūsker Dū? tinham como propósito aumentar as vendas de Natal.15 A palavra “compre” piscava tão rápido na tela da TV, que ninguém jamais perceberia. Mas quando os donos da agência de publicidade descobriram que seus subordinados tinham usado uma mensagem subliminar sem autorização, entraram em pânico e avisaram às emissoras. O truque publicitário veio à tona, causando furor nacional. Não há comprovação de que mensagens subliminares desse tipo de fato funcionem, mas mesmo assim o governo decidiu que não toleraria essa prática. O episódio acabou se traduzindo em decepção e violação da confiança do público. Logo após a celeuma em torno do Hūsker Dū?, o FCC declarou que a prática era “contrária ao interesse público”. Com a ascensão das gigantes da tecnologia, nos afastamos dessa noção. Passamos a aceitar um novo estágio de manipulação subconsciente do nosso comportamento. Mas se as mensagens televisivas subliminares eram inócuas, o novo behaviorismo é muito efetivo e, portanto, verdadeiramente perigoso. A transparência é uma das grandes promessas da nova tecnologia, e com a transparência supostamente entramos numa nova era de responsabilização. Só que os monopólios de conhecimento nos levam na direção contrária. Eles trazem uma aparência de abertura – consumidores que conseguem fazer reclamações contra empresas de todos os tipos e tamanhos, espaço para anunciar em alto e bom som uma opinião impopular, um mundo aparentemente sem gatekeepers humanos. Mas quando olhamos com atenção para o Google, o Facebook e a Amazon, percebemos que são parecidos com a Itália, um país onde nunca está muito claro como o poder de fato opera. Existem regras, mas que não são elucidadas com muita clareza. Temos a leve noção de que estamos sendo subconscientemente influenciados, mas não sabemos quando nem como. Vemos que algumas informações recebem tratamento privilegiado, mas sem razões explícitas. Embora as empresas de tecnologia preguem valores liberais, elas sonham em ter acesso aos mercados de países autoritários, onde os acordos com regimes repulsivos são condição para se fazer negócio. O Facebook já deixou claro que nobreza de sentimento não impede a colaboração com censores. Será que elas não fariam o mesmo nos Estados Unidos, por exemplo? A ameaça à democracia americana pode não passar da teoria. Mas, de novo, como ter essa certeza?

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A dificuldade de internalizar – ou talvez até de compreender – o significado de sua retórica sobre transparência é emblemática. A democracia americana foi construída sobre um medo muito justificado: a preocupação de que o poder possa se associar a uma instituição, em detrimento de todos os demais indivíduos. As empresas de tecnologia não têm esse medo. Quanto mais puderem estar presentes em nossa vida, melhor. Não há limites. É claro que não é problema delas se preocupar com o poder que acumularam. Tal preocupação recai sobre todos nós, pobres mortais, que deveríamos estar muito mais cientes da situação: empresas indiferentes à democracia passaram a desempenhar dentro dela um papel descabido.

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OS JORNALISTAS TÊM O IRRITANTE hábito de se colocar no centro das narrativas.

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Presumem que seus problemas pessoais são também os problemas do mundo, que suas conversas com taxistas refletem a totalidade da experiência humana. Esse narcisismo faz com que seja difícil enxergar os momentos em que as dificuldades do jornalismo são também emblemáticos da vida econômica nos Estados Unidos. Nos últimos anos, o jornalismo vem sendo aos poucos engolido. Hoje, as empresas de mídia mais proeminentes não se veem como herdeiras da tradição jornalística. Algumas, inclusive, preferem se dizer empresas de tecnologia. A redefinição não fala apenas de posicionamento de marca ou de modismo. O Vale do Silício se infiltrou na atividade, embrenhando-se por dentro e por fora. Ao longo da última década, o jornalismo passou a depender do Facebook e do Google, de forma nada saudável. As gigantes da tecnologia abastecem o jornalismo com um percentual enorme de público – e, portanto, uma grande fatia da receita. Isso dá ao Vale do Silício o poder de influenciar a profissão como um todo, e essas empresas vêm se aproveitando desse trunfo sem dó nem piedade. A dependência gera desespero – uma batalha insana e descarada para ganhar cliques no Facebook, um esforço contínuo para driblar os algoritmos do Google. Isso leva a mídia a fazer péssimos acordos, que mais parecem necessidade de sobrevivência, mas que, na verdade, só fazem com que o Facebook e o Google mantenham as rédeas ainda mais curtas. A mídia concede ao Facebook o direito de vender anúncios ou dá ao Google a permissão para publicar artigos direto em seu servidor veloz. O que torna esses acordos tão

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ruins é a natureza inconstante das empresas de tecnologia. Elas gostam de mudar rápido de direção, e radicalmente, o que é ótimo para seus resultados financeiros, mas péssimo para todas as empresas de mídia que dependem dessas plataformas. Sem mais nem menos, o Facebook decide que seus usuários preferem vídeos a palavras, ou que preferem propaganda ideológica sob medida a notícias sérias e importantes, de relato objetivo. Quando o Facebook muda de direção desse jeito ou quando o Google ajusta seu algoritmo, na mesma hora causam impacto no tráfego da web que chega aos veículos de mídia, com todas as consequências que reverberam na receita. As empresas de mídia sabem que deveriam se livrar das garras do Facebook, mas dependência também gera covardia. O prisioneiro passa dia e noite ali, dentro da cela, sonhando com planos de fuga que nunca se concretizam. A dependência em relação às gigantes da tecnologia é um drama cada vez maior para trabalhadores e empreendedores. Motoristas bagunçam seus padrões de sono em função do que dá na telha da Uber. Empresas que produzem quinquilharias vendidas na Amazon veem seus negócios afundarem quando os algoritmos detectam alguma lucratividade no que elas vendem, e a gigante resolve ela mesma produzir aqueles bens, a um preço mais baixo.1 O problema não é só de vulnerabilidade financeira. É a forma como as empresas de tecnologia ditam os padrões de trabalho, como sua influência pode transformar o etos de todo um ofício para atender a suas necessidades particulares – reduzindo os padrões de qualidade, corroendo as garantias éticas. Eu vi isso de perto quando trabalhei na New Republic. Vi como a dependência em relação às empresas de tecnologia deteriorou a própria integridade do jornalismo. Quando esse capítulo da minha trajetória profissional estava no início, não imaginava que seguiríamos esse rumo.

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Chris Hughes era um herói mitológico – puerilmente ingênuo, incrivelmente rico, intelectualmente curioso, inusitadamente humilde e orgulhosamente idealista. Em toda minha carreira na New Republic, sempre sonhei com um benfeitor desse quilate. Durante muitos anos, zanzamos de um grupo de sócios a outro, todos ávidos por salvar a revista e sua missão histórica. Mas ou lhes faltavam os recursos necessários para investir em nosso futuro ou

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confiança suficiente para mergulhar fundo nesse propósito. Continuamos tocando o barco no piloto automático, mas sempre assombrados pelo fantasma de pararmos nas mãos de um oligarca russo ou de um fanático ideológico. Essa busca sem fim por patrocínio me exauria. Pedi demissão do cargo de editor em 2010. Um ano depois, a New Republic retomou as buscas urgentes por um novo dono. E então Chris apareceu. Quando ele me convidou para uma conversa, ficamos perambulando sem rumo pelo centro de Washington, segurando copinhos descartáveis de café. Era um dia de temperatura amena, no início da primavera. Paramos nos degraus de pedra de uma igreja georgiana. Naquelas primeiras semanas logo que virou dono da revista, Chris marcou uma lista interminável de conversas. Parecia louco para falar com qualquer um que já tivesse trabalhado na empresa ou que tivesse coisas a dizer sobre a publicação. Mas, conforme fomos conversando, ficou claro que ele queria algo mais do que os meus conselhos. Começou a sinalizar que talvez me oferecesse meu antigo cargo de volta. Os donos da New Republic sempre foram homens mais velhos, já estabelecidos financeiramente e de fortes convicções. Chris era completamente diferente. Tinha 28 anos, mas com sua gana de aprender parecia ainda mais novo. “Quando fiquei sabendo que a New Republic estava à venda, fui à Biblioteca Pública de Nova York e comecei a ler tudo”, me contou. Ele pediu para ver as microfichas das estantes e, de cada década dos cem anos de existência da revista, selecionou o equivalente a um ano de edições para examinar a fundo. A fascinante história da revista – com sua célebre lista de escritores, como Rebecca West, Virginia Woolf, Edmund Wilson, Ralph Ellison e James Wood – despertou a imaginação dele, que logo enfiou a mão no bolso. A faculdade foi muito tumultuada, explicou. Seu colega de quarto, Mark Zuckerberg, tinha idealizado o Facebook. Nem nos melhores sonhos ele imaginava uma proximidade tão lucrativa. Chris se tornou o principal responsável pela publicidade da empresa, embora tenha ficado na cidade de Cambridge enquanto seus amigos seguiram para o Vale do Silício. Mas esse era o Chris. Sempre falava do Facebook com um distanciamento admirável. “Não perco muito tempo no site”, confessou certa vez num jantar. Além disso, a fonte de sua fortuna não era o que o definia. O que ele gostava mesmo era de literatura. Na lua de mel, leu Guerra e paz; enquanto aguardava uma

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consulta numa sala de espera, tinha sempre nas mãos uma edição de Balzac no original em francês. Em seu apartamento no SoHo, um pufe de couro ficava abarrotado de pilhas da New York Review of Books, em meio a praticamente todas as revistas literárias publicadas em língua inglesa. A New Republic viria a ser a experiência cultural que ele não conseguiu ter em Harvard, por estar muito distraído com outras coisas. Apesar de ter acumulado centenas de milhões de dólares, parecia indiferente à própria fortuna, ou pelo menos nutria sentimentos ambíguos em relação a isso. Ficava vermelho quando as pessoas mencionavam que ele tinha dois latifúndios e um espaçoso loft; e era capaz de usar o mesmo blazer todos os dias. Era tanta atenção da mídia em sua direção, que ele não via motivos para cultivar mais atenção ainda. Nas reuniões, ficava na dele. Odiava a ideia de se sentar à cabeceira da mesa e ficar se exibindo, uma prerrogativa de longa data daqueles que chegavam a donos da New Republic. Quando sentamos nos degraus da tal igreja, ele começou a discorrer sobre seu plano para a revista. Era um tanto contido e sem muito norte: uma mistura de melhorias gradativas, por exemplo, o acréscimo de uma entrevista e a diminuição das resenhas de livros. “Por que você não tenta ser um pouco mais ousado?”, perguntei. “Então me mostre como ser mais ousado”, respondeu ele.

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Muitos meses depois, nossa relação azedaria, mas os primeiros dias de trabalho em conjunto foram incríveis. Como era um outsider irreverente, ele não tinha interesse em acatar cegamente as crenças já estabelecidas. Quando começamos a reconstruir o site da New Republic, decidimos adotar uma posição conservadora. Em vez de perseguir o tráfego, a página fugiria disso como o diabo foge da cruz. Resistiríamos ao impulso de enchê-la com um fluxo sem fim de conteúdo atrás dos cliques dos leitores, espalhado com pouca noção de hierarquia. Nossas páginas digitais prezariam a beleza e a finitude; sacrificariam quaisquer ambições de atingir um público mais amplo e anunciariam de forma enérgica o idealismo do nosso projeto – que ele descrevia simplesmente como a preservação do compromisso cultural e das grandes reportagens.

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Chris não se contentava apenas com esse idealismo romântico. Sempre acreditou que poderia transformar a New Republic numa empresa lucrativa – ou, pelo menos, elevar a receita a ponto de poder alardear seu sucesso em releases para a imprensa, que nos tornariam uma aposta ainda mais promissora. Mas a retórica dele sobre os lucros nunca soou muito franca. “Detesto vender anúncios”, dizia sem parar. “Fico me sentindo sujo.” Por mais de um ano, ele gastou o próprio dinheiro com total imprudência. Olhando para trás, vejo que eu devia ter sido mais disciplinado com os cheques que a gente – ou melhor, ele – assinava. Não era difícil prever a inevitável frustração que surgiria quando Chris finalmente desse atenção à parte financeira do negócio. Mas ele tinha um fraco por alugar escritórios em localizações privilegiadas e contratar consultores da melhor qualidade. E eu tinha um fraco por pagar escritores muito bem para viajar mundo afora, encomendando matérias como se fosse um extravagante editor de Nova York. Como aquela janela de generosidade por certo se fecharia, me mexi rápido para contratar uma grande equipe, incluindo editores e escritores experientes que não eram nada baratos. Ele parecia não se importar. “Nunca fui tão feliz e realizado”, me dizia. “Estou trabalhando com amigos.” Então um dia aconteceu. Os números começaram a afetá-lo, e ele sentiu uma necessidade urgente e compreensível de gerar receita. Como não ligava para a publicidade, se recusava a pagar bem a uma equipe de vendas que negociaria com as agências. O dinheiro precisava vir de algum lugar – e esse lugar era a web. Um forte aumento no tráfego traria a receita capaz de tampar o buraco. (Contaríamos com a publicidade programática, os leilões conduzidos por algoritmos que os anunciantes usam para comprar acesso barato ao público desejado, independente dos sites em que seus anúncios são veiculados.) Estávamos vivendo, de repente, um microcosmo da história recente da mídia, numa sequência temporal que fez uma década de transição dolorosa se condensar em alguns meses de tensão. Nossa revolução digital não conseguia ter a rapidez necessária. Quando me contratou, Chris não tinha ilusões. Apesar de eu ter começado na Slate, não era o que chamavam de “nativo digital”. A web me interessava, é verdade; a busca por tráfego atiçava minhas tendências competitivas. No entanto, nada disso era uma paixão para mim. Chris, por sua vez, era um

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dos pais fundadores das mídias sociais. Embora não ligasse muito para isso, era figurinha fácil nos debates sobre mídia digital. Não apenas sentia a necessidade urgente de tráfego, como também sabia o que fazer para chegar lá. Aumentar o tráfego exigia uma nova mentalidade. Diferente da televisão, o etos do jornalismo impresso rejeitava a busca estratégica por audiência, encarando-a como uma iniciativa suja e, em certo sentido, imoral. Ou então era uma missão que cabia ao setor comercial, não a jornalistas e editores. A New Republic acreditava piamente nisso. Ela nasceu como uma revista de elite – uma invenção de intelectuais americanos da Era Progressiva que desejavam elevar o nível cultural e político do país. Com o passar das décadas, virou quase um culto, alimentando um pequeno grupo de leitores que queria ler textos especializados sobre política e considerações eruditas sobre livros. Essa mistura nunca chegou a atrair uma audiência muito robusta. Na maior parte de sua longa história, o público leitor da New Republic não encheria o estádio de futebol da Universidade do Mississippi. Do dia para a noite, precisávamos aprimorar o site para atingir milhões de leitores; tínhamos que nos livrar do nosso elitismo e chegar até as massas.

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Com certeza era possível atingir um público maior. Essa era uma lição que o jornalismo vinha absorvendo. A lição podia inclusive ser reduzida a uma equação matemática. Jonah Peretti, fundador do BuzzFeed – uma espécie de William Randolph Hearst, o barão da imprensa sensacionalista, da nossa era –, expressou a ideia assim: R = ζ.* A fórmula supostamente ilustra como uma matéria de conteúdo editorial é capaz de viralizar – como pode viajar pelas redes sociais, alcançando rapidamente uma audiência enorme, tão depressa quanto o alastramento da varíola pela América do Norte.2 A fórmula de Peretti veio justamente da epidemiologia, e a alusão a essa ciência foi intencional. Por meio de experimentos e leituras minuciosas de dados, poderíamos apostar quais matérias teriam mais chances de viralizar – ou de, pelo menos, atingir um público mais amplo.

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*  Em epidemiologia, ζ representa o número de pessoas que entra em contato com um indivíduo infectado.

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A ciência do tráfego, em desenvolvimento, era, na verdade, um ramo da psicologia comportamental – as pessoas clicavam tão rápido que nem sempre entendiam direito por que gravitavam de uma matéria para outra. Eram movidas por tendências cognitivas, forças irracionais e decisões tomadas num estado semiconsciente. Era algo tão sedutor que os leitores poderiam ser de certa maneira manipulados, uma espécie de persuasão mascarada. Chris havia aprendido sobre viralidade com um site chamado Upworthy. Tinha dado dinheiro para ajudar a lançar o Upworthy e torná-lo uma sensação na internet – “a startup de mídia com o crescimento mais rápido da história”, como a descreveu um dos vários artigos bajuladores que saíram na mídia. O Upworthy não produzia muita coisa original. Reunia vídeos e gráficos da web, em geral de procedência obscura, e depois lhes dava manchetes que os deixavam mais interessantes para um público mais amplo. A ideia era que o conteúdo carregasse uma tendência progressiva – entre o “incrível” e o “relevante”. O Upworthy pegava o material bruto de outros lugares e acrescentava o elemento mágico que fazia a coisa viralizar. Mágico não é a palavra certa. Os psicólogos tinham descoberto que era possível incentivar um estado de curiosidade insaciável. Os seres humanos não se incomodam muito com a ignorância, mas detestam se sentir privados de informação. O Upworthy planejava as manchetes de forma a fazer os leitores sentirem um apetite quase primitivo pela informação que faltava. O site foi pioneiro num estilo – que chamou de “gatilho de curiosidade” – que provocava os leitores, retendo informação suficiente para instigá-los a querer saber mais. Um exemplo clássico: “9 entre 10 americanos estão completamente equivocados quanto a essa questão surpreendente”. Seis milhões de leitores não conseguiram se conter e clicaram no link. (A questão surpreendente: a desigualdade de renda é muito pior do que a maioria dos americanos imagina.) A manchete é, sem dúvida, uma arte antiga dentro do jornalismo, mas o Upworthy – e uma legião de imitadores – submeteu-a a um rigor positivista. Para cada artigo que postava, o site criava 25 manchetes diferentes. O software permitia que as 25 fossem publicadas automaticamente, e depois determinava a mais clicável de todas. Com base nesses resultados, o Upworthy descobriu padrões sintáticos de sucesso quase garantido. (Frases como “Você não vai

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acreditar no que aconteceu depois” e suas variações costumavam funcionar muito bem.) Essas fórmulas eram tão efetivas que se tornaram lugar-comum na web – foram tão usadas que os leitores ficaram espertos, e esse tipo de truque perdeu o efeito, desencadeando uma correria frenética para descobrir a próxima novidade. A principal descoberta do Upworthy, do BuzzFeed, do Vox e de outros gigantes da internet que despontavam foi que o sucesso jornalístico podia ser arquitetado – se prestássemos atenção aos dados, era possível criar matérias com potencial de conquistar um público enorme. Essa descoberta tomou conta de toda a indústria, inclusive de veículos sérios como o Washington Post. E foi algo que também se infiltrou na New Republic. Chris botou um guru de dados na nossa equipe, para aumentar as chances de produzirmos sucessos virais. Em reuniões semanais, o sujeito chegava cheio de sugestões de temas que a gente deveria abordar. Estava sempre atento aos assuntos mais comentados no Facebook, de modo que pudéssemos criar conteúdo capaz de surfar as ondas de popularidade. Também olhava os dados históricos, para ver o que o público desejava um ano antes, e assim podíamos produzir matérias em sincronia com os interesses sazonais dos leitores. “Os anúncios no Super Bowl são coisa grande”, nos disse. “O que podemos criar para aproveitar esse momento?” Ou “Faltou porco nas lanchonetes da Chipotle e a notícia ganhou as redes sociais. O que podemos gerar?” Perguntas como essas costumavam ser recebidas com um silêncio hostil. Embora eu não me preocupasse com essa estratégia, tampouco resisti muito a ela. Chris ainda nos incentivava a publicar longos ensaios e matérias mais aprofundadas. Uma pequena dose de porcaria, aqui e ali, parecia um preço baixo a pagar. Além disso, ele fez um questionamento bem razoável: veículos de mídia altamente respeitados estavam seguindo esse caminho. Nós nos achávamos mesmo melhores que a Time ou o Washington Post? Ambos tinham adotado um gênero que ele chamou de “conteúdo-aperitivo” – eram gráficos, listas, vídeos, conteúdo ligeiro capaz de atrair a “massa de gente entediada no trabalho”, como a indústria definiu, ou as pessoas que queriam apenas passar o tempo enquanto estavam na plataforma do metrô. O assunto podia até ser sério, mas a apresentação precisava ser rápida e divertida, pronta para se espalhar via Facebook. Chris era taxativo sobre

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a necessidade de produzir esse tipo de trabalho, porque os métodos para criar conteúdo-aperitivo eram muito óbvios – e, na opinião dele, exigiam pouco esforço. Bastava imitar o restante da internet – escrever sobre os mesmos escândalos que todo mundo, cair dentro do mesmo assunto do momento. Os cliques choveriam em cima da gente se conseguíssemos nos levar menos a sério e postar clipes curtos como os do Daily Show, como todos faziam, encabeçados por uma manchete interessante e talvez com um ou dois parágrafos de análise, para sentir menos culpa. As bravatas de Jon Stewart, o apresentador do Daily Show, eram imbatíveis. Ficava difícil argumentar contra essa lógica. Todo mundo estava agindo assim, justamente porque funcionava. E a gente precisava que as coisas funcionassem.

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A New Republic não teve como resistir à força histórica que estava recriando nosso ofício, assim como aconteceu à maior parte dos outros veículos. O Vale do Silício tinha conseguido curvar o jornalismo aos seus caprichos, porque o jornalismo é frágil. Ou, falando de um jeito mais suave: o jornalismo gosta de posar como pilar da República, o que pode até ser, mas se trata de um pilar recente, que ainda não está tão alicerçado assim no solo. Os jornais americanos existem há 250 anos, mas a ideia de que os jornalistas devem escrever as notícias sem um viés partidário, de forma profissional, é algo recente, que não a chega a cem anos de história. Até pouco tempo atrás, a narrativa do jornalismo americano podia ser contada como uma história de progresso triunfante. Começou num lamaçal de grandiloquência partidária, em que até jornais sérios como o New York Times e o Washington Post eram cheios de injúrias. (O Post começou como porta-voz do Partido Democrata, criado para perseguir Rutherford B. Hayes – a quem se referia como “Sua Fraudulência”.) Mas o partidarismo representou apenas os primeiros passos da imprensa. Antes de chegarem à maturidade, os jornais precisavam passar por uma adolescência de sensacionalismo. Ao longo do século XIX, uma nova geração de barões da imprensa (William Randolph Hearst, Joseph Pulitzer) viu grandes lucros sendo gerados com o jornalismo marrom – histórias populares e vulgares sobre crime e fofoca, com ilustrações extravagantes e manchetes bem diretas. A imprensa sensacionalista

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angariou um público considerável – uma enorme massa de consumidores que podiam ser persuadidos a comprar os novos produtos que saíam das fábricas e eram vendidos nas lojas de departamentos. “O fluxo de dólares para o sensacionalismo ajudou a afastar os jornais dos partidos políticos”, escreveu o historiador da mídia Michael Schudson.3 O mercantilismo trouxe uma consequência curiosa e inesperada. Só depois que os jornais passaram a depender do mercado para sobreviver é que o jornalismo se viu rejeitando as pressões desse mesmo mercado. Começou a insistir na objetividade do ofício e a descrever sua missão como nada menos que a busca da Verdade. Havia razões sociológicas para esse novo idealismo. A publicidade acarretou uma explosão no número de jornais, o que aumentou a demanda por jornalistas e editores. Os funcionários dos jornais queriam se juntar ao grupo das profissões respeitáveis. Em vez de matizar a verdade e cuspir opiniões, os jornalistas começaram a se enxergar como “repórteres” – que recontavam a realidade de um jeito fiel. A entrevista era uma prática obscura em meados do século XIX; com a Primeira Guerra Mundial, tornou-se parte fundamental da profissão. Os anunciantes também gostaram da ideia de profissionalismo. Preferiam vender seus produtos em meio a matérias com o menor potencial de controvérsia e hostilidade. E embora os proprietários talvez preferissem usar seus veículos de comunicação como brinquedinhos particulares, passaram a aceitar a nova forma neutra de reportar apenas os fatos – que deu a seus jornais (e a eles mesmos) uma nova legitimidade. O livro fundamental da época era o Liberty and The News [A liberdade e as notícias], de Walter Lippmann, publicado em 1920. Como jovem editor ambicioso da New Republic, Lippmann tinha apoiado a Primeira Guerra, mas ficou abismado com a resposta do público ao conflito. Nunca poderia esperar o brutal e repugnante surto de xenofobia que se seguiu ao apelo às armas do presidente Woodrow Wilson. Foi um “reinado de terror”, alimentado por um “turbilhão de demagogia”.4 A ignorância completa do público o deixou pasmo, e ele pôs a culpa na imprensa: “No sentido exato, a atual crise da democracia ocidental é uma crise do jornalismo.”5 A vida moderna se tornara muito confusa. A propaganda e a distorção dos fatos atravancavam o caminho da busca pela verdade empreendida pelo cidadão comum. Elitista

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despudorado, Lippmann enxergava a reinvenção da imprensa como uma das tarefas mais urgentes da sociedade. O jornalismo podia até estar no caminho do profissionalismo, mas ele achava que era preciso acelerar o passo. Reivindicava a criação de escolas de jornalismo, um novo nível de rigor e, acima de tudo, o compromisso coletivo com o ideal de objetividade. Ao emergir da Segunda Guerra Mundial, os jornais já transmitiam uma sensação de permanência, como uma edificação em mármore. Era como se o propósito nobre sempre tivesse estado ali. Com esse ideal presunçoso, havia uma certa arrogância em relação ao público pagante, considerado quase um detalhe. Robert Darnton, que escrevia para o Times nos anos 1960, lembrou: “Escrevíamos uns para os outros. (...) Sabíamos que ninguém mergulharia nas nossas histórias mais rápido que nossos colegas; porque os repórteres são os leitores mais vorazes e precisam conquistar seu status diariamente ao se exporem a seus colegas de profissão.”6 Essa ideia de elitismo e propósito ajudou a isolar a imprensa americana de pressões perniciosas. Tornou o jornal americano inusitadamente sério. Em relação ao restante do mundo, o jornal americano se provou resistente à corrupção e ao sensacionalismo. Essa era uma crença forte, mas que hoje em dia vem sendo duramente testada por pressões que emanam de todos os lados. No início do século XXI, a profissão foi parar na UTI. Uma série de recessões instigou as empresas de mídia a apostar tudo no futuro digital, um futuro livre da estrutura burocrática e ultrapassada da publicação em papel. A sensação de crise e de oportunidade refez depressa as antigas redações. No período de uma década, o jornalismo se livrou de 1,6 bilhão de dólares referente aos salários de repórteres e editores.7 Ao mesmo tempo em que o jornalismo encolhia, seu prestígio caía por terra. Uma pesquisa classificou a profissão de repórter como o pior emprego nos Estados Unidos, atrás até de lenhador e de agente carcerário.8 Foi uma crise existencial que fez a profissão reconsiderar as razões de sua existência. De repente, todo aquele debate sobre independência parecia um luxo inacessível. Gerar receita se tornou um objetivo que os jornalistas não podiam mais ignorar. Era uma guinada perigosa. Na verdade, o jornalismo nunca fora uma iniciativa imbuída de espírito público. Isso não passava de um mito que editores e escritores gostavam de contar a si mesmos. Porém o mito tinha

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sua importância. Encorajava o jornalismo a desafiar o poder, fazia com que relutasse em se curvar aos caprichos do público; fornecia uma sensação crucial de distanciamento. Esse mito está em vias de ser triturado.

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Um dos símbolos da nova era me perseguia na New Republic. Ao longo do dia, me acompanhava aonde quer que eu fosse. Sempre que eu me sentava para trabalhar, dava uma espiada furtiva – e fazia o mesmo assim que acordava de manhã, e logo em seguida, enquanto escovava os dentes, e mais tarde, durante o dia, diante do mictório. Às vezes, só tinha olhos para os giros do medidor, ignorando a matéria que estava editando ou a pessoa sentada em frente a mim, do outro lado da mesa. Eu era um cara otimista. Esperava que o medidor subisse de repente, como exemplo do meu talento para fazer boas apostas jornalísticas. Meu amo se chamava Chartbeat, um site que fornece a editores, escritores e seus chefes uma medição em tempo real do tráfego na web, mostrando o número de leitores de todos os artigos. O site fazia crer, implicitamente, que o jornalismo é uma competição, um campeonato de popularidade. O ponteiro do site dava a sensação de que nossa revista era um carro, que ora empacava diante de um dia de tráfego ruim, ora mantinha uma velocidade de cruzeiro diante de um número satisfatório. Essa é a situação-padrão do ambiente de trabalho americano. As análises de dados são a revolução gerencial do nosso tempo. Vivemos num mundo de dados onipresentes, que fornecem a base para eficiência e produtividade cada vez maiores, se estivermos dispostos a aprender com os números. É por isso que o Chartbeat e uma gama de concorrentes tomaram conta de quase todas as revistas, jornais e blogs. A questão do Chartbeat é que nenhuma matéria tem tráfego suficiente – elas sempre podem melhorar com um certo ajuste, uma manchete melhor, uma abordagem melhor em termos de mídia social, um assunto melhor, um argumento melhor. Feito um gerente de produção que fica parado junto à linha de montagem com um cronômetro, o Chartbeat e seus similares começaram a pairar sobre as redações. O Washington Post (e, depois que eu saí, a New Republic) instalou telas gigantes de TV que mostram à equipe as estatísticas de tráfego. Jonah

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Peretti comentou, orgulhoso: “Muito do que a gente faz no BuzzFeed é dar painéis de controle a todos os funcionários da empresa, onde eles veem o nível de envolvimento das pessoas com o conteúdo que estão produzindo. Está aumentando? Diminuindo?”9 Essa geração de gigantes da mídia, que nasceram com a internet, não tem paciência para o antigo etos jornalístico de imparcialidade. Não que essas empresas não tenham grandes aspirações jornalísticas. O BuzzFeed, o Vice e o Huffington Post querem ser jornais pós-modernos. Investem na excelência de reportagem e contam com jornalistas de primeira linha na equipe. Mas essas empresas não tentam se isolar das pressões do mercado. A busca por audiência – a vontade de vencer o campeonato de popularidade digital – é central para sua missão. Elas permitiram que o interminável circuito de retroalimentação da web – a enxurrada de dados sem fim – moldasse a lógica jornalística, determinando seus investimentos. Tomemos como exemplo o BuzzFeed, que, num determinado momento, promoveu a estratégia de “no haters”. A ideia era que histórias negativas não tinham muita chance de viralizar. Jonah Peretti explicou com a clareza que lhe é característica: “Se tem uma coisa que é uma lástima total, as pessoas não compartilham. (...) O problema é que depois de ler esse tipo de coisa, as pessoas ficam deprimidas. (...) É quase como se você mandasse uma energia ruim pros seus amigos, então por que alguém faria um negócio desses, mandar energia ruim pros amigos?” As palavras de Nick Denton, o gênio do mal por trás do Gawker, que acabou fadado ao esquecimento, são ainda mais esclarecedoras: “Ninguém quer comer aqueles legumes sem graça. E ninguém quer pagar para incentivar as pessoas a comer legumes. Mas vejam o meu exemplo. Eu cobria as reformas políticas no Leste Europeu pós-comunista, que tinha sido o tema da minha dissertação em Oxford. E agora eu digo aos escritores que os números (ou seja, a audiência) não apoiarão nada valioso. Não dá nem para escrever histórias sobre magnatas como Rupert Murdoch ou Barry Diller se não usarmos fotos deles desfilando com carne jovem. (Eu gostava dessas histórias antigamente, antes das métricas da web.)”10 É uma abordagem vulgar, mas bem-sucedida. Podemos ver sua influência na forma como o New York Times ficou nitidamente salivando diante do sucesso do BuzzFeed. Três anos atrás, o Times encomendou um “Relatório

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de inovação” – um documento interno que acabou escapando dos muros da empresa e vazou na internet. O relatório criticava o jornal por não conseguir competir com vigor na web. Era um documento inusitado de autoflagelação, em especial porque o Times tinha construído um site sofisticado em termos tecnológicos. Mas havia motivos para consternação. O jornal entrara na disputa pela popularidade na web, mas não se deu conta disso. Não se prendia aos dados e às estatísticas com o mesmo fervor que o BuzzFeed, o que significa que, na verdade, não tinha a menor ideia de como dominar a internet. Produzia as bizarrices para a web, mas nunca se preocupou em criar modelos para replicá-los. Acima de tudo, o jornal se agarrava ao antigo etos do jornalismo, aquele que resistia ao lado comercial, que se preocupava com a possibilidade de envenenar a busca pela verdade com a busca por lucros. “O primeiro passo, no entanto, deveria ser um empurrão deliberado para abandonar nossas metáforas preferidas – ‘O Muro’ e ‘Igreja e Estado’ –, que transmitem uma necessidade persistente de divisão”, declararam os autores do relatório.11 O relatório estava certo ao descrever os valores conservadores do Times, e deveríamos agradecer por esse fato. Embora tenha dado alguns passos na direção do BuzzFeed, o jornal resistiu à transformação revolucionária e continua sendo o melhor jornal do mundo. Mas a questão é que o declínio rumo à conformidade e à mediocridade não acontecerá num piscar de olhos. O que protege o jornalismo são as normas profissionais, e apenas elas. Com intimidação contínua e a pressão de instâncias superiores, as normas podem ser trituradas em pedacinhos. Quando elas desaparecerem, o jornalismo estará derrotado.

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O termo fundamental desta era midiática é “tendência”. O Facebook e o Twitter apresentam uma lista dos assuntos que estão em vias de se tornar onipresentes. E as grandes empresas de mídia têm um sofisticado conjunto de ferramentas analíticas – um serviço chamado CrowdTangle, por exemplo – que as alerta sobre os trending topics que estão começando a rota ascendente de popularidade. Assim que uma história chama atenção, a mídia se agarra a ela sem pensar. Os veículos escrevem sobre o assunto com um furor repetitivo, explorando-o em busca de cliques, até o público perder o interesse.

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Um exemplo marcante, mas ao mesmo tempo completamente descartável: a foto de um caçador de Minnesota orgulhoso, sorrindo diante do cadáver de um leão chamado Cecil, gerou mais de 3,2 milhões de artigos. Todas as empresas de notícias – até o New York Times e a New Yorker – tentaram provocar histeria, para extrair algum tráfego do episódio. Para isso, era preciso encontrar um ângulo original – ou pelo menos um ângulo relativamente original. Vox: “Comer frango é moralmente pior do que matar o leão Cecil.” BuzzFeed: “Uma médium afirma ter falado com o leão Cecil.” Atlantic: “Do leão Cecil à mudança climática: uma tempestade de indignação.” E por aí vai, numa enxurrada de conteúdo efêmero dissecando o efêmero. De certa forma, essa é apenas a versão digital, aprimorada, do apedrejamento nos veículos tradicionais já ultrapassado: uma explosão de clamor moralista, explorado à exaustão. Mas as mídias sociais amplificam o incentivo financeiro para integrar a manada. Até uma revista minúscula tem chances de conquistar a viralidade, de atrair milhões de leitores, se conseguir embalar suas matérias de um jeito perspicaz. Publicações mais sofisticadas não sentem a menor culpa em despejar artigos sobre os assuntos da moda, contanto que venham vestidos com uma certa pretensão acadêmica ou talento argumentativo. Os resultados não são nada originais. Assim como em Hollywood, tempo e dinheiro são despejados em produtos previsíveis, imitações criteriosas de sucessos anteriores. Joshua Topolsky, um dos fundadores da Vox Media e do portal The Verge, reclamou dessa homogeneização insidiosa: “Tudo tem a mesma cara, se lê igual e compete pelos mesmos olhos.”12 O problema não é apenas a dependência da mídia em relação às empresas do Vale do Silício. É a dependência em relação aos valores do Vale do Silício. Da mesma forma que aconteceu às empresas de tecnologia, o jornalismo transformou os dados em fetiche. E esses dados acabaram corrompendo o jornalismo. Os repórteres e seus chefes podem até garantir que não é assim. Podem fingir que estão acima da informação, que ignoram, criteriosamente, os números e continuam na busca pelas verdades mais elevadas e pelos interesses mais nobres. Mas os dados são uma caixa de Pandora. Uma vez que descobrem o que funciona, qual conteúdo gera tráfego, os jornalistas vão em busca justamente disso. É a própria definição do verbo “ceder”, e as consequências são horríveis.

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Donald Trump representa o ápice dessa era. Ele entendeu que – mais do que em qualquer outro momento da história recente – a mídia precisa dar ao público o que ele quer, um circo que explora tendências e inclinações subconscientes. Por mais que desdenhasse das atrocidades de Trump, a mídia ajudou a construí-lo como personagem e candidato plausível. Durante anos, jornais e revistas circularam as teorias de Trump de que o presidente Obama teria nascido em outro país, embora fosse tudo uma grande mentira. A mídia também deu muita atenção às calúnias iniciais dele sobre imigrantes, embora soubesse que essas provocações alimentavam uma atmosfera de paranoia e ódio. Quando Trump se tornou um candidato possível, não houve escolha: os veículos de comunicação tiveram que cobri-lo. Mas foi a mídia que o fez chegar a esse ponto. As histórias sobre Trump produziam o tipo de tráfego que agradava aos Deuses dos Dados e melhoravam os resultados. Trump começou como o leão Cecil e acabou presidente dos Estados Unidos.

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A profusão de dados mudou a natureza do jornalismo, que foi transformado em mercadoria, em algo a ser negociado, testado e calibrado. Talvez a mídia sempre tenha pensado dessa forma. Contudo, se esse impulso sempre existiu, pelo menos era atenuado. As revistas e os jornais se enxergavam como um todo coerente – uma publicação, uma edição, uma instituição. Não como empresas que publicam dezenas de artigos desconexos para trafegarem todos os dias via Facebook, Twitter e Google. O público do jornalismo pode até ser maior, mas a mentalidade é mais tacanha. A ideia de reunir artigos em algo maior era libertadora em termos intelectuais. Se os leitores não queriam uma reportagem sobre a pobreza na infância ou um relatório sobre o Sudão do Sul, pouco importava. Não julgariam quem o fizesse. Na verdade, talvez até ficassem lisonjeados por alguém ter pensado que eles gostariam de ler um artigo desses, por mais que saltassem as páginas sem dó nem piedade. Os editores justificavam os artigos nobres e quixotescos como essenciais para o “mix”. Hoje, os textos estão sujeitos a uma análise de custo-benefício: o artigo vai gerar tráfego suficiente para justificar o investimento? Às vezes, essa análise é explícita e consciente, embora muitas vezes seja subconsciente e

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envolta em eufemismo. É o raciocínio que leva os editores a declarar que uma ideia “não vale o esforço” ou a se preocuparem com a possibilidade de um artigo “afundar”. O jornalismo se preocupava muito com a separação entre a esfera editorial (Igreja) e a esfera secular, de negócios (Estado). Hoje podemos entender as justificativas para tanto fanatismo envolvendo a ideia de construir um muro espesso e alto entre as duas instâncias. O medo era que entrássemos num mundo em que os leitores não saberiam a diferença entre o que era conteúdo jornalístico e o que era anúncio – em que a mão corruptora dos anunciantes interferisse na busca jornalística pela verdade. Esse medo está a ponto de ser concretizado. A primeira brecha na barricada é algo chamado “conteúdo de marca” ou “publicidade nativa”. Esses anúncios pretendem solucionar o problema da publicidade na web – todos aqueles banners que ficam no topo das páginas viraram um tremendo ruído, a que ninguém presta atenção, uma forma ineficaz de promover as empresas. Esse tipo de banner fica à margem do conteúdo editorial. A ideia do conteúdo de marca, ao contrário, é que seja integrado à própria estrutura do site. É um anúncio escrito de forma a parecer jornalismo – uma pseudomatéria sobre um novo consenso científico sugerindo melhores formas de parar de fumar, veiculada na Time, ou a simulação de um artigo sobre a mão de obra emergente, no New York Times. É verdade que os anúncios costumam ser produzidos pelas próprias empresas de mídia, e não por agências de publicidade. (Em geral, as empresas de mídia alegam que sua equipe de jornalistas e editores não tem nada a ver com essas matérias, embora tipicamente seja a legião de freelancers quem faz o trabalho sujo.) Contudo, o muro não foi completamente abaixo. Costuma haver um marcador indicando que o artigo foi “patrocinado” ou “pago por anunciantes”. Mas isso é feito da forma mais discreta possível, e essa é a questão. Os anunciantes pagam bem pelo conteúdo de marca, justamente porque são enormes as chances de o leitor se confundir. Soa escandaloso que instituições jornalísticas sejam capazes de criar todo um negócio pautado na ideia de confundir os leitores. Mas o escândalo vai mais além. O conteúdo jornalístico cada vez mais se parece com publicidade. Muitas publicações na internet escrevem sobre empresas e produtos com uma

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empolgação que faz lembrar os anúncios. Não é coincidência. Para vender anúncios, elas ajudam a criar um ambiente no qual anunciantes tenham certeza de que sua mensagem será ouvida, ou melhor, confundida com conteúdo jornalístico. O BuzzFeed era o reductio ad absurdum disso. Desde o início, decidiu tornar a publicidade de marca sua principal fonte de receita. Para apoiar esse propósito, criava conteúdo com cara de release. Andrew Sullivan começou a levantar o assunto, fazendo disso uma diversão. Divulgou um texto chamado “Adivinhe qual matéria do BuzzFeed é um anúncio”.13 Era praticamente impossível detectar qualquer diferença – “19 coisas incríveis que você não sabia sobre o Dunkin’ Donuts”; “O teclado do novo iPhone muda tudo”; “O único post que você precisa ler sobre o PlayStation 4”. (Supostamente, todos esses eram trabalhos legítimos de jornalismo, e não publicidade.) O BuzzFeed parecia confundir publicidade e conteúdo jornalístico. Quando jornalistas publicavam matérias fazendo críticas a algum anunciante, os gestores do BuzzFeed excluíam essas matérias do site. (Depois da comoção pública, a empresa reconheceu os erros e prometeu não repeti-los.) A relação entre anunciante e mídia se transformou. Só pela linguagem já é possível notar a mudança: “patrocinador”. Os anunciantes não estão mais apenas comprando espaço para vender seus produtos; agora agem como se fossem patronos beneficentes do jornalismo. Nesse ponto dá para ver os sinais de algo muito pior. Virou lugar-comum as organizações jornalísticas recrutarem corporações e fundações para servir de patrocinadores iniciais. Anunciantes financiam a estreia de novos produtos jornalísticos. Um dos motivos para um anunciante fazer isso é absolutamente inofensivo: trata-se de uma boa forma de exposição. Mas há outro motivo, mais pernicioso: o anunciante acaba tendo um papel obscuro no sentido de moldar o produto. Esse foi um caminho que adotamos na New Republic. Chris Hughes conseguiu que o ativista bilionário Tom Steyer pagasse centenas de milhares de dólares para uma nova seção do site que cobriria o papel da mudança climática nas eleições para o Congresso – ao mesmo tempo em que Steyer gastava milhões tentando influenciar as eleições a levantar a questão da mudança climática. Chris também conseguiu que o Credit Suisse pagasse por uma nova seção do site dedicada ao futuro da atividade dos bancos, ao mesmo tempo em que o banco tentava se recuperar das acusações de

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sonegação fiscal. Os anunciantes estavam tentando comprar o editorial da New Republic para transmitir exatamente as mensagens que eles desejavam, sem que os leitores tivessem ideia da enorme infusão de dinheiro por trás da iniciativa. Não vale a pena botar panos quentes: esse tipo de arranjo é corrupto e ponto final. No fim das contas, meus colegas e eu conseguimos sabotar os piores ultrajes. Steyer ficou tão frustrado com a nossa equipe, que decidiu simplesmente comprar “conteúdo patrocinado”. O Credit Suisse concluiu que era arriscado pagar a um bando de liberais para cobrir o futuro do negócio bancário; o banco acabou patrocinando o equivalente a um mês de artigos sobre política identitária. Os defensores da publicidade nativa têm um ponto: isso está longe de ser um Armagedom. Locutores de rádio sempre anunciaram produtos enquanto liam as notícias, sem fazer qualquer transição. Durante décadas, a página do editorial do New York Times incluía uma propaganda permanente da Mobil Oil, identificada como tal, mas no meio dos colunistas de prestígio. O problema é que a relação entre os anunciantes e o jornalismo ficou muito turva. As regras foram afrouxadas, as normas mudaram. Até pouco tempo atrás, a Sociedade Americana dos Editores de Revistas era extremamente tradicionalista, proibindo com veemência que os jornalistas tocassem nos anúncios publicitários. Mas em 2015 as diretrizes foram suavizadas. O que antes era uma condenação estridente virou uma simples sugestão: “Os editores devem evitar trabalhar com o mesmo anunciante sobre quem produzem matérias.” Está na hora de entender essas mudanças como concessões perigosas. Os anunciantes estão comprando influência, comprando uma aparência de legitimidade jornalística e flexibilizando todas as regras que sustentam a integridade da profissão.

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Certa vez, Chris Hughes e eu nos sentamos à mesa do café da manhã de um imponente hotel em Washington, para refletir sobre as principais características da New Republic – a New Republic que recriaríamos juntos. Não chegamos a falar explicitamente, mas estávamos em busca de um terreno comum, de um adjetivo que conseguisse unir tudo que nós dois queríamos

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para a revista. Era como andar em círculos. Se houvesse um quadro branco – e Chris adorava quadros brancos –, ficaria repleto de termos descartados. Mas aquela verborragia inútil foi o prelúdio infrutífero para um lampejo criativo. “Somos idealistas”, disse ele. “Isso amarra o nosso passado célebre ao nosso otimismo em relação às soluções para o futuro.” “Idealismo” era uma palavra que derretia meu coração, e senti uma alegria incontrolável diante da perspectiva de consenso. “Na mosca! É isso.” Éramos idealistas quanto ao idealismo que compartilhávamos. Alguns objetivos coincidiam. Ambos queríamos que a New Republic prosperasse; acreditávamos numa visão ativista do governo americano; na importância de elevar a cultura rumo ao cosmopolitismo; e adorávamos a ideia das grandes reportagens. Essas semelhanças bastaram para nos iludir, fazendo nós dois acreditarmos que compartilhávamos o mesmo idealismo. A visão de mundo de Chris era fundamentalmente tecnocrática, e a minha era mais moralizadora e romântica. Enquanto ele gostava da ideia das grandes reportagens, eu acreditava ideologicamente nisso. Ele acreditava em sistemas – regras, medidas de eficiência, organogramas, reuniões e ferramentas de produtividade. O mundo era passível de aperfeiçoamento, mas o progresso exigia que fossem descartadas as emoções excessivas, os insultos e o partidarismo desmesurado. Essa visão de mundo o colocava em rota de colisão com os espíritos livres, intelectualizados e engajados politicamente, que ocupavam nossa redação. Gente que escrevia com convicção, fazendo hora extra e indo atrás dos assuntos que lhes dava mais satisfação, não necessariamente o que mais agradava às massas. Antes de tudo acabar mal, Chris compartilhou comigo sua visão atualizada sobre o futuro da revista, o lugar para onde seu idealismo o levara. Ele já era dono da New Republic fazia dois anos, e estava ficando ansioso. Os resultados – que para ele se traduziam em maior tráfego na web e maiores receitas – precisavam aparecer mais rápido. “Para salvar a revista, precisamos transformá-la”, me disse. Engenheiros e profissionais de marketing passariam a ter um papel-chave no processo editorial. Agregariam ao nosso jornalismo os atributos de “frescor” e “inovação” que o tornariam popular, ajudando a se destacar no mercado. Para isso, era preciso ter recursos, e esses recursos viriam do fundo que financiava as grandes reportagens. Eu não estava preparado

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para o plano dele nem para sua forma de descrever a New Republic. “Somos uma empresa de tecnologia”, me disse. E a minha resposta foi: “Não acho que seja o tipo de empresa que estou apto a comandar.” Ele me garantiu que eu daria conta do recado. Dois meses depois, fiquei sabendo por um colega que Chris tinha contratado o meu substituto – e o meu substituto andava promovendo almoços por Nova York, oferecendo empregos na New Republic. Antes de Chris me demitir, eu mesmo pedi demissão, e quase toda a equipe editorial da revista debandou também. O idealismo deles exigia que resistissem ao idealismo do patrão. Não queriam trabalhar para uma publicação cujo etos se alinhasse mais com as empresas de tecnologia do que com o jornalismo. Estavam dispostos a dar bastante atenção ao Facebook, mas não queriam ver seu trabalho definido por isso. O rompimento atraiu uma boa dose de atenção e depois perdeu força – um pequeno obstáculo na trajetória do Vale do Silício para engolfar o jornalismo.

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programa mais amplo. As empresas de tecnologia querem derrubar uma ideia enraizada no âmago da civilização ocidental. Durante trezentos anos, nossa cultura venerou a ideia de gênio – conceitos como originalidade e inovação intelectual viraram fetiche. Talvez haja nisso uma certa fixação exagerada. Para afirmar o óbvio, sabemos que não existe ideia absolutamente original. A vida intelectual nunca é tão solitária quanto parece. Mas houve excelentes razões para aderirmos ao culto à noção de gênio. Consideramos que a humanidade é capaz de progredir moralmente. Os avanços requerem uma infusão constante de ideias novas, cuja produção farta devemos incentivar. Acreditamos que a conformidade é espiritualmente e moralmente destrutiva, então celebramos seu oposto. Os conceitos de gênio e originalidade foram duas das ideias mais significativas e duradouras que surgiram com as revoluções intelectuais do século XVIII. O Vale do Silício tem uma visão completamente diferente a respeito da criatividade humana. Essas empresas acreditam nas virtudes da colaboração: grupos que trabalham de forma harmônica produzem ideias melhores do que indivíduos isolados. Elas consideram a originalidade um ideal superestimado, até pernicioso. Ao enfatizar a questão do gênio, permitimos que um pequeno grupo de escritores profissionais aja como se monopolizasse o conhecimento ou possuísse habilidades sobre-humanas. A aura de genialidade que envolve o escritor de sucesso cria a impressão de que as massas têm pouco potencial criativo, o que serviu de justificativa para alimentá-las à força com a produção criativa desse pequeno sacerdócio de gênios. Se o Vale do Silício estivesse apenas ridicularizando nosso antigo fetiche pela questão do gênio, seria uma atitude inofensiva, talvez até saudável. Mas

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os objetivos são muito mais revolucionários do que isso. A ideia é desmantelar as estruturas que até hoje protegeram nossa concepção de autoria. O Vale do Silício travou uma guerra contra os escritores profissionais, na tentativa de enfraquecer as leis de direito autoral que permitem que esses escritores consigam viver do que escrevem. Em seu plano de negócios, o valor do conhecimento é radicalmente esvaziado, tornando a escrita uma mercadoria barata e descartável. Para ter sucesso nessa estratégia, tentou-se minar o prestígio do autor profissional. Essa guerra é mais um exemplo do falso populismo do Vale do Silício. Como não podia deixar de ser, o principal teórico por trás disso é um professor de direito de Harvard.

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Muito antes do advento dos Ted Talks havia Larry Lessig. Suas palestras e discursos eram espetáculos hipnotizantes de inteligência, pontuados por elementos de multimídia.1 Tornaram-se muito famosos. Até hoje, um tutorial oficial da Microsoft ensina como dar uma palestra “no estilo Lessig”. Mais do que qualquer outro acadêmico de sua geração, Lessig compreende a fundo o Zeitgeist. Antes de seus pares, professores de direito, ouvirem falar da internet, ele já era especialista no assunto. Mas isso não lhe dá crédito suficiente: Lessig fez mais do que estudar a internet; ele a defendeu contra ameaças existenciais. Para o perfil de uma revista, foi descrito como “uma espécie de messias da internet”.2 O que tornou sua empreitada intelectual tão impressionante foi a área acadêmica aparentemente limitada de onde Lessig se lançou. Seu tema era a jurisprudência do direito autoral. Mas muito cedo ele testemunhou o esforço opressivo das indústrias de entretenimento para criminalizar o download de músicas, a campanha para prender jovens pela infração relativamente inocente de compartilhar arquivos. Vociferou contra esses esforços com tamanha paixão, que atraiu hordas de seguidores. Embora Lessig escrevesse sobre as nuances da lei, seu verdadeiro debate era sobre cultura. Apesar do pedigree de elite – diplomas em Oxford e Cambridge, assessor jurídico da Suprema Corte –, ele formulou um caso extremo, na fronteira do utópico. Escrevia com um lirismo assombroso. Seu argumento era que a internet transformaria os meios de produção cultural. No século

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XX, a cultura tinha sido arrancada dos indivíduos. Fora colocada sob os ditames de corporações avarentas, que nos enchiam de porcarias lucrativas. As massas foram reduzidas a meros consumidores, uma audiência que não desgrudava do sofá e absorvia passivamente o cinema, a televisão e a música produzida em Los Angeles e Nova York. “Nunca antes na história cultural da humanidade a cultura criativa foi tão profissionalizada, tão concentrada. Nunca antes a criatividade de milhões foi deslocada com tanta eficiência.”3 A internet representava a oportunidade de transcender esse modelo ou, melhor ainda, ressuscitar um modelo muito antigo. O argumento dele adotava mais ou menos a seguinte linha: no passado, os indivíduos colaboravam ativamente para a criação de cultura. Essa era a essência das tradições populares. As pessoas se apropriavam das canções, ajustavam aqui e ali, refazendo-as como se fossem suas; recontavam histórias, acrescentando ornamentações próprias. Manifestações culturais superiores também funcionavam assim. O que era um Mark Twain além de um hábil recriador das lendas afro-americanas entreouvidas quando jovem? Se os críticos fossem francos, admitiriam que todo artista operava do mesmo modo – pegando emprestado, citando, criando obras supostamente originais a partir do trabalho de outros artistas. Na essência, o jazz envolve a reinterpretação constante de antigos sucessos; sem qualquer pudor, o hip-hop surrupia suas batidas e seus ganchos. Os grandes poetas faziam igual. T.S. Eliot, que costurava citações alusivas e elusivas em meio a seus versos, cunhou o seguinte ditado: “Poetas imaturos imitam; poetas maduros roubam.”4 Lessig deu à visão de Eliot uma interpretação cibernética. Descreveu a diferença entre o estilo opressor de Hollywood, de uma “cultura exclusivamente de leitura”, e a cultura participativa da internet, de “leitura-escrita”. No alvorecer da internet, essas duas culturas estavam envolvidas numa verdadeira guerra de civilizações. Com medo da ameaça que a cultura da “leitura-escrita” representava para seus negócios, os conglomerados acusavam, desenfreadamente, civis inocentes e empresas de tecnologia idealistas de violarem as leis de direito autoral. Era importantíssimo acabar com essa campanha, escreveu Lessig. “Se a batalha do século XX era do comunismo vs. capitalismo, o embate do século XXI será do controle vs. liberdade.”5

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Esses argumentos contrariavam as ideias de autoria culturalmente arraigadas. Eram ideias que estavam na base das leis de direito autoral que ele queria diluir – e nos ideais românticos envolvendo a escrita, transmitidos às crianças ao longo dos séculos. A noção antiquada de autoria enfatizava a importância da originalidade. A cultura ocidental fez do plágio um tabu passível de punição; era uma cultura que torcia o nariz para o pensamento que derivava de algo, enxergando-o como algo preguiçoso. O questionamento a essa antiga ideia de autoria não vinha apenas da parte de Lessig. Na verdade, algumas das organizações que Lessig criou para desenvolver seus argumentos receberam cheques do Google, que tinha suas razões particulares para promover uma crítica ao direito autoral.6 E a maior parte do Vale do Silício estava de acordo. Nos primeiros anos da internet, teóricos da tecnologia celebravam fervorosamente a ideia de amadorismo. As elites tinham tamanho poder sobre o país, que as massas não conseguiam manifestar sua criatividade. Clay Shirky descreveu a genialidade reprimida como “excedente cognitivo”. A internet ajudava a liberar esse excedente – permitia que blogueiros expressassem as verdades que comentaristas de carreira não tinham coragem de falar; o jornalismo cidadão conseguia novos furos de reportagem; a Wikipédia logo desbancou a Britannica em profundidade e alcance. Os amadores conseguiam produzir tanta coisa brilhante graças à pureza de suas paixões. Conforme escreveu Shirky: “Às vezes, os amadores se diferenciam dos profissionais por uma questão de habilidade, mas sempre por conta da motivação; o termo em si vem do verbo amare, em latim – ‘amar’. A essência do amadorismo é uma motivação intrínseca: ser amador é fazer uma atividade por amor a ela.”7 Nossa antiga ideia de autoria romantizava o gênio individual. Celebrava a labuta solitária diante de uma mesa como a forma mais elevada de criação. O Vale do Silício defendia uma teoria diferente sobre criatividade, enfatizando as virtudes da colaboração. Reid Hoffman, cofundador do LinkedIn, declarou com entusiasmo: “Ninguém consegue ter sucesso sozinho (...). A única forma de conquistar algo grandioso é trabalhando com outras pessoas.”8 Isso se refletia nos inúmeros termos queridinhos do Vale do Silício: “produção colaborativa”, “mídia social”, “conhecimento descentralizado”. O saber podia estar no acúmulo de enormes séries de dados, na análise da movimentação

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dos mercados. É o que está na essência do ranking que o Google faz dos sites, nos algoritmos de recomendação da Amazon e no feed de notícias do Facebook – todos inferidos a partir do saber acumulado das multidões. Há uma ironia gritante nessa visão sobre a criatividade. Ela contraria o próprio mito fundador do Vale do Silício. De acordo com a história que se conta sobre a tecnologia, e que os próprios tecnólogos contam sobre si, a criatividade é personificada pelo empreendedor destemido, o geek que trabalha isolado numa garagem. Isso talvez se assemelhe à ideia de Ayn Rand sobre a individualidade heroica e possa explicar por que tantos tecnólogos migram para o liberalismo. A versão de Rand sobre o liberalismo também celebra o egotismo. E nessa visão de cultura, o egotismo é bem relevante. Os titãs da tecnologia podem até atingir uma originalidade espantosa e uma genialidade solitária, mas não o resto do mundo.

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A visão do Vale do Silício sobre a criatividade é medieval. Antes do Iluminismo, a Europa não valorizava muito os autores. Também menosprezava a ideia de original, ainda que por razões diferentes das de Lessig. A criatividade era sempre atribuída à fonte divina de inspiração: “Só Deus é quem cria”, afirmou Tomás de Aquino.9 Os seres humanos só conseguiam produzir imitações imperfeitas do original divino. Os escritores eram criaturas dependentes e muito impotentes. Precisavam contar com a boa vontade de patronos da realeza e da aristocracia para financiar a produção de suas obras e lhes garantir o sustento. Ao vender um manuscrito, o escritor abria mão do controle sobre ele.10 O texto podia ser reescrito, ampliado ou retalhado em pedaços por um copista ou impressor. Ao escritor não sobrava escolha senão submeter sua obra ao abate. A originalidade não era uma virtude muito valorizada. Hoje enxergamos o plágio como um pecado intelectual grave, mas na época o ato de afanar palavras e tramas corria solto. Na verdade, era visto como ferramenta básica do ofício. Um bom percentual da obra atribuída a Chaucer consiste de tradução e paráfrase. Shakespeare, por exemplo, era um poeta brilhante e muito talentoso na arte de tomar empréstimos. Pegou trechos de A trágica história de Romeu e Julieta, de Arthur Brooke, e da vida de Marco Antônio,

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de Plutarco. “Eu sou ‘um tanto’ assombrado pela convicção de que o divino William é a maior e mais bem-sucedida fraude já praticada num mundo resignado”, escreveu Henry James.11 Mas se ele foi mesmo um plagiador – e esse é um termo muito pesado e injusto –, teria sido impossível fazer essa acusação na época, uma vez que a palavra ainda não tinha sido cunhada. Como na utopia de Larry Lessig, a cultura era um esforço coletivo; a criação era guiada pela tradição. Copiar e colar talvez exigissem um pouco mais de energia do que o clique de um mouse, mas esse era um método de criatividade amplamente difundido. Devemos ser gratos a esse modo de produção por ter proporcionado o surgimento de sólidos monumentos culturais, mas seria ingênuo celebrá-lo como um ideal. Havia um profundo conservadorismo nesse método. Para descrevê-lo, o grande crítico literário M.H. Abrams usou a metáfora do espelho. A escrita não tinha a pretensão de mudar o mundo; o objetivo era refleti-lo e imitá-lo. Copiar era o ideal natural para uma sociedade que dependia da obediência à Coroa e à Igreja, que resistia com unhas e dentes às mudanças. A tecnologia, sob a forma da máquina de impressão, ajudou a estilhaçar o espelho. O novo maquinário tipográfico chegou com o capitalismo e o Iluminismo. Ou seja, a máquina de impressão criou o potencial de produção em massa no mundo da escrita; o capitalismo criou o potencial de um mercado de massa para esse mundo; e o Iluminismo propiciou o ambiente político e intelectual para que a escrita florescesse. De súbito, escribas e copistas viraram figuras rudimentares; e os escritores ganharam uma aura heroica. Em parte, isso foi obra dos editores de livros. Para se destacar num mercado concorrido, é preciso diferenciar e promover seu produto. Um livro é mais vendável quando reflete a mente de um gênio. Se antes eram artesãos anônimos, operários das palavras, os escritores passaram a ser dignos de um pedestal. A figura-chave para essa transformação foi William Wordsworth. Ele era muito mal pago por seu trabalho e chegou a dividir trinta libras com Samuel Coleridge, pela venda de Baladas líricas (1798). Essa estava longe de ser uma quantia adequada para um gênio – o que ele considerava a definição de vocação artística verdadeira. As aspirações de Wordsworth eram muito maiores do que espelhar a realidade. Na visão dele, um escritor que apenas registrasse ou recriasse era um fracasso. Ou,

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na formulação de M.H. Abrams, os escritores deviam ser como lâmpadas, projetando com incandescência percepções originais para o mundo. Wordsworth escreveu: “Quanto ao gênio, a única prova é o ato de fazer bem o que vale a pena ser feito, e o que nunca foi feito antes (...). O gênio introduz um novo elemento ao universo intelectual.”12 O gênio só podia florescer a partir de uma recompensa adequada – e essa compensação só faria sentido se a lei protegesse a obra dos artistas contra os pirateadores. (Como os poetas dificilmente eram apreciados por seus contemporâneos, as proteções de direito autoral precisavam ser extensas – para que o gosto do público tivesse tempo suficiente de alcançar o gênio.) Wordsworth passou décadas fazendo lobby pela ampliação substancial do direito autoral, criado cem anos antes, com o Estatuto da Rainha Ana. “Negues isso a ele (ao gênio), e estarás deixando um peso sobre seu ânimo, que acabará atenuando seus empenhos; ou o obrigarás a aplicar suas habilidades (...) em usos inferiores.”13 A causa de Wordsworth pelo direito autoral pode muito bem ter sido por interesse próprio e autoengrandecimento, o que não chega a surpreender. A originalidade exige arrogância. É a fé presunçosa de que existem novas ideias a serem geradas, novas formas a serem inventadas. Precisamos atribuir à originalidade um status mais elevado, porque do contrário a cultura tenderia à banalidade e ao clichê. Ter uma nova ideia é arriscado, porque novas ideias muitas vezes caem por terra. A tendência da cultura é sempre se repetir, seguindo fórmulas já estabelecidas, uma vez que a maneira mais garantida de ganhar dinheiro e popularidade é repetir o que deu certo antes. A ideia de gênio pode até ser uma certa balela, mas é uma balela culturalmente importante. Para falar na linguagem do Vale do Silício, precisamos perpetuar a ideia de gênio porque é uma ideia que gera inovação. Evidente que o Vale nunca aceitaria essa análise, porque reduziria seus lucros.

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Na Alemanha e na Inglaterra, os românticos escreveram sobre a ideia de gênio com a mesma força retórica de Wordsworth. Assim também o fizeram os Pais Fundadores dos Estados Unidos, mas não foram muito bons na questão da proteção da autoria. Inseriram o direito autoral na Constituição, só que

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deixaram uma brecha escancarada. A lei americana nada dizia sobre os direitos se estenderem às obras estrangeiras. Cópias piratas de livros ingleses acabaram inundando o mercado americano. As edições pirateadas eram baratas e de má qualidade. Em Londres, um leitor gastava cerca de 2,50 dólares por um exemplar de Um conto de Natal, de Dickens.14 Do outro lado do Atlântico, o mesmo exemplar era vendido por seis centavos. Quando os livros não vendiam bem na Inglaterra, os editores os mandavam para o enorme saldão que eram os Estados Unidos. Essa abundância era mais acentuada ainda por conta da concorrência acirrada entre os editores americanos. Em 1830, dez casas editoriais só na Filadélfia estavam produzindo exemplares aos montes da obra de Sir Walter Scott.15 O editor Henry Holt exultou: “[O] negócio vivia em grande medida do que era moral, e talvez legalmente, roubo.”16 Os escritores ingleses espumavam de raiva diante dessa situação. Quando Charles Dickens foi aos Estados Unidos em 1842, passou a viagem inteira protestando contra as edições americanas. “Pela legislação vigente, eu sou o maior perdedor vivo”, lamentou.17 Rudyard Kipling, outro grande perdedor desse sistema, fez um pedido especial a um impressor para que suas queixas contra um editor americano aparecessem em papel higiênico: “Como você imprime esta propriedade roubada de forma extremamente vil e suja, será amaldiçoado do Alasca até a Flórida e depois no caminho de volta.”18 A situação criou um paradoxo curioso. Os americanos eram muito letrados, mas a literatura americana era bastante periférica. Os escritores canônicos do século XIX – que infelizmente nunca alcançaram em vida a reputação merecida – dependiam de empregos na alfândega, nos consulados ou em outras funções do serviço público. (Os partidos políticos também forneciam vagas regulares para escritores dispostos a produzir propaganda.) Os grandes impressores do início da República raramente se envolviam com livros. Apesar do bom dinheiro que Benjamin Franklin conseguiu com seu Almanaque, ele não chegou a imprimir outras obras. Quando Walt Whitman quis publicar Folhas de relva, foi obrigado a assumir pessoalmente os custos de impressão. Escrever não era uma profissão. A atividade era considerada um hobby para nobres homens de letras – que queriam compartilhar sua vida de erudição com o mundo e consideravam vulgar qualquer recompensa por suas palavras eruditas. Henry Holt repreendia aqueles que tentavam manchar as nobres

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palavras falando em dinheiro. “Poucos são os homens que já dependeram, felizes, de sua pena para obter rendimentos (...) A maioria dos bons autores, de Shakespeare para baixo, tinha outros recursos. Há algumas ocupações em que é muito arriscado fazer do ganho monetário o fim principal.”19 Mark Twain enxergou para além desse disparate todo. Tornou-se o principal defensor da ideia de endurecer as regras de direito autoral nos Estados Unidos. Ao batalhar pela causa, assentia, sem saber, aos protestos de Kipling. “Este país está sendo inundado com o melhor da literatura inglesa, a preços que fazem um pacote de papel higiênico parecer, comparativamente, uma ‘edição de luxo’.”20 Os editores conseguiram enxergar o bom senso dessa crítica. Indo mais direto ao ponto, eles estavam presos numa guerra de preços nada salutar. Empresas oportunistas enchiam o mercado de edições muito baratas. Depois de muitas décadas enxergando a legislação de direito autoral como inimiga, os editores passaram a vê-la como um barco que as conduziria de volta às margens da lucratividade. Em 1891, o Congresso acatou as demandas dos editores, estendendo o direito autoral às obras estrangeiras. A lei deu lugar a uma nova economia, que transformou a escrita nos Estados Unidos de hobby em profissão. É essa estrutura que as empresas de tecnologia querem reverter. É fácil se deixar levar pelos argumentos do Facebook sobre compartilhamento – como também é fácil se irritar com os conglomerados de mídia que se beneficiam das extensões absurdas das leis de direito autoral. Mas vale lembrar que a profissionalização mudou completamente o mundo das letras, democratizando-o. A atividade da escrita se tornou mais diversa, vibrante, o que é contraintuitivo. As profissões são excludentes; nem todo mundo consegue se sustentar a partir da escrita. Entretanto, com o advento dos adiantamentos, dos empregos em revistas e das altas quantias pagas para trabalhos de produção textual, a atividade acabou virando um caminho viável para uma população muito maior, que não encontrava tempo para um hobby que exigia tanto. Quase imediatamente após o triunfo de Twain, escrever deixou de ser um domínio privilegiado de brâmanes. Pela primeira vez na história da República, a literatura americana passou a dominar o gosto nacional. Logo surgiu uma nova geração de escritores, que refletia melhor o país, embora muito longe de fazê-lo à perfeição. Essa

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geração não se concentrava em nenhuma região ou classe social. Jack London e Upton Sinclair vinham da pobreza. Do interior da Nova Inglaterra e de Nova York vieram escritores como William Dean Howells, Theodore Dreiser, Ezra Pound e o próprio Mark Twain. O aspecto sociológico das letras americanas mudou depressa, uma vez que a economia mudou. Publicar se tornou um grande negócio. Os escritores produziam a mercadoria principal, logo, seu status e sua remuneração acabaram refletindo esse fato. Por muito tempo, as revistas e os jornais tinham se “esquecido” de dar o crédito aos autores das matérias – e isso mostra como faziam pouco caso dos escritores que os alimentavam com palavras. Nessa nova fase, os escritores começaram a ver seus nomes junto às matérias que produziam, embora o New York Times tenha resistido a essa prática até os anos 1920. As quantias pagas pelos conglomerados jornalísticos aos escritores passaram a impressionar. William Dean Howells se dizia “socialista na teoria e aristocrata na prática”,21 embora tenha confidenciado ao pai: “É um conforto ter razão na teoria e ter vergonha de si mesmo na prática.”22 (Em valores atuais, Howells levava para casa, por ano, 1,45 milhão de dólares.) É como Henry Holt disse, com sarcasmo: “Os autores encontraram a galinha dos ovos de ouro.”23 A boemia podia até ser o ideal romântico – o set de filmagem do escritor moderno –, mas o etos era o profissionalismo. Independente da quantidade de álcool que o autor botava goela adentro, prevalecia o espírito protestante do trabalho. Da mesma forma que o taylorismo dominava as fábricas, os escritores impunham cotas a si mesmos. Graham Greene corria para alcançar toda manhã seu teto de quinhentas palavras. Ernest Hemingway espremia sua produtividade até o talo, para cumprir as metas autoimpostas. Ele declarou que o trabalho era “a única coisa que sempre fazia as pessoas se sentirem bem”.24 E apesar de grandes esforços para desperdiçar seus ganhos, deixou um patrimônio equivalente a 1,4 milhão de dólares. F. Scott Fitzgerald, que se descrevia como um “profissional” com “rigidez protetora”,25 registrava seus ganhos num livro-razão, com as meticulosas anotações de um contador, que consignou inclusive os 34 centavos que ele recebeu em 1929 pelos royalties da venda do Grande Gatsby na Inglaterra.26 (O Gatsby, que fique registrado,

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arrecadou o total de 8.397 dólares em royalties e 18.910 dólares quando Fitzgerald vendeu os direitos para o cinema.) Esses detalhes cotidianos são importantes. Os grandes escritores americanos se preocupavam com dinheiro porque precisavam dele. Precisavam de dinheiro para alimentar suas famílias, podendo assim se dedicar a satisfazer seu lado criativo. Sem pagamento, ficariam relegados a empregos fixos, deixando de se aplicar por completo à escrita. Defensores da Amazon gostam de zombar da classe dos escritores, um clube hermético que despreza os outsiders que não fazem parte do bando. Contudo, a história já mostrou a alternativa à escrita profissional. Uns poucos gênios das camadas inferiores da sociedade conseguiriam produzir uma arte perene, apesar das chances remotas. Mas, de forma geral, a escrita sobreviveria como um luxo para aqueles que pudessem bancá-la, um hobby dos abastados – para herdeiros de grandes fortunas, playboys e indivíduos com recursos para seguir suas paixões economicamente irracionais.

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Anos atrás, eu estava trabalhando na Biblioteca Houghton, em Harvard, silencioso lar de grandes monumentos das letras americanas, os textos de Dickinson, Emerson e Theodore Roosevelt. Terminado o trabalho do dia, tinha algumas horas livres, então perguntei aos bibliotecários se poderia dar uma olhada nos arquivos da New Republic, que tinham sido levados para lá ao longo das décadas. A coleção não fora catalogada, classificada nem sequer manuseada por um arquivista. Quando chegou à minha mesa, veio na forma daqueles antigos armários de arquivo, de aço, puxados por plataformas de rodinhas. De repente, me vi cercado por essas torres, como se estivesse sentado no meio de uma versão de museu do antigo escritório. Comecei a puxar as gavetas e pegar as pastas aleatoriamente. Ao colocá-las na mesa, nervoso com o que meus dedos atarracados poderiam causar, senti uma emoção fetichista de estar comungando com algo grandioso. Cada página virada revelava a assinatura de mãos canônicas – cartas e cartões-postais de Elizabeth Bishop, John Updike, Ralph Ellison e Irving Howe. Embora os nomes dos correspondentes fossem glamorosos, o conteúdo das correspondências me era curiosamente familiar. Antecipava, de certa forma, os e-mails que

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eu recebia dos escritores. As pastas estavam tomadas de queixas sem fim: Por que o cheque do último texto não tinha chegado? Será que o editor não podia conseguir um valor melhor? Às vezes eram cartas de muita mágoa, muitas vezes abjetas até, mas raramente fascinantes. Olhando para aquela papelada, me lembrei de uma passagem das memórias de Alfred Kazin, Starting Out in the Thirties [Começar nos anos 1930]. Ainda um jovem crítico, Kazin batia ponto no escritório do editor literário da New Republic, Malcolm Cowley, que ficava em Chelsea. Era o fim da Depressão. Os escritores faziam fila, disputando a atenção de Cowley. “Éramos muitos, ali entalados no único banco da sala de espera no andar de baixo”, escreveu Kazin.27 “Figuras desesperadas, atormentando-o para conseguir uma crítica.” O editor tinha a reputação de ser generoso nos trabalhos que encomendava – eram feito comida enlatada distribuída pela igreja, permitindo àqueles escritores persistirem, enquanto seus vizinhos morriam de fome. Sempre encarei essa historinha como um reflexo daquele momento sombrio. Porém, lendo aqueles papéis, constatei que o valor pago por Cowley era uma perturbadora revelação: 150 dólares por crítica. Ao ver esse número numa das cartas, fiquei chocado. Era exatamente o mesmo valor que a New Republic ainda pagava por resenhas mais ou menos do mesmo tamanho, publicadas no site. Fiquei olhando aquela página. Oitenta anos de inflação... e estagnação. Os escritores continuam recebendo a mesmíssima quantia que recebiam no pior momento da história econômica do mundo moderno. Nos meus anos como jornalista, vi donos de empresas de mídia chegarem à conclusão de que os escritores não precisam receber tão bem. Minha carreira começou na Slate, uma das primeiras revistas criadas para existir exclusivamente na internet. Naquela época dourada, em meados dos anos 1990, pagávamos mil dólares para cada resenha de livro, e algumas de nossas estrelas recebiam ainda mais. Hoje, a Slate paga cerca de trezentos dólares por resenha. Não precisamos ficar apenas nos causos. Há estudos que podem ser examinados. Em 1981, a Associação dos Autores entrevistou seus membros. Descobriu que escritores em tempo integral conseguiam uma renda média de cerca de onze mil dólares por ano28 – ajustando pela inflação, equivaleria hoje a cerca de 35 mil dólares. Não parece grande coisa, até compararmos

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com os resultados da pesquisa da Associação em 2009, que revelou renda média de 25 mil dólares.29 Infelizmente, o número segue ladeira abaixo, numa espiral descendente. Em 2015, a renda média caiu para 17.500 dólares. Em 34 anos, os escritores tiveram um corte de 50% na renda. O salário atual não passa muito da linha da pobreza oficial do governo americano. A escrita, uma atividade que um dia pareceu crucial para o projeto da civilização ocidental, mal consegue respirar. O valor do conhecimento foi deflacionado e degradado, exatamente como pretendiam as empresas de tecnologia.

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Como editor de uma revista, todos os meses eu recebia um relatório do nosso diretor de operações. No linguajar moderno de negócios, era um painel de controle – uma série de números e gráficos para acompanhar de perto a situação. Em termos específicos, os números monitoravam a produtividade dos meus jornalistas. Os gurus empresariais queriam que eu pensasse nossa equipe com um olhar mais rigoroso e econômico, que visse exatamente o número de matérias que cada um produzia, o tráfego apurado por essas matérias e como os jornalistas se saíam no Facebook. O painel de controle trazia as seguintes informações: salários e benefícios pagos a cada membro da equipe, além da receita gerada pelos artigos de cada um. (Só uma jornalista justificava o próprio salário, mas simplesmente porque pagávamos a ela um valor irrisório.) A ideia é que esses números me ajudariam a aumentar a produtividade da equipe – a chicoteá-los um pouco mais forte, a considerar a hipótese de dar um pé nos lanterninhas e a demandar mais matérias clicáveis. Eu mantinha esses relatórios trancados a sete chaves, por medo de que eles desanimassem por completo o restante da equipe, uma vez que o efeito já tinha sido causado em mim. Tínhamos o melhor crítico de arte do mundo, um verdadeiro formador de opinião, mas as métricas mostravam que pouquíssimos leitores clicavam nas matérias dele. Chris Hughes me pressionava para demiti-lo, e queria que eu encontrasse uma forma milagrosa de obter um melhor retorno sobre o investimento nesse caso específico. Mas não dava para torná-lo muito mais lucrativo ou “produtivo” em termos

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quantificáveis, sem destruir a dedicação que tinha por seu ofício, sem detonar tudo aquilo que o fazia ser tão incrível. A questão estava mal formulada. Na época, eu devia ter entregado a Chris o exemplar de um antigo livro dos economistas William Baumol e William Bowen, chamado Performing Arts: The Economic Dilemma [As artes do espetáculo: o dilema econômico]. Os dois se dedicaram ao aspecto econômico da música clássica. O Quarteto para cordas n. 4, de Beethoven, por exemplo, é uma obra de teimosia.30 Quando a peça estreou em Viena, requeria dois violinos, um violoncelo e uma viola. Duzentos anos depois, a execução da peça não mudou em nada. Requer o mesmo número de músicos, tocando os mesmos instrumentos, que também não mudaram. Da mesma forma que em 1801, a peça leva cerca de 24 minutos para ser tocada. Em outras palavras, a música clássica é um tapa na cara da economia clássica. Ao longo dos séculos, ela não se tornou mais produtiva – e nem poderia. O problema identificado por Baumol e Bowen era ainda mais sutil: eles o chamaram de “doença dos custos”. Se por um lado a música clássica não se tornou mais produtiva, por outro, o custo de produzi-la nunca para de crescer. Uma orquestra sinfônica precisa de profissionais qualificados, e se alguém quer recrutar esses profissionais precisa lhes pagar um salário minimamente competitivo em relação ao resto da economia, que fica mais cara a cada dia. (Um oboísta apaixonado pode até se sacrificar para seguir o seu amor pela música, mas mesmo assim precisa de dinheiro suficiente para comida, escola dos filhos e moradia.) Sem um pagamento razoável, esses músicos escolherão outro ramo de atividade, mais sustentável. A música clássica já vive em estado de declínio terminal há décadas, e a doença dos custos está no centro dessa degradação. É por isso que o ingresso para um concerto parece um esforço filantrópico enorme – e é também por isso que a classe média não consegue sustentar um vivo interesse pelo gênero. Essa situação explica por que as organizações artísticas estão sempre à beira do colapso financeiro. A atividade da escrita é um pouco diferente da música clássica. Ela envolve a criação de novas obras, não apenas a repetição e reinterpretação de um repertório já existente. Há sempre produtos fresquinhos entrando no mercado. Portanto, o crescimento não é uma missão quixotesca. Além disso, a publicação

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consegue encontrar caminhos para aumentar um pouco a produtividade aqui e ali. Os livros podem passar a ser impressos na Ásia; a tecnologia pode ser usada para acelerar o processo de montagem dos exemplares; e-books eliminam os custos de papel e distribuição; e as empresas podem se unir para reduzir os custos administrativos. Ainda assim, não dá para encurtar o tempo que se leva para escrever um livro ou um artigo de revista substancial – e não há nada que possa ser feito para mudar isso sem mudar a natureza básica da atividade. Nenhuma tecnologia focada em redução de custos é capaz de eliminar o ser humano do processo fundamental de criação, nenhum software consegue acelerar a produção de pensamento, mesmo que os custos de produção do livro continuem avançando com o resto da economia. Por muitos séculos, os editores ignoraram a doença dos custos. Na verdade, passavam grande parte do dia ignorando o fato de que trabalhavam para empresas capitalistas. Com o passar do tempo, levaram alguma racionalidade às empresas – tentaram dominar a ciência do marketing e da gestão da cadeia de suprimentos. Porém havia um grande mistério no âmago do mercado editorial. Era impossível saber o valor de um livro antes de sua publicação; não se podia estimar esse valor de forma precisa. Cada livro é uma entidade própria, com um mercado volúvel particular. E mais: os funcionários das editoras não necessariamente desempenhavam suas funções com uma mentalidade mercantilista. Os editores que mandavam no mercado se consideravam formadores de opinião, artistas por mérito próprio. Jason Epstein, um dos grandes editores do século passado, escreveu: “A indústria da publicação de livros é, por natureza, pequena, descentralizada, improvisada, pessoal; o melhor desempenho vem de grupos pequenos, de gente parecida, dedicada a esse ofício, ciosa de sua autonomia, sensível às necessidades dos escritores e aos diversos interesses dos leitores. Se o maior objetivo dessas pessoas fosse o dinheiro, provavelmente teriam escolhido outras carreiras.”31 Eram herdeiras da antiga tradição feudal do mecenato. Essa tradição nunca chegou a desaparecer, e os editores se sentiam com obrigações em relação à cultura e à posteridade. De certa forma, criaram um negócio que funcionava apesar de si mesmo. Conseguiam editar um número suficiente de sucessos de venda, capazes de sustentar a publicação de obras que geravam lucros insignificantes.

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A Amazon, no entanto, dilacerou essa visão de autoria. Com a fatia do mercado que tem, os editores dependem completamente do mastodonte de Bezos para vender seus produtos. Isso dá à Amazon o poder de espremer e depois espremer mais um pouco seus fornecedores, de ditar as normas para os editores. Os contratos com os editores arrancam taxas imprevisíveis e lucros muito maiores do que aconteceria num mercado competitivo. Às vezes, os editores consentem; em outras, resistem bravamente. Mas a verdade é que não há saída. Quando a Amazon aperta o cerco contra os editores, são os autores que sofrem. As casas editoriais diminuem o número de títulos publicados; dividem os adiantamentos pagos aos autores em parcelas menores, distribuídas ao longo do tempo, a perder de vista. Não podemos atribuir apenas à Amazon o colapso no pagamento aos autores, mas a política da empresa se tornou um dos principais fatores da deflação da escrita. O Facebook e o Google descobriram um remédio ainda mais eficaz contra a doença de custos dessa atividade. Nunca, sob hipótese alguma, pagam por isso.

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Como profissão, a escrita vem se deteriorando aos poucos. Fomos levados pela mão à beira do abismo por entusiastas visionários como Chris Anderson, um dos pensadores mais respeitados do Vale do Silício:

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No passado, trabalhar na mídia era um emprego em tempo integral. Mas talvez se transforme num emprego de meio expediente. Quem sabe não deixa de ser um emprego e vira um hobby? Não existe nenhuma lei que diga que as indústrias precisam permanecer de determinado tamanho. No passado, havia ferreiros e gente que trabalhava com aço, mas as coisas mudam. A pergunta não é se os jornalistas devem ter empregos. A pergunta é: as pessoas conseguem as informações que querem, da forma como querem? O mercado é que irá responder. Se continuarmos agregando valor à internet, encontraremos uma forma de ganhar dinheiro. Mas nem tudo o que fazemos precisa dar dinheiro.32

A história já nos deu alguns exemplos bem definitivos que contrariam a eufórica teoria de Anderson. Na primeira década deste século, os blogs

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floresciam. Amadores escreviam com alegria e uma energia que pareciam ilimitadas. Muitos especialistas ficaram intimidados com tamanha efusão, passando a enxergar toda a classe de escritores profissionais como supérfluos e inferiores. Dez anos depois, aquelas previsões sobre o triunfo dos blogueiros se provaram ilusórias. O exército de blogueiros amadores teve seus momentos de esplendor, mas foi algo que não se sustentou ao longo do tempo. Suas fileiras perderam integrantes; o ápice dos blogs ficou para trás. Ao longo dos séculos, escrever se tornou uma profissão, porque exige a disciplina de um profissional. Não há muitas horas disponíveis no dia para atividades amadoras – e pouquíssimos são os escritores do talento de Wallace Stevens, T.S. Eliot ou Sylvia Plath, capazes de produzir obras longevas nas horas livres. Escrever exige revisão, muito tempo infrutífero à frente de uma tela e pesquisas minuciosas. A premissa furada na previsão de Anderson era que a produção extasiante de conhecimento era o suficiente para alimentar os escritores ao longo de uma vida de momentos difíceis. Como qualquer indivíduo, os escritores se dedicam a seu ofício por inúmeras razões, e uma delas é ter que pagar as contas. Quando a escrita se profissionalizou, no final do século XIX, a cultura ganhou profundidade. Os escritores começaram a produzir jornalismo investigativo, romances filosóficos, matérias longas para revistas – gêneros complexos, de trabalho intensivo que exige dedicação mental completa, o tipo de dedicação que associamos a um emprego. Com o profissionalismo, os escritores passaram a desenvolver competências. Operavam sob códigos de conduta que levavam suas obras a um padrão ético elevado. Começaram a assumir riscos intelectuais, porque sua profissão recompensava os riscos – com empregos mais lucrativos, prêmios como o Pulitzer e outros prêmios literários. Contudo, não vale a pena ficar pensando num passado irrecuperável, recomenda o Vale do Silício. A autoria, no sentido romântico, morreu e o que temos adiante é um futuro glorioso. Kevin Kelly enxergou à frente. Do alto de sua posição na revista Wired, da qual foi um dos fundadores, produziu uma imponente obra de futurismo. Com sua barba branca, Kelly tem uma visão profética e um estilo de prosa que se encaixa à perfeição, intensa e apaixonada, cheia de declarações pomposas. Escreve linhas e mais linhas de lugares-comuns, que acabam em perorações inflamadas: “A tecnologia mais avançada

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irá liberar, egoisticamente, nossos talentos, mas também irá liberar os dos outros, de forma não egoísta: nossos filhos e todos os filhos ainda por vir.”33 Quando o Google começou a escanear todos os livros do planeta, Kelly escreveu um dos grandes artigos da época, publicado pela New York Times Magazine. Considerava as ambições do Google audaciosas, tão audaciosas que a empresa não conseguia compreender completamente as implicações do seu programa. Kelly, no entanto, conseguia discerni-las. O livro era uma tecnologia antiga, que estava sendo profundamente subvertida pela tecnologia mais nova. A mudança viria de um jeito imperceptível, conforme o livro deixava de ser controlado por autores e editores. Os leitores aproveitariam o privilégio, explorando a tecnologia para refazer livros e torná-los seus, misturando os livros num novo gênero, algo como as páginas da Wikipédia. “A verdadeira mágica virá no segundo ato, quando qualquer palavra, em qualquer livro, é interligada a outra, agrupada, citada, extraída, indexada, analisada, anotada, remixada, reagrupada e interligada mais fundo à cultura do que em qualquer outro momento.”34 Era o tipo de sonho que McLuhan ou Brand poderiam ter idealizado. A rede – a comunidade global unida pela tecnologia – começaria a diluir as diferenças que nos separam. Um livro passaria a se dissolver no livro seguinte; copiar, colar e pegar emprestado borrariam todas as distinções que no passado haviam definido os volumes. “De um jeito curioso, a biblioteca universal se torna um único texto, muito, muito, muito grande: o único livro do mundo.”35 Era um sonho religioso, conforme ele mesmo admitiu com sua escolha retórica. Descreveu o futuro como o “Éden de tudo”. Havia um corolário político nesse sonho inocente. Não só os volumes se dissolveriam num belo livro, como as desavenças se dissipariam também. (Era a visão de Leibniz, revista e atualizada.) Conforme os leitores trabalhassem juntos para comentar e editar os textos, encontrariam um solo comum. O percurso da rede pega nossos debates mais contenciosos e os direciona rumo ao consenso. O Facebook enxerga assim: “Ao permitir que pessoas de diferentes origens e contextos se conectem com facilidade e compartilhem suas ideias, podemos reduzir os conflitos no mundo, a curto e a longo prazo.”36 Contudo, sabemos que se trata de uma ilusão. O Facebook nos leva a um lugar que é o exato oposto desse ideal proclamado. Cria uma condição

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que Eli Pariser chamou de “bolha dos filtros”. Os algoritmos do Facebook nos abastecem com o material que gostamos de ler e que nos motiva a compartilhar. Não é difícil enxergar os riscos intelectuais e políticos desse estímulo. Involuntariamente, os algoritmos apresentam aos leitores textos e vídeos que apenas confirmam crenças e tendências profundamente arraigadas; eles suprimem opiniões contrárias, que podem inquietar o usuário. Liberais recebem uma enxurrada de opiniões liberais; vegetarianos são alvo constante de anúncios de produtos vegetarianos; a direita alternativa recebe lixo da direita alternativa; e por aí vai. O Facebook nos protege da discordância construtiva que é capaz de mudar nossa cabeça ou nos ajudar a entender melhor o ponto de vista de outros indivíduos – mas não nos protege da estupidez onipresente nem da tagarelice das seções de comentários. Em economia, o perigo da rede é o monopólio – quando um mercado competitivo fica sob o jugo de grandes corporações. Na cultura, o perigo da rede é a conformidade – quando um mercado competitivo de ideias deixa de ser tão competitivo, quando a ênfase se transforma em consenso. Em seu entusiasmo, Kevin Kelly inconscientemente expressou as implicações mais sombrias de sua visão. Ele exaltou o conceito da mente-colmeia – que é o que acontece quando superamos nosso fetiche pelo autor e nos rendemos à colaboração coletiva, aos wikis da vida e às demais tendências das mídias sociais, quando nos entregamos à sabedoria das multidões. A mente-colmeia era para descrever uma ideia de beleza, a humanidade trabalhando de forma muito bem orquestrada. Mas sejamos francos: quem gostaria de viver numa colmeia? Sabemos, pela história, que esse tipo de consenso é de uma beleza plástica, uma mesmice, sufocante. Ele abafa os desacordos e estrangula a originalidade. O mesmo vale para a política. Nossa época é pautada pela polarização, por bandos ideológicos beligerantes que não abrem mão de nenhum território. A divisão, no entanto, não é a principal causa de nosso sistema inoperante. Há muitas causas, mas um problema básico é a conformidade. O Facebook criou duas mentes-colmeia – a colmeia sempre tem uma abelha-rainha, claro –, cada uma vivendo num ecossistema que nutre o consenso e penaliza as visões discordantes. Uma mente-colmeia é intelectualmente inábil, com capacidade cada vez menor para discernir o que é fato e o que é ficção, além

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de uma inclinação para evidências que confirmem sua linha partidária. O Facebook conseguiu atingir o consenso, mas não exatamente como prometeu. Em vez de unir o mundo, o poder de sua rede ajudou a dividi-lo. Digam o que há de pior sobre nossas antigas ideias de gênio e originalidade – mas nada é pior que isso.

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EM MEADOS DO SÉCULO PASSADO, as empresas de tecnologia não teriam tido

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uma vida tão fácil. Teriam sido vigiadas de perto e, vez por outra, reprimidas. Os americanos sabiam lidar melhor com as grandes corporações e os perigos trazidos por elas – ou, pelo menos, se importavam com o problema naquela época. Os males dos monopólios eram um elemento de retórica política e uma prioridade bipartidária do governo, em especial quando as empresas tinham um papel tão importante na transmissão de ideias e conhecimento. De lá para cá, a concentração econômica deixou de ser uma preocupação. Em parte, isso reflete uma mudança de consenso sobre o papel do governo, uma grande virada em direção à intervenção moderada pregada pelos liberais e pelos economistas neoclássicos da Universidade de Chicago. Mas os monopólios de tecnologia também representam uma novidade na história empresarial americana. Para lidar com a ameaça, o governo precisa de uma atualização drástica, de um programa mais arrojado para regular a internet e de todo um novo aparato para proteger a privacidade e o mercado competitivo. Antes de corrigir o problema, porém, temos de identificá-lo com precisão e entender como tudo começou. Em 1989, o Muro de Berlim se transformou em pilhas de destroços que viraram item de colecionador, e a internet nasceu em seu formato moderno. Os dois acontecimentos estavam espiritualmente interligados. Naquele ano de idealismo, o capitalismo eliminou um concorrente histórico, e a internet começou sua jornada particular rumo ao livre mercado.1 O governo americano fomentou aquela internet embrionária – a “interligação de redes”, na linguagem informática dos primórdios. Nos anos 1960, o Departamento de Defesa forneceu os subsídios para o início

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do projeto, com o objetivo de construir um sistema de comunicações que pudesse resistir a uma investida soviética. Quando deixou de fazer sentido que o Pentágono controlasse o sistema – que se afastara completamente de sua proposta militarista original –, o Departamento de Defesa passou o controle para a Fundação Nacional da Ciência, outro bastião da burocracia. Os representantes do governo impunham um rígido controle à internet, proibindo o “uso extensivo para negócios privados ou pessoais”.2 A supervisão estatal da internet funcionava muito bem, mas os administradores da Fundação Nacional da Ciência enxergaram à frente. Entenderam que o governo não deveria controlar sua poderosa criação. Ao mesmo tempo em que o mundo dava uma guinada neoliberal, a Fundação concebeu um plano plurianual para privatizar a internet. Sem as amarras do Estado, a internet concretizaria seu potencial revolucionário como ferramenta de comércio global e comunicação de massa. Se o planeta se encaminhava para o Fim da História, uma ordem globalizada e liberal, a internet o levaria até esse glorioso ponto de descanso. A euforia gerada pelo triunfo do capitalismo ditou o tom do surgimento da internet. Correntes tradicionais de pensamento já não pareciam mais relevantes. Ao longo do século XX, os governos do mundo ocidental tinham imposto regras para o setor privado – regulamentações para limitar os danos que a atividade empresarial e financeira poderia infligir ao bem comum. Mas a história vinha se afastando dessa abordagem. O fracasso soviético levantou suspeitas quanto às soluções estatistas. Assim, o governo não apenas privatizou a internet, como decidiu, de caso pensado, que lhe permitiria crescer quase sem supervisão governamental. “Quero criar um oásis livre de regulação no mundo da banda larga”,3 declarou, em 1999, William Kennard, presidente da Comissão Federal de Comunicações, proclamando um sentimento familiar. Por um certo período, a internet viveu o sonho de 1989. A privatização da internet talvez seja, inclusive, um dos maiores sucessos do capitalismo, embora o governo também tenha participação nisso. Processos antitruste perseguiram a IBM e a AT&T nos anos 1980. Os gigantes de então estavam muito encolhidos, receosos de confrontar os advogados do Departamento de Justiça, de se apoderar do controle sobre a internet naquele momento crucial e oportuno. Foi um golpe afortunado de sincronização, além de

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um planejamento burocrático inteligente. A internet não caiu nas mãos de apenas uma empresa. Essas condições deram origem a um incrível festival de destruição criativa. Novas empresas despontavam e logo sumiam, a inovação explodia em todas as direções, conhecimentos valiosos e antes inacessíveis de repente ficaram disponíveis, e surgiu uma Arcádia para o consumidor. Havia um pressuposto generalizado de que a história empresarial se acomodava em um novo padrão, o que os entusiastas chamaram de Nova Economia. Na era da internet, as empresas nunca alcançariam uma supremacia duradoura. De fato, seis anos após a última fase de privatização, um percentual assombroso de empresas extremamente valorizadas foi à ruína, no inglório colapso das pontocom. Não importava se essas empresas fixaram seus nomes em estádios esportivos ou se desencadearam uma revolução no comércio. Uma das maiores quebradeiras da história as varreu do mapa. A derrocada do mercado determinou nossa visão sobre a internet: a web jamais se organizaria num padrão estático. Nenhuma empresa conseguiria evitar o destino parricida de ser abocanhada por algum jovem esperto trabalhando dentro de uma garagem. A web promovia as condições para uma concorrência perfeita, como se um professor de economia a tivesse planejado. Os consumidores podiam fugir para a alternativa mais barata ou migrar sem esforço para a melhor tecnologia. Como dizia o senso comum: “A concorrência está sempre a um clique de distância.” Essa concepção se provou ilusória, embora tenha vigorado por um longo período. A era de abertura e movimento chegou inevitavelmente ao fim. Em sua história das comunicações, Tim Wu descreveu uma progressão do capitalismo a que chamou de O Ciclo. Cada nova tecnologia da informação segue a mesma trajetória: “De hobby de alguém a indústria de alguém; de geringonças improvisadas a maravilhas de produção impecável; de um canal de livre acesso a um canal controlado com rigor por uma única corporação ou um só cartel.”4 A história não se repetiu igualzinha, mas chegamos ao final do ciclo de Wu. Precisamos considerar a possibilidade de que os monopólios de hoje talvez estejam mais consolidados que os gigantes do passado. Um dos motivos para a crescente distância entre as empresas de tecnologia e seus concorrentes é que elas acumularam um estoque gigantesco de um ativo muito valioso.

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Um dos clichês da nossa época é que os dados são o novo petróleo. De início, a ideia soou como exagero, mas agora parece bastante adequada. “Dado” é uma palavra neutra, mas o que ela representa não é nada neutro. Trata-se do registro de nossas ações: o que lemos, o que assistimos, para onde nos deslocamos durante o dia, o que compramos, nossa correspondência, nossas buscas e até o que começamos a digitar e depois apagamos. Com dados suficientes, é possível enxergar correlações e encontrar padrões. Bruce Schneier, guru da segurança computacional, escreveu: “É provável que os dados acumulados possam pintar um melhor retrato de como você gasta seu tempo, porque eles não dependem da memória humana.”5 Os dados se transformam em entendimento sobre os usuários, em retrato da nossa psique. Eric Schmidt já declarou: “Sabemos onde você está. Sabemos onde esteve. Conseguimos saber mais ou menos no que você está pensando.”6 Um retrato da nossa psique é algo muito poderoso. Permite que as empresas prevejam nosso comportamento e antecipem nossos desejos. Por meio dos dados, é possível saber onde você estará amanhã em um raio de vinte metros e prever, com razoável precisão, se o seu relacionamento romântico terá futuro. O capitalismo sempre sonhou em acionar o desejo de consumir, a capacidade de estimular o cérebro humano a desejar produtos que nunca considerou precisar. Os dados ajudam a alcançar esse antigo sonho. Ficamos mais maleáveis, passíveis de virar dependentes e propensos a sermos influenciados. É por isso que as recomendações da Amazon aos usuários costumam se converter em venda, ou que os anúncios do Google resultam em cliques. As empresas dominantes são aquelas que reuniram os retratos mais completos de nós. Conseguiram nos monitorar da forma mais abrangente possível conforme navegamos pela internet e possuem a capacidade de processamento necessária para interpretar nossas navegações. Essa é uma vantagem gigantesca, que com o tempo se intensifica ainda mais. Para criar máquinas que de fato aprendem, é preciso contar com bancos de dados ilimitados – e apenas essas megacorporações possuem esses bancos de dados. Provavelmente, nenhum concorrente do Google jamais será capaz de se equiparar a seus resultados de busca, porque nenhum deles conseguirá se igualar a seu registro histórico de buscas ou à compilação de padrões que a empresa identificou.

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Nesse sentido, os dados são diferentes do petróleo. O petróleo é um recurso finito, enquanto os dados são infinitamente renováveis. Eles permitem que os novos monopolizadores conduzam experimentos contínuos para antecipar tendências, entender melhor os consumidores e construir algoritmos mais eficientes. Antes de entrar para o Google e se tornar o principal economista da companhia, Hal Varian foi coautor de um livro fundamental, chamado A economia da informação. Varian previu que os dados intensificariam o funcionamento do mercado. “O feedback positivo faz com que o forte fique mais forte e o fraco, mais fraco, levando a resultados extremos.”7 Um desses resultados extremos é a proliferação de monopólios guiados por dados. A convergência é perturbadora: essas empresas se tornaram hegemônicas com base na vigilância extensiva dos usuários, no monitoramento total das atividades, nos dossiês que não param de crescer – o que Maurice Stucke e Ariel Ezrachi chamam de “uma visão quase divina sobre o mercado”.8 Falando sem rodeios, elas construíram seus impérios reduzindo a pó a noção de privacidade; continuarão se firmando ao forçar sem trégua esses limites, dando passos cada vez mais invasivos para chegar a retratos ainda mais completos de nós. De fato, as ameaças à privacidade e ao mercado competitivo são hoje uma coisa só. O problema do monopólio mudou de forma.

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Embora da perspectiva atual seja difícil imaginar, a questão do monopólio dominou a política americana por muitas gerações. Os temas subjacentes ao debate feriam o âmago da República: havia o temor de que as concentrações de poder corporativo inibiriam a liberdade e fariam pouco caso da democracia. Essas preocupações ainda existem, embora o debate sobre a questão do monopólio tenha ficado mais escasso. A lei antitruste dos Estados Unidos – o conjunto de normas criadas para preservar uma economia competitiva – ficou tão técnica e moralmente enrijecida que tem pouco a dizer sobre as empresas dominantes da nossa época, empresas que teriam representado a soma de todas as antigas inquietações sobre gigantismo. É preciso retomar o espírito dessas leis originais, mas acontece que passamos décadas cambando na outra direção.

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A figura-chave dessa narrativa – o ator principal no momento em que a luta contra o monopólio renunciou a sua retórica de retidão – era um caubói em quase todos os sentidos. Ele vinha de Laramie, no Wyoming, quando o Oeste ainda era exótico e extremamente distante, mas sua inteligência brilhante e seu humor ácido lhe garantiram um lugar fixo no establishment americano. Thurman Arnold dava aula na Faculdade de Direito de Yale nos anos 1930, e escrevia com um estilo misantrópico. Sua obra mais importante, The Folklore of Capitalism [O folclore do capitalismo], era muito inspirada na crítica mordaz ao que H.L. Mencken chamava de “boborguesia” (a alienada classe média). O livro era um relato preciso sobre todas as ilusões que prevaleciam na vida americana, descritas com distanciamento clínico (e satírico), como se Arnold fosse “um marciano”. Nossas instituições, argumentou ele, mantêm sua legitimidade porque se sustentam em mentiras. Sua avaliação sobre o povo americano era tão sombria, que ele preferia essas lorotas cínicas à democracia de verdade, o que descreveu como “o juízo débil da manada comum”.9 Entre rituais vazios e “gestos morais populares” figuravam as leis antitruste. Eram leis satisfatórias em termos emocionais, mas que nada faziam para barrar a concentração econômica. É especialmente curioso, portanto, que Franklin Roosevelt tenha indicado Arnold para comandar a divisão antitruste do Departamento de Justiça, em 1938. Suas audiências de confirmação no Senado foram um tanto incômodas. Arnold, que sabia ser muito cortês, admitiria mais tarde que batalhou para encontrar uma explicação convincente que pudesse conciliar suas críticas sobre a lei antitruste com seu desejo profundo de assumir o posto. Ele foi duramente interrogado por William Borah, de Idaho, um dos alvos de seu livro: “Homens como o senador Borah construíram suas carreiras políticas sobre a continuidade dessas cruzadas, que eram totalmente inúteis, apesar de altamente pitorescas.”10 Contudo, era uma época mais deferente, mais complacente. O Senado confirmou Arnold para o cargo, mas Borah reconheceu que ele deveria “rever o capítulo sobre os trustes”.11 Acabou que Arnold fez seu trabalho com um vigor impressionante. Antes de ele chegar, a divisão antitruste estava moribunda. Em média, apresentava nove processos por ano. Em 1940, assim que Arnold reuniu forças, processou 92 empresas. Seus alvos estavam espalhados pela economia americana: a

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indústria cinematográfica, de laticínios, notícias e transportes. A guerra encerrou seus esforços de forma prematura. Mas nunca antes, e nunca depois, o governo foi tão agressivo na aplicação das leis antitruste. Basta ver em que pé estamos na história recente: o governo Obama, por exemplo, interpôs dois processos para dissolver monopólios vigentes. Ainda que os sucessores não tenham sido tão ativos quanto Arnold, compartilhavam suas ideias. Fiel ao realismo cortante de seus escritos, ele despojou a lei antitruste de suas ambições grandiosas e retóricas. Os padrinhos intelectuais da lei antitruste da Era Progressiva – homens como o juiz da Suprema Corte Louis Brandeis e o presidente Woodrow Wilson – se apresentavam como herdeiros de Thomas Jefferson. Detestavam o gigantismo corporativo porque o consideravam uma ameaça à autonomia. Na visão deles, os protagonistas da história eram os pequenos comerciantes e produtores – ou como Wilson os chamava, “homens batalhadores”. A independência econômica os preparava para cumprir suas obrigações cívicas, uma independência pisoteada pelos monopólios. Arnold considerava essa obsessão pela virtude cívica uma grande bobagem, um resquício de “religião arcaica”. Ele pouco se importava com o tamanho de um negócio, nem se era um monopólio. Brandeis considerava o “gigantismo” uma “praga”; Arnold, não. “Esse debate é o mesmo que ficar discutindo se prédios altos são melhores que prédios baixos, ou se grandes pedaços de carvão são melhores que pedaços pequenos”, declarou Arnold.12 A seu ver, a lei antitruste tinha uma única missão: processar indústrias que fossem ineficientes e cuja ineficiência prejudicasse o bem-estar dos consumidores. Como escreveu o teórico político Michael Sandel: “Diferente de antimonopolistas da tradição de Brandeis, Arnold não queria descentralizar a economia pelo bem da autonomia, e sim regular a economia em prol de preços mais baixos para o consumidor.”13 A linha de raciocínio de Arnold prevaleceu ao longo do tempo, chegando até os dias de hoje. Só começamos a nos preocupar com a concentração econômica quando ela acontece por meio de grandes fusões ou estratégias nefastas. E só passamos a nos inquietar com a hegemonia de uma empresa quando ela aumenta os preços. Ou seja, quase nunca tomamos medidas para acabar com um monopólio já estabelecido. A concentração de poder

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econômico é um fato consumado em nosso cotidiano. Quando a Economist analisou o assunto, em 2016, descobriu que a maior parte dos setores da economia – dois terços das novecentas áreas examinadas – estava muito mais concentrada do que em 1997.14 O Instituto Roosevelt deu a seguinte declaração: “Hoje, os mercados estão mais concentrados e menos competitivos do que em qualquer outro período da história, desde a Era de Ouro.”15 A antiga obsessão pelo consumidor era limitada, mas não equivocada. No entanto, a economia se transformou consideravelmente desde a época de Arnold. Algumas das maiores corporações dos Estados Unidos agora dão seus produtos de graça; a Amazon e o Walmart podem até não dar nada de graça, mas são maníacas por preços baixos. Segundo os parâmetros de Arnold, não há muito a temer em relação a esses mastodontes. Talvez devêssemos ficar atentos ao fato de eles esmagarem os concorrentes, mas não há motivos para nos preocuparmos com a ineficiência dessas indústrias. Contudo, essa é uma visão incompleta sobre o papel que essas empresas têm na vida americana. O ponto de vista de Arnold quanto à lei antitruste continua relevante, mas o problema dos monopólios de hoje se aproxima mais do cenário de pesadelo descrito por Brandeis. A ameaça imposta pelo tamanho da Amazon, do Facebook e do Google é uma ameaça à autonomia.

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Brandeis – o advogado corporativo que depois virou o tormento das empresas – podia até ser muitas vezes puritano e rabugento, mas nada disso invalida o poder de suas opiniões. Sua grande preocupação era a qualidade da democracia. E com isso queria dizer a qualidade de seus cidadãos. Vertentes profundas de populismo e esnobismo coexistiam na visão dele sobre seus compatriotas americanos. O populista que havia nele acreditava no potencial ilimitado das pessoas comuns para formular opiniões sofisticadas e bem embasadas. Seu lado esnobe desdenhava da forma como os cidadãos eram seduzidos pelo apelo do consumismo e manipulados pela propaganda. O potencial do americano médio só poderia ser realizado por meio da leitura, da contemplação e do amplo envolvimento com as formas culturais mais elevadas. Ao falar sobre o assunto, ele apontava de um jeito apaixonado para a necessidade de os trabalhadores e comerciantes “desenvolverem suas faculdades”.

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Essas exortações sobre a importância da contemplação e da leitura não pretendiam ser apenas uma forma de autoajuda. Eram os alicerces de sua filosofia política, que ele mais tarde desenvolveu nas sentenças que proferiu como juiz da Suprema Corte: “O objetivo último do Estado é deixar os homens livres para desenvolver suas faculdades.”16 Ele formulou e depois reformulou nosso entendimento moderno sobre a questão da privacidade, com o propósito de criar condições para que homens e mulheres pensassem de forma crítica e independente. O jurista Neil Richards descreveu a teoria de Brandeis como “privacidade intelectual”: “A proteção contra vigilância ou interferência quando estamos envolvidos em processos de geração de ideias.”17 O debate público só era possível após a formulação de opiniões privadas, o que exigia liberdade para experimentar e descartar ideias, sem se preocupar com olhares indiscretos. Se achamos que estamos sendo observados, ficamos menos propensos a deixar a mente vagar rumo a opiniões que requeiram coragem ou que possam nos levar para além das fronteiras do aceitável. Começamos a nos curvar a opiniões que agradem ao observador. Sem o espaço privado para pensar com liberdade, a mente perde força, e depois acontece o mesmo à República. “A maior ameaça à liberdade é um povo inerte”, escreveu Brandeis.18 Algumas premissas cruciais do pensamento de Brandeis merecem uma recapitulação. A primeira delas era a crítica à eficiência. Não que ele rejeitasse de todo a ideia. Era um discípulo devoto de Frederick Taylor, o apóstolo da administração científica que usava cronômetros e métodos baseados em dados para fazer as fábricas funcionarem num ritmo mais acelerado. Mas Brandeis detestava a perspectiva de que a sociedade elevasse a eficiência ao posto de valor supremo. A praticidade era interessante, mas não devíamos nos sacrificar para atingi-la. Ele temia que os benefícios da eficiência nos levassem a renunciar à nossa liberdade. Eis a tentação autoritária: tem-se a impressão de que a liberdade é um pequeno preço a se pagar em troca de trens que saem na hora. Atualizando o raciocínio: não vale a pena ter um e-mail gratuito se o preço disso for a nossa privacidade; serviços de entrega rápida são ótimos, a menos que a consequência seja que uma única empresa domine o varejo, determinando o preço de mercado dos bens e da mão de obra. A segunda premissa derivava da primeira. Os criadores da Constituição preferiam liberdade a eficiência, e é por isso que projetaram uma forma de

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governo pouco eficiente. Conferiam, ponderavam, retardando de forma intencional o maquinário do Estado que conceberam. Brandeis acreditava na importância de poderes compensatórios. A democracia fica sufocada quando um setor da sociedade se torna poderoso e forte demais. Ele achava que os sindicatos eram necessários para limitar o poder das corporações. E que os oligopólios eram um perigo tão iminente para a República, que o Estado podia tomar medidas drásticas para prevenir essa situação. Não que Brandeis acreditasse piamente no Estado – na verdade, ele preferia que o poder fosse delegado a unidades menores e menos ameaçadoras do que o governo federal. Mas em sua visão sobre a vida moderna, o principal medo – que continua tão aterrador como sempre – era de que um pequeno grupo de empresas alcançasse um poder político e econômico de proporções enormes. “O povo americano não precisa de oligarquias nem nos negócios, nem na política”, escreveu.19 Não há dúvida sobre o que Brandeis teria feito com o Google, o Facebook e a Amazon, que são a encarnação completa de todos os seus medos reunidos. São monopólios que operam sem restrição, seja regulatória, seja de outra natureza. Pregam a ideia de eficiência, ao mesmo tempo em que se dedicam à maior vigilância que já houve na história da humanidade. Só querem saber de lucros e têm pouco respeito pelos produtores independentes cujas mercadorias colocam à venda. Moldam a mente dos indivíduos, filtrando as informações que os fazem chegar a suas opiniões políticas. Brandeis ajudou a estabelecer as normas da vida americana moderna, e as gigantes da tecnologia construíram sistemas que ferem com gravidade essas normas.

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Na época de Brandeis, a defesa da regulação contava com respaldo público. Hoje, não vemos quase nada de errado com os monopólios, em especial quando se trata dessas empresas. Temos certeza de que as gigantes da tecnologia conquistaram a hegemonia de forma justa e honesta, através do livre mercado, graças à engenhosidade técnica que possuem. Para evocar essa imagem de triunfo meritocrático, é preciso fazer vista grossa a algumas verdades pungentes sobre a natureza desses novos monopólios. Estamos falando de uma hegemonia que de pura não tem nada. Ela se deve à inovação,

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sim, mas também à evasão fiscal. Ora, qualquer grande empresa americana tenta restringir a conta dos tributos. Exércitos de contadores são itens de primeira necessidade no capitalismo; a fabricação de novas deduções é uma das maiores demonstrações de inovação do país. Mas as empresas de tecnologia são particularmente evasivas com o fisco. Em parte, é a natureza do produto que oferecem. Diferente da indústria ou do setor financeiro, a tecnologia não precisa estar atrelada a um lar geográfico. As empresas de tecnologia podem transferir seus ativos essenciais, sua propriedade intelectual, para qualquer paraíso fiscal que ofereça as melhores condições. Elas planejaram esquemas que seus concorrentes – empresas com presença física ou empresas de mídia – não podiam se atrever a implementar. Quando Jeff Bezos começou a pensar na Amazon, queria originalmente que a sede da empresa fosse numa reserva indígena da Califórnia, onde não pagaria quase nenhum imposto. As autoridades rejeitaram a manobra. Mas Bezos percebeu que o comércio eletrônico desafiava as ideias tradicionais de taxação. Graças a uma decisão judicial, proferida assim que ele criou a empresa, a Amazon conseguiu o feito de não ter que pagar imposto sobre a venda aos estados para os quais enviava suas mercadorias. Conforme a companhia crescia, ela passou a precisar de funcionários espalhados por todo o país. Cada vez que a Amazon abria um novo depósito, num estado diferente, devia pagar impostos no local – pelo menos era o entendimento predominante da lei. Bezos passou por cima desse entendimento. Havia algo nixoniano nesse empenho. Em suas viagens, funcionários da Amazon carregavam cartões de visita falsos, para que a empresa não fosse acusada de operar no estado em questão.20 Quando abriu um depósito no Texas, tudo indica que a empresa não declarou nada para as autoridades fiscais do estado. É difícil guardar um segredo desses. Depois que as autoridades tomaram conhecimento do assunto por meio do jornal Dallas Morning News, Bezos garantiu que não pagaria os 269 milhões de dólares devidos pela empresa. Se o estado quisesse o dinheiro, ele fecharia o depósito e levaria sua operação para outro lugar. No fim, o Texas perdoou as dívidas da Amazon, com a condição de que a empresa passasse a agir honestamente. O Texas serviu de modelo para o resto da nação. Quando foi para a Carolina do Sul, a Amazon negociou uma

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isenção de cinco anos nos impostos sobre as vendas, como pré-requisito para construir seu centro de distribuição. A Amazon prometia os preços mais baixos, e era o que entregava aos consumidores. Só conseguia garantir o melhor preço porque resistia a pagar os impostos. Economistas da Universidade Estadual de Ohio mostraram o papel crucial que essa evasão teve para a Amazon se estabelecer. Eles estudaram as vendas da empresa depois que os estados por fim conseguiram obrigá-la a pagar os impostos. Quando os estados começaram a arrecadar, as despesas das famílias na Amazon caíram 10%.21 Em seu livro sobre a história da Amazon, o jornalista Brad Stone descreveu essa artimanha como “uma das maiores vantagens táticas da companhia”.22 A evasão fiscal é uma grande obsessão corporativa – “empregar todos os truques possíveis, além de inventar outros”, nas palavras de Stone.23 Para driblar a agência da Receita Federal dos Estados Unidos e os fiscos europeus, a Amazon criou o Projeto Goldcrest.24 O nome fazia referência ao pássaro que é símbolo nacional de Luxemburgo. Em 2003, a empresa fez um acordo com o grão-ducado. Em troca de construir uma sede lá, a Amazon quase não pagaria impostos. Assim que se instalou, transferiu uma vasta parcela de seus ativos intangíveis – softwares essenciais, marcas comerciais e outros exemplos de propriedade intelectual. A verdade é que esses ativos não existem em nenhum país em particular – ou por acaso o processo de compra em apenas um clique tem uma localização física? –, mas aparecem nos contratos, e os contratos servem de base para a taxação. A Amazon desenvolveu uma estrutura corporativa labiríntica, uma rede vertiginosa de subsidiárias e holdings. Quando fez a transferência, a empresa subavaliou drasticamente o valor dos ativos que migrou para Luxemburgo. A trama irritou a Receita americana, que elaborou uma acusação minuciosa contra a Amazon. Os cálculos mostram que o Projeto Goldcrest ajudou a empresa a escapar de uma conta de pelo menos 1,5 bilhão de dólares, que de outro modo teria sido paga ao governo americano.25 O Google se vale dos mesmos esquemas contábeis antipatrióticos. Prefere manobras fiscais como o arranjo duplo irlandês ou o sanduíche holandês. A empresa transferiu ativos para as Bermudas, famosa meca da alta tecnologia. No fim de 2015, tinha “reinvestido de forma permanente” 58,3 bilhões de

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dólares de seus lucros em paraísos fiscais estrangeiros, rendimentos sobre os quais não paga impostos nos Estados Unidos.26 As empresas de tecnologia retêm tudo quanto é tipo de dado, mas a impressão que dá é que querem se livrar de qualquer tributação. No ano em que abriu o capital, o Facebook registrou 1,1 bilhão de dólares de lucro nos Estados Unidos, mas não pagou um centavo de imposto sobre os rendimentos, nem no plano federal, nem no estadual. Na verdade, recebeu 429 milhões de dólares de restituição. De acordo com o grupo Citizens for Tax Justice [Cidadãos pela Justiça Fiscal], o Facebook ludibriava o fisco com uma única dedução: a empresa abaixava contabilmente o valor das opções de ações concedidas aos executivos.27 É difícil simpatizar com o Walmart, a Home Depot ou com as outras grandes cadeias varejistas. Não são elas que pagam os maiores impostos nos Estados Unidos, mas contribuem com uma soma razoável. Na última década, o Walmart, conhecido como “besta de Bentonville”, pagou cerca de 30% de impostos sobre os lucros;28 a Home Depot pagou 38%. Embora possamos nos queixar que não paguem mais, vale a pena observar que o principal concorrente dessas empresas não paga nem metade desse percentual. A Amazon teve uma alíquota média de imposto efetiva de 13% – incluindo impostos municipais e estaduais, bem como impostos ao governo federal e aos governos estrangeiros. A Apple e a Alphabet foram um pouco menos ousadas com a evasão. Ambas pagaram uma alíquota de cerca de 16%. Esse é um dos perigos dos monopólios que tanto preocupava Brandeis. Além do poder que conquistaram, as maiores empresas americanas nutrem um senso de impunidade que lhes permite ampliar ainda mais suas vantagens, ao mesmo tempo em que fogem das responsabilidades públicas. Essas empresas conseguem forçar os limites do comportamento aceitável porque vêm dando muita atenção a Washington. Embora estejam longe de ser a imagem da corpulenta rua K, as empresas de tecnologia montaram operações enormes de lobby que ocupam os corredores das agências reguladoras e do Congresso, lotados de hackers habilidosos. Executivos do Google puseram os pés na Casa Branca de Obama com maior frequência do que executivos de qualquer outra empresa – o lobista principal passou por lá 128 vezes.29 O Google distribui seu dinheiro por Washington de forma ecumênica. Gastou em torno de dezessete milhões de dólares praticando tráfico de influência

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com ambas as cepas partidárias. Há estimativas de que tenha gastado mais com seu aparato em Washington do que qualquer outra empresa de capital aberto.30 Uma investigação da Intercept concluiu: “O Google conquistou uma espécie de integração vertical com o governo.”31 Não se sabe como, mas a empresa conseguiu driblar a recomendação de membros da Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos, para quem suas maquinações monopolizadoras mereciam um processo.32 Os lobistas das empresas preservaram uma situação muito favorável: monopólios com pouca regulação e poucos impostos. Jogaram o jogo político de forma brilhante. Obama passou seus mandatos afagando as empresas de tecnologia, chegando inclusive a pleitear junto aos europeus que não cobrassem os impostos que lhes eram devidos. Em troca, as empresas de tecnologia mandaram seus melhores cérebros para trabalhar no governo democrata e em suas campanhas políticas. Em termos culturais e eleitorais, os monopolizadores da tecnologia se alinharam à esquerda, o que neutralizou seus mais prováveis críticos. É uma sábia maneira de se proteger: os republicanos talvez não fiquem muito felizes com as doações que as empresas de tecnologia fazem aos democratas, mas tampouco têm interesse ideológico em colocá-las sob o jugo do governo. As gigantes da tecnologia criaram um paraíso corporativo, que prevalecerá até que algo diferente aconteça.

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As empresas de tecnologia conseguiram, portanto, dominar Washington, acumulando tamanho prestígio cultural, que é difícil imaginar o sistema um dia restringindo-as. Mas sabemos que a política não vive num estado estacionário, e as empresas têm uma vulnerabilidade escancarada: elas vigiam os usuários de forma ostensiva. Até hoje, o público vem tolerando essas invasões, mas não será assim para sempre. Os hackers estão o tempo todo testando os cordões de isolamento, e o tempo todo furando esses cordões. Todo mundo tolera essa realidade como um fato incontornável da vida digital, um preço baixo a pagar em troca de tantas maravilhas. Com exceção da interferência russa nas eleições americanas, essas violações nunca foram muito graves. E não serão nada quando comparadas à catástrofe inevitável, o grande terremoto de proporções

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gigantescas, capaz de abalar as estruturas profundas da sociedade. Pode ser a exposição de informações íntimas que desfaz incontáveis relacionamentos conjugais, como aconteceu em pequena escala quando o aplicativo Ashley Madison foi hackeado, em 2015. Pode ser a quebra do sistema financeiro, fazendo fortunas desaparecerem num piscar de olhos. Ou pode desencadear uma explosão real de infraestrutura, com potencial mortífero. Se pudéssemos prever, conseguiríamos evitar, mas não é possível. As empresas de tecnologia veem esse grande terremoto se aproximar e estão se preparando para as consequências, o que é uma atitude muito sensata. Criaram dispositivos e códigos que permitem uma vigilância onipresente; seus servidores acumulam dados e mais dados pessoais. Com certa lógica, elas levariam a culpa por um ataque massivo. A melhor analogia é a crise financeira de 2008. Os bancos não conseguiram fazer nada para ganhar terreno político diante da catástrofe que eles mesmos desencadearam. Quando chegar o grande terremoto, as empresas de tecnologia ficarão vulneráveis à regulação que evitaram até aqui com tanta habilidade. (É vergonhoso que não haja uma lei moderna para reger o uso de dados.) Assim como a crise financeira provocou a criação da Agência Elizabeth Warren de Proteção Financeira do Consumidor – raro caso do surgimento de uma nova agência –, o grande terremoto tem o potencial de criar uma infraestrutura regulatória significativa. O que precisamos é de uma Autoridade de Proteção de Dados, para proteger a privacidade da mesma forma que o governo protege o meio ambiente. Tanto o meio ambiente quanto a privacidade são bens que o mercado destruiria se ficasse tudo por sua conta e risco. Só deixamos os negócios degradarem o meio ambiente dentro de certos limites – e o mesmo deveria acontecer com a privacidade. Não se trata de impedir a coleta e a exploração de dados. Só que deveria haver restrições sobre o que pode ser coletado e o que pode ser explorado. Os cidadãos deveriam ter o direito de excluir dados que ficam armazenados nos servidores. As leis deveriam exigir que as empresas apresentassem opções predefinidas, de forma que os indivíduos tivessem que optar pela vigilância, em vez de aceitar passivamente a perda da privacidade, uma alternativa muito mais robusta do que os incompreensíveis termos de serviço do tipo “pegar ou largar”.

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É uma questão de autonomia: os detalhes íntimos presentes em nossos dados podem ser usados para nos prejudicar; os dados fornecem a base para a discriminação invisível; são usados para influenciar nossas escolhas, nossos hábitos de consumo e nossos hábitos intelectuais. Os dados fornecem um raio X da alma. As empresas transformam essa fotografia do nosso eu interior em uma mercadoria que pode ser negociada no mercado, passível de ser comprada e vendida sem o nosso conhecimento. Um direito básico e intuitivo merece ser consagrado: são os cidadãos – e não as empresas que os rastreiam furtivamente – que deveriam ser os donos de seus dados. Caberia à lei exigir que essas empresas tratassem os dados com a maior cautela possível, porque os dados não lhes pertencem. A posse desses dados envolve uma responsabilidade enorme, que implica obrigações éticas. O governo americano dispõe de uma categoria especial para empresas que se beneficiam de bens que não lhes pertencem: são as chamadas concessionárias, ou trustees. É assim que o governo lida com as empresas de radiodifusão, por exemplo. Essas empresas ganham dinheiro do uso que fazem de ondas eletromagnéticas públicas, então o governo exige que elas se comprometam com uma série de normas. Muitas vezes, são obrigadas a transmitir alertas de defesa civil e anúncios de utilidade pública; precisam acatar certos padrões de decoro e têm de dar o mesmo tempo de televisão para candidatos dos dois partidos políticos. Por meio da Comissão Federal de Comunicações, o governo americano supervisiona as emissoras, para garantir que não descumpram essas obrigações. Uma das obrigações mais sagradas das empresas que se baseiam na exploração de dados é que não abusem de seu poder para sabotar a democracia. Não caberia ao governo determinar a política editorial das plataformas digitais, mas deveríamos impedir que nossos gatekeepers da informação abafassem as críticas sobre si mesmos; deveríamos insistir que oferecessem acesso igual a uma multiplicidade de fontes e pontos de vista. Não dá para negar que estamos diante de um emaranhado de questões complexas; para desatar os possíveis nós, seriam necessárias barreiras legislativas e muitas decisões judiciais. No entanto, não se trata de uma interpretação nova sobre as responsabilidades governamentais. É exatamente o que a Suprema Corte exigiu do Estado, mesmo seus juízes mais conservadores. Em 1994, Anthony Kennedy entoou:

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“Garantir que o público tenha acesso a múltiplas fontes de informação é um propósito governamental dos mais elevados.”33

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Num curto período de tempo, nos afastamos muito da visão do juiz Kennedy em relação ao governo. Foram os europeus que assumiram o bastão americano, embora os americanos prefiram zombar deles por conta disso. E é verdade que em alguns momentos os europeus tiveram dificuldade para articular a base de sua hostilidade em relação às empresas de tecnologia e seus esforços variados para bloqueá-las. Um dos motivos dessa dificuldade é que eles instintivamente se desviaram para longe de sua tradição política, adentrando um terreno desconhecido. Ao longo da história, a Europa se mostrou favorável aos cartéis, tanto que corporações gigantes se vinculavam de perto ao Estado. Até pouco tempo, o continente manifestava pouco interesse pelas virtudes da descentralização econômica. Não é difícil vislumbrar motivações egoístas para essa preocupação repentina com as gigantes americanas de tecnologia: o desejo de proteger as empresas europeias autóctones. Porém, antes de condenar a estratégia de Bruxelas, os Estados Unidos deveriam se olhar no espelho. Ao longo das décadas, o Estado americano fez um excelente trabalho no sentido de limitar os mastodontes da comunicação, proporcionando oxigênio para novas tecnologias e novos concorrentes. Nos primórdios da República, o serviço postal monopolizava o fluxo de informação, mas com o advento dos telégrafos o governo resistiu à tentação de controlar o novo meio, embora o serviço postal tivesse todas as chances para isso. O governo permitiu um período de rigorosa concorrência privada, que acabou, como acontece a todos os ciclos, com o surgimento de um monopólio: a Western Union. Contudo, os políticos estavam sempre ameaçando a empresa de desmembrá-la, uma ameaça que acabou surtindo efeito: impediu-a de se estender pelo ramo da telefonia. A AT&T despontou como empresa dominante nessa nova tecnologia, mas o governo não deixou que se expandisse para o rádio. Quando a NBC dominou o rádio, o governo insistiu que se dividisse em duas: NBC e ABC. O governo Nixon impôs um desafio às três grandes redes que controlavam a radiodifusão, promovendo o surgimento do cabo. Por mais que seja às vezes imperfeita, é uma história nobre de ativismo, que

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chegou até a nossa época. O processo do governo Clinton contra a Microsoft foi discretamente liquidado pelo governo Bush, na esteira do 11 de Setembro, mas foi importante para assustar a gigante de softwares, desencorajando-a a repetir padrões nocivos de comportamento. Em vez de usar seu poder para estrangular o Google ainda no início da vida, o que estava dentro de suas possibilidades, a empresa viu a chegada da concorrente a uma distância cautelosa, por medo de ser repreendida pelo governo. Uma Autoridade de Proteção de Dados seria herdeira dessa tradição. Diferente da Comissão Federal de Comércio, que avalia as fusões para preservar os preços baixos e a eficiência econômica, essa autoridade analisaria as fusões com o objetivo de proteger a privacidade e o livre fluxo de informação. Restringiria os monopólios quando tentassem levar seu poder à fase seguinte, criando a abertura que possibilitaria, em última instância, o surgimento de concorrentes. É preciso tirar da prateleira a antiga visão antitruste de Brandeis, e embora possa parecer um tanto prematuro, não deveríamos limitar nossa imaginação em termos de novas políticas. Em prol da saúde da democracia americana, precisamos tratar o Facebook, o Google e a Amazon com a mesma mão firme que levou o governo a travar guerra contra a AT&T, a IBM e a Microsoft – inclusive desmembrando-as em empresas menores se as circunstâncias (e a lei) demandarem uma resposta enérgica. Embora já tenham se passado algumas gerações desde que os Estados Unidos aplicavam as leis antitruste com extremo vigor, deveríamos lembrar que esses casos criaram justamente as condições necessárias para o surgimento de uma internet aberta e extremamente inovadora. Quase trinta anos após a queda do Muro de Berlim, após uma recessão terrível e décadas de desigualdade crescente, a regulação não retomou seu prestígio. Num certo sentido, perdeu mais estatura ainda. Hoje, grandes parcelas da esquerda compartilham a aversão da direita pelo Estado regulador, além de um amplo sentimento de indignação pelas empresas que capturam o aparato do Estado. Em vez de defender o povo contra as grandes empresas, o governo se tornou servo delas. Contudo, a longa história da regulação também mostra que o projeto não é tão infrutífero como os críticos alegam. Quando o governo tenta reformular a economia em prol da eficiência, os resultados são controversos. Quando usa

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seu poder para alcançar objetivos morais claros, obtém resultados sólidos. Claro que houve fracassos notórios. Porém os automóveis estão mais seguros, o meio ambiente está mais limpo, os alimentos não nos envenenam, o sistema financeiro está mais justo e menos suscetível a colapsos catastróficos, por mais que essas medidas de proteção tenham imposto custos significativos ao setor privado. Em meio ao fervor libertário que se seguiu à queda do Muro de Berlim, perdemos de vista essa visão moral. A internet é incrível, mas não deveríamos tratá-la como se existisse para além da história ou como se fosse isenta de nossas estruturas morais, em especial quando o que está em jogo é nada menos que o destino da individualidade e a saúde da democracia.

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SABEMOS, PELO PASSADO RECENTE, que o Vale do Silício não é uma sina incontornável.

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É bem possível se afastar desses monopólios. Há um exemplo que ilumina o caminho, um precedente de consumidores que rejeitaram a primazia da comodidade e dos preços baixos, rebelando-se contra a homogeneização. Eles subsidiaram práticas artesanais, que já tinham sido dadas como mortas. A perspectiva otimista de escapar da influência do Facebook, do Google e da Amazon vem na forma de iogurte, granola e alface. Hoje, um percentual nada desprezível da população se preocupa muito com o que leva à boca, o que sugere que essas pessoas podem ser persuadidas a ter o mesmo cuidado com aquilo que ingerem pelo cérebro. Os cuidados com aspectos morais e qualitativos envolvendo a comida se tornaram símbolo de status social, o que levanta a seguinte questão: por que a preocupação com livros, ensaios e jornalismo não pode adquirir o mesmo prestígio? Lá atrás, quando editava o Whole Earth Catalog – vendendo os artefatos de um estilo de vida alternativo para os hippies que tinham se instalado em comunidades –, Stewart Brand apregoava a promessa da alimentação orgânica. Para a contracultura, a comida era tão fundamental quanto as drogas, porque os hippies se rebelavam contra uma cultura que punha os alimentos num pedestal. Durante a Depressão, os americanos iam para a cama sentindo fome. Depois da guerra, a pobreza começou a se dissipar. Surgiu um mundo de abundância genuína, com novos subúrbios e novos supermercados exibindo uma panóplia de itens recém-inventados. Os alimentos alardeavam suas propriedades mágicas: o Wonder Bread [pão maravilhoso], a Spam [“carne milagrosa”], o instant breakfast [café da manhã instantâneo] e o Minute Rice

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[arroz instantâneo]. Os anúncios divulgavam novos produtos, como o Tang, como se fossem conquistas da era espacial. O que tornava esses produtos tão incríveis é que davam a impressão de resolver o problema crucial da modernidade: a escassez de tempo. Pelo menos era esse o discurso gerador de ansiedade dos comerciais de televisão, que alertavam não haver mais tempo para cozinhar. Só a seção de congelados dava um jeito no problema. Não era difícil enxergar para além das mensagens vazias de marketing, e foi o que a contracultura fez, com desdém irônico. “Uma vida fresca e congelada num subúrbio pré-embalado”, diziam os intelectuais do movimento.1 Os produtos industrializados da época – carnes processadas, bolinhos prontos e pós para gelatinas e pudins – simbolizavam à perfeição todos os males dos Estados Unidos do pós-guerra: eram sem gosto, conformistas e estampavam o selo do capitalismo corporativo. Theodore Roszak escreveu sobre os males tecnocráticos do Wonder Bread: “Não só o pão é oferecido em abundância, como também é extremamente macio; não requer esforço para ser mastigado e ainda por cima é enriquecido com vitaminas.”2 Se a ideia era escolher um objeto pelo qual valia a pena se rebelar, um símbolo da alienação, não era má ideia começar pela comida. Os hippies enxotaram do prato toda a porcaria industrializada, substituindo esses produtos por uma visão virtuosa. Com fé no retorno aos frutos da terra e na autossuficiência, as comunidades cultivavam hortas e criavam gado. Bairros boêmios por todo o país abriram cooperativas sem fins lucrativos, com alas dedicadas a alimentos produzidos com ética. O vegetarianismo – antes uma prática meio esotérica de Adventistas do Sétimo Dia, hindus e diferentes livres-pensadores – encontrou muitos seguidores entre o pessoal de Woodstock. Surgiu uma dieta completamente nova, incluindo itens originais como o tofu e o iogurte. O crítico cultural Warren Belasco escreveu com brilhantismo sobre a semiótica da cozinha hippie: “O contraste principal era do branco vs. marrom... A brancura tinha a ver com Wonder Bread, White Tower, Cool Whip, Minute Rice, purê de batata instantâneo, maçãs já descascadas, jalecos brancos, colarinho branco, branqueamento, Casa Branca, racismo branco. O marrom tinha a ver com pão e arroz integral, açúcar não refinado, mel silvestre, melado natural, molho de soja, inhame orgânico, movimento ‘negro é lindo’.”3

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A contracultura combinava política austera com hedonismo, retidão ética com prazer corporal. Em muitos sentidos, a comida era a apoteose do movimento. Na sombra de todo esse radicalismo, surgiu em Berkeley o chamado Gueto Gourmet. Alice Waters pediu transferência para a Universidade da Califórnia bem a tempo de testemunhar ali os brotos verdes do ativismo. Ficou fascinada pelo Movimento pela Liberdade de Expressão, com seus líderes carismáticos e políticas utópicas. Waters começou a organizar eventos em que cozinhava para gente como Huey Newton e Abbie Hoffman. Ela atrelou sua cozinha ao Zeitgeist da baía de São Francisco. Seu ideal era a culinária francesa, que provou quando era estudante de intercâmbio – uma comida que não era congelada nem enlatada, mas que se conectava intimamente à fazenda, à floresta e ao mar. Por meio da alimentação, era possível alcançar o holismo apregoado por Stewart Brand, enxergar nossa conexão interplanetária. (“Comer é um ato político”, proclamava Waters.) Em 1971, ela abriu o Chez Panisse, talvez um dos restaurantes mais influentes da história americana. Com muito estragão e escarola, Waters tentava injetar os valores da contracultura no mainstream. Já cansamos de ouvir que a sociedade americana dominante acabou absorvendo sem nenhum esforço o etos da contracultura. Todo aquele espírito rebelde foi domesticado e transformado em slogans publicitários. O capitalismo passou a exaltar as virtudes da rebelião e do inconformismo. Ouse ser diferente, provocava o comercial de um carro. Essa é a história do setor alimentício, de como uma empresa como a Celestial Seasonings começou com um bando de hippies vendendo produtos à base de ervas e virou uma empresa que vende por ano cem milhões de dólares; ou como dois judeus viciados na banda Grateful Dead se mudaram para Vermont e criaram uma marca de sorvete que é encontrada em qualquer loja de conveniência ou supermercado; e como hoje até o McDonald’s vende saladas cheias de verdes que um dia já foram exóticos. Vale olhar para tudo isso com ceticismo, mas também com aplausos e admiração. O jornalista David Kamp escreveu que a transformação da dieta americana talvez seja o maior e mais duradouro triunfo da contracultura. O país do Wonder Bread parecia ter um estilo de vida irreversível. Ainda que não tenha sido revertida, essa tendência sofreu um certo abalo. O ideal do alimento que vai direto do produtor para a mesa – uma comida que é

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minimamente processada e que é cultivada localmente – conquistou a classe média alta. Depois, com as exortações de Michelle Obama e as orientações de chefs famosos, começou a se espalhar pela sociedade como um todo. Só não podemos confundir esse movimento alimentar com ideias marxistas. Há um consumismo evidente na fetichização de tomates autóctones e na reverência prestada a fatias de carne orgânica e maturada. Os ricos sempre usaram a comida para se distanciar dos demais. Quando os hippies se tornaram yuppies, era inevitável que gastassem a renda disponível com alimentação, o que ajudou a impulsionar a ascensão da Williams-Sonoma (que vende utensílios de cozinha), o início do Food Network (canal de TV gastronômico) e toda uma era de gastropornografia. Ainda assim, nos mercados de produtores e nas redes especializadas em produtos naturais e orgânicos como a Whole Foods, persiste algo radical – uma guinada para longe dos produtos baratos, produzidos em massa e com publicidade pesada. Por que os consumidores americanos pegaram esse desvio inesperado? Sim, a comida costuma ser melhor, mas às vezes o gosto é idêntico ao dos alimentos que podem ser comprados em supermercados convencionais. Na verdade, o que esses consumidores estão comprando é a sensação de virtude e retidão. Nas palavras de Michael Pollan:

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o papel tradicional do consumidor – ou escapar dele – se tornou uma importante aspiração do movimento alimentar. Em vários sentidos, ele procura ancorar a relação entre consumidores e produtores sobre novas bases, de maior proximidade, enriquecendo as informações trocadas durante a transação e nos encorajando a encarar o dinheiro investido em comida como “votos” a favor de um diferente tipo de agricultura e, por consequência, de economia. Se depender do mercado moderno, decidimos o que comprar com base apenas no preço e em nosso interesse pessoal; o movimento alimentar propõe, implicitamente, que alarguemos nosso entendimento sobre esses dois termos, sugerindo que nossas decisões de compra não deveriam se pautar apenas num “bom custo-benefício”, mas também em valores éticos e políticos, e que ao fazermos isso conseguimos mais satisfação com os alimentos.4

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Essas aspirações merecem uma transposição.

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Há algumas semelhanças entre a nova concentração corporativa na cultura e a antiga concentração corporativa no setor de alimentos. Mas não deveríamos simplesmente pôr a culpa na vilania capitalista. Assim como o consumidor americano conduziu a era dos enlatados, ele também é cúmplice da degradação cultural. Nas duas últimas décadas, os leitores passaram a enxergar as palavras como bens descartáveis. Eles pagam ridiculamente pouco – se é que pagam alguma coisa – pela maioria dos textos que consomem. É uma triste realidade, mas que traz em si a possibilidade de redenção: se os leitores ajudaram a criar as condições para a hegemonia monopolística, eles também têm a capacidade de reverter o quadro. Tudo depende de se desfazer o pacto diabólico com a publicidade. A mídia sempre sobreviveu graças a ela. Na maior parte de sua história, se apoiou em duas fontes de receita. Os leitores pagavam pelos jornais ou revistas, fosse na forma de assinaturas, fosse comprando-os nas bancas. As assinaturas raramente cobriam os custos de impressão e entrega, mas pouco importava. O número de assinaturas de uma publicação era prova de um público comprometido e cativo – e a atenção desse público podia ser vendida por um bom preço para os anunciantes. Como a circulação em si nunca foi um negócio rentável, a internet não exigiu um grande salto imaginativo. Em vez de vender jornalismo para os leitores com prejuízo, a mídia entregaria tudo de mão beijada. Os executivos apostaram alto numa fantasia: publicar artigos gratuitos na internet permitiria que os jornais e as revistas multiplicassem o número de leitores; os lucros com a publicidade seguiriam o crescimento do público. Foi um cenário que encantou quase toda a indústria, à exceção dos poucos opositores com coragem para impor acesso restrito em seus sites. A estratégia poderia ter funcionado, não fosse a existência do Google e do Facebook. Os jornais e as revistas presumiram que a web seria como uma enorme banca de jornal – e os leitores continuariam apegados aos títulos com reputação de excelência, sensibilidade notável e jornalistas de renome. Os novos megaportais mudaram essa realidade. Tornaram-se a porta de entrada

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para a internet – e quando os leitores entravam, mal prestavam atenção aos nomes associados ao jornalismo que consumiam. Com uma escala gigantesca, o Facebook e o Google podiam baratear os custos de mídia, vendendo espaço publicitário a valores baixíssimos, uma vez que possuíam janelas de exibição quase infinitas. Como se especializaram em coletar dados dos usuários, conseguiam garantir aos anunciantes um público milimetricamente selecionado. Ao reduzir os custos de publicidade, o Facebook e o Google derrubaram o antigo regime, de agir pela intuição, que dominou o mercado publicitário durante quase um século. Os anúncios podiam ser comprados on-line – no Google, o processo acontece por meio de um leilão automatizado –, sem precisar envolver vendedores nem comissões. Os livros de economia podiam ter previsto a consequência dessa deflação. Como escreveu o crítico da mídia Michael Wolff, “para superar a queda nos preços dos anúncios, a audiência teria de crescer muito”.5 A publicidade se tornou uma batalha impossível de vencer. O Facebook e o Google sempre derrotarão a mídia. Entre 2006 e 2017, o gasto dos anunciantes nos jornais caiu cerca de 75%, e a maior parte do dinheiro foi redirecionado para o Facebook e o Google. O dinheiro mudou de mãos porque as monopolizadoras de tecnologia simplesmente fazem um trabalho muito melhor, prendendo a atenção do público de forma contínua. Os leitores são fiéis a essas plataformas e não param de recorrer a elas o dia inteiro. Capturar a atenção dos leitores se tornou um projeto dificílimo para as empresas de mídia, exigindo muitos ardis. A mídia cada vez mais depende do “tráfego casual”. No Facebook e no Google, os leitores são levados a clicar nas matérias, seja por conta de uma manchete minuciosamente planejada, uma foto provocativa ou um assunto em alta. John Herrman, jornalista do New York Times que cobre assuntos de mídia, zombou dessa mentalidade: “Os sites consideravam essas pessoas membros do seu público, e não membros temporariamente distraídos do público de determinada plataforma. Independente de onde viessem, eram contabilizados no Chartbeat. Viam pelo menos 50% de pelo menos um anúncio, por pelo menos um segundo, portanto, existiam.”6 E o que é pior: na guerra por tráfego, qualquer vitória é incerta. Assim que um veículo de mídia atinge seus objetivos ambiciosos, os anunciantes consideram os objetivos inadequados. Wolff notou que

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os anunciantes não param de aumentar as metas. Em 2010, um site precisava de cerca de dez milhões de visitantes únicos por mês, para conquistar uma compra significativa.7 Em 2014, o número tinha subido para cinquenta milhões. Não há estratégia possível para crescer nesse ritmo, em especial se estamos pensando numa estratégia que preserve a identidade e a integridade editorial. E quem previu a terrível tirania da publicidade na internet? Larry Page e Sergey Brin. Eles resistiram a transformar o Google numa ferramenta publicitária, pelo menos no início. Quando ainda eram alunos de Stanford, escreveram um trabalho com o seguinte argumento: “Acreditamos que mecanismos de busca financiados por publicidade são inerentemente tendenciosos em relação aos anunciantes, distanciando-se das necessidades dos consumidores.”8 Era uma preocupação tão grande, que eles até duvidavam se um mecanismo de busca confiável poderia prosperar no mercado. “Achamos que a questão dos anúncios causa muitos incentivos heterogêneos, sendo crucial, portanto, ter um mecanismo de busca competitivo, que seja transparente e esteja dentro do âmbito acadêmico.” Os dois já descartaram esse ponto de vista faz muito tempo. Enquanto a mídia persegue um público falso, negligencia conscientemente seus leitores devotos. Assinantes de edições impressas são considerados vestígios de uma era passada, embora ainda sejam fontes seguras de receita. A avalanche digital não permite que se veja, mas os departamentos de circulação são fontes eficientes de receita para muitas empresas de mídia. Ainda assim, presume-se que esses leitores acabarão morrendo – e os leitores mais novos não têm o hábito de pagar por notícia –, então não faria sentido batalhar por eles. Essa hipótese precisa ser revertida. Chegou a hora de libertar a mídia da dependência em relação à publicidade. Os meios de comunicação precisam reduzir suas ambições, voltar a seus nichos e recuperar a lealdade de públicos importantes – um passo que levará a um nível editorial superior e a uma maior sustentabilidade em termos de negócios, mesmo que esse recolhimento frustre as fantasias (quase sempre ilusórias) dos proprietários, de ver suas empresas abocanhadas por grandes conglomerados ou de abrir o capital. Para se salvar, a mídia terá de cobrar dos leitores, e eles terão de pagar.

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Em 1946, George Orwell escreveu um ensaio fascinante sobre um assunto relacionado com o título Books v. Cigarettes. Ele havia trabalhado num sebo e começa o texto fazendo um inventário de sua própria biblioteca. Orwell não era dos números. Esse é o único ensaio dele que inclui gráficos e tabelas. Mas os cálculos não eram nada complicados. Orwell descobriu que tinha gastado com livros 25 libras por ano, o que representava uma ninharia perto de suas demais despesas. “O gasto com a leitura, mesmo que você compre livros em vez de pegá-los emprestado e leia um grande número de jornais, não chega aos gastos somados de bebida e cigarro.”9 O argumento dele era que a leitura é uma das formas mais baratas de lazer, embora fosse amplamente considerada um hobby caro, para além das possibilidades do simples trabalhador. Era inclusive uma ideia internalizada pelos próprios trabalhadores. Em média, o cidadão britânico gastava em livros uma libra ou menos por ano, o que deprimia Orwell profundamente. Ele concluiu o ensaio com um toque de amargura: “Não é um recorde de se orgulhar, para um país quase inteiramente alfabetizado e onde o homem comum gasta mais em cigarros do que um camponês indiano tem para viver o resto da vida. E se o nosso consumo de livros continuar tão baixo quanto foi até hoje, pelo menos precisamos admitir que é porque a leitura é um passatempo menos estimulante que ir a uma corrida de cães, ao cinema ou a um pub, e não porque os livros, sejam eles comprados ou emprestados, são caros demais.”10 O assunto de Orwell eram os livros, claro. Se fôssemos atualizar seus argumentos, a preocupação principal recairia sobre o jornalismo. Os livros, na verdade, nos oferecem um certo cenário otimista. O público americano pagou bastante para comprar os 652.673.000 exemplares de capa dura vendidos em 2015. Assim, deveríamos parar de racionalizar a estúpida economia das revistas e dos jornais. É absurdo afirmar que a informação quer ser livre. Essa foi uma grande bobagem criada nos anos 1990 que já sobreviveu tempo demais. Os consumidores não têm nenhum problema inerente em pagar pelas palavras, contanto que os editores coloquem etiquetas com os preços. Orwell tentou provocar o público a gastar com palavras, enchendo seus leitores de perspicácia, encanto e vergonha. Com certeza achava que seus esforços seriam em vão. Mas não estava errado em seu intento. A indústria

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cultural pode, sim, persuadir os consumidores a gastar em textos que valham a pena. Enquanto ele refletia sobre essas questões, um homem do outro lado do Atlântico mostrava como isso poderia ser feito.

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Edward Bernays, sobrinho de Sigmund Freud, chegou a Nova York ainda criança. Mesmo longe de Viena, conseguiu se familiarizar com as teorias do tio. Já adulto, descobriu uma nova aplicação para elas. Bernays pegou a teoria do subconsciente e usou-a para criar a profissão de relações públicas. No início da carreira, desenvolveu slogans para o governo Wilson com o objetivo de aumentar o apoio popular à Primeira Guerra Mundial. Depois da paz, ele transformou suas técnicas em manifesto e também num negócio. Escreveu o livro Propaganda, um dos manuais mais influentes do século XX. Um de seus devotos foi Joseph Goebbels. (Para sermos justos, Bernays se recusou a trabalhar para Hitler e Franco, embora os dois tenham solicitado seus serviços.) A empresa dele idealizava slogans e campanhas publicitárias para as maiores empresas dos Estados Unidos. Bernays convenceu os americanos de que bacon e ovos eram os alimentos mais saudáveis para o café da manhã. Usava imagens subliminares de vaginas e doenças venéreas para promover uma marca de copos descartáveis como único método higiênico para ingerir qualquer líquido.11 “A propaganda possibilita que ideias minoritárias funcionem mais depressa”, escreveu ele, perturbador.12 Nos anos 1930, os editores de livros de Nova York temiam pela própria sobrevivência. Os negócios tinham sofrido com a quebra da bolsa e a Depressão subsequente, e o mercado estava sem ideias para estimular uma recuperação. No desespero, a Simon & Schuster, a Harcourt Brace e mais outras se voltaram para Bernays em busca de salvação. Bernays fez uma crítica profunda ao mercado editorial, que acusava de precificar mal seu produto. Além disso, ele se saiu com uma fórmula engenhosa para transformar a indústria: estantes. “Onde há estantes haverá livros”, garantiu, confiante.13 As estantes não faziam parte da maioria dos lares americanos; eram um luxo reservado a gente do naipe de Jay Gatsby e seus pares. Bernays começou metodicamente a apresentá-las à classe média. Convenceu arquitetos a incluir estantes em suas plantas e incentivou matérias em revistas de decoração (House

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Beautiful, American Home, Woman’s Home Companion) que celebravam as estantes embutidas. As estantes eram objetos decorativos, claro, mas também eram mais do que isso. A presença de livros nas casas implicava algum progresso social – os livros eram símbolos de uma classe profissional ascendente, cujos empregos exigiam habilidades intelectuais; eram bens de consumo que indicavam poder aquisitivo. O historiador cultural Ted Striphas escreveu que o modismo das estantes no período entre guerras representava “o fascínio pela propriedade e a abundância, que podiam se concretizar não só pelo consumo, mas, tão importante quanto, através da acumulação e da exibição de livros impressos”.14 A proliferação das estantes foi aclamada por injetar vida nova no mercado editorial. Um artigo na Publishers Weekly proclamava: “Hoje estamos nos beneficiando da necessidade de livros nos lares construídos nos últimos anos... Agora é hora de apoiar a ideia e seguir em frente!”15 Esse fenômeno era um exemplo clássico do que o sociólogo Erving Goffman, de meados do século XX, descreveu no livro A representação do eu na vida cotidiana. Segundo ele, nós nos comportamos como se fôssemos atores de uma peça de teatro. Escolhemos adereços e cenários para deixar nosso personagem mais convincente. Para a classe média em ascensão, ansiosa por um lugar ao sol, os livros davam a impressão de acesso merecido aos mais altos escalões da sociedade. A revista The New Yorker serve como essa espécie de adereço, lida no metrô e exibida nas mesas de centro. Os leitores folheiam a revista ostensivamente, como símbolo de seu cosmopolitismo e de suas inclinações literárias. A New Yorker até publica sua cota de refinados artigos caça-cliques e matérias de autoajuda (sob o disfarce de ciências sociais). No entanto, a revista conseguiu se libertar da dependência dos anúncios, migrando para a dependência financeira em relação aos leitores. Mesmo quando se beneficiava da publicidade, o fazia com muita cautela. (Durante seu longo reinado como editor da revista, William Shawn, famoso pelo puritanismo, vira e mexe recusava anúncios que considerava de mau gosto, em especial os de lingerie.) A New Yorker preservou o valor de seu bem mais precioso, a revista impressa, resistindo ao impulso de disponibilizar todos seus artigos de graça na internet. Evidente que a New Yorker ocupa um posto único na cultura, como sempre foi. Porém é possível construir prestígio cultural a partir do zero.

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Por mais curioso que seja, foram as empresas de tecnologia que se saíram melhor nisso. Anúncios do iPad mostram-no como método para ler o New York Times e a New Yorker, uma forma de cultivar hábitos como astronomia e fotografia artística. Peças de marketing da Amazon exibem viajantes sentados em lugares cosmopolitas, segurando o Kindle. São produtos anunciados ao mesmo tempo como símbolos de status e dispositivos que proporcionam refinamento. É aqui que o movimento alimentar nos fornece uma lição objetiva. As indústrias culturais precisam se apresentar como a alternativa orgânica, um símbolo de status e aspiração social. A mídia deve condenar sua fase mais recente, liderando uma rebelião contra a escrita processada, efêmera e acelerada que as empresas de tecnologia tanto incentivam. As assinaturas são a rota de fuga para escapar dos artigos caça-cliques. (O New York Times conseguiu se vender como baluarte da democracia logo após a eleição de Donald Trump, angariando 130 mil assinantes no rescaldo imediato do desastre, contrastando-se implicitamente com o atoleiro de conspirações e notícias falsas do Facebook.) É claro que sempre será possível obter toneladas de informação on-line de graça. Contudo, se a ilustração e a virtude não são fáceis nem gratuitas, o preço a se pagar é razoável.

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Agricultura e cultura vêm do latim colere. O grande crítico Raymond Williams escavou esse precursor fossilizado. “Colere tinha inúmeros significados: habitar, cultivar, proteger, venerar”, escreveu.16 Quando foi do latim para o inglês, passou a se referir especificamente a pecuária e agricultura. Cultura significava cuidar do crescimento natural das plantações e dos animais. Às vésperas do Iluminismo, a palavra se tornou uma metáfora para os seres humanos, que também precisavam de cuidados. Em termos específicos, era a mente que exigia atenção, proteção e cultivo. Thomas More disse: “Para o cultivo e benefício de suas mentes”; Francis Bacon: “O cultivo e adubo das mentes.” Cultura é uma palavra que nunca se assenta num significado estável. Em vez disso, ela é usada de forma promíscua, sendo infundida com nossos próprios vieses. Williams dizia que culture era “uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa”.17

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Ao longo de sua vasta e serpenteante história, a palavra guarda traços do ancestral colere. Nossa fé na cultura vem diminuindo, sendo substituída por nossa obsessão pelos dados, mas ainda reverenciamos seus santuários. Ainda acreditamos que a arte, os livros, a música e os filmes têm o poder de cultivar os indivíduos. Era justamente a obsessão de Louis Brandeis, sua fixação em “desenvolver as faculdades”.18 Sabemos que se trata de um sentimento nobre, mas que também carrega certas conotações. Descrever a si mesmo como “cultivado” é uma afirmação de superioridade. O sociólogo Pierre Bourdieu se dedicou bastante a esse ponto ao longo de sua carreira, ainda que tenha sido enfático demais. Filho de camponeses, Bourdieu cresceu falando um dialeto moribundo do francês. Foi galgando os degraus da meritocracia francesa, até chegar aos patamares mais elevados da intelectualidade. Uma vez admitido no clube, passou a esculhambá-lo. Bourdieu argumentava que a classe dominante impõe regras acerca do que é aceitável e do que não é. Define o que é arte de qualidade, comida de qualidade, livro de qualidade – e cria todo um vocabulário excludente para descrevê-los. “O gosto classifica, e classifica o classificador”, disse em sua célebre máxima.19 O mundo descrito por Bourdieu era muito francês e, portanto, um pouco difícil para um americano apreciar. O esnobismo ostensivo acabou naufragando diante dos montes de hambúrgueres e tortas de maçã. Outro francês, Alexis de Tocqueville, compreendeu a questão. A natureza da sociedade americana era de evitar o elitismo. Segundo a narrativa de Tocqueville, as elites interagiam com os trabalhadores como iguais, mesmo que suas contas bancárias contassem uma história diferente (e mesmo que nossa fé na igualdade desencadeasse uma mediocridade desenfreada). As elites culturais tomaram para si a missão de elevar as massas – um etos que culminou com a gloriosa ascensão da cultura middlebrow [entre a alta cultura e a cultura de massa] nos Estados Unidos de meados do século XX. Nesses anni mirabiles, as publicações de Henri Luce contratavam escritores sérios (James Agee, Dwight Macdonald, John Hersey, Daniel Bell) e botavam intelectuais sérios nas capas (Walter Lippmann, Reinhold Niebuhr, T.S. Eliot), que por sua vez eram concebidas por artistas sérios (Fernand Léger, Diego Rivera, Rockwell Kent). A NBC contratou Arturo Toscanini para reger sua

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orquestra; Leonard Bernstein apresentava um programa em horário nobre na CBS, para ensinar o gosto pela música sinfônica. Clubes de leitura como The Book of the Month e Readers’ Subscription entregavam literatura nos lares americanos, com regularidade. Uma sensação mais madura de noblesse oblige permeava esses esforços – e uma sensação de ansiedade por status tornava o público americano receptivo a isso. Graças a uma lei conhecida como G.I. Bill, milhões de americanos foram para a faculdade, sendo muitas vezes os primeiros membros da família a conseguir passar do ensino médio. A prosperidade dos anos pós-guerra fez crescer a classe média. Para validar a ascensão a um patamar social mais elevado, os americanos se envolviam com a alta cultura. Preenchiam as estantes inspiradas por Bernays com enciclopédias, edições dos clássicos encadernadas em couro e romances de capa dura. Proliferava o cinema de arte, porque havia um mercado relevante para Godard e Antonioni. Em cidades de porte médio, surgiam orquestras sinfônicas. Nem tudo o que florescia nessa época era digno de louvor. Middlebrow se tornou um termo pejorativo, por bons motivos. Havia alguma tensão nessa concepção de cultura. As elites que controlavam os meios de comunicação, o mercado editorial, as gravadoras e os estúdios de cinema se consideravam grandes mecenas. Mas estavam, é claro, comandando instituições comerciais. No pior dos casos, cuspiam romances para um mercado de massa como se fossem arte elevada. No melhor deles, nutriam uma arte ambiciosa e ideias desafiadoras, vendendo-as para a sociedade. As maiores empresas do mercado editorial e do jornalismo americanos mitificaram sua missão; muitas até hoje se envernizam com uma pátina de nobreza. Não é difícil se livrar desses sentimentos elevados. Trata-se de empresas que podem até posar de guardiãs da seriedade intelectual, mas também existem para dar lucro. Não são os Medicis do nosso tempo, ainda que essa ideia sobre si mesmas as ajude a seguir em frente. Contudo, a saúde da nossa cultura depende da persistência desse mito. É o mito que atrela essas empresas ao colere, à antiga raiz da cultura, a fé na missão de cultivar as mentes. Sem esse mito, a cultura é só mais uma mercadoria para satisfazer o mercado. O mito continua de pé, mas não por muito tempo. Estamos à beira de uma era em que as artes e as ideias serão derivadas dos algoritmos. As

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máquinas cada vez mais sugerem os temas mais populares para a investigação humana, e os seres humanos estão obedecendo cada vez mais. No lugar da experimentação e da originalidade, são os dados que estão mostrando o caminho, nos levando a fórmulas prontas. O mito do cultivo dá lugar à manipulação grosseira. Uma reação comum a essa mudança é a resignação, o fatalismo diante da marcha inexorável da tecnologia e dos hábitos oscilantes das novas gerações. Criticar a mudança pode parecer uma demonstração de mau humor e uma tentativa de se opor ao curso da história. O melhor é ter maturidade, diz o senso comum. Melhor assentir e tirar proveito das circunstâncias, continuar navegando mesmo em meio à turbulência. Mas escritores e editores sabem, lá no fundo, que as concessões implicam um alto preço a se pagar; alguns leitores têm a sensação de que existem alternativas superiores. Há momentos em que todos parecem concordar nesse ponto. Junto à eleição de Donald Trump, veio o choque do reconhecimento coletivo de que a cultura midiática americana se deteriorou, além da sensação de que precisamos de protetores da verdade mais comprometidos que os irresponsáveis gatekeepers do Facebook e do Google. Não basta compreender o problema. É preciso fazer com que nossa análise do problema nos leve a soluções abrangentes, antes que ocorra uma mudança irreversível nas instituições e nos valores que nos são mais caros.

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EXISTE UM DISPOSITIVO TECNOLÓGICO saudado como inevitável, encarado quase

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universalmente como opção irresistível para os consumidores. Ele acabou frustrando as expectativas, e na brecha entre a propaganda exagerada e a realidade, vemos o público gravitando inconsciente rumo a uma crítica profunda, os primeiros traços de uma reação. Quando Jeff Bezos anunciou o primeiro Kindle, em 2007, comprei o meu logo de cara. Após cultivar o fetiche do livro a vida toda, aquilo não parecia certo. Entretanto, resisti à onda de culpa quanto a meu modesto papel na metamorfose da leitura. A bem da verdade, o dispositivo era a invenção dos meus sonhos. A livraria e o livro, duas das minhas paixões, tinham se fundido em um único hardware. Havia a promessa de que qualquer livro existente poderia ser baixado em menos tempo do que se leva para bocejar. O dispositivo, em si, era meio capenga. Vinha com um teclado que mal funcionava e um joystick esquisito, que colocava à prova nossa destreza manual. As páginas viravam na hora errada. Apesar disso, o Kindle era mágico. Comecei a comprar compulsivamente, mas, diferente das idas a uma livraria tradicional, a farra não culminava em pilhas desordenadas e nunca me fazia sentir culpado por todos os exemplares não lidos encarando da minha mesa. Por um ano, o Kindle passeou no bolso de fora da minha sacola e dormiu na minha mesinha de cabeceira. Sua capa off-white ficou bem encardida, de tanta atenção dispensada por minhas garras imundas. No site da Amazon, é possível ver a relação de todos os dispositivos que já registramos para ter acesso às edições do Kindle, um histórico pessoal de hardware. Ao longo do tempo, já tive três Kindles, três iPads e seis

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iPhones, compondo os ingredientes de uma pequena catástrofe ambiental. Para deixar claro, mantenho os aparelhos descartados dentro de uma caixa, no porão, de onde um dia talvez sigam seu caminho para uma unidade apropriada de reciclagem. No entanto, se a tecnologia nos cega com sua magia, a magia também pode desaparecer. Quando meu terceiro Kindle chegou, me vi retornando ao papel. O regresso não foi calculado. Aconteceu aos poucos. Na verdade, nunca parei de colecionar livros físicos. Como eu trabalhava numa revista, o carteiro sempre trazia ao escritório exemplares para resenhas. Além disso, havia livros antigos que eu não achava no Kindle e acabava comprando de vendedores de livros usados. As edições em papel começaram a acenar para mim. Não cheguei a pensar muito sobre minha transição de volta ao papel; ela simplesmente ocorreu, como por magnetismo. Não tenho qualquer objeção ética ou científica em relação às telas. A internet é minha casa grande parte do dia. O Twitter captura uma parcela enorme da minha atenção. Sou grato pela avalanche de informação, a forma microscópica como é possível acompanhar a política, o futebol, a poesia e a fofoca jornalística. Contudo, é estranho olhar para trás e tentar lembrar as leituras de um dia inteiro. Claro que eu poderia fazer a pergunta ao meu computador e obter um registro preciso. Mas se me sento à minha mesa e tento listar todos os tweets, artigos e posts que cruzaram minha tela, são poucos os que eu de fato recordo. Ler na web é uma atividade frenética, comprimida, aleatória e nem sempre absorvida. Defensores da internet são muito claros nesse ponto. A internet é um meio completamente diferente, que inspira seus próprios ritmos e tendências intelectuais. Enquanto o papel é fixo – as palavras de uma página não podem ser mudadas; os livros têm começo, meio e fim –, a internet é fluida. Como escreveu Kevin Kelly, o mundo digital prova que “as coisas boas não precisam ser estáticas, imutáveis”.1 A internet é uma conversa interminável; todo argumento é contestado, compartilhado, revisto e ampliado. É uma extensão em tempo real dos acontecimentos no mundo, ao mesmo tempo estimulante e exaustiva. Acredito que abandonar o Kindle tenha sido minha resposta a essa exaustão. Ele está longe de ser um dispositivo tão terrível. É até bastante

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tranquilo em comparação às buzinas e britadeiras que fazem estrondo nas mídias sociais. Mas, depois de tantas horas na web, fico louco para fugir das telas e me refugiar no papel. Se eu tivesse que justificar minha escolha, argumentaria que o Kindle não proporciona um respiro absoluto em relação à web. Ele pode até atenuar o barulho, mas não chega a oferecer um estado de isolamento. A Amazon rastreia todo movimento que acontece em seus e-books. Usa os dados que capta dos Kindles para prever a eficácia comercial dos livros que vende. Rastreia as passagens que a gente sublinha e compartilha essas marcações com os demais leitores. Continua sendo uma fortaleza da grande tecnologia, umbilicalmente conectada a uma loja exclusiva. O Kindle é uma simulação eficaz de um livro, mas não passa de uma simulação. As previsões eram de que os e-books superariam os livros de papel, chegando a dominar completamente o mercado editorial. Em 2010, o fundador do laboratório de mídia do MIT, Nicholas Negroponte, foi preciso sobre o momento em que o papel sucumbiria: “Vai acontecer dentro de cinco anos.”2 Ora, o apocalipse chegou e passou. Os livros de papel sustentaram sua posição, e as vendas de e-books não aumentaram no ritmo previsto. Na verdade, despencaram. Em 2015, a receita dos e-books caiu 11%, enquanto a receita das livrarias tradicionais cresceu quase 2%.3 Meu afastamento do Kindle não foi uma idiossincrasia, e sim exemplo de uma tendência generalizada. Meu palpite é que boa parte do público leitor quer se refugiar do intenso fluxo da internet; desejam a leitura silenciosa, a contemplação particular – e existe a sensação persistente de que o papel, e só o papel, consegue induzir esse estado. O movimento de retorno à página – não à página metafórica, mas ao material fibroso que podemos esfregar entre os dedos – é um movimento de retorno às lições fundamentais da história da leitura.

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Peço desculpas pela revelação a seguir, que não tem a pretensão de fixar nenhuma imagem indissolúvel: meu lugar preferido para ler é na banheira. Um banho bem quente, o estado platônico de abertura mental e relaxamento, exceto pela possibilidade de molhar as páginas. Se a banheira estiver ocupada

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por outro membro da família, me contento em ler na cama. Travesseiros bem gordos nas costas e uma lâmpada forte para iluminar o texto. É uma revelação banal, na verdade. Esses são lugares bem comuns de se ler, talvez os mais comuns. De fato, toda a história da palavra impressa aponta na direção do consumo de livros nesses cenários íntimos, da leitura a sós em nossos cantos de refúgio. Escolhemos ler dessa forma reservada porque queremos escapar, mas também pelas possibilidades intelectuais criadas por essa fuga. Na Alta Idade Média, o livro era quase um milagre, literalmente. Era o meio pelo qual os sacerdotes transmitiam a palavra de Deus. Quase ninguém era alfabetizado. Na Europa, talvez de cem pessoas só uma soubesse ler. Como descreveu o historiador Steven Roger Fischer, “ler” era ler em voz alta.4 A leitura silenciosa não era uma prática nada comum. Há pouquíssimos registros desse tipo de leitura, dignos de nota apenas porque chocavam os observadores. Ler era possivelmente a atividade social por excelência. Os contadores de histórias liam para o mercado, os sacerdotes liam para suas congregações, os professores universitários liam para os estudantes e as pessoas letradas liam em voz alta para si mesmas. Os textos medievais costumavam pedir ao público que “emprestasse os ouvidos”. Apesar da relativa desolação intelectual da época, a alfabetização foi aos poucos ganhando terreno para além dos âmbitos de uma pequena elite. O crescimento do comércio criou os primeiros lampejos de uma nova classe de comerciantes, junto a textos profissionais para satisfazer as necessidades deles. Os textos – antes imponentes blocos de letras, com uma palavra colada na palavra seguinte, sem espaços brancos entre uma e outra – foram domesticados por novas regras sintáticas. Começou a haver cada vez mais espaço entre as palavras, e até pontuação. Ler ficou menos extenuante, mais acessível. Foram necessários alguns séculos para que as mudanças fossem totalmente incorporadas e a leitura pública desse lugar à leitura silenciosa. Foi uma das transformações mais profundas na história da humanidade. Ler deixou de ser uma experiência passiva e coletiva para se tornar ativa e privada. A leitura silenciosa transformou a forma de pensar, deslocando o indivíduo para o primeiro plano. O ato de ler isoladamente – nas camas,

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nas bibliotecas – criou espaço para o pensamento herético. Fischer descreveu a mudança: Passou a prevalecer a leitura silenciosa e ativa, que demandava envolvimento. A partir de então o leitor se converteu em agente, ao mesmo tempo em que o autor virou apenas um guia que mostrava a seu público silencioso e invisível uma variedade de caminhos. Se os ouvintes-leitores da Alta Idade Média quase sempre ouviam um coro de vozes entoando em uníssono a ladainha cristã, intelectuais “humanistas” da Baixa Idade Média liam em silêncio um mundo inteiro de vozes, cada uma entoando uma canção diferente e

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em muitas línguas (...) Depois de gerações para se libertar da escravidão oral, inúmeros leitores podiam admitir, por fim, como Tomás de Kempis, em Imitação de Cristo: “Procurei a felicidade por todos os lugares, mas só fui encontrá-la num pequeno recanto, com um livrinho.”5

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Em nossa cultura, há um forte impulso no sentido de fugir desses recantos. Aprendemos que os vencedores serão aqueles que interagem, colaboram, criam e traçam estratégias em conjunto com outras pessoas. Nossas crianças são ensinadas a estudar em grupos, a executar projetos em equipe. No ambiente de trabalho, derrubaram as paredes, para que as organizações funcionem como uma unidade. As gigantes da tecnologia também nos impulsionam a integrar a multidão – abastecem-nos com os trending topics, e seus algoritmos sugerem que a gente leia os mesmos artigos, tweets e posts que o resto do mundo. Não há dúvida quanto ao poder criativo da conversação, o potencial intelectual de aprender humildemente com nossos pares, a necessidade de trabalhar em grupos para solucionar problemas. Porém nada disso deveria substituir a contemplação e os momentos de isolamento, quando a mente pode seguir seu próprio curso e chegar a suas próprias conclusões. Lemos em nossos pequenos recantos, na cama, na banheira, no quarto de estudo, porque acreditamos que são os lugares onde conseguimos pensar melhor. Passei a vida inteira procurando uma alternativa. Leio em cafés e no metrô, fazendo um tremendo esforço para me concentrar, mas nunca funciona muito bem. Não consigo abstrair das outras pessoas que estão em volta.

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Quando lemos com profundidade e comprometimento total, entramos num estado quase de transe, que silencia o mundo exterior. Desaparece a distância entre as palavras na página e as abstrações que povoam nossa mente. Como acontecia às primeiras gerações de leitores silenciosos, os pensamentos heréticos vêm e vão; ficamos despojados de inibições intelectuais. É por isso que costumamos nos recolher com nosso livro para espaços privados, onde não precisamos nos preocupar com as convenções sociais e onde o mundo não pode ler por cima do nosso ombro. É por isso que não conseguimos descartar o papel, embora as empresas de tecnologia venham fazendo um enorme esforço nesse sentido. Se essas empresas desejam absorver a totalidade da existência humana em seu curral corporativo, a leitura em papel é um dos poucos resquícios de vida que elas não podem incorporar completamente. Será para elas um desafio de engenharia à espera de uma solução. Todo o resto do mundo deveria se refugiar rotineiramente no santuário do papel. É nossa reação a um sistema cada vez mais invasivo, um refúgio que deveríamos ocupar conscientemente. Nosso modelo de resistência é um romancista tcheco.

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Milan Kundera foi o romancista mais obsceno de sua época. Foi o laureado da orgia, o grande estilista da humilhação da alcova, o explicador literário da copulação transgressora em toda sua diversidade. É certo que essa obsessão não o distinguia de outros escritores tchecos da mesma época. Josef Škvorecký e Ivan Klíma também inseriam muito sexo – selvagem, promíscuo, gráfico – em suas histórias. Escreveram obras-primas da excitação, embora esse não fosse exatamente o objetivo. Uma sociedade totalitária tenta obliterar a vida privada, ao passo que o romancista busca habitá-la. O sexo era uma obsessão porque supostamente oferecia um antídoto para o Estado onisciente. Era um território da experiência humana genuína, não controlado pelo Estado. A vigilância na internet é muito diferente do monitoramento do Estado totalitário. A União Soviética e sua família de nações vigiava os cidadãos para gerar paranoia, para impor os dogmas do partido e, em última instância, preservar o controle antidemocrático do poder por parte de uma pequena

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elite. Na internet, somos vigiados para que as empresas possam nos vender seus produtos com mais eficácia. Contudo, o fato de a vigilância na internet não ser totalitária não significa que não nos faça mal. Somos vigiados para que possam nos manipular. Uma parte dessa manipulação é até bem-vinda. Talvez nos deleitemos com as recomendações musicais dos algoritmos, ficamos felizes de nos mostrarem o anúncio de determinado tênis, precisamos da ajuda do computador para filtrar a massa de informações. Mas há outra forma de descrever a comodidade da máquina: é a renúncia ao livre-arbítrio; os algoritmos tomam decisões em nosso lugar. Não é algo tão terrível, porque nossa submissão à manipulação é amplamente voluntária. Mas ainda assim a sensação é que estamos entregando muito mais do que pretendemos e que estamos sendo muito mais manipulados do que sabemos. Pode ser que nosso futuro digital seja tão glorioso quanto anunciam, ou talvez seja um inferno distópico. Mas como cidadãos e leitores, há muitas razões para jogarmos um balde de água fria nessa história. Somente as políticas governamentais podem de fato fazer frente aos monopólios que controlam cada vez mais o mundo das ideias. Contudo, nós podemos encontrar momentos para nos retirarmos voluntariamente da órbita dessas empresas e de seus ecossistemas. Não se trata de abandonar o barco, mas de proporcionar momentos para nós mesmos. Os romancistas tchecos buscavam as brechas no Estado, pelas quais poderiam escapar dos olhares vigilantes. O papel – na forma de livros, revistas e jornais – é a brecha que podemos habitar. É o lugar para além dos monopólios, onde não deixamos rastro de dados, onde não somos monitorados. Quando lemos as palavras no papel, ficamos longe das notificações, dos avisos sonoros e de outras urgências que nos desviam dos nossos pensamentos. A página nos permite, por um período do dia, desconectar da máquina e cuidar da nossa essência humana.

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As questões centrais deste livro são especialmente espinhosas para os americanos. Ao longo da história, nos consideramos a vanguarda de duas revoluções irmãs: uma científica e a outra política. Posamos como a grande

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incubadora mundial de tecnologia, como principal inventor – o que expressava perfeitamente nosso caráter nacional e nossa república experimental, com seus desbravadores se aventurando pelo desconhecido. Essa revolução de engenharia estava, claro, intimamente ligada à Revolução Americana. Ambas eram produtos do mesmo Iluminismo. Carregavam a mesma fé na razão. Os primeiros grandes tecnólogos americanos – Franklin e Jefferson – eram profundos expoentes da liberdade política. Os Estados Unidos pregavam a plenos pulmões a cartilha da tecnologia e do individualismo, espalhando-a evangelicamente por todo o globo. Inovamos sem trégua em ambas as esferas, criando as lâmpadas e o direito à privacidade, a linha de montagem e a proteção à liberdade de expressão. As revoluções irmãs estimularam uma à outra. Avançaram lado a lado, apenas com breves momentos de tensão. Em geral, nossa liberdade criou uma economia dinâmica e iconoclasta que incentivava com todo o vigor o ato de criação. E as invenções impulsionavam a causa da liberdade, permitindo novas formas de expressão pessoal, liberdade de movimento e autorrealização. Por isso, o momento atual é tão incômodo. Nossa crença na tecnologia deixou de ser totalmente compatível com nossa crença na liberdade. Estamos perto do momento em que teremos de prejudicar uma das revoluções para salvar a outra. A privacidade não consegue sobreviver à trajetória corrente da tecnologia. Nossas ideias a respeito do mercado competitivo estão ameaçadas. A proliferação de notícias falsas e de conspirações pelas mídias sociais, a dissipação de nossa base comum para os fatos, está criando condições propícias para o autoritarismo. Ao longo do tempo, a grande fusão entre homem e máquina funcionou bastante bem para o homem. Mas estamos chegando a uma nova época, em que a fusão ameaça o indivíduo. A natureza humana é maleável. Não é algo fixo, mas tem um ponto de ruptura, um ponto a partir do qual nossa natureza deixa de ser de fato humana. Podemos decidir cruzar alegremente essa fronteira, mas precisamos ser francos sobre os custos envolvidos. No momento atual, não estamos comandando nosso rumo. Estamos à deriva, sem a pressão compensatória do sistema político, da mídia ou da intelectualidade. Estamos sendo levados ao monopólio, à conformidade e a suas máquinas.

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Nesta época de automação acelerada, em que a internet conecta a quase tudo e quase todos, a ideia de comandar nosso próprio rumo pode parecer ridícula e inútil. “Nosso próprio controle parece escapar do nosso controle”, argumentou o filósofo Michel Serres.6 “Como podemos dominar nossa dominação?” É uma pergunta inquietante, mas também implica que os seres humanos têm reservas inexploradas de ação. As empresas de tecnologia aspiram moldar nossa vida e nossos hábitos, mas a vida e os hábitos continuam sendo nossos. Talvez nossa sociedade caia em si, e a gente acabe impondo políticas sensatas de Estado para proteger a cultura, a democracia e os indivíduos contra a corrosividade dessas empresas. Enquanto isso, precisamos nos proteger. Nós nos enganamos ao nos preocuparmos mais com a comodidade e a eficiência do que com as coisas que duram. Em comparação à nutrição contínua de uma vida contemplativa e do profundo compromisso com o texto, muitos dos prazeres promíscuos da web estão desaparecendo. A vida contemplativa continua disponível livremente por meio das nossas escolhas – o que lemos e compramos, como nos dedicamos ao lazer e ao aprimoramento pessoal, como resistimos à tentação vazia, nossa preservação dos espaços tranquilos e nossos esforços intencionais para dominarmos nosso domínio.

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AGRADECIMENTOS

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ESTE LIVRO É SOBRE O MUNDO das ideias e sobre o que acontece quando deixamos de

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valorizá-lo da forma como deveríamos. Espero sempre lembrar de manifestar minha gratidão pelas comunidades intelectuais às quais tive a sorte de pertencer. Muitos dos principais conceitos deste livro vieram do escritório de Leon Wieseltier, onde eu passava quase todas as tardes, discutindo os assuntos do momento e os livros atemporais que habitavam aquelas estantes. Por quase duas décadas, ele foi meu amigo, colega de trabalho e professor. Este livro ficou muito melhor graças a leitores atentos e generosos. Ganhou muito, em especial, com as orientações perspicazes e cuidadosas de Rachel Morris, brilhante editora. Serei eternamente grato a David Greenberg, Barry Lynn, Nicholas Lemann, Maurice Stucke e Jacob Weisberg pelas sugestões. Em termos de pesquisa, recebi ajuda inestimável de Hillary McClellen e Jessie Roberts. Quando precisei de companheirismo intelectual, Anne-Marie Slaughter e Peter Bergen, da New America Foundation, foram perfeitos. Ao longo do caminho, ganhei muito com a orientação contínua de antigos colegas e amigos da New Republic: Jonathan Chait, Isaac Chotiner, John B. Judis, Alec MacGillis, Chris Orr, Jeffrey Rosen, Michael Schaffer, Noam Scheiber, Judith Shulevitz, Amanda Silverman, Andrew Sullivan, Greg Veis e Jason Zengerle. Agradeço também a Susan Athey, Thomas Catan, Alan Davidson, Tom Freedman, Peter Fritsch, Jeffrey Goldberg, Jonathan Kanter, Jodi Kantor, Larry Kramer, Roger Noll e Terry Winograd. Não é por acaso que Ann Godoff é tida como grande referência no mercado editorial. Desde o começo, ela enxergou a trajetória do meu argumento

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muito melhor do que eu; prestou atenção minuciosa aos detalhes, ao mesmo tempo em que permaneceu visionária. Além disso, reuniu uma equipe imbatível na Penguin Press: William Heyward, Casey Rasch, Scott Moyers e Elisabeth Calamari. Bea Hemming, da editora Jonathan Cape, no Reino Unido, se dedicou a este projeto desde o início, assim como meu amigo e agente Rafe Sagalyn. Meus irmãos me ajudaram a levantar várias vezes durante o percurso, e meus pais conseguiram equilibrar críticas sinceras e um apoio ímpar. O livro termina com um tom otimista porque tenho Theo e Sadie, que já nasceram idealistas e são as melhores companhias do mundo. De todo o coração, agradeço a Abby, minha mulher, que me encheu de amor, ânimo e sabedoria para enfrentar os desafios da escrita e da vida.

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1. Tom Wolfe, The Electric Kool-Aid Acid Test (Farrar, Straus & Giroux, 1968), pp. 2, 11 [no Brasil, O teste do ácido do refresco elétrico, 1993]. 2. Para detalhes biográficos sobre Brand, aprendi muito com três excelentes livros: Fred Turner, From Counterculture to Cyberculture (University of Chicago Press, 2006); John Markoff, What the Dormouse Said (Viking Penguin, 2005); Walter Isaacson, The Innovators (Simon & Schuster, 2014) [no Brasil, Os inovadores, 2014]. 3. Turner, p. 59. 4. Sherry L. Smith, Hippies, Indians, and the Fight for Red Power (Oxford University Press, 2012), p. 52. 5. Charles Perry, The Haight-Ashbury (Random House, 1984), p. 19. 6. Markoff, p. 61. 7. Wolfe, p. 12. 8. Isaacson, p. 268. 9. Turner, p. 11. 10. Turner, p. 2. 11. Paul E. Ceruzzi, A History of Modern Computing (MIT Press, 2003), pp. 34-35. 12. Ceruzzi, p. 12. 13. Theodore Roszak, From Satori to Silicon Valley (Don’t Call It Frisco Press, 1986), pp. 16-17. 14. Judson Jerome, Families of Eden (Seabury Press, 1974), p. 18.

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15. “From Counterculture to Cyberculture: The Legacy of the Whole Earth Catalog”, simpósio na Universidade de Stanford, 9 nov. 2006. 16. Steve Jobs, discurso como paraninfo de uma cerimônia de graduação na Universidade Stanford, 12 jun. 2005. 17. Whole Earth Catalog, outono de 1968. 18. The Last Whole Earth Catalog, jun. 1971. 19. Turner, p. 73. 20. Katherine Fulton, “How Stewart Brand Learns”, Los Angeles Times, 30 out. 1994. 21. Stewart Brand, “Spacewar: Fanatic Life and Symbolic Death Among the Computer Bums”, Rolling Stone, 7 dez. 1972. 22. Brand, “Spacewar”. 23. Stewart Brand, II Cybernetic Frontiers (Random House, 1974). 24. Turner, p. 121. 25. Marshall McLuhan, Understanding Media (McGraw-Hill, 1964), p. 3 [no Brasil, Os meios de comunicação como extensões do homem, 1969]. 26. Eric McLuhan e Frank Zingrone, orgs., Essential McLuhan (Basic Books, 1995), p. 92. 27. McLuhan, p. 80. 28. Isaacson, p. 261. 29. Tim Berners-Lee, Weaving the Web (HarperCollins, 1999), p. 209. 30. Linus Torvalds, Just for Fun (HarperCollins, 2001), p. 227 [no Brasil, Só por prazer, 2001]. 31. Tim Wu, The Master Switch (Alfred A. Knopf, 2010), p. 8 [no Brasil, Impérios da comunicação, 2012]. 32. Ron Chernow, The House of Morgan (Atlantic Monthly Press, 1990), p. 54. 33. Peter Thiel, Zero to One (Crown Business, 2014), p. 35 [no Brasil, De zero a um, 2014]. 34. Thiel, p. 32. 35. Alexia Tsotsis, “Marc Andreessen On The Future Of Enterprise”, TechCrunch, 27 jan. 2013.

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Capítulo 2: A teoria Google da história

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1. Larry Page, discurso na cerimônia de graduação da Universidade de Michigan, 2 maio 2009. Minha descrição de Carl Page é pautada nas conversas que tive com vários de seus colegas da Universidade Estadual de Michigan, como, por exemplo, Hsu Wen Jing. A família de Page pediu que seus amigos mais próximos não dessem entrevistas a jornalistas, então eles conversaram comigo de forma anônima. 2. Verne Kopytoff, “Larry Page’s Connections”, San Francisco Chronicle, 31 dez. 2000. 3. Entrevista com Larry Page, Academy of Achievement, 28 out. 2000. 4. David A. Vise e Mark Malseed, The Google Story (Delacorte, 2005), p. 24 [no Brasil, Google: A história do negócio de mídia e tecnologia de maior sucesso dos nossos tempos, 2007]. 5. Vise e Malseed, p. 22. 6. Vise e Malseed, p. 22. 7. Sherry Turkle, The Second Self (Simon & Schuster, 1984), p. 247. 8. Ken Auletta, Googled (Penguin Press, 2009), pp. 28, 32 [no Brasil, Googled: A história da maior empresa do mundo virtual e como sua ascensão afeta as empresas do mundo real, 2011]. 9. Larry Page, Google I/O 2013, discurso de abertura, 15 maio 2013. 10. Larry Page, “Envisioning the Future for Google: Always a Search Engine?” (palestra, Universidade de Stanford, Stanford, CA, 1º maio 2002). 11. Steven Levy, “All Eyes on Google”, Newsweek, 11 abr. 2004. 12. Vise e Malseed, p. 281. 13. Stephen Gaukroger, Descartes (Oxford University Press, 1995), p. 1 [no Brasil: Descartes: Uma biografia intelectual, 1999]. 14. Steven Nadler, The Philosopher, the Priest, and the Painter (Princeton University Press, 2013), p. 106. 15. David F. Noble, The Religion of Technology (Alfred A. Knopf, 1997), p. 144. 16. Nadler, p. 107. 17. Noble, p. 145. 18. Noble, p. 147. 19. Isaacson, p. 41.

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20. Stuart Hampshire, “Undecidables”, London Review of Books, 16 fev. 1984. 21. Andrew Hodges, Alan Turing: The Enigma (Vintage, 2012), p. 418. 22. B. Jack Copeland, org., The Essential Turing (Oxford University Press, 2004), p. 463. 23. Ray Kurzweil, blog Ask Ray, “My Trip to Brussels, Zurich, Warsaw, and Vienna”, 14 dez. 2010. 24. Ray Kurzweil, “I’ve Got a Secret”, 1965. Link: . 25. Steve Rabinowitz, citado no documentário Transcendent Man, dirigido por Barry Ptolemy, 2011. 26. Transcendent Man. 27. Ray Kurzweil, The Singularity Is Near (Viking Penguin, 2005), p. 299. 28. Kurzweil, Singularity, p. 40. 29. Kurzweil, Singularity, p. 9. 30. Ray Kurzweil, The Age of Spiritual Machines (Viking Penguin, 1999), p. 129 [no Brasil, A era das máquinas espirituais, 2007]. 31. Kurzweil, Spiritual Machines, p. 148. 32. Kurzweil, Spiritual Machines, p. 147. 33. Peter Diamandis, citado em Transcendent Man. 34. Kurzweil, Singularity, p. 389. 35. Robert M. Geraci, “Apocalyptic AI: Religion and the Promise of Artificial Intelligence”, Journal of the American Academy of Religion 76, n. 1 (mar. 2008): 158-59. 36. Wendy M. Grossman, “Artificial Intelligence Is Still the Future”, The Inquirer, 7 abr. 2008. 37. Kurzweil, Singularity, contracapa. 38. John Markoff, Machines of Loving Grace (HarperCollins, 2015), p. 85. 39. Alphabet Inc., Research & Development Expenses, 2015, Google Finance. 40. Larry Page and Sergey Brin, “Letter from the Founders: ‘An Owner’s Manual’ for Google’s Shareholders”, ago. 2004. 41. Josh McHugh, “Google vs. Evil,” Wired, jan. 2003. 42. Greg Kumparak, “Larry Page Wants Earth to Have a Mad Scientist Island”, TechCrunch, 15 maio 2003.

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43. Robert D. Hof, “Deep Learning”, Technology Review. Link: <www. technologyreview.com/s/513696/deep-learning>. 44. Sara Jerome, “Schmidt: Google gets ‘right up to the creepy line’”, The Hill, 1º out. 2010. 45. David Rowan, “On the Exponential Curve: Inside Singularity University”, Wired, maio 2013. 46. “Google Pledges $3 Million to Singularity University to Make Graduate Studies Program Free of Charge”, Singularity Hub, 28 jan. 2015. 47. Folheto do Exponential Advisory Board, Universidade da Singularidade. 48. “Time Talks to CEO Larry Page About Its New Venture to Extend Human Life”, Time, 18 set. 2013. 49. Steven Levy, In the Plex (Simon & Schuster, 2011), p. 354 [no Brasil, Google: A biografia, 2012]. 50. Levy, In the Plex, p. 355. 51. Levy, In the Plex, p. 353. 52. George Dyson, Turing’s Cathedral (Pantheon, 2012), pp. 312-13. 53. Page, Google, discurso de abertura, 15 maio 2013. 54. Steven Levy, “Google’s Larry Page on Why Moon Shots Matter”, Wired, 17 jan. 2013. 55. Levy, Wired, 17 jan. 2013.

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Capítulo 3: A guerra de Mark Zuckerberg contra o livre-arbítrio 1. Steven Levy, Hackers (O’Reilly Media, 2010), pp. 29, 96 [no Brasil, Os heróis da revolução, 2012]. 2. Markoff, Dormouse, p. 272. 3. Patrick Gillespie, “Was Mark Zuckerberg an AOL Add-on Developer?”, patorjk. com, 9 abr. 2013. 4. Ben Mezrich, The Accidental Billionaires (Anchor Books, 2009), p. 49 [no Brasil, Bilionários por acaso, 2010]. 5. Levy, Hackers, p. 475. 6. “Facebook CEO Mark Zuckerberg on stumbles: ‘There’s always a next move’”, Today, 4 fev. 2014. 7. “Mark Zuckerberg’s Letter to Investors: ‘The Hacker Way’”, Wired, 1 fev. 2012.

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8. David Kirkpatrick, The Facebook Effect (Simon & Schuster, 2010), p. 144 [no Brasil, O efeito Facebook, 2011]. 9. Kirkpatrick, p. 209. 10. Kirkpatrick, p. 199. 11. Kirkpatrick, p. 200. 12. Kirkpatrick, p. 254. 13. Marc Andreessen, “Why Software Is Eating the World”, Wall Street Journal, 20 ago. 2011. 14. Laura M. Holson, “Putting a Bolder Face on Google”, New York Times, 8 fev. 2009. 15. Ben Thompson, “Why Twitter Must Be Saved”, Stratechery, 8 nov. 2016. 16. Matthew Stewart, The Courtier and the Heretic (W.W. Norton, 2006), p. 12. 17. Umberto Eco, The Search for the Perfect Language (Blackwell, 1995), p. 274 [no Brasil, A busca da língua perfeita, 2001]. 18. Stewart, p. 141. 19. Eco, p. 281. 20. James Gleick, The Information (Pantheon, 2011), p. 93 [no Brasil, A informação, 2013]. 21. John MacCormick, Nine Algorithms That Changed the Future (Princeton University Press, 2012), pp. 3-4. 22. Chris Anderson, “The End of Theory: The Data Deluge Makes the Scientific Method Obsolete”, Wired, 23 jun. 2008. 23. Constance L. Hays, “What Wal-Mart Knows About Customers’ Habits”, New York Times, 14 nov. 2004. 24. Latanya Sweeney, “Discrimination in Online Ad Delivery”, Communications of the ACM 56, n. 5 (maio 2013): 44-54. 25. Charlie Rose Show, 7 nov. 2011. 26. Alexandra Chang, “Liveblog: Facebook Reveals a ‘New Look for News Feed’”, Wired, 7 mar. 2013. 27. Motahhare Eslami, Aimee Rickman, Kristen Vaccaro, Amirhossein Aleyasen, Andy Vuong, Karrie Karahalios, Kevin Hamilton e Christian Sandvig, “I always assumed that I wasn’t really that close to [her]: Reasoning about Invisible Algorithms in News Feeds”, CHI’15 Proceedings of the 33rd Annual ACM Conference on Human Factors in Computing Systems, abr. 2015, 153-62.

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28. Jon Kleinberg e Sendhil Mullainathan, “We Built Them, But We Don’t Understand Them”, Edge, 2015. 29. Tom Simonite, “What Facebook Knows”, Technology Review, 13 jun. 2012. 30. Adam D.I. Kramer, Jamie E. Guillory e Jeffrey T. Hancock, “Experimental evidence of massive-scale emotional contagion through social networks”, Proceedings of the National Academy of Sciences 111, n. 24 (jun. 17, 2014): 8.788-90. 31. Reed Albergotti, “Facebook Experiments Had Few Limits; Data Science Lab Conducted Tests on Users With Little Oversight”, Wall Street Journal, 2 jul. 2014. 32. Robert M. Bond, Christopher J. Fariss, Jason J. Jones, Adam D.I. Kramer, Cameron Marlow, Jaime E. Settle e James H. Fowler, “A 61-Million-Person Experiment in Social Influence and Political Mobilization”, Nature 489, n. 7.415 (13 set. 2012): 295-98. 33. Michal Kosinski, David Stillwell e Thore Graepel, “Private traits and attributes are predictable from digital records of human behavior”, Proceedings of the National Academy of Sciences 110, n. 15 (9 abr. 2013), pp. 5.802-5. 34. Michael Rundle, “Zuckerberg: telepathy is the future of Facebook”, Wired, 1 jul. 2015. 35. Joanna Plucinska, “How an Algorithm Helped the LAT Scoop Monday’s Quake”, Columbia Journalism Review, 18 mar. 2014.

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Capítulo 4: Jeff Bezos subverte o conhecimento

1. “Jeff Bezos in Conversation with Steven Levy”, Wired Business Conference, 15 jun. 2009. 2. Brad Stone, The Everything Store (Little, Brown and Company, 2013), p. 24 [no Brasil, A loja de tudo, 2014]. 3. Minha análise sobre a economia do conhecimento se baseia no excelente livro de David Warsh: Knowledge and the Wealth of Nations (W.W. Norton, 2006). 4. Paul M. Romer, “Endogenous Technological Change”, Journal of Political Economy 98, n. 5 (out. 1990): S71-102. 5. Cory Doctorow, Information Doesn’t Want to Be Free (McSweeney’s, 2014), p. 41. 6. Lawrence Lessig, The Future of Ideas (Random House, 2001), p. 14.

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7. Kevin Kelly, New Rules for the New Economy (Viking Penguin, 1998), p. 40 [no Brasil, Novas regras para uma nova economia, 1999]. 8. Astra Taylor, The People’s Platform (Metropolitan Books, 2014), p. 204. 9. Paul Mason, Postcapitalism (Farrar, Straus and Giroux, 2015), p. 125 [no Brasil, Pós-capitalismo, 2017]. 10. Herbert A. Simon, “Designing Organizations for an Information-Rich World”, in Martin Greenberger (org.), Computers, Communications, and the Public Interest (Johns Hopkins University Press, 1971), p. 40. 11. Gleick, p. 410. 12. Chris Ruen, Freeloading (OR Books, 2012), p. 7. 13. Robert Levine, Free Ride (Doubleday, 2011), p. 9. 14. Scott Cleland, “Grand Theft Auto-mated”, Forbes, 30 nov. 2011. 15. Mark Zuckerberg, post no Facebook, 12 nov. 2016.

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Capítulo 5: Sentinelas dos portões celestiais

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1. Staci D. Kramer, “Don Graham on the Sale of The Washington Post, Jeff Bezos, and the Pace of Newsroom Innovation”, NiemanLab, 6 ago. 2013. 2. David Manning White, “The ‘Gate Keeper’: A Case Study in the Selection of News”, Journalism Quarterly 27 (dez. 1950): 383-90. 3. Walter Lippmann, Liberty and the News (Harcourt, Brace and Howe, 1920), p. 7. 4. John B. Judis, The Paradox of American Democracy (Pantheon, 2000), p. 23. 5. Judis, Paradox, p. 22. 6. Katharine Graham, Personal History (Alfred A. Knopf, 1997), p. 465 [no Brasil, Katharine Graham: Uma história pessoal, 1998]. 7. David Halberstam, The Powers That Be (Knopf, 1975), p. 188. 8. Jeff Bezos, carta aos acionistas da Amazon, 2011. 9. Thomas L. Friedman, “Do You Want the Good News First?”, New York Times, 19 maio 2012. 10. Bezos, carta, 2011. 11. Bezos, carta aos acionistas, 2011. 12. Jeff Bezos, “Jeff Bezos on Post Purchase”, Washington Post, 5 ago. 2013. 13. George Packer, “Cheap Words”, New Yorker, 17 fev. 2014.

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14. Stone, Everything, p. 243. 15. Daniel Lyons, “Why Bezos Was Surprised by the Kindle’s Success”, Newsweek, 20 dez. 2009. 16. Ben H. Bagdikian, The New Media Monopoly (Beacon Press, 2004), p. 121 [no Brasil, O monopólio da mídia, 2018]. 17. Bagdikian, p. 16. 18. Wu, Master Switch, pp. 219-21. 19. Robert W. McChesney e John Nichols, The Death and Life of American Journalism (Nation Books, 2010), p. 152. 20. André Schiffrin, The Business of Books (Verso, 2000), p. 1 [no Brasil, O negócio dos livros, 2006]. 21. Bennett Cerf, At Random (Random House, 1977), p. 285.

Capítulo 6: Confabulações das gigantes da tecnologia

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1. Tom Standage, The Victorian Internet (Bloomsbury, 2014), p. 215. 2. Paul Starr, The Creation of the Media (Basic Books, 2004), pp. 171-73. 3. Starr, p. 176. 4. Menahem Blondheim, News over the Wires (Harvard University Press, 1994), p. viii. 5. Blondheim, p. 151. 6. David Hochfelder, The Telegraph in America, 1832-1920 (Johns Hopkins University Press, 2012), p. 44. 7. Starr, p. 177. 8. Wu, Master Switch, p. 22. 9. Starr, p. 187. 10. Jonathan Zittrain, “Facebook Could Decide an Election Without Anyone Ever Finding Out”, New Republic, 1 jun. 2014. 11. Joshua Green, “Google’s Eric Schmidt Invests in Obama’s Big Data Brains”, Bloomberg Businessweek, 31 maio 2013. 12. “Obama for America uses Google Analytics to democratize rapid, data-driven decision making”, Google Analytics Case Study, 2013.

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13. Steve Lohr e David Streitfeld, “Data Engineer in Google Case Is Identified”, New York Times, 30 abr. 2012; David Streitfeld, “Google Is Faulted for Impeding U.S. Inquiry on Data Collection,” New York Times, 14 abr. 2012. 14. Robert Epstein, “How Google Could Rig the 2016 Election,” Politico, 19 ago. 2015; Robert Epstein e Ronald E. Robertson, “The Search Engine Manipulation Effect (SEME) and Its Possible Impact on the Outcomes of Elections”, Proceedings of the National Academy of Sciences 112, n. 33 (18 ago. 2015): E4512-21. 15. Les Brown, “Subliminal Ad Pops Up in National TV Promotion”, New York Times, 27 dez. 1973.

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Capítulo 7: O vírus do viral

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1. Greg Bensinger, “Competing with Amazon on Amazon”, Wall Street Journal, 27 jul. 2012. 2. Jonah Peretti, “Mormons, Mullets, and Maniacs”, New York Viral Media Meetup, 12 ago. 2010. 3. Michael Schudson, The Sociology of News (W.W. Norton, 2011), p. 73. 4. John Morton Blum, org., Public Philosopher: Selected Letters of Walter Lippmann (Ticknor & Fields, 1985), pp. 133-34. 5. Lippmann, Liberty and the News, p. 5. 6. Robert Darnton, “Writing News and Telling Stories”, Daedalus 104, n. 2 (primavera de 1975): 175-94. 7. Taylor, p. 87. 8. “The Worst Jobs of 2015”, CareerCast.com. 9. Andy Serwer, “Inside the Mind of Jonah Peretti”, Fortune, 5 dez. 2013. 10. James Fallows, “Learning to Love the (Shallow, Divisive, Unreliable) New Media”, Atlantic, abr. 2011. 11. “Innovation”, New York Times, 24 mar. 2014. 12. “Hello again”, blog de Joshua Topolsky, 11 jul. 2015. 13. Andrew Sullivan, “Guess Which Buzzfeed Piece Is An Ad”, blog The Dish, 21 fev. 2013.

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Capítulo 8: A morte do autor

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1. Evan Osnos, “Embrace the Irony”, New Yorker, 13 out. 2014. 2. Simon van Zuylen-Wood, “Larry Lessig, Off the Grid”, New Republic, 5 fev. 2014. 3. Lawrence Lessig, “Laws That Choke Creativity”, TED, mar. 2007. 4. T.S. Eliot, Selected Essays 1917-1932 (Harcourt, Brace and Company, 1932), p. 182. 5. Taylor, p. 23. 6. Robert Levine, Free Ride (Doubleday, 2011), p. 84. 7. Clay Shirky, Cognitive Surplus (Penguin, 2010), p. 82 [no Brasil, A cultura da participação, 2011]. 8. Thomas L. Friedman, “Collaborate vs. Collaborate”, New York Times, 12 jan. 2013. 9. Tomás de Aquino, Basic Writings of St. Thomas Aquinas, vol. 1, org. Anton C. Pegis (Random House, 1945), p. 312. 10. Mark Rose, Authors and Owners (Harvard University Press, 1993), p. 18. 11. Percy Lubbock, org., The Letters of Henry James: Volume 1 (Charles Scribner’s Sons, 1920), p. 424. 12. William Wordsworth, The Poems of William Wordsworth (Methuen and Co., 1908), p. 516. 13. Martha Woodmansee e Peter Jaszi (orgs.), The Construction of Authorship (Duke University Press, 1994), p. 5. 14. Siva Vaidhyanathan, Copyrights and Copywrongs (New York University Press, 2001), p. 50. 15. Vaidhyanathan, p. 45. 16. Robert Spoo, Without Copyrights (Oxford University Press, 2013), p. 42. 17. Jenny Hartley (org.), The Selected Letters of Charles Dickens (Oxford University Press, 2012), p. 96. 18. Rudyard Kipling, Kipling’s America: Travel Letters, 1889-1895, org. D.H. Stewart (Johns Hopkins University Press, 2003), p. xx. 19. Henry Holt, “The Commercialization of Literature”, Atlantic Monthly, nov. 1905.

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20. Frederick Anderson, Lin Salamo, Bernard L. Stein (orgs.), Mark Twain’s Notebooks & Journals, Volume II, 1877-1883 (University of California Press, 1975), p. 414. 21. John William Crowley, The Dean of American Letters (University of Massachusetts Press, 1999), p. 11. 22. Crowley, p. 11. 23. Holt, “Commercialization of Literature”. 24. Ernest Hemingway, Green Hills of Africa (Scribner, 2015), p. 50. 25. James L.W. West III (org.), F. Scott Fitzgerald, My Lost City: Personal Essays, 1920-1940 (Cambridge University Press, 2005), p. 189. 26. William J. Quirk, “Living on $500,000 a Year”, American Scholar, outono de 2009. 27. Alfred Kazin, Starting Out in the Thirties (Atlantic Monthly Press, 1962), p. 15. 28. Lewis A. Coser, Charles Kadushin, Walter W. Powell, Books: The Culture and Commerce of Publishing (University of Chicago Press, 1985), p. 233. 29. Authors Guild, “The Wages of Writing”, pesquisa interna, set. 2015. 30. William J. Baumol e William G. Bowen, Performing Arts (Twentieth Century Fund, 1966). 31. Jason Epstein, Book Business (W.W. Norton, 2001), p. 1 [no Brasil, O negócio do livro, 2002]. 32. “Chris Anderson on the Economics of ‘Free’”, Der Spiegel, 28 jul. 2009. 33. Kevin Kelly, What Technology Wants (Viking, 2010), p. 237 [no Brasil, Para onde nos leva a tecnologia, 2012]. 34. Kevin Kelly, “Scan This Book!”, New York Times Magazine, 14 maio 2006. 35. Kelly, “Scan This Book!”. 36. Evgeny Morozov, To Save Everything, Click Here (PublicAffairs, 2013), p. 292.

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Capítulo 9: Em busca do anjo dos dados 1. Shane Greenstein, How the Internet Became Commercial (Princeton University Press, 2015). Meu relato sobre a privatização da internet se baseia em grande parte no livro de Greenstein. 2. Ceruzzi, p. 321.

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3. “Competition and Deregulation: Striking the Right Balance”, comentários de William E. Kennard, convenção anual da United States Telecom Association, 18 out. 1999. 4. Wu, Master Switch, p. 6. 5. Bruce Schneier, Data and Goliath (W.W. Norton, 2015), p. 2. 6. Schneier, p. 22. 7. Carl Shapiro e Hal R. Varian, Information Rules (Harvard Business School Press, 1999), p. 175 [no Brasil, A economia da informação, 1999]. 8. Ariel Ezrachi e Maurice E. Stucke, Virtual Competition (Harvard University Press, 2016), p. 71. 9. Thurman W. Arnold, The Folklore of Capitalism (Beard Books, 2000), p. 66. 10. Arnold, p. 217. 11. Nomeação de Thurman W. Arnold, audiências perante uma subcomissão da Comissão de Justiça do Senado dos Estados Unidos, 75º Congresso, terceira sessão, 11 mar. 1938, p. 5. 12. Michael J. Sandel, Democracy’s Discontent (Harvard University Press, 1996), p. 241. 13. Sandel, p. 240. 14. “Too Much of a Good Thing”, Economist, 26 mar. 2016. 15. K. Sabeel Rahman e Lina Khan, “Restoring Competition in the U.S. Economy”, Roosevelt Institute Report, jun. 2016. 16. Jeffrey Rosen, Louis D. Brandeis (Yale University Press, 2016), p. 48. 17. Neil Richards, Intellectual Privacy (Oxford University Press, 2015), p. 95. 18. Rosen, p. 22. 19. Louis D. Brandeis e Norman Hapgood, Other People’s Money (F.A. Stokes, 1914), p. 142. 20. Stone, pp. 290-91. 21. Robb Mandelbaum, “When Amazon Collects Sales Tax, Some Shoppers Head Elsewhere”, New York Times, 28 abr. 2014. 22. Stone, p. 287. 23. Stone, p. 294. 24. Harry Davies e Simon Marks, “Revealed: How Project Goldcrest Helped Amazon Avoid Huge Sums in Tax”, Guardian, 18 fev. 2016; Simon Marks,

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“Amazon: How the World’s Largest Retailer Keeps Tax Collectors at Bay”, Newsweek, 13 jul. 2016. 25. Davies e Marks, “Revealed”; Gaspard Sebag and David Kocieniewski, “What Is Amazon’s Core Tech Worth? Depends on Which Taxman Asks”, Bloomberg Technology, 22 ago. 2016. 26. “Fortune 500 Companies Hold a Record $2.4 Trillion Offshore”, Citizens for Tax Justice, 3 mar. 2016. 27. “Facebook’s Multi-Billion Dollar Tax Break”, Citizens for Tax Justice, 14 fev. 2013. 28. David Leonhardt, “The Big Companies That Avoid Taxes”, New York Times, 18 out. 2016. 29. David Dayen, “The Android Administration”, Intercept, 22 abr. 2016. 30. “Mission Creepy”, relatório da Public Citizen, nov. 2014. 31. Dayen, “Android Administration”. 32. Brody Mullins, Rolfe Winkler e Brent Kendall, “Inside the U.S. Antitrust Probe of Google”, Wall Street Journal, 19 mar. 2015. 33. McChesney e Nichols, Death and Life, p. 151.

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Capítulo 10: A mente orgânica

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1. Warren J. Belasco, Appetite for Change (Cornell University Press, 2007), p. 62. 2. Belasco, p. 49. 3. Belasco, p. 48. 4. Michael Pollan, “The Food Movement, Rising”, New York Review of Books, 10 jun. 2010. 5. Michael Wolff, Television Is the New Television (Portfolio/Penguin, 2015), p. 50 [no Brasil, Televisão é a nova televisão, 2015]. 6. John Herrman, “Mutually Assured Content”, The Awl, 30 jul. 2015. 7. Wolff, p. 73. 8. Taylor, p. 184. 9. George Orwell, “Books v. Cigarettes”, The Collected Essays, Journalism and Letters of George Orwell (Harcourt, Brace & World, 1968), p. 94. 10. Orwell, pp. 95-96.

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11. Alan Bilton, Silent Film Comedy and American Culture (Palgrave Macmillan, 2013), p. 16. 12. Public Relations, Edward Bernays and the American Scene (F.W. Faxon Company, 1951), p. 19. 13. Larry Tye, The Father of Spin (Henry Holt and Company, 1998), p. 52. 14. Ted Striphas, The Late Age of Print (Columbia University Press, 2009), p. 29. 15. Striphas, p. 28. 16. Raymond Williams, Keywords (Oxford University Press, 1976), p. 87 [no Brasil, Palavras-chave, 2007]. 17. Williams, p. 87. 18. Rosen, p. 48. 19. Pierre Bourdieu, Distinction (Harvard University Press, 1984), p. 6 [no Brasil, A distinção, 2011].

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Capítulo 11: A revolta do papel

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1. Kevin Kelly, The Inevitable (Viking, 2016), p. 81 [no Brasil, Inevitável, 2017]. 2. M.G. Siegler, “Nicholas Negroponte: The Physical Book Is Dead In 5 Years”, TechCrunch, 6 ago. 2010. 3. “U.S. Publishing Industry’s Annual Survey Reveals Nearly $28 Billion in Revenue in 2015”, Association of American Publishers, 11 jul. 2016. 4. Steven Roger Fischer, A History of Reading (Reaktion Books, 2003), p. 27 [no Brasil, História da leitura, 2006]. 5. Fischer, pp. 202-3. 6. Michel Serres, Conversations on Science, Culture, and Time, trad. Roxanne Lapidus (University of Michigan Press, 1995), pp. 171-72.

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ÍNDICE

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Abrams, M.H., 150 Agência de Proteção Financeira do Consumidor, 181 agentes desestabilizadores, 89 Ver também nomes específicos aldeia global, 33, 35 Alemanha, 46, 65, 151 Alfred A. Knopf, 104 algoritmos, 127, 199 desenvolvimento dos, 65, 71, 171 e criatividade, 75 e gigantes da tecnologia, 14, 6, 39, 43, 52, 73, 99, 124 e inteligência artificial, 41 explicação sobre os, 69, 73 poder dos, 71, 79, 107 revelam padrões, 70, 73 suprimem opiniões, 148 tomam decisões, 13, 73, 207 Ver também empresas específicas Alphabet, 32, 200. Ver também Google amadorismo, 85, 91, 148, 160 Amazon, 91, 155, 170, 187, 197 críticas à, 113, 160 deflaciona os preços dos livros, 73 desvirtua o mercado editorial, 97, 106, 113, 160 e algoritmos, 70, 99, 124, 177 evita os impostos, 177 fundação da, 79, 83

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hegemonia da, 11, 14, 25, 79, 174 manipulação da, 119 objetivos da, 11, 15, 82, 88, 116 poder da, 116, 160 preços baixos da, 89, 100, 124, 174, 179 regulação da, 177, 183 Ver também Kindle Anderson, Chris, 70, 160 Andreessen, Marc, 37, 64 AOL, 61, 103 Apple, 11, 12, 15, 28, 37, 81, 85, 88, 179 Arnold, Thurman, 172 assinaturas, 16, 55, 86, 89, 110, 114, 116, 127, 155, 191, 193, 197 Associação de Escritores, 115, 156 Associated Press (AP), 109, 115 AT&T, 36, 168, 183 atividade da escrita, 135, 196, 200 decadência da, 15, 57, 146, 156, 160, 191 descrição da, 158 e “conteúdo de marca”, 140 e Amazon, 98, 100, 126, 133 e jornais, 102, 109, 133 e New Republic, 125, 127, 133, 156 história da, 97, 148, 153 na Inglaterra, 151 recompensa pela, 98, 150, 191 automação, 13, 64, 68, 76, 209

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O MUNDO QUE NÃO PENSA

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autômatos, 32, 45 autoria, 12, 146, 148,151, 160, 161 Ver também atividade da escrita

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Calico, 56 cegos, os, 50 Centro de Pesquisas em Palo Alto (PARC), 29 Ceruzzi, Paul, 25 Chartbeat, 134, 192 ciência da computação, 25, 40, 47, 69, 72 código, 40, 60, 61, 69, 79, 181 colaboração, 12, 23, 25, 36, 119, 145, 163 colapso das pontocom, 169 Coleridge, Samuel, 150 Comissão de Títulos e Valores Mobiliários, 53 Comissão Federal de Comércio, 115, 180, 184 Comissão Federal de Comunicações

A

Baron, Marty, 102 Baumol, William, 158 Belasco, Warren, 188 Bermudas, 178 Bernays, Edward, 195, 199 Berners-Lee, Tim, 33, 40 Bezos, Jeff, 40, 201 como gatekeeper, 92, 96, 102, 116 compra o Post, 88, 94, 100, 116 evita os impostos, 177 funda/comanda a Amazon, 80, 84, 89, 97 poder de, 115, 161 Biblioteca Houghton (Harvard), 155 blogs, 61, 134, 160 Borah, William, 172 Bourdieu, Pierre, 198 Bowen, William, 158 Brand, Stewart, 22, 59, 86, 162 Brandeis, Louis, 173, 179, 184, 198 Brin, Sergey, 11, 43, 53, 55, 62, 193 BuzzFeed, 74, 128, 135, 140

(FCC), 103, 118, 168, 182 computadores, 17, 32, 44, 98, 106 como máquina de copiar, 84 e algoritmos, 68, 81, 207 e cooperação/conexão, 33 e criatividade, 75 e transformação humana, 12, 23, 38, 39, 44 e redes neurais, 43 pessoais, 28, 35 primórdios dos, 24, 28, 39, 40, 47, 60, 69, 73 progresso nos, 51 Comte, Auguste, 63, 65 comunidades, 27, 187 concorrência, 36, 169, 182 com o jornalismo, 133 e gigantes da tecnologia, 13, 22, 37, 57, 99 e monopólios, 15, 21, 36 no mercado, 84, 160, 163, 167, 171, 173, 209 conexão com a comunidade, 22, 29, 30, 34, 63, 93, 98, 162, 188 conformidade, 14, 136, 145, 163, 208 conhecimento, 67, 98, 148, 168 armazenamento massivo de, 57, 70, 82, 88 banco de dados global/rede de, 39, 70, 162, 167 boom de, 81 colapso do valor do, 78, 84, 86, 88, 146, 158 e gigantes da tecnologia, 78, 88, 156, 167 economia do, 78, 81 monopólio do, 81, 85, 88, 107, 114, 119 produção/consumo de, 14, 72, 88, 88, 91 contracultura, 28, 59, 187 Cowley, Malcolm, 156

índice

231

Credit Suisse, 140 criatividade, 32, 69, 76, 84, 89, 98, 100, 145 CrowdTangle, 136 cultura definição de, 197 degradação da, 91, 191

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Facebook, 24, 36, 91, 98, 187, 200 administrado com hierarquia muito clara, 59 “assuntos mais comentados” no, 130, 137 “bolha dos filtros” do, 163 e a mídia, 15, 74, 88, 90, 130, 138, 143 e algoritmos, 15, 17, 65, 71, 72, 73, 163 e direito autoral, 153 e escritores, 157, 160 e fake news, 90, 196 e jornalismo, 123 e política, 116 e publicidade, 191 evita os impostos, 178 experimentos com os usuários, 74 fundação do, 59, 126 hegemonia do, 14, 29, 79, 82, 174 manipulação do, 119 objetivos/projetos do, 11,1 5, 72, 88 regulação do, 176, 183 família Graham, 92, 95, 103 feed de notícias do Facebook, 72, 149 Fischer, Steven Roger, 204 Fitzgerald, F. Scott, 154 Folklore of Capitalism, The (Arnold), 172 França, 45, 127, 189 Franklin, Ben, 152, 208 Freud, Sigmund, 42, 195 Fundação Nacional da Ciência, 168

SI

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economia da informação, A (Varian), 171 Economist, 174 Eisenhower, Dwight, 96, 104 Eliot, T.S., 147, 161, 200 Engelbart, Doug, 29 engenheiros, 23, 26, 31, 49, 83 e processo editorial, 101, 142

A

dados, 94, 197, 199 coleta de, 18, 39, 69, 83, 169, 181, 192, 202, 207 conjuntos de, 74, 77, 116, 148 e a mídia, 129, 135 exploração de, 82, 116, 181, 207 monitoramento dos, 82, 129, 134, 158, 170, 182, 202, 208 padrões nos, 69, 75, 170, 209 poder dos, 169, 181 propriedade dos, 181 proteção dos, 181 Ver também algoritmos; vigilância (de usuários) Dallas Morning News, 177 De zero a um (Thiel), 37 DeepMind, 55 democratas, 111, 131, 170, 203 Denton, Nick, 135 Departamento de Defesa dos Estados Unidos, 25, 29, 167 Departamento de Justiça dos Estados Unidos, 104, 115, 135, 168, 172 Descartes, René, 44, 51, 65 Diamandis, Peter, 52 Dickens, Charles, 152 Doctorow, Cory, 85

escrevem algoritmos, 73 mentalidade dos, 63, 77 no Facebook, 59, 63, 73 no Google, 50, 52, 55, 117 profissão dos, 47, 63 Epstein, Jason, 159 era das máquinas espirituais, A (Kurzweil), 52 era digital, 68, 92, 127, 133 estatísticas, 80, 87, 94, 136 evasão fiscal, 177

O MUNDO QUE NÃO PENSA

232

e regulação da internet, 167, 207 e regulação da mídia, 103, 119 e regulação das gigantes da tecnologia, 118, 183 Graham, Don, 61, 92, 94, 95, 96, 97, 101, 154 Graham, Katharine, 95 Graham, Philip, 95 Grant, Ulysses S., 109

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Hachette, 101, 113 hackers, 29, 34, 60, 180 Harvard, 60, 71, 116, 126, 146, 155 Hayes, Rutherford B., 110, 131 Hinton, Geoff, 55 história do leão Cecil, 137 Hoffman, Reid, 148 Hollywood, 84, 94, 137, 147 Holt, Henry, 152 Home Depot, 179 Homogeneização, 14, 137, 187 Hoover, Herbert, 64 Howells, William Dean, 154 Huffington Post, 85, 135 Hughes, Chris, 16, 112, 114, 124, 140, 157

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IBM, 25, 35, 168, 184 Idade Média, 204 Iluminismo, 197, 208, 149 índios americanos, 22, 25 individualismo, 13, 28, 33, 62, 208 indústria do entretenimento, 85, 103, 146 indústria dos jornais, 172, 194 digital, 92, 102, 105, 133 e busca de lucros, 135, 138, 142 e editorial vs. publicidade, 138 e o gatekeeping, 92, 98, 102 e publicidade, 191 e sensacionalismo, 17, 129 edições impressas da, 192, 208 editores da, 93, 96, 102, 111

L

gatekeepers (do conhecimento), 91, 101, 105, 182, 200 Gates, Bill, 15, 52 Gawker, 135 gênio, 135, 145, 150, 164 Geraci, Robert, 26 gigantes da tecnologia, 15, 28 abusos das, 8, 79, 88, 107, 117 aspecto positivo das, 79 críticas às, 111, 197, 209 dependência das, 123 hegemonia das, 11, 13, 18, 115, 170, 177, 183, 209 poder das, 67, 72, 75, 81, 88, 92, 102, 106, 119, 123, 209 resistência às, 18, 206 visão de mundo das, 12 Ver também empresas específicas Goffman, Erving, 196 Google, 22, 105, 187, 200 abusos do, 117 compra empresas, 36 e algoritmos, 16, 39, 43, 52, 69, 71, 88, 124 e direito autoral, 147 e jornalismo, 123, 138, 160 e mídia na internet, 15, 86, 89 e política, 116, 179 e publicidade, 191 evita os impostos, 178 faz upload de livros, 54, 56, 85, 161 fundação do, 11, 37, 49 hegemonia do, 3, 28, 79, 80, 89, 170, 174 objetivos/projetos do, 11, 15, 27, 38, 43, 46, 53, 88 regulação do, 176, 183 governo Clinton, 184 governo dos Estados Unidos, 82, 142, 156, 176 e leis antitruste, 114, 172 e monopólios, 21, 84 e proteção à privacidade, 181

índice

233

Ver também revistas; indústria dos jornais Kay, Alan, 29 Kazin, Alfred, 156 Kelly, Kevin, 34, 86 161, 163, 202 Kennedy, Anthony, 182 Kesey, Ken, 24 Kindle, 82, 98, 100, 197, 201 Kipling, Rudyard, 152 Kleinberg, Jon, 73 Kundera, Milan, 206 Kurzweil, Ray, 49. Ver também singularidade

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Jefferson, Thomas, 21, 81, 172, 208 Jobs, Steve, 27, 29, 30, 68, 88 Johnson, Lyndon, 96 jornalistas/jornalismo, 29, 75, 83, 110, 126, 161, 187, 199 dependentes das gigantes da tecnologia, 123, 131, 137, 143 e “conteúdo de marca”, 138 e “conteúdo-aperitivo”, 130 e algoritmos, 76 e profusão de dados, 136 e público/número de leitores, 127 e tráfego na web, 128, 132, 142 história dos, 131, 161 internet, 16, 191 prejudicado(s) pelas gigantes da tecnologia, 24, 27, 77

Lanier, Jaron, 52 Leibniz, Gottfried, 65, 162 leis antitruste, 81, 113, 120, 189, 192, 207 leis de direito autoral, 84, 90, 159, 167 leitura, 4, 146, 229 Lessig, Larry, 86, 161 Levy, Steven, 38, 54 liberalismo, 12, 81, 109, 114, 172, 173, 184 Liberty and the News (Lippmann), 132 Licklider, J.C.R., 33 Lincoln, Abraham, 108 LinkedIn, 148 Linux, 34 Lippmann, Walter, 94, 132, 198 livre-arbítrio, 13, 77, 207. Ver também individualismo Livros e cigarros (Orwell), 194 livros, 197 digitais, 89, 97, 159, 201 edições em papel dos, 89, 159, 201 escaneados pelo Google, 52, 54, 85, 161 história dos, 203 venda/compra de, 70, 78, 88, 90, 150, 194, 200 Ver também Amazon; Kindle Luce, Henry, 198 Luxemburgo, 178

A

enfraquecida pela tecnologia, 79, 102, 142 história da, 131 receita da, 85, 89, 197 Inglaterra, 48, 151, 152 inteligência artificial (AI), 12, 41, 49, 52, 54, 58 Intercept, The, 180 internet, 15, 28, 38, 42, 79, 161 como máquina de copiar, 84 defensores da, 146, 202 e a mídia, 104, 130, 135 e boom de conhecimento, 81, 87 e evasão fiscal, 176 e pensamento mecânico, 67 e publicidade, 180 e venda de livros, 80 escapar da, 203, 208, 209 história da, 36, 167 jornalismo na, 16, 86, 139, 155 primórdios da, 147 recursos livres da, 85, 89, 191, 196 iPad, 197, 203 iPod, 88 iTunes, 88

O MUNDO QUE NÃO PENSA

234

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Macintosh, 30 Macmillan, 101 Madison, James, 83 manchetes na, 128, 135, 192 páginas da, 86, 126, 138 sites na, 71, 80, 84, 97, 126, 135, 139, 148, 157 tráfego na, 124, 127, 134, 142, 158, 192 Máquina de Computação Lógica, 48 máquina de impressão, 150 Marlow, Cameron, 74 matemática/matemáticos, 11, 49, 51, 67, 68, 74, 75, 128 Mayer, Marissa, 65, 86 McCarthy, John, 52 McLuhan, Marshall, 28, 162 mecanismos de busca, 43, 53, 57, 118, 193 Ver também Google meio ambiente, 13, 26, 27, 30, 51, 181, 185 mente-colmeia, 163 mercado editorial, 22, 194 custos do, 89, 158 declínio do, 202 dependente da Amazon, 160 e escritores, 150, 158 e estantes, 195, 200 e gigantes da tecnologia, 14, 57, 77, 85, 105, 115, 161 história do, 151, 159 pelas empresas de mídia, 102, 104 prejudicado pela Amazon, 89, 91, 97, 105, 113 Meyer, Eugene, 95 Microsoft, 11, 15, 35, 54, 86, 146, 184 mídia, 12, 15, 52, 61, 160, 199, 209 consolidação da, 102 dependente das gigantes da tecnologia, 123, 137 e publicidade, 139, 192 e tráfego na web, 124, 128, 134, 192 empresas de, 133, 177

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enfraquecida pela internet, 88, 102, 104 fontes de receita da, 192 gigantes/magnatas, 134, 153 manipulação da, 109 monopólios de, 95, 115 na internet, 15, 72, 73, 135 público da, 192 tradicional, 15, 74, 79, 85, 113, 141 Ver também jornalistas/jornalismo; revistas; indústria dos jornais mídias sociais, 15, 16, 39, 59, 128, 134, 137, 148 163, 203, 208. Ver também Facebook; Google; Twitter Milner, Marius, 118 MIT, 42, 50, 51, 60, 203 Mitchell, John, 95 monopólios, 163, 191, 208 críticas aos, 14, 21, 25, 167 das gigantes da tecnologia, 11, 21, 23, 25, 28, 37, 79, 107, 113, 167, 170, 171, 175, 207 debate histórico sobre os, 171 e a indústria musical, 88 e empresas de mídia, 103, 109 e política, 109 guiados por dados, 169, 182 limites sobre os, 183, 207 valor dos, 36 Ver também conhecimento: monopólio do Morgan, J.P., 36 Morse, Samuel, 108 Moskovitz, Dustin, 62 movimento alimentar, 14, 190, 197 Murdoch, Rupert, 96, 103, 135 Musk, Elon, 39

L

Nasa, 26, 56 Negroponte, Nicholas, 203 Netflix, 71, 77 New Republic, 16, 112, 113, 114, 124, 130, 134, 143. 158

índice

235

New York Review of Books, 126 New York Times Magazine, 162 New York Times, 15, 53, 74, 98, 111, 114, 116, 131, 135, 137, 139, 141, 154, 162, 192, 197 New Yorker, 137, 196 Nixon, Richard, 95, 96 Norvig, Peter, 56 Nova York, 91, 98, 112, 125, 127, 143, 147, 154, 195

Y LE

Obama, Barack, 117, 138, 173, 179, 180 Obama, Michelle, 190 oligopólios, 81, 113, 176 originalidade, 145, 145, 149, 151, 163, 200 Orwell, George, 194

A

Page, Carl Jr., 11 Page, Carl Sr., 40 Page, Larry, 11, 40, 43, 53, 72, 193 PageRank, 53 pensamento mecânico, 68 Peretti, John, 128 Performing Arts (Baumol e Bowen), 158 pirataria, 85, 88 plágio, 148 política/político liberdade, 208 poder, 80, 90 Pollan, Michael, 190 populismo, 91, 146, 174 privacidade, 12, 13, 33, 76, 171, 175, 181, 184, 208 programadores, 28, 40, 68, 69, 72, 118 Propaganda (Bernays), 195 propriedade intelectual, 12, 57, 84, 89, 177, 178 publicidade, 39, 86, 101, 114, 119, 125, 127, 132, 139, 190, 196

R

B

Random House, 104 realidade virtual, 49 regulação, 82, 168, 176, 181, 184 representação do eu na vida cotidiana, A (Goffman), 196 republicanos, 103, 110, 180 revistas, 27, 40, 99, 138, 194 e publicidade, 126, 141, 190, 196 enfraquecidas pelas gigantes da tecnologia, 78, 190 escritores de, 125, 154, 160, 161, 192, 198 impressas, 17, 86, 196, 206 na internet, 16, 86, 126, 135, 137, 156, 187, 197 receita das, 85, 87, 126, 190, 190 Ver também títulos específicos Rolling Stone, 30 Romer, Paul, 84 Roosevelt, Franklin, 62, 172 Rosenberg, Jonathan, 89 Roszak, Theodore, 26, 188 Rússia, 125. Ver também União Soviética

SI

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rádio, 31, 103, 107, 141, 182 Rand, Ayn, 12, 31, 149

Saint-Simon, Henri de, 63, 65 São Francisco, 21, 22, 24, 29, 31, 41, 114 Savio, Mario, 24 Schmidt, Eric, 37, 54, 116, 170 Seattle, 15, 81 Second Self, The (Turkle), 42 segurança, 25, 95, 115, 170 serviço postal, 104, 107, 109, 183 Shakespeare, William, 149, 150 Shaw, David, 80 Shawn, William, 196 Shirky, Clay, 148 Simon & Schuster, 195 Simon, Herbert, 87 singularidade, 51, 55 Slate, 15, 127, 156 Smith, Adam, 82 Smith, William Henry, 110 Snowden, Edward, 118 Stanford, 23, 29, 41, 43, 193

O MUNDO QUE NÃO PENSA

236

Starting Out in the Thirties (Kazin), 156 Steyer, Tom, 140 Sullivan, Andrew, 140 Suprema Corte dos Estados Unidos, 103, 146, 173, 182

A

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SI

L

Vail, Theodore, 36 Varian, Hal, 171

R

B

Uber, 124 União Soviética, 25, 168, 206 Universidade da Califórnia, 83, 189 Upworthy, 129

Wall Street, 54, 80, 99 Walmart, 11, 71, 80, 174 Warren, Elizabeth, 181 Washington Post, 61, 86, 92, 102, 116, 130, 134 Waters, Alice, 189 web, 169, 209 e Google, 49, 88 e publicidade, 139, 190 invenção da, 26, 34, 108 ler na, 134, 202 Western Union, 108, 183 White, Byron, 103 White, David Manning, 93 Whitman, Walt, 152 Whole Earth Catalog, 27, 187 Wikipédia, 34, 148, 162 Wilson, Woodrow, 132, 173 Wired, 34, 54, 70, 86, 161 Wolff, Michael, 190 Wordsworth, William, 150 Wu, Tim, 169

A

Taylor, Frederick, 175 tecnologia críticas à, 23, 27, 208 objetivos da, 23, 34 primórdios da, 35, 39 rede de, 12, 32, 38, 69, 162 telégrafos, 109, 183 televisão, 11, 27, 32, 56, 83, 127, 146, 187, 189, 198 consolidação da, 102 mensagens subliminares na, 118 regulação da, 174, 185 tendência, 171, 189, 203 Texas, 177 Thiel, Peter, 36 Tilden, Samuel, 111 Time Warner, 35, 103, 104 Time, 56, 130, 139 Time-Life, 104 Tocqueville, Alexis de, 198 Topolsky, Joshua, 137 Torvalds, Linus, 34 transparência, 62, 63, 118, 119, 120 Trump, Donald, 36, 90, 91, 197, 200 Turing, Alan, 47, 69 Turkle, Sherry, 42 Turner, Fred, 28 Twain, Mark, 147, 153 Twitter, 15, 136, 138, 202

Veblen, Thorstein, 64 Ver também Associated Press (AP); jornalistas/jornalismo; títulos específicos Vice, 135 Vidra, Guy, 113 vigilância (de usuários), 14, 17, 59, 171, 181, 207 viralidade, 16, 128, 129, 135, 137 Vox, 130, 137

Xerox, 29, 84 Zittrain, Jonathan, 116 Zuckerberg, Mark, 17, 72, 88, 116 anos rebeldes de, 57 e hackers, 57 filosofias de, 59, 63, 76 funda o Facebook, 59, 125 sobre os objetivos do Facebook, 60, 81

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