Encontros Com A Historia

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ENCONTROS COM A HISTÓRIA: PERCURSOS HISTÓRICOS E HISTORIOGRÁFICOS DE SÃO PAULO

FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Antonio Manoel dos Santos Silva Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Assessor Editorial Jézio Hernani Bomfim Gutierre Conselho Editorial Acadêmico Aguinaldo José Gonçalves Álvaro Oscar Campana Antonio Celso Wagner Zanin Carlos Erivany Fantinati Fausto Foresti José Aluysio Reis de Andrade José Roberto Ferreira Marco Aurélio Nogueira Maria Sueli Parreira de Arruda Roberto Kraenkel Rosa Maria Feiteiro Cavalari Editor Executivo Tulio Y. Kawata Editoras Assistentes Maria Apparecida F. M. Bussolotti Maria Dolores Prades

ENCONTROS COM A HISTÓRIA: PERCURSOS HISTÓRICOS E HISTORIOGRÁFICOS DE SÃO PAULO

ORGANIZADORES ANTONIO CELSO FERREIRA TANIA REGINA DE LUCA ZILDA GRÍCOLIIOKOI

lftJAPESP

ANPUH/SP

Copyright © 1999 by Editora UNESP Direitos de publicação reservados à: Fundação Editora da UNESP (FEU) Praça da Sé, 108 01001-900- São Paulo- SP Tel.: (011) 232-7171 Fax.: (011) 232-7172 Home page: www.editora.unesp.br E-mail: [email protected] Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Encontros com a História: percursos históricos e historiográficos de São Paulo I Antonio Celso Ferreira, Tania Regina de Luca, Zilda Grícoli Iokoi organizadores.- São Paulo: Editora UNESP, 1999.- (Prismas) Vários autores. ISBN 85-7139-248-X 1. São Paulo (Estado)- História 2. São Paulo (Estado)Historiografia I. Ferreira, Antonio Celso. li. De Luca, Tania Regina. Ill. Iokoi, Zilda Grícoli IV Título: Encontros com a História: percursos históricos e historiográficos de São Paulo. V Série. CDD-981.61

99-2794

Índice para catálogo sistemático: 1. São Paulo: Estado: História 981.61

A<>sociaçào Drasileira de de AmCrlt'él Latina y l'l Carlbc

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Unlvcr~ltârlas

SUMÁRIO

APRESENfAÇÃO

7

Parte I A construção da identidade paulista

1 Imagens de São Paulo: Estética e cidadania Maria Stella Bresciani

li

2 Índios e mamelucos em São Paulo: História e historiografia John Manuel Monteiro

47

3 História e historiografia da escravidão e da Abolição em São Paulo Maria Helena Pereira Toledo Machado

61

4 A idéia de São Paulo como formador do Brasil Katia Maria Abud

71

5 São Paulo e a construção da identidade nacional Tania Regina de Luca

SI

6 Vida (e morte?) da epopéia paulista Antonio Celso Ferreira

91

7 Ciência, elites e modernização: a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886-1931) Silvia F. de M. Figuerôa

107

8 Educadores paulistas: regeneração social, República e nação Ilíada Pires da Silva

125

9 A esfera da História Política na produção acadêmica sobre São Paulo (1985-1994) Izabel Marson, Maria de Lourdes Mônaco Janotti, Vavy Pacheco Borges

141

Parte 11 Representação e patrimônio

10 O Modernismo nas artes plásticas: algumas releituras Annateresa Fabris

l71

11 Sérgio Buarque de Holanda, um crítico impertinente Nelson Schapochnik

I8 I

12 Patrimônio, espelho do passado Marly Rodrigues

189

13 Memória e pragmatismo Sheila Schwarstzman

195

14 As fontes fotográficas e as representações da área central da cidade de São Paulo na década de 1910 Solange Ferraz de Lima

203

15 A representação do trabalho nos álbuns fotográficos da cidade de São Paulo nos anos 50 Vânia Carneiro de Carvalho

211

16 O Brasil dos anos 60 nos trabalhos do Teatro de Arena e do Teatro Oficina de São Paulo Rosangela Patriota

221

17 De São Paulo para o Brasil: o cinema da "Boca do Lixo" (1969-1973) repensando a "brasilidade" Alcides Freire Ramos 18 Representações literárias da malandragem paulistana -biografia de Hiroito de Moraes Joanides e Contos de João Antonio Márcia Regina Ciscati

229

235

APRESENTAÇÃO

Com esta coletânea, a ANPUH/SP traz aos leitores o primeiro número da série Encontros com a História, que pretende divulgar trabalhos apresentados em seus simpósios regionais. Este volume inaugural reúne textos expostos em conferências, mesas-redondas e comunicações coordenadas de pesquisa, durante o XIII Encontro, realizado de 2 a 5 de setembro de 1996 na UNESP, Campus de Assis, em torno do tema "São Paulo: percursos históricos e historiográficos". Tema, aliás, de enorme pertinência para os pesquisadores de História do Brasil e, desta maneira, oportuno para constar no número de abertura da série. Há muito se reclamava a necessidade de um balanço da produção historiográfica sobre São Paulo, após quase um século de estudos que firmaram, orgulhosa ou criticamente, a imagem desta região e suas projeções para o conjunto do país. Certamente, os textos que compõem a coletânea não ambicionam abranger a vastidão dessa produção cultural nem cobrir todo o rol de significados dessa imagem, mas têm o mérito de colocar em pauta algumas de suas tendências e lugares de elaboração. Um bom número de títulos volta-se para analisar autores, obras e instituições das primeiras décadas do século, época em que se cristalizou a imagem arrogante de São Paulo como centro dinâmico e formador do Brasil. De um ou de outro modo, tal desenho é objeto

de indagação nos artigos de Maria Stella M. Bresciani, John Manuel Monteiro, Kátia M. Abud, Tania Regina de Luca, Antonio Celso Ferreira, Silvia F. de M. Figuerôa e Ilíada Pires da Silva. O estudo crítico da historiografia paulista ou de assuntos regionais ainda se estende no trabalho em co-autoria de Maria de Lourdes Mônaco Janotti, Izabel de Andrade Marson e Vavy Pacheco Borges -circunscrevendo uma produção acadêmica mais recente (1985 e 1994) -,e no estudo de Maria Helena P. T. Machado- relativo ao tema específico da escravidão em nossas plagas. Outro grupo de títulos põe em relevo assuntos de não menor relevância, a respeito de uma diversidade de representações emanadas de São Paulo, em períodos vários, nas artes plásticas, na literatura e na crítica literária, no patrimônio artístico e cultural, na fotografia, no teatro e no cinema. Assinam tais escritos Annateresa Fabris, Nelson Schapochnik, Marly Rodrigues, Sheila Schwarstzman, Solange Ferraz de Lima, Rosângela Patriota, Alcides Freire Ramos e Márcia Regina Ciscati. A presente publicação demandou esforços consideráveis e que remontam à própria organização do XIII Encontro, em 1996. Seria inviável, nos limites desta apresentação, fazer o registro completo de todos aqueles que colaboraram não só para o evento como também para o seu resultado em forma de coletânea. De maneira que cumpre ao menos destacar aqui algumas instituições e pessoas às quais se deve este volume. À Diretoria e ao Conselho Consultivo da ANPUH/SP no biênio 1994/1996, responsável pelo Encontro; ao Departamento de História e à Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Assis, que abriram suas portas para a sua realização; à Editora UNESP por tornar possível a divulgação do trabalho; e à Fapesp pelo suporte financeiro dado tanto ao evento quanto a esta publicação. A edição também contou com a decisiva colaboração do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação Instituto Franciscano de Antropologia da Universidade São Francisco. No curso da publicação fomos colhidos pela lamentável notícia da perda da professora Ilana Blay (USP), que participou ativamente da organização do evento e da seleção dos textos. A ela este volume é dedicado. Fica aqui o débito para com Iara Schiavinatto (UNESP/Assis), presença constante ao longo de todo o trabalho.

Os organizadores

PARTE I A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PAULISTA

I IMAGENS DE SÃO PAULO: ESTÉTICA E CIDADANIA

MARIA STELLA BRESCIANI*

As cidades trazem em si camadas superpostas de resíduos materiais: elementos da arquitetura, recorte das ruas ou monumentos. Poucas vezes mantidos em sua integridade, sobrevivem na forma de fragmentos, resíduos de outros tempos, suportes materiais da memória, marcas do passado inscritas no presente. Configuram em sua singularidade uma marca, uma imagem da cidade. Estas camadas de resíduos materiais convivem com outras, também compostas por camadas sucessivas, contudo menos perceptíveis ao olhar, embora não menos importantes para a elaboração de uma identidade. Trata-se das memórias diversas, esquecidas ou rejeitadas, confusas ou fragmentadas, avessas a se unirem a marcos materiais; memórias constitutivas do viver em cidades, ambiente da urbanidade. Configuram algo que, segundo a filósofa Anne Cauquelin, envolve uma cidade, uma opinião sobre ela, memória sem lugar e difusa, considerada pelos eruditos excrescência, monstruosidade informe, mas ativa no processo urbano, já que tudo nela está no presente. 1

'' IFCH/Unicamp. CAUQUELIN, A. Essai de Philosophie Urbaine. Paris: PUF, 1982.

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MARIA STELLA BRESCIANI

Aqui, a noção de tempo é primordial. Temporalidades diversas se sobrepõem, amalgamam-se na formação de um saber sobre a cidade. O tempo mensurável dos trajetos, dos obstáculos a serem superados, da distância entre casa e trabalho é o tempo privilegiado pelo urbanista. Esse tempo, em sua densidade de passado, constitui para o especialista um estoque de modelos, de estilos, imagens diversas de onde retira o material para seu trabalho. Há entretanto um outro tempo, cuja textura se compõe de transmissões de memórias, conjunto de recordações coletivas e pessoais, intimamente ligadas à escuta e à escrita, aos mores, a um dado monumento que não se sabe mais exatamente a que se refere, uma substância menos racional, em suma. Tempo que constitui lugares, que torna os espaços vazios insuportáveis, uma ausência a subverter nossa concepção de urbano, lugar do pleno, do preenchido, por excelência. Tempo que em suas dobras superpostas e simultâneas guarda memórias assemelhadas à forma como transcorre nossa vida: fragmentariamente, com esquecimentos e lacunas, submetidos que somos a um acúmulo de opiniões cuja origem desconhecemos e que no entanto servem de suporte à vida social. É esse vínculo que nos interessa aqui perseguir. Vínculo que forma a identidade urbana e pelo qual os homens reconhecem sua natureza "política" (no antigo sentido de viver em conjunto). Vínculo que resiste, quase escapa à análise de tipo racional, e na forma de comunicação simbólica recorta na cidade lugares singulares, lugares dos habitantes, não coincidentes com as divisões geográficas ou administrativas, algo mais próximo da verossimilhança, aparentado portanto a uma lógica da opinião. Com essa "entrada" conceitual nas cidades, procuramos mostrar que a separação entre os que as pensam, as projetam e nelas intervêm e aqueles que a essas políticas se submetem há mais pontos de contato do que se poderia supor. Antigos preconceitos relativos à incapacidade de as pessoas comuns gerirem seus espaços desmantelam-se quando percebemos que os habitantes da cidade, estejam eles em qualquer dos lados dessa separação imaginada, partilham os mesmos princípios de um estoque de histórias, fábulas e lendas. Esse estoque de recordações amealhadas no próprio território urbano forma um sistema de rede simbólica muito sutil,

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no qual palavras, nomes e em geral ficções se vêem constantemente acionados para a apropriação dos lugares. A tentativa de captar essas pequenas memórias daqueles que vivem nos centros urbanos, no caso São Paulo, cidade palimpsesto, que foi três em um século, 2 nos conduz primeiro aos relatos dos memorialistas. Neles encontramos uma cidade recortada em tantos detalhes e pedaços de vida quantos forem necessários para a recomposição de uma memória. Uma segunda leitura nos conduz pelos caminhos complexos da constituição de uma imagem cultural, intelectualmente constituída, porém não menos mutável, também ela composta e recomposta sucessivamente sobre esse fundo comum de opiniões. Comecemos a coleta de pequenas memórias com um relato de Alfredo Moreira Pinto, escrito em 1900. Para quem desembarca na estação do Norte, da Estrada de Ferro Central do Brazil, o aspecto da cidade não impressiona bem. Com effeito, o viajante depara logo com o Braz, arrabalde muito populoso, mas que não prima pelo asseio, nem pela belleza de seus predios particulares; depois passa por uma extensa varzea, muito maltratada, da qual avista a cidade em um alto com os fundos das casas voltados ·para o viajante.

2 Uso essa expressão a partir da proposta de Benedito Lima de Toledo em seu livro São Paulo: três cidades em um século. São Paulo: Duas Cidades, 1983.

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FIGURA 1- Cercadura da Nova Carta da Província de São Paulo feita por Jules M artin na década de 1870. Imagem feita de um ponto de vista que apresenta a cidade voltada para o seu centro, cercada pela várzea do Carmo já em parte ajardinada no governo de João Theodoro (1870-1875). A reprodução da gravura encontra-se em Benedito Lima de Toledo, op. cit. , 1983, p.46.

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Com essas palavras, o memorialista registra suas primeiras impressões ao voltar para São Paulo depois de trinta anos de ausência. 3 Essa primeira imagem apresenta uma cidade dobrada sobre si mesma; as casas das encostas dirigem as fachadas para o perímetro do triângulo, tal como visualizamos mentalmente a acrópole, ou as cidades muradas medievais - fechada, avessa aos forasteiros, defensiva.

FIGURA 2 - Primeira Planta da Imperial Cidade de S. Paulo, pelo Capitão de Engenheiros Rufino J. Felizardo e Costa (1810) e copiada em 1841. (Legenda e Inscrição das ruas pelo Autor.) Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, v.XVI, 1911. In: MOURA, P. C. de. São Paulo de outrora (Evocações da metrópole). Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1980. p.16. 3 MOREIRA PINTO, A. A cidade de São Paulo em 1900. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1979.

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CIDADE DE SÃO PAULO 1800-1874 POR

MARTIHHO DA SILVA PilADO

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FIGURA 3- Plan-História da cidade de São Paulo, 1800 a 1874, por Affonso A. de Freitas, In: B. Lima de Toledo, op. cit., p.161.

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FIGURA 4 - Mapa da cidade de São Paulo com seus principais prédios, 1891. Pode-se ver as novas áreas urbanizadas em torno do centro velho.

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O mesmo Brás, mais Moóca e Pari são, nas páginas iniciais do livro, rememorados em seus tempos de estudante na Faculdade de Direito, como "insignificantes povoados com algumas casas de sapê, que a medo erguiam-se no meio de espessos mattagaes". Quando menciona a "extensa varzea, muito maltratada", refere-se à Varzea do Carmo, terrenos adjacentes ao rio Tamanduateí, área que relembra ter sido, três décadas antes, ''o logar escolhido para caçadas de cabritos". Os limites entre o urbano e o rural, antes claramente definidos, são agora menos nítidos em suas anotações. Os confins da cidade, populosos mas pouco integrados ao núcleo inicial, como se a cidade resistisse a essa expansão, ignorasse-a. Prosseguindo em seu caminho, o antigo estudante diz ter atravessado "uma ponte que ha sobre o Tamanduatehy e penetra[do] na rua Florencio de Abreu, que liga o bairro da Luz ao centro da cidade". Aí novamente suas observações mantêm o tom de desagrado: "na cidade velha ha a maior desegualdade nas edificações e nos arruamentos. As casas são umas altas e outras baixas, não obedecendo a um plano esthetico, as ruas sinuosas, estreitas e quasi todas em ladeira, os largos muito estreitos e irregulares". Contudo, suas observações se contradizem: as ruas de suas lembranças, "sem calçamento, illuminadas pela luz baça e amortecida de uns lampiões de azeite, suspensos a postes de madeira", contrastam com as que encontra agora pavimentadas, iluminadas a gás e eletricidade, avenidas e alamedas largas e extensas alongandose por "lindissimos bairros com ricos palacetes". É uma outra cidade que nesse momento se revela, não mais fechada, defensiva e acanhada. Suas palavras alteram o tom ao elaborarem essa imagem outra. Ela como que se desprende, desdobra a antiga, porém com outras características. Nega a primeira na referência aos "boulevards, praças e largos vastos e arborizados" percorridos pelo autor; se expande nas anotações dos principais edifícios, instituições culturais e sociedades benemerentes; revela-se inteira em sua alteridade na listagem de bancos, hotéis, indústrias e casas de moradia particular. Moreira Pinto adiciona a essa longa listagem os jornais diários, os estabelecimentos de ensino, cemitérios, mercados e o matadouro, o hipódromo, o teatro, os monumentos. Completa seu percurso pela cidade, nomeando as ferrovias que proporcionam ligação com o

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interior do Estado e com a capital do país: Central do Brazil, Ingleza (Jundiaí), Sorocabana, Cantareira e Santo Amaro. Parecendo ter se deixado encantar pelas modificações que a haviam apresentado "completamente transformada", "agigantada e opulenta", Moreira Pinto contradiz sua avaliação estética inici;:d e afirma que "o aspecto da cidade não é feio". Esta atenuante à aparência geral da área antiga do centro de São Paulo busca seu sentido não numa paisagem sensivelmente modificada, mas na relação estética entre movimento e crescimento. Pontua suas anotações o espanto perante os numerosos transeuntes e a atividade variada que observa. "Sente-se nella a vida e a animação das grandes cidades européas", diz, e passa a deter o olhar sobre essa área central de forma mais detalhada. Registra então que "a rua Quinze de Novembro, a de S. Bento, a Direita ou Marechal Floriano e o largo do Rosario recommendam-se pela sumptuosidade de seus predios, pela febril circulação de milhares de indivíduos e pela infinidade de importantes casas commerciais de que dispoem". Não deixa de anotar que "todas ellas são atravessadas por numerosos bonds, que transportam passageiros aos bairros mais proximos e mais afastados, percorridos por faustosos trens particulares, por muitos carros de aluguel e por centenares de outros vehiculos, que occupam-se em varios misteres". Completa o percurso comentando que "da rua Direita parte um bello viaducto [do Chá] até á rua Barão de Itapetininga, com 240 metros de extensão e largura de 14 metros, percorrido por bonds e oferecendo dos dous lados esplendidos panoramas". Aliás, a imagem do viaduto do Chá é presença constante nas fotos do centro da cidade: primeiro como ponto de observação do panorama das chácaras do vale do Anhangabaú, mais tarde, equilibrando em suas extremidades, o Teatro Municipal e o Palacete Prates. Cursino de Moura diz dele que "personifica a grandeza da Paulicéia onipotente". Neste autor, a imagem do progresso mescla-se com a imagem romântica da "alma do viaduto que gostosamente cultuamos. São Paulo, sem o Viaduto que o caracteriza, envolto pela garoa, nas noites de frio, com os lampiões esvoaçantes de névoa, não seria o São Paulo das velhas tradições, o São Paulo-estudante dos tempos atrás, o São Paulo-"yankee" dos tempos modernos e o São Paulo-

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boêmio de todos os tempos", comenta. 4 Viaduto de ferro com sapatas de alvenaria, obra de Jules Martin, também idealizador da Galeria de Cristal, entre a 15 de Novembro e a Rua da Boa Vista, cedo demolida. Assim, a primeira imagem do núcleo acanhado se fixa no passado como história ainda apreensível nos traços materiais do centro antigo, e contrasta com a nova que se fixa visualmente como o resultado da ação do homem, do seu poder criador-transformador. Diferentemente de outras cidades, Rio de Janeiro, um caso exemplar, nada se diz a respeito da paisagem natural; a topografia somente é mencionada ao se falar das dificuldades em unir as partes ilhadas da expansão urbana dispersa. A névoa e a garoa pouco dizem se inexistir um liame com um outro tempo, embaçando os lampiões de outrora e as lembranças do cronista. Também no tempo presente do relato, a natureza - no caso as chácaras das encostas do rio Anhangabaú só se torna objeto de deleite visual a partir de um ponto de vista que privilegia primordialmente a condição de belvedere do viaduto. Assim, quando essa segunda imagem de São Paulo se desenha, ela é referida à operosidade dos seus habitantes, expressa materialmente na abertura de novos bairros e na superação de um obstáculo, a difícil travessia do vale. Esboça-se uma fórmula para se falar de São Paulo: nela, os números, dados e dimensões apóiam a elaboração da potência dos homens paulistas. São Paulo, antes de tudo sublime pela condição de artefato, negação, domesticação da natureza.

4 MOURA, P. C. de. São Paulo de outrora (Evocações da metrópole}. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1980, p.126 e 131.

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FIGURA 5 -Departamento do Patrimônio Histó rico, foto n. 1032. Vista do ve lho Viaduto do Chá (1844-18 96) de Jules Martin. Em frente, o que restou da antiga plantação de chá; à esquerda, o rio Anhangabaú; ao fundo o Teatro Politeana; mais ao longe, o Mercado São José construído entre 1886-1890.

FIGURA 6- O Teatro São José e o novo Teatro Municipal. Foto Guilherme Gaensly. In: B. Lima de Toledo, op. cit., p.101.

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FIGURA 7- Parque Anhangabaú, vendo-se o Teatro Municipal e o H otel Esplanada. In: B. Lima de Toledo, op. tit., p.164.

Para além das dimensões agigantadas, Moreira Pinto nota, entretanto, uma modificação fundamental nos seus 250 mil habitantes: a população havia se alterado em seus elementos constitutivos. A cidade rememorada - casas com janelas de rótulas e moças cobertas com mantilhas em demanda das igrejas - mudara também seus hábitos e linguajar; as levas de imigrantes europeus haviam feito desaparecer a coloração paulistana dos seus habitantes, mesclando-a à de pessoas de origem diversa. Contudo, a preponderância de imigrantes vindos da Itália leva Moreira Pinto a registrar essa diferença em dois tempos com os tons de um impacto: "Era então S. Paulo uma cidade puramente paulista, hoje é uma cidade italiana!!" A frase, que atualmente se tornou lugar comum para os leitores dos cronistas do início do século XX, traduz entretanto em termos visuais aquilo que a estatística corrobora numericamente. Só para o período de 1872 a 1886, Richard Morse indica um aumento da população imigrante de 8 para 25%. 5 Estes números ganham

5 MORSE, R. Formação histórica de São Paulo. São Paulo: Difel, 1970. p.239.

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expressividade se detalhados: são 13 7.3 67 italianos entre os 168.127 imigrantes no qüinqüênio 1885-1889, 210.910 para 42.816 espanhóis e 30.752 portugueses no período de 1890 a 1894. 6 Morse afirma ainda terem as modificações relacionadas ao crescimento numérico e à diversidade nacional da população produzido uma espécie de "desintegração social", uma negação da herança luso-africana e adesão aos hábitos aqui apartados junto com as levas de imigrantes, hábitos e costumes europeus.? Na avaliação de Morse pode-se entrever a adesão aos comentários da época, sempre ciosos de elaborar uma representação ambígua do imigrante, entre força de trabalho necessária e intrusão descaracterizadora de costumes originais. Novamente é Moreira Pinto quem registra, na maneira de vestir, as modificações trazidas pelos europeus: "Naquelles tempos usavas calças de brim, paletot sacco e chapéo de palha; hoje envergas casaca, usas collarinho a Luiz XIV, gravata de setim branco, botinas de verniz e tens á cabeça um vistoso castor ou debaixo do braço, o aristocratico claque". 8 São Paulo crescia e modificava-se de maneira a inverter a imagem sombria da provinciana vila do século XIX, mas também perdia suas características anteriores, uma primeira identidade. Contudo, se quisermos fixar uma data precisa para essa modificação, ela se torna controvertida, pois, bem antes da virada do século, outros cronistas já se referiam a alterações notáveis. Ernani da Silva Bruno relata que, já em 1882, Junius havia descrito em suas notas de viagem, pessoas se deslocando "em grandes ondas nas ruas, nas praças, nos arrabaldes, nos jardins, em toda parte, dando visivelmente maior animação ao comércio, mais vida à cidade, e fazendo circular mais dinheiro". 9 Datação confirmada, se forem acrescentadas as lembranças de mais um memorialista, Rodrigo 6 PENTEADO,]. Belenzinho, 1910. (Retrato de uma época). São Paulo: Martins, 1962. p.43. 7 O tema da desintegração social ou perda da identidade da população paulista e agrária foi recentemente retomado por Nicolau Sevcenko em Orfeu extático na metrópole. São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.31. 8 MOREIRA PINTO, op. cit., p.9. 9 SILVA BRUNO, E. da. História e tradições da cidade de São Paulo. São Paulo: Hucitec, Prefeitura Municipal de São Paulo, 1984. v.II, p.904.

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Otávio, que entre 1883 e 1886 anotara o desaparecimento do antigo burgo das ruidosas tradições acadêmicas. Seu registro volta a ressaltar uma mesma dimensão, a do crescimento e da diversidade, ou seja, "o progresso, com todas as exigências e preconceitos da civilização, havia insensivelmente invadido a velha capital jesuítica e eliminado, de suas ruas e bairros, aspectos e perspectivas tão caros ao espírito e à saudade de tantas gerações estudiosas" . 10 A constatação carregada de emotividade, o tom pessimista perante as modificações arroladas, como que sugerem a perda da pureza dessa entidade feminina, a cidade de São Paulo. A representação da cidade invadida como que anuncia uma suposta perda de sua identidade original, uma espécie de corrupção ou contágio, externo e estranho a ela, a modificá-la esteticamente, subtraindo seus traços peculiares, dotando-a com contornos arquitetônicos e urbanísticos padronizados, inserindo-a enfim no movimento em direção às exigências do "progresso" e "preconceitos da civilização". Muitas modificações justificavam-se pela premência em abrir novas áreas para a urbanização. A ocupação espontânea se fazia indesejada, assemelhava-se ao caos. Os recém-chegados ocupavam espaços, formavam núcleos de comunidade lingüística. Agora, os habitantes mais antigos e autoridades sentiam-se obrigados a voltar os olhos para a extensa planície além-Tamanduateí.

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FIGURA 8 - Projeto Bouvard para o Parque D. Pedro !L In: B. Lima de Toledo, op. cir. , p.llO. 10 Idem, p.908. A referê ncia é do livro Minhas memórias dos outros, p.57-9.

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A controvérsia em torno da datação das mudanças radicais ganha mais cores se escutarmos a opinião de outro cronista, Almeida Nogueira, que sentencia em suas anotações de 1870: O príncipe perfeito, sua alteza sereníssima o estudante, ia ser deposto pelo caixeiro-viajante. Caíam as rótulas, as mantilhas, armavam-se o campo do Chá, o Bexiga, o Zunega; entravam no alinhamento o Brás, a Moóca, a Ponte Grande. A Penha perdia o encanto, uma vez servida pelas locomotivas, pelo bonde e pelo gás corrente. 11 O traçado geográfico desenhado nas palavras do cronista ultrapassa a antiga área do "triângulo central", esse acréscimo acanhado ao ponto inicial de povoamento, a colina histórica, onde permaneciam ainda os vestígios da reconstituição da capela e colégio dos jesuítas. 12 O alinhamento dava configuração urbana às áreas adjacentes antes ocupadas por chácaras ou por edificações irregulares. Outro cronista relembra os bairros industriais da cidade: Luz e Bom Retiro, os mais antigos, Brás e Moóca, de formação recente. Três deles separados do núcleo histórico pelos trilhos da ferrovia, como se sua existência apartada estivesse neles implicada. "Continham toda a indústria paulista", informa Jorge Americano, detalhando a produção: tecidos de juta para sacaria, e tecidos de algodãozinho; serrarias e fábricas de móveis; refinações de açucar; torrações de café; fábricas de botões de ossos, fábricas de telhas, olaria e cerâmica; louças de mesa chamadas de "pó de pedra". Indústrias rudimentares, de couros, e mais algumas coisas. Seriam trinta ou quarenta chaminés, de fumaça negra de coque da Inglaterra, conclui, já que "ainda não havia eletricidade em S. Paulo". 13

Os traços se alargam e grandes áreas agregam-se ao núcleo urbano. As rótulas das janelas banidas das casas por determinação legal e as mantilhas guardadas nos baús de velharias estabelecem uma correlação significativa entre expansão e mudança de costumes. Conferem densidade temporal específica a esse "lugar" da cidade. 11 Idem, p.907. A referência é do livro A academia de São Paulo, v. VIII, p.128. 12 AMERICANO,]. São Paulo naquele tempo 1895-1915. São Paulo: Saraiva, 1957, faz uma detalhada descrição do perímetro da cidade por volta da virada do século. Cf. p.99-101. 13 Idem, p.104-5.

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FIGURA 9 - Departamento do Patrimônio Histórico, foto n. 686. Pormenor do Parque D. Pedro 11.

É significativa a inserção na década de 1910 do Palácio das Indústrias na área ajardinada que receberá em 1922 a atual denominação de parque D. Pedro Il. Constitui uma espécie de área de transição entre o centro antigo, lugar das transações financeiras por excelência, e o bairro das fábricas e moradias operárias; a construção de estilo bizarro servia de vitrine para a produção paulista na P Exposição Industrial em 1917.

FIGURA 10 - Foto n. 688 do Departamento do Patrimônio Histórico, Palácio das Indústrias e Parque D. Pedro 11.

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A imagem da área urbanizada abrindo-se, desdobrando-se, pode entretanto ser referida também às autoridades municipais, preocupadas com o crescimento desordenado, com a escassez de equipamentos coletivos urbanos, traçados de ruas a serem corrigidos, habitações coletivas, os indesejáveis cortiços. Logo no início do governo republicano, mais precisamente em 1893, uma comissão, na qual predominam médicos, avalia a situação da cidade, invadida por levas de imigrantes europeus emigrantes de outras regiões do Estado e do país, e localiza nesses maus lugares possíveis focos de doenças infecto-contagiosas. O par pobreza-doença, já bem conhecido dos centros urbanos europeus que se industrializavam no século XIX, parece, na opinião das autoridades públicas, comprometer aqui um possível crescimento ordenado. A característica de cidade em formação num país novo permitia ainda evitar os amontoamentos característicos dos centros de antiga formação, se fossem tomadas as precauções adequadas. A proposta de desamontoar a população oferecendo-lhe condições de moradia mais dignas corre paralelamente aos cuidados que a cidade como um todo começa a merecer de médicos e engenheiros sanitaristas. Segundo Janice Theodoro da Silva, 14 já na década de 1880 São Paulo ocupava a atenção dos engenheirosprofissionais que nela começam a intervir-, consolidando na virada do século uma articulação de longa duração, o vínculo estreito entre autoridades governamentais e a Escola Politécnica. Em seu relatório sobre as condições de vida das famílias dos trabalhadores, a comissão municipal afirma a necessidade de definir diretrizes para o crescimento da área urbanizada: preencher os vazios deixados por uma ocupação que até então privilegiara as regiões altas e não alcançava as margens suburbanas da cidade. Previsão de arruamentos, extensão dos equipamentos urbanos, canalização de rios e córregos, drenagem do solo. ls

14 SILVA,]. T. da. São Paulo 1554-1880. Discurso ideológico e organização espacial. São Paulo: Moderna, 1984. 15 Relatório do ano de 1893 apresentado a Câmara Municipal de São Paulo pelo Intendente Municipal Cesário Ramalho da Silva, 1893. São Paulo: Typ. a Vapor de Espíndola, Siqueira & Comp., 1894.

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Pode-se, entretanto, visualizar, já em 1900, a expansão ordenada da cidade no correr das anotações de Alfredo Moreira Pinto. Sua referência aos quatro pontos cardeais detém-se mais nos "lindíssimos bairros com lindos palacetes, avenidas e alamedas largas e extensas", áreas distantes na direção da Paulista, Glette, Nothman, do Triumpho e Barão de Piracicaba, embora não esqueça a Tiradentes e a Rangel Pestana, esta última no Braz. O encantamento, contudo, volta-se decisivamente para os lados das praças e largos arborizados, "a da Republica, com a Escola Normal, o de Paysandú, o dos Guayanazes e o do Arouche"; para ruas, "umas largas e planas, outras estreitas e ladeiradas, todas caprichosamente calçadas, como a Barão de ltapetininga, com acesso propiciado pelo belo viaduto do Chá, e outras próximas. Não se pode deixar de notar o contraste. Na apreciação da São Paulo 1900, há duas partes distintas: a "cidade velha" e a nova. Na primeira, o visitante demonstra ter um padrão a orientar seu olhar, quando afirma que edificações e arruamentos não obedecem a "um plano esthetico". Significativamente, a apreciação visual positiva detém-se na área de urbanização recente, mostrando o cronista como que fascinado pelos boulevards e as extensas e largas avenidas, tão distintas das ruas sinuosas, estreitas e quase todas em ladeira, do núcleo central. Aliam-se para formular essa concepção estética o saber sanitarista e a imagem idealizada do progresso.

FIGURA 11 - Bairro de Higienópolis, carta postal ed. Malussardi. In: B. Lima de To ledo, Prestes Maia e as origens do urbanismo moderno em São Paulo, p.48.

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Alguns elementos em suas anotações estabelecem entretanto o necessário liame a aproximar as partes, a antiga e a nova, no tempo do presente: a iluminação a gás e a eletricidade, o abastecimento de água pela companhia que a trazia desde a serra da Cantareira, o serviço de esgoto, todos componentes dos modernos equipamentos coletivos urbanos. E mais esclarecedora ainda é a menção ao movimento; o antigo "triângulo" abrigando uma vida animada; suas ruas delimitadoras, a Quinze de Novembro, a São Bento e a Direita, bem como seu núcleo, o Largo do Rosário, recomendavam-se "pela sumptuosidade de seus predios, pela febril circulação de milhares de indivíduos e pela infinidade de importantes casas commerciaes de que dispoem". O movimento de bondes, carros e outros veículos são outros tantos índices da mudança observada. Decididamente, o cronista compõe uma opinião sobre a cidade, traça em palavras o sentimento dos contrastes que evidenciam e conferem significado ao impacto da mudança: "S. Paulo, quem te viu e quem te vê!" Formadas no contraste entre as fragmentárias lembranças do passado e o crescimento e mudança rápidos no presente, opiniões de origem diversa fixam uma primeira marca identificadora da cidade no início do século XX: a marca da alteridade. Amplia-se uma opinião de senso comum para expressar essa alteridade. Ela recobre à imagem do burgo de contornos coloniais, acanhado, a mover-se numa letargia provinciana, apenas suspensa pelo alarido das vozes dos estudantes de Direito do Largo de São Francisco, contrastada com a da cidade que se desdobra, modificada pelo ritmo rápido do crescimento expresso em vários registros. Contudo, esta nova cidade guarda em seu centro irregular a marca material de um outro tempo; envolto pela premência do ritmo rápido, seu espaço é inadequado, incapaz de dar respostas a demandas com outras características. A controvérsia sobre a datação perde força, pois pouco importa se o marco cronológico fixa os anos da década de 1880 ou a virada do século como momento inaugural. 1" O registro do contraste entre o 16 Para um estudo inovador sobre as imagens e representações de São Paulo no século XIX, sombra e luz, letargia e movimento, remeto a RIBEIRO MONTO IA, A. E. Cidade e política: São Paulo no século XIX. Campinas, 1990. Monografia (Mestrado)- Unicamp.

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novo e o velho, o impacto da velocidade a imprimir um ritmo que lhe vem de fora e a certeza da invasão se impõem entre as imagens da cidade como o do momento em que ela se deixou levar pela voracidade dos tempos modernos, centro distribuidor de café, indústrias se instalando, imigrantes europeus formando o batalhão do trabalho, novas línguas, novos hábitos. São Paulo participa do circuito internacional, entra na história, em suma. Duas marcas permanentes se inscrevem, portanto, nas representações dessa cidade moderna, conferindo-lhe uma identidade. Na opinião dos que nela vivem e dos que a ela se referem, forma-se uma representação paradoxal na identificação de São Paulo: ela não se caracteriza pela nacionalidade, dela também desaparecem as marcas culturais e materiais acumuladas durante os três séculos anteriores. Vindos de diferentes lugares do mundo e do próprio país, os forasteiros são responsáveis, tal como ainda hoje, pelo espantoso crescimento demográfico nos últimos anos do século XIX e nas décadas iniciais do século XX. São linguajares diversos a colorir com a negativa imagem de Babel os textos de época; são artesãos italianos, em estreita colaboração com os profissionais brasileiros formados em escolas de engenharia dos centros universitários europeus, os que irão põr abaixo a cidade de taipa, e sobre seus escombros construir a cidade de alvenariaY Esses profissionais confirmam a segunda imagem identificatória de São Paulo, a da descaracterização imposta pelos empréstimos europeus. Duas imagens que convergem sobre a cidade - a dos imigrantes e a da estética neoclássica - e a identificam exatamente pela perda da identidade original, pela sua alteridade. "São Paulo ê stata fatta dagli italiani", enfatizam Debenedetti e Salmoni na década de 1950. 18

17 Como referência à esta mudança no padrão arquitetônico e técnicas construtivas, remeto para LEMOS, C. Alvenaria burguesa, São Paulo: Nobel, 1985, e para o livro pioneiro de DEBENEDETTI, E. & SALMONI, A. Architettura italiana a San Paolo. São Paulo: Instituto Ítalo-Brasileiro, 1953. 18 Idem, p.11.

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FIGURA 12- Edifício Martinelli. Perspectiva do projeto. In : B. Lima de Toledo, op. cit., p.109.

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Sem dúvida, o estilo neoclássico ou eclético, marca preponderante dos projetos do engenheiro Ramos de Azevedo, começam a se implantar, ainda por solicitação dos governos provinciais, nos últimos anos do Império. O prédio da Secretaria da Fazenda, no Largo do Palácio (hoje rebatizado Pátio do Colégio), apesar de inaugurado em 1891, fora encomendado ao engenheiro dez anos antes, ficando pronto em 1886. Definia-se um padrão arquitetônico, cujas características deveriam expressar pujança e estabilidade. "Severidade, elegância de estilo, e robustez", foram as qualidades observadas pelo viajante francês Gaffré, que considerou estarem as secretarias de Estado de São Paulo "instaladas em palácios cujo bom gosto e proporções eram dignos das mais nobres cidades da Europa". 19 Entretanto, esse estilo e os diversos prédios públicos, que pontuam a área central, partes antiga e nova, se confundem na imagem da dinâmica do progresso amalgamado à do trabalho. Assim, os imigrantes, os novos moradores, se viram e foram vistos como dínamos humanos a impulsionar os antigos habitantes na direção do crescimento, idealizado no projeto utópico da concepção moderna e universal de cidade. Os sinais da contemporaneidade não se esgotam no padrão arquitetônico; estendem-se através da preocupação com o traçado das ruas e as boas condições higiênicas das unidades formadoras da cidade, as moradias. Foi nesse contexto maior da preocupação com a salubridade da área urbanizada do município que se constituiu a Comissão de Inspeção Higiênica, encarregada em 18 9 3 de examinar as condições físicas das habitações coletivas do bairro de Santa Ifigênia. Em seu relatório, essa comissão amplia o âmbito de atuação das autoridades municipais, propondo um plano regulador para urbanizar partes ainda desocupadas dos bairros centrais e, principalmente, fazer avançar o traçado da ocupação urbana para os bairros periféricos. Um conjunto de intervenções configura a estratégia sanitária: eliminar focos de doença e de comportamentos inadequados na área central, higienizar as moradias operárias, padronizar os "kiosques" a fim de assegurar um padrão mínimo aos alimentos 19 Citado por SALGADO LOUREIRO, M. A. Evolução da casa paulistana e a arquitetura de Ramos de Azevedo. São Paulo: Voz do Oeste, Secretaria de Estado da Cultura, 1981. p.54.

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ali comercializados, calçar ruas, eliminar a sujeira do pó e da lama, e o mau costume dos moradores de desfazer-se do lixo doméstico atirando-o nas vias públicas. Os preceitos do sanitarismo perduram nas primeiras décadas do século XX, orientando o olhar crítico dos técnicos em suas intervenções. Referindo-se ao aspecto higiênico, fundamental para os "melhoramentos de São Paulo", o engenheiro Victor Freire procura, já em 1914, 20 não deixar dúvidas quanto aos benefícios da "influência que a luz e o ar assumem na salubridade das aglomerações humanas". Em sua opinião, assegurar o bom fluxo do ar e dos raios solares constituía a técnica profilática mais eficaz no combate à tuberculose e à febre tifóide, entre outras doenças contagiosas. Seu alvo principal consistia na "arquitetura da habitação numa cidade onde", diz, "a pressão do imigrante habituado à moradia individual em seu país de origem, alimenta ingenuamente a ganância de construtores irresponsáveis". 21 Em sua proposta de intervenção no tecido urbano, a idéia-mestra consistia em prever as necessidades criadas pela "constante e rápida evolução do movimento social", antecipar-se aos problemas. "Antecipação" é, em 1911, a palavra de ordem de Victor Freire em Melhoramentos de São Paulo. Contudo, não deixavam de merecer também sua atenção as praças subordinadas ainda, segundo ele, aos poucos exigentes padrões coloniais. Mesmo em relação às ruas, embora reconheça termos conseguido evitar a "implantação geométrica ... regular, fatal das cidades americanas em geral!", não deixa de propor um plano para, mantendo-se a implantação existente da cidade, assegurar o fluxo fácil do trânsito. Sua concepção baseiase nos resultados obtidos em Nova York por uma comissão de estudiosos. Em termos gráficos, a proposta assume a forma de "uma ro?a de carro", na qual "o cubo corresponde ao centro da cidade, os raios ... às grandes vias de penetração no centro; as 20 SILVA FREIRE, V. da. A cidade salubre. Revista Politécnica, v.8, n.48, p.319-54, out.-nov. 1914. 21 Uma política mais definida em seus pressupostos só acontece com o I Congresso de Habitação de 1931. Sobre o tema, ver: CARPINTERO, M. A construção de um sonho. Engenheiros e arquitetos e a formulação da política habitacional no Brasil. Unicamp·, 1997.

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cambotas, ou elementos do aro da roda ... a expressão ideologica das ruas de acesso dos differentes bairros ás vias de penetração". Uma proposta na qual se inscreve a obediência aos caminhos naturais sugeridos, ou mesmo exigidos, pela topografia acidentadaY Assim, até o engenheiro Victor Freire, defensor consciente da preservação dos elementos antigos na cidade em renovação, reconhece, nesse texto de 1911, a necessidade de projetar um plano de expansão da área urbanizada segundo os padrões modernos, das largas avenidas. Sua preocupação em não descaracterizar a cidade refere-se à parte antiga, cujos estratos superpostos recontam uma história. Trata-se para ele de preservar a antiga concepção de cidade, montada peça por peça pelos moradores como uma obra artística, única e inigualável; de assegurar a "mais esplendida 'symetria', a symetria do tempo". Suas palavras traduzem na leitura da cidade a concepção estética do pitoresco: "Não parece estarmos assistindo á formação de S. Paulo com a casaria irregular alastrando-se em torno da capella do Collégio, a posterior fundação da Cadêa, toda a tão nossa conhecida historia que segue, e colloca a vida em comum e official de nossos dias em um triangulo que tem seus vertices nos conventos de S. Bento, do Carmo, de S. Francisco?". Esse cuidado com as referências históricas da cidade relacionase à preservação de edificações e monumentos, recortes das vias, elementos que se comportam como topoi, lugares delimitados no espaço-tempo, ícones de localização geográfica para os habitantes e pessoas de passagem. É preciso deixar claro que não se trata do elogio da permanência de um padrão de vida ultrapassado. Como professor de engenharia da Escola Politécnica e diretor do Departamento de Viação e Obras Públicas da Prefeitura Municipal, Freire defende a não-eliminação dos suportes materiais da memória coletiva, marcas do passado no presente. Escuta-se, assim, uma nota visivelmente dissonante entre as possibilidades inscritas no futuro traçado de São Paulo. Poder-se-ia identificar uma concepção conservadora, romântica, e daí de recorte nacional, defrontando com outra, progressista e internacionalista, 22 SILVA FREIRE, V. da. "Melhoramentos de S.Paulo". Revista Politécnica, v.6, n.33, p.91-145, fev.-mar. 1911.

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em suma, descaracterizadora. Contudo, a posição de Freire, que celebra "nosso centro" como "aggregado irregular ou 'pittoresco' ... onde as ruas seguiram ... a fantasia do constructor e não o implacavel cordel do alinhador", se de certa maneira explicita a discordância em relação ao modelo parisiense de Haussmann, é porque mantém vínculo teórico com Camillo Sitte, arquiteto austríaco, crítico das reformas de Viena, executadas em grande parte por Otto Bauer. Victor Freire aliava-se às opiniões contrárias à posição prevalecente, para a qual modernizar, reformar ou embelezar uma cidade implicava impor-lhe a grelha "rectangular de Nova-York", como comenta em tom crítico. 23 Ou seja, mesmo a opção por uma diretriz urbanística que asseguraria a preservação do traçado original do núcleo central, em plenos anos de negação da herança colonial, respalda-se também ela em uma teoria que postulava uma concepção de cidade que correu mundo e teve notoriamente alcance internacional. É importante sublinhar neste ponto que as opiniões técnicas divergentes de avaliação e intervenção urbanas configuram, certamente, diferentes posições teóricas, e mais, confirmam a participação dos engenheiros de São Paulo no debate urbanístico contemporâneo. Em outras palavras, até quando se defendia a tradição, não se fugia a um debate mais amplo, que considerava a urbanização moderna, assim como a industrialização, um problema mundial. Nada que confirme as referências - freqüentes nas histórias do urbanismo -às "idéias fora do lugar", referências em que se procede ao recorte obtuso de rotular a prática arquitetônica e urbanística entre nós como importação inadequada ou transferência empobrecida de idéias e projetos idealizados em solo europeu para uma "realidade" outra. Tal como se fosse necessário compartilhar a crença na "nacionalidade" das formas de pensar, na exigência ingênua de idéias puras, "originais", autóctones, porque enraizadas em solo pátrio. Rótulo estranho a esse domínio acadêmico, mas que aí facilmente ganhou adeptos da explicação fácil e adotada em todos os domínios das ciências humanas. Em suma, o que 23 Para localizar essas posições em torno ao urbanismo nascente do final do século XIX, ver CHOAY, F. Urbanismo: realidades e utopias. São Paulo: Perspectiva, 1976.

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indicamos em nosso estudo em nada se assemelha à aceitação de um mimetismo aborígine tacanho. Parte-se simplesmente do reconhecimento de que, no campo do urbanismo, e estreitamente vinculado às possíveis opções políticas, colocava-se ao dispor dos interessados, como um fundo comum do conhecimento e prática de intervenção nas cidades, um leque de concepções universalizantes. Entretanto, é preciso que se sublinhe o liame entre as opiniões da época e sua presença em eco na historiografia, e não só nela, dessa marca que instalou nas cabeças pensantes, ou nas meramente repetidoras, a teoria das "idéias fora do lugar", de tão ampla aceitação entre nós, e que orgulhosamente exportamos, para regozijo dos estudiosos estrangeiros que antecipadamente nos colocam o rótulo de "colonizados", como interpretação de "nossa história", esta sim genuinamente nacional. Esse alerta tem sua razão de ser para um tema como o que estamos tratando. É necessário lembrar, e recorro a Bronislaw Baczko, que "uma das funções dos imaginários sociais consiste na organização e domínio do tempo coletivo no plano simbólico". 24 Eles tem sua eficácia não só nos trabalhos acadêmicos, mas na orientação de práticas. Essa fixação de duas imagens imobilizadas de São Paulo como que cristalizou uma história em dois tempos, dissociados tanto em termos numéricos como esteticamente: o das origens e o da "europeização" descaracterizadora, embora necessária. Opinião endossada por autores preocupados em desfazer enganos sobre a "origem" do neoclássico paulista: nenhum vínculo com a França, mas de origem italiana, trazido na bagagem dos engenheiros e mestres de obras peninsulares, já numa segunda fase do neoclassicismo, em sucessão ao alemão, aqui aportado primeiro na década de 1860. 25 Algo como se, diante de problemas "específicos", "nossos" urbanistas não tivessem conseguido pensar uma "solução nacional", demostrando, dessa maneira, sua incapacidade de pensar autonomamente "nossa" singularidade. Imagem cuja força estética 24 BACZKO, B. Les imaginaires sociaux. Mémoires et espoirs collectifs. Paris: PAYOT, 1984. 25 DEBENEDETTI & SALMONI, op. cit., 1953.

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explicativa, em sua oposição binária - a cidade de taipa e a cidade de alvenaria -, aprisiona como uma armadilha nossa imaginação, impedindo ao raciocínio a busca de outro apoio. Sua força projeta no futuro uma determinada representação do passado, representação ativa da vida coletiva, e mais, da prática política. Bazcko sugere que, através dela, uma "coletividade designa sua identidade no mesmo movimento em que elabora uma representação de si". Representação identitária que assinala os lugares sociais, exprime e impõe certas crenças comuns e determinados modelos de operosidade no caso - marca um território. Anne Cauquelin, não adepta da noção de imaginário coletivo, alerta contudo para a necessidade de se levar em conta memórias esparsas e comportamentos como substância ativa do viver em cidades. Continuemos nosso percurso no sentido de apreender o campo das representações coletivas, das memórias esparsas ou doxa urbana, essa opinião mutante, com suas fronteiras móveis, instáveis. Agora são os costumes que se modificam com as levas de estrangeiros, substituindo ou agregando novos hábitos de trabalho, alimentares, de leituras, modificando comportamentos, o gosto, enfim. Entre as lembranças de cançonetas cantadas em agremiações musicais, às vezes mesmo nas ruas, servindo as calçadas de pista de dança, estão as cadeiras trazidas para as portas nos fins de tarde e nas noites de verão, hábitos de sociabilidade pouco difundidos entre os paulistanos de antanho, sublinham. Geraldo Sesso rememora com saudades o tempo em que se podia sem susto manter-se horas a fio nas calçadas conversando com vizinhos, estreitando amizades. Contrasta essa reminiscência de um tempo de ordem com o momento da escrita de suas lembranças, quando diz ser "temeridade o cidadão sair de sua casa, expondo-se a ser imediatamente atacado e assaltado por vagabundos e marginais". 26 Significativamente, Sesso tem como ponto de referência um tempo em que o Brás era italiano, um pouco espanhol, diverso do bairro de hoje. O contraste agora é elaborado de outra perspectiva, a do filho de imigrantes que se sente autorizado a afirmar:

26 SESSO, G. Retalhos da velha São Paulo. São Paulo: OESP, Maltese, 1986. p.119.

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Infelizmente, para todos os paulistanos, e em especial para aqueles que um dia lá habitaram ... o velho bairro do Brás já não é o mesmo! Tudo ali está modificado; no lugar das antigas cantinas, existem novas casas de pasto, especializadas em petiscos, comidas e bebidas típicas do Norte. As "brajolas" foram substituídas por carne de sol, as sopas de grão de bico por 'mungunzá', as suculentas macarronadas por feijão com farinha de inhame ....

Em suas recordações, o caráter ordeiro dos bairros de imigrantes só era suspenso por epidemias de tifo (1913) e de gripe (1918), ou pela carestia dos alimentos, em parte ocasionada, em sua opinião, pela guerra mundial de 1914, seguida da greve geral de 8 de junho de 1817. As serenatas cedem em certos momentos o espaço para os comícios liderados pelos anarquistas, Edgard Leuenroth e José !negues Martins; a multidão de grevistas carregando faixas do Comité de Defesa Proletária e a polícia, avisada com antecedência, "carregando" sobre os manifestantes. Violência previsível na lógica do confronto capital-trabalho, tão diversa da outra, atual, também registrada pelo cronista. Hoje em dia, nas esquinas, diz ele, não mais encontramos os grupos de rapazes reunindo-se para os bailes, mas "meninas-mulheres que, quando não assaltam os transeuntes, convidam-nos para fazer amor. .. "Y As fronteiras das representações se deslocam para traçar um outro marco cronológico, um antes e um depois, composto pelas imagens opostas do imigrante trabalhador e cônscio de seus direitos e a do migrante nordestino, a pobreza de hábitos sociais e alimentares a eles atribuída, traduzindo uma precária consciência cívica. Procede-se à inversão do sinal positivo do tempo em que os imigrantes europeus haviam introduzido plantas frutíferas, como maçãs, marmelos, pêssegos, amoras, videiras, alterando os hábitos alimentares tradicionais dos paulistas, à base de feijão acompanhado de angu e carne seca. 28 A pobreza do repertório alimentar traduz o acanhado horizonte cultural do habitante primeiro das terras de Piratininga, seus costumes pouco sofisticados, rudes até, herança de um outro tempo, ilhado agora como reminiscência significativa, revivido pelos novos rudes nordestinos, também eles forasteiros, 27 Idem, p.135 e 161. 28 Idem. p.49.

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como os imigrantes europeus do início do século, mas diferentes daqueles, pois remanescentes de um tempo de atraso, mesclando novamente tempos diferentes num mesmo tempo. As imagens de São Paulo se acumulam, enriquecendo o imaginário de uma cidade que se confunde com o Estado, recorte regional de um país do qual se fixa na opinião corrente como centro propulsor. Um outro fio textual pode ser puxado, refazendo agora a história a partir de imagens cruzadas: a da potência da riqueza com a do pioneirismo desbravador bandeirante. "São Paulo é um Estado admiravel! A iniciativa do seu povo é um facto que assombra. A rapidez do seu progresso ainda não encontrou parallelo no seio das nações civilizadas do mundo, com excepção, apenas, dos Estados Unidos da America do Norte". Esta avaliação altamente positiva faz parte do desagravo a São Paulo, escrito pelo autor que diz ser francês e se autodenomina Antoine Renard (Antonio Raposo [Tavares]), no momento em que o Estado sofria a derrota na revolução constitucionalista de 1932. Inconformado com o que considera a humilhante intervenção federal, ele propõe escrever uma homenagem reclamada por sua consciência. Dizendo ter chegado a São Paulo em 1926, afirma ter se maravilhado "deante da magestade e do tamanho da sua capital". Ao elogio segue-se a explicação: "Realmente, esta cidade, marulhenta de vida e semeada de arranhacéos, verdadeiro escrinio de bellezas architectonicas e esculpturaes, encanta e deslumbra, pelo seu conjunto artístico e sumptuoso, a todos que a contemplam". Oferece em nota os números confirmadores dessa grandeza, recurso seguidamente utilizado nas mais de duzentas páginas de seu livro S. Paulo É Istof2 9 Contudo, mais significativa é a ilustração da capa, onde a figura de um bandeirante segura nas costas, à guisa de agasalho, o mapa do Brasil, bem traçada a linha do Tratado das Tordesilhas delimitando o território conquistado pelos paulistas. A seus pés, o navio e o porto, o recorte das fábricas e suas chaminés, o trem e as plantações de café; uma epígrafe retirada de Oliveira Martins afirma em lugar de destaque: "De S. Paulo poude sahir a raça que fez o Brasil". 29 RENARD, A. S. Paulo É Isto! A riqueza economica de S. Paulo. A alma civica paulista. A epopea das bandeiras, São Paulo: jan. 1933.

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FIGURA 13 - Capa do livro de Antoine Renard, S. Paulo É Isto!, 1933.

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As características do "povo paulista", enfatizadas na expressão, "de uma potência constructora fóra do commum", são celebradas com os números insofismáveis de seu crescimento demográfico e econômico: instalações fabris, áreas de cultivo agrícola, ferrovias e o porto de Santos, entre outros empreendimentos relacionados. Números intercalados por representações estéticas compõem argumentos de grande apelo emotivo. Constituem imagens nas quais a estatística se mescla à poética do crescimento vertiginoso; paisagens pouco referidas à beleza natural, vinculadas sempre ao poder transformador do homem: Observada á noite, do alto de qualquer de suas interessantes collinas, a capital paulista dá-nos a idéa de um immenso amphitheatro, immerso num vasto oceano de luzes, cuja belleza ainda tem, a realçar-lhe o conjuncto, a bizarria dos innumeros annuncios luminosos, projectados dos cimos dos seus arranha-céos. Observada de dia, das mesmas alturas, as chaminés das suas innumeras fabricas, a confundirem os seus espessos pennachos de fumo com as nuvens que passam, lembram-nos Manchester, o maior parque industrial europeu. 30

Renard não esgota nos feitos matena1s sua apologia das características da população paulista. Exalta seu espírito empreendedor sim, mas também seu civismo; homens e mulheres que não recuaram perante os acontecimentos revolucionários de julho de 1932; confirmando "descenderem de uma raça de gigantes". Quando, "desfraldada a bandeira paulista da Revolução de Julho", diz ainda Renard, "o povo de S. Paulo ergue-se em massa, como se uma forte mó la de aço o impulsionasse com um uni co arranco ... ". 31 Forma-se em suas palavras uma imagem do civismo, atribuído ao paulista, uma cidadania que não se confunde com a mera obediência às leis, mas é ela mesma instauradora de regras. A mescla de números, atos heróicos e atitudes patrióticas une crescimento e civismo, moldando o presente e o futuro, soldados entretanto por um perfil caracterológico forjado em antigas batalhas. É na última parte, dedicada a narrar "a epopéa das bandeiras 30 Idem, p.l5. 31 Idem, p.l 04.

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paulistas", que o autor procura não deixar dúvidas sobre os "feitos heroicos dos bandeirantes paulistas, a cujas audaciosas arremettidas pelas solidões desconhecidas da America do Sul deve o Brasil quasi dois terços de seu immenso territorio". Não só em extensão fora o ganho, pois as bandeiras haviam sido "sementeira fecunda de onde surgiram, exhuberantes e fortes, as mais bellas florações da nacionalidade brasileira". 32 Inúmeras atividades sedentárias haviam se fixado no território percorrido, assegurando sua conquista. A imagem poderosa do bandeirante consegue estabelecer em solo seguro, porque envolto nas brumas da epopéia lendária, o lugar da identidade desfeita por um momento pela chegada do imigrante europeu. Com ela se estabelece um fio de continuidade desde os tempos mais remotos, uma espécie de mito fundador, não de São Paulo, mas da própria nação brasileira. Nessa imagem, paulistas natos e recém-chegados fundem-se na figura ímpar do desbravador. Trata-se do esforço coletivo em que "moços e velhos, brancos e pretos, ricos e pobres, patrões e empregados, mestres e discípulos, medicos, engenheiros e moços da lavoura, numa fraternização tocante, empunham os fuzis". 33 O "estoicismo inenarrável" de pais e mães dando vivas a São Paulo em meio à dor da perda dos filhos nas frentes de batalha confirma as características de "heroísmo, bravura e abnegação" da população. Imagem elaborada no desagravo do paulista protegido pelo disfarce do nome e pretensa nacionalidade francesa, desagravo à cidade ocupada pelas forças federais. Essa imagem é entretanto reiterada pelo saber acadêmico de Oliveira Viana, em Populações meridionais do Brasil e outros escritos. Imagem talvez mais poderosa, com certeza mais duradoura, pois apresentada como saber erudito, fruto de pesquisas e reflexões; mais convincente ainda, pois o estudioso da sociedade brasileira diz não se prender às explicações dos "nossos historiadores", que, ao descreverem o movimento das bandeiras, esquecem as "causas intimas", deixando-se "seduzir por seus traços épicos". Recorre a documentos ao mencionar um dos descendentes desses bandeirantes, Frei Gaspar, que fala dos 32 Idem, p.131. 33 Idem, p.104.

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"intrépidos moradores de S. Vicente, nos quais, ou por força do fado, ou por desgraça da sua capitania e ventura das outras, sempre foi predominante a paixão de conquistar". Oliveira Viana prossegue afirmando ser insuficiente ater-se apenas à "causa aparente e imediata desse movimento, ou seja, a atração magnética exercida pela legenda da Serra das Esmeraldas", aceitando-a como explicação da gênese da paixão pela conquista. Afinal, argumenta, homens de outras regiões tiveram também conhecimento dessas histórias sedutoras. As raízes do impulso ao movimento, ele as encontra no que postula ser a tríade determinante do comportamento dos homens: o meio (físico, econômico e social), a história e o momento. Nesse sentido, considera que, reforçadas agora as investidas anteriores das entradas sertanistas na caça ao índio, pela experiência adquirida pelo bandeirante e pela contribuição do braço do trabalhador escravo, a empresa desbravadora se consolida como "fragmento do latifúndio". Os argumentos de Viana estendem-se no relato do translado de famílias e componentes técnicos dos latifúndios, formando com eles a estrutura duradoura da grande empresa agrícola. Para nosso tema, porém, interessa reter a importância que confere à formação de chefes: "esses grandes potentados territoriais trazem nas veias uma forte herança de bravura, de intrepidez, são todos personalidades fortemente vincadas", afirma, e fecha seu argumento de maneira peremptória: "Os primitivos colonizadores lusos, de quem descendem, representam a porção mais eugênica da massa peninsular"; e explica esse caráter eugênico indo buscar sua certeza "em uma lei de antropologia social", atribuída a Lapouge Seléctions sociales, na qual se garante que "só emigram os caracteres fortes, ricos de coragem, imaginação e vontade". Assim, aos cabedais soma-se a bravura; estes são por sua vez soldados pela dignidade, lealdade e probidade de seus ancestrais, os nobres das estirpes dos Egas Moniz e D. João de Castro. 34 Chega-se na seqüência à questão do caráter desses chefes paulistas, cujos modos aristocráticos são recuperados por Viana através da Nobiliarquia paulistana, de Pedro Taques. A riqueza, o 34 OLIVEIRA VIANA, F. Dispersão dos paulistas. In: Populações meridionais do Brasil. São Paulo: Paz e Terra. cap.V, p.83-98.

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luxo, o espírito culto fazia das casas de alguns desses homens o centro de reunião de todo o escol de São Paulo. A biblioteca, as cem camas sempre postas, a mesa farta e o cuidado com os hóspedes e seus trastes, bem como a arte de bem falar e escrever, são descritos pelo autor, que chega mesmo a dizer que, por tudo o que são, "esses aristocratas paulistas mostram-se muito superiores à nobreza da própria metrópole". 35 Em suma, o que, no desagravo de Renard, tem o tom da defesa da grandeza econômica e do civismo paulistas contra algo próximo da barbárie do restante do país, em Viana, que aplaudirá em 1930 e 193 7 o fim da República liberal, assume a dimensão do conhecimento acadêmico com declarada adoção de teorias científicas e métodos objetivos. O mito colorido com as cores da lenda se recobre com a chancela da verdade. A avaliação da população de São Paulo fora, aliás, sintetizada em entrevista concedida pelo sociólogo ao jornal O Estado de S. Paulo em 17 de fevereiro de 1924: "Os velhos paulistas", sentencia, "foram sempre uma raça exhuberante e fertil, um typo moral e physicamente eugenicos. É este, precisamente, um dos traços que mais os distinguem dos outros grupos nacionaes. O affluxo moderno dos colonos europeus tenderá ainda mais essas aptidões eugenísticas da gente paulista". A identidade perdida e as mudanças descaracterizadoras, ambas resultantes da "invasão européia", se desfazem, dando lugar à imagem apaziguada da fusão de dois bravos na empreitada do trabalho e do progresso. Imagem mítica reconfirmada no dia-a-dia da cidade que não parou de crescer. Duas imagens tão fortes, que como mitos fundadores marcam ainda nosso imaginário e dão aos habitantes da Babel uma identidade simbólica tecida na ação e na materialidade dela resultante, fincada em monumentos como a barca que fronteia o Parque Ibirapuera, ou o kitsch Borba Gato da confluência da Santo Amaro com Adolfo Pinheiro. Ou, em nota dissonante entre tanta convergência, as palavras de Mário de Andrade em "Paulicéia desvairada": 36 35 Idem, cap.I, p.30-2. 36 ANDRADE, M. de. Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1987. p.92.

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Mas ... olhai, oh meus olhos saudosos dos ontens Esse espetáculo encantado da Avenida! Revivei, oh gaúchos Paulistas ancestremente! Guardate! Aos aplausos do esfusiante clown, Heróico sucessor da raça heril dos bandeirantes, Passa galhardo um filho de imigrante, Louramente domando um automóvel!

Ou ainda no verso XXII de "Losango cáqui": 37 A manhã roda macia a meu lado Entre arranha-céus de luz Construídos pelo milhor engenheiro da Terra. Como ele deixou longe as renascenças do snr. dr. Ramos de Azevedo! De que valem a Escola Normal o Théatre Municipal de l'Opéra E o sinuoso edifício dos Correios-e-Telégrafos Com aquele relógio-diadema made inexpressively? Na Paulicéia desvairada das minhas sensações O sol é o snr. engenheiro oficial.

Monumentos, prédios, traçados de ruas, costumes, atos de bravura, percursos, lutas e confrontos, tardes de domingo, trabalho na fábrica e na oficina de costura, são impressões-recordações, reminiscências que, entre outras, formam o amálgama de opiniões sobre São Paulo. Materialidade que atua como suporte visível da memória, mas também mitos e lendas, recordações, projeções utópicas, conformam memórias sem lugar, afetivas, também intelectuais e eruditas, que entre passado e futuro compõem uma imagem-identidade de São Paulo.

37 Idem, p.84.

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JOHN MANUEL MONTEIRO**

Em 1933 os supostos restos mortais de Martim Afonso Tibiriçá, chefe dos índios de Piratininga falecido em 15 62, foram transferidos da Igreja do Coração de Maria para um novo jazigo, uma cripta na recém-construída Catedral da Sé. Evento tão insólito quanto obscuro, mereceu um comentário passageiro em Os primeiros troncos paulistas, livro polêmico publicado pelo historiador Alfredo Ellis Junior em 1935, quando o eco dos canhões de 32 ainda se escutava com certa nitidez. Para este autor, uma vez incorporados os restos deste paulista primordial na Catedral, "onde já repousam os ossos do grande Feijó", faltavam apenas "os despojos dos nossos bandeirantes, formando assim o Panteão Paulista". 1 Mas o objetivo desse trecho do livro não era exatamente o de elevar ''

Este texto é inédito em português, porém uma parte dele, apresentado no Congresso de Americanistas em Estocolmo, 1994, foi publicada em castelhano com o título "Mamalucos, bastardos, carijós: mestizaje e identidad cultural en São Paulo, siglas XVI-XVII". In: VANGELISTA, C. (Org.) Fronteras, culturas, etnías: América Latina, siglas XVI-XX. Quito: Abya-Yala, 1996. ** Departamento de Antropologia IFCH-Unicamp/Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. 1 ELLIS JR., A. Os primeiros troncos paulistas. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. (Brasiliana, v.59). p.33.

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Tibiriçá ao mesmo nível de um Feijó ou de um Fernão Dias Pais. Ellis Jr. considerou oportuna a remoção para medir "cuidadosamente os ossos e principalmente o crânio do cacique, a fim de se conhecerem os seus caracteres antropológicos". Este conhecimento, por sua vez, tornava-se indispensável para a compreensão do processo de mestiçagem que deu origem aos mamelucos paulistas que, neste livro, vão ser caracterizados como "uma sub-raça fixa, eugênica, com os seus atributos inigualáveis de grande fecundidade, magnífica longevidade e espantosa varonilidade". Em sua versão muito particular da articulação entre raça e história, o autor arrematava: "Foram [estes atributos], sem dúvida, os coeficientes causadores da grandeza dos feitos dessa que Saint-Hilaire apelidou raça de gigantes!'? Com este estilo vigoroso e ufanista, condizente com a época em que escrevia, Ellis Jr. na verdade retomava uma velha discussão em torno das origens e identidade de São Paulo, tão antiga quanto a própria epopéia bandeirante. Qual o papel e o significado das populações indígenas para a história de São Paulo? Pergunta incômoda para muitos - uma vez que denunciava um passado carregado dos processos de violência e espoliação, porém que também evocava as raízes genealógicas das principais famílias da região -, conduziu diferentes gerações de historiadores por caminhos diversos de construção da memória. Ainda hoje, dentre os processos que marcaram a história das relações euro-indígenas, a mestiçagem permanece uma questão polêmica e, de certo modo, carente de novos estudos críticos. Se, de forma geral, o tema da mestiçagem tem servido de pedra angular para inúmeros ensaios sobre a especificidade do caráter nacional em diversos países do continente americano, no Brasil o mesmo tema desabrochou em um debate com nítidas implicações regionais. Num país em que, desde o século XVII, se fala em "paraíso dos mulatos", 3 a problemática da miscigenação esteve sempre presente no pensamento social brasileiro e, devido ao fardo quase insuportável 2 Idem, p.53. 3 Esta expressão é atribuída ao escritor seiscentista D. Francisco Manuel de Melo, cuja Descrição do Brasil (opúsculo perdido) trazia como subtítulo "Paraíso dos mulatos, inferno dos negros, purgatório dos brancos". Ver PRESTAGE, E. D. Francisco Manuel de Mello, esboço biographico. 1. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1984.

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do passado escravista, também esteve sempre sujeita à mistificação. A mesma afirmação vale para a historiografia regional paulista, porém com duas ressalvas significativas: primeiro, que a mestiçagem paulista não incluía o negro e, segundo, que a escravidão indígena era irrelevante para o processo. Surge, neste contexto, a figura central do mameluco, mestiço que, para uns, integrava uma homérica "raça de gigantes" e, para outros, ilustrava o processo de aculturação mútua do índio e do branco na formação de uma cultura genuinamente americana. 4 Gostaria de recolocar o problema da mestiçagem luso-indígena no contexto histórico da escravidão indígena. Ao esquivar-se desta questão, a historiografia paulista, e de forma geral a brasileira, tem projetado uma imagem hipersimplificada de processos econômicos e culturais que marcaram esta sociedade que, afinal de contas, se articulou a partir da subordinação e integração de grandes números de cativos indígenas. Ao longo do século das bandeiras, o peso preponderante de uma maioria indígena e a presença crescente de uma camada intermediária de mestiços- muitos de condição social e jurídica incerta- constituíram um quadro bastante complexo no qual as distintas camadas sociais enfrentavam, cada uma a seu modo, os dilemas e desafios da identidade cultural numa sociedade em formação.

MESTIÇAGEM E DOMINAÇÃO PORTUGUESA NAS ORIGENS DE SÃO PAULO A partir da primeira metade do século XVI, as sucessivas investidas de interesses europeus para o interior do continente sulamericano deflagaram processos demográficos que transformaram radicalmente o perfil étnico de vastas regiões. A extensa e maldefinida fronteira entre as colônias portuguesa e espanhola foi palco, ao longo dos três séculos que sucederam à penetração inicial de 4

A bibliografia paulista é demasiadamente extensa para sequer ser noticiada aqui. No que concerne às duas abordagens acima referidas, são minimamente representativas a já citada obra de Alfredo Ellis Júnior e a de BUARQUE DE HOLANDA, S. Caminhos e fronteiras. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996 (l.ed. 1956).

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aventureiros espanhóis, de uma intensa e contínua interação euroindígena. Esta interação foi marcada, por um lado, pela reconstituição de populações indígenas e mestiças em espaços coloniais, tais como as reduções franciscanas e jesuíticas, as propriedades rurais espanholas e portuguesas e as incipientes áreas urbanas em ambas as margens da fronteira. Desde o período colonial, a historiografia tem sustentado que a ocupação portuguesa da Capitania de São Vicente teve êxito, ao contrário da de muitas outras capitanias, em razão das boas relações travadas com os habitantes nativos. As alianças pactuadas com os grupos locais tupiniquins, tanto no litoral como, posteriormente, no planalto interior, teriam sido cimentadas através de casamentos entre os primeiros colonizadores e as filhas dos "principais" da terra, ou seja, os chefes locais. O resultado destas uniões residiria não apenas na consolidação política dos colonizadores, como também no início das primeiras linhagens paulistas. 5 Se, para os genealogistas e memorialistas do século XVIII, estes primeiros casamentos se consagram em uma espécie de mito de origem da sociedade paulista, as relações entre portugueses e índios mostraram-se, na verdade, mais complexas. A exemplo da colonização espanhola do Paraguai, nesse mesmo período, as alianças com grupos indígenas visavam pelo menos a quatro objetivos: 1. a mobilização de efetivos indígenas contra grupos inimigos, sobretudo no contexto da chamada Guerra dos Tamoios; 2. a apropriação de produtos agrícolas e de mão-de-obra ocasional para o sustento de uma crescente população colonial; 3. a incorporação de populações indígenas aos núcleos de povoamentos coloniais, com o conseqüente surgimento de uma população mestiça; 4. a exploração mais intensiva do trabalho indígena nos empreendimentos coloniais, sobretudo através da aquisição de escravos (na verdade, cativos de guerra). 6 5 Veja-se MADRE DE DEUS, Frei G. da. Memórias para a história da Capitania de São Vicente [1797]. 2.ed. São Paulo: Edusp, Belo Horizonte: Itatiaia, 1975; PAES LEME, P. T. de A. Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica. 5.ed. São Paulo: Edusp, Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. 3v. 6 MONTEIRO,]. M. Os Guarani e a História do Brasil. In: CUNHA, M. C. (Org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.482-3ss.

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Contudo, ao passo que as relações luso-indígenas, norteadas por estes objetivos, caminhavam rumo adominação européia, foi a apropriação de elementos da cultura indígena que permitiu aos portugueses êxito em suas aspirações. Aos casamentos pontuais entre líderes portugueses e "princesas" - concubinato no jargão português -, ambas formas fundamentais através das quais os portugueses firmaram sua presença entre os índios do Brasil. Para a historiografia mais convencional, explica-se este fenômeno de maneira bastante simples, isto é, pela falta de mulheres brancas nas colônias; afinal de contas, conforme constatava Alfredo Ellis Junior, "quem não tem cão caça com gato"? No entanto, o que não se explica com tanta facilidade, apesar dos apelos da coroa e dos missionários a favor dos casamentos monogâmicos é como a poligamia se difundia com tanta facilidade. 8 As fontes quinhentistas, sobretudo as cartas dos jesuítas (que tanto combateram os deslizes morais dos primeiros colonos), forneceram algumas pistas para entender melhor o processo. De acordo com o Padre Nóbrega, "nesta terra há um grande pecado, que é terem os homens quase todos suas negras [isto é, índias] por mancebas, e outras livres que pedem aos negros por mulheres, segundo o costume da terra, que é terem muitas mulheres". 9 De fato, na Capitania de São Vicente, o concubinato atingiu proporções tão alarmantes, pelo menos aos olhos dos jesuítas, que o irmão Pedro Correia, demonstrando certo desgosto, observou: "Há muito pouco tempo 7 Para uma discussão do trabalho de Ellis Junior, ver meu Caçando com gato: raça, mestiçagem e identidade paulista na obra de Alfredo Ellis Jr. Novos Estudos CEBRAP, 38, p.79-88,1994. 8 Vale ressaltar que este problema também se manifestava em outras regiões de colonização portuguesa, notadamente na Índia (sobretudo Goa) e em Moçambique (nos "prazos" do Zambezi). A esse respeito, ver, entre outros: BOXE R, C. R. The Portuguese seaborne Empire, 1415-1815. London: Hutchinson, 1969; ISAACMAN, A. F. Mozambique- The Africanization of an European Institution, Madison: University of Wisconsin Press, 1972; e PEARSON, M. N. The Portuguese in India. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. 9 Manuel da Nóbrega a Simão Rodrigues, 9. 8.1549. Monumenta Brasiliar. 5v. Roma, 1954-1960, v.1, p.119. José de Anchieta desenvolveu posteriormente este tema na sua: Informação dos casamentos dos índios do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v.8, p.254-62, 1845.

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que me lembro que se perguntava a uma mamaluca quê índias e escravas são estas que traz com você?; respondia ela dizendo que eram mulheres de seu marido, as quais elas sempre trazem consigo e olhavam por elas assim como uma abadessa com suas monjas". 10 Assim, não se tratava simplesmente da adoção de práticas nativas por portugueses carentes na ausência de mulheres brancas. Mais importante, a poligamia e o concubinato refletiam as estratégias adotadas pelos colonos, que, por um lado, conferiam para si certo prestígio dentro das estruturas indígenas, e, por outro, introduziram paulatinamente a instituição da escravidão. Escravas e concubinas, na observação do irmão Correia, estas primeiras companheiras dos colonizadores representavam um padrão de relacionamento que iria perdurar ao longo da vigência da escravidão indígena em São Paulo. Expressavam, do mesmo modo, a ambigüidade inerente ao processo de transição de um quadro de alianças à subordinação pura e simples. Confundiramse, tanto neste período inicial quanto nos séculos posteriores, os laços de parentesco e os de dominação, a solidariedade e a exploração. É recorrente, por exemplo, na documentação dos primeiros séculos, a afirmação de que os índios, cujas irmãs e filhas encontravam-se escravizadas pelos colonos, eram "nossos compadres".

A ESCRAVIZAÇÃO DOS ÍNDIOS E A MESTIÇAGEM Se, durante o século XVI, um dos resultados das relações lusotupi foi o crescimento de uma população mestiça, a este quadro se contrapunha o vertiginoso declínio das populações indígenas da Capitania de São Vicente. Devido, em grande parte, a repetidos surtos epidêmicos, este declínio restringiu a oferta de mão-de-obra num contexto de expansão das atividades econômicas dos colonizadores, situação esta agravada pelas políticas de aldeamento dos índios pelos jesuítas, que dificultavam mais ainda o acesso ao trabalho indígena. Como solução, os colonos das vilas da Capitania 10 Pedro Correia a Simão Rodrigues, 10.3.1553. Monumenta Brasiliae, n.I, p.438.

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de São Vicente - sobretudo os da vila de São Paulo -, passaram a intensificar suas atividades de apresamento, introduzindo um número cada vez maior de índios arrancados dos sertões que se estendiam para o sul e oeste da capitania. Os grupos mais visados eram de origem guarani, conhecidos pelos portugueses como Carijós. Objetos de inúmeras pequenas expedições de "resgates" que negociavam, desde os anos 1550, cativos ao longo do litoral sul e no chamado Sertão dos Carijós, os Guarani passaram a enfrentar uma sucessão de grandes investidas militares a partir da expedição de 15 85, organizada pelo capitão-mor de São Vicente. Alegando a necessidade de uma guerra justa para punir Carijós, que nos quarenta anos anteriores teriam trucidado mais de oitenta brancos, a operação, na verdade, objetivava reabastecer os plantéis de escravos nos engenhos de açúcar do litoral vicentino, duramente atingidos por uma epidemia de varíola. 11 O movimento intensificouse no decorrer das primeiras décadas dos st;iscentos, quando o desenvolvimento da economia do planalto articulava-se com novas formas de organização do apresamento. O enorme fluxo de cativos Guarani teve um impacto imediato sobre a população da capitania: pela primeira vez, desde os anos iniciais da colonização, a composição dessa população voltou a ter na sua base uma esmagadora maioria indígena. Porém tratava-se de uma população reconstituída a partir das condições de oferta impostas pelos padrões de apresamento. Uma das características que marcaram a escravidão guarani residia na preponderância de mulheres entre os cativos. Assim, por exemplo, uma expedição que introduziu, em 1615, 628 cativos carijós, apresentava uma presença maior de mulheres e crianças. Entre os 439 adultos escravizados, quase 60o/o eram mulheres. O equilíbrio entre os sexos só se verificava entre as maiores partilhas (posses superiores a 15 escravos), ao passo que, nas posses menores, predominavam as cativas mulheres, e, ademais, o percentual de crianças era também menor. As tendências expressas neste exemplo pontual retirado de uma única expedição manifestavam-se de maneira geral durante todo o período de 11 Sobre a expedição de 1585, ver: Atas da Câmara Municipal de São Paulo. v.I, p.275ss.

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apresamento dos Guarani, conforme temos assinalado em outro trabalho, baseado no conjunto de inventários de bens arrolados na época. 12 Conforme tem apontado em diversas ocasiões Sérgio Buarque de Holanda, a preferência pelo trabalho feminino na colônia portuguesa espelhava as práticas dos espanhóis do Paraguai, onde também se concentrava um número considerável de mulheres Guarani junto à sociedade colonial. 13 Mais do que a simples continuidade do tradicional papel da mulher indígena na lavourapadrão, aliás, rompido em diversas unidades de produção paulistas-, também pode sugerir que os mecanismos do apresamento revestiamse de uma complexidade maior do que a simples violência. Mediada pelas relações com lideranças indígenas, a transferência de populações do sertão indígena para o povoado colonial pressupunha uma série de adaptações por parte dos próprios colonos. Assim, não é de estranhar que os membros da Câmara Municipal de São Paulo tenham levantado voz de protesto contra a expedição armada por Luís Dias Leme em 1635, que visava a atacar os Guarani da Laguna dos Patos, uma vez que "o resgate que levam não é mais que pólvora e chumbo e pelouros e correntes", buscando escravizar "índios que há mais de cem anos são nossos amigos e compadres de nossos antepassados, pois era remédio desta capitania" .14 Escrevendo sobre o Paraguai, porém pensando em São Paulo, Sérgio Buarque assim caracterizou o cufíadazgo, ou regime de trabalho feminino: "Tomando para si as mulheres nativas, empregadas no labor agrário, de acordo com a tradição indígena que fazia da lavoura mister feminino, puderam os brancos assegurar-se rapidamente a cooperação dos irmãos ou parentes dessas mulheres em suas atividades bélicas, predatórias e aventureiras". 15 A documentação colonial paulista sustenta, de fato, tal hipótese, pois a mão-de-obra masculina era explorada sobretudo nas tarefas do transporte e do sertanismo. Ao 12 MONTEIRO, ]. M. Os escravos índios de São Paulo no século XVII: alguns aspectos demográficos. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, v.S, p.ll-8, 1989-1990. 13 BUARQUE DE HOLANDA, S. Um mito geopolítico: a Ilha Brasil. In: Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. p.65-6. 14 Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo. v.I, p.494. 15 BUARQUE DE HOLANDA, S. op. cit., 1979, p.66.

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deslocar parte da população masculina indígena por períodos muitas vezes consideráveis, a própria organização do trabalho realçava o desequilíbrio na composição sexual da população cativa. As condições de apresamento e de organização do trabalho favoreciam, deste modo, os laços sexuais entre colonos e índias, fato este fartamente ilustrado pelas freqüentes declarações nos testamentos dos colonos, relatando a presença de filhos "naturais". Os registros paroquiais, ao menos os que sobreviveram aos séculos de maus-tratos, também apontam para um índice considerável de filhos de índias e de "pai incógnito". Nos registros de batizado para a freguesia de Santo Amaro, durante os anos 1686-1710, metade dos filhos de mães índias tinha pai branco ou "incógnito". No entanto, se o número de mestiços nascidos na São Paulo colonial era considerável, os mesmos registros paroquiais indicam que este não alcançava o número de filhos de casais indígenas. Em outra amostragem de batizados, referente à freguesia da vila de Sorocaba, no interior paulista, para o mesmo período, ·o número de filhos de casais indígenas superava o de mestiços em quase seis vezes. 16 Se uma parte considerável destes filhos mestiços foi fruto de uniões espúrias - às vezes reveladas nos testamentos como aventuras da juventude -, outra parte mostrava que as práticas poligâmicas introduzidas no início da colonização persistiram ao longo do século XVII. Em suaNobiliarquia paulistana, o genealogista Pedro Taques relata, não sem certo constrangimento dois casos notáveis daquele século. O primeiro, Brás Esteves Leme, "não casou, porém teve 14 filhos bastardos, havidos em diversas mulheres oriundas do gentio da terra, a que no Brasil se diz mamelucos". Outro exemplo notável é o de Pedro Vaz de Barros, conhecido entre suas centenas de subordinados indígenas como Vaz-Guaçu, que teve nove filhos bastardos com diversas mulheres indígenas. 17 Estes casos particulares, que chegaram a exercer uma enorme influência nas zonas rurais que ocupavam, demonstram que as relações entre conquistadores e conquistados, 16 MONTEIRO,]. M. A escravidão indígena e o problema da identidade étnica em São Paulo colonial. Ciências Sociais Hoje. Quadro 2, 1990. 17 Paes Leme, Nobiliarquia, 3:50 e 3 :206; este autor afirma que possuía um documento no qual constava que Vaz de Barros "tinha mais de mil e duzentos índios e índias, além da sua família ... ".

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entre senhores e escravos, se revestiam de ambigüidade, que propiciava confundirem-se as relações de exploração com os laços de parentesco.

MAMELUCOS, BASTARDOS ECARIJÓS Com certeza, a realidade de uma sociedade fortemente miscigenada, na qual a bastardia sempre ocorreu em grande escala, entrelaçava senhores e índios numa relação social fugidia, sempre encoberta pelas malhas da dominação. Em certo sentido, desde cedo a distância social entre índios e brancos em São Paulo fora pequena, pois mesmo os maiores proprietários, aqueles que inclusive se consideravam a nobreza da terra, enfrentavam dificuldades em esconder traços de ascendência indígena em sua genealogia. 18 Neste sentido, com a evolução da escravidão, a proximidade étnica cedia lugar a distinções baseadas em posição social e nas relações de produção, que permaneciam importantes para a maioria dos senhores de escravos índios. Uma primeira aproximação à sociedade mestiça pode ser feita através da terminologia empregada na documentação da época. 19 Ao longo do século XVII, a escravidão indígena produziu um vocabulário rico e variado, sendo este testemunho não apenas da diversidade étnica, racial e ocupacional da população local, como também do complexo processo histórico envolvido em sua formação. De modo geral, devido às restrições legais ao cativeiro indígena, os colonos procuravam evitar utilizar termos como escravo ou cativo, embora ambos apareçam tanto em correspondência particular quanto em documentação pública. Até os últimos anos do século XVII, o vocábulo preferido para aludir aos índios era "negro da terra", sendo que este cedeu lugar a outras denominações 18 A respeito da formação de uma identidade nobre entre os paulistas, intrinsecamente vinculada às origens e evolução de uma "mitologia" bandeirante, ver ABUD, K. M. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições (A construção de um símbolo paulista: o bandeirante). São Paulo, 1985. Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, 1985; ver também SCHWARTZ, S. The formation of a colonial identity in Brazil. In: CANNY, N., PADGEN, A. (Org.) Colonial Identity in the Atlantic World. Princeton: Princeton University Press, 1987. p.15-55. 19 Os parágrafos que se seguem reproduzem, com pequenas modificações, a discussão publicada em "Escravidão indígena e identidade étnica". Para uma definição sintética dos termos aqui abordados, veja-se o Quadro 1, no referido artigo.

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em decorrência da crescente presença de africanos nos plantéis paulistas. Assim, surgiram expressões como "gentio do cabelo corre di o", "administrados", "servos", "pardos" e, finalmente, "carijós". Este último termo, de certo modo, sintetiza a experiência indígena na região, explicando muito sobre o processo de transformação dessa população. 20 Originalmente, isto é, desde meados do século XVI, o etnônimo Carijó referia-se aos Guarani em geral. Até 1640, a sociedade paulista foi profundamente marcada pela chegada de um constante fluxo de cativos guaranis, provenientes sobretudo do Sertão dos Patos e do Guairá. A partir dessa data, no entanto, o fornecimento de cativos guarani sofreu um declínio abrupto, devido à resistência indígena e jesuítica. Como solução para esta crise no abastecimento de mãode-obra, os paulistas passaram a reorientar suas expedições de apresamento, introduzindo em São Paulo cativos das mais diversas origens. É curiosa, portanto, a adoção do termo Carijó para designar a população cativa neste contexto de heterogeneidade étnica, presente em uma fase bem posterior à diminuição do fluxo de cativos guarani. Contudo, faz sentido. Afinal de contas, o elevado volume de cativos guarani introduzidos antes de 1640- atingindo, talvez, cinqüenta mil indivíduos -, havia deixado marcas indeléveis na composição social da capitania. De fato, no início do século XVIII, o termo já deixara de ter uma conotação guarani, passando a expressar o conceito de índio subordinado. Assim, na carta de liberdade passada a favor de Maria Carijó, de Sorocaba, em 1722, esta aparece como "Carijó da nação dos Vargis". 21 Portanto, carijó passava a adquirir um sentido genérico, associado diretamente à escravidão indígena. Um outro exemplo: no testamento de Margarida da Silva, foi concedida a liberdade a 20 Vale frisar que a difusão do termo Carijó tem criado certa confusão etnográfica, sobretudo quando aparece como etnônimo nas regiões de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Na verdade, a presença de Carijós naquelas regiões associavase à expansão paulista durante o primeiro quartel do século XVIII. Os colonos vieram acompanhados por numerosos escravos indígenas, chamados carijós para diferenciá-los dos escravos africanos, estes presentes em número cada vez maior. 21 Carta de Liberdade a Maria Carijó, 30.9.1722. Livros de notas de Sorocaba (Manuscr.). Arquivo do Estado de São Paulo (doravante AESP).

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Catarina, enquanto o marido e filhos dela "correrão o foro dos mais carijós". 22 Em suma, o enquadramento da população cativa numa categoria étnica padronizada representava muito mais do que uma política conscientemente assumida pela camada senhorial ou um simples exercício semântico; tratava-se antes de todo um processo histórico que envolvia a transformação de índios e escravos. Nota-se, na terminologia referente à população de origem mista, semelhante preocupação. Dois termos, freqüentemente tidos como sinônimos, na verdade expressavam uma diferença crítica: mamaluco e bastardo. 23 Embora, no contexto da época, tanto um quanto o outro descrevessem a prole de pai branco e mãe indígena, no caso dos mamalucos, os pais reconheciam publicamente a paternidade. Por conseguinte, os mamalucos gozavam da liberdade plena e aproximavam-se da identidade portuguesa, ao passo que os bastardos permaneciam vinculados ao segmento indígena da população, seguindo a condição materna. Já no século XVIII, o termo mamaluco caiu em desuso, enquanto bastardo passava a designar, genericamente, qualquer um de ascendência indígena. Assim, no censo de 1765, o bairro de Pari foi descrito como um reduto de bastardos. 24 Se a terminologia apontava para uma desintegração - ou, no caso do conceito carijó, reconstituição - da identidade indígena, também assinalava a constante preocupação com os rumos do processo de colonização. Muito antes de as teses evolucionistas 22 Testamento de Margarida da Silva, 1726. Inventários, ex. 28. AESP (Manuscr.). 23 O debate sobre as origens do termo Mamaluco é antigo; alguns (inclusive os jesuítas espanhóis do século XVII) o associam aos mamluks (mamelucos) do Egito, os escravos-guerreiros dos séculos XV e XVI. Contudo, na documentação paulista, a palavra invariavelmente é grafada como mamaluco, o que levou Sérgio Buarque de Holanda a optar por esta versão a partir de Caminhos e fronteiras. Já um glossário português-tupi do século XVII classifica o termo como palavra de origem tupi. Vocabulário da língua brasílica. Biblioteca Municipal de São Paulo, ms. A 4. Ver também a análise lingüística de Plínio Ayrosa: mameluco é termo árabe ou tupi? Revista do Arquivo Municipal, v.1, p.21-4, 1934. 24 Outros termos do final do século XVII apontaram para a crescente heterogeneidade da população paulista. Na década de 1680, aparecem pela primeira vez os termos caboclo e curiboca, referentes a filhos tanto de uniões branco-indígena quanto de africano-indígena. Já os termos cabra e pardo tinham sentidos variados.

ÍNDIOS E MAMELUCOS EM SÃO PAULO: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA

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reformularem as avaliações da mestiçagem colonial, o que preocupava os colonos e as autoridades coloniais era a assimilação e desaparecimento dos antecedentes indígenas; antes, não era a indigenização dos colonos. Um observador português que realizou uma inspeção das capitanias do Sul, no final do século XVII, colocou nestes termos: o que só digo é que carece muito aquelas Capitanias deste mesmo gentio quer liberto quer cativo porque sem eles nem Vossa Majestade terá minas nem nenhum outro fruto daquelas terras por ser tal propriedade daquela gente [isto é, os paulistas], que o que não tem gentio para o servir vive como gentio sem casa mais que de palha sem cama mais que uma rede, sem ofício nem fábrica mais que canoa, linhas, anzóis e flechas, armas com que vivem para se sustentarem e de tudo o mais são esquecidos, sem apetite de honras para a estimação nem aumento de casas para a conservação dos filhos ... 21

Não obstante esta opinião, a escravidão produziu constantemente situações que demonstravam a proximidade entre brancos e índios, diluída pela existência de uma larga camada de pessoas de condição incerta. O testamento de Antonio Nunes revela um detalhe bastante interessante nesse sentido: "Declaro que tenho um moço do gentio da terra da minha obrigação que é meu tio, irmão de minha mãe, casado com uma índia da aldeia e assim por bons serviços que me tem feito ... o deixo forro e livre". 26 Outra senhora observou no seu testamento que um dos índios de sua posse não devia entrar nas partilhas, visto que seu filho Antonio Varejão "resgatou ao mulato Polinário com seu dinheiro por ser seu irmão"Y Numa situação igualmente bizarra, também envolvendo irmãos, uma tal de Domingas Mamaluca reivindicou sua liberdade perante a justiça, afirmando que fora seu próprio irmão- que herdou do pai de ambos

25 LOPES DE CARVALHO, B. Manifesto a Sua Majestade. Biblioteca da Ajuda, s.d. cód. 51-IX-33, fls. 370-373v (Manuscr.). 26 Testamento de Antonio Nunes, 1643. Inventários e testamentos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1920-1977. v.38, p.19. 27 Testamento de Catarina de Mendonça, 1671. Inventários, 12, AESP (Manuscr.). O termo mulato, neste caso, refere-se ao filho de pai africano e mãe indígena.

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- quem a havia vendido a um terceiro. Este, por sua vez, réu no litígio, achou-se injustiçado, porque "é uso e costume destas capitanias desde que se começaram a povoar comprar e vender gente de sua administração". 28 Com certeza, ao longo dos séculos XVI e XVII, as intensas relações entre os portugueses da Capitania de São Vicente e os grupos nativos da fronteira espanhola desembocaram na construção de uma sociedade marcada pela escravidão indígena. Neste processo, a mestiçagem teve um papel complexo, porém ambíguo: se, por um lado, refletia um movimento de adaptação de mão-dupla, envolvendo tanto portugueses quanto guarani, por outro, contribuiu para a expansão de uma população de condição incerta, situada entre a escravidão e a liberdade. Esta ambigüidade se expressava de modo contundente no caso dos mamalucos, que ora se integravam às camadas mais abastadas de exploradores do trabalho nativo, ora engrossavam as fileiras dos pobres e despossuídos. É importante ressaltar que, no primeiro caso, havia um distanciamento nítido do passado indígena, enquanto, no segundo, o mestiço identificava-se com os fortes traços indígenas desses extratos da população. Ao passo que o sertanismo paulista desarticulou e destruiu inúmeras populações nativas na fronteira luso-espanhola, a mestiçagem lusoindígena criou condições para a rearticulação e preservação de um passado indígena no cerne das populações reconstituídas que formavam a base de uma nova sociedade colonial.

28 Domingas Mamaluca vs. Pe. Bernardo de Quadros. Itu, 1700, Autos Cíveis, cx.2, doc. 28. AESP (Manuscr.).

3 HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DA ESCRAVIDÃO E DA ABOLIÇÃO EM SÃO PAULO

MARIA HELENA PEREIRA TOLEDO MACHADO*

Embora um pouco surpreendentemente, os estudos sobre a escravidão ficaram, durante largo período da história do Brasil, relegados ao nicho acadêmico e às filigranas dos especialistas. Tratava-se, entre outras justificativas para o abandono de um tema fundante de nossa história social, de priorizar a constituição do perfil capitalista e da feição do operariado nacional e de suas lutas. Apenas nos anos mais recentes, a sociedade brasileira, na figura de seus estudiosos da história, da cultura afro-brasileira e de militantes dos movimentos negros, tem discutido, em termos sociológicos e políticos, o legado histórico da escravidão e suas seqüelas na sociedade brasileira. Desde 1988, ano do centenário da Abolição, questões relativas à representatividade histórica da Abolição e do processo abolicionista e o próprio significado histórico da instituição escravista no Brasil vêm sendo colocados em pauta, procurando-se, desta feita, confrontar os estudos especializados com o debate político, abrindo, finalmente, espaço para o descarte de uma história mistificadora. Sem dúvida, o Centenário da Abolição marcou um momento '' FFLCH- USP.

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importante na historiografia brasileira, pois colocou em relevo um tema central ao estudo da conformação da sociedade brasileira. Do ponto de vista acadêmico o saldo foi extremamente positivo: surgiram numerosas publicações - entre monografias originais, reedições de clássicos, coletâneas de textos e números especiais de revistas -, e foram realizados diversos congressos e simpósios de alto nível. Enfim, foi amplamente demonstrado que o estudo da escravidão representa uma das áreas dinâmicas da atual historiografia brasileira. 1 Os temas tratados mais recentemente pela historiografia referemse, em primeiro lugar, à reconstituição da escravidão em termos de sua dinâmica interna, isto é, o esforço dos historiadores concentrase em retirar a instituição escravista dos modelos explicativos, derivados ou não do marxismo, insuflando-lhe as cores do processo histórico em sua complexidade e mutabilidade. Em outras palavras, a tendência historiográfica mais atual preocupa-se com a recuperação da historicidade e da dinâmica social, sobretudo com a crítica à reificação/vitimização do escravo. A reavaliação de conceitos como o de autonomia, resistência e acomodação permitem a recuperação da figura do escravo como ator histórico e representa, neste sentido, o primeiro passo para a reconstituição da escravidão na formação social brasileira. 2 Em segundo lugar, surgem os temas relativos à articulação destas análises renovadas aos processos políticos mais amplos, especialmente aos da Abolição, conformação da nação e da cidadania, sempre em torno dos temas da raça e do binômio integração/ exclusão. Assim, um segundo feixe de questões referese à necessária articulação destas análises novas aos processos políticos mais amplos. Sublinha-se especialmente o processo da Abolição, entendido como momento histórico paradigmático dos caminhos e descaminhos trilhados pelo país em sua busca de definir um projeto político nacional, delimitar um corpo de cidadãos e se Remeto à minha intervenção no balanço historiográfico sobre o centenário da Abolição: Revista Resgate, n.1, p.109-10, 1990. 2 Ver artigo de minha autoria: Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social da escravidão. Revista Brasileira de História (São Paulo), v.16, p.143-60, 1988.

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colocar como parceiro subsidiário e dependente no jogo das nações capitalistas desde fins do século XIX e inícios do XX. Assim, a questão da "modernização" e de seus entraves e limites num país colonial e escravocrata emerge de maneira muito clara, dificultando, de certa forma, a articulação entre as visões voltadas para a dinâmica interna do sistema escravista e do escravo e os grandes problemas políticos que acompanharam organicamente a existência da escravidão no país. Aqui, é como se as duas perspectivas fossem incompatíveis, referindo-se a universos distintos. A necessária renovação dos estudos do processo político nacional dependem, no entanto, da integração ao corpo tradicional de questões atinentes a este gênero historiográfico- tal como a análise do processo partidário-parlamentar, do jogo político, das ideologias e ideários das elites, entre outros - os novos atores políticos, tais como escravos, libertos etc., enfim, os extratos sociais mantidos à parte do jogo político formal, deslindando os mecanismos e mediações através dos quais estes setores participaram e influíram na definição do jogo político. 3 No entanto, os estudos relativos ao processo da Abolição ainda carecem de uma visão historiográfica mais abrangente e de pesquisas capazes de propiciar a reconstituição mais completa dos movimentos abolicionistas em suas inter-relações aos projetos políticos conservadores ou reformistas a estes subjacentes. O resultado disto é que as análises a respeito do processo político que viabilizou a superação da escravidão, sobretudo a partir de 1850, estabelecem zonas de obscuridade, que têm alimentado hipóteses historiográficas muitas vezes mais coerentes com os modelos interpretativos vigentes do que com a pesquisa documental que, neste tema, ainda engatinha. Assim, por exemplo, temos os modelos explicativos da Abolição que se baseiam nas determinações estruturais da transição do trabalho escravo para o livre e que enxergaram, na ação modernizadora das camadas urbanas, a liderança de um processo no qual o escravo, conduzido paternalmente à liberdade, marca 3

O desenvolvimento da argumentação desta parte do artigo está baseado no livro de minha autoria: O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da Abolição. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, São Paulo: Edusp, 1994. cap.4 e 5.

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presença apenas como objeto. Confrontando-se com a tendência acima descrita, e fazendo a justa crítica ao reducionismo que delimitava a Abolição apenas como uma questão de elites e os escravos como vítimas, alguns historiadores procuraram valorizar o peso da rebeldia escrava como fator determinante na extinção da escravidão. No entanto, o resultado desta mudança de ponto de vista - em si mesma extremamente útil no desvendamento de uma realidade histórica nova -, é descaracterizar o movimento abolicionista, apontando-o como querela de elites, diante da qual se desenrolava o verdadeiro processo histórico, isto é, aquele que se forjava na base, ao arrepio da história "oficial" dos bem-pensantes. Desta forma, apesar das aparências, o abolicionismo não teria sido um movimento popular genuíno, mas apenas uma manipulação conservadora das elites interessadas em manter o processo histórico sob seu comando. 4 Um primeiro passo para a real renovação das análises acima expostas é aprofundar a pesquisa documental, entrecruzando dados provenientes de fontes até agora consideradas incompatíveis, quais sejam, as derivadas da escravidão/abolicionismo e das lutas sociais populares. Aproximações entre as lutas abolicionistas e os nascentes movimentos operários, o extravasamento das inquietações políticas e sociais relativas ao papel do trabalhador livre num país escravocrata," a crescente onda de imigrantes e idéias provenientes da Europa, que passaram a chegar ao país nas últimas décadas do século XIX, são todos temas que estiveram presentes no movimento abolicionista, que se caracterizou muito mais como uma frente ampla de idéias e tendências muito variadas do que um movimento monolítico, monopolizado por um setor bem determinado das elites políticas cafeeiras. Realidade bem diferente, por sinal, delineia-se a partir de trabalho documental mais rigoroso: assumindo um tom popular e participativo, o movimento abolicionista conquistou "corações e mentes" das populações urbanas do Sudeste, construindo um estilo 4 A enumeração das obras destas diferentes correntes e suas particularidades seria bastante longa; remeto à discussão de CARDOSO, C. F. A Abolição como problema histórico e historiográfico. In: Escravidão e Abolição no Brasil. Novas Perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p.74-110.

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político que transgredia o figurino da condução da "coisa pública" no Brasil. Colocando na boca do povo as cisões entre as elites econômicas e bem-pensantes, a campanha abolicionista mostrou ser um marco da cisão irreparável entre os condutores dos destinos do Império. Desta forma compreende-se por que foram os abolicionistas acusados indistintamente de subversivos. Acusados aleatoriamente de liberais, socialistas, anarquistas, petroleiros, niilistas, entre outros epítetos, foram os abolicionistas, muitas vezes, tratados por seus inimigos como um grupo coeso, sugerindo a conivência de gente como Nabuco com a atuação política de deserdados como o marinheim Russinho ou o preto forro Pio 5 fato este que reflete a penetração esparsa e assistemática de idéias importadas do exterior que passavam a fluir num meio urbano que se abria para o exterior, num período histórico anterior àquele que a historiografia costuma considerar. Apesar da imprecisão das acusações lançadas contra os militantes abolicionistas e, sobretudo, contra a figura de seus líderes, sempre preocupados em afirmar o respeito às regras políticas e à legalidade, esta aparente confusão ideológica não foi provocada apenas pela má-fé dos escravocratas empedernidos, mas indica a quebra dos códigos de convivência política das elites do Império que haviam sempre restringido suas diferenças aos estreitos círculos do poder instituído, colocando-as em praça pública e na boca do povo. Lembro aqui o trabalho de R. Bergstresser, que, ao refazer a trajetória política das associações corporativas-abolicionistas da Corte, levanta a possibilidade da participação dos extratos mais radicais do movimento abolicionista nas insurreições de escravos nas fazendas. 6 Neste quadro geral relativo ao Sudeste, ressalta a escravidão negra em São Paulo. De feição tardia, uma vez que a utilização do trabalho indígena preponderou até o século XVIII/ encontrou esta seu paradigma histórico ou seu modelo explicativo, por assim dizer, apenas no desenrolar do século XIX. Vinculada aos interesses açucareiros e 5 MACHADO, M. H. op. cit., cap.5. 6 BERGSTRESSER, R. B. The Movement for the Abolition of Slavery in Rio de Janeiro, Brazil, 1880-1889. 1973, Tese (Ph.D.) Stanford University. cap.IY. 7 MONTEIRO, J. Negros da terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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depois preponderantemente cafeeiros, a província se transformou num importante centro de defesa da escravidão e laboratório das possíveis soluções para sua superação. A antiga celeuma historiográfica que opunha um vale do Paraíba aristocrático e paternalista, portanto mais escravista, ao Oeste paulista de espírito empreendedor e, portanto, burguês e imigrantista, parece já bastante relativizada. O extremo apego com que os fazendeiros do Oeste paulista, do velho e do novo, se aferraram à escravidão parece estar já bem documentado. As fontes policiais por si só demonstram terem sido estas áreas as de mais alto índice de concentração de mão-de-obra adventícia, produto do tráfico interno, e concomitantemente dos mais altos índices de violência, tanto da parte dos escravos quanto da sociedade circundante, contra advogados abolicionistas, simpatizantes da causa, forros e escravos revoltosos e indisciplinados. Ora, de fato, a elite cafeeira das zonas florescentes do Oeste Novo clamava por uma solução conservadora para a crise de braços, de forma alguma negando a necessidade de superação da escravidão (que, por sinal, colocou-se como realidade consensual a partir de 1850 ou 1870). A questão fundamental se torna saber como, quem lucrará, que setores se capacitarão para atravessar o delicado período da transição com os recursos suficientes, em termos de amparo do Estado, financiamento da imigração e controle e disciplina da mãode-obra. Neste sentido, a elite paulista, engajada no republicanismo, assumiu uma postura dúbia, que oscilou entre a opacidade com relação ao movimento abolicionista e um abolicionismo conservador. Recentemente a dissertação de mestrado de Cássia Aducci, a respeito do movimento separatista Paulistada de 1887, mostrou como, na conjuntura de fins do Império, estas elites se utilizavam da ameaça do perigo do federalismo extremado e do separatismo propriamente dito para cavar seu espaço no processo de carreamento de recursos necessários para a concretização do processo de transição sem sobressaltos. H Porém, não devemos nos esquecer de que o processo abolicionista 8 ADUCCI, C. C. A pátria paulista: O separatismo como resposta à crise final do Império brasileiro. São Paulo, 1996. Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Ciências Sociais, PUC-SP.

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em São Paulo foi marcado por forte pressão popular, por intensa movimentação dos escravos, pelo aumento da criminalidade escrava, pelas revoltas, pela crescente atuação abolicionista de caráter jurídico, na forma das ações de liberdade, na qual se notabilizou Luiz Gama. Embora existente em São Paulo desde fins da década de 1860, a luta de caráter jurídico ainda não foi plenamente considerada pelos historiadores de São Paulo. O que se pode observar, no entanto, é que, dada a precocidade do abolicionismo militante em São Paulo, foi esta localidade pioneira no desenvolvimento das estratégias que claramente conduziram as fases posteriores da luta abolicionista. Notase que, para o Rio de Janeiro, o estudo de Chalhoub aponta para a importância deste tipo de intervenção. 9 A agitação abolicionista paulista sediada em São Paulo e em Santos, liderada pelo movimento dos caifazes e por um abolicionismo mesclado ao republicanismo popular no caso de Santos, mostra que as novas idéias que entrariam em profusão no Brasil poucos anos depois, ligadas aos movimentos operários, anarquismos e socialismos, já se insinuavam nos fins do século na figura de viajantes, estrangeiros e militantes. Pesquisando a vida destes personagens, perseguindo suas trajetórias sempre obscuras, procurei determinar o nexo entre movimentos internacionais e movimento abolicionista, tarefa que, dadas as dificuldades na localização da documentação, se manteve inconclusa, à espera de novas fontes que aclarem o assunto. Ressalto que, apesar da falta de conclusões mais definitivas, possuímos alguns indícios que confirmam as nossas suspeitas. Como, por exemplo, a exposição de Paul Harro-Harring, "Esboços tropicais do Brasil", cujos desenhos foram originalmente realizados no Brasil na década de 1840, esclarece que havia sido o gravurista um militante do movimento abolicionista internacional que viajara ao Brasil a mando do jornalAfrican Colonizer, de orientação abolicionista, com incumbência de observar as condições de vida dos negros no Brasil e escrever artigos sobre os horrores da escravidão. Engajado nas grandes revoluções da primeira metade do século XIX na Europa, em 1830 em Paris, na invasão da Savóia com o revolucionário 9 CHALHOB, S. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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Mazzini, nos distúrbios de 1848, Harro-Harring ilustra um tipo de militante que pode ter sido mais comum do que supomos até agora, pelo menos para o século XIX e para a militância abolicionista. 10 De fato, setores diferentes do abolicionismo defrontaram com o amplo leque de opções políticas, ideológicas e raciais que marcaram a segunda metade do século XIX - socialismo, anarquismo, republicanismo, teorias do darwinismo social, evolucionismo monogenista cristão. Em seu livro recente, Das cores do silêncio, Hebe M. M. de Castro documentou o importante desdobramento das ações e atitudes da elite paulista, com suas alforrias em massa e contratos de trabalho com libertos, inclusive com as tentativas de estabelecimento de contratos de meação e parceria para a colheita de 88, nos comportamentos dos fazendeiros fluminenses e mineiros muito menos capitalizados. Enquanto nas áreas mais pujantes de São Paulo a solução imigrantista se impôs, para as áreas de retaguarda a reordenação das relações de trabalho, sociais e jurídicas permitiram a incorporação do elemento nacional -os "treze de maio", entre outros- no trabalho das fazendas. 11 Apesar da dimensão política e econômica da transição do trabalho escravo para o livre, a movimentação dos escravos não pode ser desconsiderada. Pelo contrário, seria esta a chave para a compreensão do desenvolvimento da crise do escravismo em São Paulo. De feição predominantemente banto e, depois de 50, crioula, a população escrava em São Paulo passou por todo um processo de engendramento de uma comunidade escrava e de luta pela determinação das condições de trabalho, no cativeiro propriamente dito, e nas situações intermediárias do status liber. Aqui se observa a importância da jurisprudência sobre a escravidão na definição das regras que os libertandos tinham que considerar em suas estratégias de resistência. Na ausência de um Code Nair, e considerando-se o Código Criminal de 1830, de caráter liberal, a Lei Especial de 1835 e a Lei de 1870, que consolidava definitivamente a intervenção

10 Instituto Moreira Salles. Esboços tropicais do Brasil. São Paulo, 1996 (catálogo da exposição). 11 CASTRO, H. M. M. de. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no Sudeste escravista- Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

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do Estado nas relações escravistas, conclui-se que os juristas passaram a ter um papel cada vez mais importante na definição do direito das partes e do próprio ser escravo. Voltando à comunidade escrava de São Paulo, ressalta-se a especificidade da escravidão urbana paulistana - estudada por Maria Cristina Wis~enbach 12 -,que praticamente desapareceu no alvorecer da década de 1880. Questões como a atuação jurídica, o ambiente de solidariedade e participação popular que se estabeleceu na cidade desde meados da década de 1870, associados ao tráfico intraprovincial que no avançar desses anos deslocou os contingentes de escravos urbanos para as fazendas, condicionaram a extinção "precoce" da escravidão na cidade. Ao mesmo tempo, a presença de comunidades de africanos livres e de escravos forros, que circulavam mais ou menos livremente pelas ruas, associada à militância dos abolicionistas, que mobilizava redes de solidariedade e proteção junto à população, foram fatores que atraíram levas crescentes de escravos fugidos, produzindo uma dinâmica social peculiar à transição na cidade. Em Santos, a estratégia abolicionista e a formação do Quilombo do Jabaquara, entre outros fatores, despejaram na cidade uma mão-deobra desenraizada que acabou entrando no mercado de trabalho de forma muito tangencial, na estiva, nos transportes, nos pequenos serviços e no comércio de rua. No alvorecer da República estes mesmos exescravos, libertos do Treze de Maio, dirigidos por Quintino de Lacerda, foram negociados como mão-de-obra temporária nos trabalhos do porto, como fura-greves nos primeiros movimentos paredistas que se desenrolaram em Santos. Chamados de "krumiros", foram eles profundamente hostilizados pelo nascente movimento operário. 13 Nas áreas cafeeiras, conforme já indiquei, o processo de transição acabou por produzir fortes movimentos de organização e revolta de escravos com a conformação de uma comunidade de interesses.

12 WISSENBACH, M. C. C. Sonhos africanos, vivências ladinas. Escravos e forros no município de São Paulo, 1850-1880. São Paulo, 1989. Dissertação (Mestrado) -Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, USP. 13 GITAHY, M. Porto de Santos, 1888-1908. In: PRADO, A. A. (Org.) Libertários no Brasil. Memórias, lutas e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986; e MATOS, P. Santos libertária. Imprensa e movimento operário na "Barcelona brasileira", 1879-1920. Santos, 1986. (inéd.)

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Bem expressas nas insistentes reivindicações dos grupos de cativos, poderíamos conceituá-las como a luta pelos direitos dos escravos como escravos, isto é, a autonomia na organização do tempo livre, a manutenção das roças, o estabelecimento de um código informal de regras disciplinares que regimentassem o trabalho no eito, a remuneração pelo trabalho feito a mais ou nos dias livres etc .... As condições históricas peculiares à instituição escravista do Sudeste cafeeiro nas décadas que precederam à Abolição ofereceram, também, a oportunidade para o florescimento de seitas capazes de organizar grupos religiosos, conformando uma espiritualidade comum, um universo de trocas sociais próprias. Em seu conjunto, estes fatores forneceram as bases para a eclosão das ondas de revoltas de escravos que abalaram as províncias cafeeiras a partir da década de 1950. Nota-se que a movimentação escrava descrita em O plano e o pânico poderia ser explicada, até certo ponto, como eco da formação de uma comunidade afro-brasileira: pan-banto, bem descrita por Slenes em "Malungu, ngoma vem!". 14 Ressalte-se que esta mesma corrente de movimentos de escravos desdobrou-se, nos anos que imediatamente precederam e sucederam a extinção da escravidão, em movimentos messiânicos entre as populações livres pobres, mestiças ou não. 15 Ora, a conjugação destes fatores - o reordenamento político das elites paulistas, os movimentos abolicionistas e as revoltas de escravos - fizeram parte de um amplo painel de transformações sociais que caracterizaram a década de 1880 no Sudeste, de forma explosiva. No entanto, a solução republicano-imigrantista, de viés paulista, se sobrepôs aos outros modelos interpretativos, configurando o paradigma historiográfico da Abolição, como solução conservadora da vitoriosa elite paulista. Cabe-nos fazer a crítica desse modelo, abrindo a cena para os movimentos populares, de escravos ou livres, inscrevendo a história da escravidão e de sua superação na história dos nossos movimentos populares e de luta pela cidadania. 14 SLENES, R. Malungu, ngoma vem! África coberta e descoberta do Brasil. Revista da USP (São Paulo), n.12, p.48-67, 1991-1992. 15 TRINDADE, L. M. S. A crise do sistema escravocrata e as interpretações místicas da realidade social. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (São Paulo), n.30, p.61-70, 1989.

4 A IDÉIA DE SÃO PAULO COMO FORMADOR DO BRASIL

KATIA MARIA ABUD*

A mitologia bandeirante compõe uma parte essencial da memória coletiva paulista. O bandeirantismo heroifica o cotidiano duro do homem de São Paulo e impõe-lhe valores importantes para a manutenção do poder da burguesia paulista, que se alimenta dessa mitologia para elaborar sua própria imagem, criando uma alegoria da igualdade dos paulistas, pois se não fisicamente, moralmente somos todos originários dos desbravadores do sertão, conquistadores de terras, civilizadores dos índios e realizadores da unidade territorial do país. O imaginário bandeirista composto pela memória coletiva da sociedade paulista atribui tais qualidades à entidade bandeirante, que representa ao mesmo tempo aquela sociedade e cada paulista em particular. Suas representações estão presentes no dia-a-dia dos habitantes. Percorre-se a Avenida dos Bandeirantes, viaja-se pela Raposo Tavares e pela Fernão Dias. Os bandeirantes dão seus nomes a escolas, associações esportivas, clubes. A capital do Estado está pontilhada por monumentos em sua homenagem, desde o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, de Vítor Brecheret, ao kitsch da estátua de Borba Gato, na antiga Estrada de Santo Amaro. *

FE- USP.

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KATIA MARIA ABUD

Os citados aqui são exemplos que podem ser multiplicados às centenas. Essas imagens penetram na consciência coletiva, constituindo grande parte do imaginário paulista e dando a todos a mesma identidade. Promovem uma forma de apreensão da História, pois o "passado não existe senão no imaginário do presente", se considerarmos que a disciplina é uma construção intelectual e que o passado é passado, definitivamente findo. Não tem mais existência real, dele nos ficam alguns restos, dos quais dependerá, em parte, sua reconstrução, que será levada a efeito pelo trabalho do pesquisador que sobre eles se debruçará. Mas, quaisquer que sejam os restos do passado e o rigor metodológico do historiador, a História será sempre tributária do presente. 1 A imagem do Bandeirante representa por excelência a entidade paulista que se tornou símbolo de bravura, arrojo, integridade, progresso, superioridade racial e, até mesmo democracia. Essa imagem foi construída por historiadores, que produziram um conhecimento que fundamentou a crônica popular e que faz parte de nossa memória coletiva, pois como afirma Pierre Vilar, queiramos ou não, a história oficial cria a memória coletiva. 2 Ao recuperarem a figura histórica do bandeirante, os historiadores formaram um conjunto de símbolos, que os paulistas utilizaram ao enfrentar questões que lhes foram peculiares ao longo de sua história. O bandeirante teve seus primeiros contornos históricos delineados no século XVIII, nos escritos de dois historiadores daquele período: Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques de Almeida Paes Leme. Representantes do setor privilegiado da sociedade colonial, os dois autores defendiam os antigos habitantes da cidade de São Paulo contra a ameaça que representavam os recém-chegados reinóis, que abandonavam as regiões da minas. A região aurífera entrara em decadência e um número considerável de europeus, de lá egressos, SEGAL, B. Périodisation et didactique: !e "Moyen Âge" comme obstacle à l'intelligence des origines de l'Occident. In: Périodes: La construction du temps historique. Paris: Edition de l'École des Hautes Études en Sciences Soei ales et Histoire au Present, s.d. 2 VILAR, P. Iniciación a! vocabulário de! análisis histórico. Barcelona: Grijalbo, 1980.

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procurou São Paulo. Com um pequeno capital procuravam se estabelecer como comerciantes e/ou tropeiros. Enriqueciam e passavam a ameaçar o poder até então exercido pela antiga elite. A localização geográfica da cidade de São Paulo permitiu que aqui se instalasse um verdadeiro entreposto comercial, pois era caminho das tropas que vinham do sul, ponto de partida de caravanas comerciais que levavam para Goiás e Mato Grosso os produtos europeus que chegavam ao Porto de Santos. Tropeiros e comerciantes, na segunda metade do século XVIII, deram início a famílias que futuramente tiveram importância na vida política e cultural de São Paulo. Esse grupo ascendente passou a ocupar cargos importantes na Câmara de Vereança, a ter as mais altas patentes militares e, sobretudo, a ter em suas mãos os mais altos postos do poder metropolitano. Com isso, substituíram os antigos paulistas nos órgãos de mando e prestígio, pois com uma relativa acumulação de riqueza puderam tirar a pecha que, segundo as Ordenações portuguesas, os manchava como comerciantes de loja aberta, vendeiros, oficiais mecânicos e outras atividades aviltantes e os impedia de entrar no rol dos "homens bons". Nesse jogo pelo poder entraram como representantes do seu grupo, o dos antigos paulistas, Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques de Almeida Paes Leme. Aparentados entre si, estes dois paulistas da antiga estirpe buscaram nos seus escritos o engrandecimento de seus antepassados. Pedro Taques, em sua Nobiliarquia, 3 procurou demonstrar que os paulistas de antiga cepa eram originários da pequena nobreza portuguesa. Não há, nos títulos da genealogia de Taques que chegaram até nós, família paulista que não tivesse entre seus patriarcas, pelo menos um fidalgo, do Porto, de Coimbra, de Flandres ... O próprio título que deu à sua obra mostra sua predisposição para com seus pares, "pois, o orgulho de casta é o que mais o distingue; só tratou dos "homens bons", isto é, dos integrantes da camada superior, cujo "sangue limpo" e profissões dignas lhes permitiam aspirar ao cargo de vereador". 4 Pode-se

3 LEME, P. T. de A. P. Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica. S.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1980. 4 QUEIROZ, M. I. P. de. Ufanismo paulista. Revista da USP (São Paulo), n.13, p.7887, mar. -abr. -maio 1992.

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acrescentar que não só a vereança estava sob a mira dos integrantes das famílias mais antigas de São Paulo. Essas famílias que compunham, pela ótica da sociedade colonial e, principalmente pela ótica de uma organização social atípica como a paulistana, o estamento nobiliárquico, pretendiam todos os cargos de poder na pequena Cidade de São Paulo de Piratininga. Pretendiam as altas patentes das Companhias de Ordenanças e os cargos de representação do poder metropolitano, como os de cobrança de impostos e tributos, além dos postos na Câmara. O lugar da antiga elite era ameaçado pelos reinóis. Isto explica a ênfase dada nas obras de Pedro Taques na valorização de seu próprio estamento: representava a reação dos autóctones contra aqueles recémchegados das minas, que representavam uma ameaça à sua supremacia em todas as instâncias que representavam o poder. A nobilitação dos paulistas que Taques estabelece não diz respeito somente à sua origem familiar, pois deixava de ser nobre quem exercesse ofício mecânico ou tivesse provada a impureza de sangue. Mas, o genealogista vai mais longe, ao atribuir aos antigos paulistas, conquistas territoriais e feitos militares, realizados nos dois primeiros séculos de colonização. Segundo Luís da Silva Pereira Oliveira,5 o primeiro valor a ser considerado na nobilitação era a realização de grandes feitos militares. A valentia na guerra demonstrava um valor pessoal e hereditário capaz de justificar a elevação ao estamento da nobreza e aos privilégios que esta concedia aos seus membros. Para nobilitar seus ancestrais, Pedro Taques recupera os "sertanistas", os "chefes de tropa", os "capitães", os "paulistas" que tinham conquistado índios, territórios e descoberto as minas de ouro e que, por isso, podiam viver como nobres, senhores de "muitos arcos". Viver como nobres não significava apenas, ter riquezas materiais como as que o genealogista descreve ao narrar a vida de alguns personagens do século XVII, mas inclui valores e comportamentos próprios, chegam a identificar os seiscentistas de São Paulo com a cavalaria medieval. Frei Gaspar da Madre de Deus em suas Memórias 6 preocupa-se 5 OLIVEIRA, L. da S. P. Privilégios da nobreza e fidalguia de Portugal. Lisboa: Nova Oficina de João Rodrigues Neves, 1806. 6 MADRE DE DEUS, G. da. Memórias para a história da Capitania de São Vicente. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1975.

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em defender os paulistas das graves acusações que lançaram sobre eles os jesuítas espanhóis, especialmente Montoya, um dos principais responsáveis pela criação de legenda negra do bandeirismo. Em seu libelo em defesa dos paulistas, o frade beneditino exprime sua admiração pelos feitos de mamelucos, que segundo ele, tinham desafiado uma natureza brutal, enfrentado febres, chuvas inclementes e as feras da floresta. Tinham passado fome, frio, mas tinham realizado seus intentos. Isto teria sido possível porque eram homens que uniam as qualidades do europeu e do índio. Sua resistência e sua inteligência eram produtos da miscigenação das duas raças. A descrição que Frei Gaspar fez de seus conterrâneos deve ter chegado até Saint-Hilaire, pois, embora usando de outras palavras, SaintHilaire fez dos habitantes de São Paulo a mesma descrição e, aproveitando-se dela, cunhou a expressão "raça de gigantes". Os dois cronistas, Taques e Frei Gaspar, contemporâneos e primos, representando o grupo social a que pertenciam e em defesa dele contra ameaças de natureza diferente, estabeleceram as primeiras imagens do bandeirante simbólico, ainda esboçadas, mas que permitiram uma rápida recuperação quando, mais uma vez, interesses da elite paulista foram ameaçados. Se, durante quase todo o século XIX, São Paulo tinha tido pouca importância na vida econômica e política do Império, no último quartel do século a expansão do café haveria de transformá-lo numa de suas mais promissoras regiões brasileiras. Mas, sua força política não correspondia à sua pujança econômica e este fato provocava ressentimentos entre os paulistas, principalmente em sua elite política. A participação no movimento republicano guindou as lideranças paulistas ao centro do poder, onde pensavam implantar como projeto político, uma federação que, acreditavam, permitiria maior desenvolvimento aos Estados (ao de São Paulo, mais ainda, naturalmente). A autonomia estadual implicava também um projeto de hegemonia, que deveria, é claro, caber ao Estado que sustentava economicamente a nação. 7 Nesse quadro, a predominância na vida política do país, que São 7 Ver LOVE, J.A locomotiva. São Paulo na Federação: 1899-1922. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

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Paulo reivindicava, entre 1890 e 1930, era explicada não só pelo progresso e riqueza do Estado mas também porque São Paulo sempre fora a região que tinha levado a frente a expansão do Brasil e desde o início da colonização ampliara o território, forjando a unidade do país, enriquecera a Metrópole com o ouro que seus desbravadores tinham encontrado e levado a civilização para os mais distantes rincões da América, que eles mesmos tinham tornado portuguesa. Mais ainda, São Paulo tinha sabido manter sua independência em relação às ordens metropolitanas, conforme acreditavam os paulistas, a ponto de serem considerados rebeldes o suficiente para que cronistas coloniais falassem numa República de Piratininga ... A riqueza e o progresso de São Paulo podiam então ser considerados como conseqüência de sua própria história. Se São Paulo ocupava naquele momento uma situação privilegiada era porque seus homens carregavam uma tradição de arrojo e vitalidade, que haviam herdado dos primeiros povoadores da Capitania de São Vicente. Assim, para os paulistas havia razões de sobra para que São Paulo exercesse a hegemonia na Federação que então se formava. Tudo isso se sintetizava numa figura histórica: o bandeirante. A opção pelo bandeirante não foi aleatória. Toda uma produção intelectual referendava a escolha. Frei Gaspar e Pedro Taques foram tirados do esquecimento a que tinham sido relegados durante a maior parte do século XIX e inspiraram historiadores que se empenharam na recuperação da História de São Paulo, no período que consideraram sua "Idade de Ouro": o seiscentismo, época em que o bandeirismo foi preponderante na Capitania de São Vicente. Três historiadores podem ser considerados autores matrizes no tema: Alfredo Ellis Jr., Affonso d'Escragnolle Taunay e Alcântara Machado. Três intelectuais que pertenciam, por nascimento ou casamento à elite de São Paulo e que se detiveram a investigar, cada um deles por caminhos próprios, a História do Bandeirante. Alfredo Ellis ]r. segue caminhos traçados por Frei Gaspar da Madre de Deus, e em suas obras indica claramente a formação, em São Paulo, de uma sub-raça superior, a sub-raça planaltina, formada pelo cruzamento do europeu com o indígena. Inspirado em autores europeus, como Gobineau e Lapouge, cujas obras procuravam demonstrar as diferenças raciais e a superioridade de uma sobre

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as outras, Ellis Jr. vira pelo avesso a teoria de seus inspiradores. Baseado em pesquisas documentais sobre famílias paulistas do século XVII, ele percebeu que tinham proles numerosas, ao contrário do que, supunha ele, acontecia às famílias do Nordeste canavieiro, onde havia predominado a miscigenação entre o branco europeu e o africano. Sem tecer considerações a respeito da documentação - os filhos de escravas negras eram registrados como seus filhos, independentemente de quem fosse o pai - Ellis Jr. concluiu que os dados de fertilidade demonstravam que o cruzamento entre brancos e negros era híbrido, com uma taxa de fertilidade muito baixa, ao contrário do que acontecia com o fruto das uniões entre brancos e índios, que era muito numeroso. Daí, sua classificação racial dos paulistas, que pertenceriam a uma sub-raça superior, a sub-raça planaltina. 8 Tal idéia sobre a superioridade racial dos paulistas da época colonial aparece também em Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana Alcântara Machado em sua obra magistral, Vida e morte do bandeirante/ olhou o sertanista por um outro viés. Fundamentado nos inventários e testamentos de paulistas do século XVII, esse autor procurou desmontar as informações de Pedro Taques sobre as riquezas dos paulistas do seiscentismo. Os bens legados nos inventários e testamentos mostravam um paulista rústico, pobre, cujos valores - e aí sim, ele retomou Taques -o aproximavam da nobreza medieval: frugal, honrado, cavaleiro, homem de palavra e valentia, temente a Deus. A morada paulista se assemelhava aos conventos: camas eram raríssimas, quase que havia somente catres, poucos instrumentos para a lavoura, pratos e talheres de madeira, panelas de barro, tudo produzido na terra. Uma sociedade tão pobre que até roupas que vinham do reino eram considerados bens valiosos e disputados como herança. Levavam uma vida social mais do que reservada, muito ao contrário do Nordeste luxuoso (ao contrário ainda, da vida contemporânea a Alcântara Machado, ELLIS Jr., A. Os primeiros troncos paulistas e o cruzamento euro-americano. São Paulo: Editora Nacional, 1936. (Biblioteca Pedagógica Brasileira, série 5', Brasiliana, 59). 9 ALCÂNTARA MACHADO. Vida e morte do bandeirante. 3.ed. São Paulo: Martins, 1959. 8

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vivida sobretudo no Rio de Janeiro). O livro constrói o paulista como o homem que conquista a riqueza, mas que a despreza, pode muito bem passar sem ela e sem o luxo e conforto que dela advém. A riqueza que o paulista conquistara deveria servir para o bem de todos. Taunay fez do paulista do século XVII o grande desbravador dos sertões brasileiros. Graças a ele deu-se a unidade territorial do país e a descoberta das riquezas, que deram a Portugal um grande tesouro. Esse autor, rigoroso na pesquisa e cansativo na leitura, reconstituiu as rotas seguidas pelas grandes bandeiras e em sua grande obra sobre as bandeiras paulistas 10 deu aos capítulos os nomes dos chefes das bandeiras que considerou mais importantes. Também Taunay destaca o destemor com que os paulistas enfrentavam os obstáculos do sertão desconhecido, mas este sertão parece ser a sua maior preocupação, ao descrevê-lo em pormenores. Os três autores produziram obras históricas, fundamentados em fontes documentais, concretas, não forjadas, e cada um deles enfatizou um aspecto da figura do bandeirante: Ellis Jr. sua superioridade racial; Alcântara Machado o lado sério e circunspecto do paulista responsável, respeitador da palavra dada, que exigia o mesmo tratamento para si; Taunay apontou para o aspecto de desbravador, condutor do progresso e povoador. Seus livros foram escritos na década de 1920 (Taunay iniciou a coleção de onze volumes nessa década e terminou de publicá-la em 1953), quando São Paulo reivindicava participação majoritária nos destinos do país, considerando que era o maior produtor de principal produto exportador do Brasil: o café. Fizeram escola, tiveram inúmeros seguidores que auxiliaram na tarefa de consolidar a imagem do paulista, que interessava à elite política estadual, da qual a maioria dos intelectuais fazia parte. Ellis Jr. foi deputado, Alcântara Machado participou do Senado estadual e Taunay, se não tinha uma participação direta, deve-se lembrar, era casado com uma Sousa Queirós e concunhado de Washington Luís, maior defensor, talvez o último, dos grandes cafeicultores paulistas. Washington Luís 10 TAUNAY, A. d'E. História geral das bandeiras. São Paulo: Melhoramentos, 19241953. 11v.

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também incursionou pela História paulista e deixou uma pequena obra escrita. Foi o responsável pela publicação de séries documentais e, durante sua gestão como prefeito, organizou o arquivo histórico da cidade. A imagem bandeirista representava, por um lado, a lealdade ao Estado de São Paulo, na medida em que procurava ressaltar qualidade de caráter e personalidade que o paulista do século XX, o bandeirante do século XX, que abria frentes agrícolas dentro e fora do Estado, se atribuía a si próprio. Permitia ainda, com a significação que os estudos históricos lhes deram, a integração de uma parcela numericamente importante da população de São Paulo, que era constituída de imigrantes, que haviam assimilado a valorização do trabalho e a construção do progresso do Estado, como uma característica de seus habitantes. Por outro lado, os aspectos de elemento integrador e instrumento da ação civilizatória que a historiografia atribuía ao bandeirante, representavam também a lealdade devida à. nação que ele mesmo tinha construído, ligando suas mais longínquas regiões entre si, levando para ela os aportes da "civilização ocidental", como a língua portuguesa, o cristianismo, estabelecendo o mito da unidade não só territorial, mas também cultural. A imagem do bandeirante que os historiadores criaram foi veiculada pelos meios de comunicação, pelo ensino e passou a fazer parte da memória coletiva de São Paulo e de outras regiões, integradas às possessões coloniais portuguesas pelas expedições paulistas, como Goiás e Mato Grosso. Pascoal Moreira Cabral e Anhanguera pertencem ao imaginário coletivo daqueles Estados. O bandeirante como elemento do imaginário tornou-se, na história de São Paulo, uma figura recorrente nos momentos conflituosos, como elemento da nacionalidade, fosse paulista ou brasileira. Enquanto imagem de integrador e conquistador nacional do Brasil serviu até aos interesses do governo getulista, quando este incentivou a "Marcha para o oeste". Cassiano Ricardo, o ideólogo do Estado Novo, procurou e, num artigo precioso, pelo que tem de tendencioso, descreve a organização estadonovista que tinham as bandeiras paulistas, num apelo velado ao povo de São Paulo para que se identificasse com o governo central. A imagem do

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bandeirante como elo unificador da nação brasileira teve força também durante a Revolução de 32, no chamado aos outros Estados para participarem da luta ao lado de São Paulo. Mas recorreu-se também a simbologia bandeirante como fator de lealdade à nacionalidade paulista. Os separatistas paulistas lembraram-se dele em várias ocasiões, inclusive durante o conflito de 32, quando publicaram três números de um jornal, por cujo expediente respondiam como diretores, secretários, bandeirantes de primeira linha como Raposo Tavares, Fernão Dias Paes, Borba Gato, entre outros. As matérias publicadas relatavam casos famosos da história das bandeiras, como a ameaça de Anhanguera de atear fogo aos rios, ou a busca das esmeraldas empreendida por Fernão Dias. O bandeirante mantém até hoje sua força como símbolo paulista, por excelência. Continua sendo bandeirante todo aquele que trabalha pela grandeza de São Paulo, independente de origem nacional, de etnia ou grupo cultural, sem distinção de classe. O símbolo incorporou os desígnios do promissor (sempre promissor) futuro paulista, mostrando-se digno dos seus ancestrais, vindos nas caravelas de Martim Afonso e depois, andarilho dos sertões brasileiros.

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No pensamento político brasileiro a questão nacional tem uma história que remonta pelo menos ao final do século XVIII, época em que se adensaram os movimentos de contestação ao domínio metropolitano. Entretanto, foi a partir da Abolição da Escravatura e da Proclamação da República que se tornou urgente a construção de laços de pertencimento capazes de difundir um sentimento de brasilidade que agregasse todos os cidadãos em torno da nação brasileira. A emergência dessa problemática no cenário brasileiro coincidiu com a feroz disputa entre as potências industriais pela hegemonia econômica mundial. Em nome da unidade, soberania e grandeza da nação, os Estados, autoproclamados guardiães dos ideais nacionais, justificavam suas ações em prol da extensão das fronteiras, do domínio e exploração de áreas coloniais, da obtenção de concessões, privilégios e monopólios em regiões periféricas, da política armamentista, do incremento e da defesa da produção nacional, além de exigirem, de todos os cidadãos, fidelidade e lealdade primeiro em relação à pátria.

* UNESP - Assis.

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Este contexto atuava no sentido de consagrar as análises que apresentavam a nação como uma categoria naturalizada, dotada de concretude, ainda que pouco permeável às definições objetivas. Aceitando o estatuto ontológico da nação, os intelectuais brasileiros do início do século XX partiram à procura dos fundamentos, características e especificidades da "nação brasileira". Percorreram a história, a geografia, a literatura, a gramática e a filologia; estudaram a composição étnica da população, a organização econômica e social, as instituições políticas, o sistema educacional e de saúde, a produção cultural - enfim, todos os aspectos que consideraram relevantes para explicar a "realidade nacional". Positivismo, determinismo, evolucionismo, social darwinismo: esse o instrumental analítico que orgulhosamente ostentavam e ao qual atribuíam a capacidade de revelar, quando habilmente manejados, a verdadeira face do país. Esta produção pode ser analisada a partir dos 113 números da Revista do Brasil, mensário publicado em São Paulo que circulou ininterruptamente entre janeiro de 1916 e março de 1925, e que constituiu um dos principais periódicos de caráter cultural do país. Na revista, manancial ainda pouco explorado pelos historiadores, escreveram os mais importantes intelectuais e homens de letras do período. Os diagnósticos produzidos nessa ampla releitura, que se pretendiam investidos de uma legitimidade então conferida apenas pelo adjetivo científico, traziam, muitas vezes, a marca do desalento. Tendo tomado por guia paradigmas que consagravam noções deterministas de raça e meio, vários pensadores mostravam-se céticos em relação à permeabilidade à civilização de uma região tropical recém-saída da escravidão. Desprovido de uma história gloriosa, com grandes extensões de terras ainda intocadas, habitado por uma população escassa e estigmatizada pela presença de sangue de índios e negros, então considerados inferiores, o país parecia fadado a permanecer alijado do concerto das grandes nações. Proliferaram então discursos nos quais o Brasil interessava não pelo que era, mas pelo que poderia vir a ser. Para descrever esse país novo, em infância, segundo o linguajar da época, e que não dispusera ainda de tempo suficiente para se transformar em uma

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verdadeira nação, recorria-se a metáforas que insistiam na idéia de indefinição, desequilíbrio, agitação, instabilidade, desordem, ebulição, tumulto, considerados típicas de um período de formação. Daí o sucesso das representações que tomavam o Brasil como um edifício em projeto, ou quando muito em construção, um imenso laboratório ou oficina na qual a nação estava sendo forjada. Para esse pensamento, acostumado a conceber o mundo natural e social por meio de escalas temporais, era tentador atribuir as dificuldades enfrentadas ao nosso estágio de desenvolvimento. Juventude, nesta perspectiva, representava possibilidade de escolha, oportunidade de produzir uma síntese original e forte, despojada dos erros cometidos pelas velhas nações. A crença na imaturidade dava margem a um julgamento condescendente do presente e postergava, com tranqüila confiança, a solução de todos os males para um futuro, naturalmente não datado. Muitos, porém, não partilhavam desse otimismo por considerarem que o país se desviara da rota que conduzia aos umbrais da modernidade. No final da década de 1920 a análise do pensador Alberto Torres, datada de 1902, continuava a ser repetida: "este Estado não é uma nacionalidade, este país não é uma sociedade, esta gente não é um povo. Nossos homens não são cidadãos" .1 Entretanto, longe de se limitar a uma atitude contemplativa, a intelectualidade ansiava por influir nos destinos do país, apontar caminhos, forjar políticas de ação. Por se considerarem, nos termos de Mannheim, os únicos capazes de interpretar corretamente o mundo, parecia-lhes evidente que apenas eles dispunham da competência necessária para (re}colocar o país em sintonia com os seus "verdadeiros valores". Essa vocação para conduzir os negócios públicos, de inspiração iluminista, encontra-se manifesta nos diagnósticos, explicações, sínteses, balanços, propostas e projetos que elaboraram. O estudo desse vasto material, passível de ser feito a partir da Revista do Brasil, revelou que os pensadores brasileiros do período viram-se na contingência de relativizar e reinterpretar os TORRES, A. A organização nacional. 2.ed. São Paulo: Editora Nacional, 1933. p.297.

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instrumentos analíticos importados de outros climas a fim de viabilizar um amanhã promissor para o país. Nessa busca de positividade, a vastidão do território insuflava o orgulho nacional. Entretanto, os homens e mulheres da época, não satisfeitos em exaltar a grandeza do país, procuraram transformálo no maior do mundo. Difundiu-se a idéia de que nenhuma outra nação superava o Brasil em termos de extensão contínua de terras habitadas por um povo que falava a mesma língua e compartilhava as mesmas tradições culturais. 2 Para tornar ainda mais honrosa a posse de tal patrimônio, jornais, revistas, livros didáticos~ ensaísticos não cessavam de louvar a localização privilegiada do país, a fertilidade de suas terras, a amenidade do seu clima, a exuberância das suas matas, a beleza de suas praias, os inúmeros portos seguros de sua costa, a força de suas cachoeiras, a imensidão dos seus rios ... Afinal, como perguntava retoricamente um educador do período, "Que outro país há com tantas riquezas acumuladas, à espera do homem que as explore? ... A natureza se esmerou em dotá-lo de todas as opulências e fascinações dos seus inexauríveis tesouros". 3 Para explicar a conquista e a manutenção do espaço nacional alguns invocavam a graça divina, 4 enquanto a maioria se esforçava por enfatizar a ação humana. De fato, o território ensejava uma possibilidade de recuperação positiva do passado. Este estava longe de fornecer uma visão reconfortante, pois, além de não poder evocar um tempo imemorial, povoado de heróis e glórias, era responsabilizado pelas chagas do presente, encaradas como ingrata herança de mais de três séculos de dominação portuguesa. 5 Um profundo abismo separava a História da Geografia, saberes considerados estratégicos para a formação de uma consciência nacional. 2 Nesse sentido, ver: LOBO, H. Brasil, potência mundial. RBR, v.20, n.78, p.99100, jun. 1922, e VIANNA, V. Brasil, maior país da terra. RBR, v.19, n.76, p.358, abr. 1922. 3 DÓRIA, S. Pátria. RBR, v.7, n.27, p.237-8, mar. 1918. 4 Para uma interpretação nesse sentido ver: CAMARGO, A. A missão da nacionalidade. RBR, v.4, n.l3, p.99, jan. 1917. 5 Uma síntese da visão negativa, então corrente, acerca do período colonial, pode ser encontrada em SEVERO, R. A arte tradicional no Brasil. RBR, v.4, n.16, p.396-7, abr. 1917.

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Enquanto a linguagem da Geografia era grandiosa e compatível com o papel que se lhe atribuía, a da História era reticente e insistia nas mazelas e desacertos, deixando poucas possibilidades para uma comunhão imediata com as "nossas tradições". Abriu-se então um debate apaixonado a respeito da História e seus métodos, que extrapolou o círculo restrito dos especialistas para tornar-se uma questão crucial para quem quer que se importasse com os destinos da nação. Muitos passaram a criticar as interpretações correntes, sugerindo receitas para colocá-las na direção correta. Denunciavam especialmente a forma pouco patriótica, desentusiasmada e pessimista que sempre teria orientado a reconstrução do nosso passado, fato que, segundo argumentavam, acabou por inibir o despertar do orgulho de ser brasileiro. 6 Essa exigência em relação aos resultados da produção historiográfica, que deveria ser colocada a serviço da nação, não parecia incompatível com a "verdade histórica". Segundo os parâmetros da época, a cientificidade era garantida pela reunião cuidadosa e transcrição fidedigna dos documentos, visão que não deixava espaço para questionamentos a respeito nem do relativismo dos testemunhos, nem dos conceitos e modelos teóricos que guiavam o olhar do pesquisador. Porém, era preciso apresentar um conjunto coerente e verossímil de feitos históricos capaz de levar o indivíduo comum a ufanar-se de ser seu herdeiro e guardião; noutros termos, tínhamos que inventar as nossas tradições. 7 Coube à Geografia propiciar essa oportunidade. O discurso sobre o território forneceu a moldura capaz de reenquandrar o passado, extirpando-lhe tensões e ambigüidades que obstavam à sua utilização na construção da identidade. Num caminho até certo ponto peculiar, a produção do espaço nacional ocupou o centro da cena, subordinando a História, que passou a ser encarada como narrativa dos grandes feitos que 6 De acordo com PRADO, A. Francisco Adolpho Varnhagen. RBR, v.1, n.2, p.150, fev. 1916; PINTO, A. A. O culto do passado e o centenário da Independência. RBR, v.6, n.23, p.432, no v. 1917; VIANNA, V. A lenda do acaso no descobrimento do Brasil. RBR, v.9, n.35, p.372, nov. 1918. 7 HOBSBAWM, E. J., RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p.9-23 e 273-91.

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asseguraram, apesar de todas as adversidades, a posse da terra. Diante da crescente importância assumida pela configuração do território, não surpreende que o trabalho mais festejado no Primeiro Congresso de História Nacional realizado na cidade do Rio de Janeiro em 1914, tivesse sido "Expansão geográfica do Brasil até fins do século XVII", de Basílio de Magalhães, obra que foi laureada com a Medalha de Ouro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 8 No novo contexto, certos episódios da história brasileira, assim como seus protagonistas, ganharam especial relevo: a expulsão dos holandeses; a derrota de todos os movimentos de cunho separatista; a Guerra do Paraguai e, acima de todos, as bandeiras, expedições particulares que do século XVI ao XVIII partiram de São Paulo em direção ao interior com o objetivo de apresar índios e descobrir ouro. O trabalho de definição territorial do Brasil passou a ser apresentado como resultado exclusivo da ação dos bandeirantes, que teriam deslocado o eixo da população do litoral para os confins do sertão. 9 No início do século XX a publicação, sob o patrocínio da prefeitura de São Paulo, de vários volumes de documentos primários a respeito da história da cidade e a multiplicação dos estudos a respeito das bandeiras caminharam paralelamente à difusão de uma imagem mitificada dos bandeirantes e contribuíram poderosamente para tornála verossímil. Essas expedições passaram a ocupar o status de acontecimento fundador, a partir do que se iniciava a narração de como o nação foi produzida e começou a existir. O discurso extravasava os limites da territorialidade para fixarse nos componentes espirituais da nação, patentes nas considerações tecidas por um destacado historiador da época que elegeu São Paulo como o lugar onde foi "criada a nova alma da terra, consubstanciando o vigor das duas raças aliadas, e fazendo-se assim 8 A monografia foi publicada em 1915 pela Imprensa Nacional e premiada em 1917. Foi reeditada várias vezes. 9 Essa ênfase na ação dos bandeirantes, sem dúvida excessiva, pode ser encontrada em: POMBO, R. São Paulo e suas grandes legendas. RBR, v.2, n.7, p.275, jul. 1916; SILVA, H. O gado vacum no Brasil. RBR, v.l, n.S, p.393-4, ago. 1916; PIRES, Pe. H. D. J. V RBR, v.11, n.43, p.242, mar. 1917; TAUNAY, A. d'E. São Paulo no século XVI. RBR, v.6, n.21, p.l18, set. 1917; MACHADO, A. Testamento do bandeirante. RBR, v.22, n.87, p.217-29, mar. 1923.

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capaz de assumir a direção da corrente que se instalaria nesse lado do Atlântico. Estúrdia e agitada, a nova alma toma decididamente o seu papel, e escreve na história do Novo Mundo a página mais brilhante, ampliando a conquista até os Andes". 10 Por essa via de abordagem, era possível restituir ao período colonial, normalmente caracterizado como uma época obscura na qual o país foi espoliado por uma metrópole decadente, uma positividade que lhe vinha sendo sistematicamente negada. Afinal, foi durante estes séculos que os habitantes de São Paulo se embrenharam pelas matas, assegurando para o Brasil a posse de um território de dimensões continentais. Bandeirante, ou seja, desbravador, destemido, altivo, determinado, independente, leal, líder inato, vai se tornando sinônimo de paulista, numa identificação que transferia toda a carga simbólica do termo aos filhos de São Paulo, que nele se reconheciam como herdeiros, guardiães e lídimos continuadores dos feitos gloriosos de seus . antepassados. 11 O mesmo movimento que revalorizava o passado colonial também assegurava para São Paulo um destaque histórico até então inusitado. O Estado, berço dos bandeirantes, passou a ser considerado "a terra onde se passaram os grandes sucessos mais característicos da nossa vida de povo. Dir-se-ia que o destino teve com a terra paulista o capricho de reservar-lhe essa fortuna de ser na América portuguesa o teatro em que se haviam de representar as cenas mais significativas do nosso drama nacional"Y Desde os seus primórdios, a nacionalidade teria sido uma obra

10 POMBO, R., op. cit., p.275. 11 Para exemplificar esse processo de mitificação ver, além dos textos indicados na nota 8, os seguintes artigos: LOBO, H. A defesa da nacionalidade na história colonial brasileira. RBR, v.7, n.28, p.408, abr. 1918; LOBO FILHO, R. J. H. A conquista do sertão. RBR, v.25, n.100, p.297, abr. 1924; VIANNA, V. A geografia no Brasil. RBR, v.8, n.29, p.87, maio 1918 e especialmente MESQUITA FILHO, J. A comunhão paulista. RBR, v.21, n.84, p.375-6, dez. 1922. 12 POMBO, R., op. cit., p.272. O interesse pela história de São Paulo fica patente nas páginas da RBR, periódico que abriu espaço tanto para numerosos artigos de historiadores contemporâneos quanto para trabalhos clássicos, como a primeira tradução da parte histórica e descritiva da obra do francês Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias de São Paulo e Santa Catarina.

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paulista, uma vez que de São Paulo partiram as bandeiras, em São Paulo foi proclamada a Independência e desde o final do século XIX, com a cultura cafeeira, nenhuma outra região do país contribuía tanto quanto São Paulo para a prosperidade do país. Estabelecia-se uma linha de continuidade que afirmava a supremacia do Estado desde os tempos coloniais até os anos 20. O papel político e econômico secundário ocupado pela região em séculos anteriores pode então ser interpretado como conseqüência do espírito de luta dos paulistas, que primeiro construíram a nação, comprometendo nessa empreitada a sua própria existência, para depois se ocuparem dos próprios interesses, atitude digna de verdadeiros heróis épicos. 13 A posse do território deixava de ser encarada como dádiva para assumir o caráter de um esforço conscientemente encetado pelos nossos antepassados. Se antes a percepção positiva era exclusividade do futuro, agora esta podia, graças à via geográfica, ser estendida ao passado. Cristalizava-se a tendência, esboçada desde a Independência, de identificar espaço e nação. Os méritos da conquista territorial não eram atribuídos a todos os brasileiros, mas tão-somente aos paulistas. Como proclamou um escritor em 1923, "seria injustiça gritante, despeito inominável e evidentemente inútil a negação da primazia de São Paulo na construção da nacionalidade contemporânea" .14 Note-se que o referido orgulho, tão bem expresso na divisa do brasão de armas da cidade, escolhido em 1917 por concurso público, NÃO SOU CONDUZIDO, CONDUZO, reforçava o ímpeto missionário da elite local que narcisamente esperava que o país tivesse a sua própria imagem. Esta construção histórica, longe de ser neutra ou descompromissada, atuava no sentido de não só explicar e justificar a riqueza e a supremacia econômica então desfrutada por São Paulo, como também de legitimar as suas pretensões de conduzir politicamente o país. Instaurou-se uma forte identificação entre a 13 Nesse sentido, ver: FERRAZ, B. São Paulo e o despovoamento de Minas. RBR, v.26, n.107, p.262-3, nov. 1924. 14 CORRÊA JÚNIOR. A colmeia. RBR, v.24, n.96, p.373, dez. 1923. Para opinião semelhante ver o artigo, de responsabilidade da redação da revista: As armas de São Paulo. RBR, v.2, n.8, p.386, ago. 1916.

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história de São Paulo e a história nacional, 15 sobreposição que ainda ecoa na prática historiográfica brasileira, que segue classificando de regional a história de qualquer parte do país, exceto a paulista. 1" Entretanto, um período em que cada palmo do planeta estava sendo acirradamente disputado, temia-se que a posse apenas nominal de grandes extensões de terras não fosse suficiente para manter as potências imperialistas afastadas. Era urgente superar a atitude passiva que se comprazia em louvar as potencialidades de um espaço que na prática permanecia mal conhecido, pouco explorado e praticamente deserto. Determinar com segurança as fronteiras, 17 mapear os recursos naturais, aproveitar a fertilidade do solo e a energia dos rios, estas as tarefas que se impunham para concretizar as decantadas riquezas nacionais. Aqui, ainda uma vez, a Geografia aparecia como o saber apto a instrumentalizar a ação. Porém Geografia, nesse contexto, era mais do que a simples enumeração e descrição da superfície do planeta e de seus habitantes - ela era tomada na nova acepção que, no

15 "As três ordens de fatores a que tenho me referido [fundação da cidade de São Paulo, as bandeiras e a Independência] constituem por assim dizer a espinha dorsal da história do Brasil, que, nas linhas matrizes de sua estrutura, quase se pode dizer que é a projeção em maior escala da história de São Paulo". PINTO, A. O centenário da independência. RBR, v.1, n.1, p.15, jan. 1916. 16 "Como a formação da burguesia, seu crescimento e suas contradições centralizaram-se mais expressivamente no Estado de São Paulo, a história da burguesia paulista tornou-se hegemônica a ponto de se identificar com a história da burguesia nacional, ocupando espaço também hegemônico na reflexão histórica ... O que desejamos afirmar é que, rejeitando ou não a ideologia do modelo paulista, os historiadores necessitam pesquisá-lo e compreendê-lo como centro dinâmico do capitalismo brasileiro, que, por isso mesmo, se torna o sujeito subjacente a todas as análises de caráter regional". JANOTTI, M. de L. M. Historiografia, uma questão regional? São Paulo no período republicano, um exemplo. In: SILVA, M. (Org.) República em migalhas. São Paulo: Marco Zero, Brasília: CNPq, 1990. p.95. 17 "Em 1922, ano do centenário da Independência, estimava-se que, da linha de contorno do Brasil, cerca de 11.000 km, 45% estavam demarcadas, 40% apenas fixadas e 15% ainda dependiam de determinações, o que nos tornava um país de "confins mal conhecidos, com as suas terras de fronteira longe dos centros de população, e, algumas vezes, em regiões agrestes e inóspitas, de que temos notícia por exploração de há séculos e mais". VASCONCELOS, M. de. O contorno terrestre do Brasil. RBR, v.20, n.79, p.196, jul. 1922.

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decorrer do século XIX, Ritter, Humboldt e Ratzel lhe deram: um saber unitário e sistematizado que problematizava a interação homem-natureza. O conhecimento geográfico, elemento estratégico para o progresso da nação, passou a ser encarado como guia eficiente e seguro que deveria nortear a elaboração de políticas públicas. Em conclusão, podemos afirmar que as dimensões do território forneceram os elementos iniciais para uma descrição ufanista a respeito do país. A partir dessa perspectiva espacial foi possível efetuar uma leitura da História que apresentava tal posse como fruto de um esforço coletivo e não de simples fatalidade ou acaso. Consagrou-se uma leitura do passado feita segundo as coordenadas traçadas pela Geografia, que assim ultrapassava a mera contemplação e impunha seu viés à memória. Mais ainda, graças à nova roupagem que o saber geográfico assumiu no decorrer do século XIX, ele também pode apresentar um conjunto de princípios e propostas para a ação, um instrumental aceito como eficaz para concretizar as virtualidades da terra. Neste processo a Nação acabou por ser apresentada como resultado do esforço dos paulistas, num trabalho de consagração que ofuscava os demais componentes da federação. A História foi convocada a testemunhar a favor de São Paulo, que tinha - e ainda tem- sua proeminência econômica e suas intenções políticas legitimadas pelos ecos do passado. A Revista do Brasil constitui uma fonte privilegiada para acompanhar a trajetória desta construção de caráter ideológico e excludente, que ainda conserva parte de seu poder de sedução.

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Um dos aspectos mais significativos da vida cultural de São Paulo, da última década do século passado às duas ou três primeiras do atual, talvez seja o esforço desenvolvido pela intelectualidade para construir uma identidade paulista. Identidade que se traduziu em uma rede de representações simbólicas destinada à consagração da tradição regional, para a qual contribuíram, de maneira decisiva, tanto a historiografia quanto a literatura, amalgamadas num composto designado, pelos próprios autores da época, como de letras históricas. A bibliografia que se refere ao assunto, quase sempre de passagem, detém-se, via de regra, na análise do regionalismo e das ideologias sobre a identidade nacional para explicar o significado dessas representações. Desse ângulo de visão, os trabalhos sobre o tema privilegiam os aspectos institucionais, sociais e ideológicos, subjacentes à criação da simbologia histórica paulista, procurando demonstrar sua origem pela ação conjugada do Estado e da intelectualidade, e revelar os propósitos políticos que a conduziram. Sendo assim, ela seria o suporte ideológico indispensável para a ascensão política de São Paulo na federação, como também *

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representaria uma auto-imagem, otimista e presunçosa, das elites recentes, sobretudo vinculadas à cafeicultura. Nada mais, nada menos. Como todas as ideologias nacionais ou regionais, como todas as invenções de tradições, as representações simbólicas de São Paulo, edificadas no período mencionado, estariam, nesse modo de ver, inscritas no campo dos mitos e do falseamento do real, portanto oposto à história em sentido verdadeiro. 1 De acordo com esse raciocínio, realiza-se um corte que separa as letras históricas, prevalecentes no começo do século, da produção cultural posterior, desenvolvida pela historiografia profissional e pela literatura modernista. As primeiras tendem a ser vistas como responsáveis pela criação de um rol de mitos, tradições e preconceitos, simplificado pela assim chamada mitologia bandeirante. As segundas são elogiadas por terem lançado as bases de uma análise histórica menos provinciana e mais aproximada do real, conforme os métodos e teorias científicos, assim como de uma ficção de molde cosmopolita, sustentada pelos recursos das vanguardas artísticas. Com isso, são desqualificados os conteúdos, as formas peculiares de imaginação e representação da historiografia e da literatura paulistas, do início do século, bem como incompreendidas as rupturas e, quem sabe, as sutis continuidades entre os dois modelos de produção cultural. A propósito, não seria equivocado dirigir a tal tipo de interpretação a crítica que Stephen Bann2 fez ao livro organizado por E. Hobsbawn1 & T. Ranger -A invenção das tradições (1987) -,obra que inspirou um enorme número de trabalhos sobre outras tradições inventadas,

Ver, por exemplo, os trabalhos de LEITE, D. M. O caráter nacional brasileiro. 4.ed. São Paulo: Pioneira, 1983. LOVE, J. A locomotiva: São Paulo na Federação brasileira: 1899-1922. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (18701930). São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ABUD, K. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições (a construção de um símbolo paulista: o bandeirante). São Paulo, 1985. Tese (Doutoramento)- Universidade de São Paulo, entre outros. 2 BANN, S. As invenções da história: ensaios sobre a representação do passado. São Paulo: Editora UNESP, 1994. 3 HOBSBAWN, E., RANGER, T. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

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em várias partes do mundo. Divergindo da estratégia perseguida pelos colaboradores da obra, o historiador inglês argumenta que implícita está, na abordagem adotada por eles, a noção de invenção da tradição como uma espécie de falsa consciência. Nas palavras do autor: "ela teria sido inventada, no sentido pejorativo do termo, quer dizer, saiu do nada para servir a propósitos estritamente funcionais ... Contra essa tradição inventada, ou história falsificada, o discurso dos colaboradores situa-se evidentemente como história no sentido adequado: a história que discrimina magistralmente entre o que está certo e o que está errado". 4 Para o tratamento das formas de representação do passado, anteriores à moderna historiografia, Stephen Bann sugere, como cautela, posturas menos prescritivas. É o que pretendo fazer aqui, ao comentar a produção historiográfica e literária paulista do início do século, cujo resultado foi a construção de um modelo integrado de representações do passado regional, de' enorme alcance e influência por muito tempo. Chamá-lo de modelo épico significa conceber o discurso historiográfico como conjunto de enunciados pré-figurados de maneira imaginativa, como tem demonstrado Hayden White 5 em seus estudos. Embora seja possível recuar ao século XVII para encontrar, como diz K. Abud, uma "prato-história do bandeirante", 6 a grande safra de representações históricas sobre São Paulo inicia-se no final do século XIX, alcançando seu apogeu nas duas primeiras décadas do atual. Tal produção, na sua quase totalidade, teve como núcleo o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, fundado em 1894 por membros notórios da elite política e intelectual de São Paulo, na sua maioria republicanos, abastados e ligados às profissões liberais. Historiadores e escritores, simultaneamente, muitos deles também foram responsáveis pela fundação da Academia Paulista de Letras, em 1909, voltada para o incremento das letras regionais. 4 BANN, S., op. cit., 1994, p.20. 5 WHITE, H. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1992. _ _ _ _ .Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994. 6 ABUD, K., op. cit.

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O instituto paulista seguiu de perto o modelo organizativo do seu congênere instalado no Rio de Janeiro em 1838, e, como aquele, manteve estreitas relações com o poder político constituído, neste caso, com o governo estadual, em sua fase republicana e de proeminência política na federação. Tal como sua matriz, e reproduzindo a prática das academias surgidas na Europa no final do século XVII - assim como de resto fariam os demais institutos estaduais no Brasil -, a agremiação paulista recrutou seus sócios principalmente pelo critério das relações sociais. Além disso, professou uma filosofia da história semelhante à aceita pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, destinando ao conhecimento histórico a função de contribuir para o engrandecimento da nacionalidade, pelo viés regional. Auto-incubidos de papel civilizatório e herdeiros do iluminismo, os sócios da agremiação ainda se inspiraram no evolucionismo e nas teses sociais darwinistas, correntes no período, para levar adiante seu trabalho. Aplicam-se ao caso do instituto paulista, nas suas orientações gerais, as observações de M. L. S. Guimarães a respeito do papel desempenhado pela historiografia do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: "O conhecimento histórico adquiriu um sentido garantidor e legitimador para decisões de natureza política ... A concepção de história partilhada pela instituição guarda um nítido sentido teleológico, conferindo ao historiador, através do seu ofício, um papel central na condução dos rumos deste fim último da história"? O objetivo de edificar a tradição paulista foi a marca mais visível do instituto, entendendo-se por isto os esforços para a construção de uma história local, para o resgate das manifestações culturais e o fomento a toda uma produção intelectual da região, em várias modalidades: história, geografia, etnografia, geo/etno/lingüística, genealogia, folclore, literatura e outras. Além de ter objetivos semelhantes aos do Museu Paulista, criado na mesma época, e compartilhar com a Academia Paulista de Letras o mesmo pendor regional, sua trajetória é inseparável de um quadro sociocultural de 7 GUIMARÃES, M. L. S. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto uma história nacional. Estudos Históricos (Rio de janeiro), n.1, p.5 e 10,1988.

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modernização do Estado de São Paulo, no interior do qual a elite procurou dotar suas novas gerações de uma formação intelectual e tecnocientífica, compatível com os desafios da época. Esta breve caracterização da composição social do grupo de historiadores da época, do perfil político do instituto e das finalidades dos estudos ali produzidos serve para lembrar que não se ignoram, aqui, os condicionamentos sociais e institucionais da historiografia do período. Mas, diferentemente dos estudos que explicam seu conteúdo basicamente pelas determinações sociais e ideológicas, procurarei analisá-la em sua coerência interna como produção discursiva, com o objetivo de compreender os modos de imaginação e representação presentes nesse tipo de investimento no passado. Recorro mais uma vez aos argumentos de S. Bann, em seu livro sobre as formas de representação do passado, elaboradas na Europa nos séculos XVIII e XIX. Para ele, essa era, que "originou e compilou a Revolução Francesa", foi marcada pelo "surgimento mítico de uma preocupação histórica". 8 A presença da história, nebulosa e penetrante, manifestou-se em uma pluralidade de campos: pintura e romance históricos, historiografia stricto sensu, antiquariado e museus, entre outros. Eles traduziram tanto a fertilidade e a plasticidade da imaginação histórica da época como o investimento crescente de indivíduos, grupos e instituições na invenção das tradições. Caberia indagar sobre as mutações que canalizaram as representações históricas desses campos plurais e plásticos para um modelo integrado e institucionalizado pela disciplina histórica. A historiografia paulista de fins do século XIX surge de maneira semelhante. Em primeiro lugar, ela constitui parte dessa preocupação obsessiva com a história, que se generaliza a partir da Europa, e que levou à extrema valorização do passado. Difere, no entanto, da experiência dos países europeus, em que a identificação com um passado secular, relido como um bloco estável, fornecia a segurança para indivíduos e grupos desorientados pelas mudanças ocorridas nos vários âmbitos do social, sobretudo desde o século XVIII. No Brasil, em particular em São Paulo, trata-se de criar uma história para um país de colonização recente e para uma nacionalidade em 8 BANN, S., op. cit., 1985, p.lü.

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formação, que fosse capaz de oferecer os mitos e a solidez das origens/ num contexto igualmente assinalado pela transitoriedade. Em segundo lugar, a historiografia paulista também se origina num campo ainda pouco definido, vinculando-se a variadas manifestações discursivas e artísticas. Neste aspecto, ela revela grande plasticidade nas formas de representação histórica, podendo-se dizer que, de modo geral, deixa-se moldar pela imaginação literária. Ainda no final do século, e apesar das transformações ocorridas, seja nas sensibilidades seja nos modos de expressão, a imaginação romântica continua a marcar os escritos históricos regionais, não só na procura das origens da nacionalidade em solo paulista e na indefectível temática indianista, como também nos próprios estilos de escrita, carregados de subjetivismo, fantasia e sentimento. Por outro lado, se isso é perceptível no terreno historiográfico, a literatura propriamente dita de São Paulo (novelas, romances, poesia etc.), como no romantismo, embriaga-se de matéria histórica, mostrandose indissociável da primeira. Entre as duas, trocam-se temas e formas de representação, num intercâmbio que também se estende para a pintura. Essas letras históricas revelam o afã de fixar uma epopéia paulista, base para a criação de um enredo nacional, constituído de eventos singulares, realizado por grandes homens. Outra marca literária nos escritos do instituto pode ser observada no apego à oratória e à eloqüência retórica, que se espalham pelos discursos, conferências, elogios fúnebres, homenagens, biografias e genealogias. Mas estas formas de expressão procuram o amparo do documento e do método científico, daí a incessante pesquisa das fontes originais da história regional. Nota-se todo um empenho para a recolha de documentos não só escritos - inventários, testamentos, tratados de limites e outros, provenientes do poder público, da Igreja e dos proprietários rurais - como também iconográficos, cartográficos e museológicos - mapas, bandeiras, selos, medalhas, moedas, brasões, autógrafos, quadros etc. Como parte de um olhar historiográfico típico da época, e comumente chamado de positivista, o documento é monumentalizado e 9 SUSSEKIND, F. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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submetido à crítica externa e interna, para dele se obter a verdade plena. Provenientes das coleções particulares dos clãs paulistas, essas fontes vão sendo catalogadas com o emprego de técnicas ligadas a especialidades tradicionais, dos séculos XVII e XVIII, como a Heráldica, a Numismática, a Nobiliarquia e outras correlatas. Pode-se afirmar que, no conjunto, a produção historiográfica é muito mais tributária, de modelos beletristas de saber, convivendo tensamente numa época em que, na Europa, o conhecimento humanístico desvinculava-se do amplo invólucro da literatura, ganhando contornos distintos no interior das várias disciplinas científicas surgidas. Ainda que o instituto tivesse como finalidade impulsionar o conhecimento científico, sob a viga mestra de uma visão positiva acerca da evolução da humanidade, e para isso procurasse estimular a pesquisa em áreas específicas - como os estudos geográficos, antropológicos, arqueológicos e outros, além dos históricos -, nota-se um grau incipiente de especialização desses saberes, e a permanência de uma iluminação literária de modelo convencional. Na revista da agremiação, publicada desde 1895, predominam de modo absoluto os estudos históricos, que incluem tanto os trabalhos específicos assim designados como também vasta série que lança mão da abordagem histórica, às vezes diluindo-se como especialidades. O primeiro conjunto é formado pelas cronologias, pelos levantamentos documentais, genealogias e estudos de eventos, personagens e contextos sociopolíticos. O segundo é constituído por áreas de conhecimento ainda pouco especializadas no Brasil, a exemplo da Geografia, da Antropologia, da Arqueologia ou da préLingüística, que pouca autonomia guardavam em relação à História. O caso da Geografia é sintomático, pois indica grande quantidade de estudos de dupla face - de Geografia e História -, formando um campo híbrido. Ainda que se considerem as estreitas ligações entre o instituto e a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (fundada em 1886), esta última responsável por um grau maior de especialização dessas áreas de conhecimento, observa-se, na revista, um pequeno número de estudos aplicados de Cartografia ou de Geografia Física. O mesmo pode ser dito da Biologia, que ainda se subordinava à

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abrangência da História Natural, ou da Arqueologia, em fase embrionária de constituição. A própria Antropologia, tratada de maneira ambígua como Etnologia ou Etnografia, confunde-se com a História, ramos da Geografia e o Folclore, e isso apesar do intercâmbio científico entre os estudiosos do instituto e os do Museu Paulista. Ela também dá oportunidade a diversos estudos, ancorados em procedimentos da Gramática Histórica e combinados com enfoques geográficos ou etnológicos. Nessa mesma maneira de ver a questão, os trabalhos sobre Literatura e Artes carecem de contornos próprios, surgindo muito mais como comentários genéricos, de preocupação histórica. Por último, evidencia-se a insignificância dos estudos de Filosofia no instituto, que se resumem a uma única matéria, de natureza pedagógica, cujo objetivo é indagar como se poderia elevar o nível moral da pátria. O exame desse material aponta para a coexistência de áreas de conhecimento de velha data, ainda que em processo de mudança e especialização na Europa (História, Geografia, História Natural, Etnologia), com habilidades herdadas da historiografia tradicional (Genealogia, Numismática, Heráldica), e disciplinas recentes, em fase de constituição no Brasil (Arqueologia, Biologia, Antropologia, sem falar da Engenharia e da Geologia, que dão origem a um pequeno número de artigos específicos). Estes últimos campos de conhecimento, ainda tímidos, mostram-se dissolvidos no conjunto, sem demarcar métodos, abordagens ou conteúdos peculiares. Como os demais, eles apenas reafirmam uma produção artesanal e eclética, que usa e abusa da retórica. Em parte, isto derivou da postura autodidata da maioria dos sócios da agremiação - os historiadores das horas vagas. Possuidores de uma formação acadêmica jurídico-humanística, esses homens de letras enveredaram sem cerimônia por áreas diversificadas. De outro, deveu-se à polivalência de alguns sócios ligados a profissões técnicas, como a Engenharia e a Geologia, cujos escritos revelam o mesmo ecletismo de abordagem e a mesma utilização da retórica. Foi assim que o instituto contou com uma maioria de estudiosos polivalentes e um número reduzido de especialistas, que ainda assim trataram de temas e conhecimentos humanísticos variados, como Theodoro Sampaio, Orwille Derby, Von Ihering e Edmundo Krug.

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Como esses escritos configuram uma epopéia paulista? Antes de tudo, por meio da consagração dos grandes personagens da região, daí a predominância dos perfis biográficos, das genealogias, dos discursos e elogios fúnebres. São biografados indivíduos ilustres do período colonial (donatários portugueses, sesmeiros, jesuítas, governantes, cronistas, bandeirantes e chefes indígenas lendários); políticos influentes à época da Monarquia e das Regências; republicanos paulistas e sócios falecidos do instituto. Receberam um maior número de referências João Ramalho, Alexandre de Gusmão e sua família, Brás Cubas, Pedro Taques, Frei Gaspar, os Andradas, Padre Diogo Feijó, Gustavo Beyer, Affonso A. Freitas e outros. Apenas uma mulher tem a vida consagrada: Thereza Margarida da Silva e Orta, considerada a primeira escritora de São Paulo. As genealogias, por sua vez, tratam das famílias paulistas Tacques, Brasiliense, Toledo Piza, de Frei Gaspar, de Diogo Feijó e mais uma grande quantidade de outras. Seja nas biografias, seja nas genealogias ·familiares, busca-se a construção de trajetórias incomuns, responsáveis por grandes realizações, fazendo-as transcender os marcos da própria colonização, com base no recuo a um passado medieval europeu. Essa obsessiva pesquisa das origens denota, enfim, tanto o investimento grupal na tradição como a identificação subjetiva do indivíduo com o passado regional, uma vez que muitos dos autores descendem das famílias estudadas. Tal identificação era o porto seguro daqueles que se viam cercados por forças velozes e desagregadoras, advindas da modernização: o cosmopolitismo, a imigração, as classes médias e populares, as multidões, a expansão urbana e a fugacidade dos valores sociais e morais. Os documentos escritos - inventários, testamentos, designações régias ou outros textos oficiais, as assinaturas - constituem os suportes empíricos dessa construção épica. Eles atuam para comprovar os enredos, tornando-os fidedignos e verossímeis, daí a valorização dada às habilidades da crítica documental erudita. Mas, além disso, a fixação dessas trajetórias dependeu da exposição de uma visualidade que o documento escrito, isoladamente, não traduzia. A recolha e classificação das imagens de um passado extraordinário e nobre poderia, por conseguinte, produzir esse efeito.

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O que explica todo um empenho para a formação do acervo iconográfico no instituto - reunindo brasões, moedas, medalhas, bandeiras e objetos antigos- e o emprego de métodos de disciplinas de velha data. A organização desse material, inicialmente reunido pelas famílias que buscavam o enobrecimento, e depois por seus descendentes associados ao instituto, originou contornos autônomos de representação histórica, lembrando a ação do antiquariado europeu no século XIX, como frisa S. Bann. As biografias e genealogias não foram produzidas, entretanto, unicamente no âmbito historiográfico do instituto. À mesma época, e assinadas por idênticos autores, elas ocuparam o espaço da literatura, nos gêneros das biografias romanceadas e do romance histórico. Aliás, esta foi uma característica básica da literatura paulista do período, que ainda não foi estudada pela crítica. Os exemplos são numerosos: Eugênio Egas, Affonso A. Taunay, Paulo Setúbal, Alfredo Ellis Jr., entre outros, além de historiadores, num sentido específico atual, dedicaram-se a romancear a vida de personagens paulistas ou de indivíduos egressos de outros Estados e países, influentes na região, como Brás Cubas, os irmãos Leme, a marquesa de Santos e D. Pedro L Taunay, por exemplo, destacou-se com o romance histórico Índios! Ouro! Pedras!, sobre a saga bandeirante; Alfredo Ellis J r. com O tigre ruivo e Tesouro de Cavendish (este em parceria com Menotti Del Picchia); e Setúbal com um expressivo número de romances de matéria histórica, entre os quais podem ser lembrados E! Dorado, O sonho das esmeraldas, A bandeira de Fernão Dias, A marquesa de Santos, As maluquices do imperador e Os irmãos Leme. Entre os escritos historiográficos propriamente ditos e os romances, trocam-se formas de representação e temáticas, o que indica duas marcas: a presença da matéria histórica na literatura e a imaginação literária na historiografia. Na fixação da epopéia paulista, as cidades tiveram uma importância equivalente aos indivíduos, desenhando-se também como personagens. A historiografia ocupa-se dos levantamentos documentais, estatísticos ou arqueológicos, da descrição dos seus benfeitores, da caracterização das dioceses, do enquadramento em close de bairros, ruas e monumentos mais significativos. A literatura dedica-se à recriação dos ambientes, em uma profusão de livros

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sobre núcleos do interior ou da capital. Esta recebe o maior número de tomadas, vasculhando-se seu itinerário no tempo e no espaço. É olhando desse foco que se ilumina o restante do território e o próprio país. É ela, ainda, que se conecta com as cidadezinhas do litoral, os símbolos da expansão portuguesa na América: São Vicente, São Sebastião, Cananéia e outras. Além destas, Santo André da Borda do Campo é objeto de várias biografias, seguido de Iguape, Santos, e daí se voltando para o interior: Sorocaba, Itu, Piracicaba, Tatuí, Taubaté, Porto Feliz, Guaratinguetá, Franca e mais uma dezena de outras. Em todos os casos, recua-se aos primeiros séculos da colonização, valorizando-se um tempo que não contempla a provisoriedade do presente. As cidades vão compondo um mural paulista, que, além de expressão escrita, garante-se como visibilidade. É significativo que alguns pintores tenham participado intensamente da criação desse painel histórico, como Benedito Calixto - o mais conhecido deles - autor de várias biografias e estudos de cidades, especialmente Santos, cujas pesquisas serviam de material para sua obra pictórica. É a partir do povoamento de São Paulo, enfim, que se volta para compreender a colonizàção brasileira, daí os levantamentos geohistóricos sobre as primeiras capitanias da região e o estudo dos roteiros bandeirantes. Considerados como frutos da fusão entre o nativo e o europeu, os bandeirantes são glorificados pelo desbravamento do território. O tema do bandeirantismo, que ganha impulso sobretudo nos anos 20, estimula a releitura dos cronistas coloniais e a recolha de todo um material documental: manuscritos, mapas e roteiros de deslocamentos, inventários etc. Reaviva-se uma época de aventuras, levada adiante por um espírito coletivo intrépido, que passa a ser o emblema do progresso regional e da expansão da nacionalidade. Assunto privilegiado será, dessa maneira, o resultado da ação bandeirante: o alargamento do território brasileiro e as questões de limites entre São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Paraná. No rol dos trabalhos geo-históricos, as vias e os meios de comunicação têm um interesse complementar no instituto. Colocase em pauta, com o apoio cartográfico, os caminhos coloniais, a navegação fluvial em direção às minas e, finalmente, as ferrovias

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paulistas com destino às regiões fronteiriças. A construção dessa saga comporta, também, uma profusão de trabalhos sobre a economia, a sociedade, a vida política e as instituições locais. Dos jesuítas aos movimentos nativistas e à própria emancipação política do país, tudo é iluminado pelo foco de São Paulo. A instalação da República não contraria a regra, apresentando a província como protagonista da história brasileira. Sintomaticamente, logo após a derrota paulista de 1932, este movimento começa a merecer a atenção dos historiadores, erguendose como outro marco da história regional. Mais uma vez, a construção da trama dá-se pelo intercâmbio de diferentes modos de expressão, apontando para a plasticidade das representações e a presença constante da imaginação literária. A historiografia, malgrado a retórica, oferece a sustentação documental; a pintura fornece a visualidade - como a tela de Oscar Pereira da Silva sobre a primeira missa em São Paulo, cuja disposição e cores reproduzem o famoso quadro de Victor Meirelles, seu mestre; a literatura dá o amparo da ambientação e das subjetividades, nos eventos romanceados de Eugênio Egas - O grito do Ipiranga e A convenção de Itu. Na edificação da civilização paulista, espaço privilegiado é reservado ao estudo da população indígena local e a outros trabalhos gerais de enfoque antropológico. Nessas abordagens, as concepções do indianismo romântico do século XIX, que também encontraram ressonância no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, são vivificadas na agremiação paulista. Entretanto, os desafios colocados pelas teses evolucionistas e darwinistas sociais, desenvolvidas na Europa na segunda metade do século, exigiriam um esforço de reinterpretação dos fatos e problemas locais. De maneira geral, localiza-se na miscigenação entre o branco europeu e o indígena a base de uma identidade racial paulista. Os cruzamentos entre as duas etnias são vistos, quase sempre, de um modo positivo, reservando-se ao português uma posição de superioridade e ao indígena a contribuição de seu espírito altivo. Ainda assim, o "bom selvagem" é visto como um ser domado, inicialmente pelos jesuítas, e depois pelos bandeirantes, caldeando-se nesse contato para originar a raça paulista - a "raça dos gigantes", nas palavras de Alfredo

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Ellis Jr. As teses desse autor, a respeito da questão racial de São Paulo, envolvendo ainda as proposições da eugenia e a defesa da imigração (branca e amarela), são amplamente divulgadas pelos jornais e reunidas no livro Pedras lascadas, publicado em 1928. Dentre as tribos paulistas estudadas pelos autores do instituto caingang, maronomi, guayaná - esta última é tomada, em muitos trabalhos, como o fundamento étnico dos cruzamentos paulistas, recebendo as qualidades do indianismo romântico. Affonso A. de Freitas, um dos membros mais influentes do instituto na década de 1920, e considerado por seus pares como eminente historiador, dedicou-se com afinco à pesquisa dessa cultura ancestral, procurando localizar seus vestígios na constituição da civilização de Piratininga. Para isso valeu-se de métodos documentais da historiografia, da cartografia e da lingüística do período, acrescentando a eles os ingredientes da retórica e a grandiloqüência da literatura romântica. Seu estilo de escrita, para além da superfície metódica, lembra nitidamente os romances alencarianos. Sintomático é observar que o investimento no passado regional, tal como se deu na literatura do século XIX, não reserva lugar para uma tradição negra, ou afro-americana. A identificação de indivíduos ou grupos com esse passado privilegia tão-somente origens nobiliárquicas européias e a revivescência de um espírito indígena. Nenhum escrito historiográfico, etnológico ou literário trata desse assunto, na produção do período. Outro veio de estudos toma as culturas indígenas como um manancial para pesquisas de sabor etnolingüístico. O objetivo é resgatar a contribuição das culturas nativas da região em vários aspectos: sua influência lingüística na formação do vocabulário geográfico ou zoológico do Brasil; a presença de costumes indígenas na cultura regional e de suas características de personalidade no homem rústico paulista - o caboclo. Igualmente fruto da miscigenação entre o branco e o índio, o caboclo (também chamado de caipira por vários autores) é o correlato humilde do bandeirante. Versão do sertanejo nordestino, de acordo com a imagem desenhada por Euclides da Cunha, o homem rústico paulista é visto como reserva da nacionalidade, ou como alicerce para a formação de uma raça forte.

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Como nos casos anteriores, a figura do caboclo ou caipira vai se esboçando em representações múltiplas e inter-relacionadas: nos estudos de tom antropológico, nos trabalhos de folclore, nas descrições de expedições científicas, na pintura e na literatura. Entre os sócios do instituto, é enorme o apreço por Almeida Jr., artista que fixou o modelo visual do caipira paulista. Na literatura, um verdadeiro surto caboclista ocorre desde o começo do século, ocupando o tempo ocioso de bacharéis e fazendeiros que eram, ao mesmo tempo, historiadores. Sem falar de Valdomiro Silveira, membro do instituto e da Academia Paulista de Letras, e um dos únicos reconhecidos pela crítica literária, quase todos os autores do período dedicaram-se a revelar, à época, sua face cabocla. Os títulos estampam essa recorrência, na poesia, no romance, no conto regional, no teatro, nos ensaios de folclore e outros gêneros: Gomes Cardim (Os caboclos), Aureliano Leite (Brio de caboclo), Paulo Setúbal (Alma cabocla), Amadeu Amaral (O dialeto caipira), João Vampré (A dança dos caiapós), Amadeu Queiróz (Os casos de carimbamba) e muitos outros. A invenção épica da identidade paulista abre espaço, finalmente, para uma série de escritos sobre as tradições coletivas, focalizando a religiosidade, as festas, as lendas e os costumes regionais. Eles apresentam uma coloração antropológica, mas transitam pela literatura, pelas memórias, pela abordagem histórica, indo do descritivismo aos enunciados generalizantes, do relato de viagem à presunção científica. Nos estudos desta última natureza, comentamse, rememoram-se as festas tradicionais, as músicas ancestrais, as antigas procissões religiosas, e lamenta-se seu retraimento diante da modernização; descrevem-se, catalogam-se modos de alimentação, de trabalho e de lazer, ainda intactos nos sertões; o mesmo é feito nos artigos sobre as superstições brasileiras, procurando-se fixar suas origens na tradição coletiva. Na literatura, o correspondente dessa vertente pode ser encontrado nos romances e contos regionais de Amadeu de Queiróz (Sabina e João), de Veiga Miranda, injustamente ignorado pela crítica (Mau olhado e Redenção), de Azevedo Sobrinho (Contos e fantasias). Um tema que começa a aparecer na literatura regional é o do entrechoque campo-cidade ou interior-capital. Inúmeros são os romances e

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novelas em que os protagonistas se deslocam do mundo estável das fazendas e das cidadezinhas do sertão para se embrenharem no tumulto e na transitoriedade presentista da emergente metrópole paulistana. A epopéia paulista, como todos os escritos épicos, encontra seu ponto de sustentação no tempo passado, recriado em seu esplendor. Mais do que revelar uma visão utilitária da história, buscando nesse tempo o núcleo impulsionador das energias capitalistas de São Paulo, ela o persegue contra as forças desagregadoras do presente. Não basta tomá-la como falsa ou como mito. Se a epopéia tem seus ancestrais nos mitos, o discurso histórico também carrega, em suas camadas mais profundas, sua dose mítica. A historiografia de São Paulo, no período assinalado, traduz essa marca com nitidez. De qualquer maneira, nos finais dos anos 20, podem ser percebidos vários sinais do esgotamento dessas representações, e quem sabe sua transformação em outros modelos. Em 1929, José de Alcântara Machado, um paulista de estirpe, publica Vida e morte do bandeirante, anunciando uma nova historiografia, na qual o bandeirante é recriado como um homem comum. Nas palavras de Sérgio Milliet, crítico que apresenta a obra, o autor renuncia "às seduções da epopéia, em vez de escrever mais uma página brilhante sobre as bandeiras, foi buscar a verdade ... não nos gestos heróicos que passaram à história, mas nos atos cotidianos que alicerçam e explicam os outros", nada sacrificando "à facilidade da escrita, à retórica". Estávamos, então, na plenitude do modernismo, com sua vaga cosmopolita e dessacralizadora. Com ele, o tempo passado seria substituído pelo tempo presente; o impulso épico pelas energias da vanguarda; os antigos mamelucos pelos novos mamelucos imigrantes. Vida e morte do bandeirante não anuncia, apenas, o desvanecimento de uma representação gloriosa de São Paulo, mas, talvez, sua transmutação em nova figuração histórico-literária.

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Refletir sobre o papel da geologia, de seus praticantes e de seu arcabouço institucional na modernização do país durante o Império e a Primeira República remete a um momento bastante preciso: os anos 70 do século passado. Intrinsecamente relacionados, demandas socioeconômicas e modelo institucional adotado (e adaptado) são expressões do crescimento acentuado da economia agroexportadora de café e da intensificação do clima cientificista, marcado especialmente pelo positivismo e spencerismo. 1 Desde logo, é fundamental ressaltar o persistente caráter conservador da modernização brasileira, que sempre procurou extrair seletivamente no moderno aquilo que melhor servia à superação das defasagens. 2 *

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IG- Unicamp. Uma revisão e síntese de boa parte da bibliografia que trata desse contexto encontra-se em: FIGUERÔA, S. Ciência na busca do 'Eldorado': a institucionalização das ciências geológicas no Brasil (1808-1907). São Paulo: 1992. Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia Ciências e Letras-USP, cap. 5. Ver também: DANfES, M. M., LOPES, M. M., FIGUERÔA, S. F. de M. Sciences and modernization in Brazil, 1870-1920. In: PATY, M., AASHED, R., PETIJEAN, P. (Ed.) Traditions scientifiques et expansion européenne. Paris: Presses Universitaires de France. (La Nouvelle Encyclopédie Diderot). 256p. GARCIA, J. V. O Brasil e a modernidade científica. In: LAFUENTE, A., ELENA, A., ORTEGA, M. I. (Org.) Mundialización de la ciencia y cultura nacional. Madrid: Doce Calles, 1993. p.483-92.

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Como é sabido, desde a década de 1840 o café tornara-se o principal produto da pauta de exportações brasileiras, importância essa que seguiria crescente até já estar bem avançado o século XX. A expansão da produção para o "Velho Oeste" paulista (Campinas e adjacências) propiciou a emergência do novo grupo social dentro dos cafeicultores que constituiu uma elite "modernizadora", em oposição, freqüentemente, aos "tradicionalistas" (região fluminense e vale do Para1ba). 3 À medida que o café do "Oeste" de São Paulo cada vez mais recheava o volume das exportações, crescia o peso dessa nova oligarquia na cena nacional (e assim seria até 1930). A ascensão e o destaque adquiridos por esses novos atores deveram-se em grande parte à profunda crise em que mergulhara o Império posteriormente à Guerra do Paraguai. Como analisa Francisco Iglesias, "é profunda a recomposição de forças que se opera em 1868. Depois dessa data, começa a crescer a onda que vai derrubar a instituição monárquica. Ela viveria ainda alguns anos, às vezes até com o antigo brilho. Os homens mais lúcidos sabiam no entanto que o império estava condenado". 4 Esses "modernizadores" - assim como outras parcelas da elite5 estavam também sintonizados com o cientificismo de seu tempo, e um bom indicador é o conteúdo dos editoriais do jornal A Gazeta de Campinas, na prática porta-voz desse grupo: são correntes tanto as metáforas inspiradas na ciência quanto a defesa de soluções científicas para os problemas que afligiam o Império, especialmente a cafeicultura. 6 Esses problemas com que se defrontavam as elites podem ser sintetizados em dois amplos conjuntos, os "desafios da terra" e os "desafios": 3 Para essa distinção, ver: ARAÚJO, M. de. Tradicionalismo e modernização em São Paulo, 1870-1889: conflitos e mediações na economia cafeeira. São Paulo: 1978. Dissertação (Mestrado), Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP. p.4. 4 IGLÉSIAS, F. Vida política. In: HOLANDA, S. B. de. História geral da civilização brasileira. 6.ed. São Paulo: Difel, 1987. p.9-112, t.II, v.3, p.112. 5 Cf. BARROS, R. S. M. de. A ilustração e a idéia de universidade. São Paulo: EduspConvívio, 1986. Esse autor classifica os intelectuais dessa época em três categorias (p. 21-2): "científicas", "liberais" e "católicos-conservadores". Esses últimos repeliram fortemente as idéias científicas, mas os dois primeiros encontraram pontos de convergência no "cientificismo" e no "progressismo" (p.200). 6 Ver FIGUERÔA, S. F. de M. Modernos bandeirantes: a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo e a exploração científica do território paulista (18861931). São Paulo, 1987. Dissertação (Mestrado), Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP.

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os desafios da terra visavam sobretudo dar solução à falta de disponibilidade de terras apropriadas à agricultura, apesar da imensidão do território nacional. Neste sentido, implicavam uma conquista desse território, quer pela reorganização da propriedade territorial, quer pelo levantamento geográfico e de recursos naturais, quer pela criação de meios de comunicação e de transporte ... Já os desafios relacionados ao elemento humano na época diziam respeito sobretudo às carências de mão-de-obra, agravadas com a iminente extinção da escravidão.?

Ao presente texto interessam prioritariamente as questões ligadas à terra, e nelas as ciências geológicas tiveram peso significativo. Ao contrário do que se poderia imaginar a priori, a riqueza mineral no Brasil se deu vinculada, de forma quase direta, à agricultura, e não à mineração. O modelo institucional que, com algumas adaptações, permitiu tal tipo de evolução disciplinar foi o dos geological surveys, ou "serviços geológicos" uma tradução livre já consagrada nas línguas neolatinas. Essas instituições foram uma autêntica marca registrada do desenvolvimento institucional das ciências geológi.cas no mundo durante o século XIX, principalmente devido à consagração do mapeamento geológico como forma especial de fazer pesquisa científica em Geologia e de apresentar os resultados. 8 O primeiro geological survey foi fundado na Grã-Bretanha em 1832, 9 e a ele seguiram-se muitos outros nos mais diversos países. 10 Um denominador comum a todos foi o pronunciado caráter prático, aplicado, do trabalho científico que faziam. Para o caso do Brasil é essencial, porém, considerar o desenvolvimento desses surveys nos EUA, já que foi desse país, devido a um grupo muito bem definido de cientistas, que trouxemos o modelo institucional. Embora oU. S. Geological Survey só tenha sido criado em 1879,11 os estados da 7 Cf. DANTES et ai., op. cit, nota 1. 8 CUNTAU, M. The history of the origins of the Prussian geological survey in Berlin (1873). History & Technology, v.5, p.51-8, 1988. 9 SECORD, J. The geological survey of Great Britain as a research school, 18391855. History of Science, v.24, p.223-75, 1986. 10 Canadá (1842), Irlanda (1845), Portugal (1848), Áustria (1849), Espanha (1851), India (1851), Suécia (1858), França (1868), Hungria (1869), Saxônia (1872), Prússia (1873), Japão (1878), EUA (1879), Rússia (1882), Bélgica (1882), Finlândia (1886), China (1911). Cf. GUNTAU, op. cit. 11 BURSTYN, H. L. How the West was scientifically explored. Nature, n.278, p.595-96, 12 abr.1979.

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federação possuíam seus surveys geológicos atuando como auxiliares na ocupação e exploração econômica do país, principalmente para fins de agricultura e mineração: praticamente todos os surveys incluíram levantamentos e análises de solos entre suas atividades, e estiveram intimamente associados às políticas de ocupação dos territórios conquistados no Oeste. 12

A COMISSÃO GEOGRÁFICA E GEOLÓGICA DE SÃO PAULO Em São Paulo, desde aproximadamente 1860, os problemas interdependentes de disponibilidade de mão-de-obra, de terras e eficiência do transporte e escoamento da produção ameaçavam estrangular a cafeicultura. A análise que fez o presidente dessa província, conselheiro João da Silva Carrão, em seu Relatório de 1866, é perfeita como síntese da consciência que os cafeicultores paulistas tinham da situação difícil em que estavam imersos. 13 Três pontos essenciais perpassam o discurso desses cafeicultores "modernizadores": a idéia de que "um manancial inesgotável de prosperidade" jazia inexplorado nas terras do Oeste; a necessidade de uma certa "planificação" das 12 ALDRICH, M. American State geological surveys, 1820-1845. In: SCHNEER, C. J. (Ed.) Two Hundred Years of Geology in America. University Press of New England, 1979. p.l33-43. (Proceedings of the New Hampshire Bicentennial Conference on the History of Geology, 1976), p.122-43. 13 O texto diz: "não abusarei da paciência da Assembléia procurando demonstrar a importância que exerce no progresso da riqueza pública a existência de vias de comunicação que dêem fácil e pronta circulação aos produtos. É a primeira necessidade da indústria moderna; é hoje dogma da civilização. Infelizmente a Província de São Paulo acha-se em estado relativamente a vias de comunicação no interior que só tem o deplorável préstimo de fazer admirar a perseverança, a energia indomável de sua população ... Merecem desde já atrair a atenção desta Assembléia os rios Pardo, Mogi-Guaçu, Tietê e mesmo o Paranapanema. Os primeiros servirão de auxiliares poderosos à estrada de ferro de Santos a Jundiaí, cujo prolongamento para o interior é uma necessidade indeclinável. Os terrenos para os quais dirige-se a mencionada estrada são de uma fertilidade abismadora, e só esperam a construção de meios fáceis de comunicação para receberem braços e capitais que, aplicados por indústria inteligente, ofereçam a extraordinária produção que a natureza ali prodigamente promete". Relatório apresentado pelo Cons. João da Silva Carrão, Presidente da Província de São Paulo, à Assembléia Legislativa Provincial em 3.2.1886. São Paulo: Typ. Imparcial de J. R. A. Marques, 1866. p.39 e 42.

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intervenções do poder público quanto ao traçado das vias de comunicação; 14 e o tom cientificista, já mencionado acima. 15 A Comissão Geográfica e Geológica (CGG), criada a 27 de março de 1886, representou uma solução "científica" para parte das questões que assediavam o pleno desenvolvimento da economia cafeeira, e traduziu a visão de uma sociedade já transformada pelo próprio processo de modernização com o qual essa instituição iria interagir. Em 1886, o presidente da província de São Paulo, conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira (o ex-ministro do Império do Gabinete Rio Branco, responsável por uma série de iniciativas no campo científico), afinava seu discurso com os cafeicultores e mostrava, no Relatório à Assembléia Provincial de 15 de fevereiro, as iniciativas tomadas no curto período desde que assumira o governo em outubro do ano anterior: obtenção, através de uma instituição que disso se encarregasse, de informações "exatas e minuciosas", consolidadas em mapas na escala 1:100.000 ao mesmo tempo geográficos, topográficos, itinerários, geológicos e agrícolas, nos quais todos os centros populacionais, estabelecimentos da incipiente indústria (inclusive minas) e mesmo as terras improdutivas estivessem representados. 16 O plano para tanto foi apresentado por um dos mais destacados cafeicultores de São Paulo, o visconde Pinhal, e assinado por seus outros colegas de bancada. 17 Depois de uma tramitação recorde de apenas cinco dias, o projeto foi aprovado por unanimidade como a Lei n.9 de 27.3.1886. Essa rapidez e esse consenso compreendemse com a declaração emblemática do conselheiro Antônio da Silva Prado, figura de destaque da elite paulista:

14 SANTOS, F. Q. dos. Considerações geraes sobre a lavoura e o commércio da província- II. A Gazeta de Campinas, 22.1.1874, p.l. 15 Por exemplo: "sem as veias o coração não pode repartir o sangue pelo organismo, a entreter as fontes todas da vida animal; por igual teor, sem os caminhos não se podem espalhar as messes e as colheitas do solo. E depois tudo, na ordem moral, se move por leis físicas e imutáveis". (apud SANTOS, op. cit.) 16 Cópia do relatório apresentado pelo cons. João Alfredo Corrêa de Oliveira, Presidente da Província de São Paulo, à Assembléia Legislativa Provincial em 15.2.1886. Rev. O IGG, v.XVIII, n.1, p.30-1, jan.-mar. 1966. 17 Debates da Assembléia Provincial de São Paulo do 1o ano da 26 3 Legislatura. Transcritos. Rev. O IGG, v.XVII, n.1, p.19-30, jan.-mar. 1966.

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uma das razões, se não a razão principal, da prosperidade da minha província, é que o paulista não faz politica, em se tratando de melhoramentos materiais. Há ali estradas de ferro, empresas de navegação e outras organizadas por iniciativa de conservadores, liberais e republicanos, os quais sabem esquecer dissentimentos quando o seu concurso é exigido a bem da província. 18

As instruções de trabalho reproduziram com detalhes o que estava previsto no plano, continuando a enfatizar o "valor econômico" e a "aplicação prática" dos estudos. 19 Para chefiar a CGG foi convidado o norte-americano Orville Adelbert Derby (1851-1915), que permanecera no Brasil trabalhando no Museu Nacional após a extinção da Comissão Geográfica do Brasil (1875-1877). Apresentado por João Alfredo à Assembléia Legislativa de São Paulo. O plano foi, na verdade, preparado por Derby a seu convite. 20 A princípio, a solicitação do presidente da província não contemplava estudos geológicos, mas por imposição de Derby, a Comissão, a princípio Geográfica, incorporou o restante de seu nome, "e Geológica". 21 Conforme esclarece em sua correspondência com os amigos e ex-colegas na Comissão Geológica do Brasil, Richard Tathbun e John Casper Branner, Derby esperava que esse survey tivesse sua continuidade temporal e a ampliação para toda a área da província asseguradas pelo governo provincial, se demonstrasse estar fazendo um trabalho bom e útil.2 2 Assim, Derby inspirou-se em 18 PRADO, 1929, apud; CASALECCHI,]. E. O Partido Republicano paulista (política e poder, 1889-1926). São Paulo: Brasiliense, 1987. p.20. 19 Resolução de 7.4.1886. Transcrita. Revista O IGG, v.XVII, n.1, jan.-mar. 1966. 20 Esboço de um plano para exploração geográfica e geológica da província de São Paulo. Arquivo Histórico do Instituto Geológico, FCGG, Série TécnicoCientífica, Caixa 36. 21 Como informa Branner: "o presidente João Alfredo pediu a colaboração de Derby para seu projeto de estudo da navegabilidade do rio Paranapanema ... e para a execução dos mapas físico e itinerário da província. Derby, entretanto, disse ao presidente que só poderia levar tal trabalho em conexão com um serviço geológico. O plano foi então modificado de acordo com isso". (BRANNER, 1886) (grifas meus). 22 Cartas de Orville A. Derby a Richard Rathbun, comentando assuntos diversos. Ass. Rio de Janeiro, 2.5 e 9.12.1886. Smithsonian Inst. Archives, Record Unit 7078, Richard Tathbun Papers, Box 3; Carta de Orville A. Derby a John C. Branner. Rio de Janeiro, 5.2.1886. Arquivo Hist. do Inst. Geológico, FCGG, Documentação Complementar, Caixa 69.

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Hartt, seu mestre e chefe, não apenas quanto ao modelo da CGG, praticamente idêntico ao da Comissão Imperial, mas também na atitude de negociar um espaço institucional mais conveniente aos seus interesses de pesquisa. A atuação da CGG pautou-se por uma linha que poderíamos classificar de "naturalista", com as atividades cobrindo os campos de Geologia, Botânica, Geografia, topografia, Meteorologia, Zoologia e Arqueologia. Os primeiros técnicos foram os engenheiros de minas formados pela primeira turma da Escola de Minas de Ouro Preto, Luis Felipe Gonzaga de Campos e Francisco de Paula Oliveira; o engenheiro-geógrafo (pela Politécnica do RJ) Theodoro Fernandes Sampaio; o petrógrafo austríaco Franz Eugen Hussak; e o botânico sueco Alberto Loegren. Derby estava satisfeito com sua equipe, e tinha expectativas particularmente quanto a Gonzaga Campos e Paula Oliveira, que acreditava "se transformarão em bons geólogos". 23 A primeira expedição de exploração para mapeamento detalhado dos rios Itapetininga, Paranapanema e afluentes, sobretudo quanto às condições de navegabilidade, partiu já a 11.4.18 8 6 e atingiu o Paranapanema quatro dias depois, seguindo daí até sua foz no rio Paraná, retornando em seguida por terra e encerrando os levantamentos em setembro do mesmo ano. Como resultado a CGG produziu o Relatório de exploração dos rios Itapetininga e Paranapanema, publicado em 1889. É um estudo bastante detalhado e preciso, exibindo perfis sistemáticos dos rios com as desejadas informações sobre navegabilidade e sugestões de obras nos locais que apresentariam problemas para essa finalidade. Em complementação, a comissão publicou o Boletim n.4 - Considerações geographicas e econômicas sobre o Valle do Paranapanema- no qual apresentou o restante dos dados coletados, em grande quantidade, inclusive um anexo com vocábulos da língua caiuá. Essa expedição obteve grande sucesso e reconhecimento. O imperador, em visita a São Paulo, conheceu de perto os resultados do trabalho e expressou sua aprovação "mandando convidar todos 23 Carta de Orville A. Derby Richard Rathbun, comentando assuntos diversos. Ass. Rio de Janeiro, 2.5.1886. Smithsonian Inst. Archives, Record Unit 7078, Richard Rathbun Papers, Box 3.

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os engenheiros para almoçar porque trabalharam bem". 24 Em seguida, a Comissão paulista iniciou o levantamento da carta geográfica, geológica e topográfica da província, seguindo o método chamado "de triangulação", conforme adotado na época peloU. S. Coast & Geodetic Survey,25 que consistia na determinação geodésica precisa de alguns dos principais pontos da região a ser levantada, seguida da medição de uma base (linha) no terreno. Daí se construía uma rede de triângulos primários e secundários, com vértices nos pontos determinados anteriormente, preenchendo-se depois as áreas dos triângulos por intermédio de processos topográficos ordinários. Essa metodologia foi usada pela CGG até o final de suas atividades em 1931. Um dos primeiros objetivos dos levantamentos geológicos tinha aplicação bastante clara: tratava-se de "examinar as extensas erupções de rocha ígnea que pela decomposição fornece a terra roxa, fonte principal da atual riqueza da Província", 26 incumbindose a comissão de localizar os solos apropriados à cafeicultura e cumprindo, assim, uma outra parte do papel que lhe fora destinado. Em 1886 iniciaram-se ainda os estudos das jazidas de ferro de Ipanema e da região de Poços de Caldas, onde Derby realizou a série de trabalhos sobre as rochas alcalinas que lhe valeram o Prêmio Wollaston, conferido pela London Geological Society em 1892. Nessa primeira fase da CGG foram publicados os boletins técnicos -que na segunda desapareceriam, praticamente substituídos pelos vistosos "Relatórios de Exploração" (11, publicados de 1905 a 1928). Num total de 24 boletins, 2 versaram sobre Geologia, 1 sobre Geografia, 2 sobre Mineralogia & Petrografia, 1 sobre Petróleo, 8 sobre Botânica, 8 sobre Meteorologia e 2 sobre 24 Carta de Orville A. Derby a Richard Rathbun, comentando assuntos diversos. Ass. Rio de Janeiro, 9.12.1886. Smithsonian Inst. Archives, Record Unit 7078, Richard Rathbun Papers, Box 3. 25 Derby pede a Rathbun que consiga "duas cópias do 10" Relatório doU. S. Geol. Sur., de Hayden, publicado em 1878 e contendo um relato de Wilson sobre os métodos de trabalho topográfico ... Preciso desse trabalho o mais cedo que ele possa ser convenientemente enviado, pois será de grande ajuda a meu corpo geográfico, para quem esse tipo de trabalho é novo". Carta de O. A. Derby a Richard Rathbun, ibidem, nota 233. 26 Relatório da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo ao Barão de Parnaíba, presidente da Província de São Paulo, em 1886, p.4.

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Arqueologia. A preponderância de publicações sobre Meteorologia e Botânica reflete, de fato, o peso dessas áreas internamente à CGG e sua relevância para as atividades agrícolas em São Paulo. A visão naturalista de Derby chocou-se, todavia, com os interesses mais imediatos das elites e do poder público de São Paulo. Em 1905, o chamado "sertão" de São Paulo- como era conhecida uma vasta região a oeste do Estado, que compreendia quase um terço do território - não estava mapeado a fim de permitir sua ocupação e exploração. Em 1899 foram publicados os três primeiros mapas, e mais outros 14 até 1905, sem porém contemplar a região mais a oeste. Na segunda fase, a comissão publicou 59 mapas. O primeiro mapa geológico de São Paulo, no entanto, só apareceria em 1929, 34 anos após a criação da instituição. Para melhor compreender o que estava em jogo, é preciso acrescentar alguns dados sobre esse período, já na fase republicana. O começo do século XX foi um momento da agricultura de exportação, ao qual se somaram a ascensão· do nível de vida, a intensificação do processo de industrialização, as grandes atividades mercantis e financeira, o trabalho assalariado, marcando mudanças na economia e nas questões sociais. As possibilidades de lucro, a expansão das frentes pioneiras, as vias férreas e a crescente demanda internacional acabaram por provocar uma superprodução cafeeira, que desde 1896 ameaçava acontecer. No nível político, Martins situa nesse momento o apogeu do processo de consolidação do Estado oligárquicoY Em 1902 elegeu-se presidente Francisco Rodrigues Alves, grande fazendeiro de café da região de Guaratinguetá, no interior de São Paulo, e ex-presidente desse Estado. Terceiro civil na sucessão da jovem República, Rodrigues Alves consolidou a aliança oligárquica que iria dominar, não sem conflitos internos, a cena política brasileira até 1930. 2 s Foi num clima de instabilidade econômica e de dificuldades financeiras gerado pela crise de superprodução cafeeira que se delineava que Jorge Tibiriçá assumiu a presidência de São Paulo em 27 MARTINS, L. Pouvoir et développement économique: formation et évolution des structures politiques au Brésil. Paris: Anthropos, 1976. p.54. 28 IGLESIAS, F. Trajetória política do Brasil, 1500-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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1904. A solução para esse problema já fora preconizada na própria plataforma de governo com que se elegera: diversificação da produção agrícola através da pequena propriedade. 29 Assim, fundamentalmente política, desenhava-se a atuação da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, o principal braço de ação governamental. Nessa política, articulavam-se as iniciativas simultâneas do secretário Carlos Botelho, entre as quais a fixação do imigrante e do trabalhador nacional e o levantamento do extremo Oeste de São Paulo como área futura para o avanço colonizador. 30 Em 1904, o orçamento da Comissão Geográfica e Geológica foi, em termos absolutos, o mais fixo até então estipulado, significando uma redução de cerca de 40% em relação ao do ano anterior. Porém, em termos relativos isso não ocorreu: quando percentualmente comparado ao total da Secretaria da Agricultura, comércio e obras Públicas, o orçamento da CGG manteve a mesma relação apresentada no ano anterior. No entanto, essa redução praticamente inviabilizava seu funcionamento, dados os já minguados vencimentos de seu pessoal (inferiores aos da maioria das outras repartições públicas) e a necessidade intrínseca de trabalhos de campo, que agora dificilmente poderiam ser conduzidos. Tudo isso levou Orville Derby, ainda na chefia da instituição, a queixar-se ao secretário Carlos José Botelho, acreditando ver no corte das verbas a continuidade da campanha difamatória movida nos últimos anos por professores da Escola Politécnica de São Paulo. 31 A CGG saíra bastante desgastada de toda essa polêmica, e Derby foi finalmente afastado em janeiro de 1905, sendo substituído pelo engenheiro João Pedro Cardoso, que permaneceu no cargo até a extinção do órgão. Do conflito, saiu vitorioso o enfoque "pragmático" da ciência, e a comissão foi 29 BELLOTTO, H. L Tentativas de fixação do povoamento no Estado de São Paulo e de integração do vale do Paranapanema durante o governo Jorge Tibiriçá (19041908). Anais de História (Assis), n.7, p.36, 1975. 30 BELLOTTO, op. cit., p.42. 31 Uma análise mais detalhada dessa controvérsia pode ser encontrada em FIGUERÔA, S. F. de M. Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo versus Escola Politécnica: reflexões em torno de uma controvérsia científica. In: LOPES, M. M., FlGUERÔA, S. F. de M. O conhecimento geológico na América latina: questões de história e teoria. Campinas: IG-Unicamp, 1990.

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reformada nesses moldes. Parte de uma reforma maior que visava imprimir uma modernidade racionalizadora ao Estado como um todo, 32 as mudanças estruturais na instituição contemplaram a tendência crescente de especialização na ciência que acompanhava essa modernização. O Decreto n. 1278 (23.3.1905) determinou que se realizasse o levantamento do extremo sertão e precisou o modo pelo qual os trabalhos deveriam se desenvolver.33 Foram organizadas quatro expedições de exploração que, através dos rios Tietê, Feio, Peixe e Paraná, realizariam o levantamento da região "desconhecida". 14 Com suplementação de verbas da ordem de 40o/o do seu orçamento para esse ano, a CGG contratou novos técnicos e montou turmas exploratórias que foram, em média, cinco vezes maiores do que a Expedição do Paranapanema- única realizada pelo órgão até então. Foram admitidos aproximadamente vinte novos técnicos, todos engenheiros. Muitos foram dispensados ou saíram por vontade própria ao final de 1905, quando o trabalho estava praticamente concluído. Outros, porém, se fixaram e permaneceram na instituição até a década de 1930. A magnitude do projeto é atestada não apenas pelo porte das expedições ou pela quase simultaneidade das partidas 35 festejadas com salvas de tiros. O produto obtido, sintetizado nos "Relatórios de Exploração", é uma mostra eloqüente do que foi feito, e atesta, na prática, o profundo redirecionamento da instituição. Analisando esses relatórios em sua materialidade, podemos perceber que o "espírito bandeirante", a ideologia do Progresso, do Desenvolvimento e de Exploração da Natureza estão neles 32 Na Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas esta reestruturação é conhecida por Reforma Carlos Botelho, Lei n.984 de 19.12.1905 e Decreto n.1459 de 10.4.1907. Apud: CINTRA, L. C. A evolução administrativa da Secretaria da Agricultura: 1889/1930. São Paulo: Cadernos FUNDAP, n.9, p.21-9, maio 1985, p.24. 33 Coleção das leis e decretos do Estado de São Paulo de 1905. São Paulo: Typ. Diário Oficial, 1906, p.5. 34 SCHMIDT, C. Terrenos desconhecidos. O Estado de São Paulo, 15.12.1901, p.2. 35 Em ordem cronológica temos: Expedição dos rios Feio e Aguapeo em 10.5.1905; Expedição do rio Paraná em 19.5.1905; Expedição do rio do Peixe em 21.5.1905; Expedição do rio Tietê em 24.5.1905.

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nitidamente impressos. São um minucioso inventário das áreas percorridas exibindo as mais diversas informações- das plantas aos índios, dos minerais às quedas-d'água, com especial destaque às últimas-, complementadas por mapas e perfis dos rios estudados e por farta ilustração fotográfica. Vale reproduzir um trecho de um dos relatórios, no qual já se percebe a preocupação com a questão energética: a 157,5 km do rio Jacaré Grande encontra-se o salto do Avanhandava, que é uma das maiores riquezas naturais que possui o Estado de São Paulo, e que aguarda futuro não muito remoto para vir contribuir para a grandeza e prosperidade da indústria entre nós. A posição do salto indica que teremos aí uma grande fonte de atividade quando houver meios de transporte rápido, ou quando suas águas passarem pelos mecanismos e imprimirem força, produzirem energia elétrica etc., eliminando o combustível e levando a grande distância a ação do seu valor e da sua importância como grande fator do desenvolvimento da produção, em vez de rolarem livremente sobre blocos de grés cobrindo-os de alta espuma branca e fazendo desprender nuvens multicores a perderem-se no infinito, como que anunciando que aí será mais tarde um centro de tradição de trabalho e progresso. 36

A ideologia do progresso perpassou ainda os governos subseqüentes, como se pode notar pela observação dos relatórios das expedições posteriores rios Juqueriquerê (29 .4.1906), 37 Ribeira de Iguape (12.6.1906) e Grande (22.6.191 0), Litoral Norte (13.7.1911) e Litoral Sul (19.5.1914). Embora menos triunfalista, permanece o "espírito bandeirante" quase como marca registrada da nova atuação da Comissão Geográfica e Geológica. A estrutura interna dos relatórios é semelhante à daqueles do sertão, e crescem as referências ao aproveitamento da energia hidrelétrica- a "hulha branca", como era chamada - em face do aumento da demanda energética provocado pelo avanço da industrialização e pelo crescimento urbano. A questão dos minerais para a indústria, outra área de 36 SÃO PAULO. COMISSÃO GEOGRÁFICA E GEOLÓGICA. Exploração do rio Tietê: barra do rio Jacaré-Guassú ao rio Paraná. São Paulo, 3.ed., 1930, p.ii. 3 7 Datas da partida.

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concentração das pesquisas da CGG, a partir de 1914, subdividese, por seu turno, em dois ramos: minerais energéticos e minerais para matéria-prima industrial. Em seu crescimento, o processo de industrialização paulista requeria bens minerais de duas espécies. De um lado, combustíveis para suprir a demanda por energia que nem a tecnologia disponível para hidrelétricas nem as parcas reservas de minerais energéticos conhecidas eram suficientes para atender. Nesse rumo, a ação da CGG pautou-se pela pesquisa mineral de combustíveis fósseis, especialmente carvão (Montemór, Cerquilho, Tatuí e arredores), seguido de petróleo e "xisto betuminoso" 38 (Assistência e Tremembé). Por outro lado, embora em quantidades ainda pequenas, a indústria demandava bens minerais metálicos do vale do Ribeira e o zircônio da serra de Caldas (de aplicação para refratários). O panorama da indústria brasileira pós Primeira Guerra, bem desenhado por Suzigan, 39 revela crescimento e diversificação desse setor, a pressionar tanto a oferta de energia quanto a de matérias-primas: embora o investimento na indústria de transformação ainda fosse em grande parte induzido pela expansão do setor exportador, o padrão de desenvolvimento industrial tornou-se mais complexo ... a guerra estimulou uma maior diversificação do crescimento industrial ... [que] começou realmente na década de 1920. Os investimentos industriais foram então expandidos para a produção de cimento, aço, papel e celulose, produtos de borracha, produtos químicos, maquinaria e equipamento, e produtos de seda e raiom.

As publicações e mapas da instituição eram fornecidos a uma clientela de perfil diversificado, com predominância de órgãos públicos, atestando a ampla aplicabilidade e confiabilidade desses produtos e evidenciando a contínua utilização da CGG para fins da administração pública estadual e mesmo como instrumentos de políticas governamentais. O ano de 1928 marca uma situação única em termos do orçamento da Comissão Geográfica e Geológica. Após um período 38 A classificação mais correta seria "folheto pirobetuminoso". 39 SUZIGAN, W. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.347.

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de aproximadamente 18 anos, quando a curva das verbas institucionais em relação à da secretaria da Agricultura se manteve quase estável, o total de verbas à disposição da CGG nesse ano saltou a 17% do orçamento da secretaria. Além do aumento real das verbas votadas pelo Congresso Legislativo Paulista, a grande responsável por esta brusca elevação foi, sem dúvida, a polpuda suplementação recebida do Poder Executivo - seis vezes superior ao total de recursos orçamentários para aquele mesmo ano. A suplementação, porém, não visava a instituição como um todo, mas endereçava-se exclusivamente à montagem e ao início de funcionamento dos Serviços de Exploração do Subsolo recémcriados:40 um para a pesquisa e exploração das jazidas de apatita de Ipanema, e outro para a exploração petrolífera da bacia sedimentar do Paraná, incrementando o trabalho que a CGG vinha realizando há alguns anos. Esta modificação na estrutura interna articulava-se no quadro mais amplo de reformas que o então presidente Júlio Prestes promovia. Do ponto de vista agrícola, a lavoura paulista, apesar de ser ainda constituída basicamente pela cafeicultura, crescera em outros ramos tanto qualitativa quanto quantitativamente. 41 Ao longo de toda a década de 1920, o algodão, o milho, os cereais, a fruticultura (sobretudo a citricultura) passaram a ocupar cada vez mais páginas dos Relatórios Anuais da Secretaria de Agricultura. Essa expansão se devia ao crescimento da pequena propriedade parte essencial da política de diversificação agrícola e de fixação do homem à terra iniciada ainda na gestão de Carlos Botelho à frente da secretaria. A pequena propriedade era resultante, na maioria dos casos, do retalhamento de antigas fazendas de café cujas terras não mais se prestavam à manutenção dessa cultura com altos níveis de rentabilidade. Entretanto, exauridos pela cultura cafeeira, tais terrenos necessitavam de adubação - e adubação orgânica já não bastava. Desde o início da década de 1920 a Secretaria da Agricultura 40 Lei n. 2219 de 9.12.1927. Coleção de leis e decretos do Estado de São Paulo. Atos do Poder Legislativo, p.69. São Paulo: Tip. D'O Estado de S. Paulo, 1928. 41 DEAN, W A industrialização de São Paulo, 1880-1945. 3.ed. Trad. Octávio Mendes Cajado. São Paulo: Difel, s.d. p.122.

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encontrava-se alerta para o "problema de socorro à terra - a que a ciência chamou adubação", no qual "repousam a promessa e a garantia máxima da prosperidade do Estado e do Brasil". 42 Um dos eixos importantes do discurso da secretaria continuava a ser a absoluta valorização da ciência, concebida como instrumento superior na solução dos problemas agrícolas e como racionalizadora do uso da terra: "é para os homens da ciência que se apela, no momento atual, a fim de que seja multiplicada a produção da terra. Será a ciência que tirará das trevas, em que vive, a nossa agricultura, esclarecendo-as e orientando-as nas aplicações dos métodos racionais". 43 No que concerne à industrialização, é incontestável seu incremento a partir da Primeira Grande Guerra, podendo-se mesmo afirmar que os anos 20 foram um marco na história do desenvolvimento industrial de São Paulo, principalmente quanto à diversificação. 44 Assim, ao mesmo tempo em que com uma das mãos Júlio Prestes atendia à lavoura, com a outra premiava a indústria, contemplando-a num de seus grandes empecilhos: fontes energéticas. Caberia à Comissão Geográfica e Geológica, através do Serviço de Exploração do Petróleo, revelar a existência desse bem mineral em São Paulo, para que "com o nosso próprio consumo possamos edificar o nosso desenvolvimento e a nossa grandeza econômica". 45 Internamente à CGG vê-se que os Serviços de Exploração do Subsolo se desenvolveram com grande impulso. O Serviço de Apatita lançou as bases de uma tecnologia de aproveitamento mineral para o fabrico de fertilizantes (superfosfatos e adubos preparados), tendo fornecido desde outubro de 1929 - quando entrou em funcionamento a fábrica de Ipanema - dezenas de toneladas de fertilizantes para pequenos proprietários, prefeituras e associações 42 Relatório anual da Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio, 1927. São Paulo: Tip. D'O Estado de S. Paulo. p. XXXII. 43 Relatório anual da Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio, 1921. São Paulo: Tip. D'O Estado de S. Paulo. p.21. 44 SUZIGAN, op. cit., p. 87; VERSIANI, F. R. Índices de produção industrial para a década de 20: um reexame. Rev. Estudos Econômicos (São Paulo), v.14, n.1, p.43-55, 1984; DEAN, op. cit.; SILVA, S. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. 45 Mensagem de Júlio Prestes de Albuquerque, op. cit.

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beneficentes. 46 O Serviço de Petróleo, por seu turno, realizou pesquisas sistemáticas desse mineral energético, concluindo como promissor o quadro geológico do Estado. Os resultados destes estudos foram publicados em 1930 no Boletim n.22, Petroleum Geology of the State of São Paulo, Brazil, de autoria de Chester Washburne, geólogo norte-americano com larga experiência em pesquisas petrolíferas em diversas regiões do mundo, trazido especialmente para conduzir este tipo de trabalho junto à comissão. O fim da CGG estava próximo: 1930 é tido pela historiografia como um marco na História contemporânea brasileira, assinalando o fim da estrutura criada e sustentada pela República desde 1890. Apesar de sinais anteriores, o golpe fatal veio somente com a Revolução de 30- amplo movimento organizado pela coligação oposicionista Aliança Liberal, que não aceitou as fraudes das eleições presidenciais arduamente disputadas entre Júlio Prestes (candidato situacionista) e Getúlio Vargas (candidato da oposição). 47 Acentuando ainda mais as dificuldades do governo federal estava a crise econômica, na qual o país mergulhara pela soma da quebra da Bolsa de Nova York à superprodução cafeeira e à pronunciada redução do saldo da balança comercial no final da década. 48 Dentro desse quadro heterogêneo no qual conviviam interesses variados e contraditórios- e que alguns estudos têm qualificado com o conceito de "Estado de compromisso" 49 -alguns autores, como Draibe, por exemplo, enxergam a abertura de diferentes alternativas de desenvolvimento capitalista e o início de um processo de formação do Estado como Estado nacional moderno. A opção adotada visou fundamentalmente a manutenção das relações capitalistas no país e

46 Dossiê do Serviço de Apatia. Arquivo Histórico do Instituto Geológico, FCGG, Dossiê As, Caixa 55. 47 SKIDMORE, T. E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). 7.ed. Trad. coord. por Ismênia Tunes Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 48 ABREU, M. de P. O Brasil e a economia mundial (1929-1964). In: FAUSTO, B. (Org.) O Brasil republicano (Economia e cultura, 1930-1964). São Paulo: Difel, 1984. cap.I, p.ll-49. (História geral da civilização brasileira, 11). 49 O conceito de "Estado de compromisso" traduz uma situação de "ausência de hegemonia de qualquer um dos grupos dominantes" e exerceria "o papel de árbitro entre esses interesses". Cf. DRAIBE, S. Rumos e metamorfoses (um estudo sobre a Constituição no Brasil, 1930-1960). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

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esteve voltada, predominantemente, para a expansão do mercado interno e para a resolução de situações críticas que pudessem obstar a esse processo. 50 Através de seus agentes no nível estadual - os interventores federais- o poder central promoveu uma ampla reforma administrativa ao reestruturar, transferir ou mesmo extinguir uma série de órgãos, assinalando uma nova fase nas relações entre o Estado e o sistema político-econômico. 5 1 Em São Paulo, na área científica, que é a que interessa a esta análise, tem-se a transformação do Instituto de Higiene em Escola de Higiene e Saúde Pública. 52 A Escola Politécnica recebeu um novo regulamento que introduziu profundas inovações no seu seio, modificando praxes em uso desde a fundação. 53 No caso da Comissão Geográfica e Geológica, optou-se pela sua extinção. Transferida para a Secretaria da Viação e Obras Públicas,S 4 foi absorvida pela Inspetoria de Serviços Públicos, transformando-se na Diretoria de Serviços Públicos e da Carta Geral do Estado. 55 Por esse decreto, os objetivos reduziam-se ao "cadastro das quedas-d'água e estudo do regime das principais bacias hidrográficas" e aos "estudos sobre o aproveitamento das forças hidráulicas do Estado" .56 Apesar de manter no título o item "Carta Geral", todas as atribuições referentes a levantamentos cartográficos e mapeamentos foram integralmente suprimidas. Com essa reforma, o novo governo demonstrava claramente à CGG o papel que lhe reservara: os trabalhos destinar-se-iam, com exclusividade, à solução do problema energético. A ligação mais direta com a agricultura foi, no entanto, preservada institucionalmente, desligando-se o Serviço de Aproveitamento das Jazidas de Apatita de Ipanema da comissão e subordinando-o diretamente à Secretaria da Agricultura, Indústria e 50 KAWAMURA, L. K. Engenheiro: trabalho e ideologia. São Paulo: Ática, 1979. (Ensaios, 57). p.28-9. 51 IANNI, O. Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. p.14. 52 CAMARGO, A. M. F. de. Os impasses da pesquisa microbiológica e as políticas de saúde pública em São Paulo (1892 a 1934). Campinas, 1984. Dissertação (Mestrado), Faculdade de Educação-Unicamp. p.84. 53 NADAI, op. cit., p.89. 54 Decreto n. 5153 de 8.8.31. 55 Decreto n. 5161 de 12.8.31. 56 Coleção de leis e decretos do Estado de São Paulo. 1ip. do Diário Oficial, XLI, p.992.

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Comércio_-~?

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Outras reformas institucionais suceder-se-iam até 1937. A comissão, criada no bojo de um processo de transformações que resultou no domínio quase absoluto do poder por parte da oligarquia agora substituída, desempenhou seu papel de instrumento técnico-científico à consecução de políticas estaduais desta mesma oligarquia, em que pesem seus diferentes matizes. No momento em que uma nova correlação de forças passou a ocupar o poder central, um novo papel também se desenhou para a instituição; colaborar na solução do aumento da demanda energética por parte da indústria e das concentrações urbanas. A extinção da Comissão Geográfica e Geológica significou não o esgotamento da função de uma instituição de pesquisa no âmbito das Geociências, mas sim o reflexo de uma profunda reestruturação do Estado. A história da CGG permite considerá-la uma instituição da Primeira República. Mais do que mero acaso, a coincidência quase exata dos cortes temporais inicial e final da República Velha e da vida da comissão reflete a articulação entre os interesses da oligarquia cafeicultora e o trabalho dessa instituição de pesquisa.

57 Decreto n.5174 de27.8.31.

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Os discursos dos educadores paulistas tematizando a educação, nas décadas iniciais da República, norteiam-se pela idéia de ruptura. As interpretações dadas por educadores e governantes contemporâneos, referentes ao advento da República, fundadas na tese da ruptura, foram portadoras de um otimismo em relação às práticas de escolarização no sentido de percebê-las como meio de instauração de uma nova era, já que dotadas de um poder regenerador do social. A idéia de descontinuidade estabelece uma dissociação entre Império e República e se manifesta, de um lado, pela hipervaloração da escola republicana e, de outro, pela desqualificação da instrução e, de modo geral, de tudo que diga respeito ao regime que o antecede. A composição de um discurso antimonarquista no campo educativo, visando à legitimação da ação dos governantes e educadores paulistas na República, acabou por produzir referenciais simbólicos que até hoje permeiam nossas representações em torno do papel da escola. 1 ''

FEUSP. Nota-se, atualmente, nas práticas dos agentes escolares como representantes dos setores estatais de serviços públicos, uma versão iluminista atualizada que se

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A constituição do campo educacional paulista se inscreve no interior do projeto republicano, no qual a escola emerge como instrumento de progresso social e espaço de tratamento moral. A instrução elementar aparece como a ferramenta capaz de colocar o Brasil em sintonia com o progresso das sociedades civilizadas. Duas manifestações, situadas na última década do século XIX, são reveladoras dessas construções discursivas: Tarde soou para o Brasil a hora de sua redempção. A monarchia pensou illudir a Histeria, quando concentrou sobre o throno a projecção de toda luz que dimanava da vida nacional. O povo, como as figuras secundarias dos quadros de Rembrandt, ficou sempre na penumbra. Ao tocarem-no, porém, os primeiros raios da aurora libertadora, a estatua de Memnon disfere sons harmoniosos. Seu quasi vagido é já um cantico de esperança. O cego pede luz- o povo pede instrucção. 2 No inventario do passado só se encontravam algumas creações rudimentares: si se perguntava ao mestre em que consistia a instrucção publica, elle respondia mostrando casas sem ar e luz, meninos sem livros, livros sem methodo, escolas sem disciplina ... Eis por que, meus senhores, resolvido o problema econômico, o social e o político, voltou-se a atividade do governo republicano para a questão da instrucção: uma sociedade inteira volveu-se avida para o horisonte, e pediu luz. 1

Os dois discursos têm em comum a crença ilimitada no progresso que aparece associado à idéia de civilização. Na vertente da tradição iluminista a tese da perfectibilidade infinita da humanidade e da inexorabilidade da República Universal fundamentam a noção de

manifesta através de uma representação de escola como instância promotora do progresso, e de sua "clientela" como "um setor da população, cujo denominador comum é o atraso econômico e cultural". Uma eterna tensão que se estabelece entre cultura e incultura. Ver ROCKWELL, E., MERCADO, R. Una reflexión crítica sobre la noción "escuela-comunidad". In: La escuela, lugar dei trabajo docente: descripciones y debates. México: DIE, Civestav, IPN, 1986. p.47. 2 Discurso pronunciado pelo Dr. Caetano de Campos em 1890. Transcrito por RODRIGUES, J. L. Um retrospecto: alguns subsidias para a historia pragmatica do ensino publico de São Paulo. São Paulo: Instituto D. Anna Rosa, 1930. p.47. 3 Discurso de Cesario Motta em 1894. Citado por RODRIGUES, J. L., op. cit., p.339-40.

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progresso. O homem, visto como ser terreno, dotado de uma natureza racional, só pode ser aperfeiçoado pela ação educativa que torna possível a eliminação da ignorância, das superstições e dos maus costumes. O discurso proferido pelo Dr. Caetano de Campos, diretor da Escola Normal do Largo da República, aos professorandos de 1890 destacava o papel-chave da instrução popular para o novo regime e denunciava o descaso da Monarquia em relação à instrução pública. Recorrendo a metáforas iluministas, aponta para o deslocamento promovido pelo regime republicano em relação ao foco de luz na vida nacional que passa do Imperador para o povo. Este, mergulhado nas trevas da ignorância, enfim se vê libertado pelas luzes da instrução que pode atualizar o Brasil no universo da Civilização Ocidental. Cesario Motta Jr., secretário do Interior, por ocasião da inauguração do edifício da Escola Normal Caetano de Campos, em 1894, evoca o "espírito bandeirante" que constitui a alma do "povo paulista" para explicar o pioneirismo das reformas educacionais implementadas pelo governo do Estado de São Paulo a partir do advento da República. "Raça dotada de ânimo indômito e ousado" que no passado desbravou o sertão e no presente, com o mesmo espírito de iniciativa, constrói o progresso do Estado e da nação através da obra da "educação inteligente do povo". Sensível à necessidade de não se confundir com o Império, o discurso de Cesario Motta pauta-se por uma visão que opõe radicalmente Monarquia e República como estratégia para se criar um distanciamento em relação às práticas pedagógicas das escolas régias representadas como decadentes e ultrapassadas - e facilitar uma aproximação com um futuro grandioso, que envolveria, necessariamente, a questão da reforma e da difusão da instrução pública. A construção do majestoso edifício da Escola Normal da Capital é percebida pelo secretário do Interior como mais um indício de que nos encaminhávamos para a modernidade, ou, pelo menos, de que os republicanos paulistas tratavam de modo civilizado a questão do ensino público. Situado no Largo da República, destinado à formação do professor primário, o monumento arquitetônico passa a ser um símbolo do progresso paulista. "Esta festa o demonstra. Este templo o affirma. Ponto culminante da nossa

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architectonica, revela a altura em que a República collocou desde o seu início o problema da instrucção". 4 A idéia de ruptura que permeia estes discursos e antagoniza Império e República apresenta a queda da Monarquia e o advento da República como um imperativo da evolução do mundo social. "A Republica foi, pois, a synthese da ultima phase da nossa civilização." Toma a sociedade urbano-industrial como referência e destitui o Brasil de povo e nação. A imagem de povo no Império está associada à idéia de vazio e amorfia que precisa ser completada pela obra da instrução. O ingresso do país no universo da Civilização pressupunha a idéia de constituição do povo e da nação. O caráter ofensivo do projeto republicano perante a Monarquia sugere não se tratar de uma mera mudança de regime, mas sim de um projeto cultural que atravessa a sociedade completamente. Daí se entender a preocupação do projeto político republicano com o arraigamento de uma "nova moral", forma pela qual se efetivava a "interiorização da nova racionalidade e de um novo sentimento colectivo, fundidos com a vivência ritual de uma nova simbologia comunitária". 5 A tradução de postulados éticos e científicos em valores morais e normas de comportamento se faz por uma prática política que passa por uma prática educativa e de ensino. 6 Esse é um dos lugares no qual se situa o discurso educacional. Elaborado no interior do projeto republicano, nele encontram-se representações sobre a missão regeneradora da escola na nova ordem e a pretensão de direcionar os rumos da nação, de plasmar o povo, no âmbito específico do ensino. A "demopedia republicana" 7 propõe o reordenamento da educação como motor de aperfeiçoamento da espécie humana, e do ensino como meio de se atingir essa transformação. 4

O edifício continha quarenta salas destinadas aos cursos da Escola Normal e às classes da Escola Modelo. Ver RODRIGUES, op. cit., p.330. O jornal O Estado de S. Paulo, em 18.10.1894, informa que a construção desse "templo de instrucção" foi possível porque a verba destinada pela Monarquia à construção de uma catedral foi transferida para a educação. 5 CATROGA, F. O republicanismo em Portugal: da formação ao 5 de outubro de 1910. Coimbra: Faculdade de Letras, 1991, p.170. 6 Idem, p.170. 7 Idem, p.379-440.

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Nesse projeto, a voz de um grupo de educadores paulistas ecoou nas primeiras décadas deste século através da publicação da Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo (RE), veiculando as posições de um projeto educativo particular que pretendia colocar o Brasil em compasso com a Civilização. Neste, o papel da escola é hiperdimensionado no sentido de ser a instituição capaz de forjar o cidadão pela obra da reforma intelectual e moral.

A REVISTA DE ENSINO Publicada entre 1902 e 1918, 8 aRE figura como importante fonte para o estudo do debate político-pedagógico travado nas primeiras décadas deste século no Brasil, a despeito de ser uma publicação de iniciativa regional. Criada como publicação bimestral, o órgão de divulgação da associação docente paulista, de um lado, se propunha a defender os interesses da categoria, buscando intervir na feitura das leis e, de outro, a guiar os docentes em suas práticas ordinárias. Neste sentido, buscava interferir na discussão e no direcionamento de questões relativas tanto à formação do professor primário quanto à legislação referente à instrução primária, a fim de estruturar um sistema de ensino modelar para o Estado de São Paulo. 9 A missão dos educadores paulistas neste projeto é anunciada no artigo de Romão Puiggari, redator-secretário da RE. Intitulado "Questão dos programas" 10 e estrategicamente colocado como 8 A Revista de Ensino apresenta um ciclo de vida relativamente extenso, sobretudo quando se considera a efêmera vida dos periódicos da época. Tal estabilidade explica-se em parte por ter sido impressa por longo tempo na tipografia do Diário Oficial, a expensas da Secretaria do Interior, à qual as questões educacionais encontravam-se submetidas. Ver CATANI, D. B. Educadores à meialuz (Um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo - 1902-1918). São Paulo, 1989. Tese (Doutoramento)- Faculdade de Educação, USP. 9 Idem, p.83. 10 Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo (RE), v.1, n.1, p.13-17, abr. 1902.

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primeiro artigo de seu número inaugural, parece funcionar como um cartão de visita, indicando o sentido que se pretende imprimir à instrução elementar nesta fase inicial da RE. Para Puiggari, o problema central da educação paulista encontra-se na ausência de sistematização. A entrada na questão se faz através de uma avaliação da situação do ensino: "tudo que ha de bom, tudo quanto ha de realmente proveitoso, em methodos de ensino, encontra-se esparso, aqui e ali nas escolas". A partir desta constatação, propõe: "É tempo de entrarmos no período da definitiva systematização". O primeiro desafio que a estruturação do ensino coloca, segundo o autor, é o da confecção de um "bom programa", condição precípua para a construção de uma "boa escola". Seguindo ainda esta interpretação, o programa do ensino elementar deve procurar o desenvolvimento dos aspectos físico, intelectual, mas notadamente, o moral. ''A moral ensinada na escola deve ser a moral applicada" com o intuito de dar ênfase "à formação do caracter" e atuar como "modificadora dos defeitos da sociedade". O ensino da moral aplicada, sob este ponto de vista, implica a dignificação do trabalho, uma vez que: "deve despertar o amor ao trabalho; a honestidade publica e particular; a altivez politica; o respeito às autoridades". Já o seu bom êxito depende de uma ação "lenta e tenaz" que só a escola pode desenvolver. Enfim, conclui Puiggari, a condição básica para se obter um bom programa é a moral, já que o requisito básico que define o programa deve "tender a um fim moral, modificador dos defeitos actuais da sociedade". Passados quase treze anos desde a proclamação da República, o diagnóstico feito por Puiggari em relação "ao nosso apparelho escolar" produz uma crítica que se traduz em termos de proposta de ação. Longe da visão pessimista e derrotista a respeito do novo regime que começava a se construir, avalia a primeira década republicana como um "período revolucionário" caracterizado pelo "trabalho de propaganda" da escola pública e pelo esforço de criar estabelecimentos de ensino e escolarizar a população infantil. A anarquia que, segundo ele, imperava é tida como natural a todo período de organização. Tratava-se agora de entrar em um período posterior: o de organização sistematizada.

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I3I

Para ele, a idéia de sistematização do ensino está associada à uniformização e intervenção estatal. Clama pelo Estado, para que realize a obra de uniformização dos programas escolares em função de se fomentar um tipo de patriotismo capaz de produzir a coesão social. Defende a necessidade de o ensino elementar desenvolver a educação intelectual, física e moral - mas com predomínio da moral. No seu entender, o ensino elementar deve combinar o caráter educativo com o instrutivo, enfatizando o primeiro. A educação moral deve ser capaz de fabricar cidadãos através da instalação de hábitos e regras de condutas que propiciem a "inoculação de· sentimentos de vocação consensual à volta do ideal de cidadania", 11 tendo como objetivo último o estabelecimento da harmonia social. Em relação ao tratamento didático, considera a necessidade de que seja uma moral aplicada, isto é, aprender praticando, e não de forma abstrata, por meio de definições incompreensíveis para a criança. Pelo exemplo da postura do professor e do próprio ambiente escolar se poderá chegar ao melhor método de aprendizado, o da intuição moral, isto é, uma educação prática dirigida ao coração e à consciência, pelo trabalho gradativo e tenaz do professor. A estratégia de utilização de textos literários e históricos, de onde se evoca o exemplo de heróis e de momentos supostamente grandiosos da nossa história, assim como de ritos e cultos aos símbolos republicanos, constituem outras fórmulas de apoio à inoculação da moral republicana. 12 A educação moral proposta pela escola republicana visa à formação do caráter da criança modelado por uma idealização de cidadão. Um dos valores essenciais desta proposta é o culto do trabalho, que, por meio da absorção "intuitiva" de noções de honestidade, de amor ao trabalho, de respeito às autoridades, pretende forjar o cidadão de virtudes e docilizado, moralmente adequado para contribuir com a regeneração do social. De outra perspectiva, o discurso da RE remete para a experiência especificamente paulista. Produzido na capital do

11 CATROGA, op. cit., p.414. 12 Ibidem, p.411-2.

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Estado, nas décadas iniciais deste século, o periódico não ficou imune à emergência das questões sociais. A cidade de São Paulo passava, neste momento, por uma série de transformações que a empurrava ao encontro da modernidade. Nos anos subseqüentes à instalação do regime republicano, o grande afluxo migratório provocou o inchaço da cidade e o agravamento dos problemas sociais e urbanos. A expansão física desordenada, o crescimento demográfico desenfreado, o processo industrial e a diversificação na composição populacional geravam muitos problemas de convívio social neste espaço urbano e estimulavam a construção de imagens acerca da questão da "desordem urbana". 13 A multiplicidade de línguas e culturas ameaçava o processo de construção de uma identidade nacional pelas elites paulistas. As práticas de controle social se multiplicavam sem, contudo, conseguir debelar os problemas sociais. A multidão de desocupados e de trabalhadores casuais na cidade provocava a apreensão dos grupos dominantes, incentivando o aperfeiçoamento das estratégias disciplinadoras e repressivas que; no entanto, pareciam sempre muito limitadas para preservar a ordem pública. 14 O lançamento daRE, em 1902, ocorre neste momento de expressivo crescimento da cidade, e suas páginas registram nuança desta tensão social. O temor às "hostes destruidoras" transparece em suas publicações. Duas crônicas de Mario Arantes, então redator efetivo do periódico, manifestam o temor à confusão de línguas e culturas que ameaçavam a cidade e reivindicam uma política de controle direcionada a estabelecer a incorporação da população imigrante. Na primeira crônica, intitulada "O Ensino da Lingua Portugueza nos Collegios Particulares-I", 15 Arantes flagra o confronto que se estabelece entre nacionais e estrangeiros no âmbito da cidade, sob o olhar dos primeiros. Num tom alarmista, denuncia a ação 13 ADORNO, S. Educação e patrimonialismo. In: (Cadernos CEDES 25) O público e o privado na educação brasileira contemporânea. Campinas: Papirus, 1991, p.18-19. 14 PINTO, M. I. M. B. Cotidiano e sobrevivência: A vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo, 1890-1814. São Paulo: Edusp, 1994. 15 RE, v.VI, n.3, p.394-95, ago. 1902.

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corrosiva da imigração em relação à língua nacional, o seu efeito devastador em relação à constituição de uma identidade coletiva. O autor se posiciona na perspectiva de um brasileiro que sente a identidade nacional ameaçada diante dos diferentes grupos étnicos que invadem a cidade. A materialização desta identidade se faz, para ele, a partir da língua. Quanto à língua, entende que produz um sentimento de pertencimento à população e define, simultaneamente, uma diferença em relação ao outro. Desse modo, considera-a como o elemento aglutinador de um povo e definidor da noção de Pátria. A unidade da língua é, segundo o autor, o fator determinante na constituição de uma identidade nacional, pois, a partir dela, podem-se transmitir sentimentos, estabelecer trocas de princípios e valores necessários ao estabelecimento de um destino comum. A metrópole paulista, fragmentada pelas diferenças culturais, encontrava-se impossibilitada de viabilizar a Pátria. Dando prosseguimento ao debate, o autor publica no número seguinte uma segunda crônica: "Obrigatoriedade do Ensino de Língua Portugueza nos Collegios Particulares- II" .16 Nesta, Piuggari foi mais veemente tanto no que se refere ao nível da denúncia e da localização do outro, do "estranho à Pátria", quanto à apresentação de uma proposta de superação do problema. Nota-se, no entanto, a mesma apreensão presente na primeira crônica. Denuncia o caos urbano e responsabiliza o imigrante, notadamente o italiano, assim como o descaso do governo estadual paulista. Revela o modo como o imigrante, com suas falas e seus sons dissonantes, invade os espaços da cidade sem encontrar; em contrapartida, qualquer tipo de resistência do poder público. Tal situação tende a agravar-se porque o Estado permite que até as crianças nascidas no Brasil, mas de pais estrangeiros, sejam educadas em escolas particulares estrangeiras, segundo modelos nacionais diversos. No limite da questão da língua e dos hábitos e costumes emerge a questão de fundo: a de ordem social. De modo tangencial, menciona o problema da presença anarquista. Lembra os "muitos 16 RE, v.VI, n.4, p.581-3, out. 1902.

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agitadores que se misturam aos bons e laboriosos imigrantes", demarcando assim o espaço de confronto travado entre "nacionais" e "estrangeiros". Para o autor, a língua nacional e a organização do trabalho nos moldes capitalistas estavam sendo ameaçadas por um "inimigo interno" arraigado no seio da Pátria. Tratava-se de instaurar o saneamento moral da cidade pela integração da população estrangeira, que, no viés de Arantes, se dá pela escolarização. Subjacente a esta intenção encontra-se a idéia de que a instrução infantil deve ser desenvolvida sob a tutela do Estado. Nesse sentido, propõe ao Governo estadual a expansão da rede escolar de modo estratégico, em bairros em que a população estrangeira predomina, e a interferência direta nas escolas particulares estrangeiras, estabelecendo o português como língua nacional e a obrigatoriedade do ensino da História e da Geografia do Brasil como meio de incutir um sentimento nacional. Como forma de enfrentar a tensão resultante do convívio social em um espaço urbano, constituído por diversidades étnicas e hierarquias sociais tão significativas, o autor propõe o disciplinamento cívico-intelectual da população infantil a fim de organizar a população estrangeira e submetê-la a um projeto de reordenamento do social. Os discursos dos organizadores da RE podem ser lidos no cruzamento de duas tensões: de um lado, a produção de um discurso de caráter ofensivo, cuja intenção é eliminar as sobrevivências da tradição monárquica e, de outro, um discurso de éaráter defensivo perante a intensificação das questões sociais e que ambiciona desenvolver uma política integradora capaz de diluir os conflitos sociais. Ambos, resíduos do antigo e emergência do novo, insistiam em perturbar o projeto de enraizamento de sentimentos consensuais. É nessa dimensão que se inscreve o discurso da RE. Fica difícil pensar o projeto pedagógico da revista sem estabelecer as relações com estas problemáticas. As questões postas pela instauração da ordem republicana, assim como os problemas que emergem da sociedade urbana em acelerada expansão, encontram-se estampadas nas páginas deste periódico. É do interior destas questões que aRE propõe a sistematização do ensino com ênfase no aspecto moral, visando a regenerar a sociedade.

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I 35

Também é a partir destas preocupações que se podem entender as representações que seus produtores constroem acerca do magistério. Contrapondo-se à vivência docente cotidiana, propõem um professor idealizado. Nesse sentido, as práticas dos docentes são percebidas enquanto ausência e, como alternativa, constroem representações em torno da figura do professor primário como um modelo de virtudes cívicas. O professor primário, neste projeto que percebe a escola como regeneradora do social, é imaginado como um reformador social, e, como tal, também necessita ser reformado. "A grande obra da regeneração nacional" tem como "tarefa mais delicada dentre todas: formar a alma dum educador". Essa reforma dos professores pressupõe não só uma formação técnico-intelectual mas, sobretudo, moral. Uma formação inicial dada pela Escola Normal, que, segundo esse grupo de educadores paulistas, deveria estar direcionada ao desenvolvimento de um ensino enciclopédico, marcado pela presença das ciências naturais e de um saber técnico centrado nos processos intuitivos do ensino e no exercício prático dos futuros professores: elementos constitutivos do ensino moderno, 17 tidos como capazes de nortear o saber-fazer do futuro docente. No entanto, na imagem que procuram criar deste "novo" profissional, o papel do professor da escola elementar transcende a mera transmissão de conhecimentos, já que exige uma formação capaz de dotá-lo de um sentimento elevado de dignidade pessoal e moral, preparando-o assim para a nobre missão que a ordem republicana lhe atribui: "a de cultivar o espírito do povo, dando-lhe a elevação moral e a formação do caracter, para que saiba querer". Trata-se da "ortopedia da vontade", disciplinar a vontade no sentido de desenvolver uma "vontade moral" com o propósito de contribuir com a construção de grandes causas, sendo a maior delas colocar-se a serviço da Pátria. ARE se apresenta como um novo instrumento formativo, capaz de assegurar a formação sucessiva do professor primário em exercício. Gradativamente vai cunhando uma imagem de professor 17 É nítida a influência das concepções de Froebel e Pestalozzi no pensamento pedagógico do periódico.

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associada à idéia de reformador social, em oposrçao à figura decadente do mestre-escola do período monárquico. Estas imagens vão sendo continuamente reafirmadas no interior de um movimento que se assemelha à uma campanha de dignificação do estatuto docente, balizadas por uma concepção de escola, na qual ela emerge como uma oficina de forja do cidadão. 18 Através de uma estratégia discursiva, o periódico constrói, a partir de um mesmo movimento, um discurso de exaltação da profissão docente e de modelagem do caráter do professor, pensado como modelo de virtude. Curiosa relação que se estabelece, na construção desta imagem, entre a categoria profissional e o sujeito. Uma construção que, de um lado, confere prestígio social ao profissional e, de outro, exige abnegação pessoal. Simultaneamente à construção desta imagem sacralizada do profissional, que o eleva acima do cidadão comum, fabrica-se um arcabouço de modelação do caráter: disciplina, dignidade pessoal e abnegação são valores que vão sendo continuamente associados ao ofício pelos mentores do órgão. Definido como uma vocação, que pode ser natural ou adquirida, digna dos espíritos altruístas, a profissão docente assemelha-se, para eles, a um sacerdócio. Análogo ao clero de outrora, que cuidava da conversão das almas, o professor, agora instrumento da nação, deve cuidar da conversão dos cidadãos. 19 Colocava-se como impreterível aos produtores da RE a constituição de um código de valores morais para orientar a atuação docente. Entrelaçado ao projeto que visa a definir os rumos da nação, estes educadores atribuem à revista o papel de instância essencial no desencadeamento dessa transformação. Nessas representações o professorado é continuamente apresentado por atributos negativos: incapacidade, despreparo, inexperiência, inabilitação desvio de funções; resíduos da tradição monarquista. Já o periódico apresenta-se como ferramenta capaz de completar esses vazios, de efetuar a qualificação docente. Seus 18 NÓ VOA, A. Para o estudo sócio-histórico da gênese e desenvolvimento da profissão docente. Teoria e Educação, v.4, Porto Alegre, p.109-39, 1991. 19 As representações que a RE constrói em torno da figura do professor estão fortemente impregnadas pelas teses do positivismo comteano.

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I 37

produtores, por conseguinte, figuram como um "escol reduzidíssimo de talentos" capàzes de guiar a categoria. Do mesmo modo que a Escola Normal constitui um espaço legítimo de formação docente, os produtores da RE criam um espaço de legitimidade no periódico que os autoriza a assumir o papel de guia do professorado, com o intuito de complementar a sua formação. 20 A exaltação da profissão docente, dentre outras questões, funciona como uma estratégia discursiva utilizada pela retórica pedagogista republicana para esvaziar a sua dimensão política conservadora. Amparando-se em uma terminologia associada à idéia de Revolução, apresenta-se, reiteradamente, como parte de um processo de ruptura e de emancipação perante o arcaico; de transformação, de progresso, de modernização, enfim, de Civilização. No projeto de refundação da nação, a escola emerge como regeneradora do organismo social, dada a hipervalorização de seu papel socializador, e, como tal, deve garantir, sobretudo, a inoculação de uma nova representação da idéia de nação, através do fornecimento de uma moral regeneradora. Ao relatar a situação da cidade, o faz a partir da problemática da língua. Denuncia o caos urbano e responsabiliza o imigrante, notadamente o italiano, que com sua fala e seus sons dissonantes invadem os espaços da cidade sem encontrar, em contrapartida, resistência do Poder Público. Situação que, para ele, tende a agravarse em razão do fluxo migratório contínuo, do isolamento dos imigrantes em determinadas áreas da cidade, formando verdadeiros "guetos", e do descaso do Estado, que permite até às crianças de pais estrangeiros, nascidas no Brasil, serem educadas em escolas particulares estrangeiras, segundo modelos nacionais diversos. Em outro trecho da crônica, o alvo de Arantes é mais preciso e sua crítica mais contundente. No limite da questão da língua e dos hábitos e costumes emerge a questão de fundo, a da ordem social.

20 Interessante notar que parte significativa dos produtores daRE são formados pela Escola Normal Caetano de Campos nas décadas de 1880 e 1890, sendo este um dos lugares que os autoriza a explicar a realidade educacional e a propor a sua remodelação.

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De modo tangencial, menciona o problema da presença anarquista. Lembra os "muitos agitadores" que se misturam aos bons e laboriosos imigrantes, demarcando assim o espaço de confronto entre nacionais e estrangeiros. O relato faz uma descrição da cidade, ou melhor, de determinadas regiões povoadas por imigrantes. O tecido urbano reproduz a dicotomia entre brasileiros e estrangeiros, entre ordem e desordem. O autor fala do outro a partir do posicionamento de um nacional. A cidade habitada pelos brasileiros não aparece no relato, mas fica subtendida como o pólo supostamente correto, o lado da ordem, da língua portuguesa bem empregada, dos bons hábitos e costumes exemplares. A cidade povoada pelos imigrantes é a representação do caos: a desordem, a agitação, a promiscuidade das línguas, marcada por hábitos e costumes estranhos. Tudo parece remeter à diferença, à incompreensão. O temor ao indecifrável provoca a elaboração de figurações negativas em torno do imigrante. A bipolaridade na qual se estrutura o discurso vai se acirrando no final da crônica tornando-se perigosa. Utilizando uma terminologia bélica, descreve o inchaço da cidade como uma invasão inimiga, chegando a propor o aniquilamento do inimigo interno, caso ele se posicione contra os interesses da Pátria. No entanto, quando parece não haver mais possibilidade do estabelecimento de qualquer relação, Arantes reformula o discurso criando um elo entre nós e o outro. O outro deixa de ser exclusivamente o estrangeiro diferente, o anarquista desordeiro para consistir em "bons e laboriosos" imigrantes, agora semelhantes a nós. A partir desta identificação o discurso é reelaborado, possibilitando a articulação de uma proposta. Propõe três formas de ação com o objetivo de tornar homogêneas as diversidades culturais e de língua e evitar a fragmentação da Pátria. A partir desta proposta é possível distinguir o principal destinatário deste texto. Trata-se de uma crítica ao Governo estadual, sobretudo aos deputados estaduais responsáveis pela feitura das leis. Além disto, não se pode deixar de considerar que o texto foi publicado em uma revista direcionada ao professor primário, e deve ser pensado também do prisma da intencionalidade de divulgar a mensagem proferida pelo autor e pelaRE.

EDUCADORES PAULISTAS: REGENERAÇÃO SOCIAL, REPÚBLICA E NAÇÃO

139

É nítida a sua intenção de informar, de dar forma ao leitor. Arantes relata a situação da cidade conduzindo o seu leitor a uma tomada de posição - a sua. Partindo de um tema específico, o do ensino da língua portuguesa nas escolas particulares, o autor vai ampliando a dimensão do problema, passando pela questão da imigração, até transformá-la em um problema de dimensão nacional, como é a questão da ordem social. Inversamente, o encontro do outro se dá por uma operação de redução do foco: primeiramente o inimigo é associado a qualquer estrangeiro; em um segundo momento o estrangeiro é convertido no italiano que invade os espaços urbanos com sua linguagem, suas escolas e com "os disticos e taboletas de locandas, em algumas ruas desta cidade"; por fim, o inimigo maior fica reduzido aos agitadores, numa clara referência aos trabalhadores ligados ao movimento libertário. A atitude do Estado perante a educação e o ensino, e, sobretudo, o ensino primário, ilustra bem as prevenções dos republicanos contra o liberalismo radical em matérias que, a seu ver, poderiam pôr em perigo o consenso nacional. Para isso, deram continuidade a exigências funcionais intimamente ligadas à gênese e consolidação do Estado moderno - a elevação da Escola a instituição socializadora de conhecimentos e de valores -, tendência que, em Portugal, teve na criação das escolas primárias públicas pelo Marquês de Pombal o seu primeiro grande momento precursor... No entanto, é um fato indiscutível que existiu uma grande inadequação entre estas intenções e os seus efeitos práticos, apesar de terem sido inúmeras, e algumas bem significativas, as reformas que apostaram em combater o analfabetismo através do alargamento da rede escolar primária e secundária do ensino público ... Apesar dos relativos progressos detectáveis no campo do ensino primário - o número de escolas públicas triplicou de 1860 a 1900 e ... -, o índice de analfabetização continuou a ser grande, pois somente decresceu de 82,4o/o em 1878 para 78,6°/o em 1900. Deste modo não surpreende que a questão do ensino, e em particular do ensino primário, tenha se transformado num dos temas maiores de doutrinação republicana, tanto mais que o eco da política educativa da III República francesa começou, desde o início da década de 1880, a aparecer no seu discurso como prova

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ILÍADA PIRES DA SILVA

de que a democratização do ensino seria impossível sem a solução da questão do regime e da questão religiosa. Daí que, também para os republicanos portugueses, o princípio da obrigatoriedade fosse irrealizável sem outros dois pressupostos correlatos, a saber: a gratuidade, que só o Estado poderia garantir, e a laicidade. E foram essas ilações que, mais do que qualquer outra corrente, o republicanismo extraiu dos próprios pressupostos que reputava serem essenciais para garantir a criação das condições culturais adequadas ao pleno cumprimento dos direitos naturais e, portanto, à completa consumação da essência do homem- a perfectibilidade.

9 A ESFERA DA HISTÓRIA POLÍTICA NA PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE SÃO PAULO ( 1985-1994)

IZABEL MARSON * MARIA DE LOURDES MÔNACO JANOTII * * VAVY PACHECO BORGES***

O Grupo de História Política da ANPUH vem desenvolvendo uma avaliação sistemática sobre a produção da esfera do político no Programa de Pós-Graduação. Os resumos de dissertações e teses defendidas, publicados sob o nome Produção histórica no Brasil (19 851994), Projeto Pós-Graduação/ANPUH: Pesquisa, informação e intercâmbio, coordenado por Maria Helena Rolim Capelato, permitiram obter uma significativa visão do conjunto desta produção nos últimos dez anos, tendo sido objeto de um trabalho apresentado em mesa-redonda no XVIII Simpósio Nacional de História da ANPUH, realizado em Recife de 23 a 28 de julho de 1995, sob o título A esfera do político na produção acadêmica dos Programas de Pós-Graduação (1985-1994), de autoria de Marcia Mansor D'Alessio e Maria de Lourdes Monaco Janotti, com comentários de Vavy Pacheco Borges e Maria Helena Rolim Capelato. 1 Em prosseguimento a esse estudo foi planejado o presente debate, agora introduzindo um recorte temático que tem como objeto o Estado de São Paulo. *

Unicamp.

"* USP. *""Unicamp. 1 Publicados os três artigos em: Estudos Históricos, CPDOC, Rio de Janeiro, v.9, n.17, p.123-66, 1996.

142

IZABEL MARSON, MARIA DE LOURDES M. JANOTTI, VAVY P. BORGES

O corpo documental consultado é composto de 1.091 dissertações e 242 teses, num total de 1.333 trabalhos, distribuídos por 18 instituições de ensino superior que mantêm programas de pós-graduação. Deste total foram selecionados, segundo seu conteúdo político e relação com a História de São Paulo, 240 dissertações e teses. Apenas oito universidades, que representam 20,19 o/o da produção total dos Programas, não têm trabalhos sobre o Estado ou a cidade de São Paulo: UFMG, UNISINOS, UFRGS, UFBA, PUC-RJ, UFGO, UFSC, PUC-RS. As demais dez instituições, que representam 79,81 % de toda a produção dos programas, têm trabalhos sobre o Estado e a cidade de São Paulo.

Quadro 1 - Teses e dissertações sobre São Paulo defendidas nos Programas de Pós-Graduação de 1984-1995 N° de trabalhos defendidos

N° de trabalhos sobre Estado/ Cidade de SP

1. USP

351

120

34,18

2. PUC-SP

118

61

51,69

3. UNESP-Assis

59

24

40,67

4. Unicamp

69

21

30,43

5. UNESP-Franca

20

3

15,00

6. UNB

63

3

4,76

7. UFRJ

112

3

2,67

8. UFF

140

3

2,14

9. UFPE

93

1

1,07

10. UFPR

39

1

2,56

1.064

240

22,55

Universidades

Total

0/o

Fonte: Projeto Pós-Graduação/ANPUH: Pesquisa, Informação e Intercâmbio

A ESFERA DA HISTÓRIA POLÍTICA NA PRODUÇÃO ACADÊMICA

143

Os trabalhos analisados aglutinam-se a partir de temas afins, compondo conjuntos nos quais as relações de poder se expressam e se representam, possibilitando a apreensão de regularidades no modo de conceber o político. Esses conjuntos foram classificados em denominações entendidas como instâncias inter-relacionadas de disputas e conflitos: I - Estado e Instituições; 11 - Espaço, Gênero e Cidade; III - Classes e Etnias; IV - Ideologia e Artes. Cada um dos participantes do debate encarregou-se de analisar um ou dois desses conjuntos e de responder às seguintes questões: 1 Considerando a abrangência da esfera do político, como ela se manifesta nas diferentes áreas temáticas abrangidas pelos trabalhos sobre São Paulo? 2 Comente as representações sobre um espaço político, social e cultural determinado que envolvem a constituição de São Paulo como objeto de pesquisa. 3 Houve modificações no discurso historiográfico a partir de concepções veiculadas pelos autores da "Nova História Política"?

I RESPOSTAS DA PROFª MARIA DE LOURDES MONACO JANOTTI (USP) BASEADAS NAS ANÁLISES DOS CONJUNTOS l-ESTADO EINSTITUIÇÕES E11- ESPAÇO, GÊNERO ECIDADP Para melhor visualizar o Conjunto I - Estado e Instituições em relação ao grupo de trabalhos selecionados e às respectivas instituições que os produziram, elaboramos o seguinte quadro demonstrativo:

2 Muitas das observações aqui expostas encontram-se no trabalho já mencionado que redigi com a Profa. Marcia D'Aléssio por constituírem os trabalhos das universidades paulistas significativo número de outras dissertações e teses defendidas no país.

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IZABEL MARSON, MARIA DE LOURDES M. JANOTTI. VAVY P. BORGES

Quadro 2 - Teses e dissertações sobre o Conjunto I - Estado e Instituições Trabalhos sobre SP

Conjunto I Estado e Instituições

1. USP

120

37

2. PUC-SP

24

3. UNESP-Assis

Doutorados

Mestrados

30,83

19

18

6

25,00

-

6

61

3

4,9

-

3

4. Unicamp

3

2

66,66

-

2

5. UNESP-Franca

21

1

4,76

-

1

6. UNB

1

1

100,0

-

1

7. UFRJ

3

-

-

-

-

8. UFF

3

-

-

-

-

9. UFPE

3

-

-

-

-

10. UFPR

1

-

-

-

-

240

50

20,83

19

31

Universidades

Total

%

Fonte: Projeto Pós-Graduação/ANPUH: Pesquisa, Informação e Intercâmbio.

Dos 240 trabalhos selecionados sobre o Estado de São Paulo, 50 podem ser classificados no Conjunto I- Estado e Instituições, o que significa 20,83 %do total geral. Entretanto, esta cifra pode não ter um valor absoluto na medida em que o político institucional é o ponto referencial explícito do discurso acadêmico. Muitas das. observações que em trabalho anterior fizemos a respeito desse conjunto na análise de toda a produção acadêmica aplicam-se também ao caso do recorte sobre São Paulo. Poder-se-ia dizer ainda que o político é a dimensão da história que abriga as relações diretas e ideais do viver coletivo; é a instância do real onde se organizam com mais nitidez as experiências coletivas. Os homens vivem há séculos dentro de um espaço político institucionalmente delimitado- o Estado-, de cujo aparato jurídico,

A ESFERA DA HISTÓRIA POLÍTICA NA PRODUÇÃO ACADÊMICA

145

que se desdobra em vários seguimentos, depende, em grande parte, a vida das sociedades. A questão política se manifesta também informalmente - como mostrou Foucault - no exercício do poder detectado em diferentes relações sociais. A abrangência das ações institucionais torna os fatos políticos referenciais do tempo coletivo; pessoas, grupos, povos organizamse no tempo sobretudo através dos acontecimentos imediatos da política. O político é a emergência das experiências coletivas e não a proveniência no sentido que Foucault dá a estes termos. Ou seja, nem intenções ocultas nem subterrâneos incrustados nas tradições, mas aquilo que aparece, que se manifesta regulando as relações humanas. Lugar onde se experimentam vontades e sonhos coletivos, conscientes ou inconscientes. (D'Aléssio & Janotti, op. cit., p.124)

Identificam-se também construções que permanecem na esfera dos embates e conflitos no interior de partidos e grupos de poder, relacionadas no entanto ao Estado e à União .. Como observação, é interessante notar as transformações ocorridas no interior do discurso acadêmico: entre 1985 e 1994 vai desaparecendo a utilização do vocabulário marxiano, tão presente na década anterior, e sendo introduzidos conceitos como imaginário e representação. Nota-se, contudo, que em busca de sinonímias, às vezes inadequadas conceitual e teoricamente, a palavra elite substitui classe, resistência substitui lutas de classes, construção substitui processo etc. Para poder responder à segunda questão, classificamos o corpo documental específico do Conjunto I - Estado e Instituições considerando sua temática principal, nem sempre expressa pelos títulos das pesquisas. Em relação aos cinqüenta trabalhos selecionados, os temas foram assim classificados:

IZABEL MARSON, MARIA DE LOURDES M. JANOTTI, VAVY P. BORGES

146

Quadro 3 - Temas do Conjunto I - Estado e Instituições Temas do Conjunto I

N° de trabalhos

%

Partidos

11

22,00

Poder locaV revoltas e lutas

9

18,00

Políticas públicas

8

16,00

Igreja Católica/poder

6

12,00

União/Estado/classes

3

6,00

Poder provincial

3

6,00

Repressão

3

6,00

Poder Legislativo

2

4,00

Relações internacionais/capital estrangeiro

2

4,00

Política inter-regional

2

4,00

Personalidades

1

2,00

50

100,00

Total

Fonte: Projeto Pós-Graduação/ANPUH: Pesquisa, Informação e Intercâmbio.

Os trabalhos que integram este conjunto geralmente trataram os conteúdos políticos em inter-relação com o campo econômico, utilizando ou não categorias marxianas. Ainda nessa perspectiva, algumas interpretações podem ser vistas como exemplos de realização da "história total", propugnada pelos Annales e pelo marxismo. Também as questões do poder são tratadas com um perfil tópico muito nítido, embora apoiadas no plano econômico visto em seus aspectos conjunturais e estruturais. O capitalismo é o conceito maior que periodiza e explica a dinâmica da construção do poder em São Paulo. Em torno dele se articulam as classes, a Igreja, partidos e políticas públicas. A construção do Estado nacional burguês é vista em sua dimensão provincial, estadual e municipal. O Estado de São Paulo é um espaço

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e um objeto de estudo no qual a agricultura cafeeira e o industrialismo definem condutas públicas, a organização administrativa e a consciência social. Isto é reforçado especialmente pelas pesquisas sobre políticas públicas - setores de arrecadação de impostos, transporte, rede viária e saúde-, que são desenvolvidas com intuito de viabilizar o mercado de trabalho e capitais, bem como facilitar a circulação de bens agrícolas e industriais. Os capitais estrangeiros, empregados em empresas ou em empréstimos públicos, são avaliados politicamente pelos órgãos governamentais segundo os interesses das classes burguesas. As práticas políticas dos poderes Executivo e Judiciário durante a República não são personalizadas, havendo uma grande ausência: não são estudados os diferentes governos republicanos. O poder legislativo mereceu várias menções, bem como as constituintes, sempre dentro da visão dos interesses de classe representados pelos partidos políticos, concebidos como representação de classes ou de seus segmentos. Também aparecem representando segmentos aliados à diferenciação na produção etc. Os de esquerda sempre desenvolvem lutas idealistas em nome das classes populares, sem, contudo, conseguirem espaços políticos expressivos- com exceção do Partido dos Trabalhadores. Os da direita, mais ou menos liberais, aliam-se dividindo as fatias da dominação. No período estudado há apenas um trabalho sobre o golpe militar de 64 e dois sobre o Estado Novo. A maioria prende-se ao grande processo de consolidação da burguesia industrial no poder. Apesar de ser menos privilegiado pela produção acadêmica, o Poder Provincial aparece mais delineado em sua constituição, talvez por terem sido feitas pesquisas tópicas sobre ele. Os trabalhos sobre o poder local, centrados nos municípios e nos grupos e partidos, demonstram a grande dimensão que as lutas políticas podem assumir, pois se relacionam com outros níveis de poder. Registram mesmo revoltas contra os Governos Provincial, Imperial e contra a União, sempre resolvidas no âmbito da política oligárquica e coronelista. O processo eleitoral é destacado como a principal arma antidemocrática que viabiliza a dominação. O discurso sobre a questão regional aparece palidamente neste

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grupo. O único trabalho que enfatiza a questão é o de Pernambuco, localizando-a no contexto do capitalismo central e periférico; os demais caracterizam as diversas regiões do Estado apenas pela diversidade da produção, e estudam as medidas abrangentes e específicas para beneficiá-la. Confirma-se a idéia anterior que expus no artigo "Historiografia: uma questão regional?", 1 de que a historiografia paulista não desenvolve um discurso regional, na medida em que a história do Estado de São Paulo, no período republicano, confunde-se com a evolução econômica do próprio país e sua inserção no sistema capitalista. As personalidades nesse processo não são importantes, e talvez disso se depreenda que a prática política dos governos de São Paulo não sejam estudos atrativos para os historiadores. Entretanto, o mesmo não se dá entre os cientistas políticos; estes têm nas eleições e nos governos estaduais seu principal objeto de estudo. A Igreja Católica Apostólica Romana é considerada um órgão privilegiado do exercício do poder. Ora ligada ao Estado, ora a ele se interpondo, mas sempre parceira no domínio da sociedade. Sua organização e prática são examinadas no âmbito interno da instituição e em suas estratégias de conquista e manutenção de influência nas área públicas e privadas. Igualmente as contestações à hierarquia católica e ao seu conservadorismo, no período anterior à Teologia da Libertação, são estudadas dentro da dinâmica interna de seus quadros. A concepção desse tema é marcada, em vários trabalhos, de forma implícita ou explícita, pelo aparecimento da Teologia da Libertação, categoria conceitual máxima que periodiza externamente os conteúdos. Permite também nuançar o reacionarismo anterior da Igreja e abrandar o julgamento dos historiadores. É o presente que influi diretamente na visão do passado. Observação: Nesse conjunto excetuamos os casos de estudos sobre a ação da Igrejà em São Paulo sob o influxo da "opção pelos pobres" e da "teologia da libertação". Estes foram classificados no Conjunto li - Classes e Etnias, de acordo com a natureza da ação 3 SILVA, M. A. (Coord.) República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero, MCT, CNPq, 1990.

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desenvolvida, alocados, em geral, nos itens Trabalhadores rurais e urbanos ou índios. Refletindo sobre essas duas questões em relação ao Conjunto 11 - Espaço, Gênero e Cidade, achei por bem visualizá-lo, elaborando o seguinte quadro demonstrativo: Quadro 4 - Teses e dissertações sobre o Conjunto li - Espaço, Gênero e Cidade Trabalhos sobre SP

Conjunto 11 Espaço, Gênero e Cidade

1 USP

120

25

2 PUC-SP

61

3 UNESP-Assis

Doutorados

Mestrados

20,83

12

13

11

18,03

-

11

21

4

19,04

-

4

4 Unicamp

24

2

12,50

-

3

5 UNESP-Franca

3

6UNB

3

7 UFRJ

3

8 UFF

3

-

-

-

-

9 UFPE

1

-

-

-

-

10 UFPR

1

-

-

-

240

43

12

31

Universidades

Total

%

-

-

17,91

Fonte: Projeto Pós-Graduação/ANPUH: Pesquisa, Informação e Intercâmbio.

Dos 240 trabalhos selecionados sobre o Estado de São Paulo, 43 podem ser classificados no Conjunto li- Espaço, Gênero e Cidade, o que significa 17,91 o/o do total geral. Também sobre este conjunto muitas das observações de caráter geral que fizemos em trabalho anterior englobando toda a produção acadêmica (já mencionado) se aplicam no caso do recorte sobre São Paulo.

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A atenção do olhar historiográfico em direção ao "discurso popular discordante" abriu um leque de novos objetos de pesquisa, como, por exemplo, habitação, saúde, lazer, alimentação, costumes, emoções, religiosidade, o saber sempre representando a luta pela sobrevivência dos mais pobres, vista como ato político e estratégia de resistência à dominação que permeia o tecido social. A luta política que se trava é interpretada como construções e desconstruções da correlação de forças sociais em confronto no espaço urbano. Os trabalhos voltam-se para o universo da cidade intermediado pela análise dos discursos sobre a modernidade. Essas pesquisas vinculamse, na sua maioria, à história das representações e das mentalidades. Além da Sociologia, a Antropologia e a Semiótica consorciam-se com a História: o inusitado e o diferente constituem-se em objeto de conhecimento. Porém, não se trata mais da concepção de culturas exóticas, objetos da antropologia no passado, mas do diferente dentro do conhecido, do "outro" dentro do "nós". Nos dois últimos anos a palavra "cultura" é a melhor solução semântica para cobrir um universo tão plural, tão anticonvencional, apesar de tão histórico. Esfacela-se a univocidade que, por vezes, a montagem do discurso demonstrativo exigiu. No entanto, o conceito de cultura ainda é pouco teorizado e empregado de forma tão abrangente que todas as atividades e práticas sociais são por ele englobadas, o que o faz perder qualquer sentido explicativo. O mesmo acontece com o termo "resistência", que, desvinculado do sentido organizativo, é designativo das estratégias de sobrevivência das camadas pobres da população. Memória e fontes orais são ferramentas para o desenvolvimento de muitos estudos da História Imediata que neste conjunto aparecem com muita freqüência. Também classificamos o corpo documental específico do Conjunto II - Espaço, Gênero e Cidade considerando sua temática principal, nem sempre expressa pelos títulos das pesquisas. Em relação aos 43 trabalhos selecionados, os temas foram assim classificados:

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Quadro 5 - Temas do Conjunto IV - Ideologia e Artes N" de trabalhos

%

Cidade

19

44,19

Mullier

10

23,26

Fam11ia

8

18,60

Excluídos

6

13,95

43

100,0

Temas do Conjunto IV

Total

Nesse conjunto as cidades constituem o principal tema analisado. Elas são ao mesmo tempo sujeito e objeto das pesquisas. Doze trabalhos referem-se à cidade de São Paulo, e deles dez são sobre o período republicano. A urbanização é vista como um processo de espoliação dos mais pobres em detrimento da exploração imobiliária que se apóia no imaginário sobre o progresso. Esse grande esquema comporta análises específicas sobre o saber profissional dos novos técnicos em serviços urbanísticos, sobre o saber médico e higienista aliados à idéia de modernidade. A capital e as demais cidades sucumbem à chamada modernização, que destrói seus espaços significativos e sua memória. Essa destruição também se volta para a eliminação física da população dentro e fora da cidade, como é o caso de Conceição de Monte Alegre, em que a expansão da ferrovia Noroeste Paulista exigiu em nome do progresso a dizimação dos índios locais. O objeto São Paulo, Estado ou cidade é constituído nesses trabalhos dentro de uma visão de mundo dramática da dominação burguesa, que é esquadrinhada em todos os sentidos. Movimentos de contestação são estudados no cotidiano das favelas e bairros de São Paulo. Entrecruzam-se em uma História Social abrangentes festas, memorialismo, epidemias e quebra-quebras. Continua a existir também uma íntima correlação entre o desenvolvimento das forças produtivas, o crescimento urbano e a modificação das mentalidades. Emergem nesse conjunto da produção atual e com forte presença, temáticas relacionadas à situação feminina e à situação dos excluídos.

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Os estudos sobre a mulher dedicam-se mais à pesquisa da condição feminina na família e na sociedade. Centralizam-se nos séculos XIX e XX explorando: a educação religiosa e pública voltada para o papel tradicional desejável de mãe e dona-de-casa, reforçada no Estado Novo; a imprensa feminina católica; personalidades da elite cafeeira e canavieira; mulher trabalhadora negra e branca; mulher alienada mental; e um único trabalho sobre o movimento feminista em 1970, ligado à esquerda partidária. Alguns utilizam-se da História Oral, e a maioria de documentação convencional. Esse tema liga-se diretamente ao estudo da família e dificilmente poderia ser analisado independentemente. O tema da família engloba as relações maritais, extraconjugais e também o papel social da mulher. Foram analisados: sistema sucessório, casamentos consangüíneos e de escravos dentro da perspectiva da História demográfica e da autoridade patriarcal na colônia e no Império. As transgressões da ordem familiar mereceram atenção no que se refere ao divórcio, anulação de casamentos, infidelidades através de processos públicos e religiosos. Seis trabalhos estudaram doentes mentais, tuberculosos e presos. Nota-se neste subconjunto forte influência de Michel Foucault. Conceitos como punição exemplar, disciplinamento e exclusão, acompanhados da resistência possível nesses casos, informam as análises. A cidade imiscui-se no universo dos presos e o saber científico no universo dos doentes. Vítimas de preconceitos e sem cidadania permanecem imersos no desprezo e no esquecimento. Ao mesmo tempo que esse discurso acadêmico se nega a reconhecer categorias gerais de explicações da macro-história, cria novos pólos de análise ao politizar o cotidiano e fazer subir à tona os conflitos e dificuldades dos excluídos de todas as procedências. A terceira pergunta ~xige uma resposta que globalize os dois conjuntos que avaliei. Retornar ao público é, no momento, a palavra de ordem da Historiografia francesa, que parece ter se sensibilizado com as diversas críticas à denominada Nova História, vindas principalmente de outros países e, em especial, da Inglaterra. Retornar, implicitamente, é reconhecer que durante um largo período houve o abandono da História Política pelos historiadores. Apesar de

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reconhecer que a Nova História francesa abriu amplas possibilidades no campo da pesquisa, a maior critíca contra ela reside na produção de um discurso narrativo fragmentado sem vínculos com a totalidade. Não é sem razão que autores importantes do início do século, como Seignobos, após terem sido rotulados de "positivistas", permanecendo durante décadas afastados das bibliografias, atualmente estão sendo relidos e revalorizados pelo grande volume de pesquisa e erudição que revelaram. De pouco lembrados, passaram a ser mencionados até pelo ativo grupo dos novos historiadores da "esfera do político" - termo substitutivo do clássico "História Política". Reconhecendo o valor da antiga erudição, desenvolvendo criativas metodologias, aliadas às teorias das representações e do imaginário político, esses pesquisadores vêm desenvolvendo uma nova conceituação da explicação política. Dentre eles, o nome mais conhecido é o de Réné Rémond, inspirador de vários trabalhos dentro desse campo. O repúdio à História Política tradicional deveu-se à sua concentração no estudo do Estado/Nação, dos comportamentos individuais dos grandes personagens, dos eventos circunstanciais e das situações conjunturais efêmeras. Esses acontecimentos eram organizados sob um racionalismo redutor das descontinuidades e das contradições. Dessa forma, a História Política passou a ser vista como um retrato da ideologia dominante e ocultadora da verdadeira realidade. Contribuiu para isso a força da explicação marxista da História que enfatizava a importância das estruturas econômicosociais, bem como o papel da luta de classes, como instâncias em que residiam as verdades mais profundas. A partir da década de 1980, a Historiografia francesa vem revitalizando a análise do conteúdo político, trazendo-o para o estudo do coletivo e não apenas circunscrevendo-o à ação exclusiva da classe política. Réné Rémond justifica esse ressuscitado interesse pelo próprio crescimento das funções do Estado e pelo desenvolvimento das políticas públicas na prática democrática. As escolhas políticas passam então a ser vistas não apenas como reflexos das ações de categorias socioprofissionais, mas também comportando um espaço livre da ação e da interferência do setor público. Na medida em que a sociedade contemporânea exige do

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Estado medidas para assegurar sua sobrevivência e bem-estar, em conseqüência, o Estado cresce em poder e abrangência de funções. No Estado democrático as eleições são decisivas para a vida social, assim como a legislação trabalhista para o mundo do trabalho e as leis normativas para o desenvolvimento do ensino. Movida pelas exigências dessas modificações, a reflexão histórica passou a reconhecer a política como uma prática social identificável em todos os campos de investigação. Os trabalhos de E. P. Thompson, Maurice Aguilhon, Jacques Le Goff, Raymond Williams, François Furet, Marc Ferro, entre outros, apontam para o alargamento da compreensão do domínio do político, definido recentemente por Pierre Rosanvallon como "o lugar onde se articulam o social e sua r'epresentação, a matriz simbólica na qual a experiência coletiva se enraíza e ao mesmo tempo se reflete". Esse conceituado emergente da prática historiográfica contemporânea interdisciplinarizada procura compreender em um mesmo ato de conhecimento a longa e a curta duração, bem como o locus por excelência onde se realiza o reconhecimento da essência do histórico. Ante as antigas acusações de demasiada preocupação com o efêmero e o meramente cronológico, a proposta da atual história política é desenvolver análises combinativas entre seus vários ritmos - o instantâneo e o lento - e seus aspectos contínuos e descontínuos. Aplicando a teoria braudeliana sobre o tempo histórico, reconhece três instâncias: a pequena duração, que abrange o registro do cotidiano da esfera de decisão política, como por exemplo os golpes de Estado, as mudanças de governo, as sucessões ministeriais etc.; a média duração, que engloba acontecimentos mais estáveis, relacionados à longevidade dos regimes políticos, do sistema jurídico, dos partidos, do sistema eleitoral etc.; e a longa duração, em que subsistem as ideologias das formações políticas. Esses três níveis não constituem um setor separado da vida social, econômica e cultural; associam-se às práticas religiosas, comerciais, culturais, do trabalho, relacionando-as à totalidade do político-social. Dessa forma, ambiciosos campos têm sido explorados com significativas releituras da história político-institucional. O próprio gênero biográfico, de enorme sucesso comercial, passa a ser visto

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como uma ação conjunta na qual o biografado e o autor participam de uma construção de hipóteses, controvertidas ou não, sobre as relações sociais. É relevante destacar que estas novas posturas da história política aparentemente pouco impacto vêm causando em nosso meio, talvez pelo fato de a produção acadêmica, apesar de também se dedicar a novos objetos e abordagens, ter mantido o político como principal referência de seu discurso. Sob as diferentes posturas metodológicas empregadas na ordenação das pesquisas em História do Brasil, 'há uma matriz interpretativa abrangente que direcionao discurso histórico em sua ordenação e constituição. A concepção da História nacional subjacente a antigos e novos temas tem um substrato persistente identificado mesmo em momentos de adoção a posturas teóricas, consideradas por seus produtores como renovadoras do conhecimento. Intriga-nos constatar que tantos trabalhos de orientação assumidamente marxista ou gramsciana, como aqueles que lhes atribuem uma visão mecanicista e totalizante, inspirados em Foucault, na Nova História francesa, E. P. Thompson ou Hobsbawm, cheguem a análises muito semelhantes do empírico e de suas representações. O mesmo é possível dizer quanto aos estudos sobre a mulher, a cultura popular, a cidade e a introdução de "novos personagens" na História que abriram temáticas e abordagens surpreendentes em nossa historiografia. Em suas versões menos elaboradas, essas posturas contestadoras de uma "historiografia oficial", figura ainda pouco definida e estudada, que consiste na maior interlocutora do discurso universitário, onde aparece sempre de maneira implícita ou explícita. Com quem discutem os acadêmicos? Discutem com manuais, livros didáticos e pensadores da chamada direita conservadora, cujo ponto em comum presumível é a construção de uma narrativa linear, homogeneizada e redutora dos conflitos sociais. No entanto, estes interlocutores pertencem a tempos e lugares diferentes da produção intelectual, nem sempre relacionados entre si, e, por essa razão, com pouca probabilidade de constituírem conjuntamente um único "discurso oficial".

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O diálogo com a própria historiografia parece ser bem menos cultivado. Filósofos, antropólogos, lingüistas, sociólogos e cientistas políticos são os interlocutores preferenciais do discurso acadêmico. Sob a impressão de que toda a produção anterior é fruto de uma atitude tradicional - positivista e, necessariamente, de conotação autoritário-reacionária -, descarta-se o exercício da compreensão da historicidade que lhe é própria. No entanto, há na historiografia sobre São Paulo contemporaneidade de estilos interpretativos e maneiras diferentes de captar o objeto de reflexão, como ademais em todas as áreas do conhecimento, que dificilmente se acomodariam dentro de um mesmo modelo de retórica. À primeira vista, a leitura do conjunto de teses e dissertações induz a pensar na fragmentação do discurso histórico e na recusa da idéia de totalidade. Contudo, a maioria delas refere-se, em todos os momentos da História do Brasil, a projetos ferozes visando à dominação que, partindo do Estado, das classes ou das elites, tem por objetivo perseguir, excluir, enganar. Entretanto, este enunciado mergulha toda essa produção na instância do político, solidarizandoa com a matriz principal do nosso pensamento historiográfico, reconciliando-se com a tradição dos nossos bons historiadores. A esfera do político, além de ser referência datável mais concreta, organiza e situa o discurso no tempo e no espaço. As situações políticas são mais captáveis como eventos, e é no evento que cotidianamente as pessoas vivem. Convém salientar que os memorialistas letrados têm no político seus pontos referenciais, enquanto os demais elegem em suas narrativas momentos cruciais de sua luta pela sobrevivência, apontadas por muitos como atitudes de resistência. Como a instância do político, pensado abrangentemente como Rosanvallon, organiza a história e o pensamento, nossa historiografia tem um caminho próprio, no qual as idéias não são modismos e nem estão fora de lugar. O Brasil não é ainda concebido como uma nação, e sim como um território em formação, com espaços de exclusão, onde se exerce a mais feroz dominação econômica e social - dominação essa iniciada pelo colonialismo, estendida aos proprietários e traficantes durante o Império, compartilhada entre as burguesias agrária, industrial e comercial, e agora também

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detectada de forma permeada pelo tecido social, mas nunca anônima. Os atuais historiadores a descobrem nas representações discursivas ou em outras linguagens. Não pode ser diferente, a consciência da exclusão que brota da realidade brasileira é por demais poderosa e imperativa, e é por isso que a nossa historiografia tem nela sua maior referência.

2 RESPOSTAS DA PROFa DRa IZABEL DE ANDRADE MARSON (Unícamp) BASEADAS NA ANÁLISE DO CONJUNTO 111 CLASSES E ETNIAS Dentro do eixo temático Classes e Etnias, continuaram a ser apresentados assuntos clássicos relacionados com a historiografia de orientação marxista já trabalhados na década anterior: estudos sobre o empresariado urbano (indústrias) e rural (fazendeiros); e sobre os "movimentos sociais" lato sensu (entendidos como situações de conflito social) - movimento do operariado urbano, de trabalhadores rurais, sobre a escravidão (século XIX) e sobre as imigrações italiana, americana, portuguesa, alemã, japonesa e leta nos séculos XIX e XX. Mas, ao lado destes temas já tradicionais, foram também incluídos objetos novos. Diversificaram-se e ampliaram-se os estudos sobre a escravidão; foram incorporados eventos bastante recentes, em destaque movimentos contemporâneos de favelados e moradores da periferia da cidade de São Paulo; e também foram realizadas pesquisas sobre tribos indígenas atingidas pela expansão colonizadora no oeste do Estado de São Paulo no final do XIX e no início deste século. Apesar de esta produção acadêmica no período de 1985 a 1994 ter privilegiado temas que já vinham sendo desenvolvidos anteriormente, podem-se assinalar consideráveis alterações na abordagem deste objetos. Nota-se um alargamento da esfera do político, na medida em que houve uma redefinição dos significados de tais temas. Dessa forma, a imagem dos movimentos sociais e da "classe trabalhadora" agigantou-se substancialmente, e passou a incluir praticamente todos os homens e mulheres que constituem a força de trabalho: trabalhadores da cidade e do campo; escravos,

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imigrantes e indígenas, surpreendidos em múltiplos momentos de sua história e em quase todas as suas atividades. Em nosso entender, aconteceu, ao mesmo tempo, uma universalização e uma singularização da esfera do político. Por um lado, politizaram-se quase todas as experiências vivenciadas em sociedade; mas, por outro, essa politização passou a ser flagrada em situações históricas pontualizadas, ou, em outras palavras, numa micro-história. Por essa razão, as categorias explicativas clássicasmodo de produção, pré-capitalismo, capitalismo, revolução, revolta, burguesia, operariado, movimento operário, luta e consciência de classes, por exemplo - ampliaram-se para incorporar outros referenciais, tais como cotidiano, resistência individual ou de pequenos grupos, experiência e cultura popular. Neste procedimento, o singular (os estudos de caso) se sobrepôs ao universal, minimizando sua importância e fazendo que os esquemas globalizantes ficassem em segundo plano ou fossem redefinidos, embora eles não tenham sido superados. Assim, a "burguesia" industrial e agrícola paulista e sua atuação emergem corporificadas no estudo de projetos individualizados (de empresários ou de instituições), a partir dos quais não há, necessariamente, a preocupação em generalizar. Abordaram-se o IDORT, os projetos de Roberto Simonsen e Jorge Street; a política da Associação Comercial do Estado de São Paulo; o Centro de Indústrias de Tecelagem do Estado de São Paulo; a Cia. das Docas de Santos; as Estradas de Ferro (Paulista, Noroeste, Mogiana e a São Paulo Railway); a Fazenda Taquaral; as Usinas Monte Alegre e Nova América; os projetos de colonização de Jaú, Santa Bárbara do Oeste, Rubinéia e Lins etc. Inovou-se, sobretudo, na preocupação, na maior parte dos casos, em avaliar em detalhe as dissidências e as tensões internas, assim como as "frações" das elites paulistas. Podese considerar que o conceito de "ideologia dominante" foi pelo menos problematizado. Todavia, dos objetos abordados neste eixo temático, a "burguesia" e sua atuação é que sofre menos alterações, principalmente quando sua imagem permaneceu comprometida com o modelo clássico de "movimento social", aquela que percebe o conflito como dicotomia entre aproximadamente 20% das teses apresentadas.

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Os "movimentos sociais" e a "classe trabalhadora" foram a temática mais recorrente (abrangeram 80% dos trabalhos arrolados em "Classes e Etnias") e a que mais se transformou no período especificado. Ao lado das instituições tradicionalmente relacionadas com a luta de classes - os sindicatos, os partidos e os aparelhos de Estado - alinhou-se um amplo contingente de novos sujeitos históricos que praticamente reelaborou os conceitos de classe trabalhadora, consciência e luta de classes. Tornaram-se sujeitos históricos, com direito ao exercício da política, da história e da memória: o indivíduo comum em sua atuação individual ou coletiva; a família trabalhadora (com especial ênfase nas mulheres); os favelados; os trabalhadores urbanos e rurais dos mais diferentes matizes; os moradores da periferia; os escravos; os movimentos negros; os índios e os imigrantes. A incorporação do cotidiano à esfera do político redimensionou todos os atos de homens e mulheres comprometidos com o mundo do trabalho· e exigiu a recorrência a categorias explicativas ao mesmo tempo amplas (porque remetem a todo comportamento social) e específicas, porque reconhecidas em situações individualizadas. Foram elas resistência, imaginário coletivo, visões de mundo e cultura popular, conceitos que vieram se sobrepor às designações anteriores. Os estudos sobre a classe operária extrapolaram lugares tradicionais do confronto capitaltrabalho - a fábrica, o sindicato e o partido - e identificaram o trabalhador como indivíduo e classe em suas relações com a família; com as associações de bairro; com o poder público; com a Igreja e em movimentos pela cidadania. Também foram desenvolvidos trabalhos que analisaram o conflito entre empresários e trabalhadores em empresas menos convencionais. (se comparadas às fábricas), como é o caso das estradas de ferro, dos portos, das fazendas e dos projetos de colonização. Por sua vez, os trabalhadores do campo (das lavouras de cana e café) - rendeiros, posseiros, bóias-frias, além dos índios e dos escravos - foram admitidos "sem discriminações" no interior desta ampla "classe trabalhadora", perdendo seu estatuto "menor" perante o movimento operário. A minimização da importância dos esquemas explicativos amplos também desvalorizou questões imprescindíveis para o historiador em relação às pesquisas desenvolvidas na década

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anterior, tais como: Qual a natureza da sociedade brasileira? Trata-se de uma sociedade de classes, estamentos ou castas? Capitalista, pré-capitalista ou de transição? Apesar de todas estas modificações, ainda há significativas permanências na concepção do tema "movimentos sociais", tanto nos pressupostos historiográficos quanto na relação sujeito-objeto. Neste sentido podemos lembrar a preocupação com a refundação de marcos, a existência de sujeitos históricos privilegiados no processo histórico e a preservação de categorias analíticas delineadas de maneira uniforme, como por exemplo burguesia, trabalhadores, mulheres etc. Todavia, o traço de continuidade que mais se destaca é a relação de identidade entre o historiador e seu objeto de trabalho, essa ampla "classe trabalhadora". Respondendo à terceira questão, considero que os trabalhos desenvolvidos dentro da temática Classes e Etnias durante o período abordado inscrevem-se predominantemente na área de História Social (lato sensu) ou da Antropologia Histórica. Não se remeteram ainda à Nova História Política, nem se inspiraram numa única matriz teórica. Os estudos sobre os movimentos sociais em geral e a classe trabalhadora em particular inspiraram-se, fundamentalmente, na New Social History, à qual foram associados alguns nomes de outras procedências teóricas. Espelharam-se em historiadores marxistas ingleses e americanos, particularmente E. P. Thompson, E. Hobsbawm, G. Rudé, C. Hill, E. Genovese e P. Linebaugh, ao lado de quem são muito freqüentemente colocados C. Ginsburg, R. Darnton, P. Burke e M. Bakhtin. Às vezes, recorreu-se também a historiadores da "terceira geração" da "Escola dos Annales": G. Duby, J. Le Goff e, mais recentemente, R. Chartier. Vale a pena assinalar ainda neste encaminhamento teórico, em especial em estudos sobre a classe operária, a aproximação entre S. Marglin, C. Castoriadis e M. Foucault - combinados com Thompson e Hobsbawm - especialmente para a abordagem da politização e disciplinarização do cotidiano dos trabalhadores das fábricas, ou pesquisas sobre o anarquismo. Pode-se, portanto, concluir sobre a recorrência ao associativismo teórico e uma tendência à interdisciplinaridade, procedimentos que deram ongem a significativas alterações na prática historiográfica.

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a) Houve um inegável enriquecimento das fontes instrumentalizadas pelo historiador; a multiplicação dos temas e objetos viabilizou a valorização de vestígios e testemunhos escritos, orais e materiais. Houve, também, uma reavalização das fontes mais tradicionais, oficiais ou não, que passaram a ser revisitadas e analisadas sob um enfoque diverso, não mais apenas como banco de informações, mas como versões de uma dada realidade. A dimensão política das fontes tornou-se tão importante quanto os dados nela contidos. b) Em um número expressivo de trabalhos, o texto do historiador procurou espelhar-se na narrativa, porém, adaptada às premissas teóricas da temática dos movimentos sociais. c) Estabeleceram-se "revisões" teóricas: • as interpretações que concebiam os episódios particulares como comprovações empíricas de grandes esquemas explicativos se restringiram e deram lugar a estudos de caso; • houve uma problematização do conceito do tempo identificado com o progresso, fato que abalou certezas com relação a filosofias da história e modelos de revolução, tanto aqueles aparentados com o marxismo quanto os filiados ao liberalismo. Nesse sentido, minimizou-se o significado de paradigmas clássicos (feudalismo, pré-capitalismo e socialismo), assim como suas trajetórias. Revisaram-se as relações presente-passado e as temáticas do historiador. Múltiplos momentos e objetos tornaram-se assuntos de reflexão; passou-se a atribuir a mesma importância a episódios do passado e do presente. • a politização do cotidiano, contemplado em qualquer tempo e circunstância, reconceituou o lugar e o estatuto dos movimentos sociais e do historiador. Este último assumiu por inteiro (sem a necessidade de recorrer a maiores justificativas "científicas") os compromissos com sua própria historicidade e com a dimensão política de seu trabalho. Reavaliou-se o conceito de objetividade e a relação sujeitoobjeto, e não são raras as circunstâncias em que a contemporaneidade e a identidade política são condições sine qua non para a concretização dessa objetividade. Em

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muitas situações, o historiador incumbiu-se, deliberadamente, da missão de registrar a história daqueles que não tiveram ou não têm acesso aos meios de registro da memória. O alargamento da esfera do político e a redefinição de categorias clássicas da análise marxista reafirmou, com mais intensidade, a prática da história como um exercício da política.

3 RESPOSTAS DA PROF ORa VAVY PACHECO BORGES (UNICAMP), BASEADAS NA ANÁLISE DO CONJUNTO IV IDEOLOGIA E ARTES Para conseguir analisar os resumos das dissertações e teses, eu gostaria de ter conseguido destacar em cada um deles: qual o objeto em questão; quais as fontes utilizadas; quais os conceitos empregados e quais as referências teórico-metodológicas. Infelizmente, quase nada disso ficou claro para mim através dos resumos elaborados pelos estagiários da ANPUH; como eu não tinha familiaridade com as teses em minha experiência de docência, não consegui suprir todas essas dificuldades e chegar aonde gostaria nessa minha análise deste conjunto. Foi praticamente impossível perceber referências teóricometodológicas pelos resumos. Quanto aos conceitos, foi-me explicado que os estagiários copiaram os resumos feitos pelos autores. Mas eu me perguntei, e passo a vocês essa minha preocupação: como garantir que, em todos os resumos, os termos que encontramos empregados são somente os usados nas dissertações e teses? Penso isso por que, em minha pesquisa sobre a origem do termo tenentismo, utilizei-me com grande proveito da obra Elite intelectual e debate político nos anos 30 (organizada por Lúcia Lippi de Oliveira, do CPDOC). Nesse, encontram-se os resumos das inúmeras obras que surgiram na década de 1930, tratando da história política desse momento. Muitos dos resumos mencionam obras que, segundo os resumistas, tratam do tenentismo. Ora, quando eu pegava os livros pesquisando a origem do termo, percebia que o termo não era empregado; o que eu encontrava eram referências a fatos que, para os resumistas, constituem o que hoje consensualmente

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se entende por tenentismo (como a Revolução de 1924, a Coluna Prestes, os interventores militares etc.) Quanto às fontes, parece-me interessante registrar que o pequeno uso da imprensa como fonte, apontado no início dos anos 70 em artigo da Revista de História por Ana Maria de Almeida Camargo, inverteu-se completamente; nota-se hoje nos resumos um freqüente uso da imprensa, seja como meio fundamental de análise das idéias e projetos políticos, da questão social, da influência do Estado e da censura etc., seja como fonte complementar para história do ensino, dos comportamentos, do cotidiano.

QUANTO À PRIMEIRA QUESTÃO

Como vocês perceberam pela formação do Grupo de Trabalho de História Política (GTHP), estamos preocupadas em ver como entre nós se está trabalhando teórica e metodologicamente essa hoje dita "história política", quais e como se constituem seus objetos etc. Creio que procuramos concretizar isto em toda a concepção do workshop, na formulação das questões para todos os participantes das quatro mesas. Mas é muito difícil compartimentar a história e separar uma "história política" das "outras histórias" que foram cada vez mais se impondo nas últimas décadas. Maria de Lourdes Mônaco Janotti e Márcia D'Aléssio, em levantamento para o Simpósio Nacional da ANPUH em Recife em 1995, definiram os trabalhos por elas escolhidos para avaliação dessa área: "textos pertencentes ao universo do político, visto como o lugar onde se expressa o jogo de poder que permeia as relações humanas". A meu ver, essa definição é ampla, mas bem clara. O número de trabalhos por ela levantados surpreendeu, devido a um anteriormente apontado "desprestígio da História Política": correspondiam a 66,46% da produção geral. Isso se deve, a meu ver, ao fato de o político ter tomado uma importância cada vez maior no mundo moderno, seja devido ao papel crescente ocupado pelo Estado em nosso cotidiano (agora em recuo no mundo neoliberal), seja porque passamos a nos preocupar com o poder presente em toda e qualquer relação humana.

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Muitíssimos dos trabalhos para hoje selecionados poderiam ser considerados característicos do que se pode chamar de uma história política "tradicional"; dos quatro conjuntos especificados desde Recife e mantidos para esta apresentação, o conjunto 1 -Estado e Instituições -(analisado aqui por Maria de Lourdes Monaco Janotti) é realmente o mais característico. Mas, como dissemos, para nós hoje a história política é bem mais abrangente; surgiram assim os outros três conjuntos. Os trabalhos do conjunto Classes e Etnias (analisados por Izabel Marson) podem ser também atribuídos à chamada História Social. (Acho irresistível lembrar uma boutade - algo bem ao gosto dos franceses - de Ernest Labrousse: "História social? E vocês conhecem alguma história que não seja social?"). O conjunto Espaço, Gênero e Cidadania reúne os trabalhos com objetos que se cruzam com uma história urbana, história de gênero, história das chamadas minorias. O conjunto Ideologia e Artes - que me foi atribuído- desde o levantamento de Recife fora subdividido em: 1 cinema, teatro, rádio, música, fotografia, arquitetura; 2 imprensa; 3 autores; 4 ideologia; 5 ensino, política educacional, literatura. Nessa subdivisão, encontrei ainda mais uma dificuldade: os trabalhos do grupo Ideologia e Artes foram bem menos numerosos, e, dentre esses poucos, um número ainda menor permitiu-me refletir na linha das questões formuladas. Como é o caso dos conjuntos 2 e 3, os trabalhos a mim atribuídos podem ser vistos como pertencentes a outras áreas da História, em especial a uma História cultural (ou História intelectual, como querem os americanos), como se evidencia na listagem dos subconjuntos. Mais um problema, a meu ver: a subdivisão que fora feita para o Recife deixou a desejar, pois os subconjuntos não me parecem excludentes. Tenho sobretudo dificuldade em pensar ideologia como um subconjunto autônomo, pois para mim a questão de uma "ideologia" - que aparecia tratada de uma forma mais simples nos anos 70 e hoje surge de forma bem mais complexa quando não é posta lado em proveito da idéia de representação - parece estar diluída em todos os outros subconjuntos.

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Assim, acabei tendo muito pouca análise para discutirmos aqui. Não me foi possível se encontrar um exemplo da abrangência do político em cada subconjunto. Exemplos encontrados: 1 A redescoberta da festa: o teatro amador na cidade de São Paulo no início do século XX: nesse trabalho se discutem as diversas identidades culturais de São Paulo e a integração de bairros; a repressão e resistência de grupos libertários; a discussão da questão social; os conceitos de modernidade, tradição e ruptura; 2 Um mestrado e um doutorado de um mesmo autor: Censura, imprensa, Estado autoritário,1968-1978: O Estado de São Paulo e Movimento, discute-se o exercício cotidiano da dominação e da resistência; e Caminhos cruzados: Imprensa e Estado autoritário no Brasil (1964-1980), como evidenciam os títulos, são discutidas as relações entre a imprensa e o Estado autoritário de 1968 a 1980; 3 Pátria, civilização e trabalho, o ensino de história nas escolas paulistas (1917-1939), discute o ensino público de história no Estado, suas festas cívicas, datas e heróis, os conceitos de nação e de trabalho apreendidos nos currículos.

QUANTO À SEGUNDA QUESTÃO Separamos no início muitos trabalhos para meu grupo, cujos objetos estudados se situavam dentro dos limites espaciais da cidade ou do Estado de São Paulo. Por exemplo, um trabalho que estudasse um autor que nasceu e viveu em São Paulo, como Monteiro Lobato ou Mário Schemberg. Entretanto, a leitura da maioria dos resumos, conforme já dito, não me permitia nenhuma reflexão nas linhas pedidas pelas questões; assim, descartei-os. Desde o contato inicial, patenteou-se para mim a ambigüidade do termo São Paulo, o qual define ao mesmo tempo o Estado da federação e a sua capital. Tive que me esforçar para descobrir no resumo muitas vezes se o trabalho se referia ao Estado ou à cidade, e nem sempre o consegui. (Se trabalhasse não com o resumo e sim com as dissertações ou teses, é claro que seria diferente.) É uma ambigüidade que provoca o próprio termo, e os autores, ao empregá-lo, muitas vezes disso não se dão conta, não a esclarecem e mesmo às vezes se confundem. O

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fato de que essa capital é a cidade de maior destaque econômico no Estado e no país tem, obviamente, seu papel em reforçar essa ambigüidade. Por exemplo: M. Helena Capelato intitulou sua tese Os intérpretes das Luzes: liberalismo e imprensa paulista (1920-1945), mas creio que quer se referir a jornais paulistanos. Outra discussão significativa que atravessa a meu ver estas análises de conjunto é a conceituação e abrangência de uma "história regional". Como Maria de Lourdes M. Janotti observou desde meados dos anos 80 em levantamento sobre a produção uspiana, a história de São Paulo nunca foi vista pela historiografia acadêmica como uma história regional. O regionalismo marca nosso debate político nos momentos em que as di vagens regionais mais se destacam, como foi o caso nos anos 30,50 e 60. Essa questão precisa ser discutida em suas diferentes vertentes, e alguns textos, como o República em migalhas- História regional e local, organizado por Marcos Silva (no qual está o citado texto de Maria de Lourdes M. Janotti), e o v.8 da revista Estudos Históricos têm procurado fazê-lo. Nossa história republicana, aponta ainda a mesma autora, parece apresentar o desenvolvimento de São Paulo como padrão comparativo para outras análises de Estados, chamadas em geral de "histórias regionais"; o que, apontado como "brasileiro", é muitas vezes "paulista", ou por vezes "ainda, paulistano". Até agora, parece-me, pode-se brincar que tudo que não trata de São Paulo (e também por vezes Rio de Janeiro) é considerado história regional. Creio que até hoje, aliás, só nas universidades do interior do Estado (como Campinas, Assis, Franca ... ) há a preocupação com uma história regional. A questão da história regional se imbrica com a da história local; e a história da cidade de São Paulo nunca é pensada enquanto uma "história local", como acontece freqüentemente na França ou na Inglaterra. São Paulo aparece como sujeito principal da história nacional brasileira na mesa-redonda que coordenei neste encontro. 4 A partir das três participações nessa mesa-redonda, evidencia-se que, desde o final do século passado, procurou-se construir essa identidade através de diferentes produtos da cultura e com o concurso de vários ramos do saber; entre muitos elementos dessa construção, 4 Referência aos textos de Abud, Ferreira e De Luca, publicados nesta coletânea.

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destacou-se o bandeirismo. Dessa forma, a construção de São Paulo como sujeito maior da história nacional se dá no campo da cultura, na construção de mitos, de elementos simbólicos, de crenças que fazem parte do jogo político, como todos sabemos: esse jogo não é somente baseado na razão e nos interesses, mas também nos sentimentos, nas crenças, nos mitos. A construção de São Paulo como maior sujeito da história do Brasil, como eu mesma tenho trabalhado há alguns anos, fica bastante evidente no episódio de 1932 e, a partir dele, em momentos posteriores em que se quer exaltar o papel do Estado na política nacional. Isso se dá seja em falas de dirigentes políticos, seja nos meios de comunicação, seja no imaginário social em prosas do cotidiano. Nessa linha mais definida encontrei somente dois exemplos em meu grupo: um trabalho sobre Oswald de Andrade e seu livro Marco Zero, que vê "o discurso histórico elaborado por Oswald sobre a modernidade brasileira, que tem como ceotro o território paulista"; outro trabalho sobre o historiador Afonso Taunay, que "inventa historiograficamente a tradição bandeirante" (curiosamente, esse não é um trabalho defendido em universidade paulista). Alguns dos trabalhos selecionados para meu conjunto analisam temas que perpassam a história da cidade, do Estado ou do país, como a imigração, a educação religiosa, a indústria cultural, o socialismo, o integralismo, a "modernização". Muitos de seus objetos estão situados no espaço da cidade ou do Estado; por meio da leitura do trabalho talvez se pudesse perceber esse papel atribuído a São Paulo. Por exemplo, há um trabalho sobre modernização e cinema no Brasil, em que se analisam os cinemas da cidade de São Paulo e o "desenvolvimento do modernismo no Brasil". Nos resumos percebe-se que, no limite, há inúmeras vezes a referência à nação como totalidade, conforme já destacado.

QUANTO À TERCEIRA QUESTÃO A chamada História Social surgiu opondo-se à História Nacional. Atrás do tão falado "retorno" (que na França se deu desde os anos 70), o que se percebe é que essa História Política incorporou os

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tipos de questionamentos, as abordagens da História Social; posteriormente, incorporou também os da História Cultural, esta reformulada a partir dos conceitos de prática cultural e de representação, assim como a idéia da luta entre as representações, como analisou Roger Chartier. Hoje em dia a História Política vê o contingente e o estrutural, o descontínuo e o contínuo. E ainda mais uma observação de caráter geral: parece-me que o historiador do político mostra-se mais sensível às questões do presente. Ainda na linha desta questão, assinalo que, no conjunto que analisei, encontrei trabalhos com objetos que poderíamos chamar de tradicionais, mas com preocupações renovadoras. Exemplos: um trabalho sobre a Escola Politécnica de São Paulo, com uma análise sobre "os aspectos ideológicos da arquitetura", mas que se propõe a analisar a "construção como produto simbólico"; outro trabalho sobre os gabinetes de leitura da província de São Paulo no século XIX, vistos como "lugar topográfico da memória coletiva", em que se trata do espaço urbano e das idéias liberais.

PARTE 2 REPRESENTAÇÃO E PATRIMÔNIO

IOO MODERNISMO NAS ARTES PLÁSTICAS: ALGUMAS RELEITURAS

ANNATERESA FABRIS*

Pensar a arte moderna não implica apenas pensar na constituição de uma nova espacialidade e de um novo repertório formal. Se essa operação é fundamental na definição do acervo lingüístico da expressão moderna, ela, no entanto, não basta quando se tenta analisar a relação que o novo idioma formal estabelece com a sociedade. Essa operação apenas interna é insuficiente para compreender os alcances da arte moderna porque, se esta instaura uma nova noção de espaço pictórico, instaura igualmente uma nova noção de espaço de atuação para a ação cultural, e é nesse sentido que a "aparição" de Anita Malfatti em 1917 deve ser analisada. Uso o termo "aparição" de propósito, porque a exposição de Anita Malfatti em dezembro de 1917 marca um fato determinante na história da arte brasileira, sobre o qual é necessário se deter para compreender as razões menos aparentes do escândalo que gerou. A artista já havia realizado uma exposição em 1914, logo após sua volta da Alemanha, que não desperta um grande interesse na crítica, apesar de apresentar obras cromaticamente expressionistas. Mesmo a mostra de 1927 não teria suscitado um debate maior se Monteiro Lobato ECA- USP.

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não tivesse desfechado um ataque violento contra a concepção de arte que nela estava explicitada e que vinha pôr em xeque sua própria concepção de modernidade, alicerçada no naturalismo. Se forem analisadas as críticas à exposição publicadas no Correio Paulistano (14 de dezembro) e em Vida moderna, percebe-se que os dois periódicos se sentem deslocados diante da proposta da exposição, que procuram, no entanto, reportar aos parâmetros da arte internacional e a seus efeitos subversivos em termos de percepção. Por entre os elementos anticonvencionais, que vão de um desenho arbitrário a uma pincelada larga e violenta, insinuamse as qualidades positivas da jovem pintora, que não deixam de ser ressaltadas e elogiadas. Nesse clima morno em relação à exposição, entre perplexo e compreensivo, insere-se abruptamente a tomada de posição de Monteiro Lo bato, que percebe no conjunto das obras de Anita Malfatti e de seus convidados estrangeiros a marca da decadência, de uma visão anormal e teratológica, produtora de "mistificação pura". Da contraposição entre normalidade, alicerçada na fidelidade à natureza e na obediência aos princípios eternos da arte, e anormalidade, fruto da alteração do universo ou de um cérebro em desarranjo, emerge aquela caracterização que para Lobato constitui a feição própria da arte moderna: caricatura da forma e da cor com um único intuito, desnortear o espectador. Se Anita Malfatti se inscreve na corrente teratológica com seu "impressionismo discutibilíssimo", isso não impede que o crítico perceba suas qualidades positivas, infelizmente mal empregadas "a serviço duma nova espécie de caricatura". O desperdício de talento que Lobato detecta na pintora merece algumas considerações para que a atitude tomada em "A propósito da exposição Malfatti" 1 possa ser compreendida em todas as suas implicações. A concepção da modernidade de Anita Malfatti chocase com aquela do crítico que, em seu artigo, não se detém em nenhuma obra, nem mesmo naquelas que Marta Rossetti Batista considera portadoras do "germe nacionalista da época'? preferindo

1 O Estado de S. Paulo, 20.12.1917. 2 BATISTA, M. R.Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: IBM, 1985, p.71.

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desfechar seu ataque contra a arte moderna como um sistema global a ser rechaçado em sua integridade. Estudando o episódio a distância, é possível afirmar que Anita Malfatti enseja a operação de Lobato pela moldura na qual coloca suas obras. Expor junto com seus quadros obras modernas de autores estrangeiros é uma atitude estratégica da pintora, que quer mostrar sua linguagem inserida no contexto fortemente tingido de nacionalismo. Tadeu Chiarelli, que formulou essa hipótese, assim analisa a questão: "E o fato foi que Malfatti conseguiu seus propósitos: chocou o ambiente expondo suas obras e as de seus colegas e protegeu-se do choque colocando em discussão não a sua produção, mas a arte moderna". 3 Para poder enfrentar a arte moderna, Lobato é obrigado a rever suas posturas e seus conceitos e a fundir naturalismo e academismo, apagando toda distinção anteriormente estabelecida. Confrontado com as obras de Anita Malfatti e de seus colegas, o crítico percebe que elas não colocavam em xeque apenas a sua proposta nacionalista. Elas "pontuavam uma questão anterior a qualquer postura ideológica tendente ao naturalismo: apontavam a existência de uma visualidade outra, não mais colada à mera transposição para a arte da verdade aparente". 4 Percebendo o perigo inerente às obras modernas, Lobato elude todo princípio diferenciador entre naturalismo e academismo para lutar contra o inimigo comum que solapava o princípio fundamental da fidelidade ao real. O choque entre Monteiro Lobato e Anita Malfatti transcende, pois, o espaço específico da manifestação pictórica e aponta para aquele outro espaço mediador do intercâmbio entre a obra e o público. Se Lobato vence momentaneamente o embate, isolando as primeiras e tímidas adesões à pintora, é porque ele está inserido num espaço crítico estruturado em volta de princípios e obras nos quais o público se reconhece e aos quais adere como que naturalmente. O espaço institucional não tinha nenhum contraditar, e isso marca uma diferença fundamental entre o empreendimento de Anita Malfatti e as vanguardas européias. Se estas contestavam a 3 CHIARELLI, T. Um jeca nos Vernissages. São Paulo: Edusp, 1995. p.196. 4 Idem.

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"instituição arte" como aparato ideológico de formação e propagação de um determinado gosto e construíam para si um sistema alternativo, integrado por marchands e críticos alinhados à causa moderna, 5 não era isso que ocorria no Brasil. Anita Malfatti enfrenta sozinha a "instituição arte", tipificada por Monteiro Loba to, não podendo contar com qualquer apoio crítico consistente porque a idéia de arte moderna era ainda uma nebulosa para aqueles que viriam a ser os modernistas. Assim, Anita Malfatti é precursora de uma consciência de vanguarda no sentido mais rigoroso do termo: toma a dianteira, aventura-se no território inimigo e, se não ganha, abala, no entanto, os alicerces de um edifício que parecia sólido, lançando as sementes para uma ação estruturada que começa a se configurar em 1920 com a constituição do grupo modernista. Embora não esteja imune ao diálogo com o fauvismo e com o cubismo, conhecidos nos Estados Unidos, Anita Malfatti é uma artista muito próxima do léxico expressionista, como mostra a maior parte das obras expostas em 1917. Usa a cor de maneira antinaturalista, determinando o significado da imagem, que associa a uma pincelada larga e à simplificação dos volumes. A imagem parece brotar da matéria, parece materializar-se diretamente, em vez de reproduzir uma visão exterior. A deformação, que é conseqüência da fusão expressiva entre tema e forma, concretiza-se em proporções alteradas, em planos angulosos, em assimetrias acentuadas, mostrando que Anita Malfatti, tal como os artistas expressionistas, não tem no referente exterior o parâmetro de sua visão da realidade, enformada, ao contrário, pela subjetividade. Essa arte "independente e nova", que havia rompido, nos dizeres de Menotti Del Picchia, "a nossa sonolência de retardatários e paralíticos da pintura", 6 não consegue ser plenamente absorvida pelos modernistas, que designam emblema da postura moderna um artista de feição eclética como Brecheret.

5 FABRIS, A. Modernidade e vanguarda: o caso brasileiro. In: . (Org.) Modernidade e modernismo no Brasil. Campinas: Mercado de Letras, 1994. p.18-9. 6 FABRIS, A. O futurismo paulista. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1994. p.49.

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O isolamento de Anita Malfatti no momento do embate com Lobato amplia-se, no começo dos anos 20, no grupo inovador, que localiza uma nova atitude estética num artista de mediação como Brecheret, que lança mão do princípio da deformação sem romper de todo com o código naturalista. O escultor, que desperta a atenção de Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia no começo de 1920, caracteriza-se por uma linguagem eclética, na qual se fundem a poética do não-acabado de Rodin, uma certa elegância art-nouveau, resquícios da linha serpentina da de Michelangelo, traços por vezes arcaizantes, ao lado de certos registros de derivação naturalista. Se a linguagem de Brecheret se insere num conjunto de tradições conhecidas e dominadas por seus descobridores, há nela um outro elemento prontamente sublinhado por Del Picchia a partir de um paralelo com a arte européia: Brecheret é portador de uma visão nacional, "tropical e indígena", tanto na anatomia quanto no "movimento bárbaro e interior" que anima suas figuras. 7 O que equivale a dizer que o primitivismo faz dele um artista moderno e nacional, logo mais integral do que Anita Malfatti, tão-somente moderna quando de sua aparição em 1917. O que havia feito falta no momento da aparição de Anita Malfatti começa a se constituir como sistema embrionário em volta de Brecheret, que conta com o apoio de uma crítica militante, capaz de definir e defender sua modernidade. A equação entre arte moderna e crítica moderna seria perfeita se, à semelhança do que já foi dito da linguagem de Brecheret, não me visse obrigada a caracterizar como híbridas as categorias que regem a análise de sua obra. Mais do que híbridas, tais categorias se configuram como antimodernas, se a arte moderna for definida como busca da autonomia e da especificidade lingüística, como estruturação de novas formas de expressão e de percepção, oriundas da paisagem tecnológica, como fuga deliberada do extra-artístico e de qualquer associação de derivação literária ou de cunho descritivo. Nas críticas que os modernistas dedicam a Brecheret, o desconhecimento do universo da arte moderna se impõe à primeira

7 Idem, p.52.

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vista. É o caso sobretudo de Menotti Del Picchia, que valoriza o domínio técnico do escultor, confere primazia ao tema, sempre em busca do efeito, procura situar Brecheret no interior da história da arte, determinando para tanto pontos referenciais como Michelangelo, Rodin, Bourdelle, Mestrovic, Wildt. Não é diferente a operação de Ivan (provavelmente Oswald de Andrade), cuja leitura se pauta por categorias literárias de cunho decadentista, e não plásticas. Eva, por exemplo, é caracterizada como "a mulher da Terra", "a filha do limo trazendo no sangue estuante o fogaréu interno do planeta, levando nos cabelos o cheiro verde dos vegetais e nos seios o milagre amoroso da germinação. Por isso ela enfia os dedos longos da mão esquerda na terra, num apoio de filha, enquanto com a mão direita acaricia as moedas lindas do pecado". Também a Cabeça de Cristo merece uma análise de conteúdo, não-formal: "Naquela imobilidade pensativa, naqueles lábios sobrenaturais, no ríctus da boca, nas tranças arcaicas, o artista conseguiu prender, de modo genial, as tragédias, as esperanças, o sacrifício divino - todo um calvário de imolações formidandas. O 'Cristo' de Brecheret é Deus". 8 A história da arte à qual os modernistas fazem constantemente referência afigura-se como um modo de legitimação da pesquisa de Brecheret, remetida a nomes consagrados, a autoridade, como que para referendá-la. Os equívocos conceituais são numerosos em mais uma demonstração de que os modernistas, no começo dos anos 20, não dominavam as categorias da arte moderna, pautando-se, não poucas vezes, pelos critérios acadêmicos, contra os quais pretendiam dirigir seus ataques. O inegável desejo de mudança não era acompanhado por idéias precisas sobre a essência do moderno, provavelmente porque os modernistas pouco sabiam do século XIX que pretendiam negar. É nesse contexto incerto e confuso que a estilização modernizante de Brecheret é alçada a expressão moderna e revolucionária, quando não passava, na verdade, de um híbrido, de uma "montagem" de

8 IVAN, V. B. Papel e tinta. São Paulo: v.l, n.2, jun. 1920.

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estilemas provenientes de sistemas antagônicos, habilmente fundidos pelo escultor numa estrutura aparentemente coesa e nova. A recontextualizar o caso Lobato-Malfatti e ao problematizar a noção de arte moderna que guiava os primeiros ensaios críticos dos modernistas, estou chamando a atenção para o modo como foi construída a historiografia do modernismo. Não se pode esquecer que essa historiografia é, em grande parte, derivada de uma visão crítica gerada no calor da hora pelos próprios protagonistas do movimento e, portanto, comprometida com uma idéia de arte congenial aos interesses do grupo. Se isso é compreensível em termos estratégicos, é necessário, porém, que o historiador que pretende interpretar os fatos de um passado recente esteja atento a construções comprometidas, a mecanismos de troca, a verdadeiras negociações, ou seja, que se demonstre sensível à compreensão da constituição de um sistema cujo objetivo declarado era, desde o início, a conquista dos espaços institucionais. É necessário, ao analisar o discurso crítico elaborado pelo modernismo, estar atento não apenas à relatividade de juízo inerente a tal tipo de operação, mas igualmente, e diria, fundamentalmente, àquela estrutura de relações de forças simbólicas estudada com tanta precisão por Bourdieu. Das três relações apontadas pelo autor dos produtores de bens simbólicos com um público de produtores ou um público estranho a tal corpo; dos produtos com as diferentes instâncias de legitimação; das instâncias de legitimação com o público dos produtores e o grande público 9 - importa reter sobretudo a segunda. Nela se situam aquelas instituições específicas capazes de consagrar um certo tipo de obra e de artista, e a crítica é, sem dúvida, uma dessas instâncias de mediação, por ser um instrumento de reforço à conformação de novos modos de percepção. O pensamento crítico, portanto, deve ser visto em seu papel de instância de legitimação de um sistema de valores e não de maneira ingênua ou casual. Só assim será possível determinar o modo como o modernismo forja sua auto-imagem, tanto a partir da atuação do grupo de literatos, que são simultaneamente os críticos do 9 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992. p.118-9.

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movimento, quanto a partir da elaboração de um determinado repertório iconográfico, cujo objetivo explícito era reforçar tal mecanismo através da criação de representações positivas dos principais agentes do processo. 10 Se a crítica for vista enquanto instância de legitimação de um sistema de valores e não pura e simplesmente como um exercício pessoal, muitos preconceitos e falsas visões cairão por terra e novas possibilidades de análise se abrirão para o historiador. O embate entre Anita Malfatti e Monteiro Lobato deixará de se revestir de conotações negativas para se configurar como uma tensão entre duas concepções possíveis, embora irreconciliáveis, de arte moderna: uma de derivação oitocentista, alinhada ao credo naturalista; outra que desloca o ato de ver do exterior para o interior, tendo como paradigma não Courbet, e sim artistas visionários como Munch, Ensor ou Van Gogh. Não compreendida por Lobato, Anita Malfatti não é igualmente compreendida por seus companheiros modernistas, embora tenha sido por eles transformada na "vítima" de um episódio que, ainda hoje, é interpretado a partir de categorias cristalizadas. Quando falo em incompreensão de Anita Malfatti, não estou pensando apenas no fato de Brecheret ter-se tornado a primeira figura-símbolo da arte moderna, em consonância com uma idéia vaga de modernidade, regida não pelos pressupostos das vanguardas históricas, e sim por um diálogo aberto com a tradição e pelo respeito aos fundamentos técnicos do fazer artístico, nos quais se estribava aquela operação conhecida como volta à ordem. Penso, por exemplo, numa leitura proposta por Mário de Andrade em 1921, na qual a artista expressionista, embora elogiada por possuir "a verdadeira técnica subjugada pela personalidade", passa em segundo plano diante da autora de A estudante russa, não pautada por aquelas deformações violentas que pareciam incomodar o senso estético do crítico, imbuído de categorias ainda realistas. A Anita Malfatti que Mário de Andrade prefere é aquela que se afasta "totalmente do impressionismo. Representa com eficácia o retorno à construção

10 Ver a esse respeito: MICELI, S. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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equilibrada, que é um dos anseios da arte contemporânea. O equilíbrio dalgumas obras como a Cabeça de negro, a Mulata vendedora de frutas, o Homem amarelo, o Retrato de Lalive denotam uma ciência abalizada e um conhecimento profundo da serena arquitetura dum lngres ou dos artistas do Renascimento. O equilíbrio é justamente a sua maior qualidade, como a cor é a sua maior força expressiva" .11 Aliás, diante da rápida parábola descendente da artista, diante da acomodação de seu léxico a categorias tradicionais, perguntome se Anita Malfatti foi, de fato, expressionista. Ou se, no seu caso, o expressionismo não passou de um conjunto de formas sabiamente apreendido, sem que a artista penetrasse em sua essência interior, que poderia ser resumida nas palavras de Roger Cardinal: "confiança irrestrita na expressão direta dos sentimentos que se originam da própria vida do criador, sem a mediação e a interferência provável da racionalidade". 12 Propor um semelhante exercício de leitura implica propÓr uma prática historiográfica comprometida com a compreensão dos valores de um determinado momento. Valores, portanto, não absolutos, mas vinculados a um projeto particular, a visões ditadas pelos debates contemporâneos que a análise de hoje deverá transformar em valores históricos, sujeitos a mudanças e flutuações e à possibilidade de revisões permanentes. Se isso é implícito no caso da história, não o é, porém, no caso da história da arte, ainda tímida no exercício de abordagens críticas articuladas a um determinado momento histórico, e é a ela que se dirige meu alerta.

11 BATISTA, op. cit., p.92. 12 CARDINAL, R. O expressionismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p.25.

I I SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA, UM CRÍTICO IMPERTINENTE

NELSON SCHAPOCHNIK*

A afirmação de que a Semana de Arte Moderna de 22 foi o evento mais significativo na história cultural brasileira novecentista parece camuflar as estratégias ardilosas que envolveram a construção de sua memória. Vale notar que sob a forma de entrevistas, ensaios e livros, seus protagonistas estabeleceram um sentido ao movimento e, no limite, sua autocelebração. É bem verdade que nesse percurso, marcado entre outras pela emergência do "crítico-scholar" respaldado pelas instituições universitárias em substituição ao "homem de letras" cuja reflexão tinha como veículo privilegiado o jornal, 1 algumas contribuições foram colocadas no anonimato ou passaram à condição de figurações secundárias, quando confrontadas com a suposta pujança dos "pais fundadores". Felizmente, nesta disputa pelos despojos da tradição modernista, o coro das torcidas organizadas marioandradeana e oswaldiana vem sendo arrefecido pela emergência de outras vozes, cuja harmonização tem proporcionado novos efeitos. Em decorrência deste processo de "

UNESP- Franca. Cf. SÜSSEKIND, F. Rodapés, tratados e ensaios. A formação da crítica brasileira moderna. In: . Papéis colados. Rio de Janeiro: UERJ, 1993, p.13.

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rev1sao, a historiografia sobre o modernismo tem experimentado deslocamentos positivos. Portanto, não parece casual a revelação das fissuras que incidiram sobre o movimento, a pluralidade de projetos subsumidos ao modernismo, ou ainda a repercussão deste em outros pontos que não os centros irradia dores. 2 Minha breve intervenção tem por objetivo examinar alguns textos de crítica literária redigidos por Sérgio Buarque de Holanda em meados da década de 1920, que foram publicados em diferentes periódicos, como A Cigarra, Fon-Fon, Revista do Brasil e sobretudo na Estética. No entanto, antes de avançar na direção sugerida, seria interessante retomar uma consideração feita por Sérgio Buarque de Holanda sobre este período de militância na imprensa. Ao ser inquirido anos mais tarde por Homero Senna a propósito da lição que havia recolhido desta atividade, ele respondia de maneira paradoxal que não se considerava um crítico literário. E completava sua resposta com as seguintes palavras: ''A função, que desempenhei por algum tempo, de analisar obras alheias num rodapé de crítica, foi-me útil porque me obrigou a variar, mas confesso que tive de fazer um grande esforço para exercê-la. Obrigado a tratar de assuntos que não eram, muitas vezes, de minha especialidade, a crítica, para mim, foi uma experiência interessante e fecunda. Abandonei-a, porém, porque nela não me sinto à vontade. E deste então venho recusando sempre as oportunidades que me têm surgido de voltar a esse gênero". 3

FUTURISMO E MODERNISMO Segundo Francisco de Assis Barbosa, foi a pedido de Gustavo Barroso que Sérgio Buarque redigiu para a Fon-Fon um pequeno ensaio dedicado ao "futurismo paulista". A epígrafe de Goethe 2 Veja por exemplo SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; GOMES, E. Os rapazes d'Onda e outros rapazes. Campinas: Editora da Unicamp. 3 Modernismo, tradicionalismo, regionalismo. In: SENNA, H. República das letras. Rio de Janeiro: Olímpica, 1968. p.112.

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empregada pelo ensaísta ("Se eu fosse assaz jovem e assaz ousado, violaria todas as leis da fantasia; usaria de aliterações, de assonâncias e de tudo que me parecesse cômodo ... "), longe de ser um mero ornamento ou marca de erudição, já antecipava o tom experimentado da produção dos jovens e combativos "beletristas paulistanos". Sua avaliação denotava uma profunda sintonia com as tentativas de superar as convenções e preconceitos literários dos "passadistas". Por meio de uma linguagem concisa e contundente, ele traçaria uma oposição entre o novo movimento associado às "idéias modernistas" e a esterilidade de alguns "snobs imbecis". É também fruto de uma percepção aguda e de um estofo intelectual incomum aos seus pares a tentativa de mostrar os equívocos na atribuição do epíteto de "futuristas". O ponto de contato entre os novos não seria com Marinetti, Soffici, Pallazeschi, mas com "os moderníssimos da França desde os passadistas Romain Rolland, Barbusse e Marcel Proust até os esquisitos Jacob, Appolinaire, Stietz, Salmon, Picabia e Tzara". 4 Esta observação traduzia um perspectivismo capaz de revelar o grau de diferenciação do fazer literário praticado na paulicéia, indicando a amplitude e a incorporação de procedimentos identificados com outras correntes vanguardistas (cubismo, dadaísmo e surrealismo) que não o futurismo. A seguir, traça um quadro informativo e breve mencionando autores e obras, com destaque para o autor do poema Juca Mulato, "um dos seus chefes", o "não menos ilustre" Oswald de Andrade e sua inédita "Trilogia do exílio", Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e outros nomes como Moacyr Deabreu, Ribeiro Couto, Agenor Barbosa e Afonso Schmidt. Também parece ser de extrema lucidez a capacidade do jovem crítico de desvendar na "tradição do novo" a percepção dos vários modernismos que incidiam sobre o "movimento modernista", isto é, a pluralidade de sentidos que eram enfeixados na expressão "modernismo". Se o futurismo significava a ruptura de

4 BUARQUE DE HOLANDA, S. O futurismo paulista (Fonf-Fon, Rio de Janeiro, 10.12.1921). In: BARBOSA, F. de A. (Org.) Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. p.51.

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procedimentos tradicionais identificados com a estética parnasiana, o estímulo para novas temáticas e a pesquisa da linguagem, ele também não deixava de entrever que "a estética apregoada é possível e provável que não vingue, mas a reação terá o efeito de despertar os artistas do ramerrão habitual". 5 Pessoalmente simpático ao surrealismo, Sérgio Buarque escreveu para Estética um artigo denominado "Perspectivas" em que discutia as limitações da escrita convencional, propondo a abolição das fronteiras do imaginário. A desautomatização da linguagem se tornaria um importante aliado no programa de "descoelhianizar" a literatura e, simultaneamente, proceder à valorização escrita da fala brasileira. De acordo com esta linha de reflexão ele asseverava: "Hoje mais do que nunca toda arte poética há de ser principalmente por quase nada eu diria apenas- uma declaração dos direitos do Sonho. Depois de tantos séculos em que os homens mais honestos se compraziam em escamotear o melhor da realidade, em nome da realidade o recurso de dizer das nossas expedições armadas por esses domínios. Só à noite enxergamos claro". 6

MODERNISMO E TRADIÇÃO Nas páginas de Estética, Sérgio Buarque deu continuidade ao exercício de desvendamento da nova cena cultural que então se esboçava. Sem tergiversar, ele resenhou livros de Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, Ribeiro Couto, Rubens Borba de Moraes, Oswald de Andrade e Blaise Cendrars, entre outros. No ensaio escrito a quatro mãos sobre os "Estudos brasileiros", de Ronald de Carvalho, revelava a franqueza de suas avaliações ao considerar "o mais fraco de seus livros em prosa"_? Segundo os autores da resenha, o diapasão empregado pelo autor reiterava a

5 O gênio do século (A Cigarra, n.167, set. 1921), apud LEONEL, M. C. M. Sérgio Buarque de Holanda na literatura dos anos 20. Revista do IEB, n.24, p.68, 1982. 6 Perspectivas (Estética, n.3, 1925). In: BARBOSA, F. de A. op. cit., p.66. 7 CARVALHO, R. de. Estudos brasileiros (Estética, n.2, 1925). In: BARBOSA, F. de A., op. cit., p.62.

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perspectiva da "crítica tradicional" sobre as letras e as artes no Brasil, carecendo de uma abordagem ousada e irreverente. A impropriedade das afirmações contidas no livro parecia-lhes um desserviço à causa modernista, seja por reforçar o cânone naturalista, ou ainda por conceber o tema da nacionalidade de um ponto de vista romântico. As restrições apontadas pelos editores da revista causaram um profundo desagrado ao autor, e ainda provocaram dissensões no circuito modernista. Ao elogio da poética do prosaico de Ribeiro Couto, "que olha em torno de si procurando a beleza onde os outros só encontram um divertimento aborrecido" 8 deve ser alinhavada a aprovação da prosa oswaldiana cristalizada nas Memórias sentimentais de João Miramar. À trajetória fragmentária do protagonista do romance, Sérgio Buarque acrescentaria o caráter "moderno-modernista" que acometia o narrador. Daí afirmar: "sua frase procura ser verdadeira, mas que bonito escreve mal, escreve feio, escreve errado ... Brinca com as palavras. Brinca com as idéias ... Ele é principalmente um brincalhão". 9 Se, como já foi exposto, a revista dirigida por Sérgio Buarque e Prudentico, mesmo na sua duração fugaz, teve o papel de dissipar as ondas do modernismo e atrair uma constelação de colaboradores que ia de Graça Aranha a Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, ela certamente ganha relevo, pois anunciava os embates do próprio movimento. A fermentação inicial e a aparente unidade do grupo pareciam refluir já em meados de 1925, podendo ser emblematizadas pelo episódio que envolveu as críticas a Ronald de Carvalho, retemperado pelo rompimento de seus editores com o autor de Canaã, como também pelo descompasso entre o ideário renovador e as ações concretas de seus membros. Segundo a entrevista que Sérgio Buarque e Prudente de Morais, neto, forneceram ao Correio da Manhã, 8 A cidade do vício e da graça - vagabundagem sobre o Rio noturno (Estética, n.1, 1924), apud PRADO, op. cit. Nota breve sobre Sérgio crítico. In: 3° Colóquio UERJ. Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: !mago, 1992. p.121. 9 Memórias sentimentais de João Miramar (Estética, n.2, 1925) apud PRADO, op. cit., p.121.

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"algumas inovações puramente formais introduzidas pelos modernos vão perdendo a importância que a princípio pareciam ter. Ao contrário, o abuso de certos processos facilmente assimiláveis que ameaçam degenerar em maneirismo estéril é um dos grandes perigos a evitar. .. A obra de arte não exprime nunca uma solução, mas simplesmente uma atitude. Diante de cada questão que propõe um determinado momento é sempre possível a nós tomar um ponto de vista novo". 10 Portanto, diante do processo de ideologização crescente do movimento e da necessidade de depurar o entulho despiciendo, a postura dos editores da Estética é no mínimo desconcertante, pois indicava uma alternativa para os apelos compulsivos de mobilização. Daí a perspicácia de Prudente ao encerrar a entrevista: "uma das críticas mais absurdas que nos têm sido feitas é a que nos censura por falta de coesão, de unidade de vistas, de regras e um fim comum que se possa reconhecer imediatamente. Querem que o modernismo seja uma escola quando é um estado de espírito" .11 A leitura de "O lado oposto e outros lados", publicado por Sérgio Buarque, em 1926, na Revista do Brasil, na sua segunda fase, sob a direção de Rodrigo Mello Franco de Andrade, fornece um registro corrosivo dos desdobramentos do modernismo. As antigas divergências reapareciam num tom combativo do princípio ao fim do ensaio. O crítico impertinente lançava petardos em todas as direções sem poupar ninguém, decidido a "romper com todas as diplomacias nocivas, mandar pro diabo qualquer forma de hipocrisia, suprimir as políticas literárias e conquistar uma profunda sinceridade para com os outros e para consigo mesmo". 12 Convicto de que "mesmo em literatura, os fantasmas não pregam medo em ninguém", Sérgio Buarque apontava para as a porias do academicismo de Graça Aranha, Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida, rebelava-se contra o elitismo de Tristáo de Athayde e 10 Idéias de hoje: Modernismo não é escola: é um estado de espírito (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19.6.1925). In: BARBOSA, F. de A. op. cit., p.72. 11 Idem, p.74. 12 MORAIS NETO, P. de. O lado oposto e autos lados. Revista do Brasil, v.l3, n.16, p.18, 1997. Trata-se da republicação do artigo do Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 30.10.1926.

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refutava o "germe de atrofia" que parecia acometer alguns de seus ex-companheiros de trincheira. Neste balanço da experiência modernista, ele realizava uma intervenção de caráter incisivo, exconjurando o "ceticismo bocó, o idealismo impreciso e desajeitado, a poesia 'bibelô', a retórica vazia" que caracterizava o grupo dos "acadêmicos modernizantes". Sua avaliação parece correta, pois, em linhas gerais, eles se perfilavam do outro lado, isto é, mais próximos daquilo que pensavam combater. Se o dignóstico estava correto, o tratamento, ainda que amargo, não poderia ser outro: " ... hoje eles não significam mais nada para nós". Parafraseando o poeta T. S. Elliot, quem caminha ao teu lado, Sérgio? E ele respondia serem aqueles que não lamentavam a inexistência de "uma arte sujeita a regras e a ideais prefixados". À importação de modelos e à imposição de uma norma de conduta cujo resultado seria a "criação de uma elite de homens inteligentes e sábios, embora sem grande contato com a terra e o povo", atribuída a Tristão de Athayde, Sérgio Buarque de Holanda preferia caminhar ao lado do grupo modernista mineiro de A Revista, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Prudente de Morais, neto, Alcântara Machado, Manuel Bandeira e Ribeiro Couto. Era esta constelação, segundo ele, que fundaria a literatura dos novos tempos. Dentre seus contemporâneos, ninguém compreendeu melhor a argumentação de Sérgio Buarque de Holanda que Prudente de Morais, neto, que em artigo homônimo publicado no jornal A Manhã, se solidarizava com o amigo. Considerava o ensaio um verdadeiro divisor de águas e de maneira polida esclarecia aos leitores que: "o chamado modernismo guardava até aqui um aspecto de unidade, apresentava uma face aplicada por muitos também à literatura. Algumas escaramuças em torno de um ou de outro ponto pareciam mais dissenções íntimas sobre meios do que divergências fundamentais de propósitos" . 13 Todavia, os tempos agora eram outros, e depois da ressaca da Semana de 22, da Klaxon e da Estética, nada disso os satisfazia. Portanto, ele prosseguia, "quanto a mim penso que o Sr. Sérgio não quer nada. E o extraordinário, o

13 Idem.

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importante, o essencial da atitude dele está justamente nesse não querer. Estamos cansados de plataformas e programas. Estamos cansados de todos os idealismos fáceis ... Ora, nós precisamos de homens sem educação". No final da década de 1920, Sérgio Buarque partiria para Berlim. Contrariando sua afirmação de que não era crítico literário, ele voltaria na década de 1940 e 1950 à militância na imprensa brasileira, depois de uma fase de profundo desinteresse pela poesia e ficção. Ao apresentar o seu livro Tentativas de mitologia (1979), ele indicava o percurso complexo de seu aprendizado. Ao encerrar esta apresentação, faço minhas as palavras dele: "Só eu sei o que isso me custou de aplicação obstinada, às vezes quase desesperada, de arrebatamentos, vigílias, insônias, leituras ou releituras, paciências, impaciências, horas de transe e desfalecimentos". 14 Tem mais não.

14 BUARQUE DE HOLANDA, S. Apresentação. In: Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.16.

12 PATRIMÔNIO, ESPELHO DO PASSADO

MARLY RODRIGUES*

A pesquisa que venho desenvolvendo inscreve-se no campo da investigação sobre a ação do poder público na instituição da memória da sociedade. Inicialmente, estudei um dos campos da memória, o do patrimônio histórico-arquitetônico, por meio das ações do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, criado em 1968 pelo governo do Estado de São Paulo. Nas ações do conselho refletem-se ainda, embora com intensidade cada vez menor, um aspecto da ortodoxia preservacionista estabelecida pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), criado em 1937, o de construir um passado para a moderna arquitetura brasileira, então despontando como manifestação que depois ganharia reconhecimento internacional. Os monumentos eleitos como patrimônio da cultura brasileira eram, antes de tudo, documentos da História da arquitetura brasileira. Entre conceitos estéticos, valorização de técnicas construtivas e outros aspectos particulares, a eleição de bens para compor uma vitrine que se pretendia representativa de parte da

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Condephaat.

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cultura material brasileira fundava-se também em argumentos relativos à representatividade dos bens para a História da nação. Sob este ângulo, o patrimônio pode ser considerado um conjunto de documentos que materializam o passado nacional ou, se quiserem, a memória histórica nacional. Este posicionamento do SPHAN influenciaria gerações de profissionais e intelectuais que se dedicaram às lides do patrimônio e estaria também presente, como já citado, entre outros posicionamentos determinantes das ações preservacionistas do Condephaat, do mesmo modo que a História, neste caso predominantemente regional. Portanto, a memória envolvida na determinação do patrimônio seria também, neste caso, a memória histórica, isto é, um conjunto de documentos que comprovariam o passado. O acaso, porém, levou-me a observar mais atentamente este último aspecto, ao colocar em minhas mãos um volume editado em 1912, sob os auspícios da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas de São Paulo, o Guia do Estado de São Paulo, de autoria de Antonio Fonseca e Domingos Angerami. Ao folheá-lo percebe-se um vínculo entre o conteúdo daquele objeto e as ações de instituição do patrimônio de São Paulo. Revelavase, assim, uma outra vertente, mesmo que não explicitada na prática patrimonialista, a da memória constituída no passado, em função de exigências da propaganda oficial desenvolvida para garantir a continuidade da imigração, da colonização e da expansão da cafeicultura. Neste sentido justifica-se o título escolhido para esta comunicação, "Patrimônio, espelho do passado". Não apenas a História nacional e regional, povoada de heróis e fatos notáveis, orientaria a composição do patrimônio histórico, mas ele também teria suas matrizes em uma memória anteriormente forjada por razões situadas acima da sociedade, com o objetivo de construir imagens de espaços, de formas de vida e de progresso de um Estado que pretendia ser a locomotiva que puxava vagões vazios, os demais Estados brasileiros. Mas o que traz este Guia que a meus olhos ganhou o perfil de um lugar de memória? O volume de 1912 e, com inovações irrelevantes, um outro

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volume, publicado em 1920- indicado como 4ª edição, mantendo como autor Antonio Fonseca, que trocara seu antigo parceiro pelo Dr. ]. F. de Mello Nogueira, ainda sob o patrocínio da mesma secretaria -, têm a preocupação de mformar o usuário sobre aspectos diversos: instrução pública, estabelecimentos agronômicos, serviço meteorológico, história e economia locais. Chama a atenção o destaque dado para a imigração e a colonização, incluídos esclarecimentos sobre a agência oftcial de colonização e trabalho, os núcleos coloniais, as condições de pagamento dos colonos. Finalmente, i:: ressairado o progresso da indústria paulista, talvez como signo de uma modernidade que também se insinua haver nos espaços urbanos, e se chama a atenção do leitor para o fato de São Paulo oferecer grandes oportunidades para empregos de fundos. O fato de ressaltar o industrialismo paulista não impediu os organizadores do Guia de exaltarem aspectos da cafeicultura desenvolvida no Estado e de recomendarem vivamente a visita a uma fazenda de café situada no extremo da ocupação territorial já realizada, Ribeirão Preto. Detendo-se na descrição detalhada do Guarujá, de Santos e de São Paulo, o Guia apenas sinaliza as características de outras cidades, mesmo de algumas importantes cidades do interior do Estado. No que se refere a edificações, hoje incluídas entre os bens patrimoniais da capital paulista, estão citados o Viaduto do Chá, o Teatro Municipal, o Quartel da Luz, o Seminário Episcopal, a Estação da Luz, o Museu do Ipiranga e a Avenida Paulista, embora esta citada de maneira rápida, como parte de um percurso de bonde. Medindo 2.213 metros de comprimento, esta avenida é uma das mais belas da capital. Ostenta ela em toda a sua extensão uma infinidade de palacetes belíssimos, cada um dos quais apresenta o seu particular estilo arquitetônico, circundados de lindos jardins, como verdadeiras residências principescas.

O Guia registra também cenas urbanas, informando sobre a função de algumas áreas da cidade e dando idéia do clima nelas reinante:

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Na rua de S. João há um pequeno mercado, onde pela manhã é enorme o movimento, notadamente das cozinheiras, que vão fazer suas compras para a refeição do dia. A Rua João Alfredo tem também seu mercado, mais vasto e mais animado que o "Mercadinho" da Rua de São João ... Ao lado do mercado existe outro, de peixe. Ali o alarido aumenta de modo quase inverossímil.

E, referindo-se às atuais Avenida São João e Ladeira General Carneiro: Quem visitasse São Paulo sem permanecer algumas horas nestas duas artérias, onde se concentra toda a vida popular, não poderia ter uma idéia exata da cidade. Existe alí qualquer coisa de tradição colonial, no aspecto modesto das casas e na forma de seu comércio. Os "mascates" mercadores ambulantes que percorrem as ruas da cidade oferecendo de porta em porta às boas governantes as agulhas, as linhas, as fitas e tantas outras minudências domésticas, encontram na Rua João Alfredo e na vizinha- 25 de março- os seus fornecedores em grande parte da nacionalidade síria, como também sírios são, em sua maioria, os "mascates": gente humilde, incansável, honesta e ávida de ganho.

Imagens e estereótipos que até o presente compõem o imaginário sobre as cidades brasileiras também estão presentes, como por exemplo a competição entre Rio de Janeiro e São Paulo. O Guia classifica o Rio de Janeiro como "cartão postal do Brasil, cidade de encantos, retocada nos moldes da cidade luz", enquanto São Paulo foi descrita de modo mais austero, como "capital bela, atraente, sedutora, civilizada, rica de comodidade e de conforto". Este Guia, publicado em português, parece não ter como públicoalvo os turistas - o que, aliás, seria estranho em um país no qual o investimento público no turismo não existia -, mas se assemelha mais a uma peça voltada para a divulgação. Durante as primeiras décadas do século, foi grande o número de publicações patrocinadas pela Secretaria de Agricultura de São Paulo e inúmeras as obras sobre São Paulo escritas por estrangeiros. Parte desta produção foi distribuída gratuitamente na Europa através do Comissariado Geral do Governo do Estado de São Paulo, em Bruxelas.

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Entre estas publicações oficiais, não parece ter sido comum a utilização da forma de guia; a publicação que motivou minha pesquisa não se mostra fruto de uma elaboração cuidadosa, assemelhando-se mais a um primo distante do almanaque que propriamente a um guia moderno, sistemático, embora procure inspiração nos congêneres europeus, como os Cuides Conty, editados na França, os Baedeker, publicados em Leipzig e em Paris. Qualquer que tenha sido sua finalidade, este e outros guias seus contemporâneos que me vêm sendo revelados no trabalho de pesquisa - como o Cuide des États Unis du Brésil, editado no Rio de Janeiro, em 1908, por Bilac, Passos e Bandeira- são fragmentos reveladores de vertentes criadoras de uma identidade regional paulista que se destacam da História, uma de suas fortes construtoras. Ainda hoje, as imagens por elas criadas e as edificações por elas apontadas como caracterizadoras de espaços urbanos - e não da História - refletem-se na eleição da memória que é instituída como social. Se não, como explicar que o espaço geográfico no qual hoje se encontram a maioria dos bens tombados corresponde à área do Estado povoada em 1910? De qualquer forma, algumas respostas só poderão ser vislumbradas com o desenvolvimento da pesquisa. Acredito, porém, já ser possível afirmar que, mesmo involuntariamente, posto que perseguia outros objetivos, o poder público acabou por forjar imagens do Estado de São Paulo que integrariam a identidade paulista e comporiam parte da memória que se transmitiria até o presente, influindo, ao lado da História e de outros referenciais arquitetônicos, estéticos e culturais a escolha do patrimônio paulista.

I 3 MEMÓRIA E PRAGMATISMO

SHEILA SCHWARSTZMAN *

Gostaria de iniciar minhas reflexões abordando questões que se impõem a todo o historiador, sobretudo aquele ligado diretamente à criação de "lugares da memória". Digo isso pois entendo que aqueles que trabalham num órgão de preservação auxiliam no movimento que conduz à produção de monumentos e documentos histórico-arquitetônicos no espaço urbano e no espaço social das cidades. Esses monumentos-documentos são o resultado do entendimento da sociedade em relação à sua própria herança e à imagem que tem e que quer guardar de si própria. Como observou Pierre Nora em seu Entre memória e História, 1 nunca como na atualidade a história foi tão necessária, uma vez que a memória está se perdendo, descartada pela voracidade do tempo presente. Ao mesmo tempo, nunca se fez tanta história, e esta passou a ordenar a memória espontânea, controlando e institucionalizando como e o que se deve lembrar. Estamos perdendo constantemente a memória e os seus pontos de referência, e construindo histórias que indicam o que deve ser lembrado. *

Condephaat. NORA, P. Entre la mémoire et l'Histoire. In: Les lieux de mémoire, I La République. Paris: Gallimard, 1984. p.XVIII-XLII.

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Foucault já falava disso, quando abordou a memória operária que foi sendo dominada pela literatura popular e depois pela história no final do século XIX. Perdia-se a lembrança espontânea, descontrolada e apaixonada, por uma produção histórica e literária que apontava como e o que se podia lembrar. (Pensemos no nosso caso em séries de televisão como Anos Rebeldes, Chatô, ou Agosto.) Podemos pensar o mesmo movimento no corpo das cidades, sobretudo na cidade de São Paulo. Ela é destruída, desfigurada com voracidade, mas guarda de seu passado alguns souvenirs possíveis. A destruição do passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal às das gerações passadas - é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio. Por esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compiladores. 2

Giulio Carlo Argan observou que: existe um fenômeno de recusa da história por parte do pragmatismo que caracteriza o mundo moderno. Por exemplo: o deslocamento dos monumentos, a destruição dos tecidos urbanos, a diáspora das obras de arte, deslocadas de sua antiga localização e até das velhas coleções, sua redução a mercadoria por parte das redes comerciais, a ação puramente defensiva e não programada dos organismos de defesa, a pretensão de subordinar a conservação a uma falsa adaptação às exigências ou ao gosto modernos. Um estágio ulterior da crueldade- como teria dito Hogarth- é a desambientação do ambiente, ou seja, sua degradação voluntária, embora às vezes ela seja apresentada falsamente como valorização ou adaptação às exigências da vida moderna. 3

2 HOBSBAWM, E. A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.13. 3 ARGAN, G. C. História dei Arte como lustoria de la ciudad. Barcelona: Laia, 1984. p.85.

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Como historiadores do patrimônio de São Paulo, estamos imersos nesses movimentos. Como preservar o passado diante do primado da "vida moderna" que parece fazer do historiador um passadista, enquanto a cidade vai sendo modificada a passos largos, sem controle ou intervenção da sociedade? Temos que começar a trabalhar com o dado de que hoje o elemento dominante na paisagem são os monumentos à circulação de veículos. Temos que aceitar que são eles, em São Paulo, lugares de memória, como o túnel Ayrton Senna, por exemplo, um monumento à crença hoje discutível, mas ligada à própria invenção de São Paulo como a cidade que "não pode parar". Uma obra viária que rasga as suas entranhas, atravessa o maior parque da cidade, mas que libera o trânsito. Essa obra homenageia o filho querido, obstinado, um vencedor, hoje o seu verdadeiro herói e símbolo. Há que se reconhecer e trabalhar com o fato de que a cidade produz sem cessar a "desambientação do ambiente", e festeja esse pragmatismo, a inanição de memória tragada pela vontade de fluxo, circulação e negócios. Diante destas evidências, ressurge a indagação sobre o que preservar, por que e para quem. É preciso introduzir novos laços e nexos que façam sentido para uma população heterogênea, e em sua grande maioria desprovida dos recursos mínimos da cidadania. Desta forma é preciso reconhecer que São Paulo não é mais só do café, da indústria, da imigração, mas também emigrante, nordestina, e que as raízes culturais que ordenam os primados da preservação até hoje valem para uma parte apenas da população e configuram uma das faces que moldam a São Paulo de hoje. Quando se reconheceu a importância de um terreiro de Candomblé, e de forma controversa ele foi tombado (em parte por oportunismo político), o conceito de bem cultural e de patrimônio se alteraram e se alargaram enormemente no Condephaat. Por outro lado, não existem mais grandes acontecimentos sociais partilhados e marcantes. Há, como diz Hobsbawn, o presente constante, e a produção da "desambientação do ambiente". Mas de onde emanam essas observações? Daqueles que acreditam que o passado tem importância na construção e compreensão do presente. Mas como falar disso aos jovens de hoje? O que significa o passado? O que ele traz? O que ele evoca?

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Encastelados em nosso próprio ofício, respondendo a demandas em geral de uma parte específica da população, perdemos de vista a significação social do passado para a maioria pobre, emigrante, desenraizada, para quem São Paulo e sua periferia são o lugar onde se constrói uma outra cidade. Se pensarmos nos bens que foram preservados e naqueles que os pleiteiam, sobretudo na cidade de São Paulo, nos últimos 15 anos, constatamos que a "sociedade civil organizada" que em geral pleiteia tombamentos é sem exceção pertencente às camadas de classe média e média alta, e o que reivindica é a preservação do seu bem-estar e da qualidade de vida de seu espaço imediato. São resultado de demandas da sociedade civil os pedidos de tombamento dos Jardins, do Pacaembu, do Alto de Pinheiros, de Higienópolis, da Chácara Flora, da Casa Modernista, do Parque do Ibirapuera, do Parque do Povo. Todos reunidos em torno de associação de bairros, ou movimentos louváveis como o Viva São Paulo, mas que, se cobram do Estado a qualidade de vida e o poder de influir no tecido da cidade, o fazem exclusivamente no âmbito dos espaços que lhes concernem diretamente. Sem discutir aqui a pertinência do estudo desses bairros, o que é na sua maioria inegável, nota-se que são demandas que tendem a fazer do tombamento um instrumento de controle urbano e da qualidade de vida da cidade, controle que a maioria dos governos municipais, associados à especulação imobiliária, se negam a fazer. Atesta também o caráter elitista das demandas o fato de que o Condephaat só existe para uma população esclarecida. Assim, se respeitadas apenas as demandas da sociedade civil e os pedidos da comunidade, já que eles configuram a maior parte das demandas que chegam ao órgão, só se preservam na cidade as áreas ricas, residenciais e que configuram apenas uma parte muito estreita das verdadeiras características do desenvolvimento histórico de São Paulo, ou de sua feição atual. O contraponto disto é que na cidade de São Paulo existe apenas uma indústria tombada, ou melhor, apenas as chaminés daquilo que foi o antigo e gigantesco complexo das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. É verdade que, por sugestão dos técnicos do Condephaat e de

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algumas demandas de fora, há vilas operárias como a Vila Maria Zélia ou a Vila Economizadora que foram tombadas, mas é verdade também que até hoje nenhum secretário da Cultura desde 1985 ratificou o tombamento dos bairros de Campos Elíseos e Santa Efigênia, que, se no passado foram lugares de moradia da burguesia paulistana, são hoje zonas de concentração de populações de baixa e baixíssima renda, zonas de prostituição e cortiços, e sobre as quais o próprio Estado não toma uma decisão. Desta forma, se analisarmos os bens preservados na cidade de São Paulo, veremos que, em sua expressiva maioria, configuram a imagem do passado de São Paulo apenas como uma cidade rica, desprezando todas as outras características e atividades que nela se concentravam. Isso só contribui para afiançar a idéia de que a · preservação cria monumentos excepcionais, desgarrados da dinâmica urbana. O passado fica alienado no passado, sem ligação com o presente e o futuro que vai se construindo. Estão ainda esquecidos os bairros operários, que aliás já mudaram completamente. Houve tombamentos no Brás - a Hospedaria dos Imigrantes e um antigo teatro anarquista italiano. O segundo não existe mais, convertido em cortiço. Mas o novo bairro em que se tornou o Brás nos escapa, como escapam também as moradias populares, os locais de trabalho que também já passam por profundas mudanças. Sequer preservamos as indústrias paulistanas do início do século, e elas já não existem mais, transformadas hoje em depósitos, em pequenas confecções, como por exemplo o interessantíssimo complexo industrial dos Crespi, na Mooca. O que era uma indústria virou um grande conjunto de pequenas oficinas. O seu interior manchesteriano permanece, só que o uso se modificou por completo. Essa omissão com relação ao mundo do trabalho nos chama a atenção sobre a nossa mentalidade: a inexistência de pedidos da sociedade, aliada às poucas propostas dos técnicos do Condephaat, acabam nos mostrando na prática o velho divórcio que valoriza os espaços sociais e despreza o mundo do trabalho, reiterando o desprezo e a dissociação oriunda das raízes luso-brasileiras, com relação ao fazer, que acabam por se estender, na prática, à imagem daquilo que é digno de ser preservado, enfim, daquilo que é digno nessa sociedade.

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É verdade, há fazendas de café tombadas, lindas sedes de fazenda, e também as tulhas ou moradias de empregados, se porventura restarem no conjunto. Há também edifícios de escritórios art-deco ou modernistas listados no centro da cidade. Mas, é inegável, não há o olhar deliberado para o mundo do trabalho. Por outro lado, essas questões, mesmo se não equacionadas, já estão ultrapassadas. A velocidade das mudanças atuais impõe sobre a preservação do passado o primado das "exigências da vida moderna". Sob este prisma, vivemos hoje dois fenômenos contraditórios: ou bem "as exigências da vida moderna" conflitam com o passado e se sobrepõem a ele, mas procurando substituí-lo como uma vantagem, como diz Argan, ou bem traços do passado que acabam restando tornam-se mercadoria. Temos o exemplo deste fenômeno acontecendo numa mesma rua, na cidade de São Paulo. No bairro de Higienópolis - aglomerado tradicional da economia cafeeira, marcado por construções do porte da Casa de Dona Veridiana, do final do século XIX, ou do edifício modernista "Prudência e Capitalização", de Rino Levi, consolidado como um bairro sobretudo residencial, de ruas de circulação média e local -, na sua principal artéria, a Avenida Higienópolis, restou um enorme terreno, fruto de quintais de antigas casas dos anos 10 ainda existentes e em boas condições de conservação. Nesta avenida existem 13 casas que devem ser preservadas pela sua importância histórico-arquitetônica. Nesse mesmo local está sendo construído, com a aprovação dos órgãos de preservação estadual - o Condephaat e municipal -o Compresp- um gigantesco shopping center que tende a mudar completamente as características do bairro, a sua qualidade de vida, e que deve interferir de forma irreversível no próprio sentido da preservação dos 13 imóveis listados. É possível conciliar "as exigências da vida moderna" que se expressam num shopping center, as interferências no trânsito, na circulação, na qualidade do ar, na arquitetura e na preservação? Na mesma avenida, numa das casas a serem tombadas, será construído um prédio. A casa antiga, que será restaurada, servirá

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como um "nobre hall de entrada". Nos anúncios do empreendimento, vende-se um apartamento e mais "uma casa tombada pelo patrimônio histórico". Ou seja, uma casa tombada tem reconhecidamente um valor simbólico, e também de mercado que se agrega ao valor do imóvel vendido. Quando convém ao projeto, "as exigências da vida moderna" assimilam o passado. Quando este não serve ao projeto, o trator se impõe. O falso embate que aqui se expressa erige "as exigências da vida moderna" como o objetivo necessário e desejado pelos seres humanos. É inegável que esta crença se impõe hoje em todo o mundo, embora sua matriz e fundamentos sejam antes de tudo anglosaxônicos e protestantes. Vivemos um processo acelerado de desnacionalização e homogeneização da cultura nas camadas altas e médias, que podem ter acesso à mundialização, e de exclusão galopante de todos os demais. Por outro lado, e como reação a este processo, tanto na indústria cultural como na academia, é grande hoje a vontade de redescobrir e de reinventar o Brasil. É nesses embates que, me parece, as questões devem ser colocadas hoje.

14 AS FONTES FOTOGRÁFICAS EAS REPRESENTAÇÕES DA ÁREA CENTRAL DA CIDADE DE SÃO PAULO NA DÉCADA DE 191 O

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O conjunto de fotografias urbanas que se pretende analisar aqui não é inédito. Trata-se de imagens já divulgadas em álbuns comparativos organizados ou autorizados pelo então prefeito da cidade de São Paulo, Washington Luiz Pereira da Silva (19141919),1 e que servem até hoje como documentação visual para o estudo da evolução urbana de São Paulo, ilustrando publicações e exposições sobre a cidade. Nesses casos, o interesse privilegia o conteúdo capaz de informar sobre as mudanças e permanências na estrutura urbana da cidade. A fotografia é utilizada, assim, como uma espécie de "janela" que permite conhecer uma realidade distante no tempo. A abordagem dessa documentação que ora se propõe procura explorar seu potencial em outra perspectiva: a maneira como a visualidade fotográfica integra a produção física e simbólica da

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Museu Paulista - USP. A produção de álbuns comparativos não era uma novidade do século XX. O primeiro álbum deste gênero referente à cidade de São Paulo de que se tem notícia é o Álbum comparativo da cidade de São Paulo (1862-1887), de autoria de Militão Augusto de Azevedo e datado de 1887.

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cidade, constituindo um discurso específico, capaz de funcionar como vetor de representações sociais urbanas. 2 Em São Paulo, a produção fotográfica relativa à cidade é incrementada nas duas primeiras décadas deste século, período em que a cidade vivenciava seu primeiro surto de crescimento e transformações urbanas. Além de álbuns impressos destinados a divulgar a cidade, há de se levar em conta também, como fator determinante dessa intensificação da produção fotográfica, o uso documental atribuído à fotografia. Como forma de controle técnico de obras públicas e particulares, a fotografia permitia o acompanhamento de todas as fases das intervenções. Em São Paulo, as empresas estrangeiras como a Light and Power Co. ou a Railway Co. contratavam os serviços de fotógrafos para a documentação necessária aos relatórios técnicos enviados às matrizes. 3 O poder público recorria a expedientes semelhantes: a construção do reservatório de água pela Companhia de Água e Esgoto na Cantareira mereceu documentação fotográfica por P. Doumet, entre 1892 e 1898 (acervo iconográfico do Museu Paulista da USP); assim como Frederic Manoel registrou todas as etapas da construção do viaduto Santa Ifigênia em 1911 (acervo de obras raras da Biblioteca Municipal Mário de Andrade); e, na esfera privada, o Escritório Ramos de Azevedo tinha também por prática registrar suas obras (acervo da Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP). No Rio de Janeiro, a documentação da Avenida Central por Marc Ferrez (1903-1906) segue os mesmos padrões. 4 Essa documentação não era produzida visando a uma ampla

2 Este trabalho apresenta algumas das questões encaminhadas em minha dissertação de mestrado, em que foi analisado um conjunto de 832 fotografias originais e impressas, relativas à cidade de São Paulo, divulgadas em álbuns, no período de 1887 e 1919. A partir da análise formal e temática das fotografias, procurou-se entender o papel da visualidade fotográfica no processo de constituição de uma nova identidade visual para São Paulo em um momento de inflexão de seu desenvolvimento urbano. 3 REIS FILHO, N. G. Aspectos da história da engenharia civil em São Paulo 18601960. São Paulo: CBPO, 1989. 4 CARVALHO, M. C. W, WOLFF, S. F. S. Arquitetura e fotografia no século XIX. In: FABRIS, A. (Org.) Fotografia - Usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991. p.131-72.

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circulação - que só irá ocorrer bem mais tarde, em edições de repertórios documentais de acervos públicos ou temáticos. 5 Seu uso encontrava-se restrito à esfera técnica e administrativa de empresas ou de secretarias públicas. Contudo, essa documentação era comumente mobilizada para a divulgação das ações do poder público na gerência da cidade. Prova disso são as notícias acompanhadas por fotografias informando sobre as modificações em curso no centro da cidade, na década de 1910. 6 O tema principal dos álbuns comparativos é justamente esse processo de mudança. As obras de infra-estrutura urbana implementadas na área central da cidade 7 -alinhamento, pavimentação e alargamento de ruas e a reurbanização do Vale do Anhangabaú - são registradas nos álbuns sempre acompanhadas de pares comparativos da situação anterior. As imagens guardam semelhanças que seguem um padrão recorrente. A circulação urbana da área central é o tema que se expressa, iconicamente, pela presença conjugada de elementos da estrutura de comunicação urbana, prioritariamente ruas e avenidas, de infra-estrutura viária, especialmente trilhos de bondes e pela presença abundante de elementos móveis transporte de tração animal, bondes e pessoas, sempre na condição de transeuntes. Formalmente, o enquadramento parcial adotado faz que essas imagens possuam um alto grau de contextualização, que é reforçada pela tomada diagonal, dando ao espaço um tratamento contínuo. A rua tem, assim, perfeita visibilidade, figurando como o elemento hierarquizador da imagem. CARVALHO, L. et al. Fotografia e história: ensaio bibliográfico. In: Anais do Museu Paulista História e cultura material. São Paulo: Museu PaulistaUSP, v.2, 1995. p.253-300. 6 Em levantamento realizado no jornal Correio Paulistano, entre os anos de 1910 e 1915, pode-se constatar em aproximadamente quarenta matérias a atenção dispensada à abordagem técnica dos problemas urbanos. Em praticamente todas, a fotografia mereceria lugar de destaque, seja pelas dimensões, seja pela quantidade. 7 No caso, as ruas que compunham o triângulo central e suas adjacentes, até a várzea do Carmo, bem como o chamado centro expandido, que avançava sobre o vale do Anhangabaú a oeste e o largo de Santa Ifigênia ao norte.

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A seleção temática e o tratamento formal expressos nas fotografias são indicativos de um discurso que pretende justificar as intervenções urbanísticas realizadas a partir de um estatuto de racionalidade técnica. O recurso comparativo chama a atenção para os diferentes níveis de adensamento urbano - de pessoas e veículos -, e a melhoria da infra-estrutura, com a colocação de trilhos, alargamento das vias, pavimentação e alinhamento. No conjunto, busca-se evidenciar a presença de um novo modelo urbano, oposto àquele do período colonial, que se caracterizava pelo traçado irregular e acanhado. A comparação visa a dotar as intervenções recém-promovidas de um valor positivo e, sobretudo, as justifica como necessárias porque tecnicamente planejadas. A negação do modelo colonial de cidade é particularmente perceptível nas fotografias em que as igrejas são enfocadas. Marcos do poder local no período da colônia, sua importância é manifesta pelos registros de Militão Augusto de Azevedo, um dos fotógrafos pioneiros no registro de São Paulo. O enquadramento adotado, além de centralizar o edifício religioso dispondo-o no plano médio do quadro, em alguns casos promove a sua imponência graças a angulações ascensionais monumentalizantes obtidas por uma sutil rotação de eixo. Já nas imagens do século XX, o mesmo ponto de vista com um enquadramento diferenciado revela outro tratamento. Nos registros da década de 191 O, o espaço antes ordenado pelas igrejas, que davam os limites para os largos destinados ao uso por parte da comunidade, é reestruturado. Desaparece o traçado tipicamente colonial. No seu lugar, figura um espaço republicano e laico no qual a edificação religiosa perde sua importância referencial, seja pela transformação do largo em praça arborizada - onde os espaços de permanência e de circulação viária são claramente definidos pelo alinhamento da calçada -, seja por um enquadramento que sobrepõe a ela elementos de infra-estrutura como luminárias, trilhos ou a arborização e canteiros. De um modo geral, a narrativa é montada de forma a reforçar as funções articuladoras da malha viária pretendidas para a área

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central, em detrimento das funções de permanência (residencial, de lazer, religiosa). Daí a presença maciça dos trilhos e da pavimentação em primeiríssimo plano. O centro 8 é conceituado fotograficamente como pólo de articulação entre as partes da cidade - através dos registros dos viadutos que estabelecem a ligação do triângulo central com o chamado centro novo e também daqueles que enfocam as rotas de saídas para o campo e para o litoral. A articulação das saídas da cidade é sugerida por seqüências fotográficas que traçam visualmente caminhos: colocam-se em comunicação, por exemplo, a Ladeira do Carmo e a Rua General Carneiro, dispondo, entre ambas, imagens das ruas da Glória e 15 de Novembro. Assim, a duas saídas da cidade, a leste e a nordeste, são articuladas pela Rua 15 de Novembro, atravessando-se o triângulo central. É por essa razão que o alargamento e a pavimentação de vias, qualidades espaciais consideradas necessárias para o desempenho das funções de articulação viária, são destacados nos enquadramentos adotados, e a contigüidade espacial é reforçada por perspectivas diagonais e centrais. Por meio de sua linguagem específica, a fotografia materializa as propostas para a área central da cidade, definidas pelos planos urbanísticos gerados e implementados pelo poder público. 9 8 Sobre a produção simbólica em torno da idéia de centralidade urbana, CASTELLS, M. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. enumera as diversas asserções postuladas pela urbanística clássica e moderna: o centro desempenhando o papel integrador na imagem clássica advinda do modelo de cidade medieval; o centro como coordenador de atividades do setor terciário, concentrando as trocas de bens e serviços nas imagens de cidade pautadas pela concepção urbanística moderna (século XIX); e o centro lúdico, concentrando as atividades de lazer com a valorização de "uma disponibilidade de consumo" nas imagens advindas de "uma literatura semilírica da parte dos amadores de perspectiva urbana". LIMA, S. F. São Paulo na virada do século: as imagens da razão urbana -A cidade nos álbuns fotográficos de 1887 a 1919. São Paulo, 1995. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP. 9 No início da década de 1910, foram formulados projetos, tanto na esfera municipal quanto na estadual, que seguiam, em linhas gerais, as tendências mais modernas da urbanística na Europa, particularmente na França. SIMÕES JR., J. G. Anhangabau: História e urbanismo. São Paulo, 1995. Tese (Doutorado), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP; analisa as intervenções ocorridas nesse período apresentando os planos e modelos urbanísticos adotados.

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Calcadas no realismo fotográfico, 10 essas imagens desempenhariam a função de estabelecer o diálogo entre o corpo técnico de engenheiros e os moradores da cidade. Ou seja, as plantas e descrições técnicas, de difícil entendimento para leigos, podiam ser constatadas fotograficamente. Não por acaso, as matérias jornalísticas relativas às mudanças empreendidas, que se caracterizavam por um número excessivo de detalhes técnicos, eram acompanhadas de fotografias. Assim, além da explícita função legitimadora das ações do poder público, embasadas por projetos urbanísticos, a fotografia servia também como forma de vulgarizar esse tratamento técnico em relação à cidade. O resultado final acaba por associar dinamismo (representado visualmente pela preferência por cenas movimentadas e angulações diagonais) à necessidade de obras públicas que estabeleçam as coordenadas para o crescimento urbano. Por outro lado, a reordenação espacial promovida necessita de novas normas quanto ao uso do espaço. Privilegiar a circulação de veículos implica prever dispositivos de fiscalização e controle. Nas fotografias da década de 1910, a recorrente presença do guarda civil, via de regra centralizado na rua e não na calçada, na maioria dos casos posando para o fotógrafo, pode ser entendida como a figura símbolo da gerência pública do espaço e das práticas urbanas. Além de divulgar novo desenho, novas funções e os dispositivos de disciplinamento para a área central da cidade, as imagens comparativas também constroem o tipo urbano mais adequado a essa realidade. Ele se define, nesse período, como transeunte adulto e do sexo masculino. O cidadão urbano anônimo, sempre em

10 Sobre o estatuto de veracidade atribuído à fotografia, a discussão é longa e tem alimentado debates desde o seu surgimento, em meados do século XIX. A intermediação mecânica na captação da imagem justificou, por muito tempo, a idéia de que a realidade era captada com total objetividade. TAGG, J. The Burden of Representation. Essays on Photographies and History. Amhest: University o f Massachusetts Press, 1988; historiador voltado para o estudo de representações sociais e suas relações com a fotografia, desenvolve interessante pesquisa a esse respeito, em que demonstra a vinculação havida entre este estatuto de veracidade e o uso da fotografia por instituições disciplinares.

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movimento, qualificando a massa em trânsito, é característico das fotografias da década de 191 O e se contrapõe à população retratada por Militão trinta anos antes. A postura posada de moradores e comerciantes das imagens passadas transforma-se na atitude metropolitana dos instantâneos que registram a cidade moderna do século XX, em que inclusive o fotógrafo é absorvido como um tipo comum da cidade na medida em que sua presença não desperta mais a atenção dos transeuntes. O registro da prática de circulação atua como dispositivo de comprovação do funcionamento do centro nos termos projetados: a nova atitude urbana apresenta-se como resultante do disciplinamento espacial engendrado pelas reformulações visando ao melhor desempenho das funções de articulação da malha viária. Tema principal dos álbuns comparativos, o centro cumpre o papel de representar o modelo a ser adotado por toda a cidade. A funcionalização espacial em curso nesse período, promovendo uma diferenciação social do espaço com a expulsão da população de baixa renda dessa área, agora destinada à circulação viária e ao comércio, 11 é tratada sob uma ótica racionalista, que pressupõe soluções técnicas para problemas de ordem social. 12 As representações do centro de São Paulo das quais os álbuns são o suporte desempenham, portanto, além das funções legitimadoras das ações do poder público constituído, as funções de familiari;oação, por permitir o reconhecimento público das novas feições urbanas do modelo pretendido. Elas funcionam, ainda, como "atenuantes" das conseqüências sociais correlatas a este processo de intervenção, escamoteando os problemas de moradia, saneamento básico e transporte, ao tratar a região central como metonímia da cidade.

11 ROLNIK, R. Cada um em seu lugar. São Paulo, início da industrialização. Geografia do poder. São Paulo, 1983. Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Arquiterura e Urbanismo, USP. 12 SILVA, J. T. O planejamento urbano no município de São Paulo - Memória seletiva de suas manifestações no período 1892-1964. Relatório final apresentado à FUNDAP. São Paulo, FUNDAP, 1979. ms.

I5 A REPRESENTAÇÃO DO TRABALHO NOS ÁLBUNS FOTOGRÁFICOS DA CIDADE DE SÃO PAULO NOS ANOS 50

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Desde o boom de publicações dos anos 80, e especialmente durante a década de 1990, a fotografia vem se apresentando como rica fonte documental para a historiografia. De início marcada por um forte tratamento empírico e descritivo, ou utilizada como ilustração e complementação de fontes textuais, hoje a produção nacional sobre a fotografia já apresenta trabalhos, muitos deles acadêmicos, que nos fazem reconhecer a ação propulsora e legitimadora da imagem na nossa sociedade. 1 Foi nessa perspectiva de entendimento da fotografia como parte do universo visual das representações sociais que analisamos um conjunto de álbuns fotográficos 2 impressos sobre a cidade de São

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Museu Paulista - USP. CARVALHO, V. C. et. ai. Fotografia e História: ensaio bibliográfico. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo: Museu Paulista da Universidade de São Paulo, Nova Série, v.2, p.253-300, jan./dez. 1994. 2 A produção de álbuns fotográficos conheceu seu tempo de ouro no final do século XIX e nas duas primeiras décadas deste século. No entanto, a proximidade da comemoração do IV Centenário de Fundação da Cidade de São Paulo, em 1954, parece ter incentivado a iniciativa privada a realizar publicações sobre a cidade na forma de álbuns fotográficos. Os álbuns que foram objeto de análise perfazem um

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Paulo, produzidos entre 1951 e 1954. 3 Para que a imagem pudesse ser efetivamente utilizada como matéria-prima na produção de conhecimento sobre as estratégias ideológicas ativas na sociedade paulistana dos anos 5O, foi necessário utilizar procedimentos metodológicos de identificação e descrição das qualidades icônicas e formais da imagem, a maioria deles desenvolvidos para a compreensão de objetos seriados ou de fenômenos da visualidade no campo da história da arte. 4 Nosso objetivo foi reconhecer, a partir do controle de recorrências temáticas e formais, 5 as configurações de padrões

total de 832 fotografias impressas. Os exemplares analisados pertencem ao acervo da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP, e são os seguintes: Isto É São Paulo. 96 flagrantes da capital bandeirante. São Paulo: Melhoramentos, 1951; Isto É São Paulo. 104 flagrantes da capital bandeirante. 4.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1953; São Paulo antigo, São Paulo moderno: álbum comparativo. São Paulo: Melhoramentos. Obra Comemorativa do IV Centenário de Fundação da Cidade de São Paulo, 1953; KARFELD, P. K. São Paulo: álbum de fotografias em cores. São Paulo: Melhoramentos, 1954; MEDINA, J. São Paulo, o que Foi e o que É. s.l., s.n., 1954; SCHEIER, P. São Paulo: Fastest Growing City in the World. Rio de Janeiro: Kosmos, 1954; Eis São Paulo: uma obra realizada e editada no ano de 1954. São Paulo: Comemoração do IV Centenário de Fundação da Cidade de São Paulo, Monumento, 1954. 3 Originalmente, o instrumental de análise aqui citado e as conclusões sobre as imagens relativas ao universo do trabalho nos álbuns da década de 1950 foram desenvolvidos em duas dissertações de mestrado: FERRAZ DE LIMA, S. São Paulo na virada do século: as imagens da razão urbana - a cidade nos álbuns fotográficos de 1887 a 1919. São Paulo, 1995, Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, USP, e CARVALHO, V. C. de. Do indivíduo ao tipo: as imagens da (des)igualdade nos álbuns fotográficos da cidade de São Paulo na década de 1950. São Paulo, 1995, Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, USP. 4 ARNHEIM, R. Art y percepciíon visual. Buenos Aires: Universitaria de Buenos Aires, 1962; DEETZ, J. & DETHLEFSEN, E. Death's Head, Cherub, Urnand Willow. In. SCHELERETH, T. (Org.) Material Culture Studies in America. Nashville: AASLH, 1992. p.195-205; DONDIS, A. D. A sintaxi da !in guagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1991; PANOFSKY, E. O significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979; FRANCASTEL, P. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1982; VILLAFANE, J. Introducción a la teoria de la imagen. Madrid: Pirâmide, 1985. 5 De acordo com os problemas históricos a serem analisados, foi adotado um conjunto de descritores distribuídos em duas categorias. Os descritores icônicos, que registraram os elementos figurativos e espaciais, e os descritores formais, que identificaram o tratamento plástico dispensado aos motivos selecionados do contexto urbano. A descrição dos atributos, por sua vez, gerou uma ficha de

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de comportamento das 832 fotografias dos álbuns 6 e, por meio desses padrões, delinear as tendências visuais presentes no conjunto documental tratado. Apesar de o controle quantitativo estar na base deste trabalho, ele não deve ser entendido como uma camisa-de-força da análise, mas como um meio de ajuste, de calibragem das inferências possíveis. As imagens de baixa incidência, mas de alto impacto visual, não foram desprezadas. Elas exercem papel fundamental dentro do arranjo de cada álbum. Este arranjo permite o desenvolvimento de uma narrativa por meio da qual se estabelecem relações de significação que só existem no conjunto fotográfico. 7 Estas aproximações permitem que haja uma contaminação de sentidos entre as imagens, isto é, noções e valores presentes em um tema fotográfico podem ser estendidos a outros temas. Entre tantos motivos tratados - natureza, edificações antigas, circulação, demolições, construções etc. -destacam-se as imagens que associam as representações do trabalho à paisagem urbana, mais especificamente àquelas com edifícios arranha-céus. Diferentemente das fotografias dos álbuns do início do século, nas quais a cidade se representa pelo espaço público e externo, os álbuns dos anos 50 trazem inúmeras cenas de interiores. A cidade invade os galpões de fábricas, saguões de bancos, espaços de lojas, restaurantes e residências. Esta incorporação de áreas internas à noção de cidade está relacionada com a importância que a figura humana adquire nos álbuns desse período. No padrão, que convencionamos denominar figurista, estão agrupadas as imagens nas quais a figura humana tem destaque. Neste padrão estão

identificação individual em sistema informatizado (programa Foxprow), constituindo um vocabulário controlado, onde os descritores se comportaram como variáveis no quadro de uma análise quantitativa das características das imagens. 6 Não se pretendeu a formulação de um método geral de abordagem de documentos de natureza iconográfica. Os recursos metodológicos serviram apenas para operacionalizar e controlar as variáveis dos sete álbuns analisados. Portanto, quando se fala em padrões e tendências visuais não se pode perder de vista estas limitações. 7 Ver o efeito de justaposições de séries fotográficas no jornal A Gazeta (cf. Dias 1993, p.116).

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representadas, entre outras, 51 categorias profissionais, que abarcam desde engraxate, entregador de pão, carregador, trabalhador civil, lixeiro, varredor de rua, até a figura do poeta, cirurgião, músico, advogado, arquiteto etc. Dentre estas, destacase o número proporcionalmente elevado de imagens de operários. O modo mais recorrente de representação da figura humana é através da singularidade não-exclusiva. A singularidade é um atributo formal e identifica o recurso de eleição inequívoca de um único elemento figurativo como principal. Ela pode ser exclusiva, quando este elemento se apresenta sozinho na imagem, ou não-exclusiva, quando ao lado do elemento principal estão presentes outros, com funções de complementação ou ambientação. A singularidade é um recurso que, por abstrair o ambiente do elemento eleito, resulta em imagens com alto grau de descontextualização, em que até mesmo a noção de temporalidade é subtraída da cena. As legendas são genéricas, associando o trabalhador ao paulistano, ao tipo de atividade em evidência ou a características étnicas. Os elementos complementares agem como meio de identificação e classificação da personagem representada, reduzindo a noção de trabalho a um somatório de atributos universais, de natureza técnica - objetos, instrumentos portados ou aspectos da indumentária, acompanhados de gestualidade específica, constroem os tipos profissionais. A figura do habitante urbano, transformada em trabalhador, 8 é moldada de modo a atender aos requisitos do mercado. Porém, a redução do homem à situação de força de trabalho, ou seja, mercadoria, é feita de forma ambígua, marcadamente ideológica. É significativo o número de imagens que utilizam recursos formais de valorização, ou mesmo monumentalização, da figura humana. Essas imagens destacam a fisionomia do homem em atividade, não para ressaltar as suas qualidades individuais, mas para construir um tipo profissional sério e competente. A presença de traços fisionômicos ou do retrato individual do trabalhador portando a sua ferramenta age como recurso utilizado para devolver, ilusoriamente, ao trabalho as suas características 8 As categorias profissionais presentes nos álbuns são, na sua maioria esmagadora, representadas por homens em idade produtiva.

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concretas e objetivas. Estas imagens servem para dotar de significações positivas a atividade, na realidade, despersonalizada e abstrata que se tornou a produção em série na indústria. Trata-se de distorcer a natureza fragmentadora de um sistema que aplica e aprofunda a diferenciação técnica e social do trabalho. Objeto valorizado nas fotografias, a ferramenta, ao contrário do maquinário industrial moderno, é concebida como extensão do corpo humano. Por não possuir autonomia, ela depende do gesto daquele que a utiliza. O produto da ferramenta está condicionado, assim, à habilidade e força humanas. O trabalho, no universo artesanal, possui um sentido globalizante, de envolvimento e domínio completo da produção, de responsabilidade e individualidade. Este tipo de imagem, utilizada em um contexto de produção em massa, mascara o caráter alienante do trabalho na indústria, pois transfere para as imagens da produção na linha de montagem aqueles valores que esta nova prática tratou de destruir. Entretanto, qualquer recurso particularizante que estas imagens possam apresentar não chega a ultrapassar o limite da identificação profissional. A complexidade individual (os sentidos subjetivos, sociais ou mesmo afetivos, presentes em relações familiares ou de amizade 9 ) é escamoteada pela tipificação - o trabalhador civil, o operário, o cirurgião, o guarda de trânsito etc. As hierarquias sociais e as discriminações econômicas são suprimidas ou suavizadas. O universo do trabalho é aparentemente neutro. Representantes de categorias profissionais pouco favorecidas aparecem ao lado, e

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Publicações comemorativas e informativas, veiculadas durante as duas primeiras décadas deste século, traziam, ao lado de textos biográficos de "financeiros e capitalistas", fotografias do rosto de suas personagens, ou até mesmo fotografias do grupo familiar do titular em questão. (cf. LLOYD'S GREATER BRITAIN PUBLISHING COMPANY. Impressões do Brasil no Século Vinte- sua história, seu povo, comércio, indústrias e recursos. London, Jas. Truscott & Filho, 1913; Gli italiani nel Brasile. S. Paolo, Estabelecimento Graphico Pasquino Coloniale, 1922; Gli italiani nel Brasil e. S. Paolo, Graphico J. Rossetti, 1924; Cinquant'anni di lavara de gli italiani in Brasile. S. Paolo, Societa Editrice Italiana, 1937; CAPRI, R. O Estado de S. Paulo na Comemoração do Centenário: S. Paulo- A capital artística na comemoração do centenário 1822-1922. São Paulo, s.n., s.d.; A capital paulista comemorando o centenário da Independência, 1922. São Paulo, s.n., 1922).

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com os mesmos atributos formais, de imagens dos tipos prestigiosos. Os referenciais técnicos associados à atividade humana, bem como uma visão linear, quase biológica e natural, do progresso social e individual, retiram da noção de trabalho qualquer característica conflituosa. As diferentes profissões se complementam e são necessárias para o crescimento urbano. A cidade aparece como o resultado de uma grande obra coletiva. O universo estruturalmente tenso e contraditório das relações sociais é apresentado como um somatório de esforços que deverão resultar, por um lado, no dinamismo urbano, por outro, na possibilidade de crescimento individual. Assim, as imagens da cidade mostram a transformação urbana como fator determinante da ascensão social. Para que possamos compreender este processo de esvaziamento social e individual da categoria humana, que culmina na transformação do homem em tipologias de trabalho, ou, melhor dizendo, mercadoria, é preciso ainda analisar as aproximações destas representações com aquelas do principal produto da cidade neste período - os edifícios particulares. As características formais das imagens de elementos humanos, ou seja, o formato vertical, a apresentação de fortes fragmentações, a aproximação exagerada do motivo em primeiro plano, o uso de closes, de tomadas de vista ascensionais, de direções dinâmicas (que escapam do eixo perpendicular da imagem), a singularidade nãoexclusiva aproximam as imagens do padrão figurista daquelas imagens de edifícios de alto gabarito, presentes em outro padrão do conjunto e que denominamos padrão retrato.

A REPRESENTAÇÃO DO TRABALHO NOS ÁLBUNS FOTOGRÁFICOS

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QUADRO COMPARATIVO I PERÍODO DE 1951-1954 PADRÃO RETRATO (218 fotos)

PADRÃO FIGURISTA (191 fotos)

singularidade 87,160fo (190)

88,480fo (169)

descontextualização urbana 72,940fo (159)

91,100fo (174)

fragmentação 70,65% (154)

85,34% (165)

direção diagonal 72,94o/o (159)

56,54% (108)

vista pontual/interna 70,64% (154)

91,63% (175)

contraste de tom 57,34% (125)

54,97% (105)

exagero 15,14% (33)

13,61% (26)

rotação de eixo 7,34% (16)

5,24% (10)

O padrão retrato é constituído por uma tipologia de edificações imensamente variada, liderada pelos edifícios privados, entre os quais destacam-se os de alto gabarito. A forte geometrização, que ressalta detalhes arquitetônicos e proezas tecnológicas, a presença de direções oblíquas, a autonomia interna dos motivos, a descontextualização e a fragmentação, entre outros recursos, dotam estas imagens de um poder metonímico sem precedentes, tornando-as paradigmas da cidade, da modernidade, do crescimento, do progresso e da mudança. As equivalências formais entre os dois padrões induzem a equivalências de sentido. A noção de cidade como propriedade privada decorrente, em parte, do tratamento autônomo e abstrato das imagens de edificações estende-se às imagens de tipos humanos. Como mercadoria, trabalho e produto se tornam unidades equivalentes. Para que o trabalhador possa participar como força de trabalho no mercado de trocas é fundamental encontrar um denominador comum a todo e qualquer tipo de atividade. Do

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VÂNIA CARNEIRO DE CARVALHO

trabalho humano é retirado tudo o que possa significar "desigualdade" ou "diferença", para se manter apenas o traço comum de força de trabalho. Elege-se o tempo como unidade quantificável com poder de equivalência diante de outras unidades de valor de troca. Não é por acaso que todos os álbuns relacionam o progresso material da cidade com o trabalho. A integração ou o enriquecimento individual, desejados pelos contingentes de mãode-obra desqualificada que habitam a cidade, passam a ser uma simples questão de tempo e esforço coletivo. Assim, agentes e produtos, simplificados pela tipificação, são facilmente transformados em mercadoria. O valor pedagógico destas imagens está na sua capacidade de materializar, usando os recursos da linguagem moderna da fotografia, aquelas categorias - força de trabalho, valor de troca, mercadoria, disciplina, controle técnico, formas de acesso social, lugares sociais etc. - imprescindíveis para o funcionamento e transformação do sistema capitalista vigente nos anos 50, ao mesmo tempo que dissimulam estes ensinamentos sob o impacto de imagens monumentalizadoras do trabalhador, que ficaram como marca visual deste período até hoje. As conhecidas experiências abstracionistas na fotografia de vanguarda, que tornaram o automóvel, o edifício, as estruturas de ferro e vidro, o transeunte em ícones da modernidade urbana, são fontes de inspiração para as imagens dos álbuns de São Paulo na montagem de metáforas dos processos de abstração (desmaterialização das relações sociais) por que passa a própria sociedade nesse período. Em resumo, usa-se uma imagem com qualidades abstratas para representar categorias sociais abstratas que necessitam ser inculcadas aos grupos sociais. A perda da concretude da cidade, a modelização e tipificação de seus produtos e agentes (não sendo nomeados senão como categorias genéricas tais como "o paulistano", "a residência", "a indústria" etc), o uso recorrente da fragmentação, da descontextualização e dos efeitos de distorção dos objetos sugerem a existência de um substrato comum, ou seja, de um mercado de trocas. O processo de abstração da cidade está representado também nas imagens que mostram uma vida urbana não mais associada à

A REPRESENTAÇÃO DO TRABALHO NOS ÁLBUNS FOTOGRÁFICOS

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experiência da continuidade, mas a situações de transitoriedade. 10 Estas mesmas imagens, que mostram uma cidade que deixou de ser um espaço de vivência para se tornar o local de realização da mercadoria, pretendem reintroduzir o agente social na "construção" da cidade, apresentando esta última como produto de seu trabalho. Na constituição da sociedade de consumo, o prestígio e força pessoal são medidos através da capacidade do indivíduo de acumular (e exibir) mercadorias. Torna-se imprescindível a sinalização visual do êxito social. Este critério de sinalização deve ser aplicável a todos os grupos sociais, variando apenas a capacidade e formas de aquisição de cada grupo. Esta aparente equiparação, possível na sociedade de consumo, viabiliza, por sua vez, a construção virtual de utopias calcadas sobre idéias de igualitarismo social. A crença na igualdade articulada à prática do consumo reduz a igualdade de direitos de fruição plena da vida social a uma possível igualdade perante os objetos. As imagens da cidade alimentam este modo exteriorizável de "felicidade" social, revestindo os objetos urbanos de uma aura democrática aparentemente realizável. 11 Na lógica da sociedade de consumo, não deixa de ser surpreendente que, exatamente no momento em que a sinalização do êxito social se faz via objeto, haja a exaltação da figura do trabalhador. Como despossuído, ou melhor, como um ser social dono exclusivamente de sua força de trabalho, como marca de distinção, a sua valorização só pode se dar através da exibição de seu corpo.

10 ASENDORF, C. Batteries o f life. On the history o f things and their perception in modernity. Berkeley, University o f California Press, 1993. 11 BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1991.

16 O BRASIL DOS ANOS 60 NOS TRABALHOS DO TEATRO DE ARENA E DO TEATRO OFICINA DE SÃO PAULO

ROSANGELA PATRIOTA*

Quando nos reportamos às experiências artísticas ocorridas no Brasil no decorrer das décadas de 1960 e 1970, inquestionavelmente deparamos com os trabalhos desenvolvidos, na cidade de São Paulo, pelo Teatro de Arena e Teatro Oficina. Essas atividades artísticas podem propor uma releitura do Brasil das décadas de 1940, 1950 e 1960 a partir das idéias de ruptura e de continuidade, uma vez que suas propostas estéticas e políticas tinham como pressuposto norteador a crítica aos trabalhos realizados pelo "moderno teatro brasileiro", nos anos 40 e 50, que assim foi denominado devido à introdução de novas técnicas à arte cênica no país. Entre as referências básicas deste "teatro moderno" estão a encenação de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, por Os Comediantes, no Rio de Janeiro, sob a direção de Z. Ziembinski, em 1943, e a fundação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), por Franco Zampari, em São Paulo, no ano de 1948, e da Escola de Arte Dramática (EAD), por Alfredo Mesquita. Em particular, estes dois últimos foram decisivos para a constituição de um "gosto estético" para os espetáculos teatrais. •>

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ROSANGELA PATRIOTA

A Escola de Arte Dramática (EAD) teve um papel preponderante, pois ela, em verdade, tornou-se a referência estética, teórica e crítica que permeou a constituição do que é qualificado de "moderno teatro brasileiro", além de haver formado um grande número de atores, diretores e dramaturgos. Dentro deste panorama, um grupo de alunos saídos da EAD, entre eles o diretor teatral José Renato, fundou o Teatro de Arena, que foi, talvez, a primeira referência ao palco em arena no eixo Rio-São Paulo. A escolha deste palco, inicialmente, deveu-se ao fato de que ele barateava os custos da produção. E a partir desta opção, fundada em termos operacionais e não ideológicos, 1 surgiu o Teatro de Arena de São Paulo, que existiu como grupo teatral constituído, desde o início dos anos 50 até o começo da década de 1970. No

Nesse momento, há que se considerar a historicidade inerente à conquista da arena para o teatro do Ocidente. O palco em arena é considerado uma das grandes inovações no teatro do Ocidente. Proveniente da tradição circense, a arena foi um dos recursos utilizados pelo teatro russo à época da Revolução de Outubro de 1917. No âmbito estético, este palco propiciou que o long-shot do teatro de palco italiano deveria ser substituído pelo close, os grandes gestos e máscaras exageradas dos atores das décadas de 20 e 30, por gestos miúdos e um aprofundamento interpretativo mais real, o detalhe e a minúcia sobrepondo-se ao largo e eloqüente, a multivisão da platéia obrigando o ator a representar continuamente e em eixo, pois que, como um objeto cubista, ele era percebido no todo e nas partes. Obrigava-se a uma representação mais psicodramática do que espetacular, introduzindo o virtuosismo de um desempenho circular que abarcasse ao mesmo tempo os 360 graus da sala. Estas conquistas não eram, evidentemente, desprezíveis. Afinal, tratava-se de didatizar uma forma absolutamente nova não só dentro da relação palco/platéia tradicional como, de forma mais geral, todo o hábito de público condicionado a uma leitura da esquerda para a direita, ao espetáculo frontal (teatro e cinema), a isolar-se no escuro ensimesmado dentro de uma individualidade que a visão da platéia oposta na arena desnudava, acostumado à contemplação de uma caixa de surpresas (palco italiano) que a circularidade rompia, tornando todos partícipes da ação, rompendo as distâncias invioláveis. MOSTAÇO, E. Arena, Oficina e Opinião: uma interpretação da cultura de esquerda. São Paulo: Proposta Editorial, 1982. p.25. A transcrição destas considerações permite que sejam observadas algumas das mudanças provenientes da utilização do palco arena. A opção por este palco traz, diretamente, implicações no que se refere às concepções cênicas (cenários, figurinos, iluminação), além de ser uma rejeição frontal a qualquer perspectiva de palco naturalista porque, pela sua própria constituição, nega a existência da quarta parede.

O BRASIL DOS ANOS 60 NOS TRABALHOS DO TEATRO

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entanto, cabe salientar que neste período a sua composição não se manteve intacta, pelo contrário, em sua trajetória é possível vislumbrar momentos distintos tanto em relação ao elenco quanto às propostas de atuação. No que se refere ao Teatro de Arena, foram quase vinte anos de trabalho sistemático, discussões e preocupações com a politização da arte e da sociedade brasileira, principalmente após a fusão com o Teatro Paulista do Estudante (TPE), em meados da década de 1950, que o tornaram uma referência fundamental no interior de um projeto que procurou construir um "teatro nacional", sintonizado com o que se entendia como expectativa dos setores populares em relação à sociedade brasileira do período. Com uma arena à disposição e com muitos temas a serem desenvolvidos, o teatro que surgiu à Rua Teodoro Baima, em São Paulo, fomentou uma das vivências mais instigantes sobre o que seria o "nacional" nos palcos brasileiros. 2 · A constatação destas mudanças nos remete, significativamente, a discussões que envolvem a pertinência em afirmar a presença do componente histórico nas opções estéticas e formais existentes no campo da arte e, neste caso específico, na área teatral. Com o intuito de situar estas considerações seria conveniente recordar que a constituição da cena naturalista, em meados do século XIX, trouxe à tona a expectativa do teatro em "reproduzir" a "realidade", por meio da temática (as questões sociais ganham relevância), dos cenários e figurinos que deveriam representar, com a maior fidelidade possível, o espaço físico e social no qual a ação dramática é desencadeada. Nesse sentido, a identidade entre palco e platéia deveria ser buscada, e, para tanto, o palco deveria ser encarado como uma extensão da realidade e não como uma

2 O tema do nacional fomentou movimentos estéticos, obras ao longo de nossa experiência artística. Apenas para exemplicar podemos fazer referências a Gonçalves Dias, no romantismo brasileiro, como também destacar o viés nacionalista presente na Semana de Arte Moderna de 1922, bem como Macunaíma, de Mário de Andrade.

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ROSANGELA PATRIOTA

representação dela. 1 A partir de todas essas referências observase que o palco em arena 4 significava, além de utilização de recursos específicos, o rompimento com o "ilusionismo" propiciado pelo palco italiano, e requeria tanto dos atores quanto da platéia um outro índice de participação, diferenciado do que até então se convencionou denominar "teatro tradicional". No entanto, o Teatro de Arena não foi o único grupo a propor discussões acerca da conjuntura brasileira. Concomitantemente às suas atividades encontram-se os trabalhos do Grupo Oficina, organizado em São Paulo, em 1958, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. A presença do Oficina, de suas atuações e debates, que ora se aproximavam das do Arena, ora se colocavam em franco antagonismo, permitiram reconhecer a pluralidade do processo histórico e a riqueza de nuances existentes em suas representações, que possibilitaram estabelecer um diálogo entre as experiências do Arena e do Oficina. Assim, por reconhecer a multiplicidade do processo histórico e a riqueza de nuances existentes em suas representações, estabelecer um diálogo entre as experiências do Teatro de Arena e do Teatro

3 A título de ilustração deve ser considerado que no momento em que a estética naturalista se torna referência para o teatro, ela também está presente na literatura, na pintura, entre outras manifestações artísticas. Ao lado disso, em outras áreas do conhecimento, como a história e a sociologia, a perspectiva positivista norteia a concepção de saber. 4 Por essa via, durante o processo revolucionário russo de 1917, quando se constituiu a perspectiva de emergir uma outra concepção artística- a partir do "novo homem" que seria forjado pelas novas relações que desse processo surgiriam-, no âmbito teatral, o palco em arena foi resgatado a partir da tradição popular da qual o circo é parte integrante. A escolha desta forma de palco possuía eficiências políticas e estéticas, porque ele era extremamente eficaz para desenvolver, com sucesso, as agitações de rua, bem como romper com o espaço sacralizado da ribalta. Esta escolha significava a não-aceitação do teatro como elemento de lazer, distanciado das relações cotidianas, então a busca de uma nova linguagem e de novos espaços para a cena teatral traduziram a conquista de um novo palco, de um novo ator e de uma nova dramaturgia. Estas concepções foram largamente desenvolvidas pelo diretor teatral V. Meyerhold, por intermédio do construtivismo e da biomecânica, que procurou explorar todos os recursos da acrobacia, do malabarismo e da ginástica, além de defender o princípio de que todo espaço é, por excelência, agente da ação.

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Oficina será muito enriquecedor, pois, além de serem contemporâneos, estes dois grupos, muitas vezes, foram parceiros em espetáculos e discussões. Para Fernando Peixoto, o Oficina transformou-se na mais expressiva companhia de teatro do país através de um trabalho contínuo marcado por permanente inquietação e sempre surpreendente renovação da linguagem cênica. Alguns de seus espetáculos são marcos decisivos na cultura nacional, alcançando inclusive uma forte repercussão no exterior. Mas o grupo não repousou nos louros: voltou-se criticamente contra si mesmo (alguns de seus líderes em certo momento chegaram a proclamar a morte do teatro, num esforço extremo de negar radicalmente tudo que o próprio grupo havia feito e significado em seu passado) numa trajetória desenfreada (que, entre outros episódios, inclue a poética do "teatro de agressão", a reivindicação atualizada do antropofagismo dos modernistas de 22, a prática apaixonada de experiências de contracultura) em direção a um verdadeiro suicídio. 5

O Teatro Oficina interrompeu suas atividades no ano de 1972, após o espetáculo Gracias Seiior, com a prisão e o posterior exílio de seu principal expoente, José Celso Martinez Corrêa, uma vez que pessoas significativas na construção da trajetória do grupo, como Renato Borghi, Ítala Nandi, Fernando Peixoto, entre outros, já não mais participavam de suas atividades. Todavia, ao contrário do Arena, com o retorno de José Celso ao Brasil, em fins dos anos 70, o Teatro Oficina foi reativado, e vem lutando incansavelmente para retomar o seu lugar no universo da produção cultural e artística contemporânea com encenações de peças como As boas (Jean Genet), encenada em 1991, Hamlet (W. Shakespeare), encenada em 1993, e As bacantes (Eurípedes), encenada em 1996. Quando se volta para o resgate destas experiências históricas, verifica-se que, por se enfatizar no Arena a produção dramatúrgica e no Oficina o universo da encenação, as trajetórias destes grupos são analisadas como se fossem totalmente diferenciadas, isto é, destituídas de referenciais semelhantes, principalmente no que se

5 PEIXOTO, F. A fascinante e imprevisível trajetória do Oficina (1958-1980). DIONYSOS, n.26. Rio de Janeiro: MEC, SEC, SNT, 1982. p.37.

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refere a marcos que procuram explicar a busca de outras alternativas de trabalho, em especial no período posterior a 1964. Assim, no Arena encontra-se, de forma constante, o seu compromisso com a "dramaturgia nacional", enquanto o Oficina é apresentado como responsável por espetáculos considerados antológicos, como Pequenos burgueses, de M. Gorki. No entanto, foi a encenação, em 1967, de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, que tornou o referido grupo marco no interior da história do teatro brasileiro, principalmente por haver questionado muitas das premissas que nortearam as discussões estéticas e políticas em torno do tema do "nacional" e dos pressupostos até então defendidos pela esquerda no Brasil. Assim, através destes marcos específicos, observa-se que a retomada histórica destes grupos tende a representá-los em caminhos paralelos, e com referenciais distintos. No entanto, no conjunto destas produções, pode-se dizer que existiram referenciais teóricos, políticos e históricos comuns à maioria daqueles que escreveram, pensaram e criaram nesta conturbada e inquietante década de 1960. Para tanto, é importante resgatar a seguinte reflexão realizada por Fernando Peixoto, ao circunstanciar o universo cultural do Oficina nos idos de 1967: estudamos muito, investigando nossa própria inquietação e devorando um conhecimento aprofundado da realidade brasileira. Ou daquilo que julgávamos ser a realidade brasileira. Lemos e discutíamos economia e política, poesia e ensaios, manifestos e história. Vivíamos com A revolução brasileira, de Caio Prado Júnior. Percorremos as páginas de estudos de Celso Furtado e Mário da Silva Britto, Louis Althusser e Bernard Dort, Regis Debray e Guevara, Leoncio Basbaum e Edgar Carone, Mário de Andrade e Maiakovski, Artaud e Brecht, Reich e Meyerhold. Investigamos a ação do imperialismo e a agonia tantas vezes revitalizada da burguesia nacional, assim como em nome de um radicalismo revolucionário não hesitávamos em criticar aspectos do marxismo soviético, desconfiando, não sem conflitos internos, tanto da cultura acadêmica nacional quanto do PC brasileiro. Estávamos fascinados pela obra de Glauber Rocha (o espetáculo foi dedicado a ele, depois que assistimos Terra em transe, com o qual nos identificávamos inteiramente) e descobríamos um universo de deboche sacrílego e destrutivo nos programas de Chacrinha. A trilha sonora completava a "salada": de Villa-Lobos a Carlos Gomes, passando pelos carnavais

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do passado, pela Giovinezza fascista e pela Internacional comunista. Estudamos as teorias do pan-sexualismo oswaldiano, apoiados fundamentalmente em análises de Mário Chamie. Assim como mergulhamos no formalismo russo e no concretismo paulista, apoiados nos irmãos Campos. 6

Por sua vez, o Arena, motivado pelas mesmas indagações, voltava-se para a história e historiografia brasileiras, procurando compreender e atualizar as lutas pela liberdade, a partir de personagens como Zumbi .e Tiradentes, com o intuito de buscar novas interpretações e novas dimensões de luta no interior do pós64, bem como discutir acerca dos impasses do engajamento político do teatro no período. Nesse sentido, apesar de as opções evidenciadas esboçarem caminhos distintos, os temas e as questões que alimentavam tanto Arena quanto Oficina eram próximos, na medida em que partilhavam do mesmo processo e com preocupações semelhantes. Isso significa dizer que: estabelecidas as premissas básicas que nortearam estes grupos, além de verificar a importância destes trabalhos para a discussão de nosso passado recente, observa-se também que a idéia de "transformação social e política" foi eixo destas experiências, constituindo, dessa maneira, um dos elementos que permitem vislumbrar um "espírito de época", como substrato comum destas diferenciadas criações estéticas.

6 Idem, p.72-3.

17 DE SÃO PAULO PARA O BRASIL: O CINEMA DA "BOCA DO LIXO" (I 969-197 3) REPENSANDO A "BRASILIDADE"

ALCIDES FREIRE RAMOS*

"É o lixo sem limites, senhoras e senhores ... "

O cinema produzido na "Boca do Lixo" (1969-1973), também conhecido como "Cinema Marginal", embora tenha representantes cariocas (o cineasta Júlio Bressane é, aliás, o melhor exemplo), encontrou em São Paulo o seu desenvolvimento inicial, tematizando transgressores, criminosos e prostitutas que constituem figuras típicas da paisagem paulistana. Surgido no período posterior ao AI-5, esse cinema foi encarado como uma resposta à repressão política imposta pelo regime militar. Por isso, foi alijado das "respeitáveis" salas de exibição pela Censura Federal. Do ponto de vista formal, os filmes feitos nesta vertente se assumem como radicalização das propostas desenvolvidas pelo Cinema Novo, em especial a "Estética da Fome". Nesse sentido, ao procurar circunstanciar a questão, Fernão Ramos observou que a palavra "marginal", socialmente falando, possui pelo menos dois significados. Segundo ele, "o primeiro se refere a 'estar à margem de, à beira de, ao lado de alguma coisa', ou seja, próximo e relativo à significação da palavra 'margem"'. Porém,

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ALCIDES FREIRE RAMOS

há uma segunda forma de entender a palavra marginal, e esta é muito mais importante, pois: o segundo significado já exprime uma postura ideológica de nossa sociedade com relação ao "estar à margem de" contido na primeira definição. A própria disposição das palavras já é significativa: "pessoa que vive à margem da sociedade ou da lei, vagabundo, mendigo ou delinqüente, fora da lei". Junta-se, então, ao significado "estar à margem de", quando pensado em termos sociais, a carga pejorativa contida em "vagabundo" ou "delinqüente". Para a compreensão da significação do Cinema Marginal dentro do panorama do cinema brasileiro, teremos de ter sempre presente esta conotação pejorativa inerente ao fato de estar à margem. Uma das principais características deste "cinema" está exatamente no deslocamento ideológico desta carga pejorativa que passa a ser valorada de outras formas" .1

Significativamente, partindo-se desta conceituação elaborada no universo do "senso comum", observa-se que estes filmes, reconhecidos sob o rótulo de "marginais", continuaram a discutir momentos da realidade brasileira, mas sob outra ótica, isto é, o intelectual e o homem de esquerda (portador da consciência e dos elementos necessários para a elaboração da crítica à situação sociopolítica vivenciada) saem de cena. Em seu lugar surgem os "marginais", ou melhor: aqueles que se encontram à margem do desenvolvimento econômico e social, os que ocupam os "espaços urbanos" decadentes. 2 Nesse sentido, pode-se dizer que, ao contrário do Cinema Novo, o Cinema Marginal posiciona suas câmeras em direção àqueles que, historicamente, foram colocados à margem do progresso e da modernização. Um dos filmes mais representativos desta proposta é O bandido da Luz Vermelha (1968) de Rogério Sganzerla.

RAMOS, F. Cinema marginal (1968-1973): A representação em seu limite. São Paulo: EMBRAFILME, Ministério da Cultura, Brasiliense, 1987. p.15-6. 2 É importante lembrar que a região de São Paulo conhecida como a Boca do Lixo localiza-se na área central da cidade, justamente aquela que foi sendo "abandonada" com o crescimento urbano e econômico. A opulência e a riqueza deixam de freqüentar este espaço para situarem-se em "áreas privilegiadas em bairros cercados de segurança e conforto", bem como a produção e a prestação de serviços são deslocadas para outras regiões. Nesse sentido, a quem foi relegado o centro velho da cidade? Aos bêbados, prostitutas, ladrões e os demais excluídos da modernização conservadora.

DE SÃO PAULO PARA O BRASIL

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O bandido é um filme inaugural, pois se apresenta como um ponto de partida para aquilo que posteriormente receberia a denominação de Cinema Marginal. Entretanto, ao mesmo tempo em que lança as bases para a construção de um novo olhar sobre a realidade brasileira, este filme contém traços que o remete à produção cinematográfica anterior, especialmente o Cinema Novo. O melhor índice deste vínculo é a sua perspectiva globalizante traduzida pela alegorização de elementos retirados da realidade. Não devemos deixar de mencionar que, ideologicamente, O bandido traz consigo as tensões de seu tempo (anos 60), pois não apresenta uma proposta pronta e acabada, tendo em vista a derrota dos projetos revolucionários do período. Seu estilo "tropicalista" reside, pois, na interiorização estética tanto da vontade de transformação (traço herdado das propostas do Cinema Novo) como da impossibilidade de fazê-lo (em virtude, sobretudo, da iminente derrota da luta armada). Por isso, ao mesmo tempo em que busca a totalização, a cada instante do filme ela se esfacela, como se a realidade estivesse teimosamente escapando ao controle do autorcineasta. Para Ismail Xavier, O bandido "descentra tudo, ostentase como filme periférico que focaliza uma personagem periférica num mundo periférico". 3 A palavra de ordem constantemente repetida no filme "é o lixo sem limites, senhoras e senhores", tenta traduzir do ponto de vista verbal este descentramento. A inserção histórica deste filme deve ser vista, em primeiro lugar, exatamente pelo diálogo tenso que estabelece com o legado cinemanovista. Neste sentido, concordamos com Jean-Claude Bernardet quando afirma: "por mais que o Bandido esteja em contradição com os filmes do Cinema Novo da década de 1960 - e basta apontar o caráter urbano em oposição à temática rural de um Deus e o diabo na terra do sol ou de um Vidas secas para salientar uma diferença essencial-, não deixa de ser muito devedor das suas contribuições". 4 Para Bernardet, a razão principal reside na abordagem "terceiromundista" que O bandido traz consigo e que, sem dúvida,

3 XAVIER, I. et. a!. O desafio do cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p.19. 4 BERNARDET,]. C. O vôo dos anjos: Bressane, Sganzerla. São Paulo: Brasiliense, 1991. p.188.

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é um tributo pago ao Cinema Novo (o movimento responsável pela introdução desta abordagem no cinema brasileiro). Na verdade, antes desse período, havia filmes brasileiros voltados para a crítica social, como Moleque Tião, ou que se propunham a fazer a crítica da profunda divisão de classes no Brasil e, por conseqüência, denunciavam os mecanismos de opressão utilizados pela classe dominante, o que pode ser visto em Rio 40 graus. No entanto, de acordo com Bernardet, a idéia do Terceiro Mundo que ultrapassa as fronteiras da sociedade brasileira e aponta para um sistema de opressão internacional é trazida pelo Cinema Novo. Os filmes finalizados por Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Ruy Guerra pouco antes do golpe de 1964 abandonam um realismo preso a questões sociais restritas, ou a uma sociedade nacional ou camadas dela, para montar metáforas abrangentes que significam não somente o país como um todo, mas uma ampla situação social que vai além dos caracteres nacionais. 1

Entendemos que Bernardet encaminha acertadamente a questão quando afirma: esses traços podem ser reencontrados no Bandido, quando se autodenomina um "faro este do Terceiro Mundo". Devemos observar que tal autodenominação vincula um filme urbano com traços nítidos de policial a um gênero, o westem, eminentemente rural. A vontade de totalização fica patente quando se verifica, por exemplo, que a última palavra do luminoso é "Brasil", retomada quatro vezes em planos quase consecutivos. Ou quando se vê um cartaz mostrando um revólver em primeiro plano, apontando para uma pequena figura masculina enquadrada por um mapa estilizado da América do Sul. 6

É claro que, embora o tema central seja comum e tomado de empréstimo ao Cinema Novo, há um deslocamento significativo na abordagem da noção de terceiromundismo, pois em O Bandido é possível ouvir "várias vezes que "o Terceiro Mundo vai explodir, quem estiver de sapato não sobra", o que coloca uma nítida diferença de impostação". 7

5 Idem, p.189. 6 Idem, p.189. 7 Idem, p.189.

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Em nosso entendimento, esta diferença de impostação pode ser explicada da seguinte forma: se no Cinema Novo podemos encontrar o desejo de superação da miséria/subdesenvolvimento (exemplos disso encontram-se não só no monólogo final de Sinhá Vitória em Vidas Secas, mas na metáfora do Sertão-Mar em Deus e o diabo na terra do sol e, sobretudo, na cena final de Terra em transe que alude à luta armada), a frase insistentemente repetida em O bandido é dúbia e irônica, pois quem a enuncia (um personagem caracterizado como "anão boçal") não consegue estabelecer uma efetiva empatia com o espectador, o que, sem dúvida, aponta para uma perspectiva de acordo com a qual o Terceiro Mundo necessariamente passará por transformações profundas ("o terceiro mundo VAI explodir... "), mas, ao mesmo tempo, não é possível prever quando isso ocorrerá (como resultado da crise das concepções teleológicas de história), tampouco que agentes sociais estarão à frente disso (" ... quem estiver de sapato não sobra"). Portanto, com base nestas observações é possível afirmar que o Cinema Marginal propõe um outro "olhar" para o Brasil, não só pelo questionamento da idéia de modernização/progresso material e espiritual defendida pela ditadura militar (tudo isso aparece no filme sob o signo da reiteração da desigualdade, do mau gosto, da boçalidade etc.), mas, sobretudo, pela crítica das crenças e atitudes da esquerda do período (que concentravam a atenção sobre camponeses pobres, operários e intelectuais de classe média, ou seja, sobre os grupos que possuíam alguma forma de organização e estavam integrados à vida econômica). Por este motivo, o ponto de vista adotado é o dos excluídos e sem esperança. O filme se organiza com base no olhar daqueles que não conseguiram inserção nas opções sociopolíticas oferecidas no período tanto pela esquerda como pelos militares. Neste sentido, a existência pura e simples dos marginalizados surge como uma forma de negar os "modelos" de análise até então vigentes. Ao colocar o "lixo urbano" em cena, o filme de R. Sganzerla explícita as contradições inerentes ao processo de desenvolvimento da sociedade brasileira (anos 60/70). Diante destas perspectivas, há que se considerar que a cidade de São Paulo tornou-se um dos lugares privilegiados para a confecção deste filme, bem como ofereceu estímulos para a sua

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ambientação, uma vez que a história desta cidade é uma das mais bem acabadas traduções das opções históricas feitas no final dos anos 60/início dos 70. Assim, retomar a experiência estética e política do Cinema Marginal é, sobretudo, propor um repensar da história de São Paulo por meio não dos grupos organizados em sindicatos, partidos ou movimentos sociais (bancários, metalúrgicos do ABC, funcionários públicos, movimentos contra a carestia etc.), mas exatamente a partir daqueles que, escapando dos esquemas teóricos vigentes no pensamento de esquerda, constituem-se pela negatividade (pois se caracterizam pelo fato de serem nãointegrados economicamente, não-organizados politicamente, nãoconscientes socialmente falando etc.) e que, muitas vezes, foram denominados "os marginalizados". Por fim, cabe salientar que a atualidade das questões propostas em O bandido da luz vermelha pode ser observada se lembrarmos que, de acordo com Robert Kurz: o que hoje faz sofrer as massas do Terceiro Mundo não é a provada exploração capitalista de seu trabalho produtivo, conforme continua acreditando, de acordo com a tradição, a esquerda, mas sim, ao contrário, a ausência dessa exploração. Por isso, também não pode haver nesses países uma reforma social social-democrata burguesa. Ninguém "precisa" da grande maioria dessas massas desarraigadas, levando esta parte uma vida miserável e improdutiva fora de qualquer estrutura de reprodução coerente .... A maioria da população mundial já consiste hoje, portanto, em sujeitos-dinheiro sem dinheiro, em pessoas que não se encaixam em nenhuma forma de organização social, nem na pré-capitalista nem na capitalista, e muito menos na pós-capitalista, sendo forçadas a viver num leprosário social que já compreende a maior parte do planeta. 8

É sob este ponto de vista que a história de São Paulo precisa ser revisitada. Rever O bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, já é um bom começo.

8 KURZ, R. O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.194-5.

18 REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DA MALANDRAGEM PAULISTANABIOGRAFIA DE HIROITO DE MORAES JOANIDES ECONTOS DE JOÃO ANTONIO MÁRCIA REGINA CISCATI*

Discorremos aqui sobre algumas obras como a autobiografia de Hiroito de Moraes Joanides, destacado malandro e bandido da Boca do Lixo nas décadas de 1950-1960, e os contos de João Antonio: Malagueta, Perus e Bacanaço, 1 "Dedo-Duro'? e "Paulinho PernaTorta",3 procurando abordar a temática da malandragem, que tem, segundo Antonio Candido, em Memória de um sargento de milícias,4 de Manuel A. de Almeida, a primeira obra representativa do assunto. Buscamos o traçado de um entre tantos aspectos que possui a dinâmica urbana da cidade: o universo da malandragem paulistana. Não obstante, observamos que a imagem de São Paulo, "locomotiva" do país, é uma construção histórica e ideológica que se fortifica contiguamente a uma outra imagem, a do malandro carioca. É na contramão da sedimentada imagem da "terra do trabalho" que encontramos Hiroito, nem trabalhador, nem operário: *

UNI CASTELO- SP. ANTONIO, J. Malagueta, Perus e Bacanaço. São Paulo: Ática, 1987. 2 . Dedo-Duro. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1982. 3 ANTONIO, J. Paulinho Perna-Torta. In: HOHLFELDT, A. (Org.) Os melhores contos de São Paulo. São Paulo: Global, 1986. p.137-72. 4 ALMEIDA, M. A. Memórias de um sargento de milícias. 9.ed. São Paulo: Ática, 1979.

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malandro, "rei da Boca" (como ele próprio se autodefine). E é na direção da fala do "outro" que caminha este trabalho. Para recuperar o pensamento e a fala de homens pobres, marginais, comuns. Neste sentido, a autobiografia de Hiroito vem cumprir papel de fundamental importância para a recomposição da memória marginal da cidade, bem como a compilação de falas e experiências dispersas e diferenciadas; além de nos oferecer um panorama da geografia e ambientação da malandragem, mostrando-nos que o malandro não é um personagem isolado, mas integrante de um submundo que congrega boêmios, prostitutas, artistas, todos participantes de um processo de urbanização dinâmico e incessante, pois suas transformações parecem não ter fim! Procuramos restituir aqui um pouco da figura palpável do malandro ou do personagem social, trilhando um caminho que vai para além da imagem idealizada e cristalizada do malandro de lenço no pescoço, camisa de seda e terno branco. Imagem, aliás, que colabora para a transformação do malandro em um personagem puramente alegórico, quase fantasma, colocando-o dentro de uma certa fronteira, um espaço delimitado, assim a sociedade parece estar "vacinada" contra a contaminação da vadiagem, da indisciplina e libertinagem próprias de uma vida boêmia e desregrada. Hiroito nos apresenta o malandro (apresenta-se como malandro) como um personagem que tem ligação estreita e inexorável com a prostituição, segundo ele "o submundo do crime não designa lugar qualquer da cidade, mas o conjunto de seres humanos vivendo à margem da lei ou dos bons costumes ... o foco que atrai, arregimenta e aglutina a população de proscritos é a prostituição ... nos rastros de uma qualquer mulher da vida, há que se ver o sentimentalismo de um malandro". 5 A geografia da malandragem descrita por Hiroito é a geografia da prostituição e o território da boemia: até 1953 o submundo da cidade ... concentrava-se no bairro do Bom Retiro, girando e pululando em torno do meretrício ali confinado,

5 JOANIDES, H. M. Depoimento de um ex-bandido, ex-rei da Boca do Lixo. 5 .ed. São Paulo: Paulinas. p.15.

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com o fechamento da chamada Zona, a prostituição desoficializada foi fixando-se nos Campos Elíseos ... territorialmente apossava-se de toda a área circunscrita pelas ruas e avenidas Timbiras, Aurora, São João, Pça. Júlio Mesquita, Barão de Limeira, Duque de Caxias, Lgo. Gal. Osório, constituindo ali o "Quadrilátero do Pecado" ou a "Boca do Lixo" ... ali estavam ladrões, toxicômanos, punguistas, prostitutas, vigaristas e por aí a fora ... os "desajustados sociais" .6

Muito interessante é a classificação que Hiroito faz dos desajustados sociais em "dois grandes grupos: malandros e vadios e uma subespécie, os boêmios. No grupo dos malandros incluem-se todos os indivíduos de conduta criminosa, tirando seu sustento quer batendo carteiras, assaltando, traficando; os vadios, o corpo assessoria! da malandragem, vivem ou freqüentam o submundo e ganham a vida através de ações que, se ferem a letra da lei, é apenas de 'leve"'. 7 Segundo Hiroito, nesta categoria incluem~se as prostitutas, ou ainda todo aquele que ganha seu sustento de modo imoral mas não necessariamente criminoso, como, ainda, o jogador profissional (baralho, sinuca, dados). Na classe dos boêmios estão os soldados, repórteres policiais, investigadores, escnvaes e até alguns delegados - embora pertencentes aos quadros do submundo, possuem emprego lícito. Hiroito nos descreve, ainda, alguns personagens de "primeira grandeza" do cenário da Boca, as embrulhadas que o cérebro do Osny bolava, visando tirar dinheiro mansamente do próximo, eram obras-primas do logro e da artimanha, refinado vigarista Malagutti, valente, terrivelmente sanguinário, fraco de corpo, nunca usou um revólver, sendo a faca e a navalha suas armas ... Joãozinho Americano era a negação da cultura e a afirmação exclamativa da feiúra ... possuía três a quatro mulheres, todas se prostituíam e lhe entregavam as férias integralmente ... Aladim, uma montanha de músculos, pertenceu à polícia marítima ... lutador de luta-livre e de cada esquina da "Boca" ... A vidinha rotineira da "Boca" era de umas facadas aqui, outras navalhadas ali. Tiros não muitos já que a arma em voga era a 6 JOANIDES, op. cit., p.16. 7 Idem, p.25-6.

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navalha, chamada sola ... as mulheres levavam-na no porta-seios, os homens, no bolso superior externo de seus paletós, por detrás do indefectível lenço dobrado em várias pontas. Ou, por precaução a possíveis batidas policiais, carregavam-na metida dentro da gravata, ou então, enfiada na costura da barguilha. Na "Boca do Lixo" revólver viria a tornar-se popular a partir de 1957 ... 8

Numa descrição tão detalhada quanto curiosa, Hiroito revela admiração pela "arte" com que eram exercidas as "habilidades" dos malandros e vigaristas, como no caso das canetas Parker 51: essa modalidade de furto não existe mais, possuir uma Parker 51, naqueles idos, não custava barato ... todas importadas ... acima de meio salário mínimo ... cada um daqueles "especialistas" na arte chegava a furtar uma vintena das referidas, ... "os artistas" tiravam as canetas do bolso de suas vítimas sem sequer encostar as mãos no objeto do furto ... fins de semana e feriados as ruas da "Boca" tornavam-se intransitáveis ... milhares de homens se punham a desfilar pelas calçadas, nos trechos em que havia mulheres postadas ou caminhando à caça de fregueses. No meio deles punha-se o punguista de canetas, levando nas mãos uma revista, geralmente O Cruzeiro. Ao perceber a aproximação de um chamado otário com a caneta presilhada no bolsinho-vitrina, o primeiro passo do punguista era tratar que o encontro e a passagem se desse pela esquerda ... segurando a revista com as duas mãos, pelas extremidades de baixo, mantinha-a colada ao peito, mais para a esquerda, quando a vítima que vinha à frente se achava a cerca de meio metro, num gesto como que distraído, o punguista deixava pender para a frente a parte superior da revista, de modo que fosse ela tocar o corpo do "freguês" pouco abaixo da presilha da caneta ... terminando a caneta por sair presilhada, mansamente, na revista. 9

Estas passagens nos apresentam as habilidades que os personagens da "corda bamba" deveriam apresentar para sobreviver no chamado "Quadrilátero do Pecado"; as artes e manhas da malandragem não estão, pois, dissociadas de atividades criminosas, e, ainda segundo Hiroito, a traficância era toda ela feita entre malandros e prostitutas. Quanto à utilização de revólver, Hiroito conta que sempre andava com dois, era sua arma predileta; sua habilidade e 8 Idem, p.46. 9 Idem, p.64.

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resistência às prisões o tornaram, segundo ele próprio, uma figura notória e simpática aos integrantes do corpo policial, merecendo consideração e respeito apesar dos "desentendimentos". Evidentemente o autor nos oferece a sua versão, que funciona como uma auto-exaltação, mas também como uma exaltação à malandragem. Ao descrever o circuito comercial e de diversão da "Boca", Hiroito nos leva para um plano mais humano, isto é, para o cotidiano de pessoas reais dentro de um sistema de sociabilidade, próprio do "antro" da boemia e malandragem, onde cada um ocupa seu papel social e desenvolve seu cotidiano. Há um certo orgulho sobre a "Boca", uma certa ética no convívio e relacionamento entre os malandros, boêmios, prostitutas. Eles relacionavam-se com respeito e amizade com os comerciantes da "Boca". Se os comerciantes legais eram respeitados, os de "negócio ilícito" eram protegidos pelos valentes e malandros respeitados; logicam~nte, o interesse não era gratuito, pois eram esses mesmos protetores que controlavam a expansão e exercício das transações ilícitas. Lenocínio (rufianismo) ou distribuição de tóxicos eram exercícios que careciam da proteção de um valente. Descortina-se, pois, uma rede de poderes que tem o seu funcionamento garantido pelas ordenações hierárquicas. Para Hiroito a "Boca"se tornara como que uma cidade dentro da cidade, devido à sua estrutura comercial, de serviços e sociabilidade atendendo quase que exclusivamente à "classe dos desajustados sociais". Assim o circuito da "Boca" fazia-se famoso também pelos seus pontos de diversão: na Av. Duque de Caxias o salão Marajó alegrava as noites dançantes nas quais meretrizes e empregadas domésticas ou de baixa categoria profissional se engraçavam com rufiões, bandidos, malandros, boêmios e escriturários ... no baile do Astória, na Gal. Osório, como também no célebre 28 (Rua dos Andradas), a freqüência desses dois antros era toda ela de "delinqüentes" (notadamente os mais "pés-dechinelo"), vadios e "mulheres da vida" ... tais bailes eram do tipo "sem navalha não entra" ... dos bares, os mais famigerados eram o do Moisés, na Duque de Caxias, ponto de guardas civis e investigadores; na Sta. Ifigênia, quase esquina com a Gusmões, o bar dos Cafetões, que nunca chegou a ter um nome estampado em letreiro ... esquina com a Rua Vitória o Restaurante Canto do Galo ... mais

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acima, esquina da Gal. Osório, ficava o Bar e Lanchonete Ouro Verde ... ainda na categoria de "quentes" havia o Bar do Argentino, na Aurora; o Bar das Caipirinhas e o Paladium, ambos na Av. Rio Branco; o Bar do Laerte, na Barão de Piracicaba, e tantos outros ... Entre os restaurantes noturnos o mais antigo é o Tabu, Rua Vitória ... a Adega do Arouche sempre gozou de preferência das mulheres de boates c o Restaurante do Papai, da Júlio Mesquita, a das lésbicas ... 10

O Cine Oásis, na Praça Júlio Mesquita, era, segundo a descrição do Hiroito, o maior cinema da região, exibindo sessões corridas até as quatro da madrugada; nas casas de jogos clandestinos, homens e mulheres disputavam pif-paf e cachetas, eram jogos mais calmos. Nas rodas de crepe e de ronda, descritos como jogos muito ardilosos, havia constantes brigas com mortos e feridos. Perigo, diversão, esperteza, trabalhadores subalternos, bandidos, malandros, prostitutas e homossexuais eram o caldo que engrossava na panela do submundo. 11 A "Boca do Lixo" era, portanto, um território de ação e sociabilidade da "escória" social. Mas se na dinâmica urbana a malandragem é gerada, nela também sofre seus ataques, perseguições e transformações. Este processo é observado e registrado por Hiroito: "veio o progresso e as coisas mudaram ... " 12 O esquema policial passou a acirrar suas atividades com o intuito de acabar com a "Boca do Lixo", mas, pelo que registra Hiroito, conseguiram é espalhá-la, afugentaram seus malandros e prostitutas para outras "bocas": o Mauro transferia-se para a Alameda Nothman, onde já estava o Quinzinho e outros malandros mais. O Marinheiro fundou a boquinha da Rua Helvétia, à qual foram juntar-se outros; o Leãozinho, rufiãoestelionatário-traficante; o Paraíba, ex-punguista que se passa para a traficância; a prostituição seguia o mesmo curso, transferia-se de um lugar para outro desde a AI. Nothman e cercanias da Pça. Mal. Deodoro, Protestantes, até o Lgo. do Arouche, Rua das Palmeiras, Amaral Gurgel até encontrar a Rua da Consolação e Av. Ipiranga. 13

10 11 12 13

Idem,p.78. Ibidem. Idem, p.79. Idem, p.l16.

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O depoimento de Hiroito nos leva a outro caminho, outras reflexões sobre a figura, o exercício e as transformações na malandragem, mas não indica regeneração. No pulsar do vertiginoso metamorfoseamento da metrópole, o universo abrigador da boemia e malandragem paulistana congrega uma diversidade de tipos pertencentes a uma memória da cidade, memória esta que não se coaduna exatamente com a imagem cristalizada da "terra do trabalho" e nem com o arquétipo glamourizado da malandragem carioca. A ambiência à qual se refere Hiroito e da qual se mostra saudoso, falando com certa admiração às vezes, registra o fato de este universo ser o submundo de onde alguns artistas, notadamente escritores e músicos, irão tirar o material bruto para a representação, ou seja, criar o representante da "leve", ou a representação artística de um contexto social, reforçando-nos alguns argumentos como, por exemplo, o de que a malandragem não só existiu no contexto real da cidade, como não morreu, mas transformou-se como parte de um conjunto de mutações que ocorreram na vida urbana. De acordo com Hiroito, a cidade toda transformou-se numa "boca": o quadrilátero do pecado onde os malandros se feriam ... onde as prostitutas em procissão exerciam sua profissão ... foi extinto territorialmente, mas apenas territorialmente. Os malandros continuam a dar tiros uns nos outros e também, ocasionalmente, em uma ou outra pessoa de bem, pois que as duas classes se misturaram ... distintos problemas se chocam ... a cidade toda é uma "boca" ... 14

A concorrência acirrada entre os malandros fez desaparecer uma espécie de ética característica da "classe", "estava se tornando cada vez mais duro o sujeito ser malandro". Segundo Hiroito, vários motivos interligados - desde a mutação dos comportamentos, as modalidades e formas de delinqüir, a dispersão da massa delinqüencial, provocada pela ação policial, fazendo nascer uma porção de "boquinhas", acirrando a concorrência e a disseminação do uso de drogas injetáveis levaram à "degeneração da classe":

14 Idem, p.118.

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anfetamina (pervintin) que veio a funcionar como elemento catalisador nesse processo de acanalhação da classe. Pois que se acanalhou não há como negá-lo. Só aqueles que não alcançaram conhecê-la em outros tempos é que podem estar desapercebidos da deterioração sofrida ... 15

No relacionamento "profissional" entre os malandros e suas vítimas havia até então, um respeito muito maior. "Respeitava-se a condição humana dos chamados 'otários', a honra, os brios e a dignidade dos mesmos, o que não se respeitava era exclusivamente os seus bens materiais, as suas carteiras, o dinheiro; não era uma guerra, mas um jogo". 16 Ao sair da prisão (1958-1959), Hiroito encontra a "Boca do Lixo" como sede do submundo, como área delimitada de prostituição e criminalidade já extinta. Durante aqueles anos, acompanhando a evolução econômica da nação, mais especificamente o progresso da indústria automobilística, com a conseqüente popularização do automóvel, a prostituição assumiria novas feições. 17 Tanto no relato autobiográfico de Hiroito como nas construções literárias de João Antonio, as quais têm como tema a malandragem, entramos em uma ambiência na qual a figura do malandro não se apresenta como elemento isolado, mas personagem integrado em um contexto de urbanidade no qual se desenvolvem atividades, procedimentos e condutas que se completam e compõem o universo do submundo. Encontramos assim um universo que é transplantado em algumas obras literárias a partir da percepção de alguns de seus participantes ou observadores. Selecionamos para essa breve exposição alguns contos de João Antonio nos quais, como comenta Paulo Rónai, "as personagens, que às vezes se confundem com o autor, são, em sua maioria, do submundo: jogadores de sinuca, prostitutas, traficantes, alcagüetes; há também gente do futebol, da música popular e da publicidade - todas visceralmente identificadas com seu meio

15 Idem,p.118-20. 16 Idem, p.128. 17 Idem, p.185.

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de vida e de morte, que lhes modula os sentimentos e a fala, em perpétua revolta contra a sociedade, cuja pressão os esmaga" . 18 E segue o personagem do conto Dedo-Duro, Paulo Melado: Zona da Rua Itaboca e dos Aimorés, único canto da cidade que não briga comigo e até para beber uma cerveja envieso para lá ... O coração na mão. A medo e ressabiado. Sem idade e sem condições olhadela das polícias, de guanacos, de civis, de militares, de secretos, cabeçasde-penico, me enfio pelo bordel, que para mim é mulher e acaba sendo mais que mulher. A musa de pano verde, o salão, o barbeiro ... a malandrecagem se mexendo, esguia, magra, que desliza entre o U que as duas ruas formam, pois se encontram lá no final- Itaboca e dos Aimorés- onde a vida é um ale grão ... das façanhas, da boataria na gíria brava e enrustida, do mulherio que pode nos dar ou tomar neste mundão de vida dividida entre otários e malandros ... Vou ficar ali no bar do Tico até uma da manhã, jogar sinuca, falar de mulher, campanar coisas, xavecos, ouvir os mais velhos. 19

O autor vai, assim, traçando o percurso da vida do personagem Paulo Melado desde a adolescência até a juventude e vida adulta, sempre se aperfeiçoando na malandragem. Um menino de família suburbana (Lapa de Baixo) que vai aprendendo as delícias da noite e da malandragem, não obstante, até determinado momento de sua vida concilia os horários de trabalho com a "esbórnia" - as mulheres, os jogos de sinuca, o baralho -, e vai aprendendo outras formas de ganhar a vida. As abelhas trabalhando no abelheiro fazem zum-zum. Quando pego no baralho faço sempre vinte e um. Quem me vê aqui cantando pensará que não trabalho. Tenho os dedos calejados da viola e do baralho ... 20

Segue descrevendo o cotidiano da Vila Anastácio, o percurso de ônibus, a identificação das fábricas da "Vila Empoeirada" onde o cotidiano é trabalho nas fábricas, pegar ônibus lotado e nos finais de semana, futebol, samba, cachaça. Mas o personagem

18 RÓNAI, P. In: ANTONIO,]. Dedo-Duro. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1982. p.12. 19 ANTONIO,]. Dedo-duro. p.105-26. 20 Idem, p.126.

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Paulo Melado não se dá por vencido nem se deixa disciplinar pela rotina proletária, é malandro, procura as jogatinas e prostíbulos da "Boca do Lixo". Uma maneira de escapar do destino ao qual está fadado o proletário ou o otário da Vila. na Av. São João com Ipiranga, as cores das bolas na sinuca, o eco seco estalando, o samba que mata o sono e mata a fome, o bonde Anastácio varando a noite, depois da madrugada varada nos dancings da Av. Rio Branco e da lpiranga ... 21

Esboça-se um mundo de artes, manhas e durezas, mistura de trabalhador com vadio e uma descrição do circuito da boemia com a geografia proletária que se desenvolve pelos lados da Zona Oeste da cidade, indo dar nas fábricas da Lapa de Baixo, fazendo fronteira com a Barra Funda, lembra-nos o relato autobiográfico de Hiroito diagnosticando que o submundo não se extinguiria, mas que a cidade toda iria transformar-se numa "boca". Observando a trajetória de algumas personagens criados por João Antonio enquanto procuramos iluminar a representatividade que tem a malandragem em sua literatura, vamos encontrando "tipos" de malandros muito diversos (como no caso de Malagueta, Perus e Bacanaço, três tipos "viradores" muito diferentes e que "viram" juntos a cidade). Não obstante, parece existir uma filosofia própria ou um princípio norteador do modo de vida dessas personagens que se revela como uma constante em suas experiências: a resistência ao trabalho. Não qualquer trabalho, mas o "trabalho de otário", o trabalho proletário. Neste sentido é reveladora a passagem descrita a seguir, do personagem Zé Peteleco, também do conto "Dedo-Duro": saído do xadrez, não fazia uma semana, Cigano, um punga (punguista) fuleiro dos que se desapertavam como lanceiros nos ônibus ... e tinha seu mocó num hoteleco da "Boca do Lixo", mandou pintar num quadro que pendurou na cabeceira da cama. Dizia lá: "Morro de fome mas não trabalho. Louvado seja Deus". Ou nunca entendi, ou isso é a "Boca". 22 21 Idem,p.137. 22 Idem, Ibidem.

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Em seus contos, João Antonio apresenta personagens diversos, que, no relato de Hiroito são apresentados com uma distinção quase didática: "o malandro da leve" e o "malandro da pesada". Com isso descreve um mundo no qual todos eles se encontram e em que cada um tem sua função. Os personagens criados por João Antonio vão desde o malandro-trabalhador até aquele que se recusa terminantemente ao trabalho, do especialista em sinuca de aparência decadente (como o personagem Malagueta, do conto "Malagueta, Perus e Bacanaço") até o gigolô meticuloso com suas vestes e aparência (como o personagem Bacanaço). Zé Peteleco é um personagem muito ilustrativo, que encontra no ambiente da malandragem a chance de ascensão: pé-rapado e cheio de irmãos, me escondi até os dezessete anos numa vi linha de Carapicuíba ... caí na Capital ... corri atrás, engraxando e esmolando, coisa que não gosto de lembrar. Aí, ganhei prumo, apanhando, entregando roupa num tintureiro da Rua do Triunfo, na "Boca do Lixo" ... e foi ali que aprendi a conhecer os tipos malas ... se concentrava gente de um tudo, mexendo com ramo variado; era putaria, tráfico, jogo, batifundo, assalto, virações ... fracote, pequeno, mas no ambiente ... com o tempo até o mais morto arranja uma moleza ... uma otária fácil de dobrar. Eu entrava com o amor e ela com o resto - a cama, no bordel onde eu aparecia para dormir na virada das três da matina, terminada a batalha das mulheres. Na hora dos sabidos e dos amigos das minas ...23

Zé Peteleco, que, magrela, sem tipo, sem talento para o jogo e nem para impor respeito na "Boca", é convidado pelos tiras para ser informante, o chamado dedo-duro, topa, pois a vida torna-se ainda menos trabalhosa de ser ganha assim: muita vez aparece moleza, a gente apanha um mala e toma-lhe a nota, dividimos depois, eu levo o meu. A gente multa um malandro que tem algum no bolso ... dá o que tem e o que não tem para não pegar cana dura. Aí, a minha cara é maior ... é uma variedade de peças; dos parceirinhos, jogadores, patrões e cavalos, velhos estrepados e sós, desocupados e famintos, gente da noite ... tudo gente que bate carteira, pisa macio e se alivia de qualquer maneira. Baixa também algum malandreco da pesada. Aí é comigo ... minha 23 Idem, p.139.

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prisão foi de araque ... deu que garantiu minhas aparências na raia da malandragem". 24

Outro tipo de malandro que encontramos representado na literatura de João Antonio é o Bruaca, jogador e alcoólatra cujas características físicas e habilidades com o jogo são semelhantes a uma outra personagem, o Malagueta: "fez os caras e os fez bem feitinho. Sonso, pegou no taco e trabalhou singelo, humilde e dissimulado. Ajeitou o giz, cruzou os olhos nas tabelas suas velhas conhecidas, sentiu firmes os pés enfiados nos tamancos cambados. Não tinha bebido uma gota. E ninguém como ele para andar em cima de tamancos gastos. E machucou. A gente ficou sabendo nos muquinfos e botequins ... Bruaca lhes deu vantagens ... jantou os caras. Depois sumiu, esquinizou de vila Pompéia. Para os lados da Água Branca, lá em cima de uma chaminé, o sol está pintando ... ".2.1

João Antonio observa, capta e transpõe para seus contos uma geografia física da malandragem que vai se ampliando ou, na medida em que a urbanização se acirra, a ligação do centro da boemia com os bairros (Lapa, Barra Funda, Pinheiros, Cambuci, Penha) vai sendo facilitada, e portanto o trânsito dos malandros e boêmios também, assim como a diversidade tipológica de malandros a inspirar o autor. Mas talvez o mais ilustrativo dos personagens de João Antonio seja o Paulinho Perna Torta. Trata-se da história de um moleque que vai galgando passos na hierarquia da malandragem. Sua história é ambientada na década de 1950 e em muito assemelha-se ao relato autobiográfico de Hiroito. Um personagem tipicamente na cordabamba, mais um da escória social ou do lúmpen do qual João Antonio nutre seus contos, um rebento que tem de se virar como engraxate lá para os lados da "Boca", mais precisamente na Rua do Triunfo, recebe proteção de um jornaleiro e de uma cafetina velha e gorda, dona de uma pensão, cresce num ambiente de marginais e precisa deixar de ser "otário" para sobreviver ou para não sucumbir à sua pouca sorte; o primeiro caminho é arrumar uma "otária" que lhe dê boa vida e galgar sua fama de valente para ser respeitado.

24 Idem, p.150. 25 Idem, p.163.

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Paulinho é otário de seus exploradores/protetores quando garoto, percebe que precisa de uma "otária" para si, são regras de convivência e sobrevivência que devem ser seguidas por quem está no meio. Há sempre um patrão, um valente maior ao qual os demais devem servir; isto implica passar de otário a malandro e de novo a otário, quando cruzar com um malandro mais poderoso, e novamente recuperar o poder diante das "minas" que o servem ou dos "otários" das ruas, que tanto podem ser trabalhadores como executivos que se metem a freqüentar a noite ou as rodas de jogo. Também pode o malandro, em certas ocasiões, ficar como um otário ante a esperteza de algum policial. É junto à prostituição, valendo-se dela, que Paulinho Perna Torta ascende no ambiente da malandragem: A concentração maior da bagunça, de todas picardias e malandrecagens, ficava lá no Bom Retiro. Aquilo era um formigueiro na Rua Itaboca e dos Aimorés ... essa cafetinagem rampeira, lixão é coisa a partir de 53, quando os cabras do governo fecharam a zona ... E as curriolas ferviam com maneiração ... , boca de sinuca, dadinho, carteado ... E os rendez-vous lá da Aurora, dos Timbiras, Vitória ... aquilo tudo de nome francês, a gente dava nome de pensões alegres. 26

Sua primeira "mina" é lvete, e dela o primeiro presente que ganha é uma bicicleta, depois vai se aprimorando na arte do amor e da valentia, e além de continuar com a Ivete arranja mais "minas", passa então a cafetiná-las com profissionalismo: "mulher só serve para dar dinheiro ao seu malandro ... por isso, entre os malandros da baixa e da alta, as mulheres se chamam minas". 27 Assim, a trajetória das personagens remete a uma transitoriedade dialética, analisada por Antonio Candido em Memórias de um sargento de milícias: 28 a ordem dentro da desordem, o poder dos desvalidos sociais mas não de todos, daqueles que conseguem se destacar e exercer algum domínio no ambiente da marginália e 26 ANTONIO, J. Paulinho Perna-Torta. In: HOHLFEDT, op. cit., Os melhores contos de São Paulo, p.l3 0-1. 27 Idem, p.144. 28 MELLO E SOUZA, A. C. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (São Paulo-USP), n.8, p.67-89, 1970.

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MÁRCIA REGINA CISCATI

tornar-se então, como canta Chico Buarque em Homenagem ao malandro, o "Barão da Ralé". Como pudemos verificar nesta breve abordagem, a ascensão no universo da malandragem obedece à lógica do poder, que por sua vez obedece a uma ordem hierárquica. Para se passar a um patamar superior entre os malandros é preciso viver e conhecer as regras não só da valentia mas também do respeito aos códigos estabelecidos, aos mais fortes e mais espertos - o malandro vai se aperfeiçoando a partir de uma experiência cumulativa. A ética da qual nos fala Hiroito se nos apresenta nas criações de João Antonio como algo muito mais elástico, dependendo sobretudo da força e habilidade superior de uns sobre os outros, e portanto fundamentada numa rede de poderes. Não obstante tanto o escrito de Hiroito como o de João Antonio sejam colocados no terreno de criações ou representações, Hiroito procura nos dar o seu "testemunho de verdade", já que é um depoimento de vida. João Antonio não tem esse compromisso autoexaltador, e talvez por isso, embora apresentando-se como criação ficcional, esta parece muito menos romântica que a autobiografia de Hiroito.

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