Flannery O_connor - Tudo O Que Sobe Deve Convergir (ed. Cavalo De Ferro, Portugal)

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Sem dúvida a melhor escritora americana do século xx New York Review of Books

Contagioso como um vício lento José Guardado Moreira, Expressa

Escritos ao longo de vários anos e alvo de constantes e obsessivos aperfeiçoamentos.. os contos de «Tudo o que sobe deve convergir- foram sendo publicados separadamente, valendo à autora tris prémios O' Henry - o mais prestigiado prémio para ·contos dos Estados Unidos. Postumamente foram recolhidos, por ordem de publicação. num llnico volume, considerado peta crCtica como mais uma das obras-primas de Flannery O'Connor, e agora pela primeira vez traduzidos em portug!Jis. «{ ... )não é no enredo. ou na arquite.ctura narrativa, que pressentimos à grandeza titerãrla de O'Connor. Éantes nos detalhes, no desenho preciso das atmosferas e naextraerr:tinária capacidade de caracterizar, com um mínimo de elementos, uma personagem.» José Mãrü:! Silva, DN - suplemento 6•

«Apesar de ser muito duro e violento. é de uma violência que promove a lucidez.» Gonçalo M. Tavares, Visão

cO seu virtuosismo dá vértigens.» José Toléntlno Mendonça, Público

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Tudo o que sobe deve convergir

Flannery O'Connor

Tudo o que sobe deve convergir

Prefácio e tradução do inglês

Clara Pinto Correia

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dcavalo eterro

Tudo o que sobe deve convergir Everything that

rises must converge

Autor: Flannery O'Connor Copyright© 1956, 1957, 1958, 1960, 1961, 1962, 1964, 1965

Copyright renovado em 1993 pelos pelos herdeiros de Mazy Flannezy O'Connor. Tradução: Clara Pinto Correia Revisão: Jorge David Capa: Miss Sushie Paginação: Gabinete Gráfico Cavalo de Ferro

!.• Edição, Novembro de

2006

Impressão e Acabamento: Offsetmais, S.A.

267 404/07 978-989-623-069-2

Depósito Legal: ISBN:

Todos os direitos para publicação em língua portuguesa reservados por:

© Cavalo de Ferro Editores, Lda.

Rua da Prata, 208, 1100-422 Lisboa

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Quando não encontrar algum livro Cavalo de Ferro nas livrarias, sugerimos que visite o nosso site: www.cavalodeferro.com Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sob qualquer forma ou por qualquer processo sem a autorização prévia e por escrito do editor, com excepção de excertos breves usados para apresentação e critica da obra.

ÍNDICE PREFÁCIO























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TODO O QUE SOBE DEVE CONVERGIR GREENLEAF





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A VISTA DOS BOSQUES



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O CAIAFRIO PERMANENTE OS CONFORTOS DO LAR















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AS COSTAS DE PARKER JUÍZO FINAL

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OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO REVELAÇÃO



















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PREFÁCIO

UMA QUESTÃO RELIGIOSA Em 1981 passei três semanas na Universidade do Kansas, pre­ cisamente em Lawrence, onde, um ano mais tarde, haveria de ser instalado o cenário para o filme The Day After. Foi entre Dezembro e Janeiro, e a neve acumulava-se nas ruas até meio da altura dos postes de semáforo, cortada pelo limpa-vidros num padrão cristalino por cima e barrento por baixo. Depois de todo o frio que um biólogo pode sofrer num trabalho de campo invernoso - sobretudo se, como era o meu caso, estiver mal agasalhado pela estrita falta do hábito - Nova Orleães acaba por cintilar ao longe como uma estrela balsâmica e tépida, onde um negro toca saxofone numa esquina e vêm barcos grandes de rodas gigantescas acostar aos portos. Comprámos o carro maior e mais barato que conseguimos encontrar (uma carrinha Volkswagen a cair de podre) e decidimos meter-nos à estrada a caminho do Grande Sul. São três dias de viagem através do Bible Beltln, e dormir dentro daquele carro era tudo menos simples. Até aparecerem os primeiros grandes pântanos do Mississipi, com as placas de aviso «Verificar bem se não está um aligator [!] Conglomerado de Estados no Sul e centro dos Estados Unidos onde os luteranos ortodo­ xos correspondem a cerca de 820/o da população e o texto bíblico é tomado com total serie­ dade como o paradigma a seguir no quotidiano.

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no meio da estrada», parecíamos rodar no vazio sem nunca sairmos do mesmo sítio : a toda a volta, para trás e para fren­ te, estendiam-se a perder de vista campos de cereais já ceifa­ dos e inteiriçados pelo gelo, quebrados ocasionalmente por um armazém, uma garagem, ou um silo perdidos no meio da paisagem. A certa altura, no que parecia ser o deserto total do Inverno, a carrinha avariou-se. Sondámos a paisagem com os binóculos (éramos biólogos) e lá descobrimos, ao fundo de um rolamento longínquo de colinas suaves, aquilo que parecia ser a chaminé de uma grande habitação. Já não me lembro como conseguimos fazer a carrinha che­ gar até lá, mas creio que foi a pulso. A casa pertencia a uma herdade, com um único piso de madeira pintada de bege que se prolongava para a esquerda até ao que parecia ser o arco em zinco de uma vacaria e cres­ cia para a direita em direcção a uma arrecadação de forragem e farinha para os animais. Estavam um tractor e uma retroes­ cavadora estacionados atrás, e um camião de caixa aberta, baixo, robusto, de rodas grossas e carroceria pesada, parado próximo do grande alpendre, abrigado debaixo da continua­ ção do telhado, onde se desenhavam a porta de entrada e duas cadeiras de baloiço com ar de muito usadas. Assim que nos aproximámos, saltaram da esquina, por debaixo do alpendre, dois cães presos por uma corrente a um aro de alumínio. Abriu-nos a porta uma família inteira de pessoas fortes com bochechas rosadas. O p ai estava de jardineiras de ganga cober­ tas, na parte de cima, por um blusão de lã em quadrados ver­ melhos e pretos. A mãe, de pantufas calçadas por cima de meias grossas, envergava um fato de treino vagamente alaran­ jado, com dizeres nas costas quase apagados pelas lavagens e secagens ao sol. Seguiam-nos cinco filhos, numa escadinha de alturas dos cem aos duzentos centímetros, todos tão parecidos nos olhos cheios de pestanas, a centrar a cara ossuda de testa larga, que se tomava difícil diferenciá-los uns dos outros. Distinguiam-se três rapazes e duas raparigas. O Sol, pendu-

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rado em total imobilidade no céu quase transparente de Janeiro, formava um disco de prata que lhes batia de frente· no rosto campónio. Os homens expuseram ao pai a questão da avaria, e ele voltou para dentro depois de enfiar na boca uma pastilha elástica. Reapareceu em poucos minutos, munido de cabos grandes, uma caixa de ferramentas, uma lanterna e um esfre­ gão enorme, cheio de nódoas. Limitou-se a fazer um meneio de cabeça aos meus colegas, e foi deitar-se sem mais hesita­ ções debaixo da nossa carrinha, com aquela prontidão e segurança de movimentos que caracterizam as pessoas habi­ tuadas desde pequenas a resolverem sozinhas todos os pro­ blemas práticos que a vida lhes apresenta. Na minha qualidade de única mulher do grupo, fiquei de lado à conversa com a mãe. As crianças estavam ansiosas por me apresentarem o seu animal de estimação, e trouxeram ao colo um porquinho j ovem ainda suavemente cor-de-rosa, que lhes lambia a cara e os dedos com uma devoção canina des­ mesurada, sobretudo para um suíno daquela idade. A mãe quis saber de onde eu vinha, mas não conseguiu localizar Portugal no seu mapa mental do mundo. De forma que pas­ sou de imediato à questão realmente interessante : - Então e diga-me, honey, que religiões é que existem no seu país, e qual delas. é a sua? Bem-vindos ao estranho mundo de Flannery O'Connor. Tudo isto existe precisamente no Sul dos Estados Unidos, ainda que esteja cada vez menos à vista.

TUDO O QUE SOBE DEVE CONVERGIR O médico tinha dito à mãe de Julian que ela devia emagrecer dez quilos por causa da tensão arterial, por isso, às quartas à noite, Julian tinha que acompanhá-la de autocarro ao centro da cidade para uma aula de emagrecimento nas instalações do YMCA. A aula de emagrecimento era destinada a mulhe­ res trabalhadoras com mais de cinquenta anos que pesassem entre 80 e 100 quilos. A mãe dele era uma das mais magras, mas as ditas senhoras não desvendavam a sua idade nem o seu peso. Não andava sozinha à noite de autocarro desde a altura em que brancos e negros tinham começado a andar nos mesmos autocarros ; e, porque a aula de emagrecimento era um dos seus poucos prazeres, necessária à sua saúde e de graça, ela dizia que Julian podia pelo menos fazer o sacrifí­ cio de acompanhá-la, tendo em conta tudo quanto ela tinha feito por ele. Julian não gostava de recordar tudo quanto ela tinha feito por ele, mas todas as quartas à noite enchia-se de coragem e acompanhava-a. Ela estava quase pronta para sair, postada em frente do espelho do vestíbulo, a colocar o chapéu, enquanto ele, com as mãos atrás das costas, parecia pregado à moldura da porta, aguardando, como São Sebastião, que as setas começassem a trespassá-lo. O chapéu era novo e tinha-lhe custado sete

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dólares e meio. Ela não parava de dizer, «Talvez não devesse ter pago tanto por ele. Não, não devia. Vou tirá-lo e devolvê­ -lo amanhã. Não devia tê-lo comprado.» Julian ergueu os olhos ao céu. «Claro que devia tê-lo com­ prado», disse. «Ponha-o na cabeça e vamos embora.» O chapéu era horroroso. Uma aba de veludo púrpura dobrada para baixo de um dos lados e dobrada para cima do outro ; o resto era verde e parecia uma almofada com o enchimento por fora. Ele achava que era mais vistoso e patético do que cómico. Tudo o que lhe dava prazer a ela era medíocre e deprimia-o a ele. Ela ergueu o chapéu mais uma vez e colocou-o lenta­ mente no cimo da cabeça. Duas asas de cabelo grisalho pro­ jectavam-se de cada lado da sua face corada, mas os seus olhos, da cor do céu, eram ainda tão inocentes e intocáveis pela experiência, tal como deveriam ter sido aos dez anos. Não fosse ela uma viúva que tinha batalhado arduamente para o alimentar, para o vestir e para o pôr a estudar e que ainda o sustentava, «até que ele caminhasse pelos seus pró­ prios pés», poderia passar por uma rapariguinha que ele tivesse que acompanhar à cidade. «Está óptimo, está óptimo», disse Julian. «Vamos embora.» Abriu ele próprio a porta e começou a descer o caminho para a obrigar a sair. O céu apresentava-se de um tom violeta esmorecido e as casas recortavam-se, escuras, contra ele, monstruosidades bolbosas e cor de fígado de uma fealdade uniforme embora não houvesse duas iguais. Como este bairro tinha estado na moda há quarenta anos atrás, a mãe persis­ tia em pensar que eles tinham sorte em ter lá um aparta­ mento. Cada casa tinha um colar estreito de terra à sua volta no qual se sentava, normalmente, uma criança suja. Julian caminhou com as mãos nos bolsos, a cabeça baixa e lançada para a frente e os olhos velados pela determinação de se tor­ nar completamente insensível durante o tempo que seria sacrificado ao prazer dela. A porta fechou-se, ele voltou-se e deparou-se com a figura baixa e rechonchuda, coroada pelo horrível chapéu,

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que se dirigia a ele. «Bem», disse ela, «SÓ s e vive uma vez e ao pagar um pouco mais por ele, pelo menos não tenho com que me envergonhar.» «Um destes dias vou começar a ganhar dinheiro», disse Julian sombriamente - ele sabia que isso nunca iria aconte­ cer - «e a mãe poderá ter uma dessas coisas ridículas sempre que lhe apetecer.» Mas, antes, haviam de mudar de casa. Imaginou um local onde os vizinhos mais chegados ficassem a cinco quilómetros para cada lado. «Acho que estás a sair-te bem», disse ela, calçando as luvas. «Só acabaste a escola há um ano. Roma e Pavia não se fizeram num dia.» Ela era uma das poucas participantes na aula de emagreci­ mento do YMCA que chegava de chapéu e de luvas e que se apresentava com um filho que tinha estudado na universi­ dade. «Leva tempo», disse ela, «e o mundo está uma desgraça. Este chapéu ficava-me melhor do que qualquer dos outros, embora quando a logista o trouxe eu tivesse dito, 'Volte a guardar essa coisa. Nunca o poria na cabeça', e ela disse, 'Espere só até o ver posto', e quando ela mo colocou, eu disse, 'Bem ! ! !', e ela disse, 'Se quer saber a minha opinião, esse cha­ péu favorece-a a si e a senhora favorece o chapéu, e para além do mais', arrematou, 'com esse chapéu, jamais se sen­ tirá envergonhada:» Julian pensou que poderia ter suportado a sua sorte mais facilmente se ela fosse egoísta, se fosse uma bruxa velha que bebesse e lhe gritasse. Caminhava ao lado dela, saturado em depressão, como se no meio do seu martírio ele tivesse perdido a fé. Apercebendo-se da expressão dele, sombria, sem espe­ rança, irritada, ela parou bruscamente com um olhar aflito e puxou-lhe o braço para trás. «Espera por mim», disse. «Vou a casa tirar esta coisa e amanhã vou devolvê-lo. Eu não estava em mim. Posso pagar a conta do gás com os sete e meio.» Ele apertou-lhe o braço com muita força. «A mãe não vai devolvê-lo», disse. «Eu gosto dele.» «Bem», disse ela, «Não me parece que deva ... »

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«Cale-se e desfrute-o», murmurou, mais deprimido do que nunca. «Com o mundo na desgraça em que está», disse ela, «é um milagre conseguir desfrutar sej a do que for. Estou-te a dizer, o mundo está às avessas.» Julian suspirou. «Claro que», disse ela, «se tiveres consciência de quem és, podes ir seja onde for.» Ela dizia isto de que cada vez que ele a acompanhava à aula de emagrecimento. «A maior parte deles não são o nosso tipo de gente», disse ela, «mas eu sei ser delicada com toda a gente. Eu sei quem sou.» «Eles estão-se nas tintas para a sua delicadeza», disse Julian ferozmente. «Ter consciência de quem se é, só se aplica a uma geração. A mãe não tem a mais pequena ideia de onde está neste momento ou de quem é.» Ela parou e lançou-lhe um olhar repentino. «Eu sei mui­ tíssimo bem quem sou», disse ela, «e se tu não sabes quem és, envergonho-me de ti.» «Que inferno», disse Julian. «Ü teu bisavô foi um antigo governador deste Estado», disse ela. «0 teu avô foi um próspero proprietário rural. A tua avó era uma Godhigh.» «Olhe à sua volta», disse ele tenso, «e vej a onde está agora.» E fez um gesto abrangente para indicar a vizinhança, que a escuridão crescente tomava menos esquálida dentro dos limi­ tes do possível. «Tu continuas a ser o que és», disse ela. «Ü teu bisavô tinha uma plantação e duzentos escravos.» «Já não há escravos», disse ele com irritação. «Estavam bem melhor quando o eram», disse ela. Julian soltou um gemido ao ver que a mãe estava lançada naquele assunto. Entregava-se a ele com regularidade como um comboio em carris desimpedidos. Ele conhecia cada apeadeiro, cada ramal, cada pân­ tano do trajecto, e sabia o ponto exacto em que a conclusão dela entraria majestosamente na estação : «É ridículo. É simplesmente irrealista. Deviam erguer-se, sim, mas do seu lado da cerca.»

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«Vamos esquecer o assunto», disse Julian. «Aqueles de quem eu tenho pena», disse ela, «são os que são meio brancos. Esses são uns desgraçados.» « É capaz de esquecer o assunto?» «Imagina que éramos meio brancos. Sentir-nos-íamos cer­ tamente confusos.» «Eu sinto-me confuso neste momento», gemeu ele. «Bem, falemos de algo agradável», disse ela. «Eu lembro­ -me de ir a casa do avô quando era uma rapariguinha. Naquela altura a casa tinha uma escadaria dupla que subia até ao que era na realidade o segundo andar - os cozinhados eram todos feitos no primeiro. Eu costumava gostar de ficar em baixo na cozinha por causa do cheiro das paredes. Sentava-me com o nariz esborrachado contra o estuque e inspirava profundamente. Na realidade a casa pertencia aos Godhighs mas o teu avô Chestny pagou o empréstimo e con­ servou-a para eles. Estavam reduzidos à pobreza», disse ela, «mas, empobrecidos ou não, nunca esqueceram quem eram.» «Sem dúvida que aquela mansão arruinada não os deixava esquecerem-se», murmurou Julian. Nunca falava dela sem des­ prezo nem pensava nela sem saudades. Tinha-a visto uma vez quando era criança antes de ser vendida. A escadaria dupla tinha apodrecido e sido demolida. Era habitada por pretos. Mas permanecia na sua cabeça como a mãe a tinha conhecido. Aparecia nos seus sonhos com regularidade. Ele estava de pé na varanda ampla, escutando o sussurro da folhagem dos car­ valhos, depois deambulava pelo vestíbulo de tectos altos até ao salão, que abria para aquele, e olhava para as carpetes gastas e para os cortinados desbotados. Ocorria-lhe que era ele, e não ela, que a teria apreciado. Preferia a sua elegância puída a tudo aquilo que ele pudesse nomear e era por causa dessa casa que todos os bairros onde viveram depois foram um tormento para ele - enquanto que ela mal tinha sentido a diferença. Ela cha­ mava à sua insensibilidade «adaptar-se». «E eu lembro-me da velha escura que era a minha ama, Caroline. Não havia melhor pessoa no mundo. Sempre nutri

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um grande respeito pelos meus amigos de cor», disse ela. «Faria tudo no mundo por eles e eles ... » « É capaz de mudar de assunto, pelo amor de Deus?», disse Julian. Quando apanhava o autocarro sozinho, fazia questão de se sentar ao lado de um preto, como que em reparação pelos pecados da mãe. «Estás muito sensível esta noite», disse ela. «Estás-te a sen­ tir bem?» «Sim, sinto-me bem», disse ele. «Agora esqueça o assunto.» Ela cerrou os lábios. «Bem, tu estás mesmo de péssimo humor», observou ela. «Não vou dirigir-te mais a palavra.» Tinham chegado à paragem. Não havia autocarro à vista e Julian, ainda com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça lançada para a frente, fitava de mau humor o fundo da rua deserta. A frustração de ter que esperar pelo autocarro, para além de ter de andar nele, começou a arrepiá-lo pelo pescoço acima como se fosse uma mão quente. A presença da mãe foi-lhe recordada com brutalidade quando ela suspirou peno­ samente. Olhou para ela com frieza. Mantinha-se muito di­ reita sob o chapéu grotesco, usando-o como um estandarte da sua dignidade imaginária. Habitava-o um impulso perverso de lhe quebrar o ânimo. De repente afrouxou a gravata, tirou­ -a e colocou-a no bolso. Ela ficou hirta. «Por que é que tens de ter esse aspecto quando me acompanhas à cidade?», disse ela. «Por que é que tens que me humilhar deliberadamente?» «Se nunca vai aprender qual é o seu lugar», disse ele, «pode pelo menos aprender onde eu me encontro.» «Pareces um - rufia», disse ela. «Então devo ser», murmurou ele. «Volto para casa», disse ela. «Não vou incomodar-te. Se não consegues fazer uma coisinha destas por mim ... » Rolando os olhos, Julian voltou a pôr a gravata. «Reinte­ grado na minha classe», murmurou. Dirigiu a cara em direc­ ção a ela e sibilou, «A verdadeira cultura está na cabeça, na cabeça», disse, e bateu na testa, «na cabeça.»

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«Está no coração», disse ela, «e na forma como fazes as coisas, e a forma como fazes as coisas vem de quem tu és.» «Ninguém no maldito autocarro quer saber quem a mãe é.» «Eu quero saber quem sou», disse ela friamente. O autocarro iluminado apareceu no cimo da colina mais próxima e à medida que se aproximava, desceram o passeio para se abeirarem dele. Ele colocou a mão debaixo do coto­ velo dela e içou-a para o degrau que rangia. Ela entrou com um pequeno sorriso, como se estivesse a ingressar numa sala de visitas onde todos a esperavam. Enquanto ele colocava as fichas para pagar a viagem, ela sentou-se num dos bancos compridos da frente, destinados a três pessoas, que estavam voltados para o corredor. Uma mulher magra de dentes sa­ lientes e cabelo comprido amarelo estava sentada numa extremidade. A mãe sentou-se ao lado dela e deixou espaço para Julian ao seu lado. Ele sentou-se e olhou para o chão, do outro lado do corredor, onde se encontrava um par de pés magros numas sandálias vermelhas e brancas de lona. A mãe iniciou imediatamente uma conversa geral, desti­ nada a atrair qualquer pessoa que quisesse falar. «Será que pode ficar ainda mais quente?», disse, e retirou da mala um leque de dobrar preto com uma cena japonesa, que começou a agitar à sua frente. «Acho que sim», disse a mulher com os dentes salientes, «mas tenho a certeza de que o meu apartamento é que não pode ficar mais quente.» «Deve apanhar o sol da tarde», disse a mãe. Sentou-se na ponta do banco e olhou para um e para o outro lado do auto­ carro. Estava semicheio. Todos os passageiros eram brancos. «Estou a ver que temos o autocarro só para nós», disse. Julian encolheu-se. «Para variar», disse a mulher do outro lado do corredor, a dona das sandálias vermelhas e brancas de lona. «Apanhei um no outro dia e pareciam moscas à frente, e até ao fundo.» «0 mundo está uma desgraça por todo o lado», disse a mãe. «Não sei como é que deixámos chegar as coisas a este ponto.» -

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«Ü que me irrita são todos aqueles rapazes de boas famí­ lias a roubar pneus de automóveis», disse a mulher de dentes salientes. «Eu expliquei ao meu filho, disse-lhe tu podes não ser rico mas foste criado da maneira certa e se eu te apanho numa confusão dessas, podem mandar-te para o reformató­ rio. É exactamente onde pertences.» «A educação fala por si», disse a mãe. «Ü seu filho está no liceu?» «No nono ano», disse a mulher. «Ü meu filho acabou a universidade o ano passado. Quer ser escritor, mas vende máquinas de escrever até se lançar na escrita», disse a mãe. A mulher inclinou-se para a frente e observou Julian. Ele deitou-lhe um tal olhar malévolo que ela voltou a encostar­ -se no assento. No chão, do outro lado do corredor, estava um jornal abandonado. Ele levantou-se, apanhou-o e abriu-o à sua frente. A mãe continuou a conversa discretamente num tom mais baixo, mas a mulher do outro lado do corredor disse em voz alta: «Que bom. Vender máquinas de escrever é parecido com escrever. O rapaz pode mudar directamente de uma actividade para a outra.» «Eu digo-lhe», disse a mãe, «que Roma e Pavia não se fize­ ram num dia.» Por detrás do jornal, Julian estava a retirar-se para o com­ partimento interior da sua mente onde passava a maior parte do tempo. Era uma espécie de bolha na qual ele se instalava quando não suportava tomar parte no que se passava à sua volta. A partir daí ele podia observar e julgar, mas, dentro dele, estava a salvo de qualquer tipo de penetração do exte­ rior. Era o único sítio onde se sentia livre da idiotice geral dos seus semelhantes. A mãe nunca lá tinha entrado - mas, a partir dele, conseguia vê-la com absoluta claridade. A velhota era suficientemente inteligente, e pareceu-lhe que, se tivesse partido de algumas das premissas correctas, poder-se-ia ter esperado mais· dela. Vivia de acordo com as leis do seu mundo de fantasia, fora do qual ele nunca a tinha

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visto pôr um pé. A lei desse mundo era sacrificar-se por ele depois de ter anteriormente criado essa necessidade gerando uma confusão. Tinha adquirido os seus sacrifícios apenas porque a sua própria falta de perspicácia os tomara necessá­ rios. Toda a sua vida tinha sido uma luta para agir como uma Chestny sem os bens dos Chestny, e proporcionar-lhe a ele tudo o que ela pensava que um Chestny devia ter; mas já que, dizia ela, era divertido lutar, porquê queixar-se? E quando se vencia, como ela tinha vencido, que divertido era olhar para os tempos difíceis ! Julian não conseguia perdoar-lhe o facto de ela apreciar a luta, e muito menos o facto de pensar que ela tinha vencido. O que ela queria dizer quando afirmava que vencera era que tinha conseguido educá-lo e enviá-lo para a universi­ dade, e que o resultado era tão positivo - ele era bem pare­ cido (os dentes dela tinham ficado com cáries para que os dele pudessem ser endireitados), inteligente (ele tinha cons­ ciência de que era demasiado inteligente para ter sucesso), e tinha um futuro à sua frente (claro que não havia futuro algum à sua frente) . A mãe desculpava-lhe a melancolia jus­ tificando-a com o facto de ele estar ainda a crescer, e com as suas ideias radicais que derivavam da falta de experiência prática. Ela dizia que ele ainda não sabia nada sobre a <
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emocional e conseguia vê-la com completa objectividade. Ele não era dominado pela mãe. O autocarro parou com um solavanco súbito e arrancou­ -o à sua meditação. Uma mulher vinda do fundo correu para a frente com pequenos passos e por pouco não caiu por cima do j ornal dele ao endireitar-se. A mulher desceu, e subiu um preto de estatura considerável. Julian manteve o jornal em baixo para observar. Dava-lhe uma certa satisfação ver a injustiça a operar no dia a dia. Confirmava-lhe a o p inião de que, salvo raras excepções, não havia ninguém que valesse a pena conhecer num raio de quinhentos quilómetros. O preto estava bem vestido e transportava uma pasta. Olhou em volta e depois sentou-se na extremidade do assento onde estava a mulher das sandálias de lona vermelhas e brancas. Desdobrou imediatamente um j ornal e escondeu-se por trás dele. O coto­ velo da mãe de Julian começou imediatamente a bater-lhe com insistência nas costelas. «Agora percebes porque é que eu não ando sozinha nestes autocarros», sussurrou ela. A mulher das sandálias de lona vermelhas e brancas tinha-se levantado ao mesmo tempo que o preto se sentava e dirigira-se mais para o fundo do autocarro e ocupado o lugar da mulher que se apeara. A mãe dele inclinou-se para a frente e lançou-lhe um olhar de aprovação. Julian levantou-se, atravessou o corredor, e sentou-se no lugar da mulher das sandálias de lona. Desta posição, olhou serenamente para a mãe, do outro lado. A cara dela tinha ficado de um vermelho irritado. Ele fitou-a, transformando os seus olhos nos de um estranho. Sentiu a tensão desaparecer de repente como se tivesse declarado guerra aberta à mãe. Teria gostado de começar a conversar com o preto e de falar com ele sobre arte ou política ou sobre qualquer outro assunto que estivesse acima da compreensão dos que os rodeavam, mas o homem permaneceu entrincheirado atrás do seu jornal. Não dava importância à mudança de lugares, ou nem sequer a tinha notado. Não havia forma de Julian trans­ mitir a sua simpatia.

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A mãe mantinha os olhos fixos na cara dele de forma reprovadora. A mulher com os dentes salientes olhava para ele avidamente como se o rapaz fosse uma espécie de mons­ tro desconhecida para ela. «Tem lume?», perguntou ao preto. Sem levantar o olhar do jornal, o homem procurou no bolso e entregou-lhe um pacote de fósforos. «Obrigado», disse Julian. Durante um momento segurou nos fósforos de forma idiota. Um sinal de NÃ O FUMAR olhava para ele em cima da porta. Só isto não teria sido sufi­ ciente para o demover; não tinha cigarros. Tinha deixado de fumar uns meses antes porque não tinha dinheiro para com­ prar cigarros. «Desculpe», murmurou e voltou a entregar os fósforos. O preto baixou o j ornal e lançou-lhe um olhar abor­ recido. Agarrou nos fósforos e voltou a levantar o jornal. A mãe continuou a olhar para ele mas não se aproveitou do seu desconforto momentâneo. Os olhos dela mantiveram a mesma expressão ferida. A cara parecia estar anormalmente vermelha, como se a sua tensão arterial tivesse subido. Julian não deixou que qualquer traço de simpatia transparecesse no seu semblante. Tendo conseguido alguma vantagem, queria desesperadamente mantê-la e aprofundá-la. Gostaria de lhe dar uma lição que lhe ficasse por uns tempos na memória, mas não parecia haver maneira de levar a coisa mais para a frente. O preto recusava-se a sair de detrás do jornal. Julian dobrou os braços e olhou impassivelmente em frente, encarando-a, mas como se não a visse, como se tivesse deixado de reconhecer a existência dela. Imaginou uma cena na qual, quando o autocarro chegasse à paragem deles, ele permaneceria no lugar e quando ela dissesse, «Não vais sair?», ele olharia para ela como se fosse uma estranha que se lhe tinha dirigido impulsivamente. A esquina onde desciam estava normalmente deserta, mas era bem iluminada e não lhe faria mal caminhar sozinha ao longo dos quatro quarteirões até ao YMCA. Ele decidiu esperar até que o momento chegasse e depois resolver se a deixaria sair sozi-

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nha. Teria de estar no YMCA às dez para a trazer de volta, mas poderia deixá-la na dúvida se iria ou não aparecer. Não havia qualquer razão para ela pensar que podia sempre depender dele. Retirou-se novamente para o compartimento de tecto alto escassamente mobilado com grandes peças de mobília antiga. A sua alma distendeu-se momentaneamente mas depois tomou consciência da mãe do outro lado do corredor e a visão contraiu-se. Estudou-a friamente. Os pés dela dentro de pequenas sabrinas oscilavam como os de uma criança e não chegavam completamente ao chão. Ela ensaiava nele um olhar de reprovação exagerada. Ele sentiu-se completamente desligado. Naquele momento, poderia tê-la esbofeteado com prazer, como teria feito a uma criança particularmente detes­ tável que estivesse a seu cargo. Começou a imaginar diversas formas inverosímeis através das quais pudesse dar-lhe uma lição. Poderia tomar-se amigo de um distinto professor universitário ou de um advogado preto e levá-lo para casa para passar o serão. Seria perfeita­ mente legítimo, mas a tensão arterial dela subiria até aos 300. Não podia pressioná-la de tal forma que ela viesse a ter um ataque e, para além disso, ele nunca tinha conseguido esta­ belecer amizade com negros. Tentara travar conhecimento no autocarro com alguns dos de melhor aspecto, aqueles que pareciam ser professores universitários ou sacerdotes ou advogados. Uma manhã tinha-se sentado ao lado de um homem de pele castanho escura com aspecto distinto que res­ pondera às perguntas dele com uma solenidade sonora mas que era afinal um cangalheiro. Num outro dia, tinha-se sen­ tado ao lado de um preto que fumava charuto e tinha um anel de diamantes no dedo ; mas, depois de algumas gracejos fo rmais, o homem tocou a campainha e levantou-se, enfiando dois bilhetes de lotaria na mão de Julian ao passar por cima dele para sair. Imaginava a mãe desesperadamente doente e ele a conse­ guir-lhe apenas um médico preto. B rincou com a ideia

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durante alguns minutos e depois deixou que fosse substituída pela imagem momentânea de si próprio a participar como sim­ patizante numa ocupação. Isto era possível, mas ele não se demorou na imagem. Em vez disso, abordou o derradeiro hor­ ror. Levava para casa uma linda mulher de aparência negróide. Prepare-se, dizia. Quanto a isto, nada poderá fazer para impe­ dir. Não há nada que possa fazer acerca disto. Esta é a mulher que escolhi. É inteligente, digna, mesmo bondosa, e sofreu e não achou que isso fosse divertido. Agora atormente-nos, vá atormente-nos. Expulse-a daqui, mas lembre-se, está a expul­ sar-me também a mim. Os olhos tinham-se-lhe estreitado ; e, através da indignação que tinha gerado, viu a mãe do outro lado do corredor, de cara arroxeada, reduzida às proporções de pigmeu da sua natureza moral, sentada como uma múmia por baixo do ridículo estandarte que era o seu chapéu. Foi arrancado de novo à sua fantasia quando o autocarro parou. A porta abriu-se com um sibilar de sucção e, saída da escuridão, entrou com um rapazinho uma mulher de cor cor­ pulenta, de aspecto mal-humorado, vestida de forma garrida. A criança, que devia ter uns quatro anos, trazia um fato curto axadrezado e um chapéu tirolês com uma pena azul. Julian desejou que ele se sentasse ao seu lado e que a mulher se comprimisse ao lado da mãe. Não podia imaginar melhor combinação. Enquanto esperava pelas fichas, a mulher estudava os lugares vazios - com a ideia, esperava ele, de se sentar onde era menos desej ada. Havia qualquer coisa de familiar nela, mas Julian não conseguia perceber o quê. A mulher era gi­ gantesca. O seu semblante estava determinado, não apenas a responder ao antagonismo mas a procurá-lo. A inclinação do seu enorme lábio inferior era como um sinal de aviso : NÃ O SE METAM COMIGO. A sua figura protuberante estava encai­ xada num vestido de crepe verde e os pés transbordavam dos sapatos vermelhos. Tinha um chapéu horrível. Uma aba de veludo púrpura estava virada para baixo de um dos lados e virada para cima do outro ; o resto era verde e parecia uma

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almofada com o enchimento de fora. Tinha uma bolsa ver­ melha gigantesca que tinha saliências por todo o lado como se estivesse cheia de pedras. Para desapontamento de Julian, o rapazinho subiu para o lugar vazio ao lado da mãe. A mãe englobava todas as crian­ ças, pretas ou brancas, na categoria comum de «queridos», e achava que os pretinhos eram, de uma forma geral, mais que­ ridos que as criancinhas brancas. Sorriu ao menino quando ele subiu para o assento. Entretanto, a mulher caiu sobre o lugar vazio ao lado de Julian. Para seu aborrecimento, encaixou-se nele. Viu a ex­ pressão da mãe mudar quando a mulher se instalou ao seu lado, e percebeu com satisfação que isto era mais censurável para ela do que para ele. A cara dela parecia quase cinzenta e havia uma expressão de reconhecimento sombrio nos seus olhos, como se de repente se tivesse sentido agoniada com a perspectiva de um confronto terrivel. Julian apercebeu-se que era porque ela e a mulher tinham, num determinado sentido, trocado de filhos. Embora a mãe não tivesse consciência do significado simbólico disto, senti-lo-ia. O deleite espelhava­ -se abertamente na cara dele. A mulher a seu lado murmurou qualquer coisa incom­ preensível para si própria. Ele tinha consciência de que ela estava como que a eriçar-se ao seu lado, rosnando silencio­ samente como um gato zangado. Não conseguia ver nada a não ser a bolsa vermelha erguida sobre as protuberantes coxas verdes. Visualizou a mulher no momento em que ela tinha estado à espera das fichas - a figura imponente, erguendo-se a partir dos sapatos vermelhos, passando pelas ancas sólidas, o peito gigantesco, a face arrogante, até ao chapéu verde e púrpura. Os olhos dilataram-se-lhe. A imagem dos dois chapéus, idênticos, abateu-se sobre ele com o brilho de um nascer de sol radioso. A sua cara ficou subitamente iluminada pelo gozo. Não podia acreditar que o Destino tivesse lançado sobre a mãe uma tal lição. Deu uma

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gargalhada sonora d e forma a que ela olhasse para ele e visse o que ele via. Ela virou lentamente os olhos na sua direcção. O azul deles parecia ter-se transformado num roxo pisado. Durante um momento, Julian teve a sensação desconfortável de que ela estava inocente; mas isso durou apenas um segundo antes da razão o salvar. A justiça dava-lhe o direito de rir. O sorriso dele petrificou-se até lhe dizer tão claramente como se o dissesse em voz alta: o seu castigo tem a medida exacta da sua mesquinhez. Isto devia dar-lhe uma lição duradoura. Os olhos dela deslocaram-se para a mulher. Parecia não conseguir suportar olhar para ele e pensar que a mulher era preferível. Julian tomou de novo consciência da presença eriçada a seu lado. A mulher fazia ruídos surdos, como um vulcão prestes a entrar em erupção. A boca da mãe começou a tremer ligeiramente num dos cantos. Desanimado, ele viu na cara dela sinais incipientes de recuperação, e apercebeu­ -se de que tudo aquilo ia acabar por lhe parecer apenas cómico, e não lhe serviria minimamente de lição. Ela man­ teve os olhos na mulher, e um sorriso divertido espalhou-se­ lhe pela cara, como se a outra fosse um macaco que lhe tivesse roubado o chapéu. O pretinho olhava para ela com olhos grandes e fascinados. Estava há já algum tempo a ten­ tar chamar-lhe a atenção. «Carver!», disse a mulher de repente. «Vem cá!» Quando viu que as atenções recaíam finalmente sobre ele, Carver encolheu os pés e voltou-se para a mãe de Julian e riu-se. «Carver!», repetiu a mulher. «Estás a ouvir-me? Vem cá ! » Carver deslizou d o assento mas permaneceu d e cócoras com as costas encostadas à sua base, com a cabeça virada maliciosamente para a mãe de Julian, que lhe sorria. A mulher esticou uma mão através do corredor e puxou-o para si. Ele endireitou-se e recostou-se nos joelhos dela, sorrindo para a mãe de Julian. «Não é tão querido?», disse a mãe de Julian à mulher com os dentes salientes. «Suponho que é», disse a mulher sem convicção.

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A preta endireitou-o com um puxão, mas ele libertou-se da mão dela e disparou pelo corredor e trepou, rindo a ban­ deiras despregadas, para o assento ao lado do seu amor. «Acho que ele gosta de mim», disse a mãe de Julian, e sor­ riu para a mulher. Era o sorriso que usava quando queria ser particularmente simpática para alguém inferior. Julian viu tudo perdido. A lição tinha deslizado por cima dela como chuva num telhado. A mulher levantou-se e arrancou o rapazinho do assento como se estivesse a protegê-lo de algum contágio. Julian conseguia sentir a raiva dela por não possuir nenhuma arma semelhante ao sorriso da mãe dele. Deu uma palmada com força na perna da criança. Ele gritou uma vez e depois enfiou a cabeça no estômago dela e pontapeou-a nas canelas. «Porta-te bem», disse a preta grande com veemência. O autocarro parou e o preto que tinha estado a ler o jor­ nal saiu. A mulher afastou-se para o lado e sentou o rapazi­ nho com um baque entre si e Julian. Agarrou-o firmemente pelo joelho. Pouco depois, ele colocou as mãos à frente da cara e espreitou a mãe de Julian através dos dedos. «Eu vej o-teeeeeeeeeeeee !», disse ela e colocou a mão à frente da cara e espreitou. A mulher deu-lhe uma palmada para ele baixar a mão. «Pára de fazer disparates», disse, «antes que eu te bata até Jesus vivo te abandonar!» Julian estava agradecido por a próxima paragem ser a deles. Esticou-se e puxou a corda da campainha. A mulher levantou-se e puxou-a ao mesmo tempo. Ó meu Deus, pensou ele. Ele tinha a terrivel intuição de que, quando se apeassem juntos, a mãe abriria a bolsa e daria uma moeda ao rapazinho. O gesto ser-lhe-ia tão natural como respirar. O autocarro parou e a mulher levantou-se e apressou-se a dirigir-se para a frente, arrastando a criança, que queria permanecer no auto­ carro, atrás dela. Julian tentou libertar a mãe da bolsa. «Não», murmurou, «quero dar uma moeda ao rapazinho.» «Não !», sibilou Julian. «Não !»

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Ela sorriu para a criança e abriu a mala. A porta do auto­ carro abriu-se e a mulher pegou-lhe pelo braço e desceu, com ele suspenso na anca. Uma vez na rua pousou-o e abanou-o. A mãe de Julian teve que fechar a bolsa enquanto estava a descer o degrau do autocarro ; mas, assim que os seus pés tocaram no chão, voltou a abri-la e começou a procurar qual­ quer coisa lá dentro. «Não consigo encontrar senão um cên­ timo», sussurrou, «mas parece novo.» «Não faça isso !», disse Julian ferozmente entre dentes. Havia um candeeiro na esquina e ela apressou-se a dirigir-se para lá para ver melhor o interior da bolsa. A mulher movia­ -se rapidamente pela rua abaixo com a criança pela mão, ainda a arrastar-se atrás dela. « Ó , rapazinho !», chamou a mãe de Julian e deu alguns passos rápidos e alcançou-os logo a seguir ao candeeiro. «Toma, um cêntimo novinho em folha para ti», e segurou na moeda, que brilhava como bronze na luz fraca. A mulher colossal voltou-se e durante um momento ficou ali, com os ombros levantados e a cara congelada de raiva frustrada, olhando para a mãe de Julian. Então, de repente, pareceu explodir como uma máquina que tivesse recebido uma onça de pressão a mais. Julian viu o punho preto afastar-se bran­ dindo a bolsa vermelha. Fechou os olhos e encolheu-se ao ouvir a mulher gritar: «Ele não aceita cêntimos de ninguém !» Quando abriu os olhos, a mulher desaparecia pela rua abaixo com o rapazinho a olhar de olhos arregalados por cima do ombro dela. A mãe de Julian estava sentada no passeio. «Eu avisei-a para não fazer isso», disse Julian zangado. «Avisei-a para não fazer isso !» Ficou debruçado sobre ela durante um minuto, rangendo os dentes. As pernas dela estavam estendidas à sua frente e tinha o chapéu no colo. Ele agachou-se e encarou-a nos olhos. O seu semblante estava completamente sem expressão. «Teve exactamente o que merecia», disse ele. «Agora levante-se.» Apanhou a bolsa e colocou lá dentro tudo o que tinha caído. Apanhou o chapéu do colo dela. O cêntimo saltou-lhe

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à vista no passeio, apanhou-o e deixou-o cair dentro da bolsa diante dos olhos dela. Depois levantou-se, inclinou-se e estendeu as mãos para a puxar para cima. Ela continuou sem se mexer. Ele suspirou. Acima deles, de ambos os lados, erguiam-se edifícios negros de apartamentos, marcados por rectângulos irregulares de luz. Na extremidade do bloco um homem saiu de uma porta e caminhou na direcção oposta. «Muito bem», disse ele, «suponha que alguém passa e quer saber porque está sentada no passeio?» Ela agarrou na mão e, respirando com dificuldade, puxou­ -a com força e depois ficou de pé durante um momento, osci­ lando ligeiramente como se os pontos de luz na escuridão girassem à sua volta. Os olhos, confusos e cheios de sombras, fixaram-se finalmente na cara dele. O rapaz não tentou esconder a irritação. «Espero que isto lhe sirva de lição», disse. Ela inclinou-se para a frente e os olhos percorreram-lhe a cara. Parecia tentar determinar a identidade dele. Depois, como se não encontrasse nele nada de familiar, começou a andar apressadamente na direcção errada. «Não vai para o YMCA?», perguntou Julian. «Casa», murmurou ela. «Bem, vamos a pé?» Como resposta ela continuou a andar. Julian acompanhou­ -a, com as mãos atrás das costas. Não via razão para deixar que a lição que ela tinha recebido passasse sem a corroborar explicando-lhe o seu significado. Já agora podia fazer-lhe entender o que lhe tinha acontecido. «Não pense que aquela era apenas uma negra arrogante», disse. «Era toda a raça negra que já não aceita os seus tostões condescendentes. Aquela era a sua igual de raça negra. Ela pode usar um chapéu igual ao seu, e, decididamente», acrescentou imerecidamente (porque pensava que era cómico), «ficava-lhe melhor a ela do que a si. O significado disto tudo», disse, «é que o mundo antigo desa­ pareceu. As práticas antigas são obsoletas e a sua benevolên­ cia não vale um chavo.» Recordou-se amargamente da mansão que tinha perdido. «Não é quem pensa que é», disse.

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Ela continuou a marchar em frente, sem lhe dar qualquer atenção. O seu cabelo estava solto de um dos lados. Deixou cair a bolsa e não ligou. Ele inclinou-se, apanhou-a e entre­ gou-lha mas ela não a agarrou. «Não precisa de agir como se o mundo tivesse chegado ao fim», disse, «porque não chegou. A partir de agora vai ter que viver num mundo novo e enfrentar algumas realidades para variar. Anime-se», disse, «não vai morrer por causa disso.» Ela tinha a respiração acelerada. «Vamos esperar pelo autocarro», disse ele. «Casa», proferiu ela com dificuldade. «Detesto vê-la comportar-se dessa maneira», disse ele. «Como uma criança. Eu devia poder esperar mais de si.» Decidiu parar onde estava e fazê-la parar e esperar pelo auto­ carro. «Não ando mais», informou ele, parando. «Vamos de autocarro.» Ela continuou a andar como se não o tivesse ouvido. Ele deu alguns passos e agarrou-lhe no braço. Olhou para a cara dela e ficou sem respirar. Estava a olhar para uma cara que nunca tinha visto antes. «Diz ao avô para me vir buscar», disse. Ele fitou-a, tomado de pânico. «Diz à Caroline para me vir buscar», acrescentou ela. Atordoado, ele deixou-a ir e ela guinou para a frente de novo, caminhando como se uma perna fosse mais curta que a outra. Uma onda de trevas parecia arrastá-la afastando-a dele. «Mãe !» gritou ele. «Querida, minha mãe querida, espere !» Amarfanhada, ela caiu no pavimento. Ele deu uma corrida e caiu a seu lado a chorar, «Mãezinha, Mãezinha ! » Virou-a. A cara dela estava ferozmente distorcida. Um olho, enorme e arregalado, moveu-se ligeiramente para a esquerda como se tivesse sido desancorado. O outro permaneceu fixo nele, per­ correu-lhe a cara novamente, não encontrou nada e fechou-se. <<Espere aqui, espere aqui !», gritou ele e ergueu-se num salto e começou a correr para ir buscar ajuda em direcção a um aglomerado de luzes que via na distância à sua frente. «Socorro, socorro !», gritou, mas a sua voz era fraca, nada

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mais que um fio de som. As luzes afastavam-se cada vez mais à medida que ele corria e os seus pés moviam-se como se estivessem entorpecidos e já não pudessem levá-lo a lado algum. A onda de trevas parecia arrastá-lo novamente para ela, adiando, a cada momento, a sua entrada no mundo da culpa e da dor.

GREENLEAF A janela do quarto de Mrs. May era baixa, virada a leste, e o touro, prateado ao luar, encontrava-se por baixo dela, com a cabeça levantada como se tentasse distinguir - qual deus paciente, vindo ali de propósito para cortejá-la - um movimento dentro do quarto. A janela estava escura e o som da respiração dela era demasiado ténue para passar para o exterior. As nuvens encobriram a Lua e ocultaram-no e no escuro ele começou a arrancar a sebe. Pouco depois, as nuvens afastaram-se e ele rea­ pareceu no mesmo lugar, mastigando sem cessar, com uma gri­ nalda de sebe, que tinha arrancado para si próprio, enredada nas pontas dos cornos. Quando a Lua deslizou novamente para o seu esconderijo, nada mais assinalava o local onde ele se encontrava a não ser o som constante do mastigar. Então, repentinamente, um brilho rosado encheu a janela. Várias barras de luz desliza­ ram transversalmente sobre o animal quando a veneziana se abriu. Ele recuou um passo e baixou a cabeça, como que para mostrar a grinalda atravessada nos cornos. Durante quase um minuto, não houve qualquer ruído vindo do interior. Depois, quando ele ergueu de novo a sua cabeça coroada, uma voz gutural de mulher, como quem se dirige a um cão, disse, «Sai daqui, garanhão !», e um segundo depois murmurou, «Um touro miserável de uns pretos.»

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O animal escavou o chão e Mrs. May, de pé e inclinada para a frente por detrás da persiana, fechou-a rapidamente com receio que a luz o fizesse arremeter contra o arbusto. Aguardou durante um segundo, ainda inclinada para a frente, a camisa de dormir pendendo solta dos seus ombros estreitos. Os rolos verdes de borracha apareciam muito direitos por cima da sua testa, e a cara por baixo deles era lisa como cimento, barrada profusamente com uma pasta feita de cla­ ras que lhe eliminava as rugas enquanto ela dormia. Durante o sono, tivera a percepção de um mastigar rítmico e constante, como se alguma coisa estivesse a devorar uma parede da casa. Apercebera-se de que, o que quer que fosse, tinha estado a alimentar-se desde que ela era proprietária do sítio e tinha devorado tudo desde o início da sebe até à casa e agora estava a devorar a casa, e calmamente, ao mesmo ritmo constante, continuaria pela casa fora, devorando-a a ela e aos filhos, e depois prosseguiria, devorando tudo excepto os Greenleafs, e avançaria sempre, devorando tudo até não haver mais nada a não ser os Greenleafs numa ilha pequena toda sua no centro daquilo que tinha sido a propriedade dela. Quando o mastigar lhe chegou ao cotovelo, ela deu um salto e tomou consciência que estava de pé, completamente des­ perta, no meio do quarto. Identificou o som de imediato : uma vaca estava a arrancar os arbustos por baixo da sua janela. Mr. Greenleaf deixara o portão da azinhaga aberto e ela não duvídava de que a manada inteira se encontrava agora no seu relvado. Acendeu a luz fraca do candeeiro rosa da mesi­ nha de cabeceira e depois dirigiu-se à j anela e abriu a per­ siana. O touro, esquelético e de pernas compridas, encon­ trava-se a cerca de cento e vínte metros dela, mastigando calmamente como um pretendente boçal do campo. Durante quinze anos, pensou ela enquanto o fitava com agressivídade, de olhos semicerrados, tinha suportado os por­ cos de gente néscia a desenterrarem-lhe a aveia, as mulas deles a espoj arem-se no seu relvado, os seus touros esquelé­ ticos a cobrirem-lhe as vacas. Se este não fosse travado ime-

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diatamente, transporia a sebe e arruinar-lhe-ia a manada antes da manhã - e Mr. Greenleaf dormia profundamente oitocentos metros mais abaixo, na casa do caseiro. Não havia forma de contactá-lo a não ser que ela se vestisse, entrasse no carro, guiasse estrada abaixo e o acordasse. Ele viria, mas a sua expressão, todo o seu ar, cada pausa sua diriam : «Parece­ -me que um ou ambos dos seus rapazes não fariam a mãe guiar até cá a meio da noite. Se fossem os meus rapazes, eles próprios teriam apanhado aquele touro.» O touro baixou e abanou a cabeça e a grinalda escorregou para a base dos cornos onde se assemelhava a uma coroa de espinhos ameaçadora. Ela tinha fechado a persiana nessa altura ; alguns segundos depois ouviu-o afastar-se pesada­ mente. Mr. Greenleaf diria : «Üs meus filhos nunca teriam permi­ tido que a mãe deles fosse chamar um empregado a meio da noite. Eles próprios o teriam feito.» Pesando o assunto, decidiu não incomodar Mr. Greenleaf. Voltou para a cama pensando que se os rapazes Greenleaf tinham subido na vida tal se devia ao facto de ela ter dado emprego ao pai quando mais ninguém o aceitava. Ela tinha aturado Mr. Greenleaf durante quinze anos, mas mais nin­ guém o aturaria sequer cinco minutos. Só a forma como ele se aproximava de um obj ecto era suficiente para mostrar a qualquer pessoa com olhos de ver o tipo de trabalhador era. Caminhava com os ombros levantados sub-repticiamente, e nunca parecia mover-se em linha recta. Seguia sempre o perí­ metro de um círculo invisível, e quem quisesse olhá-lo cara a cara, tinha que se deslocar e postar-se à sua frente. Ela não o despedia porque sempre duvidara de que ele conseguisse uma posição melhor. Era demasiado preguiçoso para ir à procura de outro emprego ; não tinha iniciativa para roubar - e vá, depois de ela o ter mandado fazer uma coisa três ou quatro vezes, ele acabava por fazê-la ; mas nunca a informava de que uma vaca estava doente até ser demasiado tarde para chamar o veterinário ; e, se o celeiro se incendiasse, ele chamaria a

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mulher para ver as chamas antes de começar a apagá-las. E da mulher, ela nem gostava de lembrar-se. Comparado com a mulher, Mr. Greenleaf era um aristocrata. «Se fossem os meus rapazes», diria, «eles teriam cortado o braço direito antes de deixarem que a mãe fosse ... » «Se os seus rapazes tivessem algum orgulho, Mr. Greenleaf», gostaria ela de dizer-lhe um dia, «havia muitas coisas que eles não deixariam a mãe fazer.»

Na manhã seguinte, logo que Mr. Greenleaf apareceu à porta das traseiras, ela disse-lhe que havia um touro à solta na propriedade e que ela o queria dentro da cerca de imediato. «lá cá anda há três dias», disse ele, dirigindo-se ao seu pé direito, que estava estendido, ligeiramente de lado, como se tentasse olhar para a sola. Pusera-se de pé ao fundo dos três degraus das traseiras enquanto ela se debruçava da janela da cozinha, uma mulherzinha de olhos míopes pálidos, e um cabelo grisalho que se erguia no alto da cabeça como a poupa de um pássaro importunado. «Três dias !», disse ela no guincho contido que se lhe tinha tomado habitual. Mr. Greenleaf, olhando para a distância por cima da pas­ tagem mais próxima, retirou um maço de cigarros do bolso da camisa e deixou cair um na mão. Voltou a guardar o maço e ficou durante um bocado a olhar para o cigarro. «Eu meti­ -o na cerca dos touros mas ele soltou-se de lá», disse ele daí a pouco. «Não o vi mais depois disso.» Inclinou-se sobre o cigarro, acendeu-o e depois virou a cabeça durante um momento na direcção dela. A parte supe­ rior da cara dele descia gradualmente para a inferior que era comprida e estreita, com a forma de um cálice grosseiro. Tinha olhos encovados cor de raposa sombreados por um chapéu de feltro cinzento que usava inclinado para a frente seguindo a linha do nariz. A sua compleição era insignifi­ cante.

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«Mr. Greenleaf», disse ela, «prenda esse touro hoje d e manhã antes de fazer sej a o que for. Sabe muito bem que assim ele vai arruinar o plano da cobrição. Prenda-o e mantenha-o preso e da próxima vez que houver um touro à solta por cá, avise-me logo. Está a perceber?» «Onde é que quer que o ponha?», perguntou Mr. Greenleaf. «Não me interessa onde o põe», disse ela. «Você deveria ter algum bom senso, supostamente. Ponha-o num sítio de onde ele não consiga sair. De quem é o touro?» Durante um momento Mr. Greenleaf pareceu hesitar entre o silêncio e a palavra. Estudou o ar à sua esquerda. «Deve pertencer a alguém», disse após algum tempo. «Ah, pois deve !», disse ela e fechou a porta com um ruído preciso. Entrou na sala de jantar, onde os dois rapazes estavam a tomar o pequeno-almoço, e sentou-se na beira da cadeira à cabe­ ceira da mesa. Nunca tomava o pequeno-almoço, mas sentava­ -se com eles para se assegurar de que tinham tudo o que preci­ savam. «Francamente!», disse, e começou a contar-lhes do touro, imitando Mr. Greenleaf a dizer, <
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qualquer outro seguro, e insistia muito no assunto. Gritava «A mãe não gosta de me ouvir dizer isto, mas eu sou o melhor agente de seguros para pretos desta comarca !» Scofield tinha trinta e seis anos, uma cara larga agradável e sorridente mas não era casado. «Pois», dizia Mrs. May, «e se tu vendesses seguros decentes, alguma rapariga simpática estaria disposta a casar contigo. Qual é a rapariga simpática que quer casar com um homem que vende seguros aos pre­ tos? Um dia quando acordares será tarde demais.» Nestas alturas Scofield assobiava e dizia, «Mas mãezinha, não vou casar-me antes que você morra e esteja enterrada, e nessa altura hei-de casar-me com uma camponesa gorda e sim­ pática que possa tomar conta deste sítio !» E uma vez até acres­ centou, « - uma senhora simpática como a Mrs. Greenleaf.» Quando ouviu o filho dizer isto, Mrs. May levantou-se da ca­ deira, com as costas tão direitas como o cabo de um ancinho, e foi para o quarto. Sentou-se na beira da cama durante algum tempo, com a cara abatida de morte. Por fim, murmu­ rou, «Eu mato-me a trabalhar, eu labuto e suo para conservar este sítio para eles, e assim que eu morrer, eles hão-de casar com mulheres ordinárias e vão trazê-las para cá e destruir tudo. Hão-de casar com mulheres ordinárias e destruir tudo o que eu construí !», e nesse preciso instante resolveu modificar o testamento. No dia seguinte foi ao advogado e tratou de tor­ nar a propriedade uma herança inalienável para que, se eles casassem, não pudessem deixá-la às esposas. A ideia de que um deles pudesse casar com uma mulher semelhante, ainda que remotamente, a Mrs. Greenleaf, era suficiente para deixá-la doente. Tinha aturado Mrs. Greenleaf durante quinze anos, mas a única forma de suportar a mulher dele tinha sido mantendo-se completamente longe dela. Mrs. Greenleaf era grande e desmazelada. O quintal à volta da sua casa parecia uma estrumeira e as suas cinco filhas andavam sempre sujas ; mesmo a mais nova cheirava rapé. Em vez de amanhar uma horta ou lavar a roupa, a sua preocupação era aquilo que ela chamava «a cura através da oração».

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Recortava meticulosamente todas as histórias mórbidas do j ornal - os relatos de mulheres que tinham sido violadas e de criminosos que tinham fugido e de crianças que se tinham queimado e de descarrilamentos de comboios e de quedas de aviões e de divórcios de estrelas de cinema. Levava estas notícias para a mata, cavava um buraco e enterrava-as, e a seguir deixava-se cair no chão sobre elas, murmurava e gemia durante cerca de uma hora movendo os braços enor­ mes para a frente e para trás, por baixo de si e para fora novamente ; por fim, deixando-se ficar estendida, assim sus­ peitava Mrs. May, adormecia sobre a terra. Mrs. May só descobrira este hábito alguns meses depois dos Greenleafs começarem a trabalhar para ela. Saiu uma manhã para inspeccionar um campo que ela queria semeado com centeio mas que tinha aparecido semeado de trevo por­ que Mr. Greenleaf tinha utilizado as sementes erradas na máquina de semear. Regressava a casa por uma vereda arbo­ rizada que separava duas pastagens, murmurando para si mesma e batendo no chão metodicamente com uma vara comprida que transportava para o caso de encontrar uma cobra. «Mr. Greenleaf», ia dizendo em voz baixa, «eu não posso dar-me ao luxo de pagar os seus erros. Sou uma mulher pobre e este sítio é tudo o que tenho. Tenho dois filhos para educar. Não posso ... » Vinda não se sabia de onde, uma voz gutural e agonizada gemia, «Jesus ! Jesus !» Um segundo depois surgia novamente, com uma urgência terrível. «Jesus ! Jesus !» Mrs. May imobilizou-se, com uma das mãos erguida até à garganta. O som era tão estridente que se sentiu como se uma força libertada violentamente tivesse brotado do chão e arre­ metesse contra ela. O seu segundo pensamento foi mais razoável : alguém se ferira na sua propriedade e agora, claro, iria processá-la, tirando-lhe tudo o que possuía. Nem sequer tinha seguro. Apressou-se a seguir caminho, e, ao virar numa curva, viu Mrs. Greenleaf esparramada sobre as mãos e os joelhos ao lado da estrada, com a cabeça para baixo.

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«Mrs. Greenleaf!», gritou, «O que aconteceu?» Mrs. Greenleaf ergueu a cabeça. O seu semblante era uma manta de retalhos feita de suj idade e de lágrimas e os seus olhos pequenos, da cor de duas ervilhas do campo, estavam aureolados de vermelho e inchados, mas a sua expressão era tão calma como a de um buldogue. Oscilava para trás e para a frente sobre as mãos e os joelhos e gemia : «Jesus ! Jesus !» Mrs. May estremeceu. Achava que a palavra, Jesus, devia ser mantida no interior da igreja como outras palavras dentro do quarto. Era uma boa cristã e tinha muito respeito pela reli­ gião, embora não acreditasse, claro, que tudo aquilo fosse ver­ dade. «0 que é que se passa consigo?», perguntou com rispidez. «Você interrompeu a minha cura», respondeu Mrs. Greenleaf, fazendo-lhe um gesto para ela se afastar. «Não posso falar consigo até acabar.» Mrs. May ficou parada, inclinada para a frente, com a boca aberta e a vara erguida do chão como se não estivesse certa do que queria atingir com ela. «Oh, Jesus, apunhala-me o coração !», gritou Mrs. Greenleaf. cdesus, apunhala-me o coração !», e caiu de novo desamparada na terra, um enorme montículo humano, as pernas e os braços estendidos como se estivesse a tentar cingir o mundo. Mrs. May sentiu-se tão furiosa e desamparada como se tivesse sido insultada por uma criança. «Jesus», disse, recuando, «teria vergonha de si. Ele dir-lhe-ia para se levan­ tar daí imediatamente e para ir lavar a roupa suj a dos seus filhos !» Voltou-se e afastou-se o mais rapidamente possível. Sempre que pensava como os rapazes Greenleaf tinham progredido no mundo, só tinha que se lembrar de Mrs. Greenleaf obscenamente esparramada no chão, e dizer para si própria: «Bem, não interessa a distância que irão percorrer, vieram daquilo.» Gostaria de ter podido estipular no seu testamento que, quando morresse, Wesley e Scofield não deveriam continuar a dar emprego a Mr. Greenleaf. Ela era capaz de controlar Mr. Greenleaf; eles não. Mr. Greenleaf tinha-lhe chamado uma

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vez a atenção para o facto d e os filhos dela não saberem dis­ tinguir feno de silagem. Ela tinha-lhe chamado a atenção para o facto de eles terem outros talentos, para o facto de Scofield ser um homem de negócios de sucesso e de Wesley ser um intelectual de sucesso. Mr. Greenleaf não fizera comentários, mas nunca perdia uma oportunidade de lhe mostrar através da sua expressão, ou de um gesto simples, que os considerava aos dois infinitamente desprezíveis. Por mais infra-humanos que os Greenleafs fossem, ele nunca hesitava em dar-lhe a entender que em qualquer circunstân­ cia semelhante em que os filhos dele pudessem estar envol­ vidos, eles - O. T. e E. T. Greenleaf - agiriam melhor. Os rapazes Greenleaf eram dois ou três anos mais novos que os dos May. Eram gémeos e nunca se sabia quando se estava a falar com o O. T. ou com o E. T., e nunca tinham a gentileza de o elucidar. Tinham pernas longas, pareciam não ter carne sobre os ossos e tinham a pele vermelha, os olhos eram iluminados e inteligentes, da cor das raposas como os do seu pai. O orgulho de Mr. Greenleaf neles começava pelo facto de serem gémeos. Ele agia, dizia Mrs. May, como se aquilo fosse algo esperto que eles mesmos tinham planeado. Eram enérgicos e trabalhadores e ela admitia perante qual­ quer pessoa que eles tinham evoluído muito - e que a Segunda Guerra Mundial era responsável pela sua ascensão. Ambos se tinham alistado. Camuflados com a farda, não se distinguiam dos filhos das outras pessoas. Percebia-se, claro, quando abriam a boca ; mas faziam-no raramente. A coisa mais inteligente da vida deles era terem sido enviados para lá do oceano e aí terem casado com mulheres francesas. Nem sequer se tinham casado com francesas ordinárias. Casaram com boas raparigas, que, naturalmente, não tinham consciên­ cia de que eles assassinavam a língua inglesa ou de que os Greenleafs eram quem eram. A condição cardíaca de Wesley não lhe permitira servir o seu país, mas Scofield ainda estivera no exército durante dois anos. Não se tinha interessado pela carreira e, no final do seu

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serviço militar, era apenas um soldado de primeira classe. Os rapazes Greenleaf eram ambos uma espécie de sargentos, e Mr. Greenleaf, nessa altura, nunca perdia uma oportunidade de referir o seu posto. Ambos tinham conseguido ser feridos, pelo que agora ambos recebiam pensões. Para além disso, assim que tinham passado ao estado civil, tinham-se apro­ veitado de todos os benefícios e frequentado o curso de agri­ cultura na universidade - ficando entretanto os contribuintes a sustentar as suas esposas francesas. Ambos viviam agora a cerca de três quilómetros, seguindo pela auto-estrada, num pedaço de terreno que o governo os tinha ajudado a adquirir, num bangaló duplex de tijolo que o governo tinha ajudado a construir e a pagar. Se a guerra tinha criado alguém, dizia Mrs. May, tinham sido os rapazes Greenleaf. Cada um deles tivera três criancinhas, e todas elas falavam inglês e francês - e, por causa do legado das mães, seriam enviadas para a escola do convento e educadas com maneiras. «E dentro de vinte anos», perguntava Mrs. May a Scofield e a Wesley, «sabem o que aquelas pessoas serão?» «Alta Sociedade», dizia ela sombriamente. Tinha passado quinze anos a aturar Mr. Greenleaf e, neste momento, lidar com ele já era para ela uma espécie de segunda natureza. A disposição dele em cada dia era um fac­ tor tão importante como o clima para aquilo que se conse­ guia ou não fazer na propriedade, e ela já sabia interpretar a expressão dele da mesma forma que os camponeses genuínos interpretam o nascer e o pôr-do-sol. Ela era uma mulher do campo apenas por convicção. O falecido Mr. May, um homem de negócios, tinha comprado a propriedade quando o valor da terra estava em baixa, e quando morreu era tudo o que tinha para lhe deixar. Os rapa­ zes não tinham ficado satisfeitos por terem que se mudar para uma quinta arruinada no campo, mas ela não tivera outra solução. Mandou cortar a lenha da propriedade e com os ren­ dimentos estabeleceu-se no negócio dos lacticínios depois de Mr. Greenleaf ter respondido ao seu anúncio. «Vi seu anún-

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cio e irei pois tenho dois rapazes», era tudo o que a carta dizia, mas ele chegou no dia seguinte numa carrinha mon­ tada com peças díspares, a mulher e as cinco filhas sentadas no chão da parte de trás, ele e os dois rapazes na cabina. Ao longo dos anos em que tinham vivido na sua propriedade, Mr. e Mrs. Greenleaf quase não envelheceram. Não tinham preo­ cupações, nem responsabilidades. Viviam como os lírios do campo, do sustento que ela lutava para pôr na terra. Quando ela estivesse morta e enterrada por causa do trabalho excessivo e das preocupações, os Greenleafs, saudáveis e prósperos, estariam prontos para começar a explorar Scofield e Wesley. Wesley dizia que a razão pela qual Mrs. Greenleaf não tinha envelhecido era porque libertava todas as suas emoções na cura através da oração. «Devia começar a rezar, querida», insinuou ele. Scofield apenas a irritava para além do suportável, mas Wesley causava-lhe uma verdadeira ansiedade. Era magro, nervoso e careca, e o facto de ser intelectual exercia uma pres­ são terrivel no seu temperamento. Duvidava que ele viesse a casar antes de ela morrer mas estava certa de que nessa altura a mulher errada o caçaria. As raparigas simpáticas não gos­ tavam de Scofield, mas Wesley não gostava de raparigas sim­ páticas. Não gostava de nada. Guiava trinta quilómetros todos os dias até à universidade onde leccionava e trinta qui­ lómetros de regresso todas as noites, mas dizia que detestava a viagem de trinta quilómetros e que detestava a universi­ dade de segunda categoria e que detestava os mentecaptos que lá estudavam. Detestava o país e detestava a vida que levava ; detestava viver com a mãe e com o idiota do irmão e detestava ouvir falar da maldita vacaria e do maldito empre­ gado e das malditas máquinas avariadas. Mas apesar de tudo o que dizia, nunca tomava qualquer iniciativa para partir. Falava de Paris e de Roma, mas nunca ia sequer até Atlanta. «Se fosses a esses sítios ias adoecer», dizia Mrs. May. «Quem é que em Paris se vai preocupar em te preparar uma dieta sem sal? E achas que se te casasses com uma dessas aves raras com quem sais ela te cozinharia pratos sem sal?

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Não, de certeza que não o faria !» Sempre que ela enveredava por este caminho, Wesley voltava-se com azedume na cadeira e ignorava-a. Uma ocasião, quando ela tinha insistido bas­ tante no assunto, ele tinha dito de forma áspera, «Bem, por­ que é que não faz qualquer coisa prática, mulher? Porque é que não reza por mim como Mrs. Greenleaf faria?» «Não gosto de vos ouvir a brincar com a religião, rapazes», tinha ela dito. «Se fossem à igreja, conheceriam raparigas simpáticas.» Mas era impossível dizer-lhes alguma coisa. Ao olhar para os dois agora, sentados um de cada lado da mesa, nenhum deles se importando absolutamente nada com a ideia de que um touro per­ dido podia arruinar-lhe a manada - que era a manada deles, o futuro deles - ao olhar para os dois, um CUIVado sobre um jornal e o outro balançando a cadeira para trás, sorrindo-lhe como um idiota, apetecia-lhe levantar-se de um salto e bater com o punho na mesa e gritar: «Vocês vão descobrir um destes dias, vocês vão descobrir o que é a Realidade quando for tarde de mais !» «Mãe», disse Scofield, «agora não se zangue mas eu digo­ -lhe de quem é esse touro.» Olhava para ela perversamente. Deixou a cadeira cair para a frente e levantou-se. Depois, com os ombros curvados e as mãos levantadas a cobrir a cabeça, dirigiu-se para a porta em bicos de pés. Recuou até ao vestí­ bulo e puxou a porta até quase esconder todo o corpo excepto a cara. «Quer saber, amorzinho ?», perguntou. Mrs. May, sentada, olhava para ele com frieza. « É o touro do O. T. e do E. T.», declarou. «Eu ontem cobrei o seguro do preto que trabalha para eles e ele disse-me que não sabiam desse bovino» ; mostrou-lhe uma superfície exa­ gerada de dentes e desapareceu silenciosamente. Wesley levantou os olhos e riu-se. Mrs. May virou novamente a cabeça para a frente, sem alterar a expressão. «Eu sou a única adulta nesta casa», disse. Esticou-se sobre a mesa e puxou o jornal que se encontrava ao lado do prato dele. «Vês como vai ser quando eu morrer e vocês, rapazes, tiverem que lidar com ele?», começou ela.

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«Vês porque é que ele não sabia de quem era aquele touro? Porque era deles. Vês aquilo que eu tenho que aturar? Vês que se eu não tivesse mantido o meu pé sobre o pescoço dele todos estes anos, vocês, rapazes, poderiam estar a ordenhar vacas todas as manhãs às quatro da matina?» Wesley voltou a puxar o jornal para perto do prato e mur­ murou, encarando-a bem de frente, «Eu não ordenharia uma vaca nem que fosse para salvar a sua alma do inferno.» «Eu sei que não o farias», disse ela numa voz frágil. Recostou­ -se na cadeira e começou a virar rapidamente a faca ao lado do prato. «São bons rapazes, o O.T. e o E.T.», disse. «Deviam ter sido meus filhos.» Este pensamento era tão horrivel que a imagem de Wesley ficou imediatamente desfocada por uma parede de lágri­ mas. Tudo o que ela conseguia ver era a sua forma escura, levantando-se rapidamente da mesa. «E vocês os dois», gritou ela, uvocês os dois deviam ter pertencido àquela mulher!» Ele estava a dirigir-se para a porta. «Quando eu morrer», disse ela numa voz fraca, mão sei o que vai acontecer-vos.» «Está sempre a tagarelar sobre esse quando-eu-morreni, rosnou ele ao sair apressadamente, «mas a mim parece-me uma senhora bastante saudável.» Durante algum tempo ela deixou-se ficar sentada onde estava, olhando a direito à sua frente pela janela através do compartimento para uma cena de cinzentos e verdes indis­ tintos. Distendeu os músculos da cara e do pescoço e inspi­ rou profundamente, mas a cena à sua frente acabou por mis­ turar-se numa massa cinzenta aguada. «Eles que não pensem que eu vou morrer em breve», murmurou, e logo a seguir acrescentou, numa voz ligeiramente provocatória : «Eu só hei­ -de morrer quando estiver pronta.» Limpou os olhos com o guardanapo, levantou-se e diri­ giu-se à janela e fitou a cena à sua frente. As vacas estavam dispersas por dois pastos de um verde pálido, para lá da estrada ; e, por detrás delas, cercando-as, ficava um muro negro de árvores com uma sebe aguçada que afastava o céu

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indiferente. As pastagens eram o suficiente para acalmá-la. Quando olhava para fora através de qualquer j anela da sua casa, via o reflexo do seu carácter. Os seus amigos da cidade diziam que ela era a mulher mais extraordinária que conhe­ ciam, por ter conseguido partir, praticamente sem um tostão e sem experiência, para uma quinta em ruínas e torná-la um sucesso. «Está tudo contra ti», dizia ela, «O clima está contra ti, a terra está contra ti e os empregados estão contra ti. Estão todos aliados contra ti. O remédio é ter mão de ferro !» «Olhem para a mão de ferro da Mãe !», costumava gritar Scofield e agarrar-lhe o braço e levantá-lo de tal forma que a sua mãozinha delicada cheia de veias azuis pendesse do pulso como a extremidade de um lírio quebrado. As visitas riam sempre. O sol, movendo-se sobre as vacas pretas e brancas que pasta­ vam, estava apenas um pouco mais brilhante do que o resto do céu. Baixando os olhos, viu uma forma mais escura que podia ser a sombra dele projectada num ângulo, movendo-se no meio delas. Deixou sair um grito agudo, voltou-se e marchou porta fora. Mr. Greenleaf estava no silo da vala, enchendo um carri­ nho de mão. Ela ficou na borda e olhou-o de cima. «Eu disse­ -lhe para prender aquele touro. Agora está junto da manada das vacas leiteiras.» «Ninguém consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo», comentou Mr. Greenleaf. «Eu disse-lhe para fazer isso primeiro.» Ele empurrou o carrinho para fora da extremidade aberta da vala em direcção ao celeiro e ela seguiu-o de perto. «E não pense, Mr. Greenleaf», disse ela, «que eu não sei exactamente de quem é esse touro ou porque é que não tem tido pressa nenhuma para me avisar de que ele estava aqui. Já agora posso também alimentar o touro do O. T. e do E. T., uma vez que vou tê-lo aqui a arruinar-me a manada.» Mr. Greenleaf parou o carrinho e olhou para trás. «Ü touro é deles?», perguntou num tom incrédulo. Ela não proferiu uma palavra. Apenas desviou os olhos com a boca cerrada.

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«Eles disseram-me que o touro deles tinha fugido mas eu nunca pensei que fosse este», disse ele. «Quero aquele touro preso agora», disse ela, «e vou meter­ -me no carro e ir até casa do O. T. e do E. T. e dizer-lhes que têm que vir buscá-lo hoje. Eu devia cobrar pelo tempo que ele tem estado aqui - dessa forma não aconteceria novamente.» «Eles não pagaram senão setenta e cinco dólares por ele», informou Mr. Greenleaf. «Eu não o teria querido nem dado», disse ela. «Eles iam simplesmente abatê-lo para aproveitar a carne», continuou Mr. Greenleaf, «mas ele soltou-se e enfiou a cabeça na carrinha. Não gosta de carros e de carrinhas. Eles demo­ raram algum tempo a tirar-lhe o como do guarda-lama e quando finalmente ficou livre, fugiu e eles estavam dema­ siado cansados para irem atrás dele - mas eu nunca pensei que fosse este.» «Não lhe compensava pensar, Mr. Greenleaf», disse ela. «Mas agora já sabe. Pegue num cavalo e apanhe-o.» Meia hora depois, da janela da frente, viu o touro, cor de esquilo, com os quadris salientes e longos cornos claros, cami­ nhando lentamente pela estrada de terra que se estendia em frente da casa. Mr. Greenleaf seguia-o a cavalo. «Aquele é um touro Greenleaf sem tirar nem pôni, murmurou ela. Saiu para o alpen­ dre e gritou, «Ponha-o num sítio de onde ele não consiga fugir.» «Ele gosta de se soltan>, disse Mr. Greenleaf, olhando com apro­ vação para a garupa do touro. <<Este cavalheiro é um desportista.» «Se aqueles rapazes não vierem buscá-lo, vai ser um des­ portista morto», disse ela. «Estou só a avisá-lo.» Ele ouviu-a mas não respondeu. «Esse é o touro com pior aspecto que eu já vi», gritou ela, mas ele já estava demasiado afastado para ouvir.

A manhã ia a meio quando ela virou para a entrada do O. T. e do E. T. A casa, um edifício baixo e novo de tij olo ver­ melho que parecia um armazém com janelas, ficava no cimo

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de uma colina sem árvores. O sol batia directamente no telhado branco. Era o tipo de casa que toda a gente construía agora e nada a assinalava como pertencendo aos Greenleafs excepto três cães, parte cão de caça, parte spitz, que saíram a correr de detrás dela assim que parou o carro. Recordou-se de que se podia sempre identificar o tipo da pessoa pelo tipo do seu cão, e depois buzinou. Enquanto esperava sentada que alguém viesse abrir, continuou a estudar a casa. Todas as janelas esta­ vam fechadas e ela interrogou-se se o Governo poderia ter ins­ talado ar condicionado no lugar. Não se via ninguém, e buzi­ nou novamente. Pouco depois abriu-se uma porta e apareceram várias crianças que ficaram a olhar para ela, sem se mexerem para se aproximarem. Ela reconheceu logo uma característica genuína dos Greenleafs - podiam todos ficar parados à porta, a olhar para as pessoas durante horas. «Um de vocês não pode vir aqui?», chamou ela. Um minuto depois, todos começaram a andar em frente, lentamente. Envergavam macacões e estavam descalços mas não pareciam tão sujos como ela esperaria. Dois ou três deles pareciam-se inconfundivelmente com Greenleafs ; os outros nem tanto. A mais pequena era uma rapariga de cabelo preto desgrenhado. Pararam a cerca de duzentos metros do auto­ móvel e ficaram a olhar para ela. « É s muito bonita», disse Mrs. May, dirigindo-se à rapariga mais pequena. Não obteve resposta. Pareciam partilhar uma expressão desapaixonada entre si. «Onde está a vossa mamã?», perguntou. Não houve resposta a isto durante algum tempo. Depois um deles disse qualquer coisa em francês. Mrs. May não falava francês. «Onde está o vosso papá?», perguntou. Após algum tempo, um dos rapazes informou, «Ele tam­ bém não está cá.» «Ahhhh», disse May como se se tivesse comprovado alguma coisa. «Onde está o homem de cor?»

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Esperou e concluiu que ninguém ia responder-lhe. «Ü gato comeu seis linguitas», disse. «Ü que achavam se viessem comigo para minha casa e deixassem que eu vos ensinasse a falar?» Riu-se e o seu riso morreu no ar silencioso. Sentia-se como se estivesse a ser julgada, arriscando a pena de morte, em frente de um júri de Greenleafs. «Vou lá abaixo ver se encontro o homem de cor», disse. «Pode ir se quiser», disse um dos rapazes. «Bom, obrigada», murmurou e afastou-se no carro. O celeiro ficava um pouco mais abaixo descendo o trilho a partir da casa. Ela ainda nunca o vira mas Mr. Greenleaf tinha-o descrito em pormenor pois tinha sido construído de acordo com as últimas orientações tecnológicas. Era um recinto organizado de modo a que as vacas fossem ordenha­ das por baixo. O leite corria em tubos das máquinas para o compartimento do leite e nunca era transportado por nenhum balde, tinha dito Mr. Greenleaf, por nenhuma mão humana. «Quando é que vai arranj ar um assim?», tinha ele perguntado. «Mr. Greenleaf», dissera ela, «eu tenho que me desemba­ raçar sozinha. Não tenho assistência do Governo para tudo. A instalação de um recinto para a ordenha iria custar-me 20.000 dólares. Da maneira como as coisas estão, eu quase não consigo sobreviver.» «Os meus filhos conseguiram», tinha murmurado Mr. Greenleaf, e em seguida - «mas nem todos os filhos são iguais.,. «Na verdade não !», tinha ela dito. «Agradeço a Deus por isso !» «Eu agradeço a Deus por tudo», tinha dito Mr. Greenleaf com uma voz arrastada. Bem pode fazê-lo, tinha ela pensado durante o silêncio intimidador que se seguiu ; você nunca fez nada por si próprio. Ela parou ao lado do celeiro e tocou a buzina mas nin­ guém apareceu. Ficou sentada longos minutos no carro observando a vária maquinaria estacionada por ali, inqui­ rindo-se sobre quais estariam pagas. Tinham uma ceifeira

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grande e uma enfardadeira rotativa. Essas também ela tinha. Decidiu, visto que não havia ninguém por ali, descer e esprei­ tar a leitaria para ver se a mantinham limpa. Abriu a porta da sala de ordenha, enfiou a cabeça e, no primeiro segundo julgou que ia perder o fôlego. As paredes imaculadamente brancas reflectiam os raios de sol que entra­ vam pelas duas fileiras de janelas que se encontravam à altura de uma cabeça dos dois lados. O gradeamento de metal fulgia ferozmente e ela teve de franzir os olhos de forma a poder sequer ver alguma coisa. Fez recuar a sua cabeça e fechou a porta encostando-se a ela, de cenho carregado. A luz lá fora não era tão brilhante mas ela tinha consciência que o sol estava a pino, em cima da sua cabeça, como uma bala de prata pronta a descer sobre o seu cérebro. Um negro transportando um balde amarelo com ração para os vitelos apareceu vindo da esquina do barracão das máqui­ nas e dirigiu-se a ela. Era um rapaz de pele amarela clara que envergava uma farda que os gémeos Greenleaf já não usavam. Parou a uma distância respeitosa e colocou o balde no chão. «Onde está Mr. O. T. e Mr. E. T. ?», perguntou ela. «Mist O. T., ele está na cidade, Mist E. T., ele está acolá no campo», disse o negro, apontando primeiro para a esquerda e depois para a direita como se estivesse a indicar a posição de dois planetas. «Consegues lembrar-te de um recado?», perguntou ela, parecendo pensar que isso era pouco provável. «Eu lembro-me se não me esquecer», disse ele com um aviso discreto de mau humor. «Bem, eu escrevo-o então», disse ela. Entrou no carro e retirou um coto de lápis do livro de bolso e começou a escre­ ver nas costas de um envelope vazio. O preto veio postar-se à janela. «Eu sou a Mrs. May», disse enquanto escrevia. «0 touro deles está na minha propriedade e eu quero-o de lá para fora hoje. Podes dizer-lhes que eu estou furiosa com isto.» «Aquele touro saiu daqui no sábado», disse o negro, «e ne­ nhum de nós o viu desde então. Não sabíamos onde ele estava.»

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«Bom, agora já sabem», disse ela, «e podes dizer ao Mr. O. T. e ao Mr. E. T. que se eles não forem buscá-lo hoje, vou dizer ao pai deles que lhe dê um tiro logo de manhãzinha. Não posso ter aquele touro a arruinar-me a manada.» Entregou­ -lhe o recado. «Se eu bem conheço o Mist O. T. e o Mist E. T.», disse ele agarrando nele, «vão dizer-lhe que faça isso mesmo e lhe dê um tiro. Já estragou uma das nossas carrinhas e ficamos con­ tentes por não o ver mais.» Ela inclinou a cabeça para trás e lançou-lhe um olhar ligeiramente embaciado. «Será que eles esperam que eu uti­ lize o meu tempo e o meu empregado para dar um tiro ao touro que lhes pertence?», perguntou ela. «Não querem o touro, e por isso limitam-se a soltá-lo e esperar que outra pessoa o mate? Ele comeu a minha aveia e arruinou a minha manada e ainda esperam que eu lhe dê um tiro?» «Acho que sim», disse ele suavemente. «Ele soltou-se ... » Ela lançou-lhe um olhar gélido e disse, «Bem, não me espanta nada. Algumas pessoas são assim mesmo», e um segundo depois perguntou: «Qual é o patrão, o Mr. O. T. ou o Mr. E. T.?» Sempre suspeitara que eles brigavam entre si em segredo. «Eles nunca discutem», disse o rapaz. «São como um homem dentro de duas peles.» «Hum. Imagino que o que acontece é que nunca os viste discutir.» «Nem mais ninguém os Quviu também», disse ele, des­ viando o olhar como se esta insolência fosse dirigida a outra pessoa. «Bom», disse ela, «não terei aturado o pai deles durante quinze anos sem que ficasse a saber algumas coisinhas sobre os Greenleafs.» O negro olhou para ela de repente com um centelha de reconhecimento. «Você é a mãe do meu homem das apóli­ ces?», perguntou. «Eu não sei quem é o teu homem das apólices», retorquiu ela friamente. «Dá-lhes esse recado e diz-lhes que se não vie-

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rem buscar esse touro hoje, obrigam o pai a dar-lhe um tiro amanhã», e afastou-se no carro. Ficou em casa durante toda a tarde à espera que os gémeos Greenleaf viessem buscar o touro. Eles não aparece­ ram. Já agora eu podia estar a trabalhar para eles, pensou com fúria. Vão pura e simplesmente puxar a corda até ao limite. À mesa do j antar, voltou a falar do assunto por causa dos filhos, porque queria que eles percebessem exactamente quais seriam as intenções do O. T. e E. T. «Eles não querem aquele touro», disse, « - passa-me a manteiga - por isso sol­ tam-no e deixam que outra pessoa se preocupe com a forma de se livrar dele por eles. O que é que acham disto? Eu sou uma vitima. Tenho sido sempre uma vítima.» «Passa a manteiga à vitima», disse Wesley. Estava com pior humor do que o habitual porque tinha tido um furo ao regressar a casa da universidade. Scofield passou-lhe a manteiga e disse : «Então mãe, não tem vergonha de dar um tiro a um touro que não fez nada a não ser deixar uma mísera descendência na sua manada? Palavra de honra», disse, «com a mãe que tenho, é um mila­ gre eu ter saído um menino tão simpático !» «Tu não és o menino dela, Irmão», disse Wesley. Ela inclinou-se para trás na cadeira, os dedos na beira da mesa. «Ü que eu sei», disse Scofield, «é que me saí muito bem por ser tão simpático como sou, vindo de onde vim.» Quando gozavam com ela usavam a linguagem dos Greenleafs 1 , mas Wesley fez o seu próprio tom transparecer por baixo, como o fio de uma faca. «Bem, deixa-me dizer-te uma coisa, Irmão», disse, inclinando-se sobre a mesa, «é que se tivesses meio cérebro já saberias.» «Ü que é, Irmão?», perguntou Scofield, com a sua face larga sorrindo para a face magra e tensa que se encontrava à sua frente. 1

Referência a uma espécie de calão intraduzivel para português e que Mr. Greenleaf usa amiúde ao longo do conto. (N. da T.)

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« É que», disse Wesley, «nem tu nem eu somos o menino dela ... », mas parou abruptamente quando ela deixou sair uma espécie de expiração ofegante e rouca, como um cavalo velho que foi chicoteado inesperadamente. Mrs. May levantou-se bruscamente e saiu a correr da sala. «Eh pá, pelo amor de Deus», rosnou Wesley, «Por que é que fizeste com que ela começasse?» «Eu não fiz nada», disse Scofield. «Tu é que fizeste.» «Ah.» «Ela já não é tão nova como era e não suporta isto.» «Ela só consegue sugerir a coisa», disse Wesley. <<Sou eu que pego sempre nela.» O semblante simpático do irmão tinha mudado de tal forma que emergiu entre eles uma semelhança de família desagradável. «Ninguém sente pena de um palerma nojento como tu», disse e esticou o braço por cima da mesa para agar­ rar na camisa do outro. Do quarto ela ouviu um estrondo de pratos a quebrarem­ -se e atravessou a cozinha a correr até à sala de jantar. A porta do vestibulo estava aberta e Scofield ia a sair. Wesley estava deitado de costas como se fosse um insecto enorme, com a extremidade da mesa derrubada a cortá-lo ao meio e cacos espalhados por cima dele. A mãe libertou-o da mesa e agar­ rou-lhe no braço para o ajudar a levantar-se, mas ele ergueu­ -se com dificuldade e afastou-a com uma carga furiosa de energia e saiu porta fora a correr atrás do irmão. A pobre senhora teria desfalecido, mas uma pancada na porta das traseiras deu-lhe ânimo e fê-la voltar-se. Para lá da cozinha e do alpendre das traseiras, via Mr. Greenleaf a espreitar avidamente através da rede. Todo o seu expediente regressou em plena força, como se tivesse apenas precisado de ser desafiada pelo próprio diabo para recuperá-lo. «Ouvi um estrondo», exclamou ele, «e pensei que o estuque pudesse ter caído em cima da sua cabeça.» Se tivesse precisado dele, alguém teria tido que ir chamá­ -lo a cavalo. Atravessou a cozinha, o alpendre e ficou por

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detrás da rede e disse: «Não, não aconteceu nada, foi só a mesa que se virou. Uma das pernas estava carcomida», e sem qualquer pausa, «os rapazes não vieram buscar o touro por isso amanhã vai ter que abatê-lo.» O céu estava cruzado por barras vermelhas e púrpura estreitas e por detrás delas o sol movia-se lentamente como se descesse uma escada. Mr. Greenleaf agachou-se no degrau, de costas viradas para ela, o topo do chapéu ao nível dos pés dela. «Amanhã vou levá-lo a casa como você quer», disse ele. «Ai não, Mr. Greenleaf», disse ela numa voz sarcástica, «vai levá-lo a casa amanhã e na próxima semana ele está de volta. Não vou nessa.» Depois num tom magoado, disse: «Estou surpreendida com o O. T. e o E. T. por me tratarem desta maneira. Pensei que tivessem mais gratidão. Aqueles , rapazes passaram dias muito felizes neste sítio, não passaram, Mr. Greenleaf?» Mr. Greenleaf não disse nada. «Acho que passaram», continuou ela. «Acho que passaram. Mas agora esqueceram-se de todos os gestos simpáticos que tive para com eles. Se bem me lembro, usaram as roupas velhas dos meus rapazes e brincaram com os brinquedos velhos dos meus rapazes e caçaram com as espingardas velhas dos meus rapazes. Nadaram na minha lagoa e caçaram os meus pássaros e pescaram no meu riacho e eu nunca me esqueci do aniver­ sário deles e o Natal parecia chegar frequentemente, se bem me recordo. E eles lembram-se de alguma dessas coisas agora?», perguntou ela. «NÃÃÃÃÃ011, afirmou. Durante alguns segundos olhou para o sol que desapare­ cia, e Mr. Greenleaf examinou as palmas das mãos. Depois, como se tivesse acabado de lhe ocorrer, ela perguntou : «Sabe a verdadeira razão pela qual eles não vieram buscar aquele touro?» «Não, não sei», disse Mr. Greenleaf numa voz mal-humorada. «Não vieram porque eu sou uma mulher», disse ela. «Pode­ -se fazer seja o que for quando se lida com uma mulher. Se fosse um homem a dirigir este sítio ... »

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Rápido como uma serpente a atacar Mr. Greenleaf disse: «Você tem dois filhos. Eles sabem que tem cá dois homens.» O Sol tinha desaparecido por detrás da fileira de árvores. Ela olhou para a face escura e astuciosa, virada para cima agora, e para os olhos alerta, brilhantes por baixo da sombra da pala do chapéu. Esperou o tempo suficiente para ele per­ ceber que ela estava magoada e depois disse: «Algumas pes­ soas aprendem a ser gratas tarde demais, Mr. Greenleaf, e algumas nunca aprendem», e voltou-se deixando-o sentado nos degraus. Durante metade da noite, no seu sono, ouviu um ruído como se um pedregulho enorme estivesse a cavar um buraco na parede exterior do seu cérebro. Ela caminhava no interior, sobre uma sucessão de colinas lindas e arredondadas, assen­ tando a vara à frente de cada passo. Após algum tempo tomou consciência de que o ruído era o sol a tentar queimar um buraco através da fileira de árvores e parou para observar, segura do conhecimento que este não conseguiria fazê-lo, porque teria de afundar-se, como fazia todos os dias, no lado de fora da sua propriedade. Quando ela parou pela primeira vez, era uma bola vermelha e inchada, mas à medida que o observava, começou a estreitar e a empalidecer até se parecer com uma bala. Depois, de repente, irrompeu através das árvo­ res e correu pela colina abaixo em direcção a ela. Mrs. May acordou com a mão sobre a boca e com o mesmo ruído no ouvido, mais baixo mas distinto. Era o touro a mastigar por baixo da janela. Mr. Greenleaf tinha-o deixado em liberdade. Levantou-se, dirigiu-se à janela no escuro e olhou para fora através da persiana ligeiramente aberta, mas o touro tinha-se afastado da sebe e no início ela não o viu. Depois avistou uma forma pesada a alguma distância, parado como se estivesse a observá-la. É a última noite em que eu vou atu­ rar isto, disse ela, e ficou a olhar até a sombra ferruginosa se afastar na escuridão. Na manhã seguinte, esperou exactamente até às onze horas. Depois meteu-se no carro e guiou até ao celeiro. Mr.

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Greenleaf estava a lavar latas de leite. Tinha colocado sete delas em pé no exterior do compartimento do leite para apa­ nharem sol. Tinha-lhe dito que tratasse disto ao longo de duas semanas. «Muito bem, Mr. Greenleaf», disse ela, «vá bus­ car a sua espingarda. Vamos matar aquele touro.» «Pensava que queria estas latas ... » «Vá buscar a sua espingarda, Mr. Greenleaf», disse ela. A voz e a cara dela estavam sem expressão. «Aquele cavalheiro soltou-se a noite passada», murmurou ele num tom de pesar e inclinou-se novamente para a lata dentro da qual tinha o braço. «Vá buscar a sua espingarda, Mr. Greenleaf», repetiu ela na mesma voz triunfante e sem expressão. «Ü touro está na pastagem com as vacas que não dão leite. Avistei-o da minha j anela do primeiro andar. Vou levá-lo de carro até ao campo e você pode empurrá-lo para a pastagem vazia e dar-lhe um tiro lá.» Ele afastou-se lentamente da lata. «Nunca ninguém me tinha pedido para matar o touro dos meus próprios filhos!», disse numa voz aguda e áspera. Retirou um trapo do bolso de trás e começou a limpar as mãos violentamente, e a seguir o nariz. Ela voltou-se como se não tivesse ouvido nada e asseve­ rou : «Espero por si no carro. Vá buscar a espingarda.» Ela ficou sentada no carro e observou-o a dirigir-se com gravidade para o compartimento dos arreios onde guardava uma espingarda. Depois de ter entrado no compartimento, ouviu-se um ruído como se ele tivesse pontapeado alguma coisa que estivesse no seu caminho. Daí a pouco voltou a aparecer com a espingarda, deu a volta ao carro por trás, abriu a porta com violência e atirou-se para o lugar vago ao lado dela. Segurou a espingarda entre os joelhos e olhou em frente. Ele preferiria dar-me um tiro a mim em vez do touro, pensou ela, e virou a cara para ele não a ver sorrir. A manhã estava seca e clara. Mrs. May conduziu através da mata durante quatrocentos metros e depois pelo descampado onde havia campos de ambos os lados da estrada estreita.

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O gozo de impor a sua vontade tinha-lhe aguçado os senti­ dos. Por todo o lado os pássaros gorjeavam com estridência, a erva era quase demasiado brilhante para alguém conseguir olhar directamente para ela, o céu estava de um azul ainda mais penetrante. «A Primavera chegou !», exclamou a senhora jovialmente. Mr. Greenleaf levantou um músculo algures perto da boca em reacção àquilo que lhe parecia ser o comen­ tário mais estúpido que alguém alguma vez tivesse feito. Quando parou na segunda cancela da pastagem, ele atirou-se porta fora e fechou-a com estrondo atrás de si. Depois abriu a cancela e ela passou com o carro. O preto fechou-a e ati­ rou-se de novo para dentro do carro, em silêncio, e ela con­ duziu em redor da pastagem até descobrir o touro, quase no centro, pastando calmamente entre as vacas. «Ü cavalheiro está à sua espera», atirou ela ao perfil furioso de Mr. Greenleaf. <<Empurre-o para a pastagem seguinte e quando o meter lá dentro, eu levo o carro para lá atrás de si e eu própria fecho a cancela.» Ele apeou-se novamente com brusquidão, e desta vez deixou deliberadamente a porta do carro aberta, por isso ela teve que esticar-se sobre o assento para conseguir fechá-la. Ficou sen­ tada a sorrir enquanto o via atravessar a pastagem em direcção à cancela do lado oposto. O preto parecia atirar-se para a frente a cada passo e a seguir recuar como se apelasse a alguma auto­ ridade para testemunhar que ele estava a ser coagido. «Bem», disse ela em voz alta, como se ele ainda estivesse no carro, «são os seus próprios filhos que estão a obrigá-lo a fazer isto, Mr. Greenleaf.» Tanto o O.T. como o E.T. estavam provavelmente a rir dele a bandeiras despregadas neste momento. Conseguia ouvir as suas vozes nasaladas e idênticas a dizer. «Obrigou o pai a matar o nosso touro em vez de nós. O pai não está a par do assunto e pensa que vai matar um óptimo touro. Vai ser um suplício para o pai dar um tiro àquele touro !» «Se aqueles rapazes se preocupassem um pouco consigo, Mr. Greenleaf», disse ela, «teriam vindo buscar aquele touro. Estou espantada com eles.»

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Ele estava a dar a volta para abrir primeiro a cancela. O touro, escuro entre as vacas malhadas, não se tinha mexido. Mantinha a cabeça baixa, sem parar de comer. Mr. Greenleaf abriu a cancela e depois começou de novo a dar a volta para se aproximar dele pela retaguarda. Quando estava a cerca de três metros atrás dele, bateu os braços contra o corpo. O touro levantou a cabeça com indolência e depois baixou-a de novo e continuou a comer. Mr. Greenleaf inclinou-se novamente, agar­ rou em qualquer coisa e atirou-lha com um impulso raivoso. Ela depreendeu que era uma pedra cortante porque o touro deu um salto e depois começou a galopar até desaparecer para lá do sopé da colina. Mr. Greenleaf seguiu-o sem se apressar. «Não pense que vai perdê-lo !», gritou ela e avançou com o carro atravessando a pastagem em diagonal. Tinha que guiar lentamente por cima das valas, e quando alcançou a cancela, Mr. Greenleaf e o touro não estavam à vista. Esta pastagem era mais pequena que a anterior, uma arena verde, envolvida quase completamente por arvoredo. Saiu do carro, fechou a cancela e ficou a olhar à procura de um sinal de Mr. Greenleaf, mas o preto tinha desaparecido por completo. Percebeu imediatamente que o plano dele era perder o touro na mata. Por fim, ela vê-lo-ia emergir algures vindo do cír­ culo de árvores e dirigir-se-lhe coxeando ; e, quando por fim estivesse junto dela, diria : «Se conseguir encontrar aquele cavalheiro naquela mata, é melhor que eu.» Ela diria: «Mr. Greenleaf, mesmo que eu tenha que entrar naquela mata consigo e lá ficar toda a tarde, nós havemos de encontrar aquele touro e dar-lhe um tiro. Você vai dar-lhe um tiro ainda que eu tenha que puxar o gatilho por si.» Quando ele percebesse que ela estava decidida haveria de regressar, e ele próprio mataria o touro rapidamente. Fez marcha-atrás e guiou até meio da pastagem onde ele não teria tanto que andar para a alcançá-la quando saísse da mata. Neste momento, imaginava-o sentado num cepo, dese­ nhando linhas no chão com um pau. Decidiu que esperaria exactamente dez minutos marcados pelo relógio. Depois

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começaria a buzinar. Saiu do carro e caminhou um pouco e a seguir sentou-se no pára-choques da frente para esperar e descansar. Sentia-se muito cansada e inclinou a cabeça para trás sobre o capot e fechou os olhos. Não percebia porque se sentia tão cansada quando a manhã ia apenas a meio. Através dos olhos semicerrados, sentia o sol em brasa por cima de si. Abriu-os ligeiramente, mas a luz branca forçou-a a fechá-los de novo. Durante algum tempo deixou-se ficar encostada ao capot, interrogando-se sonolentamente porque estaria tão cansada. Com os olhos fechados, não pensava no tempo dividido em dias e noites, mas antes em passado e futuro. Chegou à con­ clusão de que estava cansada porque tinha trabalhado sem parar durante quinze anos. Chegou à conclusão de que tinha todo o direito a estar cansada, e mesmo a descansar durante alguns minutos antes de recomeçar a trabalhar. Perante qual­ quer tribunal, poderia decerto afirmar: Trabalhei, não vadiei. Precisamente neste momento, enquanto ela recordava toda uma vida de trabalho, Mr. Greenleaf vagueava pelos bosques e Mrs. Greenleaf estava provavelmente espoj ada no chão, a dormir em cima da sua cova cheia de recortes. A mulher tinha piorado ao longo dos anos e Mrs. May acreditava que ela agora estava completamente louca. «Receio que a sua mulher tenha deixado a religião pervertê-la», dissera ela uma ocasião a Mr. Greenleaf com muito tacto. «Tudo na medida certa, sabe.» «Ela uma vez curou um homem que tinha metade da tripa consumida por lombrigas», disse Mr. Greenleaf, ao que ela lhe virou as costas, meio agoniada. Pobres almas, pensava agora, tão simples. Passou pelas brasas durante alguns segundos. Quando se endireitou e olhou para o relógio, tinham pas­ sado mais de dez minutos. Não tinha ouvido qualquer tiro. Ocorreu-lhe um novo pensamento ; e se Mr. Greenleaf tivesse provocado o touro atirando-lhe pedras, e se o animal se tivesse virado a ele, e o tivesse empurrado contra uma árvore, e esventrado? A ironia da situação aprofundou-se ; O.T. e E.T.

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arranjariam um advogado de fama duvidosa e processá-la­ -iam. Seria um final adequado para os seus quinze anos com os Greenleafs. Pensou nisto quase com prazer, como se tivesse descoberto um desfecho perfeito para uma história que estava a contar aos amigos da cidade. Depois abandonou a ideia, porque Mr. Greenleaf tinha uma espingarda consigo. Decidiu buzinar. Levantou-se e esticou-se por cima da j anela do carro e deu três buzinadelas longas e duas ou três mais curtas para o avisar de que estava a ficar impaciente. A seguir voltou a sentar-se no pára-choques. Poucos minutos depois emergiu qualquer coisa da linha do arvoredo, uma sombra negra e pesada que sacudiu a cabeça diversas vezes e depois deu um salto para a frente. Após um segundo ela viu que era o touro. Atravessava a pastagem em direcção a ela num galope lento, numa passada alegre e quase balanceada, como se estivesse arrebatado por encontrá-la novamente. Olhou por cima dele para ver se Mr. Greenleaf também saía do arvoredo, mas ele não o seguia. «Aqui está ele, Mr. Greenleafü, gritou ela e olhou para o outro lado da pas­ tagem para ver se ele vinha antes dali, mas o preto não estava à vista. Olhou de novo para o outro lado e viu que o touro, com a cabeça baixa, corria na sua direcção. Permaneceu com­ pletamente imóvel, não por estar assustada, mas antes como que possuída por uma incredulidade imóvel. Ficou a olhar para o traço negro e violento saltando na sua direcção como se não tivesse qualquer consciência da distância, e, como se não conseguisse perceber de imediato quais eram as suas intenções, o touro já tinha enterrado a cabeça no seu colo, como um amante feroz atormentado, antes de a expressão dela mudar. Um dos cornos penetrou-a até lhe trespassar o coração, e o outro curvou-se à volta do seu flanco e segurou-a num abraço inquebrável. Ela continuou a fitar em linha recta mas toda a cena à sua frente tinha mudado - a fileira de árvores era uma ferida escura num mundo que era apenas céu - e ela tinha o aspecto de alguém que tivesse subitamente recuperado a visão, mas constatado logo que a luz é insuportável.

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Mr. Greenleaf apareceu a correr com a arma erguida, e ela viu-o aproximar-se embora não estivesse a olhar na direcção dele. Viu-o aproximar-se a partir do exterior de um círculo invisível, a fileira de árvores boquiaberta por detrás dele e nada por baixo dos seus pés. A espingarda atingiu o touro quatro vezes. Ela não ouviu os disparos, mas sentiu o tremor quando o corpo gigantesco caiu, puxando-a para a frente no cimo da sua cabeça, de tal forma que ela parecia, quando Mr. Greenleaf a alcançou, estar inclinada a sussurrar uma última descoberta ao ouvido do animal.

A VISTA DOS BOSQUES Na semana anterior, Mary Fortune e o velho tinham passado todas as manhãs a observar a máquina que removia a terra e a atirava para um monte. A construção decorria na mar­ gem do novo lago, numa das parcelas que o velho tinha ven­ dido a alguém que ia construir um clube de pesca. Ele e Mary Fortune dirigiam-se ao local todas as manhãs pelas dez horas e ele estacionava o carro, um velho Cadillac cor de amora, na margem oposta às obras. O lago vermelho e ondu­ lado abeirava-se suavemente da construção a cerca de quinze metros e era contornado do outro lado por uma fileira negra de bosque que parecia, em ambos os extremos da paisagem, atravessar a água e continuar ao longo da orla dos campos. Ele sentava-se no pára-choques e Mary Fortune escarran­ chava-se na capota, por vezes durante horas, enquanto a máquina se alimentava sistematicamente de um buraco ver­ melho e quadrado no local que fora em tempos uma pasta­ gem para as vacas. Era por casualidade a única pastagem da qual Pitts tinha conseguido erradicar as ervas daninhas infes­ tantes ; e, quando o velho a tinha vendido, Pitts quase tinha tido uma apoplexia, - e no que dizia respeito a Mr. Fortune, ele bem podia tê-la sofrido.

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«Qualquer idiota que deixe uma pastagem interferir com o progresso não figura nos meus livros», dissera ele a Mary Fortune diversas vezes do seu lugar no pára-choques, mas a criança não tinha olhos senão para a máquina. Ficava sen­ tada na capota, olhando de cima para dentro da fossa ver­ melha, observando a enorme goela sem corpo empantur­ rando-se de barro e a seguir, com o ruído de um vómito fundo e moderado e uma lenta rotação mecânica, voltar-se e cuspi-lo. Os seus olhos pálidos por detrás dos óculos seguiam este movimento repetido vezes sem conta e o seu rosto - uma réplica em ponto pequeno do do velho - nunca perdia a expressão de total concentração. Ninguém gostava especialmente que Mary Fortune se parecesse com o avô à excepção do próprio velho. Ele enten­ dia que isso contribuía bastante para o encanto que ela pos­ suía. Pensava que ela era a criança mais esperta e mais bonita que ele alguma vez tinha visto e dava a entender aos outros que se acontecesse ele deixar alguma coisa a alguém, Mary Fortune seria necessariamente a destinatária. A miúda ia agora nos nove anos. Era baixa e atarracada como ele, tinha os olhos azuis muito claros, a testa larga e proeminente, o olhar fixo e penetrante e a compleição rica e corada dele; mas achava-a mais bonita por também se assemelhar a ele por dentro. Possuía, em extraordinária medida, a sua inteligência, a sua vontade firme e a sua determinação. Embora houvesse uma diferença de setenta anos entre ambos, a distância espi­ ritual entre eles era mínima. A miúda era o único membro da família por quem ele sentia algum respeito. Não tinha paciência para a mãe dela, a sua terceira ou quarta filha (nunca se conseguia lembrar qual), embora aquela presumisse que tomava conta dele. Ela considerava tendo o cuidado de não o afirmar, apenas de dá-lo a enten­ der - que por o aturar na sua velhice, ele lhe deveria deixar a propriedade. Casara-se com um idiota chamado Pitts e tivera sete filhos, todos igualmente idiotas à excepção da mais nova, Mary Fortune, que saía a ele. Pitts era do género

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de não conseguir conservar um cêntimo e Mr. Fortune tinha consentido, já lá iam dez anos, que se mudassem para a sua propriedade e se encarregassem de cultivá-la. O que Pitts lá criava pertencia a Pitts, mas a terra pertencia a Fortune ; e ele tinha o cuidado de se assegurar de que nunca se esquecessem disso. Quando o poço secara, ele não tinha permitido que Pitts fizesse um furo em profundidade para um novo poço, mas insistira que obtivessem água canalizando a nascente. Não tencionava ser ele a custear o furo para um novo poço e sabia que se deixasse Pitts custeá-lo, sempre que tivesse oca­ sião de dizer a Pitts, «A terra onde estás é minha», Pitts pode­ ria dizer-lhe, «Bem, é minha a bomba que puxa a água que você bebe.» Dez anos a viverem ali tinham dado aos Pittses a sensa­ ção de serem proprietários do sítio. A filha tinha nascido e sido lá criada mas o velho considerava que quando casara com Pitts ela demonstrara que optava por Pitts em detri­ mento da sua casa ; e, ao regressar, fizera-o como qualquer outro rendeiro, embora ele não permitisse que pagassem renda pela mesma razão pela qual não os autorizara a faze­ rem um furo para o poço. Qualquer pessoa com mais de ses­ senta anos está numa posição desconfortável a não ser que controle o maior quinhão ; e, de vez em quando, ele dava uma lição prática aos Pittses vendendo uma parcela. Nada enfure­ cia mais o Pitts do que vê-lo vender uma fracção da proprie­ dade a um estranho, porque era evidente que o Pitts queria não só comprá-la mas ainda ter direiro de opção. Pitts era um individuo magro com um maxilar comprido, irascível, obstinado e mal-humorado ; e a mulher era do género de se orgulhar de fazer o seu dever. É meu dever ficar aqui e tomar conta do papá. Quem é que o faria se não fosse eu? Faço-o sabendo muito bem que não vou ser recompen­ sad a por isso. Faço-o porque é o meu dever. O velho não caía naquela nem por um minuto. Sabia que eles esperavam com impaciência o dia em que pudessem colocá-lo num buraco com sete palmos de comprimento e

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cobri-lo com terra. Assim que isso acontecesse, e mesmo que ele não lhes deixasse a propriedade, supunham que conse­ guiriam adquiri-la. Em segredo, o velho fizera o seu testa­ mento e deixara tudo num fundo a Mary Fortune, nomeando o seu advogado, e não Pitts, como executor. Quando ele mor­ resse Mary Fortune poderia fazê-los a todos rabiar; e ele não duvidava nem por um minuto que ela seria capaz de fazê-lo. Dez anos atrás eles tinham anunciado que iam dar ao novo bebé o nome de Mark Fortune Pitts, em atenção a ele, se fosse rapaz, e ele não esperou para lhes dizer que se eles associassem o seu nome ao nome de Pitts os expulsaria da propriedade. Quando o bebé nasceu, uma rapariga, e ele vira que mesmo apenas com um dia de idade ela se parecia ine­ quivocamente consigo, amolecera e tinha sido ele próprio a sugerir que lhe dessem o nome de Mary Fortune, como o da sua querida mãe, que tinha falecido há setenta anos tra­ zendo-o ao mundo. A propriedade Fortune ficava no meio campo, servida por uma estrada de terra que se desviava da estrada alcatroada a uma distância de dois quilómetros e meio ; e ele nunca teria conseguido vender quaisquer parcelas se não fosse o pro­ gresso, que sempre fôra seu aliado. Ele não era um daqueles velhos que combatem os melhoramentos, que criticam tudo o que é novo e receiam todas as mudanças. Ele queria ver uma estrada alcatroada - por onde passassem muitos carros do último modelo - em frente da sua porta, queria ver um super­ mercado do outro lado da estrada, queria ver uma estação de serviço, um motel, um drive-in a uma distância razoável. De repente o progresso tinha posto tudo isto em marcha. A com­ panhia de electricidade tinha construído uma barragem no rio e inundara grandes áreas da região circundante e o lago que se formara banhava as suas terras ao longo de uma extensão de oitocentos metros. Qualquer Zé-Ninguém, qualquer desgra­ çado, queria ter uma parcela no lago. Falava-se que iriam ter uma linha telefónica. Dizia-se que asfaltariam a estrada que passava à porta da propriedade Fortune. Falava-se numa pos-

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sível cidade. E l e achava que esta s e deveria chamar Fortune, Georgia. Era um homem com uma visão progressista, apesar dos seus setenta e nove anos de idade. A máquina que removia a terra tinha parado no dia ante­ rior, e hoje o avô e a neta observavam o barranco a ser apla­ nado por duas enormes retroescavadoras amarelas. A sua propriedade tinha correspondido a oitocentas jeiras antes de ele começar a vender parcelas. Tinha vendido cinco parcelas de vinte jeiras nas traseiras da propriedade, e sabia muito bem que, de cada vez que vendera uma, a tensão arterial de Pitts tinha dado um salto. «Os Pittses são do género de gente que deixa uma pastagem para as vacas interferir com o futuro», disse a Mary Fortune, «mas nem tu nem eu somos assim.» O facto de Mary Fortune ser também uma Pitts era algo que ele não mencionava, de forma cavalheiresca, como se fosse uma doença de que a criança não era responsável. Ele gostava de pensar nela como sendo integralmente da sua cepa. Ele sentava-se no pára-choques e ela na capota com os pés descalços sobre os seus ombros. Uma das retroescavado­ ras tinha-se deslocado para debaixo deles de forma a nivelar o flanco da margem onde estavam estacionados. Se tivesse esticado os pés alguns centímetros para fora, o velho poderia tê-los pendurado por cima da borda. «Se não estiver de olho nele», gritou Mary Fortune sobre­ pondo-se ao ruido da máquina, «Vai tirar parte da terra que é sua!» ccO marco está acolá», gritou o velho. ccEle não ultrapassou o marco.» «AINDA não», rugiu ela. A escavadora passou por baixo deles e dirigiu-se ao flanco mais afastado. «Bem, fica de olho», disse ele. «Mantém os olhos abertos e se ele derrubar aquele marco, eu faço-o parar. Os Pittses são do género de deixar uma pastagem para as vacas ou uma parcela para as mulas ou uma fileira de feijões interferir com o progresso», continuou. «As pessoas como tu e eu com a cabeça no lugar sabem que não podem parar a marcha do tempo por causa de uma pastagem ... »

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«Ele está a fazer oscilar o marco do outro lado !>1, gritou ela ; e, antes que ele pudesse impedi-la, ela tinha saltado da capota e corria ao longo da beira do aterro, com o seu vesti­ dinho amarelo ondulando atrás de si. «Não corras tão perto da beira», gritou ele ; mas ela tinha já alcançado o marco e estava agachada ao lado para ver se tinha cedido muito. Debruçou-se da margem e agitou o punho ao homem da retroescavadora. Ele acenou-lhe e con­ tinuou com o seu trabalho. Tem mais tino no dedo mindinho do que todas as cabeças juntas daquela tribo, disse para con­ sigo o velho, e observou com orgulho enquanto ela se apro­ ximava dele novamente. A miúda possuía uma melena abundante de um cabelo lindo cor de areia - exactamente do género do seu quando ainda tinha algum cabelo - que crescia liso e estava cortado mesmo por cima dos olhos e desde as bochechas até às pon­ tas das orelhas, formando uma espécie de porta que abria para a parte central do rosto. Os óculos tinham uma armação prateada como os dele, e até no caminhar se parecia com ele, de estômago esticado para fora, com uma passada cuidadosa e abrupta, algo entre um oscilar e um arrastar dos pés. Deslocava-se tão perto da beira do aterro que a parte exterior do seu pé direito lhe ficava mesmo rente. «Já disse para não caminhares tão perto da beira», bradou ele, «se caíres daí não poderás ver este sítio construído.» Era sempre muito cuidadoso velando para que ela evitasse o perigo. Não permitia que se sentasse em locais onde houvesse cobras ou colocasse as mãos em arbustos que pudessem esconder vespões. Ela não se afastou um centímetro. Possuía o hábito dele de não ouvir aquilo que não queria ouvir; e, como este era um truque que tinha sido ele a ensinar-lhe, o velho era obri­ gado a admirar a maneira como ela o punha em prática. Antevia que lhe iria ser muito útil na velhice. Ela chegou ao carro, voltou a subir para a capota sem uma palavra e a colo­ car os pés sobre os ombros dele onde haviam estado antes,

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como se o avô não fosse mais do que uma parte do automó­ vel. Centrou novamente a atenção na escavadora. «Lembra-te do que não vais ganhar se não ligares», comentou o avô. Ele era um educador severo mas nunca a tinha açoitado. Estava convicto de que algumas crianças, como os primeiros seis Pittses, deveriam ser açoitadas uma vez por semana por princípio, mas havia outras formas de controlar crianças inte­ ligentes e ele nunca tinha posto a mão em Mary Fortune. Mais ainda, ele nunca tinha permitido que a mãe ou os irmãos lhe dessem sequer uma bofetada. Com o Pitts mais velho o caso era diferente. Era um homem de temperamento sórdido, ressentimentos feios e pouco razoáveis. Repetidas vezes, o coração de Mr. Fortune tinha disparado ao vê-lo erguer-se lentamente do seu lugar à mesa - não à cabeceira, lugar onde Mr. Fortune se sentava, mas do seu lugar de um dos lados - e abruptamente, sem qualquer razão, sem qualquer explicação, sacudir a cabeça na direcção de Mary Fortune e dizer, «Vem comigo», e abandonar o compartimento, desapertando o cinto enquanto saía. Aparecia no rosto da criança uma expressão que lhe era completamente estranha. O velho não conseguia definir essa expressão, mas, de qualquer forma, enfurecia-o. Era uma expressão feita em parte de terror, noutra de respeito, e parte ainda de outra coisa qualquer, algo muito semelhante à coo­ peração. A expressão aparecia no rosto da miúda, e ela levan­ tava-se e seguia o pai para fora da sala. Entravam para a camioneta e afastavam-se pela estrada para um lugar onde não os ouvissem e onde ele a espancaria. Mr. Fortune tinha a certeza que ele a espancava porque os tinha seguido no seu carro e tinha assistido à cena. Espiara por detrás de um penhasco a cerca de trinta metros de distân­ cia enquanto a criança se agarrava a um pinheiro e Pitts, de fo rma tão metódica como se golpeasse um arbusto, lhe batia nos tornozelos com o cinto. Em sua defesa limitara-se a salti­ tar para cima e para baixo como se estivesse em cima de uma

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chapa quente, e a ganir tal como um cão quando é açoitado. Pitts tinha-a chicoteado durante três minutos e depois vol­ tara-se, sem uma palavra, entrara na camioneta e deixara­ -a ali ; ela deslizou pela árvore abaixo ficando sentada e agar­ rada a ambos os pés com as mãos, baloiçando-se para a frente e para trás. O velho acercou-se para abraçá-la. O rosto dela estava contorcido num quebra-cabeças de pequenos altos vermelhos e tanto o nariz como os olhos escorriam água. Dessa primeira vez, ele precipitou-se sobre ela e falou atabalhoadamente : «Por que é que não lhe bateste também? Onde está a tua genica? Achas que eu deixava que ele me batesse?» Ela dera um salto e começara a afastar-se dele com o queixo espetado. «Ninguém me bateU», disse ela. «E eu não o vi com os meus próprios olhos?», explodiu ele. «Não está aqui ninguém, e ninguém me bateU», disse ela. «Nunca ninguém me bateu na minha vida e se alguém o fizesse, eu matava-o. Pode ver por si próprio que não está aqui ninguém.» «Estás a chamar-me mentiroso ou cego !», gritou ele. «Eu vi­ -o com os meus próprios olhos e tu não fizeste nada a não ser deixar que ele te batesse, não fizeste nada a não ser agarrares­ -te àquela árvore, saltitar e choramingar. Se fosse comigo, teria sacudido o meu punho em frente da cara dele e ... » «Não esteve aqui ninguém e ninguém me bateu e se alguém o fizesse, eu matava-o !», gritou ela e a seguir voltou­ -se e correu pela mata. «E eu sou um porco de porcelana da Polónia e o preto é branco !», gritara ele para se fazer ouvir e sentara-se numa pequena rocha debaixo da árvore, desgostoso e exasperado. Esta era a forma de Pitts se vingar dele. Era como se fosse ele que Pitts levasse pela estrada abaixo para espancar; e era como se fosse ele que se submetia àquilo. No início tinha pensado que podia impedi-lo dizendo que, se ele batesse na neta, os expulsaria da propriedade ; mas, quando tentou isto, Pitts dissera : «Expulse-me e expulsa-a a ela também. Faça

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isso. Eu tenho o direito de açoitá-la e dou-lhe uma sova todos os dias do ano se me apetecer.» Estava determinado a obrigar Pitts experimentar a sua autoridade sempre que tivesse oportunidade para fazê-lo: e, de momento, tinha um pequeno esquema na manga que seria um golpe considerável para Pitts. Estava a pensar com prazer nessa manobra quando disse a Mary Fortune para se lembrar que não iria ganhar dinheiro se continuasse a ignorar os seus conselhos, e acrescentou, sem esperar por uma resposta, que talvez vendesse outra parcela em breve ; e, se o fizesse, pode­ ria dar-lhe um bónus - mas não o faria se ela continuasse a ser indolente e e não confrontasse o pai. Tinha frequente­ mente pequenas disputas verbais com a neta, mas eram ape­ nas um passatempo saboroso, como colocar um espelho à frente de um galo e observá-lo a lutar com o seu reflexo. «Não quero bónus nenhum», disse Mary Fortune. «Nunca te vi recusar um único.» «Também nunca me viu pedir nenhum», disse ela. «Quanto é que já puseste de parte?», perguntou ele. «Não tem nada com isso», disse ela e bateu-lhe com os pés nos ombros. «Não se meta na minha vida.» «Aposto que o tens cosido dentro do colchão», disse ele, «tal e qual uma preta velha. Devias pô-lo no banco. Vou abrir-te uma conta assim que finalize este negócio. Ninguém poderá consultá-la a não ser eu e tu.» A retroescavadora movimentou-se novamente por baixo deles, e abafou o resto do que pretendia dizer. O velho fez uma pausa, e, quando o ruído se afastou, não conseguiu con­ ter-se mais. «Vou vender a parcela mesmo em frente da casa para uma estação de serviço», disse. «Assim não teremos que ir lá abaixo para encher o depósito do carro, apenas sair pela porta da frente.» A casa Fortune estava afastada da estrada cerca de sessenta metros, e eram estes sessenta metros que ele tencionava ven­ der. Era a parte a que a filha chamava despreocupadamente «O relvado» embora não fosse senão um campo de ervas daninhas.

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«Está a falar», disse Mary Fortune após um minuto, «do relvado?» «Sim senhora !», disse ele. «Estou a falar do relvado», e deu uma palmada no joelho. Ela não disse nada e o avô voltou-se e olhou para a neta. Ali, na pequena abertura rectangular de cabelo, fitava-o o seu próprio rosto, mas era um reflexo não da sua expressão actual mas de uma outra mais sombria que indicava o seu descontentamento. « É onde nós brincamos», murmurou ela. «Bem, há muitos outros locais onde vocês podem brincar», disse ele, irritado com aquela manifesta falta de reacção. «Deixaremos de ver os bosques do outro lado da estrada», disse ela. O velho fixou-a. «Os bosques do outro lado da estrada?», repetiu ele. «Deixaremos de ver a paisagem», disse ela. «A paisagem?», repetiu ele. «Os bosques», disse ela, «deixaremos de ver os bosques quando estamos no alpendre.» «Ver os bosques do alpendre?», repetiu ele. Em seguida ela disse : «0 meu pai põe os bezerros a pastar naquela parcela.» A cólera do velho demorou um instante a chegar por causa do choque. A seguir rebentou num rugido. Deu um salto, voltou-se e bateu com o punho na capota do carro. «Ele pode pô-los a pastar noutro sítio qualquer!» «Vai cair nesse aterro e desejar não o ter feito», disse ela. Ele saiu da dianteira do carro e passou para o lado, mantendo sempre os olhos fixos nela. «Achas que eu me importo com o sítio onde ele põe os bezerros a pastar? Achas que eu deixo um bezerro interferir nos meus negócios? Achas que eu não me estou nas tin­ tas para o sítio onde aquele imbecil põe os bezerros a pastar?» Ela estava sentada, com o rosto escarlate, mais vermelho que o cabelo, reflectindo de forma exacta a expressão dele naquele momento. «Aquele que chama imbecil ao seu irmão fica sujeito ao fogo do inferno», disse ela.

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«Não julgues», gritou ele, «para não seres julgada !» A tona­ lidade do rosto dele era um tudo nada mais rubicundo que o dela. «TU !», disse ele. «Tu que deixas que ele te bata sempre que lhe apetece e não fazes nada a não ser choramingar um pouco e saltitar para baixo e para cima !» «Nem ele nem ninguém me tocou alguma vez», repetiu ela, medindo cada palavra num tom terrivelmente neutro. «Nunca ninguém me pôs um dedo em cima e se alguém o fizesse, eu matava-o» «E o preto é branco», sibilou o velho, «e a noite é dia !» A escavadora passou por baixo deles. Com os rostos a cerca de trinta centímetros de distância, cada um deles con­ servou a mesma expressão até o ruído se afastar. A seguir, o velho disse : «Volta a pé para casa. Recuso-me a dar boleia a uma Jezebel !» «E eu recuso-me a ir com a Meretriz Babilónia», disse ela enquanto deslizava para o chão do outro lado do carro e começou a afastar-se pela pastagem. «Uma Meretriz é uma mulher!», rugiu ele. « É para veres como és ignorante !» Mas ela não se dignou virar-se e respon­ der-lhe; e, ao observar a pequena figura robusta caminhando com arrogância através do campo salpicado de amarelo em direcção aos bosques, o orgulho que tinha nela, como se não pudesse evitá-lo, regressou como a pequena maré suave do novo lago - todo excepto a parte que tinha a ver com a recusa dela em fazer frente a Pitts ; essa retraía-se como um recuo das ondas. Se ele tivesse podido ensinar-lhe a fazer frente a Pitts da mesma forma como ela lhe fazia frente a ele, a neta seria uma criança perfeita, tão destemida e resoluta quanto qual­ quer um poderia desejar; mas possuía, de facto, essa falha de carácter específica. Era a única particularidade na qual ela não se assemelhava a ele. Voltou-se e olhou para a distância, sobre o lago e para os bosques além dele, e disse a si próprio que, dentro de cinco anos, no lugar dos bosques estariam antes casas e lojas e parques de estacionamento, e que o mérito de tudo isso poderia ser em larga medida atribuído a si mesmo.

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Tencionava ensinar a criança a ter carácter através do exemplo ; e, como já tinha tomado a decisão em definitivo, anunciou nesse dia à mesa do almoço que estava a negociar com um homem chamado Tilman a venda da parcela em frente da casa para a construção de uma estação de serviço. A filha, sentada aos pés da mesa com o seu ar exausto, deixou escapar um gemido como se uma faca romba estivesse a ser rodada no seu peito lentamente. «Está a falar do rel­ vado !», gemeu ela e deixou-se cair para trás na cadeira repe­ tindo numa voz quase inaudível, «Ele está a falar do relvado.» As outras seis crianças Pitts começaram a berrar e a cho­ rar, «Onde a gente brinca !», «Não o deixes fazer isso, avô», «Deixaremos de ver a estrada!», e idiotices semelhantes. Mary Fortune não disse nada. Exibia uma expressão obstinada e reservada como se estivesse a planear um assunto pessoal. Pitts parara de comer e olhava fixamente em diante. Tinha o prato cheio mas os punhos jaziam imóveis como duas pedras de quartzo escuro de cada um dos lados. Os olhos começaram a mover-se de criança para criança em redor da mesa como se procurasse uma delas em particular. Por fim, pararam em Mary Fortune, sentada ao lado do avô. «Foste tu que nos fizeste isto», murmurou. «Não fui», disse ela, mas não havia firmeza na sua voz. Era apenas um gorjeio, a lamúria de uma criança assustada. Pitts levantou-se e disse, «Vem comigo» ; voltou-se e saiu, desapertando o cinto ao retirar-se ; e, para desespero com­ pleto do velho, ela deslizou da mesa e seguiu-o, quase correu atrás dele, saiu porta fora e subiu para a camioneta, e pronto, afastaram-se. Esta cobardia afectou Mr. Fortune como se fosse sua. Fê­ -lo ficar fisicamente indisposto. «Ele bate numa criança ino­ cente», disse à filha, que estava aparentemente ainda abatida aos pés da mesa, «e nenhum de vocês levanta um dedo para o impedir.» «Você também não levantou o sem, disse um dos rapazes a meia voz e daquele coro de rãs ergueu-se um murmúrio geral.

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«Eu sou um velho com um problema cardíaco», disse. «Não consigo parar um boi.» «Ela é que lhe meteu a ideia na cabeça», murmurou a filha, à beira da cadeira, num tom débil e indiferente, a cabeça rodando de um lado para o outro. «Ela é que o instiga a tudo.» «Nenhuma criança nunca me instigou a nada !», vociferou ele. «Tu não és mãe nem és nada ! É s uma vergonha ! Aquela criança é um anj o ! Uma santa !», gritou ele numa voz tão aguda que até lhe falhou, obrigando-o a sair apressadamente da divisão. Teve que ficar na cama o resto da tarde. O seu coração, sempre que sabia que a criança tinha apanhado, sentia-se como se fosse ligeiramente maior que o espaço que o deveria conter. Mas agora estava mais determinado que nunca a ver a estação de serviço erguer-se em frente da casa, e se isso provocasse uma apoplexia a Pitts, tanto melhor. Se de facto lhe provocasse uma apoplexia e o deixasse paralisado, seria muito bem feito e nunca mais poderia espancá-la de novo. Mary Fortune nunca ficava zangada com ele durante muito tempo, ou zangada a sério, e embora não a tivesse visto o resto desse dia, quando acordou na manhã seguinte, ela estava escarranchada no seu peito ordenando-lhe que se apressasse para não perderem a betoneira. Os trabalhadores estavam a assentar os alicerces do clube de pesca quando eles chegaram e a betoneira estava já a fim­ cionar. Era mais ou menos do tamanho e da cor de um ele­ fante de circo ; ficaram de pé a vê-la agitar-se durante cerca de meia hora. Às onze e meia, o velho tinha um encontro com Tilman para discutir a transacção e tiveram que partir. Não disse a Mary Fortune onde iam mas apenas que precisava de se encontrar com um homem. Tilman dirigia um armazém rural misto, uma estação de serviço, um ferro-velho, um stand de carros usados e um salão de baile a oito quilómetros de distância pela estrada principal que se ligava à estrada de terra batida que passava em frente da propriedade dos Fortune. Uma vez que a estrada

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de terra ia ser asfaltada em breve, ele pretendia aí uma boa localização para outro empreendimento semelhante. Era um homem diligente - do género, pensava Mr. Fortune, daque­ les que nunca acompanhavam apenas o progresso mas sim dos que estavam sempre um pouco à sua frente para poder estar lá e o receber quando ele chegasse. Tabuletas num sen­ tido e noutro da estrada anunciavam que o armazém do Tilman se encontrava apenas a cinco quilómetros, apenas a quatro, apenas a três, apenas a dois, apenas a um ; «Estej a atento a o armazém d o Tilman, já a o virar d a esquina !» e , finalmente, «Ei-lo, Amigos, o armazém d o TILMAN !>1, em letras vermelhas ofuscantes. O armazém do Tilman estava rodeado de ambos os lados por um recinto de velhos chassis de carros usados, uma espé­ cie de enfermaria para automóveis incuráveis. Também vendia enfeites de exterior, tais como : garças e galinhas de pedra, vasos, tloreiras, moinhos de vento e, mais para o interior, afas­ tada da estrada de forma a não deprimir os seus clientes do salão de baile, um fileira de pedras e monumentos tumulares. A maior parte do seu negócio decorria no exterior, de forma que o edifício do armazém não tinha requerido um investi­ mento excessivo. Era uma estrutura de madeira com um com­ partimento apenas, ao qual ele tinha acrescentado, nas trasei­ ras, um comprido salão de chapa equipado para os bailes. Este estava dividido em duas secções : Cor e Brancos, cada uma delas com os seus divertimentos privativos. Tinha um chur­ rasco e vendia sanduíches de grelhados e refrigerantes. Ao passar por baixo do telheiro do armazém do Tilman, o velho lançou um olhar à criança sentada com os pés em cima do assento e o queixo descansando nos joelhos. Não sabia se ela se lembraria ou não que era ao Tilman que ele ia vender a parcela. «Por que é que entrou aqui?», perguntou ela subitamente, com uma expressão de suspeita como se farejasse um inimigo. «Não é da tua conta», disse ele. «Espera no carro e quando eu sair, trago-te uma coisa.»

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«Não me traga nada», disse ela sombriamente, «porque eu não vou cá estar.» «Alto aí», disse ele. «Agora que estás aqui, não há mais nada que possas fazer a não ser esperani, e saiu do carro e sem lhe prestar mais atenção, entrando no armazém escuro onde Tilman o esperava. Quando saiu, meia hora mais tarde, ela não estava no carro. Escondera-se, supôs. Começou a andar pelo armazém para ver se estaria nas traseiras. Espreitou pelas portas das duas secções do salão de baile e caminhou em volta das pedras tumulares. A seguir o olhar vagueou pelo recinto de automóveis corroídos e pensou que ela poderia estar dentro ou atrás de qualquer um dos duzentos que ali se encontra­ vam. Regressou ao exterior em frente do armazém. Um rapaz preto, que bebia uma bebida púrpura, estava sentado no chão encostado ao frigorífico que gotej ava. «Para onde foi aquela rapariguinha, rapaz?», perguntou. «Não vi nenhuma rapariguinha», disse o rapaz. O velho procurou com irritação no bolso, entregou-lhe um níquel e disse: «Uma rapariguinha bonita com um vestido de algodão amarelo.» «Se está a falar de uma criança forte parecida consigo», disse o rapaz, «foi-se embora numa camioneta com um branco.» «Que género de camioneta, que género de branco?», gritou ele. «Era uma camioneta de caixa aberta verde», disse o rapaz estalando os lábios, «e um branco a quem ela chamou "papá". Eles foram naquela direcção há j á algum tempo.» A tremer, o velho entrou no carro e dirigiu-se a casa. Os seus sentimentos alternavam entre a fúria e a mortificação. Ela nunca o tinha abandonado antes e certamente nunca pelo Pitts. Pitts mandara-a subir para a camioneta e ela ti­ vera medo de não o fazer. Mas ao chegar a esta conclusão ficou mais furioso que nunca. O que é que se passava com ela para não conseguir fazer face a Pitts? Por que razão havia este defeito específico no seu carácter quando ele a

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tinha treinado tão bem em tudo o mais? Era um mistério muito desagradável. Quando chegou a casa e subiu os degraus da frente, lá estava ela sentada no baloiço, olhando em frente com uma expressão carrancuda para lá do campo que ele ia vender. Os olhos dela estavam inchados e aureolados de vermelho mas ele não lhe viu marcas vermelhas nas pernas. Sentou-se no baloiço, ao seu lado. Tencionava tornar a voz severa mas em vez disso saiu-lhe vacilante, como se pertencesse a um pre­ tendente que tentasse ocupar de novo o seu lugar. «Por que é que me deixaste? Nunca me tinhas deixado antes», disse. «Porque quis», disse ela, olhando em frente. «Nunca tinhas querido», disse ele. «Ele obrigou-te.» «Avisei-o que me iria embora e fui», disse ela numa voz baixa e enfática, sem olhar para ele ; «E agora pode ir-se embora e deixar-me em paz.» Havia qualquer coisa de defini­ tivo na forma como isto soava, um tom que nunca tinha sur­ gido antes nas discussões entre ambos. Ela olhava fixamente para lá da parcela onde não havia nada a não ser uma profu­ são de ervas daninhas de cor rosa, amarela e púrpura, e para mais longe, para lá da estrada vermelha, para a linha sombria de pinhais negros debruados por uma franja verde no topo. Atrás dessa linha estendia-se uma linha estreita de um azul acinzentado de bosques mais distantes e para além dela nada mais do que o céu, completamente vazio à excepção de uma ou duas nuvens esfiapadas. Ela olhava para esta paisagem como se esta fosse uma pessoa que ela preferia encarar. «A parcela é minha, não é?», perguntou ele. «Por que é que estás tão excitada por eu vender a parcela que me pertence?» «Porque é o relvado», disse ela. O nariz e os olhos começa­ ram a pingar de forma terrivel mas ela mantinha o rosto inal­ terável e lambia a água assim que estava ao alcance da lín­ gua. «Deixaremos de poder ver para lá da estrada», disse ela. O velho olhou para lá da estrada para se assegurar de novo que não havia nada ali para se ver. «Nunca te vi agir

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desta maneira antes», disse ele numa voz incrédula. «Ali não há nada a não ser os bosques.» «Deixaremos de vê-los», disse ela, «e aquilo é o relvado e os bezerros do meu papá pastam ali.» Ao ouvir aquilo o velho levantou-se. «Estás a comportar-te mais como uma Pitts do que como uma Fortune», disse. Nunca antes lhe tinha feito um comentário tão desagradável e arre­ pendeu-se no mesmo instante em que o disse. Magoava-o mais a ele do que a ela. Virou-se e entrou em casa e subiu as esca­ das em direcção ao quarto. Por diversas vezes durante a tarde se levantou da cama e olhou através da janela para lá do «relvado» para a linha de bosques que ela afirmava que deixariam de poder ver. De todas as vezes viu o mesmo : bosques - não uma montanha, não uma queda de água, não qualquer tipo de arbusto ou flor plantada, nada mais que bosques. A luz do sol entretecia-se por entre eles nessa altura particular da tarde de forma que cada tronco estreito de pinheiro se destacava em toda a sua nudez. Um tronco de pinheiro é um tronco de pinheiro, dizia para consigo, e qualquer pessoa que queira ver um não pre­ cisa de ir longe por estas bandas. De cada vez que se levan­ tava e olhava para fora, ficava mais convencido do seu bom senso em vender a parcela. O desgosto que causaria ao Pitts seria permanente, mas ele podia compensar Mary Fortune comprando-lhe qualquer coisa. Para os adultos, uma estrada levava ou ao céu ou ao inferno, mas com as crianças havia sempre paragens ao longo do caminho onde a atenção delas podia ser desviada com uma insignificância. A terceira vez que se levantou para olhar para os bosques, eram quase seis horas e os troncos descamados pareciam bro­ tar de uma poça de luz vermelha que jorrava do sol quase oculto que se punha por trás deles. O velho fitou a cena du­ rante algum tempo, como se durante um dilatado instante tivesse sido arrebatado para fora da agitação de tudo o que levava ao futuro e fosse retido ali no centro de um mistério desconfortável de que não se tinha apercebido anteriormente.

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Viu-o na sua alucinação, como se alguém estivesse ferido por detrás dos bosques e as árvores estivessem banhadas em san­ gue. Após alguns minutos esta visão desagradável foi que­ brada pela presença da camioneta de Pitts que parou com um chiar por debaixo da janela. Voltou para a cama, fechou os olhos e contra as pálpebras fechadas ergueram-se carrinhas de um vermelho diabólico num bosque negro. À mesa do jantar ninguém lhe dirigiu uma palavra, incluindo Mary Fortune. Ele comeu rapidamente e regressou ao quarto ; passou o serão enumerando para si próprio as vanta­ gens para o futuro de ter um estabelecimento como o de Tilman tão perto. Não precisariam de se deslocar para obter gasolina. Sempre que precisassem de pão, tudo o que teriam de fazer era sair da porta da frente e entrar na porta das traseiras do Tilman. Poderiam vender leite ao Tilman. Tilman era um sujeito simpá­ tico. Tilman atrairia outros negócios. A estrada seria asfaltada em breve. Viajantes de todo o país parariam no Tilman. Se a filha se achava melhor que o Tilman, seria bom humilhá-la um pouco. Todos os homens eram criados livres e iguais. Quando esta frase lhe ecoou na cabeça, o seu sentido patriótico triunfou e ele apercebeu-se que era seu dever vender a parcela, que ele tinha por obrigação assegurar o futuro. Olhou pela janela para a Lua que brilhava por cima dos bosques para lá da estrada e escutou durante algum tempo o zunido dos grilos e das rãs arborícolas, e por baixo da sua algazarra, ele conseguia ouvir o pulsar da futura cidade de Fortune. Foi para a cama certo de que, como de costume, acorda­ ria de manhã e olhando para um pequeno espelho vermelho emoldurado por cabelo loiro. Ela teria esquecido tudo o que se referia à venda e depois do pequeno-almoço iriam até à vila buscar os documentos ao tribunal. No caminho de regresso pararia no armazém do Tilman e fecharia o negócio. Quando abriu os olhos de manhã, dirigiu-os para o tecto vazio. Ergueu-se e olhou pelo quarto mas ela não estava lá. Debruçou-se da cama e olhou para baixo mas ela também não estava lá. Levantou-se, vestiu-se e saiu. Ela estava sen-

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tada no baloiço no alpendre, exactamente como tinha estado ontem, a olhar p ara lá do relvado na direcção dos bosques. O velho ficou muito irritado. Todas as manhãs desde que ela tinha aprendido a trepar, ele encontrava-a, ao acordar, ou em cima da sua cama, ou por baixo dela. Era óbvio que esta manhã ela preferia olhar para a paisagem dos bosques. Decidiu ignorar o comportamento dela de momento e abordá-lo depois mais tarde quando ela tivesse esquecido a birra. Sentou-se no baloiço ao lado dela mas ela continuou a olhar para os bosques. «Pensei que tu e eu podíamos ir à vila dar uma vista de olhos aos b arcos na nova loja náutica», disse. Ela não virou a cabeça mas perguntou desconfiada, em voz alta. «Por que outra razão é que vai lá?11 «Para mais nada11, disse ele. Após uma pausa ela disse, «Se é só isso, eu vou11, mas não se deu ao trabalho de olhar para ele. «Bom, então vai calçar os sapatos», disse ele. «Não vou à cidade com uma mulher descalça.» Ela não se deu ao traba­ lho de rir da piada. O tempo estava tão indiferente como a atitude dela. O céu não indicava se iria chover ou se não iria chover. Apresentava um cinzento desagradável e o Sol não se tinha dado ao incómodo de aparecer. Durante todo o caminho para a vila, ela deixou-se ficar sentada a olhar para os pés, que estavam espetados à sua frente, metidos nuns pesados sapa­ tos práticos e castanhos. O velho tinha-se frequentemente acercado dela sorrateiramente surpreendendo-a a conversar sozinha com os pés e pensou que desta vez estaria a falar com eles em silêncio. De vez em quando os lábios dela moviam­ -se mas não lhe diziam nada e deixava passar todos os comen­ tários dele como se não os ouvisse. Ele pensou que lhe ia cus­ tar caro comprar de novo o bom humor dela e que o melhor a fazer era consegui-lo com um barco, já que ele também queria um. Ela tinha começado a falar de barcos desde que a água alcançara a propriedade. Foram primeiro à loja dos bar-

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cos. «Mostre-nos os iates para pobres !», gritou ele j ovialmente para o empregado ao entrar. «São todos para pobres !», disse o empregado. «Vai ser pobre quando acabar de pagar um !» Era um j ovem robusto que envergava uma camisa amarela, calças azuis e possuía um humor pronto. Trocaram vários comentários espirituosos numa sucessão de fogo rápido. Mr. Fortune olhou para Mary Fortune para ver se o rosto dela se tinha animado. Ela estava de pé olhando de forma abstracta para a parede oposta por cima de um barco com um motor fora de bordo. «A senhora não está interessada em barcos?», perguntou o empregado. Ela virou-se, saiu de novo para o passeio e entrou nova­ mente para o carro. O velho ficou a olhar para ela com espanto. Não conseguia acreditar que uma criança com a inteligência dela pudesse estar a comportar-se desta maneira por causa da mera venda de um campo. «Acho que ela está a chocar qualquer coisa», disse ele. «Havemos de voltar noutro dia», e regressou ao carro. «Vamos comer um gelado», sugeriu ele, olhando para ela com preocupação. «Não quero nenhum gelado», disse ela. O seu verdadeiro destino era o tribunal mas ele não que­ ria tomá-lo perceptível. «Que tal ires à loj a dos 10 cêntimos r2 1 enquanto eu trato de um assuntozinho meu?», perguntou ele. «Podes comprar qualquer coisa para ti com esta moeda de quarto [3 l que eu trouxe.» «Não tenho nada para fazer em nenhuma loj a dos 10 cên­ timos», disse ela. «Não quero nenhuma moeda de quarto sua.» Se um barco não lhe interessava, ele não devia ter pen­ sado que uma moeda de quarto lhe interessaria e recriminou­ -se pela estupidez. «Bem, o que é que se passa, pequena?», perguntou com delicadeza. «Não te sentes bem?» [2] O equivalente à loja d o s trezentos d o s nossos dias. (N. [J] Quarto de dólar, ou 2 5 cêntimos. (N. da T.)

da T.)

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Ela voltou-se e olhou-o bem de frente e disse com uma ferocidade lenta e concentrada : « É o relvado. É lá que os bezerros do meu papá pastam. Deixaremos de poder ver os bosques.11 O velho tinha refreado a sua fúria tanto quanto podia. «Ele bate-te !11, gritou. «E tu preocupaste onde ele vai pôr os bezer­ ros a pastar!11 «Nunca ninguém me bateu na vida», disse ela, «e se al­ guém o fizesse, eu matava-0.11 Um homem de setenta e nove anos de idade não se pode deixar calcar por uma criança de nove. O seu rosto fixou-se numa expressão que era tão determinada quanto a dela. « É s uma Fortune11, disse ele, «OU és uma Pitts? Decide-te.» A voz dela era alta e positiva e beligerante. «Eu sou Mary­ -Fortune-Pitts11, disse. «Bom, eu», gritou ele, «sou CEM POR CENTO Fortune !11 Não havia nada que Mary pudesse responder a isto e ela evidenciou-o. Durante um momento pareceu completamente derrotada, e o velho viu com uma clareza perturbadora que esta era a expressão dos Pitts. O que ele viu era a expressão dos Pitts, pura e dura, e ele sentiu-se pessoalmente conspur­ cado por ela, como se ela tivesse sido encontrada no seu pró­ prio rosto. Virou-se com aversão, fez marcha-atrás e dirigiu­ -se directamente para o tribunal. O tribunal era um edifício vermelho e branco com a fron­ taria reluzente que se erguia no centro de um largo do qual a maior parte da relva tinha sido arrancada. Estacionou à sua frente e disse, «Não saias daqui !», num tom imperativo, saiu e bateu com a porta. Levou meia hora a conseguir o documento e que lhe redi­ gissem a escritura da venda e quando regressou ao carro, ela estava sentada no banco de trás a um canto. A expressão na parte do rosto que ele conseguia ver era agourenta e retraída. O céu também tinha escurecido e havia uma corrente quente e lenta no ar, do género que se sente quando um tufão pode surgir.

8 2 ü 'CONNOR

« É melhor seguirmos antes de sermos apanhados por uma borrasca», disse ele enfaticamente, «porque tenho mais um sítio onde tenho que parar a caminho de casa.» Mas ele bem poderia estar a transportar um pequeno cadáver pela resposta que recebeu.

A caminho do armazém do Tilman examinou mais uma vez as muitas legítimas razões que o conduziam à sua acção presente e não conseguiu encontrar nem uma falha em alguma delas. Cogitou que, mesmo que a atitude dela não fosse definitiva, ele estava permanentemente desapontado com ela e que quando ela caísse em si teria que pedir des­ culpa ; e que não haveria barco nenhum. Estava lentamente a chegar à conclusão que o seu problema com ela sempre tinha sido não ter demonstrado firmeza suficiente. Tinha sido demasiado generoso. Estava tão ocupado com estes pensa­ mentos que não reparou nas tabuletas que comunicavam quantas milhas faltavam para o armazém do Tilman até o último lhe explodir alegremente na cara : «Aqui está, Amigos, o armazém do TILMAN !» Estacionou por baixo do telheiro. Saiu sem sequer olhar para Mary Fortune e entrou no armazém escuro onde Tilman, inclinado sobre o balcão defronte de uma prateleira tripla de produtos enlatados, o esperava. Tilman era um homem de acção rápida e poucas palavras. Sentava-se habitualmente com os braços cruzados, apoiando­ -se no balcão, e a cabeça insignificante meneando como uma cobra por cima deles. Possuía um rosto triangular com o vér­ tice em baixo e o cimo do crânio estava coberto por um soli­ déu de sardas. Os olhos eram verdes e muito estreitos e a lín­ gua estava sempre à vista na boca parcialmente aberta. Tinha o livro de cheques à mão e puseram mãos ao negócio de ime­ diato. Não precisou de muito tempo para analisar a escritura e assinar o documento da venda. Mr. Fortune assinou-o de seguida e deram um aperto de mão por sobre o balcão.

A VISTA DOS BOSQUES 8 3 A sensação de alívio d e Mr. Fortune ao apertar a mão de Tilman foi extrema.

O

que estava feito, estava feito, não

poderia haver mais discussões com ela ou consigo próprio. Sentia que tinha agido por princípio e que o futuro estava assegurado. Assim que as mãos deles se separaram, uma mudança ins­ tantânea se apoderou do rosto de Tilman no mesmo instante em que desapareceu completamente sob o balcão como se tivesse sido arrebatado na parte inferior, pelos pés. Uma gar­ rafa partiu-se contra a linha de produtos enlatados por detrás do sítio onde ele tinha estado.

O

velho voltou-se rapida­

mente. Mary Fortune estava à porta, muito corada e com um aspecto desvairado, com outra garrafa erguida para arremes­ sar. Ao mesmo tempo que o avô se baixava, esta partiu-se contra o balcão e ela retirou outra da grade. Ele deu um salto na sua direcção mas ela correu para o outro lado do arma­ zém, gritando qualquer coisa ininteligível e atirando tudo o que estava ao seu alcance.

O

velho precípitou-se novamente

sobre ela e desta vez apanhou-a pela ponta do vestido e puxou-a às arrecuas p ara fora do armazém. Em seguida con­ seguiu agarrá-la melhor e transportou-a ao colo, a criança ofegante e a choramingar, mas quedou-se repentinamente flácida nos seus braços, nos p oucos metros até ao carro. Conseguiu abrir a porta e deixá-la cair no interior. Em seguida deu a volta a correr até ao outro lado, entrou e con­ duziu para longe tão rapidamente quanto podia.

O

seu coração parecia ter o tamanho do carro e corria em

frente, levando-o para um destino inevitável mais rápido do que alguma vez tinha sido levado. Durante os primeiros cinco minutos ele não raciocinou, apenas acelerou como se esti­ vesse a ser conduzido no interior da sua própria fúria. Gradualmente a capacidade de raciocínio regressou. Mary Fortune, enrolada como uma bola no canto do assento, fun­ gava e arfava. Ele nunca tinha visto uma criança comportar-se daquela maneira em toda a sua vida. Nenhum dos seus filhos nem o

84 O ' CONNOR filho de outra pessoa qualquer tinha alguma vez exibido um tal mau humor na sua presença, e ele não tinha imaginado nem por um instante, que a criança que ele próprio tinha educado, a criança que tinha sido a sua companheira cons­ tante ao longo de nove anos, o envergonharia desta maneira. A criança

à

qual ele nunca tinha levantado um dedo !

Então percebeu, com a súbita visão que por vezes surge com um reconhecimento tardio, que esse tinha sido o seu erro. Ela respeitava Pitts porque, mesmo sem justa causa, ele lhe batia; e se ele - com a sua justa causa - não lhe batesse agora, não p oderia culpar ninguém a não ser a si próprio se ela se tomasse numa pesso a perversa. Compreendeu que tinha chegado o momento em que não podia mais evitar açoitá-la, e ao sair da estrada p rincipal e virar para a estrada de terra b atida que levava a casa, disse para si próprio que quando tivesse acabado, ela nunca mais lhe atiraria nenhuma garrafa. Acelerou na estrada de terra batida até chegar

à

estrema

da sua propriedade e aí virou para um caminho lateral, ape­ nas suficiente largo para o automóvel p assar, e avançou aos solavancos pelo bosque ao longo de oitocentos metros. Parou o carro no sítio exacto onde tinha visto Pitts bater-lhe com o cinto. Era um local onde a estrada alargava de forma a pode­ rem passar dois carros ou um carro poder fazer inversão de marcha, um local feio, avermelhado e careca rodeado de pinheiros compridos e esguios que pareciam estar ali reuni­ dos para presenciar tudo o que acontecesse nessa clareira. Algumas pedras rompiam do b arro . «Sai», disse ele e esticou-se por cima dela e abriu a porta. Ela saiu sem olhar para ele ou perguntar o que iam fazer e ele saiu do lado dele e deu a volta pela frente do carro. «Agora vou dar-te uma surra !», disse ele e a sua voz era muito alta e oca e possuía uma qualidade vibratória que parecia subir e ser transpo rtada através das copas dos pinhei­ ros. Ele não queria ser apanhado numa chuvada enquanto a

A VISTA DOS BOSQUES 8 5 açoitava e disse, «Despacha-te e encosta-te àquela árvore», e começou a tirar o cinto. Aquilo que ele tencionava fazer pareceu surgir muito len­ tamente como se tivesse que atravessar um nevoeiro dentro da cabeça dela. Ela não se mexeu, mas pouco a pouco a sua expressão confusa começou a desaparecer. Enquanto que alguns segundos atrás o rosto dela tinha estado afogueado e distorcido e sem organização, agora esvaziava-se dos míni­ mos traços até nada restar nele a não ser a convicção plena, uma expressão que passara lentamente pela determinação e alcançara a certeza. «Nunca ninguém me bateU», disse ela, «e se alguém o tentar, eu mato-o.» «Não quero cá má-criação», disse o avô e começou a diri­ gir-se para ela. Sentia os joelhos muito hesitantes, como se estes pudessem virar quer para a frente quer para trás. Ela recuou um passo apenas e, mantendo o olhar fixo nele, tirou os óculos e deixou-os cair atrás de uma p equena rocha perto da árvore onde ele lhe tinha dito para se encos­ tar. «Tire os óculos», disse ela. «Não me dês ordens !», disse ele numa voz aguda e bateu­ -lhe desaj eitadamente nos tornozelos com o cinto. Ela atirou-se a ele tão depressa que lhe seria impossível lembrar-se que golpe sentiu primeiro, se o peso de todo o seu corpo sólido, se os pontapés, se os murros do punho dela no seu peito . Ele zurziu o cinto no ar, sem saber onde bater mas tentando livrar-se dela até conseguir decidir onde agarrá-la. «Larga !», gritou ele. «Larga, j á disse !» Mas ela parecia estar em toda a parte, atacando-o de todas as direcções ao mesmo tempo . Era como se estivesse a ser atacado não por uma criança, mas por um b ando de pequenos demónios, todos com sap atos castanhos práticos e resistentes e pequenos punhos como pedras. Os óculos dele voaram para o lado. «Eu disse-lhe para os tirar», rosnou ela sem se deter. O Fortune agarrou-se ao j oelho e dançou num pé, e uma chuva de golpes caiu-lhe sobre o estômago. Sentiu cinco gar­ ras na carne do antebraço onde ela se pendurava enquanto os

8 6 ü'CONNOR pés lhe martelavam mecanicamente os joelhos, e o pulso livre o esmurrava repetidamente no peito. Então com horror viu­ -lhe a cara erguer-se em frente da dele, com os dentes à mos­ tra, e ele rugiu como um touro quando ela lhe mordeu o lado da queixada. Pareceu-lhe ver a sua própria cara aproxi­ mando-se para lhe morder de vários lados ao mesmo tempo mas não p odia acudir-lhes pois estava a ser pontapeado indiscriminadamente, no estômago e a seguir no baixo-ven­ tre. De repente, atirou-se p ara o chão e começou a rebolar como um homem em chamas. Ela atirou-se p ara cima dele instantaneamente, rebolando com ele e continuando a dar pontapés, e agora com ambos os punhos livres para lhe esmurrar o peito. «Eu sou velho !»,

disse ele com uma voz esganiçada.

«Deixa-me ! » Mas ela não se deteve. Iniciou um novo assalto ao maxilar dele. «Pára, pára !», disse ele sem fôlego. « Sou teu avô .» Ela parou, com a cara exactamente por cima da dele. Um olho pálido idêntico olhava para um olho pálido idêntico. dá teve que chegasse?», perguntou ela. O velho levantou os olhos para a sua própria imagem. Estava triunfante e hostil. «Você apanhou», disse, «de mim», e depois acrescentou, martelando cada palavra, «e eu sou uma Pitts CEM POR CENTO.» Na pausa ela afrouxou a pressão e o homem aproveita para lhe agarrar o pescoço. Com uma súbita onda de energia, conseguiu virar-se e inverter as posições de forma que ele ficou a olhar para baixo para o rosto que era o seu mas que tinha tido a ousadia de chamar a si próprio Pitts. Com as mãos ainda cerradas à volta do pescoço dela, ele ergueu-lhe a cabeça e b ateu-a com força uma vez contra a rocha que, por acaso, se encontrava por baixo dela. Malhou com a mesma p arte mais duas vezes. Depois, olhando para o rosto no qual os olhos, rolando lentamente para trás, p areciam não lhe prestar a menor atenção, disse: «Não existe um só pingo de Pitts em mim.»

A VISTA DOS BOSQUES 8 7 Continuou a olhar fixamente p ara a sua imagem conquis­ tada até se aperceber que, embora estivesse absolutamente silenciosa, não apresentava a mínima expressão de remorso. Os olhos tinham rolado de novo para baixo e estavam imó­ veis num olhar fixo que não se apercebia da presença dele. «Isto deve ensinar-te uma boa lição», disse o velho numa voz que apresentava um fio de dúvida. Conseguiu levantar-se com dificuldade sobre as pernas pontapeadas e inseguras e dar dois passos, mas a dilatação do seu coração, que se tinha iniciado no carro, persistia ainda. Virou a cabeça e olhou para trás de si durante muito tempo para a pequena figura imóvel, com a cabeça em cima da rocha. Depois caiu de costas e olhou para cima, desamparado, seguindo os troncos nus até

à

copa dos pinheiros e o coração

expandiu-se de novo com um movimento convulsivo. A pro­ pagação deu-se tão rapidamente que o velho sentia como se estivesse a ser puxado por ele através dos bosques, como se estivesse a correr, tão rapidamente quanto lhe era p ossível, juntamente com os pinheiros disformes em direcção ao lago. Apercebia-se que haveria

ali uma pequena abertura, um

pequeno espaço por onde p oderia escapar deixando os bosques para trás. Conseguia já vê-la na distância, uma pequena aber­ tura onde o céu branco se reflectia na água. Crescia

à

medida

que ele corria na sua direcção até que de repente todo o lago se abriu diante de si, deslocando-se majestosamente em peque­ nas dobras onduladas em direcção aos seus pés. De repente, tomou consciência de que não sabia nadar e que não tinha comprado o barco. De ambos os lados viu que as árvores esqueléticas tinham engrossado e se tinham tomado fileiras escuras e misteriosas que marchavam sobre a água e se afas­ tavam na distância. Olhou em redor procurando desesperada­ mente alguém que o ajudasse mas o local estava deserto

à

excepção de um enorme monstro amarelo que estava sentado a um lado, tão imóvel quanto ele, empanturrando-se de barro.

O CALAFRIO PERMANENTE O comboio de Asbury parou num ponto que permitiu o rapaz se apear exactamente no sítio onde a mãe, de pé, o esperava. A cara dela, magra e de óculos, abaixo dele, estava iluminada por um sorriso largo que desapareceu quando o viu tentando apoiar-se por detrás do revisor. O sorriso desvaneceu-se tão repentinamente, e a expressão chocada que o substituiu era tão absoluta, que o filho se apercebeu pela primeira vez de que deveria parecer tão doente quanto realmente estava. O céu exibia um cinzento arrepiado e um surpreendente sol de ouro branco, como o símbolo de um estranho potentado do oriente, erguia-se

por

detrás

dos

bosques

negros

que

rodeavam

Timberboro. Lançava uma luz estranha sobre o único bloco de barracões de piso térreo construídos em madeira e tij olo. Asbury sentiu que estava prestes a presenciar uma transfor­ mação majestosa, que os telhados planos poderiam a qualquer momento transformar-se nas torres altaneiras de um qualquer templo exótico a um deus que ele desconhecia. A ilusão durou apenas um momento antes da sua atenção ser de novo atraída p ela mãe. A senhora tinha deixado escapar um pequeno grito ; pare­ cia horrorizada. Asbury sentiu-se satisfeito por ela ver de ime­ diato a morte espelhada no seu semblante. A mãe, aos ses-

90 o'CONNOR senta anos, ia entrar em contacto com a realidade e ele achava que, se a experiência a não destruísse, a ajudaria a crescer. D esceu e cumprimentou-a. «Não estás com muito bom aspecto», disse ela, e lançou-lhe um longo olhar clínico. «Não me apetece falar», disse ele imediatamente. «A via­ gem foi péssima.» Mrs. Fox reparou que ele tinha o olho esquerdo raiado de sangue. Estava inchado e pálido e o cabelo apresentava j á umas entradas terríveis para u m rapaz d e vinte e cinco anos. O tufo estreito e arruivado que restara no cimo apontava p ara baixo numa linha que parecia prolongar-lhe o nariz e dar-lhe uma expressão irritada que combinava com o seu tom de voz sempre que falava com ela. «Devia estar frio aí em cima», disse ela. «Por que é que não despes o casaco? Aqui em baixo não está frio.» «Não precisa de me dizer que temperatura está !», disse ele numa voz aguda. «Tenho idade suficiente para saber quando quero despir o casaco !» O comboio afastou-se deslizando silenciosamente por trás dele, deixando

à

vista os blocos

gémeos de armazéns delapidados. Ficou a olhar a mancha de alumínio que desap arecia nos bosques. Parecia-lhe que o der­ radeiro elo que o unia a um mundo mais vasto se desvanecia para sempre. Depois voltou-se e encarou a mãe com acrimó­ nia, aborrecido por se ter permitido, ainda que por um momento

apenas,

fantasiar um

templo

imaginário

neste

entroncamento rural em ruínas. Tinha-se habituado comple­ tamente

à

ideia da morte, mas não se tinha acostumado

ideia de morrer

à

aqui.

Tinha sentido o fim aproximar-se ao longo de quase qua­ tro meses. Sozinho no seu apartamento gelado, encolhido de­ baixo dos seus dois cobertores e do sobretudo e com três cama­ das do

New York Times no meio, sentira um arrepio uma noite,

seguido de uma sudação violenta que deixou os lençóis enso­ pados e lhe afastou quaisquer dúvidas respeitantes

à

sua ver­

dadeira condição. Antes disso tinha sentido uma diminuição

O CALAFRIO PERMANENTE 9 1 gradual na energia e cada vez mais dores - de cabeça e não só - vagas e inconsistentes. Faltou tantos dias ao emprego

part-time na livraria que o acabou por perder. D esde

em

então vivera, ou sobrevivera, apenas das suas economias ; e estas, diminuindo de dia p ara dia, tinham sido tudo o que o protegia da família. Agora não restava nada. Estava de volta às origens. « Onde está o carro?», murmurou. «Está acolá», disse a mãe. «E a tua irmã está a dormir no banco de trás porque eu não gosto de sair tão cedo sozinha. Não há necessidade de acordá-la.» «Não», disse ele, «não agitemos as águas.» Agarrou nas duas malas a abarrotar e começou a atravessar a estrada com elas. Eram demasiado pesadas para ele e, ao chegar ao carro, a mãe viu que o filho estava exausto. Nunca antes tinha vindo a casa com duas malas. D esde a altura em que partira para a universidade, tinha sempre regressado apenas com o estrita­ mente necessário para uma estadia de duas semanas e uma expressão fechada e resignada que revelava estar preparado para aguentar a visita durante catorze dias unicamente, nem mais um. «Trouxeste mais do que o habitual», observou ela, mas ele não respondeu. Abriu a porta do carro e içou as duas malas para o espaço ao lado dos pés erguidos da irmã, lançando, primeiro aos pés - que calçavam sapatos rasos de sufragista inglesa - e depois ao resto, um olhar de reconhecimento e animosidade. A mulher estava aconchegada dentro de um fato preto, e tinha um trapo branco à volta da cabeça com rolos de metal a espreitarem por baixo. Os olhos estavam fechados e a boca aberta. Ele e ela possuíam as mesmas feições mas as dela eram maiores. Ela era oito anos mais velha do que ele e directora da escola básica do município. Fechou a porta devagar para não a acordar e depois deu a volta e sentou-se no lugar da frente e fechou os olhos. A mãe fez marcha-atrás, e, poucos minutos depois, ele sentiu o carro virar e entrar na estrada principal. Nessa altura,

9 2 ü'CONNOR abriu os olhos. A estrada estendia-se entre dois campos amplos de ambrósia-americana amarela. «Achas que Timberboro melhorou?», perguntou a mãe. Esta era a sua pergunta p adrão, que devia ser tomada literalmente. «Ainda existe, não é?», disse ele numa voz desagradável. «Dois dos armazéns têm fachadas novas», disse ela. Depois, com uma ferocidade repentina, disse : «Fizeste bem em voltar para casa, onde podes ser visto por um bom médico ! Vou levar-te ao Doutor Block esta tarde.» «Eu não vou», disse ele, tentando evitar que a voz lhe tre­ messe, «ao D outor Block. Nem esta tarde nem nunca. Não acha que se eu quisesse ir a um médico teria ido lá no Norte, onde há bons médicos? Não sabe que em Nova Iorque há melhores médicos do que aqui?» «Ele interessar-se-ia pessoalmente por ti», elucidou ela. «Nenhum desses médicos lá no Norte se interessaria pessoal­ mente por ti.» «Eu não quero que ele se interesse pessoãlmente por mim.» Depois, passado um minuto, olhando além, para um campo arroxeado e enevoado, disse, «Ü meu problema transcende completamente o Block», e a sua voz esmoreceu até se tomar num som esfiapado, quase um soluço. Não estava prep arado, como o seu amigo Goetz lhe reco­ mendara, para encarar tudo como uma ilusão. Nem tudo o que se passara antes, nem as poucas semanas que ainda lhe restavam. Goetz tinha a certeza de que a morte não era abso­ lutamente nada. Goetz tinha regressado de seis meses no Japão tão suj o como sempre mas tão condescendente como o próprio Buda. Encarou a noticia da aproximação do fim de Asbury com uma indiferença calma. Parafraseando alguma coisa, diss e : «Embora o Bodhisattva guie um número infinito de criaturas até ao

nirvana, na realidade não existem nem

Bodhisattvas para serem guias, nem criaturas p ara serem guiadas. » No entanto, graças a uma vaga preocupação pelo seu bem-estar, Goetz contribuiu com quatro dolares e cin­ quenta cêntimos para o levar a uma p alestra cuj o tema era

O CALAFRIO PERMANENTE 9 J

Vedanta. Foi dinheiro mal gasto. Enquanto Goetz ouvia enfei­ tiçado o homenzinho escuro em cima do estrado, o olhar ente­ diado de Asbury passeava-se pelo público. Sobrevoara as

sari, de um j ovem j aponês, de um homem preto retinto envergando um fez, e de várias rapa­ cabeças de várias raparigas de

rigas com o aspecto de secretárias. Por fim, na extremidade da fila, pousou os olhos numa figura de negro, magra e de ócu­ los, um padre. A expressão do padre era de um interesse deli­ cado mas estritamente reservado. Asbury identificou imedia­ tamente os seus próprios sentimentos na expressão tacituma e superior. Quando o colóquio terminou, um grupo de estu­ dantes, entre eles o padre, reuniu-se no apartamento de Goetz, mas o homem de preto continuou a manifestar-se reservado. Ouviu com marcada delicadeza a discussão acerca da morte eminente de Asbury, mas falou pouco. Uma rapariga de

sari

observou que a auto-realização estava fora de questão j á que significava salvação e a palavra não tinha sentido. «A salva­ ção», parafraseou Goetz, «é a destruição de um simples pre­ conceito, e ninguém se salva.» «E o que é que você diz a isto?», perguntou Asbury ao padre e retribuiu o seu sorriso reservado por sobre a cabeça dos outros. A fímbria deste sorriso parecia tocar uma claridade gelada. «Existe», disse o padre, «uma probabilidade real da exis­ tência do Homem Novo, assistido, claro», acrescentou ele de forma insegura, «pela Terceira Pessoa da Trindade.» «Ridículo !», retrocou a rapariga do

sari, mas o padre ape­

nas a roçou com o seu sorriso, que se mostrava agora ligeira­ mente divertido. Quando se levantou para sair, entregou em silêncio um pequeno cartão a Asbury no qual tinha escrito o seu nome, Ignatius Vogle, S. J., -, e uma morada. Talvez, pensou Asbury agora, devesse tê-lo usado ; pois o padre parecia-lhe um homem do mundo, alguém que teria entendido a singular tra­ gédia da sua morte, uma morte cuj o significado transcendia completamente o grupo palrador que os rodeava depois da

94 o'CONNOR conferência. E claro, transcendia Block ainda mais ! «Ü meu problema», repetiu, «transcende completamente o Block.11 A mãe percebeu logo o que ele queria dizer: queria dizer que ia ter um colapso nervoso. Escolheu não proferir uma p alavra. Escolheu não dizer que era precisamente isto que ela poderia ter dito que ia acontecer. Quando as pessoas pensam que são inteligentes - mesmo quando são inteligentes - não há nada que os outros possam dizer-lhes p ara lhes permitir ver as coisas correctamente, e o problema de Asbury era que, para além de ser inteligente, possuía um temperamento artístico. Não sabia onde é que o rapaz tinha ido buscá-lo porque o pai dele, que era advogado, homem de negócios e agricultor e político tudo num só, sempre tivera os pés bem assentes na terra ; de igual modo, também ela sempre tivera os seus bem firmados. Depois da morte dele, tinha conseguido que ambos os filhos tirassem um curso superior e que fossem ainda mais longe ; mas depois verificou que, quanto mais estudavam, menos sabiam fazer. O pai deles, pelo contrário, tinha fre­ quentado uma escola apenas com uma sala de aula até ao oitavo ano e conseguia fazer o que quer que fosse. Poderia ter dito a Asbury o que certamente o ajudaria. Poderia ter dito, por exemplo : •Se saísses para o ar livre, ou se trabalhasses durante um mês na vacaria, serias uma pessoa diferente !» ; mas sabia exactamente como seria recebida tal sugestão. O filho seria um estorvo na vacaria, mas ela deixá­ -lo-ia trabalhar lá se ele quisesse. Tinha-o deixado trabalhar lá no ano anterior, quando ele veio passar os seus quinze dias a casa e estava a escrever a peça. Era uma peça sobre pretos (porque é que alguém quereria escrever uma peça sobre pretos, isso transcendia-a) e, nessa altura, disse que queria trabalhar na vacaria com eles e perceber as coisas pelas quais se interes­ savam. O que lhes interessava era fazerem o menos que lhes fosse permitido, como ela podia ter-lhe dito logo, se alguém conseguisse dizer-lhe alguma coisa. Os pretos tinham-no tole­ rado e ele tinha aprendido a colocar as máquinas da ordenha e uma vez tinha lavado todas as latas e houve uma altura em

O CALAFRIO PERMANENIE 9 5 que ela suspeitou de que ele misturava a ração. Depois uma vaca dera-lhe um coice e ele não voltara a entrar no estábulo. Ela sabia que se ele lá entrasse agora, ou se saísse e conser­ tasse cercas, ou fizesse qualquer tipo de trabalho - trabalho a sério, não escrever - poderia evitar o colapso nervoso. «Afinal o que é que aconteceu àquela peça que estavas a escrever sobre os pretos?», perguntou ela. «Eu não estou a escrever peças», disse ele. «E meta isto na sua cabeça : eu não vou trabalhar em vacaria nenhuma. Eu não vou sair para o ar livre. Eu estou doente. Eu tenho febre e arre­ pios, sinto vertigens e tudo o que quero é que me deixe em paz.» «Então se estás mesmo doente, devias ir ao Doutor Block.» «E eu não vou ao D outor Block», concluiu ele e afundou­ -se no assento e olhou intensamente à sua frente. A mãe virou p ara a sua entrada, uma estrada vermelha que se estendia ao longo de 400 metros e atravessava as duas pas­ tagens da frente. As vacas que não davam leite estavam de um lado e a manada leiteira do outro. Abrandou e por fim parou por completo, tendo-lhe captado a atenção uma vaca com as pernas traseiras afectadas. «Não têm tratado bem dela», obser­ vou, com ar de grande conhecimento de causa. <
9 6 o ' CONNOR «Ü que é que ele tem?», perguntou Mary George. «Lá está a casa !», disse a mãe como se todos fossem cegos menos ela. Erguia-se no cimo da colina - uma casa agrícola branca de dois andares com um alpendre largo e colunas agradáveis. Ela aproximava-se sempre da casa com um senti­ mento de orgulho e tinha dito mais do que uma vez a Asbury: «Tens aqui uma casa pela qual metade das pessoas lá do Norte dariam um braço !» Tinha visitado uma vez o sítio horrível onde ele vivia em Nova Iorque. Subiram juntos cinco andares de degraus de pedra escura, passando por caixotes do lixo destapados em todos os patamares, para chegar finalmente a dois comparti­ mentos húmidos e mais um armário com uma casa de banho dentro. «Não viverias assim em casa», tinha ela murmurado. «Não !», tinha dito ele com uma expressão absorta, «seria impossível !» A mãe imaginava que o que se passava era que ela, sim­ plesmente, não compreendia o que sentia alguém sensível ou como era excêntrica uma pessoa que fosse artista. A irmã dizia que ele não era artista nenhum e que não tinha talento e que esse era o problema del e ; mas Mary George também não era uma rapariga feliz. Asbury dizia que ela se fazia passar por intelectual mas que o seu Q.I. não devia ultrapassar os setenta e cinco, e que tudo o que lhe interessava era arranjar um homem mas que nenhum homem sensato olharia para ela duas vezes. A mãe tentou dizer-lhe que Mary George podia ser muito atraente quando se dispunha a isso, e ele respondeu que esse esforço mental a destruiria. Se ela fosse minimamente atraente, dissera ele, não seria agora directora de uma escola básica municipal, e Mary George tinha dito que se Asbury tivesse algum talento, teria já publicado alguma coisa. O que é que ele tinha publicado, queria ela saber, e já agora, o que é que ele tinha sequer escrito? Mrs. Fox fizera notar que ele tinha apenas vinte e cinco anos e Mary George dissera que a idade com a qual a maior parte das pessoas publicava alguma coisa era aos vinte e um,

O CALAFRIO PERMANENfE 9 7 o que fazia c o m que ele o devesse ter feito há j á quatro anos. Mrs. Fox não estava a par dessas minudências, mas alvitrou que ele poderia estar a escrever um livro

grande. Livro muito

grande uma ova, disse Mary George, ele já se saía bem se pro­ duzisse sequer um poema. Mrs. Fox esperava que não fosse apenas

um poema.

Estacionou o carro na passagem ao lado da casa e um bando de galinhas-do-mato espalhou-se voando e piando em volta da casa. «De novo em casa, de novo em casa, iupih>, exclamou a mãe. «Santo Deus», gemeu Asbury. «0 artista chega à câmara de gás», disse Mary George na sua voz nasalada. Ele apoiou-se na porta e saiu e, esquecendo as malas, diri­ giu-se à parte da frente da casa como que num torpor. A irmã saiu e ficou ao lado da porta do carro, fitando de olhos semi­ cerrados a sua figura curvada e insegura. Ao vê-lo subir os degraus da frente, a boca descaiu-lhe na cara espantada. «Bem», disse, «passa-se

alguma coisa com ele. Parece que tem

cem anos.» «Eu não te disse?», sibilou a mãe. «Agora vê se te calas e deixa-o em paz.» Ele entrou em casa, parando no vestíbulo apenas o tempo suficiente para observar a sua face p álida e devastada a fitá­ -lo por um instante a partir do espelho na p arede. Segurando-se ao corrimão, arrastou-se pelas escadas íngremes acima, pelo p atamar e depois pelo segundo lance de escadas, mais curto, e entrou no quarto, um compartimento amplo e arej ado com um tapete azul desbotado e cortinas brancas recente­ mente colocadas em sua honra. Sem olhar p ara nada, caiu de barriga p ara baixo na cama que tinha como sua. Era uma cama antiga e estreita com uma cabeceira ornamental alta, onde estava esculpido um cesto com um festão a transbordar de frutos de madeira. Enquanto ainda estava em Nova Iorque, tinha escrito à mãe uma carta que enchia dois blocos de notas. Não preten-

9 8 ü 'CONNOR dia que fosse lida senão após a sua morte. Era uma carta semelhante

à

que Kafka dirigira ao pai. O pai de Asbury

tinha morrido havia vinte anos e Asbury considerava o facto uma enorme benção. Tinha a certeza de que o velho perten­ cera ao b ando do tribunal, um rústico proeminente envol ­ vido e m todos os assuntos de forma desonesta, e e l e sabia que não teria conseguido suportá-lo. Leu alguma da sua cor­ respondência e ficou horrorizado com a estupidez de tudo aquilo. Ele sabia, claro, que a mãe não perceberia a carta de ime­ diato . O seu pensamento literal necessitaria de algum tempo para apreender o significado, mas achava que ela conseguiria perceber que lhe perdoava tudo o que lhe tinha feito naquele sítio. Quanto a isso, supunha que ela tomaria consciência do que lhe tinha feito apenas através da carta. Achava que ela não tinha qualquer consciência disso. A satisfação consigo própria era quase inconsciente ; mas, através da carta, poderia experimentar uma tomada de consciência dolorosa e isso seria a única coisa de valor que tinha para deixar. Se lê-la ia ser doloroso para ela, escrevê-la tinha por vezes sido insuportável p ara ele - pois para a confrontar, ele tinha tido que se confrontar a si mesmo. «Eu vim para cá para esca­ par

à

atmosfera esclavagista dessa casa», tinha escrito, «para

descobrir a liberdade, para alforriar a minha imaginação, para retirá-la, como se de um falcão se tratasse, da sua gaiola e pô­ -la ' a rodopiar na espiral que se dilata' (Yeats ) e o que é que descobri? A minha imaginação é incapaz de voar.

É

um pás­

saro que a mãe domesticou, encolhido, cheio de medo, no seu galinheiro, recusando-se a sair !» As palavras seguintes esta­ vam sublinhadas duas vezes. «Não tenho imaginação. Não possuo talento. Não consigo criar. Não possuo nada a não ser a ânsia por estas coisas. Por que não matou isso também? Mulher, porque me manietou?» Ao escrever isto, atingiu o âmago do desespero e pensou que, ao lê-lo, a mãe iria pelo menos começar a aperceber-se da tragédia dele e do papel que ela tinha desempenhado. Não

O CALAFRIO PERMANENTE 9 9 que e l a lhe tivesse alguma vez imposto os seus valores. Isso nunca foi sequer necessário. Os valores dela foram simples­ mente o ar que ele respirou, e quando por fim ele encontrou outro ar, não conseguiu sobreviver nele. Sentia que mesmo que ela não percebesse de imediato, a carta deixá-la-ia com um calafrio constante, e talvez com o tempo a levasse a ver­ -se a si própria tal como era. O artista sem imaginação destruiu tudo o mais que alguma vez escrevera - os dois romances sem vida, a meia dúzia de peças p aradas, os poemas fastidiosos, os contos mal esboça­ dos - e guardara apenas os dois blocos que continham a carta. Estavam dentro da mala que a irmã, irritada e a arque­ jar, vinha agora a arrastar pelo segundo lance de escadas.

A

mãe trazia a mala mais pequena e entrou primeiro. Ele

virou-se quando ela entrou no quarto. «Vou abrir isto e tirar as tuas coisas para fora», disse ela, «e tu podes meter-te j á na cama e dentro de alguns minutos trago-te o pequeno-almoço. » E l e ergueu-se na cama e disse numa voz irritada : « E u não quero o pequeno-almoço e posso abrir a minha própria mala. Deixa estar isso.» A irmã chegou à porta, a cara cheia de curiosidade, e dei­ xou cair a mala preta com um baque na soleira da porta. Depois começou a empurrá-la pelo quarto com o pé até estar suficientemente perto para vê-lo bem. «Se eu estivesse tão mal-encarada como tu», disse, «ia ao hospital.» A mãe lançou-lhe um olhar de aviso e ela saiu. Em seguida,

Mrs.

Fox fechou a porta, dirigiu-se à cama e sentou­

-se ao lado dele. «Bem, desta vez quero que prolongues a tua visita e descanses», disse ela. «Esta visita», disse ele, «será permanente. » « Q u e maravilha !», gritou ela. «Podes ter um pequeno estú­ dio no teu quarto e todas as manhãs podes escrever p eças e à tarde podes ajudar na vacaria!» Ele voltou para ela uma face branca e imp assível. «Feche as p ersianas e deixe-me dormir», disse.

1 00 ü'CONNOR Depois de ela sair, ele ficou durante algum tempo a fitar as manchas de humidade nas paredes cinzentas. A p artir do bolor no alto, tinham sido esboçadas pelas infiltrações formas com­ pridas de pingentes ; e no tecto, exactamente por cima da cama, outra infiltração tinha desenhado um pássaro feroz de asas abertas. Tinha um pingente atravessado no bico e havia pin­ gentes mais pequenos dependurados das suas asas e cauda. Estava ali desde a sua infância e sempre o irritara e por vezes assustara. Tivera frequentemente a impressão de que estava em movimento e prestes a descer misteriosamente e a colocar o pingente na sua cabeça. Fechou os olhos e pensou : não vou ter que olhar para ele por muitos mais dias. E em breve adormeceu.

Quando acordou à tarde, havia uma cara rosada de boca aberta e debruçada sobre ele ; e, a partir de duas grandes ore­ lhas que lhe eram bem conhecidas, os tubos pretos do estetos­ cópio de Block desciam até ao seu peito nu. O médico, vendo que ele estava acordado, fez uma careta como a de um chinês, rolou os olhos quase para fora da cara e gritou : «Diz AHIIllH !» Block era irresistível para as crianças. Num raio de quiló­ metros, elas vomitavam e tinham febre para receber a sua visita. Mrs. Fox encontrava-se atrás dele, sorrindo de forma radiosa. «Aqui está o D outor Block !», anunciou como se tivesse capturado este anj o no telhado para trazê-lo ao seu menino. «Leve-o daqui», murmurou Asbury. Olhou para a cara asi­ nina a partir do que p arecia ser um buraco negro. O médico olhou mais atentamente, mexendo as orelhas. Block era careca e tinha uma face redonda tão estúpida quanto a de um bebé. Nada nele indicava inteligência excepto dois olhos frios, clínicos e cor de níquel que se focavam com uma curiosidade imóvel em tudo o que ele fixasse. «Não há dúvida que estás com mau aspecto, Azzberry», murmurou ele. Retirou o estetoscópio e deixou-o cair na maleta. «Não me lembro da última vez que vi alguém da tua idade parecer tão mal quanto tu. O que tens andado a fazer à tua saúde?»

O CALAFRIO PERMANENTE 1 0 1 Havia um pulsar constante n a parte posterior d a cabeça de Asbury como se o coração lhe tivesse ficado aí encurralado e lutasse para se libertar. «Eu não o mandei chaman>, disse. Block colocou a mão na face luzidia, puxou a pálpebra para b aixo e espreitou lá p ara dentro . «D eves ter andado na farra l á pelo Norte», aventou. Começou a pressionar com a mão a p arte p osterior do pescoço de Asbury. «Eu cheguei a ir até lá uma o casião», continuou, «Vi exactamente o pouco que eles tinham para o ferecer e regressei logo a casa. Abre a boca.» Asbury abriu- a automaticamente e o olhar semelhante a uma broca voltou-se e caiu sobre ela. Ele fechou-a de repente e disse numa voz ofegante e permeada por silvos, «Se eu qui­ sesse um médico, teria ficado lá pelo Norte onde poderia ter arranj ado um bom médico !» «Asbury!», interpôs a mãe. «Há quanto tempo tens a garganta inflamada?», perguntou Block. «Ela é que o mandou chamar!», disse Asbury. «Ela que res­ ponda às perguntas.» «Asbury !», advertiu a mãe. Block inclinou-se sobre a maleta e tirou um tubo de borra­ cha. Empurrou a manga de Asbury para cima e atou o tubo à volta do antebraço. Depois tirou uma seringa e preparou-se para encontrar a veia, trauteando um cântico enquanto enfiava a agulha. Asbury jazia com um olhar duro e ultrajado enquanto a privacidade do seu sangue era invadida por este idiota. «Lentamente, Senhor, mas com segurança», cantou Block numa voz sussurrada, «Oh, lentamente, Senhor, mas com segurança.» Retirou a agulha quando a seringa ficou cheia. «Ü sangue não mente», disse. Esvaziou-a para um frasco, rolhou-o e colocou o frasco na maleta. «Azzberry», começou ele, «há quanto tempo ... » Asbury ergueu-se e atirou para a frente a cabeça que lhe pulsava e disse : «Eu não o mandei chamar. Não vou respon­ der a nenhuma pergunta. Você não é meu médico. O meu pro­ blema transcende-o completamente.»

1 02 o ' CONNOR «A maior parte das coisas transcendem-me», disse Block. «Não encontrei ainda nada que compreenda totalmente», e suspirou e levantou-se. Os seus olhos pareciam brilhar em direcção a Asbury como se estivessem muito longe. «Ele não agiria de forma tão desagradável», explicou Fox, «se não estivesse mesmo doente.

E eu

Mrs.

quero que venha

cá todos os dias até o pôr bom.» Os olhos de Asbury ostentavam um violeta furiosamente faiscante. «0 meu p roblema transcende-o completamente», repetiu e voltou a deitar-se e fechou os olhos até Block e a mãe saírem.

Nos dias seguintes, embora piorasse rapidamente, a sua mente funcionava com uma clareza terrivel.

À beira

da morte,

encontrava-se a viver num estado de iluminação que não tinha nada a ver com o tipo de conversa que se via obrigado a ouvir da mãe. Essa versava principalmente vacas, que tinham nomes como D aisy e Bessie Button, e as suas funções íntimas - as suas mastites e as suas lombrigas e os seus abor­ tos. A mãe insistia que a meio do dia ele saísse e se sentasse no alpendre e «apreciasse a paisagem» ; e, como resistir-lhe exigia demasiado esforço, ele arrastava-se para o exterior e sentava-se hirto e prostrado, com ó s pés embrulhados num xaile de lã e as mãos agarradas aos braços da cadeira como se estivesse prestes a saltar para dentro do céu brilhante de um azul de porcelana. O relvado estendia-se ao longo de duzen­ tos e cinquenta metros quadrados até uma vedação de arame farpado que o separava da pastagem da frente. A meio do dia as vacas que não davam leite ficavam por ali, por baixo de uma fila de eucaliptos. Do outro lado da estrada havia duas colinas com uma lagoa entre elas e a mãe podia sentar-se no alpendre e ver a manada atravessar o reservatório dirigindo­ -se p ara a colina do outro lado. Toda a cena era emoldurada por uma parede de árvores que, na altura do dia em que ele era obrigado a sentar-se ali, apresentava um azul deslavado

O CALAFRIO PERMANENTE 1 0 3 que lhe recordava c o m tristeza os macacões desbotados dos pretos. Ele ouvia com irritação enquanto a mãe pormenorizava as falhas dos empregados. «Aqueles dois não são estúpidos», dizia ela. «Sabem como cuidar dos seus próprios interesses.» «Precisam de fazê-lo», murmurou ele, mas não valia a pena discutir com ela. No ano anterior estivera a escrever uma peça acerca de pretos e quisera estar perto deles durante uns tem­ pos para ver o que é que realmente sentiam em relação

à

sua

condição, mas os dois que trabalhavam p ara ela tinham per­ dido toda a iniciativa ao longo dos anos. Não falavam. O que se chamava Morgan tinha a pele castanha clara e uma parte de sangue índio ; o outro, mais velho, Randall, era muito preto e gordo. Quando lhe diziam alguma coisa, era como se esti­ vessem a falar para um corpo invisível localizado

à

à

direita ou

esquerda de onde ele realmente se encontrava, e após dois

dias a trabalhar lado a lado, o artista sentia que não tinha criado qualquer afinidade com eles. Decidiu tentar algo mais arroj ado do que a conversa e uma tarde, quando estava perto de Randall observando-o a ajustar uma máquina de ordenha, tirara os cigarros em silêncio e acendera um. O preto parou o que estava a fazer e observou-o. Esperou até que Asbu:ry tirasse duas passas e depois disse: «Ela não deixa que se fume aqui dentro.» O outro aproximou-se e ficou parado, a sorrir. «Eu sei», aquiesceu Asbu:ry e após fazer uma pausa delibe­ rada, abanou o maço e ofereceu-o, primeiro a Randall, que tirou um, e depois a Morgan, que tirou outro. Tinha-lhes depois acendido os cigarros e os três tinham ficado a fumar. Não havia outros sons a não ser o ruído constante das duas máquinas de ordenha e o chicotear ocasional da cauda de uma vaca contra o corpo. Era um desses momentos de comunhão durante os quais a diferença entre pretos e brancos se esfuma. No dia seguinte, duas l atas de leite tinham sido devolvidas pela fábrica de laticínios porque tinham absorvido o cheiro do tabaco. Asbury deu-se como culpado e disse

à

mãe que fora

1 04 o'CONNOR ele quem estivera a fumar e não os pretos. «Se tu estavas a fumar, eles estavam a fumar», disse logo ela. «Achas que eu não conheço aqueles dois?» A mulher era incapaz de conce­ ber que estivessem inocentes ; mas a experiência tinha-o delei­ tado de tal modo que estava decidido a repeti-la sob qualquer outra forma. Na tarde seguinte, quando ele e Randall estavam a despe­ j ar o leite fresco nas latas, ele tinha agarrado no copo de geleia que os pretos utilizavam para beber e, inspirado, tinha enchido um copo do leite quente e tinha-o bebido de um trago. Randall tinha parado de despejar e ficara, meio dobrado sobre a lata, a observá-lo. «Ela não deixa que se faça isso», disse. «Isso é exactamente o que ela

não deixa fazer. »

Asbury encheu outro copo de leite e estendeu-lho. «Ela não deixa», repetiu ele. «Ouve», disse Asbury asperamente, «O mundo está a mudar. Não há motivo para que eu não beba a seguir a ti e tu a seguir a mim !» «Ela não deixa nenhum de nós beber leite deste», reiterou Randall. Asbury continuou a estender-lhe o copo. «Tu aceitaste o cigarro», disse. «Toma o leite. A minha mãe não vai ficar pre­ judicada se perder dois ou três copos de leite por dia. Temos que pensar livremente, se quisermos viver livremente ! » O outro tinha aparecido e estava parado à porta. «Não quero leite nenhum desse», disse Randall. Asbury voltou-se e ofereceu o copo a Morgan. «Toma, rapaz, bebe isto», disse. Morgan fitou-o ; depois uma evidente expressão de manha espalhou-se-lhe no rosto. «Eu não o vi a si beber leite nenhum», afirmou. Asbury detestava leite. O primeiro copo de leite quente j á lhe tinha dado a volta a o estômago. B ebeu metade d o que segurava e estendeu o resto ao preto, que o agarrou e olhou para dentro do copo como se ele contivesse um grande misté­ rio ; depois colocou-o no chão perto do aparelho de frio.

O CALAFRIO PERMANENTE 1 0 5 «Não gostas d e leite?», perguntou Asbmy. «Gosto, mas não vou beber esse.» «Porquê?» «Ela não deixa», disse Morgan. «Meu Deus !», explodiu Asbu:ry, «ela, ela, ela !» Tentou o mesmo no dia seguinte, e no seguinte, e no seguinte, mas não conseguiu que eles bebessem o leite. Algumas tardes depois, quando estava no exterior da casa do leite preparando-se para entrar, ouviu Morgan p erguntar: «Porque é que o deixas beber aquele leite todos os dias?» « Ü que ele faz é com ele», disse Randall. «Ü que eu faço é comigo.» «Porque é que ele diz tanto mal da mãe?» «Ela não lhe bateu o suficiente quando ele era pequeno», disse Randall. A vida intolerável em casa tinha-o derrotado e regressara a Nova Iorque dois dias mais cedo que o previsto. No que lhe dizia respeito, já morrera por l á e a questão agora era saber quanto tempo aguentaria demorar-se por cá. Poderia ter apressado o seu fim, mas o suicídio não seria uma vitória. A morte vinha ter com ele legitimamente, como uma j ustifi­ cação, como um presente da vida. Esse era o seu maior triunfo. Para além disso, p ara as b o as mentes da vizinhança, um filho suicida indicaria uma mãe que tinha falhado e, embora fosse esse o caso, ele sentia que p o dia poupá-la a esta vergonha pública. O que ela aprendesse com a carta seria uma revelação p rivada. Selou os blocos num envelope grande e escreveu no exterior: «Para ser aberto apenas após a morte de Asbu:ry Porter Fox.» Colocara o envelope na gaveta da secretária no seu quarto e trancara-a e a chave encontrava-se no bolso do pij ama até conseguir escolher um local adequado p ara deixá-la. Quando se sentavam de manhã no alpendre, a mãe achava que devia falar durante algum tempo de assuntos que lhe inte­ ressassem. Na terceira manhã, começou a falar acerca da escrita dele. «Quando ficares bem de saúde», disse ela, «penso

1 0 6 O ' CONNOR que seria agradável escreveres um livro sobre o Sul. Preci­ samos de outro livro como

E Tudo o Vento Levou.»

Ele sentiu os músculos do estômago começarem a ficar tensos. «Mete-lhe a guerra», aconselhou ela. «Isso faz sempre alon­ gar um livro. » E l e recostou a cabeça c o m cuidado c o m o se tivesse medo que se partisse. Um momento depois, disse: «Eu não vou escre­ ver livro nenhum.» «Bom», disse ela, «Se não te apetece escrever um livro, podias apenas escrever poemas. São agradáveis.» Apercebeu­ -se que do que ele precisava era de alguém intelectual com quem conversar, mas Mary George era a única intelectual que a mãe conhecia e o filho recusava-se a falar com a irmã. Lembrou-se de Mr. Bush, o pastor Metodista reformado, mas não abordou o assunto. Agora, contudo, decidiu arriscar. «Acho que vou pedir ao Dr. Bush que venha ver-te», disse empolando o grau académico de Mr. Bush. «Havias de gostar da sua companhia. Ele colecciona moedas raras.» Não estava minimamente preparada para a reacção dele. O filho começou a tremer da cabeça aos pés e a soltar garga­ lhadas espasmódicas e sonoras. Parecia prestes a sufocar. Após um minuto, acalmou-se e começou a tossir. «Se pensa que eu preciso de ajuda espiritual para morrer», disse ele, «está muito enganada. E certamente não desse idiota do Bush. Meu Deus !» «Eu não queria dizer nada disso», j ustificou ela. «Ele tem moedas que datam do tempo de Cleópatra.» «Bem, se pedir que ele venha cá, eu mando-o ir para o inferno», garantiu ele. «Bush ! Essa ultrapassa tudo ! » «Fico muito satisfeita por haver alguma coisa que t e diverte», disse ela com mordacidade. Durante um tempo ficaram sentados em silêncio. Depois a mãe levantou a cabeça. Ele estava de novo inclinado para a frente e sorria-lhe. A sua fisionomia encontrava-se cada vez mais iluminada, como se acabasse de ter uma ideia brilhante. Ela olhou-o fixamente. «Eu digo-lhe quem quero que venha»,

O CALAFRIO PERMANENTE 1 07 disse ele. Pela primeira vez desde que chegara a casa, a expressão dele era agradável, embora tivesse também, pensou ela, um certo ar malandro. « Quem é que queres que venha?», perguntou, de pé atrás. «Quero um padre», anunciou ele. «Um padre?», a voz e o ar da mãe eram de completa incom­ preensão. «De preferência um Jesuíta»,

completou ele, entusias­

mando-se cada vez mais. «Sim, sem dúvida um Jesuíta. Encontra-os na cidade. Pode telefonar e arranj ar-me um.» «Ü que é que se passa contigo?», perguntou a mãe. «A maioria deles tem uma educação esmerada», disse ele, «mas os Jesuítas são à prova de estupidez. Um Jesuíta seria capaz de discutir alguma coisa sem ser o tempo.» Ele conse­ guia j á, trazendo à memória Ignatius Vogle, S.J., imaginar o padre. Seria um nadinha mais mundano, talvez, um nadinha mais cínico. Protegidos pela sua vetusta instituição, os padres podiam dar-se ao luxo de ser cínicos, de j o gar por ambos os lados contra o centro. Ele falaria com um homem de cultura antes de morrer - mesmo neste deserto ! Para além do mais, nada irritaria mais a mãe do que semelhante visita. Nem per­ cebia como é que não se lembrara disto antes. «Não és membro dessa Igreja», disse

Mrs.

Fox secamente.

«Fica a trinta quilómetros daqui. Eles não enviariam ninguém.» Tinha esperança de que isto pusesse um ponto final no assunto. Ele recostou-se absorvido pela ideia, determinado a forçá­ -la a fazer o telefonema já que ela fazia sempre o que ele que­ ria se ele insistisse, «Estou a morrer», disse ele, «pedi-lhe ape­ nas que me fizesse uma coisa e recusa-me isso.» «Tu NÃO estás a morrer.» «Quando se aperceber disso», disse ele, «será tarde demais.» Houve outro silêncio desagradável. Por fim, a mãe disse : «Nos dias de hoje, os médicos não

deixam os j ovens morrer.

Dão-lhes alguns desses medicamentos novos.» Começou a abanar o pé com uma segurança assustadora. «As pessoas j á não morrem como costumavam morrer», disse ela.

1 08 ü'CONNOR «Mãe», avançou ele, «tem que estar preparada. Acho que até o Block sabe e não lhe disse ainda.» Após a primeira visita, Block tinha voltado de todas as vezes com uma expressão fechada, sem piadas ou expressões cómicas, e tirara-lhe san­ gue em silêncio, com os seus olhos cor de níquel hostis. Era, por definição, grande o inimigo da morte, e parecia que se debatia agora com o artigo genuíno. Tinha dito que não o medicaria até saber qual era o problema e Asbury rira-se na cara dele. «Mãe», disse, «eu VOU morrer. », e tentou que cada palavra caísse como uma martelada sobre a cabeça dela. Ela empalideceu ligeiramente mas não pestanej ou. «Achas por um minuto», disse zangada, «que eu tenciono ficar aqui sentada e deixar que morras?» Os olhos dela estavam duros como duas velhas cadeias montanhosas observadas à distân­ cia. Ele sentiu o primeiro golpe inequívoco de dúvida. «Achas?», perguntou ela exasperada. «Eu acho que não tem nada a ver com isso», disse ele numa voz trémula. «Hum», disse ela e levantou-se saindo do alpendre como se não suportasse estar perto de uma tal estupidez nem mais um minuto. Esquecendo o Jesuíta, Asbury recapitulou rapidamente os seus sintomas : a febre tinha aumentado, acompanhada de arrepios ; mal tinha energia para se arrastar para o alpendre ; a comida repugnava-o ; e Block não conseguira dar-lhe a ela a mínima satisfação. Enquanto estava ali sentado, sentiu o iní­ cio de um novo calafrio, como se a morte estivesse já a cho­ calhar-lhe galhofeiramente os ossos. Tirou a manta dos pés e colocou-a à roda escada acima até

à

dos ombros e dirigiu-se vacilante pela cama.

Continuou a piorar. Nos dias que se seguiram enfraqueceu tanto e apo quentou-a de forma tão constante o pedido do Jesuíta que, finalmente desesperada, ela decidiu satisfazer-lhe o capricho. Telefonou, explicando numa voz reservada que o filho estava doente, talvez um pouco louco, e queria falar com um padre. Enquanto ela fazia o telefonema, Asbury estava

O CALAFRIO PERMANENTE 1 09 debruçado sobre

a b alaustrada,

descalço,

embrulhado

na

manta, e escutava. Quando ela desligou ele perguntou lá de cima quando vinha o padre. «Amanhã durante o dia», disse a mãe com irritação. Ele apercebia-se, pelo simples acto de ela ter feito o tele­ fonema, que a segurança da mãe estava a começar a ficar aba­ lada. Sempre que ela acompanhava Block

à

entrada ou

à

saída, havia muito bichanar no vestíbulo do andar de baixo. Nessa noite ele ouviu- a a falar com Mary George em voz baixa na sala. Pensou ter ouvido o seu nome e levantou-se indo em bicos de pés até ao vestíbulo e desceu os três primei­ ros degraus até conseguir ouvir as vozes distintamente. «Tive de chamar aquele padre», estava a mãe a dizer. «Re­ ceio que isto srja sério. Pensava que era apenas um colapso nervoso mas agora penso que é alguma coisa real. O D outor Block também pensa que é qualquer coisa real e sej a o que for é pior por ele estar tão fragilizado.» «Não sej a tão ingénua, mãe», disse Mary George, <� á lhe disse que, e digo-lhe mais uma vez : o problema dele é pura­ mente psicossomático.» Não havia nada em que ela não fosse perita. «Não», disse a mãe, «a doença é real.

É

o médico que o diz.»

O rapaz pensou detectar um tremor na voz dela. «Block é um idiota», disse Mary George. «Tem que encarar os factos: Asbury não consegue escrever por isso adoece. Vai ser um inválido em vez de um artista. Sabe de que é que ele precisa?» «Não», disse a mãe. «De dois ou três tratamentos de choque», determinou Mary George. «Tirar-lhe da cabeça aquela cisma de ser artista de uma vez por todas.» A mãe deu um gritinho e ele agarrou o corrimão. « Ouça-me com atenção», continuou a irmã, «tudo o que ele vai ser por aqui nos próximos cinquenta anos é um bibelô.» Ashbury voltou para a cama. Num certo sentido, ela tinha razão. Ele tinha traído o seu deus, a Arte, mas tinha sido um

1 1 0 ü ' CONNOR fiel servidor e a Arte enviava-lhe a Morte. Percebera tudo isto desde o início com uma espécie de claridade mística. Ador­ meceu pensando no canto tranquilo do talhão da família no cemitério onde descansaria em breve, e, pouco depois, viu o seu corpo ser transportado lentamente para lá enquanto a mãe e Mary George observavam sem interesse das suas cadeiras no alpendre. Enquanto o esquife era transportado na superfície da represa, elas podiam levantar a cabeça e ver a procissão re­ flectida de pernas para o ar na lagoa. Uma figura magra e escura com um cabeção seguia-a. Tinha uma misteriosa face saturnina na qual havia uma mistura subtil de ascetismo e de corrupção. Asbury era colocado numa campa pouco profunda no declive da colina e os acompanhantes indistintos, depois de terem permanecido de pé em silêncio durante algum tempo, dispersavam-se pelo verde que escurecia. O Jesuíta retirava-se para um local sob uma árvore morta para fumar e meditar. A Lua despontava e Asbury apercebia-se de uma presença que se inclinava sobre ele e de um calor suave na sua face fria. Sabia que era a Arte vinda para o acordar e então sentava-se e abria os olhos. Do outro lado da colina todas as luzes esta­ vam acesas na casa da mãe. A lagoa negra estava polvilhada por pequenas estrelas cor de níquel. O Jesuíta tinha desap are­ cido.

À

sua volta as vacas espalhavam-se pastando à luz da

lua e uma delas, branca e enorme, violentamente malhada, lam­ bia-lhe suavemente a cabeça como se esta fosse um bloco de sal. Acordou com uma tremura e descobriu que a cama estava encharcada do suor da noite e, ao sentar-se tremendo, no escuro, apercebeu-se de que o fim não estava a muitos dias de distância. Olhou para dentro da cratera da morte e caiu para trás, em cima da almofada, com uma vertigem. No dia seguinte, a mãe notou qualquer coisa de quase eté­ reo na sua face devastada. Parecia uma daquelas crianças moribundas que têm que celebrar o Natal mais cedo. Asbury endireitou-se na cama e dirigiu o reposicionamento de várias cadeiras no quarto e fê-la retirar um quadro de uma donzela acorrentada a uma rocha porque sabia que aquilo faria sorrir

O CALAFRIO PERMANENTE 1 1 1 o Jesuíta. Fez com que a cadeira de baloiço confortável fosse retirada dali, e, quando terminou, o quarto, com as suas man­ chas austeras nas paredes, possuía certas características evo­ cativas de uma cela. Sentiu que agradaria ao visitante. Esperou toda a manhã, olhando irritadamente para o tecto onde o pássaro com o pingente no bico parecia suspenso e aguardando também ; mas o padre não chegou até a tarde j á i r avançada. Logo que a m ã e abriu a porta, uma v o z alta e ininteligível começou a ribombar no vestíbulo do andar de b aixo .

O

coração

de

Asbury

b atia

desenfreadamente.

Segundos depois ouvia-se um ranger pesado nas escadas. De seguida, quase de imediato, a mãe entrou com uma expressão constrangida, seguida por um velho pesado que atravessou resolutamente o quarto, agarrou numa cadeira que estava ao lado da cama e a colocou sob si. 11Sou o Padre Finn - do Purgatório», apresentou-se ele numa voz bem disposta. Tinha um rosto vermelho enorme, uma espessa cabeleira de cabelo grisalho e era cego de um dos olhos, mas o olho saudável, azul e cristalino, focava-se com nitidez em Asbury. Havia uma nódoa de gordura no seu hábito. «Então, queres falar com um padre?», indagou. «Muito acertado. Nenhum de nós sabe a hora em que Nosso Senhor pode chamar-nos.» Depois ergueu o olho são para a mãe de Asbury e disse : «Obrigado, pode deixar-nos agora.» Mrs . Fox ficou hirta e não se mexeu. «Gostaria de falar com o Padre Finn a sós», disse Asbury, sentindo de repente que tinha aqui um aliado, embora não esperasse um padre como este. A mãe lançou-lhe um olhar de animosidade e abandonou o quarto. O filho sabia que ela não iria afastar-se da porta. « É tão bom tê-lo cá», disse Asbury. «Este sítio é incrivel­ mente lúgubre. Não há aqui ninguém com quem uma pessoa inteligente possa falar. Qual é a sua opinião acerca de Joyce, padre?» O padre ergueu a cadeira e aproximou-se. «Vais ter que gri­ tar», disse. «Cego de um olho e surdo de um ouvido.»

1 1 2 o ' CONNOR «Qual é a sua opinião acerca de Joyce?», repetiu Asbury mais alto. «Joyce? Qual Joyce?», perguntou o p adre. «James Joyce», disse Asbury e riu. O padre agitou a enorme mão no ar como se estivesse a ser incomodado por mosquitos. «Não me foi apresentado», disse. «Vamos lá. F azes as tuas orações de manhã e à noite?» Asbury pareceu confundido. «Joyce foi um grande escritor», murmurou, esquecendo-se de gritar. «Não rezas, não é?», disse o padre. «Bom, nunca vais apren­ der a ser bom a não ser que rezes com regularidade. Não podes amar Jesus a não ser que fales com Ele.» «0 mito do deus moribundo sempre me fascinou», gritou Asbury, mas o padre p areceu não ouvir. «Tens problemas com a castidade?», perguntou ele, e como Asbury empalidecesse, continuou sem esperar por uma res­ posta. «Todos nós temos, mas deves pedi-la nas tuas preces ao Espírito Santo. Mente, coração e corpo. Nada se supera sem oração. Reza com a tua família. Rezas com a tua família?» «Deus me livre», murmurou Asbury. «A minha mãe não tem tempo para rezar e a minha irmã é ateia», gritou. «Uma pena !», disse o padre. «Então deves rezar por elas.» «Ü artista reza criando», arriscou Asbury. «Não chega !», vociferou o padre. «Se não rezares todos os dias, estás a negligenciar a tua alma imortal. Sabes o catecismo?» «Claro que não», murmurou Asbury. « Quem te criou?», inquiriu o padre num tom marcial. «Pessoas diferentes acreditam em coisas diferentes no que respeita a esse assunto», disse Asbury. «Foi Deus que te criou», disse o padre secamente. «Quem é Deus?11 «Deus é uma ideia criada pelo homem», disse Asbury, sen­ tindo que estava a começar a l ançar-se, que este j ogo podia ser j ogado por duas p essoas. «Deus é um espírito infinitamente perfeito», esclareceu o padre. «És um rapaz muito ignorante. Para que é que Deus te criou?»

O CALAFRIO PERMANENTE 1 1 3 «Deus não . . . » «Deus criou-te para O conheceres, O amares e O servires neste mundo e p ara seres feliz com Ele no próximo !», disse o velho padre numa voz demolidora. «Se não te aplicas no cate­ cismo como é que pretendes saber como salvar a tua alma imortal?» Asbury viu que tinha cometido um erro e que era altura de se livrar do idiota do velho. «Oiça», atalhou, «eu não sou Católico.» «Uma fraca desculpa p ara não rezares !», bufou o velho. Asbury afundou-se ligeiramente na cama. «Estou a mor­ rer», gritou. «Mas ainda não morreste !», arrematou o padre, «e como é que esperas encontrar-te com Deus face a face quando nunca falaste com Ele? Como é que esperas conseguir aquilo que não pedes? Deus não envia o Espírito Santo àqueles que não O pedem. Pede-Lhe para que te envie o Espírito Santo. » «0 Espírito Santo?», disse Asbury. « É s tão ignorante que nunca ouviste falar do Espírito Santo?», perguntou o p adre. «Claro que ouvi falar do Espírito Santo», disse Asbury furioso, «e o Espírito S anto é a última coisa de que eu ando à procura !» «E Ele pode ser a última coisa que recebes», disse o padre, cravando o seu único olho ameaçador exaltado. «Queres que a tua alma sofra a condenação eterna? Queres ser privado de Deus por toda a eternidade? Queres sofrer a dor mais terrível, maior do que o fogo, a dor da p erda? Queres sofrer a dor da perda por toda a eternidade?» Asbury moveu os braços e as pernas desamparadamente como se estivesse pregado à cama pelo olho terrível. «Como é que o Espírito Santo pode encher-te a alma quando ela está cheia de lixo?», bramiu o padre. «0 Espírito Santo não virá até te veres a ti próprio como és - um j ovem preguiçoso, ignorante e orgulhoso !», acrescentou ele, batendo com o punho na pequena mesa-de-cabeceira.

1 1 4 ü 'CONNOR Mrs. Fax irrompeu no quarto. «Chega !», gritou ela. «Como se atreve a falar dessa maneira com um pobre rapaz doente? Está a transtorná-lo. Vai ter de sair.» «Ü pobre rapaz nem sequer sabe o catecismo», disse o padre, levantando-se. «Eu acho que você o deveria ter ensi­ nado a rezar todos os dias. Negligenciou os seus deveres de mãe.» Voltou-se para a cama e disse afavelmente, «Vou dar-te a benção e depois disto tens de rezar todos os dias sem excep­ ção», após o que colocou a mão na cabeça de Asbury e res­ mungou qualquer coisa em l atim. «Chama-me em qualquer altura», disse, «e poderemos ter outra conversazinha.», e em seguida caminhou atrás das costas rígidas de Mrs. Fox até à porta. A última coisa que Asbury o ouviu dizer fo i : «No fundo é um bom rapaz mas muito ignorante.» Depois de se ter livrado do padre, a mãe subiu de novo rapidamente as escadas para lhe recordar de que o tinha pre­ venido mas, quando o viu pálido e cansado e desolado, recos­ tado na cama, olhando fixamente em frente com grandes olhos infantis em choque, perdeu a coragem e saiu de novo rapidamente. Na manhã seguinte ele estava tão fraco que ela decidiu levá-lo ao hospital. «Eu não vou a hospital nenhum», dizia ele repetidamente, virando de um lado para o outro a cabeça que pulsava, como se quisesse separá-la do corpo. «Eu não vou a hospital nenhum enquanto estiver consciente.» Pensava com amargura que, quando perdesse a consciência, ela poderia arrastá-lo para o hospital e enchê-lo de sangue e prolongar­ -lhe o sofrimento durante dias. Estava convencido de que o fim se aproximava, que seria hoje, e atormentava-o agora pensar na sua vida inútil. Sentia-se um invólucro que tivesse que ser enchido por qualquer coisa mas não sabia com quê. Começou a observar tudo no quarto como que pela última vez - a mobília antiga ridícula, o padrão do tapete, o quadro estúpido que a mãe tinha voltado a colocar no sítio. Até olhou para o pássaro feroz com o pingente no bico e sentiu que o bicho estava ali por algum motivo que ele não conseguia adivinhar.

O CALAFRIO PERMANENTE 1 1 5 Havia algo que ele procurava, algo que ele sentia que preci­ sava de ter, uma última experiência final e significativa que ele deveria criar para si próprio antes de morrer - criar para si pró­ prio a partir da sua própria inteligência. Tinha confiado sempre em si próprio e nunca fora lamechas a respeito do inefável. Uma vez, quando Mary George tinha treze anos e ele cinco, ela atraiu-o com a promessa de um presente não especificado para uma tenda cheia de pessoas e arrastou-o de costas até à frente, onde estava de pé um homem envergando um fato azul e uma gravata vermelha e branca. «Tome», disse ela alto. «Eu já estou salva mas pode salvá-lo a ele.

É

uma verdadeira peste

e tem um ego grande demais.» Ele soltou-se da mão dela e dis­ parou dali como um pequeno rafeiro e mais tarde, quando lhe perguntou pelo presente, ela disse: «Terias recebido a Salvação se tivesses esperado por ela mas como agiste daquela forma, não recebeste nada !»

À medida

que o dia passava, ele ficava cada vez mais frené­

tico com receio de morrer sem proporcionar a si próprio uma última experiência significativa. A mãe sentava-se ao lado da cama muito preocupada. Tinha tentado ligar a Block por duas vezes mas não conseguia apanhá-lo. O rapaz pensou que nem mesmo agora ela tinha consciência que ele ia morrer, muito menos de que o fim estava apenas a algumas horas de distância. A luz no quarto começava a adquirir um matiz bizarro, quase como se estivesse a materializar-se. Sob uma forma obscura entrou e pareceu ficar à espera. Lá fora nada ap aren­ tava mover-se p ara além da orla da linha esbatida das árvo­ res que ele conseguia ver alguns centímetros por cima do parapeito da j anela. De repente, lembrou-se daquela experiên­ cia de comunhão que tivera na vacaria com os pretos quando fumaram juntos, e subitamente começou a tremer de excita­ ção. Haviam de fumar juntos uma última vez. Após um momento, virando a cabeça na almofada, disse : «Mãe, quero despedir-me dos pretos.» A mãe empalideceu. Durante um instante a cara pare­ ceu prestes a desfazer-se. Depois a linha da boca endureceu ;

1 1 6 o'CONNOR as sobrancelhas aproximaram-se. «Despedires-te?», disse ela numa voz sem expressão. «Onde é que vais?» Durante alguns segundos ele apenas olhou para ela. Depois disse : «Acho que sabe. Chame-os. Não tenho muito tempo.» «Isto é absurdo», murmurou ela mas levantou-se e saiu apressadamente. Ouviu-a tentar novamente contactar Block antes de sair. Pensou que o facto dela se agarrar a Block numa altura destas era comovente e patético. Aguardou, prepa­ rando-se para o encontro como um homem religioso se pre­ pararia para os últimos sacramentos. Em breve lhes ouviu os passos na escada. «Aqui estão o Randall e o Morgan», disse a mãe, introdu­ zindo-os no quarto. «Vieram cumprimentar-te.» Ambos entraram sorrindo e arrastaram os pés até perto da cama. Ficaram ali, Randall à frente e Morgan atrás. «Você está com bom aspecto», disse Randall. «Você está com muito bom aspecto.» «Você está com bom aspecto», disse o outro. « É verdade, parece óptimo.» «Nunca o vi com tão bom aspecto antes», reforçou Randall. «Pois, ele não está com bom aspecto?», assentiu a mãe. «Para mim ele está óptimo.» «Sim, senhor», disse Randall, «acho que nem está doente. » «Mãe», disse Asbury numa v o z esforçada. «Gostava d e falar com eles a sós.» A mãe ficou hirta ; depois marchou porta fora. Atravessou o vestíbulo e entrou no quarto do outro lado e sentou-se. Através das portas abertas, ele conseguia vê-la começar a baloiçar-se com impulsos pequenos e curtos. Os dois negros ostentavam uma expressão semelhante à que teriam se a sua última protecção tivesse caído. A cabeça de Asbury estava tão pesada que ele não conse­ guia lembrar-se do que tencionava dizer. «Estou à morte», disse. Ambos os sorrisos gelaram. «Você está com bom aspecto», redisse Randall.

O CALAFRIO PERMANENTE 1 1 7 «Vou morrer», repetiu Asbury. D epois lembrou-se com alí­ vio que iam fumar juntos. Esticou-se para agarrar no maço sobre a mesa e ofereceu-o a Randall, esquecendo-se de o aba­ nar para fazer sair os cigarros. O negro agarrou no maço e pô-lo no bolso. «Agradeço­ -lhe», disse. «Fico-lhe muito grato .» Asbury olhou como se se tivesse esquecido novamente. Um segundo depois apercebeu-se de que a expressão do outro negro se tomara infinitamente triste ; depois compreendeu que não era uma expressão triste, mas antes zangada. Tacteou dentro da gaveta da mesa e retirou um maço fechado e atirou­ -o a Morgan. «Agradeço-lhe, Mist Asbury»,

disse Morgan,

imediata-

. mente mais animado. «Você está mesmo com bom aspecto.11 «Estou prestes a morrer», disse Asbury com irritação. «Está com bom aspecto11, repetiu Randall. «Vai estar a andar por aí dentro de poucos dias», afiançou Morgan. Nenhum deles p arecia encontrar um local adequado para descansar o olhar. Asbury olhou ansiosamente através do vestíbulo para o sítio onde a mãe tinha a cadeira de b aloiço voltada de forma a lhe virar as costas. Era evidente que ela não tinha intenção de o livrar deles. «Imagino que tem uma gripezita», disse Randall após um tempo. «Eu tomo um pouco de terebentina com açúcar quando estou engripado», disse Morgan. «Cala a boca», disse Randall, virando-se contra ele. « C al a a tua», ripostou Morgan. «Eu sei o que tomo.» «Ele não toma o que tu tomas», rosnou Randall. «Mãe !», chamou Asbury numa voz trémula. A mãe levantou-se. «Mister Asbury já teve companhia o tempo suficiente por agora», proclamou ela. «Podem todos voltar amanhã.» «Nós vamos indo», disse Randall. «Você está mesmo com bom aspecto.11 «Não há dúvida», finalizou Morgan.

1 1 8 ü'CONNOR Saíram em fila indiana concordando um com o outro sobre o seu óptimo aspecto mas a vista de Asbury ficou turva antes de eles chegarem ao vestíbulo. Durante um instante viu a silhueta da mãe como se fosse uma sombra na porta e depois ela desapareceu atrás deles pela escada abaixo. Ouviu-a tele­ fonar a Block novamente mas escutou sem interesse. A cabeça andava-lhe à roda. Sabia agora que não haveria qualquer experiência significativa antes de morrer. Não havia mais nada a fazer senão entregar-lhe a chave da gaveta onde estava a carta e esperar pelo fim. Caiu num sono profundo do qual acordou cerca das cinco horas para ver a cara branca dela, muito pequena, no fundo de um poço de escuridão. Tirou a chave do bolso do pij ama, entregou-lha e murmurou que havia uma carta na secretária para ser aberta quando ele já cá não estivesse, mas ela não pareceu entender. Colocou a chave em cima da mesa-de-cabe­ ceira, deixou-a lá e ele regressou ao sonho em que dois calhaus grandes se perseguiam em círculo dentro da sua cabeça. Acordou pouco depois das seis e ouviu o carro de Block parar em baixo na entrada. O ruído era como um chama­ mento, arrancando-o ao seu sono, desanuviando rapidamente a cabeça. Teve a repentina e terrível premonição de que o des­ tino que o aguardava ia ser mais demolidor do que qualquer um que ele pudesse ter imaginado. Ficou absolutamente imó­ vel, tão parado como um animal no instante que antecede um terramoto. Block e a mãe falavam à medida que subiam as escadas mas ele não distinguia as palavras. O médico entrou fazendo caretas ; a mãe sorria. «Adivinha o que tens, querido !», gritou. A voz dela acertou-lhe como um tiro. «Encontrou este velho bicho, o velho Block, foi o que fez», disse Block, afundando-se na cadeira ao lado da cama. Ergueu as mãos por cima da cabeça fazendo o gesto de um concor­ rente vitorioso e deixou-as cair no colo como se o esforço o tivesse deixado exausto. Depois retirou um velho lenço ver­ melho que trazia para fazer brincadeiras com as crianças e

O CALAFRIO PERMANENTE 1 1 9 limpou a cara cuidadosamente, mostrando uma expressão diferente de cada vez que aparecia por detrás do trapo . «Acho que seria impossível ser mais inteligente, doutor!», disse

Mrs.

Fox. «Asbury», disse ela, «tens b rucelose. Essa febre

vai continuar a aparecer, mas não vais morrer del a ! » O sorriso dela era tão brilhante e intenso como uma lâmpada sem aba­ jur. «Estou tão aliviada», suspirou. Asbury endireitou-se lentamente, com a cara sem expres­ são ; depois voltou a estender-se. Block inclinou-se sobre ele e sorriu. «Não vais morrer», comunicou, com uma satisfação profunda. O corpo de Asbury manteve-se imóvel, à excepção dos olhos. Na superfície não pareciam agitar-se, mas, algures nas suas profundezas obscuras, havia um movimento quase imper­ ceptível, como se alguma coisa lá dentro estivesse a lutar debilmente. O olhar de Block parecia atingir o fundo como um alfinete de aço e prender fosse o que fosse até a vida o ter abandonado. «A brucelose não é assim tão má, Azzberry», murmurou. « É o mesmo que a doença de B ang numa vaca.» O rapaz deixou escapar um gemido baixo e depois ficou em silêncio. «Deve ter bebido leite que não estava pasteurizado lá pelo Norte», presumiu a mãe suavemente e depois ambos saíram em bicos de pés como se p ensassem que ele estava prestes a adormecer. Quando o som dos seus passos desapareceu das escadas, Asbury endireitou-se novamente na cama. Ele virou a cabeça, quase sub-repticiamente, para o tampo da mesa-de-cabeceira onde se encontrava a chave que tinha dado à mãe. Esticou a mão com rapidez, para assim a agarrar e devolver ao bolso. Lançou o olhar através do quarto para o pequeno espelho de moldura oval da cómoda. Os olhos que o fitaram eram os mes­ mos que lhe tinham devolvido o olhar todos os dias a partir daquele espelho mas p areciam-lhe mais p álidos. Pareciam purificados pelo choque como se tivessem sido preparados para alguma visão terrível prestes a abater-se sobre ele. Estre-

1 20 O'CONNOR meceu e voltou a cabeça rapidamente para o outro lado e olhou para fora da j anela. Um sol vermelho-dourado ofus­ cante irrompia serenamente de uma nuvem púrpura. Por b aixo, a linha de árvores recortava-se negra contra o céu car­ mesim. Formava um muro frágil, perfilada como se fosse a defesa precária que ele tinha erguido na sua cabeça para pro­ tegê-lo do que lá vinha. O rapaz voltou a recostá-la na almo­ fada e fixou o tecto. Os seus membros, que tinham sido ator­ mentados durante tantas semanas pela febre e pelos arrepios, estavam agora entorpecidos. A velha vida que ainda havia nele estava exausta. Aguardava a chegada de uma nova. Foi então que sentiu o início de um calafrio, um calafrio tão pecu­ liar, tão leve, que era como uma agitação quente à superfície de um mar de frio, mais profundo. A respiração acelerou-se­ -lhe. O pássaro feroz que durante os anos da sua infância e os dias da sua doença tinha estado suspenso sobre a sua cabeça, aguardando misteriosamente, parecia de repente mover-se. Asbury empalideceu e a última película de ilusão foi-lhe arrancada, como que por um remoinho de vento, da frente dos olhos. Compreendeu que, durante o resto dos seus dias, fraco, devastado, mas resistindo, ele viveria perante um terror puri­ ficador. Um grito fraco, um último protesto impossível, esca­ pou-se-lhe da garganta. Mas o Espírito Santo, enformado de gelo em vez de fogo, continuou, implacável, a descer.

OS CONFORTOS DO LAR Thomas afastou-se d a j anela e c o m a cabeça entre a p arede e a cortina olhou para baixo, para a entrada onde o carro tinha parado. A mãe e a putéfia estavam a apear-se. A mãe surgiu lentamente, imperturbável e desaj eitada, e em seguida as per­ nas compridas e ligeiramente tortas da putéfia deslizaram para fora, o vestido acima dos j oelhos. Com um grito de alegria correu para o cão que saltava, doido de contentamento, tre­ mendo de prazer, para a receber. A raiva concentrou-se no volumoso corpo de Thomas com uma intensidade silenciosa e agoirenta, como uma populaça que se reune para a chacina. C abia-lhe agora a ele fazer a mala, ir para o hotel, e ficar lá até que a casa voltasse a estar desimpedida. Thomas não sabia onde estava a mala, detestava fazer malas, precisava dos seus livros, a sua máquina de escrever não era portátil, estava acostumado a um cobertor eléctrico, não suportava comer em restaurantes. A mãe, com a sua cari­ dade temerária, ia destruir totalmente a paz do lar. A porta das traseiras b ateu e o riso da rapariga avançou a partir da cozinha, atravessou a entrada, subiu as escadas e entrou-lhe pelo quarto dentro, atingindo-o como uma des­ carga eléctrica. D eu um salto para o lado e ficou a olhar fixa­ mente à sua volta. As p alavras que tinha pronunciado de

1 2 2 o ' coNNOR manhã eram inequívocas : «Se trouxer essa rapariga de novo p ara esta casa, vou-me embora. Escolha - ou ela ou eu.11 A mãe tinha escolhido. Uma dor intensa filou-lhe a gar­ ganta. Foi a primeira vez em trinta e cinco anos ... Sentiu nos olhos uma súbita humidade que os fazia arder. Depois contro­ lou-se, dominado pela raiva. Na realidade, para a mãe, aquilo não era escolha nenhuma. Pura e simplesmente, contava com o seu apego ao cobertor eléctrico. Tinha que mostrar-lhe que ou sim ou sopas. O riso da rapariga soou novamente, vindo do andar de baixo, e Thomas estremeceu. Viu de novo diante dos olhos a expressão dela na noite anterior. Tinha-lhe invadido o quarto. Quando o rapaz acordou e viu a porta aberta e a putéfia lá den­ tro. Havia luz suficiente, vinda da entrada, para a tomar visível à medida que ela se voltava para ele. A cara era semelhante à de uma actriz numa comédia musical - um queixo pontiagudo, maçãs do rosto largas, e olhos felinos e vazios. Tinha saltado da cama e agarrado numa cadeira e depois tinha-a feito recuar porta fora, como um domador expulsando um felino perigoso. Empurrara-a em silêncio pelo corredor fora, parando para bater à porta ao chegar ao quarto da mãe. A rapariga, inspirando fundo, virou-se e fugiu para o quarto de hóspedes. Rapidamente, nessa altura a mãe abriu a porta do seu quarto e espreitou p ara fora com apreensão . A cara, gordu­ rosa com aquilo que ela aplicava à noite, estava emoldurada por rolos de borracha cor-de-rosa. Olhou para o local onde a rapariga tinha desaparecido. Thomas estava à sua frente, com a cadeira ainda levantada em frente dele como se estivesse prestes a dominar outra fera. «Ela tentou entrar no meu quarto», sibilou, forçando a entrada. «Acordei e ela estava a tentar entrar no meu quarto. » Fechou a porta atrás de si e a sua voz subiu de tom, ultraj ada. «Não vou aturar isto ! Não vou aturar isto nem mais um dia !» A mãe, forçada por ele a recuar até à cama, sentou-se mesmo na beira. Tinha um corpo pesado sobre o qual assen­ tava uma cabeça misteriosamente descamada e incongruente.

OS CONFORTOS DO LAR 1 2 3 «Estou a avisá-la pela última vez.», disse Thomas, «Não vou aturar isto nem mais um dia.» Havia uma tendência que podia ser observada em todas as acções dela. Com as melhores intenções do mundo, acabava por ridicularizar a virtude. Ia no encalço da generosidade com uma tal intensidade irreflectida que todas as pessoas envolvidas eram tomadas por parvas e a própria virtude se tomava ridícula. «Nem mais um dia», repe­ tiu ele. A mãe abanou a cabeça enfaticamente, com os olhos ainda na porta. Thomas colocou a cadeira no chão em frente dela e sen­ tou-se. Inclinou-se para a frente como se estivesse prestes a explicar alguma coisa a uma criança que tivesse feito uma maldade. « É apenas mais uma forma de ela ser infeliz», disse a mãe. É « horrível, horrível. Ela disse-me como se chamava mas esqueci-me do que é, mas é uma coisa que ela não consegue evitar. Uma coisa com que p adece desde que nasceu, Thomas», disse ela e colocou a mão no queixo, «consegues imaginar se fosse contigo ?11 A irritação bloqueou-lhe a garganta. ccNão a consigo fazer ven1, disse ele em voz rouca, «que se ela não se ajuda a si pró­ pria, a mãe não consegue ajudá-la?» Os olhos da mãe, íntimos mas intocáveis, tinham o azul das grandes distâncias depois do pôr-do-sol. «Nimpermaníaca11, murmurou ela. «Ninfomaníaca», disse ele furiosamente. «Ela não precisa de lhe fornecer palavras esquisitas. Ela é moralmente uma imb ecil. É só o que precisa de saber. Nasceu sem moralidade - como qualquer outra pessoa pode nascer sem um rim ou sem uma perna. Percebe?» «Estou sempre a pensar que podias ser tu», disse ela, com a mão ainda no queixo. «Se fosses tu, como achas que eu me iria sentir se ninguém te acolhesse? E se tu fosses um nimperma­ níaco e não uma pessoa brilhante e inteligente e fizesses o que não conseguias evitar e . . . ?11

1 24 ü ' CONNOR Thomas sentiu uma aversão por si próprio profunda e in­ suportável, como se estivesse a transformar-se lentamente na rapariga. «Ü que é que ela trazia vestido?», perguntou a mãe abrup­ tamente, semicerrando os olhos. «Nada !», bramiu ele. «E agora, vai tirá-la cá de casa !» «Como é que eu posso expulsá-la e deixá-la ao frio?», disse ela. «Esta manhã ela ameaçou novamente matar-se.» «Mande-a de novo para a cadeia», disse Thomas. «Não te mandaria a

ti novamente p ara a cadeia, Thomas»,

disse ela. Ele levantou-se, agarrou na cadeira e abandonou o quarto enquanto ainda conseguia controlar-se. Thomas gostava muito da mãe. Gostava dela porque era da natureza dele fazê-lo, mas por vezes não suportava o amor que ela lhe tinha. Por vezes, esse amor tomava-se apenas num puro mistério idiota e sentia à sua volta forças, correntes invi­ síveis completamente fora de controlo. Ela agia sempre p ar­

o que devia ser feito - para chegar aos compromissos mais temerários com o tindo das considerações mais triviais - era

demónio, facto que, claro, ela nunca reconhecia. O demónio para Thomas era apenas uma forma de expres­ são, mas era uma forma apropriada às situações em que a mãe se metia. Se ela fosse um pouco culta, ele poderia ter-lhe pro­ vado que, desde a história primitiva do Cristianismo, um excesso de virtude nunca é justificado, que um bem moderado produz também um mal moderado, que se António do Egipto tivesse ficado em casa, e tivesse cuidado da irmã, não teria sido perseguido por demónios. Thomas não era um cínico e por isso, longe de se opor à virtude, encarava-a como o princípio da ordem e a única coisa que tomava a vida suportável. A sua própria vida era supor­ tável por causa dos efeitos das virtudes mais racionais da mãe - a casa bem organizada que ela mantinha e as excelentes refeições que servia. Mas quando a virtude ficava fora do con­ trolo dela, como agora, assoberbava-o uma percepção de de-

OS CONFORTOS DO LAR 1 2 5 mónios que não eram truques mentais, seus ou d a velhota : eram antes forasteiros com personalidade, presentes, embora não visíveis, de quem se p oderia esperar a qualquer momento que gritassem ou fizessem b arulho com uma panela. A rapariga tinha vindo parar à cadeia municipal há um mês por passar um cheque careca e a mãe tinha visto a foto­ grafia dela no j ornal. Ao pequeno-almoço, tinha olhado para a notícia durante muito tempo, e depois tinha-lha p assado por cima da cafeteira. ulmagina», disse ela, «SÓ com dezanove anos e naquela cadeia imunda. E não parece ser má rapariga.» Thomas olhou de relance para a fotografia. Mostrava a face de uma maltrapilha astuta. Ele notou que a idade média dos criminosos estava a b aixar cada vez mais. «Parece uma boa rapariga», disse a mãe. «As pessoas boas não passam cheques carecas», disse Thomas. «Não sabes o que farias se estivesses num aperto.» «Não passava um cheque careca, de certeza», disse Thomas. «Acho», disse a mãe, «que lhe vou levar uma caixinha de bombons.» Se ele tivesse batido o pé, logo naquela altura, talvez não tivesse acontecido mais nada. Se ainda fosse vivo, o pai teria cer­ tamente batido o pé nessa altura. Oferecer uma caixa de bombons era o que ela mais gostava de fazer para ser simpática. Sempre que alguém da sua classe social vinha viver para a cidade, ela ia visitá-los e levava uma caixa de bombons ; sempre que a filha de uma das suas amigas tinha um bebé ou ganhava uma bolsa de estudo, ela fazia-lhe uma visita e levava-lhe uma caixa de bom­ bons; sempre que um idoso partia a bacia, ela estava à sua cabe­ ceira com uma caixa de bombons. Thomas tinha-se divertido ao imaginá-la a levar uma caixa de bombons à cadeia. E agora estava no seu quarto com o riso da rapariga a rico­ chetear-lhe na cabeça, maldizendo o facto daquele gesto o ter feito sorrir. Quando a mãe regressou da cadeia, irrompeu pelo seu escri­ tório sem bater à porta e deixou-se cair no sofá, erguendo os pezinhos inchados sobre o braço esquerdo do estofo. Momentos

1 2 6 O ' CONNOR depois, estava suficientemente refeita para se sentar e colocar um jornal debaixo deles. A seguir voltou a estender-se. «Não fazemos ideia de como vive a outra metade», disse. Thomas sabia que, apesar da conversa dela p assar de um cliché para outro cliché, existiam experiências verdadeiras por detrás deles. Não lamentava tanto a circunstância da rapariga estar na cadeia como o facto da mãe ter lá ido visitá-la. Gostaria de conseguir p oupá-la a todos os espectáculos desa­ gradáveis do mundo. «Bem», disse ele, e afastou o seu diário, «é melhor esquecer isso agora. A rapariga tem mais do que motivos para estar presa.» «Não imaginas tudo o que ela tem p assado», disse a mãe, endireitando-se novamente, «Ouve.» A pobrezinha, Star, tinha sido criada por uma madrasta que tinha três filhos de outro pai, um deles um rapaz quase adulto que se aproveitara dela de maneiras tais que a miúda acabou por fugir e procurar a mãe biológica. Quando a encon­ trou, a senhora limitou-se a enviá-la para uma série de colé­ gios internos para se livrar dela. Vira-se obrigada a fugir de todos eles pela presença de depravados e sádicos tão mons­ truosos que era impossível descrever os seus actos. Thomas podia perceber que a mãe não tinha sido poupada aos porme­ nores a que estava a poupá-lo. De vez em quando, se falava de forma vaga, a voz tremia-lhe e ele p ercebia que ela estava a lembrar-se de alguma coisa horrível que lhe tinha sido des­ crita o mais graficamente possível. Thomas esperara que a memória de tudo isto desaparecesse em poucos dias, mas não foi isso que aconteceu. No dia seguinte, a mãe voltou à cadeia com lenços de papel e creme hidratante, e, alguns dias depois, comunicou-lhe que tinha consultado um advogado. Era nestas ocasiões que Thomas lamentava verdadeiramente a morte do pai, embora nunca tivesse conseguido suportá-lo em vida. O velho não teria mesmo admitido semelhante disparate. Imune à compaixão inútil, teria (sem ela saber) puxado os cor­ delinhos necessários com o seu camarada, o xerife local, e a rapariga teria sido despachada para a penitenciária estatal onde

OS CONFORTOS DO LAR 1 2 7 cumpriria a sua pena. Ele tinha estado sempre envolvido numa qualquer acção de grande acrimónia, até que uma manhã (com um olhar zangado dirigido à mulher como se apenas ela fosse a responsável) caiu morto ao pequeno-almoço. Thomas tinha herdado a racionalidade do pai sem a sua crueldade e o amor da mãe pelo bem sem a sua tendência para fazê-lo. A estraté­ gia dele para qualquer acção prática era esperar para ver o que acontecia. O advogado descobriu que a história das repetidas atrocidades era, na sua maior parte, mentira, mas quando lhe explicou que a rapariga tinha uma personalidade patológica, não suficientemente louca para o manicómio, não suficiente­ mente criminosa para a prisão, nem suficientemente estável para viver em sociedade, a mãe de Thomas ficou mais profun­ damente sensibilizada do que nunca. A rapariga admitiu pron­ tamente que a sua história era falsa por ser uma mentirosa com­ pulsiva ; mentia, disse, porque se sentia insegura. Já passara pelas mãos de vários psiquiatras, e a cada um deles acrescen­ tara mais um último retoque à sua educação. Sabia que não havia esperança para si própria. Perante tanta desgraça, a mãe parecia alquebrada por um mistério penoso que apenas um redobrar de esforços conseguiria tomar suportável. Para seu desgosto, ela parecia olhar para

ele com compaixão, como se a

sua caridade obscura já não fizesse distinções. Alguns dias depois, a mãe irrompeu triunfante pela sala e anunciou que o advogado tinha tratado da libertação da rapa­ riga e que a desgraçada ficaria sob responsabilidade - dela. Thomas levantou-se da cadeira

Morrisl4l e deixou cair a

revista que estava a ler. A sua grande face afável contraiu-se com uma dor terrível de antecipação. «Não vai», disse ele, «tra­ zer essa rapariga para aqui ! » «Não, não», disse e l a , « acalma-te, Thomas.» Tinha conse­ guido com dificuldade arranjar um emprego à rapariga, um emprego numa loj a de animais na cidade, e um lugar para [4] Cadeiras de cabedal almofadadas reclináveis em três posições, passiveis de funcionarem como sofá individual e como cama, que estiveram muito em voga nos Estados Unidos durante a primeira metade do século xx. (N. da T.)

1 2 8 o'CONNOR ficar com uma velhota excêntrica sua conhecida. As pessoas não eram caridosas. Não se punham no lugar de alguém como Star que tinha tudo contra si. Thomas sentou-se de novo e agarrou na revista. Parecia ter acabado de escapar a um perigo que não queria nem cla­ rificar para si próprio. «Ninguém pode dizer-lhe nada, mãe», disse ele, «mas dentro de alguns dias essa rapariga terá fugido da cidade, depois de lhe ter extorquido tudo o que puder. Nunca mais vai saber dela.» Duas noites depois, Thomas chegou a casa e abriu a porta da sala de estar e foi trespassado por um riso agudo e sem espes­ sura. A mãe e a rapariga estavam sentadas junto da lareira onde os toros de gás crepitavam acesos. A rapariga dava a impressão imediata de ser fisicamente aleijada. Tinha o cabelo cortado como o de um cão ou de um duende e estava vestida segundo a última moda. Treinava nele um longo olhar familiar e brilhante que se transformou pouco depois num sorriso íntimo. «Thomas !», disse a mãe, com a voz firme, determinada a controlar-se, «Esta é a Star de que ouviste falar tanto. A Star vai j antar connosco.» A rapariga apresentava-se como Star Drake. O advogado tinha descoberto que o seu verdadeiro nome era Sarah Ham. Thomas não se mexeu nem falou, mas ficou parado à porta no que parecia ser um acesso selvagem de perplexidade. Finalmente disse, «Como está, Sarah», num tom de uma tal repugnância que ficou chocado ao ouvir a sua própria voz. Corou, sentindo ser indigno de si demonstrar desprezo por uma criatura assim tão patética. Entrou n a sala determinado a demonstrar, pelo menos, uma delicadeza conveniente, e dei­ xou-se cair pesadamente numa cadeira. «Thomas escreve sobre História», disse a mãe lançando-lhe um olhar ameaçador. « É ele o presidente da Sociedade Histórica local este ano.» A rapariga inclinou-se para a frente e dispensou a Thomas uma atenção ainda mais penetrante. «Fabuloso !», disse com uma voz gutural.

OS CONFORTOS DO LAR 1 2 9 «Neste momento Thomas está a escrever acerca dos pri­ meiros colonos deste município», disse a mãe. 11Fabuloso !11, repetiu a rapariga. Thomas, com um grande esforço de força de vontade, conseguiu sentir que estava sozi­ nho na sala. «Oiça, sabe com quem é que ele se parece?», perguntou Star com a cabeça inclinada, observando- o de lado. «Oh, com alguém muito distinto !», disse a mãe maliciosa­ mente. «Com o chui do filme que fui ver a noite passada», disse Star. « Star», disse a mãe, « acho que deves ter cuidado com os filmes que vais ver. Entendo que devias ver só os melhores. Não me parece que os policiais sej am bons para ti.11 «Oh, este era um daqueles em que o crime não compensa11, disse Star, «e j uro que o chui era exactamente a cara dele. Estavam sempre a impingir qualquer coisa ao tipo. Parecia que não aguentava nem mais um minuto e que ia rebentar. Era um pagode. E não era nada mal-parecido11, acrescentou com um olhar apreciativo de soslaio dirigido a Thomas. « Star», disse a mãe, «parece-me que seria óptimo se come­ çasses a gostar de Música.11 Thomas suspirou. A mãe continuou a tagarelar e a rapa­ riga, sem lhe prestar qualquer atenção, deixou o olhar alon­ gar-se nele. Olhava-o de tal forma que mais p arecia estar a tocá-lo com as mãos, demorando-se ora nos j o elhos dele, ora no seu pescoço. Os olhos dela tinham um brilho trocista e ele sabia que a Sarah estava bem ciente do facto de não supor­ tar que aquela lhe dirigisse o olhar. Não precisava de nada que lhe dissesse que estava na presença da corrupção em pes­ soa, mas de corrupção sem culpa porque não existia cons­ ciência de responsabilidade por detrás dela. Estava p erante a forma mais insuportável de inocência. Distraidamente, inter­ rogou-se sobre qual seria a atitude de Deus perante isto, pre­ tendendo, se possível, adoptá-la. O comportamento da mãe ao longo da refeição foi tão idiota que quase não conseguia olhar para ela ; e, como supor-

1 3 0 o'CONNOR tava ainda menos olhar para Sarah Ham, fixou toda a sua atenção, com desagrado e aversão, no aparador que se encon­ trava do outro lado da sala. A mãe tratava cada observação da rapariga como se merecesse uma atenção real. Sugeriu vários planos para o uso salutar do tempo livre de Star. Sarah Ham tomou tanta atenção a estes conselhos como se tivessem vindo de um papagaio. Numa ocasião em que Thomas olhou inad­ vertidamente na direcção dela, piscou-lhe imediatamente o olho. Logo que engoliu a última colher de sobremesa, o rapaz levantou-se e murmurou, «Tenho que ir, tenho uma reunião.» «Thomas», disse a mãe, «quero que leves a Star a casa a caminho da tua reunião. Não quero que ela apanhe táxis sozi­ nha

à

noite.»

Durante um momento, Thomas ficou em silêncio, furioso. D epois virou-se e saiu da sala. Dai a pouco regressou com uma expressão de determinação obscura. A rapariga estava pronta, esperando

à

porta da sala, humildemente. Até lhe dei­

tou um grande olhar de admiração e confiança. Thomas não lhe ofereceu o braço, mas ela agarrou-lhe, apesar disso, e saiu de casa e desceu as escadas agarrada ao que podia ter sido um monumento que se movia por milagre. «Portem-se bem !», gritou a mãe. Sarah Ham riu-se em silêncio, e deu uma cotovelada a Thomas. Ao ir buscar o casaco, ele tinha decidido que esta seria a sua oportunidade para dizer

à

rapariga que, a não ser que ela

deixasse de se comportar como um parasita em relação seria ele próprio a encarregar-se,

à

mãe,

pessoalmente, de que ela

fosse recambiada para a prisão. Dar-lhe-ia a entender que sabia aquilo que ela andava a tramar, que não era ingénuo e que havia certas coisas que não toleraria.

À

secretária, de

caneta na mão, ninguém era mais fluente que Thomas. Assim que ficou fechado no carro com Sarah Ham, o terror prendeu­ -lhe a língua. Ela sentou-se em cima dos pés e disse, «Enfim, sós», e sol­ tou uma risadinha.

OS CONFORTOS DO LAR 1 3 1 Thomas desviou o carro da casa e guiou rapidamente até ao portão. Quando chegou à auto-estrada, acelerou como se estivesse a ser perseguido. «Credo !», disse Sarah Ham, tirando os pés do assento, «onde é o incêndio?» Thomas não respondeu. S egundos depois sentiu-a aproxi­ mar-se. Primeiro espreguiçou-se, depois encostou-se pouco a pouco, e finalmente colocou a mão flácida no ombro dele. «Ü Tomsee não gosta de mim», disse, «mas eu acho- o fabulo­ samente giro.» Thomas fez os cinco quilómetros e meio até à cidade em pouco mais de quatro minutos. O semáforo no primeiro cru­ zamento estava vermelho mas ele ignorou-o. A velhota vivia três quarteirões mais à frente. Quando o carro parou com um guinchar de pneus no destino, ele saltou p ara fora e deu a volta a correr até à porta do lado da rapariga e abriu-a. Ela não se mexeu e Thomas foi obrigado a esperar. Após um momento, surgiu uma perna, depois a sua cara branca e tor­ tuosa apareceu e fitou-o. Havia qualquer coisa no olhar dela que sugeria cegueira mas era a cegueira daqueles que não têm consciência de que não conseguem ver. Thomas estava estra­ nhamente agoniado. Os olhos vazios moveram-se em direcção a ele. «Ninguém gosta de mim», disse ela num tom rabugento. «E se tu fosses eu e eu não suportasse ir contigo fechada num carro ao longo de cinco quilómetros?» «A minha mãe gosta de ti», resmungou ele. «El a !», disse a rapariga. «Ela está atrasada uns bons setenta e cinco anos ! » Thomas disse sem fôlego, « S e e u descobrir que andas a importuná-la mais alguma vez, vou fazer com que te metam novamente na cadeia.» Havia uma força sombria por trás da sua voz, embora ela fosse pouco mais audível do que um suspiro. «Tu e quem mais?», disse ela e voltou a sentar-se dentro do carro como se agora não tencionasse sair de todo. Thomas inclinou-se para dentro do carro, agarrou-lhe as bandas do casaco de forma alucinada, puxou-a para fora e soltou-a.

1 3 2 o'CONNOR Depois correu para o carro e acelerou. A outra porta ainda estava aberta e o riso dela, sem corpo mas real, ricocheteou pela rua acima como se estivesse prestes a saltar adentro da porta aberta do carro e a partir com ele. Esticou-se e fechou a porta com estrondo e depois seguiu para casa, demasiado furioso para ir à reunião. Tencionava mostrar muito bem à mãe o seu desagrado. Tencionava não deixar que ela ficasse com qualquer dúvida. A voz do pai soava-lhe estridente na cabeça. Idiota, dizia o velho, impõe-te. Mostra-lhe quem manda antes que ela to mostre a ti. Mas, quando Thomas chegou a casa, a mãe, muito sabia­ mente, tinha ido para a cama.

Na manhã seguinte, apareceu ao

pequeno-almoço

de

sobrolho carregado e com o queixo levantado indicando que a sua disposição era perigosa. Quando pretendia ser determi­ nado, Thomas começava como um touro que, antes de atacar, recua com a cabeça b aixa e escava o solo com a p ata. «Muito bem, agora oiça», começou, puxando a cadeira e sentando-se, «Tenho uma coisa p ara lhe dizer no que toca à rapariga e só pretendo dizê-la uma vez.» Inspirou. «Ela não p assa de uma putéfia. Troça de si nas suas costas. Tenciona arrancar-lhe tudo o que puder e a mãe não significa nada para ela.» A mãe parecia ter passado também uma noite agitada. Não se tinha vestido de manhã e estava de roupão e com um tur­ bante cinzento na cabeça, o que lhe dava um desconcertante ar de omnisciência. Thomas bem poderia estar a tomar o pequeno-almoço com uma sibila. «Hoje vais ter que usar natas enlatadas», disse ela, ser­ vindo-lhe o café. «Esqueci-me de comprar das outras.» «Está b em, mas ouviu o que eu disse?», murmurou feroz­ mente Thomas. «Não sou surda», disse a mãe e colocou a cafeteira de novo no tripé. «Eu sei que p ara ela não passo de um saco de vento.» «Então porque é que continua com este disparate . . . »

OS CONFORTOS DO LAR 1 3 3 «Thomas», disse ela, e colocou a mão n a face, «podias ser. . . » «Não sou eu !», disse Thomas, agarrando na perna da mesa junto do j oelho. Ela continuou de mão na cara, abanando a cabeça ligeira­ mente. «Pensa em tudo o que tens», começou ela. «Todos os confortos do lar. E princípios morais, Thomas. Sem más incli­ nações, não nasceste com nada de mal.» Thomas começou a respirar como uma pessoa que sentisse um ataque de asma. «Isso não tem lógica nenhuma», disse numa voz fraca.

«Ele havia de ser firme.»

A velhota ficou hirta. «TU», disse, «não és como ele.» Thomas abriu a boca em silêncio. «No entanto», disse a mãe, num tom de acusação tão sub­

til

que poderia estar a retirar o elogio, «não voltarei a convidá­

-la já que estás tão contra ela.» «Não estou contra ela», disse Thomas. «Estou contra o facto da mãe fazer papel de p arva.» Assim que ele saiu da mesa e fechou a porta do escritório, o pai instalou-se, de cócoras, na sua cabeça. O velho tinha a capacidade que os agricultores têm de conversar de cócoras, embora não fosse do campo mas tivesse nascido e sido criado na cidade e apenas se tivesse mudado para um localidade mais pequena mais tarde, de forma a explorar os seus talentos. Com uma astúcia imperturbável, tinha-os convencido de que era um deles. No meio de uma conversa no relvado do tribunal, agachava-se e as duas ou três pessoas que o acompanhassem também se punham de cócoras sem qualquer interrupção apa­ rente na conversa. Tinha vivido uma mentira através dos ges­ tos ; nunca se tinha dignado a dizer uma. Deixas que ela te manobre, disse o velho. Não és como eu. Não és suficientemente homem. Thomas começou a ler vigorosamente e por fim a imagem desvaneceu-se. A rapariga tinha-o perturbado no fundo do seu ser, algures fora do alcance do seu poder de análise. Sentia-se como se tivesse visto um tomado passar a cem metros e tivesse sido avisado de que ele inverteria o seu rumo

1 34 o ' CONNOR e se dirigiria directamente ao seu encontro. Não conseguiu concentrar-se completamente no trabalho até meio da manhã. Duas noites depois, estava sentado com a mãe no pequeno gabinete de trabalho depois do j antar, cada um a ler uma sec­ ção do jornal da tarde, quando o telefone começou a tocar com a intensidade estridente de um alarme de incêndio. Thomas esticou-se e pegou-lhe. Assim que agarrou o aus­ cultador, uma voz feminina esganiçada gritou para dentro da sala, «Venham buscar esta rapariga ! Venham buscá-la ! Bêbeda ! Está bêbeda na minha sala e eu não vou permitir isto ! Perdeu o emprego e voltou bêbeda ! Não vou permitir isto !» A mãe deu um salto e agarrou no auscultador. O fantasma do pai de Thomas ergueu-se diante dele. Telefona ao xerife, incitava o velho. «Telefona ao xerife», disse Thomas em voz alta. «Telefona ao xerife para ir l á buscá-la.» «Vamos j á», dizia a mãe. «Vamos j á buscá-la. Diga-lhe para ela preparar as coisas.» «Ela não está em condições de preparar nada», gritou a voz. «Não devia ter despachado uma pessoa como ela p ara cima de mim ! A minha casa é uma casa respeitável !» «Diga-lhe para telefonar ao xerife», gritou Thomas. A mãe pousou o auscultador e olhou para ele. «Eu não entregaria um cão àquele homem», disse ela. Thomas ficou sentado na cadeira com os braços cruzados fixando a parede. «Pensa na pobre rapariga, Thomas», disse a mãe, «sem nada. Nada. E nós temos tudo. » Quando chegaram, Sarah H a m estava caída de pernas abertas encostada à b alaustrada dos degraus da frente da pen­ são. Tinha a bóina enfiada pela testa abaixo, no sítio para onde a velha a tinha atirado, e as roupas saíam da mala a abarrotar para onde a velha as tinha arremessado. Mantinha uma conversa de bêbeda consigo própria num tom baixo e pessoal. Um risco de batôn prolongava-se por uma das faces. D eixou-se guiar até ao carro e que a mãe dele a sentasse no banco de trás sem parecer conhecer quem era a sua salvadora.

OS CONFORTOS DO LAR 1 3 5 «Ninguém a quem falar todo o dia, a não ser um bando de malditos periquitos11, disse num murmúrio feroz. Thomas, que nem sequer tinha saído do carro, ou olhado para ela depois do primeiro relance de repugnância, disse : «Estou-lhe a dizer, de uma vez por todas, o lugar dela é na cadeia.11 A mãe, sentada no banco de trás a segurar a mão da rapa­ riga, não respondeu. «Tudo bem, leve-a p ara o hotel», disse ele. «Não posso levar uma rapariga embriagada p ara um hotel, Thomas», disse ela. «Sabes isso.» «Então leve-a ao hospital.» «Ela não precisa da cadeia, de um hotel ou do hospital», disse a mãe, «precisa de uma casa.» «Não precisa da minha», disse Thomas. «Só por esta noite, Thomas», suspirou a velha senhora. «Só por esta noite.» Tinham passado oito dias desde essa noite. A putéfia estava instalada no quarto de hóspedes. Todos os dias a mãe saía para lhe arranj ar um emprego e um lugar onde pudesse ficar, e falhava, porque a velha tinha difundido o aviso. Thomas confinava-se ao seu quarto ou ao pequeno gabinete de trabalho. A sua casa era para ele lar, o ficina, igrej a, tão pessoal e tão necessária como a carapaça de uma tartaruga. Não

conseguia

acreditar

que

pudesse

ser violada

desta

maneira. A sua face ruborizada tinha uma expressão cons­ tante de afronta atordoada. Assim que a rapariga se levantava de manhã, a sua voz ecoava num

blues que se erguia e estremecia, e depois descia

com insinuações de paixão prestes a ser satisfeita e Thomas,

à

sua secretária, enchia o p eito de ar e começava freneticamente a atafulhar os ouvidos com lenços de papel. Cada vez que ele corria de uma divisão p ara outra, de um andar para outro, era certo e sabido que ela aparecia. Cada vez que ele estava a meio das escadas, subindo ou descendo, ela ou se encontrava com ele e o ultrapassava, encolhendo-se como uma mola, ou

1 3 6 ü 'CONNOR subia ou descia atrás dele, dando pequenos suspiros trágicos com sabor a hortelã-pimenta. Parecia adorar a repugnância que Thomas sentia por ela e atiçá-lo sempre que tinha opor­ tunidade, como se isso aumentasse o seu martírio de uma forma deliciosa. O velho - pequeno, como uma vespa, com o seu panamá amarelecido, o seu fato leve de algodão, a sua camisa cor-de­ -rosa cuidadosamente suj a, a sua gravatinha estreita - pare­ cia ter-se instalado na cabeça de Thomas e a partir daí, nor­ malmente de cócoras, disparava as mesmas sugestões irritan­ tes cada vez que o rapaz fazia uma pausa dos seus estudos forçados. B ate o pé. Vai falar com o xerife. O xerife era uma outra edição do pai de Thomas, com a diferença de que usava uma camisa aos quadrados, um cha­ péu texano e era dez anos mais novo. Era facilmente deso­ nesto, e tinha realmente admirado o seu velho. Thomas, tal como a mãe, ter-se-ia desviado completamente do seu cami­ nho só para evitar aquele olhar azul claro e transparente. Continuava a esperar por outra solução, por um milagre. Com Sarah Ham em casa, as refeições eram um suplício . «0 Tomsee não gosta d e mim», disse e l a na terceira o u quarta noite à mesa do j antar e lançou o seu olhar amuado à enorme figura rígida de Thomas, cuj a face tinha a expressão de um homem encurralado por cheiros insuportáveis. «Ele não me quer aqui. Ninguém me quer aqui.» «0 nome do Thomas é Thomas», interrompeu a mãe. «E não Tomsee.» «Mas eu inventei a palavra Tomsee», disse ela. «Acho que é giro. Ele detesta-me.» «0 Thomas não te detesta», disse a mãe. «Não somos o tipo de pessoas que detestam», acrescentou, como se isso fosse uma imperfeição que tivesse desaparecido da família há muitas gerações. «Oh, eu percebo quando não sou desej ada», continuou Sarah Ham. «Nem sequer me quiseram na cadeia. Se eu me matasse, será que Deus me quereria?»

OS CONFORTOS DO LAR 1 3 7 «Experimenta e verás», murmurou Thomas. A rapariga riu às gargalhadas. Depois parou abruptamente, franziu a cara e começou a tremer. «Ü melhor a fazer», disse, batendo os dentes, «é matar-me. Assim saio do caminho de toda a gente. Vou para o inferno e saio do caminho de D eus. E mesmo o diabo não vai querer-me. Vai escorraçar-me a pontapé do inferno, e eu nem mesmo no inferno . . . », chora­ mingou. Thomas levantou-se, agarrou no prato, na faca e no garfo e levou-os para o gabinete de trabalho para acabar de j antar. Depois desta cena, decidiu nunca mais comer à mesa. Con­ venceu a mãe a servi-lo à secretária. Durante estas refeições, sentia intensamente a presença do velho. Parecia inclinar-se para trás na cadeira, com os polegares enfiados nos suspensó­ rios, enquanto dizia coisas como, Ela nunca me expulsou da minha própria mesa. Algumas noites mais tarde, Sarah Ham cortou os pulsos com uma faca de podar e ficou histérica. Do gabinete onde se tinha encerrado depois do j antar, Thomas ouviu um guincho, depois uma série de gritos, depois os passos apressados da mãe pela casa. Não se mexeu. O primeiro instante de esperança de que

a rapariga tivesse cortado

o pescoço

desvaneceu-se

quando se apercebeu de que ela não podia ter feito isso e con­ tinuar a gritar daquela maneira. Voltou ao seu diário e em breve os gritos cessaram. De repente, a mãe irrompeu pelo gabinete de casaco e chapéu. «Temos de levá-la ao hospital», disse. «Ela tentou matar-se. Pus-lhe um torniquete no braço. Meu Deus, Thomas», disse, «imagina que te sentes tão em baixo, ao ponto de fazeres uma coisa destas !» Thomas levantou-se rigidamente e vestiu o casaco e o cha­ péu. «Vamos levá-la ao hospital», disse, «e vamos deixá-la lá.» «E empurrá-la novamente para o desespero?», gritou a velha senhora. «Thomas !» Agora, de pé no meio do quarto, apercebendo-se de que tinha atingido o ponto em que a acção era inevitável, Thomas permaneceu imóvel.

1 3 8 o'coNNOR A sua fúria dirigia-se não à desavergonhada, mas à mãe. Apesar do médico ter constatado que a rapariga mal se tinha ferido, o que inflamou a sua raiva por aquele se ter rido do torniquete e apenas ter aplicado uma pincelada de mercuro­ cromo no corte, a mãe não conseguia esquecer o incidente. Uma nova carga de p esar parecia ter sido lançada sobre os seus ombros, e não era só Thomas, mas também Sarah Ham que estava irritada com isso, pois esta p arecia ser uma mágoa geral que teria encontrado outro obj ecto, mesmo que a for­ tuna bafej asse qualquer um deles. A experiência de Sarah Ham tinha mergulhado a velha senhora num luto pelo mundo. Na manhã seguinte à tentativa de suicídio, ela tinha per­ corrido a casa e recolhido todas as facas e tesouras e trancou­ -as numa gaveta. Esvaziou um frasco de veneno para ratos pela sanita abaixo e retirou as pastilhas para matar as baratas do chão da cozinha. Depois, foi até ao escritório de Thomas e sus­ surrou, «Onde está a pistola dele? Quero escondê-la.» «A pistola está na minha gaveta», rugiu Thomas, «e eu não vou escondê­ -la. Se ela se matar, tanto melhor!» «Thomas», disse a mãe, «ela vai ouvir-te ! » «Ela que me ouça !», gritou Thomas. «Não percebe que ela não tenciona de maneira nenhuma matar-se? Não p ercebe que os da laia dela nunca se matam? Não ... » A mãe esgueirou-se pela porta e fechou-a para o fazer calar-se e o riso de Sarah Ham, muito perto no corredor, en­ trou, matraqueando, pelo quarto dentro. «0 Tomsee vai ver. Eu vou-me matar e depois ele lamentará não ter sido simpático comigo. Vou usar a sua pistolazinha, o seu próprio revólverzi­ nho com cabo de madrepérola!», gritou ela e soltou uma gar­ galhada atormentada que imitava um monstro de um filme. Thomas rangeu os dentes. Abriu a gaveta da secretária e apalpou a pistola. Era uma herança do velho que tinha sido da opinião de que todas as casas deviam ter uma arma carregada. O velho tinha disparado duas b al as uma noite e atingido um vagabundo, mas Thomas nunca tocara na arma. Não receava que a rapariga a usasse contra si própria e fechou a gaveta. Os

OS CONFORTOS DO LAR 1 3 9 d a laia dela agarravam-se tenazmente

à

vida e eram sempre

capazes de arrancar vantagens teatrais de cada circunstância. Tinham-lhe surgido várias ideias de como se livrar dela, mas todas elas possuíam um tom moral que indicava terem vindo de um mente semelhante

à

do pai, e Thomas tinha-as rej eitado.

Não podia fazer com que a rapariga fosse presa de novo até ela ter feito qualquer coisa ilegal. O velho teria conseguido, sem quaisquer escrúpulos, embebedá-la e mandá-la para a auto­ -estrada no carro dele, avisando entretanto a brigada de trân­ sito da sua presença na estrada, mas Thomas considerava isto indigno da sua estatura moral. As sugestões continuaram a sur­ gir-lhe, cada uma mais ultrajante que a anterior. Não tinha a mais leve esperança de que a rapariga pegasse na arma e desse um tiro a si própria, mas nessa tarde, quando procurou na gaveta, a pistola tinha desaparecido. A porta do seu escritório fechava-se por dentro, não por fora. Não se importava com o revolver de cabo de madrepérola, mas a ideia das mãos de Sarah Ham remexendo nos seus papéis enfureceu-o. Agora até o seu escritório estava contaminado. O único local não conspurcado por ela era o quarto dele. Nessa noite ela entrou lá. No dia seguinte, ao pequeno-almoço, ele não comeu e não se sentou. Ficou de pé ao lado da cadeira e transmitiu o ulti­ mato enquanto a mãe beberricava o café como se estivesse sozinha na cozinha, e em grande sofrimento . «Suportei isto», disse ele, «O máximo de tempo que pude. Como vej o que cla­ ramente não se importa comigo, com a minha paz ou o meu conforto ou com as condições p ara eu poder trabalhar, estou prestes a tomar a única atitude possível. Vou-lhe dar mais um dia. Se voltar a trazer a rapariga para casa esta tarde, vou-me embora. Pode escolher - ela ou eu.» Tinha mais coisas a dizer, mas nessa altura a voz falhou-lhe e saiu.

Às Às

dez horas, a mãe e Sarah Ham saíram de casa. quatro, ele ouviu os pneus do carro no cascalho e cor­

reu para a j anela. Quando o carro parou, o cão levantou-se, alerta, tremendo.

1 40 O ' CONNOR Sentiu-se incap az de dar o primeiro passo que o levaria até ao armário da entrada para ir buscar a mala. Era como um homem a quem tivessem entregue uma faca e dito que se ope­ rasse a si próprio se quisesse sobreviver. Tinha as mãos enor­ mes cerradas num desamparo total. A sua expressão era um tumulto de indecisão e de ultraje. Os seus olhos azuis-claros pareciam transpirar na face afogueada. Fechou-os por um momento e, na parte posterior das pálpebras, a imagem do pai olhou-o de soslaio. Idiota !, sibilou o velho, Idiota ! A putéfia, a celerada roubou-te a arma ! Vai ter com o xerife ! Vai ter com o xerife ! Thomas só abriu os olhos passado um momento. Estava atordoado de uma forma que nunca experimentara antes. Ficou onde estava pelo menos durante três minutos. Depois virou-se, como uma embarcação enorme invertendo o rumo, e estacionou de frente para a porta. Ficou ali mais um momento, depois saiu, com a expressão de quem ia levar a provação até ao fim. Não sabia onde p oderia encontrar o xerife. O homem esta­ belecia as suas próprias regras e o seu próprio horário. Thomas parou primeiro na cadeia onde ficava o seu escritório, mas ele não estava lá. Foi ao tribunal e um funcionário disse-lhe que o xerife tinha ido ao b arbeiro, do outro lado da rua. «Ali está o ajudante dele», disse o funcionário e apontou pela j anela para a figura pesada de um homem com uma camisa aos qua­ drados que estava encostado a um carro da polícia, olhando para o vazio. «Tem que ser o xerife», disse Thomas e dirigiu-se para o barbeiro. Embora não quisesse ter nada a ver com o xerife, tinha consciência que o homem era pelo menos inteligente e não apenas um monte de carne que suava. O barbeiro disse-lhe que o xerife tinha acabado de sair. Thomas começou a dirigir-se de novo p ara o tribunal e ao subir para o p asseio, vindo da estrada, viu uma figura magra e ligeiramente curvada a gesticular com irritação p ara o aju­ dante.

OS CONFORTOS DO LAR 1 4 1 Thomas aproximou-se com uma agressividade provocada pelo nervosismo. Parou bruscamente a três passos e disse numa voz demasiado alta: «Posso dar-lhe uma palavra?», sem acrescentar o nome do xerife, que era Farebrother. Farebrother virou a sua cara astuta e enrugada apenas o suficiente para reconhecer Thomas, e o ajudante fez o mesmo, mas nenhum deles falou. O xerife retirou uma b eata minús­ cula do lábio e deixou-a cair aos seus pés. dá te disse o que tens a fazer», disse ao ajudante. D epois afastou-se com um ligeiro aceno que indicava que Thomas podia segui-lo se quisesse falar-lhe. O ajudante passou furtivamente pela fren­ te do carro da polícia e entrou. Farebrother, seguido por Thomas, atravessou o l argo do tribunal e p arou debaixo de uma árvore que lançava sombra a um quarto da relva da frente. Esperou, ligeiramente inclinado p ara a frente, e acen­ deu outro cigarro. Thomas começou a apresentar o assunto, gaguej ando. Como não tinha tido tempo de preparar o que ia dizer, era quase incoerente. Repetindo a mesma coisa várias vezes, con­ seguiu por fim dizer o que queria. Quando acabou, o xerife ainda estava ligeiramente inclinado para a frente, formando um ângulo com ele, com os olhos fixos em nada de especial. Permaneceu nessa posição sem falar. Thomas recomeçou, mais lentamente e numa voz mais débil, e Farebrother deixou- o continuar durante algum tempo antes de dizer: «Apanhámo­ -la uma vez.» Depois permitiu-se um semi-sorriso lento, enru­ gado e espertalhaço. «Não tive nada a ver com isso», disse Thomas. «Foi a minha mãe.» Farebrother pôs-se de cócoras. «Ela estava a tentar ajudar a rapariga», disse Thomas. «Ela não sabia que a rapariga não podia ser ajudada.» «Teve mais olhos que barriga, calculo», ruminou a voz por baixo dele. «Ela não tem nada a ver com isto», disse Thomas. «Ela não sabe que estou aqui. A rapariga é perigosa com aquela arma.»

1 42 O ' CONNOR

«Ele», disse o xerife, «não deixava que a relva lhe crescesse debaixo

dos pés. Especialmente qualquer coisa que uma

mulher tivesse semeado.» «Ela pode matar alguém com aquela arma», disse Thomas debilmente, olhando p ara baixo, para a copa redonda do cha­ péu texano. Fez-se um longo momento de silêncio. «Onde é que ela a tem?», perguntou Farebrother. «Não sei. Ela dorme no quarto de hóspedes. D eve lá estar, dentro da mala dela provavelmente», disse Thomas. Farebrother retomou novamente o silêncio. «Você podia vir lá a casa e fazer uma busca no quarto de hós­ pedes», disse Thomas esforçando a voz. «Posso ir para casa e dei­ xar o ferrolho da porta da frente aberto e você pode entrar silen­ ciosamente, subir as escadas e fazer uma busca ao quarto dela.» Farebrother virou a cabeça de forma a poder olhar para os j oelhos de Thomas. «Parece saber como as coisas devem ser feitas», disse. «Quer trocar de profissão comigo?» Thomas não disse nada, porque não se lembrou de nada para dizer, mas esperou obstinadamente. Farebrother tirou a beata dos lábios e deixou-a cair na relva. Por trás dele, na varanda do tribunal, um grupo de pessoas ociosas que tinham estado encos­ tadas do lado esquerdo da porta, passou para o lado direito, onde o sol brilhava. Um pedaço de papel amachucado voou de uma das janelas do andar de cima e caiu, rodopiando. «Vou por volta das seis», disse Farebrother. «Deixe o ferro­ lho fora da porta e não se atravesse no meu caminho - você e aquelas duas mulheres.» Thomas deixou escapar um som áspero de alívio que pre­ tendia significar «Obrigado», e atravessou rapidamente a relva como alguém finalmente posto em liberdade. A frase, «aque­ las duas mulheres», prendia-se-lhe como um ouriço ao espírito - a subtileza do insulto

à

mãe ferindo-o mais do que qualquer

das referências de Farebrother

à

sua própria incompetência.

Ao entrar no carro, ficou subitamente afogueado. Teria entre­ gue a mãe ao xerife - para que ela se tomasse um alvo para

OS CONFORTOS DO LAR 1 43 a língua afiada do homem? Estaria a atraiçoá-la para se livrar da putéfia? Viu rapidamente que o caso não era esse. Estava a fazer aquilo p ara o próprio bem da mãe, p ara a livrar de um parasita que lhes destruíra o sossego. Ligou o motor e guiou rapidamente até casa ; mas, depois de ter virado para a en­ trada, decidiu que seria melhor estacionar a alguma distância do edifício e entrar silenciosamente pelas traseiras. Estacionou na relva e caminhou nesse verde, traçando um círculo até às traseiras da casa. O céu estava coberto por traços cor de mos­ tarda. O cão dormia no tapete das traseiras. Quando os passos do dono se aproximaram, abriu um olho amarelo, reconheceu­ -o e fechou-o novamente. Thomas entrou na cozinha. Estava vazia, e a casa encontrava-se suficientemente silenciosa para ele se aperceber do tique-taque sonoro do relógio. Faltava um quarto para as seis. Atravessou rapidamente a entrada em bicos de pés até à porta da frente e retirou o ferrolho. Depois parou um pouco à escuta. Por detrás da porta fechada da sala, ouviu a mãe a resso­ nar

calmamente

e

p resumiu

que

ela

teria

adormecido

enquanto lia. Do outro lado da entrada, nem a três p assos do seu escritório, o casaco preto e a bolsa vermelha da putéfia estavam pendurados numa cadeira. Ouviu água a correr no andar de cima e calculou que ela estaria a tomar banho. Entrou no escritório e sentou-se à secretária para esperar, notando com desagrado que um tremor o percorria de vez em quando. Esteve sentado por um minuto ou dois sem fazer nada. Depois agarrou numa caneta e começou a desenhar quadrados nas costas de um envelope que estava à sua frente. Olhou para o relógio. Faltavam onze minutos para as seis. Após um momento, abriu indolentemente a gaveta central da secretária por cima do colo. Durante um momento, olhou fixamente para a arma sem a reconhecer. Depois soltou um grito e deu um s alto. Ela tinha-a posto de novo no sítio ! Idiota !, sibilou o p ai, Idiota ! Vai pô-la na mala dela. Não fiques aí parado. Vai pô-la na mala dela. Thomas ficou parado fixando a gaveta.

1 44 o'CONNOR Atrasado mental ! Encolerizava-se o p ai. Rápido, enquanto ainda tens tempo ! Vai pô-la na mala dela. Thomas não se mexeu. Imbecil ! , gritou o pai. Thomas agarrou na arma. Apressa-te, estúpido, ordenou o pai. Thomas pôs-se em movimento, segurando na arma com o braço esticado. Abriu a porta e olhou para a cadeira. O casaco preto e a bolsa vermelha estavam em cima dela quase ao seu alcance. Despacha-te, parvo, disse o pai. Por trás da porta da sala o ressonar quase inaudível da mãe aumentava e diminuía. Parecia marcar uma ordem do tempo que não tinha nada a ver com os instantes que restavam a Thomas. Não se ouvia qualquer outro som. Depressa, imbecil, antes que ela acorde, disse o velho. O ressonar p arou e Thomas ouviu as molas do sofá gemer. Agarrou na bolsa vermelha. D ava uma sensação de pele ao toque e ao abri-la, sentiu o cheiro inconfundível da rapariga. Estremecendo, atirou a arma para dentro e afastou-se. A cara dele ardia e adquirira uma cor vermelho escura extrema­ mente desagradável.

«0

que é que o Tomsee está a pôr na minha bolsa?», gritou

ela, e as suas gargalhadas satisfeitas saltaram pelas escadas abaixo. Thomas voltou-se rapidamente. Ela estava no cimo das escadas, descendo como se fosse um modelo de moda, uma perna nua a seguir à outra, apare­ cendo à frente do quimono de acordo com um ritmo definido.

«0

Tomsee está a ser maroto», disse ela numa voz rouca.

Chegou aos pés da escada e l ançou um olhar possessivo de soslaio a Thomas, cuj a cara estava agora mais cinzenta do que vermelha. A rapariga esticou a mão, abriu a mala com o dedo e observou a arma. A mãe abriu a porta da sala e olhou p ara fora.

«0

Tomsee pôs a pistola dele dentro da minha mala !»,

guinchou a rapariga.

OS CONFORTOS DO LAR 1 4 5 «Ridículo», disse a mãe, boctjando. «Para que é que o Thomas iria pôr a pistola dentro da tua mala?» Thomas estava ligeiramente curvado, com as mãos pen­ dendo desamparadamente pelos pulsos como se tivesse aca­ bado de tirá-las de uma poça de sangue. «Não sei p ara quê», disse a rapariga, «mas que o fez, não há dúvida.», e começou a andar à volta de Thomas, com as mãos nas ancas, o pescoço esticado para a frente e o seu sor­ riso íntimo ferozmente fixo nele. De repente, a expressão dela pareceu abrir-se como a bolsa se tinha aberto quando Thomas lhe tinha tocado. Ficou parada com a cabeça inclinada para um lado numa atitude de incredulidade. «Credo», disse lenta­ mente, «que exemplar tu me saíste.» Nesse instante, Thomas amaldiçoou não só a rapariga, como toda a ordem universal que a tinha tomado possível. «0 Thomas não iria pôr uma arma na tua mala», disse a mãe. «0 Thomas é um cavalheiro. » A rapariga deu u m a risada. «Pode vê-la a l i dentro», disse ela e apontou para a bolsa aberta.

Encontraste-a na mala dela, estúpido !, sibilou o velho . «Encontrei-a na mala dela!», gritou Thomas. «A porca da cabra delinquente roubou-me a arma !» A mãe ofegou ao ouvir a outra presença na voz dele. A face semelhante a uma sibila da velha senhora empali­ deceu. «Encontrou-a uma ova !», guinchou Sarah Ham e correu para a bolsa, mas Thomas, como se o seu braço fosse guiado pelo pai, foi o primeiro a agarrá-la e apo derou-se da arma. A rapariga, num frenesim, atirou-se ao pescoço de Thomas, e tê-lo-ia apertado com toda a força se a mãe não se tivesse colocado na frente. Dispara !, gritou o velho. Thomas disparou. A detonação foi como um ruído que pretendesse acabar com o mal no mundo. Thomas ouviu-o como um trovão que destruiria as gargalhadas das desaver­ gonhadas até todos os gritos se calarem e nada ficar a per­ turbar a paz da ordem perfeita.

1 46 o'CONNOR O eco desvaneceu-se em ondas. Antes da última onda desaparecer, Farebrother abriu a porta e pôs a cabeça dentro da entrada. O seu nariz franziu-se. A sua expressão foi, durante alguns segundos, a de alguém que não queria admi­ tir surpresa. Os seus olhos estavam límpidos como água, reflectindo a cena. A velha senhora estava estendida no chão entre a rapariga e Thomas. O cérebro do xerife funcionou rapidamente, como uma máquina calculadora. Viu os factos como se j á estivessem publicados : o suj eito tinha, desde o início, intenções de matar a mãe e de pôr as cul­ pas na rapariga. Mas Farebrother tinha sido demasiado esperto para ele. Ainda não se tinham apercebido da cabeça dele à porta. Enquanto observava a cena, apareciam-lhe em lampej os percepções novas. Por sobre o corpo, o assassino e a cabra esta­ vam prestes a cair nos braços um do outro. O xerife sabia reco­ nhecer um quadro sórdido quando via um. Estava acostumado a interromper cenas que não eram tão más como ele desej aria, mas esta correspondia totalmente às suas expectativas.

OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO Sheppard estava sentado num banco ao balcão que dividia a cozinha ao meio, a comer cereais do pacote individual de car­ tão. Comia mecanicamente, com os olhos postos na criança que, de armário em armário na cozinha composta por painéis, ia recolhendo os ingredientes para o seu pequeno-almoço. Era um rapaz louro e robusto de dez anos. Sheppard mantinha os olhos intensamente azuis fixos nele. O futuro do rapaz estava­ -lhe estampado na cara. la ser banqueiro. Não, pior do que isso. Havia de dirigir uma pequena companhia de empréstimos. Tudo o que ele queria para o filho era que ele fosse bom e generoso, e nenhuma dessas coisas parecia provável. Sheppard era um homem novo mas tinha já o cabelo branco. Ficava-lhe espetado como um halo estreito e hirsuto por cima da face rosada e sensível. O rapaz aproximou-se do balcão com o frasco de manteiga de amendoim debaixo do braço, um prato com um quarto de um pequeno bolo de chocolate numa mão e a garrafa do

ketchup na

outra. Pareceu não dar pelo pai. Subiu para o banco e come­ çou a barrar o bolo com a manteiga de amendoim. Tinha umas orelhas redondas enormes que se distanciavam da cabeça e pareciam afastar-lhe um pouco demais os olhos um do outro. Vestia uma camisa verde que estava tão desbotada

1 48 ü 'CONNOR que o

cowboy que investia na p arte da frente não p assava de

uma sombra. «Norton», disse Sheppard, «ontem vi o Rufus Johnson. Sabes o que é que ele estava a fazer?» A criança olhou para ele com uma espécie de semiatenção, o olhar dirigido para a frente, sem que fixasse em algum ponto. Tinha os olhos de um azul mais claro que os do pai, como se pudessem ter desbotado com a camisa ; um deles inclinava-se, quase imperceptivelmente, para o canto exterior. «Estava num beco», disse Sheppard, «e tinha a mão dentro de um caixote do lixo. Estava a tentar tirar alguma coisa para comer.» Fez uma pausa para deixar que isto penetrasse fundo.
dele», disse Sheppard lentamente. Não havia

hipótese. Quase todos os defeitos seriam preferíveis ao egoísmo - um temperamento violento, até uma tendência para mentir. A criança virou o frasco de

ketchup de pernas para o ar e

começou a despej á-lo em cima do bolo. A expressão de sofrimento de Sheppard aumentou. «Tu tens dez anos e o Rufus Johnson tem catorze», disse. «No entanto, tenho a certeza que as tuas camisas serviriam ao Rufus.» Rufus Johnson era um rapaz que ele tinha tentado ajudar no refo rmatório ao longo do último ano. Tinha sido libertado há dois meses. «Quando estava no reformatório p arecia bastante bem, mas quando o vi ontem era só pele e osso. Não tem comido bolo b arrado de manteiga de amen­ doim ao pequeno-almoço.» A criança parou. «Está seco», disse. « É por isso que tenho que barrá-lo com qualquer coisa.»

OS COXOS HÃO-DE ENlRAR PRIMEIRO 1 49 Sheppard virou a cara para a j anela na extremidade do bal­ cão. O relvado ao lado da casa, verde e uniforme, descia cerca de mil e quinhentos metros até uma pequena mata suburbana. Quando a mulher era viva, tinham comido muitas vezes no exterior.

Às

vezes até tomavam o pequeno - almoço sobre a

relva. Nesse tempo não se tinha apercebido que a criança era egoísta. «Presta atenção», disse, voltando-se para ele, «olha para mim e presta atenção.» O rapaz olhou para ele. Pelo menos os olhos dele olhavam para a frente. «Dei ao Rufus uma chave cá de casa quando ele saiu do reformatório - p ara lhe mostrar que confiava nele e p ara que ele tivesse um sítio onde pudesse ir e sentir-se acolhido em qualquer altura. Ele não a usou, mas acho que a vai usar agora porque me encontrou e p orque tem fome. E se ele não a usar, irei à procura dele e vou trazê-lo para cá. Não aguento ver uma criança a comer restos tirados de caixotes do lixo.» O rapaz franziu a testa. Começava a aperceber-se que alguma coisa do que lhe pertencia estava sob ameaça. A boca de Sheppard distendeu-se, descontente. «0 pai do Rufus morreu antes de ele nascer», disse. «A mãe está na peni­ tenciária estadual. Foi criado pelo avô numa barraca sem água nem

electricidade

e o velho

espancava-o

todos

os

dias.

Gostavas de pertencer a uma família assim?» «Não sei», disse a criança debilmente. «Bem, podes pensar nisso de vez em quando», disse Sheppard. Sheppard era responsável pelo programa de actividades recreativas do município. Ao sábado trabalhava no reformató­ rio como conselheiro, sem receber nada em troca para além da satisfação de saber que estava a ajudar rapazes com quem mais ninguém se preocupava. Johnson era o rapaz mais inteligente com quem ele tinha trabalhado, e de todos o mais despoj ado. Norton virou o que sobrava do bolo como se já não o qui­ sesse. «Talvez ele não venha», disse a criança, e os olhos ilumina­ ram-se-lhe ligeiramente.

1 50 o'CONNOR «Pensa em tudo o que tu tens e que ele não tem !», disse Sheppard. «Imagina que tinhas de vasculhar em caixotes do lixo para encontrares comida? Imagina que tinhas um pé inchado, enorme, e que um dos lados do teu corpo se inclinava mais que o outro quando andavas?» O rapaz ficou com uma expressão vazia, obviamente inca­ paz de imaginar tal coisa. «Tu tens um corpo saudável», disse Sheppard, «uma boa casa. Nunca te ensinaram nada a não ser a verdade. O teu pai dá-te tudo o que precisas e tudo o que queres. Não tens um avô que te bate. E a tua mãe não está na penitenciária estadual.» A criança afastou o prato. Sheppard suspirou em voz alta. Um nó de carne apareceu por baixo da boca do rapaz subi­ tamente distorcida. A cara transformou-se numa massa de inchaços com frestas para os olhos. «Se ela estivesse na peni­ tenciária», começou a dizer numa espécie de ruído subterrâneo, «eu podia ir vêêêêêê-la.» Rolaram-lhe lágrimas pela cara abaixo e o

ketchup desceu-lhe pelo queixo. Parecia que lhe

tinham batido na boca. Abandonou-se à dor e berrou. Sheppard ficou sentado, desamparado e infeliz, como um homem vergastado por uma qualquer força elementar da natu­ reza. Aquela não era uma dor normal. Fazia tudo parte do egoísmo do miúdo. A mãe tinha morrido há mais de um ano e a dor de uma criança não deveria durar tanto. «Vais fazer onze anos», disse num tom reprovador. A criança começou a fazer um ruído aflitivo, agudo e ofe­ gante. «Se deixares de pensar em ti e pensares no que podes fazer por outra pessoa», disse Sheppard, «vais deixar de sentir a falta da tua mãe.» O rapaz ficou em silêncio mas os seus ombros continuaram a tremer. Depois o seu semblante desfaleceu e começou a ber­ rar de novo. «Achas que eu também não me sinto sozinho sem ela?», disse Shepp ard. «Achas que eu nem sinto a falta dela? Sinto, mas não fico sentado a lamentar-me. Ocupo-me a ajudar

OS COXOS HÃO-DE EN1RAR PRIMEIRO 1 5 1 outras pessoas. Quando é que me vês simplesmente sentado a pensar nos meus problemas?» O rapaz afundou-se na cadeira como se estivesse exausto, com lágrimas novas a rolarem-lhe pela cara abaixo. «Ü que é que vais fazer hoje?», perguntou Sheppard, para que ele pensasse noutra coisa. O rapaz passou o braço pelos olhos. «Vender sementes», murmurou. Sempre a vender qualquer coisa. Tinha quatro frascos de litro cheios de moedas de níquel e de dez cêntimos que ia amealhando, e tirava-os do armário de tantos em tantos dias e contava-os. «Para que é que andas a vender sementes?11 «Para ganhar um prémio.» «Qual é o prémio ?11 «Mil dólares.» «E o que é que farias se tivesses mil dólares?» «Guardava-os», disse a criança e limpou o nariz ao ombro. «Tenho a certeza que era isso que farias», disse Sheppard. «Ouve», disse e baixou a voz para um tom quase de súplica, «imagina que por sorte ganhavas mesmo mil dólares. Não gos­ tarias de os gastar com crianças menos afortunadas que tu? Não gostarias de dar baloiços e trapézios ao orfanato? Não gostarias de comprar um sapato novo ao pobre do Rufus Johnson?» O rapaz começou a afastar-se do b alcão.

Depois,

de

repente, inclinou-se p ara a frente e ficou debruçado com a boca aberta por cima do prato. Sheppard suspirou de novo . Veio tudo fora, o bolo, a manteiga de amendoim, o -

ketchup

uma papa doce e mole. Ficou debruçado sobre a regurgita­

ção enquanto continuava a vomitar até estancar o fluxo, e ficar com a boca aberta por cima do prato, como se esperasse que o coração lhe viesse à boca a seguir. «Está tudo bem11, disse Sheppard, «está tudo bem. Não con­ seguiste evitá-lo. Limpa a boca e vai deitar-te.» A criança permaneceu como estava durante mais um mo­ mento. Depois ergueu a cara e olhou para o pai sem o fixar. «Vai lá», disse Sheppard. «Vai lá deitar-te. »

1 52 o'CONNOR O rapaz puxou a extremidade da camisola e limpou a boca. D ep ois desceu do banco, atravessou a cozinha e saiu. Sheppard ficou sentado fixando a poça de comida meio digerida. O cheiro azedo atingiu-o e fê-lo inclinar-se para trás. A comida veio-lhe à boca. Levantou-se e levou o prato para o lava-loiça,

abriu a torneira e observou

com

repugnância

enquanto a mistela desaparecia pelo cano abaixo. A mão magra e triste de Johnson procurava comida dentro de caixotes de lixos, enquanto o seu próprio filho, egoísta, indiferente, sôfrego, tinha tanto que vomitava. Fechou a tor­ neira empurrando-a com a mão fechada. Johnson p ossuía uma verdadeira capacidade de resposta e tinha sido privado de tudo desde o nascimento ; Norton era apenas mediano, ou talvez mesmo abaixo da média, e tivera todas as vantagens. Voltou ao balcão para acabar o pequeno-almoço. Os cereais estavam moles na embalagem de cartão mas ele não prestou atenção ao que estava a comer. Johnson merecia qualquer esforço porque tinha potencial. Ele tinha-se apercebido disso a partir do momento em que o rapaz entrou a coxear para a sua primeira entrevista. O gabinete de Sheppard no reformatório era um cubículo estreito com uma j anela e uma mesa pequena e duas cadeiras. Nunca estivera no interior de um confessionário mas pensava que devia ser um processo semelhante ao que ele tinha ali, com a excepção que ele explicava, não absolvia. As suas credenciais eram menos dúbias do que as de um padre ; ele, pelo menos, tinha sido treinado para o que fazia. Quando Johnson entrou para a primeira entrevista, ele tinha estado a ler o processo do rapaz - destruição sem sen­ tido, j anelas partidas, incêndios de caixotes do lixo municipais - o tipo de coisas que encontrava sempre nos locais onde os rapazes tinham sido transplantados abruptamente do campo p ara a cidade, como era o caso. Chegou ao QI de Johnson. Tinha um QI de 1 40. Ergueu vivamente as sobrancelhas. O rapaz estava sentado, de ombros descaídos, à beira da cadeira, com os braços pendentes entre as coxas. A luz vinda

OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO 1 5 3 da j anela incidia-lhe na face. Os olhos, cor de aço e imóveis, estavam obstinadamente fixos em frente. Os seus cabelos finos e escuros pendiam numa madeixa lisa sobre a testa, não de forma descuidada como a de um rapaz, mas antes de forma feroz, como a de um velho. Era perfeitamente palpável na sua cara a posse de uma espécie de inteligência fanática. Sheppard sorriu para diminuir a distância entre eles. A expressão do rapaz não se suavizou. Recostou-se na cadeira e ergueu até ao joelho um monstruoso pé boto. O pé estava dentro de um sapato preto pesado, muito gasto e com uma sola de dez a doze centimetros de grossura. O cabedal separava-se dela num sítio e a extremidade de uma meia vazia proj ectava-se para o exterior como uma língua cinzenta de uma cabeça decepada. O caso tomou-se imediatamente claro para Sheppard. Os distúrbios que provocava serviam para com­ pensar o pé. «Bem Rufus», disse, «vej o aqui no teu relatório que apenas te resta um ano p ara cumprir. O que é que tencionas fazer quando saíres?» «Eu não faço planos», disse o rapaz. O seu olhar deslocou­ -se com indiferença para qualquer coisa do lado de fora da j anela por trás de Sheppard, na distância. «Talvez devesses fazê-lo», disse Sheppard e sorriu. Johnson continuou a olhar para além dele. «Quero ver-te aproveitar tanto quanto possível a tua inteli­ gência», disse Sheppard. «0 que é que é mais importante para ti? Vamos falar do que é importante para

ti. » Os olhos desce­

ram-lhe involuntariamente até ao pé. «Estude-o até se fartar», disse o rapaz de forma arrastada. Sheppard corou. A massa deformada e negra inchou diante dos seus olhos. Ignorou o comentário e o olhar de soslaio que o rapaz lhe lançava. «Rufus», disse, «meteste-te em muitos sari­ lhos sem sentido mas acho que, quando perceberes por que é que fazes estas coisas, vais ficar menos inclinado a fazê-las.» Sorriu. Aqueles rapazes tinham tão poucos amigos, viam tão poucas caras simpáticas, que metade da sua eficácia provinha

1 54 o'CONNOR apenas de lhes sorrir. «Há muitas coisas acerca de ti próprio que acho que posso explicar-te», disse. Johnson olhou para ele friamente. «Eu não pedi explicação nenhuma», disse. «Eu já sei por que é que faço o que faço.» «Bom, óptimo !», disse Sheppard. «Então talvez p ossas dizer­ -me o que te levou a fazer as coisas que fizeste. » U m brilho negro surgiu n o s olhos do rapaz. «Satanás», disse. «Ele tem-me em seu poder.» Sheppard olhou para ele fixamente. Não havia sinais no semblante do rapaz de que ele tivesse dito isto para ter graça. A linha da sua boca estreita denotava orgulho. Os olhos de Sheppard endureceram. Sentiu momentaneamente um deses­ pero surdo como se fosse confrontado com uma qualquer trama elementar da natureza que tinha ocorrido há demasiado tempo para poder ser corrigida neste momento. As questões deste rapaz quanto à vida tinham obtido resposta através de cartazes afixados em pinheiros: SATANÁ S TEM-TE EM SEU PODER? ARREPENDE-TE OU ARDE NO INFERNO. JESUS SALVA. Ele reconhecia a Bíblia, mesmo sem a ler. O seu desespero foi subs­ tituído por afronta. «Que disparate !», bufou. «Vivemos na era espacial ! É s esperto demais para me dares uma resposta dessas.» A boca de Johnson torceu-se ligeiramente. O seu olhar era desdenhoso mas divertido. Havia uma cintilação de desafio nos seus olhos. Sheppard escrutinou-lhe a face. Tudo era possível desde que existisse inteligência. Sorriu de novo, um sorriso que era como um convite ao rapaz para que entrasse numa sala de aula com todas as j anelas escancaradas à luz. «Rufus», disse, «vou fazer diligências para que tenhas um encontro comigo uma vez por semana. Talvez haj a uma explicação para a tua explicação. Talvez eu possa explicar-te o teu demónio. » Depois disso, tinha falado c o m Johnson todos os sábados até ao fim do ano. Falava sem método, sobre o tipo de assun­ tos de que o rapaz nunca teria ouvido falar antes. Falava de coisas que o ultrapassavam um pouco, para lhe dar qualquer coisa que desej asse alcançar. Deambulava pela simples psico-

OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO 1 5 5 logia e pelos ardis da mente humana, até à astronomia e às cápsulas espaciais que circulavam à volta da terra mais rápi­ das do que a velocidade do som e que em breve rodeariam as estrelas. Concentrou-se por instinto nas estrelas. Queria dar ao rapaz algo para ele desej ar obter para além dos pertences dos seus vizinhos. Queria alargar-lhe os horizontes. Queria que ele

visse o universo, que visse que os seus pontos mais escuros podiam ser penetrados. D aria tudo para conseguir colocar um telescópio nas mãos de Johnson. Johnson falava pouco ; e no que dizia, por causa do seu orgulho, discordava ou contradizia sem sentido, com o pé boto sempre erguido sobre o j oelho como uma arma pronta a ser usada, mas Sheppard não se deixava enganar. Observava-lhe os olhos e todas as semanas via qualquer coisa esboroar"'."se no seu interior. Olhando para o semblante do rapaz, empedernido mas chocado, resistindo à luz que o devastava, percebia que estava mesmo a acertar no núcleo. Johnson estava agora livre para viver do que encontrava nos caixotes de lixo e redescobrir a sua antiga ignorância. A inj ustiça de tudo aquilo era exasperante. Tinha sido entre­ gue de novo ao avô ; a imbecilidade do velho era imaginável. Talvez o rapaz já lhe tivesse fugido. A ideia de conseguir a cus­ tódia de Johnson tinha ocorrido a Sheppard anteriormente, mas o facto de haver um avô estava sempre ali interposto. Nada o excitava tanto como pensar o que poderia fazer por aquele rapaz. Primeiro trataria de arranjar-lhe um novo sapato ortopédico, feito por medida. A coluna de Rufus ficava dese­ quilibrada de cada vez que ele dada um passo. Depois enco­ raj á-lo-ia a ter um interesse intelectual específico. Pensou no telescópio. Podia comprar um daqueles em segunda mão, e depois podiam colocá-lo na j anela do sótão. Ficou sentado durante quase dez minutos a pensar no que podia fazer se tivesse Johnson aqui com ele. O que era desperdiçado em Norton faria Johnson desabrochar. Ontem, quando o vira com a mão dentro do caixote do lixo, tinha-lhe acenado e dirigiu­ -se a ele. Johnson tinha-o visto, parou durante um milésimo

1 5 6 ü 'CONNOR de segundo, e depois desapareceu com a velocidade de um rato, mas não antes de Sheppard ter visto a sua expressão mudar. Algo se acendeu nessa altura nos olhos do rapaz, disso tinha a certeza, uma recordação da luz perdida. Levantou-se e atirou a caixa de cereais para o lixo. Antes de sair de casa, deu uma vista de olhos ao quarto de Norton p ara se certificar de que ele já não se sentia maldisposto. A criança estava sentada de pernas cruzadas em cima da cama. Tinha despej ado os frascos de moedas numa p ilha grande à sua frente e estava a organizá-las por pilhas de cinco, dez e vinte cêntimos.

Nessa tarde Norton estava sozinho em casa, sentado no chão do quarto a colocar pacotes de sementes de flores em fila à sua volta. A chuva chicoteava os vidros da j anela e matra­ queava no algeroz. O quarto estava escuro mas era iluminado de vez em quando por relâmpagos silenciosos e os pacotes de sementes ficavam

alegremente visíveis no

chão.

Sem se

mexer, assim de p ernas cruzadas, o miúdo era como uma enorme rã pálida no meio do seu j ardim potencial. De repente, os olhos ficaram-lhe em alerta. Sem aviso, a chuva tinha pa­ rado. O silêncio era pesado, como se a chuvada tivesse sido abafada através da violência. Continuou imóvel, movendo apenas os olhos. Do silêncio chegou-lhe o clique de uma chave a rodar na fechadura da porta de entrada. O ruído era muito cauteloso. Chamou a atenção para si próprio e manteve-a como se fosse controlado mais pelo pensamento do que pelo corpo. Deu um salto e entrou no armário. Os passos começaram a mover-se no vestfüulo. Eram deli­ berados e irregulares, um leve e depois um pesado, depois silêncio como se o visitante tivesse parado para ouvir ou exa­ minar alguma coisa. Um minuto depois, a porta da cozinha chiou. Os passos atravessaram-na até ao frigorifico. A parede era a mesma que a do armário. Norton permaneceu com o

OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO 1 5 7 ouvido colado a ela. A porta do frigorífico abriu-se. Houve um silêncio prolongado. Descalçou os sapatos e depois saiu do armário em bicos de pés e passou por cima dos pacotes de sementes. No meio do quarto parou e ali ficou, hirto. Um rapaz magro de face ossuda, vestido com um fato preto todo molhado, estava parado à sua porta, bloqueando-lhe a fuga. Tinha o cabelo agarrado à cabeça por causa da chuva. Parecia um corvo furioso e encharcado. O seu olhar percorreu a criança de alto a baixo e paralisou-a. Depois, os seus olhos começaram a mover-se sobre tudo o que estava no quarto - a cama por fazer, as cortinas suj as na única j anela grande, a fotografia de uma mulher j ovem de face larga que se encontrava no meio da desordem em cima do toucador. A língua da criança soltou-se de repente. «Ele tem estado à tua espera, vai-te dar um sapato novo porque precisas de comer o que está nos caixotes do lixo !», disse numa espécie de guin­ cho de rato. «Eu como coisas tiradas do lixo,., disse o rapaz lentamente, com os olhos semicerrados, «porque gosto de comer coisas tira­ das do lixo. Percebes?» A criança disse que sim com a cabeça. «E eu tenho maneiras de arranj ar o meu próprio sapato. Percebes?» A criança disse que sim com a cabeça, hipnotizada. O rapaz entrou a coxear e sentou-se na cama. Concertou uma almofada atrás de si e esticou a perna mais curta de forma a que o sapato preto enorme repousasse conspicuamente numa dobra do lençol. O olhar de Norton fixou-se nele e imobilizou-se. A sola era da grossura de um tijolo. Johnson agitou-o ligeiramente e sorriu. « Se eu der

um pon­

tapé a alguém com este», disse, «isso ensina-lhes a não se mete­ rem comigo.,. A criança disse que sim com a cabeça. «Vai à cozinha», disse Johnson, «e faz-me uma sanduíche com aquele pão de centeio e fiambre e traz-me um copo de leite.»

1 5 8 ü ' CONNOR Norton saiu como se fosse um brinquedo mecânico, empur­ rado na direcção certa. Fez uma enorme sanduíche, cheia de gordura, com fiambre a sair dos lados, e encheu um copo de leite. Depois voltou ao quarto com o copo de leite numa mão e a sanduíche na outra. Johnson estava encostado na almofada como se fosse um rei. «Obrigado, empregado», disse e agarrou na sanduíche. Norton ficou ao lado da cama, segurando no copo. O rapaz deu uma dentada na sanduíche e comeu sem parar até acabar. Depois agarrou no copo de leite. Segurou-o com ambas as mãos como uma criança; e, quando o baixava para respirar, havia uns bigodes de leite sobre a sua boca. Entregou o copo vazio a Norton. «Vai-me ali buscar uma daquelas laran­ j as, empregado», disse asperamente. Norton foi à cozinha e voltou com a l aranja. Johnson des­ cascou-a com os dedos e deixou cair a casca na cama. Comeu­ -a lentamente, cuspindo os caroços para a frente. Quando aca­ bou, limpou as mãos ao lençol e olhou p ara Norton longa e apreciativamente. Parecia ter ficado amolecido pelo serviço. «É s mesmo filho dele», disse Johnson, «Tens a mesma cara de estúpido.» A criança ficou ali, impassível, como se não tivesse ouvido. «Ele não

distingue

a mão

esquerda

da

direita»,

disse

Johnson com um prazer rouco na voz. A criança dirigiu o olhar para um ponto da parede ligeira­ mente ao lado da cara de Johnson e olhou-o fixamente. «Blá, blá, blá», disse Johnson, «e nunca diz nada.» O lábio superior da criança ergueu-se ligeiramente, mas voltou a não dizer nada. «Conversa fiada», disse Johnson. «Conversa fiada.» A cara da criança começou a mostrar um

ar cauteloso

de beli­

gerância. Recuou ligeiramente como se estivesse preparado para fugir de repente. «Ele é bom», murmurou, «ele ajuda as pessoas.» «Bom!», disse Johnson com brutalidade. Atirou a cabeça para a frente. «Ouve bem», assobiou, «Não me interessa se ele é bom ou não. Ele não tem razão!»

OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO 1 59 Norton parecia atordoado. A porta de rede da cozinha bateu e alguém entrou. Johnson endireitou-se instantaneamente. «É ele?», perguntou. «É a cozinheira», disse Norton. «Costuma vir à tarde.» Johnson levantou-se, coxeou até ao vestíbulo e ficou parado à porta da cozinha e Norton seguiu-o. A empregada de cor estava no cubículo a despir um imper­ meável vermelho vivo. Era uma rapariga alta de pele amarelo­ -claro com uma boca como uma grande rosa que tivesse escu­ recido e murchado. O cabelo estava penteado em trancinhas no cimo da cabeça e inclinava-se para o lado como a Torre de Pisa. Johnson fez um ruído através dos dentes. «Bem bem. Olhem só p ara a nossa Aunt Jemima l 5l ,., disse. A rapariga parou e deitou-lhes um olhar insolente. Era como se fossem o pó do chão. «Vamos lá», disse Johnson, «vamos lá ver tudo aquilo que tens para além de uma preta.» Abriu a primeira porta à sua direita no vestíbulo e olhou para dentro de uma casa de banho com azulej os cor- de-rosa. «Uma sanita cor-de-rosa !», murmurou. Voltou uma cara cómica para a criança. «Ele senta-se naquilo?» «É para as visitas», disse Norton, «mas ele senta-se lá de vez em quando.» «Ele devia esvaziar a cabeça para dentro dela», disse Johnson. A p o rta da divisão seguinte estava aberta. Era o quarto onde Sheppard dormia desde que a mulher tinha morrido. Havia uma cama de ferro de aspecto ascético no chão vazio. Um monte de uniformes da Liga Infantil de

baseball estava

empilhado a um canto. Em cima de uma grande secretária de fechar, viam-se pilhas de papéis espalhados, seguras em vários sítios pelos cachimbos. Johnson ficou parado a olhar [ 5]

Logótipo muito antigo de uma marca de farinha para panquecas extremamente popular,

consistindo numa negra gorda de lenço na cabeça, com o sorriso rasgado geralmente asso­ ciado à subserviência dos escravos libertados. Na última década, depois de várias pressões, esta senhora tomou-se menos caricatural e mais politicamente correcto. (N. da T.)

1 60 ü ' CONNOR para o quarto em silêncio. Torceu o nariz. «Adivinha quem é?», disse. A porta do quarto seguinte estava fechada mas Johnson abriu-a e enfiou a cabeça na sua semi-obscuridade.

As

persia­

nas estavam descidas e o ar abafado tinha um leve cheiro a perfume. Havia uma cama antiga e larga e um toucador gigantesco cuj o espelho cintilava na meia-luz. Johnson acendeu o inter­ ruptor da electricidade ao lado da porta e atravessou o com­ partimento até ao espelho e espreitou p ara dentro dele. Um pente e uma escova de prata estavam p ousados sobre o nape­ ron de linho. O rapaz pegou no pente e começou a passá-lo pelo cabelo. Penteou-o todo para baixo, por cima da testa. Depois puxou-o para o lado, ao estilo de Hitler. «Não mexas no pente dela!», admoestou o miúdo. Estava à porta, muito pálido, e a respirar pesadamente, como assistisse a um sacrilégio num local sagrado. Johnson pousou o pente, agarrou na escova e deu uma escovadela ao cabelo. «Ela morreu», disse a criança. «Não tenho medo das coisas dos mortos», disse Johnson. Abriu a gaveta de cima e enfiou a mão lá dentro. «Tira as tuas mãos nojentas e gordas da roupa da minha mãe !», ordenou a criança numa voz sufocada. «Não te excites, querido», murmurou Johnson. Ergueu uma blusa amarrotada de bolas vermelhas e deixou-a cair no mesmo sítio. Depois, tirou um lenço de seda verde e enrolou-o à volta da cabeça e deixou-o flutuar até ao chão. A sua mão continuou a mexer no fundo da gaveta. Após um momento, surgiu agarrando numa cinta coçada com quatro ligas de metal a baloiçar. «Isto deve ser a sela dela», observou. Levantou-a cuidadosamente e sacudiu-a. Depois ajustou-a à volta da cintura e saltou, fazendo dançar as ligas de metal para cima e p ara b aixo. Começou a estalar os dedos e a aba­ nar as ancas de um lado para o outro. «Gonter rock, rattle and roll», cantou. «Gonter rock, rattle and roll. Can 't please that

OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO 1 6 1

woman, to save my doggone souz. !61» Começou a andar, batendo com o pé normal e lançando o pesado para o lado. Foi a dan­ çar pela porta fora, passando pela criança chocada e conti­ nuando pelo vestíbulo em direcção

à

cozinha.

Meia hora mais tarde, Sheppard chegou a casa. Deixou cair o impermeável numa cadeira na entrada, foi até

à porta

da sala

e estacou. O seu semblante transformou-se de repente. Brilhava de prazer. Johnson tinha-se sentado - uma figura escura, numa cadeira de espaldar alto forrada de cor-de-rosa. A parede por trás dele estava forrada de livros do chão ao tecto. O rapaz lia atentamente um deles. Os olhos de Sheppard semicerraram-se. Era um volume da Enciclopédia Britânica. Estava tão absorvido que nem levantou a cabeça. Sheppard susteve a respiração. Este era o cenário ideal para o j ovem deserdado. Tinha que o manter aqui. Tinha que consegui-lo, fosse como fosse. «Rufus !11, exclamou, «é bom ver-te rapaz !», e apressou-se a entrar com o braço estendido. Johnson olhou para cima com a expressão vazia. «Ah, olá», disse. Ignorou a mão tanto quanto pôde, mas como Sheppard não a baixou, apertou-a de má vontade. Sheppard estava preparado para este tipo de reacção. Fazia parte do disfarce de Johnson nunca demonstrar entusiasmo. «Como vão as coisas?», indagou. «Como é que o teu avô está a tratar-te?» Sentou-se na beira do sofá. «MorreU», disse o rapaz com indiferença. «Isso não é verdade !», gritou Sheppard. Levantou-se e sen­ tou-se na mesa de apoio mais perto do rapaz. «Não», disse Johnson, «não morreu. Eu queria que tivesse morrido.» «Bom, onde é que ele está?», murmurou Sheppard. «Partiu para os montes», disse Johnson. «Ele e outros. Vão enterrar umas bíblias numa caverna e tomar dois de cada espé-

[6] Passagem de um blues tomado famoso por Teny Mcgee, extremamente popular à época. (N. da T.)

1 6 2 o'CONNOR cie de animais e essa história toda. Como Noé. Só que agora vai ser um incêndio, e não um dilúvio.» O Sheppard repuxou a boca secamente. «Estou a ver», disse. Depois acrescentou, «Por outras palavras, o idiota do velho abandonou-te?» «Ele não é nenhum idiota», disse o rapaz num tom indignado. «Ele abandonou-te ou não?», perguntou Sheppard com impaciência. O rapaz encolheu os ombros. «Onde está o encarregado de educação da tua liberdade condicional?» «Não sou eu que tenho de saber dele», disse Johnson. «Ele é que tem de saber de mim.» Sheppard riu. «Espera um minuto», disse. Levantou-se, foi ao vestíbulo e tirou o impermeável da cadeira e levou-o para o roupeiro da entrada para o pendurar. Precisava de tempo para pensar, para decidir como é que iria falar com o rapaz para que ele ficasse. Teria que ficar voluntariamente. Johnson fazia de conta que não gostava dele. Era apenas um meio de preservar o seu orgu­ lho, mas teria que pedir-lhe de tal forma de que o orgulho dele pudesse ser preservado. Abriu a porta do roupeiro e tirou um cabide. Um velho casaco de Inverno cinzento da mulher ainda lá estava pendurado. Puxou-o para o lado mas ele não se mexeu. Abriu-o com brusquidão e estremeceu como se tivesse visto a larva dentro de um casulo. Lá dentro estava Norton com a cara inchada e pálida e com uma expressão entorpecida de infelicidade. Sheppard olhou-o fixamente. De repente, viu­ -se confrontado com uma possibilidade. « Sai daí», disse. Agar­ rou-o pelo ombro e conduziu- o com firmeza à sala, até à cadeira onde Johnson estava sentado com a enciclopédia no colo. Ia arriscar tudo numa j ogada. «Rufus», disse, «tenho um problema. Preciso da tua ajuda.» Johnson olhou para cima desconfiado. «Ouve», disse Sheppard, «precisamos de outro rapaz cá em casa.» Havia um verdadeiro desespero na sua voz. «Aqui o

OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO 1 6 3 Norton nunca teve de partilhar nada na vida. Não sabe o que significa partilhar. E eu preciso de alguém que o ensine. Que tal ajudares-me? Fica cá durante uns tempos connosco, Rufus. Preciso da tua ajuda.» A excitação na sua voz tomava-a quase

um

sopro. A criança regressou à vida de repente. Tinha o semblante

inchado de fúria. «Ele foi ao quarto dela e usou o pente dela!», gritou, sacudindo o braço de Sheppard. «Ele vestiu a cinta dela e dançou com a Leola, ele ... » «Pára com isso !», repreendeu Sheppard secamente. «Só és capaz de inventar mexericos? Não te estou a pedir um relató­ rio do comportamento do Rufus. Estou a pedir-te que o faças sentir bem-vindo cá em casa. Estás a perceber?» «Vês como é?», perguntou, virando-se para Johnson. Norton pontapeou a perna da cadeira cor-de-rosa de forma maldosa, falhando por pouco o pé inchado de Johnson. Sheppard sacudiu-o com força. «Ele disse que tu só tinhas conversa fiada !», guinchou a criança. Uma expressão maliciosa de prazer atravessou a face de Johnson. Sheppard não se deixou desencoraj ar. Estes insultos faziam parte do mecanismo de defesa do rapaz. «E então, Rufus?», disse. «Ficas connosco durante uns tempos?» Johnson olhou a direito

à

sua frente e não disse nada.

Sorria ligeiramente e parecia contemplar uma qualquer visão do futuro que lhe agradava. «Tanto me faz», disse e virou uma página da enciclopédia. «Aguento-me em qualquer lado.» « Ó ptimo», disse Sheppard. « Ó ptimo.» «Ele disse», insistiu a criança num murmúrio rouco, «que não distinguias a mão esquerda da direita.» Fez-se silêncio. Johnson molhou o dedo e virou outra página da enciclopédia. «Tenho uma coisa a dizer a ambos», disse Sheppard numa voz monótona. Os olhos passaram de um para o outro, e então

1 64 o ' CONNOR falou lentamente, como quem não está na disposição de repe­

tir o que tem a dizer, e fosse do interesse de ambos ouvi-lo. «Se fizesse alguma diferença o que o Rufus pensa de mim», disse, «então não estaria a pedir-lhe que ficasse cá. O Rufus vai aju­ dar-me a mim e eu vou ajudá-lo a ele e ambos vamos ajudar­ -te a ti. Eu seria simplesmente egoísta se deixasse o que o Rufus pensa de mim interferir com aquilo que posso fazer pelo Rufus. Se posso ajudar alguém, tudo o que quero é fazê-lo. Sou superior e estou para lá de simples trivialidades.» Nenhum deles fez um ruído. Norton fixava a almofada da cadeira. Johnson olhava de forma mais atenta alguma letra minúscula na enciclopédia. Sheppard olhava para o cocuruto das cabeças deles. Sorria. Apesar de tudo, tinha ganho. O rapaz ia ficar. Estendeu o braço e despenteou o cabelo de Norton e deu uma palmada no ombro de Johnson. «Agora fiquem aqui os dois sentados e travem conhecimento», disse alegremente e dirigiu-se para a porta. «Eu vou ver o que a Leola nos deixou para o jantar.» Quando ele desapareceu, Johnson levantou a cabeça e olhou para Norton. A criança olhou também para ele desola­ damente. «Meu Deus, miúdo», disse Johnson numa voz aguda, «como é que aturas isto?» O seu semblante estava transtornado com a afronta. «Ele pensa que é Jesus Cristo !»

II O sótão de Sheppard era uma divisão grande e inacabada com vigas expostas e sem luz eléctrica. Tinham colocado o telescó­ pio num tripé numa das janelas das águas-furtadas. Apontava agora para o céu escuro onde uma nesga da Lua, frágil como uma casca de ovo, tinha acabado de aparecer por detrás de uma nuvem com uma orla prateada e brilhante. No interior, uma lanterna de querosene, pousada num baú, proj ectava-lhes as sombras para cima e confundia-as, com uma ligeira ondu­ lação, nos encaixes acima das suas cabeças. Sheppard estava

OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO 1 6 5 sentado num caixote, a olhar pelo telescópio, e Johnson estava ao seu lado, à espera de espreitar. Sheppard tinha-o comprado dois dias antes por quinze dólares, numa casa de penhores. «Páre de monopolizá-1011, disse Johnson. Sheppard levantou-se e Johnson deslizou para o caixote e colocou o olho no instrumento. Sheppard sentou-se direito numa cadeira de espaldar, que estava afastada alguns metros. O seu semblante estava corado de prazer. Esta parcela do seu sonho era uma realidade. Numa semana, tinha tomado possível que o olhar deste rapaz via­ j asse, através de um canal estreito, até às estrelas. Olhou para as costas de Johnson com total satisfação. O rapaz vestia uma das camisas de xadrez de Norton e umas calças de caqui novas que ele lhe tinha comprado. O sapato estaria pronto na semana seguinte. Levou-o à loj a ortopédica no dia a seguir a tê-lo acolhido em casa, e mandou tirar-lhe as medidas para um sapato novo . Johnson era tão sensível no que tocava o pé como se fosse um obj ecto sagrado. Manteve-se carrancudo enquanto o empregado, um j ovem com uma careca rosada e reluzente, lhe media o pé com as suas mãos profanas. O sapato ia fazer toda a diferença na atitude do rapaz. Até uma criança com p és normais fica apaixonada pelo mundo depois de ter recebido um novo par de sapatos. Após ter recebido um par novo, Norton tinha caminhado durante dias com os olhos pre­ gados aos pés. Sheppard olhou de relance para o miúdo através do apo­ sento. Estava sentado no chão encostado a um baú, amarrado com uma corda que tinha encontrado e enrolado dos tornoze­ los aos joelhos. Parecia tão longe dali que Sheppard poderia estar a vê-lo através da extremidade inversa do telescópio. Tivera que açoitá-lo apenas uma vez desde que Johnson vivia com eles - na primeira noite quando Norton tomou consciên­ cia que Johnson ia dormir na cama da mãe. Não aprovava o método de dar sovas a crianças, em particular com irritação. Neste caso, tinha feito ambas as coisas e com bons resultados. Não houvera mais nenhum problema com Norton depois disso.

1 6 6 o'CONNOR

A criança não tinha demonstrado qualquer generosidade efectiva para com Johnson, mas parecia resignada com o que não podia remediar. De manhã, Johnson mandava os dois para a piscina do YMCA, dava-lhes dinheiro para almoçarem no café e instruções para que se encontrassem com ele à tarde, no estádio, para assistirem ao treino da sua Liga Infantil de base­ ball. Todas as tardes chegavam ao estádio a arrastar-se, em silêncio, cada um deles com a cara impenetrável, sem revelar o que pensava, como se nenhum deles tivesse consciência da presença do outro. Pelo menos, Sheppard podia dar-se por satisfeito por não haver lutas. Norton não demonstrava interesse pelo telescópio. «Não te queres levantar e olhar pelo telescópio, Norton?», perguntou. Irritava-o o facto da criança não demonstrar qualquer curiosi­ dade intelectual. «Ü Rufus vai ultrapassar-te num segundo.» Norton inclinou-se para a frente de forma distraída e olhou para as costas de Rufus. Johnson voltou-se, afastando-se do instrumento. A sua cara tinha começado a encher de novo. A expressão de afronta tinha desaparecido das suas bochechas ocas e refugiava-se agora nas cavernas dos seus olhos, como que fugindo da bondade de Sheppard. «Não percas o teu precioso tempo, miúdo», disse. «Se viste a Lua uma vez, chega, não há mais nada para ver.11 Sheppard divertia-se com estes súbitos acessos de perversi­ dade. O rapaz resistia a tudo o que suspeitasse ser para o seu aperfeiçoamento, e quando estava vitalmente interessado nal­ guma coisa esforçava-se por dar a impressão de que estava aborrecido. Sheppard não se deixava enganar. Em segredo, Johnson aprendia o que ele queria que ele aprendesse - que o seu benfeitor era impermeável ao insulto e que não havia fen­ das na sua armadura de bondade e paciência através das quais uma seta bem sucedida pudesse penetrar. «Um dia poderás ir à Lua», disse. «Dentro de dez anos os homens provavelmente farão viagens programadas de ida e volta. Então, rapazes, vocês poderão ser homens do espaço. Astronautas !11 «Astro-doidos», disse Johnson.

OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO 1 67

«Doidos ou nautas», disse Sheppard, «é perfeitamente possí­ vel que tu, Rufus Johnson, vás à Lua.» Algo na profundidade dos olhos de Johnson se moveu. Tinha estado de mau humor todo o dia. «Não consigo chegar vivo à Lua se for até lá», disse, «e quando morrer vou para o inferno.» «Pelo menos, existe a possibilidade de ir até à Lua», disse Sheppard secamente. A melhor forma de tratar este tipo de coi­ sas era ridicularizando-as um pouco. «Conseguimos vê-la. Sabemos que está lá. Ninguém forneceu provas seguras de que exista um inferno.» «A Bíblia forneceu provas», disse Johnson sombriamente, «e se morrermos e formos para lá vamos arder para todo o sempre.» A criança inclinou-se para a frente. «Quem diz que não há inferno», continuou Johnson, «con­ tradiz Jesus. Os mortos são julgados e os maus são condena­ dos ao inferno. Choram e rangem os dentes enquanto ardem, e a escuridão é eterna.» A boca da criança abriu-se. Os seus olhos pareceram ficar vazios. «Satanás governa-o», disse Johnson. Norton levantou-se bruscamente e deu um passo camba­ leante em direcção a Sheppard. «Ela está lá?», disse em voz alta. «Ela está lá a arder?» Afastou a corda dos pés com um pontapé. «Ela está a arder?» «Oh meu Deus», murmurou Sheppard. «Não, não11, disse, «claro que não. Rufus está enganado. A tua mãe não está em lado algum. Não está infeliz. Apenas não existe.» A sua sorte teria sido mais fácil se, quando a mulher morreu, ele tivesse dito a Norton que ela tinha ido para o Céu e que um dia ele a veria de novo ; mas ele não condescendia em educá-lo numa mentira. A cara de Norton começou a torcer-se. Formou-se-lhe um nó na garganta. 1 «Ouve», disse Sheppard rapidamente e puxou a criança para si, «O espírito da tua mãe vive noutras pessoas e viverá em ti se fores bom e generoso como ela era.11 Os olhos claros da criança endureceram sem acreditar.

1 6 8 o ' coNNOR

A piedade de Sheppard transformou-se em repulsa. O rapaz preferia que ela estivesse no inferno do que em lado nenhum. «Estás a perceber?», disse. «Ela não existe.» Colocou a mão no ombro do rapaz. « É tudo o que eu tenho para dar-te», disse numa voz mais suave e exasperada, «a verdade.» Em vez de gritar, o rapaz soltou-se com um puxão violento e agarrou na manga de Johnson. «Ela está lá, Rufus?», interpe­ lou, «Ela está lá, a arder?» Os olhos de Johnson brilharam. «Bem», disse, «está se era má. Era alguma rameira ?11 «A tua mãe não era uma rameira», interferiu Sheppard com severidade. Tinha a sensação de estar a guiar um carro sem tra­ vões. «Bom, não vamos continuar com este disparate. Estáva­ mos a falar da Lua.» «Ela acreditava em Jesus?», perguntou Johnson. Norton tinha uma expressão vazia. Após um segundo disse, «Sim», como se calculasse que isso era necessário. «Acreditava», confirmou. «A toda a hora.» «Não acreditava nada», murmurou Sheppard. «Ela acreditava a toda a hora», disse Norton. «Eu sempre a ouvi dizer que acreditava.» «Ela está salva», assegurou Johnson. A criança ainda parecia confusa. «Onde?», disse. «Onde é que ela está?» «Lá no alto», disse Johnson. «Onde é isso?», ofegou Norton. « É no Céu, algures», afirmou Johnson, umas temos de mor­ rer para chegar lá. Não podemos ir em nenhuma nave espa­ cial.» Havia agora um brilho estreito nos seus olhos, como um raio fixo no alvo. «A ida do homem à Lua», disse Sheppard com aspereza, «é bastante semelhante ao primeiro peixe a rastejar para terra saindo da água há biliões e biliões de anos. Não tinha um fato terrestre. Teve que desenvolver pulmões.» «Quando eu morrer vou para o inferno ou para onde ela está?», perguntou Norton.

OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO 1 6 9

«Neste momento irias para onde ela está», declarou Johnson, «mas se viveres o suficiente, vais para o inferno.» Sheppard levantou-se abruptamente e agarrou na lanterna. «Fecha a janela, Rufus», disse. «São horas de irmos para a cama.» Ao descer as escadas do sótão ouviu Johnson dizer num sussurro sonoro atrás dele, «Eu conto-te tudo amanhã, miúdo, quando Sua Senhoria tiver saído.»

No dia seguinte, quando os rapazes chegaram ao estádio, ele observou-os à medida que se aproximavam por detrás das bancadas descobertas e contornavam a extremidade do campo. Johnson tinha a mão no ombro de Norton e a cabeça incli­ nada na direcção do ouvido do rapaz mais novo, e no sem­ blante da criança havia uma expressão de total confiança, uma luz que despontava. O sorriso forçado de Sheppard endu­ receu. Esta era a maneira de Johnson tentar irritá-lo. Mas ele não se deixaria irritar. Norton não era suficientemente esperto para ser muito prejudicado. Observou a carinha estúpida e absorvida da criança. Porquê tentar tomá-lo superior? O Céu e o inferno eram para os medíocres, e ele não passava disso mesmo. Os dois rapazes entraram na bancada e sentaram-se a cerca de três metros, virados para Sheppard, mas nenhum deles lhe fez qualquer sinal de reconhecimento. Ele olhou de relance para trás de si onde os pequenos jogadores se espalhavam pelo campo. Depois dirigiu-se para a bancada. O sibilar da voz de Johnson parou à sua aproximação. «0 que é que fizeram os dois hoje?», perguntou alegremente. «Ele tem estado a falar-me ... », começou Norton. Johnson deu uma cotovelada nas costelas da criança. «Não fizemos nada», disse. A sua cara parecia estar coberta por uma camada de indiferença ; mas, através dela, exibia-se insolente­ mente uma expressão óbvia de cumplicidade. Sheppard sentiu-se corar, mas não disse nada. Uma criança num uniforme da Liga Infantil tinha-o seguido e estava a

1 7 0 ü 'CONNOR

tocar-lhe com um taco atrás da perna. Voltou-se e colocou o braço à volta do pescoço do rapaz e regressou ao jogo com ele. Nessa noite, quando subiu até ao sótão para se juntar aos rapazes no telescópio, encontrou Norton sozinho. Estava sen­ tado no caixote, curvado, a olhar intensamente através do ins­ trumento. Johnson não estava lá. «Onde está o Rufus?», interrogou Sheppard. «Eu perguntei, onde está o Rufus?i1, repisou mais alto. «Não sei onde foi», disse a criança sem se voltar. «Foi onde?», perguntou Sheppard. «Ele só disse que ia a qualquer lado. Disse que estava farto de olhar para as estrelas.,. «Estou a vef>I, disse Sheppard sombriamente. Voltou-se e desceu as escadas. Procurou por toda a casa sem encontrar Johnson. Depois foi até à sala de estar e sentou-se. Ontem tinha estado convencido do seu sucesso com o rapaz. Hoje encarava a possibilidade de estar a falhar. Tinha sido dema­ siado indulgente, excessivamente preocupado em fazer que Johnson gostasse dele. Sentiu uma pontada de culpa. Que dife­ rença fazia se Johnson gostava dele ou não? O que é que aquilo lhe interessava? Quando o rapaz chegasse, esclarece­ riam umas coisas. Enquanto estiveres aqui, não vai haver saí­ das à noite sozinho, percebes? Eu não tenho de ficar aqui. Tanto se me dá ficar ou não aqui. Oh, meu Deus, pensou. Não podia levar as coisas a esse ponto. Teria que ser firme, mas não transformar aquilo num problema. Agarrou no jornal da tarde. A bondade e a paciên­ cia eram sempre necessárias, mas ele não tinha sido suficien­ temente firme. Ficou sentado com o jornal nas mãos sem o ler. O rapaz não o respeitaria a não ser que ele mostrasse firmeza. A campainha da porta tocou e ele foi ver quem era. Abriu-a e recuou, com uma expressão de desapontamento e de dor. Um polícia volumoso e taciturno encontrava-se na entrada, segurando Johnson pelo cotovelo. Um carro patrulha aguar­ dava na estrada. Johnson parecia muito pálido. O seu queixo estava esticado para a frente de modo a evitar que tremesse.

OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO 1 7 1

«Trouxémo-lo aqui primeiro porque ele fez uma algazarra enorme», disse o polícia, «mas agora que o viu, vamos levá-lo para a esquadra e fazer-lhe algumas perguntas.» «0 que é que aconteceu?», murmurou Sheppard. «Uma casa aqui ao virar da esquina», disse o polícia. «Um verdadeiro serviço de demolição, pratos partidos por todo o chão, mobília de pernas para o ar... » «Eu não tive nada a ver com isso !», disse Johnson. «Eu ia a passar, a tratar da minha vidinha, quando este chui apareceu e me agarrou.» Sheppard olhou para o rapaz severamente. Não fez qual­ quer esforço para adoçar a sua expressão. Johnson ficou muito corado. «Eu ia só a passar», murmu­ rou, mas sem convicção na voz. «Vamos lá, rapaz», disse o polícia. «Não vai deixá-lo levar-me, pois não?», disse Johnson. «Acredita em mim, não acredita?» Havia um apelo na voz dele que Sheppard ainda não tinha ouvido anteriormente. Isto era crucial. O rapaz teria que aprender que não podia ser protegido quando era culpado. «Vais ter que ir com ele, Rufus», determinou. «Vai deixar que ele me leve quando eu estou a dizer-lhe que não fiz nada?», implorou Johnson com voz aguda. A expressão de Sheppard endurecia à medida que crescia a sua consciência da afronta. O rapaz tinha-o traído mesmo antes de ele ter tido oportunidade de lhe dar o sapato. Deveriam ir buscá-lo amanhã. Todo o seu desapontamento se virou de repente contra o sapato ; a sua irritação redobrou ao olhar para Johnson. «Fingiu que tinha toda a confiança em mim», murmurou o rapaz. «E tinha mesmo», disse Sheppard. A sua face era como que de madeira. Johnson afastou-se com o polícia; mas, antes de se mover, um raio de puro ódio brilhou em direcção a Sheppard vindo das profundezas dos seus olhos.

1 7 2 ü ' CONNOR

Sheppard ficou à porta e viu-os entrar para o carro patrulha e afastarem-se. Convocou a sua compaixão. Amanhã iria à esqua­ dra e veria o que podia fazer para o livrar de problemas. A noite na prisão não lhe faria mal e a experiência ensiná-lo-ia que não podia tratar com impunidade alguém que só lhe tinha manifes­ tado bondade. Depois, iriam buscar o sapato e talvez, após uma noite na cadeia, ele fosse ainda mais importante para o rapaz.

Na manhã seguinte, às oito horas, o sargento da polícia bateu-lhe à porta e disse-lhe que podia ir buscar Johnson. «Prendemos um preto por essa acusação», disse. «Ü seu rapaz não teve nada a ver com aquilo.» Sheppard pôs-se na esquadra em dez minutos, com a cara ardendo de vergonha. Johnson estava sentado descuidada­ mente num banco de um gabinete exterior desmazelado, a ler uma revista da polícia. Não havia mais ninguém na sala. Sheppard sentou-se ao lado dele e colocou a mão com cautela no seu ombro. O rapaz olhou para cima - com os lábios curvados - e vol­ tou a olhar para a revista. Sheppard sentiu-se fisicamente indisposto. A fealdade do que havia cometido abateu-se sobre ele com uma súbita intensidade sombria. Tinha-o abandonado exactamente na altura em que o poderia ter virado de uma vez por todas na direcção certa. <
OS COXOS HÃO-DE ENTRAR PRIMEIRO 1 7 3

O rapaz olhou para cima. O s seus olhos estavam brilhantes e hostis. «Eu esqueço», disse, «mas é melhor você lembrar-se.» Levantou-se e caminhou com arrogância em direcção à porta. No centro do compartimento voltou-se e lançou o braço a Sheppard, ao que este deu um salto, e seguiu-o como se o rapaz tivesse puxado uma trela invisível. «0 teu sapato», disse ansiosamente, «hoje é o dia de ir bus­ car o teu sapato !» Graças a Deus havia o sapato ! Mas, quando foram à loja ortopédica, descobriram que o sapato tinha sido feito dois números abaixo do que devia e um outro só estaria pronto daí a dez dias. A disposição de Johnson melhorou de imediato. O empregado tinha obviamente cometido um erro ao tirar as medidas, mas o rapaz insistia que o pé tinha crescido. Saiu da loja com uma expressão satisfeita, como se, ao crescer, o pé tivesse agido de acordo com uma inspiração própria. O semblante de Sheppard estava perturbado. Depois disto, o homem generoso redobrou os seus esforços. Já que Johnson tinha perdido o interesse pelo telescópio, com­ prou um microscópio e uma caixa de lamelas preparadas. Se não conseguia impressionar o rapaz com a imensidão, tentaria o infinitesimal. Durante duas noites, Johnson pareceu absor­ vido com o novo instrumento. Depois, abruptamente, perdeu o interesse. Mas parecia satisfeito em ficar sentado à noite na sala de estar a ler a enciclopédia. Devorava a enciclopédia tal como devorava o seu jantar, compassadamente e sem proble­ mas de apetite. Cada assunto parecia entrar-lhe na cabeça, ser saqueado e atirado fora. Nada agradava mais a Sheppard do que ver o rapaz afundado no sofá, de boca fechada, a ler. Após terem passado duas ou três noites assim, começou a recuperar o seu sonho. A sua confiança regressou. Sabia que um dia se orgulharia de Johnson. Na quinta-feira à noite, Sheppard foi a uma reunião muni­ cipal. No caminho deixou os rapazes no cinema, e apanhou-os no regresso. Quando chegaram a casa, um automóvel com um único olho vermelho por cima do pára-brisas esperava em

1 7 4 o ' CONNOR

frente da casa. Os faróis de Sheppard, quando ele virou para a entrada, iluminaram duas caras sorumbáticas dentro do carro. «Os chuis !», disse Johnson. «Algum preto arrombou uma casa algures e vieram buscar-me novamente.» «Veremos», murmurou Sheppard. Parou o carro na entrada e desligou as luzes. «Vocês, rapazes, entrem e vão para a cama», disse. «Eu trato disto.» Saiu do carro e encaminhou-se para o carro da polícia. Enfiou a cabeça na janela. Os dois polícias olhavam para ele com semblantes silenciosos e conhecedores. «Uma casa na esquina de Shelton e Mills», disse o que estava no lugar do condutor. «Parece que um comboio passou por lá.» «Ele estava no cinema no centro da cidade», afirmou Sheppard. «0 meu filho estava com ele. Ele não teve nada a ver com a outra vez e também nada a ver com esta ocorrência. Eu responsabilizo-me.» «Se eu fosse a si», disse o que estava mais perto dele, «não me responsabilizaria por nenhum filho da mãe como ele.» «Já disse que me responsabilizo», repetiu Sheppard fria­ mente. «Vocês cometeram um erro da última vez. Não come­ tam outro.» Os polícias olharam um para o outro. «0 funeral não é nossm>, disse o que estava no lugar do condutor, e rodou a chave na ignição. Sheppard entrou em casa e sentou-se na sala de estar no escuro. Não suspeitava de Johnson, e não queria que o rapaz pensasse que suspeitava. Se Johnson pensasse que ele suspei­ tava dele novamente, perderia tudo. Mas precisava de saber se o álibi do rapaz era seguro. Pensou em ir ao quarto de Norton e perguntar-lhe se Johnson tinha saído do cinema. Mas isso seria ainda pior. Johnson perceberia o que ele estava a fazer e ficaria furioso. Decidiu perguntar directamente a Johnson. Seria directo. Recapitulou na sua cabeça o que iria dizer, depois levantou-se e foi até à porta do rapaz. Estava aberta como se lá dentro o esperassem, mas Johnson estava na cama. Havia apenas a luz suficiente vinda do vesti-

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bulo para Sheppard distinguir a sua forma debaixo d o lençol. Entrou e ficou aos pés da cama. «Foram-se embora», garantiu. «Disse-lhes que não tinhas nada a ver com aquilo e que me res­ ponsabilizaria.» Houve um «ÜK» murmurado a partir da almofada. Sheppard hesitou. «Rufus», disse, «não saiste do cinema para nada de nada, pois não?» «Finge que tem toda essa confiança em mim !», gritou uma voz subitamente ofendida, «e não tem nenhuma ! Não confia em mim agora mais do que confiava antigamente !11 A voz sem corpo, parecia vir mais segura das profundezas de Johnson do que quando a sua cara era visível. Era um grito de reprovação, com uma pontinha de desprezo. «Eu confio em ti», disse Sheppard intensamente. «Tenho total confiança em ti. Acredito em ti e confio em ti completamente.» «Tem os olhos em cima de mim o tempo todo», disse a voz sombriamente. «Quando acabar de me fazer um montão de perguntas, vai atravessar o vestíbulo e fazer um montão delas ao Norton.» «Não tenciono perguntar nada ao Norton e nunca o fiz», disse Sheppard suavemente. «E não suspeito de ti. Quanto mais não fosse, porque seria muito difícil vires do cinema até aqui, no centro da cidade, conseguires arrombar e cometer vanda­ lismo numa casa, e ainda voltares para o cinema no tempo de que dispunhas.» « É só por isso que acredita em mim !», gritou o rapaz, «por­ que pensa que não havia maneira de eu ter aquilo.» «Não, não !», sublinhou Sheppard. «Eu acredito em ti porque acredito que tens a inteligência e a coragem para não te mete­ res em problemas de novo. Acredito que te conheces suficien­ temente bem a ti mesmo neste momento para saberes que não tens que fazer coisas dessas. Acredito que podes fazer de ti tudo aquilo a que te proponhas.» Johnson sentou-se. Brilhava-lhe na testa uma luz fraca mas o resto do seu rosto estava invisível. «E eu poderia ter arrom­ bado a casa se quisesse no tempo que tinha», disse.

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«Mas sei que não o fizeste», disse Sheppard. «Não há o mínimo traço de dúvida na minha cabeça.» Fez-se um silêncio. Johnson voltou a deitar-se. Depois a voz, baixa e rouca, como se estivesse a ser forçada a sair com dificuldade, disse: «Não queres roubar e destruir coisas quando já tens tudo o que desejas.» Sheppard susteve a respiração. O rapaz estava a agradecer­ -lhe ! Ele estava a agradecer-lhe ! Havia gratidão na sua voz. Havia reconhecimento. Ficou ali, a sorrir de forma idiota no escuro, tentando captar o momento em suspensão. Involun­ tariamente deu um passo em direcção à almofada, estendeu a mão e tocou na testa de Johnson. Estava fria e seca como ferro enferrujado. «Eu compreendo. Boa noite, filho», aquiesceu ; virou-se rapi­ damente e saiu do quarto. Fechou a porta atrás dele e ficou ali dominado pela emoção. Do outro lado da entrada a porta de Norton estava aberta. A criança estava deitada de lado na cama, a olhar para a luz vinda do vestíbulo. Depois disto, o caminho com Johnson seria fácil. Norton sentou-se e fez-lhe um sinal. Ele viu a criança mas, após o primeiro instante, não deixou que o olhar se fixasse directamente nele. Ele não podia entrar e falar com Norton sem quebrar a confiança de Johnson. Hesitou, mas ficou onde estava como se não visse nada. Amanhã era o dia em que iriam buscar o sapato. Seria um clímax da cum­ plicidade entre eles. Voltou-se rapidamente e regressou ao seu quarto. A criança ficou algum tempo sentada a olhar para o local onde o pai tinha estado. Finalmente o seu olhar ficou vago e ele voltou a deitar-se. No dia seguinte, Johnson estava de mau humor e silencioso como se tivesse vergonha de se ter exposto. Os seus olhos tinham uma expressão velada. Parecia ter-se retirado para den­ tro de si próprio e aí estar a viver uma crise de decisão. Sheppard estava ansioso por chegar à loja ortopédica. Deixou Norton em

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casa porque não queria dividir a sua atenção. Queria estar livre para observar minuciosamente a reacção de Johnson. O rapaz não parecia satisfeito nem mesmo interessado com a expecta­ tiva do sapato, mas quando este se tomasse uma realidade, cer­ tamente ficaria sensibilizado. A loja ortopédica era um pequeno armazém de cimento forrado e atulhado com instrumentos de tortura. Cadeiras de rodas e andarilhos cobriam a maior parte do chão. Nas pare­ des estavam penduradas toda a espécie de muletas e de suportes. Membros artificiais estavam empilhados nas prate­ leiras, pernas e braços e mãos, garras e ganchos, correias e ameses humanos e instrumentos não identificáveis destina­ dos a deformidades indescritíveis. Numa pequena clareira no meio do compartimento havia uma fila de cadeiras com al­ mofadas de plástico amarelo e um banco para experimentar sapatos. Johnson deixou-se cair numa das cadeiras e colocou o pé em cima do banco e ficou sentado taciturnamente com os olhos fixos nele. No local aproximado do dedo o cabedal tinha-se aberto de novo e ele remendara-o com um bocado de lona ; tinha remendado outro sítio com o que parecia ser a sola original do sapato. Os dois lados estavam atados com corda. Havia um afogueamento de excitação na cara de Sheppard; o seu coração batia-lhe de forma anormalmente rápida. O empregado apareceu vindo das traseiras da oficina com o novo sapato debaixo do braço. «Agora está perfeito !», disse. Escarranchou-se no banco utilizado para experimentar sapatos e segurou no sapato ao alto, a sorrir, como se o tivesse produ­ zido por magia. Era um objecto preto, liso e sem forma, que brilhava horri­ velmente. Parecia uma arma embotada, altamente polida. Johnson olhou para ele sombriamente. «Com este sapato», disse o empregado, «nem vais notar que estás a andar. Vais pensar que estás a montar!» Inclinou a careca rosada e reluzente e começou a desapertar a corda cui­ dadosamente. Retirou o sapato velho como se estivesse a esfo-

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lar um animal ainda semivivo. A sua expressão estava tens a. A massa nua do pé na meia suja fez Sheppard sentir-se nau­ seado. Desviou os olhos até o sapato novo estar calçado. O em­ pregado atou os atacadores rapidamente. «Agora levanta-te e anda um pouco», indicou, «e vê se o consegues sem deslizar.» Piscou o olho a Sheppard. «Com aquele sapato», disse, «ele nem vai perceber que não tem um pé normal.» A cara de Sheppard estava radiante de prazer. Johnson levantou-se e caminhou alguns metros. Cami­ nhava rigidamente sem quase nenhuma inclinação no seu lado mais curto. Parou por um momento, hirto, com as cos­ tas para eles. «Uma maravilha», disse Sheppard, «uma maravilha !» Era como se tivesse dado ao rapaz uma nova espinha dorsal. Johnson voltou-se. A sua boca estava fixa numa fina linha gelada. Regressou ao assento e retirou o sapato. Colocou o pé dentro do antigo e começou a atar os atacadores. «Queres levá-lo para casa e ver se te serve primeiro?», murmurou o empregado. «Não», disse Johnson. «Não vou usá-lo nunca.» «Qual é o problema?», disse Sheppard, elevando a voz. «Não preciso de nenhum sapato», confirmou Johnson. «E quando precisar, arranjo maneira de o obter.» O seu semblante estava duro mas havia um brilho de triunfo nos seus olhos. «Oh rapaz», disse o empregado, «O teu problema está no teu pé ou na tua cabeça?» «Vai pôr de molho a tua cachimónia», ripostou Johnson. «ÜS teus miolos estão a ardeu O empregado ergueu-se, carrancudo mas com dignidade, e perguntou a Sheppard o que é que ele queria que ele fizesse com o sapato, que entretanto balouçava desanimadamente pelo atacador. A cara de Sheppard estava de um vermelho escuro de raiva. Fixava um espartilho de cabedal mesmo que estava à sua frente e ao qual estava preso um braço artificial. O empregado voltou a perguntar-lhe.

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«Embrulhe-o», murmurou Sheppard. Virou os olhos para Johnson. «Ainda não está suficientemente maduro para ele», disse. «Pensava que era menos criança.» O rapaz olhou de soslaio. «Já se enganou antes», disse.

Nessa noite sentaram-se na sala de estar e leram como de costume. Sheppard deixou-se ficar de cenho franzido e entrin­ cheirado atrás do New York Times de domingo. Queria recupe­ rar o seu bom humor, mas, de cada vez que pensava no sapato rejeitado, sentia um novo ataque de irritação. Não confiava em si próprio nem mesmo para olhar para Johnson. Tinha-se aper­ cebido que o rapaz rejeitara o sapato porque se sentia inseguro. Johnson tinha-se assustado com a sua própria gratidão. Não sabia o que fazer com o novo eu de que estava a tomar cons­ ciência. Tinha consciência de que alguma parte de si, do que havia sido até aí, passou a estar ameaçada, e de que estava a encarar-se a si próprio e às suas possibilidades pela primeira vez. Estava a questionar a sua identidade. De má vontade, Sheppard sentiu o regresso de uma ligeira simpatia pelo rapaz. Passados alguns minutos, baixou o jornal e olhou para ele. Johnson estava sentado no sofá, a olhar por cima da enci­ clopédia. Parecia estar em transe. Poderia ter estado a ouvir alguma coisa muito ao longe. Sheppard olhou para ele atenta­ mente mas o rapaz continuava a ouvir, e não virou a cabeça. O pobre miúdo está perdido, pensou Sheppard. E ele limitara­ -se a ficar sentado durante todo o serão, lendo o jornal obsti­ nadamente, sem dizer uma palavra e desse modo quebrar a tensão. «Rufus», disse. Johnson continuou sentado, imóvel, a ouvir. «Rufus», disse Sheppard numa voz lenta e hipnótica, «podes ser tudo o que tu quiseres no mundo. Podes ser um cientista ou um arquitecto ou um engenheiro ou seja o que for, em qual­ quer coisa que te proponhas fazer podes ser o melhor.» Imaginava a sua voz a penetrar nas cavernas negras da psique do rapaz. Johnson inclinou-se para a frente mas os olhos não

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se viraram. Na rua fechou-se a porta de um carro. Fez-se silên­ cio. Depois o ruído repentino da campainha da porta. Sheppard deu um salto, foi até à porta e abriu-a. O mesmo polícia que tinha vindo antes estava parado à porta. O carro patrulha aguardava na estrada. «Deixe-me ver esse rapaz», disse. Sheppard franziu a testa e afastou-se. «Ele tem estado aqui toda a noite», disse. «Posso garanti-lo.» O polícia entrou na sala. Johnson parecia absorvido no seu livro. Após um segundo, olhou para cima com uma expressão irritada, como um grande homem interrompido no seu trabalho. «0 que é que estavas a ver na janela daquela cozinha em Winter Avenue cerca de meia hora atrás, rapaz?», perguntou o polícia. «Pare de perseguir o rapaz !», disse Sheppard. «Posso confir­ mar o facto de que ele esteve aqui. Eu estive aqui com ele.» «Ouviu-o», disse Johnson, «estive aqui o tempo todo.» «Nem toda a gente deixa pegadas como as tuas», disse o polícia e olhou para o pé deformado. «Não podem ser as pegadas dele», rosnou Sheppard, furioso. «Ele esteve aqui o tempo todo. Está a perder o seu tempo e a fazer-nos perder o nosso.» Sentiu que a palavra nosso selava a sua solidariedade com o rapaz. «Estou farto disto», clarificou. «Vocês são demasiado preguiçosos para irem lá para fora e des­ cobrir quem quer que seja que anda a fazer estas coisas. Vêm aqui automaticamente.» O polícia ignorou isto e continuou a perscrutar Johnson. Tinha os olhos pequenos em alerta pespegados na cara gorda. Finalmente voltou-se para a porta. «Havemos de apanhá-lo mais cedo ou mais tarde», disse, «com a cabeça dentro de uma janela e o rabo de fora.» Sheppard seguiu-o até à porta e fechou-a com força atrás dele. O seu espírito flutuava. Era isto exactamente de que ele precisava. Regressou com uma expressão expectante. Johnson tinha pousado o livro e estava sentado a olhar para ele maliciosamente. «Obrigado», disse.

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Sheppard parou. A expressão do rapaz era como a de um rapinante. Estava abertamente a olhar de soslaio. «Você também não é um mentiroso nada mau», arremessou. «Mentiroso?», murmurou Sheppard. O rapaz poderia ter saído e regressado? Sentiu-se agoniado. Depois, uma onda de raiva impulsionou-o para a frente. «Saíste?», disse cheio de fúria. «Eu não te vi sair.» O rapaz apenas sorriu. «Foste ao sótão para ver o Norton», disse Sheppard. «Não», disse Johnson, «aquele miúdo é doido. Não quer fazer mais nada a não ser olhar por aquele maldito telescópio.» «Não quero saber do Norton», disse Sheppard com severi­ dade. «Onde é que tu estavas?» «Eu estava sentado naquela sanita cor-de-rosa sozinho», afirmou Johnson. «Não há testemunhas.» Sheppard tirou o lenço e limpou a testa. Conseguiu sorrir. Johnson rolou os olhos. «Não acredita em mim», disse. A voz dele soava aguda da mesma forma que tinha soado na escuri­ dão do quarto há duas noites atrás. «Finge que tem toda essa confiança em mim e no fundo não tem nenhuma. Quando as coisas aquecerem, vai desaparecer como todos os outros.» A estridência tomou-se exagerada, cómica. A imitação era óbvia. «Não acredita em mim. Não tem qualquer confiança», gemeu. «E não é mais esperto que aquele polícia. Aquela con­ versa toda sobre pegadas - aquilo era uma armadilha. Não havia pegadas. O sítio todo está cimentado nas traseiras e os meus pés estavam secos.» Sheppard voltou lentamente a colocar o lenço no bolso. Deixou-se cair no sofá e fitou a carpete aos seus pés. O pé deformado do rapaz encontrava-se dentro do seu círculo de visão. O sapato remendado parecia sorrir-lhe com a cara do próprio Johnson. Agarrou na extremidade da almofada do sofá e os nós dos seus dedos ficaram brancos. Um arrepio de ódio fê-lo estremecer. Ele odiava o sapato, odiava o pé, odiava o rapaz. A cara empalideceu-lhe. O ódio engasgava-o. Estava horrorizado consigo mesmo.

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Agarrou no ombro do rapaz e apertou-o ferozmente como quem se ampara e evita cair. «Ouve», disse, «olhaste através daquela janela para me envergonhares. Era só isso que querias - abalar a minha resolução de te ajudar, mas a minha resolu­ ção não está abalada. Sou mais forte do que tu. Sou mais forte do que tu e vou salvar-te. O Bem há-de triunfar.» «Não, quando não é verdade», disse o rapaz. «Não, quando não está certo.» «A minha resolução não está abalada», repetiu Sheppard. «Vou salvar-te.» O olhar de Johnson tornou-se de novo malicioso. «Não vai salvar-me», retrocou. «Antes disso, ainda vai dizer-me para deixar esta casa. Fiz aqueles outros dois serviços também o primeiro e o segundo, quando supostamente estava no cinema.» «Não vou dizer-te para te ires embora», disse Sheppard. A sua voz era átona, mecânica. «Vou salvar-te.» Johnson atirou a cabeça para a frente. «Salve-se a si mesmo», sibilou. «Ninguém pode salvar-me a não ser Jesus.» Sheppard deu uma gargalhada curta. «Não me enganas», disse. «Arranquei-te isso da cabeça no reformatório. Salvei-te disso, pelo menos.» Os músculos da face de Johnson ficaram rígidos. Formou­ -se uma tal expressão de repulsa na sua cara que Sheppard recuou. Os olhos do rapaz eram como espelhos distorcidos nos quais ele se via com uma forma medonha e grotesca. «Eu mostro-lhe», sussurrou Johnson. Levantou-se abruptamente e dirigiu-se precipitadamente para a porta como se não conse­ guisse fugir da vista de Sheppard suficientemente depressa, mas foi pela porta que levava ao vestibulo das traseiras que passou, não pela porta da frente. Sheppard virou-se no sofá e olhou para trás de si, por onde o rapaz tinha desaparecido. Ouviu bater com força a porta do seu quarto. Ele não estava de partida. Os olhos de Sheppard perderam a intensidade. Parecia prostrado e sem vida como se o choque da revelação do rapaz apenas agora atingisse o centro da sua consciência.

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«Se ele simplesmente fosse», murmurou. 11Se ele partisse agora de sua livre vontade.»

Na manhã seguinte Johnson apareceu na mesa para o pequeno-almoço envergando o fato do avô com que tinha vindo. Sheppard fez de conta que não tinha reparado nele mas bastou apenas um olhar para que ficasse a saber aquilo que já adivinhara, que estava preso numa armadilha, que não have­ ria nada mais daqui para a frente a não ser uma batalha de nervos que seria ganha por Johnson. Desejou nunca ter pou­ sado os olhos no rapaz. O falhanço da sua compaixão deixava­ -o como que adormecido. Saiu de casa assim que pôde e durante todo o dia antecipou com horror o regresso ao fim do dia. Tinha uma vaga esperança que o rapaz tivesse partido quando ele regressasse. O fato do avô poderia querer dizer que se ia embora. A esperança cresceu durante a tarde. Quando chegou a casa e abriu a porta de entrada, o coração batia-lhe furiosamente. Parou no vestíbulo e olhou em silêncio para a sala de estar. A sua expressão de expectativa desvaneceu-se. A cara parecia de repente tão velha quanto o seu cabelo branco. Os dois rapazes estavam sentados muito juntos no sofá a ler o mesmo livro. O rosto de Norton repousava contra a manga do fato preto de Johnson. O dedo de Johnson movia-se por baixo das linhas que estavam a ler. O irmão mais velho e o mais novo. Sheppard olhou para esta cena sem se mover durante quase um minuto. Depois entrou no quarto, despiu o casaco e dei­ xou-o cair numa cadeira. Nenhum dos rapazes o tinha visto. Seguiu para a cozinha. Leola deixava o jantar no fogão todas as tardes antes de sair e ele punha-o na mesa. Doía-lhe a cabeça e os seus nervos estavam tensos. Sentou-se no banco da cozinha e deixou-se ficar ali, afundado na sua depressão. Interrogou-se se conse­ guiria enfurecer suficientemente Johnson para o fazer sair de moto próprio. O que o tinha realmente enfurecido na noite

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anterior tinha sido a discussão sobre Jesus. Agora, essa con ­ versa podia enfurecer Johnson ; mas, a ele, deprimia-o. Porque não dizer simplesmente ao rapaz para se ir embora? Admitir a derrota. A ideia de encarar Johnson novamente agoniava­ -o. O rapaz olhava para ele como se ele fosse o culpado, como se fosse moralmente um leproso. Sabia sem presunção que era um homem bom, que não tinha em si nem consigo nada de censurável. O que sentia por Johnson neste momento era invo­ luntário. Gostaria de sentir compaixão. Gostaria de conseguir ajudá-lo. Ansiava pela altura em que não houvesse mais nin­ guém em casa a não ser ele próprio e Norton, quando o egoísmo simples da criança seria tudo com o que ele teria de se confrontar, para além da sua solidão. Levantou-se, tirou três pratos da prateleira e levou-os até ao fogão. Absorto, começou a deitar o feijão e a carne picada nos pratos. Quan do a comida estava na mesa, chamou-os. Trouxeram o livro com eles. Norton empurrou o prato e os talheres para o lado da mesa onde Johnson estava e mudou a cadeira para o lado da cadeira de Johnson. Sentaram-se e colocaram o livro entre si. Era um livro preto com margens vermelhas. «Ü que é isso que estão a ler?11, perguntou Sheppard, sentando-se. «A Bíblia Sagrada», respondeu Johnson. Deus me dê forças, disse Sheppard em voz baixa. «Roubámo-la de uma loja dos dez cêntimos [7l ,., confessou Johnson. «Nós?», murmurou Sheppard. Voltou-se e olhou penetran­ temente para Norton. A cara da criança estava radiante e os seus olhos tinham um brilho de excitação. A mudança que o rapaz tinha sofrido chamou-lhe a atenção pela primeira vez. Parecia alerta. Vestia uma camisa axadrezada azul e os olhos tinham um azul mais brilhante do que o que ele alguma vez tinha visto. Havia nele uma estranha vida nova, o sinal de [7) Equivalente às nossas modernas lojas dos trezentos. (N.

da T.)

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vícios novos, e mais rudes. «Então agora tu roubas?», indagou, olhando-o furioso. «Não aprendeste a ser generoso, mas apren­ deste a roubar.» «Não, não aprendeU», disse Johnson. «Fui eu que a roubei. Ele só montou guarda. Ele não pode manchar-se. Não faz dife­ rença nenhuma em relação a mim. Eu vou para o inferno de qualquer modo.» Sheppard não respondeu. «A não ser», disse Johnson, «que eu me arrependa.» «Arrepende-te, Rufus», disse Norton numa voz suplicante. «Arrepende-te, estás a ouvir? Tu não queres ir para o inferno.» «Pára de dizer disparates», interrompeu Sheppard, olhando severamente para a criança. «Se eu me arrepender, vou ser um pregador», disse Johnson. «Se tencionamos fazer qualquer coisa, não vale a pena fazê-la só pela metade.» «0 que é que tu vais ser, Norton?», perguntou Sheppard numa voz irritada, «um pregador também?» Um brilho de puro prazer apareceu nos olhos da criança. «Um homem do espaço !», gritou. «Que maravilha», disse Sheppard amargamente. «Essas naves espaciais não te vão servir de nada a não ser que acredites em Jesus», disse Johnson. Molhou o dedo e começou a folhear as páginas da Bíblia. «Vou-te ler onde diz isso», disse. Sheppard inclinou-se para a frente e impôs-se numa voz baixa e furiosa, «Põe essa Bíblia de lado, Rufus, e come o j an­ tar.» Johnson continuou a procurar a passagem. «Põe essa Bíblia de lado !», gritou Sheppard. O rapaz parou e olhou para cima. A sua expressão era de espanto mas também de satisfação. «Esse livro serve-te para te esconderes atrás dele», disse Sheppard. «É para cobardes, para pessoas que têm medo de caminhar pelos seus próprios pés e de compreender as coisas por si próprios.»

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Os olhos de Johnson pestanej aram rapidamente. Afastou a cadeira ligeiramente da mesa. «Satanás tem-no sob o seu poder», disse. «Não apenas a mim mas a si também.» Sheppard esticou-se sobre a mesa para agarrar no livro mas Johnson puxou-o e colocou-o no colo. Sheppard riu-se. «Tu não acreditas nesse livro e tu sabes que não acreditas nele.» «Acredito !», defendeu-se Johnson. «Não sabe aquilo em que eu acredito e aquilo em que eu não acredito.» Sheppard abanou a cabeça. «Não acreditas nele. É s dema­ siado inteligente.» «Eu não sou assim tão inteligente», murmurou o rapaz. «Não sabe nada acerca de mim. Mesmo que eu não acreditasse nele, mesmo assim seria verdade.» «Tu não acreditas nele !», insistiu Sheppard. «Eu acredito nele !», sustentou Johnson sem fôlego. «Vou­ -lhe mostrar que acredito nele !» Abriu o livro no colo e arran­ cou uma página e enfiou-a na boca. Fixou os olhos em Sheppard. Os maxilares trabalharam furiosamente e o papel estalou enquanto ele o mastigava. «Pára com isso», disse Sheppard numa voz seca e esgo­ tada. «Pára.11 O rapaz ergueu a Bíblia e rasgou uma página com os den­ tes e começou a triturá-la na boca, com os olhos a arder. Sheppard tentou novamente esticar-se por cima da mesa e arrancou-lhe o livro da mão. «Sai da mesa», disse friamente. Johnson engoliu o que tinha na boca. Os olhos escancara­ ram-se como se uma visão de esplendor estivesse-se a abrir à sua frente. 11Comi-a !11, respirou. «Comi-a como Ezequiel e foi mel para a minha boca l» «Sai desta mesa», disse Sheppard. Tinha os punhos cerrados ao lado do prato. «Comi-a !», gritou o rapaz. O espanto transformou-lhe o semblante. «Comi-a como Ezequiel e não quero comida ne­ nhuma sua depois disto, nem nunca mais.» «Vai-te embora, então», disse Sheppard baixinho. «Vai. Vai.»

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O rapaz levantou-se, agarrou na Bíblia e dirigiu-se para o vestíbulo com ela. Parou à porta, uma pequena figura negra no limiar de um apocalipse sombrio. «Ü demónio tem-no em seu poder», disse numa voz jubilosa e desapareceu.

Depois do jantar, Sheppard estava sentado na sala sozi­ nho. Johnson tinha saído de casa mas ele não acreditava que o rapaz tivesse simplesmente partido. A primeira sensação de alívio já lhe passara. Sentia-se sem energia e com frio como se estivesse a chocar uma doença, e o pavor tinha-se insta­ lado dentro dele como um nevoeiro. Partir apenas seria um final anticlimático demais para o gosto de Jonhson ; havia de regressar e tentar provar alguma coisa. Poderia voltar uma semana depois e incendiar a casa. Agora, nada p arecia demasiado excessivo. Pegou no jornal e tentou ler. Pouco depois atirou-o para o lado e levantou-se e dirigiu-se ao vestíbulo e escutou. O rapaz poderia estar escondido no sótão. Foi até à porta do sótão e abriu-a. A lanterna estava acesa, espalhando uma luz ténue nas esca­ das. Não ouviu nada. «Norton», chamou, «estás aí em cima?» Não houve resposta. Subiu as escadas estreitas para verificar. Por entre as estranhas sombras semelhantes a vinhas pro­ jectadas pela lanterna, Norton estava sentado com o olho no telescópio. «Norton», disse Sheppard, «sabes onde foi o Rufus?» O miúdo estava voltado de costas para ele. Estava sentado, curvado, atento, as suas grandes orelhas directamente por cima dos ombros. De repente, acenou com a mão e inclinou-se ainda mais sobre o telescópio como se não conseguisse aproximar suficientemente o que via. «Norton !», repetiu Sheppard mais alto. A criança não se mexeu. «Norton!», gritou Sheppard. Norton sobressaltou-se. Voltou-se. Os seus olhos tinham um brilho pouco natural. Após um momento pareceu aperce-

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ber-se de que se tratava de Sheppard. «Encontrei-a !», diss e sem fôlego. «Encontraste quem?», inquiriu Sheppard. «A mamã !» Sheppard cambaleou no limiar da porta. A selva de som­ bras em redor da criança adensou-se. «Anda, vem ver!», gritou. Limpou a cara suada à extremi­ dade da sua camisa de xadrez e depois colocou o olho de novo no telescópio. As suas costas ficaram imóveis numa intensi­ dade rígida. De repente, acenou de novo. «Norton», disse Sheppard, «não se vê nada no telescópio a não ser grupos de estrelas. Bom, já chega por esta noite. É melhor ires para a cama. Sabes onde está o Rufus?» «Ela está ali !», clamou Norton, sem se voltar e deixar o telescópio. «Ela disse-me adeus !» «Quero-te na cama dentro de um quarto de hora», disse Sheppard. Após um momento, disse: «Estás a ouvir-me, Norton?» A criança começou a acenar furiosamente. «Estou a falar a sério», avisou Sheppard. «Vou verificar se estás na cama dentro de quinze minutos.» Voltou a descer as escadas e regressou à sala. Foi até à porta da frente e lançou um olhar apressado para o exterior. O céu estava apinhado com as estrelas que ele tinha sido sufi­ cientemente idiota para pensar que Johnson poderia alcançar. Algures na pequena mata por trás da casa, um sapo deixou sair uma nota grave e oca. Regressou à sua cadeira e sentou­ -se durante uns minutos. Decidiu ir para a cama. Pôs as mãos nos braços da cadeira e inclinou-se p ara a frente e ouviu, como se fosse a primeira nota estridente de um aviso de desas­ tre, a sirene de um carro da polícia, movendo-se lentamente na vizinhança e aproximando-se até parar com um gemido à porta de casa. Sentiu um peso frio nos ombros como se um manto gelado tivesse sido atirado para cima dele. Foi até à porta e abriu-a. Dois polícias vinham a subir o caminho trazendo no meio dos dois um Johnson escuro que protestava, algemado a cada

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um deles. Um repórter corria ao lado deles e outro polícia espe­ rava no carro patrulha. «Aqui está o seu rapaz», disse o mais sombrio dos polícias. «Eu não lhe disse que o apanhávamos?» Johnson puxou o braço ferozmente. «Eu estava à vossa espera !», disse. «Vocês não me tinham apanhado se eu não tivesse querido ser apanhado. A ideia foi minha.» Estava a falar para o polícia, mas olhava de soslaio para Sheppard. Sheppard olhou para ele friamente. «Porque é que querias ser apanhado?», perguntou o repór­ ter, dando a volta a correr para ficar ao lado de Johnson. «Porque é que querias mesmo ser apanhado?» A pergunta e a presença de Sheppard pareceram enfurecer o rapaz. «Para mostrar que sou capaz disso àquele grandessís­ simo Jesus feito de metal !», sibilou, e tentou dar um pontapé a Sheppard. «Ele pensa que é Deus. Prefiro estar no reformatório do que nesta casa, prefiro estar na cadeia ! O Demónio tem-no em seu poder. Ele não distingue a mão esquerda da direita, e o filho dele, que é maluco, tem mais juízo do que ele !» Parou e depois avançou para a sua fantástica conclusão. «Ele fez-me insinuações !» A cara de Sheppard empalideceu. Agarrou-se à ombreira da porta. «Insinuações?», disse o repórter ansiosamente, «que tipo de insinuações?» «Insinuações imorais !», declarou Johnson. «Ü que é que lhe passou pela cabeça? Mas eu não admito nada dessas coisas, sou cristão, sou ... » A cara de Sheppard estava tensa com a dor. «Ele sabe que isso não é verdade», disse numa voz abalada. «Ele sabe que está a mentir. Fiz tudo o que pude por ele. Fiz mais por ele do que fiz pelo meu próprio filho. Esperava salvá-lo e falhei, mas foi uma derrota honrosa. Não tenho nada de que me arrepender. Não lhe fiz quaisquer insinuações.» «Lembras-te das insinuações?», perguntou o repórter. «Podes dizer-nos exactamente o que ele disse?»

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«Ele é um ateu porco», insultou Johnson. «Ele disse que o inferno não existe.» «Bem, já se viram um ao outro», disse um dos polícias co m um suspiro sabido. «Vamos embora.» «Esperem», pediu Sheppard. Desceu um degrau e fitou os olhos de Johnson num último esforço desesperado para se salvar. «Diz a verdade, Rufus», concitou. «Tu não queres pro­ pagar esta mentira. Tu não és mau, estás mortalmente con­ fuso. Não tens que compensar esse pé, não tens que ... » Johnson atirou-se para a frente. «Oiçam-no !», gritou. «Eu minto e roubo porque sou bom nisso ! O meu pé não tem abso­ lutamente nada a ver com isso ! Os coxos entrarão primeiro ! Os mancos serão reunidos. Quando eu estiver pronto para ser salvo, Jesus salvar-me-á, a mim e não àquele ateu mentiroso de merda, não àquele ... » «Chega da tua parte», disse o polícia e puxou-o para trás. «Só queríamos que visse que o apanhámos», informou ele a Sheppard, e os dois viraram-se e arrastaram Johnson, semi voltado e gritando na direcção de Sheppard. «Os coxos ficarão com os despojos», guinchou, mas a sua voz ficou abafada no interior do carro. O repórter apressou-se a entrar para o lugar da frente ao lado do condutor, fechou a porta com força e a sirene gemeu na escuridão. Sheppard permaneceu ali, ligeiramente curvado como um homem que foi baleado mas que continua de pé. Após um minuto voltou-se e entrou em casa e sentou-se na cadeira de onde se tinha levantado. Fechou os olhos e surgiu-lhe uma imagem de Johnson rodeado de repórteres na esquadra da polícia, aperfeiçoando as suas mentiras. «Não tenho nada de que me censurar», murmurou. Todas as suas acções tinham sido altruístas, o seu único propósito tinha sido salvar Johnson para um qualquer tipo de serviço decente, não se tinha pou­ pado, tinha sacrificado a sua reputação, tinha feito mais por Johnson do que alguma vez fizera pelo seu próprio filho. A maldade envolvia-o como se fosse um cheiro no ar, tão perto que parecia vir da sua própria respiração. «Não tenho

OS COXOS HÃO-DE ENIRAR PRIMEIRO 1 9 1

nada de que me censurar», repetiu. A sua voz soava seca e áspera. «Fiz mais por ele do que fiz pelo meu próprio filho.» Foi varrido por um pânico súbito. Ouvia a voz jubilosa do rapaz. Satanás tem-no a si em seu poder. «Não tenho nada de que me censurar», começou de novo. «Fiz mais por ele do que fiz pelo meu próprio filho.» Ouviu a sua voz como se fosse a voz de quem o acusava. Repetiu a frase em silêncio. Lentamente, a sua face ficou sem cor. Ficou quase cin­ zenta por baixo do halo branco do seu cabelo. A frase ecoou na sua cabeça, cada sílaba como um golpe pesado. A boca torceu-se-lhe e ele fechou os olhos contra a revelação. A face de Norton ergueu-se perante si, vazia, desamparada, o seu olho esquerdo inclinado para o canto exterior, quase imper­ ceptivelmente, como se não suportasse uma visão integral da dor. O coração contraiu-se-lhe com uma repulsa por si pró­ prio tão clara e intensa que ficou sem respiração. Tinha atu­ lhado o seu próprio vazio com boas obras como um glutão. Tinha ignorado o seu próprio filho para alimentar a visão que alimentava de si próprio. Via o Diabo de olhos claros, o pers­ crutador de corações, olhando-o de soslaio a partir dos olhos de Johnson. A imagem que tinha de si próprio encolheu até tudo estar negro diante de si. Ficou ali sentado, paralisado, horrorizado. Viu Norton no telescópio, só costas e orelhas, viu o seu braço estender-se e acenar loucamente. Uma onda de amor angustiado pela criança inundou-o como uma transfusão de vida. A face do rapazinho apareceu-lhe transformada ; a ima­ gem da sua salvação ; toda claridade. Gemeu de alegria. Havia de compensá-lo completamente. Nunca mais iria deixar que sofresse. Seria pai e mãe. Ergueu-se de um salto e correu para o quarto dele, para o beij ar, para lhe dizer que o amava, que nunca mais o abandonaria. A luz estava acesa no quarto de Norton mas a cama estava vazia. Voltou-se e correu pelas escadas do sótão acima e no topo cambaleou para trás como um homem à beira de um

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precipício. O tripé tinha caído e o telescópio jazia no chão. Alguns metros acima, a criança pendia na selva de sombras, logo por baixo da viga de onde se tinha lançado para o seu voo no espaço.

REVELAÇÃO sala de espera do médico, que era pequemss1ma, estava quase cheia quando o casal Turpin entrou ; e agora Mrs. Turpin, que era bastante avantajada, fazia-a parecer ainda mais pequena com a sua presença. Deixou-se ficar hesitante junto à mesa das revistas colocada no centro, uma demons­ tração viva de que a sala era inadequada e ridícula. Os seus olhinhos pretos e brilhantes abarcaram todos os pacientes enquanto avaliava a situação dos lugares disponíveis. Havia uma cadeira vazia, e um lugar no sofá ocupado por uma criança loura, enfiada numa farpela azul toda suja, a quem deveriam ter dito que se encolhesse para dar lugar à senhora. Tinha cinco ou seis anos, mas Mrs. Turpin apercebeu-se logo de que ninguém ia dizer-lhe para se afastar. O miúdo estava afundado no assento com os braços indolentes ao lado do corpo e a apatia firmada nos olhos ; o ranho escorria-lhe do nariz sem que ninguém o impedisse. Mrs. Turpin colocou uma mão firme no ombro de Claud e disse, numa voz que incluía todos os que quisessem ouvir: «Claud, senta-te ali naquela cadeira», e empurrou-o na direc­ ção desse lugar vago. Claud era corado, careca e robusto, um pouco mais baixo que Mrs. Turpin, mas sentou-se como se estivesse habituado a fazer o que ela mandava. A

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Mrs. Turpin ficou de pé. O único homem na sala para além de Claud era um velhote seco cheio de tendões, que tinha as mãos macilentas pousadas nos joelhos e os olhos fechados como se estivesse a dormir ou morto, ou fingindo estar para não ter que se levantar e dar o lugar a alguém. O olhar dela pousou de forma agradável numa senhora bem vestida, de cabelo grisalho, cujo olhar se cruzou com o seu e cuja expres­ são dizia: se aquela criança fosse minha, teria maneiras e encolhia-se - há espaço suficiente ali para si e para ele. Claud olhou para cima com um suspiro e fez menção de se levantar. «Senta-te», disse Mrs. Turpin. «Sabes que não deves fazer esforços sobre essa perna. Tem uma úlcera na perna», expli­ cou ela. Claud apoiou o pé na mesa das revistas e enrolou a perna das calças para cima de forma a revelar um inchaço purpú­ reo na barriga da perna roliça de um branco-mármore. «Caramba !», disse a senhora simpática. «Como é que fez isso?» «Uma vaca deu-lhe um coice», disse Mrs. Turpin. «Meu Deus !», disse a senhora. Claud puxou a perna das calças para baixo. «Talvez o menino pudesse desviar-se um pouco», sugeriu a senhora, mas a criança não se mexeu. «Alguém há-de sair em breve», disse Mrs. Turpin. Não per­ cebia como é que um médico - com tanto dinheiro que faziam por dia, se bastava enfiar a cabeça pela porta do hos­ pital e olhar para uma pessoa para logo cobrarem cinco dóla­ res - não arranjava uma sala de espera com uma dimensão decente. Esta era pouco maior que uma garagem. A mesa estava atravancada de revistas de capa mole e numa das extremidades havia um grande cinzeiro de vidro verde cheio de beatas e de compressas de algodão com pequenas manchas de sangue. Se ela fosse responsável pela organização do local, aquilo seria esvaziado de vez em quando. Não havia cadeiras encostadas à parede no topo da sala. Existia um painel rec-

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tangular que permitia ver a recepção onde a enfermeira entrava e saía e onde a recepcionista ouvia rádio. Um feto de plástico num vaso dourado estava colocado na abertura e a sua folhagem descia quase até ao chão. O rádio transmitia baixinho música gospel. Nessa altura a porta interior abriu-se, e uma enfermeira, fez irromper pelo umbral o maior carrapito de cabelo amarelo que Mrs. Turpin alguma vez tinha visto na vida, e chamou o paciente seguinte. A mulher sentada ao lado de Claud agar­ rou-se aos braços da cadeira e içou-se ; afastou o vestido das pernas e passou com dificuldade pela porta por onde a enfer­ meira tinha desaparecido. Mrs. Turpin instalou-se na cadeira vazia, que a comprimiu como um espartilho. «Quem me dera emagrecer», disse, revi­ rou os olhos e suspirou de forma cómica. «Oh, você não é gorda», observou a senhora elegante. «Üooooh, se sou», disse Mrs. Turpin. «0 Claud come tudo o que quer e nunca ultrapassa os noventa quilos, mas eu, basta olhar para qualquer coisa boa de comer que engordo logo», e o estômago e os ombros tremeram-lhe com o riso. «Podes comer tudo o que quiseres, não podes, Claud?», per­ guntou ela, virando-se para ele. Claud apenas sorriu. «Bem, desde que continue com essa boa disposição», disse a senhora elegante, «não acho que faça diferença nenhuma que número veste. Não há nada como a boa disposição.» Ao lado dela estava uma rapariga gorda de dezoito ou dezanove anos, de sobrolho carregado, que lia um grosso livro azul no qual Mrs. Turpin descortinou o título Desen­ volvimento Humano. A rapariga levantou a cabeça e dirigiu o seu sobrolho carregado a Mrs. Turpin, como se não gostasse do seu aspecto. Parecia incomodada com o facto de alguém falar enquanto ela tentava ler. A cara da pobre criatura estava toda encrespada com acne e Mrs. Turpin pensou como era penoso ter um aspecto assim naquela idade. Dirigiu um sorriso afável à rapariga, mas ela limitou-se a devolver o

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olhar com o sobrolho ainda mais carregado. A própria Mrs. Turpin era gorda, mas sempre possuíra uma pele excelente ; e, embora tivesse quarenta e sete anos de idade, não tinha uma única ruga na cara, com excepção da área à volta dos olhos, só por causa de rir tanto. Ao lado da rapariga feia estava o miúdo malcriado, ainda exactamente na mesma posição, e ao lado dele estava uma velha magra e coriácea num vestido de algodão estampado. Ela e Claud tinham três sacos de ração para as galinhas na casa da bomba com o mesmo padrão. Mrs. Turpin deduzira logo desde o início que o rapazinho pertencia à velha. Percebia pela maneira como estavam sentados - uma espécie de alheamento, juntamente com aquele ar mesmo rasca da escumalha branca, como se fossem ficar ali sentados até ao Dia do Julgamento Final se ninguém os chamasse e lhes dis­ sesse para se levantarem. E em ângulo recto, mas ao lado da senhora simpática e bem vestida, estava uma mulher com um rosto magro que era sem dúvida a mãe da criança. Vestia uma camisola amarela e calças cor de vinho, ambas com um aspecto coçado, e tinha os contornos dos lábios todos man­ chados de rapé. O seu cabelo amarelo suj o estava apanhado atrás com um pedacinho de fita de papel vermelha. Piores que os pretos, sem dúvida, pensou Mrs. Turpin. Do hino gospel que estava a ser transmitido percebia-se, « Quando eu olhei para cima e Ele olhou para baixo», e Mrs. Turpin, que o conhecia, acrescentou o último verso mental­ mente, «E por um destes dias .eu sei que usarei uma coroa.» Sem o dar a perceber, Mrs. Turpin observava sempre os pés das pessoas. A senhora bem vestida calçava uns sapatos de camurça vermelha e cinza que combinavam com o ves­ tido. Mrs. Turpin tinha calçadas as suas novas sabrinas pre­ tas de cabedal genuíno. A rapariga feia calçava sapatos de escuteiro e meias pesadas. A velha tinha ténis e a mãe da escumalha branca tinha o que pareciam ser uns chinelos de quarto, de palha preta com fio dourado entrançado - exac­ tamente o que se esperaria que ela calçasse.

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Às vezes, à noite, quando não conseguia adormecer, Mrs. Turpin ocupava-se com a seguinte questão : se não pudesse ser quem era, que pessoa escolheria ser? Se Jesus lhe tivesse dito antes de a criar, «Existem apenas dois lugares disponí­ veis para ti. Podes ser ou uma preta ou uma gaja rasca da escumalha branca», o que teria ela respondido? «Por favor, Jesus, por favor», diria talvez, «deixa-me esperar até que haja outro lugar disponível», e a isso ele teria sentenciado : «Não, tens que ir agora e só tenho esses dois lugares, por isso decide-te.» Ela ter-se-ia agitado, contorcido, suplicado e ro­ gado, mas não teria conseguido nada e por fim diria: «Tudo bem, faz-me preta, então - mas isso não quer dizer que seja uma preta rasca, por favor, que eu não aguento a escumalha.» E ele tê-la-ia feito uma mulher negra esmerada, limpa e res­ peitável, como ela era, mas negra. Ao lado da mãe da criança estava uma mulher ainda jovem de cabelos vermelhos, a ler uma das revistas e a mas­ tigar uma pastilha elástica mais dura do que cabedal [ 8 1 , como diria Claud. Mrs. Turpin não conseguia ver-lhe os pés. Não era escumalha, era apenas vulgar. Por vezes, à noite, Mrs. Turpin também se ocupava designando as classes sociais. Na base da pirâmide encontrava-se a maior parte das pes­ soas de cor, não o tipo de pessoas que ela teria sido se tivesse sido assim, mas a maioria das outras ; depois, a seguir a essas - não acima, apenas afastada - ficava a gente rasca da escumalha branca ; depois, aí sim, acima, ficavam os proprietários de casas e, no topo, os proprietá­ rios de casas e de terras, a cujo grupo ela e Claud perten­ ciam. Acima dela e do Claud ficavam as pessoas com muito dinheiro e casas muito maiores e latifundiários. Mas aqui a complexidade do assunto começava a acabrunhá-la, j á que algumas das pessoas com muito dinheiro eram reles e deviam estar abaixo dela e de Claud, além de que, algumas [8 ] Expressão muito em voga na época, quando a pastilha elástica ainda era novidade, uti­ lizada para caracterizar as pessoas que a mastigavam com ruído e com a boca toda aberta. (N. da T.)

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das pessoas que possuíam bom sangue tinham perdido o seu dinheiro e estavam obrigadas a pagar renda e depois ainda, havia gente de cor que era também proprietária das suas casas e terras. Havia um dentista de cor na cidade que tinha dois Lincoln 's vermelhos e uma piscina e uma quinta com gado registado de raça pura. Normalmente, quando adorme­ cia, todas as classes de pessoas se afadigavam e agitavam dentro da sua cabeça e ela sonhava que todas elas estavam como sardinha em lata numa camioneta de caixa aberta e eram transportadas para serem largadas num forno de gás. «Aquele relógio é lindo», disse, e acenou para a sua direita. O relógio de parede era grande e tinha o mostrador embutido num ornamento de metal figurando o Sol. «Sim, é muito bonito», anuiu de forma agradável a senhora elegante. «E está certissimo», acrescentou, dando uma vista de olhos ao seu relógio de pulso. A rapariga feia ao seu lado olhou para cima fixando o relógio, sorriu de forma afectada, depois olhou directamente para Mrs. Turpin e sorriu de novo. Em seguida, voltou a olhar para o livro. Era obviamente filha da senhora, porque, em­ bora não se parecessem nada uma com a outra quanto à disposição, ambas tinham o mesmo fo rmato de rosto e os mesmos olhos azuis. Na senhora, esses olhos brilhavam de forma agradável ; mas, na face marcada da rapariga, pare­ ciam arder em fogo lento ou inflamar-se alternadamente em labaredas. E se Jesus tivesse dito : «Muito bem, podes ser uma pessoa rasca da escumalha branca, ou preta, ou feia!» Mrs. Turpin sentiu uma grande pena da rapariga, embora pensasse que uma coisa era ser feia e outra era ser desagra­ dável. A mulher com os lábios manchados de rapé virou-se na cadeira e olhou para o relógio. Depois voltou-se novamente e pareceu olhar ligeiramente para o lado de Mrs. Turpin. Era estrábica de um dos olhos. «Quer saber onde pode arranjar um daqueles relógios?», perguntou em voz alta.

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«Não, já tenho um relógio bonito», disse Mrs. Turpin. Assim que alguém como aquela conseguisse entrar na con­ versa, havia de monopolizá-la. «Pode conseguir um com cupões verdes [9J ,., disse a mulher. «0 mais certo foi ele ter arranjado o dele assim. Se juntar o número suficiente, pode conseguir quase tudo. Eu arranjei joalharia.» Devias era ter arranj ado uma esponja e sabão, pensou Mrs. Turpin. «Eu troco os meus por aqueles lençóis com rendas», disse a senhora simpática. A filha fechou o livro com força. Olhou de imediato em frente, directamente para Mrs Turpin e através da cortina ama­ rela e do vidro espelhado da janela que constituía a parede por trás dela. Os olhos da rapariga pareciam de repente iluminados por uma luz peculiar, uma luz artificial como a que os sinais de trânsito noctumos emitem. Mrs Turpin voltou a cabeça para ver se havia alguma coisa no exterior que ela devesse ver, mas não conseguiu descortinar nada. Os vultos que passavam pro­ jectavam apenas uma sombra pálida através da cortina. Não havia qualquer razão para a rapariga a ter escolhido como objecto do seu olhar desagradável. «Miss Finley», disse a enfer­ meira, fazendo ranger a porta. A mulher que mascava a pasti­ lha elástica levantou-se e passou em frente dela e de Claud e entrou na recepção. Calçava sapatos de salto alto vermelhos. Exactamente do outro lado da mesa, os olhos da rapariga feia estavam fixos em Mrs. Turpin como se tivesse uma razão muito particular para não gostar dela. «Está um tempo óptimo, não está?», disse a mãe da ra­ pariga. «Está bom tempo para o algodão se conseguirmos que os pretos o apanhem», disse Mrs. Turpin, «mas os pretos já não .

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É tradicional, nos Estados Unidos, recortarem-se dos jornais e das revistas, pelo picotado, umas tiras de papel que dão direito a uma qualquer percentagem de desconto ou a um brinde quando se entregam na caixa, tanto nos supennercados como em numerosas lojas temáticas. Os reformados têm a fama de passar o dia a descobrir e recortar cupões. (N. da T.)

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querem apanhar algodão. Deixámos de conseguir que os bran­ cos o apanhem e agora não conseguimos que os pretos o façam - porque têm que estar em pé de igualdade com os brancos.» «De qualquer maneira têm que tentar», disse a mulher rasca da escumalha branca, inclinando-se para a frente. «Tem uma daquelas máquinas de apanhar algodão?», per­ guntou a senhora simpática. «Não», disse Mrs. Turpin, «deixam metade do algodão no campo. Também não temos muito algodão. Se quisermos viver da agricultura nos dias de hoje, temos que ter um pouco de tudo. Temos uns dois hectares de algodão, alguns porcos e galinhas e apenas o número suficiente de gado de raça pura para que o Claud possa tratar deles sozinho.» «Há uma coisa que eu não quero», disse a mulher rasca da escumalha branca, limpando a boca com as costas da mão. «Porcos. Animais noj entos e makheirosos, a grunhir e a foçar por todo o lado.» Mrs. Turpin prestou-lhe uma atenção ínfima. «Üs nossos porcos não são sujos nem cheiram mal», afiançou. «São mais asseados do que algumas crianças que eu conheço. Os pés deles nunca entram em contacto com a terra. Temos um recinto para os porcos - é onde eles são criados, no cimento», explicou à senhora simpática, «e o Claud lava-os com a man­ gueira todas as tardes e depois lava o chão.» Muito mais asseados do que aquela criança ali, pensou. Coitadinho do desgraçado. Não se tinha mexido a não ser para pôr na boca o polegar da sua mão suja. A mulher desviou a cara de Mrs. Turpin. «Tenho a certeza, jamais lavaria um porco com uma mangueira, ou fosse como fosse», disse para a parede. Nem tens porcos para lavar, disse Mrs. Turpin para si própria. «A grunhir e a foçar e a roncar», resmungou a mulher. «Temos um pouco de tudo», disse Mrs. Turpin à senhora simpática. «Não vale a pena termos mais se não conseguimos nós mesmos dar conta do recado, da maneira como está a mão-de-obra. Conseguimos pretos suficientes para apanhar o

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algodão este ano mas o Claud tem que ir buscá-los e levá-los de regresso a casa à noite. Não querem andar nem meio quiló­ metro. Não senhor. Pode crer», disse e riu alegremente. «Estou completamente farta de passar a mão pelo pêlo aos pretos, mas temos que mostrar gostar deles se quisermos que trabalhem para nós. Quando chegam de manhã, saio de casa e digo-lhes : 'Como é que estão todos hoje?' ; e quando o Claud faz o trans­ porte na carrinha para os campos aceno para dar início à música, e eles acenam também.» E acenou com a mão rapida­ mente para ilustrar a cena. «Como se aprendessem todos pela mesma cartilha», disse a senhora, indicando que compreendia perfeitamente. «Pois é, credo», disse Mrs. Turpin. «E quando regressam dos campos, apresso-me a sair com um balde de água gelada. É assim que vai ser daqui em diante», disse. «Mais vale enca­ rar as coisas de frente.» «Há uma coisa de que eu tenho a certeza», disse a mulher rasca da escumalha branca. «Há duas coisas que eu nunca vou fazer: gostar de pretos ou lavar porcos com uma man­ gueira.» E deixou escapar um ruído de desdém. O olhar que Mrs. Turpin e a senhora simpática trocaram indicava que ambas sabiam ser necessário possuir certas coi­ sas para se perceber certas coisas. Mas de cada vez que Mrs. Turpin trocava um olhar com a senhora, tinha consciência de que os olhos singulares da rapariga feia ainda estavam pou­ sados nela, e por causa disso sentia dificuldade em voltar a prestar atenção à conversa. «Quando somos donos de alguma coisa», disse, «temos que cuidar dela.» E quando não temos nada a não ser o ar e umas calças velhas com suspensórios, acrescentou para si própria, podemo-nos dar ao luxo de vir à cidade todas as manhãs e ficar sentados na cimalha do tribunal a cuspir. Uma sombra grotesca com um movimento circular passou pela cortina por detrás dela e projectou-se palidamente na parede oposta. A seguir, uma bicicleta fez barulho contra a parede exterior do edifício. A porta abriu-se e um rapaz de cor

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deslizou para o interior com uma bandej a de café. Pousados nela, estavam dois copos grandes de papel vermelho e branco com as tampas bem fechadas r 101 . Era um rapaz alto e muito escuro com umas calças brancas desbotadas e uma camisa verde de nylon. Mastigava pastilha elástica devagar, como se o fizesse ao ritmo de música. Pousou a bandeja na abertura da recepção, ao lado do vaso com o feto, e enfiou a cabeça lá dentro à procura da recepcionista. Não estava. Descansou os braços no balcão e esperou, com o traseiro estreito espetado, balouçando para a esquerda e para a direita. Levantou uma mão por cima da cabeça e coçou a base do crânio. «Vês aquele botão ali, rapaz?», disse Mrs. Turpin. «Podes tocar que ela vem. Está provavelmente algures lá atrás.li «Ai é?ll, disse o rapaz de forma agradável, como se nunca tivesse visto a campainha antes. Inclinou-se para a direita e colocou-lhe o dedo em cima. «Ela às vezes não está», comen­ tou, e torceu-se para encarar o seu público com os cotovelos atrás de si em cima do balcão. A enfermeira apareceu e ele voltou-se de novo. A rapariga entregou-lhe um dólar e o preto procurou no bolso e fez o troco contando as moedas à medida que lhas entregava. Ela deu-lhe quinze cêntimos de gorjeta e ele saiu com a bandej a vazia. A porta oscilou len­ tamente e acabou por se fechar com um ruído de sucção. Durante um momento ninguém falou. «Deviam mandar todos os malditos pretos novamente para Áfricall, disse a mulher rasca da escumalha branca. «Foi donde vieram no início.li «Oh, eu não passava sem os meus amigos de cor>t, disse a senhora simpática. «Há um montão de coisas piores do que um pretoll, con­ cordou Mrs. Turpin. «Há de todos os géneros, assim como o há todo o género entre nós.li [ !O] Note-se que se trata de café americano. Por norma, é de cafeteira, fraco, e bebe-se ou em canecas ou em copos de papel, bastantes deles num impressionante tamanho X L Estes copos têm tampa, para que o café não se entorne nem arrefeça enquanto o consumidor anda com ele na rua. As tampas costumam ter um buraquinho, e é por ai que se bebe. (N. da T.)

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«Sim, e todos são precisos para fazer girar o mundo», disse a senhora na sua voz musical. Quando a mãe acabou de falar, a rapariga de cútis em ferida cerrou os dentes ruidosamente. O lábio inferior virou­ -se para baixo e ficou do avesso, revelando o interior rosa pálido da boca. Após um momento voltou à posição habitual. Era a pior careta que Mrs. Turpin tinha visto alguém fazer e, durante um momento, teve a certeza de que a rapariga lhe tinha dirigido a carantonha. Olhava para ela como se toda a vida a tivesse conhecido e com uma antipatia visceral toda a vida de Mrs. Turpin, parecia, e não apenas toda a vida da rapariga. Mas, moça, eu nem te conheço, disse Mrs. Turpin em silêncio. Obrigou-se a prestar atenção à discussão. «Não seria prá­ tico mandá-los de novo para África», confidenciou. «Eles não iam querer ir. Vivem muitíssimo bem por cá.» «0 que eles querem não interessa - se eu tivesse alguma coisa a ver com isso», disse a mulher. «Não haveria maneira nenhuma de conseguir que todos os pretos voltassem para lá», disse Mrs. Turpin. «Haviam de se esconder e estender no chão e de ficar doentes e de se lamu­ riar e de gritar e de fazer uma algazarra e de se prender à terra. Não haveria maneira nenhuma de os mandar para lá.» «Vieram para cá», disse a mulher rasca da escumalha bran­ ca. «Voltam da mesma maneira que vieram.» «Não eram tantos nessa altura», explicou Mrs. Turpin. A mulher olhou para Mrs. Turpin como se ela fosse uma idiota chapada, mas Mrs. Turpin não se incomodou com o olhar, vindo de onde vinha. «Nããão», disse, «vão ficar cá, pois daqui podem ir até Nova Iorque, casar com brancos e melhorar a cor da pele. Isso é o que todos querem fazer, cada um deles, melhorar a cor da pele. «Sabes o que resulta disso, não sabes?», perguntou Claud. «Não, Claud, o quê?», disse Mrs. Turpin. Os olhos de Claud brilharam. «Pretos com caras brancas», disse ele sem um sorriso.

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Todos riram na sala de espera excepto a mulher rasca da escumalha branca e a rapariga feia. Essa, então, agarrou com os dedos lívidos no livro que tinha no colo. A mulher rasca da escumalha branca olhou à volta, fixando cada um dos sem­ blantes como se pensasse que todos eles eram idiotas. A velha com o vestido feito do saco da ração continuou a fitar sem expressão os sapatos de cano alto do homem sentado em frente dela, do outro lado do soalho, aquele que tinha fingido que estava a dormir à chegada dos Turpin. Ria com vontade, ainda com as mãos estendidas sobre os joelhos. O miúdo tinha caído para o lado, de forma que agora estava deitado com a cara quase em cima do colo da velha. Enquanto se recompunham das gargalhadas, o coro nasa­ lado na rádio impedia que a sala ficasse em silêncio. «Tu vais para espaço em branco espaço em branco E eu vou para o meu Mas todos iremos para o espaço em branco todos juntos Jun-tos, E ao longo desse espaço em branco Ajudar-nos-emos So-rrin-do, esteja como estiver O tempo!

Mrs. Turpin não percebia todas as palavras, mas com­ preendia o suficiente para concordar com o espírito da can­ ção, e isso apaziguou-lhe os pensamentos. Ajudar fosse quem fosse que precisasse era a sua filosofia de vida. Não se pou­ pava quando encontrava alguém necessitado, fosse branco ou negro, fosse escumalha branca ou pessoa decente. E de todas as coisas pelas quais tinha de estar agradecida, era isto que mais agradecia. Se Jesus tivesse dito, «Podes ser da alta sociedade e ter todo o dinheiro que quiseres, ser magra e esbelta, mas não podes ser boa pessoa ao mesmo tempo», ela sentir-se-ia obrigada a dizer, «Bem, então não me faças assim. Faz-me uma mulher boa e tudo o resto não interessa,

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mesmo que eu sej a gorda, feia ou pobre ! » O seu coração ele­ vou-se. Ele não a tinha feito preta, nem parte da escumalha branca, nem feia ! Tinha-a feito como era, dando-lhe um pouco de tudo. Oh, meu Jesus, obrigada !, disse. Obrigada, obrigada, obrigada ! Sempre que pensava em tudo com o qual tinha sido abençoada sentia-se leve, como se pesasse sessenta quilos em vez de noventa. «Qual é o problema do seu menino?», perguntou a senhora simpática à mulher rasca da escumalha branca. «Tem uma úlcera», disse a mulher com orgulho. «Não me deu um minuto de paz desde que nasceu. Ele e ela são pare­ cidos», disse, fazendo um sinal com a cabeça em direcção à velha, que passava os dedos coriáceos pelo cabelo pálido da criança. «Parece que não consigo enfiar nada pela boca abaixo daqueles dois a não ser Coca Cola e gamas.» Isso é tudo o que tu tentas enfiar-lhes pela boca abaixo, disse para si própria Mrs. Turpin. Demasiado preguiçosa para acenderes o fogareiro. Não havia nada que lhe pudessem dizer acerca daquele tipo de pessoas que ela não soubesse já. E o problema não era apenas não terem nada. Se lhes dessem tudo, em duas semanas estaria tudo partido ou nojento, ou teriam cortado tudo em pedaços para ser queimado. Sabia tudo isto por experiência própria. Era preciso ajudá-los, mas ninguém o conseguia fazer[ n J . De repente, a rapariga feia revirou os lábios de novo para fora. Os seus olhos estavam fixos em Mrs. Turpin como se fossem duas brocas. Desta vez não havia dúvida de que havia no olhar dela qualquer coisa de urgente. Ai moça, exclamou em silêncio Mrs. Turpin, não te fiz nada ! A rapariga poderia estar a confundi-la com outra pes­ soa. Não havia necessidade de ficar ali sentada e deixar-se inti­ midar. «Deves estar na universidade», disse afoitamente, olhando de frente para a rapariga. «Vejo que estás ler um livro.» [ li]

O problema mantém-se. Recentemente, u m representante da escumalha branca que con­ seguiu tomar-se um comediante famoso e bem pago (white trash, para os americanos) disse à GQ americana: •A escumalha branca com dinheiro é o pior pesadelo da América.• (N. da T.)

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A rapariga continuou a olhar fixamente e não respondeu de propósito. A mãe dela corou por causa desta indelicadeza. «A senhora fez-te uma pergunta, Mary Grace», chamou em surdina. «Eu tenho ouvidos», respondeu Mary Grace. A pobre mãe corou de novo. «A Mary Grace anda no Wellesley College [ l 2l 11, explicou a senhora. Torceu um dos botões do vestido. «No Massachusetts [1 3l 11, acrescentou com uma careta. «E no Verão continua a estudar. Lê o tempo todo, um verdadeiro rato de biblioteca. Tem obtido óptimos resulta­ dos em Wellesley ; está a tirar Inglês e Matemática e História e Psicologia e Estudos Sociais», continuou ela a tagarelar, «e parece-me que é demais. Acho que ela devia sair e divertir-se.» A rapariga parecia que gostaria de atirá-los a todos pelo vidro da janela. «Fica lá muito para o Norte», murmurou Mrs Turpin e pen­ sou que, bem, as maneiras dela não beneficiaram nada com isso. «Eu quase que preferia que ele estivesse doente o tempo todo», disse a mulher rasca da escumalha branca, forçando de novo a atenção na sua direcção. « É chato como a potassa quando não está. Insuportável. Parece que algumas crianças são naturalmente más. Algumas tornam-se más quando ficam doentes, mas ele saiu ao contrário. Adoeceu e ficou bem comportada. Agora não me dá chatices nenhumas. Sou eu quem está à espera da consulta do médico», terminou. Se mandasse alguém para África, pensou Mrs Turpin, seria os da tua espécie, mulher. «Sim, claro», disse alto, mas olhando para o tecto, «há um montão de coisas piores que um preto.» E mais sujos do que um porco, acrescentou para si própria. «Penso que as pessoas mal-humoradas merecem mais pena do que quaisquer outras no mundo», disse a senhora simpática numa voz propositadamente baixa. .

.

[ 1 2]

College de grande qualidade, cotado todos os anos entre os dez melhores dos Estados Unidos. À época, só admitia meninas. (N. da T.)

[1 3 ]

Estado que foi sempre considerado horrivelmente liberal pelos sulistas americanos. No passado, foi aqui que começou a libertação dos escravos. No presente, é daqui que vem Ted Kennedy, de longe o político mais liberal com assento no Senado. (N. da T.)

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«Dou graças ao Senhor por ele me ter abençoado com boa disposição», disse Mrs. Turpin. «Ainda não amanheceu o dia em que eu não consiga arranjar alguma coisa que me dê von­ tade de rir e ser feliz.» «Pelo menos, não desde que se casou comigo», disse Claud com uma cara séria e meio cómica. Toda a gente se riu excepto a rapariga e a família rasca da escumalha branca. O estômago de Mrs. Turpin estremeceu. «Ele é tão cómico», disse, «que eu não consigo deixar de me rir com ele.» A rapariga deixou sair um som alto e desagradável atra­ vés dos dentes. A boca da mãe estreitou-se e fechou-se com força. «Acho que a pior coisa do mundo», disse, «é uma pessoa ingrata. Ter-se tudo e não se apreciar o que se tem. Conheço uma rapariga», disse, «que tem pais que lhe dão tudo, um irmão mais novo que a adora, que recebe uma boa educação, que só usa as melhores roupas, mas que nunca dirige uma palavra simpática a ninguém, que nunca sorri, que só critica e se queixa durante o dia inteiro.» cc É muito velha para levar uma sova?», perguntou Claud. A cara da rapariga estava quase roxa. ccSim», disse a senhora, «receio que não haja nada a fazer a não ser deixá-la entregue à sua insensatez. Um dia vai acordar e será tarde demais.» ccSorrir nunca fez mal a ninguém», disse Mrs. Turpin. «Dá­ -nos uma sensação deliciosa de prazer no corpo todo.» «Claro», disse a senhora com tristeza, «mas há algumas pes­ soas a quem não se pode dizer nada. Não aceitam críticas.» «Se há uma virtude que eu sei mesmo que tenho», disse Mrs. Turpin com veemência, «é a gratidão. Quando penso em tudo o que eu podia ser sem ser eu própria e em tudo o que tenho, um pouco de tudo, e ainda boa disposição, só me ape­ tece gritar, 'Obrigada, Jesus, por teres feito tudo como é ! ' Tudo podia ter sido diferente !'» Por exemplo, podia perfeita­ mente ter ficado outra qualquer com o Claud.

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Só de pensar nisto, foi inundada pela gratidão, e sentiu-se atravessada por uma pontada terrível de alegria. «Ah, obri­ gada, Jesus, obrigada !», gritou em voz alta. O livro acertou-lhe directamente no olho esquerdo. Atingiu­ -a quase no mesmo instante em que se apercebeu que a rapa­ riga estava prestes a atirá-lo. Antes de sequer poder articular um som, a cara inflamada veio em direcção a ela, por cima da mesa, berrando. Os dedos da rapariga afundaram-se na pele macia do seu pescoço como grampos. Ouviu a mãe gri­ tar e Claud berrar, «Pára !» Houve um instante em que teve a certeza de estar prestes a vivenciar um terramoto. Depois a sua visão contraiu-se, começou a ver como se tudo estivesse a acontecer num pequeno quarto muito ao longe, ou se tentasse olhar através do lado errado de um telescópio. A cara de Claud ficou amarrotada e desapareceu da sua vista. A enfermeira entrou a correr, depois saiu a cor­ rer, depois entrou outra vez. Em seguida, a figura desajeitada do médico entrou disparada vinda da porta interior. Voaram revistas para todos os lados quando a mesa se virou. A rapa­ riga caiu com uma pancada surda e a visão de Mrs. Turpin inverteu-se de repente, vendo tudo enorme em vez de pe­ queno. Os olhos da mulher rasca da escumalha branca esta­ vam completamente fixos no que se afigurava no chão ; a rapariga lá caída e agarrada de um dos lados pela enfermeira e do outro pela mãe, - agitava-se e torcia-se num debate colérico. O médico estava escarranchado sobre ela tentando pressionar-lhe o braço para baixo. Um segundo depois, con­ seguiu enfiar-lhe uma agulha comprida na veia. Mrs. Turpin sentia-se completamente oca, à excepção do coração que oscilava de um lado para o outro como se esti­ vesse a ser agitado dentro tambor de carne vazio e enorme. «Alguém que não esteja a fazer nada chame a ambulân­ cia», disse o médico na voz sem cerimónias que os verdadei­ ros profissionais adoptam para as ocasiões terríveis. Mrs. Turpin não conseguiria ter movido um dedo. O velho­ te que tinha estado sentado ao lado dela esgueirou-se agil-

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mente para a recepção e fez a chamada, j á que a recepcio­ nista parecia já lá não estar outra vez. «Claud !», chamou Mrs. Turpin. O marido já nem estava sentado na cadeira. Ela tinha consciência de que precisava de levantar-se com um salto e ir à procura dele, mas sentia-se como uma pessoa a tentar apanhar um comboio num sonho, quando tudo se move em câmara lenta e, quanto mais depressa tentamos ir, mais len­ tamente nos movemos. «Estou aqui», disse uma voz sufocada, muito diferente da do costume. Estava dobrado num canto, no chão, branco como a cal, a segurar a perna. Ela queria levantar-se e ir ter com ele, mas não conseguia mexer-se. Em vez disso, o seu olhar foi lenta­ mente atraído para baixo, para a cara que se agitava no chão e que ela conseguia ver por cima do ombro do médico. Os olhos da rapariga pararam de rolar e fixaram-se nela. Pareciam de um azul muito mais claro do que anteriormente, como se uma porta que tivesse estado firmemente fechada por trás deles estivesse agora aberta para deixar entrar a luz e o ar. A cabeça de Mrs. Turpin desanuviou-se e a sua capacidade de movimento regressou. Inclinou-se para a frente até olhar directamente para aqueles olhos de um brilho feroz. Não havia dúvidas na sua mente de que a rapariga a conhecia ; conhecia-a de forma intensa e pessoal, para além do tempo, do lugar e da condição. «0 que é que me tens a dizer?», per­ guntou com voz rouca e susteve a respiração, aguardando. Aguardava aquilo que poderia ser uma revelação. A rapariga ergueu a cabeça. O seu olhar fixou-se intensa­ mente no de Mrs. Turpin. «Volta para o inferno de onde vieste, velho j avali africano», murmurou ela. A sua voz era baixa mas clara. Os olhos inflamaram-se-lhe por um momento, como se registasse com prazer que a sua mensagem tinha atingido o alvo. Mrs. Turpin deixou-se cair na cadeira. Após um momento, os olhos da rapariga fecharam-se e virou a cabeça de lado, exausta.

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O médico levantou-se e entregou a seringa vazia à enfer­ meira. Inclinou-se e colocou ambas as mãos em cima dos ombros agitados da mãe durante um momento. Estava sen­ tada no chão, com os lábios cerrados, segurando a mão de Mary Grace no colo. Os dedos da rapariga estavam fechados à volta do polegar dela, como os de um bebé. «Vão andando para o hospital», disse ele. «Eu telefono a tratar de tudo.» «Agora vej amos esse pescoço», disse ele numa voz jovial para Mrs. Turpin. Começou a inspeccionar-lhe o pescoço com os dois primeiros dedos. Duas pequenas linhas com a forma de lua, como espinhas cor-de-rosa, estavam marcadas na tra­ queia. Começava a surgir um inchaço vermelho vivo em redor do olho. Os dedos dele passaram por cima do inchaço também. «Deixe-me estar», disse ela com voz pastosa e afastou-o. «Vá ver o Claud. Ela deu-lhe um pontapé.» «Já vou vê-lo», disse ele, e mediu-lhe antes a pulsação. Era um homem magro de cabelo grisalho, dado a gracejos. «Vá para casa e faça uma folga o resto do dia», ordenou, e deu­ -lhe uma palmadinha no ombro. Deixe de me dar palmadinhas, resmungou Mrs. Turpin para si própria. «E ponha um saco de gelo nesse olho», acrescentou ele. Depois, foi agachar-se ao lado de Claud e examinou-lhe a perna. Após um momento, puxou-o para cima e Claud coxeou atrás dele até à recepção. Até a ambulância chegar, os únicos sons na sala eram os gemidos trémulos da mãe da rapariga que continuava sen­ tada no chão. A mulher rasca da escumalha branca não tirava os olhos da rapariga. Mrs. Turpin olhava em frente, sem fixar nada de especial. Daí a pouco a ambulância chegou e parou, uma sombra comprida e escura por trás da cortina da j anela. Os paramédicos entraram, pousaram a maca ao lado da ra­ pariga, colocaram-na com perícia em cima e levaram-na. A enfermeira ajudou a mãe a apanhar as coisas dela. A som­ bra da ambulância desapareceu em silêncio e a enfermeira regressou à recepção.

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«Aquela rapariga vai ser doida, não vai?», perguntou a mulher rasca da escumalha branca à enfermeira, mas a enfer­ meira continuou a andar até às traseiras e não lhe respondeu. «Sim, vai ser doida», afirmou a mulher rasca da escuma­ lha branca aos outros todos. «Pobre criatura», murmurou a velha. A cara do miúdo ainda estava no colo dela. Os seus olhos fitavam indolente­ mente a cena por cima dos joelhos da avó. Não se tinha mexido durante a confusão, excepto para encolher uma perna para baixo de si. «Agradeço a Deus», disse fervorosamente a mulher rasca da escumalha branca, «por não ser doida.» Claud saiu a coxear e os Turpins foram para casa. Quando a carrinha virou para a estrada de terra batida que lhes pertencia e chegou ao topo do cabeço, Mrs. Turpin agar­ rou a extremidade da janela e olhou para fora desconfiada. A terra inclinava-se com graciosidade através de um campo salpicado de tufos de alfazema. No início da subida, a sua casinha de caixilhos amarelos, com os canteirinhos plantados à volta como um avental extravagante, descansava, cheia de decoro, no seu lugar habitual entre duas nogueiras gigantes­ cas. Ela não teria ficado chocada se notasse alguma delas ferida com uma queimadura por estarem entre duas chaminés enegrecidas. Nenhum dos dois tinha vontade de comer, por isso vestiram a roupa de casa, baixaram as persianas do quarto e deitaram­ -se, Claud com a perna em cima de uma almofada e ela com um trapo molhado sobre o olho. No instante em que ela se esten­ deu de costas, a imagem de um porco selvagem com verrugas no focinho e cornos a despontar por trás das orelhas grunhiu­ -lhe dentro da cabeça. Ela gemeu, um gemido baixo e cavo. «Não sou», disse numa voz cheia de lágrimas, «não sou um javali vindo do inferno.» Mas a negação era inútil. Os olhos e as palavras da rapariga, até mesmo o tom da sua voz, baixa mas clara, dirigida apenas a ela, não lhe deixavam para onde fugir. Ela tinha sido escolhida para receber aquela mensagem, embora

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houvesse na sala uma série de gente rasca a quem o insulto se aplicaria muito mais adequadamente. Só agora é que esta reali­ dade a atingia com toda a força. Estava presente até uma mulher que negligenciava o próprio filho, mas essa fora ignorada. A mensagem tinha sido dirigida a Ruby Turpin, uma mulher res­ peitável, trabalhadora, que ia à igreja. As lágrimas secaram. Em vez disso, os olhos dela começaram a arder de raiva. Soergueu-se no cotovelo. Claud estava deitado de costas a ressonar. Queria contar-lhe o que a rapariga lhe dissera mas, simultaneamente, não desejava insinuar na cabeça dele a imagem de si própria como um javali vindo do inferno. «Olha, Claud», murmurou, e empurrou-lhe o ombro. Claud abriu um olho de um azul-bebé muito pálido. A mulher olhou-o com prudência. Ele não pensava em nada. Ele apenas seguia o seu caminho. «Ü quê, o que é?», perguntou ele, e fechou o olho de novo. «Nada», disse ela. «A perna dói-te?» «Dói como o diabo», disse Claud. «Há-de deixar de doeni, disse ela, e voltou a estender-se. Num instante, Claud ressonava de novo. Durante o resto da tarde ficaram ali. Claud dormia. Ela fixava o tecto de sobran­ celhas franzidas. De vez em quando, levantava o punho e fazia um pequeno movimento de golpear por cima do peito como se estivesse a defender a sua inocência perante hóspe­ des invisíveis que eram como os que confortavam Job, que pareciam sensatos mas estavam enganados. Por volta das cinco e meia, Claud mexeu-se. «Tenho que ir buscar os pretos», suspirou sem se mexer. Ela olhava para cima como se houvesse uma escrita inin­ teligível no tecto. A protuberância por cima do olho tinha ficado de um azul esverdeado. «Ouve lá», disse ela. «Ü quê?» «Beija-me.» Claud inclinou-se e beijou-a ruidosamente na boca. Aca­ riciou-lhe a face pálida e os dedos de ambos entrelaçaram-se. A expressão de forte concentração dela não mudou. Claud

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levantou-se, gemendo e resmungando, e saiu a coxear. Ela continuou a examinar o tecto. Não se levantou até ouvir a carrinha regressar com os pre­ tos. Então ergueu-se e enfiou os pés nos sapatos castanhos, que nem atou, e caminhou pesadamente até ao alpendre e agarrou no balde de plástico vermelho. Esvaziou para dentro um tabuleiro de cubos de gelo e encheu-o até meio com água e saiu para o pátio das traseiras. Todas as tardes, depois de Claud trazer os empregados, um dos rapazes ajudava-o a transportar feno para o exterior e os outros esperavam na caixa da carrinha até que ele estivesse pronto para os levar a casa. A carrinha estava estacionada à sombra, debaixo de uma das nogueiras. «Como estão todos esta tarde?», perguntou Mrs. Turpin com a expressão impenetrável, aparecendo com o balde e a caneca. Havia três mulheres e um rapaz na carrinha. «Vamos bem», disse a mulher mais velha. «Como vai você?», e o olhar dela parou imediatamente sobre o alto escuro na testa de Mrs. Turpin. «Caiu, não foi?», perguntou numa voz solícita. A velha era escura e quase desdentada. Tinha um velho chapéu de feltro que pertencera a Claud descaído para trás da cabeça. As outras duas mulheres eram mais novas e mais claras e ambas tinham chapéus de sol novos de um verde vivo. Uma delas tinha-o na cabeça ; a outra tinha tirado o dela e o rapaz sorria por debaixo dele. Mrs. Turpin pousou o balde no chão da carrinha. «Sirvam­ -se», disse. Olhou à volta para se certificar que Claud tinha partido. «Não, não caí», disse cruzando os braços. «Foi pior que isso.» «Nada de mal lhe pode acontecer!», disse a velha. Disse-o como se todas soubessem que Mrs. Turpin estava protegida pela Divina Providência de uma forma especial. «Só deu uma pequena queda.» «Estávamos na vila no consultório do médico por causa do coice que a vaca deu a Mr. Turpin», disse Mrs. Turpin num tom monótono que indicava que não adiantava continuarem com

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aquela tolice. «E estava lá uma rapariga. Uma rapariga grande e gorda com a cara toda cheia de borbulhas. Eu olhava para aquela rapariga e percebia que ela era estranha mas sem ser capaz de dizer de que maneira. E eu e a mãe dela estávamos a conversar e a darmo-nos bem quando de repente, BANG ! Ela atira-me com o livro enorme que estava a ler e ... » «Não hi, gritou a velha. «E a seguir salta por cima da mesa e começa a estrangu­ lar-me.» «Não !», exclamaram todas, «Não !» «Porque é que ela fez isso?», perguntou a velha. «0 que é que a afligia?» Mrs. Turpin apenas olhou fixamente em frente. «Alguma coisa a afligia», disse a velha. «Levaram-na numa ambulância», continuou Mrs. Turpin, «mas antes de ir, ela rebolava-se no chão e tentavam segurá­ -la para lhe darem uma injecção e ela disse-me uma coisa.» Fez uma pausa. «Sabem o que é que ela me disse?» «0 que é que ela disse?», perguntaram elas. «Disse», começou Mrs. Turpin, e parou, com uma expres­ são sombria e séria. O sol estava cada vez mais branco, empa­ lidecendo o céu por cima das suas cabeças de tal forma que as folhas da nogueira, por contraste, pareciam negras. Ela não conseguia pronunciar as palavras. «Uma coisa mesmo feia», murmurou. «Ela não devia ter-lhe dito nada feio», disse a velha. «Você é tão simpática. É a senhora mais simpática que eu conheço.» «E é bonita também», disse a do chapéu. «E forte», disse a outra. «Nunca conheci uma senhora branca tão simpática.» «Esta é a verdade diante de Jesus», disse a velha. «Amen ! Impossível ser mais simpática e bonita do que é.» Mrs. Turpin sabia exactamente quanto valia a lisonja dos pretos e ficou ainda mais zangada. «Ela disse», começou de novo e desta vez terminou com um sopro feroz, «que eu era um velho javali vindo do inferno.»

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Fez-se um silêncio estupefacto. «Onde está ela?», gritou a mulher mais j ovem numa voz aguda. «Deixem-me vê-la. Eu mato-a ! » «Eu mato-a contigo !», gritou a outra. «Tem de ir para o manicómio», disse a velha com ênfase. «Você, a senhora branca mais simpática que eu conheço.» «E é bonita também», disseram as outras duas. «Forte quanto seria possível e simpática. Jesus está satisfeito com ela !» «Está mesmo», declarou a velha. Idiotas ! Resmungou Mrs. Turpin para si própria. Nunca se podia dizer nada de inteligente a um negro. Podia falar-se para eles mas não com eles. «Não beberam a água», disse ela secamente. «Deixem o balde na carrinha quando acabarem. Tenho mais que fazer do que ficar parada e deixar passar o resto do dia», e afastou-se e entrou em casa. Ficou parada durante um momento no meio da cozinha. A protuberância escura por cima do olho parecia uma nuvem de um tufão em miniatura que a qualquer momento fosse varrer o horizonte da sua testa. O lábio inferior projectava-se perigosamente para fora. Endireitou os ombros maciços. Depois marchou em direcção à parte da frente da casa, saiu pela porta lateral e começou a caminhar pela estrada fora em direcção ao recinto dos porcos. Tinha o aspecto da uma mu­ lher que ia para a guerra sozinha e sem armas. O sol estava agora de um amarelo profundo, como a lua das colheitas, e afastava-se em direcção ao poente muito ra­ pidamente por cima da distante linha de árvores como se pre­ tendesse alcançar os porcos antes dela. A estrada estava mar­ cada por sulcos e ela pontapeou várias pedras de tamanho razoável afastando-as do seu percurso enquanto caminhava. O recinto dos porcos ficava num pequeno outeiro no final de uma vereda que tinha início a partir da parede lateral do celeiro. Era um quadrado de cimento do tamanho de uma sala pequena, rodeado por uma vedação de cerca de dois metros de altura. O chão de cimento estava ligeiramente inclinado

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para que a lavagem dos porcos pudesse escorrer para um rego de onde era levada para os campos como fertilizante. Claud estava do lado de fora, na extremidade do cimento, debru­ çado da tábua superior, a lavar o chão do recinto com a man­ gueira. A mangueira estava ligada à torneira de uma cisterna de água que se encontrava perto. Mrs. Turpin trepou para o seu lado e olhou para os porcos que se encontravam no interior. Eram sete leitões hirsutos de focinho longo - castanhos com manchas cor de figado - e uma porca velha a poucas semanas de parir. Estava deitada de lado a gru­ nhir. Os leitões corriam em todas as direcções sacudindo-se como crianças idiotas, com os olhinhos estreitos de porco pro curando qualquer coisa que tivesse ficado no chão. Ela tinha lido que o porco era de entre todos os animais o mais inteligente. Duvidava. Supostamente eram mais espertos que os cães. Até tinha havido um porco astronauta. Tinha desempenhado a sua missão na per­ feição mas tinha morrido com um ataque de coração em seguida, porque o puseram erecto dentro do seu fato eléctrico durante o exame que se tinha seguido, quando naturalmente um porco deve estar sempre com as quatro patas no chão. A grunhir e a foçar e a roncar. «Dá-me essa mangueira», disse ela, arrancando-a das mãos de Claud. «Vai levar aqueles pretos a casa e depois sai-me de cima dessa perna.» «Parece que engoliste um cão raivoso», observou Claud, mas desceu e afastou-se a coxear. Não ligava aos humores dela. Até ele estar fora de alcance, Mrs. Turpin deixou-se ficar num dos lados do chiqueiro, segurando a mangueira e apon­ tando o jacto de água aos quadris traseiros de qualquer lei­ tão que parecesse querer tentar deitar-se. Quando ele já tinha tido tempo de passar para lá da colina, voltou a cabeça ligei­ ramente, e os seus olhos cheios de raiva observaram o cami­ nho. Ele não estava à vista. Voltou-se para concentrar melhor a sua energia. Ergueu os ombros e inspirou. «Por que é que me envias uma mensagem daquelas?», disse numa voz baixa e feroz, pouco mais que um sussurro mas com

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a força de um grito na sua fúria concentrada. «Como posso ser eu própria e ser um porco ao mesmo tempo? Como é que estou redimida e sou do inferno simultaneamente?» A sua mão livre estava fechada com força, e, com a outra, agarrava a mangueira, apontando cegamente o jacto de água para dentro e para fora do olho da velha porca cujo guinchar ultrajado ela nem ouvia. Do recinto dos porcos tinha-se uma vista da pastagem das traseiras onde as suas vinte vacas destinadas a abate estavam reunidas em volta dos fardos de forragem que Claud e o rapaz tinham espalhado. A pastagem cortada de fresco prolongava­ -se num declive suave até à auto-estrada. Por trás desta ficava o campo de algodão e a seguir um bosque verde­ -escuro e poeirento que também lhes pertencia. O sol estava por trás do bosque, muito vermelho, espreitando por cima da paliçada de árvores como um agricultor inspeccionando os seus porcos. «Porquê eu?», rugiu ela. «Não há escumalha por estas ban­ das, preta ou branca, a quem eu não tenha dado alguma coisa. E todos os dias quebro a espinha até à medula de tanto trabalhar. E colaboro com a igreja.» Sentia-se cada vez mais em controlo da situação. «Como é que eu sou um porco?», perguntou. «Exactamente em que é que eu sou como eles?», e atirou o jacto de água aos leitões. «Havia lá escu­ malha mais que suficiente. Não era suposto acontecer comigo.» «Se preferes escumalha, então vá, arranja escumalha», cuspiu ela. «Podias ter feito de mim escumalha. Ou preta. Se querias escu­ malha, porque é que não me fizeste escumalha?» Abanou o punho que agarrava na mangueira e uma serpente de água apareceu no ar durante um momento. «Eu podia deixar de trabalhar, levar tudo numa boa e ser imunda», rosnou. «Deixar-me ficar pelos passeios todo o dia a beber cerveja. Mascar rapé e cuspi-lo em cada poça e trazê-lo espalhado por toda a cara. Eu podia ser sórdida.» «Ou podias ter-me feito preta. É muito tarde para eu ser uma preta», disse com um profundo sarcasmo, «mas posso agir como se o fosse. Deitar-me no meio da estrada e parar o trânsito. Rebolar-me no chão.»

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Na luz que se afundava tudo tomava um matiz misterioso. A pastagem adquiria um verde brilhante peculiar e a faixa da auto-estrada tinha-se tomado cor de alfazema. Preparou-se para um assalto final e desta vez a sua voz rolou por cima da pastagem. «Vá lá11, gritou, «diz-me que sou uma porca ! Chama­ -me porca novamente. Vinda do inferno. Chama-me j avali do inferno. Tenta, tenta, se .a chas que podes. Tenta lá por os blo­ cos da base por cima do topo. Anda, tenta ! 11 U m eco deturpado voltou até ela. Veio uma última vaga de fúria sacudi-la, e ainda bradou : «Quem é que tu pensas que és?» A cor de todas as coisas, o campo e o céu escarlate, arde­ ram durante um instante com uma intensidade transparente. A pergunta voou por cima da pastagem, atravessou a auto­ -estrada, o campo de algodão e voltou para ela claramente como uma resposta vinda do lado de lá do bosque. Ela abriu a boca mas não saiu som nenhum. Uma carrinha minúscula, a do Claud, apareceu na auto­ -estrada, dirigindo-se rapidamente para fora de vista. As mu­ danças rangiam levemente. Parecia um brinquedo de criança. A qualquer momento, um camião maior poderia abalroá-lo e espalhar os miolos de Claud e dos pretos na estrada. Mrs. Turpin ficou ali, os olhos fixos na auto-estrada, todos os músculos retesados, até que, cinco ou seis minutos mais tarde, a carrinha reapareceu, de regresso. Ela esperou até que aquela tivesse tempo de virar para a estrada que lhes perten­ cia. Depois, como uma estátua monumental que ganhasse vida, baixou a cabeça lentamente e olhou, como que através do coração do próprio mistério, para os porcos no chiqueiro. Tinham-se acomodado todos num canto à volta da velha porca que grunhia mansamente. Um clarão vermelho cobria­ -os. Pareciam ofegar com uma vida secreta. Até o Sol deslizar finalmente por detrás da linha das árvo­ res, Mrs. Turpin permaneceu ali, com o olhar sobre eles como se estivesse a absorver uma abismal sabedoria que os fazia manter vivos. Por fim, levantou a cabeça. Havia apenas um

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faixa púrpura n o céu que cortava um campo carmesim e indi­ cava, como se de uma extensão da auto-estrada se tratasse, o crepúsculo que descia. Levantou as mãos da parte lateral do chiqueiro num gesto hierático e profundo. Uma luz visioná­ ria instalou-se nos seus olhos. Via essa faixa de claridade como uma vasta ponte suspensa que se estendia para o alto a partir da terra através de um campo de fogo vivo. Por ela, uma imensa multidão de almas subia, bramindo, para o céu. Estavam lá companhias inteiras de escumalha branca, pela primeira vez limpas nas suas vidas, e bandos de negros com vestes brancas, e batalhões de aberrações e de loucos gri­ tando e batendo palmas e saltando como rãs. E fechando a procissão havia uma tribo de pessoas que ela reconheceu de imediato como aqueles que, como ela e o Claud, tinham sem­ pre possuído um pouco de tudo e a sensatez dada por Deus de tudo usar com justeza. Inclinou-se para a frente para observar esse grupo mais perto. Marchavam uns atrás dos outros com grande dignidade, responsáveis como sempre tinham sido pela ordem e pelo bom senso, e pela moral de um comportamento respeitável. Eram os únicos que cantavam afinado. No entanto, conseguia ver pelas suas faces chocadas e alteradas que até mesmo as suas virtudes estavam a ser queimadas. Baixou as mãos e agarrou na balaustrada do chi­ queiro, com os olhos semicerrados mas fixos, sem pestanejar. De repente, a visão desvaneceu-se mas ela permaneceu onde estava, imóvel. Quando, por fim, regressou a si, fechou a torneira e regres­ sou a casa lentamente pelo caminho que escurecia. Nos bos­ ques à sua volta, coros de grilos invisíveis tinham começado a cantar, mas o que ela ouvia eram as vozes das almas, que subiam para o azul estrelado e cantando aleluias.

AS COSTAS DE PARKER A mulher de Parker estava sentada no chão do alpendre a cortar as pontas das vagens de ervilhas. Parker estava sen­ tado no degrau, a alguma distância, observando-a com um ressentimento silencioso. A mulher era um trambolho, nem mais, um trambolho. A pele do seu rosto era fina e tão esti­ cada como a pele de uma cebola e os seus olhos eram cin­ zentos e tão aguçados como as pontas de dois espigões de quebrar gelo. Parker percebia porque é que tinha casado com ela - não poderia tê-la possuído de nenhuma outra forma mas não percebia porque é que, agora, continuava com ela. Estava grávida e as mulheres grávidas não faziam o seu género. No entanto ele estava ali, como se ela o mantivesse sob qualquer feitiço. Isto espantava-o e envergonhava-o. A casa arrendada ficava isolada, à excepção de uma única nogueira grande, no cimo de uma barreira alta, sobranceira à auto-estrada. De vez em quando um carro passava rapida­ mente lá em baixo e os olhos da sua mulher desviavam-se com suspeita em direcção ao ruído e depois voltavam a focar-se no jornal cheio de ervilhas que colocara no colo. Os automóveis eram uma das coisas que ela não aprovava. Além de todas as outras suas más qualidades, estava constantemente a farejar pecados. Não fumava nem cheirava rapé, não bebia uísque,

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não usava palavras feias e não se pintava, e Deus sabe quanto um pouco de pintura poderia favorecê-la, pensou Parker. Dada a sua objecção em relação a pinturas, era ainda mais espantoso que se tivesse casado com ele. Às vezes ele pensava que ela se casara com ele para tentar salvá-lo. Outras vezes suspeitava de que ela no fundo tinha uma predilecção especial por todas as coisas de que dizia não gostar. Podia percebê-la de uma forma ou de outra ; era a si mesmo que não conseguia perceber. Ela virou a cabeça na sua direcção e disse : «Não há ne­ nhuma razão para trabalhares para uma mulher. Podias per­ feitamente trabalhar para um homem.» «Oh, cala a boca, para variar!», resmungou Parker. Se tivesse a certeza de que ela tinha ciúmes da mulher para quem ele trabalhava ainda sentiria alguma satisfação, mas o mais certo era ela estar preocupada com o pecado que ocorre­ ria se ele e a mulher começassem a gostar um do outro. Ele dis­ sera-lhe que a mulher era uma loira jovem e bem fornecida de carnes ; na realidade, essa mulher tinha quase setenta anos e era demasiado seca para se interessar por qualquer coisa que não fosse fazê-lo trabalhar o máximo possível. É certo que às vezes as mulheres idosas se interessam por homens mais novos, especialmente quando estes são tão atraentes como Parker pensava que era, mas esta mulher idosa olhava para ele da mesma forma que olhava para o seu tractor - como se tivesse que mantê-lo porque era o melhor que conseguiria arranjar. O tractor avariara-se no segundo dia em que Parker estava a trabalhar com ele e ela mandara-o imediatamente ir cortar arbustos, murmurando para o preto, pelo canto da boca : «Este parte tudo aquilo em que mexe.» Também lhe dissera que usasse uma camisa enquanto trabalhava ; Parker tinha-a tirado embora o dia não estivesse demasiado húmido ; voltou a vesti­ la com relutância. Esta mulher feia com que Parker se casara era a sua pri­ meira esposa. Já tivera outras mulheres, mas planeara nunca se ligar legalmente a ninguém. Vira-a pela primeira vez numa manhã em que o seu camião se avariara na auto-

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-estrada. Tinha conseguido arrastá-lo para fora d o pavimento e p ara um j ardim muito bem arranj ado onde estava uma casa com a pintura a desfazer-se. Saiu e abriu o capot do camião e começou a inspeccionar o motor. O seu sexto sentido disse­ -lhe que estava uma mulher a observá-lo. Depois de se ter debruçado sobre o motor durante alguns minutos, a parte de trás do seu pescoço começou a arrepiar-se. Espiou o alpendre e o jardim da casa, que estavam vazios. Uma mulher que ele não conseguia ver estava ali por perto, atrás de um arbusto ou dentro de casa, observando-o da j anela. Subitamente, Parker começou a saltar e a agitar a mão para cima e para baixo como se a tivesse magoado ao mexer na maquinaria. Inclinou-se e apertou a mão contra o peito. «Raios partam !», berrou. «Que Deus vá para o inferno ! Malditos sej am Deus e Jesus ! Que vá tudo para o inferno !», e continuou, repe­ tindo incessantemente os mesmos insultos tão alto quando podia. Sem aviso, uma enorme garra peluda abateu-se na sua cara e ele caiu de costas, em cima do capot do camião. «Não profiras sacrilégios nesta casa», ordenou uma voz perto dele. Parker via tudo tão enevoado que por instantes pensou ter sido atacado por qualquer criatura celeste, uma espécie de anjo com olhos de falcão brandindo uma arma ferrugenta. Quando os seus olhos conseguiram focar-se, viu à sua frente uma rapariga alta, ossuda, com uma vassoura na mão. •Magoei a mão,» disse ele. «MAGOEI a mão». Estava tão entusiasmado que se esqueceu que não tinha magoado a mão. «Se calhar parti a mão», insistiu, embora a sua voz ainda não estivesse completamente firme. «Deixe-me ver», comandou a rapariga. Parker esticou a mão, a rapariga aproximou-se e olhou para ela. Não havia qualquer marca na palma e ela agarrou na mão e virou-a ao contrário. A sua própria mão era seca e quente e rugosa e Parker sentiu que o contacto com ela o empurrara de volta à vida. Olhou para ela com mais atenção. Com esta é que eu não me meto, pensou ele.

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Os olhos agudos da rapariga inspeccionaram as costas da mão vermelha e papuda que agarrava. Tinha uma águia tatuada a azul e vermelho, empoleirada num canhão. A manga de Parker estava enrolada até ao cotovelo. Sobre a águia havia uma ser­ pente enroscada em torno de um escudo e nos espaços entre a águia e a serpente destacavam-se vários corações, alguns deles atravessados por setas. Acima da serpente havia um naipe de cartas aberto. Todo o espaço do braço de Parker, do pulso ao cotovelo, estava ocupado por desenhos berrantes. A rapariga olhou para aquele espectáculo com um esgar estupefacto de choque que era quase um sorriso, como se acidentalmente tivesse entrevisto uma cobra venenosa. Deixou cair a mão. «A maior parte das outras foram feitas no estrangeiro», disse Parker. «Essas aí são quase todas dos Estados Unidos. Fiz a primeira quando tinha quinze anos.» «Não me fale nisso,» disse a rapariga. «Não gosto. Não tenho nada a ver com coisas dessas.» «Mas deveria ver as que não estão à vista», disse Parker, e piscou o olho. Dois círculos vermelhos apareceram como maçãs nas bochechas da rapariga e suavizaram o seu rosto. Parker estava intrigado. Não lhe ocorrera, nem por um minuto, que ela pudesse não gostar de tatuagens. Ainda não conhecera uma única mulher que não se sentisse atraída por elas. Parker tinha catorze anos quando viu um homem numa feira, tatuado dos pés à cabeça. À excepção dos rins, rodea­ dos por uma tanga de pantera artificial, a pele do homem estava coberta de padrões que pareciam, da distância a que Parker se encontrava - estava perto da parte de trás da tenda, sentado num banco -, um único desenho imbricado de cores brilhantes. O homem, que era baixo e robusto, passeava pela plataforma e contraía os músculos de forma a que o arabesco de pessoas, animais e flores na sua pele parecesse ter um movimento próprio e subtil. Parker sentia-se cheio de emo­ ção, tão comovido como algumas pessoas ficam quando vêem passar a bandeira nacional. Era um rapaz cuja boca

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estava normalmente entreaberta. Era pesado e esforçado, banal como um pão caseiro. Quando o espectáculo acabou ficara sentado no b anco, olhando para o local onde o homem tatuado se exibira, até a tenda estar praticamente vazia. Até essa altura, Parker nunca sentira a mínima vibração de deslumbramento. Até ver o homem na feira, nunca lhe passara pela cabeça que a sua própria existência pudesse ser a expressão de qualquer coisa fora do comum. No momento em que tal sucedeu não conseguiu realizar esse facto extraor­ dinário, mas uma qualquer forma de inquietação veio insta­ lar-se dentro dele. Era como se um rapaz cego tivesse sido virado no sentido contrário com tanta delicadeza que nem percebera que o seu caminho se modificara. Arranjou a sua primeira tatuagem algum tempo depois a águia empoleirada no canhão. Foi feita por um artista local. Doeu muito pouco, apenas o bastante para Parker achar que era uma coisa que valia a pena fazer. Isto também era peculiar, porque até essa altura Parker sempre pensara que só o que não doesse nada é que valia a pena. No ano seguinte abandonou a escola porque agora tinha dezasseis anos e já podia fazê-lo. Foi para a escola técnica por uns tempos, e depois abandonou a escola técnica e trabalhou seis meses numa garagem. A única razão por que trabalhava era para poder pagar mais tatuagens. A mãe trabalhava numa lavandaria e podia sustentá-lo, mas nunca lhe pagaria uma tatuagem, a menos que fosse o nome dela dentro de um coração, o que ele acabou por fazer, embora com uma certa má-vontade. De qualquer maneira, o nome dela era Betty Jean e ninguém precisava de saber que se tratava da sua mãe. Começou a perceber que as tatuagens atraíam o tipo de raparigas de que ele gostava mas que nunca teriam gostado dele anteriormente. Passou a beber cervej a e a envolver-se em lutas. A mãe lacrimej ava pelo que estava a acontecer ao filho. Uma noite levou-o a uma cerimónia de iniciação reli­ giosa sem lhe dizer onde é que iam. Quando ele viu a igreja enorme e cheia de luz desprendeu-se bruscamente dela e

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desatou a correr. No dia seguinte mentiu no que respeitava à sua idade e alistou-se na Marinha. Parker era demasiado robusto para as calças apertadas do uniforme de marinheiro, mas, em contrapartida, o estúpido chapelinho branco, puxado sobre a testa, fazia o seu rosto parecer pensativo, e até intenso. Ao fim de um ou dois meses na Marinha, deixou de andar de boca entreaberta. As suas feições endureceram e passaram a ser as feições de um ho­ mem. Ficou na Marinha cinco anos e parecia uma parte intrínseca do barco cinzento e mecânico, à excepção dos seus olhos, que tinham a mesma cor de ardósia pálida do oceano e reflectiam os espaços imensos à sua volta como se fossem um microcosmo do mar misterioso. Quando chegava a qual­ quer porto, comparava os bairros pobres por onde andava com Birmingham, Alabama. Onde quer que fosse, arranjava sempre mais tatuagens. Perdera rapidamente o interesse por naturezas-mortas, tais como : âncoras ou carabinas de canos serrados. Tinha um tigre e uma pantera em cada ombro, uma cobra enrolada num archote no peito, falcões nas ancas, Isabel II e o príncipe Filipe sobre o estômago e o figado, respectivamente. Não se preocu­ pava particularmente com o tema, desde que o desenho fosse colorido ; tinha algumas obscenidades no abdómen, mas apenas porque esse lhe parecera o lugar mais adequado. Parker costu­ mava sentir-se satisfeito com cada tatuagem durante cerca de um mês, e depois o que quer que fosse que lhe tinha interessado na nova aquisição começava a dissipar-se. Quando acontecia encontrar-se diante de um espelho suficientemente grande, punha-se à sua frente a analisar o efeito geral. Este nunca lhe parecia ser um arabesco complexo, mas apenas uma coisa des­ coordenada e mal feita. Então sentia-se possuido por uma enorme insatisfação, e ia pro curar um novo artista para preen­ cher um novo espaço. A parte da frente de Parker estava quase completamente coberta mas não tinha nenhuma tatuagem nas costas. Não sentia qualquer desejo de ostentar tatuagens num sítio onde não pudesse vê-las. À medida que o espaço disponí-

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vel à frente para receber tatuagens foi diminuindo, a sua insa­ tisfação cresceu e tomou-se um sentimento mais geral. Depois de uma das suas licenças não voltou para a Marinha, mantendo-se antes afastado sem autorização oficial, bêbedo, numa casa de hóspedes de uma cidade cujo nome des­ conhecia. A sua insatisfação, que até aí havia sido crónica e latente, tomara-se subitamente aguda e raivosa dentro de si. Era como se a pantera e o leão e as serpentes e as águias e os falcões tivessem atravessado a sua pele e vivessem agora no seu interior travando entre eles uma guerra furiosa. A Marinha encontrou-o, pô-lo na prisão durante nove meses, e a seguir despediu-o de forma pouco honrosa. Depois disso Parker decidiu que o ar do campo era o único que merecia ser respirado. Alugou a barraca no cimo da bar­ reira, comprou o camião velho e teve vários empregos nos quais se manteve durante o tempo que lhe apeteceu. Na al­ tura em que conheceu a sua futura mulher, andava a comprar maçãs aos caixotes e a vendê-las ao quilo pelo mesmo preço aos residentes isolados ao fundo das estradas rurais desertas. «Essas coisas todas», disse a mulher, apontando para o braço dele, «não são melhores do que o que um índio estúpido faria. É uma expressão de vaidade.» Parecia ter finalmente encontrado a palavra que queria. «A vaidade das vaidades.» E que raio é que me importa o que ela pensa?, perguntou Parker a si próprio, mas estava absolutamente abismado. «Tenho a certeza de que gosta mais de uma que das outras, de qualquer forma», disse ele, tentando fazer a conversa demorar até ser capaz de se lembrar de qualquer coisa que suscitasse a admiração dela. Voltou a estender o braço na sua direcção. cDe qual é que gosta mais?», perguntou. cNão gosto de nenhuma», disse ela. cMas a do frango sempre é um bocadinho melhor que as outras.» •Qual frango?», quase gritou Parker. Ela apontou para a águia. •É uma águia !», disse Parker. «Que idiota é que perderia tempo a tatuar um frango no braço?»

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«Que idiota é que perderia tempo com tatuagens?», per­ guntou a rapariga, e virou-lhe as costas. Voltou lentamente para dentro de casa deixando-o sozinho para que fosse à sua vida. Parker ficou ali cinco minutos, olhando boquiaberto para a porta escura por onde ela acabava de entrar. No dia seguinte regressou com um caixote de maçãs. Não era do género de se deixar superar por uma mulher como ela. Gostava de mulheres carnudas, para não ter que lhes sentir os músculos, e muito menos os ossos. Quando chegou ela estava sentada nos- degraus e o jardim estava cheio de crianças, todas tão magras e pobres como ela ; Parker lembrou-se de que era sábado. Detestava ter que tentar seduzir uma mulher quando andavam crianças por perto, mas felizmente trouxera o caixote de maçãs no camião. Quando as crianças se apro­ ximaram para verem o que é que ele trazia, deu uma maçã a cada uma e disse-lhes que se pusessem a andar; e isso bastou para dispersar o grupo inteiro. A rapariga nem pareceu dar pela sua presença. Podia ser um porco ou uma cabra tresmalhada que tivesse entrado pelo quintal e ela estava demasiado cansada para ir buscar uma vassoura e enxotá-la. Ele pousou a alcofa de maçãs no degrau ao lado dela. Sentou-se num degrau abaixo. «Bom proveito», disse-lhe ele, apontando para o caixote ; depois voltou a ficar silencioso. Ela agarrou rapidamente numa maçã, como se o caixote pudesse desaparecer se não se despachasse. As pessoas com fome deixavam Parker nervoso. Ele sempre tivera muito que comer. Começou a sentir-se assaz desconfortável. Pensou que não tinha nada para dizer, portanto para que é que havia de falar? Agora não conseguia perceber porque é que tinha vol­ tado, ou porque é que não se ia embora antes que tivesse que desperdiçar outro caixote de maçãs com as crianças. Calculou que fossem os irmãos e irmãs dela. Ela mastigou a maçã devagar mas com um certo desvelo de concentração, levemente inclinada para a frente mas sem olhar para os lados. A vista do alpendre estendia-se até uma

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pequena cerca d e ferro e através da auto-estrada para uma paisagem ondulada de colinas, com uma montanha suave ao fundo. A5 paisagens abertas deprimiam Parker. Olha-se para um espaço destes e começa-se a sentir que alguém anda a perseguir-nos, a Marinha ou o Governo ou a religião. «De quem são as crianças, são tuas?», perguntou ele ao fim de muito tempo. «Ainda não sou casada», disse ela. «São da mãe.» Disse aquilo como se fosse só uma questão de tempo até ela pró­ pria estar casada. Pelo amor de Deus, quem é que se casaria com ela?, pen­ sou Parker. Uma mulher grande e descalça, com uma face larga onde se destacavam intervalos entre os dentes, apareceu na porta por trás de Parker. Aparentemente, já ali estava há uns minutos. «Boa tarde», disse Parker. A mulher atravessou o alpendre e agarrou no que restava do caixote de maçãs. «Estamos-lhe muito agradecidos», disse ela e voltou com o caixote para dentro de casa. « É a tua velha?», perguntou Parker. A rapariga disse que sim com a cabeça. Parker lembrou-se de uma data de coisas vivaças que poderia dizer, como «os meus sentimentos», mas manteve-se lugubremente silencioso. Limitou-se a ficar ali sentado, olhando para a paisagem. Pensou que se calhar estava a chocar uma doença qualquer. «Se amanhã apanhar pêssegos venho cá trazer-te alguns», disse ele. «Ficava-te muito agradecida», disse a rapariga. Parker não tinha a mínima intenção de voltar lá com um cesto de pêssegos mas no dia seguinte deu consigo a fazer isso mesmo. Ele e a rapariga não tinham praticamente nada para dizer um ao outro. Uma coisa que ele disse foi: «Não tenho nenhuma tatuagem nas minhas costas.» «Ü que é que tens nas costas?», perguntou a rapariga. «A ca­ misa», respondeu Parker. «Ah ah !» «Ah ah !», disse a rapariga, educadamente.

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Parker pensou que estava a perder a cabeça. Não podia acreditar que se sentia atraído por uma mulher assim. Ela não parecia estar interessada em nada a não ser no que ele trazia até que, da terceira vez, ele apareceu com duas meloas. «Como é que te chamas?», perguntou ela. «0. E. Parker», respondeu ele. ccOu Parker. Ninguém me trata pelo nome próprio.» «Qual é e nome próprio?», perguntou ela. «Não interessa», disse Parker. «Qual é o teu?» «Digo-te quando me disseres de que nomes é que são essas duas iniciais», disse ela. Havia apenas um pequeno toque de malícia no seu tom de voz e foi direito à cabeça de Parker. Nunca revelara o seu nome a qualquer mulher ou homem, só para os arquivos da Marinha e do Governo e do registo de baptismo que lhe tinham passado quando ele fizera um mês ; a sua mãe pertencia à Igreja Metodista. Quando o nome esca­ pou dos arquivos da Marinha, quase que matara o homem responsável pelos estragos. ccSe te disser vais contar a toda a gente», disse ele. «Juro que nunca direi a ninguém», disse ela. «Juro pelo nome sagrado de Deus.» Parker ficou sentado em silêncio durante alguns minutos. Depois aproximou-se do pescoço da rapariga, puxou o ouvido dela para junto da sua boca, e sussurrou-lhe o nome em voz baixa. ccObadiah11, murmurou ela. A sua face iluminou-se como se o nome constituísse um sinal. ccObadiah», disse ela. O nome desceu ainda mais baixo na consideração de Parker. «Obadiah Elihue11, disse ela numa voz cheia de reverência. «Se me chamares isso em voz alta rebento-te com os miolos», disse Parker. «Como é que te chamas?» «Sarah Ruth Cates•, disse ela. «Muito prazer, Sarah Ruth», disse Parker. O pai de Sarah Ruth era um pregador do Evangelho Funda­ mentalista, mas estava de momento na Florida, espalhando a Boa Nova. A mãe não parecia preocupar-se com as atenções

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dele para com a rapariga desde que ele trouxesse um cesto de qualquer coisa consigo em cada visita. Quanto à Sarah Ruth propriamente dita, Parker não tinha qualquer dúvida, depois da terceira vez, de que ela estava doida por ele. Gostava dele mesmo depois de insistir que pinturas na pele eram a vaidade das vaidades, e mesmo depois de o ouvir praguejar, e mesmo depois de lhe ter perguntado se ele tinha recebido a salvação e de ele ter respondido que não via nada de especial de que fosse preciso uma pessoa salvar-se. A seguir, inspirado, Parker disse : «Estarei suficientemente salvo se me deres um beijo.» Ela encolheu-se. «Isso não é receber a salvação», disse ela. Não muito depois disso, aceitou ir dar um passeio no camião dele. Parker estacionou-o numa estrada deserta e sugeriu-lhe que fossem deitar-se juntos na parte de trás. «Só depois de estarmos casados», disse ela - tal e qual, com toda a naturalidade. «Oh, isso não é preciso», disse Parker e tentou abraçá-la e ela empurrou-o com tanta força que a porta do camião se abriu e Parker caiu de costas, estatelado no meio da estrada. Nesse preciso momento decidiu que nunca mais havia de querer saber dela para nada. Casaram-se no notário do concelho porque Sarah Ruth acreditava que as igrejas eram um acto de idolatria. Parker não tinha nenhuma opinião definida a esse respeito. O escritório do notário estava cheio de caixas de cartão contendo fichas e de livros de registos com papéis amarelos cobertos de poeira enfiados lá dentro. A notária era uma mulher de cabelo ver­ melho que ocupava aquelas funções há quarenta anos e pare­ cia tão poeirenta como os seus livros. Casou-os por trás de um gradeamento de ferro colocado sobre a estante e, quando aca­ bou, disse com um gesto gracioso da mão : «Três dólares e cin­ quenta cêntimos e até que a morte vos separe», e logo despa­ chou uns formulários de dentro de uma máquina. O casamento não produziu qualquer alteração em Sarah Ruth e deixou Parker mais taciturno que nunca. Todas as manhãs decidia que estava farto daquilo e que nessa noite

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não voltaria a cas a ; todas as noites voltava. Quando Parker já não conseguia mesmo aguentar mais aquela vida arranjava uma tatuagem nova, mas agora a única superfície que ainda não estava coberta eram as suas costas. Para ver uma tatua­ gem nas costas teria que arranj ar dois espelhos e colocar-se entre ambos na posição correcta e isto parecia-lhe uma exce­ lente maneira de se armar em parvo. Sarah Ruth, que, se pos­ suísse um pouco mais de senso, teria apreciado uma tatuagem nas suas costas, nem sequer olharia para ela se estivesse nou­ tra parte do corpo. Quando ele tentava apontar detalhes espe­ ciais das suas aquisições anteriores, ela fechava os olhos com muita força e, como se isso não fosse suficiente, virava-lhe as costas. A menos que estivessem totalmente às escuras, prefe­ ria ver Parker vestido e com as mangas desenroladas. «No altar do julgamento de Deus, Jesus vai perguntar-te o que é que fizeste toda a tua vida, além de te cobrires de pin­ turas», disse ela. «Não me enganas com essa conversa do altar», disse Parker. «Estás com medo que a loira boazona para quem eu trabalho goste tanto de mim e me diga, vá lá, Mr. Parker, vamos, eu e você .. . isso sim.» «Estás a tentar o pecado», disse ela, «e, no altar do jul­ gamento de Deus, também terás que responder por isso. Devias voltar a ir vender os frutos da terra.» Parker não fazia muito mais quando estava em casa do que ouvir o que o altar do julgamento de Deus seria para ele se não modificasse os seus hábitos. Quando podia, contava umas histó­ rias da loira carnuda para quem trabalhava. «Mr. Parker», repe­ tiu ele o que ela dissera, «eu contratei-o por causa do seu cére­ bn;1.» (E teria acrescentado : «Portanto, porque é que não o usa?») «E devias ter visto a cara dela a primeira vez que tirei a camisa», disse ele. «Mr. Parker», disse ela, «você é um pano­ rama ambulante !» Ela tinha realmente dito isto, mas pelo canto da boca, com um esgar de desprezo. A insatisfação de Parker atingiu tais proporções que não haveria forma de contê-la sem adquirir uma nova tatuagem.

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Tinha que ser nas costas. Não havia forma d e contornar esse problema. Uma vaga inspiração começou a animar a sua mente. Visualizou uma tatuagem nas suas costas a que Sarah Ruth não pudesse resistir - um tema religioso. Pensou num livro aberto com a inscrição «B ÍB LIA SAGRADA» tatuada por baixo e um versículo autêntico inscrito na página. Durante uns tempos, esta pareceu-lhe ser a aproximação mais correcta ; depois começou a ouvi-la dizer: «Então e eu não tenho uma Bíblia verdadeira? Porque é que eu hei-de passar o tempo a ler sempre o mesmo versículo quando posso ler o texto todo?» Precisava de uma coisa ainda melhor que a Bíblia ! Pensou tanto nisso que começou a ter insónias. Também estava a per­ der peso - Sarah Ruth limitava-se a atirar a comida para den­ tro da panela e deixá-la cozer. Não percebia ao certo porque é que continuava a viver com uma mulher que era feia e estava grávida, que não sabia cozinhar e deixava-o nervoso e irritá­ vel, e começou a ter um ligeiro tique de um dos lados da cara. Uma ou duas vezes surpreendeu-se a virar-se abruptamente para trás, como se andasse alguém a persegui-lo. Tivera um avô que acabara num manicómio estadual, embora isso só lhe tivesse acontecido aos setenta e cinco anos, mas por muito urgente que fosse para ele arraajar uma tatuagem, era ainda mais urgente arranj ar a tatuagem certa, para despertar as emoções de Sarah Ruth. À medida que se preocupava cada vez mais com isso, os seus olhos adquiriram uma expressão vazia e preocupada. A mulher velha para quem ele trabalhava disse-lhe que se ele não conseguia manter um mínimo de concentração durante o trabalho ela sabia muito bem onde encontrar um miúdo preto de catorze anos que conseguiria. Parker estava demasiadamente preocupado para chegar sequer a sentir-se ofendido. Em qualquer outra altura tê-la­ -ia abandonado naquele mesmo instante, dizendo secamente : «Muito bem, vá buscá-lo.» Duas ou três manhãs mais tarde estava a fazer fardos de palha com a enfardadeira espatifada da mulher velha e o seu tractor desconjuntado num campo grande, completamente nu

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à excepção de uma árvore antiga que se erguia no meio. A mulher era do tipo de pessoas que não cortaria uma velha e grande árvore por ser uma velha e grande árvore. A mulher mostrara a árvore a Parker como se ele não tivesse olhos e dissera-lhe para ter cuidado para não esbarrar nela quando precisasse de usar a enfardadeira na sua vizinhança. Parker começou pela extremidade do campo e foi avançando em cír­ culos em direcção ao centro. De vez em quando tinha que descer do tractor para desembaraçar o arame dos fardos ou para tirar uma pedra do caminho. A mulher velha dissera-lhe para juntar todas as pedras num dos cantos do campo, o que ele fizera enquanto ela estava a ver. Quando pensava que não havia perigo, limitava-se a passar por cima das pedras. Enquanto ia fazendo os círculos concêntricos no campo a sua mente concentrava-se na escolha do desenho certo para as costas. O Sol, do tamanho de uma bola de golfe, aparecia à sua frente e a seguir atrás de si, mas ele começou a vê-lo dos dois lados, como se tivesse olhos na parte de trás da cabeça. De repente viu a árvore aparecer à sua frente para o destruir, e ouviu a sua própria voz rugir num tom incrivelmente alto : «PASSA-LHE POR CIMA!» Aterrou sobre as costas enquanto o tractor esbarrava con­ tra a árvore e explodia em chamas. A primeira coisa que Parker viu foi os seus sapatos a serem devorados pelo fogo. Um estava preso debaixo do tractor e o outro j azia a uma pequena distância, ardendo sozinho. Parker não estava den­ tro deles. Sentia a respiração escaldante da árvore a arder na sua cara. Rastejou para trás, ainda sentado, com os olhos cavernosos, e se soubesse fazer o sinal da cruz tê-lo-ia feito. O seu camião estava numa estrada de terra no fim do campo. Dirigiu-se para lá, ainda sentado, ainda às arrecuas, mas cada vez mais depressa ; a meio do caminho levantou-se e iniciou uma espécie de corrida dobrado no estômago, durante a qual caiu duas vezes de joelhos. As suas pernas pareciam duas goteiras velhas e enferrujadas. Finalmente alcançou o camião e arrancou, subindo a estrada aos zigue-

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zagues. Continuou a guiar depois de ter passado a sua casa, no cimo da barreira ao lado da auto-estrada, e até atingir a cidade, a cinquenta milhas de distância. Parker recusou-se a pensar durante o caminho até à ci­ dade. Só sabia que tinha acabado de ocorrer uma grande mudança na sua vida, um salto em frente na direcção de um futuro desconhecido pior do que o presente, e que não havia nada que ele pudesse fazer a esse respeito. Para todos os efei­ tos, tudo estava consumado. O artista tinha dois quartos cheios de material desorde­ nado, acima do gabinete de um endireita, numa rua secun­ dária. Parker, ainda descalço, aproximou-se silenciosamente dele um pouco depois das três da tarde. O artista, que tinha aproximadamente a idade de Parker - vinte e oito anos mas era magro e calvo, estava sentado por trás de um pequeno estirador, a traçar um desenho a tinta verde. Levantou os olhos com uma expressão aborrecida e pareceu não reconhecer Parker na criatura de olhos ocos que apare­ cera à sua frente. «Deixa-me ver o livro que tem desenhos de Deus11, disse Parker quase sem fôlego. «Aquele da religião.11 O artista continuou a olhá-lo com uma expressão de supe­ rioridade intelectual. «Não faço tatuagens em bêbedos», disse ele. «Tu conheces-me !», gritou Parker. «Sou O. E. Parker! Já me fizeste várias tatuagens e sempre te paguei !» O artista olhou para ele por mais um momento, como se não estivesse completamente certo. «Há algum tempo que não aparecias», disse ele. «Deves ter estado na cadeia.» «Casei-me», disse Parker. «Oh!11, disse o artista. Com o auxílio de espelhos tinha tatuado um mocho miniatural no cimo da sua própria cabeça, perfeito em todos os detalhes. Não era maior que uma moeda de cinquenta cêntimos e usava-o como demonstração da sua técnica. Havia outros artistas na cidade, mais baratos, mas Parker nunca quisera nada que não fosse o melhor. O artista

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dirigiu-se a um armano no fundo do quarto e começou a folhear alguns livros de arte. «Em que género estás interes­ sado?», disse ele. «Santos, anjos, Cristas, ou quê?» «Deus», disse Parker. «Pai, Filho, ou Espírito Santo?» «Só Deus», disse Parker com impaciência. «Meu Deus, quero lá saber. Qualquer coisa, desde que se pareça com Deus.» O artista voltou para junto dele com um livro. Removeu alguns pa� éis de outra mesa, abriu o livro em cima dela e disse a Parker que procurasse o que lhe agradava mais. «Üs modernos estão no fim», disse ele. Parker sentou-se com o livro e humedeceu o polegar. Começou a folheá-lo, principiando pelo fim, onde estavam os desenhos mais modernos. Reconheceu algumas imagens - o Bom Pastor, Deixai Vir a Mim os Pequeninos, o Jesus Sorridente, Jesus, o Amigo dos Médicos, mas continuou a passar as páginas de trás para a frente e os desenhos eram cada vez mais inquie­ tantes. Um mostrava a face hirta e verde de um morto manchada de sangue. Um era amarelo com olhos roxos descaídos. O cora­ ção de Parker começou a bater cada vez mais depressa até pare­ cer emitir o rugido de um grande gerador eléctrico. Passava as páginas depressa, sentindo que quando chegasse ao desenho certo havia de receber um sinal. Continuou a avançar até estar quase no início do livro. De uma das páginas um par de olhos olhou intensamente para ele. Virou-a rapidamente, mas depois parou. O seu coração também parecia ter parado ; fez-se um silêncio absoluto. E esse silêncio dizia, tão claramente como se o silêncio pudesse falar, VOLTA PARA TRÁS. Parker voltou ao tal desenho - a cabeça de um Cristo Bizantino de olhos exigentes, rodeada por uma auréola. Ficou sentado a tremer; o seu coração começou lentamente a bater outra vez, como se um poder subtil o trouxesse de volta à vida. «Encontraste o que querias?», perguntou o artista. A garganta de Parker estava demasiado seca para lhe per­ mitir falar. Levantou-se e mostrou o livro ao artista, aberto naquela página.

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«Isto vai custar-te muito», disse o artista. «Mas n ã o vale a pena pormos todos estes detalhes, os quadradinhos do mosaico. Basta só o contorno e alguns dos pormenores mais interessantes.» «Tal como está», disse Parker. «Ou é como está aí ou não é nada.» «Ü funeral é teU», disse o artista. «Mas eu é que não faço um trabalho destes de graça.» «Quanto?», perguntou Parker. «Vai demorar pelo menos dois dias.» «Quanto?», disse Parker. «Em tempo ou dinheiro?», perguntou o artista. Os outros trabalhos de Parker tinham sido combinados por tempo, mas ele tinha pago. «Dez à cabeça e mais dez por cada dia que levar», disse o artista. Parker tirou dez notas de um dólar de dentro da carteira ; tinha só mais três lá dentro. «Volta amanhã de manhã», disse o artista. «Primeiro pre­ ciso de passar o molde para um papel.» «Não, não !», disse Parker. «Faz já o molde ou dá-me outra vez o meu dinheiro», e os seus olhos incendiaram-se como se estivesse pronto para começar uma briga. O artista acedeu. Qualquer tipo suficientemente parvo para querer um Cristo tatuado nas costas, raciocinou ele, seria também suficientemente parvo para não mudar de ideias no momento seguinte. De qualquer forma, assim que começasse o trabalho, j á não haveria tempo para ninguém mudar de ideias. Enquanto preparava o molde, disse a Parker que fosse lavar as costas na bacia com o sabão especial que lá estava. Parker foi, e quando voltou pôs-se a andar para cá e para lá através do quarto, flectindo nervosamente os músculos das costas. Queria olhar para a imagem outra vez mas ao mesmo tempo não queria. Finalmente o artista levantou-se e mandou Parker deitar-se na mesa. Esfregou-lhe as costas com álcool

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clorídrico e depois começou a esboçar o contorno da cabeça com o seu lápis de iodo. Passou mais de uma hora até agar­ rar no instrumento eléctrico. Parker não sentiu qualquer dor especial. No Japão tinham-lhe feito uma tatuagem do Buda no cimo do braço com agulhas de marfim ; na Birmânia, um homenzinho pequenino e castanho como uma raiz tatuara­ -lhe um pavão em cada joelho usando uns pauzinhos afiados, com mais de meio metro de comprimento ; vários amadores tinham trabalhado com alfinetes e brasas. Parker estava nor­ malmente tão descontraído e calmo sob as mãos dos artistas que era frequente adormecer, mas desta vez manteve-se acor­ dado, com todos os músculos tensos. À meia-noite o artista disse que tinha que parar. Puxou um espelho, de cerca de dois metros quadrados, de uma mesa junto à j anela, e foi buscar um espelho mais pequeno à parede do lavatório e pô-lo nas mãos de Parker. Parker ergueu-se com as costas contra o espelho grande e moveu o espelho pequeno até uma chicotada de cores se reflectir por trás de si. As suas costas estavam quase completamente cobertas por pequenos quadradinhos vermelhos e azuis e cor de marfim e cor de aça­ frão ; a partir desses quadradinhos já se distinguiam alguns dos detalhes do rosto - uma boca, o início de duas sobrance­ lhas carregadas, um nariz recto, mas a face estava vazia; ainda lhe faltavam os olhos. A impressão do momento era quase a de que o artista o enganara e fizera antes o Amigo dos Médicos. «Não tem olhos !•, gritou Parker. «Há-de ten, disse o artista. «Na devida altura. Ainda temos um dia inteiro de trabalho pela frente.• Parker passou a noite numa tarimba da Missão Cristã Abrigo da Luz. Achava que estes eram os melhores lugares para ficar na cidade porque eram gratuitos e incluíam uma espécie de refeição. Conseguiu apropriar-se da última tarimba disponível e como continuava descalço aceitou um par de sapatos em segunda mão, que, no estado de confusão em que se encontrava, calçou para dormir; ainda estava chocado com

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tudo o que lhe acontecera. Durante a noite permaneceu acor­ dado no longo dormitório cheio de tarimbas ocupadas por figuras trôpegas. A única luz vinha de uma cruz fluorescente pendurada na parede ao fundo do quarto. A árvore voltou a aparecer para o atacar, e depois explodiu em chamas ; o sapato ardeu calmamente sozinho ; os olhos no livro disseram-lhe claramente VOLTA PARA TRÁS e ao mesmo tempo não emi­ tiram um único som. Desejou não estar naquela cidade, não estar naquela Missão do Abrigo da Luz, não estar numa cama sozinho. Sentiu miseravelmente a falta de Sarah Ruth. A sua língua afiada e os seus olhos como espigões de quebrar gelo eram todo o conforto em que conseguia pensar. Decidiu que estava a perder a cabeça. Os olhos dela pareciam suaves e dilatados comparados com os olhos do livro, pois embora não conseguisse rever exactamente a forma desses olhos ainda se sentia penetrado por eles. Parecia-lhe que, sob aquele olhar, se tomava tão transparente como a asa de uma mosca. O artista dissera-lhe para não vir antes das dez, mas, quando chegou a essa hora, Parker estava à sua espera sen­ tado no chão do corredor escuro. Quando se levantara de­ cidira que, assim que a tatuagem estivesse completa, nunca mais olharia para ela, que todas as suas sensações do dia e da noite anteriores eram as sensações de um homem louco e que voltaria a fazer as coisas de acordo com o seu juízo sensato. O artista recomeçou no ponto em que tinha ficado. •Gostava de saber uma coisa», disse ele enquanto trabalhava nas costas de Parker. «Para que é que queres isto nas tuas cos­ tas? Tomaste-te religioso? Recebeste a salvação?», perguntou com uma voz trocista. A garganta de Parker estava seca e salgada. •Não», disse ele. •Não tenho nada a ver com nada disso. Um homem não pode salvar-se do que já fez e se tentasse não teria a minha simpatia.» Estas palavras pareciam sair da sua boca como fantasmas e evaporar-se imediatamente como se nunca as tivesse pronunciado. •Então porque é que .. » .

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«Casei-me com uma mulher que recebeu a salvação», disse Parker. «Nunca devia ter feito isso. Tenho que deixá-la. É com­ pletamente doida e está grávida.» «Isso é que é pior», disse o artista. «Então ela é que te fez arranjar esta tatuagem.» «Não», disse Parker. «Ela não sabe de nada disto. É uma surpresa». «Achas que ela vai gostar e deixar-te em paz por uns tem­ pos?» «Ela não pode fazer nada», disse Parker. «Não pode dizer que não gosta da cara de Deus.» Resolveu que já tinha falado o suficiente sobre a sua vida privada. Os artistas estavam muito bem onde estavam mas não tinham nada que andar a meter o nariz na vida das pessoas normais. «Ontem à noite não dormi nada», disse ele. «Acho que vou dormir um bocado agora.» Isto fez o artista calar a boca, mas não ajudou Parker a adormecer. Permaneceu ali deitado, imaginando como Sarah Ruth ficaria sem palavras ao ver a cara de Deus nas suas cos­ tas, e por vezes estes pensamentos eram interrompidos pela visão da árvore em chamas e do seu sapato vazio ardendo debaixo dela. O artista trabalhou sem interrupções até depois das qua­ tro da tarde, sem sequer parar para almoçar, detendo rara­ mente o instrumento eléctrico só para limpar o corante que às vezes escorria pelas costas de Parker. Finalmente deu a obra por terminada. «Já podes sentar-te e olhar», disse ele. Parker sentou-se mas permaneceu na extremidade da mesa. O artista estava satisfeito com o seu trabalho e queria que Parker olhasse para ele imediatamente. No entanto, Parker continuava sentado na ponta da mesa, ligeiramente inclinado para a frente mas com um olhar vazio no rosto. «0 que é que te deu?», perguntou o artista. «Vai ver a tatuagem !» «Não me deu nada», disse Parker com uma voz subita­ mente agressiva. «A tatuagem não vai para lado nenhum. Há­ -de estar aí quando me apetecer vê-la.» Parker agarrou na camisa e começou a vesti-la lentamente.

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O artista puxou-o pelo braço e empurrou-o para o meio dos dois espelhos. «Olha agora», disse ele, despeitado por estarem a ignorar o seu trabalho. Parker olhou, ficou branco e afastou-se. Os olhos na face reflectida pelo espelho continuavam a olhar para ele - imó­ veis, directos, totalmente exigentes, encerrados no silêncio. «Bem, a ideia foi tua, não te esqueças», disse o artista. «Eu teria recomendado outra coisa qualquer.» Parker não disse nada. Enfiou a camisa e saiu porta fora enquanto o artista gritava : «E fico à espera do resto do meu dinheiro !» Parker dirigiu-se à loja da esquina. Comprou uma garrafa de meio litro de uísque e levou-a para uma ruazinha próxima e bebeu-a toda em cinco minutos. Depois dirigiu-se a uma casa de bilhares ali perto que costumava frequentar quando estava na cidade. Era uma sala espaçosa como um celeiro e fortemente iluminada, com um bar de um lado e máquinas de jogo do outro e mesas de bilhar ao fundo . Assim que Parker entrou um homem grande com uma camisa aos quadrados vermelhos e pretos saudou-o dando-lhe uma grande palmada nas costas e gritando : «Eeeeeh pá ! O. E. Parker!» Parker ainda não estava preparado para palmadas nas cos­ tas. «Tira a mão», disse ele. «Tenho aí uma tatuagem fresca.» «0 que é que arranj aste desta vez», perguntou o homem e depois gritou para uma data de outros homens junto às máquinas de jogo : «0 O. E. tem uma tatuagem nova !» «Não é nada de especial, desta vez», disse Parker e tomou posição frente a uma máquina que não estava ocupada. «Vá lá», disse o homem grande, «vamos ver a tatuagem nova do Parker» e enquanto Parker tentava proteger-se os outros agarraram-lhe a camisa e puxaram-na para cima. Parker sentiu todas as mãos caírem instantaneamente e a camisa voltar a des­ cer nas suas costas como um véu sobre o rosto. Fez-se um silên­ cio na sala que Parker ouviu crescer a partir do círculo em tomo dele, abranger todos os cantos, descer até às fundações do edi­ fício e subir até às barras de madeira do tecto.

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Finalmente houve alguém que disse «Meu Deus» e todos se desfizeram numa cacofonia desconexa. Parker encarou-os com um sorriso incerto na cara. «Só mesmo o O. E.», disse o homem da camisa aos qua­ drados. «Este rapaz é mesmo passado.» «Talvez se tenha tomado religioso», gritou alguém. «Bem podes esperar sentado», disse Parker. «Ü. E. tomou-se religioso e agora anda a ser testemunha de Jesus, é ou não é, O. E.?», disse um homenzinho com um bocado de charuto na boca, num tom irónico. «E de uma forma muito original, devo dizer !» «Deixem a descoberta de novas tatuagens com o Parker!», disse o homem gordo. «Eeeeeeh pá !», gritou alguém e todos desataram a assobiar e a praguejar elogiando o trabalho até que Parker disse : «Porra, calem a boca.» «Porque é que meteste aí isso?», perguntou alguém. «Para gozam, disse Parker. «Porquê, há azar?» «Então porque é que não gozas?», gritou alguém. Parker atirou-se para o meio deles, e, como um pé-de-vento num dia de Verão, armou-se uma luta no meio de mesas viradas ao contrário e punhos cerrados voltej ando no ar até que dois deles o agarraram e correram com ele para a porta e o atira­ ram para a rua. Depois abateu-se uma grande calma sobre a sala de bilhares como um nervo quebrado, como se o grande edifício em forma de celeiro fosse o navio de onde Jonas aca­ bava de ser lançado ao mar. Parker ficou sentado durante muito tempo na ruazinha por trás da sala de bilhares, examinando a sua alma. Viu-a como uma teia de aranha de factos e mentiras que não era particularmente importante para ele mas que parecia ser necessária independentemente da sua opinião. Os olhos que agora estariam para sempre nas suas costas eram olhos que lhe reclamavam obediência. Estava tão certo disto como alguma estivera de alguma coisa. Durante a sua vida, res­ mungando e às vezes praguejando, muitas vezes com medo,

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outras em êxtase, Parker obedecera a instintos deste tipo que tinham vindo ter com ele - em êxtase quando o seu espírito se elevara perante a visão do homem tatuado na feira, com medo quando se alistara na Marinha, resmungando quando se casara com Sarah Ruth. A recordação dela fê-lo levantar-se lentamente. Ela sabe­ ria o que ele tinha que fazer a seguir. Tomaria claro o resto da sua vida, e sentir-se-ia por fim satisfeita. Parecia-lhe agora que, durante todo este tempo, sempre fora isso que ele quisera, vê-la satisfeita. O seu camião continuava parado diante do lugar onde o artista fizera o trabalho, mas não ficava longe. Dirigiu-se para lá, entrou lá para dentro, guiou para fora da cidade e para o meio da noite no campo. A sua cabeça estava praticamente livre dos vapores do álcool e reparou que a sua insatisfação desaparecera, mas sentiu-se diferente de si pró­ prio. Era como se fosse ele mas ao mesmo tempo um estranho, guiando através de uma nova paisagem embora tudo o que via lhe fosse familiar, mesmo durante a noite. Chegou finalmente à casa sobre a barreira, estacionou o camião debaixo da nogueira e saiu. Fez tanto barulho quanto possível para deixar bem claro que continuava no comando das operações, que tê-la deixado sozinha por uma noite sem dizer uma palavra não queria dizer nada a não ser que era assim que ele fazia as coisas. Bateu a porta do carro com força, bateu com os pés contra os dois degraus para atravessar o alpendre, e depois embateu na maçaneta da porta. Não conseguiu abri-la. «Sarah Ruth !», gritou. «Deixa­ -me entrar!» A porta não tinha fechadura, portanto era óbvio que ela pusera as costas de uma cadeira contra a maçaneta. Ele começou a bater na porta e a agitar a maçaneta ao mesmo tempo. Ouviu ranger as molas da cama, baixou a cabeça e encos­ tou o olho ao buraco da fechadura, mas a sua vista estava bloqueada por um pedaço de papel. «Deixa-me entrar», ber­ rou ele. «Para que é que me trancaste na rua?11

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Uma voz cortante, perto da porta, perguntou «Quem está aí?» «Eu», disse Parker. «Ü. E.» Esperou um momento. «EU», repetiu com impaciência. «Ü. E.» De lá de dentro continuou a não vir nenhum som. Ele tentou mais uma vez. «Ü. E.», disse ele, batendo na porta mais uma ou duas vezes. «0.E. Parker. Tu conheces-me.» Houve mais um silêncio. Depois a voz disse devagar: «Não conheço nenhum O. E.» «Deixa-te de graças», pediu Parker. «Sou eu, o teu velho O. E., estou de volta. Não precisas de ter medo de mim.» «Quem está aí?», disse a mesma voz, sem qualquer vestígio de sentimento. Parker virou a cabeça como se esperasse que alguém atrás de si lhe desse a resposta. A noite tinha-se tomado ligeira­ mente mais clara e duas ou três manchas amarelas flutuavam na linha do horizonte. E então, enquanto ele estava ali parado, uma árvore de luz cortou o céu. Parker caiu contra a porta como se tivesse sido pregado à madeira por uma lança. «Quem está aí?», perguntou a voz que vinha lá de dentro, e agora havia nela uma entoação que parecia final. «Quem está aí, pergunto eu?» Parker inclinou-se e pôs a boca junto do buraco da fe­ chadura tapado. «Obadiah», sussurrou, e sentiu imediatamente a luz a des­ cer sobre ele, transformando a teia de aranha da sua alma num arabesco perfeito de cores, um j ardim de árvores e pás­ saros e animais. «Obadiah Elihue», sussurrou ele. A porta abriu-se e ele caiu para dentro. Sarah Ruth estava de pé, com as mãos nas ancas. Começou imediatamente: «Não andavas a trabalhar para nenhuma loira boazona e agora vais ter que pagar-lhe o tractor que estragaste até ao último cen­ tavo. O tractor não estava no seguro. Ela veio cá e tivemos uma grande conversa e . . . »

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Parker começou a acender o candeeiro de petróleo. «0 que é que te deu para te pores a gastar petróleo quan­ do é quase dia?», perguntou ela, imperiosamente. «Não pre­ ciso de olhar para ti.» Uma luz amarela envolveu-os a ambos. Parker apagou o fósforo e começou a desabotoar a camisa. «Nem penses que vais levar alguma coisa de mim a esta hora da manhã», disse ela. «Cala a boca», disse Parker. «Olha para isto, e depois não quero ouvir mais nada.» Tirou a camisa e virou-lhe as costas. «Outra pintura», rosnou ela. «Eu devia ter percebido que devias estar a meter mais lixo no teu corpo.» Os joelhos de Parker perderam a força. Virou-se a custo e gritou : «Olha para isto ! Não te ponhas logo a dizer isso. Olha para a tatuagem !» «Já olhei», disse ela. «Não sabes o que é?11, gritou ele, sufocado de angústia. «Não, quem é?11, disse Sarah Ruth. «Não é ninguém que eu conheça.» «É Ele», disse Parker. «Ele quem?» «Deus !», gritou Parker. «Deus? Deus não é assim !» «0 que sabes tu sobre como Deus se parece?», grunhiu Parker. «Tu nunca O viste.» «Deus não tem cara», disse Sarah Ruth. «Deus é um espí­ rito. Nunca nenhum homem lhe verá a face.» «Oh, ouve !», resmungou Parker. «É só a imagem Dele.» «Idolatria!11, bradou Sarah Ruth. «Idolatria ! Andas a infla­ mar-te com ídolos por toda esta santa terra ! Posso aturar as tuas mentiras e a tua vaidade mas não quero um idólatra nesta casa l», e agarrou numa vassoura e começou a fustigá­ -lo nas costas. Parker estava demasiado estupefacto para resistir. Deixou­ -se ficar sentado e que ela lhe batesse com a vassoura até estar quase inconsciente e ter marcas vermelhas enormes em cima

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do seu Cristo tatuado. Depois levantou-se aos tropeções e arrastou-se até à porta. Ela bateu com a vassoura no chão, duas ou três vezes, e foi para a janela abaná-la para a limpar do lixo da pele dele. Sempre agarrada ao cabo, olhou para a nogueira e os seus olhos tomaram-se ainda mais duros. Ali estava ele - o homem que chamava a si mesmo Obadiah Elihue - encos­ tado à árvore, a chorar como uma criança.

J U ÍZO FINAL Tanner estava a preservar todas as suas forças para voltar para casa. Tencionava caminhar o mais que conseguisse e entregar-se nas mãos do Todo-Poderoso para percorrer o resto da distância. Nessa manhã, e na manhã anterior, deixara a filha vesti-lo e assim conservara mais um pouco de energia. Agora estava sentado na sua cadeira ao pé da janela - a camisa azul abotoada até ao pescoço, o casaco nas costas da cadeira, o chapéu na cabeça à espera que ela partisse. Não podia escapar-se até ela desaparecer de cena. A janela dava para uma parede de tij olo e lá muito em baixo ficava uma rua estreita cheia do ar de Nova Iorque, o tipo de ar apropriado para gatos e para lixo. Uns flocos esparsos de neve flutuavam diante da janela mas eram demasiado leves e ocasionais para que a sua vista cansada conseguisse detectá-los. A filha estava na cozinha a lavar a loiça. Afadigava-se sobre os pratos, falando consigo mesma. Nos primeiros dias que passara no apartamento o velho ainda lhe respondera, mas compreendera depressa que as suas respostas não eram bem-vindas. Ela olhara para ele com irritação, como se aquele velho idiota não tivesse suficiente senso para saber que não se responde a uma mulher que está a falar consigo mesma. Fazia perguntas numa voz e respondia noutra. Com a energia que -

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conservara no dia anterior deixando-a vesti-lo, o pai escrevera um bilhete que pregara no lado de dentro do bolso. SE ENCON­ TRADO MORTO ENVIAR EXPRESSO AO CUIDADO DE COLE­ MAN PARRUM, CORINTII , GEORGIA, CONTA A PAGAR PELO RECEPTOR. Abaixo desta indicação acrescentara: COLEMAN VENDE AS MINHAS COISAS E PAGA PELO FRETE Et PELO CANGALHEIRO. SE SOBRAR ALGUMA COISA FICA COM ELA. AFECTUO SAMENTE, T. C. TANNER. P. S. - FICA ONDE ESTÁS. NÃO DEIXES QUE NINGUÉM TE CONVENÇA A VIRES PARA O NORTE. ESTE LUGAR NÃO PRESTA. Levara pelo menos meia hora a escrever tudo ; a caligrafia era trémula mas seria deci­ frável com um pouco de paciência. Controlara a mão direita segurando-a com a esquerda. Quando acabara de escrever, já a filha estava de regresso com os sacos do supermercado. Hoje, Tanner estava pronto. Tudo o que tinha a fazer era empurrar um pé à frente do outro até chegar à porta e depois ao fundo dos degraus. Uma vez na entrada do prédio, havia de encontrar a saída do bairro. Uma vez fora do bairro, apa­ nharia um táxi para a estação dos comboios de carga. Algum vagabundo haveria de o ajudar a entrar no vagão. Quando se apanhasse dentro de um vagão de carga, deitar-se-ia e des­ cansaria. Durante a noite o comboio começaria a rumar ao Sul, e no dia seguinte, ou na manhã depois do dia seguinte, morto ou vivo, havia de chegar a casa. Morto ou vivo. Chegar lá é que era importante ; morto ou vivo não interessava. Se tivesse tido bom senso, teria partido logo no dia após a chegada; e se tivesse ainda melhor senso nem sequer teria chegado. Não ficara completamente desesperado até há dois dias atrás, quando ouvira a filha e o genro despedirem-se depois do pequeno-almoço. Estavam diante da porta de entrada, e ele ia passar três dias fora. Era condutor de um camião de mudanças de longo curso. Ela devia ter-lhe passado para as mãos o seu boné de cabedal. «Devias arranjar um cha­ pém>, disse ela. «Um chapéu a sério.» «E passar o dia sentado com o chapéu na cabeça como aquele ali», disse ele. «Tudo o que ele faz é sentar-se o dia

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inteiro de chapéu na cabeça. Sentado todo o dia, com a mal­ dito chapéu na cabeça. Dentro de casa !» «Bem, tu nem sequer tens um chapéu», disse ela. «Só um boné de cabedal com abas. As pessoas que são alguém usam chapéu. As outras usam bonés de cabedal com abas como o teu.11 «As pessoas que são alguém !», gritara ele. «As pessoas que são alguém ! Deixa-me rir !11 O genro tinha uma face musculosa e estúpida e uma voz de yankee a condizer. «Ü meu pai está aqui para ficar», disse a filha. dá não vai durar muito. Foi alguém na altura em que era alguém. Nunca trabalhou para outras pessoas em toda a sua vida e tinha pes­ soas - outras pessoas - a trabalhar para ele.» «Ah sim? Pretos. Era tudo o que ele tinha a trabalhar para ele11, disse o genro. «Eu também já tive um preto ou dois às minhas ordens.11 «Só tiveste pretos do Norte às tuas ordens», disse a filha, baixando subitamente a voz de tal forma que Tanner teve que inclinar-se para a frente para ouvir o resto. «Mas é preciso ter cabecinha para pôr um verdadeiro preto a trabalhar. É preciso saber lidar com eles.11 «Ah pois, eu não tenho cabecinha !», disse o genro. Um dos raros momentos, muito súbitos e ocasionais, em que Tanner sentia orgulho na filha, viera apoderar-se dele. Uma vez por outra a mulher dizia qualquer coisa que suge­ ria que ainda tinha algum do bom senso adquirido com a educação que recebera em casa e que estaria armazenado dentro de si. «Tu tens miolos», disse ela. «Só que não os usas muitas vezes.11 «Ü velho tem um enfarte quando vê um preto no prédio», disse o genro. «E agora ela diz-me ... 11 «Não fales tão alto», disse a filha. «Não foi por causa do preto que ele teve o enfarte.» Houve um breve silêncio. «Onde é que vais enterrá-10?11, perguntou o genro, tomando uma linha de ataque diferente. «Enterrar quem?11 «Aquele ali.11

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«Aqui mesmo em Nova Iorque», disse ela. «Onde é que pen­ savas que eu ia enterrá-lo? Temos um lote no cemitério. Não vou fazer a viagem até lá abaixo outra vez.» «OK, só queria ter a certeza», disse ele. Quando ela voltou para o quarto, Tanner tinha ambas as mãos cravadas nas costas da cadeira. Os seus olhos perse­ guiam-na como os olhos de um cadáver furioso. «Prometeste­ -me que não me enterravas aqui», disse ele. «As tuas promes­ sas não querem dizer nada. As tuas promessas não querem dizer nada. As tuas promessas não querem dizer nada.» A sua voz era tão seca que se tomara quase inaudível. Começou a tremer, as mãos, a cabeça, os pés. «Enterra-me aqui e vai arder para o Inferno !», gritou ele e voltou a cair no fundo da cadeira. A filha dignou-se finalmente a prestar-lhe atenção. «Ainda não morreste !» Deixou escapar um suspiro portentoso. «Ainda tens muito tempo para te preocupares com o sítio onde vais ser en­ terrado.» Virou-se e começou a apanhar as secções do jornal espalhadas pelo chão. Tinha cabelos cinzentos que lhe chega­ vam aos ombros e uma face redonda, que começava a dar sinais de cansaço. «Eu faço tudo o que posso por ti», lamuriou­ -se ela, «e é assim que tu me retribuis.» Enfiou os jornais debaixo do braço e disse : «E não me chateies com essa con­ versa do inferno. Não acredito nessas coisas. É tudo uma gran­ dessíssima treta Baptista.» Depois foi para a cozinha. Ele manteve a boca crispada, a parte de cima da dentadura presa entre os dentes e o céu da boca. Mesmo assim as lágri­ mas começaram a rolar-lhe pelas bochechas ; limpou cada uma delas furtivamente no ombro. A voz dela veio da cozinha. «É pior do que aturar uma criança. Primeiro queria vir, e agora que está cá,quer ir embora.» Ele nunca quisera vir. «Fez de conta que não queria vir, mas eu sabia que ele queria. Eu disse-lhe, se não quiseres vir não posso obrigar-te. Se não qui­ seres viver como uma pessoa decente eu não posso obrigar-te.» «Quanto a mim», respondeu a si mesma na voz mais aguda, «não é quando eu morrer que vou pôr-me com manias. Podem

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enterrar-me n o sítio que ficar mais a jeito. Quando abandonar este mundo terei respeito e consideração para com os que cá ficam. Não vou pensar só em mim.» «Claro que não», disse a outra voz dela. «Mas tu nunca foste egoísta. Sempre foste o género de pessoa que se preocupa com as outras.» «Oh, eu bem tento !», disse ela. «Eu bem tento.» Ele deixou cair a cabeça nas costas da cadeira por um momento e o chapéu descaiu-lhe para os olhos. Tinha criado três rapazes e aquela filha. Os três rapazes tinham partido, dois levados pela guerra e um levado pelo Demónio, e não havia ninguém que sentisse obrigações para com ele a não ser ela, casada e sem filhos em Nova Iorque como uma grande dama e pronta a levá-lo consigo quando apareceu lá em casa e o encontrou a viver daquela forma. Tinha enfiado a cabeça pela porta da cabana e contemplara a cena, sem expressão no rosto, durante um segundo. Depois, de repente, dera um grito e saltara para trás. «0 que é aquilo ali no chão?» «É o Colemam�, dissera ele. O preto velho estava enroscado num colchão duro aos pés da cama de Tanner, uma pele malcheirosa cheia de ossos organizada no que parecia ser uma forma humana. Quando Coleman era novo, parecia um urso ; agora que era velho parecia um macaco. Com Tanner passara-se o contrário : em novo parecera um macaco, e em velho parecia um urso. A filha recuou até ao alpendre. Os assentos de duas cadei­ ras de verga estavam fixados ao tecto do telheiro mas ela re­ cusou sentar-se. Afastou-se três metros da casa como se a distância fosse necessária para se libertar do mau cheiro. Depois debitara o seu discurso. «Não tens nenhum orgulho. Sei quais são os meus deveres e fui educada para cumpri-los. A minha mãe ensi­ nou-mos, ainda que tu nada tenhas feito para isso. Era uma mulher de famílias simples mas não era do género de dor­ mir com pretos.»

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Nessa altura o preto levantou-se e esgueirou-se para fora de casa, uma figura cmvada e silenciosa que Tanner mal teve tempo de ver desaparecer ao longe. Ela tinha-o envergonhado. Ele gritou de modo a que ambos pudessem ouvi-lo. «Quem é que tu julgas que cozinha? Quem é que me corta a lenha para a lareira e me limpa a retrete? Ele está ligado a mim. Aquele desgraçado que não prestava para nada esteve nas minhas mãos durante os últi­ mos trinta anos. Não é um mau preto.» Ela não ficara impressionada. «E de quem é esta cabana, afinal?», perguntou. «Tua ou dele?» «Construímo-la juntos os dois», respondeu ele. «Volta para a tua casa no Norte. Eu não iria contigo nem por um milhão de dólares, nem por um saco de sal.» «Sim, parece que vocês construíram esta choça juntos. E de quem é que é o terreno?» «De umas pessoas que vivem na Florida», respondeu ele evasivamente. Sabia que o terreno estava à venda mas calcu­ lara que fosse demasiado desolado para que alguém quisesse comprá-lo. Nessa mesma tarde descobriu que se enganara. Descobriu-o a tempo de voltar para Nova Iorque com ela. Se o tivesse descoberto um dia mais tarde poderia ainda lá estar agora, na terra do doutor. Quando viu a figura escura em forma de toninha a atra­ vessar o campo nessa tarde, percebeu imediatamente o que acontecera ; ninguém precisava de lhe dar explicações. Se aquele preto fosse dono do mundo inteiro à excepção de um talhão ressequido de ervilhas e tivesse acabado de adquirir esse talhão, atravessá-lo-ia daquela forma, empurrando as espigas selvagens à sua frente, o pescoço espesso inchado, a barriga transformada num trono para a corrente de ouro e o relógio de ouro. Dr. Foley. Só era meio preto. O resto era meio índio, meio branco. O doutor era tudo para os pretos - droguista e can­ galheiro e conselheiro e especulador imobiliário, e às ve­ zes deitava maus-olhados, outras vezes tirava maus-olhados.

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Prepara-te, dissera Tanner a s i mesmo, observando-o a apro­ ximar-se para vir reclamar-lhe qualquer coisa, embora fosse preto. Prepara-te, porque não tens nada que possas usar con­ tra ele a não ser a pele que trazes à volta dos ossos e essa pele vale tanto como a pele que as cobras deitam fora. Não tens qualquer hipótese se o Governo se puser contra ti. Estava sentado no alpendre num bocado de cadeira encos­ tado à cabana. «Boa tarde, Foley», disse ele e acenou com a cabeça quando o doutor se aproximou e parou na entrada da clareira, como se o tivesse visto só naquele instante embora fosse evidente que o vira atravessar o campo. «Vim aqui deitar uma vista de olhos à minha propriedade», disse o doutor. «Boa tarde.» A sua voz era rápida e alta. Não é a tua propriedade há muito tempo, pensou ele. «Vi­ -te chegar», disse ele. «Adquiri este talhão recentemente», disse o doutor e sem olhar para ele tratou de dar uma volta completa à cabana. Daí a um momento voltou a aparecer e parou à frente dele. Depois avançou descaradamente para os degraus da cabana e meteu a cabeça na porta. Coleman estava lá dentro outra vez, outra vez a dormir. Foley estudou a cena e depois virou-se para Tanner. «Conheço aquele preto», disse ele. «Coleman. Coleman Parrum - quanto tempo é que ele precisa de dormir até se libertar do álcool que vocês fabricam para aqui?» Tanner agarrou-se aos bordos da cadeira e segurou-os com força. «Esta cabana não está na tua propriedade. Está só em cima dela, por engano», disse ele. O doutor removeu momentaneamente o charuto da boca. «0 en-ga-no não foi meu», disse ele. Tanner limitara-se a ficar sentado, olhando em frente. «Este tipo de en-ga-no não compensa», disse o doutor. «Eu ainda nunca encontrei nada que compense», resmoneou ele. «Tudo compensa», disse o preto, «desde que se saiba o que se está a fazer.» Ficou ali, a sorrir. Olhou para a construção de cima a baixo. Depois virou-se e foi inspeccionar o outro lado da cabana. Fez-se silêncio. O doutor estava à procura do alambique.

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Devia tê-lo abatido naquela altura. Havia uma arma dentro da cabana e Tanner podia ter despachado o doutor com facili­ dade, mas desde criança que se abstinha desse tipo de violên­ cias porque tinha medo do Inferno. Nunca matara nenhum, sempre lidara com eles e levara a melhor com esperteza e com sorte. Era conhecido por ter um jeito especial para lidar com pretos. Havia uma certa arte para essas lides. O segredo para lidar com um preto era mostrar-lhe que os seus miolos não podiam nada contra os dele; depois eles saltavam-lhe para as costas e ele sabia que tinha ali uma coisa boa para o resto da vida. Há trinta anos que trazia Coleman às costas. Tanner vira Coleman pela primeira vez quando estava a fazer trabalhar seis deles numa serração no meio de um pinhal a dez quilómetros de parte nenhuma. Era uma equipa desgra­ çada que viera parar-lhe às mãos, do género dos que às segun­ das-feiras nem sequer apareciam. As coisas que andavam no ar tinham-nos atingido. Pensavam que andava por aí um novo Lincoln acabado de eleger que ia abolir o trabalho. Punha-os na ordem com uma navalha afiada. Acontecera-lhe uma coisa má qualquer ao fígado que lhe fazia tremer as mãos, mas ele aprendera uns truques de esculpir madeira para não deixar que esse tremor se notasse. Não tencionava deixá-los perceber que as mãos lhe tremiam involuntariamente e também não queria dar ele próprio por isso. A faca movia-se constantemente, vio­ lentamente, nas suas mãos trémulas, e talhava em pedaços de madeira pequenas figuras rudimentares - nunca olhava para elas e não poderia ter dito o que é que elas representavam se olhasse - que depois atirava ao chão. Os pretos iam apanhá­ -las e levavam-nas para casa ; não havia uma grande distância entre eles e as profundidades mais negras de Africa. A faca bri­ lhava constantemente nas suas mãos. Mais de uma vez parara de repente e dissera para um preto meio inclinado, meio ador­ mecido : «Preto, esta faca agora está na minha mão mas se não parares de desperdiçar o teu tempo e o meu em breve estará na tua barriga.» E o preto começava a levantar-se - devagar, mas já estava dominado - antes mesmo de ele acabar a frase.

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Um preto muito grande d e membros bamboleantes, duas vezes maior do que ele, começara a aparecer na vizinhança da serração, olhando para os outros, e, quando não estava a olhar, dormia num sítio onde todos podiam vê-lo, estirado nas costas largas, como um urso gigantesco. « Quem é aquele?», perguntara aos outros. «Se quer trabalhar, diga-lhe que venha para aqui e que trabalhe. Se não quer, digam-lhe que se ponha a andar. Não quero preguiçosos por estas bandas.» Nenhum dos outros sabia quem ele era. Sabiam que ele não queria trabalhar. Não sabiam mais nada, embora fosse provavelmente irmão de um deles, primo deles todos. Tinha­ -o ignorado durante um dia inteiro ; contra os outros seis Tanner era um homem branco ressequido de face amarelada e de mãos trémulas. Estava disposto a esperar pelos proble­ mas, mas não para sempre. No dia seguinte o desconhecido voltou a aparecer. Quando os seis que estavam a trabalhar para Tanner o viram estendido na sombra durante toda a manhã, interromperam o trabalho uma boa meia hora antes do tempo e foram sentar-se a comer o almoço. Não se arris­ cara a mandá-los levantar. Fora direito à raiz do problema. O desconhecido estava encostado a uma árvore no ftm­ do da clareira, observando-o com os olhos meio fechados. A insolência da sua face mal disfarçava o estupor em que se encontrava mergulhado. Estava a pensar: este branco não é assim muito grande, por isso porque é que está a aproxi­ mar-se de mim com estes ares tão importantes, o que será que ele quer? Tinha planeado dizer-lhe: «Preto, esta faca agora está na minha mão mas se não desapareces da minha vista... », mas à medida que se aproximava começou a mudar de ideias. Os olhos do preto eram pequenos e raiados de vermelho. Tanner calculou que ele trazia uma faca consigo e que estaria dis­ posto a usá-la. A sua navalha continuava a mover-se, dirigida exclusivamente por uma inteligência oculta e intuitiva que lhe guiava os movimentos das mãos. Não fazia ideia do que estava a esculpir, mas quando chegou ao pé do preto tinha

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escavado dois círculos perfeitos do tamanho de uma moeda de meio dólar no pedaço de casca de pinheiro. O olhar do preto caiu nas suas mãos e ficou preso nelas. Descontraiu os maxilares. Os seus olhos não se desviavam da faca, escavando incessantemente os buracos na casca. Olhava para a faca como se visse um poder invisível a trabalhar na madeira. Tanner olhou para o que tinha nas mãos, e, atónito, viu os aros de um par de óculos. Espreitou através deles para lá de uma pilha de aparas e através do bosque para a casota onde guardavam as mulas. «A tua vista não é assim muito boa, pois não, rapaz?», per­ guntou ele enquanto esgravatava no chão com a ponta da bota. Encontrou um pedaço de arame e agarrou-o. Depois encontrou outro pedaço e agarrou-o também. Começou a atar os dois arames à casca de madeira com os buracos. Não tinha pressa, agora que sabia o que estava a fazer. Quando os ócu­ los estavam prontos, estendeu-os na direcção do preto. «Experimenta estes óculos, rapaz», disse ele. «Detesto ver pes­ soas que não têm boa vista.» Houve um instante em que o preto podia ter feito uma de duas coisas : podia ter agarrado nos óculos e tê-los esmagado ou podia ter agarrado na faca e virá-la contra ele. Viu o mo­ mento preciso, nos olhos lamacentos inchados pelo álcool, em que o prazer de enfiar uma faca na barriga deste homem branco estava a ser medido contra outra coisa qualquer, não poderia dizer o quê. O preto agarrou nos óculos. Passou cuidadosamente os arames em tomo das orelhas e olhou em frente. Virou-se para um lado e para o outro com uma solenidade exagerada, e depois olhou directamente para Tanner e sorriu, ou fez uma careta, o branco não tinha a certeza, mas teve a sensação momentânea de estar perante um negativo da sua própria imagem, como se ser um p alhaço em cativeiro fosse o destino comum dos dois. A visão desapareceu antes que ele conse­ guisse decifrá-la.

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«Pregador», disse ele, «O que é que andas a fazer por aqui?» Agarrou noutro bocado de casca de árvore e começou a escul­ pir outra vez sem olhar para ele. «Hoje não é domingo.» «Não é domingo?», disse o preto. «É sexta-feira», disse ele. «Esse é o vosso maior problema, pregadores - bêbedos toda a semana, nem sequer sabem quando é que é domingo. O que é que vês com esses óculos?» «Vej o um homem». «Que género de homem?» «Ü homem que fez estes óculos.» «Ü homem é preto ou é branco?» «É branco», disse o preto, como se nesse momento a sua vista tivesse ficado suficientemente clara para dar finalmente por isso. <<Sim senhor, é branco.» «Bem, então trata-o como se tratam os brancos», disse Tanner. «Como é que te chamas?» «Coleman.» E nunca mais vivera sem Coleman desde esse dia. A gente faz deles macacos e eles saltam-nos para as costas e nunca mais nos abandonam, mas se deixarmos um deles fazer de nós um macaco depois só nos resta matá-lo ou desaparecer. E ele não queria ir para o inferno por matar um preto. Atrás da cabana, ouviu o doutor deitar abaixo um balde. Ficou sentado, à espera. O doutor voltou a aparecer, abrindo caminho para o outro lado da casa, empurrando montículos dispersos de ervas com a bengala. Parou no meio do terreno, mais ou menos no mesmo sítio em que, nessa manhã, a filha lhe fizera o seu ultimato. «Não tens o direito de estar aqui», começou ele. «Posso arranjar-te problemas com as autoridades.» Tanner deixou-se ficar onde estava, imóvel, olhando atra­ vés do campo. «Onde é que está o teu alambique?», disse o doutor. uSe há por aqui um alambique, não me pertence», disse ele e fechou a boca com força.

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O preto riu suavemente. «A tua sorte anda por baixo, não anda?», murmurou ele. «Não tinhas uma propriedadezinha do outro lado do rio e não a perdeste já não sei porquê?» Ele tinha continuado a examinar os bosques à sua frente. «Se queres pôr o teu alambique a render para mim é uma coisa», disse o doutor. «Se não queres, é melhor começares a fazer as malas». «Não tenho que trabalhar para ti», ele. «Ü Governo ainda não começou a andar por aí a obrigar os brancos a irem tra­ balhar para os pretos.» O doutor poliu a pedra do anel com o polegar. «Gosto tão pouco do Governo como tu», disse. «Mas para onde é que que­ res ir? Queres ir para a cidade e alugar uma suite de luxo no hotel?» Tanner não disse nada. «Está a chegar o dia», disse o doutor, «em que os brancos VÃO trabalhar para os pretos e bem podias ser o primeiro a começar.» «Esse dia para mim nunca chegará», disse Tanner seca mente. «Para ti já chegoU», disse o doutor. «Para os outros é que ainda não.11 O olhar de Tanner passou da cordilheira azulada da linha de árvores mais distante para o céu pálido e sem cor. «Tenho uma filha no Norte», disse ele. «Não preciso de tra­ balhar para ti.» O doutor tirou o relógio do bolso do relógio, olhou para ele e voltou a pô-lo no bolso. Por um momento contemplou as costas da mão. Parecia ter medido a situação e saber secreta­ mente o tempo exacto que ia passar até tudo estar virado ao contrário no mundo. «Ela não quer um velho como tu11, disse ele. «Talvez diga que quer, mas não está a dizer a verdade. Mesmo que fosses rico», continuou ele, «eles não te queriam. Eles lá em cima têm as suas ideias próprias. Até os pretos têm as suas ideias, e até eu não quero nada com elas.» Olhou outra vez para Tanner. «Volto para a semana», disse ele, «e se ainda

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aqui estiveres é porque vais trabalhar para mim.» Ficou ali mais um momento, a balançar-se nos calcanhares, à espera de uma resposta. Finalmente virou-lhe as costas e começou a abrir o caminho de regresso batendo com a bengala contra as ervas demasiado crescidas. Tanner continuou a olhar através do campo como se o seu espírito tivesse sido aspirado de dentro dele e levado para a floresta e não restasse nada do que ele fora na cadeira a não ser uma casca. Se na altura soubesse que a sua escolha iria resultar no que resultara - passar o dia sentado olhando pela janela para um lugar que não existia ou trabalhar num alam­ bique para um preto - teria sido o preto-branco do preto sem qualquer margem de dúvida. Atrás de si ouviu a filha regres­ sar da cozinha. O seu coração acelerou mas ao fim de um momento ouviu-a deixar-se cair num sofá. Ainda não estava pronta para sair. Não se virou para olhar para ela. Ela deixou-se ficar sentada em silêncio por uns minutos. Depois começou : «0 teu problema é», disse ela, «que ficas sen­ tado diante dessa janela o dia inteiro num sítio onde não há nada para olhar. Precisas de inspiração e de coisas que te ocu­ pem a cabeça. Se me deixasses virar a cadeira ao contrário de maneira a poderes ver televisão deixavas de pensar nessas coisas mórbidas, no inferno, no Juízo Final. Meu Deus !» «0 Juízo Final está a chegar», murmurou ele. «As ovelhas serão separadas das cabras. Aqueles que cumpriram as suas promessas serão separados dos que não as cumpriram. Os que honraram o seu pai e a sua mãe serão separados dos que os amaldiçoaram. Os que ... » Ela deixou escapar um suspiro gigantesco que quase o afo­ gou. «Para que é que desperdiço o meu latim contigo?», per­ guntou ela. Levantou-se e dirigiu-se para a cozinha e come­ çou a mexer nas coisas e a atirá-las com força. Era tão orgulhosa e autoritária! Em casa vivera numa cabana, mas ao menos tivera ar para respirar. Podia pôr os pés sobre a terra. Aqui ela nem sequer vivia numa casa. Vivia num prédio que mais parecia um pombal com toda a espécie de

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raças de estrangeiros lá dentro, todos eles malcriados e com pronúncias esquisitas. Não era um lugar onde um homem são pudesse viver. No primeiro dia depois da sua chegada ela levara-o a ver a cidade e ele vira como aquilo era em menos de quinze minutos. Nunca mais voltara a sair do apartamento. Não quisera voltar a pôr os pés no comboio subterrâneo nem nas escadas que se moviam sozinhas nem em nenhum eleva­ dor para nenhum trigésimo quarto andar. Quando estava de regresso à segurança do apartamento começou a imaginar que o explorava na companhia de Coleman. Certificava-se de que Coleman vinha sempre atrás de si. Mantém-te cá dentro ou esta gente deita-te abaixo, mantém-te à direita ou eles hão-de virar-te para a esquerda, mantém o chapéu na cabeça, grande idiota, dissera ele, e Coleman viera a correr no seu movimento desengonçado e dobrado para a frente, ofegante e a res­ mungar entre dentes. O que é que estás aqui a fazer? Que estú­ pida ideia foi esta de vires para este sítio? Vim aqui para te mostrar que este lugar não presta. Agora sabes que estavas muito bem onde estavas. Eu já sabia, dissera Coleman. Tu é que não sabias. Quando estava na cidade há uma semana, recebera um pos­ tal de Coleman que havia sido escrito por Hooten na estação de comboio. c<Sou o Coleman X , como é que estás, patrão?» Por baixo Hooten escrevera por si mesmo : «Deixa-te de andar a frequentar esses lugares nocturnos e volta mas é para casa, grande bandido. Um abraço, W. P. Hooten.» Mandara a Coleman um postal de resposta, que dizia : ccEste lugar é OK para quem gosta dele. Um abraço, W. T. Tanner.» Como a filha tinha que pôr o postal no correio, não pudera acrescentar que tencionava regressar a casa assim que chegasse o primeiro che­ que com a sua pensão de reforma. Não planeara dizer-lhe, mas apenas deixar-lhe um bilhete. Quando o cheque chegasse, metia-se num táxi para a estação do comboio e em breve esta­ ria a caminho. E sabia que isso a faria tão feliz como ia fazê­ -lo feliz a ele. A filha achava a sua companhia deprimente e o seu dever irritante. Se ele fugisse de casa, ela teria o prazer -

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de ao menos ter tentado, e, ainda por cima, o prazer da sua ingratidão. Quanto a ele, teria voltado a viver na terra do doutor e pas­ saria a obedecer às ordens de um preto que chupava charutos de dez cêntimos. E não se preocuparia tanto com a situação como se teria preocupado antes. Em vez disso tinha sido des­ graçado por um actor preto, ou pelo menos por um preto que dizia que era actor. Cada andar do prédio tinha dois apartamentos. Estava a viver com a filha há três semanas quando as pessoas do buraco de pombos ao lado se foram embora. Ele ficara parado na entrada a observar as mudanças dos que partiam, e na manhã seguinte observara as mudanças dos novos inquilinos. O corre­ dor era estreito e escuro e ele deixou-se ficar num canto fora do caminho, oferecendo conselhos que teriam tomado as mano­ bras muito mais simples se alguém lhe tivesse prestado atenção. A mobília era barata e de fabrico recente e ele decidiu que os novos inquilinos eram recém-casados e que ia deixar-se ficar por ali até eles chegarem para lhes dar as boas-vindas e lhes desejar boa sorte. Depois de algum tempo um preto grande com um fato azul ligeiro começou a aparecer ao fundo das escadas, carregando duas malas de lona, com a cabeça baixa para o auxiliar no esforço. Atrás dele vinha uma mulher jovem e morena com o cabelo brilhante e cor de cobre. O preto deixou cair as malas com estrondo diante da porta do apartamento. «Tem cuidado, queridinho», disse a mulher. «A minha maquilhagem está toda nessas malas.» Tanner ficou siderado com o que estava a acontecer mesmo à frente dos seus olhos. O preto estava a rir com os dentes à mostra. Deu uma pal­ mada numa das nádegas dela. «Pára com isso», disse a mulher. «Está ali um velho a olhar para nós.» Viraram-se os dois e olharam para ele. «Como estão?», disse ele e acenou com a cabeça. Depois entrou rapidamente para dentro da sua própria porta.

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A filha estava na cozinha. «Quem é que julgas que alugou o apartamento aqui ao lado?», perguntou ele com a face toda a brilhar de excitação. Ela olhou para ele com um prenúncio de suspeita. «Quem?», resmoneou. «Um preto !», disse ele numa voz agitada. «Um preto da Alabama do Sul em carne e osso ! E arranjou uma mulher de pele clara e de cabelo encarnado e agora vão os dois viver no apar­ tamento ao lado do teu !» Deu uma palmada no joelho. «Sim senhor!», disse ele. «São pretos sim senhor!» Era a primeira vez desde que chegara à cidade que tinha uma oportunidade para rir. A face dela tomou-se imediatamente rígida. «Muito bem, agora ouve o que eu te digo», disse ela. «Mantém-te afastado deles. Não te ponhas a ir até lá a casa e tentar fazer amizade com eles. Eles aqui não são como os nossos e eu não quero problemas com pretos, percebeste? Se temos que viver ao lado deles limitamo-nos a tratar da nossa vida e eles tratam da vida deles. É a maneira como as pessoas se entendem no mundo. Toda a gente pode entender-se se cada um se meter na sua vida. Viver e deixar viver.» Começou a franzir o nariz como um coelho, um hábito estúpido que ela tinha. «Aqui no Norte toda a gente se mete só na sua vida e toda a gente se entende. E tu terás que fazer o mesmo.» «Eu já me entendia com pretos antes de tu nasceres», disse ele. Voltou para o corredor e ficou à espera. Podia apostar que o preto estava ansioso por conversar com alguém que pudesse entendê­ -lo. Duas vezes, enquanto estava à espera, a sua excitação fê-lo esquecer as regras do prédio e cuspiu tabaco contra o rodapé. Daí a vinte minutos, a porta do apartamento voltou a abrir-se e o preto apareceu na porta. Tinha posto uma gravata e uns óculos de aros de plástico e pela primeira vez Tanner notou que ele tinha uma pêra, muito pequenina. Um preto todo aperaltado. Saiu de casa sem parecer notar que estava outra pessoa no corredor. «Olá, Johnny !», disse Tanner e acenou com a cabeça, mas o preto passou por ele sem o ouvir e começou a descer as escadas rapidamente.

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Talvez seja surdo e estúpido, pensou Tanner. Voltou para dentro do apartamento e sentou-se mas de cada vez que ouvia um ruído no corredor levantava-se e ia a correr enfiar a cabeça na porta, a ver se seria o preto. Uma vez, a meio da tarde, conseguiu que o preto o visse pelo canto do olho quando ia outra vez a dar a volta nas escadas mas antes que ele conseguisse dizer uma única palavra o homem já estava dentro do apartamento e tinha batido a porta com força. Nunca vira um preto mexer-se tão depressa a menos que a polícia viesse atrás dele. Estava de pé no corredor bem cedo na manhã seguinte quando a mulher saiu sozinha, empoleirada em saltos altos pintados de doirado. Desej ava dar-lhe os bons-dias ou pelo menos acenar amigavelmente mas o seu instinto aconselhou­ -lhe prudência. Não se parecia com nenhum género de mulher, preta ou branca, que ele tivesse visto antes ; e man­ teve-se encostado à parede, mais assustado que outra coisa, tentando tomar-se invisível. A mulher olhou-o sem simpatia, e depois virou a cabeça para o outro lado e passou por ele mantendo entre ambos a maior distância possível, como se estivesse a passar por um caixote do lixo aberto. Ele susteve a respiração até ela ter desaparecido. A seguir esperou pacientemente pelo homem. O preto saiu por volta das oito. Desta vez Tanner avançou declaradamente na sua direcção. «Bom dia, Pregador», disse ele. A sua experiência era que sem­ pre que um preto estava com uma expressão sombria este título bastava para o pôr bem-disposto. O preto parou abruptamente. «Eu vi-te mudares-te aqui para o lado», disse Tanner. «Também não estou aqui há muito tempo. Não é assim um grande sítio, se queres que te diga. Aposto que gostavas de estar outra vez no Alabama do Sul.» O preto não deu um passo nem lhe respondeu. Os seus olhos começaram a mover-se. Moveram-se do topo do chapéu preto, desceram até à camisa azul sem colarinho abotoada até

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ao pescoço, desceram até aos suspensórios desbotados e até às calças cinzentas e aos sapatos de cano alto e depois voltaram a mover-se para cima, muito devagar, enquanto uma raiva fria e inimaginável parecia torná-lo mais rigido e mais pequeno. «Pensei que talvez soubesses de algum lugar perto daqui onde a gente pudesse encontrar uma lagoa, Pregador», disse Tanner, com uma voz mais fina mas ainda consideravelmente repassada de esperança. Um barulho gutural e profundo veio de dentro do preto antes de ele falar. «Eu não sou do Alabama do Sul», disse ele quase sem fôlego. «Sou de Nova Iorque. E não sou nenhum pregador! Sou um actor!» Tanner soltou uma gargalhada curta e discreta. «Todos os pregadores têm qualquer coisa de actor, não é?», disse ele e piscou o olho. «Aposto que fazes um bocado de pregação nas horas vagas.» <<Eu não prego !», gritou o preto e passou por ele como se uma colmeia inteira o tivesse atacado de repente, vinda de parte nenhuma. Atirou-se para as escadas e desapareceu. Tanner ficou ali parado durante um momento e depois vol­ tou para o apartamento. Durante o resto do dia sentou-se na sua cadeira e reflectiu sobre se havia ou não de dar ao preto mais uma oportunidade de fazer amizade com ele. De cada vez que ouvia um ruído ia até à porta e olhava para fora, mas o preto só voltou ao fim da tarde. Tanner estava de pé no cor­ redor à sua espera quando ele chegou ao cimo dos degraus. «Boa tarde, Pregador», disse ele, esquecendo-se de que o preto dissera que era actor. O preto parou e agarrou-se ao corrimão. Um tremor sacu­ diu-lhe o corpo da cabeça às ancas. Começou a avançar deva­ gar. Quando estava suficientemente perto inclinou-se e agar­ rou Tanner pelos ombros. «Não vou tolerar mais sacanices», sussurrou ele, «de um filho da puta de um velho racista do Sul de chapéu preto como tu.» Recuperou o fôlego. E depois a sua voz soou com uma exasperação tão profunda que era quase uma gargalhada. «E não sou nenhum pregador! Nem sequer

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sou cristão ! Não acredito nessas tretas. Não há nenhum Jesus e não há nenhum Deus.» O velho sentiu o coração dentro dele endurecer e encar­ quilhar-se como um nó de madeira num carvalho antigo. «E tu não és preto», disse ele, «e eu não sou branco !» O preto atirou-o contra a parede. Puxou-lhe o chapéu até aos olhos. Depois agarrou-lhe a frente da camisa empurrou-o de costas contra a porta aberta e atirou-o para dentro do apar­ tamento com toda a força. Da cozinha, a filha viu-o atingir a parede às cegas e cair desamparado no chão da sala. Durante vários dias a sua língua parecia ter-lhe gelado dentro da boca. Quando descongelou estava do dobro do tamanho e ele não conseguia fazer-se entender. Queria per­ guntar à filha se o cheque da pensão já chegara porque ten­ cionava comprar um bilhete de camioneta e voltar para casa. Ao fim de alguns dias, conseguiu que ela percebesse. «Ü che­ que já chegou», disse ela, «e é à justa para pagar as primeiras duas semanas do médico, e fazes o favor de me dizer como é que vais para casa se não consegues falar nem andar nem pensar com clareza e um dos teus olhos ainda está vesgo? Fazes o favor de me dizer?» Só nessa altura é que ele se apercebeu da gravidade da situação em que se encontrava. Pelo menos tinha que fazê-la compreender que depois de morto devia ser mandado para casa para ser enterrado lá. Teriam que mandá-lo num vagão refrigerado de forma a que ele não começasse a apodrecer durante a viagem. Não queria um cangalheiro do Norte a mexer nos seus ossos. Chegaria a casa no comboio da manhã e podiam mandar um telegrama a Hooten para ir chamar Coleman e Coleman trataria do resto ; ela nem precisaria de ir com ele. Depois de uma grande discussão, conseguira arran­ car-lhe a promessa. Ela mandá-lo-ia para casa. Depois disso Tanner dormiu em paz e a sua saúde me­ lhorou ligeiramente. Nos seus sonhos conseguia sentir o ar fresco da manhã penetrar nas frinchas do caixão de pinho. Podia ver Coleman à espera, de olhos vermelhos na plata-

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forma da estação, e Hooten parado ao seu lado com a sua pala verde sobre os olhos e as suas mangas-de-alpaca pretas. Se o velho tonto tivesse ficado em casa, no lugar onde nasceu, Hooten estaria a pensar, não chegaria agora às seis e meia da manhã dentro de uma caixa. Coleman tinha posicionado cui­ dadosamente a mula e a carroça emprestadas de forma a poderem fazer deslizar o caixão directamente do comboio para dentro da carroça. Estava tudo pronto, e os dois homens, em silêncio, principiavam a transferir o caixão para dentro da carroça. Nessa altura Tanner começaria a esgravatar a madeira do lado de dentro. Eles dariam um salto como se lhes tivesse chegado o fogo. Ficavam parados a olhar um para o outro, e depois para a caixa. « É ele», dizia Coleman. «Está lá dentro, ele mesmo !» «Ná», dizia Hooten. «Deve ter sido um rato que entrou lá para dentro.» 1& ele. É um dos truques dele.» «Se é uma ratazana é melhor ficar onde está.» « É ele ! Vai buscar uma barra de ferro !» Hooten ia buscar a barra de ferro a resmungar, voltava e começava a tentar levantar a tampa. Coleman saltava para cima e para baixo, soprando e ofegando de excitação. Tanner atirava-se para cima e punha-se em pé com os braços aber­ tos dentro do caixão. «Juízo Final ! Juízo Final !», gritava ele. «Vocês, seus idiotas, não sabem que hoje é o dia do Juízo Final?» Agora ele sabia exactamente quanto valiam as promessas dela. Mais valia confiar o bilhete pregado ao seu bolso nas mãos de qualquer desconhecido que o encontrasse morto na rua ou no vagão de carga ou fosse onde fosse. Ela só pensava em fazer as coisas à sua maneira. Voltou a sair da cozinha tra­ zendo consigo o chapéu e as luvas e as botas de borracha. «Agora ouve», disse ela. «Tenho que ir ao supermercado. Não tentes levantar-te e começar a andar enquanto eu não estou aqui. Não quero encontrar-te caído no chão quando voltar.»

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J á não m e encontras aqui quando voltares, pensou ele. Esta era a última vez em que ele via a sua face estúpida e qua­ drada. Sentiu-se culpado. Ela fora boa para ele e ele reconhe­ cia haver sido apenas uma fonte de problemas. «Queres um copo de leite antes de eu ir?», perguntou ela. «Não», disse ele. Depois reuniu todo o seu fôlego para dizer: «Tens aqui uma casa muito bonita. É uma parte bonita do país. Desculpa se te dei tanto trabalho com esta doença. A culpa foi minha, por ter tentado ser amigo daquele preto.» E além disso sou um grandessíssimo mentiroso, pensou ele para liquidar o sabor insuportável que aquela última frase lhe fizera subir à boca. Por um momento ela encarou-o como se ele tivesse per­ dido a cabeça. Depois pareceu reconsiderar. «Vês, não te sen­ tes um bocadinho melhor depois de dizeres uma coisa simpá­ tica?», perguntou ela e sentou-se no sofá. Os joelhos dele estavam impacientes por se desdobrarem. Vá lá, vá lá, pensava ele quase a fumegar, despacha-te e põe­ -te a andar. « É muito bom ter-te aqui», disse ela. «Não quereria que estivesses em nenhum outro sítio. O meu paizinho !» Fez-lhe um grande sorriso, esticou a perna direita e começou a enfiar a bota. «Não desejaria nem ao meu pior inimigo ter que sair à rua num dia destes», disse ela. «Mas tenho que ir. Podes ficar aqui a rezar para que eu não escorregue e parta o pescoço.» Bateu com o pé que tinha a bota enfiada contra o chão e começou a enfiar a outra bota. Ele virou os olhos para a janela. A neve estava a começar a gelar contra o vidro do lado de fora. Quando voltou a olhar para ela viu-a de pé à sua frente como uma grande boneca de trapos com o seu casaco e o seu chapéu. Enfiou um par de luvas verdes de lã. «ÜK», disse ela. «Vou-me embora. Tens a certeza de que não precisas de nada?» «Não», disse ele. «Vai lá à tua vida.» «Então até já», disse ela. Ele levantou o chapéu apenas o suficiente para revelar uma nesga da cabeça careca salpicada por manchas escuras.

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A porta para o corredor fechou-se atrás dela. Ele começou a tremer de excitação. Procurou atrás de si e puxou o casaco para o colo. Quando conseguiu acabar de vesti-lo, esperou até parar de ofegar e depois agarrou os braços da cadeira e puxou o corpo para cima. O corpo parecia um sino enorme cujo badalo se movia de um lado para o outro sem fazer ruído. Uma vez levantado, manteve-se no mesmo sítio por um mo­ mento, balançando até conseguir recuperar o equilíbrio. Uma sensação de terror e de derrota apoderou-se dele. Nunca con­ seguiria chegar a casa. Nunca chegaria lá, nem morto nem vivo. Empurrou um pé para a frente e não caiu, e recuperou a confiança. «Ü Senhor é meu paston>, murmurou ele. «Nada me há-de faltar.» Começou a mover-se em direcção ao sofá, onde teria algum apoio. Alcançou-o. Estava a caminho. Na altura em que chegasse à porta já ela devia ter descido os quatro lances de degraus e passado a porta do prédio. Contornou o sofá e arrastou-se ao longo da parede, mantendo um braço apoiado para lhe sustentar o corpo. Ninguém have­ ria de o enterrar aqui. Sentia tanta confiança como se os bos­ ques da Georgia estivessem a esperá-lo à entrada. Alcançou a porta do apartamento, abriu-a e espiou o corredor. Era a pri­ meira vez que olhava para o corredor desde que o actor o ati­ rara ao chão. Cheirava a mofo e estava vazio. Uma tira estreita de linóleo estendia-se até à porta contígua, bolorenta e com­ prida. A outra porta estava fechada. «Actor preto», disse ele. O princípio das escadas estava a três metros de distância e ele concentrou-se em chegar lá sem perder o apoio da parede. Ia a meio do caminho quando as suas pernas desapareceram de repente, ou pelo menos ele sentiu que elas tinham desapa­ recido. Olhou para baixo desorientado, e viu que as pernas continuavam no sítio. Atirou-se para a frente e agarrou o cor­ rimão com ambas as mãos. Assim apoiado, olhou durante aquilo que lhe pareceu ser o tempo mais longo da sua vida para os degraus estreitos e inclinados que se estendiam à sua frente numa semiobscuridade ameaçadora ; depois fechou os olhos e me }gulhou. Aterrou de costas no patamar seguinte.

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Sentiu o caixão estremecer enquanto o tiravam do vagão e o passavam para a carroça. Não fez barulho. Ainda não. O comboio deu um esticão e recomeçou a andar. Sentiu o cai­ xão a ser puxado para a plataforma da estação. Ouviu passos a aproximarem-se cada vez mais, como se uma pequena mul­ tidão estivesse a reunir-se à sua volta. Esperem só até eles verem isto, pensou. «É ele», disse Coleman. «É um dos seus truques.» «É uma maldita ratazana», disse Hooten. «É ele. Vai buscar a barra de ferro.» Sentiu uma luz esverdeada começar a penetrar o caixão. Empurrou a tampa para cima e gritou em voz fraca: «Juízo Final ! Juízo Final ! Vocês, seus idiotas, não sabiam que hoje é o dia do Juízo Final?» «Coleman?», murmurou. O preto inclinado sobre ele tinha uma boca crispada num esgar de má-disposição e olhos sombrios. «Não há aqui nenhum carvoeiro [14l.11 Esta deve ser a estação errada, pensou Tanner. Estes parvos tiraram-me do comboio cedo de mais. Quem é este preto? Ainda nem sequer há luz do dia neste sítio. Ao lado da cara do preto havia outra cara, uma cara de mu­ lher - pálida, encimada por cabelos cor de cobre todo a brilhar. «Oh !», disse Tanner. «São vocês.» O actor inclinou-se mais para a frente e agarrou-o pela camisa. «Juízo Final !», disse ele numa voz trocista. «Não há nenhum Juízo Final, velho. Só que talvez o Juízo Final tenha chegado para ti.» Tanner tentou agarrar o corrimão para se pôr em pé mas a sua mão fechou-se no ar. As duas caras, a preta e a mais pálida, pareciam estar a esfumar-se. Com um esforço enorme conseguiu mantê-las focadas enquanto levantava a mão, tão leve como um sopro, e dizia na sua voz mais mundana : «Dá­ -me uma ajudinha, Pregador. Vou a caminho de casa.» [ 1 4]

Jogo de linguagem entre o apelido Coleman e coai man, carvoeiro. (N. da T.)

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A filha encontrou-o quando voltou do supermercado. O cha­ péu tapava-lhe a cara e as pernas e os braços estavam enro­ lados à volta do corrimão ; os seus pés balançavam sobre os degraus como os pés de um enforcado. Ela abanou-o freneti­ camente e depois foi a correr chamar a polícia. Cortaram-no com uma serra e disseram que ele já estava morto há pelo menos uma hora. Ela enterrou-o em Nova Iorque, mas depois de o ter feito não conseguia dormir. Noite após noite virava-se e revirava­ -se na cama e a sua face começou a ficar marcada por traços muito profundos, por isso mandou desenterrar o caixão e des­ pachou o corpo para Corinth num vagão refrigerado. A partir daí passou a dormir tranquilamente e as suas feições rejuve­ nesceram de novo.

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