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Investigando Piero O Batismo, o ciclo de Arezzo, a Flagelação de Urbino CARLO GINZBURG

Trad u ção

D EN I SE BOTTM ANN

BIBLIOTECA PARTICULAR

COSACNAIFY

9 23

Prefácio 1981 Prefácio 1994 I NVESTIGANDO PI E RO

35 47 85 99 147

1.

Batismo de Cristo

u . O ciclo d e Arezzo

m . Flagelaçiio

Ainda a Flagelaçiio Conclusão IV.

AP ÊN DI CES

235 245 261 271

Giovanni di Fra ncesco, Piero d e lla Francesca e a d ata do ciclo d e Arezzo 11. Flngelnçiio: conjeturas e refutações UI. Bere nson, Lo ng hi e a red escobe rta de Pie ro (19 12-14) rv. Datação absoluta e d atação relativa: sobre o método . de Long hi 1.

287

SO BRE O AIJ T O R

29 ·1

Í N DI CE D E KOMES

}01

Í N DI C E DAS I LUSTRAÇÕES

Prefácio (1981)

1.

Nestas págin as a na li so a lgum as das prin cipai s obras de Picro della

Fra ncesca - o Ba tismo de Cristo, a Flagelação e o ciclo de A rczzo pa rtindo de um duplo po nto de v is ta: o comission a m e nto da obra e a iconog ra fi a. N ão fa lo dos as pectos prop riam e nte fo rma is dessas pinturas, pois não tenho a compe tê ncia pa ra isso (sou um estudioso de hi stó ri a, não de hi stó ria da ar te). Tra ta-se de uma g ra ve limitação. Pode uma pesqu isa tão circun scr ita chega r a res u ltados re leva ntes? Pe nso qu e s im : po r razões de o rdem es pecífi ca, is to é, ligadas à s it uação dos estudos sobre Pic ro; c ta mbém po r razões de orde m geral. 2.

O s ele m e ntos seguros da bi ogra fi a de Piero, de m odo ge ra l, são es -

cassos; as obras datadas, pouquíss ima s.' Nessas condições, o pesqui sado r se se nte com o um a lpini sta diante de um pa redão de rocha nível de dificu ldade 6, li so c sem aga rras. Há ape nas um ga n cho av u lso aqui e ali: a prese nça de Pi ero na cidade de Flo ren ça e m 1439, acompa nhando Va le a pena lem b ra r o que Sch lusse r escrevia a res peito: "É de ext raordin~rio sig nificado para esse ti po de a rt ista , um dos mais puros, a no s~ o ver, qu e a biogra fia empírica não tenha n enh uma impo rtância " (ju lius von Sch lu sse1; Xe 11in. Snggi sul/a storia del/o stile e dclliii K11n88io 11cll'arft' fij{Jirativn, t rad . ital. Bari: La terza, '9)8, p. 50).

Prefácio 1981

9

Domcnico Ve nez ia no; n e ncome nda do re tábu lo da M isericórd ia e m Sa nsepolcro em 1445; o nfrcsco d e Rimini represe nta ndo Sig is mondo Ma la testa, d a tado de 1.451.; a at iv idad e em Roma em 1.458-59, d ocu mentada pelos pag a m e nto s d a Câma ra A pos tó lica .. . De res to, co njetu ras, dados in certos ou indi retos, nos m e lh o res casos, da tações pos t

quem e ante quem que deixam lacunas de década s. Em seu grande li v ro d e 1927 sobre Piero (de poi s en riquecido com acrésci m o s e rc clabo ra ções ao lo ng o de 35 anos)/ Roberto Lon g hi mos trou co mo um e xame apro fundado dos textos pictóricos pode conto rnar a pob reza da documenta ção ex te rna . Ainda h oje é com essa reconstrução fundam e nta l da biografia artís ti ca de Picro qu e temos de no s m edir. Entretan to, é inev itá ve l que, meio sécu lo após a s ua prim eira fornw lação, hoje e la se m o s t re com alg umas falh as. Exn mi nemos uma deln s: a datação dJ Fla~ elação de Urbino.' Para Longhi, o famoso quadro tinha s ido pintado por volta de -'445· Essa data ção no mínimo precoce e ra ditJda por uma interpretação d o tema do qu
XVIII

c o século

XIX,

no ambiente

de Urbino o u por est udi oso s da hi s tória u rb inate, segundo a qual o jove m lo uro de pés d esca lços representaria Odd a ntonio da Montcfe ltro, assass in ado numa co nspiração em 1444, e ntre doi s mn us co nsc lh ei ros. A Fla~e la ção d e Pi e ro se ria, assim, uma homenag em à m emória d o d uq uc, dcs
<1

interp re ta ção como um

todo certamente carece de q ua lquer fun d am e nto. Q ua nd o a inda e ra indi scutida, Long hi a aceitou como "a mai s prováve l", ju lg a ndo que a da tação implícita fosse confirmada pe los dados formais: " Por outro lado, o es til o ta mbém no s re m e te J um a é poca a nterior à dos afresco s 2

J<)

Cf. Roberto Longhi, l'icro del/a f'rnlln's ca . l l o rc n ç~ : S~ n s o n i, 196} jcd. br~s.: l'icro de/In f'rall cesw, trJd. Dcni; c Botr m~nn , prefácio Inédi to de Cn rlo C i1l/burg. São Paulo: Cosac ni fy, 2<X>71· PnrJ J dntaçiio por m im propos ta, ver Jdiant L', pp. HJl s,.

aretin os [ ... ]".4 Às va lidíssimas o bj eções (embora expos ta s com uma arg ume ntação in sa ti s fa tó ria) levantadas po r Pie tro Tocsca, que rejeitava a inte rpre tação da iconog rafia c a co rrespo nde nte datação precoce, Longhi res pondeu em 1942 confirmando sua adesão à tese e ntão canô ni ca: " E, com o a o bra é des tinada a Urbino, provavelme n te o mi s terioso tema mode rno [as figura s em primeiro pl a no! também deve ser urbinate; ass im torna-se plau s ível a inte rpretação dada pela tradi ção loca l, q ue condi z com o es tilo de um quadro li gado às obras primitiva s, e uma clara a ntecipação, e não consequ ência , dos a frescos aretin os".

É evidente qu e Lon g hi jam a is sonh aria e m ace itar sem críticas uma atribuição s urgida na tradi ção loca l depois de cem o u a té m es mo trezentos anos. Porém, em ma té ria de iconog rafia, ele e ra infinitamen te m enos exigente. Seu olhar de conh ecedor deve ras expe ri e nte foi desviado, no caso da Flagela ção, por uma pseudoprova de na tu reza extraestilís tica, com o res u ltado de imp rim ir, num ponto fundamental, uma gu inada em falso no itin e rá r io pictórico de Piero. Não em defini ti vo, porém . Voltando à questão em 1962, Lon ghi se declarou " dis pos to a adia ntá- la [a da tação! alg uns anós mai s" . Nesse m o me nto ruía a hipó tese de um a ce lebração da m orte de O dda ntonio, c se reabria o problema ico nográfi co. De qua lq uer modo, Longhi continuava a cons ide rar qu e o quadro fo ra pin tado " num a fa se anterio r aos afrescos de A rezzo".5 Voltare i adia nte à da tação do ciclo a retino e da próp ri a Flagelação. Aqui limi to- m e a a lg uma s obse rvações de ca rá ter ge ral sobre os problemas levantados pelos a rg um en tos de Lo ng hi e s uas revisões. Sa be-se q ue, pa ra Lon g hi, a datação e ra um m o me nto deci sivo na análise de uma o bra . M as suas habil idades rabdo m ânticas de conh ecedor poderi am leva r a supor, erro nea m ente, qu e datações do tipo "Crem ona, 4

5

Longhi, op. cit., p. 209; ed. bras.:, p. 371; ver também p. 25; cd. bras., p. 44: " À mesma época, provavdml!ntl! pouco depois de 1444, ano da m o rte de Oddantonio da Montcfeltro, a cujo infelicíssimo desti no pa rece provavelme n te aludir, pertence o peq ueno q uad ro da Flagclnção de Cristo ... ". Cm a m bos os casos, com o se vê, é a intcrprl!taçiio iconog ráfica (definida como "verossímil", " a mais provável " ) que não s<Í introduz, mas fundamenta a proposta de datação. ld., ibid., pp. 196 -97; cd. bra s., pp. 362-63 (para a resposta a Tocscn; so bre suas o bjeções, ver ad ia nte, p. Ih). Parn a rev isão de 1962, ver id ., ibid., p. 2
Prefácio 1981

11

1570"6 re m etiam única c exclus ivam e nte a co ns ide ra ções es tilísticas. Na ve rd ade, e las se baseavam no contro le simultâneo d e múltiplas séries doc ume ntai s: o es tilo, a biografi a, ta lvez as m o lduras, com m e nos frcquê ncia a iconografi a, e assim por diante. Ora, é evidente qu e qualqu e r p ro posta de da tação s upõe a co n ve rgê ncia das res ultantes estilísticas e extracs tilísticas: m as essa con ve rgên cia, esse " aco rdo" (pa ra usa r a exp ressão de Lo ng hi ), é um ponto de chega da, c não de partida. Que sé rie de dad os, na estra tégia concre ta da pesqui sa, tem m a io r peso c, assim, d ita as condi ções do acordo? A respos ta há de va ri a r necessa ria m e nte co nforme o caso. Nes te q ue esta m os exa min a ndo, e la é ineq uívoca : a sé rie cx tracs til ística c, m a is precisa m e nte, os dados ico nográ ficos. É signifi ca ti vo qu e, antes de s ua re visão de 1962, Lo ng hi sempre ini ciasse a discussão sobre a datação do quadro com a ide ntifi GlÇão da ico nografi a. De fato, in te rp retada co m o cele bração da m o rte de O ddanto nio, e la fo rnecia um e le m e nto de datação bastante preciso- uns do is anos, no m áximo, após 1444. (É de se ex cluir que Fcdcri co da M ontefe ltro, provável comite nte do q uad ro desde que se acolh a a in te rpretação em pa u ta, esperasse muito tempo pa ra ce le brar a mem ó ria do irm5 o assass in ado.) No e ntanto, a pa rtir da a rg ume ntação de Lo ng hi , fi ca evide nte qu e os dados estilís ti cos lhe o fe reciam urn a indi caç5o crono lógica muito men os exata: "a nterio r aos afrescos a rc tinos", " cla ro p re n ú ncio, c não conseq uê ncia, dos afrescos a rctinos" . A este limite ante quem, seg undo Lo ng hi co rres po nd e nte ao a no de 1452, acrescentava-se um limite post quem, impl ícito: as partes m a is anti gas do retábul o da Misericó rdia de Sa nscpolcro, e ncomendada e m 1445 c execu tada ve ross imilme nte no m esm o a no o u logo de po is. Isso s ig nifica que, no caso da Finge/ação, Long hi se e nco ntrava e ntre a a lte rna ti va de uma da tação com m a rgem de e rro de do is o u t rês anos n o m áxim o (so bre bases iconográfi cas) c o utra com m argem 6

C f. Cianfranco Con tini, "S ulml·todo di Roberto Longhi ", in 1\ltri csercizl ( I<J42- 1971 ). Tu ri m: [inaudi, 1972, p. l O). Sobre as irnplicaçües " divinatórias" da atividade do con hecedor, cf., de minha autoria, " Spic. Radici di un paradigma indi71ario", in Crist del/a ragivru•, Aldo Cargani (org.). Turim: l:inaudi, 1979, pp. <;7- 1o6 lcd. bras.: "Sinai s: raízes de um paradigma ind ici<Írio ", in Mitvs, t•m/J/e,ws, sim11s, trad . redcri co Car0111 . São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 14 }-791·

12

de erro dobrada (cerca de sete a nos). Pa ra um estudioso pro penso a evi tar ao máximo as datações aproxim ativas, o problema e ra estabelecer se a primeira e ra compatível com a segunda: co mpatível, não coin cide nte, pois, como vimos, não e ra o caso de se fala r em coincidência . O comen tário de Longhi, segundo o qua l a interp retação da ico nog rafia da Fla -

gelação é referida a Oddantonio/ poderia leva r a supo r e rro nea m e nte qu e as du as séries, a iconográ fi ca e a est ilísti ca, tivessem o mesm o peso em relação à datação. Ma s é claro que, nes te caso, a ini ciativa ca bia à primeira (quando a iconografia é fo rtem e nte es tereotipada, pode se dar o contrário). A " forma " exercia uma espécie de direito de ve to - qu ando a hipótese iconográ fica se mostrasse in co mpatível com as res ultantes estilísticas; mas a pro pos ta de datação exa ta n ão podia provir senão da iconografia. Fo ram necessários, com o v im os, 35 anos pa ra que ca ís se o veto impos to pe las res ultantes estilísti cas, leva ndo Lo ng hi a abando nar s il enciosa m ente a absu rda interpretação iconog ráfica ligada ao nom e de O ddan tonio e a respecti va datação. N esta dem ora talvez se possa discernir uma espécie de crédito que mesmo o conhecedor (e até um co nhecedo r co mo Lo ng hi ) concede às poss ibi lidades de data ção precisa o ferecid as po r uma ico nog ra fi a que parecia remeter a um evento externo docum entado. Tra ta -se de uma prudência em ge ra l jus tificada (mesmo qu e não o fosse nes te ca so específi co). Ao afirmar isso, não se pretende, nat u ralmente, diminuir os g randes êx itos obtidos graças aos mé todos de datação es tilís tica ou cultura l no cam po da história da arte, da história dos povos sem escrita o u da história dos povos que lega ra m tes temunh os escritos esca ssos o u indccifráve is.8 C umpre lem bra r, po rém, que as da tações ba seada s exclu s iva me nte e m fatos est ilís ticos dão luga r a afirmações do tipo " x" an tes de " y " c depois de "z", ou seja, a séries crono lóg ica s relati va s. Só é possíve l co n ve rter esse " antes " e esse " depois" 7

8

Long hi, op. cit., p. 148; .:d. bms., p. JJS." Pois, se podl.'mos acei tar (c tiio so me nte po rque a ssim nos perm ite a for ma .:stilística) a o bservaçã o d.., que a Flngelnçtio, devido à sua provável refe rê ncia à mo rte de O dda nton io, só pode te r sido pin wda po uco te mpo a pôs esse fat o, ocorrido em 1444 [ . .. ]" C f. George Kubler, The Slzape o/ Ti 111 e. Rellzllrks 0 11 tlze History of Thi 11gs . Ncw ll aven/ Lon d res: Yale Uni ve rsity Press, ·1973, p. 14 .

Prefácio 198 1

13

em indicações cronológicas abso lutas- ta lvez até ad annum- se a análise estilís ti ca se enganchar co m eleme ntos de datação externa. A deliciosa pre te rição co m q ue Lo ng hi concl ui seu e nsa io sob re um a crucifi cação d a juventude de Benozzo Gozzoli -"E é co m esfo rço q ue m e contenho para não acresce ntar: e m M ontefalco, em l45o"9 - pressupõe a data, declarada e não conj etura!, dos a frescos de Benozzo em Montefalco. Entreta nto, se se remete a ob ras datadas, por sua vez, sobre bases estilísticas, é mui to gra nde o ri sco de ca ir e m círcu los viciosos, fo ntes de o utras datações e rrôneas. Veja -se, po r exem plo, a última rev isão de Lo nghi sobre a data da Flage lação . Rej eitada tacita m e nte a falsa precisão de um a data que se baseava num a interpretação iconográfica errada, Longhi se limitava ago ra a re ite ra r a ante rioridad e do quadro em relação ao início do cicl o de Arezzo. M as em que ano Piero começo u os afrescos de Arezzo? A resposta m a is prude n te é: após 1452, ano em qu e m o rre u Bicci di Loren zo, que hav ia inicia do a decoração do coro de Sa n Francesco (mas há quem co ns ide re qu e Piero possa ter s u bs tituído Bi cci, então doente, algu ns anos antes) . A verdade é que Longhi transformou esse limite post quem numa data absoluta, basea ndo-se na p roxim idade estil ística e ntre as partes mai s a ntigas do cicl o a retin o e o af resco de Rimini, datado de 1451 (eis o ga ncho), representand o Sigism ondo Mala tes ta ."' No en tanto, a passagem para a datação abso luta é evidentemente arbitrária, porque não sa bemos com que velocid ade o es tilo de Piero se tra ns fo rmo u naqueles anos. Ao voltar à data da Flagelação, vemos que o limite ante quem "a ntes do cicl o de Arezzo" remete, por sua vez, a um

9

Longhi, ''/'ntti di Masolin o <'di Ma sacio" c 11/tri studi sul Qtwttrorcnto. 1975 (Opere co111pfcte, vtnh ), p. 12.7 .

~loren ça : S a nsoni,

1o C f. Longhi, Piao, op. cit., p. 1oo; cd. bras., p. 296: " tendo Bicci di Lorcnzo morrido em 1452, depois de quase ter concluído a abóbada do coro de San rrancesco de Arczzo, igreja esta que a família 13acci queria inteiramente ornamentada de pinturas, vemos Piero s ubs tituí- lo, segundo toda s as probabil idades, quase imediatamente. Isso nos é confirmado peb raziío intuitiva de que, se houvesse algum g rande intervalo n as obras, certamente niío teriam bltado pintores do nível de 13icci di Lorenzo para completar as poucas partes que ele havia deixado inconclusas na a bóbada c no intradorso de entrada c executar todo o restante, ao passo que mes mo essas pequenas lacunas, como vimos, foram preenchidas justamente por Piero; o mesmo parece- nos dizer explicitamente o afresco de Rimini, que, em 145 1, jâ é amplo, sintético, maduro co mo os afrescos aretinos".

limite post quem (depois de 1452). Tentarei mais adiante demonstrar que esta data, frágil po r s i só, deve se r corrigida tanto no pl a no da cronologia relativa quanto no da cronologia absoluta ou calendarial.

.3· Tudo isso m ostra co mo é difícil, mes mo para um excepcio na l conh ecedor como Longhi, datar um a obra sobre ba ses excl us ivamen te estilís ticas à falta, ou à escassez, de dados documentai s exte rnos. É uma difi culd ade que se apresenta para quase toda a atividade de Piero (con vertendo-o num caso de grande impo rtâ ncia metodo lógica, até independe nte de s ua excelê n cia artís tica). A s pro pos tas de datação da Fla-

gelação oscil a m num a rco qu e chega a trinta a n os; alg un s estudiosos con sideraram o Batismo como obra da maturidade, c não da prime ira ju ventude; e a ss im por diante. " Em muitos casos, trata-se de datações abs urda s, e m es mo ass im são propos tas - se m que, digamos, sejam ex pul sos do g rupo de cultores da área. Mas quem n egasse a atividade de Piero em Rimini e m 1451 ou em Roma e m 1458-59- certifi ca da, respecti va m e nte, por um afresco com data c pelos reg istros da Câ mara Apos tólica - se a utocx cluiria do debate cien tífico. A menos qu e demo ns tra sse qu e a data é fal sificada ou que o regi stro es tá in co rreto - o qu e, em teo ria, é possíve l. Contud o, nes te caso, o ôn us da prova ca be a quem pretende apontar a fa ls ifica ção o u a inco rreção. Em verdade, na datação, a co rda da le itura es til ís ti ca es tá sempre amarrada, com res ultados m a is o u m e nos co nvincentes, nos ga nch os docume nta is di sponíveis. (Isso implica, a meu ver, o reconh ecimento tácito da m e n o r co nfi abilid ade dos dados est ilís ticos para finalid ades de uma datação precisa.) No caso de P iero, é indispe nsável multipli ca r os ga nchos: ou seja, tira ndo a m etá fo ra, e nriquece r o exíg uo doss iê da documentação ex te rn a - e m prime iro luga r, aquela qu e se refere aos comitentes.

., J

Sobrl.! as dificuldades colocadas por tal si tuação, insistiu l.!ficazmen te Crcig hwn Gi lb<.!rt, Clwngc in Piero del/a Trnncesw. Locus t Va ll ey (Nova York): lnstitute o f fine Arts, 1968.

4· A in ves tig <1ção d oc um e nta l sobre o s co m ite ntes d e Pie ro se de teve, na ve rdad e, nas p rim e ira s d éc<1da s d o século xx: e m s um a, n o e nsa io de G ius eppe Z ippel, q ue d e m o n s trav<1 <1 a ti vid ad e e mp ree ndida em Ro ma ao se rviço d e Pi o

11. "

U m es tud o co m o o de Ma rio Sa lmi so -

b re os co mite ntes do ciclo d e 1\rez zo, d e <1 lg un s a no s a ntes, não teve p rosseg uime n to - ne m po r aqu e les que, como C re ig hto n G ilbe rt, te ri<~ m a possibilid ade de f<1 zê- lo, com o ve re m o s.' 1 Q ua nto

à re lação d e

fon tes bi og ráfica s qu e con s titui a par te ta lvez m ai s ú til da vo lum o s<1 mo nografia de Euge ni o Batti s ti, e le fo rn ece no vos e lemento s so bre o s períod os d e pe rma nê n cia d e Pi ero e m Bo rg o Sa n Se po lcro, m as n ão so b re a d<1 tação da s o b ras (exce to u m ofício s ob re o re tá bulo d<1 M iscricórdia ). '4 Em vez d e reco nstrui r o comiss io na m e nto das o b ra s a Pi ero co n1 b<1 se em docu m e nto s de arq ui vo ou de bi bli o teca, muitas vezes tem-se o ptado po r decifrá- lo a tr<1vés d<1 s pró pri as o bra s: m a is precisa m e nte, co m base em s ua ico n og ra fia. N o s Cdtimos an o s, de fato, as pe squ isas ico nog ráfic<1 s o u (pa ra utiliz a r o te rm o qu e entro u e m uso) icono lógicas " sob re Piero de lla Fra ncesca tê m s ido nume rosas: a lg umas ó t im
1 2 C f. C iuscppe l.1ppel. " Pino ddl.1 I ra11n·sc.1 a Rom.1 ", 111 la .1 bcrra, m.1~ n:io dcsen volv1m, 2 vol. M il:io: ln ,.r. Editoriale lwlia no, 197 1. A rdação de fontes documentais, organi/,lll.t por l:nzo Selle>oldi, ocu p.1 as pp. 2 11-46 do segu ndo vol u me. Sobre o ofíc1o cb mrnpanhia da M i>ericôrdia, com b.1se nas o bserv.Jçôes de ).unes lkck. "Una data per Pino dclb l'ra nce>r.l", 111 l'rospcllil'a, 1:; j 197!l!, p. 'i}). 1'i Sob re ,1 p rog ress iva iden ti fic.Jçâu e n tre iconu log ia c .rn .íli sc ico nogd fic.l por pa rte do prc'>p rio l' rwin Panofs ky, ve r a int rod uçiio dc Cio van n i l'rev it ali a r rwi n P.lnof; ky, Studi di im11olosia. I temi ttmlllli>llt'III<'JI'a rtr de/ R111t"''"'"'IIIO, t r.J
16

dá a impressão de que a dificuldade do controle torna lícita qualquer conjetura nesse campo.' 6 Essa dificuldade con sis te no seguinte : as a lusões, não raro muito complexas, decifrada s pelos iconólogos nas obras de Piero, postu la m a existência de programas específicos suge ridos ao pintor pelo comiten te ou por um intermediário deste. Mas não restaram vestígios desses programas, talvez porq ue tenham sid o comunicados oralmente, e não por escrito. Até aq ui, nada d e extraordin á rio: de fa to, é mui to raro encontrar programa s iconográfico s pormenorizados a nteriores a meados do século

XV I.

Poré m , o risco d e con struir cadeia s inte rpre tativa s circu la-

res, baseadas apenas em conj eturas, é muito grande. O s e los da cadeia se remetem uns aos o utros e a ca dei a toda gira no vazio (a semelhança com os ri scos da datação que seguem critérios exclus iva mente estilísticos é evide nte). Como aco ntece e m muita s pesquisas iconológicas, a obra acaba por se tornar um p re texto para um a série de associações livres, em geral basea das numa preten sa decifração simbólica. Outras pesquisas - por exemplo, sobre a cultu ra ca mponesa, em que predomina a o ra lidade, das sociedades pré-industriais - enfre ntam problemas similares.'? A sa ída não é a eliminação, mais ou menos tácita, da exigência de um controle documental, c sim a elaboração de ins trumentos de controle adequa dos. Com isso não se pretende (fiqu e bem claro) reduzir a ati vidade do intérprete à ide ntificação dos sign ificados explícitos atri buídos à obra pelo pintor ou pelo comitente. No entanto, sem essa identificação prelimina r, o intérprete corre o ri sco de ap rese ntar suas próprias elucubrações como um enriquecimento ou um aprofundamento das obras de Piero (ou, digamos, de Ticiano). H oj e em dia são freq uentes os exem plos

16 Ver o que esc reve so bre os " icon ó logos indulge ntes" Salvato re Setti s, La "Te111pes ta " in terpreta/a. Giorgione, i CO IIIIII iffenti. i/ sogy,e ff o. Turim : Einaudi, 1978, pp. 15 -11í. Settis c cu fo mos definidos por Ba ttis ti com o "casos paté ticos de neowa r burg uia nos ri go ris tas de reto rno " (cf. Teoria e prn tiche del/a critica d'a rte, A li i dei con vegn o di M on teca tini maggio 1978, Eg idio Mucci c Pie r Luig i Tazzi (orgs.) . M iliio : Fc ltrinclli, 1979, p. 241 ). 17 Cf. Pcte r Bu rkc, Cultura popola re neii'Europa mode m a. Miliio: M ondado ri, 1')80, pp. 79-80, l ' meu prefácio, pp. rx-xr jcd. bras.: A cu ltura popular na Ida de Mode m a, trad. Den ise Bottma nn . Siio Paul o: Compa nhi a das Letras, r989 l·

Prefácio 1981

17

dessa presunção.' 8 Por isso, tanto mais oportuna se revela a proposta, formulada por Gombrich, de parti r da aná lise não tan to dos símbolos, c sim da s instituições o u dos gêneros, pa ra evitar ca ir naq uilo qu e poderíamos cha mar de ico nologia sclvagem .' 9 Existe, po rém, outro elemento de con trole que permi te estreitar ai nda ma is o leque das interpretações possíveis: a in vestigação dos comi tentes. É claro que, se estes são ra streados com base na interpretação icono lóg ica da o bra, voltamos a nos encontra r em pleno círculo vicioso. Não resta se não conduz ir a pesq u isa simul ta nea mente nas duas frentes, a do comissiona me nto e da iconografia, integra ndo os dados da s duas séries. É isso que procuro faze r nestas pági nas. 5· Para mostrar os limites de uma le itura purame nte estilística das pin tu ras de Piero (e, po r exte nsão, das obras de arte em gera l), parti mos do probl ema da da tação. Isso com g rande pro babilidade será a tribuído ao vício profissional do histo riado r que, diante de qualquer testemunh o (incluída s as pintura s), pe rg unta e m prime iro luga r " qu ando?" (c, logo a segui r, "o nde?" ). Mas, é claro, a datação cons titui apena s o primeiro pa sso para uma lei tura his tórica de uma o bra de arte. As sé ries de dados cxtracs tilísticos refe re ntes à icon og ra fi a e aos com ite n tes, que propom os exa min a r para integrar as res ultantes da investigação estilís ti ca, co locam co m vigo r a ques tão (t ri v ia l, ma s não menos rea l) da relação en tre a obra de a rte c o contex to socia l e m que ela na sce. Prefe rimos colocar a ques tão a pe nas nes te momento, e m certo sen tido de for m a indireta: is to é, pa rtind o de um a exigência e lementa r (a da datação), m as inc li min ável para qua lqu er pessoa que ten ha uma relação com a s obra s de arte q ue não se esgote n a pura frui ção cs teticizante. Pela seg uinte razão: muitas vezes, as conexões e nt re o bra de arte r8 O primado, neste sentido, cabe (por o ra) a Ma uriz io C'a lvesi, "S istema deg li equivalenti cd cq ui valc nze dcl S iste m a in Pie ro della fra ncesca ", in S toria drl/'artr, 24-25 (1 975), pp. 8)r ro. Parn a distinção en t re sig nificados expl ícito s c sig nifi cados imp lícitos, ver o prefácio de Previtali a Panofsky, o p. cit., em esp. pp. xxrv ss. (sobre a discussão e ntre Pa nofsky c Piicht). 19 C f. Ern st Hans Gombrich, "Aims a nd Limits o f lco no logy ", in Sym bolic l111ages. Studies in til(• Art of tir e Renaissanrt>. Londres: Phaidon Press, 1972, pp. 1-25 (trad . ita l., Jmm agini simbolid rc. Studi sull'artl' nt>l Rirwscimt>nto. Turim : Eina udi, 1978, pp. 3-37)·

e co ntexto são co locadas e m te rm os bruta lmente s implifi cados- por exemplo, co mo ocorreu há po uco, vendo po r trás da pintura de Piero delt a Francesca " a Úmbria ag rícola e patriarca l" .w Diante dessas estére is va riações e m torno da m e tá fora (en1 s i já in feliz) da "es trutura/supe restrutura", é claro que os estudiosos m en os in teressados, o u francamente hosti s po r razões ideológica s a uma história socia l da expressão artística, ficam com bo ns trunfos na mão. Muito mai s difícil de rejeita r pre limina rm ente (mo s ta mbé m muito ma is traba lhosa c á rdu a de e m p reender) é a reco ns trução a na líti ca da intrincada rede de re lações micro scóp icas que todo p ro duto a rtís tico, mesmo o m ai s e lem e nta r, press u põe." Mu itas vezes é necessá rio, com o

vimos, um exam e co mbinado da s escolhas es tilís ti ca s, dos m ódu los iconográficos e da s re lações com o s comite n tes mes m o pa ra aq uela o pe ração his tórica prévio que é a da tação. A m e ta, in finitam ente m ais ambiciosa, de uma hi s tó ria social da exp ressão artística só pode rá se r alca nçada inte ns ifica ndo-se tais a ná li ses- e não com pa ra lc li s m os s umários, mai s o u m e nos forçados, entre sé ri es de fenôm en os a rtísticos e de fenô menos econômico-sociais. Quem se en ca minho u com maior decisão neste rumo foi Aby Warburg. Seus ensaios 22 a testa m uma ampli t ude de visão e uma riqu eza de instr umentos analíticos q ue re metem a penas em pa rte à decifração dos s ímbolos co m a qua l veio trad iciona lmente a se identificar o " método warburgu iano". A esse respeito, ca be no tar, aliás, que a atenção ao contexto social e cu ltural específico m anteve Wa rburg a sa lvo dos excessos in te rpretativos 20

21

22

Giuvanni Previta li, " La periudizzazionc dcl la sto rin dcll'arte italiana", in Storia rlell'nrte italia w1, Turim: Einaudi, 1979, 1, 1, p. 46. Po r se u lado, Calvcsi descobre uma corre spondê ncia en tre "o convi te pierofranccsqu ia no ao centrali smo" e a " prim..:ira organização de um sistem a de trocas (às vésperas da burguesia c da preparação parn a po.: rs pcctiva capitalista )" (op. cit., p. 84). A a valiação pos iti va das possibilidades oferec idas po r es ta s inves t i gaçõ e~ an a lítica s não é compartilhada por Enrico Castelnuovo no importante ensaio " Per una sroria socia le dcll'a rtc" (in Paragone, J ' J [1976[, pp. J-)o; J 2) [1977], pp. )-34 ). C f. Aby Warburg, Oie Em euen111s der lleidni,c/n·rr !l ntike, 2 vol. Leipzig/ Be rlim: Akadem ie Verlag, 1932 (tmd . ira !., La rirw scita de/ pagan es irno antico. Contrilmti alia sto ria del/a cultura, Gert rud Uing (o rg.). Florença: La Nuova l ralin , 1966; trata -se do: uma se leção muito ampla, que inclui a p ri m e ira tradução integral de uma confe rência também referente a Picro: cf. adiante, p. 7'1, n ora 6o).

Pnfácio 198 1

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em que, alg umas vezes, veio a inco rre r até m esm o um estudioso do po rte de Erwin Pano fsky (para não falar de alg uns de seus continuadores). Ma is próximo do espírito das pesquisas de Warburg é um liv ro como o de Michael Baxa ndall sobre a pintura italiana do Quatroce ntos, em que o estilo é exa minado e m suas relações com situações e experiê ncias sociais con cre tas, com resultados muito orig inais. ' 3 6. Foi-se o tempo e m qu e os histori adores acreditava m que dev iam t rabalha r apenas com tes temunhos escritos.

Já Lucic n

Febvre s ugeria exa-

min a r as plantas, as formas d os ca mpos d e lavoura, o s eclipses da lua : então por que não pinturas, po r exemplo, com o as de Pie ro? Afinal, elas també m são docum e ntos de his tória po lítica ou relig iosa. Certame nte já se fa lo u de m a is (sem se pratica r, na m aioria das vezes) em pesquisas interdi sciplinares; ma s é inegá vel qu e hi s toriado res c his toriado res da arte tê m to dos os m o tivos para tra balhar j untos, cada qual com seus instrum e ntos e compe tê ncias própria s, a fim de chega r a uma compreen são m a is aprofundada dos tes temunhos fi g urativos. 24 Para quem se co loca numa pers pectiva decla radam e nte his tórica, a decisão d e não e n tra r no terre no pro priame nte estilístico não deveria despe rtar objeções. No e n ta nto, os métodos c o bj etivos desta pesqui sa m e parecem se r o utros, ta lvez m a is ambiciosos. Obrigado a enfrentar os limites de m inha formação, qu e m e impedia m um t ratamen to cons umado do estudo da pintura de Piero, procurei evitar ta nto a compa rtim e ntação co m o a fu são e ntre as di ve rsas disciplin as. Pre fe ri adotar a a bo rdagem de q uem faz uma inc ursão num ca mpo, por ce rto não inimigo, mas sem dúvida estra nho. Se ti vesse utilizado as pinturas d e Pi ero com o tes te munh os da v ida re lig iosa quatroce ntis ta ou se tivesse me limitado a reco ns truir 23 C' f. Michacl 13axandall, Pai11tit1g a11d C:xperietlrl' i11 fi fteet1tl1 Ce11t11 ry Jtaly. Oxford: O xford University Press, 1972 (trad . ital., Pitt11ra ed l'spa iellZl' sacia/i nrll'Jtalia de/ Quattrocen to. Turim: Einaudi, 1 978). 24 Sobre os testemunhos figurativos como fontes hi stóricas, fi 7. uma contribui ção em outro con texto (" Da A. Wa rbu rg a E. H. Gombrich", in St11di m edievali, s. J~, vu [1966], pp. 1015-66, agora em Miti emldem i spie, Turim: [inaudi, 1992, pp. 29-106) [cd. bras.: " De A. Warburg a E. H. Gombrich: Nows sobre um problema de método", in Mit os, emblemas, sinais, op. cit., pp. 41-93 [.

20

o círculo dos comiten tes are tinos, poderia ter esta belecido relações prova velme nte pacíficas com a corpo ração dos historia dores da arte. Mas desenhar uma imagem de Piero diferente da esta belecida - m esm o na cronolog ia de a lg um as de s uas p r incipais obras - poderá soa r com o uma provocação. Com certeza não falta rá alg um Apeles 25 a m e dizer que eu volte ao luga r qu e m e ca be. Como linha de princípi o, julgo qu e tais incursões deveriam se multiplicar. A insa tisfação com a compartime ntação entre as disciplinas, tida como artificia l, te nd e a se traduzir na jus taposição (com o disse, m ais apregoada do qu e p ra ti cad a) dos res ultados de dive rsas á reas. Muito mais úteis do que essas conve rgências nos pontos de ch egada, qu e deixam tudo co m o es tava antes, seria m as divergências em relação a problema s concretos- por exemplo, o da datação e interpre tação de o bras específicas, com o propom os aq ui . A penas assim será poss ível, de fato, recol oca r em discussão os in strum e ntos, as á reas e as ling u age n s de cada disciplina. A com eça r, sem dú vida, pe la pesquisa hi stó rica .

Agradeço viva m en te a Augusto Ca mpa na, a qu e m submeti os primeiros resu ltados desta pesquisa; a d om Agn ole tti, qu e me g ui ou no Arquivo da Cú ria d e Sansepolcro; a G iorgio E. Ferra ri, M icaela G ua rino Buzzo n i, Marité Hi rsch koff Grendi, Piero Lucch i, Cr istin a M u ndici, Agostin o Pa rav icini Baglia ni, Vittorio Peri, Odile Redon, qu e m e ajuda ra m a local iza r as ilu st rações; aos es tudantes bolonh eses com q u e m m anti ve fecu ndas di scussões no se m inário de 1979-80, qua ndo o tra balho estava e m elaboração . Entre os a migos qu e lera m a versão da tilog rafada, me ncio no em particular, com mu ita gra tidão, Enrico Castelnuo vo, Gia nni Ro ma no c Sa lvatore Settis, que me a ponta ram e rros e imprecisões. Bolo nh a, março de 1981

25 Consta que Ape les teria dito a A lexa ndre, o G rande, q ue e ste niio en tendia nada de pintura e que melhor fa ria se niio fala sse sobre o que não conhccia . ]N.T.]

Prefá cio 1981

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Prefácio (1994)

In ves tiga ndo Piero foi publicado e m 1.981., como título ina ug ura l de uma coleção hoje ex tinta: " Micros torie" [M icro- his tória sl. A edição aqui relançada na coleção "Saggi" [Ensaios], m ais de dez anos depoi s, é diferente não só da primeira , mas também da te rceira (1982, com vá rias re impressões), que trazia uma nova introd u ção. ' Enriqueceu-se o apar ato ilus trativo; o texto foi corrig ido em vá rios pontos c acrescentaram -se qua tro novos apê ndi ces (dois j á publi ca dos em r evis tas, dois inéditos) . O s dois iniciais reitera m o u corrigem, à luz de objeções minh as ou alheia s, as co nclusões qu e form ul ei no passado; os doi s últi mos ana li sa m um proble m a his tori ográfico e a lg umas de suas implicações teórica s. 2 O s quatro abo rdam de vários pontos de vis ta a pergunta que estava na origem de minhas investigações.

2

As traduções para o a lemão e o espanhol foram kitas a pa rti r da pr imei ra edição. As tradu ções para o ing lcs e para o fra n cês incorporam a s co rreções introduzidas na te rce ira edição. A t radução pa ra o japonês e para o portug ucs seguem o te xto aq u i presente. Renunciei a uma at ua lização bibl iográfica que in cl uísse as pu bli cações la nçadas nesse ínterim, q ue se mu ltiplica ram muito por causa do quinto cente ná rio da morte de Piero em ·r992: res u lt aria num ou tro liv ro.

Prefácio 1994

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Gos taria de retorna r rapidam ente a essa pe rg unta. De fato, ten ho a impressão de que ela foi m a l-e nte ndid a o u ig n o rada pelos que di scutiram este li vro (co m uma exceção que logo com e nta re i), em gera l pa ra rejeita r suas conclu sões em pa r te o u no todo. Logo nas primeiras linh as do prefácio à primeira edição, avisei que não discutiria os " aspectos propria m e nte formai s" das obras tratadas (o Batismo de Cristo, a Flagelação e o ciclo de Arezzo), m as ape nas o comissio na m e nto das obras e da iconografia. H o uve que m escrevesse qu e, "seg u ndo !minh a] pró pria admissão, ig norleiJ todos os fatores ' artís ticos'"; o utro menciono u os dados sobre os possíveis comi tentes e inspiradores de Piero, defi nindo-os com irôn ica s upe ri o ridade com o " inform ações a que mais se atém a mi cro- hi s tó ria da arte " .J Gos ta ri a de observa r com humildade que mi nha experi ê ncia e ra um pou co m a is complexa. A co ntrapos ição, m eramen te m etodo lógica, entre a spectos formai s (não "artís ticos", po r favor) e ex trafo rmais tinha um o bje ti vo ambicioso: e ntrar num te rre no, o da crono logia das obras, qu e os conhecedo res sempre reivind icara m como á rea s ua. O único estudioso q ue di scuti u as implicações dessa estra tégia de pesqui sa foi, sa lvo e nga no m e u, Giovanni Ro m a no. No prefácio à seg unda edi ção de seu s Studi sul pacsaggio lEstudos sob re a pai sage m!

(1991.), ele obse rvou, re tomando uma metáfora que e u usa ra, que "o proble m a do 'con trole' deve se r e nte ndido e m condições de reciprocidad e e o 'ga ncho' his tó rico c es tilís tico da atividade de Piero dcll a Francesca e m Rimini, e m 1.451, deve preva lece r sobre os in dícios fo rn ecidos pelos comite ntes, sejam e les ve rdad eiros ou prováve is". 4 A questão, a prese ntada nesses te rmos, logo se evapora: é óbvio que os indícios tê m m e nos peso do qu e uma data precisa. Entreta nto, o pa r de adjeti vos " hi s tórico e esti lís ti co" ocu lta uma difi culdade: a mesma que abo rdei em dois tex tos m e ncionados por Romano, a introdução a 3

4

24

Cf. res pect i v~rnc ntc Maril y n Aronbcrg Lavin , Piero del/a fra11 ccsca: t/1(: Flagellatio11, nova cd., Novo York : Uni v. o f Chi cago Prl'SS, 1990, p. 1 oy "by h is own ad mi ss ion, hc [c.c.] ignores ali 'art ist ic' facrors"; C a rio Berre li i, Picro del/a fran cesca. Mil 5o: Rizzoli, 199:1, p. 123. Giovanni Romano, Studi sul pat'saggio. Turim: Einaudi, 1991 (2~ cd.), p. xxv1 1.

este i nvestiga n do Piero c o e nsa io " Da tação a bsoluta c da tação rela tiva: sobre o m étodo de Longhi " (aqui re prod uzido com o Apêndice 1v). Sem dúvida, o estilo é um fen ôm e no hi stó rico e, enqu anto tal, está ligado a um contex to tempora l, em prin cípio verificáveJ.s M as a da tação dos fa tos estilísticos pode se prende r a uma cr on ologia absoluta, de cale ndário, apena s por m e io de fa tos ext raestilís ticos, com o a da ta in scrita no afresco de Pi e ro e m Rimini, po r exempl o. Não m e cansa rei de re petir qu e, sem essa da ta, o a fresco não pode ria constit uir um "gancho ", u m ponto de re ferên cia indiscutível (pelo m en os até prova em con trário) para a crono logia a bso lu ta das o bras de Pi ero. 6 lsso não signi fica qu e a hi stóri a da a rte sej a uma di sciplin a à de ri va o u que o juízo dos conhecedo res seja m a is frágil do qu e o dos his to riado res.? Po rém , o cará te r re la ti vo das datações pura m e nte es tilísti cas co loca cl a ros limites

à sua capacida de de m on s tra ti va. A da ta "1459", pro posta por Lu cian o Bell os i como limite an te qu em pa ra a conclu são dos afr escos de Picro em Arezzo, pa recia incontes tável (num primeiro m o m e n to, n1esm o a mim ) po rqu e se a po iava num dado decid ida m e nte cx t raes til ís tico: o ano da m orte de G iovanni di Fr an cesco, o a utor da predela q ue de ri va desses afrescos. Tra tava -se, em term os aristo télicos, d e um t ekm erion , de um a prova n atu ra l c n ecessá ri a, intrin seca m en te m a is sólida do que as seme ia, isto é, as provas indi ciárias q ue fa zem pa rte da p rática cog nosciti va no rma l dos his toria do re s, da arte o u n ã o. ~ Na tu ra lmente,

5 "Pa ra quem se coloca numa perspectiva d ccla radamcn h: histórica, a decisão de nno entrar no

6

7 8

terreno propriame nte es til ís tico não deve ria despertar objeções": ao citar essa fra se extra ída do prefácio a este volu me, Romano observa que, com isso, cu parecia " relegar o estilo para fo ra do 5mbito his tórico ou historicizávcl " (id., ibid., p. xxtv). Fi caria claro que isso está abso lutam ente di s tante de minhas intenções se a citação, arbitrariamente truncada, também tivesse incluído a fra se su bsequen te: " Mas os métodos c objetivos desta pesquisa me parecem se r outros, talvez mai s a mbiciosos" (segue) . Somen te po r desa te nção 13e rtelli pode e screver que "é preciso certifica r que Picro j á e stivesse estado em Rimini qua ndo começava a tecer s ua h istória de rainhas c imperatrizes nas paredes de Arczzo" (Bcrtcl li, op. cit., p. 88): tanto é verdade que, e ntre os a frescos invocados para dar a óbvia respost·a afi rmat iva, fa lta j ustamente o de Rimini. Essa s hi potéticas acusações foram devidamente repelidas por Romano, op. cit., pp. XX IV e XXV II. Sobre este ponto, remeto a m eu e nsaio "A ristotele, la storia, la prova ", in Q uademi storici, XX IX (1994), n . 85, pp. 5-17.

Prejácio1994

25

m es m o as provas necessárias precisam se r s ubmetidas a um controle an alíti co: no Apêndice

1,

explico por que, a m e u ver, a da ta da m o rte de

G iovn nni di Francesco e a argumentação ba seada n ela não se s us tentam . Co nt udo, mesmo aq ui procurei fri sa r, para além dos dados de fa to, uma questão de ordem ge ral: a impossi bilidade de fa lar de fenômenos artísticos numa pe rs pecti va hi s tó ri ca sem entrelaça r dados es tilís ti cos e dad os extraes tilís ticos. Essa qu es tão pode parece r um a o bviedade, m esm o que a lg uns a contes te m . M as suas impli cações his tórica s c teóricas, exam in ada s nos Apê ndices

Ill

c

IV,

não são ó bvias. Para o jovem Lo ng hi, futuri s ta e

(como mostrou Cesa re Ga rboli) ge ntiliano, o a rti sta é uma s igl a aposta a um a sé ri e de ob ras s ituadas num tempo abs trato, es tranho a o te mpo profa n o do ca le ndá rio; para o Lo ng hi da m a turidade, sé ries estilís ticas e séries cxtraes ti lís tica s se co nfronta m e se integra m mutuam ente, e o artista co me, bebe c se ves te ao lado de patro nos e m a rceneiros. Nesta tran s ição, a descoberta da trajetória de Piero de ll a Fra ncesca a Céza nnc, ocorrida g ra ça s a Bernard Berenson e, de m a ne ira indire ta, a Gertrude S tein c Picasso (Apêndi ce

111 ) ,

teve um peso deci s ivo.

H oj e pnrece-me inevitável qu e, m ais cedo ou mais tarde, minhas investigações sobre Piero se convertessem também em investigações sobre Lon g hi . Ele fo i um mode lo e um desa fio cons tante para m im, mesmo quando m e afa stava de suas conclu sões: por exemplo, na proposta de adiar em quinze anos a data da Flagelação, apresentando-a como obra da maturidade, e n ão da juven tu de de Piero. Vejo qu e hoj e es ta da ta ção é substancialm ente acei ta, em dife rentes bases, m esmo por aq ueles qu e, co n1o Bertelli, rejeitam minh a argu m entação.9 Continuei, porém , a trabalhar sobre a Flagelação, modifi ca ndo o Ctltimo ca pítulo e reelaborando radica lme nte, no Apêndice

11 ,

o prefácio da terceira edição, aqui

s uprimido. N este caso, como se verá, acabei po r dar razão (ajudado pe las objeções de Luciano Bellosi) a meus o bj etares num po nto importante. 9

Cí. Bcrrclli, o p. .:ir., p. 1 2.1 (o dr~bc à contrJiuz d~ me ~ m~ 0pocJ do ~nj o do So11ho de Co ll5t antino); p. So (tod~ a deco rn çiio de Arezzo roncluída a nte ~ de 1459, rnlvez ante> dl' 14,';) ).

B<·rtelli não di scu te mi nha da taçjo.

Todo esse traba lho alimentou uma reflexão sobre um tema mais geral- o da prova- com o qua l ten h o me ocu pado várias vezes na última década, e de diversos pontos de vista. Mas não quero insis tir demai s em questões m e todo lógicas. Continue i a tra balhar sobre Piero principalmente porque não consegui me a fas tar de seu s quadros.

Nesta nova edi ção, levei em con ta as criti cas levan tadas por Sa lvatore Settis, Federico Zeri, Charles H o pe e Luciano Bellosi a meu s argu mentos so bre a

Flagelação . Agradeço- lh es com e ntus ias m o; a respo nsabi lidade final pelo esc rito é, natu ra lmente, apenas minha. Mencio no no texto outras dívidas de reconhecim ento. l os A ngeles, j unh o de 1994

Prefácio 1994

27

A Gabriele

João

VIII

Pal eólogo, impe rado r do Oriente, fez sua e ntrada em Florença

em 15 de feve reiro de 1439. Hav ia desemba rcado com sua comitiva na Itália no ano anterio r, para participar do concílio q ue deliberaria sobre a uni ão e nt re a ig reja cris tã do O ri ente c a igreja cris tã do Ocidente. O concílio tinh a sido recentemente tran sferid o de Fe rrara para Florença. Fora m render hom enagem ao imperador, diz uma crônica da é poca, "as Senho ri as, as Cong regações da Nobreza, as Mag is t ra turas, dez de Bailia, oito do Teso uro, seis do Comé rcio e as se te Artes m aio res, e muitos o utros cid adãos com o esta ndarte, e ma is sete ca rdea is com toda a corte, e todos os barões, c out ros g regos do d ito Imperador, qu e j á estava m e m Florença . Era um belo e g rande g rupo" . O imperador "estava com uma ro upa branca, e por cima um manto de tecido vermelho, e um ch ape uzinh o bra nco de po nta na frente, encimado po r u m rubi m aior que um ovo de pomba de bom tamanho, com muita s o u tra s pedra s". Hom en s e mulhe res se aglo m erava m nas ruas pa ra ver o cortej o: ma s " nisso com eçou a chover torren cia lmente, de fo rma que se estrago u a festa[ ... ]".

1

1

Cf. ls torie di Firen ze dall'a tuto 1406 {i11o ai1 4J8, i n Ludov ico A nro nio M ura tori, Reru111 ltalicarrmt Scripfo rcs, Mediola ni 1 73 1 , XI X , col. 982; ve r também Joseph G ill, 11 co llcilio di ""'

ilwestigaHdo Piero

33

Ent re os espectado res dis pe rsos pelo temporal talvez es ti vesse també m o jovem Pi cro della Francesca. Sabe-se com ce rteza que, em 7 de se tembro do mes mo ano, e le estava trabalha ndo e m Fl o rença, com Dom enico Ve neziano, nos nfrescos (hoje desaparecidos) do coro de Sa nt' Eg idio.' E quando teve de retra tar, ce rca de vinte anos depoi s, o ros to de João

VIII

Pa leólogo na s paredes da igreja de Sa n Franccsco e m 1\rezzo, pôs-l he na cabeça o inco n f und ível "chapeuz inh o bra nco de ponta na fre nte" qu e tanto impress ionara o nnôn im o cro ni s ta Aorc ntino- e, com ele, Pi sancll o e Fi larete. 1

A hi s tória a rtís ti ca de Piero se ini cia no período qu e passou em Florença em 1439: mas n ão só, com o se tem dito até hoje, por cau sa do encontro co n1 Do mcni co Ve nez iano. A s li gações com os a m bientes do co ncíli o tnmbém irinm mnrca r s ua pintur
~ 2

34

lirerr::e, tr.ld. 1t,1l. lior<'nç,J: Sanson1, I<Jó;, p. 2 1;- (m.b o traduwr it.lhano n:io confe riu a p.J>S.l).;L'lll com o ongm.1l). Cf. Longhi, l'ierc>, op. ci t., p. 97, ed. br;ls. p. 291· O Constnntino d,1 Vitória de Corr,tnntino ,o/ne Mrn,;ncio foi idcntifl c;Hio como rL'trato do I',Jk•úlogo por Eugcne ivlünt/ ( i!lth ), numa con t riblll~:io que pa ssou inadv<'rtida (cf. Battbti, I'H'I'O, o p. cit., 1, p. -J<) 2, nota 2H2). l)epoi ~. por v1.1 ,. 111dcpcndcntes, /\dolfo Vcnturi l' /\by v\'arburg ( I') I I c ll)l 2) chegam Jllll'"ll.l conclu ,;io: d. t\by Warburg, " l'i<'ro dei la rr.mcC,.GlS Constantinschlacht in der /\quarcllkopic dcs jolwnn /\nton Ramboux", in Die l:nt <' li i.'YIII I S, op. ci t., 1, pp. 25}-'i·l (e a not:1 dos ed itores à p. 390). Kcnncth Clark (l'iao del/a f'mrrn•"·"· Londres: Phaidon, r <)6'), p. 7R) sustenta que Picro, ao rl'tratar Paleólogo, se remeteu il visão diret.l que teve l'm rlorcnça, l' niio só à mcdalh.1 de Pisanello, como supõem os esrudio;os j.í citado s; mas ver adian te, pp. 75 '>'>.O Constantino adormecido d o So rrlro também foi identificado como Paleólogo: ci. Constantin Marinesco, in " Comptes- rcndus de]' /\cadém ie d~s ln scriptions ct Bellt:s- Lettn:s", 1957. p. 32, e, n uma via indepcndl:nte, Michacl Vicker,, "Some Prcparatory Drawings for Pi s~nc l lo's Mcdallion of john VIII Palcologus", in Tire Art lilllletirr, LX (197!'), p. 42.3 . Quem formulou dúvidas sobre esta segunda iden tificaçiio foi precisamente Batti>ti, Piero, op. cit., 1, p. 492, nota zH).

1.

Batismo de Cristo

1.

O Batismo de Cristo, hoj e na N
cons ide rado por mu itos est udio sos (não tod os) com o u m a da s obras m ais a ntigas de Picro a ch ega r até nós. O tema do quadro é imediatamente identificável. C h arles de Tolnay, po ré m, n otou u ma anomalia em relação à ico nografia tradicio nal do bati s mo: ao contrário do que era costum eiro, os três anjos não estão segura ndo as roupas de Cristo m e rg ulh ad o n o j o rd ão. Aqui, o a njo da esq ue rda co n te m pla a cena, enq ua nto o da d ire ita es tá co m o bmço apoiado no ombro do a nj o ce ntra l, ao m esm o te mpo q ue lhe seg ura a m ão. To lnay co m parou

11c.s. z->

esse gesto ao da s três G raça s re p resen ta das n um medal hão de N iccolõ Fiorenti no, da mesma é poca, que t raz a inscrição Concórdia, e in te rpre tou o gru po co m o uma a lusão às Graças enq ua n to s ím bolo de H a rmo ni a.' Essa inte rpre tação foi esmiuça da c desenvo lvida em da ta recente por M arie Ta nne r, qu e con s idero u o ges to dos do is a nj os sob o o lhar do terceiro, calcado na iconografia roma na da Concó rdia, uma Cf. Charles de Tolnay, " Conccptions religieu ses dans la pcin turc de Piero dclb rranccsca ", in Arte m rticn e 111odcmn, vr (r963), p. 214. Salva to re Scttis me assinalou que o gesto do anjo da esquerda (a palma da mão virada para baixo c os dedos estendidos) designa, na arte an tiga, a pacificação. Sobre as roupas de Cristo, ver adiante, p. 257.

Bntismo de Cristo

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alu são à concó rdia re lig iosa e ntre a ig reja do O rie nte e a do O cid en te, san cio nada pelo Co ncíli o de Flore n ça de 14.39.1 A interpre tação de conju n to aprese ntada po r Tanncr se funda na identificação do s ignificado p reciso desse ges to. As ro upas c ch apé us orientais (que rea parecem nos afrescos de Arczzo) caracteri zam o s perso nagens no pla no de fundo como sace rdotes biz antin os. O s três a nj os, bem co m o as cores de s uas ro upas- ve rme lho, az ul e branco-, re m e te m à Trin dade, confo rme o simbolism o s uge rido po r Inocênci o

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ao ser fundada a o rde m

dos trinitá rios, e evocam as di scussões teológicas so bre o dog m a t rinitári o e ntre os teó logos da s du as ig rejas, que se pro longaram po r do is anos, em Ferrara e depois em Flo re nça. O ape rto de m ão dos do is a nj os s imbo liza não só o fim do cis m a e a recon s tituição da co ncórdia entre as duas igrej as, co mo també m o resultado mais importante d o co ncílio, do po nto de vi s ta teológico: a cha mada clá us ula do Filioque acrescentada ao C redo (ace ita pe los o rie nta is depo is de longas res istências), decre ta ndo qu e o Espírito Santo procedia tan to do Pai quanto do Filho.1 O tondo (hoje perdido) qu e o rig ina lm e nte e n cima va o Batismo 2

J

C f. Gi ll, op. cit. Para tudo isso, cf. Maric Tanner, "Concordia in Picro dei in Franccscn's 'Baptism o f Christ'", in Tl1e Art Q~tarterly, xxxv (1972), pp. 1-20. A identificação dos personagens no plano de fundo do Halismo como os dignitários vindos à Itália na comitiva de João VIII Palcólogo já fora proposta por Marinesco, " Échos byzan lins dans l'ccuvre de Piero dclla Francesca", in B ~t lletill dr la Société Natio11ale des Allliq11aircs de Fra11cc, ., 958, p. 192 (n5u mencionado porTanner). Marilyn Arunberg Lavin, Piero del/a Fra11cesca's Haptism of Chrisl. cw Havcn/ Londres: Phaidon, 198 r (publicado na mesma época da pri meira ed ição da presente obra), apresen ta a hipótese, baseada nas pesq uisas de dom Agnulcui também utilizadas por mim, de que o Batismo se destinaria a uma capela da abad ia de Sanscpolcro; além disso, ela propõe o nome de Ambrogio Travcrsari como possível inspi rador da iconografia (p. 135), porém exclu indo explicitamente as ligações com o Concílio de Florença propostas por Tanner (p. 68, now 8, e p. 6y, nota 11 ). Segundo Lavin, a iconografia do quadro remete não só ao batismo de Cristo, corno também à Epifania c às bodas de Cana5, recorrências que o calendário litLirgico comemora no mesmo dia: 6 de janeiro. Guiada por essa coincidência, Lavin identifica os q11atro personagens de roupas orientais com os três Reis Magos (pp. 65 -66), descobre na iconografia do batismo "collllllhial COIIIlOtntiol!s", simbolizando o casa mento (pp. 85-86), at ribui a Picro um inverossími l jogo de pa lav ras entre 11oce fnozj c no:ze jbodas) (p. 1 14) etc. Num plano totalmente diferente, ver a interpretação proposta por Michael Baxandall (Pattem s of lntentio11. New Haven : Yalc Univcrsi ty Press, 1985, pp. I05-J7lcd. bras., l'adrões de illtcnç,io, t rad. Vcra Maria Pereira. S5o Pau lo: Companh ia das Letras, wo61J que, de um Indo, contesta a anomalia do dctnlhe de onde partira Tanncr (as mãos dadas dos dois anjos) c, de outro, não se pronuncia sobre o possível comissionamcnto.

ta mbé m fri sava as impli cações trinitárias da cerim ô ni a rea liza da às margens do Jordão. Di sso d eco rre a pro pos ta de a tribuir a da ta do qua dro ao a n o de

1440, o u logo de po is. Uma data ção de m asiado pos te rio r seri a in co mpatível co m a rápid a d e te rio ração da co n có rdi a e ntre as du as ig rejas, ca usa da pe lo fo rta lecime nto do pa rtid o co n s ta ntin opolita no, co nt rá rio à unidade com a igreja de Ro m a. É de se nota r q ue essa da tação, fundad a em ele m e ntos exclu sivam e nte ico nográ fi cos, e m s ua essência co incide co m aque la pro pos ta por Lo ng hi e m bases exclu s iva m e nte estilísti ca s (1440-45). 4 Co m o se vê, o inte rpre tação de Ta nncr rem ete os elem entos do Ba-

tismo a um p rojeto unitá ri o, analítico c compacto, jus t ifica ndo suas an oma li as iconográficas de man eira con vincen te. No en ta n to, pa rtindo da a no m alia m a is ev ide nte e ntre elas - o ges to da con có rdi a sobre o qu al se baseara To lna y -, Battis ti hav ia s uge rido, po uco te m po a ntes, uma inte rpretação co mple tam ente dife re nte. A ntes de d eixa r para se m pre Sa n sepolc ro, o Ba tismo de Piero in te-

grava um po líptico, co nse rvado na catedra l dedicada a São João Eva nge li sta. As la terai s e a prcdcla (hoj e no M use u Cívico de Sanscpolcro) rep rese nta m res pectiva m e nte sa n tos c do u to res da Ig reja e cen as da vid a de São João Ba ti s ta. Ne nhum a é da lav ra de Picro, c são sem d úvida posteriores ao Batismo. Elas tê m sid o atribu ídas, com a lg um a ince rteza, a M otteo di G iova nni, c da tada s e ntre 1455 e 1465 .S Na prede la apa rece o brasão de u m a da s fa míli as m ais des tacadas de Sanse polcro, os G r az ia ni . Não há dú v id as de que fo i um G razian i a encome nd ar a prcdc la c as late rais do po lípti co. Segundo o s uposição de Ba tti s ti, o m esm o G raziani ta mbé m tcrio e ncom e ndado o pa ine l centra l e o tondo acim a de le, a mbos rea li zados por Pi ero. Em s ua le itura de To lna y, Batt is t i iso lo u (ao co ntrá r io de Ta nne r) a com paração dos a njos às três G raços, deixando de lado o te m a da concórdia. A prese nça 4

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C f. Tanner, op. ci t., p. 20, nota 84, onde estão relacionadas ou tras propostas de datação, mais ou menos tardias, e portan to dificilmente compat ívei s com as alu sões iconogr:í fi c,lS ao concílio. Cf. id., ibid ., p. 2.

Hntismo de Cristo

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dos anjos sob a forma das Graças se explicaria por uma pa ssagem do

Da pintura d e Lcon Batti s tn Alberti, e m que o gesto das três Graça s vestida s (c niio n ua s) é in te rpre tado como a oferta e ao mes m o tempo o receb imento de um benefício. A ico nog rnfia do Batis111o de Picro impli ca rin a combi naçiio dcssn passage m de A lbc rti com uma pa ssagem da Su 111a de São Tom~s, on d e Cris to é ap resentado como exemplo de gene rosidade s upre ma. Assim, o quadro te ri a sid o encomendado por um co me rciante di s pos to a cx pinr seus pecados de avareza com un1 gesto de gcnc rosidndc- provnvc lmentc um G razinn i. A pri ncípio, o políptico inteiro tcrin sido e ncome ndado a Picro. Depois de pintar o éatis111o c o tondo perdido, rcprcscnwndo Deus Pai, Piero teria dimi n u ído o ritm o de tmbalho. Diante do descu mprim ento dos prazos, o comitente te ri a firmad o um segun do co ntrato com Matteo di Giovan ni . Por isso a datnçiio do Batis111o por voltn de T46o, proposta por Batti s ti , qun sc vin te nnos depoi s dn dntn çiio trndicional. Tudo isso encontraria confirmaçiio n um e lemen to de orde m es tilís tica , a s aber, os ecos da cstatuá ri n antiga pe rcept íveis nas figu ra s dos anjos- ecos que, oinda seg undo Batti s ti, pressuporiam nccessn riomentc a viogcm de ·r458-59 a Romn. 6 Estamos di a nte de duo s interpretações que pnrtcm do mesmo de talhe- o aperto de m ão dos doi s anjos- c chega m a conclu sões totalmente díspares sob re ns implicações iconográfica s c a d ntação da obra. Digo desde já que a inte rpretação de Tanne r m e parece mu ito convi ncente e a de Batti s ti implnusível. Ambas, porém, são conjctu rais. Não faria sentid o colocá- las no mesmo plano, ou melh or, pô-las de lado, à espera de uma prova documental ex te rna que talvez nunco ve nha a apa rece r. Assim cumpre indagar o que, neste contexto, s ignifica m termos como "con vincente" c " implausível"; em que bases é poss ível op tar por uma

6

Cf. lhttisti, l'iew, op. cit., 1, p. 1 17 (discutindo à p~rte ~singular utili/.açiio hcrmen.:utica, n~ s pp. 1 17- J 8, do Ü>tmgrlho St'Sitlldo Molclt S de P~so lin i). Como daw de início, Battis ti propõe o segundo scmcst rc de 1459 ou 1460 (p. 1 1 ;); como data final, 146o-62 ( 11, p. 1 9)./\mb~s siio, obviamente, conjcturai,.

em detrimento da o ut ra; em term os m ais gera is, com o se config ura o problema do controle fil ológico no ca mpo das pesquisas iconográfi cas. 2.

Vimos que a dificuldade de interpretação deriva da im possibilidade de

inserir plenam ente a obra num a sé rie iconográfica preexistente (nes te caso, a do " ba ti smo de C ris to"). A a no m a lia pode se r mínima (o gesto dos dois anjos); ma s, em ce rtos casos, pod e envo lver a totalidade da obra, a brindo es paço a a utênticos q uebra-ca beças iconográ fi cos, com o o célebre caso da Temp es tade de G iorgione. Ao di scutir as várias interpretações desse quadro, Se tti s for mulou dua s reg ra s: a) todas as peças do quebra-ca beça devem se e nca ixa r; b) as peças devem compo r um desenho coerente/ Acrescen to uma terceira: c) em ig uald ade de condições, deve-se, de m odo gera l, considera r a inte rp re tação que dema nde men or nú mero de hipóteses com o a ma is prováve l (n1as sem esquecer q ue às vezes a verdade é im provável).

À luz desses cri térios - exa u stividade, coerência, econom ia-, é evidente a s uperioridade da proposta de Tanne r. De fato, Battisti introduz hi pó teses que ger<1m ou tras hipóteses, co mo a suposição de que os t rês anjos reme tem às três C raçJs, que por suJ vez s imboliza m a generosi dade cristã . Para con ciliar essas hipó teses, ele é obrigado a s upor um<1 contamin ação de tex tos díspares, ligados por associações fortuitas, que podem pro longar-se indefinidamente.HPor fim, só co nsegue incluir em sua interpretação, cen trada na avareza, um elemento vis ivelme nte h eterogêneo, como os sacerdotes orienta is no plano de fund o, postu lando de

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Cf. Scttis, op. cit., p. 7} A sé rie que se abre com Lcon Batti sta Albcrti/ S no Tomás é ampl iada por Ca lvcsi com pa ;sagens de Crcgorio Nazianzcno c Marsilio Fiei no, tendo como base a al usão (identificada pdo própri o Calvcsi) das três C raças à Graça divin a. /\ssim su rge "a mct:ífom econômico-li be ra l das três Graças como circuito de bene fícios que resulta m em proveito de q uem o promove 1- . -I o Cristo-Sol, o u Cristo- Ouro, numinoso- numism ático, se torna um modelo de ' libcm lidade' ou, já la tentemente, de libe ral ismo; a lóg ica da econom ia capitalista desde o 'inte resse' [ .. -I a té o co nsum is mo 1-. -I já es tá aqui totalm e nte delineada, co m coerê ncia impress ionante " (Ca lvcsi, op. cit., pp. 106 ss., em csp. p. w ll).

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maneira g ratuita a presença s imultânea de o ut ros níveis de s ignificado.9 Na leitura de Tanne r, ao contrá rio, os inúmeros elem entos iconog rá fi cos identifica dos no quadro parecem co nvergir em ha rmonia para o te ma trinitário debatido no Con cílio de Florença. E, mesm o a ss im, aq ui ta m bém não se pode excl uir a eventualidade de ser um a coerência introdu zida de fo rm a involuntá ri a pela in té rprete.' 0 Em prime iro lugar, porque a ide ntifica ção das peças do queb ra-ca beça, ou seja, dos elementos pertinentes do ponto de vista ico nográfi co, não é um dado em si in contestável - com o mostra o fato de que, an tes de Tolna y, ne nhum es tudioso havia se det id o no ges to dos d o is a njos. Da í o risco de selecionar elem entos im pe rtin entes do po nto de vista iconog ráfico, con struindo com eles uma interp retação ta lvez lógica, ma s muito di sta nte da s inte nções do pinto r. Em segundo luga r, todo e le mento iconográfico é polivalente, e pode ab rir ca minho a uma sé rie de sig nifi cados dís pa res. A aproxim ação dos três anjos do Batismo, s ugerida por Tolnay, à med alha de Niccolà Fiorentino pode ri a prosseguir e m dua s direções: três a nj os/ três Graças (Ba ttis ti) o u três anjos/concórdia (Tanner). Pode-se objetar que só seria legítimo propor tal a lte rn ativa no início da pesquisa : a partir daí, conform e surg issem ou não confirm ações inte rn as, a h ipótese inicial iria necessariame nte se reforça r ou se infi rmar. Entre tanto há o ri sco de e ncontrar apa rentes confirm ações da s próprias hipó teses lança ndo mão, de mane ira mai s o u m enos inadve rtid a, da poli va lê ncia ou plas t icidade das im age n s. Como sa be r se, num de te rmin ado quadro, um a ove lh a, por exem plo, re presenta C ri sto c a man s idão o u apenas uma ove lha?

É o contexto qu e decide, a ca da caso: e sem dú vida qu a lqu er interpretação (de um trecho lite rário, de um quadro etc.) pressupõe um ir e vir circular e ntre o deta lh e e o conjunto. Po ré m , em certos casos, é fácil escorregar do círcul o herm e nê utica virtuoso para o círculo he rm enêu ti ca

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Contra a noção de " níveis sim ultâneos de s ignificado", cf. o que escreve Gombrich em Sy111 IJOiic llllllõl'S, op. cit., pp.1 5-20 (t rad. ital., pp. 2.) -JO). Sobre esse ponto, cf. també m Cnrlo Gin zburg c Adria no Prospc ri, Gioclú di pnzienza. L/11 se111izwno sul "BI' zzeficio di Crislo ". Turim : Eina udi, 1975, p. 84.

vicioso." Daí a con ve ni ência de int rodu z i r n a decifração iconográfi ca e lem entos de contro le d e nat u reza externa, como o comi ss io namcnto da o bra -amplia ndo a noção de co ntex to pa ra o âmbito socia l. Sem dúvida, nem sempre a in vestigação do comi ssionam cnto fornece indi cações iconográ fi ca s unívocas. M as, nos casos de anomalia iconográfica parcia l ou tota l, com o o que ago ra nos ocupa, a ide ntificação do comitente contribui, ne m qu e seja um pouco, para restring ir de m a ne ira drás ti ca o número de hipó teses iconog ráfi cas e m discussão. Se, depo is, ho uver convergência e ntre os res ultados das duas in vestigações (sobre a iconog rafi a e so bre o co miss ionam e nto da obra), as poss ibilidades de e rro se rão qua se n u las. 3· É precisa m e nte o pro bl em a irreso lvido do comi ssio na mc nto da obra qu e cons titui a peça fa ltan te na recons t rução de Ta nner. As s uti s a lu sões teológicas po r e lo dec ifradas te ndi am a excl uir a eventua lidade de um m embro da fa míli a Grazia ni ter enco m endado o Batismo. Uma recen te pesqui sa de Ercole Ag no le tti so bre as vicissi tudes exte rnas do quadro tro uxe n ovos dados e hipó teses à discussão. Até agora sa bía m os qu e o Batismo tin ha sido t ransferido do a ltarmor do priorado de Sa n G iova nni Battis ta em Sa n sc polcro para a catedra l de San C iova nni Evangeli s ta em 1807 (ano em qu e o priorado foi extinto), e de po is, e m 1859, colocado n o m e rcado a ntiquá rio. Ora, Ag no le tti con seguiu a ntecipar a d a ta dos tes temunhos m a is antigos sobre o quadro, aprese nta ndo també m uma nova hipótese sobre o comissio na mento da ob ra . O Batismo te ri a sido pintado pa ra o a ltar da irmandade de São João Batista, fundada em 1406 pe la se nhora Diosa di Romaldo di M aza rino de Mazzetti , viúva de G iovanni di Fidanza . Ela dera uma dotação para uma ca pela situada " na a badia do Borgo junto à po rta principal na direita apoiada à primei ra coluna q ue traz o título de São João Batis ta ", esta belecendo q ue fosse celebrada uma missa diária po r s ua alm a c pela do m a rido. O Batismo teria ficado na abadi a, então

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C f. C inzburg, op. cit., em <:sp. pp. 1 05 4-56 (so bre um a propos ta interpre ta ti va de Cdga rd Wind).

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con vertid a em ca tedral, a té 1.563, quando o título do a ltar foi tra ns ferido e m m cn1ória pe rpét ua pa ra o alta r de Sa nto Egídio e Sa nto Arca no.

O que aco nteceu com o quadro, o u m elho r, com o políptico, não se sa be. Ag no lct t i s upõe qu e foi tran s fe rido para o prio rado de Sa n G iovanni Ba ttis ta e m 1.583, q ua ndo o vi s ita dor apos tó lico m o nsenh o r Peru zzi mando u ca ia r as pa redes c afrescos, que esta va m em más co ndições.

O certo é qu e o po líptico se e ncontrava no prio rado em 1.629, po rque a v isita pas to ra l desse an o m encio na uma " icona m dep icta m in tab ula

cum imagin e S. loh a nnis Ba ptistae et alioru m sa ncto rum cu m om am e l1to lig n eo dea urato". Esse é o teste munho m a is antigo da presença da o bra in loco, confirm ado pe las vi sita s pa s to ra is s ubscquentes (1639,

1649) e pel os in ventá rios de 1673, 1.760 e 1787. Em 1807, como d issem os, o políptico volto u pa ra a ca tedra l de Sa n G iova nn i Eva nge li sta, o nde, segundo a reco ns trução de Agnoletti, estava o rig inalm ente. Essa última hipó tese, a liás, também é confirm ada pe la nusência de m e nção ao políptico e nt re os bens do prio rado no mome nto da s upressão. '' Nesse e n ca deame nto, co n s tituído em parte po r docume n tos, em pa rte po r hipó teses de integ ração, há um úni co e lo frágil: o prim eiro. N ão é possíve l id entifi ca r a irma ndade de São João Ba tis ta com o com ite nte do Ba tismo pela boa c s imples razão de que ja ma is exis tiu um a confrari a com este n o m e e m Sa nsepo lcro. O úni co in dício esta ria no tes ta m ento de s ua fund ado ra, n s en ho ra Diosa . No enta nto, uma in ves tigação do documento o rig ina l, be m com o do regis tro quinhe ntista ras treado por Ag n ole tti, não de ixa dú vidas a respe ito. O testa m e nto faz parte do liv ro de a tas da irm a nd ade de São Ba rto lo m e u - a m ais rica e impo rta nte de Sa n sepo lcro - po r e la te r s ido " ins tituída", is to é, no m eada executo ra das últim as vo ntades de um de se us m e mbros, a testadora se nho ra Oiosa di Ra na ldo (c não Ro m a ldo) di Ma za rino de M azzctti. Esta, e m 1.0 de ma rço de 1.406, " in st ituiu a fratern idade c do tou sua capela na a badia do Bo rgo j unto à po rta pri ncipa l que é de 12.

Cf. Ercole Ag no ktti, Ln Mndomrn del/a Misrricordin e i/ Battesi111o di Cristo di Piero del/a l"rmzcescn. Snnsepolcro : Rimini, 19 77, pp. JJ-40. A últi ma in formn çiio me foi gen tilme nte trans mitida em umn con ve rsa, po r dom Agno letti.

São João Batista apoiada à primeira coluna, dos ben s abaixo relacionados, isto é: primeiro, um pedaço de te rra arável", e assim por diante (segue-se um a listagem minu ciosa da s propriedades legadas). Prossegue o testamento: " Pela qua l dotação quis que o senhor abade do Borgo ma nd e o fi cia r em caráte r pe rpé tu o a dita capela", faze ndo celebra r " uma missa pela alma desta testadora e do dito G iovanni, seu marido, em reverê ncia a Deus e à g loriosa Virgem Maria c a São João Batista" . Na ce lebração das mi ssas devia-se usar o "cá lice de prata dou rada " e o " missal feito para ela", já doados a n tes por Diosa. O legado devia servir também para pagar as despesas dos funerais de Oiosa, conforme estabelecido com o abade da abadia do Borgo, Ba rtolo M eo. Em ca so de descumprimento, o legado devia ser transferido " do dito mosteiro e abadia ... à dita fraternidade" de São Bartolomeu. 'J Assim, a destinatária do legado é a abadia cama ldo lense (depois catedral) de Borgo Sa n Sepolcro. O tes tame nto de Diosa prova a existência, já em 1.406, de um a ltar na abadia dedicado a São João Batista. Foi para es te a ltar, segundo a percuciente reconstrução de Agn o letti, qu e Piero teria pintado o Batis mo. Trata-se de uma hipótese, que só poderia ser definitivamente comprovada mediante o co ntrato de encomenda, até agora não encontrado. Ma s é uma hipótese com altíssimo grau de probabilidade. No momento em que a inexistente irmandade de São João Bati sta se di ssolve para ceder lugar, na qualidade de comitente, à abadia camaldolense, a interpretação ico nog ráfica de Ta n ner ga nha um apoio docume nta l adicional. Em 1439, de fato, morrera em 13

s. XXXII, n. 182, cc. 33 r- v (é o testamento n . 182). O con telldo do testa mento é repetido de forma a brevia da na c. 129v, bem como n uma fol ha avulsa inserida em s. XXXII, n . 179· Com a da ta de 1 ~ de novembro de 1411, foram acrescentados alg uns codicilos, que não modificavam o legado à abadia (cf. s. XXXII, p. 179, fo lha s não numerada s). Para u ma descrição sumária da docume ntação proveniente do arquivo da irma ndade de São Ba rtolomeu, cf. G iustiniani deg li Azzi, "Sa nsepolcro", in G/i archivi del/a storia d'ltalia, Rocca San Casciano: Ca ppcll i, ·t9·1.5, s. 11, voL JV, pp. 139 ss. (à p. 1.48, uma menção ao legado da sen hora Diosa). Sobre a irmandade, cf. I. Ricci, La fratem itá di S. Bartolomeo. Sansepolcro: Ri m in i, 1936 (às pp. 22 -23 estão reprodu zidos impe rfeita mente dois trechos do testamento de Diosa); ma s ver agora a pesquisa a profunda da de )ames R. Banker, Death in th e Commzmity. Memorialization and Confraternities in an ltaliall Commwze i11 the Middle Ages. Athen s (Georgia): University o f Geo rgia Prcss, 1988. ACS,

Batismo de Cristo

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Cama ldo li o abade-gera l dos cama ldo lenses Ambrogio Trave rsari, o gra nde humani sta que lu tara obstina damen te pe la ca u sa da reconci liação com a ig reja grega. T inha s ido um dos protagonistas (além de segu ndo inté rprete, g raças ao g rego que ap re ndera como a u todidata) do recente Co ncílio de Fer rara- Flo re nça. Coube ra- lh e, en tre out ras coisa s, a tradução para o grego do decreto Laetentur co e/i, de 6 de julho de 14.39, q ue represe ntaria a sa nção oficial do fi m do cis ma .' 4 Nesse ponto, ex p lica-se pe r fei tame n te a prese nça do Ba tismo- ou seja , um q uad ro rep le to de referências à co ncó rdia re ligiosa o btida no concílio - na abadi a de Sa n G iovan ni . A ico nog rafia do Batismo se traduzia, pa ra um público seleto de espectado res capazes de capta r s uas implicações, numa ho m e nagem ao traba lho de Traversari, fa lecido pouco tempo a ntes, e, porta nto, numa exa ltação das g lórias da o rdem. No enta nto, a ho m e nage m im pl ícita a Trave rsari ta mbém tinh a motivos especifi ca m ente loca is. A abadia de San G iova nni Eva ngeli sta, co nsagrada em 1.340, e ra o símbo lo do poder re lig ioso e polí tico que os mo nges cama ldolc nses exerciam no Bo rgo (a despei to de s ua d iv isão feuda l ent re vários sen hores) desde o final do século xu . Vá ri as vezes os bi s pos de Città di Ca s tello hav iam te ntad o s ubs t ituir os monges englobando Borgo San Sepolcro em s ua diocese, mas sem êxito. Nesse con fl ito, qu e at ravessara fa ses bas tante ás peras, T rave rsari hav ia ao final desempe nhad o um papel impo rta nte. Logo depois de ass um ir o cargo de gera l da ord e m, ele e mpreend eu uma sé ri e de viagens, descritas em detalhes em seu Hodoep orico rz, pe rco rre ndo a s vá ri as a bad ias cama ldolenses. No o utono de 1432, parou e m Borgo Sa n Sepolcro, o nd e fo i informado pelo abade Pa sca s io dos po rm e n o res da d is pu ta com o bispo de Ci t tà di Ca stell o. Ao reto rnar dessa viagem, Traversa ri escreveu a Pa sca sio avisando-o de que e nvia ra Ugolin o, o ex-abade de r4 De Traversari, ver em csp. a edição sctecentista do epistolário (At~IÚros ii Travcrsarii ge11era lis Cnllw ldulellsium aliommque ad ips11111, ct nd alios de eodem A111 lnosio lat i t~ nr rpistolae, 2 vol., Florença, 1759; cópia anastática, Bolonha: 1968). Sobre os mér itos c limites dessa cdiçiio, ver as pesq uisas fundamentai s de Giovanni Mercati, Ul ti111i con tri/111 ti alia storia dcsli ullwn isti, 1, Traver:::aria11n. Cidade do Vat icano: Biblioteca J\posrolica Va tica na, 19 9, com copiosa docu men tação inédirn . Sob re a part icipação de Travc rsari no concílio, cf. Gill, op. ci t., p. .344 c passim.

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Faenza, a Roma pa ra trata r do a ss unto. As p re te nsões do bis po sobre o mos teiro - exclam ava Traversa ri - tinham sido rejeitadas; os "a n tigos privil égios" dev iam pe rm anece r " in vio lad os " . Um ano depois, Traversa ri inte rveio ele m es m o j u nto ao papa Eugênio

IV

pa ra rea firm ar os

direitos dos a bades sobre Borgo con t ra q ualquer m aqu ina ção exte rn a. '5 Após u m a tentativa de invasão malog rada do bis po de Città d i Caste llo, expu lso pe los m o radores revo ltados, Eugên io

IV

cedeu Borg o

Sa n Sepolcro a Flo re nça, pa ra paga r as despesa s do concílio (1441). O início d o do m íni o florentino se caracterizou por um g ra n de fe rvo r con s t ru tivo: como escreve u um m onge ca ma ldo lcnse an ô n im o a N icola u v, os m u ros fo ra m recon s t ru íd os, a s ig rejas e m be lezada s, as casas re fo rmada s. ' 6 Ta lvez a e n com e nda do Ba tism o a Piero remon te a esse períod o, por iniciati va do abad e ca m a ldo le n se d o Bo rg o, q u e na épo ca e ra Pasca sio - fig u ra sobre a q ua l, in fe liz m ente, não sa bem os quase nada. '7 A ico nog rafia do quad ro e na ltecia de for ma indireta 15

Ex iste uma ed ição setece nti s ta do Hodoeporico11 ( Flore nça, s/d ), re pu blicada em a pê n d ice a A lessa ndro Di ni Travcrs a ri, A mbrogio Trnversari e i suoi tempi. Florença: Ed . Pre mia ta O fficina Mazzoch i, 19 12; pa ra os períodos de pe r m a nê ncia e m Bo rgo S a n Sepulcro (t rês, ao todo), cf. pp. 46, 5.3, 1 25 ss. (do apê ndi ce ). A a t ividade de Tra ve rsa r i como geral da o rde m é exposta mi n uciosamente, co m base no episto lá rio c no Hodoeporico 11, e m G iova nn i Benede tt o M ittarell i e Anse lmo Costadoni, An11ales Cnmaldule11ses, V Il , Ve neza, 1762. Sobre sua s inte rvençõe s na d is puta com o bispo de Ci ttà di Ca s tello, cf. Ep istolae, XVII, 5; v, 1.3; 1, 4; 11, 3; 11, 24. Pa ra u ma rá pida crôn ica d o e pisód io,

cf. Ag no lc tti, Sar1sepo/cro 11el pcriodo degli abati ( w 12-152 1).

San sepo lcro: A. C. G rafic he, 1976. 16 C f. Mittare lli e Costadon i, o p. cir., p. 2oy "[ ... J foi intei ramente const ruída a a nte mu ra lha e m torno de todo o nosso te rritór io, re pa rada a fo rtaleza ao redo r, e ta m bém novame nt e ed ificada; intra m uros, as ig rej as d os santos fo ra m e m belezadas e m a dmi rável orde m ; as ca sa s c as e di fi ca ções púb licas fo r tificadas, con s truídas, re novadas, e rg uidas [ . .. ]" . [Em latim n o o r igina l.] 17 Travcrsari lhe enviou duas ca r tas e m 14.31 e 14.32, sobre os con Oitos entre a abad ia e o bispo de C itti\ d i Cas t e llo: cf. Epistolae, op. cit ., I. xv 11 1, 5 e 6 . O " Pa sc~ si u s Burgcns is" q ue ocresce nt"ou do is e pig ra m as aos Giuochi m ate m áticos de Picro di N icolõ da Fi lica ia infe li z m e nte é u m fmn ciscano, não um cama ld o le nsc (cf. ll NC r , m s . Magl. XI, ·15, a po ntado po r Pau l O skar Kr is tc ller,

/ter italiwm. Leide n / Lond res: UR ILJ. Th e Warburg ln s titutc, ·1965, 1, p. 1 18). A colabo ração do abade cama ld o le nse G iuliano Ame de i no po líptico da Mi sericó rdia, proposta po r Sa lm i (" Pic ro della Fra ncesca e G iul ian o Amede i", in L' A rte, XX IV j·194 2j, pp. 26-44), a t esta ria a pe rs is t ênc ia das ligações de Piero com a o rde m ca m a ldo lcn se. Sobre Amcdei, cf. ta m bém jose Ru ysschae rt, " M in ia tu ris tes ' romains' sous Pie u", in [nea Silvio Piccolomi11i- pa pa Pio 11, At ti dei Convegno, Dome n ico M a ffe i (org.). S ie n a: Acca de m ia se ne se dcgli intronat, 1 968, pp. 257 ss. A lg umas pesq uis as rece n tes re leva n tes ~ c rcscc nta ram mu itos dad os sobre a form ação in icia l de Pi e ro : Fran k Dabdl, "A n to n io d ' Ang h ia ri e g li ini z i di Piero de lia Franccsca", in ParagorJC, n . 41 7,-'>

O Balismo de Cristo

45

Trave rsari: não só, m ediante o ges to de co ncó rd ia e a simbo logia tri ni tária dos a njos, por te r contribuído decis iva m e nte para o s ucesso do con cílio, m as tal vez também, por interm édio da imagem de Bo rgo no pla no de fundo,' 8 por ter defendid o os dire itos d<1 abadia ca maldolen se num m o m e nto difícil de s ua h is tó ria.

1984, pp. 73-94; )ames R. Bnnkcr, " Piero dclln Francesca as a ssistam to AntOnio d ' Anghia ri in tlw 14}05; some unpublishcd docurnents", in T/11• lillrlillgtoll Maga:i11e, cxxxv, jan. 1993· pp. r 6-21; "Picro dcl la Francesca's S. Agostino aharpicce: some new docu mcnts", ibid., C" XX I X, outubro de 1987, pp. 645-51, em esp. p. 649 (sobre os períodos da presença de Picro em Florença ). 18 Para a iden tificação da rocha no plano de fundo com Borgo San Scpolcro, cf. Longhi, Piem, op. cit., p. 19; cd. bras., p. 38, acompanhado por Tanner, op. cit., pp. 1 c 14, que vê (talvez num excesso int e rpretativo) no Tibrc costea ndo o Borgo uma a lusão ao primado romano.

-?

11.

1.

O ciclo de Arezzo

Supõe-se qu e o jovem Piero, quando estava com Domenico Veneziano

em Florença, tenha encontrado Tra ve rsa ri. ' É no mínimo improvável que um encontro desse gênero tenha ocorrido. A presença de Piero em Florença é ates tada documenta lmente n o m ês de setembro de 1439; no ve rão do m esmo ano, terminados os tra balhos do concílio, Tra versari saiu da cidade e foi para o eremitério de Ca maldo li, para descan sar. M orreu de repente em Ca ma ldol i em 19 de outubro. 2 Além das dificuldades cronológicas, o abade-geral da ordem ca maldolense, empenhado nos traba lhos do concílio, devia ser socia lmente inacessível a um pintor in ician te. Ma s o co nta to entre Pi ero e o ambie nte ligado a Traversa ri com certeza ex is tiu , e não se e sgo tou com o Batismo . De fato, circu lava nesse ambiente um dos membros da família Ba cci, que encomendou a Piero s ua maior obra: o ciclo de afrescos de Arezzo. Trata-se de G iova nni Bacci, fi lho de Fran cesco e neto de Ba ccio. É a este ú lti mo, um riquíssimo com e rciante de especiari as, qu e remonta o 1

Cf. Mario Sa lmi, La pittl!ra di Piero del/a Fr{lllresca. Novara: ls tituto Gcografico De Agosti n i,

2

1979· p t6). A data foi especificada por Cabricllo Maria Sca rmagli com base numa carta de Alio t ti a Albcrti (cf. C i rola mo A liotti, Epistolae et op ll swla, Arezzo, 1769, t, p. JJ, nota c).

O ciclo de A rezzo

47

legado origina l para a decoração da capela de fan1íli a n a igreja de Sa n Fra nccsco; co ube ao filh o de Baccio, Francesco, a decisão de dar início aos trabalhos, ve ndend o em ·1447 um v inh edo para paga r o pin to r in icialme nte des ig nado, Bi cci di Lore n zo. 1 G iovan ni é uma fig ura bas ta n te difere nte. Quem chamou a a tençã o para e le fo i C rc ig hto n G il ber t, que, utiliza ndo as in for m ações reunida s pelo erudi to sc iscen tista Euge ni o Gamurrini e m s ua Jsto ria genealogica delle ja 111iglie nobili to scane et

11 mbre, observou que Giovann i, filh o c neto de comercia ntes, hav ia se formado e m S ie na e m 1439 e fi ze ra ca rreira n a ad minis tra ção pontifica i, até se tornar clérigo da Câm ara Apos tóli ca. Daí a idc ia de lh e at ri b ui r uma inte r ve n ção deci siva (ta lvez tan1bén1 com autê nti cas sugestões teológicas) no e nriquecimento do prog rama iconográ fi co do ciclo arctino, e m relação às represe ntações tradicio nai s da le nda da ve rda dei ra C ru z :' Esse ind ício- m ui to promissor, como veremos - logo foi abandon ado por G il bcrt. Uma pesq uisa mais aprofun dada sobre G iova nni Bacci tra z à luz o utras in dicações, rea lmen te p reciosas. O ponto de partida dessa inves ti gação s uplementar é uma m e nção presente num a ca rta publi cada por Gamurrini e retomada po r G ilbc rr. Nela, Giova nni Bacci se d iri gia em 1449 a Cosim o de' Medici, referi ndo-se a Giova nni To rtelli, cubicul á rio secreto do papa, como "seu parente " . ~ Somando a indi cação de C ilbe r t às pesquisas sobre To rtclli, famos íss imo human ista, c sobre o pró prio Bacci, fe itas q uase na m esma é poca por M a riangela Rego lios i,

J 4

5

Cf. Salmi, " I B:m :i di Arezzo", op. cit., p. 229. Cf. Gilb
é possível reco ns trui r pelo me nos em parte a fi s io no mia de um ho mem que teve impo rtância - sem dú vida algu m a - decisiva pa ra Piero. O primeiro tes temunho que conhece m os sobre Gio va nni Bacci estabe lece de imediato s ua li gação com Trave rsa ri . De fato, e m 1432 este esc reve u ao irm ão G iro la m o, que fo ra no mea do preposto do hospita l fl o re ntino de Lcmm o, para lhe reco m e nda r um j ovem , G iova nni A retin o, com quem havia es tre itado relações de g ra nde fa mili aridade em Ro m a. Rcgo li os i pro pôs, a j us to títul o, ide ntifi ca r es te G iova nni A retin o (que então não te ria mais de vinte a nos de idade) com G iova nn i Bacci, e não co m o m ui to mai s fa m oso C iovanni To rte lli, també m arcti no. 6 Esse m es m o G iova nni A rc tino te ria s ido ma ts uma vez recom endado po r Trave rsa ri, em sua estad ia em Fe rra ra em 1439 pa ra o concíli o, a Daniele Scotto, bi spo de Concórdia c gove rnador de Bolonha. Neste caso, a ide ntifi cação com G iova nni Bacci é seg u ra, po rqu e Trave rsari, ao elog iar se u ca rá ter e s ua pai xão pe las letra s, defin e-o com o cl é rigo da Câm a ra Apostó lica. A no m eação, qu e muito provavelmente

6

Sobre Tortclli, cf. Cirobrno Manci ni, Giottcllllli lintl'lli coopcrnto re d1 Nin·o/ci v 11 1'1 fo11dare la Hiblioteca Vatica11a, in "Archivio Storico lwliano", lXX V III ( 1920), 11, pp. 16 1-2lh; Rcvilo P. Oliver, "Giovanni Tonclli ", in St11dies prest'llted to OmJJd Moore l~obiii SO II 011 his Sevl'lltiet/J Hirtl1day , 11. Saint Louis: Was hington Univcrsity Prcss, 195.3, pp. t2 57-71; Ottavio Bcsomi, "Dai Gesta Ferdi111111di rexis Arago111cm dei Va lia ai De Orthograpl1ia dcl Tortclli ", in /ta/ia medioevale t' 1/lllllllistiw, 9 ( 1966), pp. 75- 121; Mariangcb Rego li osi, " Nuove ricerchc into rno a Giova n ni Tortcll i", in ibid., pp. 12.3-89, c 12 ( 1969), pp. 129-96 (sobre C iova nn i Bacci, cf. pp. 149-57); O ttavio Bcsomi, "Un nuovo autogra fo di Giovanni Tortclli : uno schcdario di umanis ta", in ibid., L} ( 1970), pp. 95-137; Maria rosa Co rt esi, " li 'vocabolarium ' g reco di Giovanni Tortelli ", in ibid ., 22 ( 1979), pp. 449-8.3. A carta de Traversari ao irm~ o é discutida por Regoliosi, op. cit., segunda p.lrte, p. 152 (doravante cit.1do como " Nuove ricerclw"). Ignoramos a data de na scimento de Ciovanni: sabemos apenas que, em ·1416, seu s pais j:í eram casados (cf. a :írvore genealógica reconstruída por Sa lmi ). l:le é mencionado antes dos demai s irmãos ta nt o n um documento de 14 58 (cf. Sa lmi, " I Bacci di Arczzo", op. cit., p. 216) qua nt o numa dis posição do testamento do avô fla ccio. Ao des tinar urna g ra nde soma ao hos pital do Spirito Santo " para os pobres alemães", Baccio na verdade queria que o primcmJ dire tor do hos pi ta l fo sse o neto Giovanni (c f. )a copo Bu rali, Vite dt' ' IW:<<'Otti areti11i ... rlall'ciiiiiO rccxxxv1 filio all'amw MVCXXXV/11, Arcz?O, 16.38, pp. 91-92; o legado c a respectiva disposição não aparecem na parte do tes tamento de Baccio publicada por Salmi, " I Bacci di Arezzo ", op. cit., pp. 2J)-J5)· Exclui -se que Ciovanni já es tivesse (141 7) em idade de ocupar o cargo de direto r do hos pital. vis to que Travcrsari, em ' 4)2, re fer ia-se a de como um "jovem"- A dis posição do tes tamento, portanto, referia -se ao futuro. De qua lquer forma , podl·mos assumir o ano de 141 7 como limite illllt' q11c111 para o nascimento de Ciovanni, que se situaria em torno de ' 4 10- 141 5.

O ciclo ele llrezzo

49

fora obtida graças ao apo io dos Medi ci, aos qua is Bacci se m a nteve ligado du ra nte toda a vida, datava muito provavelm ente do a no anterior/ Era um cargo impo rtante e bem remune rado: e m 1438, o papa Eugênio IV

havia es tabe lecido o limite de sete clé rigos para a Câ mara A postó lica,

com a jus tifica tiva explícita da co nven iência de não redu zir dema is os vencim e ntos destinados a cada um de lcs.B A partir daí Giova nni Bacci es tava s ol id a mente in ser ido nos ambientes huma ni s tas. Esc reve nd o de Bo lo nh a e m 1437, Lapo da Ca stig li o nchi o filh o o recome ndou em te rmos e logiosos ao bispo de Arczzo, Ro be rto dcg li As ini .9 No a no seg uin te, o hum an is ta a retino Carlo Mars uppini escreve u a Bacci co ng ratu lando-o pe la recente n omeação com o clérigo da câmara, e prome tendo e nvia r- Ih e (ev identem e nte em resposta a uma soli citação precisa) um cód icc do Banqu ete de Pla tão, antes pe rten cente a N iccolà

iccoli, tran scrito pelo monge Mi che le, 10

um colaborador de Travcrsa ri . Nesse pe r íodo, Tortclli fo i vis itar C iova nni e m Bolon ha. Não sabe mos qua l e ra o pa re ntesco e ntre e les: o certo é qu e as duas fam íl ias, Tortelli e Bacci, provi nham de Capolona , um burgo não dis ta nte de Arezzo." To rte lli tinha aca bado de voltar de uma lo n ga viagem pela Grécia c pe lo O ri e nte, o nde tran screvera códi ccs c e píg rafes, recolhendo m ate ria is qu e depois utilizo u em s ua obra principa l, o grande tratado de ortografi a latin a e m forma de dicioná rio

(De Orth ograp hia), qu e alcançaria um g ra nde s uccsso.

12

Em Cons ta n -

C f. Regol iosi, op. cit., p. 151. M a ncini (op. cit., pp. 1 Ro-8 1) iden tifica erroneamente o "Ciovan ni A retino" recomendado po r Traversari com Torte lli . Dessa identifi cação errada deriva a ex pressão " retornado do Oriente", usada por Manci ni (p. 180), que na verdade não aparece na ca rta de Trnversa ri (cf. [pistolae, op. cir., I. 11, cp. xxv). 8 Cf. a bula da tada de rerrara, 11 de ju lho de '4) 8, in Hullarium Roman11111, tomo v,Augustae Ta uri norum, 186o, pp. 32- JJ, reconfirmada e m 8 de j ulho de 1444 (ibid., pp. 76-8o). 9 Cf. Francesco Paolo Luiso, "Stud i su l'cpistolnrio e le t rnd uz io n i d i La po da Castig lionchio j unio re", in Studi italic111i di filologia classica, vn ("•899), pp. 254-5~ (c cf. Regoliosi, op. cit., p. 152). 10 Cf. id ., ibid., pp. 153-54. 1J Sobre a proven iê ncia da família To rte ll i de Capolona, cf. Manci ni, op. cit., p. ·162; em relação aos Bacci, cf. Camurrini, op. cit., p. 314. Os Bacci possuíam vá rios patro natos em igrejas de Capolona: cf. id., ibid., pp. 316 -17 (c Sa lmi, " I Bacci di Arezzo", o p. cit., p. 2JJ). 1 2 A ob ra, conclu ída verossimilmen te no veriio de 1453 c dedicada a Nico lau v, fo i pu blicada pela primeira vez em :1471, com várias reed ições. 7

50

tinopla, estreita ra relações com figura s, como lsido ro d e Kiev (fu turo cardea l Rute no), favorávei s à união religiosa com Roma; depo is vo lta ra

à Itáli a com uma delegação de gregos enviados ao Co ncílio de Basile ia para discutir a reconcili ação entre as ig reja s. Em ~439, na n1esma é poca da tra ns ferência do co ncílio e m que seu protetor, o cardea l Cesarini , desempe nhava um papel de relevo, Tortelli deixo u Bo lonha e fo i pa ra Florença. Bacci, qu e no m es m o an o se la ureou em di reito em S ie na, lJ talvez o ten ha acompa nhado. Uma carta e nviada a Leon a rdo Bruni pe lo are tino G iro lamo A lio tti, prior do m osteiro beneditino de Sa nta Flo ra e Santa Lucila, mos t ra que Giova nni Bacci (cuja d evoção por Bruni e ra m e ncio nada enfMicamente por Aliotti) estava em Fl o rença. Pouco depo is, em ~5 de janeiro de

1440,

o

mesmo Aliotti escreveu, da Fran ça (onde estava co m o legado a pos tólico), uma carta a Bacci, pedindo notícias sobre os pare ntes em A rezzo c enviando cumprimentos aos amigos comuns de Florença. Esses amigos e ra m Pogg io Bracciolini, Ca rlo Are tino (o já citado Marsuppini, que a lg un s anos depoi s s ubstituiria Leona rdo Bruni no cargo de ch an celer da Senh o ri a fl o re ntin a) e Leo n Bat ti sta A lbe rti . A respeito des te ú ltim o, Aliotti m e n cio nava "o caso referente a Ambrogio", sobre o q ual di zia ter escrito a Bacci inúme ra s vezes, a té e njoar. ' 4 Tratava- se da id eia de mandar escre ve r um a biografia d e Traversa ri, a quem A li o tti era muito afeiçoado. Depois de com e nta r o a ssunto com M arsupp ini, Aliotti fez a propos ta a Alberti , di ze ndo -lhe que o tema o ferecia g ra nd es poss ibilid ad es e estava à a ltura d e se u e n genho. ' í Mas ne nhum dos d o is, Mars uppini ou A lbert i, escreve u a biog rafia de Trave rsari: talvez tam bém por ca usa di sso, no diálogo De emdiendis monachis, concl uído em 1442, Aliotti te nha incluído entre os interlocutores, em posição

13 C f. Gamu r rini, op. cit., 111, p. 3 18 (pelo contexto rica ev iden te que o C iovan ni fh cci formado e m S icna era o utra pessoa, diferente do h omtm imo Giovan ni di Donaro Bacci). 14 Cf. Aliotti, op. cir., 1, pp. 27-JJ · ' 5 ld., ibid., pp. 33-34 (cf. também M a nci ni, Vitn di Lecm Ballista A lberti . Fl o rença: Sa n soni, 1882, pp . .1 79-80).

O ciclo de 11 rez;:o

51

de gra nde destaque, "Ambrogio ca maldolense, fê ni x incomparável de nossa e ra ", como escreveu na ded icató ri a ao papa Eugênio Iv.' 6 A prova documenta l da a m izade entre C iova nni Bacci, fu turo comitente de Piero e m Arczzo, e a lg uns dos perso nagens mais ilu s tres do human ismo tosca no (aos nomes já citados so ma-se, como dissemos, o de Bruni )'' tem importância decis iva. Até este m o m e nto, o ún ico víncul o seguro e ntre Piero e esse a mbi e nte consis ti a na presença s imul tâ nea de Piero e A lberti na corte rimincnsc em 1451 e n a de P io

11

Piccolomini e m 1458-59. Agora a bre-se a possib ili dade de recons tru ir de maneira mai s a mpla e concreta com o Picro, por meio de Ba cci e dos personagens a e le ligados, assim ilo u e reelaborou com o rig ina lidade certos elem entos da cul tu ra huma ni sta.

É nu m autê nti co clã de hum a ni s ta s de origem a retina que Bacci está inserid o. A lém dele, To rtelli, A liott i, M ars uppini ; m a is marg ina lmente, pois perte ncen tes a o u tra ge ração, fig ura s re nomadas co m o Leona rdo Bruni e Poggio (que não era arctin o, ma s vi nha do Va lda rn o). Nesse contexto, a o rigem da família A lberti (de a lgum modo a pa re ntada aos Bacci), de Catcnaia, no Va ldarno, també m se reve la pcrtinente.' 8 Entrevê-se uma solidariedad e geog rá fi ca, e n ão só cultura l e geracional. Ela o perava e se fortalecia po r um a d ensa troca de favo res e mútua s recomendações (no to r iam e nte abunda n tes nos e pi stolá ri os humanistas). Esses vínculos práticos re m etia m amiúde a re lações de parentesco, ca rnal ou espiritua l (Bacci e Tortelli era m paren tes de sang ue, To rtclli e Mars uppini e ram com padres). "1 Sob re todos esses ele m e ntos e nxe rta va m-se interesses cu lturais c relig iosos e m comum . De um lado, a paixão pe la a ntig uidade, e mais 16 17 18 19

Cf. Aliotti, op. cit., 11, p. 18 2. Sobre as rclnções entre Aliott i c Trnversari, cf. id., ibid., 1, p. x1v. Cf. id ., ibid ., pp. 27-28. C f. Gamurri m, op. cit., 111, p. Jl-7já falamos sobre o pnrentcsco entre Bacn c Torrclli . Quanto a Marsuppini, existe uma carta sua a Giovanni Torrdli, "nmpatri caríssimo" !compadre ca ríssimo], Rcmigio Sabbadin i (org.), " Briciole umanistichc", 1, in Ciomalc stvricv dellalettcmlllra italiaHn, XVII ( 189 1), pp. 212- 13 (Sabbadini utilizou uma cópia; o original está no Vat. lat. 3908, c. 5y). Rubcrt 131ack cita como exemp lo de "sloppy scholarship" ("The Uses and Abuses uf lconology: Pi c ro della francesca anel Carlo Ginzburg", in Tl1 c Qy(ord Art /o limai, 9, 2, 1986, p. 70) o fato de cu n:io ler levado em con ta a s~

especifica m e nte pela Grécia, demon strada pela viagem de Tortclli c pelas t raduções de Mars uppini da llíada c da Batracomiomaquia; de ou tro, a vo ntade de recompo r os fio s rom pidos pelo cis m a re li g ioso com as igrejas d o O ri e nte. São os te m as que conflu irão em h a rm o ni a n a personalidade de Travcrsari, a quem, direta ou indire ta mente, o grupo aretino es ta va ligado. Entretanto, são també m os tem as de Piero."' Até a maturidade, s uas escolhas icon ográficas c es tilís tica s g ira rão em torno dessa dupla im agem da Grécia, a ntiga e co ntemporâ nea. As fo rmas incorrupta s de um a cla ssicid ade muito m a is grega do qu e romana (pelo menos a nossos o lhos) lhe se rvirão para cx press;:Jr, e m mai s d e uma ocas ião, um progra m a político e re lig ioso de reconquis ta da Grécia c do Orie nte a n tes cri stão. Recons t ruir os víncul os e ntre essas escolhas iconog ráficas e es ti lística s e a rede" social em qu e e las toma ram form a perm itirá evitar ta nto a in terp reta ção icon ológica in controlada qu a n to o apelo a- hi stórico à " pe ren idade s ubte rrânea de certas fontes vis uai s" .22 2.

Deixamos Tortc lli em Floren ça, provavelmente em compa nhia de

Bacci. Nes te momento s ua s vi das tomaram rumos diversos. Em 1445, A liotti recomendou To rtclli ao human is ta G ua rin o Veroncs c. 2 3 Esse ~

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21

22

2J

datas de nascimento quase contemporâneas de Marsu ppin i e Tortelli. A crítica é devolvida a quem a fez: ro11patri deriva, j ulgo cu, do ita liano COIIlparr•, " designação que se dão reciprocam ente o padrinho e o pai da criatura batizada" (Sa ndro Ba ttaglia, Cra11de di;;iorwrio del/a li11grw italia11a, ad voce111. Tu rim: UHT, 1')6 1 ). Essa interpretaçiio me pa rcce muitíssi mo m ais plausível do que a proposta por Black, segundo a qual co11patri seria sinônimo do termo latino cl:íssico co111patriotae (concidadão): termo raro, parn o qua l o Thesa urus remere a duas inscrições e duas g losas. Salmi, La pittura di Pirro, op. ci t., p. 165, formu la a h ipótese de uma infl uência dcTrnvcrsari sobre Pi ero. O te rmo " rede" [reticolo[ é usado aqui m etaforicamente, c não na act:!pçiio rigorosa em qu e seu equivalente inglês [11etwork[ tem sido e mpregado numa série, agora nume rosa, de estudos sociológicos e a ntropológicos. Longh i (Piero, op. cit., p. r6; ed . bras., p. 35) fala em " pere nidade s ubterrânea de certas fontes v is uais que acodem nos m omentos decisivos aos sequiosos de in venções, recond ut:indo-os ir estrada pr incipal da t rad ição figurativa ", numa pági na que mereceria ser citada por inteiro. Nela a flo ram com especial evidê ncia as im plicações do " retorno à o rdem " que surgem aqu i e ali na m onografia de 1927. Ressalte-se, porém, que todo o trabalho concreto de Longhi, a começar pelos es tudos sobre Piero, contradiz a perspectiva a- hi stórica daqur.:la pngina. Cf. A lio tti, o p. cit., 1, p. ' 4 3·

O ciclo de Arezzo

53

gesto teri a um re s ultado pos iti vo: pouco de poi s, numa car ta a uma fig ura identifi cada ape na s co mo Michelangc lo de Borgo Sa n Sepolcro, A lio tti dava a e ntende r que Tortel li es tava preste s a obte r um ca rgo na Cúria. 24 Co m a ascensão ao tro n o papa l de Ni cola u v (n ascido Tommaso Pare ntu celli), g ra nde protetor dos huma nis ta s, teve início a carre irn curi a l de Tortclli, nom eado cubi culá ri o secre to e g ua rdião da Biblioteca Vaticana, e ntão em vias de fo rmação. 2 5 Po r o utro lado, quanto a Bacci, n ão dis po m os de informa ções seguras para es ses a nos. 26 Sabemos apena s que, a certa a ltura, e le ca iu e m desg raça e foi afastado da

â m a ra Apostó lica. Em 6 de junho d e 1447, escreveu uma carta

de Arezzo a C iovan ni di Cosimo d e' M edi ci, rech eada de lamúria s e pedidos de aj uda : "Toda a minha es pe ra nça es tá em vosso mag nífico pai e e m vós, seu s fi lh os

r... , Jo ve m

m e u , examina i com vosso s e-

nhor A lesso o m odo de m e tirar daqui c dar-me exercício em alg um luga r o nde e u possa se rv ir para a lg um a co isa. Peço-vos de toda s as m an eira s que m e respondai s logo : porque aqui não poderia estar m ais de scontente do que esto u . Adem a is, para lh e di ze r tudo, e u n ão me e n tendo muito bem com meu pai , poi s e le preferiria qu e e u nun ca me pusesse contra o patriarca, pelo qua l fui inju sta m ente re movido ". 2 7 O pa triarca q ue tinha inte rro mpido brusca mente a ca rre ira curia l de Bacci era Ludovico Trevisa no, patriarca de Aqui le ia, depo is a rcebi spo de Floren ça e (a partir de 1440) com a nda nte dos exé rcitos pontifica is e cardea l de São Lo urenço e m Damaso. Em s ua posição de cardea l came rl e ngo, e ra o s uperior di reto de Bacci - em co ndições, portan to, de exp ul sá- lo sumariam e nte.28 N ão se exclu i que o co nflito entre os ./.4 ld ., ibid ., pp. 161-62 .

.1.5 Cf. Mancin i, Giovr11111i Tortelli, op. ciL, pp. 208 ss . .1.6 As pesq u isas no acervo dn Câma m conse rvado em pa rte nos A rqu ivos Secretos do Vatica no [Archi vio Scgreto Vati cano], em pa rte no Arq uivo de Es tado, de Roma JArch ivio di Stato di Roma ], n5o mostraram, até o mo mento, o no me de Bacci. 27 ,,sr, Mediceo avan ti i/ Pri11cipato (duravante M AP), VIl, 1 (no mesmo acervo há mais 28 cartas de Bacci, todas indi cadas por Regoliosi, exceto Mlll', v, 805, a Giuliano di Piero de' Medici, dn tada de 16 de março de 1474). 28 Sob re o pa t ria rca de Aqu i leia, conhecido po r muito tempo sub o nome errado de Ludovico Scnmmpi- Mezza rota, ver o estudo fundamenta l de Pio Paschini, "Lodovico cardi nal cam crlengo~

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dois ta mbém envolvesse m o tivos políticos. Em 1440, o ca rdeal Ludo-

vico, com a s tro pa s dos Medici e os ho m e ns de Fra n cesco Sfo rza, de rrota ra em An g h iari o s ex il ados flore ntin os c Ni ccolo Piccinino. Doi s anos depois, as a lia nças s e in ve rteram: n a tentativa (fra ca ssada ) de conquis ta r as Ma rcas, o ca rdea l Lud ov ico se vi u co mba te ndo ao lado de Piccinino, n o m eado gonfa loneiro do Es tado da lg reja, contra S forza, aliado dos M cdi ci!9 Talvez a devoção de C iova nni Ba cci aos Medici tenha contribuído para a tra ir sobre s i a hos tilidade do podc rosíssim o ca rdeal ca mcrle ngo. De qualquer mane ira , o choque e nt re a mbos deve ter s ido m emoráve l. A lg uns a n os de po is, e m 1449, Mars uppi ni pediu a Torte lli que e mpregasse toda a s ua a utoridade junto ao papa e m fa-

vor de Bacci, exclamando que, se ele errou no ca lor da ira e da pa ixão, com o ocorre muitas vezes també m aos sá bios, não é jus to que por isso te nh a de pa ssa r toda a vida na humi lh ação, s obre tudo ago ra que se pode confiar em se u a rre pe ndim e nto. 10 Ma s, se Bacci e ra prope nso à ira , o cardea l Ludov ico, a julgar pela m a neira que fora re tra tado por

111..

Manteg n a, também não devia ser muito ca lmo. G raças às ins tâncias de Marsuppini e ao prestígio de Tortc lli junto a Ni co la u v, Giova nni Bacci conseguiu o bter o perdão. Em 28 de setem bro de 1449, e m Arezzo, ele escreveu a carta já men cionada a Cosimo de' Medici, contando que tinha ido a Fabriano, para o nde se transfe rira a co rte papal de Ro ma, para fu g ir da pes te. Reco rrendo aos bo ns ofícios do ca rdeal Co lo nna, encontra ra o ca rdea l Ludovico e havia sanado os "escâ nda los" pa ssados. Retribuía imediata m ente o favo r rece bido ~

(t 1465)", Roma, 1939 (i n Lntcrtllllllll, n. s., a. v, n. 1). Mesmo depois de nomendo ca rdea l, ele

con tinuou a se r designado como " patriarca": cf., p. ex., AS I', S igr~ori. Legazioni t' COIIIIIlissarie. t:lcziolli, istmzioni, /,•Itere , n. 15, cc. 147r, 149r. Nii o consegui saber a dnta exata em que Ciovann i Bacci foi afastado da Câma ra Apostólica: certamente antes de ·1446 (cf. Georges Bourgin, " La 'fa milia' pontificia sorro Eugenio IV", in Archivio dclla Società rvlnaun di storin pntria, XXVII 119041, p. 21 5, que arrola os nomes de seis clérigos, mas não o de Bacci). Há menção à presença de seis clérigos da Câmara Apostólica em cen os períodos do pontificado de Cugên io IV (o qunl estabelecera que nunca deveriam ultrapassar o número de sete: cf. acima, p. 48), in Adolf Cottlob, Aus der Camera Apostolim des 15. jahrlllluderts. Un /3eitrng wr Geschirl111' des piipstlichen fi1wn zwesens und des e11Ciende11 Mittelaltcrs. lnnsbrück: Verlag Wagnc1; 1889, p. 11 5_. 29 Cf. Pasch ini, op. cit. JO C f. Sabbad ini, op. cit., pp. 212- 1J ·

O ciclo de Arezzo

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1

recome nda ndo Mars uppini ("íntimo meu ") a Cosim o e m nome de Tortel li ("parente meu"). E passava e ntão para as ú ltimas novidades políti cas: le ra em Fabriano uma carta em que Sigismondo Malates ta reivindi cava indevidamen te o mérito da recente tomada de Crema po r parte dos

venezia nos. E o bse rvava: "conhece ndo eu a natureza do senhor Sig ism ondo [ ... ["Y A intimidade que, nessa data (1449), Bacci demonstra ter com Malatesta possui uma impo rtâ ncia evidente em ta l contexto. Com efe ito, dois anos de po is Piero pintou o retrato de S ig ismondo no Templo Malatcstian o. É m ais do que prováve l que tenha s ido o próp ri o Giovanni Bacci a recomendar Piero na co rte de Rimini. Veross imilmente gozando do apoio dos Medici, Ba cci (ta lvez tendo reto m ado a condição de laico) emp reendera nesses anos uma carreira na s co rtes da Itá li a centro-seten trional, mui to menos brilhante do que a ini ciada na Cúria, m as m esmo assim ca paz de lhe permitir a sa ída, vez por o utra, da odiada Arezzo. Suas ligações com os Malates ta se prolonga ram por muito tempo: em

1461, ob teve de Ma la tcsta Novcll o o cargo de podestade de Ccsena Y A hipó tese de que G iova nni Bacci, graças a s ua s ligações pessoa is, tenha co nseguido encom endas para Pic ro press upõe que a mbos já man tivessem relações nesse período. Por o ra não te m os nenhuma prova disso. Vale lem bra r, porém, que as con exões e ntre G iovann i Bacci c os comitentes docum entados de Pi cro não se limi tam a Sig is m ondo Mala tes ta. Escrevendo e m 1461, de A rezzo, a G iova nni di Cosimo de' M edici, Bacci declarava: " G iovanni, pa rece- m e que doi s senhores a natureza fez rnuito se me lhantes e ntre s i sob muitos as pectos: o duque Borso c o senho r Fcdcrico, sagacíss imos c rcfinadíssimos no viver como nenhum outro se nhor da Itália " . O s m esmos nomes, aqu i implicitamen te engra ndecidos também por suas q ua Iidades de mece nas (" refi nadíssi mos 31 Cf. C arnurrini, o p. cir., 111 , p. JJ5 · Tonelli també m n co mpanh;~ra Nicolnu v a rabriano: c f. Mancini, Giovn1111 i Tortelli, op. cit., p. 222. C rema tinh;~ sido infrutiferamente si tiada por Malatesta, e ntão co m;~ndante- gcml dos exércitos vc nczi;~ n os, e só caím após a traição de C:nlo Gonzaga, chefe das tropas milanesas. 32 AS F, M Al', XVII, 292 (ca na d;~rnda d e Ccscna, 27 de j;~nciro de 1461: Bacci a ss in;~ "potestns Cesc1111e"; cf. também Rcgoliosi, op. cit., p. J 57). Ver, com deito, A'>C, Rifortlllllrze, 47, c. 12v [ 1': de ja ne iro de q 6 1).

no vive r"), ressu rge m uma década m ais tarde (1472) numa carta a Lore nzo de' Medi ci, ao lado dos de Ba ttis ta Ca nedo li, M a la tcsta Baglio ni, Francesco Sforza: a todos e les Bacci diz ia te r sido "caríssim o". 11 O fa to de qu e Pie ro ti vesse com eçado a tra balhar e m Ferra ra já so b Bo rso é uma info rmação q ue re m o nta a Vasa ri; por muito te mpo contestada, foi comprovada rece n te m e nte po r C il be rt com bo ns fundam e ntos. 14 Quanto a Federico da M o ntefeltro, suas relações com Picro com eça ra m quase com toda ce rteza, como ve rem os, g raças a Giova nni Bacci.

J· Tud o isso ta mbé m pe rmite ex pli ca r de ma n e ira pla usíve l por q ue o prosseguimento do s a frescos n o co ro de Sa n Fra n cesco em Arczzo foi confi ado precisamen te a Pie ro. Com o di sse m os, eles t inh a m s ido iniciados, pelo m e nos desde 1447, por Bicci d i Lo re nzo, com toda certeza

,,c.~. ~- · .1

po r e ncom e nda de Fra nccsco Bacci, qu e assim execu tava as vo n tades testa mentais de se u pai Baccio. Bicci, velh o e doente, ch ego u a pinta r, à m ane ira antiqu ad a qu e lhe e ra pró pri a, a penas a abó ba da c um a pa rte da face infe rio r do a rco: e m 1452, e le m o rre u, com quase oi te nta anos. O fa to de que, para da r a ndam e n to à obra, a escolha reca ísse sobre um pin to r co mo Piero, en tão com pouco m ai s de t rin ta anos, ligado a uma cultura fig ura ti va mode rníss ima, é di fíci l de e n tender - a me nos que se supo nha que Froncesco tenha s id o aco nsclhodo a isso pe lo próprio filh o G iova nni, qu e vo ltora a A rezzo depo is de pa ssa r doi s a nos e m M il ão, na co rte d e Fra nccsco Sforza, n o cargo de " iudex maleficiorum ''. 1 ' 4; AS! , MAl', XXIV, J7 l . Numn cnrto de Ó de mnrço de 147) (A~ I , MAl', XXIX, L44), G iovann i Bacci lcmbrn como seus protetores, "em tempos de sn údc o u em te mpos de doençn ", osimo, Pi ero e C iovnnni de' Med ici, S forzn, Ho rso d'l:ste, os "outros senhores dn Ro magnn ", o conde de U rbi no. 34 Cf. Cio rg io Vnsnri, Le operf' COII llllove tlllllOIII: io11i e ronllllellli d1 Cne tollo Mi!tme; i, 11, Flo rença: Sansoni, 1906 (cópia anastáticn, Florença, '97J), p. 491 , e G ilbe rt, op. cit., pp. 51-52, que remete à da ta- julho de 1451- do a fresco perdido, visivelm e nte influe nci.1do por Picro, executado por Bono da r errara nos Eremitnn i. 35 Cf. Caterina Santoro, Gli rtffici dei domi11io sfo r: e,;co ( q <;o-1500). Mi lão: [d. d' A rte [mi lio 13cstctti, 1948, p. ·142: o "cximius vir O. loflllllii<'S de Bnrciis de Aretio" é nomeado "iudex mnlcficio nllll potestatis Medioln11i" com um estipêndio de dezesseis florin s. O deslize ("de Barcis" em vez de "de Bacciis") fo i cor ri gido I registri del/e ll'tt err ducnli dei periodo sforzesco. Milão: Tipographia U. Al lcgrcni di Ca mpo, 1961, pp. r6, 27,322, 324. A ca rta de norneaçiio, dntnda de -') JJ

ASr, MAl', VII,

() ciclo dt' A re:zo

57

!\ e norme dife re nça entre a abóbada c as paredes do co ro, po rtan to, muito provave lm e nte se expl ica pe la di s tâ ncia de geração e d e cultura que havia ent re Francesco e se u fi lh o G iovanni, co m educação human ista, p ro tegido de Traversn ri, am igo de Leonardo Bruni e de Alberti . Não sabemos qua nd o os afrescos fo rnm encomendad os a Piero. A cronolog ia do cicl o de Arczzo- a o brn m a io r d e Pi e ro- é até h oje u m problema não resolv ido. O único dado seguro é um limite ante

qu e111 : de fato, e m 1466 o ciclo era dado co m o concluíd o. ' 6 M ais In ce rto é o limite post qu e111 : 1452, provave lm ente - e mbo ra nã o se

24 de junho d,• 14 c; 1, foi registrada ex;H;Hncntl' um 111L'' depois. O 'mcs-o r de llacci, Angelo d.1 \'iterbo, ,l>>Umiu em 21 de 111.110 de q:;"\. B.Ku mention:n·n su.J> lig.1çüc, com 11\lllll''ro 'lforz.1 num.Jtart.l j.í citndn (cf. not,l 11). ote-st' que o erudito a retino I cderico Arturo M.1s'et.mi, em seuDi~ifri, Londuído em '940 ,. cmberv;Jdo em exemplar datilogr;Jfndo no Arquivo de l:,t;Hln, dt• Arczzo IArdu vio di Swto di Art•zrol, apresenta no wrbet<: "Bn,ci (de) Ciovanni (Me:,;er)": " juri~con :;u lto, poet.L Serviu .10 duque de Mil~o Ci.m C.J ie,v~:o SftH /,J l'm q_:;i> como ouvidor, c ao mor re1 L'' te o des1gnou ,·o mo tenente du c.1l. 1.-creveu um poem.1 sobre .b Cni/.HI.1< e tradu/lU p.11.1 o it.1liano De .-laris llllthenlnt> de Ciovanni Btll"l.JCtio. Conhece-se um.l r.ut;J su.1 .1 ( ·osnno de' Mediu com dnw de 2H de sett•mbro de 14-19"· Or.1, l'Sil" verbete,,. rdcn: ccrt.lllll"lliL' .10 pe r:;onagcm de que l'stamos f.1l.mdo, lwm como os tlados biogr:íiicos L'ITOilL'nmcn tt' Lolm.lllos por M.lsSL'tani nos vl' rbetes "B.Kri (tk ) Ciov.mni (i'vlon -.) di rr.lllcesco di Baccio" c " B.ln.l (de) Cio\'.llllli d'i\ngiol/\ntonio" (n.l verd.1tk Cim••Jnni d1 rr.mt-.:sco). ' I r.li,J-se de um dos lnu>nt;Í\ eis d,·:;li/e> que obrignm ,1 t r.llar l''le Di::iollt/1111, l'mbor.l n.lo lllUtd, com,) m.í,im.l l.llltei.J. l'\·idl'nll' que, no vcrb,·te Jcim.l rl'produ7ido, dcn• "' k-r 'Tr;mce:;u>" em ve7 dl' "Ct.ln C,Jkann". Por outro lado, nl'nhum B.ll.ci figur.Jcomo ouvidor cml'vlil,!o L'lll 14c;8 (a lllL'nos que'"' t r.liL' dl' um.1 co nfu s~o con1 .1 ;llividade de "i11dn llltllc·{iciomllt" dc,envolvid.l IH» :lllos ,lllleriorL's) ou como ten ente durai ( ()1)1 ,) mortL' de rr.li1Cl'"CO Sfor~:.L (1·. curioso que Coretti Mini.lli, "t\kuni ricordi", op. cit., p. 97, atribua dl' m.mcira igualtnl'llll' >niundndn t.Jrgos semelh.mte:;- podL'Stnde de M 1l:io em 14:;1- .1 Ginv;mni dr Dm111to B.Kct. ) L'nhum B.Kci uliJ>ta cnt re os vulgatv.Jdores do /)c darr:; lltllll<'rilms (d./\ntonio ;\ltamur.1, " Donnto da Ca't'ntino. Un ,·olgarinaml'nto trecentl'sCo dd ' lk ela ris mulicribw: dei Boccaccio (estratti da un codicl' itll'dito)", in 1\ tti 1' 111rmoril' dc·lla I<. 1\ccodemiu Petmrca, n. s., xxv I t'))H J, pp. 265-7 1; Vit to rio Zaccarin, "I volgn rizzamenti dei 13occaccio lati no a Vetll'zia", in St111li s11 l Rocmccio, x I 1977-78J, pp. 2Ho;-)06). essas condi•/>es, a atribui,.io de um pocm.1 ,.obrl' .1s cruzadns ,1 Ciovanni llan·i Sl' mostra, até p rovn em wntrário, não iidedignn nu, pelo menos, niio vcrific:ívd (as rderências bibliográiicas forncoda s por Massctani siio erradas ou niio justifica messn informaçiio). A sl'r comprovndn, confirm.l ria a inda mais a interpre tnçiio da iconograiia do ciclo arei in o a p rescn tncla nc•s tas pâginns. 16 Cf. Longhi, PH·ru, op. cit., pp. too-o t ; ed. bras., pp 296-97: " O s afrescos de Arczzo siio dtados em q66 como obra j;í concluída, como glória j~ ,tdqu irida de Picro".

r

possa exclui r que Piero te nha s ubs titu ído Bicci, então muito e nfe rmo, um pouco a ntes di sso. O prazo de ca to rze a nos é excess ivo, m es mo para um pintor a costumado a traba lh ar devaga rY Por isso a re ite rada tenta tiva de circu nscreve r o período da a tividade de Piero e m Arczzo. Numa situação caracte ri za da, de m odo ge ra l, por um a g rande escassez de docume ntos ex te rnos, adoto u-se a vi a da análise inte rn a, estilís tica e- com m enos freq uê ncia- icono lógica: com resultados, como se ri a de se espe ra r, bastante di ve rgentes. Exa mine mos os m a is fund am entados. Os critéri os de da tação e mpregados po r Lon g hi são excl us ivam e nte es ti lís ti cos. Ele uti lizou o afresco da tad o (1 451) de Rimini com o fóss il-guia para recon s tru ir a série comple ta. O fi o co ndu tor é dado pe la presença ini cia l e pelo progress ivo a te nua mento dos "g rafi s mos" de o rigem fl orentina discerníveis e m Rimini . A partir dessa base, e le co ns tru iu a hipó tese de uma cro no logia interna que coloca no início do ciclo as du as lune ta s (a Morte de Adão e Rest ituição da Cruz a

,,c~.;. , 4,

jeru sa lém) e e m seu fin a l a Derrota de Cosroés. Ma is es pecifica m e nte, a parte esq ue rda da Oerro tn- uma das po ucas com ce rteza a utógrafas deste a fresco- representnria o té rmino da a ti vidade de Pie ro no co ro de Sa n Francesco. Seguindo de cima pa ra ba ixo, a "evidê ncia de margens lin ea res de sabor 8o ren tino" (com o repe tiu Lo ng hi em 1950) cede a u m crescente cromatism o. 1H Esse critério de evo lução estil ís ti ca pe rmitiu a Lo n g hi s itua r crono logica m e nte o bras não da tada s, com o a Nossa Senhorn do Parto de Monte rchi, a Ress urreição de Sa n sepo lcro, a Madalena da ca tedra l de Arezzo, rem e te ndo as du as prim e iras respecti va m ente no início c

o co nclu são (ou

qu ase) do cicl o a re t in o e a terce ira n um período

37 O retábu lo da Miscriccírdia encomendado em 1445, cuja entrega foi sol ici tada por ofício dez a nos depois, veio a ser concl uído ta lvez por volta de 1462; o retábulo para os agostinianos, encomendado em 1454, só fo i finalizado em 1469 (embo ra Pie ro tivesse prudentemente solicitado um prazo de o ito anos para a e ntrega) (cf. Longhi, Piero, op. cit., pp. roo, ·ro z; mas, sobre a questão bastan te con troversa da crono logia do po líptico da Misericórd ia, ver adia nte). )8 Cf. Longhi, Piero, o p. cit., pp. 48 -49, 51 , 85; ecl. bra s., pp. 68, 70, "10).

O ciclo de Are:zo

59

,

imediatamente pos terior.J 9 M a is comp le xo é o prob le m a colocado nc. , 5

pelo São Lucas de Sa nta M aria Maggio re, e m que Longhi aponta o único resqu ício da atividade de Pi ero e m Ro m a, propondo du as datações alternativas: ou 1455, num inte rva lo do ciclo are tino, o u 1459. Essa in certeza se deve ao fato d e que Vasa ri m encio n a a penas um a esta da de Piero e m Roma, sob N icola u v, o u seja, entre 1447 e 1455, ao passo que a presen ça de Piero em Roma é doc um enta da com certeza somen te em 1459, durante o pontificado de Pio

11. 40

Ass im se a brem

duas possibil idades: ou Vasari confundiu Nicolau v co m Piou, como faz su po r a outra a firm a ti va de qu e Piero saiu de Roma para vo ltar a Borgo "ao morrer a m ãe", Romana, que fa lece u e m 6 de novembro de

1459;4 ' ou se refere a uma primeira estada q ue, à diferença da segunda, não deixou vestígios documentais. Ora, Longhi s upõe qu e Pie ro teria substituído Bicci di Lorenzo logo após s ua morte em 1452, vindo a con cl uir "s ubs ta n cia lm e nte" o cicl o

IICS.

7•

12

antes da es tada romana de 1459. Ao mesm o te mpo, a proxima em term os estil ís ticos o São Lucas à prim eira fa se dos a frescos aretin os, em especia l aos d a seg und a orde m (o Encontro de Salo mão com a rainha deSabá e Desco berta e comprovação da verdadeira Cruz)Y Tudo isso leva a excluir qu e o São Lucas possa te r s ido pintado e m 1459a menos, é claro, que se recoloque em discussão seu lugar n o desen volvimento es til ís tico de P iero ou m esmo as da tas iniciais e fin ais do ciclo. No entan to, Longhi não se decide a situ ar apenas a execu ção do São 39 ld., ibid., pp. y •, 53, 2·15; ed. bras., pp. 7 1,72-73 (na qual diz a propósito da I~ ess urreição: " parece se v incu la r claramente - c até preceder em a lg uns anos - ao estilo a retino mais maduro" ), 3 76. 40 Cf. Vasa ri, op. cit., 11, pp. 492-93 . 41 C f. respectivame nte ZippeL " Piero della Francesca ", o p. cit., e o documento publicado por Ba ttisti, Piero, o p. cit., 11, p. 224. É prová vel que Piero tenha ido a Roma jri no outono de 1.458: de faro, ele passou uma procuração a seu irmão Ma rco em 22 de se te mbro, evidentemente na iminê ncia da viagem (cf. id., ibid ., 11, p. 223). Por outro lado, são de 24 de outubro do mesmo ano os paga mentos para as tábuas dos andaimes necessá rios para pintar os afrescos da câmara papa l (é a obra a qu e se refere o pagame nto de 1 2 de abril de 1459 a Piero): cf. Zippel, " Pi ero della Francesca ", op. cit., p. 86. 42 Cf. Longh i, Piero, op. cit., pp. 1oo-m , 214; cd. bras., pp. 296-97,376. No te -se que a atribuiç5o a Piero não é unânime.

6o

Lucas na hipoté ti ca estada de Piero na corte de N icolau v, c cons idera a questão com o uma "s utileza cron o lógica " incompatível com a difi culdade de determinar "ano a ano o desenvolvimento ocorrido durante o cicl o dos afrescos are tinos". 1 J Na verdade, o qu e está em jogo aqui não é uma "sutil eza" , c s im a coe rência en tre a s várias hipó teses formuladas. É s ig nifica ti vo que justo di an te de uma obra como São Lucas, a qual, esta ndo em Roma c não em Arczzo ou arredo res, pode ser com maior facilidade rela cio nada a documentos de natureza exte rn a, mais ou menos fidedi g nos, Longhi perceba a dificuldade de tran s po r a cro no logia relativa, recons truída tão meticu losa mente em bas es es t ilísticas, para uma cro no logia absoluta c, por assim dize r, "e
43 C f. id., ibid ., p. 214; ed . bra s., p. 376 . À l ut: do que disse mos na nota 4 1, n propos tn de Lun ghi implicaria como limite

111lf1' lflli'lll

o outono de r 4 <;8.

O ciclo dí' A rezzo

61

fases distintas de execução: a primeira co ndu z ida pessoalmente por Piero, a segu nda rea lizada qua se toda pelos ajudantes.'' 4 É um a hipótese a ser rej eitada sem discu ssão, em primeiro luga r porque a construção de dois andaimes, m ais ca ra e menos segura, parece pouco plausível; em segundo lugar, porque a ma io r inte rvenção dos ajudantes no lado esquerdo da capela se explica de man eira muito mai s simples s upo ndo que Piero es tivesse trabalha nd o ao m es mo tempo, praticamen te soz i11 (; . 3

nho, no lado direito. Assim, e nquanto Picro pintava a M orte de Adão e o profe ta da dire ita (reconh ecidos como a utógrafos), os ajudan tes exe -

" " · 14

cutavam boa parte da Restituição da Cruz a jerusalém e todo o profe ta da esquerda, e assim s ucessivamente. (O que, é claro, não impediu qu e Piero interviesse nos afrescos do lado esqu erdo, em mínima m edida na

11c s . 1 3, 1 2

Derrota de Co sroés, e m m áxima m ed ida na Descoberta e compro vação da verdadeira Cruz; a autog rafia qu ase completa des ta últim a cena é compensada, na mesma o rdem , p ela tra n s ferê n cia da execução dos dois painéi s quadra ng ulares na s latera is da ja nela g rand e do coro aos ajudantes.)4 í A tud o isso se ac rescentam as co nvince ntes considerações de ordem es tilísti ca formul ada s por Lo ng hi , que leva m a r ejei ta r a sucessão propos ta por C la rk . Com o se disse, esta s upõe uma cisão entre a parede da direita e a da esquerda, que, segundo Clark (c aqui pa ssa mos da cronologia rela t iva para a absoluta), coincidiria co m a estad a romana de 1458-59. Pi ero te ria co meçado os tra balh os em San Francesco logo após a morte de Bicci di Lorcnzo (1452); tê- los-ia interrompido logo após a concl usão da

uc.

10

Vitória de Con stantino sobre M axê ncio pa ra ir a Rom a; tê-los- ia retom ado em 1459, ma s confi ando aos ajudantes a maior parte da execução do lado esq u erdo da ca pela, para terminar a ob ra por volta de 1466. Essa cronologia tem como e ixo a Vitória de Con stantino sobre Maxêncio, Cf. Cla r k, op. cit., pp. J8-J9, 52. Gilcs Robertson, numa rese n ha a Gi lbert, op. cit. (in Tir e Art Q twrt e rly, xxxtv (1971], pp. 356-58), interp reta mal a posição de Longh i, equi para ndo-a n este ponto com a de Clark. Tanto Robcrtson com o Philip llendy, numa ou t ra resenha ao li vro de Gi lbert (13ttrlington Magazine, c xtt [1 970], pp. 469-70), aderem à hipótese d os do is a nda imes fo rmu lada por Cla rk . 45 Em toda esta passa gem, acompanho os juízos de Lungh i.

44

que C lark cons ide ra executada e m 1458, devido às relações qu e a ligariam à obra Batalha de São Roman o de Paolo Uccello, pintada por vo lta de 1458.46 Trata-se, como é evidente, de um ponto de apoio ex tremam ente frágil, de datação controvertida, ca pa z de forn ece r no m áximo um limite post que111, c não uma datação ad ann w n. Isso não elimina o fato de q ue tal hipótese deu a C lark a o po rtunidade para considerações icono lógicas importantes, às quais volta remos m a is adiante. Batti s ti retoma à cro n o log ia inte r na recons truída por Lon g hi, formulando explicitamente, contra C lark, a tese d e um só a ndaime. M as, enq uanto Lon g hi s upunha terminado o ciclo antes da viagem a Roma, Batti s ti o con s id e ra começado após o retorno de Pi c ro de Roma , por volta de 1463. O s motivos ado tados para esse avanço na c ronologia abso luta d o ciclo são variados. Le mbremos os principai s (exceto um deles, que retomaremos à frente). Quando, e m 1473 e 1A86, P iero quis receber o sa ldo do pagamento que lh e era devido pelo ciclo de Arezzo, ele o foi cobra r de vá rios membros da família Bacci, mas não dos herdeiros de Francesco. Segundo Batti s ti, isso demons traria que, no contrato perdido, não con stava o nome de Francesco nem o dos filhos; o qu e, por s ua vez, dem o ns traria "com toda p ro babilidad e" que Fran cesco agora estav<:l "de a lg uma m aneira in vá lido ou ause nte " ou morto; m as, como e le fo i ente rrado em 28 de março de 1459, se ria p reciso dedu z ir qu e o contrato foi firmado somen te depoi s da vo lta de Piero de Rom a. '' A falta de lóg ica dessa cadeia co nje tura ! é pa te nte, c Piero não teria cobrado dos herdeiros de Fran cesco s in1plcs mentc porque eles já tinham pagado s ua cota de des pesas para a deco ra ção da capcl<:l de f<:l m ília. Ig ua lm ente infundada é a tentativa de dedu z ir <:l imposs ibilidade de um a lo nga permanência de Pie ro em i\ rezzo nos anos anteriores a

1458 pe la in exi s tê ncia de uma procu ração, como a qu e fez para o irm ão Marco ante s de ir a Roma: Ba t tis ti é o primeiro a reconh ece r que "A rczzo fi ca pe rtíssim o d e Sa nsepolcro ", razão pela qual Piero podia

46 Cf. C lark, op. cit., p. 52. 47 Cf. l.lattisti, Piero, o p. cit., 11, pp. 2J ss.

O ciclo de Arezzo

63

cuid ar pessoa lmente de seus ass untos, mes m o empenh ado n os tra balhos do co ro de Sa n Fra n cesco . As o utra s razões que levariam a tra n sferir o in ício do ciclo para depoi s da volta de Ro ma, e m torno de 1463, mostram -se, m a is do qu e " la rgamente hipotética s"- a inda é Battis ti a fa lar -, muito incons is te ntes o u m esm o improcede ntes. Apenas a presen ça de vis íve is deri vações da esta tu á ria antiga na l lt.. ;

M orte de Adão pa rece, à prime ira vi s ta, te r a lg um peso. Mas tampo uco ela pressupõe necessa riam e nte a permanência de Pi e ro e m Ro m a. Em Flore nça també m h avia cópias di s poníveis do Poth os de Escapa s, por exempl o, qu e ressoa na fi gura do jove m nu a poiado ao bastão.4 8 Le m bre-se a pro pósito que a datação tnrdia, por volta de 1460, propos ta

11c;. 2

po r Battis ti para o Batismo, que na verdade rem o nta a uma quinze na de a no s a ntes, ba se ia-se no m esm o pressupo sto a bs urdo, a saber, que Pie ro só pôde ter co nta to com a cs ta tuária a nti ga e m Roma em 145859, c não po r me io de sa rcó fa gos, j oia s, cópia s o u ta lvez originais, tam bém acessíveis em o utros loca i s. 4 ~ Q uase ao m es mo tempo que Ba ttis ti, Gi lbert propôs o utra cronolog ia, fundind o aq ue la relativa de Lo ng hi e a absoluta de C lark. Quanto

11<.~ c;, 14 11c;. •)6 11c. 6

à primeira, C ilbe rt di s ting uiu três fa ses es ti lís ti cas s ucess ivas: 1 . A s luneta s (n Morte de Adão e Restituição da Cm z a jeru salém), os doi s profeta s na s late ra is c o Tran sporte- o u m e lh o r, como ve re mos, o Soe rguirn ento - do lenho da Cm z à dire ita da ja ne la g ra nde do co ro ao fundo. Nesses afrescos, os con to rn os são mai s ncentu ados, os gestos mai s dram á ti cos (co m o na pa rte s uperior, a m a is a nti ga, do polípti co dn Mi sc ri có rdi" de Sa nsepolcro), os persona ge ns m"is individua lizados Cf. Gi ovnnni Bccntti, " li Pmhos di Scopn ", in Le nrti, 111 (194·1), pp. 40 ss. Uá lembrado por Gi lbcrt, op. t"it., pp. 7 1-72, nota 34) . Ve r agurn Rich ard Cocke, " Masaccio and thc S pinario, Piero and rhe Po1h os: O bse rvariuns on rhe Receprion o f rhe Antique in Rcnaissance Painring", in Zcil schrifl fiir Ku11 stgeschich1e, 43 ( 1980), pp. 2t-J2. 49 A di fusão n a arte quatrocentista do modelo clássico do guerreiro ve ncido com o joelho ao solo (re tomado também por Pieru na Derro/a de Cosroés) basta parn mostrnr que o crité rio de dataçiio propos1o por Battisri é in s u s r cn t ~íve l : cf. Otto ]. Brcndel, "A Knccling Persian: M ig rarion s of a M01if", in Essays ir1 tire I listory of A r/ Prese111ed lo l~utlolf Wi ttkower. Lond res: Phaidon, 1967, pp. 62-71; Laurie ~u sco, "A nwnio Pollaiuo lo 's Use o f the Antiqu e" , in joumnl of tir e Warllllrs 11111! Cou rtnuld /n ; tilu/es, 42 (1979), pp. 259-60, em es p. p. 260, nora 14.

48

do po nto de v is ta fi s io nô m ico (o perfil de Eva decrépita ), c o uso da pe rspecti va é escasso;

2.

As du as o rde n s inte rmediá r ias (o Encontro

11c.~. 7 .

12, ,,

de Sa lomão com a ra inha deSabá c a Desco berta e comprovação da verdade ira Cru z) e Tortura do judeu o esqu e rd a da j a n eln g ra nde do co ro. A qui aparece m pela primeira vez as ca racte rís ti cas q ue, m a is ta rde, seriam e m gera l associadas à pintu ra de Piero: a impassibilidade das fig uras, a sole nid ade da composição, a complexidade da perspect iva ressaltada pela presença dos edifícios; J. A Anunciação e o So nho

de Cons tantino, be m co mo as dua s o rde ns infe ri o res - a Vi tória de Cons tan tino sobre Maxêncio e a De rrota de Cosroés. Aqui, o inte ress e

••c:s. s. <J. •o.

predo minante de Pi c ro ago ra es taria voltado, seguin do os passos dos fl a m e ngos, pa ra a re presen tação dos e feitos de luz. Ta l recons t rução não aprese nta g ran des novidades em relação à propos ta po r Lo ng hi, embora G ilbc rt ins is ta no s urgimen to de uma fase es tilís tica dis tinta (a te rceira ) po r volta do fin al do ciclo, c a pro fund e a se pa ração entre as o rde n s intc rn1ed iá ria s e o pe ríodo precede nte - respectivame nte, a segunda e a prime ira fa ses. M as muito impo rta n te é a pro posta de rem ete r essa sepa ração à viagem de 1:458-59 a Ro ma. O g rande relevo dado às arquite tu ras no Encontro e na Descoberta

"'·~. 7

de ri va, segund o G il be rt, do contato com A lbe rti e, de m odo ge ra l, co m o a mbi e nte da corte de Pio r1.'o O pe ríodo de pe rma nê ncia e m Ro m a, po rta nto, teria dividido a ati vidade de Pie ro e m A rezzo e m duas partes, segund o a hipó tese já fo rmulada po r C la rk . M as, à dife re nça de le, G ilbert s upõe, con corda ndo com Lo ng hi, a ex is tê ncia de u m só a ndaime, que pe rmitiria a Piero e aos ajuda nte s uma re to m ada s imul tâ nea, nos dois lados do coro, da o bra interrompida. Pa ra dete rmina r o início e o fim do ciclo da verdadeira Cruz, G ilbcrt recorreu ao re tábulo qu e Pie ro pinto u pa ra os agos tinianos de San sepolcro, por volta da m esma é poca (ent re 1454, da ta do contra to, e 1469, data do último paga m ento) . No enta nto, aqui ta mbém não sa bemos exa tam ente os te m pos efeti vos de execução. Todavia, G ilbert indi ca um 50 Cf. Gi lbert, op. cit. , pp. 48-49 e passim .

O ciclo de Arezzo

65

n

,

limite plau s ível post que m para o re tábulo agostiniano: a primave ra de 1455· O contrato, d e fa to, é de outubro de 1454, e em janeiro d e

1455 Piero estava fora de Sansepolcro, como se d edu z do ofício que lhe foi enviado pe la irm a ndade da Mi se ri có rdia local, para retom a r o políptico que lhe fora e ncome ndado dez anos antes.5' Ora, o Santo da Fri ck Collectio n, unanim e m en te recon hecid o, pelo es t il o, com o o mais antigo dos pai né is remanescentes do políptico agostiniano (o central se perdeu), se ri a co ntemporâ n eo, segundo Cilbert, à primei ra fase do ciclo aret ino, as lunetas. A essa altura, esperaríamos a proposta d e adiantar também a datação dessas última s- adotando o ano de 1455 co m o limite post quem . No e nta nto, c com pouca coerê ncia, Gi lbert s upõe - corno já fi ze ra Clark- que a ati vidade de Picro em Arezzo te ria se iniciado por vo lta de 1452 c terminado cerca de quin ze a nos dcpoi s.' 2

4· O amplo consen so granjcndo (ii exceção de poucas vozes di scorda ntes, entre e las, em primeiro lugar, a de C lar k) pela cronologia interna propos ta por Longhi forma agudo contraste co m a total di vergência de opiniões ent re o s estudiosos no que se refere ao co m eço c ao térm ino do ciclo em termos a bso lutos de ca lendário. O objeto dessa d ivergê ncia se re s ume a <1 lg uns anos- se te, oito, no n1áximo dez . Ma s são anos decisivos. Supor que a obra maior de Picro tenha s ido co ncluída au/"es (Long hi), depois (Batti s ti) ou autes e depois (Cla rk, C ilbcrt) da viagem a Roma c da pe rmanência na corte de Pio

11

imp lica, em cada caso, re-

con struções muito dife rentes do itin erá rio pictórico de Piero. " "

Propomos reexaminar a ques tão tomando a via já adotada pa ra oBa-

2

tisuw: a análise conjuntn da iconogrnfia c do cornissio namcnto da obra . Ig nora m os quando foi formulado o programa iconográfico do ciclo de Arczzo. Ou seja, não sabemos se o tema da lenda da ve rdadeira C ruz já fora imposto a Bicci di Lorcnzo- c po rta nto fo i h e rdado po r Picro jun to com o comissiona m e nto da o bra - o u se, pelo con trá ri o (ma s é u ma 5 r C f. id., ibid., pp. 27 ss. Gilbert intc rpretn corretamente a data do ofício, sobre a qual Battisti se equivocou (cf. Beck, " Una data", op. cit.). 52 Cf. Gilbe rt, op. cit., p. 88, nota 40 .

66

hipótese muito menos provável), o programa foi definido apenas com a substitui ção do executor. M esmo um es tudioso com o Longhi, tende ncial mente indife re nte às questões iconográ fi cas, acabou por a tribuir gra nde importância à solução dessa a l ternativa. ~ 1 De fato, à primeira vista parece contraditó rio que um pintor moderno, embebido de cu ltura humanista como Picro, concordasse e m pintar um ciclo de afrescos sobre um tema lendário, em parte tra ns mitido por evangelhos apócri fos, e depois reelaborado por jacopo da Va razzc e m s ua Legenda áurea.q Como que para atenuar a contradição, Lo ng hi o bservou que, mesm o aceitando a hipótese de que Piero esti vesse a trabalhar sob re um tema es tabelecido com a nterioridade, é inegável que ele o rci nterpretou t rans formando a na rrati va sagrada numa "epopeia da vida laica e profana " : cenas de vida no campo o u na corte, batalha s com o se fossem torne ios, pai sagens diurnas e noturnas. 55 Para ava li a r as poss ibilid ades de rc interpretação iconog ráfica de Pie ro - ou de se us comiten tes-, n o te-se e m primeiro lugar que o tema da lenda da verdadei ra Cruz era trad icio na l, e tradiciona lmente - em bora não exclusivamente - fra nciscano. lsso fortal ece a hipó tese de qu e ten ham sid o os fra ncisca nos de A rczzo a s ugeri- lo aos Ba cci para decorar as pa redes da ca pe la-mo r, desde a é poca da primeira e ncom e nda a Bicci di Lorcn zo. Entre os três ciclos de afrescos sob re a le nda a nteriores ao de Arezzo, embora di s ta ntes al g umas décadas, dois foram pinta dos para igrejas da ordem fra ncisca na, Sa nta C roce e m Flore n ça c Sa n Francesco e m Volte rra, respectivam ente por Agnolo Gaddi (I 388-93) e Cenni di Francesco (c. 141.0). Picro o bse rvo u com g rande atenção sobretudo os a frescos de Ag no lo Gadd i (retomados na iconografia de Cenni em Vo lte rra ). ;6 Entretanto, a n tes de compara r os doi s ciclos, 53 Cf. Long hi, Piero, o p. cit., p. 82, ed. bras. p. wo (ensaio " Piero in Arczzo", de 1950). 54 Cf. jacopo da Varazzc, Legenda aurea, Thcodor Graesse (org.). Brcslam: Koebne1; 1890 (cópta anastática, O snabrück, Otto Zelle r Vcrlag, 1965), pp. }O}-n , 605- ·11 jed. bras.: Legenda áurea, trad. H ilá rio Fmnco Júni or. Siio Pa ulo: Companhia das Letras, 2003!· 55 Cf. Long hi, Pino, o p. cit., p. 82, ed. bras. p. 100. 56 Sobre o tema e m geral, ver também Piero Mazzoni, Lalegge11da del/a C roce llell'arte italia11a. Florença: Alfan i c Venturi, 19·14. Sobre o ciclo de San ta C roce, cf. Bruce Cole, Ag11olo Caddi. Oxford: Clnrcndon Prcss, 1977; ver també m Miklos Boskovirs, " In marginc alia bottcga di Agnolo Gaddi ", in Parago11 e, 355 (1979), pp. 54-62. Sobre as re lações e ntre os ciclos de -7

O ciclo de Arezzo

67

convém expo r ra pidam ente a lend a, segund o a ve rsão narrada por Jacopo da Va razze em s u a Legenda áurea -ve rsão a qu e se a ti veram Agnolo e, sessenta anos de pois, Pie ro. À beira da morte, Adão lembra que o a rca nj o Mi gu e l havia lhe prom etido um óleo milagroso que lhe sa lvaria a vida . O filh o Seth, enviado em busca do óleo às po rtas do Pa ra íso, recebe do anj o ape nas um ramo do qua l brotará o óleo da salvação, m as não a ntes de deco rridos 5500 an os. Set h volta ao pa i e o e ncon tra m orto: e ntão pla nta o ramo em sua sepultura. Do ra m o nasce um a árvore, que Sa lomão te n ta utilizar na cons trução do tem plo, m as em vão, po rqu e, a ca da vez qu e se corta o le nho, o pedaço é gra nd e ou peque n o de m a is. Ta l pedaço de madeira é e rgui do e la nçado sobre o rio Siloés, pa ra servi r de ponte. A rain h a de Sabá, em visita a Sa lom ão, vê o le nho e te m u ma prem o nição: em

vez de pisar nele, ajoelh a-se para ven erá-lo. A nuncia pro fe ti ca m e n te a Sa lom ão que daquele le nh o v irá o fim do rein o dos hebre us. Para evitar a profecia, Sa lom ão m a nda e nte rra r o lenh o na piscina pro bá ti ca . Mas o le nh o volta à superfície e é utilizado pa ra con s truir a c ruz em que Jes us é sacri fi cado. Trezentos an os depois, na véspe ra da ba talha con t ra Maxên cio na ponte M ílv ia, Cons tantin o tem uma visão: ap arece-lh e um a nj o, que o exo rta a comba te r sob o sig no da C ruz. Dessa for ma Con stan tin o vence e se torna imperador de Roma; depo is se conve rte e en via sua m ãe, H e lena, a Je ru sa lé m , pa ra procura r o le nho da verdadeira C ruz. O único que sa be onde es tá o len ho é um h ebreu de n ome Judas. Com o ele não quer fala r, a impe ra triz, H e le na, manda jogá-lo den tro de um poço. Re tirado de pois de sete di as, Judas revela que a C ruz está enterrada sob um te mplo dedicado a Vê nus. A impe ratriz Hele na m an da destruir o templ o: vê m à luz as t rês cruzes do Ca lvá ri o. Ide ntifica-se a verdade ira C ru z porqu e um jovem m o rto ress uscita a se u toq ue. H ele na restitui solen em en te a relíquia a Je ru sa lém .

...;.

68

Agno lo c de Pie ro, cf. Tolna y, o p. cit., pp. 222- 26, c Gilbcrt, op. cit., pp. 73-74, nota .36 (o nde se supõe, e ntre outras coisas, sem fu ndamento aparente, que a luneta da esqu e rda teria sido in iciada por Bi cci di Lo re nzo) .

Três séculos m ais ta rde, a relíquia é ro ubada pelo rei pe rsa Cosroés, q ue a coloca num a lta r ao lado de símbo los idó latras e se faz adorar com o Deu s. Heráclio, impe rador do Ori e nte, m ove uma g ue rra contra Cos roés, derrota -o c ma nda decapitá - lo. Volta a Jeru salé m co m g rande po mpa, ma s en contra a s po rta s da cidade mi lag rosam e nte fechadas. A pena s quando, exo rtado por um anj o, decide imitar a humilde entrada de C ris to em Je ru sa lém é que se abrem as po rtas. A ssim a re líquia da C ruz é devolvida ao Sa nto Sepulcro. A narrativa é distribuída po r Jaco po do Va razze em du as rubricas, que corrcs pondem a da ta s fixa s do ca lendá rio litúrgico: a descobe rta da Sa n ta C ruz (.3 de maio) c a exa lta ção da Sa nta C ruz (14 de setembro). À primeira data correspo ndc a pa rte da lenda que va i da morte de Adão à e ntrada da impera triz Hele na em Jerusa lém, com a relíquia reencontrada .

À segunda correspo nde a pa rte fin al: o ro ubo da relíquia por pa rte de Cos roés e s ua res ti t uição a Jerusalém po r o bra de H eráclio. No co ro da ig rej a de Sa nta Crocc, Ag nolo Gaddi represento u oito fa ses da le nda, em d uas lune tas e seis pa in é is quadrang ulares. A nar rati va com eça pela lune ta no a lto à dire ita (para o observado r de costas pa ra o alta r) e segue descendo; recom eça na lune ta no a lto à esquerda e termi na

"c.;~.

com o painel infe rio r esq ue rdo. A s e tapas da nar ra tiva são as seguintes: 1.

Morte de Adão;

2.

A rain ha de Saúá se ajoelh a dia11 te do lenho da Cruz;

3· Co nstrução da Cm z; 4· A imperatriz Helena faz a prova das três cm zes;

5· A impera triz Helena leva a Cm z a jem snlém; 6. Cos roés re tira a Cru z de jerusalém;

7· Cosroés é adorado pelos slÍditos. So nho de 1/ erác/io;

8. Decap itação de Cosroés. Heráclio restitui a verdadeira Cruz a jeru salém .

O ciclo na igrej a de Sa nta C roce, que a bran ge a descoberta e a exa ltação da C ru z, seg ue fi e lme nte o texto da Legenda áu rea, ex ce to num po nto: o a njo apa rece a H e ráclio, e não a Cons ta ntino. Por o utro lado,

O ciclo dr Arezzo

69

r6-2J

a identifi cação de H e rácl io 57 é inqu es tionável, por ca usa da presença de Cosroés no mes mo painel e no subscqucntc. Passem os ago ra ao ciclo de Arezzo. Es te di vide a le nda da C ruz e m dez pa in éis quadrangu lares: m ais precisamente, quat ro pa inéis maiores, q ua t ro menores, duas lun etas e dua s fig u ras de profe tas não identifiJJcs. o;- 14

cados. O conjunto está dist ribuído na s duas paredes laterais c nas duas fa ixas de parede q ue ladeia m a ja nela g ra nd e do co ro. As ce nas representadas são as seguintes: 1.

Morte de Adão;

2.

Tran sporte do lenho da Cruz;

3· A rainha de Sabá se ajoelha diante do lenh o da Cmz. Encontro de Salo111iio

con1

a ra inha de Sabá;

4· A 111111Ciaçiio; 5· So nho de Constantino; 6. Vitória de Constantino sobre Maxêncio;

7· Tortura do judeu;

8. Descoberta e com provação da verdadeira Cntz; 9· Derrota de Cosroés; 10.

!Zestitu ição da Cruz a jerusa lém .

Essas cenas, a q ui ar ro lada s em ord em na rrativa, se des loca m es pa cialm e nte da seguinte m a neira: 1

o

profeta

8

7

2

J

9

4

5

6

57 Cf. Mazzoni, op. cit., pp. 111-12.

profe ta

1

Isso significa qu e a narração (excluindo as figura s dos dois profetas) começa pela lun e ta no a lto à direita e te rmina na lune ta no a lto à esqu erda. Na s paredes laterais, as cen as se suce dem d e cima para baixo (na parede da direita) e de baixo para cima (na parede da esquerda) . Cada pain e l maior é precedido, nas fa ixas de parede que ladeiam a j a ne la g rand e do coro, por painéis m enores, di spos tos respectivam ente à esquerda da parede d a dire ita e à direita da parede da esquerda. Com isso, o olhar do es pectador é con vidado a um duplo percurso: de cima para baixo e da es querda para a direita (na pa red e da direita); de baixo para cima c da dire ita para a esq ue rda (na parede da esquerda). A inegáve l coe rência d essa d is tribui ção permite ide ntifi car na chamada Remoção da pon t e o Tra nsporte do lenho da Cruz em direção

nc. 6

ao ri o Sil oés, que na le nda é im edi atamente an terior à chegada da rainha deSa bá. No e ntanto, há dua s exceções g ri tantes e contíg uas, que alteram de m a ne ira vi s íve l a sequ ência narrativa: a Anunciação c a De rrota de Cosroés. Essa d upla a lteração deve te r s ido dete rminada

IIGS. 8 1}

(mesm o que não saibamos exntam cnte como) pelo prog ress ivo a fa stamen to de Piero da iconografia tradi ciona l do ciclo. 's Co m efeito, ao exa minarm os a parte mai s a ntiga da atividade de Piero em A rezzo - as lunetas -, vemos que ebs ap resentam duas cena s que corrcspo ndem, a despeito do dife rente des loca me nto espacial, ao início e ao fim da na rrativa pintada por Ag no lo Gaddi em Santa C rocc: a 5S

Mu itos estudiosos têm tentJdo <.'xplica r a falta de ordem das cenas com a busca de pn ralclismos ti pológicos ou ou tros: cf. M ichai l A lparov, " Ll'S frcsqucs de Picro de! la Frnncesca à Areno. Scmn ntiqu c c t stylistique ", in Collllll~lllllri, XJV (196_3), pp. 17-_38, e Laurie Schneider, "Th e Jcon ography o f l'iero de ila Fra ncesca's Frescoes lllustra ting the Legend of th e True Cross in the Church oiSan l'ran cesco in Arezzo", in Thi'Art Quarlerl y, XXXII (·1969), pp. 22-48,cmesp. pp . .37-4.3 (nenhum deles convincentl', sobrerudo o primeiro, que interpreta a disposição dos afrescos como uma recapitulação da hist<Íria da humanidade, que constituiria o se ntido oculto do ciclo). A hip<Ítcsc de uma mudança iconogrrifica foi fo rmulada por Avigdor W. C. Poscq, The Lunett e, jeru salém, 1974 (tese de dou torado), p. 563. Vem il men te a famosa observação de Frcud: " Na deformação de um texto há algo de semelhante ao que ocorre no caso de um crime: a dificuldade não reside na execução do delito, c sim no ocultamento dos vestígios" ( L'zwmo Mo e la religione lllOIIOfeistica, trad . ital.Turim: Bollati Bonnghieri, ·1977, p. y r jcd. bras.: Moisés e o monoteísmo, trad. Ma ria Aparecida M oraes Rego. Rio de janeiro: !mago, 1:996]). Entre os vestíg ios aqui não examinados está o C upido cego, pintado no afresco da coluna da esquerda; su a presença no ciclo con tinua incxplicada, a despeito das vá rias hipóteses fo rmuladas.

se

O ciclo de Arezzo

71

ncs. 5 - , 4

Morte de Adão e Heráclio restitui a verdadeira Cruz a jerusa lém. Afo ra a clara dife rença estilística entre os dois ciclos, qu e aq ui n ão nos in teressa, entrevem os nos doi s casos um idê nti co prog rama icon ográfico: o mesmo, é provável, sugerido pelos franciscanos aretinos, de acordo com Francesco Bacci, a Bicci di Lo re nzo. Ma s, a pa rtir da o rdem interm ediária, surgem em Arezzo novidades icon ográficas de ta l envergadura que impregnam todo o ciclo com implicações muito d ife rentes das originais. Não estam os pensa ndo, ao dizer isso, nas ce nas da vida cotidiana representadas em dois painé is m enores nas late ra is da janela gra nde do coro -

,,cs.11 , 6

a To rtura do judeu e o Transporte do lenho da Cruz - , que podem ser interpretadas com o pu ras di vagações narrativas, m as e m ele mentos qu e indicam uma verdadeira mudança de progra ma . São e les:

7

1.

a ce na do Encontro de Sa lom ão

ncs. 22, 9

2.

a tra ns form ação do Sonho de H eráclio de Agno lo Gaddi no Sonho de

I"IG.

co 111

a rainha deSabá;

Constantino- trans fo rm ação a inda mais sig nifi ca tiva dada a eviden te analogia ent re as duas composições; 11c.

w

nc.'

3· a ce na da Vitó ria de Constantino sobre Maxên cio; 4· a represe ntação de Co nsta ntino na Vitó ria com os traços do im pe rad o r do Oriente João vru Paleólogo.

Todos esses ele m e ntos - exce to, ev identem e n te, o último - são justifica dos pe lo tex to da Legenda áurea . No entanto, a inserção de les não parece derivar da vontade de aderir à n ar ra ti va de jacopo da Varazze. Vej amos as razões. Nas representações da lenda da verdade ira Cruz, a presen ça do e ncontro e ntre Salomão e a rainha de Sa bá é totalme nte anômala . Era Fie. 2 4

frequ ente n os baú s nupciais toscan os da é poca,59 que pa recem reverberar lo nginqua m ente na m on tagem compos itiva de Piero, traduz indo o faus to goticizante daquela s peças num a rigorosa disciplina volumé tri ca

59 C f. Paul Sch u b ring, Cassoni (1915]. Le ipzig: Nabu Press, 2010, nn. 192 -97, 4 25-26 etc., c pp. 111, 204.

e espaciaJ.6o M as La uric Schne ide r ide ntificou um autên tico precedente iconog rá fi co d o afresco de A r ezzo na pequ e na ch a pa e nta lha da po r G hi be rt i em 1436, com te ma aná logo, pa ra a po rta les te do ba tis té rio de Flo ren ça. 6 ' Rich a rd Kra uth e im c r a interpre tou com o um a alu sã o

""

2

5

fiG S.

9•

às esper anças de unida de re li g iosa e nt re a Ig reja cri s tã do Ocide nte (Sa lo m ão) e a do O ri e nte (rainh a de Sa bá), s upo nd o de fo rma convincente que o tem a te ria sido suge rido a G hiberti po r Ambrogio Travc rsa ri, cujo re trato es tá prese nte e ntre os circ uns ta ntcs. 62 A m es m a inte rpretação, seg undo Schn eide r, va le pa ra o a fresco de Picro. Note-se, po ré m , qu e ao lo ngo de vinte anos a s itua ção g radua lm e n te se alterara, muda nd o ta mbé m, e m decorrê ncia disso, as alusões decifráve is na cena. Quando as po rtas de G hibe rti fora m exposta s ao pú bl ico, e m

1452, a chapa podi a se r en te ndida co m o rem e m oração da unidade relig iosa q ue se alca nça ra no Concíl io de Flo re nça, e depo is logo desfe ita. Na s pa redes de Arezzo, o e nco nt ro ent re Sa lomã o e a rainha deSa bá se ca r regava de um novo sig nificad o, uma vez que a co nqui sta turca de Cons ta ntinopla (1453) ago ra vinculava indissocia velmen te o te ma da un ião re lig iosa com os orie ntais ao tema da cruzada contra os in fié is. Passe mos a Con s ta ntino. Ele n ão aparece no ciclo de San ta C roce, à diferença de sua m ãe, a im pe ratriz H e lena, ao passo q ue o cicl o de A rezzo lh e ded ica do is pain éis: o So nho c a Vitória. É a presença des te último que impede ve r no primeiro uma s imples re t ifi cação do Sonho

de Heráclio de Agnolo Gaddi com base no tex to da Legenda áureames mo porqu e Picro funde no Sonho du as passagen s di s tin tas, q ue

nc:.

11(,.9

descrevem respecti va mente a apa rição de um anjo indica ndo um a cruz no céu a ntes da ba ta lha do Danúbi o c a a par ição de C ri sto co m u ma

6o C f. W::~rburg, '' L' ingresso dcllo stile ideale", in La ri nasci ta, op. cit., pp. 290 ss., sobre a contraposição entre representação heroica da ::~ntiguidade (Piero) e representação da a ntiguidade em tmjcs contemporâneos (exemplific::~da por um baü d,• Benozzo Gozzoli) . Essa contraposição tende a se esfumar in Erwin Panofsky, Renaissann• fmd Renascences i11 Westem Art. Ups.1la : Harper To rchbook, 1961, p. 172. 61 Cf. Sch ncidcr, op. cit. 62 Richa rd Krau theimcr c Trude Krautheimer- l lcss, Lnr••nzo Chiberti (N. J.). Princeton: Princcton Univcrsi ty Prcss/ Oxford Prcss, J 956. pp. 180-87.

O ciclo de Arezzo

2Z

73

IO

cruz na m ão antes da bata lh a da ponte Mílvia. Mais do que o desejo de manter m aior fidelidade à narrativa de Jacopo da Varazze, percebe-se a intenção de dar um in só lito relevo à fi g ura de Con sta ntin o. Isso é evin c. , o

dente na Vitória, que C lark inte rpre tou com o alu são ao tema da cruzada.6J Essa alusão seria reforçada pela ide ntificação de Con stantino com João v rrr Pal eólogo - amiúde ressa ltada, mas nunca justificada a não ser em termos genéricos. 6 4 5· Todos esses elementos, portanto, indicariam o s urgi mento, a partir da segunda ordem, de um programa iconográfico relacio nado, de m aneiras que especifi carem os adiante, à C ru zada . Ca be lembrar q ue a n ovidade estilís tica dos afrescos da segunda ordem em relação às lunetas, ainda ligadas ao lin earism o fl orentino, havia sido des tacada por Long hi . Gilbert,

Fie.

7

II G .12

por seu lado, identificara na s arquiteturas de sabor albertiano do Encon-

tro e da Descoberta o res ul tado da estada romana de 1458-59. A aceita r essa hipó tese, vem os que o a fas tamento iconográfi co c o es tilís tico coincidem com a mud ança de com iten te: Francesco Bacci foi sep ultado em

28 de m arço de 1459, c é verossímil que a respon sabilidade da deco ração da capela da família tenha passado, com a mo rte do primogênito N iccolo naque le ínte rim, ao filho vivo mais ve lh o, Giovanni. 6 5 Sem dúvida é pla usível que Giovanni te nha s ugerido a inserção da nc 7

ce na do Encontro de Salom ão com a rainha de Sabá. Su as ligações pessoais com Traversari e, de modo m a is ge ra l, com o g rupo favorável

à uniã o entre as ig rej as ex pli ca m com facilidade a referên cia à chapa de G hibe rti, nascida naquele m esmo am bie nte. Pode-se notar que o gesto I I c.

26

da concórdia, núcleo emotivo do baixo-relevo de G hibcrti e do afresco 63 C f. Cla rk, op. ci t., pp. J8-J9 · 64 " [ . .. [ conseguimos reconhece r pelos traços do rosto de Consta ntino[ ... J um pe rsonagem da época que, em ve rdade, tinha o dire ito de se apresentar sob esta fi g ura : o impe ra do r g rego João Paleó logo", escre ve Wa rburg (" L' ing resso", op. cit., p. 29·1; cf. do mesm o autor Die [me11eru11g, o p. cit., 1, pp. 390 -91). N enhum dos inté rpretes pos terio res fo i a lé m da con sta tação da con g ruê ncia entre a representação de Constantino so b os traços de Pa lcólogo c o tem a da cruzada. 65 Cf. Salmi, " I Bacci di Arezzo", op. cit., p. 236. G iova nni 13acci não e ra em a bsoluto o p rimo gên ito, com o cu havia afirmado erroneame nte : cf. Black, op. cit., pp. 68, 71. Black considera improváve l q ue G iovanni, a miúde a usente de A rezzo, tenha tratado dire tamen te com Piero.

74

aretin o, já se fazia presente, co m as mesmas implicações simbóli ca s

Hc. . 2 7

alusivas à união entre as ig rej as, no quadro e ncom e nd ado a Piero pelos ca maldo lenses de Borgo, para h om e nagear indireta m e nte a m e m ó ri a de Traversari: o Batis mo de Cristo.

n c. 2

Contud o, o qu e sabemos sobre a biografia e a personalidade de Cio vanni Bacci n ão justifica a prese n ça em Arezzo de João

v 111

Pa leólogo

sob as ves tes de Co ns tantino. Esse porm e nor, decisivo para a identificação do programa iconográfico do ciclo - ou m elhor, de s uas impli cações finais - , se explica com a inte rve nção de o utro personagem , muito mais célebre: o cardeal Bessarion . 6. O utros es tud iosos já leva ntaram a hipóte se de a lguma li gação entre Piero della Francesca e Bessarion , embora com argumentações vagas ou, como verem os, n ão ple nam e nte con vincentes. 66 Em todo caso, nunca no ca so dos afrescos de Arezzo. No entan to, existe uma série de dados fatuais que torn am bastante verossímil a hipó tese de um a intervenção de Bessarion n a reelaboração do programa iconográfico do ciclo a retin o. Entre os pre lados gregos que chegaram à Itália em 1438 para o concílio, Bessarion, bi spo m etropo lita de Niceia, ocupava, embora jovem (era nascido em 1403), uma posição de grande re levo, tanto pela doutrina, qua nto pelas re lações pessoa is que o ligavam desde longa data ao imperador João vm Paleólogo. Durante as dis cussões concilia re s, ele se aproximou cada vez m a is da s posições dos teólogos ocidentais, até se tornar um dos defe nsores m ais convictos da uni ão co m a igreja de Roma .6 7 Foi ele, junto com o cardea l Cesa rini, a proclamar solenemen te 66 O primeiro a propô -la, ao que eu saiba, foi Marinesco, basea ndo-se nas relações en tre Bcssarion c Federico da Montefeltro (cf. " Échos byzan tins", op. cit., pp. 193, 20 2-o)) . A suposição de que Piero possa ter encontrado Bessa ri on, em Urbin o (p. 203) não leva em conta a opo rtunidade o ferecida pela estada romana de Piero em 1458 -5 9 (ve r adia nte). i\ me nção (p. 2 0 2 ) a um retrato perdido de Bessarion, sobre o q ua l cf. adian te, pp. 119-21, pintado po r Picro, deriva de uma passagem especialmente ema ranhada de Vasa ri . Marinesco atribui a Bessarion uma função de intermediário entre dete rminados tem as da tradição iconográfica biza ntina e Piero. Outra conexão é proposta por Thalia Gouma- Peterson, num ensaio que scní analisado adia nte (pp. 93-94). 67 O estudo mais extenso sobre Bessario n continua a se r o de Ludwig Mohl er, Kardinal Bessario11 ais Theologe, 1/um rmist 11 nd S taatsnwnn . Aalen: Scie ntia Vcrlag/ Padcrborn/ F. Sch ün ingh, ...;>

O ciclo de Arezzo

75

o ato de união e m Santa Maria de! Fi ore, em 6 de julho de J 439- Vo ltando a Cons ta ntin o pl a, chegou- lh e a notícia de s ua no meação como c:Hd ea l padre dn basílica dos Sn ntos Após to los. Reto rnou no ano seg uinte à Itá lia, o nde se esta be leceu definitivamente, ce rca do por um incontes te prestíg io re ligioso, cultura l e político. En1 1.449, tornou -se cardea l bispo de Sabina e, depo is, de Tuscolo; e ntre 1450 e 1455 foi legado a latere para Bolo nha, Ro manha e Marca d e Ancona; no con -

cl ave de 1455 es teve a ponto de se tornar papa. S ua casa na s prox imidad es do s Sa ntos Apóstolos, o nde re unira e m a nda va tra nscreve r uma gra nde quantidade de manuscritos la tinos e sobre tudo g regos, era o verdadei ro ce nt ro do huma nismo roma no. Para conhece r melhor o pensamento de Platão, com eça ra a redig ir a obra In calum niatorem

Platonis, contra G iorgio da Trebi sonda, publicada e m latim em 1469. /\qu i não ca be pe rcor rer e m de ta lh es as etapas da vida de Bessa rion, ma s cumpre le mbrar sua nomeaçno, em

1

protetor d a ordem dos frades m e nores.

o de setembro de 1458, com o

68

É uma das peças resta ntes

do m osaico qu e es ta m os recon s tr u indo. D e fato, o ca rgo de prote tor to rnava legítima um a interven ção de Bessarion n a deco ração, tem porariam e nte s uspensa, d a ca pe la Bacci na ig reja de Sa n Fran cesco. Po ré m, a lé m de legítim a, ta l inte rve nção era co mpree ns ível di a nte das relações qu e de via m existir e ntre Bcssa ri o n c Giova nni Bacci: não tanto pelo cargo outrora ocupa do por este n a ad mini stração pontifica i quanto pelo pnrentesco que, como sabem os, ligava-o ao huma nis ta Giova nni To rtc lli , ex- bibliotecá rio da Vaticana. Naque la é poca já finda ra a ca rreira curi al de Tortelli: mas, até poucos anos a nte s, e le mantivera ~

1923, 1927, 194 2: um volume de biografia, doi s de tex tos publicados c in éd itos. Pa ra uma atualização não só bibliográfica, ver o ó timo verbete redigido por Lo u e Labowsky pa ra o Di: icmn rio /Jiogrnfico degli italia11i. Ro ma: lstituro dcll'[nciclo pedia Ita lia na, 1967,9, pp. 686-96. Sobre a posição durante o concílio, cf. )oseph Gill, " Was Bessarion a conciliarist o r a unionist before thc coLmcil of rlo rcnce?", in Collectcmen by:a111111a. Roma: Po nti fici um lnsti tu tum Orientalium Studiorum, 1977, pp. zo 1- 19. Para as rc laçôes com João V III , ver ramb0rn Anna Gcntilini, " Una consolatoria ined ita dei Bcssarionc ", in Srrrtt i ;, o11ore di Carlo /)iallo. Bolonha: Patron, 19 75, pp. 149-ó4 (são três sc m rcm es escritos por ocasião da morte da im pe rat riz Maria Comnena). ó8 Cf. Ray mond -joscph Loc ne rtz, " Po u r la biograp hic du cardina l lkssarion ", in O riclltnlia Christia11n Pcriodicn, x (1944), p. 284.

um intercâmbio muito ce rrado com Bessarion, prin cipalmente por in terméd io de seu secretário, Niccolo Perotti. 69 Tudo isso torna plau sível uma relação direta entre Bessarion e G iovanni Bacci. Ademais, há uma circuns tância que tran sfo rma essa plau sibilidade em ce rteza - ou quase. Em agosto de 1451, po u cos anos a ntes d e Piero começar a trabalhar no ciclo de Arezzo, chegou à Itá lia, vinda do Oriente, uma re lí-

11<..s

guia da verdadeira Cruz, g uardada num escrínio adornado de image ns. O portador e ra G regório Melisse no, dito Ma mma s, patria rca de Constantinopla, re fu g iado em Roma para esca pa r à hostilidade do partido contrário à união das igrejas, que não lh e perdoava o pape l qu e desempenhara dez anos antes no Concílio de Fl orença .7° Após a queda de Constantinopla (1.453), o relicário permanece u na ltá lia . Pou co a ntes de morrer (1459), Gregório o de ixo u como h erança a Bessarion, que tanto lutara pela união das igrejas. Em 1472, às véspera s de partir para a legação da França, Bessa rion, agora velho e doe nte, deixou a relíquia, que lh e era muito querida- e já tinha sido objeto de uma doação inter

vivos e m 1463 -, à Scuol a Grande de lla Ca rità de Veneza, hoje sede das Ga llerie dell ' Accadem ia, onde se e ncontra .?' Ora, essa re líquia a ntigamente fora de propried ade da famíl ia Pal eó logo. O escrínio traz uma inscri ção em grego a tribuída à princesa (re ne Pal eó logo, " filha de um irmão do imperador". Hoj e em dia pre fe re-se con s ide rar essa !re n e, tradicio nalm e nte identifi cada com a filh a do impera dor Mig u e l1x, coroada imperatriz em 1335, um a neta do impe rador João V III, deslocando

69 C f. Giovanni Mcrca ti, Per In aonologin del/a vila e degli scritti di N iccolà Perotti 11rriveswvo di Sipo11to. Cidade do Vaticano: Biblioteca Apostolica Vaticana, 1925. 70 Cf. Gi ll, op. cit., p. 448. 71 Cf. e m esp. (C iovanni Ba tistt a Schioppa lalba(, Tratado sobre a a ntiga tábua sagrada g rega, dada de presente pelo ilu stríssimo Ca rdeal Bcss:í r io à insigne Compan h ia de Santa Maria da Ca ridade dos Venezianos, Veneza, 1767. Ver també m Giuseppc Cozza Luzi, "La croce aVenezia dcl ca rd. Bessarionc", in Bessa rio11e, VIII (1904 ), pp. 1-8, 223-36; G i no Fogolari, " La teca del Bessa r ionc c la crocc di san Teodoro di Ve nczia", in Dedalo, 111 ( ' 922 -2J), pp. • 39-6o; [mcrich Scha ffrnn, "Gen tilc Bellini und das Bessarion- Re liquiar", in Das Miin ster, 1o ( 1957), pp. 1 5J-57·

O ciclo de Arezzo

77

2s-3o

assim a da tação do relicário para os inícios do Q u atrocen tos.7 Foi João 2

v111, ali ás, qu em o doou ao patriarca G regório, seu con fessor, o q ua l, po r sua vez, como vimos, deixo u-o em he rança a Bessarion. No docu mento que acom pan h ava a e ntrega à Scuo la Gra n de dell a Ca ri tà, Bessarion descreveu minu ciosa me n te os episódios qu e fizeram a preciosa relíquia ch egar a s uas m ãosJ3 Entre tod as as relíqu ias d a ve rdade ira Cruz, e ntão es pa lh adas pela Itá li a - incl usive a co nse rvada em Cortona, não muito longe de A rezzo74 -,esta é a úni ca a jus tifica r a inclu são do ret ra to de João

VII I

Paleólogo no ciclo de Piero. Graças a isso, o ciclo e n co m endado pelos Bacci se tornou também um a glorificação da din astia dos Palcólogo, em particul ar do im perador a qu e Bessarion es tivera liga do durante a j u ve ntude. Ma is indire tam e nte, a re presentação de Cons tantino, o imperado r que transfe rira a ca pita l de Roma para o Orien te, com os traços fisionômicos de João vm, se u he rdeiro dista nte, procl am ava o id eal pelo qua l Bcssarion havia lutado - a uni ão das igrejas- e pelo qua l estava luta ndo - a cruzada contra os t urcos. Nada d isso con t rad iz a "epopeia de v ida la ica, pro fana" q ue Long h i ide ntificou nas pa redes de A rezzo: m as enriquece-a com elem e n tos muito diversos, religiosos e políticos. 7 · A es ta a ltura, é possíve l resumi r a sé rie de circunstân cias q ue possibilitara m a cisão estilís tica e iconográfica qu e separa o in ício do ciclo aretino - a s lunetas- dos afrescos posterio res:

10

de setembro de

1458, nom eação de Bessarion como protetor da o rdem fra ncisca na; outo no de 1458, viagem de Piero a Roma; 28 de ma rço de 1459, enter ro de

72 Cf. Anatolc Frolow, Ln reliqtte de In vrnie Croix. Rec!terc!tes sur /e développentenf d'un wlte. Paris: ln stitut Français d 'Études Byzantines, 1961, pp. 563-65 (ver também, do mesmo autor, Les reliqun ires de la vra ie Croix. Paris: ln stitut l'rnnçais d' Étudcs Byzantines, 1965). 73 Cf. [Schioppa lalbaj, op. cit., pp.117-19. 74 Sua impo rtância pa ra o ciclo de Pic ro foi recentemen te destacada por Battisti, Piero, op. ci t., 1, p. 249, e André Chastel, Fnbles, formes e t fig ures. Paris: Flamma rion, 1978, t, p. 58, segu indo a indicação dada por Schneider (op. cit., p. 46, nota 44). Sob re as relíquias da verdadeira Cruz e xistentes na Itál ia, cf. os estudos citados de Frol ow.

Francesco Bacci, pa i de G iovanni; 1459 (a n tes de

20

de abril), m orte de

Gregório M ammas/ ' que de ixa em hera nça a Bessa rio n o escrínio contendo a relíquia da ve rdadeira Cruz, o utro ra propriedade dos Pa leólogo. Essa de nsa sequên cia de eventos docu mentados permite qui çá p recisar com certo gra u de aprox im ação um a circun stâ ncia adi cion a l e decisiva que não es tá - c talvez j am ais venha a esta r - docum enta da: o e n contro no q ual Bessarion s ugeriu a Giova nni Bacci inse rir na decoração da ca pe la da fam íli a o ret rato do pe núlti mo imperador do Oriente. Entre 1458 e os prim e iros meses de 1459, Bessa ri o n fi cou ini nte rruptam ente e m Ro m a; de pois foi a M ânt u a, para participar d o con g resso convocado po r Pio n pa ra en fre ntar o pe rigo t urco. Não se sabe a data de s ua pa rtida: e m todo ca so, ao con trá rio do que se te m a firm ado/ ele não acompa nhou Pio 22

11

6

na le n ta v iage m pa ra o norte, co m saída em

de ja neiro. Bessarion, que provave lmente (como ve re m os adia n te)

havia deixa do Rom a por vol ta do com eço de abr il, es teve com os o u tros cardeais e m 27 de m aio de 1459 na solen e e ntrada de Pio n em M ân tua. O ra, na ca rta de doação à Scu o la G rand e de ll a Ca ri tà, Bessa r ion a firmou que o reli cário lh e fora de ixado e m he ra n ça qua ndo estava em Mâ ntua pa ra o congresso /? Essa a fi rmação pode s ign ificar a pe nas qu e a no tícia da m o rte do pa triarca G reg ór io lhe cheg ou e nqu a nto se e ncontrava em M â ntua: de fa to, sabem os que pouco antes de

20

de abril

de 1459 - di a em qu e ls idoro de Ki ev, carde a l Rute no, foi n om eado patria rca de Co ns ta ntin opl a- se u p redecesso r j á havia fa lecido (" nu-

per") . M as de sde

20

de sete mbro de 1458 G regó ri o M a mm as havia

obtido a uto rização de Pio n pa ra faze r se u tes tam ento /R Hoje pe rdido, ele deve te r sido fei to logo depois. E sem dúvida G regório, então idoso

75 C f. G iovanni M c rcati, Scritti d'lsidoro i/ cnrdi11ale Rute11o . . . Cidade do Va ticano: Bibli oteca A po stolica Va tica na, 1926, p. 134 e n o ta 6. 76 Cf. H cnry Vast, Le ca rdi11al Bessario11. Paris: Hachettc, 1878, p. 234; M o hlc r, op. cit., 1, p. 286. 77 Cf. !Schioppa lal bai , op. cit., pp. -nS-·19: Gregóri o "a nt e obitrnll suu111 1--· 1 reve rendiss im o O. Ca rdi llali listo é, Bcssario nl r... , a bserzti IIIII C, ef ill Mallfuan o CO illJellfU degenti legavit" (t ra ta-se de um trecho da doação à S cuola G ra nde dclla Ca ri tà, pu blicada depois po r Co zza Luzi, o p. cit., pp. 3-6, q ue lê "ag en ti"). 78 C f. G iovanni Mcrcati, Scritti d'lsidoro, o p. cit., p. 134, nota 6.

O ciclo de Arezzo

79

e perto dn morte, teria informado Bessarion, q ue se preparava para sair numa lo nga viagem, sobre suas intenções de lh e doar a va liosa rel íq uia. O próprio Bessarion afirma qu e Gregório o amava com o a um filho .79 Disso res ul ta q ue, e m alg um mome nto, ele pode te r decidido celebrar di g nam e nte a aq uisição da relíq uia, sej a a ntes da partida para M ânt ua, seja durante o congresso naqu e la loca lidade. Pa ra o ptar e ntre essas duas a lte rnati va s, precisa mos conhecer os movimentos de Giova nni Bacci no m es mo pe ríodo. Infeliz mente esses passos são desconh ecidos- a fora a razoáve l s uposição de qu e ele teria s ido cham ado a Arezzo (se já não es tivesse lá) devido à morte de se u pai, no fin a l de ma rço de 1.459. No e nta n to, ex is tem alg un s e lementos que leva m n pensar que Bessario n não teria se limitado a s ugeri r a in clu são do retra to de João vm , m as també m have ria colabo rado ativam e nte para s ua realização. Como disse mos, o perfil de Constantin o na Vitória sob re Maxêncio prové m

H G. I

da fam osa m edal ha de Pisanello, cu nhada dura n te o co ncílio, em Fer-

IIC.. ) I

ra ra o u e m Floren ça, e e m ge ral tida com o a prime ira meda lha m ode rna.11" Nos exemplares remanescentes, s ua face rep rese nta João vm Paleó logo, tra zendo o "chapeuzinh o bra nco de po nta na frente" q ue já conhecem os; o verso traz Palcólogo a cava lo, seg uid o por um escude iro. Teria exis tido poré m uma va ri a n te, em posse de G iov io e po r e le descrita, e hoj e impossível de loca liza r, a qual trazia no ve rso "a Cruz de C ris to, s ustida po r du as mãos, o u seja, pela igreja latina e pela grega". Apena s recentemente reconhece u -se nessa úl ti ma imagem o 11c..

símbolo pessoa l de Bessa ri o n, mas coloca ndo-se em dúvida a ex istência

32

da mcdal ha. 8 ' Porém a descrição de G iovio é dema siado precisa, a lém 79 Cf.JSchioppalnlbn [, op. cit., p. 11 8. So S obre a data c os antecedentes desta medalha, ver ns notas sub>cqucntes. 8·1 A pas>agem de Giovio, que se encontra numa ca rta de ' 55 ' a Cosi mo 1, diz o seguinte: " te nho agora uma belíssima medalha de João Palcólogo, impe rador de Constantinopla, com aquele estranho chapéu no estilo grego, que os impe radores cos tumam usar. E foi feito por aquele Pisano em Florcnç;1 na é poca do concílio de Eugênio, o nde cstt•vc o dito Imperador; que te m como verso a Cruz de C risto, sustida por duas miios, ou seja, pcln Igreja latina c pela g rega" (G iova nn i Bottari c S tcfano Ticozzi, Raccoltn di /e !ter ~ s11lln pitt11rn. Milão: C. S ilvcstri, 1822, v, p. SJ; a passagem também é citada por Vasa ri, LeVite de' pi1l [ccellen ti Pittori, Swftori e Architeltori, Caetano Milanes i (org. ). rlorença: Sansoni, 1966,111, p. 1 1). Com base nesse trecho, james-7

8o

de his torica m ente ve rossímil, para at ribuí-la a um des lize. Parece mais plausível s upor qu e tenham exis tid o dua s ve rsões da m edalha de Pisa ne llo, c que Bessa ri on, ao volta r de Cons tantin op la pa ra a ltá lia e m

1440, tenha se in spirado numa delas (a perdida ) ao esco lh e r se u s ím bolo card ina lício. Bessa ri o n te ria empres tado ou doad o a C iovan ni Bacci um exe m plar dessa ve rsão pe rdida, para que se rv isse d e modelo para o re trato do Paleólogo a se r inse rido no ciclo de Arczzo. No e ntanto, parece vá lido supo r que, naqu e la ocasião, Bcssa ri o n mostrasse a Bacci - c ta lvez a Piero- o utras duas meda lh as, cunh adas em o uro, qu e são os precede ntes his tó ri cos imed iatos da m eda lh a de Pi sa nc llo. Essa circun stâ ncia, se comprovada, co locaria o e ncontro com Bacci e m Roma e ntre o fin al de 1458 e os primeiros meses de 1459, pois é impe nsá vel que Bessa rion fosse a M â ntua leva ndo s ua co leção de m edalh as. ( Voltarei a essa hipótese na di scu ssão sobre a Flagelação.) As du as meda lhas, represen tando Cons tantino c Heráclio, são men cio nada s pela primeira vez no in ício do Qua trocentos, no inve ntá ri o das coleções d o duqu e de Bcr ry, ao qua l, com tod a probabilidade, ti nham sido ve ndidas como peças a ntigas (em todo caso, assim fo ram consideradas no Qu inhe n tos). julius vo n Schlosscr, qu e fez uma ex te nsa aná li se -7

A. Fasnm:ll i ("Some Notes on Pisnnello nnd the CoLmcil of Florence", in Mn s/t.'r Drawiuxs, 111 !1965], pp. 36-4 7) susten to u que n mednlha foi cunhada e m rlorença pnm comemorar o desfecho feli z do concílio, indicado pelo sím bolo no verso do exemplar descrito por G iovio: dní n propos to de datar os dois exemplares da medalha entre 6 de ju lho (decreto de união) e z6 de agosto (partida do impe rador) de 1439. Roberto Weiss (Pisnuello's Medallicm of tire Cmperor jo/111 VIII Pnlaeolo:-; us. Londres: Briti sh Museum, 1966, pp. 16-·r7) colocou em dCrvida a existência do exemplar mencionado por Ciovio, L' excluiu que Pisnnello tivesse acompanhado o concílio a Florença, visto que em maio de 1419 e stava em Mântua : a meda lha de João VI II teria s ido cunhada em Ferrara em 1438, por e ncomenda de Leonello d' Estc o u do próprio imperador. Posteriormente, Vladim ir Juren ("À propos de la m édaille de Jean VIII Paléologue par Pi sa ncll o", in ReVI/ e lllllllisuwtique, s. 6·:, xv I L97J], pp. 2 19-25) iden ti ficou na Cruz erg uida por dois braços o símbolo de Bessarion, mas sustentou, contra a opinião de J'asanel li e de George F. ll ill (Pisnuello . Londres, 1905, pp. ro6-o7; M ednls o( tire Relwiss
O ciclo de 1\ rezzo

8 ·1

comparativa com a primeira m edalha de Pisa n ello (a de João v111), supôs que fa ziam parte de uma série, ve ro ssimilm ente de o rigem flamenga, ce n trada na le nda da ve rdadeira Cruz. 82 Atri buiu-as depois a Po l de Limbourg ou a um d e seus irmãos.8 J A ligação e n tre ela s c o Con stantino 11c.1o

Fics. 33, 34

da Vitória sobre Maxê ncio nunca foi pos ta e m relevo: e no entanto dirse- ia qu e Pi e ro combin ou as dua s medalhas, atrib uindo a C onstan tino a cavalo, vis to de perfil, o ges to de H erácl io es tendendo o braço a empu nhar a Cru z . Al ém di sso, o coche iro neg ro, que na medalha de Heráclio se v ira ao ve r os muros de Je rusa lé m m il agrosa m ente barrados, lembra m uito o servo negro pin tado po r Pi ero no séq uito da rainha de Sabá:

11c 35

ba sta o lh a r o perfi l d e nariz achatado e o barrete cônico ca racte rís tico. Tudo isso parece indicar que Piero co nhecia as duas medalhas. É de no tar, ademais, q ue elas vêm acompa nhada s por inscr ições e m g rego, o que ates ta um con h ecime nto exato da termi no logia burocrática bizantina, redigidas (segu ndo a hipótese de Ro be rto Weiss) por a lgu m fun cionário da chancelaria imperial, com muita probabili dade dura nte a v isita de Manuel

11

Pa lcólogo a Paris, en ce rrada em

140 2

-a no em que o duque

de Berry adqu iriu a medalha de Constantino de um com e rcia n te florentino.84 Essa circunstância torna ria mai s ve rossímil que as duas medalhas estivessem em posse de Bessarion, que depois as te ria mostrado a Bacci, 82 C f. j u lius von Schlosser, " Die Acl tcstcn Mcdaillcn u nd die An ti ke", in jah rbuch de r Kunsthistorischen Samml zmgen de s allerhochs ten Ka iserha uses, 18 (1897), pp. 64-108, a inda hoje funda men ta l (para a conexão co m a h is tó ria da verdadeira Cru z, cf. pp. 77-78). À p. 92, as duas medal has são definidas com o "as m a is an tigas fa lsifi cações de antiguidades". C f. ta m bém O tto Kurz, Fakes: a 1-/andbook .for Co llec tors and Students. N cw Havcn: Yale U n ive rsity Press, z 967, p. 1 91. 8J Cf. von Schlosser, Raccolte ri' arte e di meraviglie de/ tardo Rinascimen to, trad . ital., Florença: Sansoni, 1974 (a ed ição alemã é de 1908), pp. 44-45 . A at ribuição aos Limbo urg foi reproposta com a rg ume n tos parcia lm en te di ferentes por M ark jo nes, " Thc First Cast Me clal s and the Limbourgs. T hc lco n ograph y and Att ribu tion o f th e Consta nti nc anel He racl ius M ecla ls", in Art 1-listory, 2 (1979), pp. 35-44 (ig no rando, po rém, a segunda inte rvenção de Schlosser). A nte ri orm ente, Marinesco, " Deux empercurs byzantins, Manue l1 1et Jea n VIII Paléologuc, vus par eles a rtistes parisiens ct ital ic ns", in Bulleti11 de la Société nationale des a11tiqua ires de Fra nce, 1958, p. J8, tinha identificado os Limbou rg como os auto res dos desenhos em que se basea ram as medalhas (e não, co mo suste ntam Schlosser e joncs, das meda lhas p ropri am ente ditas). 84 C f. Ro berto Weiss, "T he Medieval Meda llio ns of Consta n tinc a nd Hc racl iu s", in The Nu 111 (1963), pp. 129-44 (e m esp. p. 140); ver ta m bém Milla rd Meiss, llliSill atic Clz rollicle, s. Fre11cfz PailllillX in the Timl' of jea11 de Ber ry. Lond res: Pha idon, 1967, 1, pp. 53 -58.

t.

em vis ta da ligação que elas g uardava m com o tema do ciclo a re tin o - a lenda da verdade ira C ru z -, be m com o co m a relíquia pe rtencente aos Palcólogo. Assim se explica ria como Piero veio a utiliza r a m eda lha de He rácl io apena s na s orde ns média e inferi o r, pintada s a pós a volta de Roma- e não, co mo seria nw is ev idente, na lun eta re presentando a Res-

11c •.

6

11(;.

36

tituição da Cruz a jerusalém por H cráclio. 8. A hi pó tese de uma inte rve nção de Bessa rio n no sentido de m od ifi car a icon og rafia ge ra l do ciclo a retin o se a po ia numa sé ri e de co in cidê n cias fatuai s muito precisas; j á a hipó tese do e n co ntro e ntre Bcssa rio n

c G iova nni Bacci em Ro m a, numa cadeia de conj e turas. Não se pode excluir, em outra s pa lav ra s, a eve n tu a lidade de que esse encontro tenha se dado em M â ntua, a lg uns m eses de po is. É uma in ce rteza qu e, de qualque r form a, não afe ta o núcl eo da arg um e ntação, baseado na con vergê ncia entre dados biog ráficos, estilís ti cos, ico nog rá fi.co s c aqu e le s re ferentes à encomenda, dire ta e indire ta, d o ciclo. Tal conve rgên cia confirm a com novos a rg um entos a hipó tese apresentad a por C il be rt, is to é, a de qu e a maior parte do cicl o - ex cluídas apena s as lu ne tas- foi e xecutad a após o re to rno de Pi ero de Rom a, no outo n o de 1459. Essa d a tação não é co nt ra ri ada pelo ú nico arg umen to só lido e ntre o s ado tad os po r Batti s ti: o retá bulo de C ittà di C as te llo, os te ns ivame nte d atado de 1456, ass ina do po r aquele C iovanni di Piamonte e m qu e m Lo n g h i ide ntifi co u o co labo rado r das dua s ce nas de cada um dos lad os da jan e la grande d o coro, o Transpo rte do lenho da

Cru z c a To rtura do judeu. R> Ba tti s ti o bse rva com jus teza qu e o re tá bul o a testa o co nhecim e n to de Piero, ma s não dos a frescos de Ar ezzo:

11c~. 6, 11

86

85 C f. Lo ng hi, Piero, op. cit., pp. 40, 2 12, 213; ed. brns, pp. 59-60,373, 374; do mesmo au ro1; "Cenio dcg li anon imi : G iovann i di Piamontc? ", in "Falli di Masoli11o e di Ma saccio", pp.13 L-37. 86 Cf. Battisti, Piero, op. cit., 1, p. 133. Note-se que o próprio Longhi (no ensa io "Cenio dcgli anonimi. 1, Ciovanni di Picm onti ", in La Critica d'A,·te. rlorença: Sansoni, 1940) não menciona dív idas específica s no retábul o de Città di Cas1ell o em rclaçiio aos afrescos de Arezzo - dívidas essas q ue seria lícito espera r se os afrescos tivessem sido iniciados em 1452 ou logo a seguir.

Ü

ci e/o de 1\ Yl'ZZO

!l)

po ré m isso fo rn ece um limite post quem para o início da colaboração de G iovanni di Piamonte, não para o co m eço do ciclo inte iro. Q uando com eço u, n ão sabe m os. 87 Por o utro lado, é ce rta a impo rtân cia decis iva do a no transcorrid o e m Roma para o desenvolvimento, e não só estilístico, de Piero. A in spiração pl atôn ica e matem ática das o bras da m at uridade, bem com o as impli cações re lig iosas e políticas q ue decifra m os nos afrescos da le nd a da C ruz, e n co ntra ra m a limento n os en contros romanos com A lbe rti e os humani stas da corte de Pio 11ta lvez com o próprio Bessarion . A essa época pertence um quadro que se s itu a na junção entre as du as fa ses que dividem, ta mbé m cron ologica m ente, o ci clo de Arezzo: a Flagelação.

87 Em defesa da cronologia proposta por Longhi, A lessa ndro Conti apresenta um frag mento de afresco de Parri Spinelli (m. 1453), hoje na pinacoteca de Arezzo, como derivação a pa rti r da Vitória de Cuns/(111/ino de Picro (cf. " Le prospettive urbinati: ten tativo di un bilancio ed abbozzo di una brbliografia", in Anna/i del/a Scuola Norma/e Superiore di Pisa, cu rso de letras etc., s. 111, vr [·•976 [, p. 1214, nota). A inegável conexão, já assinalada por Phil ip Hcndy (Piero del/a Francescn arrd tire Early R!'rraissarrce. Lo ndres: We idenfeld & N icolso n, 1968, p. 84), deve se r intc rp retnda, po ré m , em sentido inverso: cf. Ma rk j. Zucke r, Parri Spin elli, Nova York, 1973 (datil.), pp. J 16-17, que em bases estilísticas data o afresco de Pa rri por volta de 14)5-40. É interessante sua loca lização o riginória: o mosteiro de Santa Fiora e Sa nta Luci lia, cujo abade na época era Aliotti, amigo de Ciovann i Bacci e, como ele, ligado a Traversari.

JJt.Flagclação

1.

O úni co dado rea lm e nte inco ntes te n este célebre quadrozinho

(58 x 81 em) é s u a a utog ra fi a. A ass in at ura que se lê e m le tras m a iú sc ula s do a l fab e to rom a n o n o d eg rau sob os pés de Pilatos

("Op us Petri de Burgo Sa n cti Se pulcri") nunca s u scito u dú vidas. O resta nte - co mite nte, data , te m a d e r e prese ntação - é ince rto. Inúm e ra s co ntribui çõe s, cada ve z m a is num erosa s n os últim os a n o s, tê m fe i to da Flage lação um dos ca so s mais contr ove rs o s da h e rme n ê uti ca ar t ís ti ca. H á uma la cuna de informações so bre a obra por cerca de t rês sécu los. No Setecentos, ela se e ncontrava na sacris tia da ca tedral de Urbino. Um dos testemunh os datados mais antigos, um inventá r io de 1. 744, diz: " Na sacris tia

l ... l

a Flagelação de Nosso Senhor na co lun a, de parte

nossos ser eníssim os duques Oddo A ntonio, Fede rico c G uid ' Ubaldo di Pie tro Dall' Borgo".' " De parte" : o in ventariante, o arcip res te Ubaldo HUU, Fo11do de/ Co1111111e, ms 93 (misc.), c. 224r. A frase consta n um "Ca ta logo del le pittu re, che si conservam> ne lla ci ttà me tropoli d'U rbino con la notizia degli au tori delle medesime" [Ca t:íl ogo das pintura ~ conservadas na cidade metró pole de Urbino com a informação de seus au tores]. Uma p.:squi sa s istemática das visi tas pastorai s poderia con firmar se a rlagelaçiío se m pre esteve con se rvada na sa cristia da catedral metropol itana. S urge uma dúvida a este respeito na vis ita de I ÓJÓ: e m 16 de setembro, depois de ter proibido as " drallllllllntiolles, -7

Flagelação

85

Tos i, especifi ca ra a s in g ul a rida de ma1 s fl ag rante do quadro (quanto à identifi cação do s perso nage ns por e le propos ta, volta remos ad iante) . A cena da flagelação de C ris to é im edia tam ente reconh ecível, ma s se desen volve n o segundo plan o e la te ra lme n te. U m a g ra nde di s tância, obtida po r Pi c ro co m um domíni o extraordin á ri o da pe rspecti va, separa o C risto fl agelado de trê s mi ste riosos pe rsona ge ns em primei ro plano. Po r que e ssa dis tâ ncia entre as dua s cen as? Com o se vê, é um a pe rg un ta a tinente à sing ula ridade form al e, ao m esmo tempo, à anoma lia iconográfi ca do quadro. 2 Assim, não se trata de resolver uma cha rada iconológica, e s im de decifrar um elem ento decis ivo para a co mpreensão integra l da obra, em todos os seu s aspectosinclu sive a en com e nda e a da ta. 2.

A id entifi ca ção do probl e m a he rm e n êuti ca funda m e ntal fo rn ece

ta mbé m um critério pa ra a nalisar as principa is interpretações da Fla-

gelação propo sta s a té o m o m e nto. Em vez de percor rê - las n a o rde m cr on o lógica em qu e fo ra m fo rmul adas, va m os di s ting ui - las em três grupos: 1. as in terpre tações que afirm am qu e, e ntre os person age ns n o primeiro pla n o c a fl agelação de C ri sto, não existe n enhum n exo de sig nificad o, m as uma pura e s imples jus tapos ição;

--7

2

86

2.

as qu e su s tentam

11ugas, ci rwlos, tlf?gocintio11es" q u e ocorriam na sacristia da ca ted ral, dete rminou -se q ue se co locassem assentos "on de os sace rdotes possam se ajoelhar pa ra fa ze r o sacrifício da missa, re unir-se e orar, estando acim a fix ada a represen tação elo crucificado ou a lg uma o utra imagem piedosa." [Em la t im no orig ina l. ! (ACAU, Fo 11do visite pastora/i; destaqu e me u). Esta li ltima frase permitiria supo r q ue, naq uele momen to, não havia im agens ele te ma sacro na s parceles ela sacristia . Um tes temun ho muito m a is an tigo, um "i n ven tário elas coisas desta M et ropolitana fei to e m 1504 pe lo No tário Fede rico di Paolo", contendo " uma men ção ai nda elos quad ros, ma s j ... j pobre e se m o rdem cla ra", é indicado po r Luigi Pung ileoni ([/ogio storico di Ciovan ni Sa nti . Urbi no: Vicenzo G ue rn in i, 1822, p. 97). Talvez esse in ven tá rio ai nda faça pa rte elos docume ntos regist rados por esse no tário (Fede rico di Paolo G uid ucci), conse rvados no Arqu ivo de Estado, de Urbi no [A rch ivio di Sta to d i Urbino j, mas e u n ão con segui e ncontrá -lo. H o je, a Flagelação de Piero pode ser vista (ou mel h o r, semi vis ta, por esta r p rotegida po r u m grosso vidro blindado de cor esve rdeada) n a Galleria Borghese (Palazzo Duca lc di Urbino - Ga lle ria N az ion ale clellc Marche) . Sob re este ponto insistiu G ilbe rt, "On Su bjcct anel N ot- S ubject in l ralia n Renai ssance Pictures", in Tlze Art Blllletin, XXX IV (1952), p. 208, no ta 2e1, m as pro po ndo uma solução inace itável, exposta adiante.

que os pe rsonagen s em primeiro plano fa zem pa rte orgânica da ce na da flagelação de C ri sto; J· as que con s ide ram que as dua s cena s são sepa ra das (m esmo te mpora lmente) e que e ntre e las h á uma relação a ser d etermina da. Po r ora, abo rdaremos ape n as o núcleo das principa is interpretações, reservando-nos a possibilidad e de retom a r adiante e ventuais observações particulares, apresentadas pelos vá rios es tudiosos. A prime ira tese foi s u s tentada, de mane ira e líptica, por Tocsca, para quem Picro daria aqui prova s d e " um so be ra no des inte resse 1-. . j pe lo tema prin cipa l", isto é, a fla gel8ção de C ris to. ' Em termos a inda mais expl icitamen te anacrôni cos, G ilbcrt propôs num prim ei ro m o mento (de poi s mudou d e idc i8) ve r n os três h o m e n s e m prim e iro plan o s impl es passa ntcs a n ô nimos, c n o quadro uma tranche de vie, u m " prenúncio de Tintorctto e Dcgas" .4 A seg unda tese recebeu crédito muito m aio r. Ern s t H . Co mbric h fo rmulo u a hipó tese de que o h o m e m de ba rba seria jud8 s, no ges to de devol ve r aos membros d o Sinédrio o preço d8 traição, evocada e m segundo pl8no: 1118 S, co mo reconh eceu o pró prio Combrich, não há n o quad ro n enh um indício da s trinta m oeda s. ' Inte rvindo pe la segu nda

vez, G ilbert tomou com o eixo de s ua a n á li se a in scrição " Convene-

runt in unum " [Reuni ra m -se], qu e, segundo j o h a nn David Passava nt (1839), aco mpanh ava o quadro (h oje a fra se d esapareceu, junto com a m o ldura onde provavelme nte constava). 6 Trata-se de uma passagem do segundo ve rsícul o do segu nd o sa lmo: " Ads titeru11t reges terrae,

et pri11 cipes CO IIVellerttll t in Ulllt/11 ndversus Dolllill ll/11 et ndv ersus J 4 5

6

C f. Pi c tro To c sca, " Pie ro dc lla rra ncc sca ", in [n ciclopetlill itnlia n tl. Roma : ls tituto dell'l:rlCidopcdia lta lianJ , ' 91 'i, XXV II, p. 2 11. Cf. Cilbc n , " O n S ub jcct", op. cit., pp. wH-09 . C f. Cornb rich, rcsenh.1 d e Cl.1rk, op. cit ., in H~trli llgt cm !l laga::llll', 94 ( r 95 2 ), pp. r 76-78; id ., "T h c Rcpcnran ce of Judas in Pi e ro della rrancesca 's rlagcllllticm o( Clmst", in /ollnrn/ of t ire Warllllrg ll llfi Co ltrl tl llid ills liiiii i'S, XX II ( ' 9'i 9 ). PP- IO'i -0 7 (- C o mbrich, n c(le ctiolls 011 th t• l/istory o( Jl rt, Richard Wuodficld (o rg.) . Ber ke lcy / Los 1\ngl·les: Univcrsit y of Ca li forn ia Press, 19!!7, pp. 6 r -62) . Cf. Ci lbc rt, " Pie ro dc lla rrnnce sca 's Ha,o.: ellntl(m: The rig u res in thc r o reg ro und ", in rire Art H~tll e ti ll , 1111 ( 197 1) (dora v.1nte f i,O.:II rt'>), p. 4 1, nota <; . 1\ " mo ldura toda dou rada ", hoje perdida, é mencionada num1nvcnt:í rio de 17 5_4 ( BUU, Fcmdo di Urbi110, m s <) ) ,c. )H6 r; pa ra a da ta, cf. c. 388 r) .

Flagelação

87

nc. 37 Fies. 3s

Christum eius" .7 Nos Atos dos Apóstolos (4, 26-27), o salmo é citado em referência à paixão de Cristo: "Convenerunt in unum adversus Dominum et adversus Christum eius. Convenerunt enim [ ... ] Herodes, et Pontius Pila tos, cum gentibus et populis Israel" .8 Desenvolvendo uma observação de P. O. Running,9 Gilbert identificou nesse último trecho a base textual da Flagelação de Piero. Nela estariam representados- além, é óbvio, de Pila tos no trono - Herodes (o homem de turbante visto de costas, virado de frente para Cristo) e, em primeiro plano, da esquerda para a direita, um gentio, um soldado e José de Arimateia. Segundo Gilbert, a iconografia do quadro não seria totalmente nova: em outros trabalhos de tema análogo, provenientes de Siena, como o afresco de Pietro Lorenzetti na igreja inferior de Assis e um pequeno quadro do chamado Mestre da Osservanza, hoje na Pinacoteca Vaticana, aparecem grupos de pessoas assistindo, um pouco afastadas, ao tormento de Cristo.'0Mas as duas comparações são pouco convincentes: na Flagelação de Piero, os três homens em primeiro plano estão muito mais afastados e, principalmente, de costas para Cristo e seus algozes. Há pouco tempo, houve uma tentativa semelhante de encontrar uma correspondência nas escrituras capaz de explicar a composição integral de Piero, feita por Ludovico Borgo.11 Ele chamou a atenção para a passagem do evangelho de João (18, 28), em que se diz que os membros do Sinédrio se mantiveram fora do palácio de Pilatos para não se contaminarem antes

7

["Compareceram os reis da Terra, e os príncipes reuníram-se em frente ao Senhor e em frente a seu Cristo."] 8 [" Reuniram-se em frente ao Senhor e em frente ao seu Cristo. Reuniram-se, pois,( ... ] Herodes e Pôncio Pilatos, com as nações e os povos de Israel." ] 9 Cf. P. D. Running, in Th e Art Bulletin, xxv (1953), p. 85, e Gilbert, Figures, op. cit., pp. 41-51. 10 Sobre o "mestre da Osservanza", cf. Longhi, "Fatti di Masolino e di Masacio ", op. cit., p. 6o; Alberto Graziani, "li Maestro dell'Osservanza", Florença, 1948 (extraído de Proporzioni); Federico Zeri, "11 Maestro dell'Osservanza; una ' Crocefissione"', in Paragone, 49 (1954), pp. 43-44 (cf. Zeri, Giorno per giorno nella pittura. Scritti sul/'arte tosca na da/ Trecento a/ primo Cinquecento. Turim: Allemandi, 1991, pp. 199-200); Enzo Carli, Sassetta e i/ Maestro dell'Osservanza. Milão: Aldo Martello, 1957, pp. 89 ss. 11 Ludovico Borgo, " New Questions for Piero's Flagellation" , in Burlington Magazine, 121 (1979), pp. 547-53. Encontram-se críticas fundadas a este ensaio in Marilyn Aronberg Lavin (ibid., p. 8o1) e Cedi H. Clough (ibid., 122 [1980], pp. 575-77).

88 1

da Páscoa. Trata-se de uma correspondência textual ao que parece exata, que, no en tanto, não explica um a série de elem entos do quadro: po r que, por exempl o, o jovem ao centro usa uma túnica c está desca lço, e nquanto os dois homens estão ca lçados e usam ro upas mode rnas? Borgo te nto u rastrear, com argumentos muito fróge is, " três perso nage ns mai s ou menos análogos em diversas Flagelações, anteriores c pos teriores à de Piero, c explica a existência dessa s upos ta tradição iconográfica com um texto hebraico do século rx que menciona o processo contra Jes us. São citados três opon entes de Pilatos- um sace rdo te, um ancião e um personagem dito "jardineiro", po rque Jesus aca bou po r ser e nterrado em seu jardim .

À dificuldade (not<1da pelo próprio Borgo) de ide nti fica r o jovem desca lço com o chamado "jardine iro" soma -se outra ainda mais grave: não consta que esse texto heb raico circulasse na Itá li a quatroccn tista . Assim, Bo rgo é o brigado a postular uma fonte a usen te, ligada de alg uma maneira nquel a tradição hebrai ca, sobre a qua l se basea ria o quadro de Piero. Mas por que coloca r os mem bros do Sinédrio em primeiro plano? Segundo Borgo, Picro teria se inspirado na pe rdida Flagelação de Andrea dei Castagno em Sa nta Croce: o fato de qu e esse afresco ti vesse sido, como escrevia Vasari, " rabi scado e estragado

f...

J

por crianças c o utras pessoas simples, que ra-

bi sca ram todas as ca beças c os braços c quase todo o resto do corpo dos j udeus"' 3 provaria q ue esses ú ltimos n ão só eram muito visíve is, como também estava m "s ituados e m primeiro pla no" na composição. Afora a conclusão ca pciosa, parece evidente qu e a con strução in terpretativa de Borgo se apoia em dois pi lares não muito sólidos: um tex to iloca lizável c um afresco perdido. De fato existe uma Flagelação qu e à prime ira vis ta parece ri a confirmar a hi pótese form ul ada por Borgo, de uma tradição iconog ráfica que isolava entre os interlocutores de Pi latos três personagen s bem caracterizados. Trata-se de um peq u eno quadro anônim o, pintado a ó leo

11cs. .39

verossimilme nte na s prim eira s décadas do século xvr, hoj e con servado

12

Ver os relevos de Clough, ibid ., p. 577·

13 Cf. Vasa ri, Le vilt', op. cit., 11, pp. 672-73, e Borgo, op. ci t., pp. 550-5~.

Flagelação

89

no Mu seu do Prado. Num átrio, vem os Cristo flagelado pelos verdugos; do lado de fora, à esq uerda, um pouco afastados do trono de Pilatos, três ho m e n s a ssis tem à cena: um ve lh o de barba (visivelmente um sace rdo te), um hom em de meia-idade e um jovem. Se riam R. joshua ben Perach iah, Marinu s e o "jardineiro" R. judah, men cionados no texto he braico do século rx que teria chegado, por intermediários desconh ecidos, até mesmo a Piero ou a se u comitente? ' 4 A explicação, parece ser muito mais simples. Para a Flagelação do Prado, foram proposta s várias atribuições sucessivas: um seguido r espa nhol de Bosch, juan de Flandes, Alejo Fernandez o u um pintor de s eu círculo. Seja como for, a questão con tinua em aberto. Mas o g rande des taque dado à arquitetura levo u a supor que o quadro fora in spirado por a lg um model o italiano (a liás, no passado, e le ta mbé m foi a tribuído a Antone llo da Messina) . Tem se notado que o edifício em ruínas, o nde se dese nrola o martíri o de Cristo, de riva de forma plausível de uma conhecida gravura ass in ada por Bramante.' ' Com esse nome aproximamo- nos de Urbino e de Piero (do qual, diz ia-se, Bramante e ra "criado") : de fato, a propósito desse pequeno quadro do Prado, C ha ndl c r R. Post formulou a hipó tese de uma viagem de seu a utor à Itália centra l c evocou a Flagelação de Pi e ro. ' 6 Com e fe ito, parece plaus ível uma ligação entre as dua s o bras, seja direta ou indireta (tal vez por inte rmédio de Pedro Berrugu ete, qu e trabalhou em Urbino ou concluiu o re tábulo de Pic ro, hoje em Brera, pintando as mãos c as armas de Fedcrico da Mo ntcfe ltro) . A atitud e dos três hom e ns parece ecoa r a dos três pe rsonagens em prim eiro pl ano do quadro de Pie ro; com ma is precisão, o manto de broca do do velho sacerdo te de Madri evoca irres is ti velm en te o do ancião de Urbino. Sem dúv ida as ·1 4 Cf. id., ibid., p. 548. ·15 Cf. Diego Angulo !l'iíguez, " 13ra m a nte et la Flageflntion du Mu séc du P rado", in Gnzette des Ben llx-Arts, t. XLII , a . 95 (I95J), pp. 5-8. Na verdade, a g rav um fo i feira po r Bernard ino Preved ari: cf. Eve lina Borea, "S ta m pa fi g urativa c pubblico", in Storin de!!' arte italiana, op. cit., 1, 2, pp. 346-47. 16 A definição de Bramante como "criado" de Piero é de Sabba da Castigl ionc (cf. Lo ng h i, Piero, op. ci t., p.] ·17, cd . bras. p. 300); a referên cia a Piero para o quadro do Prado, atribu ído com alguma dúvida a Alcjo Fc rnandcz, está in C handlcr R. Post, J-listory of Spanish Pairrling. Cambridge (M ass.): Harva rd Univcrsi ty Prcss, 1950, x, p. 90.

90

fi sionomi as são tota lm e nte diferentes; os gestos c as r oupas dos do is perso nagen s latera is es tão, po r a ss im di ze 1~ inve rtidos. Mais que isso, parece possível vis lumbrar no peque no q uadro de Mad ri uma vontade de no rmalização iconográ fi ca da Flagelação de Piero:' 7 os t rês homens estão em vo lta de C ris to, em vez de lhe da r as costas ao lon ge (um deles, inclu s ive, a po nta -o volta ndo-se pa ra os o utros dois); o velho co m vestes lux uosas poss ui uma lo nga ba rba que o ca racteriza como sacerdote hebreu, inse rindo-o de ma neira ineq uívoca na cena sagrada; o homem de meia -idade, que está fal a ndo, usa um toucado pre to, e não um chapéu o rien ta l; o jovem não usa tún ica nem está desca lço. Es teja o u não ligada de alg um a maneira à Flagelação de Pic ro, essa Flagelação do Prado confirma, em todo caso, s ua ::~ bsol u ta s ing ularidade iconog rá fi ca.

É exata m e nte es sa s in g ularidad e q ue aque les que ente nde ram o quadro de Pic ro co m o uma vari a nte da s Flagela ções normai s te ntara m n ega r. No e ntanto, a lé m da es trutu ra compositi va, havia o utro elemento que opunh::~ res is tên cia a essa tentati va: a ide ntificação fisionô mica c os t rajes co nte mpo râ neos de dois dos t rês pe rso nage n s em pri meiro plano. A poss ibilidade de se re m retra tos nos leva de imedi ato a indagar qu e m são as fig ura s re prese n tada s, c qu e relação mantêm com a ce na da fl age lação em seg undo pla no. Com isso, chega mos ao terceiro g rupo, e m ais n umc roso, de in tcrprctações. 3· A este g rupo pertence a interpretação mais antiga, form ulada no século xv111 pelos eruditos de Urbino, e reg is trad a, en tre ou tros, no inventário de 1744, j á me ncio nado . O s três person age ns e m prim eiro pl ano se riam O dda nto ni o, conde de Urbi no (no cen t ro ), seu irmão Fcdcrico (à direita) c o fil ho de Fedcrico, Gu idubaldo (à esquerda ). Essa tripla iden-

11c:s. 4o

tificação, fla g ra ntemente abs urda - pela não co rres pondência e tária dos

17 No mesmo sentido, pode-se interpreta r a iluminura inicial de Bartolomco della Ga tta no Antifomírio de Urbino, representa ndo o martírio de Santa Ágata (cf. Mario Sa lrni, La miniatllra italiana. Milão: Clecta, 1956, p. 50 e ilustr. xuv), que Gi lbert (Chclllge, op. cit., p. 106) supõe di retamente derivada da Flagelaçiio de Piero. Eln mostra três espectadores virados c aponta ndo para a sa nta a marrada à coluna .

Flagelação

91

personagens representados, além da g rita nte ausê ncia dos traços incon fu ndíveis de Federico -,foi co rrigida depois, prese rva ndo ape nas Oddantonio. Os personagen s na s la terais se tornaram os m alévo los consel heiros Ma nfredo dei Pio c Tommaso dcll' Agncllo, m o rtos co m O ddanton io na consp iração de 1444. 's A confirma r essa in terpretação esta ria a i nscri ção já mencionada, cxtraídn do segundo salmo: "Co nvenemnt in

un11111".

Essns palavras foram nt rib uídns não só a C ri sto, m as ta mbé m ao duque assassinado, propondo assim uma re lação de analogia en tre a cena do primeiro plano c a do plano de fundo. Tal decifração ico nog r::ífica apo nta pnra um limite post quem - 1444, a no dn cons piração c da morte de Oddantoni o -,verossimilmente m uito próx im o da data de execução do quadro, visto ser improváve l que o presumido comiten te, Fcdc ri co da Montcfelt ro, tardasse muito e m celebrar o irm ão assassinado. Uma dntação tão precoce, faze ndo desse quadro uma das prim e irísSl m as o bras rern ancsce n tcs de Picro, interpunha difi culdades de ordem es til ística bas tan te sé rias, às quai s, ao final , teve de se re nder o próp ri o Long hi, que por tanto tempo fo rn defen so r da referên cia a Oddanton io (com t udo o que isso implica va).' 9 Do po nto de v is ta estritamente ico nográfico, a interpreta ção se m os tra infund adn, v is to qu e a identifi caçã o dos personngens é tn rdi n, 20 n equ ipnração e ntre Oddanton io c C ri s to é im plausívc l e o ve rsícul o do sa lmo a que re m etem as palavras

"Convener1111t in 111111111 " é singu larme nte inndequado, quando fala em ''reges terra e, ct pri11cipes", p:.ua evoca r os conselhos dos dois mini stros maldoso s (c ainda ma is a conspiração). A despeito di sso, a interpretação se manteve inqu cstion ada a té meados do século xx. (A di scordâ n cia isolada, ex pressa po r Toesca de maneira um tanto a-histórica, como vimos, n ão e ncont ro u crédi to.) E m 1951, C la rk a refutou, estabe lecen do co m sobr iedade e eficiência

18 A c rônica dessa interpretação é retomada por Aronberg Lavin, "Piero dclb Fra ncesca's rlagellatioll: the Triumph of ChristiJn Clory", in rlrt Jiulletill , 1 ( 1968) (doravante Tri11111ph) ,

pp. 321-.p. 19 C f. acima p. 8 os. 20 Cf. nota 22, a seguir.

92

as premi ssas para uma leitura completamente diferente!' É de se notar que o ponto de pa rtida de s ua argumentação não fo i ico nog rá fico, e sim estilís tico: os ecos da arq uitetura albertiana - em es pecial a do átrio de Sa n Pancrazio e do Sa nto Sepolcro Rucellai -, pe rceptívei s no átrio de Pilatos (comparado por s ua vez ao átrio onde se dá o encontro entre Sa lomão c a rainha de Sabá, n o afresco aretino). Assim, fi cava refutada a data implícita na identifi cação do jovem com o O ddantonio -

1444 ou logo depois-, por ser demas iado precoce em relação à evolução estilís tica de A lbe rti, e rejei tada a pró pria identifica ção, pe la improba bi li dad e de que um tiran o como Oddantoni o fosse representado de pés nus e, de modo mai s ge ra l, celebrado após a conspiração qu e o ma ta ra. Em luga r dessa inte rpre ta ção, ele pro punh a a hipótese de que os três perso nagen s estava m meditando sobre os sofrimentos de C ri sto, s ímbolo da s a tribulações da Igrej a em razão dos turcos (evocados pelo perso nage m de turba nte visto de costas) . No m esmo sentid o deveria ser interpre tado o versículo "Conve nerunt in turg ia da Sexta-Feira Sa nta

22

11 /Wm",

que fa z parte da li-

e muitas vezes aco mpa nha a imagem da

fl agelação nos liv ros de ho ras. Sobre tai s elem e ntos ali ce rça va -se um a proposta de datação m ais ge ral- aproximadamente entre 1455 c 1460 e dua s mais específicas: qu e o quadro fo ra pintado em 1459, por ocasião do co ng resso de M â ntua convocado po r Pio n para exortar os príncipes cri s tãos à cru zada , o u em 1461, quando Tomás Pa leólogo, irmão do finado impe rador João vm , foi a Roma pa ra leva r a fam osa relíquia do após tolo André.' 1 Com efeito, C lark di scernia no homem de barba "certa seme lha nça " com o Pa leólogo; no entanto, admitia que essa interpretação deixava e m abe rto a identidade do homem de ro upas lux uosas no prim eiro plano (ce rtamente um ret ra to) e o sig nifi cado do jovem de "aspecto arcádico" a seu lad o. 21 Cf. Cla rk, op. cit., Londres, ' 95 1 ( . ~ ed .), pp. 19 -2 1. 22 É n nntífona do primei ro noturno da Sex ta - Feira San ta, na matina: o primeiro a apontá -lo, até o nde sei, foi Walter Bo mbe, " Die Kunst am ll ofc f ederigos von Urbino", in Mcmatshcfte fii r Kzlllstwissellschaft, v (1912), p. 4 70. 2) A segunda h ipó tese foi acrc•sccntada po r Clark na cdiçiio revi sta (1969) de seu li vro: cf. op. ci t.,

PP·34-J5·

Flagelação

93

4· Essas páginas de Clark marcaram um a data importante na his tória da interpretação d o quadro de Urbino: seja por seu va lor intrínseco, seja porque, rejeita ndo clara m ente a tese acolhida até e ntão, abriram ca minho para uma di scussão qu e agora se es tende faz quatro décadas. Já exami namos o conjunto de propos tas que, qua se por reação, te ntou reco nduz ir a obra de Piero, por um o u outro lado, à ico nog rafia mais ou menos canônica da fla gelação de C ris to. O utros estudi osos, por sua vez, procuraram um a solução de compromisso e ntre a tese tradiciona l e a s us te ntada por C lnrk. Para Herbert S iebenhi_iner, os três personagen s seriam , da esquerda para a direita, joiio

V III

Pal eólogo, Oddantonio e

C uido Antonio da Montcfcltro; o quadro, li gado aos projetos de cru zada de Pio

11,

teria sido encomendado por Fcde ri co da Montefc ltro c

executado por volta de ·1464-65.' 4 Pa ra Battis ti, os três personagens ser iam, da esquerdn para a direita, um embaixador bizantino, Oddantonio

c, à esco lha, Filippo Maria Vi sconti o u Franccsco Sforza; o comitente, Fcdcrico da Montefeltro, dispos to a reabilitar a memória de Oddanton io; a data, 1474, ou 1463, ou uma data intermediária (1465-69). 2 ' Essas identificações, em sua mai o ri a, têm urna base documental exíg ua, quando niio inexistente. Muito mai s a na lítico, ma s da mesm a mane ira não con fiáve l, é o amplo ensa io de M aril y n Aro nberg Lavin, que propõe uma inte rpreta ção totalmente nova Y' Pi ero teria representado 24 C f. ll c rbc rt S icbcnhiiner, " Die Bede utung eles Rimini- f rc skos und de r G e isse lung Ch risti dcs Piero della Franccscas", in K11nstchrcmik, 7 ( 1954 ), pp. 124-25, que, para a identificação de Odda ntonio, re mete a um re trato do fin a l do século XV I, hoje em Viena, proveniente da coleção de 1\mbras: nele, o duque, designado por uma v istosa in scrição, de faro tem traços muito se melhantes aos do jovem da Flagelação. Friedrich Kenncr, ao publ ica r o re trato, supôs ser cópia de um origina l perdido de Gcntile da Fabriano: cf. " Di e Port riitsammlung des Erzherzogs Ferdinand von Ti rol", in jahrb11 ch der Krm sthistorischen Sa111111 lwrgen d<'s allerhoclrsten Kaiserlra11ses, 17 ( 1896), pp. 269-70. Posteriorme n te, Bom be (op. cit., p. 470) substitu iu o nom e de Gentile pelo de Pie ro, a tri buindo a cópia a Alcssandro Allori . Sobre as razões da identificação er rônea, há mais de um sécu lo, entre o jovem da rlas elaçiio e O ddan w nio, ve r adiante, p. 136-37· 25 C f. Ba ttisti, f>iero, op. cit., 1, pp. 31.8 ss.; 2t p. 324 re m ete-se (co m certa confusão bibl iográfica ) no re trato o utro ra de propriedade do a rqu iduque do Ti rol. 26 C f. Aronbcrg Lavin, Tritmtph , o p. cit. (depois editado em livro, com o acréscimo de urna hipótese sobre o destino originário do quad ro: Pieru del/a Fran resra: tir e "Fiagellation ".Nova Yo rk: Pc ngu im, t972; nova cd. Chicago : Un ivc rsity o f C hicag o Prcss, ·1990, com um apêndice bibliog rá fi co).

94

a conversa entre Ottaviano Uba ldini della Ca rda, cortesão d e Federico da Montefeltro e comitente do quadro (à esq uerda), e Ludovico Gonzaga, marquês de M â ntu a (à direita). O ass unto da con versa seriam as desventuras familiares que atingi ram os doi s: respectivamente, a morte do filho (1.458) c a invalidez do neto (1 456-6o), representad o no centro, antes de adoecer. Uba ldini es taria exo rtando Ludovico a se resignar, lembrando- lhe, pelo exemplo da Aagclação evocada ao fundo, que a g ló ria cris tã é s upe ri o r às dores terre na s. Trata -se de uma reconstrução infundada em seu conjunto, como fo i apo ntado por vá ri as partes,> 7 mas não privada de in d icações úteis, à s qua is voltaremos adia nte. Por o utro lado, o rico ensa io de Thalia Co uma-Peterso n 2 ~ traz uma re tomada e, sob ce rtos as pectos, um aprofundamento da linh a interpretati va aberta por C la rk . O ponto de partida da análise dessa estudiosa é a id e ntifi cação Uá formu lada por Jean Babclon, m as que não tivera prosseguimento) de Pilatos com João

VIU

Pa leólogo, demonstrada de forma

definitiva pelo detalhe do Gd ça do ve rmelho, que fa z ia parte da indumen tári a dos imperadores do Oriente. A Aa ge la ção de C risto s imbolizaria (co nforme ind icad o por C lark) os sofrimentos da Igreja po r o bra dos

'"·~ .1•

turco s. À inércia de Pila tos, que nilo fa z nada pa ra interrompê-lo s, corresponderia a inércia do hom e m à direita no primeiro pla no, en1 quem Co uma - Pe terson vê um " príncipe ocide ntal " sem mai o r ide ntifi cação. Entre os doi s está o hom e m de barba : um g rego, como ind icam as roupas

c o chapéu, ta lvez um embaixador. Sua posição no quadro o caracte rizaria como um m ed iado r e ntre Orie nte ( Pila tos/ João v111 ) c O cidente (o " prín cipe" à direita no p rime iro plan o). O j ovem se r ia uma fig ura alegó rica, o "a tl eta da virtude " pronto para a luta. O g rego es taria exorta ndo justam e nte à luta con tra o turco (rep resentado ao fund o), para a li viar os sofrime nto s de C risto. Tais sofrimentos são aprese ntados como

27 Ver a discussão pontual de C il bcr t in figures, op. cit., c a re senha de 13 rucc Cole ao volume ci tado in BurliHgloll Magazillc, T l ) (t 97J), pp. 749-50. 28 C f. T h alia Couma- Peterson, " Picro dei la Francesca's Flagellntivll :an Hi storica llntcrpretation ", in Storia de//' arte, 28 ( 1976; doravantc 1/istorica/Jnt erpretation), pp. 2 L7-}}·

Flagelação

95

" um evento a rquetípico in se rido no contexto da realidade hi stórica". 2 9 A di stâ ncia en tre os dois mundos, o do presen te (as figura s em primeiro plano) e o do passado (a flagela ção), é ressa ltada n ão só pe la di s tâ ncia espacia l, como também pela diferença das fo ntes de lu z (provenientes, respectivamente, d::~ esquerda c da direita). Couma- Pete rson, seguindo Lavin, a tribui a essa dife re nça um va lor expressivo, inclu sive simbó li co. w O quadro, portanto, te ri a um s ignificado decidida m ente político.

Seu co mitente te ria s ido o ca rdea l Bessa ri o n, que o te ria enviado depois n Federico da Montefeltro (a quem es tava li gado por relações muito estreitas), pa ra co nvencê-lo da necessidade de uma cruzada contra os turcos. As possibilidades de datação variam e ntre 1459-64 e 1459-72 dois períodos em que Paul o 11 e S isto 1v, respectivamente, elaboraram projetos de cruza das recomendados com e ntu s iasmo por Bessa ri o n. Gouma-Peterson indaga se não se deve reconhecer no g rego de barba em primeiro plano um re t rato de Bessa ri o n . E responde pela nega ti va: sua fi s io nomin é dife rente da do ca rd ea l e, a lé m disso, ele não traz as insígnins ca rdina lícias ou o háb ito de mo nge basiliano com qu e em geral é representado. Concluindo, devemos cons iderá-lo como um "criptorretrato" de Bessa rion, sob as vestes de emba ixador biza ntin o. O que Goum a-Pete rso n ente nd e por ta l exp ressão não é muito claro: como é poss ível fa lar em re tra to, se os dados que deveria m caracterizar o personagem em questão não lh e co rres pondem? Veremos mai s adi an te se é poss ível chega r a conclu s ões m e nos contraditó ria s sobre esse pon to. 5 · M esmo que sumá ria e incompleta, essa revisão é suficiente para m ostrar que os mesm os ing redie ntes, cozidos em m olh os hermenêuti cas 29 ld., ibid ., p. 229. Sobre a contribuição de Babelon, ver adiante, pp. 124-25, nota 72. 28 C f. Aronberg Lavi n, Triumplr, op. cit., p. ))O; o ponto é novamente ressa hado, em polê mica com Burgo, in Rurli11gtorr Mngnzi11e, 121 (1979), p. 801. A existência de duas fontes luminosas já fora notada por Ccsare Brandi, " Restauri a Piero dclla Francesca", in Bollettino de/1'/stituto Ce1lfrnle dei Res tn11ro, 17-18 (1954), p. 91, mas sem extrair conclusões no plano interpretativo. l loje, ao con trá rio do que e screvi no pa ssado, cre io que se deve refutar a suposição de Brandi de q ue o retângu lo central do forro teria sido cla reado numa resta uração.

diferentes, resultam e m pratos de sa bores no mínimo di versos. Poderíamos até ser levados a certo ceticismo, ao ver que quarenta anos de discussões cerradíssimas sobre a Flagela ção não resultaram sequer na menor co ncordân cia, seja sobre a da ta, o com itente ou o tema re prcsen ta do. Es te último é o e lem e nto est ra tégico no caso em questão. A im possibilidade de e ncontrar, até hoje, d ocum e ntos sobre a encom enda e até so bre a loca lização original do quadro tem forçado os es tudiosos a vin cu lar as eve ntu ai s hipó teses sobre o co mitente à ide ntifi cação do te ma . O m esm o oco rre, pelo menos na ma io ria dos casos, com a datação: excetuando o fil ão inte rpretativo, qu e se esfo rço u em ve r no q uadro de Pi ero um a flage lação mai s ou menos confo rm e à n orma, todas as dem ais propos tas ico nog rá fi ca s també m impli cava m uma da tação, mais o u menos e lás tica c conj etu ral. Isso s ig nifica que to do o jogo refere nte à Flagelação se dá no plano da dec ifração da ico n ografia. Ora, um balan ço muito ráp ido da s in terpre tações formulada s a té o momento mos tra que, apesa r de tudo, ho uve algum avanço. Uma vez eliminadas a s teses mai s improvávei s e infundadas (entre elas, a tradicional ligad a a Oddantonio), vê-se que as pro postas em pauta hoje são duas. A primeira é a que G ilbe rt apresentou em s ua segunda interve nção sobre o tema , qu e p rocu ra in seri r a Flagelação d e Pi ero numa sé ri e ico nog ráfica preex is tente: trata -se de um qu adro de te ma sacro, e todos os perso n age n s r epresen ta dos são atore s de um epi sódi o da paixão de C ri s to. A outra é a formu lada por C la rk e retom ada, com modificações cons ideráveis, por Co um a- Peterso n, que propõe uma iconografia decid idamente a nô mala : o quadro se refe re a aco ntecim e ntos políticos c religiosos co ntempo râ neos, c assim são os personage ns e m primeiro p lano (exceto o jovem , qu e, segund o Go uma- Peterson, seria uma fi g ura a legórica); a cena da flag e lação represe nta o objeto das refl exões de a mbos (Ciar k), um eve nto a rqu etípico (Gouma-Pc tcrso n ) que al ud e de forma s imbó lica aos sofrime ntos inflig idos pe los t u rcos à Igreja de C ris to. Dessa s du as pro pos tas ge ra is de riva m, como vim os, inte rpre tações di verge ntes de - pode -se di zer - todos os ele me ntos que co mpõem o

f-lagelação

97

qu adro. O enig m a iconográ fi co nele oculto a inda continua sem solução. A ssim, será preciso tom ar pos ição qua nto à a lte rn a tiva de fund o que de linea m os acima, pa ra de pois pro por, se possível, uma inte rpretação ana líti ca m ais con vincente do qu e as pro pos tas exis tentes.

1v.

1.

Ainda a Flagelaçiio

A presença ou a usên cia de retratos de personagens contem po râ neos

no quadro de Pi ero tem uma impo rtâ ncia claramente decisiva para e n tende r s uas implicações iconográ fi cas. O ra, tal presença tem s ido n e ga da vária s vezes, de man e ira muito categórica. G ilbert, ao p ropor a tese (depois refu tada po r e le m esm o) de que os três h o mens e m primeiro pl ano seria m simpl es passantes, Aagrados por acaso nas proximi dades da Aage lação de C ri s to, afirm ou qu e se us rostos co rrespondiam a tipos fi s ion ômi cos recor re ntes na pin tura de Piero. A prova disso estaria no fato de que o ho m em co m ma nto de brocado reapa rece entre os personage ns ajoe lhados aos pés da Nossa Senhora da Misericórdia de

IIC .

44

Sa nsepo lcro e qu e o jovem lo uro tem o mesm o ros to de um dos a njos do Batismo de Lo nd res. '

I IC.S.

As du as compa rações sã o inegáveis: mas G il bert ext rai de las con clu sões de todo il ógicas. É evide nte, em p rimei ro lugar, q ue a vigorosa ind ividua lização facial do ho m em com m anto de brocado é muito dife-

1.

C f. Gilbe rt, " On Subject ", op. cit., p. 208. Lavin (Triumph, op. cit., p. 335· nota T' ) admite uma semelhança apenas tipológica com o homem do retábul o de Sa nsepolcro, propondo por sua vez uma comparação com o doador ajoelhado aos pés do Süo jerônim o da Accadcmia, que teria deri vado do mesmo molde: a pró pria Lavin, porém, ressalva que a semel ha nça é válida "except for the fa ce" [à exceção do rosto[.

Ai11dn n Flagelação

99

94• 9í

rente d o a ngcli ca lis m o sublime me nte gené rico do j ove m . Podemos s upo r es ta r d ian te de um retrato ape nas n o prime iro caso. Po rém , G ilbert exclui a hipó tese po rque: 1 . o ho m e m d o re tá bulo de Sa nsepolcro não é um retrato;'

2.

se po rventura fosse, e ntão o ho m e m da Flagelação seria

um m o rador de Bo rgo, e não um cha ncclc r de Fede rico da M o ntcfeltro. M as a primeira afirmati va é infundada, c a segunda traz- m esm o que por a bs urdo - uma a lte rna ti va g ra tu ita. Na ve rd ade, tertiu m dat ur. As coisas são mai s comp lica das.

É abso lutam e nte certo que o hom e m ajoe lh ado aos pés da Nossa Scnh onJ dn Mi se ricórdia e o ho m em com manto de brocado da Flagela-

ção são a mes m a pessoa. A prova decisiva - c, a liás, não necessár ia, em vis ta da cla ra seme lha nça - é dada pe lo me smo pe ntime nto que, nos do is quad ros, se rviu pa ra modifica r o conto rno do crânio do pe rsonage m "';~. 4 o;, 4 6

desco nhecido, 1 redu z indo ligeiram ente suas d im ensões. Esse pe ntimento só pode ter s ido ditado por uma re finada preocu pação re t ra tística- a de reprodu zir com a m aio r precisão possível as fe ições do mode lo. No e nta nto, o m esm o pe rso nage m fo i pi n tado por Pie ro uma terce ira vez: num d os a frescos de A rczzo. N uma nota q ue, sa lvo enga no me u, esca po u aos su cess ivos es tudi osos," C la rk des taco u que, m es m o se ndo no to ria m ente a rriscada a identificação das sem elha nças, é indu bitável q ue o ho me m de pe rfil à esq ue rd:1 de Cos roés correspond e, apen as

n c;. 47

um po uco m a is ava ntaj ado devido à idade, ao ho me m re presentado aos pés da Nossa Se nhora da M ise ricó rdia . Ao co m pa rar esta àqu ela o utra ide ntifi cação, não me ncio nada por C lark, do ho me m com m an to de bro-

:!

:1

4

I ()()

Essa no.:gariva tiio categórica, po rém, logo a seguir é aten uada na nota (cf. Gilberr, ''On Subject", op. cit., p. 208, nota 22). O po.:n timo.:nto na fiaRe/ação foi apontado por Lavin (Tmttllplr, op. cit., p. 335), que sugere uma cxpl icaçiio historicamente in susten t:ível: ""llrese clra11ges co11/d lwve /Jee11 for aestlretic reaSOII> i11 re/ati11g tiris wrve to tire arciri11s top of tire wi11dow i11 tire palare lmckdrop" !Essas modificações podem ter sido fei tas por razões estétka>, para cria r uma rclaçiio entre essa curva o.: o arco da parte de cima da janela, no pa l:ícin ao fu ndo! . Uma obscrvaçiio a ná loga de Lavin fo i n:jc itada por C ilbc rt (Figures, op. cit., p. 43). O pcn ti m cntn do rc t:í bulo da Mi se ricórdia fo i apon tado por Batt isti (Piero, op. cit., 11 , p. 92). Niio cre io que os d ois pcntimcn to s tenham sido ana lisados no mes m o contex to . C f. Clark, op. cit. (ed. r969), p. 79, nota J6.

cada na Flagelação, devemos concluir que se trata do mes m o indi víduo nos três caso s. Ba sta observa r o pescoço largo marcado po r um a profunda dobra, o qu e ixo, a boca, os o lhos e, e m especial, a sing u la ríssim a orelh a, de ponta aguda e cortada, e o ló bu lo ca rnudo. Com base nessas ca racte rísticas, relacionadas uma a uma, Frede rick Hartt es ta be leceu a equi va lê ncia, do po n to de vis ta fi s ionômico, entre o h om e m da Flage-

lação, o do retábulo da Mise ricórdi a e um dos personagens no séquito de Sa lo mão no [ncontro de Salomão com a rainha de Sabá. 5 A inclu são dessa ú lt im a fi g ura, porém, parece m enos convin ce nte: o perfil , à

11c. 4 s

dife re nça dos de ma is, a presenta uma reen trâ ncia na base d o na riz e o lá bio superio r é um pou co m ais pron un ciado. Por questão de segurança, propomos lim ita r a sér ie aos três perfis já ide ntifica dos na Flagelação, na Nossa Senh o ra da Mi sericórdia c no afresco da Derrota de Cosroés. Em s ua segunda inte r venção sobre a Flage lação, Ci lbcr t refutou a justo título a e rrô nea id e n tifica ção, proposta por Lavi n, do h o m em co m m a nto d e brocado com o L ud ov ico Go n zaga, subsc revendo e m lu ga r de la as s uge rida s po r e le m e s m o e po r Hartt. No entanto, isso não o levo u a rejeita r a tese s us tentada n o passado, segu ndo a qual o pe rson agem da Flagelação se ri a um tipo fi s io n ômico reco rre n te n o s quadros d e Pi e ro : s implesm e nte o transe unte cas ua l se trans formou e m Jo sé de Arimate ia. 6 Trata -se, poré m, de um indiv íduo q ue Pi c ro conh ecia muito be m , cujo nom e nos é reve lado com su a presença na Derro ta de Cosroés. No afresco fi nal, P iero retratou e m torno do sobera n o derro tado o s comi te n tes do cicl o de A rezzo. " De o nde m e rece u por esta o bra ", escreveu Va sa ri , "se r prodiga m e nte recompen sado por Luigi Bacci (o qua l, ju nto com Ca r la e outros irmãos seu s, c muitos a re tinos qu e e ntão flo resciam nas le tras, aq ui retratou ao redo r da decapitação d e u m re i)

6

7

l·. .]'' 7 Ma s

C f. frederi ck llartt, 1/tslot y o{ llnlin11 Rt'ltnt>stliiC<' Art. ova York: ew York Univcrsity Prcss, 1969, p. 244. Cf. C ilbert, Figures, op. ci t., p. 41: "Tiu!st' Jll'rstms are 11111 porlrnils, lmt "'"" who participare i11 sce11es as i11the 'Fiasellath,,"' [Essas pessoas não s5o retratos, c sim homen s que participam em cenas como na J"lasela (cio[ (ve r o ensaio na ín tegra). C'f. Vasa ri, Levite, op. cit., 11, p. 497·

Ai11d11 n F l <~gela ção

101

cado na Flagelação, devem os conclui r q ue se tra ta do mesmo ind ivíduo nos três casos. Basta obse rva r o pescoço largo m arca do po r u ma profunda dobra, o qu e ixo, a boca, os o lh os c, e m es pecial, a sing ula ríss ima orelha, de ponta ag uda c cortada, e o ló bul o ca rnudo. Co m base nessas ca racterísticas, re lacio nada s uma a um a, Frede rick Hartt es tabeleceu a equi va lência, do po n to de vis ta fi s io nô mico, entre o h o me m da Flage-

lação, o do retá bul o da M ise ricó rdi a e um dos perso nagens no séq ui to de Sa lo mão n o En co ntro de Salomão co m a rainha deSabá.' A incl u -

11(,.

são dessa ú ltim a fig ura, po ré m , pa rece m enos con vincente : o pe rfil, à dife rença dos de m a is, apre se nta um a reen trâ n cia na base do na ri z e o lábio s upe rior é um po uco mais pron u nciado. Po r q uestão de seguran ça, propom os limitar a série aos três pe rfis j á iden t ificados na Flagelação, na Nossa Senh o ra da Misericórdia e no a fresco da Derrota de Cos roés. Em s ua segunda in te rvenção so bre a Flage lação, C ilbc rt re futo u a justo título a errô nea identifi cação, pro pos ta por Lavin, do home m com manto de brocado co mo Ludo vico Gonzaga, s ubscrevendo e m luga r de la as s u gerida s po r e le m e s m o c po r Hartt . No e nta nto, isso não o levo u a rej e ita r a tese sus te ntada no passado, seg undo a qual o pe rso n age m da Flagelação seria u m tipo fis io n ômico reco r re n te nos q uadros de Piero: s imples m e nte o t ra nseu n te cas ual se tra ns fo rmo u e m José de Arima te ia. 6 Tra ta-se, po rém , de um indivíd uo que P ic ro co nh ecia mui to bem , cujo nome n os é revelado co m s ua presença na Derrota de Cosroés. No afresco fina l, Pi cro re t ra to u em to rn o do sobe rano de rro tado os com itentes do ciclo de A rezzo. " De o nde m e rece u por esta ob ra", esc re veu Va sa ri, " se r p rodigame n te recom pe nsado po r Lui gi Bacci (o qua l, j un to com Carl o c out ros irmãos seu s, e mui tos are tin os qu e e ntão fl oresciam nas le tras, a qui re trato u ao redor da decapitaçã o de um rei) 1-.. ]" 7 Mas 5 6

7

Cf. Frcdcrick Hartt, //rstor y o{ ltaliarr RerrmssrliiCt' Art. ova York: New Yo rk Untversity Prcss, t 969, p. 244. Cf. Gi lbcrt, Tix w·es, op.lit., p. 4): "Tlrese persorrs an• rrot portraits, lmt 111!'11 wlro participa te i11 scc11cs as in tire Tlagcllation '" I[ ssas pessoas não silo rct ratos, e sim homen s que participam c rn cenas como na rlaseht(cio l (ver o ensa io na ín teg ra) . Cf. Va sa ri, Levite, op. cit., 11, p. 497·

llirrda n Flagelação

101

48

Vasari, como lhe ocorre amiúde, não é muito exato. Nesse caso, su a imprecisão é ba stante estranha, visto que - com o a pontou Mario Sa lmi diz respeito à família de que descendia s ua esposa, N ico losa Bacci. Mas as pesqui sas realizadas por Salmi na árvore genea lógica dos Bacci não mostraram nenhum Lui gi ou Carla: daí a proposta de id entificar o homem de perfil ao lado de Cosroés como Francesco Bacci, e os doi s de fl an co como seus sobrinhos Andrea e Agnolo. Trata-se de uma identificação conj etura!, pois não dis pomos de outros retratos de nenhum deles. A escolha dos nom es foi s uge rida a Sa lmi por um documento citando que, em setembro de 1447, o tio Francesco e seus dois sobrinhos tinh am vendido um vinhedo para paga r o " pintor que foi escolhido para pintar nossa capela grande de Sa n Fran cesco". 8 O " pintor ", co mo sabemos, e ra aquele que in iciou a deco ração, ou seja, Bicci di Loren zo. A hipótese de Salmi, porém, é inveross ímil. Na Derrota de Cosroés, Pi ero pintou os r etratos não dos qu e tinham pagado o trabalho de se u pred ecessor, e s im dos represe nta ntes das três gerações de Bacci que haviam desejado, ini ciado e con cluído a decoração da capela- ou seja, da direita para a e squerda, Baccio, que e m 5 de agosto de 1416 es tabeleceu "que se m a nde pintar e fig urar toda a ca pela gra nde da igreja de San Francesco de Arezzo", seu filho Francesco, que em 1447 deu início

à obra, e o filho de Francesco, Giovanni, qu e com a morte do pai (em 1459) s upervisiono u a execução até o final. No caso do avô e do filh o, a ide ntificação, embora prováve l, é conj etura!. Mas no caso do neto, Giovanni , é segura. Foi ele que se fez pintar de perfi l ao lado de Cosroés. " Piero não se dig nou a emprestar seu pin cel nem seq ue r a seu s patronos a retinos, ou, se o fez, foi ape na s um mínim o", escreveu Longhi.9 r 1c.s. 4 9,5o

Reconhecemos essa " mínim a parte" no esplêndido perfil de G iovanni, o hom em a quem Pi ero es tava de fato ligado desde muitos anos, e que naquele m omento tinha a seu ca rgo a respo nsabi lidade pela decora ção

8 9

1 02

C f. Sa lmi, " [ Bacci di Arezzu", op. cit., pp. 2J1-J2, 229. C f. id ., ibid., p. 2JJ; Longh i, Piero, op. cit., p. 45; ed. bras., p. 64 .

da capela. O s re tra tos do pa i e do avô, ambos fal ecidos, podiam muito be m ser confiados aos ajudantes. Da identidade fi sionômica en tre o comite nte de perfil de Arezzo e o homem com manto de brocado da Flagelação emerge o n o m e de Giovanni Bacci. Cabe lembrar que, numa ca rta de 1461, ele m encio nava Federico da Monte fe ltro e Borso d' Este, definindo-os como "sagacíssimos e refinadíssimos no vive r como nenhum outro senho r da ltália". 10 Essa definição se baseava num co nhecimen to pessoal: durante três semestres, de janeiro de 1456 a ju nho de 1457 - pe ríodo inv ulga rme nte longo-, Giovann i Bacci foi podestade de Gubbio, então domínio dos Mo ntefeltro. Voltou a ocupar o m esmo cargo de junho a novembro de 1468. " A Fla-

gelação foi com certeza e ncomendada por ele, para destiná-la a Federico. 2.

A identificação do ho mem com m a nto d e brocado com o Gio vanni

Bacci elimina de uma vez por todas as te ntativas de inte rpretnr a Flagelação de Piero como uma variante das fl agelações de C ris to no rmai s. De fato, Bacci não é representado com o um doador que assiste a um epi sódio da vida de C ri sto. A fl agelação é relegada ao pla n o de fund o. Qual a relação e ntre ela e a cena que se desenrola em prim eiro plano? Essa pergunta fo i tra tada pel os estudi osos qu e interp reta ram o qu adro como re presentação de dua s ce nas dis tinta s, em lu gar de uma única, de tema bíbli co. Para C lark, a fl agelação de C ri s to exprime os pensa mentos dos três pe rsonagen s em prime iro plano.• > Para Lavin, a fl age lação é uma "apa ri ção", que Ottaviano Uba ldini está e lu cidando r o Cf. pp. 52-53· 11 C f. ASl., Rifo nnan zr, reg. 25, cc. 1 r ov-1 11v:" Noticin cllcctionis dorni ni johonnis de Baccis de Arctiu potestatis [ugubii " (12 de ja neiro de 1456); reg. 26, c. 35v (21 de ju nho de 1457: nomeação dos admi nistrado res e auditores encarregados de verifica r os atos de 13occi no exe rcício anterio r); reg. 27, c. 190v ( 10 de ju nho de 1468: juramento de Baui sta de Torcelli s, assessor do podcstade Giovonni Bncci); reg. 28, c. 8r ( 17 de novem bro de 1468: aprcsenwção dos libri malleficiomnr do período de Bacci como podcs tade); reg. 28, c. 13 r (21 c z8 de novembro de 1468: eleição do auditor c dos admini stradores e nca r regados de verifica r os atos da ges tão de Bacci). Agradeço ao douto r Picro Luigi Menichetti por ter autorizado gentilm ente que consultasse se u arquivo sobre as podestades de Gubbio. H:í uma me nção ii nomeação como podes tndc de Cubbio numa corra de Bacci a Cosimo de' Medici (Asr, MAP, VIl, 3). ·1 2 Cf. Cb rk, op. cit., p. J4·

Ainda a Flagelação

103

para o m a rqu ês de M â ntua .'J Pa ra Gouma -Pe te rso n, é um "even to arq u etípico ", cujo a tua l s ignificado po lítico e religioso é ex plicado pelo e mba ixador g rego ao príncipe ociden ta l. ' 4 No e nta nto, entre a d ive rsidade da s interpretações, h á um e le m ento comum se mpre ressa ltado: a d is tâ ncia não só física, m as ta mbé m, por assim di zer, o nto lógica entre as duas cenas. Aro nberg Lav in, seguida por Cou m a- Pe te rso n, observou q ue e ssa distâ ncia é acentuada pela ilumin ação diferen te, vind a da di reita, e não da esquerda, do evento qu e se desenrola so b o át rio. A rep resentação, de n tro de um a m es ma un idade pictó rica (q uadro ou ciclo de a frescos), com diversos níveis de rea lidade é um tema abordado repetidamente :::t pa rtir da pintur:::t e urope ia quatrocentista. As pesquisas de Sven Sa ndstrom '' mo strara m conw o crescente domínio das poss ibilidades ilu sioni sta s da representa ção pi ctórica despertou a vontade de exprimir com meios variados- desde a g risaille aos efe itos de lu z - a dis tância entre realidade e ficção, o u e n tre rea lid ade natura l e sobrenatura l. N a Flagela ção, alé m das d iferen tes fo ntes de luz, Piero uti liz ou a perspecti va . A de m o nstração de m aes tri a perspectiva no quadro de U rbino não deve se r entend ida, como tem ocorrido, com o um exercício de virtuos ismo, e sim como uma escolha express iva muito determinada. Ness:::t esco lh a, Pi c ro tinh a um exe mp lo prese n te: o de Be noz zo Cozzoli e m M o ntefalco. Essa ap roxin1 : :t ção pode s urpreender: de vido

à g rand e di s tâ ncia em termos de e xcelê ncia qua litativa e ntre Pi ero c Benozzo, tem -se co nsiderado es te último se mpre com o devedor do primei ro, e xcl uindo -se a priori a poss ibilidad e contrá ri a - m es mo contra a s evid ências da cro n ologia. É m a is um a prova de co m o é difícil a pa ga r a imagem conve ncional do gê ni o. Na ve rdade, m esm o admitindo qu e J C f. Aronberg Lnvin, Tri11111plr, o p. cit., p. JJ9· 14 Cf. Gouma-Pete rson, 1/istorica/ /nterpretation, op. cit., p. 229. 15 Cf. Svcn Sandstrom, Leveis of Unreal1t y. Upsa la: Al mq uist & W iksclls, 1964 (para o período 1470-1524); id., " Présence médiatc e t imméd iate", in Arclrives d,•['art frnnça is, xxv (1978), pp. 407-17 (com urna excm plificaçõo que vem até Gaug uin e Redon). De outro ponto de vista, ve r tam bém M illard Me iss, Ciova1111i 13ellilli's St. Frmrcis i11 tire (r ick Cul/ection, Princeton {N.J. ), 19ó4. Podc-st• com pa rar proveitosam ente essas pesqui sas com lw lo Cal vino, " l liw lli della realt à in le ttc ra tura ", in l111a piet m so pra . Turim : M o mbdo ri , 1980, pp. J 10-2J !cd. bras.: Assrmto l'llcerrado, trad. Robc rta 13n rn i. São Paulo: Companh ia das Letras, 2009!-

J

Piero tenha começado - segundo a hi pótese de Longh i c outros- os afrescos de A rezzo em 1452, é imposs ível qu e eles pudessem te r in flu enciado Benozzo nas hi s tória s de S5o Francisco em Montcfalco, que uma vis tosa in scrição decl ara terminada s em 1452. Sem dú vida aqui são vis íve is os e mpréstimos to m ados a Piero: m as ao Piero do Batismo,

11< •. 2

pintado logo após 1440, e que ressoa m no gesto de Francisco se dcspo-

11< •. í'

6

ja ndo dos be ns, c não, de m a ne ira a lg uma, ao Piero de A rezzo.' Pie ro teve de fazer um desvio po r Montefalco no ou to no de 1458 (se não antes), seg uind o de Borgo Sa n Sepolcro a Ro ma ao lon go do va le tiberino. Lá viu, en tre outros, o afresco represen tando a Visão de Inocêncio m.

r 1c..

52

Enqu a nto Ciotto em Assis exprimira a dis tân cia e nt re a rea lidade cotidia na do papa adorm ecido c s ua visão em 45 gra us de Francisco su stentando o Latrão, por seu lado Benozzo reco rreu a um ex ped iente lin -

nG. ;1

g uís tico m ais mode rno, relega ndo o papa para o fund o e ca tap ulta ndo Fra ncisco para o primeiro pla no . Na Flage lação, Piero e mprego u o mes m o expedie nte de pe rspecti va, m as invertido: a realidade cotidiana é a presentada no prime iro plano, e nqua nto a outra rea lid ade (logo veremos com o defini -la) é projetada para o pla no de fund o. 3· Entre os doi s pla nos, como dissemos, ex is te uma distância que n ão é só fís ica, mas ta mbé m ontológica . O que faz bro tar a fig uração do m artírio de C ris to no ca mpo da realidade coti dia na? No afresco de Benozzo, a visão se manifesta ao pa pa ado rmecido. Aq ui não temos fi g uras ado rm ecidas nem a e las s urgem aparições. Entreta nto, a hi pó tese de Clarkde que a flagelação expressa os pensa m e ntos dos três personagens e m prim ei ro pla no- não leva em conta a s difere nças de a titude. O hom em barbado, de fa to, es tá fal a ndo: sua boca es tá scmiaber ta, a m ão esq ue rda erg ui da a meia a ltura, no ges to de afirm a r alg uma coisa.' 7 Sem dúvida 16 Cf. An na Padoa Rizzo, He11oz:w Go::.z.oli pitto re Jiurc11li11o. Florença: [dam, 1972, pp. 4 1-42 (onde se assinala o empréstimo fe ito a partir do Batismo de Londres). À p. 42, nota 87, depois de ter datado a rlaxelnção em 145 1 e o comissionamcnto do ciclo de Arczzo em 1452, destaca-se a "p recocidade com que Benozzo en te nde u a arte de Piero", mas sem se estender a po nto de inve rte r os t rndicio nais termos da relaç5o e ntre os dois pi ntores. 17 Cf. Baxa nda ll, Pni11ti11g, op. cit., p. 61 (t rad. ital., p. 69).

Ai11dn n Flagelação

105

,,c. 54

fala da flagelação de C risto (a ntes de decorrer um século, Lorenzo Lotto iria representar de maneira aná loga a préd ica do frade viccntino G regorio Belo sobre a crucificação, no retrato hoj e em Nova York). Giovanni Bacci ou ve a pregação fitando -o de mane ira precisa. Mas o home m de barba não devolve o o lhar de Bacci: se us o lhos es tão voltados para a direita, para a lé m do quadro. Ent re os dois, o jovem ma ntém seus o lh os claros, imóveis, postos num ponto à esquerda do observador. Assim, estamos exclu ído s desse jogo en trecruzado c divergente de olhares. No enta nto, as palavra s do home m de barba faze m surg ir a ce na da fl agelação diante de nós e para nós: e o turco de cos tas como que nos obriga a participar dela. '8 Do po nto de vis ta narra ti vo, o que unifica toda a composição é o gesto do h omem que fa la. 4 · Sa bemos que, no com eço do sécul o

XI X,

o quadro vinha acom pa nh ado

pela in scrição " Co nvenerunt in unum" . O professor de his tória da a rte Dario Covi, da Un ivers idade de Lo ui svi ll e, s upôs qu e se tratasse de uma fa lsificação, vis to qu e a inscrição teria de estar a pli cada na m o ldura, o que, n aq ue le período, era muito raro. Mas não impossível: vej am -se os versículos do Credo q ue acompanham os pain éis (ante 1412)

,,c. 55

a tribuídos a Taddco di Barto lo. A lém di sso, Gi lbe rt lembrou opo rt una m e nte o ca so dos re licá rios : uma ca teg o ri a de image ns à qua l a

Flagelação parece pertencer e m virtude do forma to, da iconografia e da proveni ên cia (a sacri s tia de uma igreja). O relicá rio das pratas de n c. 5 6

Angcli co (c. 1450) é acompa nhado por passage n s bíbli cas in scritas em fal sas moldura s. ' 9 Por tanto, não há m otivo para duvida r da aute nticidade da inscrição perdida. Como j á foi fri sado, e la e ra perfeitamente apropriada a uma representação da flagelação de Cris to: a a ntífona lida no primeiro n oturno da matina da Sexta -Feira Sa nta é formada pelas 18 A observação é de Gouma-Pete rso n (l listoricn lflllerpretatioll, op. cit., p. 229). A esse respe ito, Salvatore Settis me indica Ma rgarete Koch, Die Riicke11fig ur i111 Bild. Reckling hause n: Bongers, :1 965 (que não consulte i). 19 C f. Enzo Carli, 11 Dzzo1110 di Sie11a, Sicna, 1979, p. 87 (sobre os painé is do Credo, com indicação das atribuições ante riores); G ilbert, Figures, op. cit., p. 41, nota 5· Sobre a hipótese de que a Flagelação fizesse pa rte dos pa inéis de um reliccirio, cf. G ilbert, Clw 11ge, op. cit., p. 107.

106

I

mesma s palavra s "Convenerunt in unum", início do seg undo versículo do segundo salmo. 20 Nes te ponto, porém, surge uma dificuldade: uma vez que excluímos que o quadro de Piero seja uma flagelação normal, qu e significado d eve ser atribuído às palavras "Convenerunt in unum"? Cla ro que devem referir-se não só à cena da flage lação, que, como vimos, co nstitui o tema secundário do quadro, mas também ao tema principal, o u seja, a misteriosa cena em prime iro plano. Em outra s pa lavras, a didascá lia s ugeria ao espectador o assunto do discurso do h omem de barba, representado com a boca entrea berta ao ilustrar o versículo "Convenerunt in unum" com a flagelação de Cristo. Tal interpretação é confirmada pela prese nça do turco de turbanteque está de costa s e assiste à flagelação (o u talvez até a o rdene) -, e pela representação de Pilatos com o chapéu e o calçado vermelh o dos imperadores bizantinos. 21 São esses os reis e príncipes mencionados no salmo: é o que está comentando o hom em de barba, com referê ncias extraídas da realidade da época. Clark foi o primeiro a conjeturar uma alusão ao congresso de Mântua em 1459, convocado por Pio

11

para

enfrentar a ameaça turca. 5· Se existe uma di stância entre o g rupo em primeiro plano e a flagela-

ção evocada no plano de fundo, não se exclu i que o discurso do homem de barba se desenrole em loca l e mome nto específicos e identificáveis. Comecemos pelo loca l. O átrio onde se desenrola a flagelação de Cristo é claramente um edifício de fantasia. Suas características albertianas, como há de se lembrar, foram utilizada s por Cla rk para atrib uir ao quadro uma datação por volta de 1459-60. Aronberg Lavin supôs que Piero também teri a util izado as informações (na ve rdade, extremamente vagas) sobre as "casas de Pilatos", contidas no relato de um viajan te contemporâneo que fora à Terra Santa. Em data mais recente, Borgo (seguido por Aronberg 22

Cf. acima, p. 91., nota 20. Este ponto foi corroborado por Gouma - Peterson, Hisforicallnferpretation, op. cit., pp. 22 Cf. Aronberg Lavin, Triumph, op. cit., pp. 324-25. 20 21.

219

ss.

Ainda a Flagelação

107

Lavin) indico u co m o possível fonte de in spiração de Piero uma m en ção de Flávio Josefo na Guerra do s judeus às " torres" da Fortaleza Antônia, que e ra tida com o sede da pre to ri a de Pilatos. >J É um a m en ção no mínimo fugaz: ade mai s, não pa rece qu e Piero tenh a alg uma vez se e ntregado a m eticulosas reconstruções a rqueológicas, como aqu elas de M a ntegn a. 24 Muito m ais fecunda se afi g ura o utra s uposição de Aronberg Lavin, a sa ber, que a escada vi síve l no vão da po rta diante da qual Pila tos está sentado n a Flage lação en ce rra uma a lusã o à Scala San ta ("Escada Sa nta "), da ig reja de San G iovanni in La terano, e m Rom a. 2 5 A loca lização a tual da Scala Santa é pos te rio r à dem olição da a ntiga sede do pa triarcado, o rden ad a po r S is to v para da r lugar ao n ovo p alácio la te rane nse. Naq ue la ocasião, a Sca la Sa nta foi tra n sferida pa ra jun to do Sa ncta Sa n cto rum, n o edifício e ncom e ndado por Dom e ni co Fo nta na com essa finalidade expressa. Antes di sso, poré m, e la estava, com o escr eve u G iova nni Sever an o qu ase cinque nta an os depois da pro fund a refo rma do Complexo La te ra no (La trão), " perto da po rta do Palácio novo late r ane n se, que o lha pa ra o norte" .26 Todos o s testem u nhos anteriores conco rd am sobre esse po nto. Um de ta lhe do Triunfo Fl c.

57

n c. 5s

de São Tomás, a fr esco pintado por Filippino Lippi na cape la Ca raffa da ig rej a Sa nta Ma ria sopra Min e r va (1489-93), e um desen ho d e M arte n van Heem ske rck (1532-)6)' 7 dão um a ideia do asp ecto da fachada se tentr ional da sed e patria rcal na qu e la época . A re líquia, cercada de g rande ven e ração desde o jubile u de 1450, cos tumava se r ch a m ada de scala Pilati ("esca da de Pilatos" ), p rovável 23 C f. Borgo, op. cit., p. 550, e Aronberg La v in, in 13urlington Magaz ine, 121 (·1 979), p. 801. 24 Cf. C lough, in ibid ., 122 (1980), p. 577· 25 Cf. Aronbcrg Lnvin, Triumpl1, op. cit., p. 325. Pode-se notar que verossimilmen te Luca Signorelli se inspi ro u neste deta lhe, ao inse rir num dos afrescos de Monte Olivcto o motivo da porta aberta para o fundo (cf. Chastel, "La figure dans l'encad remen t de la porte", in Fahles, op. ci t., 11, pp.145 -54, em esp. p. 151). 26 Cf. Giovanni Se verano, Memorie sacre del/e sette chiese di Roma. Roma: G iacomo M osca rdi, 1630, 1, p. 543, que fa la de "e scadas santas", referindo-se também às dua s esca das que Aanqueavam a principal. Sobre esta, ver a ú til recapi tulação de M a rio (empena ri c Tito Amodei, La Scala Sa nta. Roma, 1974 (2~ ed.). 27 Am bos são reproduzidos por Ph il ippe Lauc1; Le Palais de Latra11. ttude historiqu e et archéologique. Paris: Leroux, 1911 (fi gs. 10, 1·1 4). Sobre o primeiro, ver Carlo Bertelli, " Filippino ~

108

corruptela de scala Pala tii ("escada do Pa lácio") . Segu n do a tra dição, foi Santa H e le na, m ãe do impe rad o r Consta ntin o, qu e m tra nsfe riu, da preto ria d e Pilatos a Roma, a escada que Cristo tinha percorrido três vezes antes d e se r conduzido ao Calvá rio . Um dos p rime iros teste munhos sobre a veneração da relíqui a e o costume- ainda h oje em uso- dos pe reg rin os de s ubir a escada de joelhos durante a Sem a na San ta consta do Zibaldone de Giovanni Rucellai, que esteve e m Roma para o jubile u de 1450. Depois de me n cion a r a "gentil capelinha[ .. . ] q ue se ch ama Sa n cto San ctorum ", situ ada " fora do co rpo da ig reja" de Sa n Giova nni, no Complexo La te ra no, R ucell ai escrevia: " Igualmen te, junto à dita capela de San cto Sanctorum h á uma escada q ue desce até a pra ça de São João, com seis braços de larg ura e os degraus la rgos de márm ore num a peça só, qu e foi a esca da do palácio de Pilatos de Jerusalém , onde ficou C ri sto qua nd o foi dada a sentença de sua morte, a qual ve io de Jerusalé m, e para maio r devoção os que vêm ao j ubileu, principalme nte o s estrangeiros, sobem - na de joelhos [ .. . ]". A segu ir e le me ncionava a está tu a equ estre de M a rco Auré li o (agora considerada de Consta ntin o) que fi cava na fre n te do La trão e hoje se en contra n o Capitólio, e acr esce ntava: " Ig ua lm e nte, naquela praça, sobre um pedaço de coluna, um a cabeça d e giga n te de bro nze e u m braço com uma bola de bronze". 28 Reconhece-se aqui a fonte do ídolo no alto da coluna a que está preso o Cristo da Flagelação. De fa to, como n oto u pela prime ira vez Werner Haftma nn,Z9 Piero se inspirou nos res tos de uma estátu a colossa l cuja

nc. 43

~

Lippi riscopcrtu", in li Veltro, v u (1963), pp. 59-60. Sobre o segundo, Chri stian H ue lscn e Henna n n Egger, Die l~ o misc h en Skizze 1Ihüch er von Marte11 van 1/eem skerck, Be rlim, 1913--r6 (rest. an. Soest 1975), 1, pp. 36-39, c em geral o estudo de llja M . Veldman, Maarten von Hee msk erck and Du tch Flumnnism in th e Sixteenth Cen tu ry, trad . ing l. Maa rsscn : C a ry Sch wa rtz, 1.977 (com bibl. ). 28 Cf. Ciovnnn i l~u ce llai ed i/ suo Z ibaldone, 1, li Zibaldon e Quaresi111nle, Alcssandro Perosa (org.). Londres: T he Warburg lns tiitu tc, 1960, pp. 70 -71.. Note-se que Ciovanni Ruccl lai e Ciova n ni Bacci se co n heciam bem. O segun do, em 9 de nove mbro de 14 73, escrevia a um dos Med ici: "As n at urezas de todos nós dos Bacci, podeis saber com vosso Ciovanni Ruce lla i e co m muitos c muitos homens sa pientíssimos c per feitos" (Asr, MAP, xx1x, 982 ). 29 Cf. Werner Haftma nn, Das itnlienische Snülemnorwm ent. .. Lcipzig: UniversitatGi:ittingen, 1939, pp. 95 -97; cf. também William S. Hecksche r, Sixt11 5 111 Aerieas iiiSignes Status Romano Populo ~

Ainda n Flagelação

109

presença diante do Latrão é registrada por algun s v iajantes desde o século xn, e depois pe las várias redações dos Mirabília Urbis. Segundo uma tradição lendária, a estátua se encontrava originalmente no templo do Sol; te ria sido o papa Silvestre quem tran sferiu os restos para a frente do Latrão. No entanto, uma ilustração do exemplar da família d'Este das r 1c. 59

Antiquitates de Giovanni Marca nova, em grande medida imaginária, e m uito dife ren te da descrição precisa e quase conte mporâ nea presen te no

Z ibaldone de Giovanni Rucellai, registra - baseando-se visivelmente em descrições orais- a loca lização dos fragme ntos n o meado do século xv dia nte da fa chada seten trional da sede patriarcal, não di stante da estátu a equestre de Marco Aurélio.JO No final do século, a cabeça, a mão e a bola FIGS. 60-62

(popularmente chamada de "palia Sansonis" ) foram transportadas pa ra o Capitólio e colocadas prim eiro no lado exte rno e depois no interior ~

Restituendas Censuit, G ra venhage l Haia: BRILL, 1955] (às pp. 46-47, um resumo em inglês) .

Battisti (Piero, op. cit., J, p. 320) reconecta o ídolo aos restos da estátua na fre nte do Latrão, remetendo a Cornelius Vermeule, European Art a11d the Classical Past. Cambridge (Mass.): Harva rd University Press, 1964, p. 40, porém propondo ou t ra de ri vação, não convin cen te. JO Cf. Codex Urbis Romae Topog raphicus, Karl Ludwig von Urlich s (o rg.). Vircebu rgi: N otitia e C uriosum, 1.871, pp. 121, 1 )6, 160; Codice topografico del/a città di Roma, Roberto Valcntin i c G iuseppe Zucchctti (org.), 111, Rom a: T ipographia de] Sena to, 1953, pp. 196, 353; En rico Stevenson, "Scopcrte di an tichi edifi ci ai Laterano", extra ído de Anna/i dell'lnstituto di corrispondenza archeologica, Roma: Tipographia del Senato, 1877, p. 52 (sobre a tradição referente ao templo do Sol); Lauc r, op. cit., pp. 24-25; Pau l Bo rchardt, "The scu lpture in fron t of the Lateran as described by Benjamin ofTudela and Magister Gregorius", in ]oumal of Roma11 Studies, XXVI (1936), pp. 68 ss. Sob re o desenho que ilustra as An tiquitates de Marcan ova, cf. C hristian H uelsen, La Roma antica di Ciriaco di A ncona. Roma: Ermanno Lascher & Co., 1907, p. 29 e ilustr. VIL Sobre o exemplar dessa obra, cf. Augusto Campana, " Biblioteche della província di Forll ", in Tesori del/e biblioteche d'ltalia, Emilia-Romagna, Do m enico Fava (org .). Milão: 1-loepli, 1932, p. 97· Sobre o exempla r hoje em Princeton, llo lmes va n Ma ter Denn is, " The Garrett Man uscript of Marcano va ", in Memoirs of th e Ame rican Academy in Rome, VI (1.927), pp.UJ-26. Sobre as ilustrações de ambos, Elizabeth B. Lawrence, " The lll ustrations o f the Garre tt and Modena Manuscripts o f Ma rca nova", ibid., pp.127-31. A derivação das ilu strações a partir de desenhos de Ciríaco, sustentada po r 1-luelsen, foi depois posta em dúvida (cf. Roberto Weiss, " Lineamenti per una storia degli studi antiquari in ltalia ... ",i n Rirwscimento, IX j1958J, p. 172) ou negada (cf. Cocke, op. cit., p. 22), também por não serem fidedig nos do ponto de v ista a rqueológico. Discordando de 1-leckscher, Cocke sustenta (pp. 22-2 3) que as colunas eram ma is baixas do que as representadas nas Antiquitates de Marca nova, e os fragmentos, portanto, muito mai s visíveis. Pode-se lembrar em favor dessa tese que Giovan n i Rucellai descreve os restos do "giga n te" "sobre um pedaço de col u na". Sobre a s escu lturas a ntigas na fre nte d o Latrão, é m u ito ú til Philip Feh l, " T he placcmen t of thc equestrian statue of Ma rcus Aureliu s in the Middle Ages", in ]ournal of the Warburg and Co11rta uld lnstitu tes, 37 (1974), pp. 362-67.

110 I

do Palácio da C uradoria, onde ai nda se enco ntram. Segu ndo a hipótese hoj e predominante, t rata-se dos fragmentos de uma es tátua de bronze dourado, com ce rca de três m etros de altura, representando, como foi recen temente comprovado, o impe rado r Co ns ta ntin o.>• Uma referência tão precisa não pode ser a nteri o r à viagem de Pie ro a Roma - sob Pi o

11 ,

conforme documentado, já que a outra viage m , sob

N icola u v, deve se r at ri bu ída, até prova em contrário, a um a confusão de Vasa ri. Isso s ig nifi ca qu e a Flagela ção pode ter s ido pintada em Roma, entre o ou tono de 1458 c o o utono de 1459, e então transportada para o utro loca l, pres umivel m ente Urbino; ou, ainda, pintada num período posterior. Seja como fo r, cae m por terra as propos tas de da tação precoce, a co meçar pela de Long hi : esboça-se uma convergê ncia com a datação

(1458-59) proposta por C la rk, aprese ntada com outros argumentos. Contudo, a Sca la Sa nta não e ra a úni ca relíquia prove niente da pretoria de Pilatos conse rvada na parte se tentriona l do Complexo Latcrano. Havia também três porta s c dua s colunas levada s para Ro m a, segundo a tradi ção, pe la imperatri z H elena, m ãe de Co ns tantino. '' A trans ferência da s peças pode ser recons truída integ rando uma séri e de tes temunhos

à planta laterana, extren-wme nte acurada, feita pel o arquiteto j.:ra nccsco Contini no começo do século xv 11 ." Segund o a TalJII!a magna continens elen chum reliquiamm et indulgen tiarum sac rosancta e ccclcsin c ) L

nc fq

Mu111cip<~l Colll'Ctions o{ R o me. I h e S wlpllii<'S of ti! C rala ~:o de! Consen>afoli, ll enry <; tll~rt ) 00('~ (org.). Oxford: Clarendon

C f. A Ca ta/os'' " uf lhe Annent Sculptures Pre,crved 111 tl1e

Press, 1926, pp. 173-75 (com bibliografia). Há leves rraços de douração na mão (p. 174). S obre a presença dos fragmentos no Palácio da Curadona e m 15 r o, d . f"rancesco A lbe rti n i, O puscu/um ... , in Cod, ,e topos rafico, op. cir., tv, p. 4 \:1 '· Sobre a idcntificaçiio com Constantino, cf. Konrad Krast, " l)as S dbermcdaillon Constanti ns dl', Cross~n mit dcm Christusm o nogramm auf dc:m I lc lm ", in jahrbuch f iir Num ismat ik ull(l Cclrlgcsclllcllte, s- 6 ( 195 4- 55), pp. 177-7R. )~ V..;r ~\ rcluç5o cO n"\p() St:l pC r Ma f->i$trliiTI Mnn :lC1 11TI M on:l'tcrii S . S . Andrc~ll' c t Gregorii de Urbe", pu bl icada por Ciuscppe So resini em apê ndin: a o~ Sca la Sanefa a11te Sa11cta !>mtctoru "' ill Latcra11o. Roma: Ty pographia Varcstj , 1672. )) Esta plan ta, d epois adotada com o ba se para todas as reconstruções po~ ter i ores, foi apresenta da por Giuvanni Sevcrano, o pr imeiro a publicá- In, nos seguintes termos: " uma pla nta, que Fra ncesco Contini arquiteto com toda a diligência extraiu do local e de seu s vestíg ios Ju Complexo La teranoj; da planta de Roma antiga impressa por Bufal ino na época de Júlio 111; dos desenhos q ue se vcc:m em S. Pic tro M ontor io e na Biblioteca Vatica na, c do relato daqueles que vi ram alguma parte sua " (Severa no, op. ci t. , 1, p. 534 ). 11

Aimln n Flagelação

1 11

Lateranensis [Índice das relíquias e indulgências da lgreja Lateranense], red igida em 1518, as três portas estava m num a "cape la" ou "sala " se m maiores especificações. Ma s o mesmo docum ento informa que, ao lado delas, havia outra relíquia famosa: a pedra sobre a qual foi feita a con tagem das trinta moedas de Judas e depois o lançamento dos dados para tirar à sorte quem ficar ia com as roupa s de Cristo, apoiada em quatro colunas de mármore a um a altu ra tida como igual à de Cristo.34 Ora, sa bemos que essa mensura Christi estava na chamada sa la do Concílio, sit uada no pa lácio qu e Bonifáci o vm mandara construi r atrá s do átrio das bênçãos que dava para a praça (ver os números 37-39 da planta de Co ntini). De fato, duran te a cerimônia da coroação de Inocêncio vm, o trono do papa foi colocado em frente à relíquia .n Em vista do prestígio }4 CL Lauer, up. dr., p. 298 (as lacunas s~u do texto): " Também na capela [ ... ]está a pedra qua drada com qua tro colunas de mármore, cuja altura de nota a esta tu ra do corpo e o tamanho de Nosso Senho r Jesus Cristo, antcs de ser crucificado, e ~ubr..: a qu al os judeus conta ram os trinta dinheiros pa ra Ju das, e também lançarnm os dados e m cima da veste de C risto. Ao fim da p resente sala, h:í t rês portas an tigas, que es tavam na casa de Pila tos, através das quais passara Jesus C risto enquanto era levado pelos judeus". [rm latim no original. I .35 Cf. johamres B11rrklwrdi Liber Notantm ab ar111o M CCCCLXXXIIIII S<J IIe ad n111111n1 MDVI, Enrico Celani (org.), Ci ttn di C'a stello, 1910 (Rcrumltaliramm Scriptores [s/ d[, xxx11, 1), 1, p. 83 (12 de se tembro de 1484 : " Pela bênção dada por meio do pon tífice, rum o diw acima, ascendeu, através da mencionada basíl ica até o pa la tino later;111en sc c, quando te ri a chegado po r com pleto à primeira gra nde sa la, que é chamada Sala do Concílio, foi posto o fa ldistório d iante do local da pedra, posta sob re quatro colunas e q ue é chamada a medida de Cristo, onde o papa tem acento, com as costas voltadas pa ra a di ta pedra ".[ Em latim no original[ (e cf. ibid., pp. 66, 26 de agosto de 1484). A s duas passagens se referem às cerimô nias de coroação de Inocêncio VII I, c n ão de Alexandre VI , como está erroneamente esc rito. Georgcs Rohault de Fleury, Le Lalrclll ali Moyen Age, Paris, 1877, p. 257· A "sa la " mencionada na Tabula de 15 18 (ver acima, nota 34) é evidentemente a sa la do Concílio. Esses testemunhos são apenas na apa rência con trariados por u m a passngem de Andrca ru lvio, Arr tiq11itat es Urbis ... , [Romn], 1527, cc. XXI II r-v: " [m verdade, a partir da o utra pa rte da Basílica, o nde agora s urge o cava lo de bronze, e levam-se, ju nto ao Santíssimo, vin te c o ito degraus de má r more, pelos qua is se narra que Cristo teria subido até Pila tos. Nesse lugar, penso e sinuoso po r um longo caminho, encontra-se o alpendre, que começou a ser construído por Eugênio IV c fo i su cessivamente reparado por Nicolau v c Sisto tv. Ali, na primeira entrada, junto à Basílica de San Giovanni, encon tra-se, à esq u erda, a m edida da estatura de Cristo, onde está a pedra em que foram con tadas as trin ta moedas pelas quais foi vendido pelo discípu lo Judas. Pouco depoi s encontram-se as t rês porras d e mármore através das quais se narra ter cam inhado até Pi la tos, junto à antiga tribu n a dos pontífices; e m segu ida, [encon t ram-se [ dois assentos de pó rfi ro e m que u novo pontífice é celebrado [ .. .j".[ Em latim no original.[ . O tradutor qui n hentista resolveu a obscura expressão " 11/Ji i11 pri111o aditu iuxla basilica tll S. lomw is ocwrrit n sinistris 1nensura -7

112

qu e a cercava, devia com certeza ser obj eto de ve ne ração desde uma data antiga . Philippe Lauer pe nsava que a pedra su ste ntada pelas co lunas era uma relíquia da m esa da Última Ce ia, trazendo a inscrição mêsa Christi, depois erron eamente decifrada como mensura Christi. Essa pe rs picaz s uposição parece ser confirmada pe la m e nção de uma mensa Dorn ini na listagem das relíquias do La trão, redig ida por João Diáco no e m

11 70. 11i

Em m eados do sécul o xv, esses objetos deviam se encontra r na sa la do Concílio, o nde se conse rvava m dua s co lu na s octogonai s "com al guns anéis de ferro

r... j q ue dizem

te r estado no palácio de Pil a tos em

Jerusa lém " Y Com a reorganização do Latrã o, de te rminada po r Sis to v, as relíquias ti veram di versos destinos. Já ex pu se mos o da Sca la Sa nta. As portas foram tran s feridas pa ra o co rredor e m fre nte ao Sa n cta

11c.. 6 4

San ctorum; a mensurn Christi e as dua s colunas fo ram para o cla u stro,

••c~. 6<;-6 7

jun to co m o utras du as colun as "de Pilatos" (cil índri cas, ornada s com folh as de he ra). ' 8

É absolutamente seg uro qu e Piero, na Flage la ção, in s piro u-se nesse conjunto de re líqui as latcran e nses. O fato é d em o ns tra do n ão tanto pelas duas portas "de Pilatos", utilizado s com o simpl es s ugestão pa ra representa r as duas portas no fund o d o á tri o o nde se desenrola -')

stafura e Cltristi" remete ndo o "u/Ji" ao "pu rticus" precedente: " n~ prim eira e ntr~ d a , j unto ~

Ba sílica de Sa n G iova nni, en contra -se, ~ e sq uerda, a medida d ~ estatura de C ri sto" (A ndrea Fulv io, L'1wticltità di Ro111a .. . co n /e ag8 iuntioni et a nnotafi<mi di Girola111o [crm cci .. . , Ven ezn, 1588, c. 54r). N~ realidade, o "u/1i in pri111o aditu" se refere à fa chada se tentrional da sede pat ria rca l (" ab altera ve ro Basiliwe parte" ):com d eito, ~eguem - se ("pau/o ulterius ocwmmt" ) ~ s trê s porta5 "de Pila tos" s itu ~ d~ s na sa la do Concílio, e daí ("dei111le") os do is op. assentos de pórfiro postos diant e da capela de S5o S ilvest re (cf. johlllllles Hurrkha rdi Li cit., 1, p. 8), bem como as notas ) 9 e 4J da jci citada planta de Contini). Fe hl (op. cit., pp. ) 6)-64, n. 10) aponto u a obscuridade da passagem de l"ul vio, m as sem escla recer o s ig nificado. Sobre Fulvio, ver e m ge ral Roberto We iss, "And rea fu lvio roma no (c. 1470-] 517)", in Amrn /i del/a ScHolu Nor111a le S upe rio rc d i Pi,a, curso d e lctm s etc., s. 11, xxv111 (1 959). p. ' 44· J6 Cf. Laucr, op. cit. , p. 104; Jea n Mabillon, Mu sei lta licí tolllltS 11. Paris: Lute t i ~ e P~ r i s io ro rum,

ver,

1689, p. 564. J 7 Cf. Severano, op. cit., t, pp. 587-88, que reg ist ra as dua s colunas "j unto ... ~ pedra " já m e ncionada, sem especifi ca r a loca lização, m as ce rtame nte a ludindo à sa la do Concílio. 38 Sobre a atual colocação das t rês portas, cf. Philippe La uer, Le Trésor du S(II ICI!l S(wctom111. Paris: Leroux, 19Q6, fig . 1; id., Le Pnlai,, op. cit., p. 321 ; Cem pena ri eAmodei, op. cit., p. 8o. Sobre ~ pedra e as colunas " de Pila tos", cf. Lauer; Le Palais, op. cit., p. J JJ; Enrico )os i, 11 cl1iostro lnt erallellsr. Cc11111> storico e illustra zione. Cidade do Vaticano: Ty pographia Poliglota Vaticana, 1970, p. 1 7• nn . r67-68.

Ai11dn n Flagela ção

'' 3

o ma rtírio de C ri s to, quanto pe la outra re líqu ia conservada na sa la do Concílio: a mens ura Ch risti. N um impo rta nte en sa io, Rudo lf W ittkowc r c Be rn a rd Arthur Ru sto n Ca rte r ide n tifi caram o módu lo no qua l se baseou a arq ui tetura da

Flagelação .39 Esse m ódulo, equi va lente à quinta parte do propos to po r Lu ca Pacioli em De divina propo rtione, m ede 1,85 po legada, ou sej a, 4,699 centím etros. Ca rter, po ré m, ressa lta que existe o utra unidade de m edida, indepe ndente, que també m dese mpenha um papel importa nte na o rga nização fo rmal do quadro: a altura de C risto.40 Ela equivale a 17,8 centíme tros. O ra, as colunas o ut rora situadas ao lado ela Scala Santa, ti das como correspo ndentes exa tas da altura de C risto, m edem 187 centímetros. Porém, exa minando a base, disting ue-se co m cla reza a linha que separa a coluna pro priamente d ita c a parte mais ás pcrn, outrora fin cada sob a te rra . Se e liminarmos essa pa rte, que a ntes n ão era visível, tem os uma coluna com 178 centímetros de altu ra.4' Isso significa que, indepen de nte do fato de as u nidades de m edida de Piero serem pés e bra ços, e não "c~.68,6 9

centímetros c metros, exis te uma re lação 1:10 e ntre a altura de C ri sto na

Flagelação e a es tatura que lhe e ra atribUida pela trad1çao fundada nas coluna s lateranenses. Adotand o a altura de C ris to na Flagelação- 17,8 centíme tros- como unidade de m edida, te mos qu e a la rg ura do qu adro equi vale a 4,5 unidades; su a altura, a 3,25; a altura das colun as em prim eiro plano, a 2,5; a dis tâ ncia entre suas ba ses, a duas unidades. Po rta nto, P iero cons truiu s e u qu adro co m u m a precisão m e ti cul osa a pa rtir de um e le m e nto que, evide nte m ente, pa recia -lhe um 39 C f. Rudolf Wittkower e Bernard Arthur Rus ton Carter, " T he Perspect ive of Piero de lla r rancesca's Flngellntioll", in joumnl of the Wnrburg n11d Cou rtnuld l11 stitutes, 16 (1953), pp. 292-302. 40 id., ibid., p. 296. 41 A mesma medida é dada por Rohau lt de Fleury (op. cit., A tlante, il. 51). Tudo isso enfraquece decididamente a tese, em si já insustentável, de que a r/ngelnção de Piero represe ntaria na verdade um Sonho de São jerônimo. Essa tese foi sugerida a john Pope- Henncssy pelas semelhanças com positivas, a pontadas por Enrica Trimpi (in Burli11gto11 Mngazi11t.>, cxxv, agosto de 1983, n. 965, p. 465) ent re d uas predelas de Sicna representando o So11ho de São jerônimo, a de Sa no di Pictro, hoje no Louvre (c. 1440), c a de Matteo di C iova n ni, hoje no Art l nstitute de Chicago (1476). Sem dúvida Piero extraiu elementos de Sano d i Pierro, e Matteo di C iovan ni extraiu de Piero; mas essas semelhanças compositivas não bastam para fu ndar uma identidade iconográfica .

114

docume nto inestimável -a medida exa ta da altura do Ho mem- Deus, m ode lo também d e pe rfe ição física. Ines ti m á vel, m as de m a n e ira a lg uma único: no m esm o pe ríod o, havia tes te munhos escritos o u m onume nta is atribuindo o utras m edidas à alt ura de Cristo, com m a io res ou meno res d ifere nças em relação à das co lunas late ran ensesY A lg um tempo depois, in úm e ra s pessoa s m a nte riam " pe ndurada em casa o u na o fi cina " um a o ração impressa com um a imagem de C risto, na qual apareciam as segu intes pa lav ras: "Esta é a medida de nosso Salvador Jesus

ri sto abençoado: o qu al fo i quin ze vezes o tamanho des ta "- o

que, neste caso, res ulta va em

1 50

ce ntím e tros. 4 1

" Di vin am e nte m ed idas", fo i como Vasari definiu as co lunas co ríntias ao fundo do afresco a retino do Enco ntro de Salom ão com a rainha

de Sa bá. 4 4 E, a propós ito da Flage lação, C lark falou em " mís t ica da medida".

4'

nq

São pa lavra s qu e, daqu i por di a nte, serão e nte ndid as e m

se ntido não só metafórico, m as também litera l.

Sobre a col una na igreja de Santo Stefano de Bolonha (com cerca de 17:1 em de altura), também considerada igual à altura de Cmto, cf. Gustavo ULiclli, "L'ornzione dclla misura di Cristo", Florença, 1901 , extraído do ArclliPio sloriw italia11o, p. 6. Para os testemunhos manuscritos, ver a próxima nota . 43 C f. ibid., pp. 7 ss. O i11cipit do opúscu lo é: "Santíssimas o raçôcs que devem ser rezadas todos os dias devotamente; c mantê- las penduradas em casa ou na oficina ou levar junto consigo contra a peste e todas as adversidades". Um manu scrito rica rdiano d~ 1,74 m para a altura de Cristo; em outros casos têm -se medidas maiores, a té 1,Bo m aproximadamente (cf. Gustavo Uziclli, Le 111isure li11eari 111edioeva/i e /'effisie di Cristo. Ho rcnça: Bernardo Secber~ 1B99). As medidas lineares ou " b raços" então correntes na Itá lia derivavam, segundo Uziclli, da s várias medidas atribuídas à altura de Cristo, numa relação 1:3. Assim, o raso ou braço de Turim, equivalente a 0,599 m, corresponde (com uma diferença de 6 mm) à terça parte da altura de Cristo dada pelo S ud ~rio (r,78 m ) (ibid., p. 1 0 ). A tese, a bem dizer, é mai s sugestiva do que convincente. orese de passagem qu e Uziclli afirma que o homem en volto no Sudário medm 1,78 m - a mesm a altura das colunas lateranenses (que ele não cita). Por outro lado, os partidários da autenticidade do Sudário consideram que Cristo tinha 1,B1 m c atribuem (con tra a evtdência dos fatos) a mesma a ltura às colunas latcranenses: cf. Pictro Savio, Riccrche storiche sul/a Sa11ta Si11do11e. Turim: SEI, 1957, pp. 172 ss. Quanto ao desejo de represen tar fi sicamente Cristo, é significati va a difusão quatroccnrista (que prossegue no século seguinte) da apócrifa Epistola di Ll'lllrtlo (cf. Baxandall, Pittura, op. cit., pp. 64 -65; a trad. i tal. traz o texto original do documento). 44 Cf. Vasa ri, Le vite, op. cit., 11, p. 4 96. 45 Cf. Clark, o p. cit., p. )5· 42

Ai11da a Flagelação

1 15

6. Po rtanto, muitos e le mentos iconográficos, bem com o a própria con stru ção formal da Flage lação, e stão intimame nte ligados a m o num e ntos s itu ados n o lado setentrional ou diante do CotTtplexo Laterano: a Scala Sa nta, os frag mentos da está tu a de Constantino, as po rtas "de Pila tos" e a mensura Christi (ve r núm e ros 44, 39 e 38 da planta de Contini ). A esta altura abre m -se duas possibilidad es: o u Pi ero utilizou materiais lateranenses para represe ntar um a evocação da flagelação de Cris to que se desenrola num loca l não especifi ca do; o u esse local é precisamente o Latrão, e a cena e m prim eiro plano se dese nrola na frente da Sca la Santa. A segunda hipótese pa rece in ve ross ímil. Sem dú vida, ne m as con struções de m á rmore n o plano de fund o, ne m o edifício rosado em primeiro plan o podem ser id e nti ficados co m a sede do pat ria rca do m ed ieva l. Tentemos ago ra especifi ca r a primeira hi pó tese, procurando circun screve r o espaço em te rmos temporais, is to é, de terminand o o mom e nto e m que o ho m em de barba evoca a fl agelação de C risto. 7· Ainda não elucidamos sua id entidade. É ve rdade que, segundo alg uns, a questão nem se coloca ri a: mas a id en tifi cação do ho me m com m a nto de brocado como G iova nni Bacci nos a utoriza a prosseguir nessa direção. Recu sa nd o a j us to tít ul o a identificação com Ottavia no Uba ldini, proposta por Lavin, G ilbert observou que, a fora qu a lqu e r outra cons ide ração, a barba do person age m exclui por si só a possibilidade de se r um retrato: nesse período, o s h o me ns na Itália não usa vam barba. "A barba ", escreve ele, " era usada excl us iva m ente: a) por pe rsonage ns do passado, com o C ri s to o u Co ns ta ntin o; b) por es tra nge iros, sobre tudo g regos, com o João Pa leó logo; c) por italia nos após 1485, a proximadam ente, qua ndo aos pou cos a ba rba vo lto u à m oda. "46 Entre ta nto, o per so nagem da Flagelação ing ressa jus tam e nte na seg und a ca tego ria -a d os es tra nge iros. Co m o fo i des tacado várias

vezes (a ú l.tim a vez por Borgo, po ré m extrai nd o co nclu sões muito 46 Cf. Gilbert, Tig11res, op. cit., pp. 43-44.

di versas),·t7 o traj e de m a ngas compridas e a ba rba bifurcada indi cam de imedia to que se trata de um dos prelados g regos que es ti ve ram na Itália pa ra o Concíli o de 14J8-J9· Um desses prelados g regos- o u m elho r, o m a is célebre de les: Bessa rion . l en1bre mos qu e G ouma- Pe te rson esteve a pon to de chega r à mesma conclu são, m as então se d ete ve na tese do "cripto rretrato ". Trata-se, com o já dissemos, de um a tese histórica e logica me n te ins u ste ntáve l -e, ade m a is, baseada num exa m e ráp ido e parcia l da docum entação ex is tente. C umpre ree xa min á- la .

8. Sabe-se que dua s fo tog rafias da m esm a pessoa podem a presentar dife renças no táveis; qu e m dirá e ntão dois qu adros o u do is ba ixosrelevos. É um te rre no o nd e precisam os a nda r muito devagar. No ca so de Bessa ri on, essa caute la se faz n ecessá ria devido às s ing ul a res dive rgê ncias fi sionômicas que se encontram (como a le rta a própria GoumaPeterson)48 em seus re tra tos rem a n escentes. Infeli z m e n te, a mai o ri a dos tes te munhos ico nog rá fi cos sobre Bcssarion d esapa receu . O a fresco d e Ga lasso n a ig rej a da M a do nn a del Mo nte e m Bolonha, o nde Bessario n, então lega do po ntificai, se fez re trata r ao lado de N icola u v j unto com se u sec re tário, o já citado Niccolà Pe ro tti , foi des truído. 49 A te la pin tada po r Centil e Be ll ini para a sa la do Conse lho M a io r ven ezia n o, e m qu e Bessa rion a parecia com o papa e o doge no momento de e nvia r uma e m ba ixada ao im pe rador Federi co, não exi s te m a is. Um re trato qu e se e nco nt rava n a m esm a sa la, també m obra de Ce ntile Be lli ni , queimou- se e m 1.546.5° Por ou tro lado, os num e rosos quadro s de escola vêne ta e m qu e, segund o 47 C f. Borgo, op. cir., p. 549, que Identifica no homem de barba um sacerdote judeu, atribuindo a Piero a opinião de que os padres g regos wriam mantido as tradições de indument:iria do An tigo Testamento. 48 Cf. Gouma- Pcterson, llistorical lllterp rclatioll, op. cit., p. 232, nota 87. 49 En tre os vários tes temun hos sob re esse afresco pe rdido, ver o de Cherubino Ghirn rdacci (Historin di Holog11n, Albnno Sorbelli (org.), 111, 1, Bolonha, 1933, p. 159), que informa que Bessn r ion estava representado " de joelhos sem chapéu ". y> C f. Franccsco Sa nsovino, Ve11el in città nobilissimn ct si11golnre. Veneza: Steffanu Curti, 1581, CC. 1 J Ir, I J2V.

Ailtda a Flagelação

1

17

Henry Va st, Bessarion apa receria so b os trajes de São jerô nimo m ost ra m ros tos qu e, a lém da longa barba, pouco têm em co mum do ponto de vis ta fi sionô mico. ' ' Se excluirmos os retratos dúbios ou demas iado tardios,5' restam a lg uns iten s, re lacionados a seguir - m as a li sta com certeza es tá in comple ta. a) Uma miniat ura no segu ndo dos dezoito liv ros de ca ntos corais fe itos por vo lta de ·1455 por encomenda de 13essarion, qu e depoi s a doou ao mosteiro dos frad es da Osserva nza de Cesena. Bessa ri o n -a identificação é de

51

IIC .

88

'11 8

Cf. Vas t, op. cit., p. 299, que cita entre ou t ros o rctci bulo de Bartolomeu Montagna e a Sacra COI!Versaçiio de Vinccnzo Co tena, ambos na Accademia. Também na Travessia do Mar Vermellw, a fr(•sco de Cos imo Rosselli na Capela S isti na, foi iden tificado um retrato póstu mo de

Bessari on, tradicionalmente atribuído a Piero di Cos imo, cuja participação nesse g rupo de afrescos hoje em dia é em gera l negada (cf. Mina Bacci, Piero di Cosim o. Milão: Bra mante, 1966, pp. 128-29, que retoma a discussão a respeito). 52 Um caso à parte é o da te la (que pude ve r graça s à gen tileza de d o m Ca millo Leonardi ) conservada n a sacr istia dos ca nô ni cos da catedral de Urbania. [nrico Rossi (MeiiiOrie eccfesiastiche di Urlw11ia . Urba nia : fl ra mante, 1 936, p. 104) considera q ue o retrato a li represen tado é de Bessa rion, fi siono mi ca me n te muito dife rente dos o utros (Ceci! 11. C lough, "Cardi na l Bessario n anel G reek a t thc Court of Urbin o", in Ma11u scripta, VII I lnovcmbro de 1964], pp. 166-67, nota ;;), e nquanto na ve rdade é uma có pia do retrato de Taddeo Bcrberini com trajes de pre fe ito pontificai, da lavra de M a ra tta (cf. A ro n berg Lavin, Sevent een tlr-CPntury Barberini Ooculll ellts and ln ve 11tories of Art. Nova York: New York Universi t y Press, 1975, fig . 5 c p. 429). Entre os re tra tos pós tumos, o baixorelevo ferrare n se reproduzido in Miscelhwea Marciana di s tudi bessarionei .. ., Pádua, 1976, não é confiável; totalmente fantá s tico é o incl u ído in jean - j acq ues Boissa rd, /cones qu illqllagill ta v iror11111 illu striw11 ... Frankfu rt: Thcodore de Bry, 1597, 1, p. 136. Po r outro lado, interessa n te do ponto de vi sta fi s io nômico, e mbora seja uma cópia ta rdia, é o pequeno retrato conservado in Lu do vico 8e11tivoli virtutis, et nobilitatis insig11ia ... , Bo lo n ha, 1690 (Biblio teca Unive rs ita ria d i Bolog na: Aula v, Tab. 1, H. 111, 37.2; outro e xem pla r desse raríssi m o o pí1scu lo é mencionado porTammaro de Marinis, La legatura artís tica in/ ta/ia n ei seco /i xv e XVI. Flore nça: Fratelli J\linare, 1960, 11, pp. ;-4). A pequena obra, precedida por uma dedica tó ria de j. de Be rgomori is, reproduz a partir de um manuscrito de propriedade dos Bentivogl io, datad o de ·10 de novembro de 1465, o texto de um discurso proferido por Bessarion e m 1455, por ocasião da e ntrega a Ludovico Ben tivoglio de uma espada doada a ele po r N icola u v. Na inicial " L" d o incipit ("Leto iuwndoqu e a11 Í1110 ... ") está inscr ito um min úsculo ret rato de Bessa ri o n, de r ivado, com o as dema is gravu ra s q ue acompa nham essa edição bolo nh esa, das miniatura s que o rna m e ntavam o manu scrito Bent ivoglio, hoje inencontrávc l. (O Vat. lar. 4037, que co nté m o texto do mesm o d iscurso de Bessarion, não poss ui miniaturas; e le é citado, ju nto co m a cdiçiio bolonh esa, por Luigi Band in i, De vila et rebus ges tis Bessarionis wrdinalis Nicae11i ... CO IIIm elltarius, in PL, ·16 1, p. XIX , nota 46).

Weiss- ' 3 es tá co m hábi to de franciscano, aj oelhado, tendo aos pés o cha péu cardina lício, ofe recendo s ua al m a a Deus em fo rma de recém - nascido. b) A minúsc ula miniatura que preced e a Summa de casi bu s conscientia e

11c. 71

do m enorita G raz iano (Pa ris, Biblio th equ e Nati ona le, nouv. acq. lat. 1002). Bessari on, com hábito d e monge bas ilia no e chapéu ca rdinalício, rece be o livro doado pelo auto r ajoelhado a se us pés. O manusc rito traz a data de 14 de o utubro de 1461. 54 c) Uma medalha qu atrocen tista, sem da ta, provenien te da coleção de Goet he,

11c;.

74

hoje no Nati onale Fo rschungs- un d Gede nksti:i tte, em Weimar. Aq ui ta mbém Bessa rion apa rece d e perfil, com o chapéu de cardea l. Ac redita-se qu e d essa meda lha derivou o re tra to no mo numento qu e Bessa rio n ma ndou e rg uer em vida, em 1466, na bas ílica dos Santos A pós to los. Desse retrato (desapa recido junto co m o mo numento, substituído po r um a inscri ção com

" "· s 3

data de 1682) res ta uma cópia - um d íptico de co bre proveniente d a Biblioteca Vati ca na, en viado a Ve neza em 1592. '; d) Um ba ixo- re levo q ue faz parte do m o nume nto fú nebre de Pio rr, ori-

""· 75

g ina lm e nte em Sa n Pietro, hoj e em Sant' Andrea de lla Va lle. Bessari o n, co m trajes episcopai s, a parece e ntregand o ao pa pa a relíquia da ca beça de Santo A ndré. A ce rim ô nia ocorre u em 1462; Pio

11

m o rre u em 1464.

O monumento, iniciado po r Paolo Ro ma no e concl u ído tal vez por um discípulo d e Andrea Breg no, re monta a 1465-70.56 53 Cf. Roberto Wciss, "Two Unno ticed ' Port rait s' of Ca rdinal Bessarion ", in ltalia11 Studies, xx11 (1967), pp. 1-5, q ue con sidera o primeiro dos dois " retratos" (aq ui não reproduzido) mu ito e stereo tipado, e nq unnto o segun do lhe parece passíve l de ser d efinido com o autên ti co retrato d e Bessa rion por volta de 1455, q ua ndo tinha pouco m a is d e ci nq ucn ta a no s. Sob re o s livros de cantos corais, ver o exaus t ivo t raba lh o d e Giorda na Maria n i Cano va, " Una iil ustre serie liturgica ricustru ita : i coral i dei Bessarionc g ià ali' A n n u nziata di Cese na ", in Saggie e m er1r orie di storia de// 'arte, 11 ( 1978), pp. 9 - 20. 54 Assinalado por Ludovico Frat i, Dizionnrio lno-111bliog rafico ... fl o rença : Leo S. Olschki, ·19.34·

p. 8J. 55 Sobre a m edalha, cf. Alfredo Arm and, Les médailleurs italierrs des qui11zieme e/ seizie1111' siécles. Pa ris: Plon, 1883, 111, p. 158, nlimcro 6. O díptico, reproduzido na monografia de A. A. Ky rus (z vol., A tenas, 1947), estava conservado na Biblioteca Marcia na, mas em 1954 não era mais localizável (cf. Maria Luxo ro, La biblioteca di Sn11 Marco 11 ella sua storia. Florença ; Leo S. O lschki, 1954, p. 21, nota 14). 56 Cf. Se rg io O rtola ni, S.l111dren de/In Valle , Roma: Casa Editrice Ro ma s/d, d ida scá lia da fig. 25; Cha rles Scymou r )r., Swlpture i11 ltaly - 1400 to 1 500 . Lond res: Penguim 1966, pp. 156, 158.

Air1dn a folagelilção

119

nc.. 76

c) A miniatura que abre o e xemplar co m dedi ca tó ria a Bessarion da

Rhetoricn d e Gui lla umc Fi chet, impresso e m Paris em 1471 ( Veneza, Biblio teca Ma rciana, pe rg. 53) : ela mostra o autor presentea ndo se u li v ro a Bcssarion, com há bito de monge bas ili an o c ch apé u ca rdin a lício .57

f) O fronti spício com min ia tura iluminada do exe mplar com dedicatória m,. 77

a Eduard o

IV

da Ing late rra das Epistola e et orationes de Bessa rion (Vat.

lat. 3 586: t ra ta-se de um incun áb ulo e m pe rgaminho impresso em Pari s e m 1471) .' 8 Bessa rion, com o manto negro de mon ge bas ilian o c ch a pé u ca rdin alício, es tá com a m ão no o mbro de G uillaumc Fich ct, e m sina l de pro teção, o qual o fe rece ao rei o vo lume a se u cargo. g) Um re trato e m miniatura iluminada de Bessarion que, co m outros seis ""· 7B

filóso fo s, e moldura o incipit do Obiurga tio in Pia/ anis calumniatorem (Paris, Bibliothequc Natio n ale, la t. 12 947, c. nr) de Andrca

ontrario. 59

h) U m m eda l hão co m co nto rno de lo uros, re prese ntando Bcssarion c o rei Ferna ndo de Aragão, ambos de perfil: tra ta-se de uma miniatura iluminada qu e emoldura o incipit de um manusc rito paris ie nse (Biblio th eque Natio nale, lat.1 2946, c. 29r) do Adversus calumniatore m Platonis do próprio Bessarion, co ncluíd o e m Nápo les e m 1476. 6" Tanto nes ta qua nto na min ia tu ra anterio r, e le está co m o chapé u ca rdinalício. Flc.

so

i) O quadro de Ge ntilc Bellini no Kun s this torisch cs Mu sc um d e Viena, p rovave lme nte executado logo após a m or te de Bessarion, 6 ' que apa-

57 Est:í reprod uzida no anti fronti spíc io da Mi scellanea Marcicma, op. cit. 58 C f. Miniat11re de/ Ril1ascilllel!to. Cidade do Vaticano: Biblio teca Apostolica Vaticana, 1950, p. 55, onde não se reconhece no cardeal da miniatura (definida como " de escola francesa") o retrato de Bcssarion; mas ver a an te rior alusão de Rudol f Rocholl, 8essario11, Lcipzig, 1904, p. 2LJ. 59 C f. Tammaro de Marinis, La ui/Jiiot eca uapolf'tana dei re d'Arago ua, 11. Mi lão: 1-!oepli, 1947, pp. 53 -55, e 111, ilustr. 77· O códicc foi escrito em 1471 por joan Marco C inico c iluminado por Cola Rapicano: Marinis su põe que essa tenha tido a colaboração do mesm o Andrea Contrario elogiado po r Pcrotti e Dal Valia por suas habilidades pictó ricas. 6o C f. id., ibid., u, pp. 28-29, e 111, ilustr. J2. As miniaturas do códice foram feira s por Gioacchino de Gigantibus en tre 1472 e 1476. Os retratos (inclusive o de Bcssario n) foram atribuídos a um co laborador de Gioacchino, ta lvez o mesmo miniaturis ta do códice ci tado na nota anterior, por José Ru ysschaert, " Min ia turistes 'romain s' à Na pies", in Marinis, La uiuliotem, op. cit., Supplem euto, Verona, 1969, pp. 272-73. 61 Cf. Schaffran, op. cit., pp. >5J-57·

'120

rece com hcib ito de monge basiliano, ajoe lhado diante do escrínio já men cionado, qu e doou à Scuob G rande dell a Ca rità. j) O quadro q ue se s upõe d e autoria de Pedro Be r ru g uete, sobre desen ho

11c.. !1 1

de G iu sto de C and, por vo lta de 1480, pa ra o pequ eno gabinete de Federico da M o ntcfcltro, hoje no Louvre. 62

Trata -se de um co rpu s de image ns com fo rm atos, s upo rtes m a teria is, destinação c qualidade mu ito h e terogêneos. Que informações ele nos fornece sobre as feições de Bessa ri o n ? Um dado sa lta aos o lhos de im ed iato. O retrato hoj e no Lo uv re é tota lm en te es tra nho, do pon to de vis ta fisionôm ico, ao conj unto da série.

É um Bessario n de fanta s ia, pintad o logo após s ua morte por alg uém q ue, acred ita- se, jamais o vira. Sem dú vida é espa n toso q ue ta l retrato fosse des t inado à corte de Urb ino, com a q ual Bessa rio n manti ve ra relações tão es tre ita s c tão duradouras: ma s te m os de nos re s ig nar às evidê ncias. Ora, foi n esse mes m o re trato que Gouma - Pe te rson se ba seo u em lr1rga medida (chega ndo a aprese n tar u ma reprodução dele em página inte ira) para excl uir que o ho mem de barba na Flagela ção fosse identificado co mo Bcssr1rion. O res tante da série aprese nta -se, do ponto de vi s ta fisio nômi co, ba stante compacto. Há, po rém , um e lemento que so fre va riações ora ITla is, o ra m e n os ace ntuad as: o nr1 riz. Ele aparece co m u m leve ca lo m bo e a po n ta ca rnuda no monumento fún eb re de Pio

e em todas as m i-

11c•. !l 7

ni a tura s a rro ladas- exceto a da Summa do menorita Gra z ia no, m e -

11c. 71

11

nos fidedig na em term os fi s io nômi cos dev ido a sua s dimen sões, onde desaparece qualquer ind ício do ca lombo e se ace ntua a carnos idade da pon ta do nariz. Na m eda lha de Weimar, o calombo se acentua, cn-

11c•.

quanto a ponta se a fila c se e ncomprida para ba ixo. É com o se, nessas 62 Sobre a controvertida colnburaçno ent re Giu stu de Gand e Ped ro Bcrruguete, cf. sempre Cesare Gnudi, " Lo studiolo di Federiw da Monte feltro ncl palazzo duc.tlc di Urbino (Gi usto di Grand Pedro Bc rrugucte)", in Mostra di IVIl'lo::::.o r de/ Q~tatt rocl.'llt o 1'011/tlf)IIOio. f o rll : Pallazzo d i Musei1 9 38, pp. 25- 29. Post (op. cit., 1947, IX, 1, p. 134) atribui Brssario11 a Giu sto de Gan d, remetendo ii s pesquisas de Giul iano 13riganri, qu e no entanto di sting uia entre dese nh o (de Giusto) e pintu ra (de Pedro) : cf. "Su C iustu di Cand", in La crit iw tl'a rtc, xv (1<;/18), p. 111.

Ai11rfa n Fl <~gc l açã o

1 21

74

duas últimas im age ns, se des ta casse uma ca racterística (o ca lombo o u a ca rnosidade) e m de trim e nto da outra. Res ultam dua s tradições fi s ion ô micas diverge ntes, amba s póstum as (o que por ce rto nã o é co incid ê ncia). A prim eira de la s é ates tada pelo quadro de Gentile Bellini 11c.. 8o

hoj e e m Viena, em que Bcssario n aparece com um na ri z muito pronun ciado, sem n e n h um calo mbo, o qua l, n a cópia quinhentista hoj e

11c •. sz

em Veneza, n a A ccademia, pintada de m em ória a partir de um retrato provave lmente de Cc ntile Re llini , roubado e m 1540, 6 J to rna- se um a utê nti co nariz cha to. A segunda, ates tada pe lo peque no quadro h oje

nc~.

8J

na Biblioteca Marcia na, em que Bcssario n te m nariz reto, quase g rego. Do m es mo m odo, as cópia s do re trato de Bessa rio n a ntes con servado no mu seu C iov inn o de Como, executada s res pec tivam e nte po r Cri stoforo Altí ssimo e m 1566 c po r um g ra vuris ta desco nhecido pa ra a edi ção dos Elogia virorum literis illustrium de Ciovio, publi ca da n a Ba s il cia em 1577, res ultam e m doi s pe rfi s diferentes. Segundo Ciorg io Vasn ri, são cópias de uma cópi a, qu e Ra fae l tinha enco m e ndado a Ciulio Romano a partir dos afrescos pe rdidos de Bramantino noVati ca no, o nde o re trato de Bcssa rion aparecia e ntre uma sé rie de hom e ns ilus tres. Mas a a tribui ção a Brama ntino deri va sem dúvid a de um erro de Vasari.64 O origina l (qualqu e r que fo sse o a utor) rem o ntava, 63 C f. iSchi oppalalbai, o p. cit., pp. •49-50, que atribu i a c<Ípia ,, Gian neteino Cordeliaghi dito Cordella, discípulo de Giova nn i Bellini (erroneamen te identificado por fogolari como Andrea Previtali : cf. Scha ffran , op. cit., p. •57• nota ·•7a) . Ver Sandra Mosch ini Marconi, Gallerie dcli'Arwdemia di Ve11ezia - opcre d'a rle de/ seco/o xv1. Ro ma : lstituto Po ligmfo de llo Stato, •962, pp. 200-01. 64 Sobre as vicissitudes da compilação de Giovio, e em particular sobre as cópias dos retra tos dos homens il ustres, cf. Luigi Rovelli, L'opem storicn ed artística di Paolo Giovio ... llmuseo dei ril mlli.Como:Tipographia [mo Cavalicri, 1928, pp. 144 ss. [m termos ma is gerais, cf. Paul Ortwin Rave, " Das Museo Giovio zu Como", in Miscella rrea Bi/Jiiot!Jecae 1/erlzialllle .. . Munique: An ton Schroll Verlag, 196 1, pp. 275-84. A passagem de Vasa ri fa z pa rte da vida de Picro: " Depois, sendo I Pieroj levado a Roma pelo papa Ni colau v, elaborou no palácio duas histórias nos aposentos de cima, ao mesmo tempo que Bramante de Milão" (Levite, op. cit., 11, p. 492). Segue-se uma digressão sobre os retratos de Bramantino c sobre as cópias executadas por Rafael. )á falamos sobre a improvável viagem de Pie ro sob Nicolau v: mas, como observou Milanesi, a presença conju nta de Pie ro e Flramantin o é impossível por razões crono lógicas, visto que este último trabalhou no Vaticano meio século mais tarde, no começo do século XVI (cf. Le vitr, op. cit., VI, pp. 528-29). Por o utro lado, a atribuição a Bramantino dos originais perdidos, de que teriam derivado alg uns retra tos do museu gioviano (entre eles o de Bessarion), foi rejei tada em bases estilísticas: cf. Wilhclm Suida, ~

122

acredita-se, a meados do Quatrocen tos. Com certeza é pequena a credi bilidade fi s io nô mi ca dessas cópias. No e ntanto, e las confirma m, mesm o que res ulwndo numa peque na perda de fid edig nidade, a tendê ncia d os copi stas em s im plificar o pe rfil de Bcssa rion em direções contrá rias. A algun s, a recon s tru ção hipotética deste stemma nasomm pode parecer ociosa, quando não triv ial. Po rém, era necessá rio abrir cam inho nessa flores ta de narizes pintados, esculpidos o u iluminados pa ra separar os re tratos de Bessarion com maior cred ibil idade fi s ionômica. São eles, em suma, os oito prim eiros dn série, todos executados em vida.

É poss íve l ac resce ntar a e les o ho mem barbado da Flagelaçiioi A lgumas ca rac terísti cas facia is são sem dú vida muito semelhantes às dos retratos de Bessario n : os o lhos fu nd os, as pá lpeb ra s pesa das, o na riz

11c~

86-Hy

proemin e nte e levem ente curvado, co m a ponta ar redondada c a na rina profundamen te inse rida; os lá bios túm idos, com os ca ntos virados para baixo; a barba bifurca da, visível, por exemplo, na miniatura m arcian a.6í Nesta, na m in iatu ra de Ccse na e no m o nu mento fú nebre de P io

11,

chega mos a e nco ntrar o m esmo po rte da cnbeça, co m o pescoço

ava nçando um pouco para

é1

frente.

T udo isso nos inclina ri Cl

é1

uma concl usão afirmativa. Em especial, o

cotejo com o m edalhão iluminado do códice parisie nse do Adve rsus ca-

fumniatorem Platonis parece quase decisivo do ponto de v is ta fi s ionô-

nc.

mico. Há, po ré m , d o is problema s g ravíss imos. O prime iro, já apontado por Go um a-Peterson, é a indume ntá ria: à diferença dos dema is retratos de Bcssario n, o pe rso nagem de Piero não está com o hábito neg ro de monge bas ilia no e não ap resenta nenhuma insígnia card in a lícia. 66 ~

Bramallll' l'lllorc e i/ Bramarrti11o. Milão: Ceschina, '953· pp. 91-<)1, segundo o qual a série de

retratos em afresco no Vaticano remontava a meados do Quatrocentos. Recentemente, Battisti sustentou que Vasa ri teria atribuído erroneamcn1e a Bramantino uma série de retratos fei1os por Piero nos afrescos de um aposen lo contíguo (Pino, op. cit., 1, p. 1 1 o). 65 Segundo uma famosa anedota mencionada por Pio 11, a barba teria custado a Bl•ssa rion sua escolha como pontífice, pois alguns cardeais a inlerpretaram malevolamente como sinal de que teria mantido seus víncu los com os gregos cism:iticos (cf. Ciovanni Anlonio Campani [1. A. CampanusJ, Pii Secu ndi Pontificis M aximi Commentarii, p. 42). 66 Cf. e m gera l Robe rto Wciss, "Jan Van Eyck's Albcrgati Portrait ", in Hur/i,stcm Magaz i11c, XCVII (1955), p. 146.

Ainda a Fbgelação

123

n

O segundo é a idade: e m 1459, Bcssa rion estava com 56 a nos. Ora, o homem de barba da Flagela ção é sem dúvida muito m ais jovem : a ind a nc 7 ,

ma is jove m do que o fra de ajoelhado na miniatura de Ccscna, em qu e Wci ss recon h eceu uma raríss ima im age m de Bessarion e m idade rel ~ tivam e nt e po uco ava nçada. No e ntan to, e ssas dua s dificuldades de-

saparecem se s upu se rmos que, mantendo-se inalterada a datação da

Flage lação e m 1459 com o li mite ante quem 11 0 11, Piero represe ntou Bessarion antes de s ua a scen são ao ca rdin alato. 9· Bessarion foi n o m c~do ca rdeal em 18 de dezembro de 14.39· Em 4 de janeiro de 1440 recebe u o t ítulo dos Santos Após tolos in absentia, e n quanto, com os o utros g regos, retorn~va do co ncílio para Con stan tinopla, o nd e desembarcou em 1'? de fevereiro de 1440, após uma travessia excepcio nalm ente de morada , q ue se prolongou por três m eses e me io. 6 7 Costum a-se cons ide rar qu e ele não fo i informado da nomeação, ainda que desde 11 de agos to o pa pa Eugê ni o

IV

lhe ti vesse o fe recido um a

vultosa pe nsão sob~ condi ção de qu e ele se mud ~ ss e pa ra a Itá lia, tal vez para Roma. No decorre r de 1440 (em todo caso, a pós 4 de m aio,

quand o pa r t ici pou da e le ição do novo pat ria rca), Bessa rion deixo u Constantinopla para não mai s voltar, e e m

TO

de dezembro recebe u em

Flo re nça o chapé u cardinalíc i o. ~ Evide nte me n te, havia recebido nesse 6

m eio-tempo a no t ícia o fi cial de sua no m eação co m o ca rdeal da Sa nta l g reja Rom a na: quando c po r intermédio de qu em, não sa bem os. Propo nh o iden tifica r com o m e nsageiro d~ notícia G iova nni Bacci, que, no quadro e ncom endado a Pie ro dclla Fra nccsca qu~ se vi nte a n os depo is, iria celebrar o auge de s ua ca rre ira política. a curtíssima no tícia biog rá fica -a m a is antiga que res tou -, red ig ida e m meados do sécul o xv n po r A lcssa ndro Cc rtini de C ittà d i 67 Antonio Coccia, "Vita e opere dcl13essa rione", in// cardi11alc Be>,ariolle 111'1 vcellll'llnrio del/a

morte, 1471- 1.1':)2, Roma, '974, p. 25 (gentilmente Indicado pela dou tora Concctta Bia nca). r s te parágra fo leva em W llta as objeções formu ladas por Sa lvatore Sc ttis numa resen ha ii pri meira ediçiio (La Stw11p11, 1'.' de j unho de 198 1), depois desen volvidas numa cana privada (7 de julho de 1981 ). Expresso Inda minha g ratidiio a Settis. A responsa bilidade po r eventuais erros é minha . 68 Loenert.t., " Pour la biographie ", op. ot., pp.

12 4

1

17- 18.

Castell o, G iova nni Bacci é descrito com o " clérigo da Câ ma ra, núncio de Césa r, famos íssimo juriscons ulto". 6 9 A expressão " núncio de Césa r", que de o utra for m a se ria incompree nsível, pod e ria ser explicada perfe itam en te se Bacci, em 1440, ti vesse recebido do papa o encargo de ir até Consta ntinopla, na qua lid ade de núncio extrao rdin ário, para levar a Bcssarion a n o tícia sole n e de s ua no m eação como cardea l. Naquela data, Bacci era cl é rigo da Câ m a ra Apostó lica, vis to com bon s o lh os por Eugênio

lV

ta mbém po r se r parente daquele Giovanni To rte lli q ue aca-

bara de retornar de um a m issão políti ca e religiosa (mais do que cultural) à G récia e a Con stantin opla. Trata-se de uma h ipótese, pois por ora fa lta a confirm ação documental de uma viage m de Bacci a Co n s tantinopla e m 1440. Te nte m os aceitá-la prov iso riam e nte. Assim se ex plicariam: a) o as pecto juvenil (a té mes mo a barba é mais cu rta do que a de retratos posteriores) de Bessarion, que em 1440 estava com 37 anos; b) a au sê ncia de i ns ígnia s ca rdina lícias em sua i ndument~r i a; c) o traje luxuoso de Bacci, ce rtamente adequad o a um núncio pontifício (a v ivaci dad e do o lhar, muito diferente daqu ele um pouco apagado dos perfis de Sansepolcro e Arezzo, poderia se r atribuída à intenção de Piero de rej uvcnesce r o mod elo); d) a prese nça de João

V III

Paleólogo, que em 1440 era imperador, nas vestes

de Pila tos.

Devemos então recon hece r no quadro de Picro uma dup la evocação: a m issão de Ba cci a Con s tantinopla (<"l ce na em prim e iro plan o) c a fla gelação de C ris to (a cena no plano de fundo). As palavras de Bcssarion, 69 Comp<'ndio dc•lle sette l'lli di !lrc•: :o descri/lo da Don Alesçnndro Cert ini Castc•llnno, com data de 1650 ( BCCT, ms 169, ff. não numeradas). Nele, so b a rubrica " lnsigni1i di dig n itil ccclcsiasl iche", lê-se a seguin1e biogra fia: "Cio. f ra11n•sro Harâ !red e, Giovanni di r rnncesco j, clérigo de câmarn, nl'111cio de César, juriscon, ulro cclebérrimo, g rn tíssimo i\ Casa Medici, o qual muito traba lhou co m a Santa Igreja . Ano 144 :;" (o 'ignificado desla data me escapa ). Esse testemunho é indi cado por Cabriello Maria Sca rmagl i, edi10r selece nti sta dos escritos de A liotti (cf., Lkstc ú ltimo, Lpistolnc e/ opu seu/a, op. cit., 1, p. 27, nota b).

!linda a Flilgclilçiio

r 25

que constitu em uma autê nti ca a rticulação e nt re as duas ce nas, fazem s urgir - meta fo ricamen te pa ra G iovan ni Bacci, fi s ica m e nte para nós espectadores - P ila tos, os verd ugos, Cris to amarrado à coluna. A distâ ncia perspecti va exprime uma se paração, simultan ea m e nte temporal e o ntológica, e ntre a hi stó ria profana e a hi stória sagrada, entre a rea li dade e sua evocação ve rba l.7o O s fragm e ntos antigos e as re líquias cri s tãs conservada s na fre nte e ao lado do Latrão são projetados sobre uma Cons tantin opla de fantasia. O res ultado é uma arquite tura visionária e prenunciadora, na qu a l, a lg um tempo depois, viria a se in spirar ( por exemplo, nas co rnij as dos portais) o provável co n s truto r do Palazzo Vc nezia, Fra ncesco del Bo rgo, concidadão de PieroJ' A cena no p la no de fund o, po rtanto, to rn a visível o discurso com o qu al Bessa ri on ace ita a no m eação de cardea l da Sa nta ig reja de Ro m a, com isso decidindo a band o nar (e m ca rá ter definitivo) Con s ta ntin o pla e a ig reja g r ega da qual t in ha s ido um dos represe ntantes m ais ilu stres. O discurso pode se r decifrado da seg uinte ma ne ira : com se u com po rta m e nto pilatia no, o imperador re inan te João

V II I

Paleólogo

se torna cúmplice do m ar tíri o que o turco se prepara pa ra infligir aos cri s tãos do Orie nte, simbolizados por Cris to a tado à coluna . Bessa rio n aplica a a mbos- o impe rado r e o turco- o vers ícu lo "Convene-

runt in unum", ass im jus t ifica ndo a acei tação do títul o ca rdina lício. Pe ra nte as desgraças que a m eaça m a cris tandade, a esco lh a em favo r de Ro m a é a úni ca que perm ite sa lva r o idea l vacil a nte da unidade e ntre as Ig rejas.

70 O pnrnlelo en tre o nascim ento dn perspecti va linear c o s urg imento dn consciência h istórica moderna fo i formulado v:lrias vezes po r Pano fsky: cf., p. ex., Il sig llijical o del/e ar/i visive, trnd . ital., Turim : Ei naudi, 1962, pp. 53-54 [cd . bras.: Significado da s artes vis uais, tmd. jncó Gu insburg e Mnria C la ra Kneese. São Pau lo: Perspecti va, J~ ed., 2002! (sob re o qua l ver meu artigo, " De A. Warburg a E. H . Combri ch: no tas sobre um problema de método", o p. cit., pp. 1 023, 1046-47) . 7 ' Subn: este perso nagem (o utrora tido erron ea mente como pa re nte de Picro), remeto ~s pesquisas de C hristoph L. Frommel, apresentada s parcialmente n u ma recente conferência na Biblioteca llcrtziana.

126

Mas como ex pli ca r a presença de João

VIII

Paleó logo sob as ves tes

de Pilatos? 7> Desde a j u ventude, Bessa rio n m antinha estreitíssimas relações com ele. A intervenção junto a G iova nni Bacci pa ra que João v 111

fosse celebrado co m o C ons ta ntino no ciclo de Arez zo atesta- se

a hipó tese acima aprese ntada fo r co rreta - a fide lidade de Bessa ri o n à s ua m emória . No en ta nto, n a m esm a época, num qu adro encome ndado po r Bacci, m as que ce rtamente não era co ntrário às ideias de Bessarion, João vm vinh a rep resentado com o Pi latos. Es tamos diante de um a con tradição que, po rém, parece menos grave se pensarmos nas diferentes destinações das duas o bras. O ciclo de Arezzo e ra uma ce leb ração pú blica; a Flagelação, um quadro de stinado ao u so privado, em que era possíve l incluir uma o pin ião po lítica negativa s obre a persona lidade do impe rado r. S ua relutâ ncia e m to m a r partido, na volta a Con s ta n ti no pla depois do concílio, nas aci rradas luta s entre os defenso res e os adve rsários da união com Roma, aca ba ra por tornar ineficaz o decreto assinado em Florença e m 1439, iso la ndo politicamente o impé rio.7l Aos olho s de Bessario n, que desde o Co ncíli o de Flo ren ça h avia se tornado um dos defen so res mais ardoroso s da união com Roma, a atitude de João VIU

podia ser equiparada à de Pilatos: ambos, com sua iné rcia, tinham

consentido no m a rtírio de Cris to. A a lu são à litu rgia da Sexta- Feira Sa nta, co ntida no ve rs ícul o " Con -

venerunt in unum " a ntig am e nte a fi xado no quadro, permite datar com precisão o di scurso de Bessario n a prese ntado e m prim e iro pla no : Cons tanti n opla, 25 de março de 1440. Tra ta -se de uma data p lausível: o núncio encarregado de levar a Bessa ri on a notícia de s ua no m eação 72 Cf. )ea n Babclon, "Jea n Pa léologue e t Po nce Pilar e", in Cnutt ~ des /3ecii/ X Arls, s. VI, IV (1930), pp. 365 -75 (à p. 367, por um enga no, consta qu .: [h~> sa r io n teria mor rido logo a pÓ> n Co ncílio de Flore nça. N ote -se, e m todo caso, q ue todas as fi g urações mencionadas po r Babclo n sã o poste rio res à Flagelação, c po rta n to dão testemu n ho da fort u na da ide n ti firaçiio en tre João V III c Pi la tos p roposta (não sabemos se pela primeira ve z) por Piero. Cf. també m Gou m a Pete rson, Hístorícnl lllt rrpretntíoll, o p. cit., p. 219. 73 Cf. jo seph Gill. Paso11nlítíes of th e Co1111cil of rloreiiCl'. Ox fo rd: Blackwcll, 1964 , pp. 104 -24, c mais especifica m e n te id., 11 co ~t cí lío, op. ci t., pp. 477 ss., que in siste sobre a ince rteza do imperador com o e le me nto dcte rm inant.: pa ra o fracasso do Co ncílio de Florença. C f. ta mbém id., ibid., pp. 419, 45 I ·

A í11dn a Flag elação

127

co m o ca rd ea l, oco rrida e m 18 de dezembro de 1439, deve ter saído da Itá lia pou co te mpo depois. Teria chega do a Cons ta ntin o pla - su pondo uma travessia de duraçã o m édia - pe los m eados de março. 10.

Ma s po r que C iova nni Bacci have ria de propor a Piero qu e rcc-

vocasse a mi ssão cumprida em Con s ta ntinopla vi nte a nos a ntes, pa ra o ferece r n Fcdc rico da Montcfeltro ? Pode- se excl ui r que Ba cci fosse mov ido apenas por vaidade pessonl. O deco rrer do tempo m od ifi ca ra o sentido do di scurso figurado atribuído a Bessa ri o n, no momento de ace itar a nomeação ca rdina lícia, tran s forma ndo-o numa profecia a pos-

teriori, repl eta de impl icações políti cas e religi osas a tuais. O s pa lácios de m á rmo re de Con sta ntin op la evocava m indire tam e nte a dest r uição que e la sofrera à s m ãos dos turcos e m 1453; a fl agelação de Cri sto, os sofrime ntos dos cris tãos do Ori e nte até a rece ntíssim a in va são do Despotado da Marc ia em 1458-59 / 4 Um e nco ntro e ntre Bcssarion, C iova nni Bacci c Pi ero dell a Fran ccsca, oco rrido provavelm e nte e m Roma en t re o fin a l de 1458 e os primeiros meses de 1459, já fo i aven tado a res peito da mudança do progra m a ico nogrcífico do cicl o aretino. Naque le pe ríodo, Bessa rion estava tomado pe la idcia da cruzada. Havia m chegado a Ro ma as notícias sobre a in vas5o dos exé rcitos t urcos no Des potado da Moreia e a resis tê ncia que o déspota Tom ás Pal cólogo opuse ra nos primeiros meses de 1:{59.7' O papa Pio

11

decidira, sobretudo por in s tâ ncias de Bessa-

rio n, con voca r e m Mântua a di e ta que deve ria conve ncer os prín cipes cri s tãos a marchar contra os turcos. Em

22

d e ja ne iro, Pi o n saíra de

Ro ma, acompa nh ado por seis cardea is, para s ubir len tam e nte a pc nín s ula .76 O s de n1a is integrantes do Sncro Co légio, homens de sa úde frá g il

74 Sobre a complexa po5ição do comitente neste período, ver o rico ensaio de Salvato re Se nis, "A rtisti e comm itte nti fra Q uattro c Cinquccento", in llltellcttuali e potere, Corrado Vivanti (o rg.) . Turim: Ei naudi, L981 (S toria d'ltalia, A1111ali, 4), pp. 701 - 6 1. 7.5 Cf. r ranz Babinger, Mao111etto i/ Co t~quis tatorc, t rad . ital. Turim: Cin~1u di , 1970, p. 174 . 76 C f. F. Ce raso li, " li viaggio di Pio 11 da Roma a Ma n tova", in 11 liuollarroti, s. 111, IV (1 890), pp. 21 )- 18.

128

ou em idade avançada, teria m ido e m estação mais propicia .77 M esm o Bessarion, com sa úde razoável, iria viaj ar no começo da primave ra: sabemos com certeza que fez sua entrada, sozinho, em Bo lonha (ond e n o passado tinha s ido legado a postó lico) no di a 7 de maio, dois dias a nte s do cortejo pontifica l.78 M as antes de sair de Roma, em discussões com Bacci e Piero que só podemos im aginar, deve te r tomado forma o projeto do quadro a se r e nv iado a f ederico da Monte feltro. A flagelação de C ri s to o rd enada pe lo hom e m de turba nte evoca, como já fri sa m os, os sofrime ntos dos cristãos, em particu lar dos gregos, sob o dom íni o turco. Também j á dissem os que o á tr io classiciza nte onde se desenrola o m a rtírio de C ris to não se inspira n a preocupação arqueológica de r econ s truir a fis iono mia exa ta da pretoria de Pilaras. Talvez seja lícito ve r aí uma impli cação s imbólica. Para huma ni stas como Bessa rion ou Pio

11 ,

a queda de Cons ta ntino pla nas m ãos dos tu r-

cos sig nifi cava, mai s do que uma ca la midade políti ca e uma pro fa nação religiosa, o desapa recime nto do ú ltimo tes temunh o da G récia clá ssica.

"O nobilis C raecia ecce nunc tuam fin em, nunc demum mortua es?", indagara Pi ccolomin i, qu e a inda não se tornara Pio 11, na oração De Co nstan tin opolitana clade et bello contra Tu rcos co ngregando. Heu q u o / a fim urbes fnmn rebu sque potentes sunt ex tin ctn e. Ubi nunc Th ebae, ubi Athenae, ubi Mycenne, ubi Lnrissa, ubi Lacaedemon, ubi Corinthiomm civ itas, ubi alia nu•mcnandn oppida, quoru111 si muros queras, nec m in as inven ias? Nemo solum, in quo inwe runt, q u eat ostendere. Graeciam saepe nostri in ipsa Crnecia requinm t, sola ex tot cadnveribus civita tum Cons tnntin opolis supercrnt [ ... ! 7'1 77 Cf. Ciovnnni Antonio Cnmpnni IJ ./\. Cnmp.1nns j, Pii S.::u•ndi Puntificis Maximi Commcntarii, p. 68. O s seis cnrden is eram: Cn ln ndrini, Borgia, D'Estoutevillc, Tni llebour, Colonna e Bnrbo; cf. também Ceorg Voigt, [rll'll S ilv io de' Piccolo111illi, ais l'apst Pius der Zweitc, 1111d sei11 Zeitalter. Berl im : Rcuner, ~ 86J, pp. J0-) 1. 78 Cf. Ghirnrdacci, op. ci t. , pp. 169-70. 79 Cf. Pio 11, Ora tio11e;. politica e ef ccclesia~ ti c ae, C iovanni Do m cnico Mnn si (org.). Lucca: Typogrnph ia Philippi Marine Bcnedin i, 1755, 1, p. 268 ("Ó nobre Grécia, entiio agora ch egou teu fim, t un m o rte! Quanws cidades outrora fnmo sns c poderosas se e xtinguiram . Onde c st5o hoje Tc bas, Atenas, M iccna s, Lnri ssn, Lncedemô nin, Corinto e as o utras t orre s~

11 i11daa

Flagc l <~çào

129

Sobrevive ra, mas não desta vez. O quadro en com endado a Piero, po rém , não se limitava a recordar o passado e a expressa r a dor pelas desgraças presentes. O segundo sa lmo, onde se r epe te m as pal avras "Convenerunt in unum", não exprime apena s a a ng ústia dia nte dos assa ltos que os reis e prí ncipes m ovem contra o Mess ias. Ao ve rsículo citado segu e m -se palavras de com ba te:

" Dirumpamus vincula eorum et proiciamus a nobis iugum ipsorum" .8o Q uatro a n os depois, Bessa ri on acon selho u num a lnstructio pro praedicatoribu s per eum deputatis ad predicandum crucem qu e se lesse o salmo

128

com o exo rtação à cruza da:

Saep e ex pugnaverunt me a iu ventute mea, dicat nun c Is rael: saepe expugn nverunt a iu v entute mea; etenim n on potuerunt mihi. [ ... ] Dom inus iu stu s co ncidit cervices peccatorum. Co nfundantur et convertantur retro rsum o mn es qui oderunt S ion, fiant s icut fa enum t ectorum, quod priu squam evellatur exaruit

l·..J~ '

Todavia, ele não hes itava e m reco rre r também a a rg ume n tos de gên ero tota lmente dive rso. Em

20

de m aio, em Fe r ra ra, onde fi zera u ma pa -

rada com a comitiva papal em viagem pa ra Mâ ntu a, ele escreveu a frei G iacom o dell a Marca, provincia l dos fra nciscanos da M arca de A ncona (depois beatificado), uma lo nga carta in s tando-o a re unir um exército de cruzados, que deveri am i r ao Despotado da Mo reia, onde se tem ia memorá veis, das quais não mais existem, não digo os muros, ma s nem sequer as ruínas? Ninguém é capaz d e indi car seus locais. Muitas vezes procurou -se a Grécia na p rópria Grécia, quando apena s Constn n tinopla, en tre tan tos cadáveres de cidades, sobrevivem ... ") . 8o [" Ro mpamos suas cadeias,/ lancemos longe o jugo! "1 (La Bibbia concordata ... Milão: Mondadon, 1968, p. 713). A pertinência do sa lmo 2 com o tema d a cruzada já fo i apontada por Batri sti, Piero, op. ci t., 1, p. 320 (que vê também, em consonnncia com sua inte rpre tação, uma possível exaltnção do poder dinástico). 81 ["Muito me enfrentaram desde minha juventude,/ que o diga Is rael./ Mu ito me enfrentaram desde minha juventude,/ mas não conseguiram me vencer. [ ... [ Mas o Sen hor, que é justo,/ quebrou a espinha dos pecado res./ Envergonhem -se c fuja m / todos os que odeiam Sião./ Sejam como a erva nos tetos/ q ue a ntes de se r colhida já secou ... "] (La Bib/Jia concordata, op. cit., pp. 841-42; a tradução foi mod ificada num ponto). Cf. Mohle.; "13essa rions lnstruktion für die Kreuzzugspredigt in Vencdig (·1463)", in Romiscl!c Quartalsclnift, I I I-IV (1927), pp. 337-49.

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1 }0

uma nova ofensiva turca. A carta se iniciava com uma descrição das riquezas do despotado; lá abundavam pa nem, v inum, carnes, caseu m , lanam, bo mbice m, linum, setam, chrem isinum, g ranum , uv as passas parv as, per q11as fit tin cturn dantur pro uno ducato duo staria mag na Marchesana

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E conclu ía in citando o frad e a apressa r-se: m elhor te r quinhe ntos, quatrocentos o u mes mo treze ntos ho m e ns ago ra do qu e muitos milhares depo is. Bessa rion não se detinha sobre os aspectos re li giosos m ais específicos que a pregação da cruzada nas Marcas deveria assum ir, pois isso sem dúvida não se ria necessário. Mas eles e ram evoca dos na Flagelação, qu e, desse ponto de vi s ta, pode se r con side rada uma pregação figurativa destinada a quem parecia subestim ar a gravidade da ameaça turca. 1 1.

A destin ação urbinate do quadro de Piero é in contcste - pe lo m e-

nos até prova em contrário. Ora, Gouma - Pete rso n le mb rou o portu n amente qu e Federico da M o nte fe ltro era de todo contrário aos projetos de cruzada: em 1457, ch egara a proibir e m se us do mínios qualque r a rrecadação de fundos pa ra essa fin a lidade, atraindo sobre s i uma ameaça de excom unhão do papa Ca li xto

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O perigo de uma in vasão turca no

Despotado da M o reia, q ue no ve rão de 1459 levo u Bessa ri o n a in sistir na pre paração urgente de uma expedição de cru zados n a Marca de Ancona, acon selh ava també m que se fi zesse pressão sobre Federico. É

82 1" Pão, vi nho, carnes, queijo, lã, bicho-da-seda, linho, seda, carm im, trigo, uvas-passas miúdas q ue se rvem para tinturas [ ... 1. O s cereais custam um ducado por dois a lqueires marquesanos." I C f. Moh ler, Kardi,wl Bessarion, op. cit., 111, pp. 490-93. Nos mesmos dia s, Pio 11 e nviou de Ferrara a C ia como dell a Marca duas carta s com conteúdo aná logo : cf. Lukc Wadding, Amwlrs Minorum, Roma, 17J5, XIII, pp. 11 7- 18. 8J Cf. Couma- Pete rson, Ni storical lnterpre tntion, op. cit., p. 2J L.

Ainda a Flagelação

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muito provável qu e a Flagelação tenha sido enviada também (m as n ão apenas, como verem os) com essa finalid ade, no m esmo a n o. Por outro lado, é certo que ela foi encom e ndada por Giova nni Bacci (do contrário não se explica ria a presença de seu re tra to na pintura). As ligações com Federico da Montefeltro, a tes tadas pe lo ca rgo de podestade de G ubbio o btido t rês anos a ntes por intercessão dos M edici,B4 justificava m amplam ente qu e Bacci e n viasse o quadro a Urbino. N a carta d e 1472, j á citad a, depois de menciona r o s se nhores a quem era "caríssim o", G iova nni Bacci ofereceu seu s servi ços a Lorenzo de ' Medi ci com as seguintes palavras: "A inda recordo a V M . que n om eeis alg uém a quem permitais a a udácia de vos con tar e dizer tudo: há alg uns que muitas vezes v ieram a cair em grandes desgra ças por não te rem tido este cuidado. Este papa [Sis to Ivj sabe que não havia nin gu ém que ousasse escrever tudo ao papa Paulo a não ser e u, e ass im costumei fazer com os senhores acima citados" .85 Cabe lembrar que entre eles estava Federi co da M ontefe ltro: pode-se imaginar que a Flagelação tenh a chega do a ele acompanhada de uma ca rta na qual Ba cci in sis tia "a uda ciosame nte" na n ecessidade de uma cruza da . Ta l gesto e ra coeren te com sua s ambições (largamente fru stradas) de conselhe iro político. A idei a de atribuir a pregação figurada na fla gelação a Bessa rion se jus tificava por su as relações com o comite nte e, sobretudo, com odestinatário do qu adro. As primeira s j á foram demonstradas com a aná li se da transformação iconográfica que ocorreu no cicl o de Arezzo, du ran te a interrupção dos trabalhos que coincidiu com a estada de Piero em Roma .

É importante notar q ue as re lações de Pi ero com o comitente são dem onstradas, e não press upostas, te ndo como base a Flagelação- o qu e con stituiri a, em vista das d úvidas sobre a identificação de Bessarion, um ve rdadei ro círculo vicioso. As segundas- re lações com o destinatário do 84 C f. a ca rta enviada de Arezzo e m 25 de novemb ro de 1455 a Piero di Cosimo de' Medi ci (ASF, MAP, v, 632), ju n to com ou tra a Cosi mo, perdida, em que C iovanni Bacci lembra com g ratidão "q uan tos fr utos rne renderam vossas ca rtas junto ao i Imo. senhor conde de Urbino". No mesmo sentido, ver também ASf, MAl ', v11, 3 (sob a data de 18 de fevereiro de 1456, a Piero di Cosimo de' Medici) . 85 ASf, MAl', XX I V, 371 .

"13 2

quadro- datava m pelo m e nos de 1445, ano em que Bessa rion fora nomeado abade com end atário de Caste l Durante, do míni o dos Mo nte fe ltro.86 Nos anos seguintes ele esteve muitas vezes na corte de Urbino, estreitando g rande am izade com Fcd c rico e laços especia lm ente a fetuosos com seus filh os Bu o nco nte e Anton io. Co m a m orte de Bessa rion, um retrato seu (de Berrug uete, j á m encionado) foi incluído na série dos homens ilustres qu e ado rn ava o gabine te privado de Federi co, junto com uma inscrição ded ica da ao "a mico sapientiss imo optimoque". 87 12.

Entre G iova nni Bacci, Fcdc rico do M o ntefc ltro c Bessa rion , por-

tanto, existia uma rede de relações recíp rocas, m a is o u m e nos estreitas, mas de qualqu e r fo rma capaz de dar plausibi lidade à recons trução aqu i proposta. Há, po ré m, um perso nagem do quadro que foi ig no rado deliberadamente a té aqui : o mi ste ri oso j ove m lo uro.

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Sua presença n ão foi expli cada de m odo aceitá vel por nenhuma das inúm eras interp retações s ucess ivamente propos ta s. S ua roupa, seu rosto, sua atitude pa recem incong ru e ntes com o m eio circundan te. Es tá desca lço, com uma túnica s impl es, e ntre dois h o m e ns ca lçados, com elabo rados trajes da época. Não fal a (com o o homem à s ua direita) nem 8 escuta (com o o ho m e m à sua esqu e rd a) .M A sole ne gravidade do pr i-

m eiro e a atenção do seg undo n ão o toca m ne m de leve. Nenhuma em oção ou sentime nto reconhecíve l a fi a ra em seu be líssimo rosto. O s olh os do mis te ri oso j ovem lo uro fitam a lgo qu e não vem os. O jovem es tá mo rto.

13. Até o m o me nto tentamos decifrar as implicações políticas e reli giosas da Flagelação. Agora chegamos a se u núcleo m ais íntimo c privado. Propomos ide ntifi ca r o j ove m com o Buonconte da M o nte feltro, filh o

86 Cf. Ciovanni Mercati, Per la cro11olox ia, op. cit., p. 48, nota r. 87 Cf. Couma-Pctcrson, 1/istoricnlllllcrpretatioll, op. cit., pp. 2)0-} 1. 88 Muitos intérpretes, porém, en tenderam os três personagens em primeiro plano entregues a un1a con versa.

Ai11dn a Flagelação

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ileg ítimo de Federico, reconhecido e m ·1454 e vitimado pel a pes te em Aversa no outo no de 1458, com dezessete a nos de idade.s9 Fcdcrico, aficio nado por m a nu scritos e a ntig uidades, de ra ao rapaz qu e deve ria ser seu he rde iro uma con sumada form ação humanis ta . Em

1453, Bessa rion e Biondo Flavio pararam e m Urbino. Qua ndo estavam à m esa - conta Biondo, alguns an os de pois - , Federico mos trou a Buon conte, e ntão com doze anos, uma ca rta esc rita e m " ve rnáculo materno " c ade m ais "sórdido ". Buonconte a traduz iu para um e lega nte latim. Já naque la é poca, ta lvez, ou logo depois, Fede ri co lhe desig nara como precepto r o huma ni s ta Martino file tico da Filc ttino, da Ciociaria .9°

8 9 O a no da morte de Buonconte é incontroverso; não, porém, o ano de seu nascimento. Segundo Filippo Ugolin i (S toria dei co11ti e du chi d'Urbi11o, 1. Flo rcnçn: G razzini, Gianaini e C., 1859, pp. 370 ss.), quando foi a Nápoles, à corte de Alfonso de Aragão, Buonconte tin ha catorze anos- o que s ign ifica que na scera em 1443. Baseando-se ni sso, provavelmente, Aronberg Lavi n a firma que Buonconte e Bernardino Uba ldini, que o acompa nhou a Nápoles, apa recem nas fontes " in tlu,ir early teens" [no começo da adolescê ncia[ (Tri11mph, op. cit., p. 338). Gino r rancesch ini, po r outro lado, su stenta que, q uando Pie r Candido Decembrio foi hóspede de r cde rico em Urbi no: Stabilamento Tipografico, em 1449, Buo nconte tinha nove anos, ou seja, nascera em 1440 (Fig11re dei Rillascirll l'll lo 11rbi11ate. Urbino: Stabilamen to Tipografico, 1959, pp. 1 15- 16). Trnta-sc de uma divergência não tOtalmente ncgligcnciável: mesmo que o jovem de Pie ro seja, com toda probabilidade, um retrato um ta nto ideali zado, não é irrelevante saber se Buonco nte morreu aos quinze ou aos dezoito anos (em favor desta Cdtima data, ver também G ino r ranceschini, " La morte di Gen tilc Bra ncalconi [1457 [ c di Buoncon tc da Montefclt ro [1458[", in Archivio storico lomlmrdo, s. v111, 11 [1937], pp. 489-500 ). Ora, o úni co testemunho que permite estabelecer a idade de Buoncon te é a ca rta em que Biondo Flavio anunciava sua mo rte a Galeazzo Sforza. Nela, Biondo lcmbrnva um episódio ocorrido em sua visita a Urbino com Bcssarion, quando Buo nconte, com doze a nos ( "mr1111111 age11s terti11111 decim11m"), deu prova s de seu s conhecimentos de latim (cf. Biondo Flavio, Scritt i i11editi e rari, Ba rto lomeo Nogara (o rg.). Ro ma, 1927, pp. 175 -76). Co mo a permanê ncia de Bio ndo c Bcssarion na corte dos Montefeltro se de u em 1453 (cf. Lu igi Michcl in i Tocci, "Ottaviano Ubaldini dclla Ca rda e una inedita tcstimonianza sulla battag lia d i Varna [ 14441", in M éla 11ges [ ugen e Tissf'rant. Cidade do Va ticano: Biblioteca A postolica Vaticana, 1964, vu, p. 10J), pode-se co nclu ir que Buoncontc, ao mor re r, estava com dezessete anos, tendo nascido em 1441 . Quanto ao local da morte, cf. Crorltlca di ser Guerriero da G11bbio ... , Giuseppe Mazzatinti (org.). Città di Castello: S. Lapi, ·1902 (Rcrum ltalicarum Scriptores, n.s., tomo XXI, porte 1v), p. 68. 90 C f. Bio ndo Flavio, op. cit., p p. 175-76 . Numa ca r ta a Fcdcrico, a usente de U rbino, Buoncontc men ciona" Plriletills v ero praeceptor 1111'115 a llwtissÍIIIII S" (cf. Ugo lin i, op. cit., 11, p. 5 19) . Niio é claro quando Fi le tico foi aceito na corte de Urbino: pe lo m e nos de sde 1454, segundo Rcm ig io Sabbadi ni (Epistolario di G11arirw Vero11rse. Ve neza: Pre miate Officinc G rafichc C. Fe rra ri, 1919, m, pp. 4 74- 75 ), o q ua l, po rém, entende mal a ca rta de Biondo a Ga lca zzo Sforza em ·1458, afirmando que o epi sódio refe rente n Buo ncontc aos treze anos ~

1) 4

Bessa rion ficou impression ado com a precocidade intelectua l do rapaz: e, qua ndo recebe u uma ca rta s u a em la tim e g rego, responde u-lhe em grego. Dessa respos ta de Bessa rion, sem da ta, resto u a penas um a tradução la tina, fe ita po r se u secretá ri o N iccolõ Pe ro tti, que por s ua vez envi ou um bilhete a Buon con te. 9 ' Qu e um rapaz ainda em tenra idade conh ecesse la tim e grego, escrevia Bessa rion, era m ilagroso: u m verdade iro dom divino, uma consolação para o pa i e amigos, uma esperança extraordiná ria pa ra o futuro. Indicava o exemplo do pai a Buo nconte, exo rtando-o a emula r s uas v irtudes: a sabedoria, a prudên cia, a coragem, a justiça, a h on estidade, a misericórdia, a lealdade, a grandeza de alma. Fazia- lhe vo tos de que a elas acrescentasse o estudo das letras, o maior - como disse o d ivi no Platão - dos bens qu e n os fo ra m con cedidos por De us. E Bessa rion expressava o desejo de crisma r Buo nconte, para for ta lece r a amizade com se u pa i com um vín culo também espiritual. Assim Buonconte, filho carnal de Federico, se to rnaria- o bservava Bessa rion - seu filh o es piritua l. P rometia ir a Urbino tão logo fosse possível, e convidava Buoncon te a decora r a ca rta que lhe e nv iava, para poder re petir mais tarde não ape nas palavras soltas, e sim frases inteiras, e m g rego o u la tim, à s ua escolha. Iria inte rrogá- lo minuciosame nte sobre tudoY Sem dúvida Bessario n se sen tira basta n te tocado com o fato de q ue o filh o de Fede ri co a pre ndesse o grego, além do la tim. M as s ua admiração e ra pa rtilhada po r o utros visita n tes ocasio na is da co rte de Urbi no, com o Biondo, ou por en com iastas profi ssionais com o o humani sta Porcellio Pandoni, que e m seus epig ram as louvou a beleza, a inteligên cia, a força, a destreza de Buoncon te:

(na ve rdade, doze) teria ocorrido " pouco a ntes" (na verdade, cinco a nos antes). Uma dúvida sobre a conjetura de S abbadini já foi levantada po r Carlo Dioni sotti, "' Lavin ia vcn it litora '. Polemi.ca virgiliana d i M . r iletico", in /ta/ia m edioevale r um a11istica, 1 (1958), p. 296, n ota J · 91 Sobre o bi lh ete de Pc rotti, que po r s ua vez re spondia a u m a carta de Buonconte, cf. Giovanni Mcrca ti, Per la cronologia, op. cit., pp. 150-51. 9 2 A carta de 13essarion, já di v ulgada por H . Mo hle r, fo i publicada com co r reções de Lo ttc Labowski por Ceci! H . Cloug h , "Cardinal Bessarion and G reek at th e Court o f Urbino", op. cit., pp. 161 -62. -?

A i11da a Flagelação

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Vera Iovis soboles forma facieque deco ra Et mira in:-;enii nobilitate puer, Romano eloquio in du lget pariterque Pelasgo Oulceque m ellif/uo stillat ab ore melas. Aeacides qualis miwit Chirone magistro Ense, oculis, dextra, mobilitate pedunr Talis in arm a puer, vel s i contenderet arcu Et calam is Phrygiu m v inceret ille Parinr. Nunc sp umantis equi duro premit i/ia e/avo Oirigit in :-;imm Tyndarida e assinrilis. Hic cantulric choreis lric clarus in arte palestrae C la rus et a rte pila e, ela rus et a rte li rae [... 19 '

Logo Buonconte, e mbora muito jovem, com eçou a participar das responsabilidades do govern o. Em 1457, na ausência do pa i, e le escreveu a S igismondo M a la tes ta lamenta ndo os danos ca u sados por seus so ldados n os arredores de Sasso ferra to.<J4 No verão seguinte, saiu de Urbino com Be rna rdino, filho de Ottavia no Ubaldini de lla Ca rda, para ir à corte aragonesa em Nápoles. De passagem por Roma, fora m recebid os pe lo papa, " ma ra vilhando- se e le", escreve u Guerriero da G ubbio em s ua crônica, "e os o utros ca rdea is com ta nta inteligência em tão pouca idade" .9 5 Sem dúvida Bessarion se o rg ulh a ri a de se u pupilo.

YJ Urb. lat. J?J, cc. 120r-v (o títu lo do pocm~ , que ~bre o segu ndo livro dos Epigra111as de Po rccllio, é "Ad Boncontcm di vi no ingcnio adulcscenrulum rederici prin . filiu m "), aqui e ali corrigido com base em Urb. bt. 708, cc. 55 r-v, que contém uma va riante (" Dirigi r in gi rum nunc quoquc Victor cqucs").J "O rapaz é autêntica progênie de jove: pela bel eza do corpo e do rosto, pela ex traordinári~ nobreza d~ inteligência . Exprime-se e m latim c em g rego, e uma doce melodia flu i de sua boc~ de mel. Ta l como o Eácidcs, instruído por Quíron, faz ia fai scar veloz a esp~da, os o lhos, a mão, as pern~s, assim o rapaz, se competisse com o arco c a flecha, venceria Pá ris Frígio. Ora espore i ~ com firmeza os fl ancos do cava lo espumante; ora leva -o a passo como o fil ho de Tíndaro. É famoso por sua habilidade no ca nto, na dança, nos exercícios da g inástica, no jogo da bola c no tocar a lira . . . " J O s mesmos versos são citados por G iova nni Zanno n i, " Porccl lio Pando ni ed i Mon te feltro", in Rendico11l i del/a R. Accade111ia dei Lincei, curso de ciências mora is etc., s.v., IV (1895), p. n y. Y4 Cf. Ugolini, o p. ci t., 1, p. 371. 95 Cronaw, op. ci t., p. 67 (é uma passagem da primeira redação).

De Rom a os dois j ovens seguira m pa ra Nápo les. Em Aversa fo ra m acom etidos pe la peste. Bu o n conte m o rre u logo, e Bernardin o n a viagem de volta, e m Cas te l Dura nte, pouco a ntes de Urbino. A da ta exa ta não sa be m os, m as Biondo, numa carta a Ga lea zzo S forza, cond e de Pavia, datada de

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de n ovembro de 1458, fala da m orte de Buo n conte como

fato recente (" nuper defuncto"), qu e ca usou g ra nde comoção e m toda a Itália.y6 As v irtudes e m ortes prematuras d e Buonco nte e Bernardino foram le mbradas nas c rô ni cas de G iova nni Santi e G uerriero da G ubbio, e nos e pi g ra m as fún e bres de Po rce llio ."7 De federico d a Monte fe lt ro resto u a resposta à ca rta de condolê n cias de Fra n cesco S forza: [... ]certamente foi um gra nde refrigério pa ra min ha dor. Senh or meu, sei que por meus peca dos nosso Senhor Deus me tirou uma das vistas e este filho que era minha vida e aleg ria minha e de meus súditos, qu e jamais ocorreu que cu quisesse alg uma coisa dele e não a fizesse segundo me u desejo. E não há g raça maior do qu e poder lembra r qu e ele jama is me desagradou e m coisa alguma.98

14. Não ex is tem re tratos de Buoncon te.99 Po r isso, s ua identificação com o j ovem é co nj e tura !. No e n ta nto, vários e le m entos a tornam bas ta nte ve rossímil. Acima d e tudo seu as pecto a ngeli cal, com que se

96 Cf. Bio ndo Flavio, op. cit., pp. 175 -76. 97 Cf. Tedaigo da Montefeltro duca di Urbino. Crcm aca di Giovartni Santi, 1-kinrich I loltzingcr (org.). S tu ttgart, 189), pp. 52-53; Crorwca di ;;er Guerricro dn Gu!Jbio, u p. cit ., pp. 66 -67; Urb. lat. 373, cc. 125V- 126r ("Scpulchrum Bonco ntis Mon tefel " ). Para outros versos sobre Buo nco nte, c f. ibid., cc. 124 r-v (" Bonconti ado lescentu lo o mni virtum I! I gene ru m prediseni ssimo" ). Sobre Po rcell io, além de Za nnu ni, " Porcellio Pa ndoni ", o p. cit., cf. Ugo Frittelli, Gia11111111fonio de' Pnndoni de fi o i/ "Porcel/io ". rl o rença : Pa ra via, ·1900. 98 C.f. rranceschini, " La mo rte ", op. cit., p. 499· 99 S ua e fíg ie niio nos chegou ne m e m moedas (cf. Rinaldo Rcposati, De/In zeccn di Gubbio e del/e ges te de' conti r ducfli d'Urbino, 2 vo l. Bolo nha : Lelio dalla Volpe, 1772; à p. 265 do vul. 1 con sta q ue Buon conte morreu aos cato rze anos, ente nde ndo mal uma a firma ção de Bernardino Baldi, Vita e ja fli di Fedaigo di Montef eltro, 11. Roma: Presso Perego Salvioni, 1824, p. 48) nem em medalhas (seu nome esd au sente de George F. H ill, Co rpus of ltalinn Medals of the Rennissrm ce before Cellin i, 2 vol. Londres: British Museum, 1930).

A inda a Flngela ção

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assemelha a um morto: os pés nu s c a túni ca, como já se observou, ncs 4 o, 3, 95

e vocam os anj os de Pi e ro, desde os do Batismo aos da Natividade da National Ga llery de Lo ndres. A palidez, que contrasta com a atlética robu stez do físico, e lembra a aná loga palid ez pouco natural que, no retrato de Batti s ta Sforza nos U ffizi, indica que ele é pós tumo. ' 00 A separação em r elação à ce na circundante- não apenas psicológica, dir-seia, mas existencial, como d e alguém que n ão vê nem pode se r vis to.' 0 ' A data : se, como mos tram os ele m e ntos convergentes que assinalamos, o quadro foi p intado em 1459, Buonconte havia morrido cerca de um ano antes. A ligação co m o ins pirador c o d es tinatário do quadro, respectivame nte o pai espiritual e o pai carna l de Buonconte: por intermédio de Giovanni Ba cci, Bessarion enviava a Fede ri co uma imagem em m e m ó ri a do jovem que ambos tinham amado em vida, e cuj a morte ambos pranteava m . (E, com toda probabilid ade, é jus tamente Fed erico o inte rlocutor ausente a qu e m Bcssa ri on, com o s olhos voltados para além do quadro, dirige s ua prédica.) E por fim o tema da fl agelação, que se pres tava, como j á foi dito, a uma destinação fúnebre, talvez com o ornamento de um relicário. "' 2 A pos ição do jove m, poré m , evoca a d e C ris to preso à coluna. Por m eio da analog ia com o arq uétipo c ri stão da dor, os sofrime ntos de Buonconte (potencial soldado de Cris to arrebatado pela m orte prematura) eram equiparados aos dos gregos ago nizando sob a op ressão tu rca, e os de Fede ri co, à dor da Igreja. Esse e ntre la çame nto de refe rê ncias a afetos pessoa is e privados e de pressões para uma interve nção política e militar tornava a Flagelação de Piero, por s i só, uma imagem difícil de decifrar. N ão admira que, um século mais tarde, a representação do fil ho

100 Cf. Battisti, Piero, op. ci t ., 1, p. J57· Lavi n (Triumph, op. cit., p. JJ9, nota ·10o) notou que o jovem é muito mais pálido do qu e os dois personagens que o ladeiam, c comparou essa pa lidez à de Cristo fla gelado. 10"1 A história deste motivo iconográfico se desvendaria se se aprofundassem as observações, interessantes, mas um pouco apressadas, de Phili p Fch l, "Thc ll idden Cenre: a Stud y of the Conce rt Chnmpêtre in the Louvrc", in }o11rnal of Aesthctics and 11rt Criticism, XV I (1957), pp. 15) -liS . 1 0 2 Cf. Battisti, Piero, op. cit., 1, p. 507, nota 406.

morto de Federico fosse erroneamente ente ndida como retrato de seu irmão Oddantonio,' 01 criando uma lenda interpretativa que persiste até hoje. Para di ficu ltar ainda mais a deci frn ção do tema do quad ro, acresciam-se as características form ais, cent radas no cont raste entre un idad e perspectiva e hete rogeneidade ontológica das rea lidades nele re presen tadas. O jovem morto, cujos so frim entos são eq uiparados aos de Cristo, está presente em espírito, em bora invisível aos dois homens no primeiro plano. Também presente c invisível é a flagelação evocada pelas pa la vra s de Bessa rion . Apenas para o pinto r - e para nós espectadores- esse contras te se resolve numa un idade supe ri or, de ordem sob retudo espacial. r5· Pode-se objetar a tudo isso que, mesmo aceitando-se que o jovem representa um morto, sua identificação com Buonconte nada tem de pacífi ca; em última análi se, ela se apoi a na concordância de que o homem de barba trata -se de Bessarion, o qu e, co mo vimos, não está ise nto de dificu ldades. Estas fo ram superadas com o recurso a uma hipó tese que carece de uma co nfi rmação docum cntn l definitiva. Se, por o utro lado, depois de introdu zir a iden tifi cação de Buonconte graças ?1 de Bcssarion, demonst rássemos esta por aquela, cairíamos num círculo vicioso. Ape nas a certeza de que a qualifi cação de " nl"rn cio de César", atribuída a Giova nn i Bacci por se u bióg rafo seisce nti sta, rea lm ente se refe ria a uma missão cu mp ri da em Constantin opla em 1440 poderia so lu cion ar, para além de qu alque r dl"rvida, o enig ma colocado pela Flnge lnçiio . Isso não signifi ca, entretanto, q ue toda a reco nstrução aqui proposta esteja fadada a desmoronar caso a identificação do homem barbado como Bessarion se demo nstre cqui vocnda. Os elementos qu e co mpõem essa reco nstru ção - o ret rato de Ciova nn i Ba cci, a relação entre o pri meiro plano C O plano de fundo,
Ai11daa rlagelação

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de Bu on conte. São s uas relações com Bessa ri on que levam a inseri-lo n esse contex to. É uma interpos ição qu e abre es paço a um a interpretação de conjunto muito compacta e coe rente. Po rém, a coe rê ncia in terpretativa sem correspondê ncias de fato sempre deixa um a m a rgem de dú vida. Os docume n tos sobre a encom enda e a loca lização ori ginal, rrc; 3

qu e no caso do Batismo pe rmiti ra m q ue controlássem os a exatidão da in te rpretação icon ogr á fi ca de Ta nne r, ainda não vi eram à luz n o caso da Flagelação; esperam os qu e a lg um dia apareça m. No agu ardo de novas descobe rtas docume ntais, é preciso reconhecer q ue a interpretação aci m a apresentada é, e m boa pa rte, conjetura!. Tra tando -se de um qu ad ro anôm alo em termos icon ográfi cos, cuj o destina tá rio e loca li zação originais são ignorados, talvez seja difícil procede r de o utra m ane ira.

16. Q ua n do c o nde a Flagelação foi pin tada? Ta mbé m aqui, à falta d e docume ntos, só podem os ave nta r co nj e turas. Tra ta ndo-se de um qu adro de pequ en as dime n sões, n ada imped e qu e Pi e ro o tenha com eçado em Rom a e term ina do em Arezzo. Em favo r dessa hipótese há o pe ntimento que a ponta m os n o conto rno do crânio de G iova nn i Bacci. A n otícia da m orte do pa i deve te r levado C iova nni de volta a A rezzo, se já n ão estava lá, no p rincípio de abril ; no m esm o pe ríodo, Bessa rion sa iu de Ro m a com d es ti no a M ân tu a. Provavelmente Piero com eçou a t ra balhar n o q uadro po uco te mpo de po is, com base n as in s truções de a mbos. Q u ando volto u a Borgo San Sepolc ro, a pós a m o rte da m ãe, em 6 de novembro de 1459, reviu C iova nni Bacci e pôde co rrigir seu ret ra to ao vivo . Fez a m esma co r reção, com o sabem os, no per fil de Bacci que se en con t ra, por razões desco nhecidas, aos pés da Nossa Sen h ora da M ise ricórd ia no retábu lo de Sa n se polcro, e n tão conclu ída ou em vias de con clusão. "'4 No caso do re tra to de Bessa ri on, n ão h o u ve 104 1\ cro nol ogia do retri bulo da Mise ri có rdia é obscura : o certo é que s ua execução, a qual por conrraro se faria em três anos (cf. Battisti, Piero, op. cit., 11, p. 10), arras tou-se por muito tempo. Encomendada em 1445, dez a nos mai s tarde ainda não tinha sido concluída, a tal pon to que a irmandade deu uma espécie de ultimato a Pie ro, dete rmi nando que completa sse o trabalho na Quaresm a (cf. Beck, "Una data ", op. cit.). Battis ti notou, contra a s uposição de Gilbert de que esse ofício se referisse a o utra encomenda ( n ~o documentada ), que com toda pro babilidade ~

140

a possibilidade de co nfe rê n cia na prese nça do mod elo: já fa zia te m po que Picro saí ra de Ro m a q uand o Bcssa r io n, qu e fora a Ve neza a pós a dieta de Mâ n tua c e ntão à A lema nh a, re to rnou pa ra lá em novemb ro de 1461. O términ o d a Flagelação, po rta n to, co in cidi r ia com a re to m ada dos afrescos de Arczzo, após o in te rva lo ro m ano. Isso ta lvez permita iden t ifi ca r o po n to exa to e m q u e Pie ro os de ixara. N u m im po r ta n te e nsaio, Lon g h i ca pto u a ext rao rdiná ria proxi mi dade fo rma l e n tre o jo vem da Fla ge lação e o profe ta de A rezzo, s ituad o à d ire ita da ja-

nr.~. 4 o, 96

ne la g ra nde d o co ro- dos do is profe ta s, o úni co pintad o pe lo p róprio Piero. "'5 Essa proximidade, m e nos co nspícua dev ido à cro nologia p ro pos ta a segu ir po r Lo ng hi (c. 1445 pa ra a Flagelação; 1452-an te

1459 pa ra os a frescos a re t in os), e nco n tra a m e lh o r exp licação possível à luz d a reco n s tru çã o aqui proposta . De fato, as d uas fig u ras são exa tam ente da m es m a é poca: feita s, po r assim d ize r, d a m es m a m assa . A firm ação e s ta a se r to m ada ao pé d a le t ra: Vasa ri inform a q ue " Piero usou m u ito fa ze r m ode los de a rgila e coloca r po r cima pa nos m acios co m u ma in fi ni dade de do bra s, para ti rá- los e u t ilizá- los". 106 É um

Piero ainda não havia cu mprido em 1458 algum contrato estipu lado q uando era menor de idade: por isso, na procuração que deixou ao irmão Marco, às vésperas de ir para Roma, sua assinatura fo i ava lizado pela do pa i. Essa h ipótese pnrecc confirmada pe lo pagamento que a irmandade da M isericó rdia de Sansepolcro fez a Marco em ja ne iro de 1462, "para parte de pagamento do quadro que pintou Mestre Piero seu irmão" (cf. Ba ttisti, Picru, o p. cit., 11, p. n). Esse " quadro", se não quisermos aderir à artificiosa hipótese de Gi lbert, não pode ser senão o políptico e ncomendado em 1445, que agora certamente estava te rm inado ("pintou" ). Desde quando, não sabemos (a afirmação de Ba ttisti q ue "o limite de 1462 deve ser considerado como um rmte quem distante, c não próximo" libid. l é infundada). Em todo caso, essa cronologia em bases docu mentais não excl u i u ma inte rvenção de Piero em 1459, para modificar o retrato de G iova nn i Bacci. H5 de se notar qu e a crono logia proposta por Roberto Longh i em bases esti lísticas aproxima a parte mais ta rd ia, isto é, os retratos dos devotos, juswmcn te ao elíptico dos Uffizi (Piero, op. cit., p. 207; cd. bras., pp. 369-370). 105 C f. Longh i, " Picro dei Franceschi e le origini della pittura veneziana ", in Scrit ti giova11ili ( 1912- 1922), 1. rlorença : Sanson i, 1956, p. 87, que exemplifica a conexão entre Piero e Antonello da Messi na aproximando o São Selmstiiio de Dresden deste ú ltimo ao Cristo flagelado ~:ao jovem louro da Flagelação, e este último ao profeta de Arezzo ("a iden tidade é perfeita" ). Cf. também, do mesmo au tor, Pieru, op. cit., p. 47; cd. bras., pp. 66-67. w6 C f. Vasa ri, Le v it e, op. cit., 11, pp. 498-99. Essa passagem fo i destacada por [ rnst H . Gombrich (Hurlington Maga zine, 94!1952 1, p. 178). --7

A1ntln a Flagelação

141

procedimen to d esse tipo qu e parece possíve l di scernir por trás das du as figura s. Se essa recons trução é co rreta, Pi e ro terminou a Flage lação c pin to u o profe ta da dire ita e ntre o fin a l de 1459 e o princípio de 1460. O que não deixa dúvidas é que as a rquiteturas p rese ntes nos afrescos FIGS.

7,

12

das orden s intermediárias- o Encontro de Salomão com a ra inha de

Sabá e a Descoberta e comprovação da verdadeira Cruz- ecoam in timamente a arq uitetura do quadro de Urb in o. ' 0 7

17. Duran te quase três sécul os, a té se u reapa recime nto nos inventários urbina tes em meados do século xvut, não temos notícias sobre a

Flagelação. Mas existe m ecos indiretos: em prime iro lugar, a têmpe ra conhecida tradi cionalmente com o no me de São jerôn imo no estúdio, que faz parte da sé ri e que Vittore Ca rpaccio pintou para a Scuola di Sa n G iorg io degli Schiavo ni . Poucos anos atrás, um a m e ticu losíssima a ná li se ico nog rá fi ca demon s t ro u que esse qu adro represe nta ou tro te ma : a Visão de San to Agostinho. Segundo um a lenda que circulava no final do sécu lo xv, Santo Agos tinho, e nquanto escrev ia uma carta a São Jerô nimo, viu uma súbita luz. Uma voz do a lé m - de São Je rônimo, justamente - lh e an un ciou a pró pria m orte, ocorr ida um pouco antes; d epoi s respondeu a várias pergu ntas sobre a Trindade, sobre o filh o procedendo do Pa i, sobre a hi erarqui a dos anjos. Antes disso, com base na semelhança (na verdade, genérica) com alg uns dos re tratos existentes, Cuido Perocco j ulga ra que Carpaccio ha via pre te ndido representa r nesse sa nto hu manista m ergulhado e ntre li vros e códigos a figura d e Bessa rion, que concedera e m 1464 uma indul gên cia à Scu ola d i San G iorg io. Essa hipótese brilh a nte foi de pois comprovada e m ca ráter definitivo por Vittore Branca, que ide ntifi cou o selo incon fun dível de Bessarion semiapagado em prime iro plano.' 08 -, 07 Com ba se nesta e em outras analogias fo rma is, Gil bert (C hall!{l! i11 Piero del/a Frmrcesca, op. cit., pp. 31-32) s ustentou a contiguidadc cronológica entre o quad ro de Urbino e esta f
Quan do essa têmpera fo i execu tada , Bcssa r io n morrer8 já h avi::-t ma is de trin t8 a no s. A po uca c redib ilidad e fisionôm ica do retrato não su rpree nde. O q ue s u rpreende é qu e n ingué m ( pe lo menos ao que cu saib8) te nh a a po n tado

JS

es tre ita s relações e n tre ess<1 famo s::-t obra de

Carpaccio e a Flagelação d e Picro. '"9 Com parem-se em prim e iro luga r o fo rro decorado do Santo Agos-

11("·'1"·""~ ->

tinha c o for ro com pa rtimc ntado da Flagelação : o ângu lo de in cl inação da pe rspectiva é o m es m o. As d uas porta s da pa rede de fundo do gabinete do sa n to são m aciçame nte de ri vada s das do át rio de Pilaras; a lém disso, n os d o is casos <1 po rta da esq ue rda es tá abcrt8, m os t r::~ nd o u m in terior ilu m ina do. A e s tá tua de C ris to na tê m pe ra ve n ez ia na é uma ve rsão especula r c cris t ia nizada d o ído lo no alto da col una no quadro ur bina tc. O asse n to vazio dia n te d o ge n ufl exór io de San to Agostinho tem forma q uase idê ntica ao d e Pilaras. E m ais: ta l com o Pi cro na Fla -

gelação, Ca rpaccio ta mbém in t rodu zi u n esse quadro dua s fo ntes lum inosas co ntras ta ntes, uma na tura l e o u tra so bre na tura l. O a posento que se vê ao fun do, g raças à po rta aberta, está iluminado pela esqu e rd a; o escritó rio d o san to, pe lo co ntrá rio, é ilu m in ad o pela d ireita. Esse contras te assin a la ao espectado r, com u m exped ie n te de ext rema s im plicida de, a na tureza prodi g iosa do even to q ue in terrom pe, de súbito, o t ra ba lh o d e Sa n to Agos tinh o. Aq u i ta m bé m , co m o na Flagelação, ass is tim os à justa posição na m es ma ce na d e dois níve is d e rea lidade o n to log ica m e nte d ive rso s. Legcnd,uy S ource" , in Art Bulleti11, xu ( 1959), pp. 283-97; [dward E. Lowi nsky, "[pilog uc: T he Mus ic in S I. ]ero111 e's Stutly", in ibid ., pp. 298-30 1. Vcr ta mbé m Jca nne c Pie rre Courcc lle, lco rroxmphie .!c Sa irrt Aux r1 stirr. Les cyclcs du xvf" sit~cle. Paris: l nstitut d 'Étud es Augustiennes, 1969, p. 1 04, nota 2, t05, e ilu str. LX IV, CI X; e, dos mesmos autores, os volumes dedicados aos ciclos trecentistas e qu inhen tistas (Paris, 1965, ·•972), para outras representações da visão de Santo Agos tinho; Cu id o Pc rocco, "La Scuob di Sa n G iorgio degli Schiavoni ", in Venczí11 c /'[uropa. AI ti de/ XVIII ro11srcsso illt cmazío llalc di storin dcll'arte. Veneza: A rte Veneta, 1956, pp. 22 1-24; id., Carpn rrío rrelln Sr11oln di S. Gior8io desfi Sch iavo11i. Veneza: rcrdinando Ongan ia, 1964, p. 134; Z yg munt Wa zbinski, " Portrait d' un amateur d' art de la Renaissancc", in A r te vcrr etn, XXII ( 1 968), pp. 21 , 28, nota 5 (q ue remete a uma comunicaç5o ora l de Vittore Branca). 109 Quem me fez notar a ex istên cia de uma an;1logia entre os do is quadros fo i minha fi lha Lisa, e ntão com dm:e anos de id;1de.

-')

Ainda a Flagelação

"~43

Tudo isso implica qu e Carpaccio conh ecia a Flagelação. E po r quai s m eios? A respos ta já foi dada, embora sem fazer refe rência ao quadro urbinate, por Perocco, que, exatamente a propósito do Santo Agostinho, supôs que Carpa ccio veio a ter co nhecimento das pesqui sas de perspectiva de Picro por inte rmédio de Luca Pacioli, que en sinou matemática e m Veneza logo após 1470. É uma conj etura que pode ser mai s especificada. Depois do período de perm a nê ncia em Veneza, na juventude, Pacioli, conterrâneo, apreciador e plagiador daquele que, numa dedicatória a G uidubaldo, duque de Urbino, definiu como " o monarca da pin tura em nosso s tempos, m es tre Pictro de' Franccschi ", tornou-se frad e c ini ciou uma vida errante que o levou, entre o utros lugares, a Pe rúg ia,

à corte de Urbino, a Flore nça, o nde de u a ul as de 1500 a 1507, e depois de volta a Veneza . Aqui, em 11 de agos to de 1508, n a igreja de Sa n Bartolorn eo di Rialto, deu urna a u la inaugura l, con corridíssima, de um curs o sobre o segundo liv ro de Euclides." 0 A esses mes mos anos (as datas propostas variam entre 1507 e 1511) pertencem as últimas têm peras feitas para a Scuola di Sa n Giorgio, entre e las a Visão de Santo

Agostinho." ' Na dedicatória à Summa de arithm etica de 1494, Pacioli mencionara a s conversas sobre pers pectiva que mantivera com Gcntile c G iova nni Bellini; o diá logo qu e, ac redita -se, travou com Carpaccio durante a segunda estada em Veneza deve ter s ido ig ualmente fecu ndo. Durante tais contatos, é muito provável qu e el e tenha com entado e exibido uma cópia da obra-prima de perspectiva de Picro, de pro priedade dos Montcfeltro.

A demon stração do nexo entre a Visão de Santo Agostinho e a Flage-

lação estabelece bases concretas para a dívida, várias vezes ressa ltada, de

Cf. Tutta la pittura dei Cn rpnccio, C uido Pc rocco (org.). Mi lão: Rizzol i, 1960, pp.1.2-13; Luca Pacioli, S umma de arithmeticn ... Veneza: Paga nino de Paganin i, 1523 (1: ed.1494), ded icatória; Euclides, Opera, Veneza, 1509, cc. )H-v (com a relaçiío dos personagens presentes à au la inaugural). Para um rápido pe rfil biog ráfico de Pacioli, cf. o apêndice de G iuseppina Masotti Biggioggiero a De divina proportio11e, Milão, 1956. 111 Cf. Tuttn In pittura, op. cit., p. 59 (a propósito da data, hoje ilegível, de São Jorge m ata o dragão). Perocco propõe o ano de 1507 como da ta fin al do ciclo; )an La uts (Carpaccio, Londres, 1962, p. 3 ., ), o a no de 1508. 110

144

Ca rpaccio em relação a Piero, confirmando a hipó tese de Pe receo de que have ri a um compon ente e speci fi ca mente urbinate na fo rm ação veneziana do prime iro. " 2 E o fato de Ca rpaccio, q uerendo retratar Bcssarion, ter se inspirado j us tam ente no qu ad ro de Piero ta lvez não seja m era coincidência, e s im um e lemento s upl em enta r - embora hipo té tico- em favo r da identificação do ho m em barbado da Flagelação, aprese ntada mai s acim a. É verdade que, do po nto de vista fi sionômico, não ex iste nenhuma semelha nça e ntre o Sa nto Agostinho de Carpaccio e o homem ba rbado da Flagelação- ainda que a pos ição da ca beça seja quase a mesma (um pou co mais fronta l e m Sa nto Agostinho). Se foi Pa ciol i o inte rm ediá rio da apresentação do quadro de Pi e ro, Ca rpaccio ta lvez ten ha vis to um dese nh o que se teria detido sobre os ele mentos compositivos, c não sobre as pa rti cularidades fi sio nô mi cas dos personagen s represe ntados. Pacio li, porém, fa milia rizado com a corte de Urbino, devia esta r bem inform ado sobre s uas identidades. O s desenhos ligad os à Visão de Santo Agostinho confirmam em

11c;s 9 z- 93

deta lh es essa s upos ição, permitindo-nos acompanhar passo a passo a m odifi cação do proje to de Ca rpaccio. O a n verso do dese nh o conservado no Museu Púc hkin de M osco u m os tra um vel ho de barba seg urand o um co mpasso, sentado a uma m esa c virado para a esquerda. O s códices e as a ntig uidades que ado rn am se u escritó rio fazem lem brar os de Santo Agostinho, m as a ex pressão facia l da fig ura é ou tra e, acima de tudo, fa lta qualqu er referê ncia à Flagelação. O conh ecimento indireto dessa obra t ra ns parece, porém, no verso da m esma fo lha: às cos tas do velho, esc re vendo, aparece pela prime ira vez uma das d uas po rtas do á trio e m que se dese nro la a Aage lação de C ri s to - para se r m a is exa to, a po rta a be rta qu e pe rmite e ntrever a escada de Pilatos,

112

C f. "llttta la pittttra, op. cit., p. 1 5. Sobre a dívida de Carpaccio em relação a Piero (por intermédio de Antonello) insiste Longhi (" 11 arpaccio c i duc Tomei della Nationa l Gallcr y", in Ricerclle sul/a pilltt ra Vl'lll'fa. Florcnçn: Snnsoni, 1 978, p. 82; para a ligação com Antoncllo, cf. "Per un catalogo dei Carpaccio", in "Me pinxit" r quesiti rarnvaggeschi. r!or~nça : Sa nson i, 19Ó8, pp. 78-79).

1\inrln n Flagelação

145

bem visível no desenho." 1 É uma citação exa ta, qu e de po is Ca rpaccio el imi no u, s ubs titu indo-a pe la s d eri vações, ig ua lm e nte exa tas, q ue j á I IG~.

91

arro lam os. Um desenho hoje no Britis h Muse um docume nta uma fase m ui to m ais adia ntada do t ra ba lho, q uando a pintura já estava quase concl uída. A lg umas pa rtes apen as esboçada s co r rcspo nde m a varia n tes da ve rsão definiti va: o animal em p rime iro pl ano à esque rda, que não é um cãozinho c s im um fu rão, e a fi g u ra do sa nto. O rosto des te último, ape n as es boçado e m traços ge ra is, é em tud o dife rente ta nto do s dese nhos p repa ra tó rios qua nto do qu adro pro nto: não te m seque r ba rba. M uito razoavelme nte, M ichelan gcl o Mu raro supôs que esse desenho londri no con stitui uma docum e ntação prepara da por Ca rpa ccio, ta lvez ag uardando as ins t ruções n ecessá ria s pa ra re trata r o rosto de Bessa rio n . " 4 Po ré m é verdade que o res ul tado não fo i além de um a seme lh a nça ge nérica com o s re tratos ex is te ntes do ca rdea l: e ta lvez neste ponto sej a lícito observa r que o homem de ba rba da Flagelação está mui to ma is próximo de les, do ponto de v is ta fis io nômico, do qu e o Sa nto Agostinho de Ca rpaccio, o nde a presença do se lo cardina lício ga ra nte a identidade do pe rsonagem rep re se ntado. Ta l co m o Pie ro, Luca Pacioli tinha s id o "a ss ídu o" na corte de U rbino ."' G raças a ele, com toda pro ba bilidade, um quad ro de destinação estri tamente privad a com o a Flage lação teve, a pesa r de t udo, pos teridade pró pri a.

1 13 C f. Vittore Carpaccio - Ca talogo del/amostra, Pie tro Zampetti (org.). Veneza: Alfie ri, 1963, p. JOO, no ta 10 (com bibliografia). A s ucessão dos dois desen hos é de hipótese de Victor Goloubeff, que foi o primei ro a publicá - los (" Due d isegni de i Ca rpaccio ", in Rasseg11a d' arte, VIl , 1907, pp. 140-41 ), observando que o personagem do primeiro desenho se assemelha mais a um as tnílogo ou a um alquimista. La uts (op. cit., p. 273) supõe que os do is desenh os de Moscou c um desenho estili stica me nte próximo de ambos, con servado no British M useum , represen ta ndo o perfil de um estudioso jovem e imberbe, fa ziam parte do projeto de uma série de re tra tos de fi lósofos: por isso, e le te nd e a excluir q ua lquer li gaç~o e ntre esses desen hos e a Visiio de Sa 11to Agos ti11ho. De opin i5o contd r ia é Deller von l ladcln, Ven eziarrisclu Zeicllllllngen de s Q uatt roce11to. Be rli m: Pa ul Cassiscr, 1925, p. 57· 114 C f. M icheb ngclo Mu ra ro, Carpaccio. Florença: Ediz ione d' Arte il Fiorino, ·1966, p. 104, nota 10. r 15 Cf. Pacio li, op. cit., dedi ca tó ria.

Conclusão

As complexas refe rê ncias iconográ fi ca s à união da s ig rejas e à cruzada, rastreadas no Batismo, na Flage lação e na segunda parte, mais consi s-

ooc.2,1'o•. 4 -.5

tente, do ciclo de Arezzo, re m e te m aos interesses cultura is, políticos e relig iosos de Giovanni Bacci ou de personage ns a ele ligados de alguma maneira. Isso é prova do nega ti va m e nte pelo desaparecimento de tais tem as da pintu ra de Piero após o té rmin o do ciclo a re tin o,' quando cessara m as relações com os Bacci com o co mitentes. Pode-se pe rgunta r se essa influência se limitou à iconografia. É verdade que, após termina r os a frescos de Arezzo, Piero (então com pouco mais de 45 anos) tomou rumos estilís ticos profundamen te diferentes e menos árduos. Falar de invol ução, como se chegou a fazer,' não parece possível diante de obras como o díptico dos Uffizi, a Nossa Sen hora de Sin igália (hoje e m O bservado por To lnay, mas num contexto m inim izn nte (e genérico):" Les allusiorrs à l'histoire

corr temporaine des éslises orienta/e e/ occidelltalc rre so11t quedes épisodes secorrdaires dan s sa pei11ture. Elles disparafsse11 1apres /e cycle de Are~zo. Ce qu i importe, c'estia qualité de sa foi qui /ui permettait d!' charpelllt'r ununivers complet, solide ... " (As alusões à histó ria contemporânea

2

das igrejas o rienta l c ocidental não passam de episódios secundários em sua pintura . Elas desa parecem após o ciclo de Arezzo. O q u e importa é a qualidade de sua Fé, que lhe permitia constru ir um unive rso com pleto, sólido ... J (op. cit., p. 239; o en sa io é dedicado a Jacques Marita in). É a tese aprese ntada por C lark e m s ua monogra fia . Longhi fa la , e m termos muito mai s vagos, e m falta de "acréscimos e fe tivos à sua prim e ira g rande in venção poé tica el e Arezzo";--?

Co11clusão

'47

Urbino) ou o re tábul o de Brera. De qualquer modo, seri a absurdo contrapor a im agem conve ncional do artis ta isolado em s ua pesquisa formal, superesti mando o peso do comite nte nas escolhas mais pro priamente estilís ticas. Pode-se no máximo aventa r com cautela a hi pótese de que o extraordinário domínio qu e Pi ero atingiu no uso da perspectiva atraiu sobre ele a ate nção de u m am biente intelectual interessado e m todos os gêneros de inovações técnica s. Lem bre-se a propósi to que To rtelli incluiu no verbete "Horologi um", de seu De Orthographia, uma longa lista, redigida por Lorenzo Va lia, de invenções desco nhecidas aos antigos, sem de ixa r de lado as relacionadas às artes, com o o clavicórd io ou o nigelo; e qu e o próprio Bcssarion, numa carta escrita logo após 1440, aco nselhou Constantino Palcólogo, déspota de Mareia, a adq ui rir do m ínio dos ava nços técnicos ocidentais. ' A dependência clien telar de G iova nni Bacci em relação aos Medici aj uda

a expli car, para doxa lmente, a falta de e ncom endas florentinas a Piero. É indiscutível que també m se tra tava de uma questão de gos to. 4 Mas é do mesmo m odo ce rto q ue Bacci tinh a condições de recome nda r seu protegido a Sigism on do Ma la testa ou a Fede rico da M ontcfeltro, g raças à inte rcessão dos M edici, m as não de pro por seu n om e a estes últimos. Nas cartas a seus pa tronos, Bacci recordava em tom prazenteiro e nostálgico as pro teções q ue gozara no passado c as expe riências qu e acum u la ra transita ndo en t re as cortes; dava con selhos sobre a situação a retina, exortando Piero di Cosi mo a nomea r um chefe de justiça "q ue vá bu scando e pe rcorrendo a região e faça alg uma dem onstração ad ferrarem" para exting uir a "insolência e teme ridade" dos campon eses contra "com e rciantes, a rtífices e home ns de bem "; 5 e a Lore nzo soli ci tava um e nca rgo que lhe permitisse --?

3

4

5

em outra pa ssagem, porém, observa que uma pa rte da atividade posterior de Piero, a começar pelos afrescos romanos, perdeu -se (cf. Piero, op. cit., pp. 91, 57, ed. bras. pp. 110, 77). Sobre o ca ráter insustentável dessa cronologia, ver p. 138 ss. C f. Alex Kellc r; "A Renaissa nce llumanist Looks at ' New' lnventions: the Article ' Horo logi um' in Ciovanni Tortelli 's De Orthog raplria", in Tech rrology arrd Cu lture, 11 (1970), pp. 345-65, a se r complemen tado e corrigido com base e m Ottavio Besomi, " Dai Gesta Ferdinandi", op. ci t.; Albert Calloway Kellcr, "A Byzantine Admirer of ' Weste rn ' Progress: CardinalBessarion ", in Cambridge 1/istorica/ jormwl, 11 (1965), pp. 343-48. Cf. Lon gh i, Piero, op. cit., p. 98, cd. bras. p. 294. Asr, MAP, xv11, 328 (a ca rta é dirigida a Piero di Cosi mo de' Medici) .

sair de Arezzo, lembrando co m discrição qu e Fcdc rico da Montefeltro " todos os emolumentos [ ... ] cos tuma reserva r e dar aos a m igos c homen s seus". 6 No e ntanto, os Medi ci não davam ouvidos a seus pedidos. Inu tilm ente Bacci voltava à ca rga: "Es tou aqu i onde nunca m e senti bem, por isso peço a V. M. que se digne a me tira r deste infe rno, que sinceram ente não conheço nem ouvi fa lar de outro inferno m aior do que morar nes ta cidade em tão mau estado como ja mais vi nenhuma outra " .7 Essa en ésima s úpli ca é de 29 de abril de 1. 4 76. A última carta rem anescente de G iova nni Bacci é de dezembro do mesmo ano. Não sa bemos quando morreu: talvez pouco te mpo depois. Quis ser sepultado em Rom a, na ig reja de Sa nta Mari a Nova, com o já fora o caso, a ntes dele, de outro clérigo a re tino da Câ mara Apostólica .8 Seu monum e nto fúneb re, destruído durante as modificações sofrid as pe la igrej a na segunda metade do século xv 11 , certamente recorda ri a com n ostalgia sua breve ca rreira n a adminis tração curial, que fora bruscame nte interrompida trinta an os a ntes, pelo a trito com Ludovico Trevisano, cardea l cam erlengo.

6 7 8

144 (a ca rta é da tada de 6 de m a rço de 1473). xxx 111, 3 12 (a ca rta é en dereçada a L.orcn zo de' Medi ci). " Po r m ui tos anos vive u Mon se nho r C iovanni di Fra nccsco Bacci cl é ri go da Reverenda Câ m ara Apostólica, com o [ ... 1 se vê por se u sepu lcro situado na igreja de Sa n Franccsco em Ca mpo Vaccino de Roma ", escrevia Cam urrin i (op. cit., 111, p. 328). Na verdade, trata-se da ig reja de Sanra fra ncesca Roma na, que anteriormcnre tinha o nom e de Sa nta Maria Nova. Pouco depois do pe ríodo em que Camurrini escrevia (1673), ho u ve a refo rma que modificou profu ncbmenrc a fi sionomia da igreja, destruindo boa parte dos m on umentos f(m ebre s co ntidos dentro dela, e ntre os quais o de Centilc da Fabriano (cf. Placido Luga n o ·1., o. s. fl. Mar ia Nova [5. Frm1cesm Ro111ana i- Roma, s/d, p. 5) e o de um " Fiodericus de A rctio", clé rigo da Câ m ara Apostóli ca, fa leci do em 1403 (cf. Vincenzo Forcella, lscrizion i del/e chiese e d'altri edificii di Ro111a dai seco/o xt fino ai giomi twstri. Roma : Tipographia dei frate lli Be ncini, 1873, 11, p. 6 ). Forcella não me nciona o m o numento fú nebre de C iovanni Bacci, seja entre os existen tes ou os destruídos em Sa nta Maria N ova (cf. ibid ., pp. 3 -16, 5 27-28). Consul tei em vão o m s Va llicclliano C . 28, An tiquae lnscriptiones Ecclesiannn Ronuwae Urbis collecfa e a Ca ro/o de Sewa [sic: leia-se Sn vaJ A nton io Bosio et loanne Severarro (sobre Santa Ma ria Nova, a s cc. JJ-J 4l · Ta mbém não encont rei nenhu m vestígio do testamento de C iovanni Bacci: nem no Arqu ivo de Estado de Flo rença [Archi vio di S ta to di Firenzej, nem na pasta de in strumentos de Santa Maria N ova no A rquivo de Estado, de Roma [A rchi vio di Stato di Rorna I ( AS R, Congregazioni religiose soppresse, 0/ive tani, S. Maria No va, n. 5), nem nos docu mentos publicados por O ttorino Monte novesi (" Roma agli iniz i de i sccolo xv c il M o nastcro di Sa nta Maria ai Foro", ex traído de Rivista storim benedet tina, 1926), os quais, e m todo caso, rem etem a u m período a nte rio r ao que aqui nos in te ressa. Infeli zm ente foi- me im possível ter acesso ao Archivio della Fraternità dei La ici di Arczzo, e m fa se de organização. i\Sf, MAl', XXIX, i\Sf, MAl',

Conclusão

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"Minhas investigações sobre Piero della Francesca se converteram também em investigações sobre o crítico de arte Roberto Longhi. Ele foi um modelo e um desafio constante para mim, mesmo quando me afastava de suas conclusões: por exemplo, na proposta de adiar em quinze anos a data da Flagelação, apresentando-a como obra da maturidade, e não da juventude de Piero." Com essas palavras, o historiador Carlo Ginzburg não só dialoga com a clássica obra publicada por Longhi, em 1927, como aprofunda seus argumentos em torno da datação de Batismo de Cristo, a Flagelação e o ciclo de Arezzo: "Todo esse trabalho alimentou uma reflexão sobre um tema mais geral -o da prova - com o qual tenho me ocupado várias vezes na última década". Após editar o Piero della Francesca de Longhi, a Cosac Naify lança Inv estigando Piero, permitindo ao leitor entender parte do fascínio que o pintor provoca. Carlo Ginzburg resume: "Continuei a trabalhar sobre Piero principalmente porque não consegui me afastar de seus quadros".

Tradução

DENISE BOTTMANN

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