Rebecca Goldstein - Incompletude.pdf

  • Uploaded by: Erich Caputo
  • 0
  • 0
  • February 2021
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Rebecca Goldstein - Incompletude.pdf as PDF for free.

More details

  • Words: 75,031
  • Pages: 238
Loading documents preview...
INCOMPLETUDE

_w,;4_ COMPANHIA DAS LETRAS

Copyright © 2005 by Rebecca Goldstein Atlas Books, L.L.C./ W.W. Norton & Company, Inc. Publicado originalmente nos Estados Unidos. TÍTULO ORIGINAL

Incompleteness -

The proof and paradox of Kurt Gõdel

PROJETO GRÁFICO DA COLEÇÃO

Kiko Farkas/ Máquina Estúdio Elisa Cardoso/ Máquina Estúdio FOTO DE CAPA

© Bettmann/ Corbis/ LatinStock PREPARAÇÃO

Leny Cordeiro REVISÃO TÉCNICA

Iole de Freitas Druck (professora do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo) ÍNDICE REMISSIVO

Luciano Marchiori REVISÃO

Carmen S. da Costa Valquíria Della Pozza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (c1P) (Câmara Brasileira do Livro, SP , Brasil) Goldstein, Rebecca Incompletude : a prova e o paradoxo de Kurt Gõdel/ Rebecca Goldstein ; tradução Ivo Korytowski. - São Paulo : Companhia das Letras, 2008. Título original: Incompleteness Bibliografia.

the Proof and paradox of Kurt Gõdel.

ISBN 978 -85-359-1305-7

Gõdel, Kurt 2 . Logicistas - Áustria - Bibliografia 3. Logicistas Estados Unidos - Bibliografia 4. Teoria da prova r. Título. 1.

08-08147

índice para catálogo sistemático: 1 . Logicistas : Biografia 510.92

[2008] Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA .

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 São Paulo - SP Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br 04532-002 -

Para Yael a filha é conselheira da mãe

SUMÁRIO

.... .. .. ... . .. ... . ... ...... .. ... .. .. .. ... 11

INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 Um CAPÍTULO 2

platônico entre positivistas ... .............. ...... ...... ... .. .. ...... ......

Hilbert e os formalistas .

CAPÍTULO 3 A prova CAPÍTULO 4 A

da incompletude

45

..... ... ..... ...

.. 102

......... ... .

. 124

incompletude de Gõdel ... .... ... ... ... ... ... ....... ..... .. ....... .. ... ... ...

174

Notas Sugestões de leitura

.. . 221

Agradecimentos

. . . 231

Índice remissivo

...... .. .. . . .. . 233

... 228

Mas todo erro se deve a fatores extrínsecos (como a emoção e a educação): a própria razão não erra.

Kurt Gõdel. 29 de novembro de 1972

INTRODUÇÃO EXILADOS

,

E

final de verão nos subúrbios de Nova Jersey. Dois homens caminham por uma rua isolada, mãos entrelaçadas atrás das costas, conversando tranqüilamente. Sobre a cabeça deles, a copa espessa das árvores os protege do céu. Mansões antigas erguem-se bem afastadas da rua, enquanto do outro lado, logo depois dos olmos, se estende o tapete verde e luxuriante de um campo de golfe, as vozes enfraquecidas dos jogadores chegando como que de uma longa distância. Mas, contrariando as aparências, não se trata de mais um dos enclaves suburbanos, povoados estritamente pela elite econômica, homens deslocando-se diariamente ao centro da cidade para garantir sua riqueza. Não, esta é Princeton, Nova Jersey, sede de uma das grandes universidades do mundo, e portanto freqüentada por uma população bem mais eclética do que se afigura à primeira vista. Neste momento em que esses dois homens caminham de volta para casa por uma rua tranqüila, a população de Princeton se tornou ainda mais cosmopolita, com muitos dos melhores cérebros da Europa fugindo de Hitler. Nas palavras de um educador americano: "Hitler sacode a árvore, e eu colho 11

INCOMPLETUDE

as maçãs':' Algumas das melhores maçãs foram parar nesse pequeno recanto do mundo. Portanto, não surpreende que a língua em que os dois caminhantes conversam seja o alemão. Um dos homens, trajando um elegante paletó de linho branco que combina com seu chapéu de feltro igualmente branco, ainda está na casa dos trinta, enquanto o outro, em calças folgadas seguras por suspensórios no estilo Velho Mundo, está chegando aos setenta. Apesar da diferença de idade, parecem conversar como colegas, embora às vezes o rosto do homem mais velho se enrugue num freqüente sinal de espanto e ele acene que não com a cabeça, como se o outro acabasse de dizer algo wirklich verrükt, realmente maluco. Numa ponta da rua arborizada, na direção contrária à dos dois caminhantes, o prédio novinho em folha d o Instituto de Estudos Avançados, de tijolos vermelhos e estilo georgiano, ergue-se numa vasta área gramada. O instituto funciona há m ais de uma década, alugando um espaço no prédio gótico do Instituto de Matemática da Universidade de Princeton. Mas o influxo de cérebros europeus aumentou o prestígio do instituto, que se mudou agora para seu próprio campus espaçoso, a poucos quilômetros da universidade, com um lago e uma pequena floresta, cruzada por trilhas, onde idéias fugidias podem ser domesticadas. O Instituto de Estudos Avançados já é, no início da década de 1940, uma an omalia norte-americana, povoado por uns poucos pensadores seletos. Talvez parte da explicação da singularidade do instituto seja o fato de ter resultado das idéias visionárias de um único homem. Em 1930, o reformador educacional Abraham Flexner havia persuadido os dois herdeiros de uma loja de departamentos de Nova Jersey, Louis Bamberger e sua irmã, a sra. Felix Fuld, a criar um tipo novo de academia, dedicada à "utilidade do conhecimento inútil". Os dois magnatas do varejo, motivados pelo objetivo filantrópico, haviam vendido sua empresa à R. H. Macy and Co. p_oucas semanas antes do colapso da Bolsa de Valores. Com uma fortuna de 30 milhões de dólares, pediram 12

INTRODUÇÃO. EXILADOS

conselho a Flexner de como aplicá-la para melhorar o nível intelectual da humanidade. Flexner, filho de imigrantes do Leste Europeu, se incumbira, alguns anos antes, de denunciar a precariedade do ensino de medicina norte-americano. Em torno da virada do século, havia um excesso de faculdades de medicina concedendo diplomas que costumavam ser uma mera indicação de que o contemplado havia pagado a anuidade. Só o estado de Missouri tinha 42 faculdades de medicina; a cidade de Chicago, catorze. O relatório de Flexner, que expunha a impostura e foi publicado pela Fundação Carnegie para o Progresso do Ensino, fez diferença. Algumas das piores instituições encerraram as atividades. Os Bamberger/Fuld estavam gratos aos antigos clientes de Nova Jersey e queriam retribuir de algum jeito. A primeira idéia que tiveram foi a de criar uma faculdade de medicina, de modo que enviaram seus representantes para falar com o homem que tanto entendia de como a medicina devia ser ensinada. ( O irmão de Flexner dirigia a Faculdade de Medicina da Universidade Rockefeller, que serviu de modelo a Flexner.) Mas Flexner vinha acalentando sonhos ainda mais utópicos do que assegurar que os médicos americanos soubessem algo de medicina. Seus pensamentos sobre reforma educacional haviam decididamente se afastado das ciências aplicadas e práticas. A idéia de Flexner era criar um refúgio para os mais puros dos pensadores, concretizar a proverbial torre de marfim com tijolos vermelhos sólidos: em suma, criar o que viria a ser conhecido como o Instituto de Estudos Avançados. Ali o corpo docente escolhido a dedo seria tratado como os príncipes da Razão Pura. Receberia salários generosos (daí alguns apelidarem o lugar de "Instituto de Salários Avançados"), bem como o luxo inestimável de tempo à vontade para pensar, sem precisar preparar aulas nem corrigir provas de alunos - na verdade, totalmente liberado da presença de alunos. Em vez disso, um fluxo sempre renovado de acadêmicos mais jovens e brilhantes, que passaram a ser conheci13

INCOMPLETUDE

dos como os "membros temporários", residiriu ali por um ou dois anos, injetando o tônico revigorante de sua energia,juventude e entusiasmo no sangue dos gênios. "Aquela deveria ser uma sociedade livre formada de acadêmicos", escreveu Flexner. "Livres, porque pessoas maduras, animadas por propósitos intelectuais, devem ter liberdade para perseguir seus próprios objetivos da sua própria maneira." Ela deveria fornecer um ambiente simples, mas espaçoso, "e acima de tudo tranqüilidade- sem os distúrbios das preocupações mundanas ou da responsabilidade paternal por um corpo de estudantes imaturos". Os Bamberger/Fuld queriam originalmente localizar sua escola em Newark, Nova Jersey, mas Flexner os persuadiu de que Princeton, com suas tradições seculares de vida acadêmica e suas camadas protegidas de serenidade, seria bem mais propícia a obter os resultados desejados de gênios não tolhidos. Flexner decidiu fundamentar sua visão nos alicerces firmes da matemática, "a mais rigorosa de todas as disciplinas", em suas palavras. Os matemáticos, em certo sentido, são os acadêmicos mais distantes dos pensamentos sobre "o mundo real" - uma expressão que, nesse contexto, significa mais do que apenas o mundo prático do dia-a-dia. A expressão pretende cobrir quase tudo que existe fisicamente, fora das idéias, conceitos, teorias: o mundo da mente. Claro que o mundo da mente pode ser, e costuma ser, sobre o mundo real, mas normalmente não na matemática. Os matemáticos, em seu isolamento extremo, podem não gozar (ou sofrer) da atenção do grande público. Mas, entre os que vivem a vida da mente, eles são considerados com uma espécie de respeito especial, devido ao rigor de seus métodos e à certeza de suas conclusões, características singulares relacionadas a alguns dos motivos que os tornam em grande parte inúteis ("inútil" no sentido de que o conhecimento matemático não resulta, em si e por si, em nenhuma conseqüência prática, em nenhuma forma de mudar nossa condição material, para melhor ou para pior). O rigor e a certeza do matemático são obtidos a priori, significando que o matemático não recorre a quaisquer observações para chegar aos 14

INTRODUÇÃO. EXILADOS

seus insights matemáticos,* nem esses insights matemáticos, em si e por si, implicam observações, de modo que nada que observamos pode solapar os motivos que temos para acreditar neles. Nenhuma experiência serviria de motivo para revisarmos, por exemplo, o fato de que 5 + 7 = 12. Se acrescentássemos 5 coisas a 7 coisas e obtivéssemos 13 coisas, faríamos uma recontagem. Se mesmo após a recontagem continuássemos obtendo 13 coisas, suporíamos que uma das 12 coisas havia se dividido ou que estávamos vendo em dobro ou sonhando ou mesmo enlouquecendo. A verdade de que 5 + 7 = 12 serve para avaliar experiências de contagem, e não vice-versa. A natureza a priori da matemática é uma coisa complicada, desconcertante. É o que torna a matemática tão conclusiva, tão incorrigível: uma vez provado, um teorema está imune à revisão empírica. Em geral, conferimos à matemática uma espécie de invulnerabilidade, exatamente por ela ser a priori. No castelo altaneiro da Razão Pura, os matemáticos ocupam, supremos, a torre mais elevada, seus métodos consistindo em pensar, puro pensar. Er_a isso que Flexner tinha em mente ao considerar a disciplina deles a mais rigorosa. Apesar de sua estatura intelectual, os matemáticos são relativamente baratos de manter, exigindo, de novo nas palavras de Flexner, somente "alguns homens, alguns estudantes, algumas salas, livros, quadros-negros, giz, papel e lápis". Não é preciso nenhum laboratório caro, observatório ou equipamento pesado. Os matemáticos carregam todo o seu equipamento no crânio, o que é outra forma de dizer que a matemática é a priori. Em seu raciocínio prático, Flexner também levou em conta que a matemática é uma das poucas disciplinas em que existe uma quase unanimidade sobre quem são os melhores. Não só a mate-

* Daí não se segue que essas crenças sejam inatas, ou seja, que nascemos com elas. Obviamente, precisamos primeiro adquirir os conceitos, e a língua para expressá-los, antes que possamos vir a acreditar que 5 + 7 = 12. A idéia de inato é psicológica, enquanto a aprioricidade é um conceito epistemológico, relacionado à forma como a crença é justificada, quais são os indícios a favor e contra ela. 15

INCOMPLETUDE

mática tem a peculiaridade de chegar às suas conclusões mediante a inatacável razão a priori, como a classificação de seus praticantes reflete uma certeza quase matemática. Ao atuar não apenas como o projetista do instituto, mas também como seu primeiro diretor, Flexner saberia exatamente a quem chamar. Ele logo atenuou as exigências para permitir o ingresso dos físicos mais teóricos e dos economistas mais matemáticos e, no final de 1932, pôde anunciar triunfalmente as primeiras contratações: o próprio Oswald Veblen, de Princeton, um matemático de primeira linha, e ninguém menos que o alemão Albert Einstein, um cientista tão popular que se tornou um dos alvos preferenciais dos nazistas. As teorias revo- · lucionárias da relatividade restrita e da relatividade geral haviam sido atacadas por cientistas alemães como representantes da física patologicamente "judaica", corrompida pela paixão judaica e pela matemática abstrata. Mesmo antes de os planos genocidas entrarem em operação, o físico havia sido colocado na lista negra do Terceiro Reich. Como era de esperar, uma série de universidades estavam mais do que dispostas a abrir as portas para um refugiado tão prestigioso. Em particular, o Instituto de Tecnologia da Califórnia, em Pasadena, vinha vigorosamente tentando recrutá-lo. Mas Einstein preferiu Princeton, alguns dizem por ter sido a primeira universidade norte-americana a mostrar interesse por seu trabalho. Seus amigos, lançando os olhos cosmopolitas sobre aquele centro de estudos provinciano de Nova Jersey, lhe perguntaram: "Você está querendo se suicidar?". Mas, com sua terra natal tendo se tornado fanaticamente hostil, talvez a cordialidade prematura e duradoura de Princeton se mostrasse irresistível. Einstein pediu a Flexner um salário de 3 mil dólares, e Flexner ofereceu 16 mil. Logo a famosa cabeça com cabelos carregados de íons estava passeando pelas calçadas suburbanas, de modo que, pelo menos em uma ocasião, um carro bateu numa árvore "depois que o motorista de repente reconheceu aquele bonito velho caminhando pela rua".2 Outros luminares da Europa seguiram os passos de Einstein rumo a Nova Jersey, inclusive o incrível polímata húngaro John von Neu16

INTRODUÇÃO. EXILADOS

mann, que começaria a construir o primeiro computador do mundo no Instituto, escandalizando os membros que compartilhavam o ideal de Flexner de manter o Instituto desobrigado de qualquer trabalho "útil".* Mas foi Albert Einstein quem se imortalizou, embora ainda bastante vivo,** como a apoteose do gênio, de modo que os moradores da cidade passaram, quase desde o dia de sua chegada, a chamar o estabelecimento de Flexner de "Instituto Einstein". Sem dúvida, o mais velho dos dois caminhantes flagrados na rua arborizada que sai do instituto é ninguém menos que o habitante mais famoso de Princeton, seu rosto outra vez demonstrando um espanto zombeteiro com algo que o companheiro de caminhada acabou de propor com aparente seriedade. O homem mais jovem, um lógico matemático, reconhece a reação de Einstein mediante um sorriso fraco e forçado, mas continua deduzindo as implicações de sua idéia com precisão imperturbável. Os temas de suas conversas diárias giram em torno da física e da matemática, da filosofia e da política, e em todas essas áreas o lógico tende a dizer algo que surpreende Einstein pela originalidade, profundidade, ingenuidade ou mera estranheza. Todo o seu pensamento é regido por um "axioma interessante': como Ernst Gabor Straus, o auxiliar de Einstein de 1944 a 1947, certa vez o caracterizou. 3 Para cada fato, existe uma explicação para aquele fato ser um fato; por que tem de ser um fato. Essa convicção equivale à afirmação de que não existe contingência bruta no

* Como o primeiro empreendimento do instituto fora do domínio do puramente teórico, o projeto foi criticado como "estando no lugar errado" mesmo por membros do corpo docente que tinham em alta estima o trabalho em si, segundo o relato oficial da Escola de Matemática do Instituto. Após a morte de Von Neumann, o computador foi discretamente transferido para a Universidade de Princeton. ** Muitos contemporâneos relatam o "silêncio respeitoso" (nas palavras de Helen Dukas, ibid.) que tornava conta de uma sala de conferências ou de um seminário quando ele entrava. O filósofo Paul Benacerraf, estudante de pós-graduação em Princeton na época de Einstein, contou-me que o físico alemão às vezes costumava comparecer ao seminário semanal de filosofia das sextas-feiras, raramente falando, mas mesmo assim fazendo sentir sua presença só por ser sua presença. 17

INCOMPLETUDE

mundo, dados básicos que não precisariam ser dados. Em outras palavras, o mundo jamais, nem sequer uma vez, falará para nós do jeito como um pai exasperado falará com seu adolescente rebelde: "Quer saber por quê? Vou dizer. Porque eu disse!': O mundo sempre tem uma explicação para si, ou, nas palavras do companheiro de caminhada de Einstein: Die Welt ist vernünftig, o mundo é inteligível. As conclusões que emanam da aplicação rigorosamente sistemática deste "axioma interessante" a qualquer tema que ocorra a um lógico-da relação entre corpo e alma à política global ou à própria política local do Instituto de Estudos Avançados - costumam divergir radicalmente das opiniões do senso comum. Mas o lógico não está nem aí para essa divergência. É como se um dos costumes adquiridos de seu processo de pensamento fosse: se o raciocínio e o senso comum divergirem, então ... tanto pior para o senso comum! O que é, a longo prazo, o senso comum além de comum? O homem mais jovem é bem menos conhecido, em sua época e na nossa. No entanto, seu trabalho foi, à sua própria maneira, tão revolucionário quanto o de Einstein, a ser incluído no pequeno conjunto das descobertas mais radicais e rigorosas do século passado, todas com conseqüências que pareciam transbordar para bem além de seus campos respectivos, infiltrando-se em nossos pressupostos mais básicos. Pelo menos no campo das ciências matemáticas, o primeiro terço do século xx fez das revoluções conceituais quase um hábito. O teorema desse homem é a terceira perna, junto com o princípio da incerteza de Heisenberg e a relatividade de Einstein, do tripé de cataclismos teóricos cujas perturbações se fizeram sentir no cerne dos fundamentos das "ciências exatas': As três descobertas parecem nos levar a um mundo pouco familiar, tão contrário aos nossos pressupostos e intuições anteriores a ponto de, quase um século depois, continuarmos lutando para entender onde, exatamente, aterrissamos. A natureza arredia tanto do homem como de sua obra impede que ele atinja o status de celebridade de seu colega de caminhada de Princeton e do autor do princípio da incerteza, a essa altura da história quase certamente engajado no esforço para produzir a bomba atômica 18

INTRODUÇÃO. EXILADOS

O lógico e o físico em uma de suas caminhadas diárias de ida e volta ao Instituto de Estudos Avançados. em Princeton. FOTO DE RICHARD ARENS. CORTESIA DE AIP EMILIO SEGRÊ VISUAL ARCHIVES.

para a Alemanha nazista. O companheiro de caminhada de Einstein é um revolucionário com um rosto desconhecido. Ele é o mais famoso dentre os matemáticos dos quais você provavelmente nunca ouviu falar. Ou, caso tenha ouvido falar dele, há uma boa chance de que, embora não por culpa sua, você o associe ao tipo de idéias - subversivamente hostis aos empreendimentos da racionalidade, da objetividade e da verdade - que ele não apenas rejeitou com veemência, mas pensou ter refutado de modo conclusivo, matemático. Ele é Kurt Gõdel, e, em 1930, aos 23 anos, produzir a uma prova extraordinária na lógica matemática de algo conhecido como o teorema da incompletude - na verdade, dois teoremas da incompletude logicamente interligados. 19

INCOMPLETUDE

Ao contrário dos outros resultados matemáticos, os teoremas da incompletude de Gõdel são expressos sem o uso de números ou outros formalismos simbólicos. Embora os detalhes da prova sejam técnicos ao extremo, a estratégia geral da prova é agradavelmente simples. As duas conclusões que emergem ao final de toda a pirotecnia formal são expostas em linguagem quase comum. O artigo "Teorema de Gõdel" da Encyclopedia of philosophy começa com uma exposição clara e direta dos dois teoremas: 4 Pelo teorema de Gõdel, entende-se geralmente o seguinte enunciado: Em qualquer sistema formal adequado à teoria dos números existe uma fórmula indecidível- ou seja, uma fórmula que não pode ser provada e cuja negação também não pode. (Esse enunciado é às vezes chamado de primeiro teorema de Gõdel.) Um corolário do teorema é que a consistência de um sistema formal adequado à teoria dos números não pode ser provada dentro do sistema. (Às vezes é esse corolário que é chamado de teorema de Gõdel; também é chamado de segundo teorema de Gõdel.) Esses enunciados são generalizações formuladas um tanto vagamente a partir de resultados publicados em 1931 por Kurt Gõdel, então em Viena. ("Über formal unentscheidbare Satze der Principia Mathematica und verwandter Systeme

1': aprovado para publicação em 17 de novembro de 1930.)

Embora não transpareça a partir desse enunciado conciso, os teoremas da incompletude são extraordinários (entre outros motivos) pelo muito que têm a dizer. Pertencem ao ramo da matemática conhecido como lógica formal ou lógica matemática, um campo visto, antes da realização de Gõdel, como matematicamente suspeito.* Mas vão

* Antes que Gõdel entrasse em cena, os lógicos tendiam a ser membros de um departamento de filosofia. Simon Kochen, um lógico do departamento de matemática da Uni.versidade de Princeton, observou para mim que "Gõdel pôs a lógica no mapa matemático. Todo departamento matemático importante agora tem um representante da lógica em sua equipe. Podem ser apenas um ou dois lógicos, mas pelo menos haverá alguém" (maio de 2002). 20

INTRODUÇÃO. EXILADOS

bem além de seu domínio formal estrito, abordando questões vastas e complexas, como a natureza da verdade, do conhecimento e da certeza. Dado que nossa natureza humana está intimamente envolvida na discussão dessas questões- afinal, falar de conhecimento pressupõe falar de conhecedores-, os teoremas de Gõdel pareciam também ter coisas importantes a dizer sobre o que as nossas mentes poderiam - e não poderiam - ser. Alguns pensadores têm visto nos teoremas de Gõdel ótimos grãos para o moinho pós-moderno, pulverizando as formas velhas e absolutistas de pensar acerca da verdade, da certeza, da objetividade e da racionalidade. Um autor expressou o sentimento pós-moderno em termos vivamente escatológicos: Ele [Gõdel J é o diabo para a matemática. Após Gõdel, a idéia de que a matemática não era apenas uma linguagem de Deus, mas uma linguagem que podíamos decodificar para entender o universo e entender tudo ... isso já não funciona mais. Faz parte da grande incerteza pós-moderna em que vivemos. 5

A inevitável incompletude até de nossos sistemas formais de pensamento demonstra que não existe um fundamento sólido que sirva de base a qualquer sistema. Todas as verdades- mesmo aquelas que pareciam tão certas a ponto de serem imunes _a toda possibilidade de revisão - são essencialmente manipuladas. De fato, a própria noção da verdade objetiva é um mito socialmente construído. Nossas mentes cognoscentes não estão entranhadas na verdade. Pelo contrário, toda a noção de verdade está entranhada em nossas mentes, elas próprias os lacaios involuntários de formas organizacionais de influência. A epistemologia nada mais é que a sociologia do poder. Assim é, de certa forma, a versão pós-moderna de Gõdel. Outros pensadores argumentaram que, no tocante à natureza da mente humana, as implicações dos teoremas de Gõdel apontam para uma direção totalmente diferente. Por exemplo, Roger Penrose, em seus dois best-sellers, The emperor's new mind [A mente nova do rei] e 21

INCOMPLETUDE

Shadows of the mind [Sombras da mente], tornou os teoremas da incompletude fundamentais ao seu argumento de que nossas mentes, sejam lá o que forem, não podem ser computadores digitais. O que os teoremas de Gõdel provam, afirma, é que, mesmo em nosso pensamento mais técnico, regido por regras - ou seja, a matemática-, os processos de descoberta da verdade não podem ser reduzidos a procedimentos mecânicos programados nos computadores. Observe que o argumento de Penrose, frontalmente oposto à interpretação pós-moderna do parágrafo anterior, entende que os resultados de Gõdel deixaram o conhecimento matemático em grande parte intacto. Os teoremas de Gõdel não demonstram os limites da mente humana, e sim os limites dos modelos computacionais para a mente humana (basicamente, modelos que reduzem todo o pensamento ao "seguir regras"). Não nos deixam à deriva na incerteza pós-moderna, mas negam uma parti cu lar teoria redutiva da mente. Os teoremas de Gõdel, então, parecem ser a mais rara das criaturas: verdades matemáticas que também tratam - ainda que de forma ambígua e controvertida-da questão central das humanidades: o que está em jogo no fato de sermos humanos? Trata-se dos teoremas mais prolixos da história da matemática. Embora haja desacordo sobre quanto e o que, precisamente, eles dizem, não há dúvida de que dizem muita coisa, e o que dizem se estende para além da matemática, decerto à metamatemática e talvez até mais além. A natureza metamatemática do teorema está intimamente ligada ao fato de que a Encyclopedia of philosophy os enunciou em linguagem (mais ou menos) comum. Os conceitos de "sistema formal", "indecidível" e "consistência" podem ser semitécnicos e requerer explicação (daí o leitor não precisar se preocupar se o enunciado sucinto dos teoremas não ficou claro). Mas são conceitos metamatemáticos cuja explicação (que acabará vindo) não é dada na linguagem da matemática. As conclusões de Gõdel são teoremas matemáticos que conseguem escapar da mera matemática. Falam tanto de dentro como de fora da matemática. Eis ainda outra faceta de seu fascínio característico, faceta abordada em outro livro popular, o 22

INTRODUÇÃO. EXILADOS

livro de Douglas Hofstadter vencedor do prêmio Pulitzer, Godel, Escher, Bach: Um entrelaçamento de gênios brilhantes ( Godel, Escher, Bach: an eternal golden braid). O prefixo meta vem do grego e significa "após,,, "além,,, sugerindo um a visão de fora, por assim dizer. A metavisão de uma área cognitiva levanta perguntas do seguinte tipo: como é possível para essa área do conhecimento fazer o que está fazendo? A matemática, pela natureza sui generis - a mais rigorosa das disciplinas, usando métodos a priori para comprovar seus resultados muitas vezes espantosos, mas impecáveis-, sempre confrontou os teóricos do conhecimento ( conhecidos como "epistemologistas,,) com metaperguntas, mais especificamente a pergunta de como é possível ela fazer o que está fazendo. A certeza da matemática, a infalibilidade divina que parece conferir aos seus conhecedores, tem sido vista como um paradigma a ser imitado - se podemos fazê-lo ali, façamos em outras disciplinas* - e também como um enigma sobre o qual refletir: como podemos fazê-lo, ali ou em qualquer disciplina? De que maneira criaturas como nós, produtos de um processo cego de evolução, conseguem atingir qualquer tipo de infalibilidade? Para ajudar a entender esse enigma, lembremos uma observação famosa de Groucho Marx, de que ele jamais seria sócio de um clube que o aceitasse como sócio. De forma semelhante, algumas pessoas reclamaram que, se a matemática é realmente tão segura, como pode ser conhecida por seres como nós? Como podemos ter sido aceitos num clube cognitivo tão fechado? Metaperguntas sobre um campo, digamos, sobre ciência ou matemática ou direito, não costumam ser perguntas contidas naquele pró-

* Essa epistemologia utopista caracteriza os racionalistas do século xvn: René Descartes (1596-1650), Benedictus Spinoza (1632-77) e Gottfried Wilhelm Leibniz (16461716). Spinoza e Leibniz, em particular, acreditavam ser possível apoderar-se dos padrões e métodos dos matemáticos e generalizá-los, de modo a responder a todas as nossas indagações: científicas, éticas, até teológicas. Aí, quando surgissem divergências teológicas do tipo que provoca guerras longas e sangrentas, os homens racionais poderiam responder: "Venham, vamos deduzir a priori". 23

INCOMPLETUDE

prio campo; não são, respectivamente, científicas ou matemáticas ou jurídicas. Pelo contrário, são classificadas como perguntas filosóficas, residindo, respectivamente, na filosofia da ciência, da matemática ou do direito. Os teoremas de Gõdel são exceções espetaculares a essa regra geral. Eles são ao mesmo tempo matemáticos e metamatemáticos. Têm todo o rigor de algo provado a priori, mas estabelecem uma metacon clusão. É como se alguém tivesse pintado um quadro que consegue responder às perguntas básicas da estética: uma paisagem ou um retrato que representa a natureza geral da beleza e talvez até explique por que ela nos comove tanto. É extraordinário que um resultado matemático tenha algo a dizer sobre a natureza da verdade matemática em geral. Os dois teoremas de Gõdel tratam da própria questão que sempre distinguiu a matemática: a certeza, a incorrigibilidade, a aprioricidade. Será que os teoremas nos expulsam do clube cognitivo mais fechado em epistemologia, solapando nossa pretensão de sermos capazes de atingir, pelo menos na área da matemática, a certeza perfeita? Ou com os teoremas continuamos membros com boa reputação? O próprio Gõdel, como veremos, tinha convicções fortes sobre essa metapergunta, que divergiam bastante das interpretações geralmente associadas ao seu trabalho. Para Gõdel e Einstein, as meta perguntas de como a física e a matemática, respectivamente, devem ser interpretadas - o que essas poderosas formas de conhecimento realmente fazem e como o fazem -são centrais ao seu trabalho técnico. Einstein também nutria metaconvicções fortíssimas no tocante à física. Mais especificamente, as metaconvicções de Einstein e Gõdel estavam voltadas para cogitações acerca de seus respectivos campos serem descrições de uma realidade objetiva - que existe a despeito de a imaginarmos - ou, pelo contrário, projeções humanas subjetivas, constructos intelectuais socialmente compartilhados. A ênfase que cada um deles punha nessas metaperguntas era, em si, suficiente para distingui-los da maioria dos profissionais de seus campos respectivos. Não apenas aqueles dois homens estavam central24

INTRODUÇÃO . EXILADOS

mente interessados no metanível, mas, de forma ainda mais incomum, queriam que seu trabalho técnico lançasse uma metaluz. Gõdel, na verdade, adquirira a ambição, ainda quando graduando na Universidade de Viena, de se dedicar somente ao tipo de matemática com implicações filosóficas mais amplas. Esse é um objetivo de fato intimidador, em certo sentido historicamente ambicioso; e um dos aspectos mais espantosos de sua história é que ele conseguiu atingi-lo. Essa ambição intimidadora, que ele preservou pela vida afora, pode ter limitado sua produção, mas também garantiu que o que ele realizasse fosse profundo. Einstein, embora não tão rigoroso consigo mesmo como Gõdel, mesmo assim cdmpartilhava a convicção de que uma ciência de qualidade nunca perde de vista as questões filosóficas mais amplas: ''A ciência sem epistemologia é-na medida em que seja concebível-primitiva e confusa". 6 A amizade entre Einstein e Gõdel ainda é objeto de lendas e especulação. Diariamente, os dois homens faziam o percurso de ida e volta ao instituto, e outros os observavam com curiosidade, intrigados por terem tanto a dizer um ao outro. Ernst Gabar Straus, por exemplo, escreveu: Nenhuma história de Einstein em Princeton seria completa sem mencionar sua amizade realmente calorosa e muito íntima com Kurt Gõdel. Eram pessoas muito, muito diferentes, mas por algum motivo entendiam um ao outro e se gostavam bastante. Einstein muitas vezes mencionava que sentia que não deveria tornar-se um matemático, porque a abundância de problemas interessantes e atraentes era tamanha que você poderia se perder neles sem jamais alcançar algo de real importância. Na física, ele conseguia ver quais eram os problemas importantes e podia, por força de seu caráter e teimosia, perseguilos. Mas ele me contou certa vez: ''Agora que conheci Gõdel, sei que a mesma coisa existe em matemática". Claro que Gõdel tinha um axioma interessante através do qual via o mundo, a saber: nada que acontece nele se deve ao acaso ou à estupidez. Se você realmente levar esse axioma a sério, todas as teorias estranhas em que Gõdel acreditava se tornam absolutamente necessárias. Tentei várias vezes desafiá-lo, mas não havia saída. Quer dizer, a partir dos axiomas 25

INCOMPLETUDE

de Gõdel todas eram inferidas. Einstein de fato não se importava com aquilo, achava até divertido. A não ser da última vez em que o vimos em 1953, quando disse: "Veja bem, Gõdel está totalmente maluco". Ao que perguntei: "Bem, o que ele fez de tão ruim?". Einstein respondeu: "Ele votou em Eisenhower". 7

A linguagem de Straus indica certa perplexidade quanto ao que os dois homens viam um no outro; em particular, o que o físico sagaz poderia ter visto no lógico neurótico. Einstein, escreveu Straus, era "gregário, feliz, cheio de riso e sensatez". Gõdel, por outro lado, era "solene ao extremo, muito sério, totalmente solitário e desconfiado da sensatez como meio de chegar à verdade". O Einstein da lenda - com seus cabelos revoltos e sua distração, com a defesa quixotesca de um governo mundial e outras causas perdidas não costuma ser retratado como um sujeito astuto e cosmopolita, mas, comparado a Gõdel, ele era. Quase todos em Princeton, mesmo seus colegas matemáticos, achavam impossível conversar com Gõdel, seu "axioma interessante" complicando exponencialmente qualquer discussão e decisão prática. Como escreveu o matemático Armand Borel em sua história da Escola de Matemática do Instituto, ele e os outros às vezes"achavamalógicado sucessordeAristóteles [... ] um tanto desconcertante". 8 Os matemáticos acabaram resolvendo o problema em relação a Gõdel banindo-o das reuniões, criando um departamento só para ele: o único tomador de decisões estritamente relacionadas à lógica. Embora a população de Princeton estivesse acostumada com tipos excêntricos e a não olhar desconfiada para espécimes desgrenhados fitando de modo inexpressivo (pelo menos aparentemente) além do espaço-tempo, Kurt Gõdel deu a quase todos a impressão de estranhíssimo, sendo quase impossível conversar com ele. Discreto, quando falava, tendia a dizer coisas para as quais não havia resposta possível. John Bahcall era um astrofísico jovem e promissor quando foi apresentado a Gõdel num pequeno jantar do instituto. Identificou-se como físico, ao que Gõdel respondeu, lacônico: "Não acredito na ciência natural". 9 26

INTRODUÇÃO. EXILADOS

O filósofo Thomas Nagel lembra-se de ter sentado ao lado de Gõdel num pequeno jantar comemorativo no instituto e ter discutido com ele o problema da mente-corpo, um velho enigma filosófico que os dois homens haviam tentado solucionar. Nagel comentou com Gõdel que sua visão dualista extrema (segundo a qual almas e corpos têm existências totalmente separadas, ligando-se mutuamente no nascimento em uma espécie de parceria que é desfeita com a morte) parecia difícil de conciliar com a teoria da evolução. Gõdel confirmou sua descrença na evolução e culminou com a observação, como se ela reforçasse ainda mais sua rejeição ao darwinismo: "Você sabe que Stálin tampouco acreditava na evolução, e ele era um homem bem inteligente': "Depois daquilo", Nagel me contou com um discreto sorriso, "simplesmente desisti."* 10 O lingüista Noam Chomsky também conta que foi detido em seu percurso lingüístico pelo lógico. Chomsky perguntou o que ele vinha estudando, e recebeu uma resposta que provavelmente ninguém desde Leibniz, no século xvn, tinha dado: "Estou tentando provar que as leis da natureza são a priori". 11 Três mentes magníficas, tão à vontade no mundo das idéias puras como ninguém neste planeta, mas com histórias (e existem outras) de impasses insolúveis ao discutir idéias com Gõdel. Einstein também, nas suas caminhadas diárias de ida e volta ao instituto, deparou com exemplos das estranhas intuições de Gõdel e seu profundo "antiempirismo". Mesmo assim, Einstein sistematicamente

*A hostilidade de Gõdel à teoria da evolução torna-se compreensível à medida que se entende melhor a mente dele. Um racionalista como Gõdel deseja remover o acaso e a aleatoriedade, enquanto a seleção natural invoca a aleatoriedade e a contingência como fatores explanatórios fundamentais . No nível da microevolução (mudanças de geração para geração), a teoria concede um papel central à mutação e recombinação aleatórias. No nível da m acroevolução (padrões na história da vida), concede um papel central à contingência histórica, como os caprichos da geologia e do clima, ou eventos casuais como o choque de um meteorito com a Terra, encobrindo o Sol, exterminando os dinossauros e, assim, permitindo a mamíferos semelhantes a ratos habitar os nichos ecológicos vagos. (Sou grata a Steven Pinker por essas informações.) 27

INCOMPLETUDE

buscava a companhia do lógico. De fato, o economista Oskar Morgenstern, * que conhecia Gõdel da época de Viena, confidenciou numa carta: Einstein me contou várias vezes que, nos últimos anos de vida, procurava constantemente a companhia de Gõdel, a fim de ter discussões com ele. Certa vez, ele me disse que seu próprio trabalho já não significava muito, que ele viera ao instituto meramente um das Privileg zu haben, mit Godel zu Fuss nach Hause gehen

zu dü1fen [ou seja, para ter o privilégio de caminhar para casa com Gõdel]. 12

Apesar do interesse em comum pelo metanível de seus campos respectivos, a confissão de devoção de Einstein soa extravagante. De sua parte, as cartas de Gõdel à mãe, Marianne, que permaneceu na Europa (uma correspondência que lança certa luz sobre sua vida até a morte dela, em 1966), estão cheias de referências a Einstein. Se Einstein, nos últimos anos de vida, ia ao instituto pelo simples privilégio de voltar para casa com Gõdel, para Gõdel não havia ninguém mais no mundo todo com quem conversar, pelo menos não da forma como ele costumava conversar com Einstein (uma exclusividade que se torna ainda mais pungente quando lembramos que Gõdel era casado). Tanto que, por exemplo, em 4 de julho de 194 7, em carta à mãe ele escreveu que Einstein recebera ordens médicas de permanecer em repouso. ((Portanto estou agora totalmente solitário e quase não falo com ninguém em particular." Aos que observavam sua sólida amizade, aquele era, e continua sendo, um pequeno mistério. "Eu costumava vê-los percorrendo o caminho de Fuld Hall a Olden Farm todo dia", contou-me o suíço Armand Borel, que chegou ao instituto pouco depois de Gõdel, quando me sentei no seu escritório. "Não sei sobre o que falavam. Pro-

*Morgenstern também fugira da Áustria ocupada pelos nazistas para o instituto. Embora fosse economista, seu trabalho era matemático o bastante - ele é um dos criadores, com Von Neumann, da teoria dos jogos-para permitir seu ingresso no Instituto de Flexner. 28

INTRODUÇÃO. EXILADOS

vavelmente sobre física, porque Gõdel também se interessava por física, veja bem.* Eles não queriam falar com mais ninguém. Eles só queriam falar um com o outro", concluiu, com um dar de ombros. Para entendermos a relação entre Einstein e Gõdel e o que há por trás da observação cismada de Straus de que "de algum modo, eles entendiam muito bem um ao outro", não podemos nos contentar com a explicação simplista de que aqueles dois homens formavam um par intelectual, constituindo, nas palavras do lógico Hao Wang, uma <<
*Godel produziu uma solução bem original para as equações de campo da relatividade geral de Einstein, como uma surpresa para o aniversário de setenta anos de Einstein. Na solução de Godel, o tempo é cíclico. Ver capítulo 4. ** Hao Wang ( 1921-95), lógico da Universidade Rockefeller, dedicou-se a compreender as idéias de Gódel sobre tudo, da natureza da intuição matemática à transmigração das almas, e produziu três livros com base no material coletado. 29

INCOMPLETUDE

sertação de doutorado. Os resultados de Gõdel (também em número de três, embora o primeiro teorema da incompletude ofusque todo o resto)* haviam sido obtidos três anos antes de chegar àquela idade. Mais importante do que esse detalhe autobiográfico compartilhado é o fato de que os dois haviam flertado, numa idade ainda mais prematura, com a idéia de ingressar no campo que o outro escolhera. Gõdel entrara na Universidade de Viena com a intenção de estudar física. Einstein pensara inicialmente em se tornar matemático. Em certo sentido, cada um viu no outro o que ele próprio poderia ter se tornado se sua opção tivesse sido diferente, e havia sem dúvida certo fascínio nisso. Mesmo assim, existem outros fatores que unem os dois. Gostaria de propor que o motivo da compreensão e apreço profundos entre aquelas duas "pessoas muito, muito diferentes" repousa no nível mais profundo de suas idéias revolucionárias. Eles eram companheiros no sentido mais profundo em que pensadores podem ser companheiros. Os dois homens estavam comprometidos com uma compreensão da realidade, e de seu próprio trabalho em relação àquela realidade, que os colocava em conflito doloroso com a comunidade internacional de pensadores. Cada um tendo apresentado resultados tão singularmente transformadores que seus respectivos campos foram forçados a se reformular para abrigar aqueles resultados, a última coisa que Einstein e Gõdel teriam sentido era serem marginalizados. Sentimentos de alienação, descontentamento, isolamento são para os não-influentes e fracassados. Mas eles se sentiam, sim, descontentes e até rejeitados e, além do mais, descontentes e rejeitados de formas profundamente semelhantes: no metanível de seus campos, o nível em que você interpreta o que tudo aquilo significa. Existe um sentido, ao menos pelo que detectei ao tentar penetrar no âmago de uma amizade que desconcertou os observadores, em que

* Suas outras duas realizações de 1929-30 foram o segundo teorema da incompletude e a prova da completude do cálculo de predicados. 30

INTRODUÇÃO. EXILADOS

Einstein e Gõdel foram colegas de exílio dentro de um exílio maior, sentido que vai bem além das condições geopolíticas que fizeram com que buscassem a segurança de Princeton, Nova Jersey. Acredito que foram colegas de exílio no sentido mais profundo em que é possível um pensador estar exilado. Por mais estranho que pareça para homens tão celebrados por suas contribuições, eles eram exilados intelectuais. Para compreender plenamente a sensação de isolamento compartilhada por eles, que permitiu a força coesiva de sua amizade famosa, será necessário examinar as metaconvicções que os alienaram dos colegas. Como deveríamos interpretar, em termos das questões filosóficas mais amplas, a teoria da relatividade de Einstein e os teoremas da incompletude de Gõdel? Como os autores dessas obras-primas do pensamento humano as interpretaram, e como os outros o fizeram? Teoremas da incompletude de Gõdel. Teorias da relatividade de Einstein. Princípio da incerteza de Heisenberg. Os próprios nomes são irresistivelmente sugestivos, parecendo injetar o elemento humano mais impreciso nas ciências exatas, parecendo, até, sugerir que o elemento humano prevalece sobre aqueles sistemas ultraprecisos - a matemática e-a física teórica - , manchando-os com a nossa própria imprecisão e subjetividade. d primado da subjetividade sobre a objetividade - dos modos de raciocínio do tipo "as-coisas-são-como-aspensamos" ou "o-homem-é-a-medida-de-todas-as-coisas" - é uma linha de pensamento decisiva, até dominante, na vida intelectual e cultural do século xx. Os trabalhos de Gõdel e Einstein - reconhecidos por todos como revolucionários e batizados com aqueles nomes sugestivos - costumam ser agrupados, junto com o princípio da incerteza de Heisenberg, entre os motivos mais fortes da rejeição, pelo pensamento moderno, do "mito da objetividade". A interpretação desse trio faz parte da mitologia moderna- ou melhor, pós-moderna. Assim, por exemplo, na aclamada peça de 1998 Copenhague, o dramaturgo Michael Frayn não apenas apresenta corretamente os físicos Niels Bohr e Werner Heisenberg rejeitando a idéia de que a física é descritiva de uma realidade física objetiva, mas também identifica, erro31

INCOMPLETUDE

neamente, a teoria da relatividade de Einstein como o primeiro passo da física moderna na direção daquela rejeição derradeira: Bohr: Ela [a mecânica quântica] funciona, sim. Mas isso não é o mais importante. Porque você vê o que fizemos nesses três anos, Heisenberg? Sem exagero, viramos o mundo pelo avesso. Sim, escute, é agora que vem a parte importante. [... ] Trouxemos o homem de volta ao centro do universo. Ao longo da história, vivemos nos achando deslocados. Vivemos nos exilando para a periferia das coisas. Primeiro, nos transformamos num mero acessório dos propósitos incognoscíveis de Deus. Figuras minúsculas ajoelhando na grande catedral da criação. E assim que nos recuperamos, no Renascimento, assim que o homem se tornou, como anunciara Protágoras, a medida de todas as coisas, fomos jogados de novo para escanteio pelos produtos de nosso raciocínio! Somos de novo apequenados à medida que os físicos constroem as novas catedrais para contemplarmos - as leis da mecânica clássica que nos antecedem desde o início da eternidade e que sobreviverão a nós até o fim da eternidade, que existem quer existamos ou não. Até chegarmos ao início do século xx, quando somos subitamente forçados a nos erguer de nossa posição ajoelhada. Heisenberg: A coisa começa com Einstein. Bohr: A coisa começa com Einstein. Ele mostra que a medição - a medição de que depende toda a possibilidade da ciência-, a medição não é um evento impessoal que ocorre com universalidade imparcial. É um ato humano, realizado de um ponto de vista específico no tempo e no espaço, do ponto de vista específico de um observador possível. Depois, aqui em Copenhague, naqueles três anos em meados da década de 1920, nós descobrimos que não existe um universo objetivo precisamente determinável. Que o universo só existe como uma série de aproximações. Só dentro dos limites determinados por nossa relação com ele. Só pela compreensão alojada dentro da cabeça humana. 14

À semelhança da teoria da relatividade de Einstein, os teoremas da incompletude de Gõdel têm sido vistos em lugar de destaque na revolta intelectual do século xx contra a objetividade e a racionalidade. Por exemplo, numa obra popular de filosofia escrita por William Barrett, 32

INTRODUÇÃO. EXILADOS

Irrational man: A study in existentialist philosophy, publicada em 1962, quando Gõdel ainda estava vivo (e que tive de ler no verão anterior ao meu ingresso na faculdade), Gõdel é situado junto com pensadores como Martin Heidegger (1889-1976) e Friedrich Nietzsche (18441900), destruidores de nossas ilusões de racionalidade e objetividade: As descobertas de Gõdel parecem ter conseqüências ainda mais abrangentes [do que a Incerteza de Heisenberg e a Complementaridade de Bohr], quando se considera que, na tradição ocidental, a partir dos pitagóricos e Platão, a matemática como o próprio modelo da inteligibilidade tem sido a cidadela central do racionalismo. Agora se descobre que mesmo em sua ciência mais precisa - no domínio em que sua razão parecia onipotente - o homem não consegue escapar de sua finitude essencial; todo sistema de matemática que ele constrói está fadado à incompletude. Gõdel mostrou que a matemática tem problemas insolúveis, daí nunca poder ser formalizada em qualquer sistema completo. [... ] Os matemáticos agora sabem que nunca conseguirão atingir a base absoluta; na verdade, não existe uma base absoluta, já que a matemática não tem uma realidade auto-subsistente independente da atividade humana realizada pelos matemáticos. 15

Barrett enuncia corretamente o (primeiro) teorema da incompletude, de que a matemática jamais pode ser formalizada em qualquer sistema completo. E a conclusão filosófica que extrai está de acordo com as tendências intelectuais mais em voga no século XX. Portanto, o leitor se surpreenderá ao saber que o próprio Gõdel jamais fez tal inferência. Na verdade, se eliminarmos o "não" antes de "realidade autosubsistente" chegaremos a um enunciado mais exato da visão metamatemática do próprio Gõdel, a visão que inspirou todo o seu trabalho matemático, inclusive seus famosos teoremas da incompletude. Apesar de os gurus intelectuais terem interpretado Godel como sintonizado com a grande revolta contra a objetividade e a racionalidade que caracterizam grande parte do pensamento do século xx, não foi dessa maneira que o próprio Gõdel interpretou seus resultados revolu33

INCOMPLETUDE

cionários. Exatamente o mesmo pode ser dito de Einstein. Ambos os homens acreditavam firmemente na objetividade e interpretavam seus próprios trabalhos mais famosos como respaldo a essa posição cada vez mais impopular. Embora tantos de seus colegas intelectuais tenham dado a virada subjetivista - citando as grandes realizações da teoria da relatividade e dos teoremas da incompletude como indicadores daquela direção-, Einstein e Gõdel não o fizeram. Tanto Einstein como Gõdel estão totalmente distantes de apoiar o antigo princípio sofista de que "o homem é a medida de todas as coisas': Para ambos, a metodologia de seus campos respectivos - as misturas complexas de raciocínio, incluindo intuição e dedução (e, no caso da física, que não é a priori, também observação) - não consiste em conjuntos arbitrários de regras que regem um jogo mental ou jogo de linguagem artificial e elaborado, que poderia ter sido igualmente jogado com outro conjunto de regras, levando a uma construção totalmente diferente da realidade. Não; para ambos os pensadores, essas são as regras que levam nossas mentes além das limitações da experiência pessoal para ganhar acesso a aspectos da realidade impossíveis de conhecer de outra forma. O profundo isolamento de Einstein em relação aos colegas cientistas é tão conhecido (embora pouco entendido) como quase todos os outros aspectos de sua vida célebre. Costuma ser explicado como resultante de sua recusa obstinada em aceitar o avanço revolucionário da mecânica quântica, em particular da sua natureza fundamentalmente estocástica, da qual o elemento de puro acaso não consegue ser extirpado. A história familiar que se costuma contar é que, tendo realizado sua própria revolução conceitua! quando jovem com suas teorias da relatividade, tanto restrita como geral, ele se acomodou, como é costume dos homens mais velhos, numa mentalidade conservadora, incapaz de aceitar as revoluções da geração seguinte, ainda que essas revoluções posteriores fossem as extensões lógicas de suas próprias. Essa versão da história de Einstein também faz parte da mitologia intelectual do século xx. 34

INTRODUÇÃO. EXILADOS

No entanto, ela não é exata. O núcleo da alienação científica de Einstein é sua rejeição da virada subjetivista, que, segundo o personagem do dramaturgo, "começa com Einstein". Einstein não entendeu sua teoria da relatividade como um indicador para a interpretação subjetivista da física, e sim para a direção totalmente oposta. "Relatividade", no contexto da teoria de Einstein, significa algo bem mais técnico e restrito do que dizer que a medição (e, portanto, tudo) é relativa aos pontos de vista humanos.* Para Einstein, ter seguido homens como Werner Heisenberg e Niels Bohr na direção da subjetividade teria sido negar o que ele considerava as metaimplicações mais fundamentais da teoria da relatividade. Einstein interpretava sua teoria como representação da natureza objetiva do espaço-tempo, bem diferente de nosso ponto de vista subjetivo, humano, do espaço e tempo.** Longe de nos devolver ao centro do universo, descrevendo tudo como relativo ao nosso ponto de vista experiencial, a teoria de Einstein, expressa em termos belamente matemáticos, oferece um vislumbre de uma realidade física surpreendente. E é surpreendente porque difere totalmente do que nos é dado por nossa apreensão experimental dela.

* As medições de propriedades como comprimento são, de acordo com a relatividade restrita, relativas a um sistema de coordenadas ou sistema de referência específico. Mas reduzir esses termos técnicos - sistema de coordenadas, sistema de referência - à idéia de pontos de vista humanos é, digamos, absurdo. Temos a opção de diferentes sistemas de coordenadas para descrever o movimento de algo, e, de acordo com a teoria da relatividade, todos os sistemas de coordenadas são iguais; nenhum é privilegiado. Em um sistema de coordenadas, um "observador" (que não precisa sequer ser uma entidade consciente e, portanto, não precisa estar de fato observando, nem mesmo ser capaz de observar algo) estará em repouso; em outro, ele estará se movendo. Costuma ser natural, embora não obrigatório, escolher um sistema de coordenadas em relação ao qual um observador específico está em repouso. Portanto, costuma ser natural (embora não obrigatório) escolher o sistema de coordenadas em que a Terra, por exemplo, está em repouso. O movimento de todos nós, terráqueos, com nosso sem-número de pontos de vista subjetivos, seria então descrito em relação a um sistema de coordenadas, no qual a Terra está em repouso. ** Na teoria da relatividade, por exemplo, o tempo não flui, mas é, como a quarta dimensão, tão estático como o espaço. Em nítido contraste, o mais drástico (e pungente) aspecto de nossa experiência do tempo é seu movimento incessante e unidirecional, que nos leva para longe do passado em direção ao futuro. 35

INCOMPLETUDE

Einstein às vezes fala da realidade objetiva como o que está "lá fora", e nas ''Notas autobiográficas" que forneceu, com seu bom humor autodepreciativo típico, ao Festschrift que P. A. Schilpp publicou em homenagem ao aniversário de setenta anos do físico,* ele explicitamente identifica sua crença nessa realidade como o centro espiritual de sua vida como cientista: Está bastante claro para mim que o paraíso religioso da juventude, assim perdido, foi uma primeira tentativa de me libertar do "meramente pessoal", de uma existência dominada por desejos, esperanças e sentimentos primitivos. Lá fora havia esse mundo im enso, que existe a despeito de nós, seres humanos, e que se acha diante de nós, qual enorme e eterno enigma, ao menos parcialmente acessível ao nosso exame e pensamento. A contemplação desse mundo acenava para uma nova forma de libertação. [... ] A compreensão mental desse mundo extrapessoal, dentro das possibilidades existentes, se afigurou à minha imaginação, em parte consciente e, em parte, inconscientemente, como o objetivo supremo. [... ] O caminho para esse paraíso não era tão tranqüilo e sedutor como o caminho para o paraíso religioso; mas provou ser confiável, e eu nunca me arrependi de minha escolha. 16

Esse é um enunciado eloqüente do credo de Einstein como cientista, e nada poderia divergir mais dos sentimentos de quase todos os outros físicos proeminentes de seu círculo.** Einstein entendia como atividade da física descobrir teorias que ofereçam um vislumbre da natureza objetiva que se acha "lá fora", atrás de nossas experiências.Werner Heisenberg,

* "Aqui estou para escrever, com a idade de 67 anos, algo semelhante ao meu próprio obituário. Faço isso não apenas porque o dr. Schilpp me persuadiu a fazê-lo; mas porque, na verdade, acredito que é bom mostrar aos que se empenham ao nosso lado como o empenho e o rigor parecem em retrospecto." (Schilpp, p. 3) ** Contrastemos essas palavras, por exemplo, com a afirmação de Werner Heisenberg: "A idéia de um mundo real objetivo cujas mínimas partes existem objetivamente no mesmo sentido em que pedras ou árvores existem, a despeito de serem observadas ou não[ ... ] é impossível". 36

INTRODUÇÃO. EXILADOS

junto com homens como o dinamarquês Niels Bohr e o alemão Max.Bom (os maiores defensores da interpretação de Copenhague da mecânica quântica), rejeitam essa visão em nome de um movimento intelectual conhecido como <<positivismo", segundo o qual qualquer tentativa de ir além de nossa experiência resulta em um completo contra-senso. Teremos a oportunidade de examinar mais detidamente o positivismo no próximo capítulo, quando passarmos de Princeton, Nova Jersey, para Viena, Áustria, e examinarmos as circunstâncias que produziram, quase como um ato de suprema rebelião intelectual contra os positivistas, os dois teoremas da incompletude de Gõdel. O positivismo, especialmente como passou a ser defendido pelo grupo de cientistas,' matemáticos e físicos do famoso Círculo de Viena, sob a forte influência do carismático filósofo vienense Ludwig Wittgenstein, é uma teoria do significado rigorosa que lança mão liberalmente da expressão sem sentido. Em particular, ele tacha de sem sentido qualquer proposição descritiva* que não possa, em princípio, ser verificada pelo conteúdo de nossa experiência. O significado de uma proposição é dado pelo meio de verificá-la empiricamente (o critério verificacionista do significado). Gõdel, assim como Einstein, está comprometido com a possibilidade de ir além das nossas experiências, ultrapassando os positivistas, para descrever o mundo «lá fora". Só que, como o campo de Gõdel é a matemática, o «lá fora" em que ele está interessado é o domínio da realidade abstrata. Seu compromisso com a existência objetiva da realidade matemática é a visão conhecida como realismo conceitua! ou matemático. É também conhecida como platonismo matemático, em

* Por proposição descritiva entende-se uma proposição que não seja verdadeira (ou falsa) em virtude apenas de seu significado. As proposições cujo valor de verdade (verdade ou falsidade) é uma função apenas de seu significado são chamadas de "analíticas" ou, às vezes, "triviais". Assim, por exemplo, "todas as pessoas bilíngües falam pelo menos duas línguas" é analítica. Uma proposição que seja, por outro lado, descritiva não é verdadeira ou falsa apenas em virtude de seu significado, mas também em virtude dos fatos. Assim, a proposição "eu sou bilíngüe" é falsa em virtude de seu significado e dos fatos. 37

INCOMPLETUDE

homenagem ao filósofo grego antigo cuja própria metafísica foi uma rejeição veemente da crença do sofista Protágoras de que "o homem é a medida de todas as coisas". O platonismo é a visão de que as verdades da matemática são independentes de quaisquer atividades humanas, como a construção de sistemas formais - com seus axiomas, definições, regras de inferência e provas. As verdades da matemática são determinadas, de acordo com o platonismo, pela realidade da matemática, pela natureza das entidades reais, embora abstratas (números, conjuntos etc.), que constituem aquela realidade. A estrutura, digamos, dos números naturais (que são os velhos e regulares números de contagem: l, 2, 3 etc.) existe independente de nós, de acordo com o realista matemático, assim como a estrutura do espaço-tempo, de acordo com o realista físico. E as propriedades dos números 4 e 25 - de que, por exemplo, um é par, o outro é ímpar e ambos são quadrados perfeitos - são tão objetivas como, de acordo com o realista físico, as propriedades físicas da luz e da gravidade. Para Gõdel, a matemática é um meio de revelar as características da realidade matemática objetiva, assim como para Einstein a física é um meio de revelar aspectos da realidade física objetiva. A compreensão de Gõdel do que estamos fazendo quando praticamos matemática poderia ser expressa em palavras que ecoam o credo de Einstein: "Lá fora há esse m undo imenso, que existe a despeito de nós, seres humanos, e que se acha diante de nós, qual enorme e eterno enigma, ao menos parcialmente acessível ao nosso exame e pensamento". Só que aqui o "lá fora" deve ser compreendido como ainda mais distante do sujeito da experiência, com seu ponto de vista tipicamente humano. O "lá fora" está além do espaço-tempo físico; é uma realidade de abstração pura, de verdades universais e necessárias, e nossa faculdade de raciocínio a priori proporciona-misteriosamente-os meios de acessar esse derradeiro "lá fora", de obter pelo menos vislumbres parciais do que poderia ser chamado de "realidade extrema". O platonismo matemático de Gõdel não era, em si, incomum. Muitos matemáticos foram realistas; e mesmo aqueles que não se intitulam como 38

INTRODUÇÃO. EXILADOS

tais, quando postos contra a parede e questionados sobre sua posição metamatemática, resvalarão sem perceber no realismo ao falarem de seu trabalho como suas«descobertas':* G. H. Hardy (1877-1947), um destacado matemático inglês, expressou as próprias convicções platônicas em seu clássico A mathematician's apology [Apologia de um matemático]: Acredito que a realidade matemática reside fora de nós, que nossa função é descobri-la ou observá-la, e que os teoremas que provamos, e que descrevemos grandiloqüentemente como nossas "criações", não passam de anotações de nossas observações. Essa visão foi defendida, de uma forma ou de outra, por m u itos filósofos renomados, de Platão em diante, e usarei a linguagem que é natural a um homem que a defenda. [... ] Essa visão realista é muito mais plausível em relação à realidade matemática do que à física, porque os objetos matemáticos são bem semelhantes ao que . parecem. Uma cadeira ou uma estrela são bem diferentes do que parecem ser; quanto mais pensamos nelas, mais indistintos se tornam os seus contornos na bruma da sensação circundante; mas "2" ou "317" não têm nada a ver com a sensação, e suas propriedades se destacam mais claramente quanto mais perto os examinamos. Pode ser que a física moderna se encaixe melhor na estrutura da filosofia idealista -

não acredito nisso, mas existem físicos eminentes que

dizem isso. A matemática pura, por outro lado, parece-me uma rocha onde todo idealismo soçobra: 317 é primo, não porque pensamos assim, ou porque nossas mentes são constituídas dessa ou daquela maneira, mas porque é assim, porque a realidade matemática está estruturada desta maneira.**

* É interessante que isso se aplique até a David Hilbert, cujo formalismo se opunha frontalmente ao platonismo (ver capítulo 2). ** As circunstâncias da redação do clássico de Hardy são tão comoventes quanto incomuns. Hardy perdera a criatividade matemática, o que tende a acontecer com matemáticos relativamente jovens. Um matemático de quarenta anos provavelmente já viveu seus melhores anos, razão por que o prêmio mais prestigioso para matemáticos (não existe prêmio Nobel de matemática), a Medalha Fields, é concedido a alguém com até quarenta anos. Hardytentou o suicídio, sobreviveu à tentativa, e foi persuadido por C. P. Snow a escrever um livro explicando a vida de um matemático. O resultado, A mathematician's apology, é incomparável. Logo após terminá-lo, Hardy voltou a tentar o suicídio, dessa vez com sucesso. 39

INCOMPLETUDE

Os quase três milênios desde Platão nos deram uma profusão de matemática nova e surpreendente, mas não muitos motivos novos para acreditarmos no platonismo além daqueles do próprio filósofo grego. Um matemático após o outro tem atestado, como Hardy, sua convicção platônica ao dizer que está descobrindo, e não criando, verdades matemáticas. Todavia, atestar é quase tudo que conseguimos fazer... até Gõdel. A audaciosa ambição de Gõdel de atingir uma conclusão matemática que fosse, ao mesmo tempo, um resultado metamatemático comprovador do realismo matemático foi precisamente o que produziu seus teoremas da incompletude. A visão metamatemática de Gõdel, sua afirmação da existência objetiva e independente da realidade matemática, constitui talvez a essência de sua vida, o que equivale a dizer que ele foi um homem bem estranho. Sua perspectiva filosófica não foi uma expressão de sua matemática; sua matemática foi uma expressão de sua perspectiva filosófica, de seu platonismo, portanto, a expressão mais profunda dele próprio. O fato de sua obra, como a de Einstein, ter sido interpretada não apenas como condizente com a revolta contra a antiobjetividade, mas como uma de suas forças propulsaras mais poderosas, constitui uma ironia. Einstein teve a sorte, nos últimos anos de vida, de contar com uma alma filosófica gêmea, ainda que tão instável e estranha como Gõdel, para atenuar a sensação de exílio. As palavras de Einstein citadas por Morgenstern, de que, em seus últimos anos, ele ia ao escritório do instituto somente para ter o privilégio de voltar para casa com Gõdel, tornam-se, nas sutilezas da metaluz, menos surpreendentes. Após a morte de Einstein, em 1955, a sensação de exílio intelectual de Gõdel aumentou. Sua identificação mais profunda era com o superracionalista Leibniz, morto havia trezentos anos. As explicações a que o lógico chegou pela aplicação rigorosa de seu "axioma interessante" assumiram tons ainda mais sombrios. O homem jovem no terno branco e elegante deu lugar ao homem emaciado, soterrado num sobretudo pesado e num cachecol mesmo no verão úmido e quente de Nova Jersey, vendo conspirações por toda parte. Ele acabou acredi40

INTRODUÇÃO. EXILADOS

tando em uma enorme conspiração, aparentemente em atividade havia séculos, para suprimir a verdade "e emburrecer os homens". Aqueles que haviam descoberto o poder pleno da razão a priori, homens como Leibniz, no século xvn, e Gõdel, no século xx, eram ele acreditava - homens marcados. Seu profundo isolamento quase alienação-dos colegas proporcionou um solo fértil para aquela racionalidade descontrolada que é a paranóia. O fato de o maior lógico desde Aristóteles ter perseguido a razão tão resolutamente até tais conclusões ilógicas se afigurou paradoxal a muitas pessoas. Mas, como espero deixar cada vez mais claro nos capítulos seguintes, os paradoxos internos da personalidade de Gõdel foram, pelo menos parcialmente, provocados pelas reações paradoxais do mundo ao seu trabalho famoso. Seus teoremas da incompletude foram , ao mesmo tempo, celebrados e ignorados. Seu conteúdo técnico transformou os campos da lógica e da matemática; o método de prova usado por ele, os conceitos definidos no decorrer da prova, levaram a áreas de pesquisa totalmente novas, como a teoria da recursão e a teoria dos modelos. Outras áreas centrais de pesquisa foram abandonadas, sobretudo as sancionadas pelo maior matemático da geração imediatamente anterior a Gõdel, David Hilbert ( 1862-1943), tendo se mostrado inúteis em virtude dos teoremas de Gõdel. No entanto, a importância metamatemática dos teoremas, para Gõdel seu aspecto mais importante, foi ignorada. De forma ainda mais paradoxal, as correntes mais vanguardistas da cultura, apregoando a incerteza pós-moderna e atacando a falsa mitologia de todos os absolutos, reuniram seus teoremas com a relatividade de Einstein, reinterpretando-os de modo que negassem exatamente as convicções que Gõdel e seu colega de exílio quiseram tanto demonstrar. Os paradoxos, no sentido técnico, são aquelas catástrofes da razão pelas quais a mente é compelida, pela própria lógica, a tirar conclusões contraditórias. Muitos são do tipo auto-referencial; os problemas surgem porque certos itens lingüísticos - uma descrição, uma sentença -potencialmente se referem a si próprios. O mais antigo desses para41

INCOMPLETUDE

doxos é conhecido como o "paradoxo do mentiroso", que remonta aos gregos antigos.* Ele gira em torno da sentença auto-referencial: "Esta sentença é falsa". Esta sentença deve ser, como todas as sentenças, verdadeira ou falsa. Mas se for verdadeira, então será falsa, pois é isso que ela diz; e se for falsa, então será verdadeira, já que, novamente, é isso que ela diz. Deve, portanto, ser verdadeira e falsa, e isso é um grave problema. A mente entra em parafuso. Paradoxos como o do mentiroso desempenham um papel técnico na prova concebida por Gõdel para seu extraordinário primeiro teorema da incompletude. Gõdel conseguiu tomar a estrutura da paradoxalidade auto-referencial- o tipo de estrutura que faz nossa mente entrar em parafuso ao pensar que "Esta senten ça é falsa" - e transformá-la em uma prova extraordinária de um dos resultados mais surpreendentes da história da matemática.** Isso parece quase paradoxal. Os paradoxos sempre pareceram especificamente concebidos para nos convencer de que não somos inteligentes o bastante para desvendar o tema que nos levou até eles. Gõdel conseguiu transformar o paradoxo de um sinal da limitação da inteligência em uma prova que proporciona a compreensão profunda da natureza da verdade, do conhecimento e da certeza. De acordo com a visão platônica do próprio Gõdel de sua prova, ela nos mostra que nossas mentes, ao saber matemática,

* Eis a referência textual da qual deriva o paradoxo: "Um dentre eles, seu próprio profeta, disse: 'Os cretenses são sempre mentirosos'. [... ] Este testemunho é verdadeiro" (Tito 1:12-3).

** O fato de as conclusões matemáticas terem a capacidade de nos surpreender pode parecer paradoxal. Tudo bem que o mundo frustre as nossas expectativas, nosso contato experimental com ele levando a abruptos despertares. Mas como isso pode ocorrer com conclusões atingidas puramente pela razão a priori? Se verdades a priori são-por definição - imunes à revisão empírica, não é alguma experiência inesperada do mundo que dá o tranco. Nós próprios devemos deduzir a confusão, e isso à primeira vista parece estranho. Essa questão metamatemática também é abordada pelo prolixo primeiro teorema de Gõdel. Para Gõdel, a realidade da matemática independente, da qual nossos axiomas são apenas descrições incompletas, elimina a surpresa da surpreendente matemática. 42

INTRODUÇÃO. EXILADOS

estão escapando das limitações dos sistemas artificiais e apreendendo as verdades independentes da realidade abstrata. A estrutura da prova de Gõdel, ao recorrer a um paradoxo antigo, alude em certo nível, ainda que apenas metaforicamente, aos paradoxos da história que o século xx contou a si mesmo sobre algumas de suas maiores realizações intelectuais - entre elas, os teoremas da incompletude de Gõdel. Talvez um dia um historiador das idéias venha a explicar a virada subjetivista de tantos pensadores influentes do século passado, não apenas filósofos, mas também cientistas rigorosos, como Heisenberg e Bohr. Tal explicação está bem além do escopo deste livro. Mas o que posso fazer é descrever os efeitos da revolta contra a objetividade sobre um dos maiores pensadores do século xx: como essa revolta o instigou à prova dos teoremas da incompletude, e como a prova reinterpretou esses teoremas como uma confirmação de si mesma. Para entender toda a opulência - e o paradoxo - de Gõdel, seu mundo e sua obra, será necessário dar dois passos para trás, depois que o vimos voltando para casa com Einstein numa rua arborizada de Princeton. Retrocederemos primeiro para a Viena dos anos 20 de sua juventude, o cenário de tantos dos ataques intelectuais e culturais daquele jovem século à tradição. Depois retrocederemos ainda mais até a virada do século, quando uma concepção da matemática deu origem a um programa visando obter a completa formalizacão dessa ciência, programa que seria vitimado pelo trabalho do jovem e reservado lógico com ambições metamatemáticas exageradas.

43

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

PRIMEIRO AMOR urt Gõdel tinha dezoito anos quando chegou a Viena para iniciar seus estudos na universidade. Embora tivesse nascido na Morávia, hoje pertencente à República Tcheca, mas na época parte do Império dos Habsburgo, sua chegada a Viena deve ter dado a sensação de uma volta ao lar. Ele se considerava um exilado mesmo na terra natal. Gõdel nasceu em 28 de abril de 1906, em Brno, que alemães e austríacos chamam até hoje de "Brünn". Seus pais, Rudolf e Marianne, eram de origem alemã, e não tcheca, e se davam exclusivamente com os demais alemães dos Sudetos que dominavam Brno. A cidade era o centro da indústria têxtil do Império dos Habsburgo. * Portanto, como Rudolf não revelou pendores para os estudos humanísticos na escola

K

* É interessante que ela também abrigava o mosteiro agostiniano onde Gregor Mendel ( 1882-4) realizou seus experimentos extremamente tediosos e importantes com ervilhas, que resultaram na descoberta das leis da dominância e recessividade em hereditariedade. 45

INCOMPLETUDE

primária, foi matriculado, aos doze anos, numa escola de tecelões, onde descobriu sua vocação. Ele completou seus estudos ali com distinção e obteve um emprego na fábrica têxtil de Friedrich Redlich, onde trabalhou até morrer. Fez uma carreira rápida e acabou se tornando diretor e um dos sócios. Por isso, a família vivia com conforto e acabou comprando uma mansão num bairro elegante. A mãe de Gódel, Marianne, era bem mais instruída e culta do que o pai, o que não era incomum entre a burguesia do Império. Também era usual a escolha do cônjuge resultar de preocupações práticas, e não de inclinações românticas, o que parece também ter acontecido no casamento dos Gódel. Como acontece nesses casos, os vínculos emocionais mais fortes da mãe foram estabelecidos com os filhos: Rudolf, nascido um ano após o casamento, e Kurt, nascido quatro anos depois e batizado como Kurt Friedrich, o nome do meio em homenagem ao empregador do pai, que foi o padrinho. Por algum motivo, o lógico abandonou o nome do meio ao se tornar cidadão americano em 1948. Quase tudo que sabemos da infância de Kurt Gódel, embora seja pouco, advém do irmão mais velho Rudolf, que escreveu uma breve «História da família Gódel", bem como das respostas de Rudolf às perguntas dos lógicos Hao Wang e John Dawson sobre a infância de seu irmão mais novo. (Rudolf foi físico, nunca se casou e permaneceu na Áustria. Morreu em 1992, aos noventa anos.) 1 Sabemos através de Rudolf que Kurt fazia tantas perguntas que foi apelidado de der Herr Warum, ou «sr. Por quê?". Quem convive com crianças pequenas sabe muito bem que elas tendem a insistir nas perguntas. Nascemos com uma espécie de assombro ontológico (thaumázein) que cai no esquecimento à medida que nos acostumamos com a realidade do mundo. O thaumázein intenso da infância de Gõdel persistiu por sua vida adulta. Desse modo, a criança que era chamada de Herr Warum tornou-se o homem que iniciou os catorze princípios de seu credo particular com Die Welt ist vernünftig: o mundo é racional. Como muitos matemáticos brilhantes, Gódel alcançou certo nível de maturidade precoce ainda na infância; então, tendo atingido aquele 46

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

A família Gõdel. e. 191 O: Marianne. Kurt. o pai. Rudolf. e o irmão. Rudolf.

nível, permaneceu ali. A foto em família que temos do futuro «sucessor de Aristóteles"* aos quatro anos mostra um homenzinho querúbico, olhando direto para a câmera, mãos apoiadas sobre a mesa, a ligeira inclinação à frente dando a impressão de contemplação solene.

* Aristóteles costuma ser reconhecido como pai da lógica. Sua obra de lógica está exposta na Analítica anterior, que faz parte da coletânea póstuma conhecida como Organon. O filósofo teve o insight seminal de que, em um argumento da lógica dedutiva, algumas palavras são logicamente relevantes, enquanto outras não. As palavras irrelevantes podem ser eliminadas, tornando-se variáveis. Assim, por exemplo, no silogismo clássico se todos os homens são mortais, e Sócrates é um homem, então Sócrates é mortal, as palavras "homens': "mortal" e "Sócrates" são dispensáveis. Esse silogismo particular é apenas uma instância do silogismo-esquema mais geral: se todos os Xs são Y, e i é um X, então i é um Y. Denotar palavras logicamente irrelevantes por variáveis foi uma passagem para a m aior generalidade e, portanto, para a ciência da lógica. Aristóteles, porém, generalizou demais, afirmando que todo raciocínio dedutivo é silogístico. Os avanços modernos do século x1x, mais especificamente do alemão Gottlob Frege ( 1848-1952 ), revelaram a variedade maior dos argumentos dedutivos. 47

INCOMPLETUDE

Também ficamos sabendo por uma carta de Rudolf ao lógico Hao Wang que, em torno dos cinco anos, o irmão mais novo sofreu de uma leve neurose de ansiedade CleichteAngst Neurose))) e, aos oito, teve um acesso grave de "reumatismo das juntas, com febre alta)). O paciente pesquisou sobre sua doença e, ao descobrir que podia causar danos cardíacos permanentes, inferiu que aquilo acontecera com ele. Gõdel passou a vida convencido de que sofria do coração, apesar da ausência de quaisquer indícios. A conclusão a que chegou, sozinho, aos oito anos de idade, contribuiria para a sua hipocondria vitalícia. Quando as permutações aleatórias da combinação genética produzem um rebento cuja inteligência supera de longe a dos pais, a criança enfrenta um tipo especial de aflição: reconhece sua total dependência, já que não passa de uma criança, mas também percebe claramente os graves limites da compreensão dos próprios pais. Na maioria dos casos a pessoa só vem a reconhecer isso na adolescência, quando a reação normal é uma mistura explosiva de orgulho, desdém e revolta ( como podem ser tão tapados?). Mas a reação de uma criança tende mais a ser de terror cego ( como podem estar cuidando de mim?). A leichte Angst Neurose é uma indicação de que o precoce Gõdel percebeu os limites da onisciência dos pais mais ou menos aos cinco anos. Seria confortador, diante de tal conclusão abaladora, especialmente quando reforçada por uma doença grave alguns anos depois, derivar a seguinte conclusão adicional: existem sempre explicações lógicas, e sou exatamente o tipo de pessoa capaz de descobrilas. Os adultos à minha volta podem ser uns pobres coitados, mas por sorte não preciso depender deles. Posso descobrir tudo sozinho. O mundo é totalmente lógico, e minha mente também é - uma combinação perfeita. Possivelmente o jovem Gõdel teve alguns pensamentos assim para atenuar o terror da descoberta, numa idade prematura, de ser bem mais inteligente do que os pais. Isso explicaria muita coisa sobre o homem que ele se tornaria. A criança é o pai do homem - ainda mais no caso de gênios da matemática. 48

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

Na escola, a K.-K. Staatsrealgymnasium mit deutscherUnterrichtssprache* (obviamente uma escola de língua alemã), Gõdel destacou-se em todas as matérias e começou a mostrar a altivez e a solenidade marcantes que o caracterizariam ao longo da vida. Um colega de classe, Harry Klepetai'.-, escreveu para John Dawson que "desde o início [... ] Gõdel mantinha-se mais ou menos reservado e dedicava a maior parte do tempo aos estudos". Ele também informou que os interesses de Gõdel eram "variados" e que "seu interesse em matemática e física [já] se manifestara [... ] aos dez anos". 2 Gõdel, porém, recusou-se a cursar quaisquer cadeiras na língua da república onde estava vivendo (a língua natal da maioria dos estudantes era alemão). Klepetaf lembrou a Dawson que Gõdel foi o único colega que ele nunca viu falando uma palavra sequer de tcheco e que, especialmente após outubro de 1918, quando a República da Tchecoslováquia declarou a independência, "Gõdel considerou-se sempre austríaco e um exilado na Tchecoslováquia". 3 Assim, a sensação de exílio começou cedo na vida e, em vários sentidos, alguns mais perniciosos do que outros, possivelmente nunca o abandonou. Gõdel ingressou na Universidade de Viena em 1924, com a intenção de estudar física, mas, como contou mais tarde a Hao Wang, "seu interesse na precisão levou-o da física à matemática e à lógica matemática". 4 O interesse de Gõdel por física começara aos quinze anos, quando ele leu a teoria das cores de Goethe, que fazia parte de um ataque geral à física newtoniana. Sua transição à matemática também foi encorajada, ele contou a Hao Wang, pelas excelentes aulas de alguns de seus professores na universidade. O curso de teoria dos números, ministrado pelo professor Phillip Furtwangler, atraía tamanho número de

* K.-K., abreviatura de Kaiserliche-Konigliche (imperial-real), designava as escolas em terras da coroa austríaca. Kaiserliche e konigliche aplicava-se às escolas administradas em conjunto pela Áustria e Hungria, e konigliche sozinho se referia às pertencentes à Hungria. Esse sistema de abreviação imperial se presta à sátira, sendo de fato magistralmente satirizado por Robert Musil em seu romance O homem sem qualidades. 49

INCOMPLETUDE

estudantes (até quatrocentos) que era preciso distribuir senhas, em dias alternados, para as cadeiras. Gõdel foi um desses estudantes arrebatados, e mais tarde contou que aquelas foram as aulas mais maravilhosas de sua vida. Pretendendo se concentrar na teoria dos números, Gõdel mudou sua especialização para matemática em 1926, mas em 1928 começou a trabalhar em lógica matemática. Ele já era um platônico ferrenho em 1926 quando mudou da física para a matemática. Seu compromisso metafísico se forjara no ano anterior, ao cursar história da filosofia com o professor Heinrich Gomperz, cujo pai, Theodore, era um renomado professor de filosofia antiga. Não é fácil penetrar na vida íntima de Kurt Gõdel. Já é bastante reconhecer que ela difere muito da vida dos outros. Por isso, raciocinar por analogia não nos levará muito longe. Ademais, era um homem totalmente reservado, que não demonstrava nada que não fosse de cunho matemático. Foi um homem de paixões profundas, como sua vida mostrará. Mas essas paixões eram secretas e rigorosamente intelectuais. No entanto, creio que podemos afirmar que, como tantos de nós, Gõdel se apaixonou durante o curso universitário. Ele sofreu a transfiguração arrebatadora do amor, seu radical reordenamento das prioridades, que dá à vida um novo foco e sentido. Não se pode ser a mesma pessoa de antes. Kurt Gõdel apaixonou-se pelo platonismo, e já não podia ser a mesma pessoa de antes. Quais os indícios de uma paixão tão transformadora a ponto de agitar aquele lógico opacamente autocontido? Ou seja, quais os indícios além dos próprios teoremas da incompletude? Alguns dos indícios residem no Nachlass, o legado literário de Gõdel, abrigado na Biblioteca Firestone de Princeton. O Nachlass ficara mofando no porão do instituto, até que John Dawson empreendeu a tarefa formidável de tornar-se arquivista de Gõdel. 5 ( Gõdel empregava uma espécie de taquigrafia, Gabelsberger, aprendida no curso secundário, de modo que a tarefa envolvia, acima de tudo, tradu50

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

ção.) Gõdel aparentemente guardou cada pedacinho de papel com que cruzou na sua vida. Há artigos de revistas, notas de roupas, manuscritos, fotos da família, exercícios de estudante, papeletas de livros emprestados de bibliotecas em Viena e Princeton. Encontrei (na coleção de objetos pessoais de Gõdel do instituto) aqueles pequenos ensinamentos bíblicos das testemunhas de Jeová, do tipo que os pregadores tentarão lhe impingir se você estiver em casa no meio do dia e atender a campainha. Continham trechos cuidadosamente sublinhados e comentários à margem, do próprio Gõdel. Mais reveladores são os vários rascunhos de cartas que nunca foram postadas, os manuscritos de artigos que ele prometeu entregar, revisou cuidadosamente repetidas vezes e depois nunca liberou para publicação.6A impressão é de uma cautela de proporções histéricas. Não uma cautela cerebral, pois as ambições intelectuais de Gõdel eram audaciosas, suas intuições, fortes, sua vontade de levá-las à conclusão lógica, inflexível. Pelo contrário, havia uma histeria de discrição em apresentar seus pensamentos ao mundo externo. 7 Entre os documentos em que Gõdel trabalhou, mas que nunca entregou, estão as respostas a um questionário preparado para ele por um sociólogo. Burke D. Grandjean fizera repetidas tentativas de entrevistar Gõdel e, finalmente, concebeu um questionário para ele em 1974 (dois anos antes da morte do lógico). No Nachlass, há duas versões ligeiramente diferentes do questionário respondido, bem como uma carta datilografada, sem assinatura e nunca enviada, endereçada ao sr. Grandjean e datada de 19 de agosto de 1975. A carta começa de maneira um tanto ríspida: "Caro sr. Grandjean: Respondendo às suas consultas, gostaria de dizer, em primeiro lugar, que não considero o meu trabalho 'uma faceta da atmosfera intelectual do início do século xx' - muito pelo contrário". Pode-se imaginar a carta reverente do sociólogo que provocou essa resposta irascível. No contexto de uma vida tão reservada, essa carta, além dos dois conjuntos de respostas aos questionários, é reveladora. O tom furioso de Gõdel em sua resposta, não enviada, a Grandjean reforça a impressão de que sua vida, especial51

INCOMPLETUDE

mente após a morte de Einstein, se caracterizou por uma profunda sensação de isolamento intelectual - uma sensação de isolamento reforçada por interpretações errôneas de seu resultado mais famoso. Grandjean listara vários pensadores e pedira que Gõdel indicasse quais o haviam influenciado, e Gõdel deixou claro como eram equivocados os pressupostos de Grandjean. Parece haver uma vida de exasperação por trás das respostas. Leibniz nem sequer é listado. À pergunta de Grandjean "Existem influências às quais você atribui significado especial no desenvolvimento de sua filosofia?", a resposta inteira de Gõdel consistiu em: "Heinrich Gomp.[erz] Prof[essor] de F [ilosofia] de Viena': Uma resposta que parece estranha, mas não é. Foi na aula do professor Gomperz que o amor intelectual transfigurativo de Gõdel foi engendrado. Conquanto Gõdel possa ter assistido arrebatado às aulas de teoria dos números do professor Furtwangler, foi na introdução à história da filosofia do professor Gomperz que o verdadeiro arrebatamento ocorreu. Platão sempre exerceu forte apelo sobre quem gosta de matemática. O próprio Platão gostava de matemática. À entrada da Academia, a escola ateniense de educação superior que ele fundou (em essência, a primeira universidade européia), liam-se as palavras: "Que aqui não adentre quem não souber geometria". O desprezo do filósofo grego antigo pelos sofistas, particularmente por homens como Protágoras, deu origem à conotação negativa dessa palavra designativa daqueles professores itinerantes. (A raiz da palavra sofista é a palavra grega antiga para conhecimento. Filosofia, literalmente "amor à sabedoria", compartilha da mesma raiz.) Protágoras pretendia que sua afirmação de que "o homem é a medida de todas as coisas" se aplicasse de modo mais direto à esfera moral. Ele vinha defendendo o que agora chamamos "relativismo moral", a afirmação de que não existe diferença objetiva enúe certo e errado, apenas opiniões diferentes, relativizadas para indivíduos ou conglomerados de indivíduos que compartilham aproximadamente os mesmos valores (ou seja, sociedades). "Verdadeiro", quando aplicado a opiniões morais, é uma 52

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

abreviatura de ((verdadeiro para x", onde x é um indivíduo ou uma sociedade de indivíduos com opiniões éticas semelhantes. Platão enfrentou os relativistas. Foi a ocupação de sua vida. Além de defender a objetividade da verdade moral, ele também baseou a postulação da verdade objetiva - na moral bem como em outras esferas em sua afirmação da objetividade de uma realidade abstrata, perceptível não pelos sentidos, mas pela razão. A área em que o platonismo se mostrou mais teimosamente perdurável é a matemática, ou melhor, a metamatemática. A sensação de um matemático de estar descobrindo verdades objetivas, e não simplesmente construindo sistemas, é um compromisso com o platonismo. A convicção de que coisas como números e conjuntos servem de modelos para nossos sistemas, sistemas esses verdadeiros apenas na medida em que descrevem a natureza de coisas como números e conjuntos, representa igualmente um compromisso com o platonismo. O primeiro contato com Platão pode ser uma experiência inebriante para quem é apaixonado por abstração (lembro-me do meu próprio contato). 8 Pode se tornar uma espécie de êxtase. O próprio Platão argumentou que a beleza do mundo abstrato, que excede imensuravelmente a de qualquer objeto particular, pode e deve despertar uma paixão bem maior do que aquela provocada pela beleza individual das pessoas (criaturas volúveis e imperfeitas, com cujo amor nem sequer podemos contar e cuja beleza, além de não poder competir com a do tipo transcendente, está sujeita à ação corrosiva do tempo). O uso da expressão ((apaixonou-se" em relação à experiência de Gõdel na universidade é imitação do próprio Platão, que empregou uma linguagem impregnada de erotismo para descrever a captação pela mente das belezas da objetividade abstrata.

-,

"Se em algum momento da vida, meu caro Sócrates", continuou a estrangeira de Mantinéia, "vale a pena para um homem viver, é nesse, quando contempla o próprio Belo. Se algum dia o contemplares, verás que ele não se relaciona com o outro, com as roupas ou com a formosura dos belos jovens e adolescentes, a cuja 53

INCOMPLETUDE

vista ficas agora aturdido e disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam seus amados e sempre estejam com eles, sem comer nem beber, se de algum modo fosse possível, mas só contemplando e estando ao seu lado! Que pensamos então que aconteceria': disse ela, "se a alguém fosse dado contemplar o próprio Belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carne humana, decores e outras muitas ninharias mortais, mas a própria Beleza divina e única? Acaso imaginas", disse, "que é mesquinha a vida de um homem que, de olhos voltados nessa direção, contempla a dita Beleza da maneira certa e desfruta a sua presença? 9

Um "banquete" (symposion, em grego) na verdade significava uma festa regada a bebidas na Atenas de Platão, e, no diálogo ao qual ironicamente deu esse nome, Platão nos exorta a abandonar os êxtases menores, inclusive os associados ao amor sensual por belos jovens, e nos embebermos da beleza da verdade - o tipo de verdade necessária e imutável adquirida pela razão pura e para a qual a matemática serve de modelo. Um aspecto da visão platônica é a rejeição da bifurcação fácil entre paixão, de um lado, e razão, de outro. Platão está nos convidando para a razão apaixonada, o êxtase supremo. Claro que a suscetibilidade ao êxtase supremo depende da capacidade de captar o objeto do amor intelectual, as belezas da abstração pura, "voltar os olhos nessa direção e contemplar a dita Beleza da maneira certa e desfrutar a sua presença". O jovem Kurt Gõdel era singularmente suscetível. A reação de Gõdel à visão arrebatadora de Platão da verdade foi, ao que parece, a decisão de se dedicar apenas à matemática de (para lembrar a expressão de Einstein) "importância genuína': Teria que ser matemática com metassignificado, que fosse filosoficamente porosa de modo que a fonte objetiva de toda verdade abstrata pudesse transparecer. De início, Gõdel havia sido atraído pela teoria dos números por acreditar que ela forneceria a prova mais forte e a aplicação mais clara do realismo conceitual. 10 Foi em 1928, aos 22 anos, que seus interesses matemáticos começaram a mudar para a lógica matemática. O fato de ter sido atraído pela teoria dos números exatamente por causa do seu compromisso platônico, conforme contou a Hao Wang, e depois sedes54

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

viado para a lógica matemática é intrigante. Hao Wang não fez a pergunta subseqüente: exatamente quando Gõdel vislumbrou que a lógica poderia fornecer as conclusões matemáticas que vinha buscando? É tentador especular a respeito, e a especulação esclarecida é o máximo de que dispomos. Não temos uma idéia clara do caminho que o levou aos seus teoremas, por meio de uma argumentação engenhosa nunca vista antes. Em contraste, sabemos muita coisa sobre as preocupações que levaram Einstein à sua teoria da relatividade restrita. Está tudo nos registros públicos do cientista que desempenhou o papel de gênio profissional na imaginação coletiva do mundo. Sabemos como, a partir dos dezesseis anos, ele costumava realizar experimentos de pensamento, imaginando-se pegando carona num raio de luz, ou apostando corrida com ele, tentando deduzir qual seria o aspecto das leis da física do ponto de vista de um observador movendo-se à velocidade da luz. Mas a genialidade de Gõdel nunca foi objeto de exibição pública como a de Einstein. As fontes de sua inspi;ação, o mecanismo mental, revelando como paradoxos antigos puderam se transformar em uma prova, com conclusões permeadas de metaconotações, são desconhecidos. Ele deve ter vislumbrado o potencial metamatemático da lógica, mesmo quando a lógica ainda era bem menos respeitável matematicamente do que se tornaria com seu trabalho. Não sabemos com precisão quando ele obteve sua primeira prova da incompletude. O orientador de sua dissertação (havia então avançado para a pós-graduação) nem sequer sabia o que ele estava cogitando. Mas sabemos que, em 7 de outubro de 1930, Gõdel obteve a prova do primeiro teorema da incompletude. O lógico Jaakko Hintikka escreveu: Um indicador da relevância de Gõdel foi o fato de que o momento mais importante de sua carreira foi também o momento mais importante da história da lógica do século xx, talvez da história da lógica em geral. Esse grande momento foi em 7 de outubro de 1930. O cenário: um congresso sobre os fundamentos da matemática, em Kõnigsberg, em 5-Tde outubro de 1930. 11 55

INCOMPLETUDE

O que aconteceu em Kõnigsberg em 7 de outubro de 1930 foi que Kurt Gõdel, um estudante de pós-graduação relativamente desconhecido, ao participar de um congresso sobre metamatemática dominada pelos líderes do campo, proferiu algumas palavras indicativas de que tinha uma prova da incompletude da aritmética. Ele foi basicamente ignorado por todos os presentes, com exceção de um matemático que estava ali para representar uma posição metamatemática totalmente divergente do platonismo de Gõdel, mas que foi inteligente o bastante para perceber as implicações do "anúncio" discreto de Gõdel. No entanto, há algo de errado nas palavras de Hintikka. O momento mais importante na carreira de Gõdel não foi a revelação pública do primeiro teorema da incompletude. Aquele momento parece o mais importante porque foi ali que Gõdel deu uma leve indicação pública do que vinha realizando. Os momentos mais importantes de sua carreira foram, na verdade, aqueles sobre os quais nada sabemos: os momentos das intuições, dos experimentos de pensamento ou seja lá o que for que o levou à própria prova. Sua convicção platônica deve tê-lo convencido, sem prova, de que a realidade matemática deve exceder quaisquer tentativas formais de contê-la. Mas como ele se apoderou da estratégia para provar a incompletude? Como teve a idéia, em particular, de transformar em prova os aspectos estruturais dos paradoxos auto-referenciais? Como lhe ocorreu a idéia inspirada da agora denominada "arimetização de Gõdel", a técnica pela qual enunciados da matemática adquiririam duplos sentidos, constituindo também enunciados metamatemáticos? A estratégia geral da prova é espantosamente simples, os detalhes que tiveram de ser elaborados são espantosamente complicados, e esses dois aspectos espantosos despertam o desejo de saber melhor como ele chegou lá. Mas tudo de que dispomos é o resultado: a prova que mudou para sempre nossa compreensão da matemática e, com isso, talvez tenha ajudado a modificar nossa compreensão de nós mesmos. Portanto, não é Kõnigsberg o cenário do verdadeiro drama, e sim Viena - a Viena do final da década de 1920 e início da década de 1930, 56

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

uma cidade singular nos aspectos culturais e intelectuais. Nenhum pensador cogita no vácuo - nem mesmo o mais puro dos matemáticós puros, n;a. mais alta torre de marfim da Razão Pura.Nem mesmo um pensador tão ferrenhamente fiel à integridade de suas próprias intuições como Kurt Gõdel é totalmente indiferente, ainda que com espírito de oposição, às opiniões predominantes em sua época, aos tipos de questões que flutuam como esporos na atmosfera intelectual. A cidade de Viena naquele período entre as duas guerras mundiais, a estranha intensidade do pensamento e a criatividade que se desenvolviam ali desempenham seu papel na história dos teoremas de Gõdel. Viena era então uma cidade com um número desproporcional de pensadores e artistas seminais - cientistas, músicos, poetas, artistas visuais, filósofos, arquitetos - que coletivamente pareciam atraídos para uma só conversa intensa e alentada, abrangendo todas as disciplinas e formas de arte. Gõdel, por mais reservado que fosse, também acabou participando da conversa. Ali, naquela cidade extremamente teatral onde mesmo a vida intelectual alcançava certa teatralidade, até Gõdel, a última pessoa do mundo a buscar o drama aparente, alcançou certo grau dele.

DA VELHA DESORDEM SURGE UMA CIDADE EM BUSCA DE NOVAS BASES Se Princeton é um turbilhão intelectual de alta energia disfarçado de local agradavelmente insípido na paisagem sub_urbana de Nova Jersey, a Viena da década de 1920, quando Kurt Gõdel chegou como estudante, era "o laboratório de pesquisa da destruição do mundo", nas palavras famosas de um cronista da época, o jornalista e satirista Karl Kraus. O romancista Herman Kesten viu-a como a cidade da "criação brilhante em uma cultura não obstante decadente". A vida intelectual fervilhante da cidade não se limitava às salas de aula da universidade e às salas dos professores, estendendo-se aos 57

INCOMPLETUDE

numerosos cafés que até hoje parecem exibir a essência da vida vienense. Muita coisa mudou na cidade, e no país como um todo, após a Primeira Guerra Mundial e o colapso do Império dos Habsburgo em 1916. Mas Viena permaneceu, em sua atmosfera, uma pequena cidade grande: o centro cultural indiscutível de seu país. A sensação de que ela era quase uma entidade totalmente fechada em si mesma dentro do país mais amplo, compartilhando pouco em termos de perspectiva com o resto da população, talvez tenha um correspondente na relação da atual Nova York com os Estados Unidos, embora a descontinuidade entre a cidade e a cultura geral pareça ter sido bem maior no caso de Viena e Áustria. Na época de Gõdel, Viena ainda tinha a única universidade real da Áustria, que cabia quase inteiramente em um único prédio. Essa concentração física da vida acadêmica refletia a vida intelectual em geral. Tratava-se de uma cidade cujos pensadores pareciam se conhecer, ao menos ligeiramente, influenciando o pensamento uns dos outros através das diversas disciplinas, de modo que matemáticos, físicos, historiadores, filósofos, romancistas, poetas, músicos, arquitetos e artistas estavam envolvidos, em certo sentido, na mesma conversa. O tema geral: a morte e decadência moral e intelectual de tudo que viera antes, e a necessidade de construir metodologias, formas e fundamentos inteiramente novos. Foi esse tema sustentado, em tantos campos diferentes, que provocou o surgimento do que viemos a chamar modernidade, e até pós-modernidade: em literatura, música, arquitetura, arte, filosofia, psicologia, e, até certo ponto, ciência. A Viena pós-1918 proporcionava uma grande arquibancada da qual contemplar a rápida desintegração dos anacronismos. O Império dos Habsburgo, aquela variação elaborada de temas do status quo e do patriarcado, implodira com o fim da Grande Guerra. Onze nacionalidades diferentes - alemães, rutenos, italianos, eslovacos, romenos, tchecos, poloneses, húngaros, eslovenos, croatas, transilvanos, saxões e sérvios - estavam reunidas no império desgracioso; a entidade resultante carecia, significativamente, de um nome aceito por todos. Seu 58

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

último líder foi Francisco José, imperador da Áustria desde 1848 e rei da Hungria desde 1867, que reinou por um longo período. E a capital do reino sem nome era Viena. Embora uma consciência unificadora se sobrepusesse às várias nacionalidades do império, a "Cidade dos Son hos", como Viena foi apropriadamente apelidada, conseguiu de fato alcançar algo como aquela consciência cosmopolita supranacional imposta pelo mito do império. Viena, no apogeu, havia sido uma capital imperial governando cerca de 50 milhões de súditos. Agora estava reduzida à capital de uma pequena e arruinada república alpina com pouco mais de 6 milhões de cidadãos, quase todos alemães. (Muitos dos tchecos que viviam na cidade partiram, o que atenuou um pouco a falta de moradia.) Mas, se Viena caiu em termos políticos, sua importância como uma capital intelectual do mundo era inigualável. A própria sensação de um colapso espiritual e cultural (cuja iminência havia sido evidente aos pensadores vienenses mesmo enquanto a dinastia dos Habsburgo sobrevivia) intensificou a necessidade de buscar novas bases. A consciência coletiva dos cidadãos mais esclarecidos da cidade estava permeada de uma espécie de intensidade nervosa, o surto de idéias irrompendo como a sintomatologia do gênio doentio. Assim, encontramos em Viena não apenas o berço do sionismo, na figura de Theodor Herzl, mas também das manifestações mais extremas daquelas idéias em reação às quais surgiu o sionismo: o nazismo.

A cidade proporcionou o terreno fértil para a teoria de Freud do inconsciente, da repressão, da histeria e da neurose. Foi lá que Klimt, Schiele e Kokoschka pintaram as telas exuberantes e sensuais da Secessão.* Arnold Schõnberg e Alban Berg criaram a música atonal, e

* A Secessão foi fundada em 1897 por artistas que divergiam das políticas do establishment artístico vienense. Um salão de exposições para os secessionistas foi inaugurado em 1898. O pai de Ludwig Wittgenstein, o riquíssimo magnata do aço Karl Wittgenstein, foi um dos três "benfeitores" cujos nomes foram gravados na placa após a entrada. Os outros dois nomes pertencem a artistas famosos na época: Rudolf von Alt e Theodor Hõrmann. 59

INCOMPLETUDE

Adolph Loos concebeu uma espécie nova de arquitetura, em que a forma era estritamente determinada pela função, a ornamentação excessiva e os aposentos superestofados da burguesia dos Habsburgo equivalendo à podridão moral. Uma voz influente (e acerba) que soava pelos círculos culturais superpostos de Viena pertencia ao jornalista Karl Kraus, o incansável editor ( e basicamente o único redator) da revista satírica Die Fackel, ou A Tocha. Kraus valia-se de sua revista para fustigar toda sorte de hipocrisia vienense, fosse praticada pela velha guarda ou pela avant-garde. (Ele foi, por exemplo, um crítico implacável de Freud.) Kraus voltou grande parte de sua cruzada feroz para a linguagem, desmascarando a fraude que se oculta nas banalidades das formas respeitáveis de falar, o vazio e o sentimentalismo insincero das obras de literatura e as frases vazias dos jornalistas. "Falar e pensar são a mesma coisa", declarou ele no seu livro Die Sprache (A linguagem): a estrada não apenas para teorias melhores, mas para uma sociedade melhor, está pavimentada com a precisão lingüística. O próprio Kraus era um estilista consumado, alfinetando seus alvos em epigramas elegantes: "O psicanalista agarra nossos sonhos como se fossem nossos bolsos". "O segredo do demagogo é parecer tão burro quanto seu público, de modo que este se julgue tão inteligente quanto ele.""O esteta está para a beleza como o pornógrafo, para o amor e o político, para a vida." A atenção de Kraus à linguagem como o tema mais importante de sua crítica ao pensamento soaria familiar aos estudantes de filosofia da época, a ponto de parecer um truísmo. Embora o próprio Kraus não fosse filósofo, exerceu forte impacto sobre os filósofos vienenses, e portanto sobre os filósofos mundo afora. Ludwig Wittgenstein, em particular, era leitor assíduo de Die Fackel. A visão de Kraus de que a falsidade intelectual agredia não apenas a verdade, mas também a moralidade, foi muito convincente entre seus contemporâneos vienenses. Uma sensação de premência moral sub jazia suas discussões acerca de questões intelectuais e artísticas, e o tom exortatório dos antigos profetas hebreus, conclamando a tribo ao 60

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

arrependimento, muitas vezes despontava nas discussões dos temas mais abstratos, como por exemplo as condições para o sentido das proposições. Idéias desacreditadas, solecismos, meias verdades e nãoproposições com fraseado complicado carregam a mácula fatal da insuficiência moral. É moralmente imperativo romper com o passado e pensar com clareza. A cultura vertiginosa das idéias vienenses estava em exibição pública, realizando-se em torno das mesinhas redondas dos muitos cafés da cidade. (Um dos motivos disso, aliás, era a precariedade das moradias de Viena: mal aquecidas e geralmente inadequadas, predispunham os vienenses a passar seu tempo fora de casa.) Os literatos e outros artistas preferiam lugares como o Café Museum, o Herrenhof ou o Café Central, onde Peter Altenberg, por exemplo, correspondia, com tanto prazer, à imagem popular do "poeta": camisa de cores berrantes, calças de listras compridas e o pincenê pendendo poeticamente de uma fita preta. Em outra mesa, Alban Berg e outros compositores podiam ser encontrados discutindo a exaustão da tonalidade; ouAdolph Loos debatendo as barbaridades da arquitetura tradicional; ou o romancista Franz Werfel, que escreveu sobre o "ambiente sombrio" do café em seu romance Bárbara ou compaixão. Outro escritor, Alfred Polgar, propôs uma "Teoria do Café Central", explicando que o estabelecimento era uma verdadeira Weltanschauung, "uma visão de mundo, mas cuja essência era evitar ver o mundo". 12 Seus habitués, "na maior parte, pessoas cuja misantropia só era igualada por sua ânsia pelos semelhantes, pessoas que querem estar sozinhas mas precisam de companhia para tal': Para os matemáticos como Gõdel, havia o Akazienhof, a apenas três minutos a pé da universidade, bem como outros lugares: o Arkadencafé, o Reichsrat, o Schattentor, os tampos de mesa de mármore branco que proporcionavam uma superfície para escrevinhar as equações. Não apenas a localização, mas também a categoria de pessoas que ele atraía e seu respectivo status, bem com a seleção de periódicos e jornais oferecidos, influenciavam a escolha do lugar onde um grupo específico se reunia. 61

INCOMPLETUDE

Além da sociedade dos cafés, a vida intelectual de Viena também se organizava em vários Kreise, ou círculos: grupos de discussão mais ou menos formais que se reuniam semanalmente e giravam em torno dos principais intelectuais da cidade. Muitos desses círculos se sobrepunham. Alguns estavam ligados a uma universidade, outros não. Um grande número se dedicava a discussões do socialismo (um deles, em torno de Max Adler, se concentrava em Kant) e outros se orientavam em torno das diferentes facções dentro do movimento psicanalítico. Um grande número de círculos visava à discussão de filosofia, não apenas de Kant, mas de figuras como Kierkegaard e Liev Tolstói, que gozavam de enorme influência na época. O filósofo Heinrich Gomperz, em cuja aula Godel se convencera do platonismo, mantinha um grupo de discussão centrado na história da filosofia. A geometria intelectual de Viena era densamente composta de círculos.

O CÍRCULO DEViENA De longe o mais importante daqueles círculos foi o que girava em torno do filósofo Moritz Schlick, primeiro chamado, apropriadamente, de Schlick Kreis, embora acabasse sendo conhecido, devido à sua importância, como Der Wiener-Kreis, o lendário Círculo de Viena. Foi a partir desse grupo de pensadores que o influente movimento conhecido como "positivismo lógico" em grande parte se disseminou. As prescrições reformadoras do grupo mudaram a atitude de cientistas da natureza, cientistas sociais, psicólogos e humanistas, levando-os a reformular as questões de seus respectivos campos. Os efeitos perduram até hoje. O comparecimento às reuniões do Círculo de Viena dependia de convite. O filósofo Karl Popper, que se tornaria famoso e já era uma força intelectual promissora, esperou com impaciência e em vão pelo convite para aderir ao Kreis mais importante da cidade. 13 Kurt Godel foi convidado a aderir ao círculo ainda na pós-graduação e compareceu regularmente às sessões semanais entre os anos de 62

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

1926 e 1928. O interessante é que 1928 foi o ano em que ele se voltou para a lógica matemática, que lhe renderia sua famosa prova. Não é de admirar que ele deixasse de ter tempo ou motivação para as sessões semanais. Sua associação com os positivistas lógicos levou à falsa crença de que ele próprio foi um positivista e de que seus teoremas da incompletude são uma conseqüência dos princípios positivistas. Os teoremas da incompletude de Gõdel ainda costumam ser considerados um dos maiores sucessos do positivismo lógico: o resultado revolucionário da aplicação de seus princípios à matemática. Assim, por exemplo, no recente Wittgenstein's poker [O atiçador de Wittgenstein], David Edmonds e John Eidinow escrevem: A voz do Círculo ainda pode ser ouvida em uma série de epônimos filosóficos. Em 1931, Gõdel publicou seu teorema que frustrou quaisquer tentativas de desenvolver um fundamento lógico para a matemática. Ele mostrou que é impossível demonstrar a consistência de um sistema aritmético formal dentro dele mesmo. Seu artigo de quinze páginas provou que parte da matemática não podia ser provada -

que quaisquer que fossem os axiomas aceitos na matemática, sempre

haveria algumas verdades que não poderiam ser validadas a partir deles. 14

A citação aos dois teoremas de Gõdel está mais ou menos correta, embora tenham sido fundidos em um só "teorema". Mas dizer que a voz do Círculo pode ser ouvida nos teoremas de Gõdel está muito distante da verdade.A voz que Godel ouviu dentro de seus teoremas foi a do platonismo. Qualquer posição metafísica, e ainda mais o platonismo, constitui pura e simplesmente um anátema para um positivista lógico. Gõdel se tornara platônico em 1925, um ano antes de aderir ao grupo de discussão. A orientação antimetafísica do grupo não teve nenhuma influência sobre ele, e, quanto a seus membros, aparentemente nunca suspeitaram - pelo menos por um longo tempo - de que ele não compartilhava de suas visões. Ao que tudo indica, ele deu poucas pistas. Não era de sua natureza na época, e jamais seria, discutir face a face com aqueles de quem discordava. Sua aversão ao conflito 63

INCOMPLETUDE

era tamanha que chegava a constituir uma excentricidade, embora não das mais pronunciadas. Ele se recusava a contestar o ponto de vista de outra pessoa, a não ser que tivesse certeza absoluta, ou seja, uma prova. Por toda vida, Gõdel preferiu que suas provas matemáticas falassem por ele. (Talvez não por acaso aquele homem cuja extrema reserva ocultava convicções intensas tivesse produzido os resultados matemáticos mais prolixos da história dessa disciplina.) Ele desanimava quando os outros não captavam tudo que estava tentando dizer. 15 Até o fim da vida deplorou que ainda considerassem seus pontos de vista compatíveis com os do Círculo de Viena.* Quais os pontos de vista do Círculo de Viena? O positivismo lógico foi, acima de tudo, um movimento que falava em nome da precisão e do progresso associados às ciências. Procurou apropriar-se da metodologia que tão bem servira às ciências, destilar a essência dessa metodologia, não apenas para depurar a própria ciência de suas tendências mais misticamente vagas e metafísicas- nenhuma caracterização continha uma carga negativa pior do que "metafísico"-, mas também para depurar todas as áreas intelectuais. Tratava-se de um programa de higiene intelectual. No espírito vienense da época, esse grupo de pensadores de diferentes campos - matemática, filosofia, as ciências físicas e sociais - pretendia dar aos restos decadentes das idéias antigas um rápido enterro, conforme exigia o decoro, e fazer nascer em seu lugar um sistema cujo fundamento salutar derivaria das ciências empíricas. O positivismo lógico disseminou-se bem além do pequeno aposento despojado onde o grupo se reunia e influenciou profundamente a posição filosófica de filósofos e cientistas sociais e da natureza, muitos dos quais nem sequer tinham consciência de possuir uma posição filosófica. Mas a preferência pela ausência de uma posição especificamente filosófica foi um dos pontos principais enfatizados pelos positivistas lógicos. Tratava-se de

* Jean Cocteau escreveu em 1926 que "A pior tragédia para um poeta é ser admirado embora mal entendido". Para um lógico, especialmente um com a delicada psicologia de Gõdel, a tragédia é talvez ainda pior. 64

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

uma posição filosófica que visava abolir todas as posições filosóficas, o que ao leitor pode parecer paradoxal. O positivismo lógico é, às vezes, denominado "empirismo lógico" ou "empirismo radical". O empirismo tradicional, exemplificado pelas idéias do filósofo escocês David Hume ( 1711-76), procurou delinear os limites do conhecimento. Havia, por um lado, o tipo de perguntas respondíveis pelo raciocínio a priori; estas, de acordo com Hume, não tinham importância ontológica. Não passavam de verdades conceituais que nada nos informam sobre como o mundo realmente é; apenas refletem relações abstratas entre conceitos. Hume chamou-as de "associações de idéias': Assim, a verdade de que os solteiros não são casados é análoga à verdade de que os fantasmas são espíritos desencarnados dos mortos e à verdade de que o sorvete sem gordura não tem gordura. Cada uma é verdadeira a despeito da existência ou não de seu sujeito: solteiros, fantasmas ou sorvete sem gordura. Por outro lado, existem proposições que vão além do meramente conceitual e buscam descrever a natureza do mundo, dizer quais coisas existem e quais as propriedades das coisas e as relações entre elas. De acordo com o empirismo tradicional, quaisquer proposições que tratem da natureza do mundo- Hume chamou-as de "questões de fato e existência''- só podem ser provadas verdadeiras ou falsas por meios empíricos. Algum tipo de prova é indispensável. A faculdade da razão a priori pode nos informar como os conceitos se relacionam uns com os outros, mas não pode informar como é o mundo além dos nossos conceitos. Para esse tipo de conhecimento, precisamos de algum tipo de contato experimental com o mundo. Recorrendo a um exemplo favorito, vejamos a questão da existência de Deus, definido como um Ser transcendente situado fora do espaço e do tempo, o que limita fortemente as possibilidades de contato experimental. (Pelo menos, tais experiências teriam que ocorrer no tempo.) Muitos empiristas tradicionais haviam considerado a existência de um tal Deus transempírico totalmente incognoscível, já que os meios cognitivos à nossa disposição são, em princípio, inadequados para responder positiva ou negativamente à questão. Um Deus tão remoto - além 65

INCOMPLETUDE

da nossa experiência - pode existir, mas nunca saberemos se existe. (Bertrand Russell, quando lhe perguntaram o que diria caso se encontrasse no Céu face a face com o Todo-Poderoso, brincou que sua resposta seria: "Senhor, por que não fornecestes mais indícios?") Os positivistas lógicos transformaram a teoria empírica do conhecimento em uma teoria do significado. De acordo com esta última, os meios empíricos importantes para a constatação da veracidade de uma proposição também fornecem o próprio significado de uma proposição. A teoria positivista do significado costuma, portanto, ser chamada de "critério verificacionista da significabilidade': e estipula que os limites da cognoscibilidade empírica mapeiam os limites da significabilidade. Caso não se consiga, em princípio, imaginar nenhum conjunto possível de experiências que serviriam de corroboração para uma proposição, o que se tem é a mera aparência de uma proposição, destituída de significado - o que os positivistas denominaram "pseudoproposição". Ao declarar que os limites da cognoscibilidade são idênticos aos limites da significabilidade, os positivistas deram ao aspecto problemático de perguntas como a da existência de Deus ( ou de valores morais ou de entidades abstratas) um enfoque renovado: a não-respondibilidade de certas perguntas não é mais uma medida de nossas deficiências cognitivas, mas sinal de que as perguntas jamais deveriam ter sido formuladas.A incognoscibilidade é vista como sinal de um erro no uso da linguagem. Se Deus (ou os valores morais, os universais ou os números) é definido de modo que nenhum dado empírico possa estar relacionado à pergunta sobre sua existência, então e~sa pergunta é desmascarada como ipso facto sem sentido: nada pode ser considerado como uma resposta genuína a ela. As supostas respostas - sim, Deus existe! ou não, Ele não existe! - são ambas impostores proposicionais. Tudo que possa ser legitimamente dito pode ser dito de modo claro, com as condições para a sua significabilidade sendo idênticas às condições para a sua verificabilidade (o que não quer dizer que todas as proposições significativas sejam verdadeiras, é claro, e sim que haveria algum conjunto de experiências - que não ocorreriam se a proposi66

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

ção fosse falsa- que estabeleceriam se a proposição é verdadeira). A precisão (proporcionada pelo critério verificacionista da verdade) torna.:.se o correspondente positivista da prece. A transformação positivista da teoria empírica do conhecimento em uma teoria do significado fez com que a expressão condenatória "sem sentido"viesse a ser atribuída aos vestígios de grande parte do que antes havia sido considerado conhecimento. Aquela expressão simples permitia realizar um programa de higiene cognitiva como o mundo jamais vira antes. O Círculo de Viena, que durou de 1924 a 1930, chegando ao fim com o trágico assassinato de Moritz Schlick por um exaluno psicótico, * teve um efeito que se alastrou para fora de Viena e continua agindo até hoje, com freqüência nos capítulos "filosóficos" introdutórios de livros didáticos de ciências da natureza ou sociais. (A presença nesses capítulos de expressões como "uma pergunta sem sentido porque empiricamente irrespondível" é uma boa deixa. Em psicologia, por exemplo, a escola behaviorista que predominou por várias décadas do século xx costumava afirmar que os termos psicológicos não reduzíveis a estímulos e respostas observáveis eram sem sentido.)

DRAMA TIS PERSONAE DO CÍRCULO DE VIENA Moritz Schlick, se não o pensador mais dinâmico e inovador do Círculo, foi um homem cujas sinceridade positivista e capacidades organizacionais parecem ter sido fundamentais ao sucesso do grupo. Nas * O aluno, Johann (ou Hans) N elbock já havia sido duas vezes internado em clínicas psiquiátricas por ameaçar Schlick. Ele desenvolvera um delírio em que o influente filósofo era responsável não apenas por seus problemas sentimentais, mas também por suas dificuldades em arranjar emprego. Ele atirou em Schlick na escadaria central do prédio principal da universidade (uma placa de latão ainda marca o local) quando o filósofo se apressava para dar uma aula. Os nazistas de Viena, já numerosos em 1930, aplaudiram o assassino psicótico pela vitória na batalha pela higiene demográfica, sendo Schlick, um protestante alemão, pintado nos jornais diários como um judeu ateu. Ateu ele era, mas judeu nem um pouco. Na verdade, ele descendia da pequena nobreza prussiana. 67

INCOMPLETUDE

palavras do filósofo Rudolf Carnap: ''A atmosfera agradável das reuniões do Círculo devia-se, acima de tudo, à personalidade de Schlick e à sua cordialidade, tolerância e modéstia inexauríveis". 16 Tendo estudado física na Alemanha com o grande Max Planck, viera a Viena em 1922 para assumir a prestigiosa cátedra de filosofia das ciências indutivas da universidade, a mesma cátedra que tivera como titulares Ernst Mach e o gigante da física Ludwig Boltzmann (para quem a rejeição da hipótese molecular por parte de Mach acarretara uma tragédia profissional e pessoal).* Schlick via com simpatia o clima de discussão em Viena, e sua presença na universidade logo atraiu pensadores de várias disciplinas com idéias afins. De início, eles se reuniam num velho café vienense. Mas o número de participantes gradualmente aumentou e, em 1924, Schlick concordou em tornar as reuniões um pouco mais formais, transferindo o grupo para uma sala da universidade. Embora todos (ou quase todos) no Círculo defendessem idéias positivistas e cada um (mesmo o platônico clandestino) tivesse um vínculo ou afinidade profunda com as ciências exatas, entre eles reinava uma diversidade de interesses, personalidades e opiniões. Havia, por exemplo, Rudolf Carnap, que estudara física e matemática em Jena, onde fora influenciado pelo lógico Gottlob Frege (1848-1925). Carnap estava "especialmente interessado nos problemas e técnicas da lógica formal" e ficaria contente em ver todas as questões reduzidas a um tratamento técnico - claro que aquelas que teimassem em se manter irredutíveis seriam declaradas sem sentido. 18 Dizia-se que seu rosto, sobretudo na juventude, "parecia quase exalar sinceridade e honestidade". 19 Sua franqueza intelectual impressionou seus colegas positivistas; ele trabalhava e aprendia constantemente. Quando algum assunto que fosse novo para

* De uma análise estatística do comportamento de um grande número de moléculas Boltzmann havia conseguido deduzir as leis da termodinâmica. Seu trabalho foi subestimado devido à rejeição positivista predominante da realidade das moléculas por parte de Mach. Boltzmann suicidou-se, talvez em parte por desespero profissional. 11 68

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

ele ou no qual quisesse se atualizar surgia na conversa, apanhava um pequeno caderno e anotava algumas palavras. 2º Sua facilidade de redação logo fez dele o principal expoente das idéias do Círculo. Otto Neurath era cientista social e economista, um homem de dimensão elefantina (ele assinava suas cartas com um desenho de elefante), e energia e capacidade de gozar a vida igualmente elefantinas. Tanto Carnap (que era um introvertido) como Neurath ( que não era) tinham um pendor pelo utopismo político, e N eurath em particular tentou conduzir o Círculo em direções políticas, muitas vezes dando a falsa impressão, talvez involuntária, de que reinava no Círculo uma homogeneidade política. «Schlick em especial parecia ressentir-se disso, já que em Viena o Círculo era conhecido por seu nome, o Schlick-Kreis:' 21 Neurath e Carnap sentiam também que o Círculo estava intimamente ligado a outros movimentos culturais. Em particular, havia uma afinidade de pontos de vista entre o Círculo e a ideologia inspirada no design industrial da Bauhaus.Ambos eram uma expressão da neue Sachlichkeit, a "nova objetividade" com o selo de aprovação das ciências. E na Alemanha havia o "Grupo de Berlim", centrado no filósofo da ciência Hans Reichenbach, cuja visão era quase idêntica à do Círculo de Schlick. A irmã de Neurath, a cega Olga Neurath, fumante de charutos, também era membro ativo do Círculo. Ela era matemática, com gostos amplos que se estendiam à lógica. Na juventude, havia escrito três artigos, um dos quais, sobre a álgebra das classes, é descrito por Clarence I. Lewis, em sua Survey of symbolic logic [Pesquisa da lógica simbólica], como "uma das contribuições mais importantes para a lógica simbólica': Olga Neurath era casada com Hans Hahn, também importante integrante do Círculo. Hahn havia sido responsável pela vinda de Schlick da Alemanha para Viena. Matemático de primeira, seu nome eternizou-se no útil teorema da extensão de Hahn-Banach na análise funcional. Os interesses matemáticos de Hahn eram amplos, e ele acabou se interessando por lógica. Foi ele quem chamou a atenção do Círculo para os trabalhos em lógica matemática do alemão Gottlob Frege e do inglês Bertrand Russell. Nutria também uma admiração ilimitada 69

INCOMPLETUDE

por Russell e prestou ao Círculo de Viena o grande serviço de pouparlhes a dificuldade de ler os monumentais Principia Mathematica, em três volumes, explicando-os para eles em seu seminário do ano acadêmico de 1924-5. Hans Hahn interessa particularmente à nossa história porque, quando Gõdel decidiu mudar seu foco da teoria dos números para a lógica matemática, Hahn tornou-se orientador de sua dissertação. Embora a especialidade de Hahn não fosse lógica (conquanto tivesse realizado algum trabalho significativo em teoria dos conjuntos), seus interesses matemáticos eram flexíveis o suficiente para acomodar o novo interesse de Gõdel. Gõdel entrou pela primeira vez em contato com Hahn em 1925 ou 1926 e contou a Hao Wang que Hahn fora um professor de primeira, explicando tudo "nos mínimos detalhes". Os interesses intelectuais de Hahn também iam bem além da matemática. Um dos interesses extramatemáticos de Hahn era a busca de indícios empíricos dos fenómenos parapsicológicos, um tema quente em Viena na época. Um grande número de médiuns célebres apareceu nos anos do pós-guerra, e um comitê acabou sendo formado, incluindo Schlick, Hahn e outros pensadores de orientação científica, com o objetivo de investigar as alegações daqueles médiuns, cuja veracidade setornou um incómodo ponto de discórdia dentro do Círculo.Apesar de descrente, Hahn tinha uma mente aberta o suficiente para aborrecer os demais membros, por exemplo, seu cunhado Otto Neurath. "Quem se interessa por essas questões?", perguntou certa vez Neurath com seu vigor característico, respondendo à própria pergunta nos seus termos sociológicos prediletos: ''Aristocratas acríticos e decadentes e alguns intelectuais supercríticos como Hahn. Esse tipo de estudo fomenta a crença nas forças sobrenaturais e serve apenas aos grupos reacionários". 22 Enfim havia também dois alunos jovens de Schlick, Frederich Waismann e Herbert Feigl, que, como "alunos favoritos", foram convidados por Schlick para se juntar ao Círculo. Hahn também convidaria dois de seus alunos mais talentosos, Karl Menger e Kurt Gõdel, para a companhia seleta do Círculo de Schlick. 70

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

OUTRA VEZ: O HOMEM É A MEDIDA DE TODAS AS COISAS Em 1929, quando Schlickrejeitou a oferta de uma cátedra prestigiosa e lucrativa em sua Alemanha natal, os demais membros do Círculo decidiram celebrar sua permanência publicando, em homenagem a Schlick, um opúsculo que definia os princípios e objetivos de seu ponto de vista conjunto. O resultado: uma espécie de manifesto positivista intitulado Wissenschaftliche Weltauffassung: Der Wiener Kreis ou A visão de mundo científica: O Círculo de Viena. "Tudo': anunciava o manifesto, "é acessível ao homem. O homem é a medida de todas as coisas." As antigas palavras dos sofistas foram reiteradas textualmente, só que com nova conotação científica: qualquer pergunta não suscetível, em princípio, à medição, ou seja, aos procedimentos empíricos, simplesmente não é uma pergunta. Como os limites da cognoscibilidade são congruentes com os limites do significado, nenhuma questão significativa consegue escapar ao nosso alcance. Somos cognitivamente completos. Alguns anos depois, Herbert Feigl (que viria a se tornar um filósofo da ciência proeminente nos Estados Unidos) foi co-autor de um artigo no Journal ofPhilosophy americano intitulado "Logical positivism: a new movement in European Philosophy': O artigo, escreve Feigl, forneceu ao ccnosso movimento filosófico sua marca registrada internacional". 23 O termo ccpositivismo" havia muito estava em circulação, sempre conotando uma atitude pró-científica como padrão para a significabilidade. Originalmente se aplicou às idéias de Auguste Comte ( 17981857) e Herbert Spencer (1820-1903). O físico vienense Ernst Mach (1838-1916) exigira, em nome do positivismo, que todas as proposições significativas fossem redutíveis a constructos de impressões dos sentidos, dando assim muito mais substância ao positivismo de Comte e Spencer. O capítulo "Observações introdutórias" de seu livro Contributions to the analysis ofsensations [Contribuições à análise das sensações] (1885) teve como subtítulo ccAntimetafísico". Seu positivismo o levara a denunciar tanto a realidade dos átomos como a relatividade de 71

INCOMPLETUDE

Einstein. Os positivistas de Schlick reconheceram em Mach uma de suas luzes orientadoras, embora moderando suas denúncias da relatividade o suficiente para admitir Einstein, também, como uma de suas inspirações (se bem que ignorando a interpretação realista dada por Einstein à teoria dele. Os positivistas, pelo contrário, foram inspirados pela redefinição de Einstein do conceito de "simultaneidade de eventos" em termos da velocidade da luz). "Lógico" foi acrescentado a "positivismo", explica Feigl, para enfatizar que os positivistas vienenses excluíam as proposições lógicas ( entre as quais incluíam a matemática) da disjunção normalmente exclusiva: empírico ou sem sentido. As verdades da matemática pura (ou seja, não incluindo a geometria física ou outros ramos das ciências factuais) são de fato a priori. Mas são a priori porque [... ] validadas com base no próprio significado dos conceitos envolvidos nas proposições da matemática. O Círculo de Viena considerava, por exemplo, as identidades da aritmética como verdades necessárias, baseadas na definição dos conceitos de número - e, portanto, análogas às tautologias da lógica (tais como "o que será será"; "o tempo mudará ou permanecerá o mesmo"; "não é possível comer e não comer seu bolo ao mesmo tempo"). 24

Ou seja, os positivistas lógicos acreditavam que a matemática, assim como a lógica, era destituída de qualquer conteúdo descritivo. As proposições matemáticas, se não totalmente tautologias, são análogas a elas. (É difícil entender essa sutileza, mas tudo bem por ora.) Em outras palavras, a matemática é meramente sintática; sua verdade deriva das regras dos sistemas formais, que são de três tipos básicos: as regras que especificam quais são os símbolos do sistema (seu "alfabeto"); as regras que especificam como os símbolos podem ser reunidos nas denominadas fórmulas bem-formadas; é as regras de inferência que especificam quais fórmulas podem ser derivadas umas das outras. Para ter uma noção do que significa caracterizar a matemática como sintática (embora o conceito seja examinado mais de perto no próximo 72

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

capítulo), contrastemos esse ponto de vista com o platonismo. Para quem acredita que a matemática é sintática, a expressão "é verdadeiro" assume um significado especial quando aplicada a uma proposição matemática: uma proposição matemática é verdadeira relativamente às regras estipuladas - a sintaxe - de um sistema formal. De modo similar, para um relativista moral como Protágoras, <<é verdadeiro': quando aplicado a um enunciado ético, é uma abreviatura de <<é verdadeiro em relação a onde x é uma pessoa _ou, mais provavelmente, um conglomerado de pessoas com os mesmos valores éticos. As verdades morais só são verdadeiras em relação às regras estipuladas por uma sociedade. São, na terminologia acadêmica em voga, constructos sociais. De forma semelhante, segundo esse ponto de vista, as verdades matemáticas são constructos formais. Já um matemático platônico emprega a palavra "verdadeiro", mesmo quando aplicada a enunciados matemáticos, exatamente da forma como costumamos empregá-la: não como uma abreviatura para "relativamente a x", mas para representar estados de coisas existentes. Para um platônico, a verdade matemática é o mesmo tipo de verdade predominante em outros domínios. Uma proposição p é verdadeira se e somente se p. "Papai Noel existe" é verdadeira se e somente se Papai Noel existe. "Todo número par maior que 2 é a soma de dois primos" é verdadeiro se e somente se não existe nenhum número par maior que 2 que não seja a soma de dois primos (mesmo que jamais consigamos prová-lo).*

x':

* O matemático prussiano Christian Goldbach (1690-1764) conjecturou que todo número par superior a 2 é a soma de dois números primos ( um número divisível apenas por 1 e por si mesmo). Assim, por exemplo, 4 = 2 + 2, 6 = 3 + 3, 8 = 5 + 3, e assim por diante. A conjectura de Goldbach foi confirmada para todo número par já verificado. Mas ainda não se descobriu a prova da conclusão universal de que todo número par maior que 2 é a soma de dois primos. O fato de a conjectura de Goldbach permanecer sem prova significa (pelo menos de acordo com os platônicos) que, além do ponto até onde foi a verificação dos matemáticos, um contra-exemplo pode estar espreitando: um número par que não seja a soma de dois primos. Ou então (de acordo com o platônico matemático) pode não existir contra-exemplo: todo número par pode ser a soma de dois primos, sem que haja um meio formal de prová-lo. Um platônico afirma que exis_te ou não um contra-exemplo, a despeito de termos uma prova disso. 73

INCOMPLETUDE

A visão, portanto, da natureza sintática da matemática - sua falta de conteúdo descritivo - foi indicada no próprio nome "positivismo lógico': (E o platônico Gõdel conviveu com os positivistas sem protestar.) O cenário das reuniões do Círculo de Viena era "uma sala um tanto sombria" no térreo do prédio da Boltzmanngasse que abrigava os institutos de matemática e física da universidade. (Hoje é o instituto meteorológico. )25 A sala estava repleta de fileiras de cadeiras e mesas compridas diante de um quadro-negro. Quando não usada pelos positivistas, era uma sala de leitura às vezes empregada para palestras. Aqueles que chegavam primeiro às reuniões das noites de quinta-feira afastavam algumas mesas e cadeiras do quadro-negro, o qual a maioria dos conferencistas usava. As cadeiras eram dispostas informalmente em semicírculo diante do quadro-negro, e numa mesa comprida no fundo da sala ficava quem quisesse fumar ou tomar notas. As pessoas conversavam de pé em grupos até o sinal de Schlick: uma palma forte com as mãos. As conversas cessavam, todos se sentavam, Schlick na extremidade da mesa mais próxima do quadro-negro. Ele anunciava o tema do artigo a ser lido ou da discussão a ser realizada, às vezes lia primeiro comunicados de colegas, e os procedimentos formais da noite tinham início. A cada reunião comparecia normalmente um máximo de vinte membros vienenses e, às vezes, visitantes estrangeiros. Por exemplo, John von Neumann ( que, entre outras capacidades prodigiosas, conseguia morar ao mesmo tempo em vários pontos afastados do globo, inclusive Budapeste e Princeton) podia dar o ar de sua graça se estivesse nas imediações. Passaram algum tempo com o grupo de Schlick: o jovem Willard van Orman Quine, dos Estados Unidos, que viria a dominar a filosofia analítica anglo-americana por várias décadas de seu posto em Harvard; Carl Hempel, da Alemanha, que, entre outras distinções, foi meu orientador no primeiro ano da pós-graduação; o grande lógico polonês Alfred Tarski (nascido Tannenbaum) da Polônia; e o filósofo Alfred Jules Ayer, da Inglaterra.Ayer, após passar alguns meses em Viena e assimilar as doutrinas, retornou à Inglaterra e descreveu suas assimilações no altamente influente e polêmico Language, 74

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

truth, and logic [Linguagem, verdade e lógica], disseminando assim as idéias dos positivistas de Viena no mundo de língua inglesa: Estamos convictos de que nenhum enunciado referente a uma "realidade" que transcende os limites de toda experiência sensível possível pode ter um significado literal. Donde se depreende que os esforços daqueles que procuraram descrever tal realidade foram todos dedicados à produção de contra-sensos.

De longe a figura mais influente ligada ao Círculo de Viena nem sequer foi um membro dele, e na verdade se recusou firmemente a sêlo. Trata-se do filósofo Ludwig Wittgenstein. Wittgenstein, pelo menos de acordo com a interpretação que irei propor, desempenha um papel importante, ainda que ambíguo, na história dos teoremas da incompletude de Gõdel. A influência quase mística de Wittgenstein sobre os membros do Círculo de Viena, pensadores estimados em meio aos quais o jovem lógico passou a pensar rigorosamente sobre os fundamentos da matemática, deve ter parecido extremamente dúbia a uma pessoa com as convicções de Gõdel. Vestígios ainda fumegantes do ressentimento de Gõdel em relação ao filósofo encontram-se no Nachlass, escrito (embora nunca exposto ao público) várias décadas após o Círculo de Viena deixar de existir e poucos anos antes da morte do lógico. Os pontos de vista de Gõdel e Wittgenstein sobre os fundamentos da matemática estavam, como veremos, em desacordo, e nenhum deles poderia reconhecer o trabalho do outro sem renunciar ao que havia de mais essencial em sua própria concepção. Cada um, acredito, era um espinho cravado na metamatemática do outro.

WITTGENSTEIN E O CÍRCULO Wittgenstein provinha de uma das famílias mais abastadas e culturalmente elitistas de Viena, "o equivalente austríaco aos Krupp, Carnegie, 75

INCOMPLETUDE

Rothschild, cujo opulento palácio naAlleegasse acolhera concertos de Brahms e Mahler, Clara Schumann, e do regente Bruno Walter". *26 Ele foi, em sua intensidade, preocupações, ambições e conflitos, indelevelmente marcado pelas sensibilidades daquela cidade intensa, preocupada, ambiciosa e conflituosa. Enquanto estudava engenharia aeronáutica na Technische Hochschule de Berlim, tomou conhecimento do paradoxo de Russell e se interessou pelos fundamentos da matemática. O famoso paradoxo de Russell é do tipo auto-referencial. O paradoxo do mentiroso- esta frase que você está lendo é falsa- é do mesmo tipo. O problema ocorre porque certo item lingüístico fala sobre si mesmo, ao menos potencialmente. Devido a essa auto-referencialidade, acabamos ao mesmo tempo afirmando que certo enunciado é verdadeiro e que também é falso, o que é logicamente impossível, caso algo de fato o seja. O paradoxo de Russell envolve o conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos. Conjuntos são objetos abstratos que contêm elementos, e alguns conjuntos podem ser elementos de si mesmos. Por exemplo, o conjunto de todos os objetos abstratos é elemento de si mesmo, já que é um objeto abstrato. Alguns conjuntos (a maioria) não são elementos de si mesmos. Por exemplo, o conjunto de todos os matemáticos não é um matemático-é um objeto abstrato-de modo que não é elemento de si mesmo. Agora formamos o conceito do conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos e perguntamos: ele é elemento de si mesmo? Ou ele é, ou não é, assim como a sentença problemática do paradoxo do mentiroso é, ou não é verdadeira. Mas, se o conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos é um elemento de si mesmo, então ele não é elemento de si mesmo, já que contém apenas conjuntos que não são

* Era uma família extremamente musical. O irmão do filósofo, Paul, era um pianista clássico que perdeu o braço direito na Primeira Guerra Mundial. Desenvolveu tamanha capacidade com o braço esquerdo que conseguiu prosseguir a carreira. O famoso Concerto para a mão esquerda de Ravel foi composto para Paul Wittgenstein. 76

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

elementos de si mesmos. E, se não for elemento de si mesmo, então é um elemento de si mesmo, já que contém todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos. Assim, ele é membro de si mesmo se e somente se não é elemento de si mesmo. Nada bom. Paradoxos têm sido muitas vezes encontrados espreitando nos locais mais profundos do pensamento. Sua presença costuma ser um sinal (como o canário que morre?) * de que conseguimos, às vezes involuntariamente, topar com um lugar profundo e problemático, uma fissura nos fundamentos. A descoberta do paradoxo de Russell teve conseqüências dolorosas sobre os fundamentos da matemática, em especial para uma pessoa: Gottlob Frege. Frege acabara de concluir sua obra monumental em dois volumes Grundgesetze der Arithmetic [As leis fundamentais da aritmética], a primeira tentativa de reduzir a aritmética a um sistema de lógica formal. A lógica que Frege empregou também inclui a teoria dos conjuntos. Em outras palavras (usando a linguagem de um lógico), conjuntos são incluídos como indivíduos no universo do discurso, sobre o qual as variáveis ligadas do sistema variam. O que isso basicamente significa é que o sistema pode ser interpretado como falando sobre conjuntos. Os números são então definidos em termos de conjuntos, e as leis aritméticas são derivadas dos axiomas e regras da teoria dos conjuntos e lógica. Os axiomas da teoria dos conjuntos de Frege permitiam a formação do conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos, e como esse conjunto envolve uma contradição - já que o conjunto é e não é, ao mesmo tempo, elemento de si mesmo.:_ havia algo de fundamentalmente errado com o sistema de Frege. Embora o sistema fosse adequado para a expressão de verdades aritméticas, era também inconsistente, a pior coisa que um sistema formal pode ser. É possível provar absolutamente tudo ( e, portanto, efetivamente nada)

* Alusão ao canário que os mineiros costumavam levar para dentro das minas para saber quando os níveis de oxigênio estavam baixos demais. A morte do canário era sinal de que estava na hora de abandonar a mina. (N. T.) 77

INCOMPLETUDE

a partir de uma contradição.* Desse modo, um sistema inconsistente é inútil como uma ferramenta de prova. Russell e seu colaborador,Alfred North Whitehead, conceberam um novo sistema formal para expressar verdades aritméticas, corporificado em seus Principia mathematica (justamente a obra que figura no título do artigo de 1931 em que Gõdel apresenta a prova do primeiro teorema da incompletude). Entretanto, para assegurar a consistência, Russell e Whitehead haviam imposto regras ad hoc para a formação de conjuntos. Sua teoria dos tipos determina que existem ordens crescentes no universo do discurso - os «tipos» das coisas sobre as quais interpretamos que a teoria formal fala. Indivíduos básicos constituem o tipo 1; conjuntos de indivíduos, tipo n; conjuntos de conjuntos, tipo m; conjuntos de conjuntos de conjuntos, tipo IV etc. Um item só pode ser elemento de um item de tipo superior. A questão, portanto, de um conjunto ser membro de si próprio nem sequer pode emergir. As regras dos Principia mathematica impedem a formação de conjuntos geradores de paradoxos, como o conjunto de todos os conjuntos não pertencentes a si próprios. Russell e Whitehead denominaram as suas regras de "teoria dos tipos», mas o problema era que não havia uma teoria real por trás das regras, como eles próprios reconheceram a contragosto. A única explicação para o fato de certos conjuntos serem admissíveis e outros não** era que, caso se admitisse o não-admissível, coisas terríveis aconteceriam com o sistema. O sistema formal deles é consistente por decreto. O desafio que Russell e Whitehead lançaram aos lógicos de criar uma

* Eis por que se pode provar qualquer coisa a partir de uma contradição. A regra de inferência conhecida como modus ponens diz que, de uma proposição condicional da forma se p, então q (onde p e q são proposições aleatórias quaisquer) e da proposição p, você pode deduzir q. Proposições da forma se p, então q são falsas se pé verdadeira e q é falsa, e verdadeiras em todos os demais casos. Logo, caso p seja uma contradição, se p, então q será verdadeira para qualquer q que se queira escolher. Portanto, da afirmação de uma contradição p, qualquer coisa pode ser inferida. ** Outro conjunto gerador de paradoxo é o conjunto de todos os conjuntos, conhecido como o conjunto universal. O matemático Georg Cantor (1845-1918) provou que o conjunto das partes de um conjunto (formado de todos os seus subconjuntos) sempre 78

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

solução menos ad hoc para bloquear a formação de conjuntos paradoxais foi o que desviou Wittgenstein da engenharia aeronáutica. O problema que aturdira o grande lorde Russell era obviamente algo sobre o qual valia a pena refletir. Wittgenstein foi para Cambridge, onde Russell era o filósofo mais proeminente do corpo docente, e imediatamente se apresentou ao eminente filósofo, matemático, ativista político e aristocrata.* Primeiro Russell ficou um pouco desconfiado com a estranha veemência do recém-chegado: "Meu alemão feroz [sic] aproximou-se e discutiu comigo após minha palestra", escreveu Russell à sua amante da época, Ottoline Morrell, a esposa aristocrática do parlamentar liberal Phillip Morrell. Durante o caso amoroso, Russell escrevia para ela em média três vezes ao dia, de modo que existe farta documentação sobre aquele período de sua vida. Seria bom se o adultério sempre rendesse esses resultados! "Ele está blindado contra quaisquer ataques do raciocínio. É realmente uma perda de tempo conversar com ele." Mas num curto período de tempo (enquanto Wittgenstein ainda cursava a graduação), as "ferozes" convicções do austríaco tiveram um efeito devastador sobre a confiança de Russell em seus próprios poderes lógicos: Estávamos ambos irritados com o calor- mostrei-lhe uma parte crucial do que vinha escrevendo. Ele disse que estava tudo errado, sem perceber as dificuldades por ter julgado meu ponto de vista e saber que não podia funcionar. Não consegui entender sua objeção- na verdade, ele não se expressou bem-, mas

tem uma cardinalidade maior que a do próprio conjunto original. Mas consideremos o conjunto universal. É claro que nenhum conjunto poderia ter uma cardinalidade maior que a do conjunto universal. Entretanto, seu conjunto das partes teria - uma contradição. Isso é conhecido como o paradoxo de Cantor, e as regras da teoria dos conjuntos precisam impedir a formação do conjunto universal. * Ele foi, pelo menos após a morte do irmão mais velho, o terceiro conde de Russell. Seu avô, lorde John Russell, introduziu a Reforro Bill de 1832 e serviu como primeiro-ministro sob a rainha Vitória. Bertrand Russell foi um ativista político, em particular um pacifista. Foi preso duas vezes: primeiro, em 1918, durante seis meses, por um artigo supostamente difamatório em uma revista pacifista, e de novo em 1961, aos 89 anos, por uma semana, devido à sua campanha pelo desarmamento nuclear. 79

INCOMPLETUDE

sinto no íntimo que ele deve estar certo, e que ele viu algo que me passou despercebido. Se eu também conseguisse ver, não me importaria, mas nessas circunstâncias a questão é preocupante e acabou com meu prazer de escrever só posso me basear no que vejo, mas sinto que provavelmente está tudo errado, e que Wittgenstein me achará um patife desonesto se eu prosseguir com isso. 27

A força da personalidade de Wittgenstein e sua atitude reformadora diante da filosofia, o santo rigor da missão de desiludir os contemporâneos de suas presunções (que tinha muito a ver com sua sensação vienense da exaustão decadente das velhas tradições),* tudo isso transformou a filosofia anglo-americana. Como Russell, os filósofos e estudantes de filosofia de Cambridge que passaram a cercar Wittgenstein pareciam não ter que entendê-lo para saber "no íntimo que ele devia estar certo". Seu brilho evidente, oracularmente (ainda que mal expresso) dispensado contra o pano de fundo de uma personalidade ferrenha e formidavelmente austera, tendia a resultar em uma exibição com grande poder de convencimento. Wittgenstein com freqüência se lamentava de que seus colegas e alunos de Cambridge não o entendiam. Em parte era o aspecto vienense de seu pensamento que os desconcertava. 29 Não foi apenas na determinação em obter uma metodologia para abolir a decadência dos velhos costumes e renovar totalmente o campo que ele se mostrou um vienense profundo. O modo atormentadamente dramático de Wittgenstein cultivar seu campo de investigação, o culto do gênio que ele propagava, também eram bastante vienenses. Ele lera na juventude e sempre conservara um grande respeito pelo estranho escritor vienense Otto Weininger ( 1880-1903), "uma figura quintessencialmente vienense" que sustentara que a única maneira de

* Wittgenstein n ão se lastimava, mas talvez até se orgulhasse perversamente do pequeno número dos gigantes da história da filosofia que chegara a estudar. Por outro lado, as epígrafes dos frontispícios de seus dois livros "foram retir adas de autores que dificilmente poderiam ter sido vienenses mais típicos: Kümberger para o Tractatus, Nestroy para as Investigações".28 80

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

um homem justificar sua vida (para uma mulher, não existe maneira) é adquirindo e cultivando a genialidade. 30 Weininger optou por se matar com um tiro na mesma casa onde Beethoven, o gênio que ele reverenciava acima de todos os demais, havia morrido. O próprio Wittgenstein acalentou idéias suicidas por nove anos (seus três irmãos mais velhos se suicidaram, também um ato quintessencialmente vienense), até vir a Cambridge e ser declarado gênio por Russell. 31 Lá em Viena, Wittgenstein, in absentia, também vinha exercendo uma profunda influência. Sua primeira obra publicada, Tractatus logicophilosophicus, em parte escrita nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, impressionara singularmente o grupo de Schlick. Tão estilísticamente interessante quanto seu criador, a obra alcançou, em sua elegância austera, uma espécie de poesia.* A ferramenta tradicional do filósofoargumento - é dispensada. Cada afirmação é apresentada, como observou certa vez Russell, "como se fosse um decreto do czar". A obscuridade de sentido do poeta é preservada apesar da (por meio da?) precisão formal de seu sistema de numeração esmerado, que organiza hierarquicamente suas afirmações.Assim, digamos, a proposição 3.411 (Tanto na geometria como na lógica, um lugar é uma possibilidade: algo pode existir nele) é uma elaboração da proposição 3.41 ( O sinal proposicional com coordenadas lógicas - tal é o lugar lógico), que é uma elaboração da 3.4 ( Uma proposição determina um lugar no espaço lógico). O sistema de numeração foi copiado do matemático Peano, que o empregara na axiomatização da aritmética, e é o sistema de numeração que Russell e Whitehead também empregaram nos Principia mathematica. O filósofo de Cambridge G. E. Moore sugeriu o título, inspirando-se no Tractatus theologico-politicus de Spinoza. Bertrand Rus~ell escreveu a

º

* Que era uma espécie de poesia foi o elogio condenatório de Frege: "O prazer de ler seu livro, portanto, não pode mais ser despertado pelo conteúdo, já conhecido, mas somente pela forma peculiar dada pelo autor. O livi"o, assim, torna-se uma realização artística, e não científica". (De uma carta de Frege a Wittgenstein de 16 de setembro de 1919, tradução inglesa em Monk 1990, p. 174.)

81

INCOMPLETUDE

introdução, que enfim, após muita dificuldade, assegurou ao autor uma editora. Wittgenstein detestou a introdução, especialmente após traduzida para o alemão: ''Todo o refinamento de seu estilo inglês': escreveu para Russell, "obviamente se perdeu na tradução, e o que restou foi superficialidade e deformação': A intimidade anterior entre Russell e Wittgenstein esfriou muito nos anos seguintes. "Ele tinha o orgulho de Lúcifer': foi uma das últimas conclusões de Russell sobre o caráter de Wittgenstein. Foi Kurt Reidemeister, um geômetra associado ao Círculo, quem em 1924 ou 1925, a pedido de Schlick e Hahn, estudou o Tractatus e sugeriu que o grupo o lesse em conjunto. Foi assim que os positivistas iniciaram um estudo conjunto do Tractatus, proposição por proposição, suas reuniões das noites de quintafeira agora dedicadas a Wittgenstein. Eles leram a obra não uma vez, mas duas, o esforço ocupando grande parte do ano. (Essas leituras semanais de trechos do Tractatus recordam a tradição judaica de leituras semanais da Torá. Por acaso, nove dos catorze membros originais do Círculo eram judeus de nascimento, embora claro que não por convicção - qualquer discurso teísta era encarado como paradigmaticamente sem sentido.) Os positivistas vienenses viram o críptico Tractatus como se ele oferecesse exatamente as novas bases purificadoras que buscavam. A proposição 4003, por exemplo, não poderia sintetizar mais perfeitamente as suas convicções fundamentais: A maioria das proposições e questões encontradas em obras filosóficas não são falsas, mas sem sentido. Conseqüentemente, não podemos dar nenhuma resposta a perguntas dessa espécie, mas podemos apenas observar que são sem sentido. A maioria das proposições e questões dos filósofos resulta de nossa incapacidade de entender a lógica de nossa linguagem.[ ... ] E não surpreende que os problemas mais profundos na verdade não sejam problemas.

Eles atribuíram a Wittgenstein o próprio critério verificacionista de significabilidade deles, a saber, que o significado de uma proposição é idêntico ao método de verificá-la. Ou, alternativamente, que o significado 82

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

de uma sentença pode ser reduzido à especificação das experiências que fariam com que a proposição fosse sabidamente verdadeira. Eles vêem uma confirmação de seu próprio positivismo em proposições como 6.53, exortando as pessoas a "só dizer o que pode ser dito, ou seja, proposições da ciência natural" e 4.11, "a totalidade de todas as proposições verdadeiras é toda a ciência natural (ou todo o corpus das ciências naturais),: Eles também acreditavam que Wittgenstein tivesse explicado as verdades da matemática e da lógica, reduzindo-as a tautologias, destituídas de qualquer conteúdo descritivo.A proposição 4.461 afirma que "proposições mostram o que dizem: tautologias e contradições mostram que não dizem nada. Uma tautologia não tem condições de verdade, já que é incondicionalmente verdadeira; e uma contradição não é verdadeira sob nenhuma condição': Termos referentes a itens do mundo poderiam estar contidos em tais tautologias, digamos, "Sócrates é mortal ou não é': Mas essas palavras referenciais são irrelevantes à verdade da tautologia. É o significado das constantes puramente lógicas - ou e não - que determina a verdade da tautologia, e "4.0132 Minha idéia fundamental é que as 'constantes lógicas' não são representantes; que não pode haver representantes da lógica dos fatos': Toda lógica é, em última análise, tautológica: "6.1262 A prova em lógica não passa de um expediente mecânico para facilitar o reconhecimento de tautologias em casos complicados". Como toda lógica é tautológica, ela não diz nada:" 5.43 Na verdade, todas as proposições da lógica dizem a mesma coisa, a saber, nada': "6.125 Portanto nunca pode haver surpresas em lógica:' (Gõdel, é claro, estava destinado a fornecer a maior das surpresas da história da lógica, a qual, nas palavras do lógico Jaakko Hintikka, é "mais estranha que as outras por várias ordens de grandeza". 32 Portanto, o leitor já deve suspeitar, a esta altura da discussão, que as visões de Wittgenstein sobre filosofia da lógica, culminando na proposição 6.125, o colocariam em conflito frontal com os resultados de Gõdel. Como veremos, Wittgenstein nunca aceitou que Gõdel tivesse provado o que de fato provou. Isso, também, pode parecer ao leitor quase paradoxal.) A discussão de Wittgenstein, no Tractatus, sobre a matemática em 83

INCOMPLETUDE

contraste com a lógica é breve. A matemática, ele diz, é um método de lógica (6.2 e 6.234); logo, presume-se que tudo que ele disse da lógica se aplique à matemática. A matemática, ele diz (6.2 ), também não diz nada, não tem conteúdo descritivo, embora, por ser expressa em equações, pareça ter: 6.2323 Uma equação apenas marca o ponto de vista do qual considero as duas expressões; ela marca a sua equivalência de significado. 6.2341 Constitui a característica essencial do método matemático o emprego de equações. Pois é devido a tal método que toda proposição da matemática é óbvia.

As proposições matemáticas, assim como as tautologias da lógica, não representam fato algum, porque são, em certo sentido, meramente gramaticais. "6.233 Quando se pergunta se a intuição é necessária à solução de problemas matemáticos, deve-se responder que a própria linguagem fornece aqui a intuição necessária." (A Proposição 6.233 também o contrapõe frontalmente aos resultados de Gõdel, como veremos.) Por linguagem propriamente dita, Wittgenstein subentende sintaxe, as regras que estipulam aquilo que pode ser dito. A matemática, à semelhança da lógica, é sintática. Os significados são irrelevantes à determinação da verdade, mesmo os "significados" das constantes lógicas e do"=" matemático, pois não são nada além do que as regras gramaticais que estipulam seu modo de emprego: 3.33 Na sintaxe lógica, o significado de um símbolo não deveria desempenhar nenhum papel. Deve ser possível estabelecer a sintaxe lógica sem mencionar o significado de um símbolo: somente a descrição de expressões pode ser pressuposta.

O interessante é que, com base apenas nessa proposição, Wittgenstein alega ter demonstrado o erro fundamental da teoria dos tipos: "3.331 A partir dessa observação, voltamo-nos para a 'teoria dos tipos' de Russell. Pode-se ver que Russell deve estar errado, porque teve de 84

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

mencionar o significado de símbolos ao estabelecer as regras para eles". As duas proposições seguintes, 3.332 e 3.333, "liquidam o paradoxo de Russell". Desse modo, Wittgenstein, pelo menos, estava satisfeito, pelo menos enquanto escrevia o Tractatus, por ter solucionado o problema que originalmente o atraiu à filosofia da lógica. Wittgenstein viria mais tarde a rejeitar muitas das afirmações de seu Tractatus. Na verdade, a descontinuidade de seu pensamento foi considerada tão radical que ele foi dividido no "primeiro" e "segundo" (ou "último") Wittgenstein. Em lugar da lógica da linguagem monolítica inicial, o segundo Wittgenstein fala de muitos "jogos de linguagem" diferentes, cada um com suas regras próprias. No primeiro Wittgenstein, o contrasenso (por assim dizer) interessante, característico da filosofia, deriva da violação das regras que ditam os limites de toda significabilidade; no segundo Wittgenstein, o contra-senso interessante resulta de confundir as regras de um jogo de linguagem com as de outro. (Comum aos dois Wittgenstein é a crença de que todos os problemas filosóficos emergem de confusões sobre sintaxe.) A visão homogênea de uma só linguagem, com um conjunto de regras, que confortou os positivistas, deu lugar a um pluralismo, com tintura pós-moderna, de jogos de linguagem. O segundo Wittgenstein passou a enfatizar muito mais os aspectos sociais do cumprimento de regras. As regras estão corporificadas em formas sociais de comportamento (também atraente à sensibilidade pós-moderna). Mesmo a lei da não-contradição não devia ser considerada absoluta: Veremos a contradição a uma luz bem diferente se olharmos as suas ocorrências e as suas conseqüências antropologicamente, por assim dizer -

ou

quando a olharmos com a exasperação de um matemático. Ou seja, nós a olharemos de modo diferente se tentarmos apenas descrever como a contradição influencia os jogos de linguagem ou se tentarmos olhar para ela do ponto de vista do legislador matemático. 33

A atitude de Wittgenstein diante da lógica matemática mudou radicalmente. A teoria pluralista do cumprimento de regras do segundo 85

INCOMPLETUDE

Wittgenstein pretendia subverter o monologismo: que existe uma só lógica e seu nome é Principia mathematica. Enquanto o primeiro Wittgenstein trabalhara arduamente com Russell nos problemas da lógica, o último Wittgenstein passou a considerar todo aquele campo como uma "maldição" (enquanto Russell, desanimado com seus trabalhos anteriores com Wittgenstein - sua incapacidade de entendê-lo-, abandonou o campo e escreveu best-sellers).* 34 Mesmo assim, entre o primeiro e o último Wittgenstein existe acordo suficiente em várias questões, inclusive questões fundamentais da filosofia da matemática. O ponto de vista de Wittgenstein sobre o cumprimento de regras mudou, mas ele permaneceu fiel à afirmação de que toda a natureza da matemática deriva do cumprimento de regras. Tudo que acontece na matemática é uma conseqüência do cumprimento de regras, daí as "intuições" matemáticas não passarem de invenções de nossa confusão. Se víssemos claramente o que estamos fazendo quando realizamos matemática, não recorreríamos a essas invenções. Tanto o primeiro como o segundo Wittgenstein concordam, então, que não pode haver surpresas genuínas em matemática. Quando, portanto, uma surpresa da ordem do resultado de Gõdel surgiu, teve que ser negada.

DO QUE NÃO PODEMOS FALAR Embora Wittgenstein possa ter acreditado que eliminou sumariamente o paradoxo de Russell- exatamente o problema que o afastara da engenharia aeronáutica e atraíra para o mundo da filosofia da

* Sua História da filosofia ocidental (History of Western philosophy ), publicada em 1945, um relato bem abrangente e acessível exatamente do que seu título promete, tornou-se um best-seller duradouro da Simon and Schuster. Russell voltou-se a tais popularizações da filosofia, após abandonar o trabalho mais técnico ao qual se dedicara antes de Wittgenstein entrar em sua vida. 86

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

lógica e da linguagem-, todo o Tractatus constitui um paradoxo confesso, como o próprio filósofo francamente admite. De acordo com suas próprias prescrições, as suas proposições são sem sentido. Wittgenstein proibiu que se falasse sobre uma linguagem de dentro da linguagem. Não se pode falar sobre a natureza sintática da lógica ou da matemática sem violar a sintaxe da linguagem. Ela precisa ser demonstrada. 6.54 Minhas proposições são elucidativas pelo fato de que aquele que me entende acaba por reconhecê-las como contra-sensos, após se ter alçado através delas - como degraus -

para além delas. (Deve-se, por assim dizer, jogar

fora a escada após se ter subido por ela.)

A última metáfora, pela qual Wittgenstein é famoso, foi tomada do crítico teatral/filósofo Fritz Mauthner, sobre cuja Sprachkritik Wittgenstein te~deu a ser bem crítico no Tractatus. 4.0031: "Toda filosofia é uma 'crítica da linguagem' (embora não no sentido de Mauthner) ". A atitude de Wittgenstein para com a contradição inerente ao Tractatus talvez seja mais zen que positivista. Ele considerou a contradição inevitável. Ao contrário dos filósofos de orientação científica que se inspiravam nele, ele convivia bem com paradoxos. O paradoxo não significava, para Wittgenstein, que algo dera profundamente errado no processo da razão, acionando um alarme para se ir em busca da premissa falsa oculta. Sua despreocupação em face do paradoxo constituía um aspecto de seu pensamento praticamente incompreensível para os membros do Círculo de Viena, tão distantes da mentalidade zen.*

* Talvez por isso achasse as conversas com eles tão infrutíferas que, nas ocasiões em que concordava em se encontrar com alguns, muitas vezes simplesmente se voltava para a parede e lia em voz alta a poesia de Rabindranath Tagore, "um poeta indiano muito em voga em Viena naquela época, cujos poemas expressam a visão mística diametralmente oposta à dos membros do Círculo de Schlick". 35 87

INCOMPLETUDE

Em sua autobiografia, Carnap lembrou como o Círculo de Viena penara com a afirmação de Wittgenstein sobre a questão da "possibilidade de falar sobre expressões lingüísticas': * Carnap pediu várias vezes que Wittgenstein elucidasse esse ponto e foi sumariamente banido da presença de Wittgenstein. Schlick e Waismann tinham permissão de se reunir com Wittgenstein em pessoa regularmente. Waismann porque estava escrevendo um comentário sobre o Tractatus - embora Wittgenstein acabasse desistindo de fazer com que Waismann o enten desse, e o livro jamais ficasse pronto. De todo o Círculo enfeitiçado por Wittgenstein, Waismann talvez fosse o positivista mais apaixonado pelo filósofo. Ele mudava de ponto de vista cada vez que Wittgenstein o fazia e, como alguns dos estudantes de Cambridge igualmente impressionáveis, começou a imitar os tiques de comportamento do filósofo. Em cada reunião de quinta-feira do Círculo, ele informava os demais membros das últimas novidades sobre as idéias do filósofo, começando pela ressalva: "Vou contar para vocês os últimos progressos no pensamento de Wittgenstein, mas este rejeita qualquer responsabilidade por minhas formulações. Lembrem-se disso': 37 Os membros do Círculo a quem Wittgenstein se recusava a receber ficavam assim informados, por meio de Schlick e Waismann, das idéias do filósofo, que eram freqüentemente citadas em seus artigos. Alguns filósofo~ austríacos expressaram dúvidas sobre a própria existência daquele "dr. Wittgenstein", ao qual o

* Carnap viria a aceitar (prematuramente) o teorem a da incompletude de Gõdel como confirmação da insistência do Círculo na metalinguagem significativa, operacionalizando assim o programa positivo do Círculo de eliminação de todos os elementos metafísicos. ''Através do método de Gõdel", ele começou a demonstrar como "mesmo a metalógica da linguagem poderia ser aritmetizada e formulada na própria linguagem". Mas foi o próprio Gõdel quem jogou um balde de água fria em Carnap, convencendo-o - ou pelo menos tentando convencer - de que o resultado que ele produziu por seu método entrava em conflito com o programa positivista. "Embora Gõdel não tivesse persuadido Carnap nessa questão fundamental, ele conseguiu levar Carnap para uma direção fortemente platônica em sua definição de analíticidade, a base do programa de sintaxe."36 88

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

grupo de Schlick se referia com tanta freqüência. Talvez fosse simplesmente uma invenção da imaginação de Schlick, "um personagem mitológico inventado como um líder para o Círculo': 38 Assim como em Cambridge, o efeito de Wittgenstein nos positivistas lógicos, em particular Schlick e Waismann, é quase inexplicável. A esposa de Schlick lembra que o marido saiu de casa para ver Wittgenstein pela primeira vez como se estivesse partindo em peregrinação religiosa. "Ele retornou em estado de êxtase, falando pouco, e senti que não devia fazer perguntas." Feigl, mais tarde, contou: Schlick o adorava, e Waismann também. Como outros discípulos de Wittgenstein, chegaram até a imitar seus gestos e maneira de falar. Schlick atribuía a Wittgenstein insights filosóficos profundos que, na minha opinião, foram formulados com muito mais clareza na própria obra inicial de Schlick. 39

O tom de aspereza no depoimento de Feigl merece um comentário, já que "Feigl sempre teve uma capacidade incomum de se relacionar bem com todo mundo", 40 capacidade confirmada por seu artigo memorialista, em que quase todos com quem havia cruzado na vida são descritos como dotados da personalidade mais amigável e da máxima agudeza intelectual. A aversão de Feigl por Wittgenstein, expressa de modo indireto, parece remontar à sua "admiração ilimitada por Carnap", um pensador sistematicamente preciso e consciencioso. 41 Após banir Carnap de sua presença, Wittgenstein disse para Feigl: "Se ele não consegue farejar isso, não posso ajudá-lo. Ele simplesmente não tem nariz!". Quando a admiração de Feigl por Carnap se tornou clara, ele também foi banido. A exasperação de Wittgenstein com seus discípulos mesmo em sua Viena natal, a insistência em que, embora pudesse parecer um positivista, decididamente não era, gira em torno do sentido da proposição final de seu Tractatus, numerada simplesmente como 7, a fulminante (como as palavras de um antigo profeta): Wovon man nicht sprechen 89

INCOMPLETUDE

kann, darüber muss man schweigen, ou: aquilo de que não podemos falar devemos consignar ao silêncio. O Círculo de Schlick interpretou o enunciado conclusivo de Wittgenstein, bem como todo o seu livro, como afirmação de que o uso impróprio das condições da linguagem não apenas (tautologicamente) acaba em contra-senso, mas também que, fora dos limites do dizível, nada existe. Mas para Wittgenstein existia realmente "aquilo de que não podemos falar': O ético ou - o que representa a mesma coisa para ele - o místico é aquilo de que não podemos falar. O ético, o místico, é ao mesmo tempo real e inexprimível. Ele acreditava ter explicado tudo que pode ser dito no Tractatus, mas, como contou a um editor potencial ( que acabou aprovando o livro), o que ele não dissera no Tractatus - porque não podia ser dito - era mais importante do que aquilo que dissera: Certa vez quis escrever algumas palavras no prefácio que acabei omitindo, mas que escreverei para você agora porque podem ser uma chave para você: eu queria escrever que meu trabalho consiste em duas partes: aquela que está aqui e tudo que não escrevi. E exatamente essa segunda parte é a importante. Pois o Ético está delimitado de dentro, por assim dizer, em meu livro; e estou convencido de que, estritamente falando, só pode ser delimitado desta maneira. Em suma, eu penso: tudo aquilo que muitos estão balbuciando hoje eu defini em meu livro mantendo silêncio a respeito. 42

Ele julga ter demonstrado que é muito pouco o que pode ser dito ao se dizer tudo que pode ser dito. A pergunta é se o silêncio necessário, imposto pela proposição 7, oculta absolutamente nada ou, pelo contrário, oculta todas as coisas mais importantes. Os positivistas certamente interpretavam Wittgenstein dentro da primeira alternativa, o que é quase certamente um dos motivos de ele achar que não entenderam nada do seu pensamento. Ironicamente, o Círculo de Viena, unido por sua aversão profunda ao mistério, vinha aceitando um pensador comprometido com o mistério, pelo menos na medida em que questões de ética, estética, metafí90

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

sica, o sentido da vida - todos os assuntos que haviam banido do domínio da análise racional - estavam envolvidas. O «indizível" é, para Wittgenstein, como o "incognoscível" para os empiristas tradicionais, uma medida de nossos limites. Ao tirar a medida de tudo que podemos dizer, delimitando-o, em suas palavras, de dentro, ele está tomando a medida de tudo que não podemos dizer, indicando-o sem expressá-lo, já que a expressão é, em princípio, impossível. Claro que, no tocante ao dizível, ele de fato propunha uma doutrina compatível com o positivismo, que banisse o mistério. O significado de uma proposição não tautológica é seu método de verificação. Quanto à verdade matemática, Wittgenstein apresentou uma visão compatível com a dos positivistas, dissolvendo nas regras da sintaxe o mistério aparente de sua aprioricidade e certeza. Conquanto Wittgenstein se enfurecesse com a insistência dos positivistas em ajustá-lo ao leito de Procrustes de sua precisão, eles quase sempre reagiram com adoração, ao menos no início, enquanto Gõdel ainda comparecia às sessões das noites de quinta-feira. Olga TausskyTodd, uma matemática da idade de Gõdel que passou algum tempo no Círculo de Viena, escreve: "Wittgenstein era o ídolo do grupo. Sou testemunha disso. Uma discussão podia ser resolvida citando-se seu Tractatus". O visitante A. J. Ayer, que aproveitaria bem sua estada de três meses em Viena, escreveu ao seu amigo Isaiah Berlin, na Inglaterra, em fevereiro de 1933: "Wittgenstein é uma divindade para todos eles". Bertrand Russell, que eles também respeitavam como um empirista de boa reputação, "foi um mero precursor de Cristo (Wittgenstein)': Mesmo o mais sóbrio dos positivistas, Rudolf Carnap, admite, em suas notas autobiográficas no volume de Schilpp em sua homenagem, certa dose de veneração quase religiosa: Quando ele começava a formular sua visão sobre algum problema filosófico específico, costumávamos sentir a luta interna que o acometia naquele exato momento, uma luta pela qual ele tentava penetra~ da escuridão até a luz sob uma tensão intensa e dolorosa, que chegava a ser visível em seu rosto tão 91

INCOMPLETUDE

expressivo. Quando, enfim, às vezes após um esforço prolongado e árduo, sua resposta aparecia, seu enunciado pairava diante de nós como uma obra de arte recém-criada ou uma inspiração divina.[ ... ] A impressão que ele nos dava era de que o insightsurgia como que por uma inspiração divina, de modo que não podíamos evitar o sentimento de que qualqu er comentário ou análise racional e sóbria seria uma profanação.

Foi nesse Círculo estranhamente encantado por Wittgenstein (ainda mais estranho por ser um círculo de positivistas, os inimigos jurados do feitiço cognitivo) que Kurt Gõdel ingressaria quando estudante, um observador reservado captando com discrição as opiniões à sua volta ... e chegando às próprias conclusões.

GÕDEL NO CÍRCULO DE VIENA: O DISSIDENTE SILENCIOSO Apesar do profundo e secreto desacordo com os positivistas, a filiação de Gõdel ao Círculo resultou nos poucos anos mais gregários de sua vida introvertida. Ele vinha se encontrando regularmente - não apenas nas noites alternadas de quinta-feira na sala despojada onde o Círculo de Viena completo se reunia, mas também nas sessões às altas horas da noite nos cafés daquela cidade tagarela- com homens, e ocasionalmente com uma ou outra mulher, que _compartilhavam seu interesse, ainda que não suas intuições, em questões de fundamentos. O sempre amigável Feigl relata: Do lado pessoal, eu mencionaria que Gõdel, junto com outro estudante membro do Círculo, Marcel Natkin ( originário de Loclz, Polônia), e eu viramos grandes amigos. Encontrávamo- nos com freqüência para passear nos parques de Viena e, é claro, tínhamos discussões intermin áveis sobre questões lógicas, matemáticas, epistem ológicas e de filosofia das ciências nos cafés até altas horas da noite. 92

às vezes

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

Karl Menger, num curso de teoria das dimensões que vinha ministrando, teve um aluno chamado Kurt Gõdel, "um homem jovem, magro e anormalmente quieto. Não me lembro de ter falado com ele naquele tempo". 43 Foi através das reuniões regulares do Círculo que Menger começou a se relacionar com Gõdel, que, embora atribulado, persistiria até o fim da vida de Gõdel. Quase todos que participavam daquelas reuniões descreveram Gõdel nos mesmos termos, como evidentemente brilhante ( embora nos perguntemos se essa evidência surgiu em retrospecto, depois de plenamente compreendidas as implicações do anúncio de 1930), mas sempre calado, sem confiar nos outros. Gõdel era, de acordo com Feigl, "um trabalhador muito modesto e diligente, mas sua mente era claramente de um gênio de primeira". 44 "Nunca ouvi Gõdel falar nessas reuniões nem participar das discussões; mas ele demonstrava interesse mediante ligeiros movimentos da cabeça que indicavam aprovação, ceticismo ou discordância': disse Menger, que também relata: Após uma sessão em que Schlick, Hahn, Neurath e Waismann haviam falado sobre linguagem, mas na qual Gõdel e eu não falamos nenhuma palavra, comentei no caminho para casa: "Hoje mais uma vez superamos esses wittgensteinianos em seu wittgensteinismo: ficamos em silêncio". "Quanto mais penso na linguagem", respondeu Gõdel, "mais me surpreendo com o fato de as pessoas conseguirem entender umas às outras."

O que será que Kurt Gõdel pensava sobre aqueles "wittgensteinianos"? Sabemos, é claro, embora eles não soubessem, que ele discordava profundamente dos positivistas lógicos, sobretudo de sua interpretação da verdade matemática, mas também dos aspectos mais gerais. Um homem cuja alma havia sido arrebatada pela visão platônica da verdade não podia simpatizar com denúncias da metafísica. Ele não aceitaria uma teoria do significado que tachasse de "sem sentido" todos os enunciados descritivos que não fossem em princípio empiricamente verificáveis. A essência do platonismo matemático é a afirmação de que a matemática, 93

INCOMPLETUDE

embora não empírica, é ainda assim descritiva. Gõdel era um estranho no ninho positivista. Embora compartilhasse do compromisso deles com a precisão, bem como do interesse na aplicação filosófica dos avanços lógicos de Frege, Russell e Whitehead, divergia totalmente de suas metaconvicções. Ele contou a Hao Wang, muitos anos depois (21 de novembro de 1971), que os positivistas estavam fundamentalmente errados ao pensar que todo pensamento significativo pudesse ser reduzido às percepções dos sentidos: ''Algum reducionismo está certo, [mas deveríamos] reduzir a (outros) conceitos e verdades, não a percepções dos sentidos. [... ] É às idéias platônicas que as coisas devem ser reduzidas': 45 Na carta não enviada ao sociólogo Grandjean, após seu ataque inicial à sugestão lisonjeadora do sociólogo de que seu trabalho havia sido "uma faceta da atmosfera intelectual do início do século xx", ele prosseguiu com as palavras: É verdade que meu interesse pelos fundamentos da matemática foi despertado

pelo "Círculo de Viena", mas as conseqüências filosóficas de meus resultados, bem como os princípios heurísticos que levaram a eles, não são nem um pouco positivistas ou empiristas. Veja o que digo no livro recente de Hao Wang From

mathematics to philosophy, nas passagens citadas no Prefácio. Veja também meu artigo "What is Cantor's continuum problem?" ["Qual é o problema do

continuum de Cantor?"] em Philosophy of mathematics, publicado pela Benacerraf and Putnam em 1964; em particular,pp. 262-5 e pp. 270-2.*

* Nas páginas citadas, Gõdel expõe diretamente suas convicções platônicas, usando a indecidibilidade da hipótese do continuum de Cantor (de que não existe nenhum conjunto que seja ao mesmo tempo maior que o conjunto dos números naturais e menor que o conjunto dos números reais no sentido da cardinalidade), um resultado matemático que ele ajudou a provar, como provocação: "Pois se os significados dos termos primitivos da teoria dos conjuntos [... ] forem aceitos como corretos, segue-se que os conceitos e teoremas da teoria dos conjuntos descrevem alguma realidade bem determinada, na qual a conjectura de Cantor precisa ser verdadeira ou falsa. Logo, a sua indecidibilidade com base nos axiomas aceitos atualmente só pode significar que esses axiomas não contêm uma descrição completa daquela realidade. Tal convicção não é irreal, pois é possível mostrar formas pelas quais a decisão de uma questão, que é indecidível com base nos axiomas usuais, poderia não obstante ser obtida': 94

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

Fui um realista conceitual e matemático desde cerca de 1925. Nunca sustentei a visão de que a matemática é sintaxe da linguagem. Pelo contrário, essa visão, entendida em qualquer sentido razoável, pode ser refutada por meus resultados.

Está tudo dito naquela carta não postada. Gõdel havia se tornado um realista matemático em 1925, havia participado das reuniões do Círculo de Viena entre 1926 e 1928, e em 1928 começara a trabalhar na prova do primeiro teorema da incompletude, que ele interpretou como refutador de - um princípio central do Círculo de Viena, exatamente o princípio que fizera com que acrescentassem o termo cclógico" à visão de Mach do positivismo. Ele usara a lógica matemática, a menina dos olhos dos positivistas, para destruir a posição antimetafísica positivista. No entanto, lá estava ele, em 1974, ainda tendo de explicar, em cartas que nunca enviou, que não era um positivista, que a intenção de seus célebres teoremas havia sido, na verdade, provar que os positivistas estavam errados. Os positivistas haviam endossado a visão dos sofistas de que o homem é a medida da verdade. Gõdel tentou defender o antagonista implacável dos sofistas: Platão. Gõdel, ao contrário do amigo Einstein, não tinha um senso de ironia bem desenvolvido, o que, no fim das contas, é uma lástima.

GÕDEL E WITIGENSTEIN Difícil imaginar duas personalidades mais díspares. Wittgenstein e Gõdel eram ambos gênios, ambos gênios torturados, de fato. Mas o modo como apresentavam ao mundo a genialidade atormentada não poderia ter sido mais radicalmente diferente. Wittgenstein tinha visões claras sobre a natureza, os deveres e os privilégios dos gênios. Certa vez, ele falara com Russell sobre Beethoven:

95

INCOMPLETUDE

Um amigo de Beethoven contou que chegou à porta do músico e ouviu-o "praguejando, uivando e cantando" a sua nova fuga. Decorrida uma hora completa, Beethoven enfim veio até a porta, aspecto de quem lutara contra o diabo e depois de 36 horas de jejum, porque a cozinheira e criada havia sido afugentada por sua fúria. É assim que deve ser um homem. 46

Wittgenstein era esse tipo de homem, encenando o grande drama do gênio, de modo que Russell, quando ainda estava fascinado, descreveu-o a Lady Ottoline como" [... ] talvez o exemplo mais perfeito que já conheci do gênio como tradicionalmente concebido: entusiasmado, profundo, intenso e dominador". Ele era o tipo do gênio capaz de atrair discípulos tão fanáticos a ponto de desabotoar os primeiros botões da camisa como ele e imitar seus tiques e manias, como bater com as mãos na testa diante de um insight filosófico ou de sua ausência. Eles podem ter discordado entre si sobre a interpretação correta de Wittgenstein, mas concordavam que a interpretação correta, se é que pudesse ser atingida, seria quase necessariamente verdadeira. (Essa convicção persiste até hoje em bolsões significativos da filosofia anglo-americana.) Embora ele declarasse mais do que discutisse, as declarações se apresentam, individualmente e em conjunto, com a austeridade lógica por que anseiam os pensadores em busca de rigor. Essa austeridade se aplicava à pessoa também, como se a pureza da lógica formal tivesse se corporificado no homem, seus padrões de verdade absoluta impostos ao comportamento humano. Um episódio escolhido quase aleatoriamente (existem tantos), contado por Fania Pascal, que o conheceu em Cambridge na década de 1930, é prova disso: Extraí as amígdalas e jazia no hospital Evelyn Nursing Home com pena de mim mesma. Wittgenstein veio me visitar. Reclamei: "Sinto-me como um cão que foi atropelado". Ele se indignou: "Você não sabe como se sente um cão que foi atropelado".47

96

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

Assim como padrões da matemática fizeram com que não-matemáticos se sentissem desprezivelmente inadequados por comparação, os padrões comportamentais matematicamente rigorosos que Wittgenstein parecia exigir podiam com facilidade fazer os outros se sentirem fraudulentos. Wittgenstein parecia, comprovadamente, a coisa real. Era a genialidade manifesta, com todo o Sturm und Drang da consciência supremamente elevada, uma visão diante da qual se esperava que um pensador, mesmo um positivista lógico, desfalecesse. Em contraste com a exibição dramática de genialidade de Wittgenstein - seus alunos de Cambridge recordam que dava para ver o sofrimento dele ao pensar-, temos Gõdel, indicando com movimentos ligeiros de cabeça quando concorda, discorda ou desconfia. Sua genialidade hermeticamente fechada não permitindo que quase nada do Sturm und Drang de sua consciência elevada se manifestasse, Gõdel não proferiu nenhuma palavra sobre sua discordância fundamental em relação às crenças do Círculo de Viena até que dispusesse de uma prova matemática rigorosa que falasse em nome dele, até que tivesse teoremas matemáticos prolixos o bastante para revelar suas convicções metafísicas. É intrigante tentarmos imaginar o jovem Gõdel observando aqueles filósofos mais velhos enfeitiçados por Wittgenstein, talvez bastante ressentido ou crítico - não apenas dos pontos de vista, mas também do estilo do gênio, tão diferente de seu próprio, gênio que fazia tanto alarde sobre si mesmo, exigindo que os outros também participassem do alarde. Podemos imaginar (de forma quase blasfema) se não teria havido um tanto de emoção humana incitando o dissidente silencioso a encontrar uma refutação conclusiva para confrontar a «inspiração divina" do filósofo com uma autoridade maior: a matemática. Tal motivação, embora colateral, não passa de conjectura, dada a opacidade da vida interior de Gõdel. E temos a palavra de Gõdel de que Wittgenstein em nada influenciou seu trabalho em lógica matemática. Em um dos dois rascunhos da resposta não enviada ao questionário do sociólogo Grandjean, ao responder à pergunta «Existe alguma influência à qual você atribui significado especial no desenvolvimento de sua 97

INCOMPLETUDE

filosofia?", após citar o professor Gomperz, * Gõdel fez uma observação espontânea sobre quem, especificamente, não influenciara seu trabalho: "As idéias de Wittgenstein sobre a filosofia da matemática não exerceram nenhuma influência sobre o meu trabalho, nem o interesse do Círculo de Viena por aquele tema começou com Wittgenstein (mas remonta ao professor Hans Hahn)". Claro que influência, num sentido positivo, é bem diferente do tipo de incentivo mais obscuro sobre o qual estou especulando. E o acréscimo da ressalva espontânea sobre Wittgenstein revela, especialmente numa personalidade tão tenaz, ao menos um ressentimento retrospectivo. A influência do filósofo carismático sobre os membros do Círculo de Viena pode tê-lo irritado, divertido (mais duvidoso) ou até ajudado a inspirar-se na direção de sua prova: impossível saber. Mas o Gõdel mais velho deixou, no registro escrito, algumas poucas alusões ao ressentimento exasperado em relação a Wittgenstein. Em 1971, por exemplo, o matemático Kenneth Blackwell comentou com Gõdel que havia uma passagem na Autobiografia de Russell em que Gõdel era mencionado, com várias imprecisões (inclusive sua origem judaica), bem como uma referência um tanto superficial e sarcástica ao platonismo de Gõdel: "Gõdel acabou se revelando um platônico puro, e aparentemente acreditava que um 'não' eterno jazia lá no céu, onde os lógicos virtuosos poderão encontrá-lo na vida futura". Gõdel rascunhou uma carta, que evidentemente jamais foi enviada e está até hoje no Nachlass, respondendo ponto por ponto às imprecisões de Russell sobre o tema Gõdel (inclusive sua suposta origem judaica: "Devo dizer em primeiro lugar, a bem da verdade, que não sou judeu - embora não considere essa questão nem um pouco importante") e terminando assim:

* No conjunto alternativo de respostas ao questionário, ele respondeu à mesma pergunta, "Existe alguma influência à qual você atribui significado especial no desenvolvimento de sua filosofia?': incluindo as "aulas de matemática de Phillip Furtwãngler': bem como as aulas de filosofia (introdutórias) de Gomperz". 98

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

Quanto ao meu platonismo "puro': não é mais "puro" que o do próprio Russell em 1921, quando, na Introdução [àfilosofia matemática, publicada originalmente em 1919] ele disse que "A lógica está tão interessada no mundo real quanto na verdade o está a zoologia, embora com suas características mais abstratas e gerais': Naquela época, Russell havia encontrado o "não" até mesmo neste mundo, porém mais tarde, sob a influência de Wittgenstein, resolveu ignorá-lo.

Vindas de Gõdel, essas são palavras incisivas, motivo por que estão mofando até hoje numa pasta na Biblioteca Firestone. Um pouco mais do ressentimento latente durante décadas veio à tona - dessa vez intencionalmente - quando seu velho conhecido dos tempos de Viena, Karl Menger, mostrou algumas passagens da obra póstuma de Wittgenstein, Bemerkungen über die Grundlagen der Mathematik [Observações sobre os fundamentos da matemática], em que Gõdel é mencionado. 48 Escreve Menger: No início da década de 1970, comecei a escrever um livro sobre as minhas lembranças do Círculo de Schlick. Para que fosse completo, procurei idéias sobre Godel publicadas por Wittgenstein. Algumas estavam no seu livro Observações sobre os fundamentos da matemática, publicado em 1956. Além

de observações evasivas na parte 5, o apêndice Ida parte 1 discussão do problema -

[ .. . ]

contém urna

sem, porém, nenhuma apreciação adequada do

trabalho de Gõdel. Na verdade, Wittgenstein se equivoca a ponto de dizer que a única aplicação das provas da indecidibilidade é para "logische Kunststücken" [truques lógicos] .49

Depois que Menger mostrou as passagens para Gõdel, este respondeu a Menger: No que diz respeito aos meus teoremas sobre proposições indecidíveis, a passagem citada deixa claro que Wittgenstein não os entendeu (ou fingiu não entendêlos). Ele os interpreta corno urna espécie de paradoxo lógico, quando na verdade ocorre o contrário, a saber, um teorema matemático dentro de urna parte abso99

INCOMPLETUDE

lutamente incontestável da matemática (teoria finitária dos números ou combinatória). Aliás, a passagem inteira que você cita me parece um contra-senso. Ver, por exemplo, o "medo supersticioso dos matemáticos" da contradição. *5º

Essas reações decididamente irritadas a Wittgenstein vêm após a própria reação de Wittgenstein aos famosos resultados da incompletude de Gõdel; e a natureza da reação de Wittgenstein era do tipo que desperta ressentimento, ainda que não existisse nenhum antes. Wittgenstein nunca chegou a aceitar que Gõdel tivesse, rigorosamente através da matemática, alcançado um resultado de implicações metamatemáticas. A existência de um resultado matemático com implicações metamatemáticas contrariava o conceito de Wittgenstein de linguagem, conhecimento, filosofia, tudo.As ambições historicamente audaciosas do lógico reservado eram, de acordo com o ponto de vista de Wittgenstein, irrealizáveis em princípio. Não admira que o filósofo nem um pouco reservado descartasse os teoremas de Gõdel com a expressão depreciativa« logische Kunststücken", um repúdio que muitos matemáticos julgam até hoje extremamente antipático, como ao que parece Gõdel também julgou. (Nenhum matemático com quem falei tem algo de positivo a falar sobre Wittgenstein. Um matemático nitidamente enraivecido que conheço caracterizou a famosa proposiçao 7 de Wittgenstein, Aquilo de que não podemos falar devemos consignar ao silêncio, como "se realizasse a façanha de ser ao mesmo tempo grandiosa e vazia". O lógico Georg Kreisl, que quando estudante trabalhou com Wittgenstein e, mais tarde, conheceu Gõdel, escreveu: "Os pontos de vista de Wittgenstein sobre lógica matemática não valem grande

* Gõdel cita aqui uma observação entre parênteses na passagem 1, 17: "Die aberglaubische Angst und Verehrung der Mathematiker von dem Widerspruch : O medo e veneração supersticiosos dos matemáticos em face da contradição". Gõdel também escreveu para Abraham Robinson, um jovem lógico matemático que Gõdel tinha em alta estima, que o comentário de Wittgenstein sobre sua prova constitui uma "interpretação errônea, totalmente trivial e desinteressante" de seus resultados. 100

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

coisa, porque ele sabia muito pouco a res_peito e o que sabia estava confinado à linha de produtos de Frege-Russell". 51 Kreisl também condenou a influência transformadora de Wittgenstein sobre os estudantes, inclusive ele próprio.) Mas, num nível mais profundo do que os fundamentos da matemática, havia mais afinidade entre as idéias iniciais de Wittgenstein e o resultado de Gõdel do que a compreensão (equivocada) que o Círculo de Viena teve de Wittgenstein deixa transparecer. Wittgenstein na verdade não foi positivista, como anunciou de modo insistente. E sua proposição 7 do Tractatus representa uma versão de sua própria tese da incompletude. Claro que, para apreciar plenamente a natureza do desacordo e da afinidade entre Wittgenstein e Gõdel, é preciso entender o que Gõdel de fato fez. Portanto, retornaremos à relação espinhosa entre Wittgenstein e Gõdel mais tarde, após a apresentação das provas dos teoremas da incompletude. De qualquer modo, apesar da presença marcante de Wittgenstein no círculo de homens entre os quais Gõdel passou seus anos intensamente formativos, acaba sendo um mistério até que ponto o jovem lógico e platônico convicto levou Wittgenstein a sério. Acima de Wittgenstein se erguia a figura do matemático mais influente da época, David Hilbert, uma figura que Gõdel não poderia descartar como matematicamente incapaz. Como as de Wittgenstein, as idéias de Hilbert sobre a natureza da matemática não poderi~m ser mais incompatíveis com o resultado matemático que o jovem Gõdel logo apresentaria a um mundo pego de surpresa.

101

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

A INTUIÇÃO DE UM MATEMÁTICO

V

oltamos ao tema da singularidade irresistível da matemática, que busca a verdade por meio do raciocínio a priori e estabelece suas conclusões tão firmemente que nenhuma descoberta empírica sobre a natureza do mundo consegue derrubá-las. Desde a época remota dos gregos antigos, o conhecimento matemático parecia, por um lado, a área menos problemática do conhecimento humano, de fato o próprio modelo ao qual todo conhecimento deveria aspirar: certo e inatacável, em suma, comprovado. Não admira que os utopistas epistemológicos, de Platão em diante, tenham insistido na aplicação dos padrões e métodos da matemática, na medida do possível, a todas as nossas tentativas de conhecimento. Por outro lado, o conhecimento matemático tem parecido, para epistemólogos mais pessimistas, altamente problemático, sua própria certeza, que encoraja os utopistas, tornando-o suspeito a olhos mais críticos. Como pode um conhecimento ser certo e inatacável, em suma, 102

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

comprovado? Talvez, argumentam alguns epistemólogos do tipo mais pessimista, o conhecimento matemático não seja de fato um conhecimento. Talvez seja apenas um jogo, praticado com regras estipuladas, dizendo nada sobre nada. '7here is no there, there" ("Ali não há ali") é a frase famosa de Gertrude Stein sobre seu local de nascimento, Oakland, Califórnia. O mesmo ocorre com a matemática, pelo menos segundo algumas pessoas. De modo que a pergunta é: de onde vem a certeza? Qual a nossa fonte de certeza matemática? A base do conhecimento empírico consiste nas percepções dos sentidos: o que me é diretamente dado a conhecer - ou ao menos pensar - sobre o mundo externo mediante os sentidos da visão, audição, tato, paladar e olfato. A percepção sensorial permite que façamos contato com o que existe lá fora na realidade física. Qual a base do conhecimento matemático? Existe algo como a percepção sensorial em matemática? Será que as intuições matemáticas constituem seu fundamento? Nossa faculdade de intuição seria o meio de fazer contato com o que existe lá fora na realidade matemática? Ou simplesmente não existe "lá fora"? As provas matemáticas precisam partir de algum ponto. Com freqüência, as provas partem de conclusões de outras provas e, a partir delas, deduzem conclusões adicionais. Mas nem tudo pode ser provado, senão como podemos decolar? Deve existir, em matemática assim como no conhecimento empírico, aquilo que nos é "dado". Dado a nós por que meios? A intuição matemática é, muitas vezes, considerada o equivalente a priori da percepção sensorial. Intuições. Trata-se de algo ardiloso, e não apenas em matemática. Supõe-se que uma intuição seja algo que sabemos pura e simplesmente, em si e por si, e não com base em outro conhecimento. (Às vezes, é claro, a palavra é empregada numa acepção mais fraca, no sentido de uma sensação vaga, sem nenhuma certeza. Mas é no sentido mais forte que ela funciona nos debates epistemológicos.) Obviamente, as intuições ou, mais precisamente, as alegações de intuições - variam muito de pessoa para pessoa. Em algum lugar do planeta, neste momento, pes103

INCOMPLETUDE

soas estão se digladiando por defender intuições fundamentalmente divergentes e claramente não matemáticas. Todas as intuições genuínas são (tautologicamente) verdadeiras (tautologicamente, porque não as chamaríamos de «genuínas" se não fossem verdadeiras). Mas nem todas as pretensas intuições são intuições genuínas. Como distinguir se estamos de posse do artigo genuíno? Motivações sombrias- acreditar, por exemplo, em proposições que, se verdadeiras, aumentariam a nossa importância, notoriamente proposições que afirmam a superioridade inata do nosso próprio grupo - , além de abundantes, também tendem a se ocultar. As crenças resultantes podem parecer intuitivamente óbvias justo por não estarmos preparados para encarar sua origem real e suspeita em nossas próprias situações pessoais e egos. Você pode pensar que, em matemática - encastelada na mais elevada torre da Razão Pura, distante do enlouquecedor cenário humano lá embaixo-, motivações sombrias por trás das crenças são mínimas. Não obstante, mesmo em matemática, podemos ser enganados.Aspectos acidentais podem se insinuar em nosso raciocínio matemático mais puro, apresentando-nos proposições que parecem intuitivamente óbvias quando, na verdade, não são nada óbvias - talvez nem sejam verdadeiras. Para mostrar como as nossas «intuições" podem nos desencaminhar de modo traiçoeiro, vejamos os desenhos e diagramas freqüentemente usados para tentar tornar mais concretas as nossas abstrações matemáticas. Essas concretizações são quase inevitáveis, mesmo para as mentes mais argutas em matemática. David Hilbert, por exemplo, que, como veremos logo, tentou mais que qualquer um impor as regras mais rigorosas à matemática, escreveu: Assim, as figuras geométricas são sinais ou símbolos mnemônicos da intuição do espaço e são usadas como tais por todos os matemáticos. Quem é que não usa sempre, junto com a desigualdade dupla a > b > c, a figura de três pontos sucessivos numa linha reta como a figura geométrica da idéia de "entre"? Quem é que não se vale de desenhos de segmentos e retângulos encerrados 104

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

uns dentro dos outros, quando necessários para provar com rigor perfeito um teorema difícil sobre a continuidade de funções ou a existência de pontos de acumulação? Quem dispensaria a figura do triângulo, o círculo com seu centro, ou a cruz de três eixos perpendiculares? 1

Dado que até o mais rigoroso dos matemáticos recorre a esses auxílios da razão pura, pode acontecer de apelarmos, em nossa prova, a um detalhe inteiramente acidental de nosso desenho, ou que os desenhos dêem a impressão de que algo é de todo óbvio, quando na verdade não é. Digamos, por exemplo, que você queira provar que os ângulos da base de um triângulo isósceles são iguais. Apelando para o desenho l, isso parece simplesmente óbvio, não precisando de prova. Ou digamos que você queira provar que todos os ângulos de triângulos são agudos (têm menos de 90 graus). Com essa "verdade" em mente, você só desenha triângulos (desenho 2) que se conformem ao que quer provar. Esses são os únicos triângulos que ocorrem a você. Em outros campos do pensamento também - por exemplo, e notoriamente, na ética - as pessoas podem ter a ilusão de "intuições". Na ética, essas intuições ilusórias podem causar grandes tragédias no mundo real. Einstein e Gõdel estavam naquele caminho tranqüilo em Princeton porque parecia tão intuitivamente óbvio, a um grande número de pessoas na Alemanha de Einstein e na Áustria d.e Gõdel, que a coisa certa a fazer era purificar as nações arianas do mundo de seus elementos não arianos. A matemática não é a única área onde as coisas podem parecer intuitivamente óbvias e serem totalmente falsas. Mas a matemática parece ser singular, porque ela, e só ela, parece oferecer um método de depuração da verdade: o sistema axiomático. Não admira que um racionalista como o filósofo do século xvu Spinoza, cuja família de judeus portugueses estava vivendo em Amsterdã por motivos semelhantes aos que trouxeram Einstein e Gõdel para Princeton, qui. sesse apropriar-se do método axiomático da matemática e aplicá-lo à ética humana. O desejo de universalizar o rigor depurador da verdade do método matemático é precisamente o que caracteriza o movimento 105

Desenho 1

Desenho 2

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

epistemológico conhecido como racionalismo. Mas a pergunta prévia que precisa ser abordada, antes que comecemos a pensar na possibilidade de generalização do método matemático, é: em que consiste exatamente o sistema axiomático, e como atinge seu rigor invejável? A idéia por trás do sistema axiomático ( ou "axiomatizado" - usarei os dois termos de modo alternado) é que as múltiplas verdades de algum ramo particular da matemática, digamos, geometria ou aritmética, podem ser organizadas em axiomas, regras de inferência e teoremas. Os axiomas são as verdades básicas do sistema, intuitivamente óbvias. Entendemos o que significam, e isso parece bastar para sabermos que são verdadeiros. Não requerem nenhuma prova adicional. Usamos então as regras de inferência preservadoras de verdade* para obter outras verdades não óbvias, os teoremas, resultantes desses dados básicos. Por exemplo, vejamos a aritmética, o ramo mais simples da matemática. A aritmética envolve a estrutura dos números naturais - os velhos e regulares números de contagem, mais o zero - e as relações entre eles, dadas pelas operações de adição, multiplicação, e a relação de sucessor, que leva você de qualquer número n ao número imediatamente seguinte na ordem natural (n + 1). Todas as demais operações aritméticas, como a subtração e a divisão, podem ser definidas em termos dessas três. Em 1889,GiuseppePeano (1858-1932) reduziuaaritméticaacinco axiomas. Eis os três primeiros: zero é um número natural. O sucessor de qualquer número natural é um número natural. Números distintos

* Essas regras de inferência são leis perfeitas de herança de verdade. A verdade pertencente aos ancestrais (os axiomas) não pode deixar de ser legada aos descendentes (os teoremas). Assim, se você sabe que todos os x's são P' s, e sabe que certo indivíduo, i, é um x, então, pela regra de inferência conhecida como "instanciação universal': você sabe que i é um P. Por exemplo, digamos que você tenha certeza de que todos os matemáticos realizam sua obra principal antes dos quarenta anos, e sabe também que Gõdel era um matemático. Então você sabe também que Gõdel realizou sua obra principal antes dos quarenta anos. 107

INCOMPLETUDE

nunca têm o mesmo sucessor. Todos os três parecem triviais, que é exatamente como queremos os nossos axiomas. Os axiomas são tão triviais que podemos pressupor que sejam verdadeiros sem prová-los, com todo o resto decorrendo deles, como uma enorme planta serpenteante brotando de uma simples semente. Se queremos que toda a vegetação luxuriante seja garantida, não pode haver nenhuma dúvida possível sobre a verdade dos axiomas - e este "nenhuma dúvida possível" é basicamente o que queremos dizer com "intuitivamente óbvio" ou "dado básico", "trivial" ou "auto-evidente". Os teoremas de um sistema axiomático, por outro lado, só são aceitos como verdadeiros depois de provados, derivados dos axiomas ou derivados de outros teoremas, mediante regras de inferência que preservam a verdade. Vejamos uma analogia: os axiomas são como os primogênitos clássicos nas famílias: adorados simplesmente por existir. Os teoremas são os filhos que vêm depois, aqueles que têm de provar serem dignos de aceitação. (Os primogênitos podem ignorar a analogia. Para mim, terceira a nascer, a metáfora exerce certa atração.) Portanto, em um sistema axiomático (esses sistemas foram originalmente concebidos pelos gregos antigos, em particular, Euclides), começamos com poucos axiomas ( quanto menos, melhor, porque queremos apelar ao mínimo à intuição para maximizar a certeza). Em vez de uma política libertária de "vamos confiar nas boas intenções (intuições) dos cidadãos (matemáticos) para fazer a coisa certa", o sistema axiomático impõe alguns controles "governamentais" rígidos. Em vez dos apelos aleatórios a intuições, precisa haver um consenso geral sobre quais são os dados básicos imediatos - o fundamento-, com todo o resto sujeito à regulamentação da regra axiomática. Você pode imaginar a axiomatização como uma espécie de "grande governo da matemática". A motivação subjacente ao sistema axiomático é maximizar a certeza minimizando os apelos a intuições, restringindo-as aos poucos axiomas não elimináveis. Mas estes são cruciais porque, afinal, precisamos partir de algum ponto. 108

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

Durante grande parte da história do pensamento ocidental, pelo menos desde a época de Euclides, considerou-se que o sistema axiomatizado representasse a matemática- logo, o próprio conhecimento em sua forma mais perfeita. Gottlob Frege, que simplificou ainda mais o sistema axiomático de Peano para a aritmética, derivando seus cinco axiomas em um único, disse: "Em matemática, devemos sempre almejar um sistema que seja completo em si mesmo". 2 É essa construção do sistema que explica, segundo Frege, a certeza singular da matemática, e "nenhuma ciência pode estar tão envolta na obscuridade como a matemática, se deixar de construir um sistema': 3 O afã em limitar nossas intuições foi ainda mais longe. O objetivo tornou-se eliminar por completo as intuições. Esse objetivo é o que nos leva, enfim, à noção de um sistema formal. Um sistema formal é um sistema axiomático destituído de qualquer apelo à intuição. Por que dar o passo drástico de eliminar a intuição? Bem, as intuições, como já dissemos, são um negócio ardiloso. Embora as intuições genuínas sejam verdadeiras, como podemos saber quando estamos de posse do artigo genuíno? Talvez não possamos. Talvez o poder de convicção que leva à crença seja exatamente o mesmo quer a intuição seja real ou não. Então, de que vale apelar à intuição? Portanto, se não ocorresse nenhuma surpresa, pareceria recomendável n os livrarmos desses apelos, sobretudo ao praticarmos a ''mais rigorosa de todas as disciplinas". Na verdade, ocorreram surpresas que fortaleceram ainda mais o impulso em eliminar implacavelmente as intuições da matemática. O século x1x testemunhou avanços matemáticos que abalaram a confiança naqueles dados básicos intuitivamente óbvios de nossos sistemas axiomáticos. (Os primogênitos podem trilhar maus caminhos.) O mais radical desses eventos solapadores foi a descoberta da geometria não euclidiana. Esse avanço matemático imprevisto demonstrou que um dos dados básicos da geometria de Euclides, o famoso postulado das paralelas, afinal não é tão axiomático assim. Na verdade, é possível construir geometrias consistentes em que esse postulado nem sequer é 109

INCOMPLETUDE

verdadeiro!* Depois a teoria dos conjuntos também forneceu notícias desagradáveis sobre as nossas supostas intuições. Os dados básicos da teoria dos conjuntos, também tão intuitivamente óbvios, levam à formação de conjuntos infestados de paradoxos como o conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos. Claramente, as nossas intuições matemáticas não proporcionavam uma base tão segura assim. Se fosse possível expurgar nossos sistemas axiomáticos de quaisquer apelos à intuição, aquele seria o caminho a seguir. A eliminação das intuições se obtém destituindo o sistema axiomático de quaisquer significados, exceto aqueles definíveis em termos das

* O quinto dos cinco postulados de Euclides era o famoso postulado das paralelas, segundo o qual, por qualquer ponto fora de uma reta, uma única reta pode ser desenhada paralela à reta original. O próprio Euclides não ficou tão satisfeito com esse último postulado, achando-o muito diferente dos demais, com sua referência velada ao infinito, e sempre que pôde evitou empregá~lo em suas demonstrações. Por que o postulado das paralelas invoca o infinito? Duas retas são paralelas se, e somente se, nunca se cruzam. Mas, se você tomar uma região finita do espaço, poderá traçar, por um ponto, mais de uma reta paralela à outra linha (no sentido de não cruzar com ela). Portanto, o postulado das paralelas faz referência implícita ao infinito, e quaisquer intuições sobre o infinito despertam, com razão, desconfiança. A suspeita de Euclides sobre aquele elemento de seu sistema (sua obra-prima intitulou-se Os elementos) perdurou ao longo dos tempos, com diferentes matemáticos tentando converter o axioma problemático em um teorema, deduzindo-o dos outros quatro axiomas. Até que, no século x1x, os matemáticos mudaram de tática: tentaram mostrar que o quinto postulado decorria dos outros quatro indiretamente, tomando os quatro e a negação do quinto para ver se uma contradição poderia ser deduzida. Em vez de uma contradição, uma geometria totalmente nova e consistente foi encontrada! Três matemáticos chegaram de modo independente à geometria não euclidianas: o incomparável Carl Friedrich Gauss (1777-1855), conhecido como "o príncipe dos matemáticos"; Nikolai lvánovitch Lobatchevski (1792-1856); e o jovem János Bolyai (1802-60), o qual, ao topar com aquele novo mundo matemático em 1823, escreveu ao pai, Farkas Bolyai, ele próprio um matemático amigo de Gauss: "Descobri coisas tão maravilhosas que fiquei perplexo. [... ] Do nada criei um estranho mundo novo". Quando lhe mostraram os resultados, Gauss escreveu: "Considero esse jovem geômetra Bolyai um gênio de prin1eira grandeza". Mas teve de informar ao jovem gênio que ele não fora o primeiro a encontrar um tal estranho mundo novo. O próprio Gauss o fizera, mas abafara os resultados por achálos controvertidos demais. 110

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

regras estipuladas pelo sistema. As regras, em termos das quais todo o resto é definido, não pretendem ser nada além do estipulado. Não pretendem descrever alguma realidade objetiva, de objetos independentes como números ou conjuntos. Um sistema formal é precisamente o que nos resta após essa eliminação do significado. Essa depuração conforma novos ((controles governamentais", os mais enxutos que os matemáticos, de modo que nenhum apelo à intuição intervenha. Imagine-a como a tomada do poder da matemática pelos comunistas, abolindo apropriedade privada (significados), tudo sendo controlado por regras públicas. Um sistema formal, portanto, é um sistema axiomático, com seus dados básicos primitivos (os axiomas), suas regras de inferência e seus teoremas provados. Só que, em vez de formado de símbolos significativos- como termos que se referem ao número zero ou à função sucessor-, é formado inteiramente de sinais sem sentido, marcas no papel cujo único significado é definido em termos das relações entre eles conforme estipuladas pelas regras. Se, por um lado, os sistemas axiomáticos pré-expurgo falavam sobre, digamos, números (aritmética), conjuntos (teoria dos conjuntos) ou o espaço (geometria), um sistema formal é um sistema axiomático que não fala, em si, sobre nada. Não precisamos apelar às nossas intuições sobre números, conjuntos ou espaço ao formular os dados básicos do sistema formal. Um sistema formal é composto de regras estipuladas, que especificam os símbolos ('(alfabeto") do sistema e informam como combinar os símbolos entre si para produzir configurações gramaticais (fórmulas bem-formadas) e como proceder para deduzir fórmulas bem-formadas de outras fórmulas bem-formadas (as regras de inferência). A formalização dos sistemas axiomáticos visava proporcionar o padrão máximo de certeza para não dependermos das nossas intuições do que é matematicamente óbvio e do que não é. Seu objetivo era evitar de todo nossa dependência da intuição matemática>transformar nossa atividade matemática em processos completamente determinados por regras especificadas de modo tão claro a ponto de serem puramente mecânicos, não requerendo nenhuma imaginação ou engenho111

INCOMPLETUDE

sidade, nem mesmo uma compreensão do que os símbolos significam. Seguir as regras de um sistema formal - e um sistema formal é com- . posto inteiramente de regras - equivale a engajar-se em uma atividade combinatória que, consistindo puramente em funções recursivas (grosso modo, funções que informam como chegar a um resultado tomando o resultado de outra função recursiva, ou de uma função básica realmente simples),* pudesse ser programada num computador- em outras palavras, que seja computável. Essa atividade equivale a descobrir coisas usando um algoritmo,** uma seqüência de operações que informam o que fazer a cada passo, dependendo do resultado do passo anterior. Como o parágrafo anterior procurou mostrar, toda uma família de conceitos matemáticos inter-relacionados surgiu com a passagem para a formalização. Os conceitos de um procedimento mecânico ou eficaz, de funções recursivas e computáveis, de processos combinatórios e de um algoritmo significam mais ou menos a mesma coisa: essa família de conceitos gira em torno da idéia de regras aplicadas aos resultados de aplicações anteriores das regras, sem levar em conta nenhum significado, exceto o que possa ser captado nas próprias regras. A intuição não tem nenhuma chance de exercer sua ação perigosa num sistema formal. As intuições mostram o que devemos achar das coisas reais: do espaço, dos números, dos conjuntos. Não temos intuições sobre símbolos artificiais e sem sentido, e as regras rígidas criadas para manipulá-los. Não precisamos delas. Tudo que nossa razão a priori precisa fazer num sistema formal é especificado pelas regras, razão pela qual a idéia de um sistema formal está tão intimamente relacionada à idéia do computador, ao que os computadores podem efe* O conceito matemático tão útil de função recursiva foi definido a primeira vez por Gõdel em sua prova do primeiro teorema da incompletude. ** Apalavra deriva do nome do matemático persa do século rx Abu Ja'far Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi, que escreveu um importante livro de matemática em torno de 825 que se chamou Kitab al jabr w'al-muqabala [Livro da completude e do balanceamento]. Também derivamos nossa palavra "álgebra" do título de seu livro. 112

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

tuar e como o efetuam. Daí o conceito de computável fazer parte do emaranhado de conceitos em torno da noção de sistemas formais. Os sistemas formais, ainda que suas implicações sejam complexas a ponto de exigir certa perspicácia matemática para chegar até eles, têm uma transparência que bloqueia a intuição. A intuição é (supostamente) uma forma de tentar contornar a opacidade essencial das coisas reais, uma forma de fazer contato com elas, e é uma forma que se mostrou eminentemente não confiável em matemática, assim como em outras partes. Uma matemática realizada formalmente é uma matemática depurada de quaisquer verdades "evidentes" aquelas que alegam ter como base inquestionável a "verdadeira natureza das coisas". Se pudéssemos mostrar que sistemas formais logicamente consistentes são adequados para provar todas as verdades da matemática, teríamos eliminado com sucesso as intuições da matemática. (A ressalva de "logicamente consistentes" é, sem dúvida, necessária, já que, a partir de sistemas inconsistentes, é possível provar qualquer coisa.) Teríamos mostrado, também, que a matemática não deveria ser considerada intrinsecamente referida a algo. Ao banir as intuições, estaríamos eliminando os supostos objetos das descrições matemáticas. Estaríamos mostrando que a matemática simplesmente não é descritiva. A afirmação de que é possível e desejável banir as intuições, mostrando que os sistemas formais são totalmente adequados à prática da matemática, constitui a visão metamatemática conhecida como formalismo. Na interpretação do formalismo, a matemática se transforma num xadrez elevado a uma ordem maior de complexidade. Todos concordamos que não existe nenhuma realidade objetiva captada pelo sistema de xadrez. As regras estipuladas constituem toda a verdade do xadrez. De forma semelhante, de acordo com o formalismo, as regras estipuladas constituem toda a verdade da matemática. Vencemos o jogo em matemática provando teoremas - ou seja, mostrando que certas seqüências não interpretadas de símbolos decorrem de outras seqüências não inter113

INCOMPLETUDE

pretadas de símbolos, por meio de regras de inferência combinadas. Não existe verdade externa com a qual a matemática deva se comparar. O primeiro teorema da incompletude de Gõdel afirma a incompletude de qualquer sistema formal no qual seja possível expressar a aritmética. Você já deve ter desconfiado que a conclusão de Gõdel tem algo a dizer sobre a viabilidade (ou não) de eliminar todas as intuições da matemática. A forma mais direta de entender as intuições é imaginá-las dadas pela natureza das coisas: a intuição é vista como o correspondente a priori da percepção sensorial, uma forma direta de apreensão.Assim, a conclusão de Gõdel, ao ter algo a dizer sobre a viabilidade ( ou não) de eliminar todos os apelos às intuições da matemática, talvez também tenha algo a dizer sobre a existência real dos objetos matemáticos, como números e conjuntos. Em outras palavras, a adequação de sistemas formais - sua consistência e completude - está ligada à questão da derradeira eliminabilidade das intuições, que está ligada à questão da derradeira eliminabilidade de uma realidade matemática, que é a questão definidora do realismo matemático, ou platonismo. É devido a essas ligações que as conclusões de Gõdel sobre os limites dos sistemas formais têm tanto a dizer. Foi assim que se tornaram os teoremas mais prolixos da história da matemática e foram vistos, pelo menos pelo autor, como afirmação da posição metamatemática à qual se dedicara de corpo e alma. O jovem estudante havia encontrado uma prova para um teorema, o primeiro teorema da incompletude, dotada do rigor da matemática e do alcance da filosofia. A prolixidade matemática, ao contrário de qualquer outra espécie de prolixidade, não poderia ter combinado melhor com as excentricidades pessoais de Kurt Gõdel, um homem com tanta coisa a dizer sobre a natureza da verdade, do conhecimento e da certeza matemática, mas que gostaria de dizê-lo usando apenas a metodologia rigorosa da matemática. Com uma prova à mão, ele não teria de se envolver nos tipos de conversas humanas belicosas que via com desagrado, talvez até com horror. Aposto que jamais houve um homem que combinasse tanta 114

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

convicção com tão pouca inclinação para defendê-la pelos meios normais de que somos dotados, a saber, a fala. A ironia é que, embora os teoremas de Gõdel fossem aceitos como da máxima importância, os outros nem sempre ouviram o que ele tentava dizer neles. Eles ouviram- e continuam ouvindo - a voz do Círculo de Viena ou do existencialismo ou do pós-modernismo ou de qualquer outra tendência em voga no século xx. Ouviram tudo, menos o que Gõdel estava tentando dizer.

A MATEMÁTICA SE TORNA FORMAL O principal defensor do formalismo foi David Hilbert, o matemático mais importante de sua época. "A matemática", escreveu Hilbert, "é um jogo, que segue certas regras simples, com marcas sem sentido no papel." 4 Sua proposta de formalizar um ramo após o outro da matemática, começando pelo mais básico de todos, a aritmética, passou a ser chamada de programa de Hilbert. O sucesso do programa de Hilbert ofereceria uma confirmação importante do formalismo, explicando a aprioricidade sui generis da matemática como fruto da estipulação de regras. Os matemáticos, de acordo com o formalismo, não se dedicam a descobrir verdades descritivas, sejam do mundo real de coisas no espaço físico ou do mundo transempírico dos números e conjuntos. Seu objetivo jamais foi descobrir, por exemplo, quantas retas, paralelas a outra reta, podem passar por um dado ponto do espaço. O que fazem é manipular as regras mecânicas de sistemas formais autocontidos que sejam complexos a ponto de pôr à prova as habilidades dedutivas dos matemáticos. Em seu espírito, o formalismo de Hilbert aproximava-se das atitudes antimistério do Círculo de Viena, de modo que os positivistas lógicos naturalmente o adotaram, como informa Feigl:

115

INCOMPLETUDE

Com os formalistas (por exemplo, Hilbert), consideraríamos as provas matemáticas como procedimentos que partem de um dado conjunto de combinações de sinais (premissas, postulados) e, de acordo com regras de inferência (regras de transformação), levam à dedução de uma conclusão.

O formalismo confirma, pelo menos na esfera da matemática, o que os positivistas haviam declarado em seu manifesto: o homem é a medida de todas as coisas. Criamos os nossos sistemas fo rmais, e a matemática inteira decorre deles. Durante séculos, epistemólogos utópicos, como Descartes e Leibniz, haviam se inspirado na certeza e aprioricidade singulares da matemática e acalentado sonhos de estender essas características a todo o domínio cognitivo, eliminando o recurso aos indícios empíricos, que fornecem no máximo meras probabilidades. As características especiais da verdade matemática levaram homens normalmente moderados, retrocedendo até Platão, a celebrações quase místicas do seu alcance sobrenatural. Mas agora, com o formalismo, a aprioricidade e a certeza da matemática seriam produto de nada menos místico do que as regras mecânicas estipuladas de sistemas formais sem significado, replicáveis pelas engenhocas eletrônicas prestes a serem inventadas. Com o sucesso do programa de Hilbert, os fundamentos da matemática enfim seriam esclarecidos, e a nebulosidade que instigara a vertigem racionalista seria dissipada. Em 1899, David Hilbert publicou Grundlagen der Geometrie, ou Fundamentos da geometria, considerada a obra de geometria mais influente desde Euclides. Sua importância foi bem além da geometria. Ele mostrou que a geometria podia ser captada num sistema formal sob a condição de que a aritmética também fosse formalizada, já que a geometria, como todos os ramos da matemática, pressupõe as verdades da aritmética. (Nesse sentido, a aritmética é o mais básico de todos os sistemas matemáticos.) Em 1900, um ano após publicar seus Grundlagen der Geometrie, Hilbert proferiu a palestra programática do Segundo Congresso Inter116

CAPÍTULO 2. HILBERT E OIS FORMALISTAS

nacional de Matemáticos, realizado naquele ano em Paris . A data, inaugurando um século novo, foi importante. Na palestra, intitulada "Problemas matemáticos", Hilbert delegou a si mesmo a tarefa de descobrir o que o novo século traria em termos de realizações matemáticas. Ele expôs dez problemas cuja solução considerou mais importante. Em sua introdução, que tem o tom de um técnico estimulando os jogadores antes de uma partida, Hilbert assegura ao seu "time" de matemáticos que, por mais difícil que um problema específico possa parecer, a vitória é inevitável: Essa convicção da solubilidade de qualquer problema matemático é um incentivo poderoso para o trabalhador. Ouvimos dentro de nós o chamado perpétuo: eis o problema. Busque sua solução. É possível encontrá-la pela pura razão, pois na matemática não existe ignorabimus.

Hilbert descreve isso como uma convicção "que todo matemático compartilha, mas que ninguém até agora respaldou com uma prova". Ele então expôs os dez problemas. É interessante que, embora sendo um lógico-apenas um lógico, de acordo com os preconceitos matemáticos que persistiram até a sua própria época (e dos quais há resquícios ainda hoje) - , Godel contribuísse enormemente para os dois primeiros problemas, bem como para o décimo, que Hilbert, a figura predominante da matemática, definiu como os problemas mais importantes a serem resolvidos. O primeiro desses problemas é o que gira em torno da hipótese do continuum de Cantor. O que é a hipótese do continuum de Cantor? O grande matemático do século xrx Georg Cantor provou que (em termos gerais) existem mais números reais do que números naturais, embora exista um número infinito de ambos. Cantor mostrou, por meio de um argumento elegante chamado "argumento diagonal", que, no pareamento infinito de cada número natural com um número real, todo número natural corresponderá a um número real, mas alguns números reais ficarão sem correspondente. O conjunto dos números 117

INCOMPLETUDE

reais tem, portanto, maior cardinalidade (um número maior de elementos) do que o conjunto dos números naturais. Cantor conjecturou que não existe nenhum conjunto infinito intermediário entre o conjunto dos números naturais e o conjunto dos números reais. Ou seja, não existe nenhum conjunto com cardinalidade superior à dos números naturais e cardinalidade inferior à dos números reais. Essa é a hipótese do continuum de Cantor, e o primeiro problema de Hilbert era provar a verdade da hipótese do continuum de Cantor. Gõdel contribuiria para a solução desse problema, embora não de uma maneira que agradasse a Hilbert. Gõdel, junto com Paul Cohen, provou que, dentro da teoria dos conjuntos existente, não há como provar a verdade ou a falsidade da hipótese do continuum. Em outras palavras, o status da hipótese do continuum é o que Hilbert afirmou que não poderia existir: um ígnorabímus - uma afirmação que não pode ser confirmada nem desacreditada, uma afirmação sobre a qual permanecemos ignorantes. Mas é o segundo problema de Hilbert que é de interesse particular para nós. Aqui, também, a solução de Gõdel não poderia ter sido mais desagradável para Hilbert.

OSEGUNDO PROBLEMA DE HILBERT: A CONSISTÊNCIA DA ARITMÉTICA (A MAIS IMPORTANTE PROVA JÁ ENCONTRADA) O segundo problema de Hilbert era provar a consistência dos axiomas da aritmética. Um sistema é dito consistente se não produzir alguma contradição lógica. A premência do problema da consistência era um resultado direto da guinada para o formalismo. Quando os axiomas eram compreendidos como se fizessem afirmações verdadeiras sobre objetos reais, não havia uma preocupação tão forte com a inconsistência. Quando se dizia que algo era um axioma, pressupunha-se que aquilo era verda118

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

deiro no sentido mais ingênuo de "verdadeiro": ou seja, que aquilo descrevia algum estado de coisas. Assim, nem o axioma, nem qualquer teorema deduzido do axioma poderiam contradizer logicamente qualquer outro axioma ou teorema, porque seriam todos afirmações verdadeiras no sentido tradicional, prosaico de "verdadeiro": descritivos de coisas reais. Descrições verdadeiras e precisas sobre a realidade não podem ser logicamente incompatíveis entre si. Façamos uma analogia: se estou descrevendo fielmente o meu apartamento - que se localiza em Nova York, que tem apenas (para meu azar) um banheiro - , não preciso parar e me preocupar se algumas afirmações contradizem outras; se, por exemplo, poderei inferir que moro no subúrbio de Nova Jersey e tenho quatro banheiros. Se todas as minhas afirmações forem inequívocas e realmente descritivas, não se contradirão entre si, já que a verdade objetiva confirma todas elas. Mas num sistema formal, com axiomas privados de significado, e a verdade se resumindo à dedutibilidade, não podemos pressupor que os axiomas não gerarão teoremas logicamente incompatíveis. Nossos sistemas formais são constituídos mediante regras estipuladas. Quem garante que nós - meros seres humanos, afinal - construímos esses sistemas de forma consistente, que as regras não produzirão implicações contraditórias? Essa é a desvantagem de tomar o homem como a medida matemática de todas as coisas, sem nenhuma realidade independente para assegurar a consistência fundamental de nossos axiomas. Claro que, se meus axiomas levam a teoremas que são logicamente incompatíveis, então meu sistema é inútil, pior que a seqüência mais especulativa de conjecturas meramente probabilísticas ou de artifícios metafísicos que pretendem alcançar além dos limites do Ser e da Graça ideal.* Qualquer coisa pode ser deduzida dentro de um sistema inconsis-

* Alusão ao poema "How do I love thee?", de Elizabeth Barrett Browning: "How do I lave thee? Let me count the ways./ I lave thee to the depth and breadth and height! My sou! can reach, when feelingoutof sight / For the ends ofBeingand ideal Grace." (N. T.)

119

INCOMPLETUDE

tente, já que, a partir de uma contradição, qualquer proposição pode ser provada. Você pode alegar que, em uma interpretação rigorosamente formalista, a inconsistência perde a sua força. Afinal, qual o problema se, pela manipulação de fórmulas sem sentido, chegamos a fórmulas contraditórias sem sentido? O problema é que o jogo fica arruinado, pois simplesmente não é interessante tentar deduzir teoremas se tudo é dedetível. Mas isso não quer dizer que as contradições internas estejam demonstrando desastrosamente que nossos sistemas não podem ser verdadeiros - a eliminação da verdade extra-sistema é o próprio objetivo do formalismo. Você também pode achar que a urgência com que Hilbert insistiu que a matemática fosse provada consistente mostrou que ele não era de fato, no fundo, um formalista. De qualquer modo, seguindo a agenda formalista, se a matemática deve ser depurada com sucesso das intuições em prol da certeza, então provas formais da consistência dos sistemas depurados constituem uma necessidade premente. A maior prioridade de todas era provar a consistência da aritmética. Outros sistemas de matemática, por exemplo, a geometria, tiveram sua consistência relativa provada: contanto que a aritmética, o mais básico de todos os sistemas matemáticos, seja consistente. Esses tipos de provas, que estabelecem a consistência de um sistema como conseqüência da consistência de outro sistema, são chamados provas relativas de consistência. Todas essas provas relativas de consistência estavam relacionadas à consistência da aritmética, que se tornou assim o próximo passo, aquele que forneceria o fulcro para o programa de Hilbert. A prova da consistência da aritmética não podia ser relativa, como as demais provas da consistência. Teria que ser uma "prova absoluta': O tom da palestra de Hilbert de 1900 para as tropas matemáticas é extremamente otimista. Ele tinha certeza de que uma prova absoluta da consistência da aritmética era iminente. Mas, numa série de palestras de Hilbert na década de 1920, seu otimismo modulou-se em algo mais cauteloso. Sua mudança de humor foi provocada pelos paradoxos da teoria dos conjuntos, mais visivelmente o paradoxo de Russell de 1902, que trouxe o conjunto de todos os conjuntos que não são ele120

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

mentos de si mesmos à atenção horrorizada dos matemáticos, aumentando ainda mais os estragos do paradoxo de Cantor, envolvendo o impossível conjunto universal, o conjunto de todos os conjuntos.* Hilbert considerou "a situação referente aos paradoxos" com desânimo: Temos de admitir que o estado atual das coisas, em que topamos com os paradoxos, é intolerável. Pense bem: as definições e métodos dedutivos que todos aprendem, ensinam e empregam em matemática levam a absurdos! Se o pensamento matemático é falho, onde encontraremos verdade e certeza? 5

Mas ele continua expressando a confiança na existência de "um meio totalmente satisfatório de escapar dos paradoxos sem traição" ao espírito da matemática. ((Traição" ao espírito da matemática consistiria em ações como expelir da matemática a própria noção de infinito, conforme vinha sendo preconizada por matemáticos c9mo o holandês Luitzen Brouwer. Brouwer era um grande expoente da escola intuicionista de matemática, que é uma outra perspectiva metamatemática. ** Dentre todas as escolas não platônicas, os intuicionistas eram os que mais se opu-

* Ver nota do capítulo 1, página 78 (segunda nota). **Os intuicionistas eram os mais rigorosos de todos quando se tratava dos métodos aceitáveis de prova. As provas matemáticas deveriam limitar-se, de acordo com o intuicionista, a "provas construtivas", ou seja, aquelas que aplicavam operações concretas a estruturas finitas ou "potencialmente" (mas não de fato) infinitas. Referências a estruturas infinitas completas eram proibidas, assim como provas indiretas com referências à lei do terceiro excluído. Seguindo-se à risca as restrições rigorosas da matemática intuicionista, grande parte da matemática aceita -por exemplo, partes da análise clássica e mesmo da lógica clássica- não seria mais considerada aceitável. O próprio Brouwer renunciou a grande parte do trabalho que realizara antes de se converter num intuicional. Aliás, o nome "intuicionismo" pode parecer enganador, considerando-se o que viemos falando de intuições até agora, como exatamente o tipo de apelo à verdade matemática objetiva que os formalistas e intuicionistas pretendiam eliminar. Os intuicionistas sustentavam que as construções finitárias representavam, na verdade, construções mentais, a única espécie de construções mentais matemáticas que nós, seres finitos, poderíamos empreender. Assim, eles alegavam que suas restrições às provas matemáticas correspondiam de fato à psicologia humana. 121

INCOMPLETUDE

nham ao platonismo. Mesmo o formalismo pode ser interpretado de modo a não excluir uma abordagem basicamente platônica da matemática, contanto que intuições platonicamente sancionadas não invadam a prática matemática. O próprio Hilbert muitas vezes parece um platônico, embora de um tipo muito rigoroso consigo próprio. Hilbert certamente queria evitar as limitações extremas que os intuicionistas imporiam à prática matemática para impedir a possibilidade de paradoxos. A abordagem que Hilbert tinha em mente, quando falou em "esclarecer totalmente a natureza do infinito': estava dentro do alcance dos sistemas formais finitários. * Em outras palavras, a saída do atoleiro provocado na matemática pelos paradoxos da teoria dos conjuntos estaria, de acordo com Hilbert, no processo purificador de formalização - ou seja, na solução dos problemas do que Hilbert denominou "teoria da prova". O principal desses problemas era aquele que Hilbert pusera em segundo lugar na sua lista da palestra de 1900: encontrar uma prova finitária da consistência dos axiomas, primeiro da aritmética, depois de sistemas axiomáticos progressivamente mais fortes. Tudo começaria, então, com o passo "individual, mas absolutamente necessário" de provar a consistência do sistema formal da aritmética. O trabalho primeiro de Gottlob Frege e, após a descoberta do paradoxo de Russell, deste e Whitehead em Principia mathematica, preparara o terreno para a prova consagradora. O sistema formal exposto nos Principia mathematica era suficiente para expressar todas as verdades da aritmética; supunha-se também que fosse consistente. As regras ad hoc da teoria dos tipos impediam a formação de conjuntos geradores de inconsis-

* Ao falarmos de sistemas formais até aqui neste livro, viemos falando de sistemas formais finitários apenas, ou seja, sistemas formais com um alfabeto de símbolos finito ou enumerável (ou contável), fórmulas de comprimento finito e regras de inferência envolvendo apenas um número finito de premissas. (Os lógicos também trabalham com sistemas formais com alfabetos não enumeráveis, fórmulas infinitamente longas e provas com um número infinito de premissas.) 122

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

tências, como o conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si próprios. Mesmo assim, uma prova formal da consistência era uma necessidade. Depois, se além de consistente, um tal sistema formal pudesse ter sua completude demonstrada, permitindo assim provar todas as verdades aritméticas, o fulcro do programa de Hilbert teria sido garantido, e a crise criada pelos paradoxos superada. Entra em cena Gõdel.

123

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

GÕDEL EM KÕNIGSBERG que o lógico Jaakko Hin tikka chamou de Sternstunde de Gõdel, sua hora da estrela, ocorreu em 7 de outubro de 1930. O cenário foi o terceiro e último dia de um congresso em Kõnigsberg sobre a "Epistemologia das ciências exatas" que havia sido organizado pela Gesellshaft für empirische Philosophie, a Sociedade para a Filosofia Empírica, uma associação com pontos em comum com o Círculo de Viena e a Socie.:. dade para a Filosofia Científica, um grupo de discussão de Berlim cujo luminar era Hans Reichenbach, um filósofo da física. Os objetivos e atividades do grupo de Berlim assemelhavam-se aos do Círculo de Viena, e desde o início existiram estreitos vínculos entre os dois. Alguns dos matemáticos, lógicos e filósofos da matemática mais influentes haviam sido convidados para dar palestras no congresso. Gõdel, que acabara de concluir sua dissertação de doutorado, não era um peixe grande. Foi programado que ele, junto com outros peixes pequenos, daria uma palestra de vinte minutos no segundo dia do congresso.

O

124

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

No primeiro dia, houve quatro oradores, cada um defendendo uma posição metamatemática diferente. A meta preocupação abordada foi, como quase sempre acontece nas discussões de metamatemática, a aprioricidade e a certeza irresistíveis da matemática. Como se permitiu nosso ingresso no clube cognitivo mais fechado do universo? Rudolf Carnap veio de trem de Viena com Gõdel para apresentar uma dissertação intitulada ''As principais idéias do logicismo", expondo a visão de que as verdades matemáticas são, em última análise, redutíveis a tautologias da lógica. Arend Heyting, um matemático holandês, falou sobre "Os fundamentos intuicionistas da matemática", preconizando a eliminação de todas as provas que não fossem rigorosamente construtivas e que só se fizesse referência a idéias estritamente finitas ou pelomenos enumeráveis. (O resultado seria a eliminação de muitas partes bonitas da matemática.) David Hilbert, o principal defensor do formalismo, não veio de Gõttingen, mas seu ponto de vista formalista foi dignamente representado por John von Neumann. Houve também uma dissertação intitulada "A natureza da matemática: o ponto de vista de Wittgenstein", do resignado imitador de Wittgenstein Frederich Waismann. Logicismo, intuicionismo, formalismo, Wittgenstein: não havia nenhum representante do platonismo para defender aquele ponto de vista no primeiro dia em Kõnigsberg. Todas as visões representadas ali naquele dia estavam comprometidas com a crença de que a verdade matemática era redutível à dedutividade. As divergências entre elas eram sobre as condições de comprovação. Como Waismann vinha se preparando para a palestra em Kõnigsberg, Wittgenstein se reuniu com ele e Schlick, na casa deste último, regularmente no verão de 1930. Os pontos centrais da palestra de Waismann, segundo o biógrafo de Wittgenstein, Ray Monk, foram: "[ ... ] a aplicação do princípio da verificação à matemática para formar a regra básica: 'O significado de um conceito matemático é seu modo de uso e o sentido de uma proposição matemática é seu método de verificação"'. 1 125

INCOMPLETUDE

Monk prossegue: "De qualquer modo, a palestra de Waismann e todas as outras contribuições ao congresso foram eclipsadas pelo anúncio ali da famosa prova da incompletude de Gõdel". Na verdade, não foi exatamente isso que aconteceu no congresso em Kõnigsberg. É compreensível a suposição do biógrafo de Wittgenstein de que o anúncio da "famosa prova da incompletude" de Gõdel tivesse causado sensação entre os participantes do congresso, os quais, naquele primeiro dia, ouviram palestras incompatíveis com o resultado de Gõdel, cada palestra supondo que o conceito de verdade matemática é, de alguma maneira, redutível à dedutibilidade. Mas o "anúncio" de Gõdel passou quase despercebido. É verdade que a palestra de Waismann não sobressaiu em meio às outras três, mas isso porque, como relatam Menger e outros, os demais participantes concordaram que as idéias de Wittgenstein não estavam ainda maduras para serem debatidas. Não foi porque Gõdel virou o centro das atenções que Waismann foi empurrado para a sombra. Na verdade, o anúncio de Gõdel, na sessão de fechamento no terceiro e último dia do congresso, foi tão modesto e informal- tão pouco dramático - que mal pode ser chamado de anúncio, e ninguém, exceto um participante, prestou muita atenção nele.

O PRIMEIRO GRANDE MOMENTO DESPERCEBIDO DE GÕDEL: UMA TRIVIALIDADE NÃO TÃO TRIVIAL A palestra de vinte minutos de Gõdel no segundo dia do congresso também atraíra pouca atenção. Foi basicamente um resumo do trabalho por ele realizado no ano anterior para sua dissertação de doutorado, trabalho este que não foi sobre a incompletude, e sim sobre a completude. O que Gõdel fizera foi provar a completude do que se denomina "cálculo de predicados" ou, às vezes, "lógica de primeira ordem" ou "lógica quantificacional". Não importam os nomes feios, que espantam as almas poéticas. Vamos rebatizar o sistema de lógica 126

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

formal em questão de "lógica límpida,,. Gõdel provou que a lógica límpida é completa. Seus axiomas e regras de inferência permitem provar todas as proposições logicamente verdadeiras, ou tautológicas, dentro dela. Mas o que é essa noção de logicamente verdadeiro ou tautológico? O simbolismo da lógica límpida permite representar proposições de modo que sejam reduzidas a uma forma totalmente despojada. Ele fornece um meio de simbolizar a uma forma lógica das proposições e exibir as relações lógicas entre elas. Dispõe de símbolos para palavras como não, e, ou, se ... então ... , se e somente se, bem como para conceitos ((quantificantes,, como todo, nenhum e alguns. Palavras como essas são as únicas logicamente relevantes. São os significados desses termos, conforme definidos pelas regras do sistema, que determinam a forma lógica das proposições. Sentenças diferentes podem compartilhar a mesma forma lógica e, do ponto de vista da lógica límpida, essas sentenças são essencialmente iguais, já que são logicamente equivalentes ( continuando assim a ascensão rumo à generalidade lógica, que coincide com o desenvolvimento da ciência da lógica criada por Aristóteles) . Vejamos, por exemplo, as sentenças "todos os homens casados são casados,,, cctodos os bebês bonitos são bonitos,, e cctodos os argumentos válidos são válidos". Todas essas sentenças são extraídas da proposição mais geral que afirma: se algo possui dois atributos P e Q (ou, tecnicamente, satisfaz dois predicatos P e Q) - , digamos, ser um bebê e ser bonito,-, então possui um desses atributos (satisfaz um dos predicados), digamos, ser bonito. A lógica límpida categoriza grupos inteiros de sentenças em termos de sua forma lógica compartilhada, removendo todos os significados de predicados e sujeitos específicos para descer até a lógica despojada. Quanto aos termos não-lógicos, eles se referem a indivíduos - indivíduos específicos ou quaisquer indivíduos - e a predicados e relações entre predicados. Para nos referirmos a qualquer dos indivíduos, usamos variáveis como x e y, e para nos referirmos a indivíduos específicos, usamos constantes, como a ou b.As propriedades são designadas por constantes predicativas como P e Q, e existem termos relacionais como R. A 127

INCOMPLETUDE

coisa mais fácil que podemos dizer na lógica límpida é que algum indivíduo satisfaz algum predicado: P(a). Lemos isso como: P de a (P satizfaz a). Um pouco mais complicado é afirmar que algum indivíduo a possui uma relação particular com outro b: R(a b). Depois talvez queiramos dizer algo como: existe um ou outro indivíduo que possui uma propriedade particular. Isso é simbolizado como :3xP(x), que se lê: existe um x tal que P de x. Ou talvez queiramos dizer que todos os indivíduos satisfazem P. Na lógica límpida isso é simbolizado como (x)P(x), e se lê: dado qualquer x, P dex. Uma proposição logicamente verdadeira, ou uma tautologia, é aquela que é verdadeira para quaisquer significados que atribuirmos aos termos não lógicos. (Como "logicamente verdadeiro" faz referência a significados-algo é logicamente verdadeiro se é verdadeiro para quaisquer significados atribuídos aos seus termos não lógicos - , trata-se de uma noção semântica, e não sintática.) Assim, por exemplo, suponhamos que queremos dizer que, se algo satisfaz dois predicados específicos, então satisfaz um daqueles predicados. O simbolismo seria: (x) (P(x) e Q(x)) ~ Q(x)* Isso se lê assim: dado qualquer x, se x tem a propriedade P ex também tem a propriedade Q, então x tem a propriedade Q. Isso é logicamente verdadeiro e gerará um monte de proposições verdadeiras, formadas pela substituição de P e Q por significados particulares. Eis outra proposição logicamente verdadeira da lógica límpida: (x) (y) ((x=y)~ (P(x) ~P(y))) Isso significa: para todo x, para todo y, se x é igual a y, então x tem a propriedade P se e somente se y tem a propriedade P. Não é preciso quebrar a cabeça para ver que isso tem de acontecer: se duas coisas na verdade não são duas, mas a mesma, então todas as propriedades de uma são as pro-

* Observe o papel dos parênteses na pontuação da lógica límpida. -(p & q) ou "p e q não são ambos verdadeiros" é uma proposição totalmente diferente de -p & q, ou "não p é verdadeiro e q também". Assim, "o presidente não é ao mesmo tempo afável e estúpido" não é a mesma afirmação que "o presidente não é afável, e ele é estúpido': 128

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

priedades da outra. (O que realmente temos no caso da identidade é uma coisa individual designada, ou selecionada, de duas maneiras diferentes.) Dessa última proposição formalmente verdadeira da lógica límpida, podemos obter verdades como: se Gõdel é o autor dos teoremas da incompletude, então Gõdel é um platônico se e somente se o autor dos teoremas da incompletude é um platônico. Se o professor Moriarty é o mentor intelectual de todos os crimes de Londres, então o professor Moriarty é um matemático se e somente se o mentor intelectual de todos os crimes de Londres é um matemático. Se a lua é a deusa Diana, então a lua é feita de queijo se e somente se a deusa Diana é feita de queijo. Obviamente, você pode inserir o que bem entender como seu predicado P e gerar uma afirmação trivialmente verdadeira, porque (x) (y) ( (x =y) ~ (P(x) ~ P(y))) é logicamente verdadeira. É uma tautologia; sua verdade, uma função dos significados dos termos lógicos que a compõem. O teorema da completude de Gõdel, o resultado que ele apresentou no congresso de luminares lógicos, provou que todas essas proposições logicamente verdadeiras são comprováveis dentro do sistema formal da lógica límpida. Outra forma de enunciar o resultado da completude de Gõdel é que, na lógica límpida, a verdade sintática e a verdade semântica são equivalentes: as verdades decorrentes das regras do sistema (as verdades sintáticas) geram todas as proposições logicamente verdadeiras expressáveis dentro do sistema. A lógica límpida, então, além de consistente (sua consistência já havia sido provada), também é completa. (Sistemas inconsistentes são obviamente completos, porque podemos provar qualquer coisa neles. Eles são completos demàis. É sobre sistemas consistentes que se faz a pergunta: eles são completos? Suas regras sintáticas formais permitem que se prove tudo que se gostaria de provar? Eles permitem provar todas as verdades expressáveis dentro do sistema?) A completude é exatamente o que se gostaria de ter num sistema formal de lógica, e foi um dos problemas para os quais Hilbert exigiu uma solução. Foi tranqüilizador ter uma prova, mas, como a conclusão nunca fora objeto de dúvida, o resultado do doutorado de Gõdel não 129

INCOMPLETUDE

pareceu muito empolgante. O jovem homem dera-se ao trabalho de provar o que todos já aceitavam como verdade. Em retrospecto, podemos ver que o que Gõdel havia provado em sua dissertação era bem mais interessante- merecendo muito mais preocupação por parte dos formalistas e simpatizantes -do que parecera à primeira vista. Gõdel havia provado o resultado esperado: a completude. Mas a dificuldade da prova - a prova substantiva, com vários passos, que foi exigida - deveria ter impressionado as pessoas como algo inesperado, até alarmante. Ao mostrar como era complicado provar realmente a completude da lógica límpida, Gõdel estava dando margem à possibilidade de que outros sistemas formais consistentes - aqueles, por exemplo, enriquecidos pelos axiomas da aritmética - pudessem não ser completos. A não-trivialidade da prova da completude da lógica límpida deve ter forçosamente suscitado a possibilidade, ao platônico Gõdel, de que havia proposições aritmeticamenteverdadeiras mas não comprováveis dentro de um sistema formal de aritmética.*

* Godel escreveria a Wang muitos anos depois que sua prova da completude para o cálculo dos predicados - o problema de sua dissertação - também havia sido inspirada por suas convicções platônicas: "O teorema da completude, matematicamente, não passa de uma conseqüência quase trivial de Skolem 1922 ['Algumas observações sobre a teoria dos conjuntos axiomatizada' ]. Contudo, o fato é que, naquela época, ninguém (incluindo o próprio Skolem) chegou a essa conclusão. [ ... ] Tal cegueira é surpreendente. Mas creio que a explicação não é difícil de encontrar. Reside numa falta generalizada, naquela época, da atitude epistemológica necessária em relação à metamatemática e ao raciocínio não finitário. O raciocínio não finitário em matemática só era considerado amplamente significativo na medida em que pudesse ser 'interpretado' ou 'justificado' em termos da metamatemática finitária. (Observe-se que isso, na maior parte, se revelou impossível em conseqüência de meus resultados e trabalhos subseqüentes.) De acordo com essa idéia, a metamatemática é a parte significativa da matemática, através da qual os símbolos matemáticos (em si sem sentido) adquirem algum substituto do significado, a saber, as regras de uso. Claro que a essência desse ponto de vista é uma rejeição de todos os tipos de objetos abstratos ou infinitos, dos quais os significados prima facie dos símbolos matemáticos são instâncias".2 130

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

A EXPLOSÃO MAIS SILENCIOSA: GÕDEL ANUNCIA SEUS RESULTADOS Gõdel não deu nenhum sinal da revolução que ocultava sob a manga até o último dia do congresso, reservado à discussão geral dos artigos dos dois dias anteriores. Ele esperou até que a discussão geral estivesse bem avançada e, então, mencionou, numa única frase perfeita, que proposições aritméticas verdadeiras, mas não dedutíveis, eram possíveis, e ele provara que elas existiam: É possível-pressupondo a consistência (formal) da matemática clássica -

até dar exemplos de proposições (como as de Goldbach e Fermat)* que são contextualmente [substancialmente] verdadeiras, mas não dedutíveis no sistema formal da matemática clássica.

Pois é. A prova que se tornaria a "famosa prova da incompletude» havia aparentemente sido obtida no ano anterior, quando Gõdel tinha 23 anos, e viria a ser submetida em 1932 como sua Habilitationsschrift,

* "Goldbach" e "Fermat" referem-se, respectivamente, à "conjectura de Goldbach" e ao "último teorema de Fermat". Goldbach, como mencionamos na nota de rodapé do capítulo l, havia conjecturado que todos os números pares maiores que 2 são a soma de dois primos. O matemático francês Pierre de Fermat ( 1601-65) escrevera na margem de um livro, encontrado após sua morte, que havia "descoberto uma demonstração realmente maravilhosa da proposição" de que não existem inteiros x, y, z, n, com n > 2, tal que :X:' + y'' =z", "que esta margem é estreüa demais para conter". Na época do anúncio de Gõdel, nem a conjectura de Goldbach, nem o último teorema de Fermat haviam sido provados verdadeiros ou falsos, embora gerações de matemáticos tivessem se esforçado por prová-los. Em 1991, Andrew Wiles, da Universidade de Princeton, conseguiu demonstrar, numa prova complicada que requereu os resultados de muitos outros matemáticos e ocupou mais de 150 páginas, o último teorema de Fermat. A conjectura de Goldbach ainda não foi provada nem refutada. (Refutar seria fácil: bastaria encontrar um número par que não fosse a soma de dois primos.) A possibilidade que Gõdel estava enunciando em sua Sternstunde era que proposições como essas duas podem ser verdadeiras, mas não dedutíveis dentro da teoria dos números formalizada. O que sua prova famosa faz é produzir uma proposição, evidentemente verdadeira, mas que ele prova não ser dedutível no sistema. 131

INCOMPLETUDE

o último estágio do processo prolongado para se tornar um Dozent austríaco ou alemão. É um dos exemplares de raciocínio matemático mais espantosos já produzidos, espantoso tanto na simplicidade da estratégia principal como na complexidade dos detalhes, a tradução meticulosa da metamatemática dentro da matemática mediante o que passou a ser chamado de aritmetização de Gõdel. É uma mescla cuidadosamente ordenada de várias camadas ou "vozes", tanto matemáticas como metamatemáticas, o contraponto se fundindo em acordes harmônicos nunca antes ouvidos.A música parece proporcionar uma metáfora bem apropriada, razão pela qual Ernest Nagel e James R. Newman, em sua obra explicativa clássica, Godel's proa![ A prova de Gõdel], descreveram a prova como uma "sinfonia intelectual surpreendente". Deve ter sido uma experiência extraordinariamente excitante ter produzido tal música matemática, sobretudo por ser matemática que canta, pelo menos ao ouvido do compositor, o seu adorado platonismo. Mas, até aquele momento em Kõnigsberg, Gõdel não deixara escapar uma só nota de sua prova sinfônica. Tal aparência silenciosa e inexpressiva encerrando um barulho matemático tão poderoso. Enfim, ele pronunciou uma frase lacônica e precisa, lançada in medias res no último dia do congresso, em meio à recapitulação das preleções dos dias anteriores. Gõdel apresentou-a sem fanfarra, tocada num simples pianíssimo. O "anúncio" idiossincrático é compatível com a personalidade do lógico. O enunciado conciso que compôs sua "hora da estrela", durando no máximo uns trinta segundos e meticulosamente forjado, constitui uma obra-prima em miniatura. Diz o que precisa dizer, nenhuma palavra a mais. Deve ter sido preparado "nos mínimos detalhes" (para repetir o elogio dele às aulas de Hahn), e ele deve ter refletido sobre o momento exato de lançá-lo na discussão: no final dos três dias, como a refutação conclusiva de todas as metaposições defendidas até então. O homem que indicava com breves movimentos da cabeça sua aprovação, ceticismo ou discordância deve ter pensado que a grande importância de sua observação seria evidente para o público de Kõnigsberg. 132

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

A apresentação, mesmo dos assuntos mais rigorosos, pode fazer muita diferença para a recepção das idéias de alguém. A ostentação ajuda: uma moldura pesada e elaboradamente entalhada pode fazer a obra de arte mais imperfeita parecer importante. Não temos relatos de primeira mão de como foi a apresentação de Gõdel naquele dia de outubro de 1930; do tipo de moldura expressiva que ele deu ao equivalente matemático a uma pintura representando a natureza da própria beleza. Mas sabemos o suficiente sobre o enfaticamente anticarismático Gõdel, com sua aversão ao drama e sua fé absoluta na implicação lógica, para podermos imaginar como ocorreu. O enunciado sóbrio e sem inflexão do xis da questão, sem quaisquer floreios retóricos, nenhum contexto badalado para ajudar os ouvintes a captar a importância do que estava sendo dito. Nenhum Sturm und Drang, apenas um gênio contido emitindo uma frase austera que implicava a existência de uma prova de natureza e escopo inéditos. "Quanto mais penso na linguagem", ele observou para Menger, ao caminhar para casa uma noite com os "wittgensteinianos", "mais me surpreendo com o fato de as pessoas conseguirem entender umas às outras." Tal pessimismo sobre as possibilidades da comunicação ·mesmo naquele estágio prematuro, antes das décadas que trouxeram tantas interpretações errôneas, conquanto celebratórias, de sua obra - deve certamente ter atiçado seu desejo de encontrar uma prova matemática rigorosa para dizer tudo que tinha a dizer sobre a natureza da verdade e do conhecimento matemático. Agora ele dispunha de tal prova e estava anunciando seu resultado, ou pelo menos o primeiro dos dois teoremas que decorreriam dele. Teria previsto que sua bomba seria recebida com um misto de descrença e surpresa e, depois, com uma saraivada de perguntas agressivas? Será que se preparou conscienciosamente para todos os pedidos de elucidação adicional que por certo se seguiriam, como o biógrafo de Wittgenstein imaginou a cena? Gõdel sempre se desapontaria com a capacidade dos outros de ignorar as implicações que ele escrupulosamente preparara para eles, e sua experiência em Kõnigsberg deve ter sido um impressionante desa133

INCOMPLETUDE

pontamento, pois a reação foi um ressoante silêncio. A frase imaculadamente composta foi proferida ... e a discussão prosseguiu como se não tivesse sido. A transcrição da discussão daquele dia foi publicada na revista Erkenntnis (editada por Carnap e Reichenbach, e o principal órgão de divulgação dos pontos de vista do Círculo de Viena e do grupo de Berlim de Reichenbach), e não inclui nenhuma discussão da observação de Gõdel. Tampouco alguma menção a Gõdel no relato da reunião escrito por Hans Reichenbach. 3 Mesmo levando em conta a maneira de ser anticarismática de Gõdel, sua observação deveria ter provocado um mínimo de perturbação, um "Desculpe, sr. Godel, mas tenho a impressão de que o senhor acabou de dizer que provou a existência de verdades aritméticas não dedutíveis. O senhor não pode ter dito isso, porque, além de contrariar todas as nossas visões sobre a natureza da verdade matemática, parece uma contradição em termos. Como o senhor pôde provar que existem proposições aritméticas ao mesmo tempo não dedutíveis e verdadeiras? Essa prova, ao mostrar que são verdadeiras, não constituiria uma demonstração delas, contradizendo assim sua alegação de que não são dedutíveis? Um lógico como o senhor não poderia estar afirmando tamanha contradição. Portanto, o que foi mesmo que o senhor disse?". O orientador da dissertação de Gõdel, Hans Hahn, estava presente em Kõnigsberg. Na verdade, ele presidiu a discussão do último dia do congresso. Será que Gõdel nada compartilhou de sua prova da incompletude com o orientador? Não sabemos ao certo. Hao Wang escreve que Gõdel concluiu sua dissertação, a prova da completude da lógica dos predicados (a lógica límpida), sem mostrar para Hahn. Aquele resultado vinha sendo preparado para publicação na época do congresso (e presume-se que, àquela altura, Hahn a tivesse lido). Em suas notas introdutórias à dissertação, que por um motivo desconhecido foram eliminadas da versão publicada, Gõdel levantara a possibilidade da incompletude da aritmética, embora sem nenhuma indicação de que a tivesse provado. Hahn deve ter lido aquela observação e não a levou a sério. Talvez ele mesmo tenha aconselhado o jovem autor a 134

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

eliminar as notas. Talvez não quisesse que o aluno se expusesse sem nenhuma prova a seu favor, tendo presumido, com base no que Gõdel havia contado (ou no que não havia contado), que não existia nenhuma prova. Outro participante do congresso de quem se esperaria que reagisse à observação de Gõdel era Rudolf Carnap. Carnap tivera mais tempo que os outros para digerir a novidade de Gõdel, já que Gõdel lhe confidenciara seu resultado várias semanas antes. Em 26 de agosto de 1930, de acordo com as Aufzeichnungen de Carnap em seu Nachlass, ele se encontrara com Gõdel, Feigl e Waismann no Café Reichsrat, em Viena, para discutir os planos da viagem a Kõnigsberg. Após resolverem os detalhes práticos, a discussão voltou-se, nas palavras de Carnap, para a ((Entdeckung: Unvollstiindigkeit des Systems der PM; Schwierigkeit des Widerspruchsfreiheitbeweises de Godel: a descoberta de Gõdel. A incompletude do sistema dos Principia mathematica. A dificuldade de provar sua consistência". (Observe que ele diz "dificuldade" aqui, não ainda impossibilidade. Gõdel só provou plenamente seu segundo teorema da incompletude após o congresso.) 4 De novo três dias depois, Carnap registra que os mesmos quatro se encontraram no mesmo café e que, antes que Feigl e Waismann chegassem, "erziihlt mir Godel von seinen Entdeckungen - Gõdel contou-me sobre as suas descobertas". Mesmo assim, no congresso, Carnap repetiu sua velha cantilena de que a consistência era o único critério para julgar a adequação das teorias formais em matemática, e a questão da completude nem sequer foi levantada. Como pôde ele, dadas as Entdeckungen de Gõdel, não ter questionado seu pensamento anterior? 5 A resposta parece ser que Carnap não entendeu a natureza da descoberta de Gõdel. A idéia de que os critérios da verdade semântica pudessem ser separados dos critérios de dedutibilidade era tão impensável, de um ponto de vista positivista, que ele simplesmente não conseguiu assimilar a essência do teorema. Essa demora em apreender a importância do que Gõdel estava tentando lhe dizer é confirmada por outra anotação no diário de Carnap, 135

INCOMPLETUDE

datada de 7 de fevereiro de 1931, depois que o famoso artigo de Gõdel já havia sido publicado. "Godel hier. über seineArbeit, ich sage, dass sie doch schwer verstiindlich ist. Gõdel esteve aqui. Sobre seu trabalho, digo que é muito difícil de entender." O silêncio retumbante que saudou o anúncio de Gõdel parece, em retrospecto, um exemplo clássico da espécie de insensibilidade que Thomas Kuhn discute em A estrutura das revoluções científicas: Em ciência [... ] a novidade emerge somente com dificuldade, manifestada pela resistência, contra um pano de fundo proporcionado pela expectativa. Inicialmente apenas o previsto e usual são experimentados, mesmo sob circunstâncias em que a anomalia será mais tarde observada. 6

VON NEUMANN PEGA A DEIXA Por acaso, uma pessoa presente em Kõnigsberg captou a observação anômala do jovem lógico: John von Neumann. Sua compreensão do comentário sucinto de Gõdel é ainda mais impressionante se considerarmos que os pontos de vista do próprio Von Neumann coincidiam totalmente com os de Hilbert- ele havia sido designado porta-voz do formalismo em Kõnigsberg - e que ele abrigava o tipo de inclinação fortemente positivista para a qual a referência de Gõdel à verdade semântica, independente de um sistema formal, talvez parecesse perigosamente metafísica. Mesmo assim, ele abordou Gõdel, encerrada a discussão daquele dia, pedindo detalhes. Gõdel deve ter contado o suficiente sobre como chegou à sua conclusão para que Von Neumann levasse a sério o que ouviu. Este voltou a Princeton, ao Instituto de Estudos Avançados, e continuou refletindo sobre a espantosa, preleção ouvida em Kõnigsberg. Depois de refletir algum tempo, Von Neumann descobriu um corolário notável ao que Gõdel lhe contara. Von Neumann percebera, com base no que Gõdel lhe dissera, que sua prova era condicional: o que ela 136

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

diz é que, se um sistema formal S da aritmética é consistente, então é possível construir uma proposição, que chamaremos de G, verdadeira mas não comprovável naquele sistema. Assim, se Sé consistente, G é verdadeira e não dedutível. Trivialmente, então, se Sé consistente, então G é verdadeira. Von Neumann também compreendeu, com base no que ouvira de Gõdel, que essa prova pode ser aplicada a um sistema de aritmética. (Esse é o truque realizado pela aritmetização de Gõdel.) Assim, se a consistência de S podia ser provada em S, então G teria sido provada em S-já que se segue da consistência de S que G é verdadeira. Mas isso contradiz que G não é demonstrável. A única saída dessa contradição é negar que se possa provar formalmente a consistência de S dentro do sistema de aritmética.Assim, do resultado de Gõdel, outra impossibilidade se segue: é impossível provar formalmente a consistência de um sistema de aritmética dentro daquele sistema de aritmética. Von Neumann entrou em contato com Gõdel, informando-o daquele corolário, e Gõdel respondeu de modo educado àquele homem mais velho que a sua conclusão estava correta - conclusão que o próprio Gõdel já havia provado rigorosamente. (Pode-se imaginar o sorriso sarcástico de Gõdel ao transmitir essa informação ao titã intelectual, Von Neumann.) Esse corolário é conhecido como o segundo teorema da incompletude de Gõdel e, embora uma mera conseqüência do primeiro, é o que inicialmente recebeu atenção, com Von Neumann o divulgando no instituto. O programa de Hilbert havia fornecido o contexto para se perceber a importância do segundo teorema da incompletude de Gõdel. Gõdelhavia provado que o segundo problema de Hilbert não podia ser solucionado: jamais haveria uma prova formal finitária da consistência dos axiomas da aritmética dentro do sistema da aritmética. Jamais haveria a prova que servisse de fulcro para o programa de Hilbert. As conseqüências para o formalismo foram potentes e devastadoras. Fica claro do ponto de vista semântico - ou seja, quando pensamos no que o sistema estritamente formal da aritmética significa que a aritmética é consistente, já que tem como modelo os números 137

INCOMPLETUDE

naturais. Fornecemos um modelo de sistema formal, também chamado de interpretação, especificando um universo de discurso, também chamado de domínio de índivíduos, sobre o qual as variáveis variam, interpretando o que os termos predicativos e relacionais significam e estipulando a quais elementos do domínio as constantes individuais se referem. Quando o sistema fo rmal da aritmética é dotado dos significados usuais, envolvendo os números naturais e suas propriedades, seus axiomas se mostram claramente verdadeiros e, assim, devem ser consistentes, já que enunciados verdadeiros não podem ter conseqüências falsas. Não que a consistência da aritmética estivesse de fato sendo questionada (por pessoas que acreditam mesmo nos mimeros). A questão diz respeito ao modo como a consistência pode ser provada - uma questão importante do ponto de vista metamatemático, uma questão premente para todos, exceto para o platônico. A consistência de um sistema equivale à proposição que afirma que, através das regras do sistema, nenhuma contradição pode ser derivada. A proposição é, em si, combinatória, envolvendo regras simples de manipulação de símbolos - regras que determinam quais seqüências de símbolos decorrem de quais seqüências de símbolos. Essa proposição combinatória é, exatamente por ser combinatória, equivalente a algo aritmético. Portanto, pode ser formulada dentro do sistema da aritmética- e a questão natural a ser respondida é se ela pode ser provada dentro do sistema, e a resposta é que não pode. Os aspectos sintáticos dos sistemas formais - que visavam evitar as intuições, aquelas alimentadoras de paradoxos - não conseguem captar todas as verdades sobre o sistema, inclusive a verdade de sua própria consistência. Gõdel havia provado que a consistência, exatamente aquilo cuja prova se supunha iria assegurar os fundamentos do programa de Hilbert (que pretendia evitar a formação de paradoxos na matemática), transcendia o alcance desse mesmo programa. A possibilidade de paradoxo, que o programa de Hilbert pretendia eliminar para sempre, reafirmou-se. E uma das coisas mais estranhas na prova bonita e esquisita que derrubou a defesa antiparadoxos de 138

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

Hilbert foi a forma como o próprio paradoxo foi incorporado na estrutura da prova.

OPRIMEIRO TEOREMA DA INCOMPLETUDE: A ESTRATÉGIA GERAL As vinte e poucas páginas da famosa prova de Gõdel são densamente compactas. Existem 46 definições preliminares. Existem também teoremas preliminares que precisam ser provados antes que o evento principal possa ocorrer: a construção de uma proposição aritmética que seja, ao mesmo tempo, verdadeira e não comprovável dentro do sistema formal em consideração. As linhas de raciocínio da prova são altamente comprimidas, compostas de uma hierarquia de níveis de discurso interligados, as vozes fundidas da sinfonia.* Embora os detalhes da prova sejam difíceis, a estratégia geral é felizmente! - a própria simplicidade. Simples mas estranha, como seria de esperar de uma prova que chega tão perto da fronteira da autocontradição, provando que existem proposições aritméticas verdadeiras que não são comprováveis. Uma das coisas mais estranhas da prova é que ela coopta a própria estrutura dos paradoxos auto-referenciais, essas abominações para a razão, e reformula tal estrutura para seus

* Primeiramente, existem os enunciados próprios do sistema formal S para a aritmética em consideração (chamemo-los de S-sentenças); quando as S-sentenças são interpretadas da maneira natural (ou seja, como enunciações sobre números naturais), elas se transformam em enunciados aritméticos (chamemo-los de A-sentenças). Por meio do procedimento conhecido como aritmetização de Gódel, a cada S-sentença é atribuído um número. Além desses, existem também os enunciados metamatemáticos sobre as S-sentenças e sobre o sistema formal S (chamemo-las de M-sentenças) . As Msentenças, que descrevem as relações puramente formais entre os elementos do sistema formal, são enunciados combinatórios, e assim, em certo sentido, podem ser imaginadas como enunciados também matemáticos. Mas é preciso o sistema de codificação engenhoso da aritmetização de Gõdel para efetivamente transformar as M-sentenças em A-sentenças, de modo que, ao falar sobre o sistema formal da aritmética CM-sentenças), você também está fazendo enunciados aritméticos (A-sentenças) . 139

INCOMPLETUDE

próprios fins. A estratégia geral da prova - a parte deliciosamente acessível da prova-pode ser compreendida no contexto do paradoxo mais antigo que se conhece, o paradoxo do mentiroso.* Podemos dar uma idéia da prova de uma maneira leve e fácil, e é o que faremos agora. Depois, nas seções seguintes, nos concentraremos em preencher alguns outros detalhes, indicando como o trabalho difícil é realizado. Por tradição, o paradoxo do mentiroso é atribuído ao cretense Epimênides, que teria dito algo como: Todos os cretenses são mentirosos. Esta sentença, em si, não.é paradoxal, exceto na medida em que sugere que o que Epimênides estava dizendo era algo como: Esta própria sentença é falsa. Ora, esta sentença, como já vimos, é verdadeira se e somente se é falsa - uma situação nada boa, logicamente falando. A estratégia de Gõdel envolve a seguinte preposição, análoga a esta sentença paradoxal: Esta própria sentença não é dedutível dentro deste sistema. Chamemos esta sentença de G. G, ao contrário de sua análoga, não é paradoxal, embora seja, como toda proposição auto-referencial, um

* No artigo famoso de Gõdel de 1931, no qual a prova é originalmente apresentada, ele menciona o paradoxo do mentiroso e o paradoxo de Richard, oferecendo-os como apoios heurísticos para nos alçarmos ao estranho território de sua prova. Já estamos familiarizados com o paradoxo do mentiroso. O paradoxo de Richard foi criado pelo matemático francês Jules Richard. É meio complicado de enunciar, requerendo, como a própria prova de Gõdel, certo tipo de mapeamento. Ordenam-se as propriedades dos números naturais e atribui-se um número a cada uma das propriedades. O número atribuído a uma propriedade pode ou não ter aquela propriedade. Assim, digamos, 22 corresponde à propriedade "ser um número par". Então o próprio 22 tem a propriedade à qual corresponde na ordenação richardiana. Agora definamos esta propriedade: "não ter a propriedade atribuída a si própria na ordenação richardiana". Chamemos essa propriedade "ser richardiano". A pergunta geradora de paradoxo é: o número que corresponde a ser richardiano é, ele próprio, richardianoi' Todas as outras formulações de sua prova-por exemplo, aquelas deAlan Turing e G. J. Chaitin - incorporaram aspectos de paradoxos, embora paradoxos diferentes dos de Gõdel, às suas próprias versões da prova. Esses paradoxos, embora diferentes entre si, são todos da variedade auto-referencial. A afinidade entre o resultado da incompletude e o paradoxo auto-referencial é, portanto, muito profunda, já que toda prova da incompletude tem certa versão da paradoxalidade auto:..referencial espreitando ao fundo. 140

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

tanto estranha. (Mesmo a não paradoxal auto-referencial Esta própria sentença é verdadeira é desconcertantemente estranha. O que ela está dizendo? Onde está seu conteúdo?) Através do sistema de codificação que viemos a chamar de "aritmetização de Gõdel" (claro que o modesto Gõdel não deu esse nome), G pode ser traduzida em notação aritmética, de modo que constitua também um enunciado aritmético. Esse é um dos pontos onde entra o trabalho difícil, e mais adiante neste capítulo mergulharemos um pouco mais fundo nesse aspecto da prova. Gõdel encontrou uma forma engenhosa de fazer uma linguagem aritmética falar de seu próprio formalismo. O resultado da técnica é que G está simultaneamente fazendo dois enunciados diferentes, afirmando uma declaração aritmética e também afirmando sua própria não-dedutibilidade. Em outras palavras, o que G tem a dizer, além de seu conteúdo aritmético direto (será uma proposição aritmética estranha, depois de toda a confusão para chegarmos lá), é: G não é dedutível no sistema. A negação de G, portanto, é a proposição: G é dedutível no sistema. Se G fosse dedutível, então sua negação - que, afinal, diz que G é dedutível- seria verdadeira. Mas, se a negação de uma proposição é verdadeira, então a própria proposição é falsa. Portanto, se G é dedutível, então é falsa. Mas se G é dedutível, então também é verdadeira. Afinal, o que mais uma prova mostra, supondo é claro que o sistema seja consistente (já que num sistema inconsistente todas as proposições são dedutíveis)? Portanto, pressupondo-se a consistência do sistema, se G é dedutível, então é ao mesmo tempo verdadeira e falsa uma contradição-, o que significa que G não é dedutível. Desse modo, se o sistema é consistente, então G não é dedutível nele. Mas isso é exatamente o que G diz: que não é dedutível. Assim, G é verdadeira. Portanto, G é não comprovável e verdadeira, que é precisamente a famosa conclusão da prova de Gõdel, de que existe uma proposição verdadeira expressável no sistema, mas não dedutível, se o sistema for 141

INCOMPLETUDE

consistente. Como G também tem um significado diretamente aritmético que, é claro, é verdadeiro se G é verdadeira (porque ele é o que diz G), a prova de Gõdel mostra que existem verdades aritméticas (por exemplo, G!) que não podem ser provadas dentro do sistema formal, supondo-se que o sistema seja consistente. Portanto, o sistema formal é inconsistente ou incompleto. Além disso, a prova demonstra que, se tentamos remediar a incompletude acrescentando explicitamente G como um axioma, criando assim um sistema formal novo e expandido, pode-se construir dentro daquele sistema expandido um correspondente de G que é verdadeiro, mas não dedutível, no sistema expandido. A conclusão: existem proposições comprovadamente não dedutíveis, mas mesmo assim verdadeiras, em qualquer sistema formal que contenha a aritmética elementar, supondo que o sistema seja consistente. Conclusão: um sistema rico o bastante para conter a aritmética não pode ser ao mesmo tempo consistente e completo. Essa é realmente a estratégia geral. Em certo sentido (uma vez que se assimile a idéia estranha de que se possa construir uma proposição individual que consegue falar simultaneamente de si mesma e da aritmética) ela é simples. Claro que o diabo mora nos detalhes, e é aos detalhes diabólicos que nos voltaremos agora.

PASSO UM: DELINEAR UM SISTEMA FORMAL Gõdel começa sua prova expondo seu sistema formal, que consiste, como todos os sistemas formais, em um alfabeto de símbolos, regras para combinar esses símbolos em fórmulas bem formadas, um conjunto especial de fórmulas chamado "axiomas" e um aparato dedutivo para deduzir ( como "conseqüências lógicas") fórmulas de outras fórmulas que devem ser axiomas ou conseqüências de axiomas. Na maioria dos sistemas da lógica formal, convém dispor de símbolos para "e" (conjunção) e "ou" (disjunção), bem como para as expressões "se ... então ..." (implicação material) e"... se e somente se ..." (equi142

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

valência). Existem também símbolos que expressam as noções quantificacionais de "todo" e ((algum". Entretanto, será mais conveniente ter o mínimo de símbolos básicos possível. Podemos eliminar as conjunções a favor de disjunções, já que ((P e q" significa a mesma coisa que "não é o caso que p é falso ou q é falso". Assim, quero comer e quero permanecer magro é equivalente a não é verdade que não quero comer ou não quero permanecer magro. Depois podemos levar nossa eliminação um passo adiante, já que a disjunção pode ser eliminada a favor da implicação material, porque ('se p, então q" significa a mesma coisa de ((não-p ou q". Podemos também eliminar a noção de ((algum", usando a noção de ((todo': já que ((existem alguns xs que são F'' é o mesmo que ((não é o caso de que todos os xs não são F". Assim, alguns lógicos são racionais é equivalente a nem todos os lógicos são irracionais. Após nossas eliminações, restam nove conceitos primitivos, e seus símbolos correspondentes, com os quais expressar toda a aritmética em um sistema formal.

PASSO DOIS: ARITMETIZAÇÃO DE GÕDEL O próximo passo da prova é conceber um método mecânico para atribuir um número único a cada proposição do sistema. É atribuindo esses números que a fusão de vozes é obtida, com os enunciados aritméticos também constituindo enunciados metamatemáticos. O lógico Simon Kochen mostrou-me a bela semelhança entre a prova de Gõdel e a obra de Kafka (que Gõdel por acaso admirava). Tanto em Kafka como em Gõdel, existe certa característica de Alice no País das Maravilhas, uma sensação de que se adentrou um universo estranho onde as coisas se transformam em outras, inclusive os próprios significados. No entanto, tudo procede passo a passo de acordo com a lógica mais rigorosa. (A lógica rigorosa de Kafka é subestimada.) Grande parte do trabalho na prova de Gõdel representa, nas palavras de Kochen, ((contabilidade': Esse duplo aspecto da prova espelha algo, Kochen também disse, essencial sobre a mente de Gõdel também, os 143

INCOMPLETUDE

intensos saltos de imaginação associados a uma espécie de esforço legalista. Ambos esses aspectos emergem na aritmetização de Gódel. Eis a idéia básica: O sistema formal, lembre-se, envolve uma variedade de tipos de objetos: os símbolos do alfabeto, as combinações de símbolos em fórmulas, e seqüências especiais de fórmulas (em outras palavras, deduções). Tudo é construído com base nos símbolos básicos do alfabeto: uma fórmula é uma seqüência desses símbolos, e uma dedução é uma seqüência de fórmulas (com a conclusão sendo simplesmente a última ocorrência da seqüência). A aritmetizacão de Gódel começa, então; atribuindo um número a cada símbolo primitivo do alfabeto. Uma vez todos os símbolos primitivos tendo sido dotados de um número, continua-se com uma regra para atribuir números às próprias fórmulas, com base nos números correspondentes de seus constituintes. Depois que temos um número de Gódel para cada fórmula bem formada, a aritmetização de Gódel é completada com uma regra para atribuir números a seqüências de fórmulas, que são as deduções. Além disso, uma vez cada fórmula dotada de um número correspondente, conseguiremos analisar as relações estruturais entre as proposições só pela análise das relações aritméticas entre seus números correspondentes. Ou vice-versa. Por exemplo, uma fórmula será dedutível de outra precisamente caso os números de Gódel das fórmulas estejam aritmeticamente relacionados entre si exatamente da maneira certa. Em outras palavras, dois tipos diferentes de descrições se reduzirão um ao outro: descrições aritméticas, estabelecendo relações entre números expressíveis dentro do sistema formal; e metadescrições sobre as relações lógicas existentes entre as fórmulas no sistema. Esses metaenunciados são puramente sintáticos, pois não passam de conseqüências da sintaxe do sistema formal, ou seja, suas regras. A idéia da aritmetização de Gódel é basicamente a idéia de codificação, que permite movimento de ida e volta entre as proposições ori144

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

ginais e os códigos. Na escola primária, meus amigos e eu tínhamos um código semelhante para passar mensagens cifradas, atribuindo a cada letra do alfabeto um número entre 1 e 26: 1 para ".N.', 2 para "B" etc. "Me encontre"virava: 13 5 5 14 3 15 14 20 18 5. O sistema de codificação empregado por Gõdel tinha de assegurar que o mesmo número de Gõdel não fosse atribuído a coisas diferentes, digamos, a alguma fórmula e também a uma seqüência de fórmulas (uma dedução). As regras de codificação fornecem um algoritmo (um conjunto de regras que informam, a cada passo, como proceder, muitas vezes com base no resultado de uma aplicação anterior de regras do conjunto) para chegar de qualquer fórmula, ou seqüência de fórmulas, a um número de Gõdel único. Existe também um algoritmo para o processo inverso: dado qualquer número de Gõdel, podemos efetivamente descobrir qual objeto formal do sistema ele representa. A aritmetização de Gõdel deve obedecer a uma condição adicional: as descrições sintáticas das relações lógicas entre fórmulas no sistema precisam ser traduzidas em proposições aritméticas fornecidas pelo sistema que sejam, elas próprias, expressíveis dentro do sistema. O espírito da aritmetização de Gõdel pode ser transmitido de uma forma simples, embora, se quiséssemos ser rigorosos como Gõdel evidentemente foi, não haveria nada de simples na codificação efetiva. A notação posicional moderna nos é tão familiar que esquecemos que ela própria é um sistema de codificação, exigindo provas no sistema formal. Assim, por exemplo, o símbolo decimal comum 365 é uma abreviação de três vezes 1O ao quadrado, mais seis vezes 1O, mais cinco. O sistema de codificação de Gõdel empregou os produtos exponenciais de números primos e recorreu ao teorema da fatoração em primos, que afirma que todo número pode ser fatorado de maneira única num produto de primos. O teorema da fatoração em primos garantiu a existência de um algoritmo para chegar de qualquer fórmula ou seqüência de fórmulas a um número de Gõdel, e vice-versa. A justaposição de dígitos que usamos a seguir seria, se rigorosa, tão complicada como o sistema de Gõdel. Mas não seremos rigorosos. 145

INCOMPLETUDE

Primeiro, atribuiremos arbitrariamente um número natural a cada símbolo do alfabeto do sistema formal. Podemos fazer tudo que é _n ecessário para especificar um sistema formal de aritmética restringindo-nos a apenas nove símbolos, a cada um dos quais atribuiremos um número de Gõdel: Sinal básico -,'>

X

Número de Godel 1 2 3 4

o

5

s

6

(

7

)

8 9

Significado não se ... então ... variável é igual a zero o sucessor de sinal de pontuação sinal de pontuação linha

A noção quantificacional de "todos" é representada por parênteses e variáveis. Assim, por exemplo, (x)F(x) significa: todos os xs satisfazem F. A plica permite gerar variáveis adicionais: x, x', x", x" etc. Como dispomos de um símbolo para zero, e um meio de indicar sucessores, temos um meio de indicar todos os números naturais. Agora especificamos uma regra para atribuir números de Gõdel a fórmulas, as quais não passam de seqüências de símbolos do alfabeto_. Adotamos a regra mais fácil possível, que lembra a codificação que meus amigos e eu usávamos no primário.Nós simplesmente inserimos o número de Gõdel para cada símbolo da fórmula, e aquele será o número de Gõdel para a fórmula. Assim, seja esta fórmula: (p 1 )

(x) (x') ( ( s(x)

= s(x'))-,. (x = x'))

Supondo-se que nosso universo de discurso (os objetos a que as variáveis interpretadas se referem) sejam os números naturais, o que p 1 diz é que se dois números têm o mesmo sucessor, então eles são o mesmo 146

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

número. Em outras palavras, um número não pode ser o sucessor de dois números diferentes. Mais literalmente: para todo x e para todo x: se o sucessor de x é idêntico ao sucessor de x', então x é idêntico a x'. Agora transformaremos esta fórmula em um número percorrendo consecutivamente seus símbolos e substituindo cada um deles por seu número de Gõdel. Cada símbolo da fórmula p 1 recebeu um número: a abertura de parênteses um 7, o x um 3, o fechamento de parênteses um 8, o til um zero. Substituindo cada elemento da fórmula pelo número de Gõdel correspondente, obtemos um número grande, que é o número de Gõdel para a fórmula. Abreviando «o número de Gõdel da proposição pi" por NG(p 1), obtemos: NG(p 1) = 738739877673846739882734398 Desse modo, números de Gõdel são atribuídos a fórmulas, que são seqüências de símbolos, e portanto a proposições, que são apenas fórmulas especiais. Do mesmo modo, números de Gõdel podem ser atribuídos a seqüências de proposições e, em particular, a deduções potenciais, que são, afinal, apenas seqüências de proposições, usando-se os números de Gõdel já atribuídos às proposições. Contabilidade! Em nossa versão simplificada, o número de Gõdel de uma seqüência de proposições (uma dedução potencial) é obtido basicamente juntandose os números de Gõdel das proposições seqüenciadas. Mas é importante poder extrair do número obtido, inequivocamente, a seqüência original de proposições, e para isso precisaremos de algum tipo de sinal que indicará onde uma P.roposição termina e a próxima começa como o retorno de carro da máquina de escrever. Deixaremos zero funcionar como o nosso retorno de carro, indicando que agora vamos para uma nova linha da prova. Assim, digamos que, numa seqüência de proposições específica, p 1 seja seguida por p 2, onde p 2 é definida como: (p 2 ) s(O) = s(O) O número de Gõdel que corresponderá à seqüência de p 1 seguida de p 2 é: NG(pi, P2) = 7387398776738467398827343980675846758 147

INCOMPLETUDE

Através dos mecanismos inspirados de Gõdel, todas as relações lógicas entre proposições do sistema formal se tornam relações aritméticas expressíveis na linguagem aritmética do próprio sistema. Essa é a essência da beleza incrível da prova toda. Assim, se, por exemplo, F 1 implica logicamente F2 , então NG(F 1 ) terá certa relação puramente aritmética com NG(F2 ). Suponhamos que se possa provar que, se F 1 implica logicamente F2 , então NG(F 2 ) é um fator de NG(F 1 ). Teríamos então duas maneiras de most rar que F 1 implica logicamente F2 : poderíamos usar as regras do sistema formal para deduzir F 2 de F 1; ou poderíamos mostrar que NG(F 1 ) pode ser obtido de NG(F 2 ) multiplicado por um inteiro. Suponhamos que NG(F 1 ) = 195589 e NG(F 2 ) = 317. 317 é um fator de 195589, pois 317 multiplicado por617 = 195589. Portanto que F1 implica logicamente F2 poderia ser demonstrado usando as regras formais de prova para chegar a F2 a partir de F1 , ou, alternativamente, usando as regras da aritmética para chegar a NG(F 1 ) = 195589 multiplicando 617 por 317 = NG(F2 ). O metassintático e o aritmético se reduzem um ao outro. Uma vez que tenhamos esse tipo de redução entre a implicação lógica e as relações aritméticas, podemos prosseguir e demonstrar que certas seqüências de fórmulas- precisamente aquelas que constituem provas - têm uma propriedade aritmética expressável no sistema. As provas, é claro, são constituídas de implicações lógicas. Assim, deduzir essa propriedade aritmética (dos números de Gõdel de todas as provas do sistema, e somente delas) será uma conseqüência do tipo de redução discutida no parágrafo anterior. Os números de Gõdel daquelas seqüências de fórmulas que são provas válidas dentro do sistema terão certo tipo de propriedade aritmética, digamos, serão todos pares ou serão todos ímpares ou serão números primos ou os quadrados de primos ou, mais provavelmente, uma propriedade bem mais complicada. · Em outras palavras, a relação metassintática de dedutibilidade setornará uma relação aritmética; que uma seqüência de fórmulas é uma prova corresponderá a determinada propriedade de números. A partir disso, torna-se possível mostrar que todas e somente as fórmulas dedu148

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

tíveis do sistema, os teoremas, têm certa propriedade aritmética. Você pode ver para onde estamos indo: para proposições aritméticas expressáveis no sistema que também abordam a questão de sua própria dedutibilidade dentro do sistema. A aritmetização de Gõdel permite que certas proposições se envolvam em um tipo interessante de duplo sentido, dizendo algo aritmético e também comentando sua própria situação dentro do sistema formal, dizendo se são dedutíveis. O duplo sentido dessas proposições pode ser comparado ao que acontece às vezes numa peça de teatro, em particular quando a peça apresenta atores como personagens, com suas próprias relações ((da vida real", e depois apresenta esses personagens como atores de uma peça dentro da peça.Através de um mecanismo cuidadoso, as falas dos atores na peça dentro da peça também podem ser interpretadas como se tivessem um significado de vida real em suas relações fora da peça dentro da peça (na peça propriamente dita). A estratégia de Gõdel pede que captemos algo análogo ao que o público de aldeões da ópera Os palhaços (I pagliacci), de Leoncavallo, capta quando compreende que os atores estão dizendo falas que, além de fazer sentido dentro da peça, têm um sentido na vida deles fora do palco (dentro da ópera).* Na produção teatral inspirada de Gõdel, as falas abordam as relações formais dentro do sistema, a peça dentro da peça, e também revelam relações aritméticas da vida real. A proposição que a prova de Gõdel constrói, aquela que anunciará simultaneamente sua própria nãodedutibilidade (dedutível) e uma relação aritmética verdadeira (não dedutível), revela o mesmo tipo de duplo sentido do grito trágico final de Os palhaços: ((La commedia efinita!" -A comédia terminou.

* A ópera Os palhaços é sobre uma trupe de comediantes numa aldeia. No segundo ato, eles encenam uma peça dentro da ópera. Em meio à peça acontece uma tragédia da "vida real" - ou seja, teatro e "realidade" se confundem. (N. T.) 149

INCOMPLETUDE

PASSO TRÊS: CRIAR UMA PROPOSIÇÃO QUE SEJA VERDADEIRA PORQUE DIZ QUE NÃO É DEDUTÍVEL Tendo estabelecido suas camadas engenhosas de significado, Gõdel agora prestidigita uma propriedade aritmética bem surpreendente, que escreveremos como "Pr", para designar "dedutível ( tem uma prova)". Porque, embora Pr seja unia propriedade puramente aritmética, é exatamente a propriedade em direção à qual todos os mecanismos vêm conduzindo. É uma propriedade aritmética verdadeira para todos os números de Gõdel das proposições dedutíveis do sistema (que possuem prova no sistema), e somente delas. Escolho o verbo "prestidigitar" deliberadamente porque, embora a redução entre o metassintático e o aritmético estivesse conduzindo em direção a "Pr", existe uma sensação de magia na entrada em cena de Pr. Antes de chegarmos à propriedade, um pequeno ponto técnico sobre como as propriedades são especificadas: por funções proposicionais de uma só variável. Elas podem ser imaginadas como da forma F(x). Essas são expressões do sistema formal que envolvem uma só variável- o x, que é um "testa-de-ferro" colocado no lugar de todo um espectro de valores atribuíveis no contexto dado (o domínio dos indivíduos sobre os quais se fala) que podem ser atribuídos; se você atribuir um valor para a variável, obterá uma fórmula que é verdadeira ou falsa-em outras palavras, uma proposição. F(x), em si, não é verdadeira nem falsa. Assim, digamos que F(x) significasse: x é o sucessor de 1. Isso não é verdadeiro nem falso; não é uma proposição, um enunciado definido, pois o que diz depende do que x realmente representa. Atribuir 2 para a variável x gera uma proposição verdadeira, e atribuir qualquer outra coisa gera proposições falsas. É assim que as propriedades são designadas no sistema: por funções proposicionais de uma só variável. Agora passemos para Pr(x), que é uma propriedade um tanto complicada dos números. Lembre, antes de tudo, que a cada fórmula do 150

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

sistema formal foi atribuído um número através das maravilhas da aritmetização de Gõdel. Assim, para cada fórmula p, temos algum NG(p ), algum número natural. Os teoremas são um subconjunto especial das fórmulas do sistema, as proposições dedutíveis. Dado qualquer número natural n, ele pode ou não corresponder a algum teorema do sistema formal. Ou seja, pode ou não acontecer que n = NG(p) para certa proposição p que é um teorema do sistema formal. Agora estamos em condições de definir Pr(x). Os valores possíveis para essa função proposicional, as coisas que atribuímos para a variável x, são (as expressões para) os números naturais. Para qualquer número natural n, se n = NG(p) para um teorema p do sistema, dizemos que n satisfaz a propriedade Pr(x), ou seja, que Pr(n) é verdadeira. Gõdel mostrou que essa propriedade pode de fato ser expressa no sistema formal, ou seja, que é um exemplo de uma F(x). Pr(x) é uma proposição aritmética formalmente expressível, embora muito complicada, não algo que possamos apresentar explicitamente aqui. Mas, mediante esta propriedade, Gõdel consegue tomar metassentenças sobre o sistema, afirmando quais proposições são teoremas do sistema, e transformá-las em sentenças aritméticas dentro do sistema: "pé um teorema" é transformada em "Pr(NG(p) )". Dizer de um n específico que tem a propriedade Pr(x) é dizer que esse número corresponde a um teorema do sistema formal. Agora você deve estar pensando algo como: um número específico n ter a propriedade Pr(x) não é ter uma propriedade real de números. O número n, por exemplo, pode ser par ou pode ser ímpar; se é divisível por 2, é par. Digamos que seja. O fato de ser par é uma propriedade aritmética real; n não poderia ser o número que é se não fosse par. Em contraste, examinando-se essa propriedade Pr(x) metassistêmica, ela não parece um tipo apropriado de propriedade numérica. Um número n poderá ter essa propriedade apenas arbitrariamente, já que a proposição com que n está associado é arbitrária, uma mera conseqüência da maneira como a aritmetização de Gõdel 151

INCOMPLETUDE

foi definida, os tais mecanismos inspirados.* É verdade, mas por mais arbitrária que seja, Pr(x) é, mesmo assim, uma propriedade aritmética real, e um número n terá ou não essa propriedade. E n não seria o número que é se não tivesse ou deixasse de ter a propriedade. O fato de · Pr(x) ter um metassignificado não diminui seu caráter aritmético. Essa propriedade Pr(x) é, de fato, estupenda, e nos permite dar o mergulho no interior da prova. O que usamos a seguir é, às vezes, chamado de lema diagonal. 7 É um enunciado geral, e é de um caso particular dele que precisamos para provar o teorema de Gõdel. ( Gõdel, na verdade, não o utilizou, mas dele retirou o caso particular útil para seu teorema.) Utilizar esse lema geral ( que, é claro, não iremos provar) simplificará muito as coisas. O lema diagonal afirma que a aritmetização de Gõdel satisfaz o seguinte: para qualquer função proposicional F(x) de uma só variável, existe um número n tal que o número de Gõdel de F(n), a proposição que obtemos ao substituirmos x por n na função F(x), acaba sendo o próprio n. (O fato de que tal número precise existir para cada F(x) dá uma idéia do esforço sobre-humano na elaboração da aritmetização de Gõdel.) Em outras palavras, o lema diagonal afirma que, para qualquer F(x), existe um n tal que n = NG(F(n)) (O) O número que você obtém é o mesmo número com que começou, de modo que o n especial associado a uma dada F corresponde precisamente ao lugar onde o gráfico de y = NG(F(x)) corta a diagonal, o gráfico de y = x, onde x = n. Daí o nome "lema diagonal". ( OBSERVE: O enunciado n = NG(F(n)) está na metalinguagem. É uni "enunciado normal", ou seja, não é um enunciado formal, e n à esquerda

* Compare-se isso com o paradoxo de Richard (nota de rodapé anterior), que Gódel cita, junto com o paradoxo do mentiroso, como uma ajuda heurística para entender a prova. O paradoxo de Richard também dá a sensação (ilusória) de atribuir uma propriedade forjada, ou irreal, aos números (a propriedade de ser richardiano), que um número terá ou não devido às atribuições arbitrárias de números a propriedades. 152

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

denota um número natural (normal). Entretanto, o n à direita representa a expressão no sistema formal que representa o número n, a saber s(s(s( ... s(s(O)))) ), com n ocorrências de s.) Observe que o número n que o lema diagonal associa com a função proposicional F(x) é tal que a proposição com o número de Gõdel na saber, (F ( n)) - diz que o próprio n tem a propriedade F. Ela é, grosso modo, da forma: esta própria sentença é F. Murmúrios de auto-referência estão pairando no ar silencioso. Agora retornemos àquela propriedade estupenda que Gõdel produziu, Pr, que é verdadeira para todos os números de Gõdel de teorema, as fórmulas dedutíveis do sistema, e somente para eles. Um número terá a propriedade aritmética Pr se e somente se corresponder ao número de Gõdel de uma proposição dedutível. Em outras palavras: Pr(NG(p)) se e somente se pé dedutível Nós temos a noção metassintática do que Pr(x) significa (embora não de seu significado aritmético; mas eu garanto que tem um significado aritmético). Agora vejamos a propriedade: - Pr(x) Esta segunda propriedade será verdadeira para todos os números de Gõdel de não-teoremas, e somente para eles; ou seja, é verdadeira para os números de Gõdel de objetos que não são proposições dedutíveis no sistema. Em outras palavras: - Pr(NG(p)) se e somente se p não é comprovável ( 1) Que tipo de sentença é ( 1)? É uma sentença metamatemática. Não é uma sentença do sistema formal, nem uma sentença aritmética. Mas mediante (1) podemos transformar algumas sentenças metamatemáticas em sentenças aritméticas. Ora, o lema diagonal diz respeito a qualquer função proposicional F(x). Portanto, vamos aplicá-lo a F(x) = -Pr(x). O lema diagonal, lembre-se, afirma que, para qualquer função proposicional F(x) de uma só variável, existe um número n que é o número de Gõdel da própria proposição que obtemos quando substituímos x por n na função. Estamos 153

INCOMPLETUDE

agora considerando a função proposicional - Pr. De acordo com o lema diagonal, existe certo número, que chamaremos deg, tal que: g=NG(-Pr(g)) (2) Chegamos a (2) substituindo F por -Pr e n por g em (O).Aequação (2) diz que g é o número de Gõdel da proposição que afirma que o número g carece da propriedade aritmética Pr (satisfeita por todos os números que são números de Gõdel de proposições dedutíveis, e somente por eles). Agora estamos prontos para construir nossa proposição G. Seja (3) G = - Pr(g) A proposição G afirma que o número g carece da propriedade Pr. Além disso, de (2) e (3) , segue-se que: NG(G) = g Agora voltamos a ( 1) e fazemos certas substituições. Eis ( 1) de novo: - Pr(NG(p)) se e somente se p não é dedutível Fazendo com que p = G em (1) e usando o fato de que NG(G) = g, obtemos: (4) - Pr(g) se e somente se G não é dedutível Ou seja, usando novamente (3) , G se e somente se G não é dedutível. O que (4) está dizendo é que G é verdadeira se e somente se G não é dedutível! Claro que G é um enunciado puramente aritmético, mas ao mesmo tempo fala sobre si mesmo, e o que está dizendo é que não é dedutível. O que está dizendo é verdade? Bem, dificilmente poderia ser falso, pois então teria que ser dedutível e, portanto, verdadeiro. A não ser que o sistema formal da aritmética seja inconsistente, de modo que todas as suas proposições fossem dedutíveis, mesmo as contradições. Esse é o ponto da prova em que aquele pressuposto da consistência do sistema formal é convocado para cumprir seu papel. E ele cumpre. A proposição G não é dedutível e, dado que é isso o que ela diz, também é verdadeira. Não mostramos que é verdadeira encontrando uma prova para ela dentro do sistema formal, usando as regras puramente mecânicas daquele sistema, ou seja, deduzindo-a. Pelo contrário, e ironicamente, mostramos 154

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

que é verdadeira saindo do sistema e mostrando que nenhuma prova dela pode ser produzida dentro do sistema formal. Mostramos que G é verdadeira mostrando que não pode ser provada, conforme ela diz. Além do mais, Gõdel mostrou como construir uma proposição verdadeira, mas não dedutível, não apenas para o sistema formal da aritmética que vimos discutindo, mas para qualquer sistema formal que contenha aritmética. Portanto, se tentássemos contornar o primeiro teorema da incompletude de Gõdel construindo um sistema formal novo que tenha G como um dos axiomas, uma proposição problemática nova poderia ser construída para tal sistema. E assim por diante, ad infinitum. Existem proposições comprovadamente não dedutíveis, mas mesmo assim verdadeiras, em qualquer sistema formal que contenha a aritmética elementar, pressupondo-se a consistência do sistema. Esse foi o primeiro teorema da incompletude de Gõdel.

OSEGUNDO TEOREMA DA INCOMPLETUDE O segundo teorema da incompletude afirma que a consistência de um sistema formal que contenha a aritmética não pode ser formalmente provada dentro daquele sistema. Ele parece resultar, diretamente, do primeiro teorema. Lembre que o primeiro resultado da incompletude tem a forma de um enunciado condicional: se o sistema formal da aritmética é consistente, então G não é dedutível. Seja C a proposição: "O sistema formal da aritmética é consistente': Assim, o primeiro teorema da incompletude informa: se C, então G não é dedutível. A aritmetização da proposição "G não é dedutível" claro que é G.Assim, o que a primeira incompletude diz é: e~ G, e essa conclusão foi provada dentro do sistema formal da aritmética. Assim, se pudermos prosseguir e provar C dentro do sistema formal da aritmética, estaríamos ipso facto provando G dentro do sistema formal da aritmética, já que provamos que C ~ G. E, como provamos que G não é dedutível dentro do sistema formal da aritmética, sabemos que C tampouco é dedutível no sistema formal da aritmética. 155

INCOMPLETUDE

Esse é o segundo teorema da incompletude de Gõdel. Observe que o segundo teorema da incompletude não afirma que a consistência de um sistema formal da aritmética não é dedutível de nenhuma maneira. Ele simplesmente diz que um sistema formal que contenha a aritmética não consegue provar a consistência de si mesmo.* O sistema formal da aritmética é claramente consistente, alguém pode argumentar, se recorrermos a considerações semânticas. Afinal, os números naturais constituem um modelo do sistema formal da aritmética, e, se um sistema tem um modelo, então ele é consistente. Lembre-se das lições da descrição do meu apartamento de Nova York. Na medida em que o descrevo de forma inequívoca e precisa (por exemplo, ele só tem um banheiro), não preciso me preocupar com autocontradições (ele tem quatro banheiros) espreitando na descrição. Em outras palavras, quando o sistema fo rmal da aritmética é dotado dos significados usuais, envolvendo os números naturais e suas propriedades, os axiomas e tudo que decorre deles são verdadeiros e, portanto, consistentes. Esse tipo de argumento a favor da consistência, porém, sai do sistema formal, apelando para a existência dos números naturais como um modelo. Esse não é o tipo de raciocínio que ofereça consolo a um formalista, por mais que alegre o coração de um platônico como Gõdel. Sistemas formais finitários eram, de acordo com Hilbert, anschaulich, transparentemente puros. Com tudo reduzido à estipulação ou às conseqüências lógicas dos procedimentos mecânicos estipulados, não há lugar para a obscuridade (possivelmente infectada de paradoxos) se insinuar. Os sistemas formais finitários eram, de acordo com o programa de Hilbert, o meio de extirpar a substância paradoxal da noção de infinito:

* Em 1936, Gerhard Gentzen, membro da escola de Hilbert, provou a consistência da aritmética, mas não foi dentro de um sistema formal finitário. Sua prova envolveu o tipo de raciocínio transfinito cujo banimento Hilbert propusera a favor de sistemas formais finitários. 156

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

Trabalhar com o infinito só pode se tornar seguro através do finito. O papel que resta para ser desempenhado pelo infinito é puramente o de uma idéia entendendo-se por uma idéia, na terminologia de Kant, um conceito da razão que transcende toda experiência e que completa o concreto como uma totalidade-, o de uma idéia, ademais, em que podemos confiar firmemente dentro do arcabouço erigido por nossa teoria. 8

O programa de Hilbert- de expurgar quaisquer referências às intuições - estava mais particularmente voltado para nossas intuições do infinito. Dado que somos criaturas finitas, não surpreende que essas intuições se mostrassem, desde o início, as mais problemáticas. O profundo mal-estar que mesmo Euclides sentiu em relação ao seu quinto postulado, e que se repetiu ao longo dos séculos, resulta de nossa falta total de confiança em todas as questões infinitas. No entanto, a matemática, até mesmo a aritmética básica, é impossível sem uma referência implícita ao infinito. Se pudéssemos domar o infinito, capturando-o dentro de nossos sistemas formais finitários, teríamos obtido o ajuste perfeito. O infinito «se tornaria seguro através do finito", nas palavras de Hilbert. O resultado de Gõdel revela a robustez da noção matemática de infinito. Este não pode ser privado de sua vitalidade e transformado numa idéia kantiana fantasmagórica pairando em algum lugar, mas sem entrar na matemática. As intuições do infinito do matemático - em particular, a estrutura infinita que são os números naturais - não podem mais ser reduzidas a sistemas formais finitários, nem expurgadas da matemática. Outra forma de ver a robustez de nossa intuição do infinito é considerar que se conclui do trabalho de Gõdel que existem «modelos nãostandard" de aritmética. Especificamente, o teorema da completude de Gõdel - aquela tese de doutorado que acabou se mostrando bem menos trivial do que pareceu de início - informa, entre outras coisas, que todo sistema formal consistente tem modelo. Existe um meio de especificar um universo de discurso e interpretar os predicados, relações e constantes de modo que todos os teoremas do sistema formal sejam afirmações verdadeiras. Disso e do primeiro teorema da incom157

INCOMPLETUDE

pletude de Gõdel se conclui que existe pelo menos um modelo standard da aritmética: um modelo que satisfaz todos os axiomas do sistema formal da aritmética, mas no qual algumas das verdades da aritmética padrão - G, por exemplo - serão falsas. Assim, esse modelo não-standard não consistirá nos números naturais da forma como os conhecemos e adoramos.* Os números naturais transcendem o sistema formal da aritmética, no sentido de que o sistema formal não seleciona singularmente os números naturais como seu modelo, como sendo aquilo de que trata o sistema formal. O mesmo acontece em qualquer sistema formal maior que contém a aritmética. Resta algo - sempre - que escapa à captura num sistema formal. Foi a essa metaluz que Gõdel viu seus teoremas da incompletude. O segundo teorema da incompletude de Gõdel, a conseqüência direta do primeiro, como Von Neumann rapidamente percebeu, de fato demoliu o programa de Hilbert para a transparência da matemática, já que dele segue que a consistência dos sistemas formais finitários só podia ser provada recorrendo-se a argumentos inexprimíveis dentro dos próprios sistemas formais, por mais que sejam modificados e ampliados. O segundo teorema da incompletude pôs o formalismo num dilema impossível: o incentivo formalista era banir a opacidade da natureza da coisa em si (espaço, números, conjuntos) em prol da transparência dos sistemas formais. Mas é da máxima prioridade que um sistema formal- drenado do teor descritivo que, na medida em que os axiomas fossem realmente descritivos, asseguraria a sua consistência

* O estudo da teoria dos modelos - interpretações standards (com os números naturais como o universo de discurso) e não-standard ( como distintas da teoria da prova: o estudo dos aspectos puramente sintáticos de sistemas formais -surgiu como resultado da prova da incompletude de Gõdel. A prova de Gõdel, além de inscrever a lógica, nas palavras de Simon Kochen, "no mapa matemático", também apontou o caminho para regiões novas e diferentes de pesquisa técnica. O próprio Gõdel nunca mostrou muito interesse em fazer pesquisas nas áreas que sua prova gerou, o que não surpreende à luz de sua ambição audaciosa de se restringir à matemática com implicações metamatemáticas. 158

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

- tenha a sua consistência provada. Isso só pode ser feito saindo-se do sistema formal e apelando-se às intuições, as quais não podem ser formalizadas. ( O último artigo que Gõdel viria a publicar em sua vida mostrou como a aritmética poderia ter sua consistência provada contanto que se aceitem certos pressupostos sobre a realidade matemática objetiva. 9 ) Os aspectos puramente sintáticos dos sistemas formais os aspectos transparentes - não são suficientes para provar todas as proposições aritméticas verdadeiras expressáveis dentro do sistema (o primeiro teorema da incompletude ) nem para fornecer uma prova da consistência interna (o segundo teorema da incompletude). Qual foi a reação de Hilbert ao golpe lógico contra seu belo plano? O matemático Paul Bernays (1888-1977), que viera a Gõttingen para servir como assistente de Hilbert, revela numa carta que ele (Bernays) se tornara, algum tempo antes da prova de Gõdel, «cético [... ] quanto à completude dos sistemas formais" e havia «expressado [suas dúvidas] a Hilbert': w Hilbert, de acordo com Bernays, enfureceu-se; e ele se enfureceu quando tomou conhecimento da prova de Gõdel. Mas uma prova é uma prova, como Hilbert, mais do que ninguém, reconhecia.

WITIGENSTEIN E A INCOMPLETUDE A reação de Wittgenstein à prova de Gõdel foi bem diferente da de Hilbert. Ele nunca se adaptou ao trabalho de Gõdel, como fez Hilbert, embora indigesto à sua perspectiva filosófica e a todo o seu programa. Existe uma incompatibilidade lógica entre as visões de Wittgenstein sobre os fundamentos da matemática (tanto o primeiro Wittgenstein, que soava positivista, como o último, que soava pós-moderno) e os teoremas da incompletude de Gõdel. Wittgenstein reconheceu a incompatibilidade. Ele não tomou os resultados matemáticos, como fizeram tantos outros, e ajustou-os a certo molde metamatemático mais do seu agrado, o molde do positivismo, existencialismo ou pós159

INCOMPLETUDE

modernismo. Reconheceu a incompatibilidade e replicou que Gõdel, portanto, não poderia ter provado o que pensou ter provado: A matemática não pode ser incompleta, assim como um sentido tampouco pode ser incompleto. Aquilo que consigo entender, devo entender totalmente. Isso está de acordo com o fato de que minha linguagem funciona da maneira que é, e que a análise lógica não precisa acrescentar nada ao sentido presente em minhas proposições para se chegar à clareza completa. 11

Realmente não surpreende que Wittgenstein descartasse o resultado de Gõdel com uma descrição depreciadora como'' logische Kunststücken", truques lógicos, claramente destituídos da importância metamatemática atribuída por Gõdel e outros matemáticos. A prova de Gõdel, a própria possibilidade de uma prova daquele tipo, é proibida por motivo dos objetivos wittgensteinianos, que permaneceram constantes através da transformação do "primeiro" para o "último" Wittgenstein, onde o primeiro Wittgenstein tinha uma visão monolítica da linguagem e suas regras e o último Wittgenstein fraturou-a em jogos de linguagem autocontidos, cada qual funcionando de acordo com seu próprio conjunto de regras. Ele foi inflexível sobre a impossibilidade de falar sobre uma linguagem formal como a prova de Gõdel fala. Também foi inflexível ao negar que paradoxos, sendo epifenômenos triviais das formas como a linguagem funciona, pudessem ter conseqüências amplas e interessantes. (Ele discutiria exatamente esse ponto com o lógico Alan Turing, que ignorou Wittgenstein e produziu outra prova extraordinária que compartilha muitos atributos com a de Gõdel; tantos, de fato, que ela gera uma prova alternativa para a incompletude de sistemas formais ricos o suficiente para expressarem a aritmética.) Ele foi, em termos mais gerais, inflexível ao negar que resultados matemáticos, sendo os resultados de mera sintaxe, pudessem ter conseqüências amplas e interessantes fora da matemática: "Nenhum cálculo pode solucionar um problema filosófico. Um cálculo não pode dar informações sobre os fundamentos da 160

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

matemática". 12 Ele foi, em suma, inflexível ao negar a possibilidade de uma prova como a de Gõdel. Todas essas incompatibilidades inflexíveis proporcionam um contexto para se entender uma afirmação de Wittgenstein que tende a irritar os matemáticos: "Minha tarefa não é falar sobre a prova de Gõdel, por exemplo, e sim passar por cima dela". 13 Contudo, Wittgenstein retorna, repetidamente, em suas Observações sobre os fundamentos da matemática, ao teorema da incompletude de Gõdel, desconstruindo-o, como diriam os pós-modernistas, tentando mostrar que seu significado está em conflito com sua intenção, que ele não pode significar o que pretende significar. Todavia, se vamos além das incompatibilidades metamatemáticas que separam Wittgenstein de Gõdel, chegamos a uma semelhança surpreendente, pelo menos entre o primeiro Wittgenstein e o lógico, mascarada pela interpretação positivista de Wittgenstein. Em certo sentido, o primeiro Wittgenstein apresentou uma tese da incompletude própria na proposição final do Tractatus. Assim como Gõdel demonstrou que nossos sistemas formais não conseguem exaurir toda a realidade matemática, o primeiro Wittgenstein argumentou que nossos sistemas lingüísticos não conseguem exaurir toda a realidade não matemática. Tudo que pode ser dito pode ser dito claramente, de acordo com o Tractatus; mas não podemos dizer as coisas mais importantes. Não podemos dizer as verdades indizíveis, mas elas existem. De novo, vemos por que Wittgenstein censurou os positivistas, por que às vezes tinha tanta raiva de seus supostos discípulos a ponto de dar as costas a eles e ficar defronte à parede, recitando poesia de um indiano místico ( um ato hostil aos positivistas, se chegou a haver algum: curioso que a hostilidade latente parece não tê-los atingido). Para Gõdel, cada sistema formal terá verdades expressáveis naquele sistema que não serão dedutíveis; e uma das verdades mais importantes sobre o sistema, que ele é consistente, não será dedutível dentro do sistema. Assim, tanto Gõdel como o primeiro Wittgenstein estão unidos contra a reiteração dos positivistas do antigo slogan sofista de que 161

INCOMPLETUDE

o homem é a medida de todas as coisas. Ambos os homens afirmam uma incompletude fundamental que retira a medida do homem. A de Wittgenstein é, de longe, a afirmação mais radical da incompletude. Para Gõdel, existe conhecimento expressável que não pode ser formalizado. Os limites da formalização, de nossa tentativa de reduzir todo o conhecimento matemático às regras especificadas de um sistema, não são coerentes com os limites de nosso conhecimento. Nosso conhecimento matemático excede nossos sistemas. Para o primeiro Wittgenstein, não existe conhecimento expressável que escape aos limites que ele delineia. Do outro lado da significabilidade jazem os temas mais importantes: ética, estética e o próprio significado da vida. "Existem, de fato, coisas que não podem ser expressas em palavras. Elas se fazem manifestas. Elas são o que é místico." 1'1 A atitude impositivisticamente positiva de Wittgenstein para com a idéia do místico - ainda que seja o místico sem sentido - poderia ter despertado certa simpatia em Gõdel. Gõdel foi até receptivo à sugestão de que seus teoremas da incompletude tinham conseqüências na esfera mística, ou pelo menos religiosa. Em carta à mãe em 20 de outubro de 1963, ele observou, sobre um artigo que ela enviara e que ele ainda não lera, que abordava as implicações de seu trabalho: "Era de esperar que, mais cedo ou mais tarde, minha prova se torne útil à religião, pois isso se justifica em certo sentido". No mínimo, Gõdel acreditava que seu primeiro teorema da incompletude respaldava a insistência do platonismo na existência de um domínio supra-sensível de verdades eternas. Claro que o platonismo não é o mesmo que religião ou misticismo, mas existem afinidades. Para o primeiro Wittgenstein, assim como para Gõdel, as tentativas de sistematizar a realidade, de capturá-la totalmente dentro de nossas construções límpidas concebidas para impedir qualquer contradição e paradoxo, estão fadadas ao fracasso. O primeiro teorema da incompletude de Gõdel informa que qualquer sistema formal consistente adequado à expressão da aritmética deve deixar de fora grande parte da realidade matemática, e seu segundo teorema informa que nenhum 162

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

desses sistemas formais consegue provar sua autoconsistência. Claro que Gõdel acredita que esses sistemas são consistentes, já que têm um modelo no domínio abstrato realmente existente. Wittgenstein acredita de modo tão ardente na incapacidade de obter a completude e a autoconsistência que permite que o próprio Tractatus ponha a nu sua autocontradição, falando sobre o indizível, mesmo enquanto pronuncia o próprio enunciado que o proíbe. Gõdel provavelmente não sabia que, em certo nível, ele e Wittgens.tein (o primeiro) compartilhavam uma convicção profunda na incompletude, uma rejeição do ((homem como medida de todas as coisas" sofista. Afinal, como informou no questionário de Grandjean, ele nunca se aprofundou em Wittgenstein. Seu conhecimento do filósofo era, segundo ele próprio, superficial, supostamente porque não se empolgou o bastante com o que ouviu para estudar o filósofo. Sabia apenas o que ouvia nas discussões do Círculo de Viena. E os positivistas lógicos, ao estudar o precisamente obscuro Tractatus proposição por proposição, estavam decididos a ignorar de forma sistemática aqueles aspectos que teriam sensibilizado Gõdel, falando à sua própria convicção em uma realidade que sempre escapa às nossas tentativas ordenadas de precisão. Claro que Gõdel e Wittgenstein situaram as partes esquivas da realidade de maneiras irreconciliavelmente diferentes. A convicção de Gõdel, a interpretação metamatemática que deu a seus teoremas da incompletude (bem como seu trabalho sobre a hipótese do continuum), era de serem aspectos da realidade matemática que devem escapar à nossa sistematização formal (embora não ao nosso conhecimento), e a visão de Wittgenstein sobre os fundamentos da matemática não aprovaria essa convicção. Para Wittgenstein, pelo menos o primeiro Wittgenstein, todo conhecimento, e ainda mais o conhecimento matemático, é sistematizável; o que sistematicamente escapa aos nossos sistemas é o indizível, que inclui tudo que é importante. Gõdel acreditava que nosso conhecimento expressável, comprovadamente nosso conhecimento matemático, é maior que nossos sistemas. Aquilo que 163

INCOMPLETUDE

não podemos formalizar podemos, ainda assim, conhecer - o matemático poderia ter dito, se tivesse vocação oracular. Wittgenstein nunca deixou que o resultado de Gõdel influísse nas suas visões sobre metamatemática, assunto que o obcecou cada vez mais nos anos após a publicação do Tractatus e de seu abandono por parte do autor. Seu intuito, como ele diz, foi passar por cima da prova de Gõdel. Isso é interessante em si e pelo efeito atormentador sobre Gõdel. O filósofo falara do silêncio necessário. Gõdel, suspeita-se, teria gostado que aquele silêncio envolvesse o próprio filósofo.

A DIFUSÃO DA INCOMPLETUDE A prova da incompletude inaugurou áreas totalmente novas de pesquisa, sobretudo a teoria dos modelos e a teoria da recursão. Gõdel nunca quis se aprofundar nos problemas desses campos. Assim como Einstein, sua alma gêmea, ele estava interessado no que Einstein denominou problemas de ((importância genuína", ou seja, problemas na interseção entre a ciência exata e a filosofia, problemas que irradiavam metaimplicações. Ele deixou o ((trabalho de limpeza" (na terminologia pitoresca de Thomas Kuhn) para os outros. A ambição e a confiança intelectual desmedidas -tão incongruentemente acopladas ao temor mundano e à modéstia - talvez tenham feito com que legasse menos resultados do que poderia, mas também fizeram com que o alcance de seus resultados fosse vasto. Os teoremas da incompletude de Gõdel não nos impressionam simplesmente por abrir áreas novas e promissoras de pesquisa técnica. Descobertas profundas nas ciências exatas costumam fazer exatamente isso. O que torna os resultados de Gõdel tão estonteantes é o mero volume de tudo que têm a dizer. O platônico apaixonado, que convivera calado com os positivistas, sem murmurar uma palavra de objeção, havia produzido os teoremas mais loquazes da história da matemática. 164

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

Foi devido à loquacidade deles que um filósofo como Wittgenstein não pôde aceitá-los e se atribuiu a tarefa de passar por cima deles, e não discuti-los. (Wittgenstein continuaria argumentando contra a própria possibilidade de um resultado como o de Gõdel com o jovem lógico inglês Alan Turing, que viria a produzir uma prova que tem grande afinidade com a de Gõdel. Turing também conseguiria dar uma expressão matemática clara a conceitos metamatemáticos e se apropriar da estruturada paradoxalidade auto-referencial para suas próprias finalidades. Alan Turing passara o ano acadêmico de 1936-7 no Instituto de Estudos Avançados, onde os teoremas da incompletude de Gõdel eram a ordem do dia entre Von Neumann e seu círculo. (Von Neumann fez mais do que ninguém para disseminar a novidade das realizações de Gõdel.)* Turing retornou a Cambridge, sua mente ocupada com a prova de Gõdel. Em seu primeiro semestre de volta à Inglaterra, ministrou um curso em Cambridge sobre os «Fundamentos da matemática". Naquele mesmo semestre, Wittgenstein também estava dando um curso ali intitulado «Fundamentos da matemática", mas os dois cursos não poderiam ter sido mais diferentes. Enquanto o curso de Turing constituía uma introdução à lógica matemática, Wittgenstein dedicou seu curso basicamente a argumentar contra a possibilidade da lógica matemática em geral e contra suas implicações para a metamatemática em particular. Turing compareceu às

* O lógico Stcphen Kleene, por exemplo, contou como Gódel "entrou na minha vida intelectual. [... ] Um dia, no outono de 1931, o orador no colóquio de matemática de Princeton foi John von Neumann. Em vez de falar de seu próprio trabalho (que era abundante), ele abordou os resultados do artigo de 1931 de Gódel, que acabara de sair na Monatschafte, mas que Church e nós em seu curso ainda não havíamos notado. Von Neumann tivera uma prévia da primeira daquelas verdades (acompanhada de um intercâmbio intelectual com Gódel) no encontro de Kónigsberg de setembro de 1930. Após o colóquio, o curso de Church continuou se concentrando em seu sistema formal; mas como atividade paralela lemos o artigo de Gõdel, que me revelou todo um mundo novo de idéias e perspectiva fascinantes. A impressão que aquilo causou em mim foi ainda maior devido à concisão e incisividade do tratamento de Gódel". 15 165

INCOMPLETUDE

aulas de Wittgenstein, pelo menos por algum tempo, e Wittgenstein estava tão empenhado em fazer a cabeça de Turing que, quando o lógico comparecia, a aula de Wittgenstein se concentrava totalmente nesse objetivo. Quando Turing certa vez mencionou que não poderia ir ao seminário na semana seguinte, Wittgenstein observou que então a discussão daquela semana seria "parentética". * No final, Turing deixou de comparecer, e logo depois produziu seu próprio resultado metamatemático importante.)

* O terna central do acalorado debate entre Turing e Wittgenstein, naquele semestre, foi se contradições e paradoxos podem ter alguma importância. Wittgenstein sustentou que não podem. Tornemos, por exemplo, o caso do paradoxo do mentiroso. A visão de Wittgenstein a respeito era: "De certa forma, é estranho que isso tenha intrigado alguém - muito m ais extraordinário do que se poderia pensar: que isso fosse algo que preocupasse seres humanos. Porque a coisa funciona assim: se urn hornern diz 'estou mentindo', dizemos que se segue que ele não está mentindo, do que se segue que ele está mentindo, e assim por diante. Bern, e daí? Você pode continuar assim até cansar. Por que não? Não irnporta". 16 Mas Turing, cornprornetido corn a lógica rnaternática e sabendo do emprego de Gõdel de paradoxos tradicionais corno o do mentiroso, tinha a forte impressão de que o paradoxo do mentiroso - de que os paradoxos e contradições ern geral- importa sim, e que às vezes indica o caminho para verdades quase necessariamente surpreendentes. Quando Wittgenstein insistiu que uma contradição em urn sistema não era motivo de preocupação, já que tudo se reduzia, ern última análise, à arbitrariedade dos jogos de linguagem, Turing parou de comparecer às palestras. Pouco depois, Turing produziu sua prova rnetamaternática. Onde Gõdel sujeitou os conceitos de "dedutibilidade" e "completude" às suas técnicas transformativas, Turing daria expressão matemática aos conceitos de "decidibilidade" e "computabilidade". Uma pergunta rnaternática de certo tipo (que inclui urn número infinito de perguntas específicas) é decidível se e somente se existe um algoritmo uma única série computável de operações -- para determinar, para qualquer dessas perguntas, se a resposta é sirn ou não, sern necessariamente explicar por que a resposta é sim ou n ão. Você não precisa entender por que urn algoritmo funciona para que seja urn algoritmo e para que funcione. Ern particular, existe o tipo de pergunta matemática a respeito de uma proposição ser ou não formalmente dedutível. Não é difícil ver, embora isso esteja um pouco além do escopo desta nota de rodapé, que o forrnalisrno de Hilbert- ou, mais precisamente, a idéia, que Gõdel mostrou ser falsa, de que, para toda proposição matemática, ela ou sua negação admite uma prova - implica que a pergunta a respeito de uma proposição ser dedutível é decidível. Se tivéssemos um algoritmo para mostrar se urna proposição ou sua negação é dedutível, então, dado o formalismo de Hilbert, teríamos um algoritmo para a verdade matemática. Tal algoritmo forneceria um m étodo combinatório puramente finitário para se captar o 166

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

Graças à loquacidade deles o programa de Hilbert foi abandonado. Hilbert tentara imunizar a matemática contra os paradoxos eliminando quaisquer apelos à intuição. Gõdel havia provado que apelos à intuição não podiam ser eliminados; ele havia solapado o programa de imunização do formalismo. Em particular, nossas intuições sobre o infinito - por mais susceptíveis que sejam às falácias invalidadoras, como deixam bem claro os famigerados paradoxos ( que só podemos evitar adotando regras ad hoé como as que Russell e Whitehead conceberam) - não podem ser substituídas pelos processos mecânicos, livres de semântica, da manipulação maquinal de símbolos. Tais conclusões metamatemáticas, que seguem - de uma prova matemática a priori, são extraordinárias em si mesmas. Se esses resultados metamatemáticos constituíssem todas as conseqüências dos teoremas da incompletude de Gõdel, seriam suficientes para marcar seu trabalho como singularmente loquaz. Mas ouvimos dizer dos teoremas da incompletude de Gõdel que abordam, em sua efusividade irreprimível, questões que vão bem além da metamatemática. Pensadores eminentes têm interpretado os teoremas da incompletude como tendo algo a dizer sobre a questão central das humanidades, a saber: o que nos conceito de verdade matemática ( assim como o conceito de dedutibilidade matemática havia sido captado). Turing provou que não existe tal algoritmo, frustrando ainda mais a esperança formalista de H ilbert. Sua prova é tão intimamente aliada à de Gõdel que é possível inferir uma prova alternativa do primeiro teorema da incompletude de Gõdel a partir dela. Gõdel ficou tão contente com o trabalho de Turing que, em 1963, quando seu famoso artigo de 1931 foi republicado, acrescentou um parágrafo afirmando que seus próprios dois teoremas da incompletude haviam sido fortalecidos pelo trabalho de Turing. "Em conseqüência de avanços posteriores, em particular do fato de que, graças ao trabalho de A. M. Turing [Turing (1937), 'On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem', Proceedings of the London Mathematical Society, 2" série, 42, pp. 230-65], dispõe-se agora de uma definição precisa e inquestionavelmente adequada da noção geral de sistema formal, uma versão geral completa dos Teoremas VI e XI é agora possível. Ou seja, pode-se provar rigorosamente que, em todo sistema formal consistente que contém certa quantidade de teoria dos números finitária, existem proposições aritméticas indecidíveis e que, além disso, a consistência de qualquer desses sistemas não pode ser provada no sistema." Infelizmente, Turing e Gõdel nunca se encontraram. Turing morreu aos 42 anos, um suicida. 167

INCOMPLETUDE

torna humanos? A possibilidade de teoremas matemáticos terem algo a dizer sobre um tema como esse - profundamente mergulhado na complexa matéria da condição humana- é pegar o que já é extraordinário e elevá-lo a uma ordem de espanto ainda mais alta. Os formalistas haviam tentado garantir a certeza matemática eliminando as intuições. Gõdel mostrara que a matemática não pode avançar sem elas. Restringir-se a considerações sintáticas formais nem sequer garantirá a consistência. Mas essas intuições matemáticas que não podem ser eliminadas e não podem ser formalizadas: o que são? Como se tornam disponíveis a seres como nós? Somos de novo lançados de encontro à natureza misteriosa do conhecimento matemático, de encontro à natureza misteriosa de nós mesmos como conhecedores de matemática. Como chegamos a ter o conhecimento que temos? Como conseguimos isso? O próprio Platão argumentara que o fato de nossa mente racional conseguir entrar em contato com o domínio eterno da abstração indica algo do eterno em nós: que a parte de nós capaz de saber matemática é a parte que sobreviverá à nossa morte corporal. Spinoza argumentaria dentro de linhas semelhantes. Poucos pensadores pós-Gõdel de mentalidade científica estariam talvez dispostos a seguir Platão e Spinoza e extrair, de nossa capacidade de conhecimento matemático, conclusões sobre nossa imortalidade. Afinal, vivemos não apenas com as verdades de Gõdel, mas também com as verdades de Darwin. Nossas mentes resultam de mecanismos cegos de evolução. Mesmo assim, muitos pensadores pós-Gõdel, de mentalidade científica, declararam que ouviram, dentro da música estranha dos teoremas matemáticos de Gõdel, notícias sobre nossa natureza humana essencial. A partir dos teoremas da incompletude de Gõdel, eles chegaram a conclusões sobre o que somos; ou, para ser mais preciso, sobre o que não somos. Os teoremas de Gõdel nos informam, de acordo com essa linha de raciocínio, o que nossas mentes simplesmente não podem ser. Em particular, o que nossas mentes não podem ser, segundo essa linha de raciocínio, são computadores. O conhecimento matemático 168

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

que possuímos não pode ser captado em um sistema formal. É isso que o primeiro teorema da incompletude de Gõdel parece informar. Mas são os sistemas formais que captam a computação dos computadores, razão por que conseguem descobrir as coisas sem recorrer a quaisquer significados. Os computadores funcionam de acordo com algoritmos, o que aparentemente não acontece conosco, donde se conclui que nossas mentes não são computadores. O primeiro dos argumentos que alegam uma ligação entre o primeiro teorema da incompletude de Gõdel e a natureza da mente foi publicado em 1961 pelo filósofo de Oxford John Lucas: O teorema de Gõdel me parece provar que o mecanicismo é falso, ou seja, que as mentes não podem ser explicadas como máquinas. Muitas outras pessoas tiveram a mesma impressão: quase todo lógico matemático a quem mencionei o assunto confessou ter pensamentos semelhantes, mas se sentiu relutante em se comprometer em definitivo até ver o argumento inteiro formulado, com todas as objeções plenamente enunciadas e apropriadamente contestadas. É o que estou tentando fazer. 17

O argumento de Lucas foi bem direto. Ele argumentou que, por mais complicada que seja uma máquina criada por nós, ela funcionará de acordo com regras gravadas em circuitos e enunciáveis num sistema formal; quando perguntarmos a essa máquina quais são as proposições verdadeiras, para responder ela só será capaz de verificar quais proposições decorrem das regras do sistema. Haverá portanto uma proposição que escapará à sua captação da verdade, que não é decidível pela comprovação determinada por regras - uma proposição que nossas mentes serão capazes de captar como verdadeira. Por mais que fortaleçamos a máquina, acrescentando as proposições esquivas como axiomas, surgirá outra proposição que escapará a ela ... mas não a nós. Essa fórmula a máquina será incapaz de reconhecer como verdadeira, embora uma mente possa vê-la como verdadeira. De modo que a máquina continuará 169

INCOMPLETUDE

não sendo um modelo adequado da mente. Estamos tentando produzir um modelo da mente que seja mecânico -

que seja essencialmente "morto"-,

mas a mente, sendo de fato "viva", sempre consegue sobrepujar qualquer sistema formal, ossificado, morto. Graças ao teorema de Gõdel, a mente sempre tem a última palavra.

O matemático Roger Penrose, também professor de Oxford, publicou dois livros, A mente nova do rei ( The emperor's new mind) e Shadows of the mind, argumentando que os teoremas da incompletude de Gõdel implicam a falsidade do mecanicismo, o beco sem saída do campo da inteligência artificial, se a inteligência artificial pretender explicar plenamente nosso pensamento. Seu argumento assemelha-se ao de Lucas, embora ele faça um trabalho ainda mais minucioso de tentar prever e refutar todas as objeções possíveis. O que o teorema de Gõdel conseguiu? Foi em 1930 que o jovem e brilhante matemático Kurt Gõdel surpreendeu um grupo dos principais matemáticos e lógicos do mundo, em um encontro em Kõnigsberg, com o que viria a setornar o famoso teorema. Este logo veio a ser aceito corno urna contribuição fundamental aos fundamentos da matemática - talvez o mais fundamental já encontrado - , mas sustentarei que, ao estabelecer seu teorema, ele também iniciou um grande passo à frente na filosofia da mente. Entre as coisas que Gõdel indiscutivelmente comprovou foi que nenhum sistema formal de regras matemáticas de prova seguras jamais será suficiente,

ainda que em princípio, para estabelecer todas as proposições verdadeiras da aritmética comum. Isso é certamente bem notável. Mas temos fortes motivos para afirmar também que seus resultados mostraram algo mais e confirmaram que a compreensão e o insight humanos n ão podem ser reduzidos a nenhum conjunto de regras. Será parte do meu propósito aqui tentar convencer o leitor de que o teorema de Gõdel de fato mostra isto, e fornece a base de meu argumento de que o pensamento humano vai além do que pode ser obtido por um computador, no sentido em que entendemos o termo "computador" atualrnente. 18 170

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

Penrose acredita que, embora a mente não seja um computador, trata-se de um sistema físico. A mente é idêntica ao cérebro. Portanto, a natureza não mecanicista da mente decorrente, ele alega, do primeiro teorema da incompletude de Gõdel deveria orientar nosso pensamento para leis físicas não mecanicistas, do tipo sugerido pela mecânica quântica. A mente intuidora da matemática, que comprovadamente não pode ser captada de forma mecanicista, constitui, mesmo assim, um sistema físico. Deveríamos, portanto, procurar desenvolver um tipo não mecanicista, radicalmente novo de ciência - os mistérios da mecânica quântica deveriam ser nosso guia aqui-, de modo a acomodar os aspectos não computacionais da mente. A natureza não combinatória, mas, ainda assim,física do pensamento mostra a natureza não combinatória das leis físicas básicas. O próprio Gõdel foi bem mais cauteloso em extrair, de seus·famosos teoremas matemáticos, conclusões sobre a natureza da mente humana. O que está rigorosamente provado, ele sugeriu em conversas com Hao Wang, bem como na conferência Gibbs proferida em Providence, Rhode Island, em 26 de fevereiro de 1951 (e nunca publicada), não é uma proposição categórica no tocante à mente. Pelo contrário, o que se depreende é uma disjunção, uma proposição do tipo "ou-ou': Ou seja, ele estava admitindo que o não-mecanicismo não decorre, pura e simplesmente, de seu teorema da incompletude. Existem saídas possíveis para o mecanicista. De acordo com Wang, Gõdel acreditava que o que havia sido rigorosamente provado, supostamente com base no teorema da incompletude, é: "Ou bem a mente humana ultrapassa todas as máquinas (para ser mais preciso, ela consegue decidir mais questões teóricas sobre números do que qualquer máquina), ou bem existem questões teóricas sobre números indecidíveis para a mente humana". 19 O que Gõdel tinha exatamente em mente com essa segunda disjunção? Penso que o que ele está considerando aqui é a possibilidade de sermos de fato máquinas - ou seja, de que todo o nosso pensamento é mecânico, determinado por regras gravad~s em circuitos - , mas de 171

INCOMPLETUDE

que estamos sob a ilusão de termos acesso à verdade matemática não formalizável. Poderíamos possivelmente ser máquinas que sofrem de delírio de grandeza matemática. O que decorre de seu teorema, ele parece sugerir, é que, na medida em que não nos iludimos quanto à nossa apreensão das verdades matemáticas, na medida em que temos as intuições que pensamos ter, não somos máquinas. Se de fato temos intuições, é impossível formalizar ( ou mecanizar) todas as nossas intuições matemáticas, o que significa que de fato não somos máquinas. Claro que não existe prova de que sabemos tudo que pensamos saber, já que tudo que pensamos saber não pode ser formalizado; nisso consiste a incompletude. Daí não podermos provar rigorosamente que não somos máquinas. O teorema da incompletude, ao mostrar os limites da formalização, sugere que nossas mentes transcendem as máquinas e torna impossível provar que nossas mentes transcendem as máquinas. De novo, um quase paradoxo. Portanto, Gõdel foi cauteloso quanto às conseqüências para a natureza humana de seu teorema da incompletude. Embora tivesse intuições sobre a natureza da mente, ele não deduziu, sendo um lógico escrupuloso, nenhuma daquelas conclusões somente de seus teoremas da incompletude. Gõdel nunca perdeu de vista a distinção entre intuições e prova rigorosa. Afinal, a inevitabilidade daquela distinção havia sido fortemente sugerida por sua prova famosa. A segunda alternativa na conclusão disjuntiva de Gõdel sobre nossas mentes conhecedoras da matemática, então, consiste nesta possibilidade: iludimo-nos em nossas alegações de um conhecimento matemático que excede toda formalização. Essa possibilidade - sendo p'recisamente a possibilidade que fez Gõdel hesitar- tem um interesse particular quando consideramos um aspecto da vida interior opaca de Gõdel que já abordamos antes: seus próprios delírios graves. Os teoremas de Gõdel espelham sombriamente o apuro da psicopatologia: assim como não se consegue obter uma prova da consistência de um sistema formal dentro do próprio sistema, não se consegue validar nossa racionalidade - nossa própria sanidade - usando a 172

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

própria racionalidade. Como uma pessoa, agindo dentro de um sistema de crenças, incluindo crenças sobre crenças, consegue sair daquele sistema para descobrir se é racional? Se todo o seu sistema é infectado pela loucura, inclusive as próprias regras pelas quais você raciocina, como sair racionalmente de sua loucura?* Diz um livro-texto de psicopatologia: "Os delírios podem ser sistematizados em esquemas altamente desenvolvidos e racionalizados, com alto grau de coerência interna uma vez admitida a premissa básica. [... ] A ilusão com freqüência pode parecer lógica, embora excepcionalmente intricada e complexa';. 2º A paranóia não é o abandono da racionalidade. Pelo contrário, é a racionalidade fora de controle, a busca inventiva de explicações tornada implacável. Um psicólogo amigo meu expressou-a nestes termos: "Uma pessoa paranóica é irracionalmente racional. [... ] O pensamento paranóico se caracteriza não pela falta de lógica, mas por uma lógica equivocada, pela lógica descontrolada". 21 Constitui uma ironia concluir este capítulo, que dá uma pequena idéia da beleza sobre-humana da prova incomparável de Gõdel, com observações sobre o paralelo trágico entre as limitações da dedutibilidade, engenhosamente demonstrada pelo sucessor de Aristóteles, e o apuro da psicopatologia.

* O espelhamento sombrio se reflete numa observação de Furtwangler, que havia sido o professor de matemática favorito de Gõdel, relatada por Olga Taussky-Todd em seu estudo biográfico sobre Gõdel. "Auguste Bick forneceu-me uma observação divertida de Furtwangler sobre o resultado de Gõdel, quando este sofreu um de seus ataques de paranóia: "Sua doença é uma conseqüência de provar a não-dedutibilidade ou sua doença é necessária para sua profissão?". 173

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

FLAMINGO COR-DE-ROSA li estava, inconcebivelmente, K. Goedel, listado como qualquer outro nome no catálogo telefônico laranja brilhante da comunidade de Princeton. Foi um momento docemente surreal. Eu acabara de chegar como estudante de pós-graduação a Princeton e, só pela improbabilidade emocionante daquilo, procurara o nome da mente mais fascinante da cidade, o deus dominante, ainda que recluso, do lendário Instituto de Estudos Avançados, a bucólicos três minutos de distância de onde eu estava morando. Parecia quase axiomático para mim, naquela época, que a maior mente matemática, por acaso naquele momento da história a própria mente de Kurt Godel, era necessariamente a maior de todas as mentes. K. Goedel. Foi como abrir a lista telefônica local e encontrar B. Spinoza ou I. Newton. O catálogo telefônico da comunidade de Princeton me oferecera a

A

174

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

inacreditável dádiva não apenas de um número de telefone, mas também do endereço de Gõdel. Claro que, uma vez de posse da informação, só me restava montar na minha bicicleta e pedalar até 145 Linden Lane. Era uma casa simples de madeira, situada ortogonalmente em relação à rua, ao contrário de todas as outras casas, de frente para a rua, e essa singularidade me pareceu normal. O próprio local era compacto e modesto, vagamente "europeu" com seu telhado de telhas vermelhas. Em comparação, a casa em 115 Mercer Street, onde morara Einstein, havia sido uma mansão ( mas não era). A localidade não era por certo das mais elegantes de Princeton. Um dia quente de setembro, a rua, sem árvores, exposta deprimentemente ao sol do meio-dia. Não havia vivalma em torno da casa de Gõdel, mas a visita conseguiu me dar mais um golpe surreal. O minúsculo pátio dianteiro estava totalmente dominado por um daqueles flamingos corde-rosa de plástico, equilibrado sobre uma das pernas finas. Fitei, incrédula, a ave. Como um homem que produziu uma das obras-primas do pensamento humano pode ter colocado um flamingo cor-de-rosa no gramado diante da casa? Claro que existia uma sra. Gõdel, uma ex-dançarina de cabaré, segundo as más línguas. Visões de Der blaue Engel [O anjo azul] dançaram por minha cabeça, e logo atribuí o ornamento do gramado a uma espécie de Marlene Dietrich transformada, contra todas as expectativas, em uma dona de casa de Nova Jersey. Eu não era o único morador de Princeton fascinado pela celebridade fugidia do pensamento puro em nosso meio. Certa vez, encontrei o filósofo Richard Rorty, um tanto atordoado, no mercad o de alimentos Davidson's.Elemecontou,vozabafada,queacabaradeverGõdelnocorredor de alimentos congelados, empurrando seu carrinho de compras. Voei por todos os corredores, mas o fantasma da lógica desaparecera. "O que ele estava comprando?", perguntei a Rorty, pois os rumores eram de que o homem praticamente não comia. Rortyfez um sinallúgubre de não com a cabeça e disse que ficou atordoado demais para notar. "Mas acho que podemos presumir que era algo congelado." 175

INCOMPLETUDE

Lembro-me de várias festas em que nós, estudantes de pós-graduação e membros do corpo docente - filósofos, matemáticos, físicos-, sentamos em círculo e trocamos histórias sobre Gõdel. Alguém observara que todos os livros relacionados a Leibniz, na Biblioteca Firestone, haviam sido apanhados por um K. Goedel. As fichas daqueles livros rapidamente desapareceram, os sortudos que chegaram primeiro levandoas como troféus. Numa festa, um colega de pós-graduação contou que alguém se esgueirara até Gõdel, que estava sentado no seu escritório, para espiar sobre seu ombro qual livro estava lendo: era (não há confirmação) o poema de amor de Ovídio no original latino. Aquele mesmo estudante de pós-graduação (agora um filósofo proeminente que permanecerá incógnito), em certa festa onde nos excedemos um pouco, telefonou para a casa de Gõdel, quando surgiu a questão da possibilidade de o sistema telefônico internacional se tornar complexo ao ponto de ganhar consciência. Acho que lembro que ele desligou o telefone ao ouvir a sra. Gõdel dizer: "Kurtsy!". Todos especulávamos sobre qual trabalho nosso herói estaria desenvolvendo. Circularam rumores estranhos sobre uma prova da existência de Deus - que acabaram se revelando verídicos. Gõdel, assim como Leibniz, acreditava que alguma versão da execrável "prova ontológica da existência de Deus" era válida. Esse é um argumento que tenta deduzir, da definição correta de Deus, a existência de Deus. * Ele mencionou para pelo menos um colega do instituto, o filósofo Morton White, que só faltava acertar um passo para que sua nova versão do argumento ontológico da existência de Deus pudesse ser publicada. 1

* Aversão mais antiga do argumento ontológico é de santo Anselmo, e diz mais ou menos isto: Deus é, por definição, o ser do qual nada maior pode ser concebido. Deus, portanto, não pode ser concebido como não-existente, senão conseguiríamos concebêLo como ainda maior, ou seja, como existindo. Portanto, é inconcebível que Deus não exista; logo, Ele existe.

176

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

O tom de nosso fascínio por Gõdel não era sistematicamente reverente. Havia até uma inegável irreverência subjacente. Achávamos hilário, por exemplo, que o maior lógico desde Aristóteles se iludisse a ponto de acreditar que a existência de Deus pudesse ser provada a priori, que ele estivesse talvez antevendo o dia em que os ateus seriam convencidos de seu erro por um bom curso de lógica quantificacional. As histórias que trocávamos eram gratificantes, pois histórias de gênios aloprados são sempre gratificantes; nós reduzíamos os prodígios à estatura humana, domesticávamos sua grandeza contando casos de suas esquisitices cotidianas. Às vezes, deixamos de ver o lado humano desses talentos prodigiosos, outra ironia que a história de Gõdel sugere. A história de Gõdel forçou-me a confrontar uma ironia mais pessoal, já que exigiu que eu me familiarizasse de novo com um campo, a lógica matemática, em que já estive bem mais imersa e fui bem mais fluente. Anos de um tipo diferente de imersão, no domínio ilusório da ficção, se interpuseram. Não é que a ficção renuncie à lógica objetiva, embora a ficção não seja lógica como a entendemos formalmente; e não é que a lógica da ficção não seja tão esquiva, complexa e espantosa como a lógica matemática. Mesmo assim, a lógica da ficção é algo bem diferente das provas formais, e eu sei que fui melhor matemática na juventude, quando me sentava com os outros e imaturamente trocava histórias sobre a genialidade e solidão de Gõdel. No entanto, perguntome se poderia ter entendido sua história da mesma forma na época em que eu era mais cegada pela lucidez. Gõdel, por mais recluso que fosse, apareceu certa vez de surpresa numa festa ao ar livre do instituto, na recepção dos novos membros temporários em 1973, e, como Oskar Morgenstern escreveu em seu diário, o lógico estava especialmente descontraído naquela noite, e acabou "entretendo um grupo de jovens lógicos admiradores". Eu estava naquele grupo, um dos acólitos boquiabertos ante o deus. Uma tenda gigantesca abria-se sobre o gramado atrás de Olden Farm, a residência do presidente do instituto, naquela época Karl Kaysen. Era uma noite aprazível de outubro, e Gõdel, alinhado num terno escuro, também 177

INCOMPLETUDE

estava protegido por um longo cachecol de lã. Li em algum lugar que sua altura era de 1,67 metro, mas ele pareceu ainda menor para mim, e claro que era magérrimo. Nós todos sabíamos que o homem mal comia. Ele estava, como Morgenstern descreveu, num estado de humor raro (só eu ainda não sabia dessa raridade), claramente tentando fazer os jovens se sentirem em casa. Ficamos quase todos estupefatos (eu certamente fiquei). Assim, não o incomodamos com as perguntas que gostaríamos de ter feito, conforme admitimos uns aos outros depois que ele, com um breve aceno da cabeça e votos de boa sorte em nosso trabalho futuro, desapareceu na penumbra que caía. Lembro-me de me ter particularmente arrependido por não ter tido a coragem de perguntar o que ele achava do artigo publicado pelo filósofo de Oxford John Lucas, afirmando que do primeiro teorema da incompletude se podiam tirar conclusões sobre a filosofia da mente. Todos concordamos que gostaríamos de ter perguntado o que ele vinha fazendo. Dizia-se que ele ia quase todo dia ao seu escritório do instituto, onde se sentava tranqüilamente para trabalhar. Quais revoluções conceituais do lógico com aspecto de gnomo nos aguardavam? Embora o número de suas publicações não fosse grande- a soma total das páginas não passava de cem-, em conteúdo cada uma delas havia sido mais do que meramente notável. Mas a última vez que ele publicara algo foi em 1958: uma prova da consistência da aritmética na revista Dialectica. * Aquela edição particular da revista foi um Festschrift em homena gem ao septuagésimo aniversário do matemático Paul Bernays, o antigo auxiliar de Hilbert que não encontrara, depois de despedido de Gottingen como não-ariano, nenhum cargo acadêmico à altura de sua capacidade. Foi Paul Bernays quem primeiro apresentou uma prova totalmente detalhada do segundo teorema da incompletude, tendo ouvido os detalhes a bordo do SS Georgia de seu colega de viagem

* Aquela foi a última coisa que ele publicou em sua vida. 178

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Gõdel. E Bernays aperfeiçoara a axiomatização de Von Neumann da teoria dos conjuntos de uma forma que Gõdel aprovou totalmente e aproveitou em seu próprio trabalho sobre teoria dos conjuntos. Assim, era normal que Gõdel superasse sua relutância em publicar e contribuísse com o Festschrift. Gõdel escrevera sobre um novo tipo de prova da consistência da aritmética, de natureza não finitária e, portanto, coerente com seu segundo teorema da incompletude. (Mas por não ser finitária não cumpria as exigências do desafio de Hilbert.) Ele lecionara sobre aquele novo tipo de prova da consistência em Yale e no instituto em 1941. O artigo de 1958 era um enunciado belamente conciso daquelas idéias. Mesmo assim, o artigo não continha nenhum resultado novo. As pessoas comentavam que existiam cadernos e mais cadernos de idéias que ele nunca publicou.* Por que ele relutava tanto em publicar seus textos? Existem indícios de que Gõdel suspeitava que suas idéias seriam recebidas com ceticismo e desprezo. Hao Wang escreveu: "Gõdel teria provavelmente publicado mais se vivesse numa comunidade filosófica mais receptiva. Ele se recusava, por exemplo, a falar para um público supostamente hostil': 3 Cada vez mais solitário, depois que perdeu o grande amigo de sua vida, Einstein, ele não estava disposto a expor seus pontos de vista num

* No Nachlass, existe uma folha de papel em que Godel listou, provavelmente em 1970 de acordo com Hao Wang, toda a sua obra inédita, a partir de 1940. 2 Ela diz mais ou menos isto: 1. Cerca de mil páginas estenográficas de 15 X 20 cm de anotações filosóficas ( = afirmações filosóficas) claramente escritas. 2. Dois artigos filosóficos quase prontos para publicação. [Seu artigo sobre a relatividade e a filosofia de Kant e seu artigo sobre sintaxe e matemática, originalmente escrito para o Festschriftde Carnap, mas nunca publicado.] 3. Alguns milhares de páginas de fragmentos filosóficos e [anotações sobre] literatura. 4. As provas claramente escritas dos meus [seus] resultados ontológicos. 5. Cerca de seiscentas páginas claramente escritas de resultados, perguntas e conjecturas de teoria dos conjuntos e lógica ( até certo grau superados por evoluções recentes). 6. Muitas anotações sobre intuicionismo e outras questões fundamentais. 179

INCOMPLETUDE

ambiente que julgava talvez tão positivista quanto o que conheceu na sala desarrumada da Universidade de Viena onde o grupo de Schlick se reunia às seis horas das noites de terça-feira. Sua sensação de um mundo cada vez mais dominado pelo já disperso Círculo de Viena tinha sua razão de ser. Como conta Feigl em seu ensaio "The Wiener Kreis in America" ("O Círculo de Viena nos Estados Unidos"), positivistas como ele e homens como Hans Reichenbach e Carl Hempel, que haviam vindo aos Estados Unidos para fugir dos nazistas, tiveram grande sucesso em difundir suas idéias no exterior. Na Inglaterra, havia o altamente influente A. J. Ayer, cujo Language, truth, and logic foi, em grande parte, escrito com base no que ele ouviu em Viena. Willard van Orman Quine, de Harvard, que também freqüentara o Círculo de Viena e absorvera sua visão geral (embora viesse a discordar em temas específicos, em artigos como "Two dogmas of empiricism" em seu From a logical point of view), tornou-se a força dominante na filosofia americana. O nome de Wittgenstein pairou postumamente com ainda mais proeminência, a inclinação reverente em aceitá-lo a priori (antes mesmo de entender o que ele queria dizer) persistindo nos círculos analíticos, mesmo na ausência de sua presença persuasiva. E, nos departamentos de física, a visão positivista de Niels Bohr e Werner Heisenberg se tornara como que a doutrina oficial, sendo forte até hoje. (Seria um estudo interessante comparar as figuras de Niels Bohr e Ludwig Wittgenstein, ambos tão carismáticos quanto herméticos, seu hermetismo apontando para o mesmo tipo de conclusão: uma proibição aos tipos de perguntas que procuram relacionar o pensamento abstrato de suas disciplinas respectivas com a realidade objetiva.) Assim, Gõdel não estava sendo paranóico ao julgar o clima das idéias hostil às suas próprias, embora talvez superestimasse o grau de "positivismo" nas universidades americanas e também subestimasse sua própria reputação dentro da comunidade e o respeito correspondente que seus pontos de vista despertariam, a ponto de talvez até influenciar a ideologia predominante se tivesse entrado na_luta. Mas aquela não era sua maneira de ser. Ele nunca teve medo de discordar 180

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

privadamente das visões predominantes em sua época; mas havia uma rígida relutância em expressar publicamente suas posições antagônicas em quaisquer condições que não uma prova conclusiva. Mencionei ao filósofo Morton White que, ao escrever este livro, passei a considerar Gõdel como um exilado intelectual, ou, pelo menos, como alguém que se sentia no exílio. White pensou por algum tempo e contou a seguinte história. Quando professor em Harvard, convenceu a direção a convidar Gõdel para proferir a prestigiosa série de conferências William James e se sentiu humilhado quando Gõdel recusou o convite. Isso teria acontecido na década de 1960. Quando o próprio White veio para o instituto como membro permanente, em 1970, ele se lembra de ter perguntado a Gõdel por que este recusou o convite. A resposta de Gõdel veio em duas partes. Em primeiro lugar, ele teria dito, o departamento de Harvard era "empirista" demais, e ele achava que seria criticado pelo que tinha a dizer. Em segundo lugar- e essa foi para vVhite a parte realmente interessante da resposta-, Gõdel sentia que estaria fazendo uma injustiça às próprias idéias, porque ainda não as completara; expô--las prematuramente a um público hostil seria uma injustiça para com elas. Portanto, ao que parece, pelo menos com base nessa história, sua relutância em exprimir suas intuições fora de moda, de alguma forma aquém de uma prova, não refletia apenas sua aversão pelo embate intelectual, mas estava também ligada a uma sensível obrigação ética com as próprias idéias, o que é próprio de um platônico apaixonado. Em 1964, Paul Benacerraf, do departamento de filosofia da Universidade de Princeton, e Hilary Putnam, de Harvard, organizaram um livro intitulado Philosophy of mathematics e quiseram permissão para incluir dois dos artigos de Gõdel, "Russell's mathematical logic" e "What is Cantor's continuum problem?". Neste último ensaio, revisado e expandido para aquele volume, Gõdel se permite enunciar, em termos claros e distintos, o platonismo metafísico em que acreditava, mesmo enquanto ouvia - um estranho no ninho - os membros do Círculo de Viena proclamando o fim definitivo da metafísica, ou seja, 181

INCOMPLETUDE

de quaisquer afirmações de existência que vão além do empiricamente verificável: 4 Os objetos da teoria dos conjuntos transfinitos [... ] claramente não pertencem ao mundo físico e mesmo sua ligação indireta com a experiência física é muito tênue.[ ... ] Mas, apesar de sua distância da experiência dos sentidos, temos um tipo de percepção também dos objetos da teoria dos conjuntos, como mostra o fato de que a verdade dos axiomas se impõe a nós. Não vejo motivo algum para termos menos confiança nesse tipo de percepção - a intuição matemática - do que na percepção dos sentidos, que nos induz a desenvolver teorias físicas, a esperar que percepções sensoriais futuras se ajustarão a elas e, além disso, a acreditar que uma pergunta ainda não decidível tem sentido e pode ser decidida no futuro. Os paradoxos da teoria dos conjuntos não são mais incômodos para a matemática do que as ilusões dos sentidos para a física.

Godel explica no artigo como a hipótese do continuum de Cantor se mostrou independente dos axiomas da teoria dos conjuntos, e seus motivos para acreditar que a hipótese é falsa. (Foi dele a parte da prova [da indecidibilidade da hipótese do continuum] que mostrou que não se pode provar a falsidade da hipótese do continuum com base nos axiomas atuais da teoria dos conjuntos, ou seja, que ela é consistente com os axiomas da teoria dos conjuntos. Portanto, acreditar que mesmo assim seja falsa é particularmente interessante. Paul Cohen provou que a hipótese do continuum, com base nos axiomas da teoria dos conjuntos, tampouco pode ter sua verdade comprovada. Assim, juntos eles provaram a indecidibilidade da hipótese do continuum.) Ele associa sua crença platônica na verdade ou falsidade objetiva de proposições indecidíveis como a hipótese do continuum com seu próprio resultado da incompletude: O que, porém, mais do que qualquer outra coisa, justifica a aceitação desse critério de verdade na teoria dos conjuntos é o fato de que apelos constantes à 182

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

intuição matemática são necessários não apenas para obter respostas inequívocas às perguntas da teoria dos conjuntos transfinitos, mas também para a solução dos problemas da teoria dos números finitária (do tipo da conjectura de Goldbach [que, você deve lembrar, afirma que todo número par maior que dois é a soma de dois primos]), em que o sentido e a exatidão dos conceitos estão acima de quaisquer dúvidas. Isso decorre do fato de que, para todo sistema axiomático, existe um número infinitamente grande de proposições desse tipo.

Benacerraf contou-me como Gõdel telefonava diariamente para ele ou Putnam, expressando sua ambivalência e arrependimento pela inclusão de seus artigos no livro deles, concedendo sua permissão um dia para retirá-la no dia seguinte, e depois reconsiderar a retirada no dia posterior. Ele temia que os dois organizadores "positivistas" usassem sua introdução para atacar as idéias dele. Só quando os dois, separada e repetidamente, prometeram que pretendiam apenas situar cada artigo no seu contexto apropriado e que não tinham nenhuma intenção de avaliar quaisquer das contribuições escolhidas, ele enfim concordou em incluir seus artigos. Havia alguma base, perguntei a Benacerraf, para Gõdel achar que ele ou Putnam eram positivistas? "Bem, Putnam, em certo estágio pelo menos, com certeza. Afinal, o orientador de sua dissertação havia sido Reichenbach." O livro de Benacerraf/Putnam foi dividido em quatro seções: Parte Um: "Os fundamentos da matemática"; Parte Dois: "A existência de objetos matemáticos"; Parte Três: "Verdade matemática"; e Parte Quatro: "Wittgenstein sobre matemática". Embora o volume inclua os textos de Frege, Hilbert, Gõdel - todos os líderes em fundamentos - , somente Wittgenstein, que nunca reconheceu a importância dos teoremas de Gõdel, é julgado digno de uma seção inteira. Como Gõdel teria reagido ao receber seu exemplar? Gõdel tinha o óbvio desejo de que as implicações plenas de seus teoremas fossem tão transparentes para os outros como para si mesmo, e não estava acima das reações humanas perfeitamente nor183

INCOMPLETUDE

mais de desapontamento e até ressentimento (embora este costumasse ficar oculto sob a opacidade de sua discrição). Ele reclamou com Olga Taussky-Todd, como ela narra em seu estudo biográfico, que Hilbert, mesmo após a prova de Gõdel, continuou defendendo o formalismo. "Ele falou comigo sobre aquilo, acho que em Zurique, e atacou o artigo de Hilbert (Tertium non datur' [Goettinger Nachr. 1932 J, dizendo algo como 'como ele pode escrever um tal artigo depois daquilo que eu fiz?'". Ele parece ter se sentido cada vez mais sozinho e encastelado na torre mais alta da Razão Pura e se refugiou no tipo de isolamento profundo que poucos locais da Terra podem proporcionar tão plenamente - se é isso que se quer - como o Instituto de Estudos Avançados.

O CAFÉ ESTÁ HORRÍVEL Gõdel veio ao instituto para o ano acadêmico de 1933-4, o primeiro ano de funcionamento. O matemático Veblen, uma das primeiras contratações de Flexner para o nascente instituto, havia conhecido o jovem lógico em Viena e se impressionara o suficiente para trazê-lo a Nova Jersey para uma visita temporária. Claro que Von Neumann, que também vinha passando parte do seu tempo em Princeton, estava bem interessado no lógico que falara de seus teoremas revolucionários em . uma frase direta e resumida proferida em Kõnigsberg. Gõdel não quis lecionar no seu primeiro semestre nos Estados Unidos, ainda inseguro com seu inglês, mas no segundo semestre deu uma série de palestras sobre incompletude. QuandoAlan Turingveio passar o ano acadêmico de 1936-7 em Princeton, a conversa no círculo de Von Neumann estava repleta de referências a Gõdel, o que fez com que Turing, ao retornar a Cambridge, decidisse seguir linhas gõdelianas de raciocínio, com tão bons resultados. A certa altura nessa primeira estada, Gõdel conheceu Einstein. Einstein já se mudara permanentemente para Princeton, pois não 184

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

havia mais como retornar à Alemanha nazificada. Foi Veblen quem os apresentou, mas a famosa amizade só começou vários anos depois, quando o próprio Gõdel se mudou em definitivo para Princeton. Gõdel, classificado como ariano, retornou a Viena ao final do ano acadêmico. Menger notou que, ao retornar, Gõdel parecia ainda mais frágil: Gõdel estava mais reservado do que nunca após seu retorno dos Estados Unidos; mas ele ainda conversava com os visitantes do Colóquio. [... ] Com todos os membros do Colóquio, Gõdel foi generoso com opiniões e conselhos em questões matemáticas e lógicas. Ele sistematicamente percebia pontos problemáticos com rapidez e minúcia e dava respostas com a máxima precisão e o mínimo de palavras, muitas vezes revelando aspectos novos ao perguntador. Ele expressava tudo isso como se fosse tudo algo natural, mas muitas vezes com certa timidez, cujo encanto despertava o calor humano em muitos ouvintes. 5

Gõdel passou algumas semanas num sanatório, após re~ornar a Viena, onde o psiquiatra Julius Wagner-Jauregg, que ganhara um Prêmio Nobel em 1927, diagnosticou um colapso nervoso causado pelo excesso de trabalho. Claro que a causa pode não ter sido só o trabalho. A crise de Gõdel ocorreu pouco depois de Moritz Schlick ser morto a tiros na escadaria da universidade. Esse evento foi profundamente perturbador mesmo para a pessoa mais equilibrada. O assassinato significou o fim efetivo do Círculo de Viena, embora sua influência continuasse a se espalhar, especialmente depois que muitos de seus antigos membros tiveram que se refugiar fora da Europa. De qualquer modo, Gõdel se recuperou o suficiente, após algumas semanas no sanatório, para voltar a lecionar seu curso em tópicos de lógica matemática. O cargo de Gõdel na Universidade de Viena era um tanto modesto. Ele se tornou Privatdozent em Viena em 1933. Um Privatdozent tem o direito de lecionar, embora não receba salário. Para fazer jus a essa 185

INCOMPLETUDE

honra, um candidato precisa escrever uma segunda dissertação. A prova da completude do cálculo dos predicados (lógica límpida) de Gõdel constituíra sua dissertação de doutorado. Sua prova da incompletude da aritmética foi submetida como sua segunda dissertação, a Habilitationsschrift. A comissão que examinou o pedido de Gõdel reu niu-se em 25 de novembro de 1932. Um candidato à Dozentur requer um patrono, e Hans Hahn, seu orientador na dissertação, serviu como patrono de Gõdel. Hahn testemunhou ao comitê que a dissertação de Gõdel tinha grande valor científico e que a Habilitationsschrift era "uma realização de primeira grandeza" que havia "atraído a máxima atenção nos círculos científicos" e já estava destinada a ingressar na história da matemática ( o que parece, no todo, um elogio um tanto fraco). * Hahn fez o julgamento não muito audacioso de que o trabalho de Gõdel excedia de longe as exigências para a Habilitation, e o comitê concordou por unanimidade. Entretanto, esse não era o último obstáculo que um candidato precisava superar para ser declarado um Privatdozent. Todo o corpo docente tinha de votar, não apenas no mérito científico do candidato, mas também em seu mérito pessoal. "Os resultados, conforme registrados pelo reitor em seu relatório de 17 de fevereiro de 1933 ao Ministério da Instrução, foram, na questão de seú caráter, 51 votos positivos e um
* A revista Time, em comemoração ao final do último milênio, dedicou algumas edições especiais às cem maiores mentes do século passado. Kurt Gõdel foi citado como o maior m atemático do século. O interessante é que Ludwig Wittgenstein eAlan Turing também entraram na lista, e Albert Einstein foi escolhido como a maior mente do século. 186

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

não a incompletude, de um sistema formal, qual seja, o cálculo dos predicados (ou lógica límpida).* Mas o fato de ter havido discordância a respeito de os teoremas da incompletude tornarem Gõdel merecedor de um cargo no escalão inferior da Universidade de Viena é estranho. Qual teria sido a reação íntima de Gõdel à votação não unânime? Gõdel, é claro, sabia da importância de seus teoremas em todo o seu esplendor matemático e metamatemático. Mas sua audácia intelectual estava tão estranhamente acoplada ao retraimento que seria temerário tentar adivinhar o efeito por trás da opacidade. Gõdel jamais aprenderia a lição mais elementar sobre como manobrar para conseguir cargos e status. Pode-se imaginar que qualquer professor vienense que tentasse julgar a importância do trabalho matemático com base na pompa do próprio matemático teria se equivocado. No instituto não seria diferente. Somente em 1953 - após receber um diploma honorário de Harvard, que citou os teoremas da incompletude como a descoberta matemática mais importante dos últimos cem anos, e ser eleito também para a Academia Nacional de Ciências - Gõdel enfim se tornou membro permanente do instituto. De novo, a iniciativa veio de Von Neumann, que, ao que se conta, teria dito: ''Como qualquer um de nós pode ser chamado de professor quando Gõdel não é?". 6 Dada a sua falta de status mundano, talvez não seja de espantar que sua esposa sempre tenha considerado o irmão mais velho de Gõdel o mais bem-sucedido dos dois: afinal, era um doutor médico. Gõdel casou-se com Adele Nimbursky (cujo sobrenome de solteira era Porkert) em 1938. Hao Wang, que na primavera de 1978 ( o ano da morte de Gõdel) decidiu escrever um resumo do desenvolvimento intelectual de Gõdel, dando ao lógico a oportunidade de comentá-lo,

* Wirtinger era um matemático que, segundo os relatos, ficou amargurado e retraído depois que seu colega, o professor Furtwãngler, recebeu um prêmio por um resultado importante na teoria dos números algébricos. Que forma de conquistar uma nota de rodapé na história do resultado matemático mais importante do século xx. 187

INCOMPLETUDE

escreve (em um posfácio): "G casou-se com Adele Porkert em 20 de setembro de 1938. Ele pediu que eu excluísse essa informação de um rascunho inicial sob a alegação de que a esposa não teve influência direta sobre seu trabalho". 7 O casamento de Gõdel foi, de acordo com quase todos, estranho. A mãe de Gõdel, em particular, achou inexplicável a opção matrimonial do filho. Seu pai já havia morrido, mas de qualquer modo ele nunca se aproximara do pai. Seu relacionamento com a mãe, porém, foi totalmente diferente, de modo que a escolha inesperada da noiva causou certo mal-estar. O rol das reclamações maternas contra Adele era basicamente este: era uma mulher divorciada, da religião errada (católica), classe social errada (baixa), idade errada (seis anos mais velha que Gõdel) , aparência errada (ela tinha uma mancha da cor de vinho do Porto num lado do rosto) e, talvez a mais grave, profissão errada (ela havia sido dançarina de cabaré; ela dizia às pessoas que tinha sido balé, mas era mentira). A maior parte da "sociedade" de Prin ceton concordou com a mãe de Gõdel. Quando Adele chegou a Princeton, Oskar Morgenstern descreveu-a como uma típica lavadeira vienense e previu corretamente que ela seria um fracasso social. "Claro que Gõdel está meio maluco", ele registrou em seu diário. A confirmação da previsão de Morgenstern causou muito sofrimento a Adele Gõdel, embora seu marido não se importasse. Gõdel era tão indiferente às reprimendas como às próprias causas delas. Ele havia se casado com uma dona de casa, e Adele mostrou-se capaz de cuidar de seu frágil corpo e alma dentro das possibilidades de um mero mortal. Adele contou a uma vizinha que, ainda em Viena, quando se envolveu com Gõdel, ela costumava provar a comida dele, antevendo os sombrios ataques de paranóia que cada vez mais o dominariam. Logo após o casamento em Viena, Gõdel zarpou, sem a esposa, de novo para Princeton, onde Von Neumann despertara um grande interesse pelos teoremas de Gõdel. Ele lecionou naquele semestre no instituto sobre as suas descobertas em teoria dos conjuntos (envolvendo 188

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

tanto os axiomas da escolha* como a hipótese do continuum) .Após passar o período de outono no instituto, foi para South Bend, Indiana, para passar o período da primavera em Notre-Dame. Sua visita a NotreDame deveu-se a Menger, que decidira emigrar e foi parar em Indiana. Enquanto Gõdel estava em South Bend, a Tchecoslováquia foi entregue a Hitler. Naquele ano fatídico de 1939, o mundo inteiro estava prendendo a respiração. Para o desânimo de Menger, Gõdel, em vez de trazer Adele e resolver se fixar nos Estados Unidos, insistiu em voltar a

* O axioma da escolha envolve coleções de conjuntos, particularmente coleções infinitas. Existem várias maneiras de enunciar o axioma. Na verdade, existe um livro inteiro, de H. Rubin e J. Rubin, intitulado Equivalents of the axiom of choice. Uma versão simples do axioma é: para qualquer conjunto de conjuntos não vazios e dois a dois disjuntos (conjuntos que não possuem elementos em comum), existe um conjunto que contém exatamente um elemento de cada um dos conjuntos não vazios. Em outras palavras, se você tem uma coleção de conjuntos que não se sobrepõem uns aos outros, grosso modo pode formar uma coleção escolhendo um membro de cada conjunto da coleção. (Você só precisa realmente do axioma quando a coleção é infinita.) Outra forma de enunciar o axioma da escolha é: para qualquer conjunto de conjuntos não vazios, existe uma função que atribui a cada um desses conjuntos não vazios um de seus membros. Um número infinito de escolhas (daí o nome do axioma) pode ser necessário, razão por que o axioma recebeu tanta atenção. O axioma está dizendo que certo conjunto existe, embora o conjunto não seja realmente especificado ou construído. O axioma da escolha talvez seja o segundo axioma mais discutido da matemática, depois do postulado das paralelas de Euclides. Como o postulado das paralelas, o axioma da escolha teve provada sua independência em relação aos demais axiomas, nesse caso da teoria dos conjuntos. Gõdel provou a primeira parte da independência mostrando que o axioma é consistente com os outros axiomas da teoria dos conjuntos; e depois (assim como com a hipótese do continuum ), Paul Cohen completou a prova (em 1963) mostrando que a negação do axioma da escolha é consistente com os outros axiomas. Assim como a prova da independência lógica do postulado das paralelas deu origem às geometrias não euclidianas, existe também uma form a não-cantoriana de teoria dos conjuntos que usa a negação do axioma da escolha. Mas, embora a própria idéia do número infinito de escolhas envolvidas no axioma da escolha possa tornar a matemática um tanto confusa, a maioria dos matemáticos não hesita em lançar mão do axioma ao fazer suas provas (não construtivas), porque, com tantas aplicações importantes em praticamente todos os ramos da matemática, sua rejeição limitaria os movimentos dos matemáticos. Não está claro quando Gõdel começou a pensar na teoria dos conjuntos, e tampouco está claro quando provou que o axioma da escolha é consistente com os demais axiomas da teüria dos conjuntos. Ele só revelou sua prova no ano seguinte, quando retornou a Princeton. Não surpreende ter sido Von Neumann quem ouviu a confidência do importante resultado novo, que Gõdel publicou em 1938. 189

INCOMPLETUDE

Viena. Ele estava contrariado porque sua Dozentur corria o risco de ser revogada pela Nova Ordem, e achou que deveria voltar correndo para garantir que seus direitos não fossem violados. Menger, um admirador de Gõdel, ficou decepcionado. Ele havia reclamado da revogação de sua docência e falara de direitos violados. "Como alguém pode falar de direitos na atual situação?", perguntei. "E que valor prático podem mesmo ter direitos na Universidade de Viena para você sob tais circunstâncias?" Mas, apesar dos apelos e advertências de todos os seus conhecidos em Notre-Dame e Princeton, ele estava determinado a ir a Viena; e foi. 8

Um homem capaz de ser aterrorizado por um refrigerador, convencido de que estava emitindo gases venenosos, retornou à Viena conquistada pelos nazistas para assegurar "seus direitos". O mundo de Gõdel em Viena estava agora totalmente nazificado. Menger escrevera a Veblen, enquanto ainda em Viena, que "embora eu [... ] não acredite que a Áustria tenha mais de 45% de nazistas, a porcentagem nas universidades é certamente de 75% e, entre os matemáticos, tenho de conviver com, [afora] alguns alunos meus, perto de 100%': Gõdel decididamente não era anti-semita. Ele nunca se incomodou quando os outros acharam que era judeu. Apenas corrigia o erro "em prol da verdade", como escreveu na correção não enviada à autobiografia de Bertrand Russell. O grupo de pensadores com quem convivera em Viena era predominantemente de judeus. Gõdel é a personalização perfeita do conselho irônico que o satirista Leon Hirshfeld dava aos viajantes: "Cuidado em sua estada em Viena para não ser interessante ou original demais, senão você pode ser chamado pelas costas de judeu". Embora não compartilhasse das teorias raciais grosseiramente simplificadoras que vinham gozando de tanta popularidade em Viena e outros lugares, Gõdel mostrou-se de uma indiferença constrangedora ao sofrimento das vítimas daquelas teorias raciais. O filósofo positivista (judeu) Gustav Bergmann recordou a John Dawson que, pouco depois 190

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

de chegar aos Estados Unidos, em outubro de 1938, foi convidado para almoçar com Gõdel, que perguntou, com uma ignorância encantadora: "O que o traz para os Estados Unidos, Herr Bergmann?': 9 Para Menger, havia um limite para o grau em que se podia perdoar a genialidade ignorante: Durante o verão, não tive notícias de Gõdel. Mas em 30 de agosto de 1939, um dos poucos dias entre o pacto de Hitler-Stálin e a entrada das tropas alemãs na Polônia que desencadeou a Segunda Guerra Mundial, ele me escreveu uma carta que pode bem representar o cúmulo da despreocupação, às vésperas de eventos que abalariam o mundo: "Desde o final de junho, estou de volta a Viena, e tive de realizar tantas tarefas que infelizmente não foi possível escrever nada para o Colóquio. Como foram os resultados das provas de minhas aulas de lógica?[ .. .] No outono espero estar de volta a Princeton".1º

A afeição de Menger por Gõdel esfriou muito, só retornando décadas depois, no final da vida de Gõdel, quando Menger passou a entender mais completamente a estranheza profunda e permanente do lógico. Ali estava Gõdel na Viena de 1939. Mas era uma Viena tristemente mudada, como até Gõdel deve ter percebido, ao menos um pouquinho. O velho Círculo é claro que já não existia. Schlick havia sido assassinado por um estudante psicótico que foi então transformado em herói pela imprensa nazista. Feigl, Carnap e Menger haviam fugido da atmosfera cada vez mais venenosa. Hans Hahn morrera de câncer em 24 de fevereiro de 1934, aos 55 anos - um dia antes de um grupo de nazistas atacar a chancelaria em Viena e assassinar Dollfuss num Putsch fracassado. Não obstante, Gõdel aparentemente pretendia permanecer em Viena. Sua esposa e ele haviam renovado o contrato de locação do apartamento e providenciaram até algumas reformas. Além disso, ele tentara se tornar um Dozent neuer Ordnung. As autoridades "da Nova Ordem" que vetaram sua solicitação observaram que ele era "bem recomendado cientificamente", mas sua Habilitation havia sido supervisionada pelo "professor judeu Hahn': e que "contribuía para seu des191

INCOMPLETUDE

crédito" o fato de ter "sempre circulado em meios liberais-judaicos". Para ser justo com ele, observou-se que a "matemática estava naquela época fortemente verjudet", ou judaizada. A autoridade incumbida do caso de Gõdel,, o dr. A. Marchet, o Dozentbundsführer, não encontrou nenhuma declaração de Gõdel contrária ao nacional-socialismo, mas tampouco alguma declaração a favor. A decisão do dr. Marchet quanto à posição de Gõdel na Nova Ordem ficou em banho-maria: ele não conseguiu decidir pela aprovação de Gõdel, nem por ora rejeitá-lo. O evento que parece ter precipitado sua decisão de deixar Viena foi que Gõdel voltou a ser confundido com um judeu, dessa vez de forma bem mais ameaçadora, pois foi por um grupo de jovens arruaceiros na vizinhança da universidade. Ele foi atacado fisicamente, e seus óculos foram atirados na calçada. Gõdel não parecia diferente de um judeu, com seu sobretudo comprido habitual, chapéu de feltro e óculos com lentes de fundo de garrafa. Parecia um intelectual, e isso era incriminador o suficiente. A valente Adele, exibindo as habilidades protetoras pelas quais ele sem dúvida se casou com ela, enfrentou os fascistas com seu guarda-chuva. Gõdel também sofreu o choque de ser considerado apto para o serviço militar, algo inimaginável. ( O comitê de recrutamento nos Estados Unidos quase automaticamente o classificara como 4-F: dispensado por incapacidade física.) As autoridades se recusaram adispensá-lo do serviço militar por causa do coração, que Gõdel continuava sustentando ter sido prejudicado por seu ataque de febre reumática aos oito anos. Eles também ignoraram os indícios mais convincentes de sua instabilidade mental, incluindo, àquela altura, algumas permanências adicionais em sanatórios. Sorte dele, já que os "doentes mentais", em vez de despachados para o front, eram enviados aonde pudessem ser eliminados com mais eficiência. Era difícil obter uma licença para se ausentar da Universidade de Viena, bem como autorização para deixar a Áustria rumo aos Estados Unidos, tanto dos austríacos como dos americanos, mas os defensores de Gõdel em Princeton - Abraham Flexner, o sucessor de Flexner 192

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

como diretor do Instituto,* FrankAydelotte, Veblen e Von Neumann uniram forças para possibilitar a travessia do Atlântico. Gõdel creditou a autorização, em particular, à carta de Aydelotte ao encarregado de negócios da embaixada alemã em Washington. Naquela carta, datada de 1rr de dezembro de 1939, o novo diretor do instituto declarou que Gõdel era um ariano e um dos maiores matemáticos do mundo. "Seu caso dificilmente criaria um precedente'~ raciocinouAydelotte, "porque existem muito poucos homens no mundo com sua estatura científica." 11 Os Gõdel começaram sua viagem para o Novo Mundo, primeiro atravessando a Rússia pela ferrovia transiberiana, e seguindo até o Japão. A autorização de saída alemã exigira essa rota, e, além disso, conforme Gõdel escreveu numa carta aAydelotte, "fui informado em todas as agências de vapores que o perigo de cidadãos alemães serem detidos pelos ingleses é muito grande no Atlântico': Eles chegaram a Yokohama em 2 de fevereiro de 1940, um dia depois de o navio reservado para eles pelo instituto ter partido. O casal teve de aguardar pelo próximo navio, o President Cleveland, que aportou em San Francisco em 4 de março. Dali foi só pegar a ferrovia transcontinental até Nova York e, depois, enfim viajar até seu novo lar em Princeton. Isso parece um drama, no sentido normal da palavra. Mas Gõdel estava totalmente acima do tipo de drama de quem fugia da Europa nazista. "Gõdel chegou de Viena", escreveu Oskar Morgenstern em seu diário. Morgenstern, também natural de Viena, estava doido para receber do lógico recém-chegado notícias da cidade invadida. "Em seu misto de profundidade e desligamento, ele é bem engraçado. [... ] Quando perguntei sobre Viena, respondeu: 'O café está horrível'." Adele faria a viagem de volta várias vezes após a guerra para visitar sua mãe em Viena, mas Gõdel nunca mais pôs os pés em solo europeu.

* A renúncia de Flexner resultou de duas nomeações suas, ambas de economistas, sem consultar primeiro o melindroso corpo docente. Os matemáticos eram particularmente sensíveis nesse ponto, prenunciando eventos que toldariam os últimos anos de Gódel no instituto. 193

INCOMPLETUDE

Sua mãe teria que vir para Princeton, como fez várias vezes, para se verem de novo. Na verdade, ao contrário do acadêmico peripatético típico, ele raramente, nos próximos 38 anos de vida, saiu do município de Princeton. Nem sequer conseguiram convencer Gõdel a fazer o trajeto, facilmente percorrível a pé, até a Universidade de Princeton, quando, em 1975, esta enfim lhe ofereceu um título de doutor honoris causa. Ele já possuía este título de Harvard, Yale, Amherst e Rockefeller. Foi basicamente pelos esforços de Paul Benacerraf que a universidade decidiu reconhecer o gênio que se tornara uma espécie de Greta Garbo do mundo intelectual, em seu desejo de não ser incomodado. Entretanto, com a aproximação do dia da cerimônia, o prazer inicial de Gõdel deu lugar à sua tergiversação bem mais característica, que continuou até a manhã do evento. Benacerraf e Simon Kochen ofereceram-se para levá-lo de carro à cerimônia e cuidar de todas as outras preocupações, mas Gõdel acabou não comparecendo à homenagem. Talvez ele estivesse aborrecido por ela ter vindo tarde demais. "Dez anos atrás", ele contou a Morgenstern, "tal coisa [... ] teria sido apropriada." A única condição para se receber o título de doutor honoris causa é comparecer à cerimônia. Portanto, embora no programa constasse que Gõdel recebera o título de Doutor em Ciência, o programa mentiu. Ali, porém, está a citação amável: Sua análise revolucionária dos métodos de_prova recebidos naquele ramo da matemática tão familiar e elementar, a aritmética dos números inteiros, abalou os fundamentos de nossa compreensão tanto da mente humana como do alcance de um de seus instrumentos favoritos: o método axiomático. Como todas as revoluções importantes, a dele não apenas mostrou os limites dos métodos antigos, mas também se revelou um fértil manancial de métodos originais, deixando em sua esteira disciplinas novas e florescentes. A lógica, matemática e filosofia continuam se beneficiando imensuravelmente de sua genialidade.

194

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Um episódio sobre Gõdel nos Estados Unidos, a respeito de sua aquisição da cidadania norte-americana, merece ser repetido. Talvez seja a história mais famosa contada sobre Gõdel. (Ela nos vem por meio de Morgenstern.) Além de envolver Einstein bancando o certinho, em contraste com o maluco do Gõdel, também realça a excentricidade do gênio. Todo mundo parece gostar desse tipo de história. (Numa palestra que dei na minha faculdade sobre um capítulo deste livro, a "pausa para perguntas" logo degenerou numa sessão de troca dessas histórias sobre Gõdel. Infelizmente, eu já tinha ouvido todas elas.) Gõdel levou muito a sério a questão da cidadania americana, estudando a fundo para seu exame. Tão a fundo que acreditou ter feito uma descoberta perturbadora: existe uma contradição interna na Constituição americana que permitiria que sua democracia deteriorasse numa tirania.* Num estado de profunda consternação, Gõdel revelou sua descoberta a Morgenstern. Houve sempre um forte pendor legalista em Gõdel, um fascínio por examinar o significado e as implicações das leis humanas, que refletia tenuemente seu interesse pelas leis eternas da lógica. O economista ficou surpreso com o argumento de Gõdel e também preocupado, porque sabia que, do jeito que Gõdel era, poderia perfeitamente se comportar de modo a colocar em risco sua tão ansiada cidadania. Morgenstern consultou Einstein sobre como melhor lidar com o lógico. No dia do teste da cidadania de Gõdel, 5 de dezembro de 194 7, Morgenstern e Einstein chegaram para levar Gõdel até Trenton. Morgenstern ficou incumbido de dirigir o carro, e Einstein, de distrair Gõdel.

* Infelizmente, o relato de Morgenstern, e portanto todos os que seguem dele, omitem a falha constitucional exata. Perguntei a John Dawson se ele sabia qual era, e ele mandou um e-mail respondendo: "Não, não sei, embora muitos tenham feito essa pergunta. Existe um conjunto de notas taquigráficas no Nachlass de Godel referentes ao governo americano (presumivelmente tomadas enquanto estudava para o exame da cidadania) que poderiam conter a resposta, mas transcrever aquele item específico nunca teve a mesma prioridade do material matemático" (3 de janeiro de 2004). 195

INCOMPLETUDE

Assim que este adentrou o carro, Einstein, sem lhe dar nenhuma chance de falar, saudou-o com uma piada. "Você está preparado para sua penúltima prova?" "O que você quer dizer com 'penúltima'?" "Muito simples. A última será quando você entrar no seu túmulo." Humor do Velho Mundo. Einstein continuou contando uma história após a outra, inclusive uma sobre um recente caçador de autógrafos. Ele observou que tais pessoas são os últimos dos canibais, pois procuram se apossar das almas de quem eles ingerem. Assim, os três membros do Instituto de Estudos Avançados conseguiram chegar ao palácio da Justiça Federal de Trenton. Havia vários candidatos na frente, de modo que Einstein se resignou a continuar suas brincadeiras diversionistas. Mas por sorte descobriram que o juiz, de nome Philip Forman, era o mesmo que ministrara o juramento de cidadania a Einstein alguns anos antes, e ele conduziu imediatamente os três homens à sua sala. Einstein e Forman conversaram um pouco e Gõdel, sentado tranqüilo e esperando a sua vez, parecia ter sido esquecido. Mas Forman acabou chegando ao que interessava. "Até agora você teve a cidadania alemã." De imediato, Gõdel corrigiu o erro do juiz: cidadania austríaca. Devidamente corrigido, o juiz prosseguiu. "De qualquer modo, foi sob uma ditadura cruel. Por sorte, isso não é possível nos Estados Unidos." Aquela era exatamente a deixa pela qual o lógico aguardava. "Pelo contrário", objetou ele. "Sei precisamente como isso pode acontecer aqui", e começou sua exposição sobre a falha na Constituição. Forman, Morgenstern e Einstein trocaram olhares significativos, e o juiz interrompeu a peroração de Gõdel com um sumário "Não há necessidade de entrar nesses detalhes" e conduziu a conversa para temas menos perigosos. Algumas semanas depois de prestar o juramento, Gõdel descreveu Forman, em carta para a mãe, como "uma pessoa bem simpática". 196

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

"A LÓGICA. ELA ERA IMPOSSÍVEL' Diariamente, Einstein e Gõdel voltavam a pé do instituto para casa, em profundas conversas, enquanto as pessoas observavam, curiosas. Gõdel tinha grande prazer - talvez até orgulho - com sua amizade: as referências a Einstein nas cartas à mãe são prova disso. "Vivo me espantando pelo fato de Einstein caminhar até o instituto com esse tempo ruim. Mas ele parece; nesse aspecto, tão insensato quanto você", Gõdel escreveu para sua mãe, implicando com ela, num inclemente 17 de fevereiro de 1948. E em 12 de julho do mesmo ano: "Vejo Einstein quase diariamente. Ele é muito saudável para a idade. Nem dá para perceber que está com quase setenta anos, e ele agora parece se sentir ótimo em termos de sua saúde". Mas apenas poucos meses depois disso, no outono de 1948, Einstein, com crises agudas de dor no abdômen superior, internou-se no Hospital Judaico de Brooklyn para uma laparotomia exploratória. Um aneurisma abdominal foi descoberto. Alguns anos depois, Einstein descobriu que o aneurisma estava crescendo. Relata Helen Dukas: "Todos em torno dele sabíamos da espada de Dâmocles pendendo sobre nós. Ele também sabia, e esperou pelo pior, calmo e sorridente': Einstein tomou cuidado para que Gõdel, tão obcecado com sua própria saúde, jamais soubesse daquilo. Einstein sempre procurou proteger seu amigo delicado e mais jovem. Assim, Gõdel escreveu repetidamente à mãe sobre a boa saúde de Einstein (comparada com seus próprios problemas de saúde, reais e imaginários), até a carta de 25 de abril de 1955. Einstein havia morrido em 18 de abril de 1955: A morte de Einstein claro que foi um grande choque para mim, pois eu não a esperava. Exatamente nas últimas semanas Einstein deu a impressão de estar completamente saudável. Ao caminhar comigo por meia hora até o instituto, ao mesmo tempo que conversava, não mostrava nenhum sinal de fadiga, ao contrário do que acontecera em muitas ocasiões anteriores. Em termos pessoais, perdi muito com a sua morte, especialmente porque, em seus últimos 197

INCOMPLETUDE

dias, ele me tratava ainda melhor do que antes, e tive a sensação de que queria se abrir mais do que antes. Ele preferia não compartilhar muitos dos seus problemas pessoais. Naturalmente meu estado de saúde piorou durante a última semana, em especial o sono e o apetite. Mas tomei uma pílula forte para dormir algumas vezes e estou agora mais sob controle.

Após a morte de Einstein, a sensação de exílio de Gõdel deve ter se aprofundado. Quando Einstein se afastara por ordens médicas para repousar, Gõdel se queixou à mãe de não ter ninguém com quem conversar. Agora, nunca mais teria alguém. Seu profundo isolamento não resultava apenas da alienação intelectual em relação ao positivismo filosófico, que ele sentia tê-lo acompanhado de Viena ao Novo Mundo (o que, de certa forma, ocorreu). Também no nível pessoal, Gõdel vivia totalmente alienado de seus colegas matemáticos do instituto. Ao contrário de Einstein, eles não se interessavam por seu "axioma estranho", sua versão do princípio da razão suficiente de Leibniz, que o predispunha a acreditar que tudo que acontece tem uma explicação totalmente lógica - sobretudo depois que a aplicação do axioma levou Gõdel a acreditar que quem detinha o poder tinha razões suficientes para tal. O axioma predispunha Gõdel a conceder aos detentores do poder o benefício da dúvida - eles devem ter boas razões para suas decisões e ações, ainda que os dados empíricos pareçam indicar o contrário - , e tal raciocínio contribuiu para afastar profundamente o lógico de seus colegas do instituto. No tocante à matemática, os matemáticos constataram que Gõdel, conquanto um lógico, participava ativamente de suas discussões teóricas. "De fato, ele sabia mais matemática do que eu suspeitara", Borel explicou para mim quando o visitei no instituto. "Ele conseguia participar de discussões não apenas sobre lógica. Em matemática, ele realmente tomava parte de nossas discussões." Era no campo mais prático que Gõdel se indispunha com seus colegas matemáticos, pelo menos da forma como esse campo se apresentava no instituto: a questão vital das nomeações. Quando se tratava de 198

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

nomear um membro permanente para o instituto, mesmo o mais distraído dos pensadores ficava atento: quem é digno de adentrar os domínios etéreos da razão pura? Flexner escolhera a matemática, "a mais rigorosa das disciplinas", como seu modelo. Não apenas os resultados matemáticos são seguros, mas a profundidade e a importância relativas dos resultados também são seguras. Do mesmo modo, a profundidade e a importância relativas dos próprios matemáticos são igualmente seguras. Os matemáticos sabem exatamente quais dentre eles são os melhores, e são estes que merecem ingressar no Instituto. Os matemáticos do Instituto têm a tradição de julgar as outras disciplinas com certo rigor. Os matemáticos reagiram contra as tentativas de Flexner de diversificar a população do instituto e incluir estudiosos de economia, política e das humanidades. Flexner conseguiu criar duas escolas novas, uma de economia e política e outra de estudos humanísticos, mas a batalha foi acirrada e, ao se aposentar, quatro anos depois, Flexner era um homem cansado. Obter o dinheiro inicial dos Bamberger/Fuldque, afinal, tinham respeito por ele e suas opiniões - havia sido sopa em comparação à aceitação de suas propostas pelos matemáticos. Seu sucessor, FrankAydelotte, obteve, quase sempre, a aprovação dos matemáticos. Ele era, nas palavras de Einstein, "um homem tranqüilo, incapaz de perturbar pessoas que estão tentando pensar". Quando Aydelotte se aposentou, em 1947, a direção passou para J. Robert Oppenheimer, que voltara a lecionar em Berkeley e Caltech após o término bem-sucedido do "Projeto Manhattan": a missão, durante a guerra, que reunira muitos dos principais físicos dos Estados Unidos para desenvolver a primeira bomba atômica. Oppenheimer havia hesitado, assim como Einstein, em se mudar para Princeton. Após visitar o instituto, falou em tom zombeteiro de seus "luminares solipsistas". Mesmo assim, ele veio, e pouco depois ele e os matemáticos se desentendiam. Oppenheimer, compreensivelmente, estava interessado em fortalecer a escola de física do instituto. Nomeações individuais fizeram mate199

INCOMPLETUDE

máticos como Von Neumann e Deane Montgomery entrarem em rota de colisão com o diretor. Na época de Oppenheimer, todo o corpo docente votava a cada nomeação. Ninguém podia na verdade julgar o trabalho dos matemáticos a não ser os próprios matemáticos, embora eles parecessem totalmente à vontade ao julgar o trabalho de físicos, economistas, historiadores e humanistas (outro grupo de privilegiados na torre mais alta da Razão Pura). Ironicamente, os matemáticos, em geral desligados, eram a força a ser levada em conta nos assuntos mais práticos do instituto. Alguns teorizaram, em tom de piada, que o problema dos matemáticos não são apenas os padrões elevados que costumam empregar, mas a tendência a trabalhar menos horas por dia do que as outras pessoas. Com isso, sobra muito tempo para ficarem aprontando. Mas não foi apenas a defesa de Oppenheimer dos não-matemáticos que jogou lenha na fogueira dos matemáticos. Foi a candidatura do matemático John Milnor que acendeu o fósforo. John Milnor era então matemático na Universidade de Princeton. Aos dezoito anos, quando calouro em Princeton, ele ouvira falar sobre uma conjectura do topólogo polonês Karol Borsuk sobre a curvatura total de um nó não trivial no espaço.Milnordescobriu uma provadaconjecturaelevou-aaoseu professor, dizendo: "Não vejo nada de errado nisso, e você?". O professor tampouco viu, bem como os colegas. Um ano depois, Milnor desenvolvera uma teoria geral de curvatura da qual a prova da conjectura de Borsuk não passava de mero subproduto. Ele continuou com uma carreira brilhante, e os matemáticos do instituto quiseram que ele fosse para lá. Oppenheimer foi contra, alegando que o instituto prometera à universidade não ficar atraindo seus elementos. Os matemáticos acusaram Oppenheimer de inventar essa promessa em causa própria. (As dúvidas dos matemáticos quanto à boa-fé de Oppenheimer eram tão profundas e arraigadas que consegui captar seus ecos ainda hoje. Um matemático, ao descrever o caminho que levava direto de Fuld Hall a Olden Farm, a residência do diretor - o mesmo caminho que Einstein e Gõdel percorriam diariamente - , contou-me que, após a morte de Einstein, Oppen heimer "por algum motivo suprimiu o caminho", ou seja, deixou o 200

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

mato crescer nele. "Não tenho idéia do motivo", concluiu o matemático, com um olhar sombrio fortemente sugestivo do intento sinistro por trás da supressão do caminho.) Gõdel, como Borel me explicou, queria a vinda de Milnor tanto quanto os demais matemáticos, mas era incapaz de se opor à autoridade do diretor. Foi o respeito incontestável de Gõdel pelos direitos da autoridade que fez com que os demais matemáticos concluíssem "que não havia como argumentar" [com Gõdel], segundo Borel, que continuou: A lógica era simplesmente estranha. Não podia haver discussão, nem mesmo uma forma comum de discutir o assunto. Ele estava sempre a favor da autoridade. Deane Montgomery e eu estávamos conversando com Gõdel, e a lógica era totalmente absurda. Ali estava um homem que teve de fugir dos fascistas no poder na Áustria. No entanto, por sua lógica, não se deve desafiar a autoridade. A lógica era simplesmente absurda. A situação no departamento ficou tão ruim que decidimos, por unanimidade, que dali em diante a lógica seria tratada em separado.

O que isso significava era que Gõdel não seria mais incluído nas discussões dos matemáticos sobre nomeações: ele deixou de receber os currículos dos candidatos, sua opinião não foi mais solicitada, nem esteve mais presente nas reuniões. Foi exilado no seu próprio campo: a lógica. Ele decidiria sobre a nomeação de lógicos, junto com o matemático Hassler Whitney. Isso foi em 1961, e depois daquilo quase toda conversa entre Gõdel e os demais matemáticos cessou. Apenas Whitney manteve certo contato com Gõdel. E o contato era somente do tipo mais profissional, tal como Gõdel queria.No serviço religioso em memória de Gõdel, Whitney lembrou que, certa vez, ao fazer uma visita a Gõdel, este ficou surpreso, já que nenhum "assunto preciso" trouxera Whitney à sua porta. Gõdel também desenvolveu uma forte preferência por realizar todas as conversas pelo telefone. Ainda que um colega estivesse a curta distância de seu escritório no instituto, Gõdel pedia que usasse o telefone. 201

INCOMPLETUDE

Houve um breve período, no início da década de 1970, em que Gõdel manifestou o que foi, para ele, uma sociabilidade incomum. Simon Kochen contou-me que, durante esse período, Gõdel costumava visitálo para se atualizar sobre os trabalhos mais recentes em seu campo. Em março de 1973,Abraham Robinson ( 1918-74), um matemático cujo trabalho Gõdel admirava, deu uma palestra no instituto. O trabalho de Robinson empregara as técnicas da lógica formal - muitas delas desenvolvidas por Gõdel no decorrer de sua prova do primeiro teorema da incompletude - para solucionar problemas comuns em álgebra, criando a denominada "análise não-standard': Tais extensões do alcance da lógica eram sempre encorajadoras para Gõdel. (O trabalho de Simon Kochen, quando um lógico bem jovem, também aplicara a lógica formal a um problema matemático mais tradicional.) A palestra de Robinson fez com que o normalmente taciturno Gõdel se levantasse para congratular Robinson por seu trabalho.* A análise não-standard, ele disse, não era "uma moda dos lógicos matemáticos", mas estava destinada a setornar "a análise do futuro. [... ] Nos séculos vindouros, será considerado estranho [... ] que a primeira teoria exata dos infinitesimais tenha sido desenvolvida trezentos anos após a invenção do cálculo diferencial': 12 No outono de 1973, Gõdel surpreendeu a todos ao dar o ar de sua graça naquela festa ao ar livre em que tive minha única oportunidade de conhecê-lo. Lembro que a filha de Iossíf Stálin, Svetlana Alliluieva, uma celebridade menor dos anos 70 devido às suas memórias, esteve presente também, mas quem ligaria para uma Stálin quando Gõdel estava lá? Nunca mais consegui vê-lo. Depois Gõdel conseguiu enfurecer seus colegas outra vez, durante a controvérsia que causou ondas tão grandes que chegaram às páginas do New York Times e de revistas como a Ha rper's e Atlantic Monthly (cuja capa da edição de fevereiro de 1974 dizia: "Tempos difíceis no

* Alguns meses após a palestra, Robinson sucumbiu ao câncer pancreático, uma morte que, segundo os relatos, abalou Gõdel. 202

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Monte Olimpo: a grande batalha em Princeton"). Embora o diretor agora fosse outro - Karl Kaysen, que recebera o comando de Oppenheimer em 1966* - , o pomo da discórdia era o mesmo: nomeações. Kaysen viera ao instituto oriundo do Departamento de Economia de Harvard, mas se licenciara de Harvard em 1961 a fim de trabalhar para McGeorge Bundy no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, no governo Kennedy. Para os matemáticos, aquilo era compromisso demais com o mundo real, e eles - exceto Gõdel - já estavam fortemente inclinados a desconfiar do novo chefe do campus.** Mas, quando Kaysen propôs criar uma nova escola de ciências sociais, prometendo ele próprio obter os recursos financeiros, os matemáticos, bem como muitos membros da Escola de História, prepararam-se para a guerra total. A primeira nomeação foi de Clifford Geertz, antropólogo cultural da Universidade de Chicago, cujo trabalho aborda todos os aspectos da cultura e cujas credenciais profissionais eram invejáveis. Ele conseguiu entrar. Foi a candidatura de Robert Bellah, um sociólogo da religião de Berkeley, que fez o clima de hostilidade degenerar em batalha campal. Embora as armas fossem palavras, elas podiam ser bem incisivas, até mortais. O matemático André Weil, *** por exemplo, teria dito ao New York

* Oppenheimer conseguira fundir a fracassada Escola de Economia e Política com a florescente Escola de Humanidades para criar a nova Escola de História. Mas quando se afastou do Instituto - com menos de seis meses de vida pela frente - constatou que metade do corpo docente não falava com ele. Todos os matemáticos- com exceção de Gõdel - estavam no campo inimigo. Quando se fala com matemáticos sobreviventes daquele período mesmo hoje, o caráter de Oppenheimer é descrito em termos negativos. As lembranças parecem nunca enfraquecer no Instituto. ** Sua obra acadêmica envolveu basicamente a política antitruste norte-americana; ele realizara um estudo do processo antitruste United States versus United Shoe Machinery Corporation. Disse o matemático André Weil: ''Acho que ele escreveu sua tese sobre uma fábrica de sapatos". *** Weil viera ao instituto oriundo da França, e havia sido um dos participantes originais da existência imaginária de "Nicolas Bourbaki". Foi sob esse pseudônimo (Bourbaki era identificado como "ex -membro da Academia Real Poldaviana") que um grupo de jovens matemáticos publicou pelo menos duas dúzias de tratados matemáticos da máxima qualidade, alçando o nível de prova a um novo padrão de rigor. 203

INCOMPLETUDE

Times o seguinte: "Muitos de nós começamos a ler os trabalhos inúteis do sr. Bellah. Vi candidatos fracos antes, mas nunca tive uma sensação tão grande de estar desperdiçando meu tempo': Alguns partidários de Bellah objetaram que para Weil, um matemático que empregava os padrões elevados de sua disciplina, qualquer tentativa de estudar a religião careceria de rigor. Weil replicou que, pelo contrário, tinha uma ligação pessoal com aqueles temas. Afinal, sua irmã havia sido a famosa mística Simone Weil. Gõdel de novo concordou, em princípio, com os matemáticos. Borel contou-me que Gõdel havia dito que a nomeação de Bellah seria a mais fraca da história do instituto. Na reunião do corpo docente para discutir a candidatura de Bellah - em que muitas coisas deploráveis foram ditas no calor da emoção e depois liberadas para a imprensa pela "maioria dissidente", depois que Kaysen deixou clara a intenção de ignorar o voto do corpo docente - , Gõdel superou sua reserva e se manifestou em termos frios e racionais. (Seus aliados ficaram aliviados com sua sensatez nas observações públicas; num encontro que antecedeu a própria reunião, ele especulara privadamente que talvez Bellah, proveniente do Canadá, tinha o apoio do conselho de administração porque seu diretor havia sido o embaixador canadense, e talvez Bellah tivesse sido espião pelo Canadá! Isso, segundo minha fonte da história, que, após todos esses anos, ainda deseja permanecer anônima, era típico do raciocínio de Gõdel. Como Gõdel havia lido os trabalhos de Bellah e não vira nada demais neles, estava procurando a razão que tornasse inteligível a decisão das autoridades.) Na reunião pública, Gõdel distinguiu, num estilo verdadeiramente gõdeliano, a influência que as idéias podem ter de sua verdade objetiva. (Indícios de Platão fustigando os sofistas de seu tempo.) Os defensores de Bellah falavam apenas da primeira, não da última. A obra de Bellah, Gõdel estava racionalmente mostrando, pode ter influenciado muitos em seu próprio campo, mas isso, em si, não é motivo para julgá-la verdadeira. Idéias populares não são necessariamente idéias verdadeiras. A contra-alegação de que, em campos como a sociologia, a influência é tudo, a noção de verdade objetiva sendo inaplicável (Kaysen, em resposta 204

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

a Gõdel, invocou essa linha de raciocínio), representava, para Gõdel, a mais grave deslegitimação possível de um campo como a sociologia. "Ele [Gõdel] também observou que muitos cientistas de grande inteligência, originalidade, saber e influência produziram teorias completamente erradas, como por exemplo Stahl, o inventor da teoria do fl.ogístico." 13 No entanto, na hora do voto, Gõdel foi um dos poucos matemáticos a não votarem contra a nomeação, de novo achando impossível desafiar a autoridade. A votação final do corpo docente foi de treze contra Bellah, oito a favor e três abstenções. Um dos que se abstiveram foi Kurt Gõdel. Foi a confirmação final, para os colegas matemáticos de Gõdel, de que "a lógica era totalmente absurda". Toda aquela novela da nomeação de Bellah teve um final adequadamente infeliz: a filha de Bellah faleceu, e este, de luto, não se interessou mais pelo cargo. Pouco depois do caso Bellah, Kaysen deixou o instituto, cansado dos seus adversários matemáticos (como Oppenheimer e Flexner ao se demitirem, totalmente esgotado). O diretor atual do instituto é considerado pelos matemáticos um homem razoável. O caso Bellah gerou tamanha controvérsia que, ao falar com alguns dos participantes agora, mais de um quarto de século depois, ainda consegui detectar sinais de fúria do passado. Kaysen contou-me que, durante a confusão em torno de Bellah, Gõdel às vezes telefonava para comentar o assunto com ele. "Ele estava muito angustiado com a atmosfera de incivilidade." Assim, embora tivesse se aliado brevemente aos colegas matemáticos do instituto no julgamento do trabalho do novo candidato, seu exílio continuou. Na verdade, aumentou.

"SÓ CONSIGO TOMAR DECISÕES NEGATIVAS" Karl Menger, o velho conhecido de Gõdel do Círculo de Viena, feliz em seu refúgio em Notre-Dame, escreveu:

205

INCOMPLETUDE

Em cada uma de minhas confessadamente poucas viagens a Princeton, tive longas conversas com Gõdel. Afora sua amizade com Einstein e (sobretudo após sua morte) com Morgenstern, Gõdel me pareceu bem solitário. Certa vez, ele me surpreendeu com a pergunta: "Onde está Artin agora?" [Trata-se do algebrista EmilArtin.] Quando respondi: "Em Princeton, falei com ele ontem", Gõdel disse: "Pensei que tivesse ido embora há tempos. Não o vejo faz anos".14

Mais triste ainda é que Menger acha que o isolamento de Godel no instituto contribuiu para sua falta de publicações: Em nenhum momento de sua vida, Gõdel precisou de estímulo intelectual para conceber e desenvolver idéias originais e inesperadas. Mas ele precisava de um grupo afim sugerindo que relatasse as descobertas, lembrando e, se necessário, pressionando-o delicadamente a anotá-las. Tudo isso ele tivera no início de sua estada em Princeton em torno da publicação de seus dois livretos e do artigo sobre Russell. E ele aparentemente poderia ter achado tal apoio mais tarde. Mas parece que nunca procurou por ele, e ninguém se ofereceu como voluntário. O fato é que não consegui observar nada desse tipo na década de 1950. Pelo contrário, logo ficou claro para mim que ele anotava muitas idéias brilhantes apenas para a gaveta de sua escrivaninha. Do ponto de vista do mundo externo, seu talento incomparável jazia lamentavelmente subaproveitado.

Foi nesse isolamento profundo que as tendências paranóicas de que Godel sofrera mesmo na juventude ganharam força. Talvez esse obscurecimento de sua perspectiva mental tivesse sido inevitável com a idade. Mesmo assim, o isolamento imposto, aliado à hostilidade dos colegas, não deve ter sido benéfico a ele. Como costumávamos dizer nos anos 60: só porque você é paranóico não quer dizer que eles não estejam realmente atrás de você. Depois da morte de Einstein, a identificação mais profunda de Godel parece ter sido com Leibniz. Tão forte foi ela que Godel estendeu sua própria fantasia paranóica da racionalidade ameaçada ao racionalista do século xvn. 206

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Na estimativa de Gõdel, Leibniz foi um pensador ainda maior do que a posteridade percebeu, levando suas idéias de uma characteristica universalis - um alfabeto que seriá usado para representar de forma lógica os pensamentos, tornando transparentes as suas relações lógicas internas - a um estágio mais avançado do que sugerem os testemunhos escritos. Gõdel confidenciara a Karl Menger sua suspeita de que alguns dos «textos importantes [de Leibniz], além de não serem publicados, tiveram seus manuscritos destruídos". «Quem teria interesse em destruir os textos de Leibniz?", indagou Menger. 15 «Naturalmente aqueles que não querem que os homens se tornem mais inteligentes", foi a resposta do lógico. Menger então sugeriu que o livre-pensador iconoclasta Voltaire teria sido um alvo de censura mais provável, mas Gõdel discordou: "Quem é que já se tornou mais inteligente lendo os textos de Voltaire?" Menger mencionou a conversa para Oskar Morgenstern, que também tinha uma história para contar sobre o tema de Leibniz e Gõdel. Ele também havia sido alertado por Gõdel sobre a supressão premeditada das contribuições de Leibniz e tentara dissuadir o lógico de sua convicção. Finalmente, para convencer Morgenstern, Gõdel levou o economista à Biblioteca Firestone da universidade e reuniu «uma abundância de material realmente espantoso", nas palavras de Morgenstern. O material consistia em livros e artigos com referências exatas a textos publicados de Leibniz, por um lado, e as próprias obras citadas, por outro lado. Nas fontes primárias faltavam passagens que haviam sido citadas nas fontes secundárias, como se tivessem sido excluídas. «Esse material era realmente muito espantoso", um Morgenstern pasmado (mas não convencido) admitiu. Gõdel sempre se preocupou de não estar cumprindo o que o instituto esperava dele, sentindo-se por isso não apenas culpado, mas também inseguro. Por incrível que pareça, o homem citado por Harvard 207

INCOMPLETUDE

como autor da descoberta matemática mais importante do século - o pensador só superado por Einstein na reputação de fazer do instituto o refúgio de divindades intelectuais em sua breve estada na Terra - às vezes telefonava para Morgenstern em pânico, dizendo que temia ser expulso. Ele também revelou suas suspeitas de que havia pessoas querendo matá-lo, de que a esposa, Adele, havia doado todo o seu dinheiro e de que seus médicos não entendiam nada do seu caso e conspiravam contra ele. 16 Oskar Morgenstern permaneceu um amigo maravilhoso de Gõdel, leal e dedicado, o único vínculo remanescente de Gõdel, além da esposa Adele, com os velhos dias em Viena. Mesmo quando Morgenstern estava morrendo de câncer metastatizado, fato tragicamente aparente a todos os seus conhecidos, exceto Gõdel, suas anotações no diário estão cheias de preocupação com o lógico. Hoje[ ...] Kurt Gõdel telefonou de novo[ ... ] e falou comigo uns quinze minutos. [... ] Após perguntar rapidamente como eu estava e afirmar que[ ... ] meu câncer não apenas seria detido, mas recuaria [... ] passou a falar de seus próprios problemas. Ele afirmou que os médicos não estão dizendo a verdade a ele, que eles não querem lidar com ele, que ele está numa situação crítica (exatamente o que me contou, com as mesmas palavras, algumas semanas atrás, alguns meses atrás, dois anos atrás), e que eu devia ajudá-lo a se internar no Hospital Princeton. [... ] [Ele] também me garantiu que[ ... ] talvez dois anos atrás, dois [... ] homens apareceram alegando ser médicos. [... ] Eles eram trapaceiros [que] estavam tentando interná-lo no hospital[ ...] e ele[ ... ] teve grande dificuldade em desmascará-los. [... ] É difícil descrever O" que tal conversa [... ] significa para mim: eis um dos homens mais brilhantes do nosso século, muito ligado a mim, [... ] [que] está claramente com uma perturbação mental, sofrendo de certo tipo de paranóia, contando com minha ajuda,[ ... ] e eu não consigo dar essa ajuda. Mesmo quando eu podia me locomover e tentava ajudá-lo[ ... ] não conseguia nada. [... ] [Agora,] ao se agarrar a mim - e ele não tem mais ninguém, isso está claro - ele aumenta o fardo que estou carregando. 17

208

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Essa foi a anotação do diário de 1O de julho de 1977. Dezesseis dias depois, Oskar Morgenstern estava morto. Horas após a morte do economista, Gõdel telefonou para a casa dele, esperando falar com ele, para botar para fora o conteúdo de seus delírios sombrios. A notícia de que seu único aliado de confiança acabara de morrer o chocou tanto que Gõdel simplesmente desligou o telefone sem dizer nenhuma palavra. Adele também vinha sofrendo de problemas de saúde e teve de ser hospitalizada durante esse período. Desse modo, Gõdel teve de se virar sozinho nos meses de outono, e depois no inverno. Com Morgenstern morto e Adele distante, o declínio do lógico foi flagrante. A única pessoa que talvez tenha tentado fazer contato com Gõdel nesses poucos últimos meses de sua vida foi o fiel seguidor, o lógico Hao Wang. Wang ausentou-se do país de meados de setembro a meados de novembro de 1977, mas pouco antes da partida telefonou para Gõdel avisando que estava indo visitá-lo. Wang chegou trazendo um frango que sua esposa preparara para Gõdel. Sempre hipocondríaco, excessivamente cuidadoso com o que seu corpo ingeria e temendo ser envenenado, a falta de alimentação estava degenerando em inanição. Quando Wang chegou à casa em Linden Lane, Gõdel "olhou-o desconfiado" e recusou-se a abrir a porta. Wang deixou o frango na soleira da porta e partiu. 1ª Wang conseguiu enfim entrar na casa de Gõdel em 17 de dezembro e parece ter se tranqüilizado com o comportamento e a aparência de Gõdel (embora ele devesse estar debilitado): "Sua mente continuava ágil e ele não parecia doente. Ele disse: 'Perdi a capacidade de tomar decisões positivas. Só consigo tomar decisões negativas": 19 Adele voltou do hospital no final de dezembro e, em 29 de dezembro (com ajuda de Hassler Whitney), persuadiu Gõdel a se internar no Hospital Princeton. "Comentou-se que o peso de Gõdel caíra para trinta quilos antes de sua morte e que, quase no final, sua paranóia assumiu a forma de uma síndrome clássica: medo do envenenamento alimentar que leva à auto-inanição." 2º Kurt Gõdel morreu na posição fetal no sábado, 14 de janeiro de 1978, à uma da tarde. De acordo com o atestado de óbito, emitido pelo 209

INCOMPLETUDE

Tribunal do Condado de Mercer em Trenton, ele morreu de "subnutrição e inanição" causadas por "distúrbios de personalidade". Karl Menger contribuiu com uma última história: Num dos últimos telefonemas antes de sua morte (em julho de 1977), Morgenstern descreveu um fato que me despertou lembranças de acontecimentos que, tempos atrás, haviam de algum modo me afastado de Gõdel* -

mas

despertou-as por seu contraste com aquelas lembranças, de modo que a história de Morgenstern me comoveu muito. De novo, estavam em questão os direitos de Gõdel, em que sua meticulosidade não conhecia limites. O que aconteceu foi que Gõdel, aparentemente muito doente, procurou o Hospital Princeton e foi admitido, mas logo depois insistiu que não tinha direito a um dos benefícios oferecidos, já que sua apólice de seguro não o previa. Ele portanto se recusou a aceitar o benefício. Os detalhes do caso me escapam agora, embora eu esteja claramente convencido de que a lógica de Gõdel, ao interpretar o contrato de seguro, foi superior à do hospital. Mas seja o que for, em sua precisão jurídica, Gõdel inabalavelmente defendeu sua posição.

Gõdel foi sepultado em 19 de janeiro no Cemitério de Princeton, na Witherspoon Street. O funeral foi simples e íntimo. Mas a 3 de março celebrou-se um serviço religioso em memória de Gõdel no instituto, presidido por André Weil. Os oradores foram Hao Wang, Hassler Whitney e - em substituição de última hora do proeminente lógico Robert Solovay, que viera de avião da Califórnia, mas cujo carro alugado mergulhou numa vala cheia de neve - Simon Kochen. Kochen recordou, em seu tributo a Gõdel, que, na prova oral de seu doutorado, o examinador, Stephen Kleene, pediu que mencionasse cinco dos teoremas de Gõdel. O fato era que "cada um dos teoremas [foi] o início de todo um ramo da lógica matemática moderna". Ateo-

* Menger se refere aqui à indignação de Gõdel porque seus direitos como docente universitário haviam sido ameaçados pelo Terceiro Reich. 210

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

ria da prova, a teoria dos modelos, a teoria da recursão, a teoria dos conjuntos, a lógica intuicionista, todas haviam sido transformadas pelo trabalho de Gõdel ou, em certos casos, se originaram desse trabalho. Kochen então comparou o trabalho de Gõdel com o de Einstein, em termos da forma como ambos resultaram da reflexão profunda sobre os fundamentos. "Aquela foi uma comparação óbvia de se fazer", Kochen me contou. O mais surpreendente é que ele também comparou o trabalho de Gõdel com o de Kafka, sem saber que o próprio Gõdel admirava o escritor.* Ambos os homens combinaram sua inclinação fortemente "legalista", nas palavras de Kochen, com uma capacidade sobrenatural, quase surreal, de criar mundos independentes, mundos que podem parecer, à primeira vista, contrários à lógica, mas que se compõem do próprio material da lógica. "Existe um quê de Alice no País das Maravilhas no trabalho de ambos os homens", disse-me Kochen. Kochen contou-me que, se tivesse tido tempo para preparar suas observações, é provável que jamais tivesse feito a analogia com Kafka. Só porque teve de produzir algo rapidamente é que lançou mão daquela vaga impressão que o trabalho de Gõdel sempre lhe dera, mas na qual nunca se aprofundara. Mas todos com quem falei que estive. ram presentes ao serviço 'em memória de Gõdel se lembram da observação de Kochen. A comparação com Kafka, outra mente sui generis da Europa Central, conseguiu captar algo de surpreendente e verdadeiro.

* Godel escreveu para sua mãe, em 4 e 19 de julho de 1962, sobre sua "descoberta recente" do "poeta moderno': Franz Kafka. Godel também apreciava pintura abstrata e surrealista. Em outros aspectos, seus gostos culturais são notáveis pelo infantilismo. Além de preferir contos de fadas a Goethe e Shakespeare, escrevendo à mãe que somente naquelas histórias o mundo está representado como deveria, também era fã d9s filmes de Disney e viu Branca de Neve pelo menos três vezes. 211

INCOMPLETUDE

INCOMPLETUDE (TUDO DE NOVO) Einstein e Gõdel compartilhavam, entre muitas outras coisas, uma preocupação com a natureza do tempo. Apesar das distorções populares, até certo ponto encorajadas pelas vagas alusões da palavra "relatividade", Einstein estava, como já vimos, muito longe de interpretar sua famosa teoria em termos subjetivos. Pelo contrário, em sua interpretação, a teoria da relatividade oferece uma descrição realista do tempo

Einstein e Gõdel no caminho suprimido que ligava Fuld Hall a Olden Farm. LEONARD MCCOMBE/ TIME LIFE PICTURES/ GETTY IMAGES.

212

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

radicalmente distinta de nossa experiência subjetiva do tempo. Na hipótese einsteiniana, o gigantesco abismo entre o "lá fora" e o "aqui dentro" aumenta ainda mais, pois falta ao tempo objetivo - o tempo descrito nas equações da teoria da relatividade - exatamente a característica essencial à nossa experiência subjetiva do tempo: o fluxo inexorável, os nossos ontens iluminando o caminho para a poeira da morte.* Existe algo que conheçamos mais intimamente do que a fugacidade do tempo, a transitoriedade de cada momento? Contudo, por incrível que pareça, a coisa não é bem assim ... se levarmos a física de Einstein a sério. A natureza da realidade que emerge da física de Einstein é bem mais surpreendente que a divisa simplista, tão do agrado dos universitários: tudo é relativo a pontos de vista subjetivos. Na física de Einstein, não há nenhuma passagem do tempo, nenhum fluxo unidirecional afastando-se do passado determinado rumo ao futuro incerto. O componente temporal do espaço-tempo é tão estático quanto os componentes espaciais; o tempo físico é tão parado quanto o espaço físico. Está tudo exposto, todo o desenrolar dos eventos, no complexo de espaço-tempo quadridimensional não flexionado. As distinções que fazemos entre passado, presente e futuro distinções tão emocionalmente carregadas e sem as quais nem sequer podemos começar a descrever nossos mundos interiores - só têm relevância dentro desses mundos interiores. O tempo objetivo, como caracterizado na relatividade, não permite a distinção entre passado,

* Um artigo no New York Times, publicado, de modo bem apropriado, no dia do AnoNovo, delineou admiravelmente o fosso entre o tempo subjetivo e objetivo: "Cem anos atrás, faltavam ainda dezoito meses para a descoberta da relatividade restrita, e a ciência adotava a descrição newtoniana do tempo. Agora, porém, a noção de tempo da física moderna opõe-se claramente àquela que a maioria de nós internalizou. Einstein recebeu a incapacidade da ciência de confirmar a experiência familiar do tempo com uma 'resignação dolorosa mas inevitável'. Os progressos desde a sua era apenas ampliaram a disparidade entre a experiência comum e o conhecimento científico.A maioria dos físicos lida com essa disparidade compartimentalizando: existe o tempo entendido cientificamente, e existe o tempo experimentado intuitivamente. Durante décadas, procurei trazer minha experiência para mais perto de minha compreensão". 21 213

INCOMPLETUDE

presente e futuro. Ou, como Einstein contou a Rudolf Carnap, "a experiência do agora significa algo especial para o homem, algo essencialmente diferente do passado e futuro, mas essa diferença importante não ocorre, nem pode ocorrer, dentro da física". Entendendo a teoria da relatividade como se implicasse a inexistência de um agora absoluto que flui numa onda implacável de temporalidade, Einstein, vivendo "sob a espada de Dâmocles': parece confortar-se em sua visão de uma objetividade física não flexionada. Em carta de condolências à viúva de Michele Besso, seu velho amigo e colega físico, Einstein escreveu: "Ao deixar este mundo estranho, ele mais uma vez me precedeu por pouco. Isso não significa nada. Para nós, físicos convictos, a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão, embora persistente': É uma visão de objetividade impessoal suficiente para tornar menos amargo, pelo menos para Einstein, um dos pensamentos mais desagradáveis: o pensamento de nossa própria morte pessoal. A impassibilidade de Einstein nos lembra, em sua transcendência, a morte de Sócrates, que tanto inspirou Platão e, através de Platão, toda a civilização ocidental. Trata-se de realismo científico levado a alturas heróicas. O físico que discutiu o sentido do tempo em suas caminhadas diárias com o lógico estava morrendo, e sabia disso. Gõdel, não menos que Einstein, acreditava que o tempo é bem diferente do que parece para nós. Sua personalidade pode não ter sido do tipo que permitisse usar sua visão do tempo para superar os temores- reais e imaginários- que atormentavam sua existência mortal, mas talvez essa visão tenha oferecido algum grau de consolo. Seu próprio trabalho em teoria da relatividade forneceu-lhe um modelo do tempo de que parece ter gostado profundamente, por se harmonizar com a própria essência do homem, à semelhança de sua adoção do platonismo. Gõdel, é claro, tinha um antigo interesse em física. Ele ingressara na Universidade de Viena pretendendo estudar física, o que fez nos primeiros dois ou três anos de estudante, antes de mudar para a matemática. Seu relacionamento com Einstein reavivou o antigo interesse em física, e a certa altura Gõdel começou a refletir sobre a teoria da relatividade. 214

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Ele propôs um modelo totalmente original que satisfazia as equações de campo de Einstein da relatividade geral, um modelo tão no estilo de Alice no País das Maravilhas como todas as suas outras realizações. No modelo de Gõdel, o tempo é cíclico. Além de todos os eventos estarem dispostos indiferentemente às distinções flexionadas entre passado, presente e futuro, ocorrem também repetições infinitas dos padrões, e o paralelismo entre espaço e tempo, implícito na teoria da relatividade, é estendido ainda mais. Escreveu Gõdel: Constata-se que as condições temporais nesses universos mostram [... ] padrões surpreendentes, fortalecendo o ponto de vista idealista (segundo o qual toda mudança é realmente uma ilusão não objetiva). Quer dizer, fazendose uma viagem de ida e volta numa nave espacial em uma curva suficientemente ampla, é possível nesses mundos viajar para qualquer região do passado, presente e futuro, e de volta, exatamente como é possível em outros mundos viajar para partes distantes do espaço.22

Gõdel publicou sua solução para as equações de Einstein no volume de Festschrift em homenagem ao septuagésimo aniversário de Einstein. * As observações de Einstein ao artigo, também publicadas no Festschrift, reconhecem que ele ficou "perturbado" com a possibilidade de linhas temporais em anel, que permitissem retornar ao passado, que Gõdel divertidamente expôs. A resposta de Einstein reconheceu a validade das deduções de Gõdel, mas também deu a entender que a solução de Gõdel poderia "ser excluída por motivos físicos".23

* Schilpp havia abordado Gõdel pela primeira vez em 1946 para que contribuísse com um ensaio naquele Festschrift em homenagem a Einstein. Gõdel imediatamente concordou, mas a entrega do artigo definitivo sofreria muitos adiamentos. Schilpp esperava ter seu volume pronto para o septuagésimo aniversário de Einstein (14 de março de 1949). Gõdel só terminou seu artigo um mês antes e mesmo então não o entregou. Schilpp fez Gõdel concordar em presentear Einstein com o artigo na festa de aniversário de gala oferecida a ele no Princeton Inn em 19 de março. Pouco depois, Schilpp recebeu ·uma cópia do artigo. 215

INCOMPLETUDE

Não está claro quanto de seu trabalho cosmológico Gõdel compartilhara com seu parceiro diário de caminhadas antes de entregar os resultados em seu septuagésimo aniversário, mas a reação de Einstein ao artigo sugere que Gõdel compartilhou pouca coisa. Os anéis de tempo fechados de Gõdel, que permitiam, ao menos teoricamente, que se retornasse ao passado, foram aceitos por Einstein como formalmente possíveis, no sentido de que Gõdel mostrara que esse modelo do tempo soluciona as equações de campo de Einstein. Mas, como físico e um homem de bom senso, Einstein preferia que suas equações de campo excluíssem uma possibilidade tão no estilo de Alice no País das Maravilhas como os anéis de tempo. Mas o modelo do tempo cíclico parece ter agradado a Gõdel. Será que Gõdel gostou da idéia de poder retroceder e viver sua vida novamente? Será, como o amigo Einstein, que extraiu algum tipo de consolo de sua contemplação da natureza real do tempo, diferente da finalidade unidirecional de nossa experiência dele? Quem sabe? A opacidade do lógico prevalece. Entretanto, existe um fato interessante que talvez permita uma olhadela por trás da opacidade. Gõdel levou sua solução extraordinária das equações de Einstein tão a sério que desceu, provavelmente pela única vez na vida, das altas esferas da Razão Pura para tentar adquirir dados empíricos (!) reais em apoio ao seu modelo de anel fechado do tempo. John Archibald Wheeler e Kip Thorrte, dois dos físicos mais proeminentes naquela época, que haviam colaborado (junto com Charles Misner) num maravilhoso livro sobre gravitação, foram rigorosamente questionados por Gõdel, no início da década de 1970, a respeito de terem achado algum indício a favor, ou contra, um sentido de rotação preferencial das galáxias. Gõdel deixou claro o desapontamento, relatou Wheeler, quando eles confessaram que simplesmente não examinaram a questão: Constatamos que ele próprio, como um passo preliminar para obter alguns indícios, havia apanhado o grande atlas das galáxias de Hubble. Gõdel, que 216

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

você imagina como o matemático dos matemáticos, pegara uma régua, obtivera o ângulo, calculara uma estatística daqueles números e concluíra que, dentro da margem de erro estatística, não existia um sentido de rotação preferencial. [... ] Cerca de um ano após nossa visita a Gõdel, eu estava no fim do corredor aqui, no escritório de Jim Peebles [um astrofísico proeminente de Princeton] conversando sobre cosmologia, quando um estudante entrou e atirou na mesa um calhamaço. "Aqui está, professor Peebles!" Então eu disse para ele: "O que é isto?': Ele respondeu: "É minha tese". "Sobre o quê?" "É sobre a possível existência de um sentido de rotação preferencial nas galáxias:' "Que maravilha", disse eu, "Gõdel ficará muito contente:' "Quem é Gõdel?" "Veja bem': respondi, "se você o chamar de o maior lógico desde Aristóteles, ainda será pouco." "Você está brincando?" "Não, não estou." "Em que país ele vive?" "Bem aqui em Princeton", respondi. Então peguei o telefone e liguei para Gõdel, encontrei-o em casa e contei sobre aquilo. Logo suas perguntas chegaram num ponto em que eu não conseguia responder. Passei o fone para o estudante, e logo elas chegaram ao ponto em que ele não conseguiu responder. Ele passou o fone para Peebles, e quando Peebles enfim desligou, disse: "Puxa, deveríamos ter conversado com Gõdel antes de realizar o trabalho". 24

Quando Gõdel apresentou suas idéias sobre relatividade no Instituto, o que ocorreu vários anos antes das conversas com Wheeler, Thorne e Peebles, os físicos presentes se admiraram com o acerto com que o lógico matemático captara as sutilezas da teoria física. Mas claro que este tivera o privilégio de discutir as complexidades da teoria com o próprio teórico - ainda que o teórico confessasse que, no final, só ia ao escritório para ter o privilégio de voltar andando para casa diariamente com o lógico, as duas grandes mentes do século xx capazes de compartilhar, ao menos por alguns momentos, seu exílio intelectual. É tentador associar a atração de Gõdel por esses anéis de tempo fechados com uma observação passageira de Hao Wang, que indica coino Gõdel considerara sua vida incompleta:

217

INCOMPLETUDE

Em filosofia, Gõdel nunca chegou ao que procurava: uma visão de mundo nova, seus componentes básicos e as regras de sua composição. Vários filósofos, em particular Platão e Descartes, alegam ter tido, em certos momentos da vida, uma visão intuitiva desse tipo, totalmente diferente da visão corriqueira domundo. 25

E, de novo, Wang fez referência a uma experiência transcendental que Gõdel aguardara a vida inteira: Ele também procurou (sem conseguir obter) uma epifania (uma revelação ou iluminação súbita) que lhe permitisse ver o mundo a uma luz diferente. (Em suas con~ersas comigo, ele disse várias vezes que Platão, Descartes e Husserl tiveram tal experiência.)26

A filosofia inspirara a formidável carreira matemática de Kurt Gõdel desde o início. Ela constituiu seu foco desde o primeiro curso de história da filosofia na Universidade de Viena, quando Gõdel, como tantos apaixonados pela abstração, descobriu em Platão uma visão da realidade que correspondia ao seu amor intelectual. Dado que a filosofia havia sido sua finalidade, foi também à luz da filosofia que ele julgou sua vida, finalmente, incompleta. Já não acreditando na possibilidade de fazer os outros mudarem de idéia, nem mesmo mediante uma prova a priori, aguardou a epifania que faria com que ele mudasse. Com a sensação de sua própria incompletude- e talvez também com o terror da morte preservado de uma criança que acredita que seu coração de oito anos foi fatalmente comprometido-, ele foi atraído para seu modelo de uma vida eterna de tempo cíclico, um modelo que solapa a realidade da morte pessoal. Se o tempo volta sobre si mesmo, como Gõdel procurou comprovar empiricamente nos últimos atormentados anos de vida, então um Gõdel jovem voltará a sentar-se numa sala de aula da Universidade de Viena, transfigurado pela idéia das verdades infinitas e eternas que jazem suspensas, além de quaisquer imperfeições humanas, das confu218

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

sões, turvações e distorções que o fazem indagar como as pessoas chegam a se entender umas às outras. E ele pensará em usar a linguagem da matemática de uma maneira que ninguém pensou em usar antes, de modo que fale sobre si própria - com precisão matemática, para que todos entendam. Ele sonhará, silenciosa e audazmente, em provar um teorema matemático diferente de tudo que já se viu, um teorema matemático que iluminará a natureza da própria matemática. E depois porá suas mãos à obra.

219

NOTAS

INTRODUÇÃO [pp. 11-43] Citação sem nomear o autor em "Bad days on Mount Olympus: the Big shoot-out in Princeton': Atlantic Monthly, fevereiro de 1974. 2. Helen Dukas, secretária de Einstein, em carta a C. Seelig, conforme citado em Abraham Pais, "Subtle is the Lord ..." : The science and the life·of Albert Einstein. Oxford: Oxford University Press, 1982, p. 473. 3. Harry Woolf ( org.), Some strangeness ofproportion: A centennial sy mposium to celebra te the achievements of Albert Einstein. Reading, MA.: Addison-Wesley, 1980, p. 485. 4. J. Van Heijenoort, The encyclopedia ofphilosophy, vol. 3, Paul Edwards ( org.). Nova York: Macmillan Publishing Co., Inc. e Free Pre_ss, 1967, pp. 348-9. 5. David Foster Wallace, ''Approaching infinity': Boston Globe, 12 de dezembro de 2003. 6. Pau.IA. Schilpp,AlbertEinstein, philosopher-scientist. Nova York: Tudor, 1949, p. 684. 7. Woolf, op. cit. a. Armand Borel, "The School of Mathematics at the Institute for Advanced Study': em A century of mathematics in America, Peter Duren (org.). Providence, RI: American Mathematical Society, 1989, p. 130. 9. Citado em Ed Regis, Who got Einstein's office? Eccentricity and genius at the Institute for Advanced Study. Cambridge, MA: Perseus, 1987, p. 58. Também confirmei a história com John Bahcall. 1o. Conversa particular, maio de 2002. 11 . Relatado para mim por Paul Benacerraf, que soube da conversa por Chomsky. 1.

221

INCOMPLETUDE

12. Em

carta a Bruno Kreisky (secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros da Áustria) datada de 25 de outubro de 1965. 13. Hao Wang, Rejlections on Kurt Godel. Cambridge, MA: MIT Press, 1987, p. 2. 14. Michael Frayn, Copenhague. Nova York: Anchor Books, 1998, pp. 71-2. 15. William Barrett, Irrational man: A study in existentialist philosophy. Nova York: Anchor Books, 1962; 1990, p. 39. 16. Schilpp, op. cit., p. 5.

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS [pp. 45-101] Reimpresso em Godel remembered: Salzburg 10-12 July 1983, P. Weingartner e L. Schmetterer (orgs.). Nápoles: Bibiopolis, 1987. 2. John Dawson,Logical dilemmas: The life and work ofKurtGodel. Wellesley, MA: A K Peters LTD, 1997, p. 4. 3. Dawson, 1997, op. cit., p. 15. 4. Wang, 1987, op. cit., p.41. 5. Ver também a excelente biografia de Gõdel, já citada, escrita por Dawson, 1997. 6. Por exemplo, o artigo para o Festschrift de Rudolf Carnap, que ele havia prometido a P. A. Schilpp em 1953. Gõdel produziu nada menos que seis versões da "breve nota", que acabou se tornando um extenso manuscrito. Ele fez sucessivas revisões até 1959, quando enfim escreveu para Schilpp dando o assunto por encerrado. Duas das seis versões foram publicadas postumamente sob o título "A matemática é a sintaxe da linguagem?': no volume III das Collected works de Gõdel. 7. Solomon Feferman expressou esse aspecto duplo da personalidade de Gõdel nestes termos: "O que acho impressionante aqui é o contraste, por um lado, entre a profundidade das convicções de Gõdel subjacentes ao seu trabalho, combinada com a certeza no insight que leva ao núcleo de cada problema, e, por outro lado, a rédea curta que ele impôs à expressão de seus pensamentos verdadeiros". Ver Solomon Feferman, "Kurt Gõdel: conviction and caution", em Godel's theorem in focus, S. G. Shanker (org.). Londres: Croom Helm, 1988, p. 111. 8. Ver Rebecca Goldstein, "Writers on writing: on the wings of enchantment", The New York Times, 19 de dezembro de 2002. 9. Symposion, 21 ld-21 le. Tradução de William S. Cobb, State UniversityofNewYork, 1993. 10. Wang, 1987, op. cit., p. 22. 11 . Jaakko Hintikka, On Godel. Belmont, cA: Wadsworth Thomson Learning, 2000, p. 1. 12. Citado em Alan S. Janik e Hans Veigl, Wittgenstein in Vienna: A biographical excursion through the city and its history. Nova York: Springer, 1998, p. 88. 13. Ver em David Edmonds John Edinow, Wittgenstein 's poker: Th e story of a tenminute argument between two great philosophers. Nova York: HarperCollins, 2001. Uma discussão viva da exclusão de Popper do Círculo de Viena e do antagonismo a Wittgenstein subjacente. 1.

e

222

NOTAS

14. Edmonds e Edinow, op.

cit., p. 163. próprio reconheceu, em carta ao matemático Menger, que havia contribuído (supostamente por sua aversão a abordá-lo) para o mal-entendido: "Em conseqüência do cansaço freqüente, quase nunca respondo às cartas antes de uma semana. Mas nesse caso houve uma razão especial, a saber, que sempre me inibo em escrever sobre minha relação com o Círculo de Viena porque nunca fui um positivista lógico conforme o termo costuma ser entendido e explicado no [manifesto de] 1929. Por outro lado, algumas publicações (provavelmente em parte por minha própria culpa) dão a impressão de que fui'~ Citado em Wang 1987, op. cit., p. 49. 16. Rudolf Carnap, "Intellectual autobiography", em The philosophy of Rudolf Carnap , P.A. Schilpp (org.). La Salle, rL: Open Court, 1963. 17. Para uma discussão fascinante da vida e da obra de Boltzmann, ver David Lindley, Boltzmann's atam: The great debate that launched a revolution in physics. Nova York: Free Press, 2001. 18. Herbert Feigl, "The Wiener Kreis in America", em The intellectual migration: Europe andAmerica, 1930-1960, Donald Fleming e Bernard Bailyn (orgs.). Cambridge, MA: Harvard University Press, 1969, p. 635. 19. Karl Menger, Reminiscences ofthe Vienna Circle and the Mathematical Colloquia, Louise Golland, Brian McGuinness e Abe Sklar (orgs.). Dordrecht: Kluwer, 1994, p. 63. 20. Menger, op. cit., p. 64. 21 . Menger, op. cit., p. 65. 22. Menger, op. cit., pp. 61-2. 23. Feigl, op. cit., p. 630. 24. Feigl, op. cit., p. 652. 25. Menger, op. cit., p. 55. 26. Ray Monk, Ludwig Wittgenstein: The duty ofgenius. Nova York: Penguin, 1990, p. 72. 27. Bertrand Russell para Ottoline Morrel, 2 7 de maio de 1913. 28. Allan Janik e Stephan Toulmin, Wittgenstein's Vienna. Nova York: Simon and Schuster, 1973,p.27. 29. Esse é um tema dominante em Janik e Toulmin, op. cit. "Aqueles de nós que comparecíamos às suas aulas [na Universidade de Cambridge] ainda nos achávamos vendo suas idéias, seus métodos de argumentar e seus próprios temas de discussão como algo totalmente original e próprio dele. [... ] Se havia um abismo intelectual entre ele e nós, não era porque seus métodos filosóficos, estilo de exposição e tema fossem (como supúnhamos) singulares e ímpares. Era um sinal, isso sim, de um choque de culturas: o choque entre um pensador vienense cujos problemas intelectuais e atitudes pessoais haviam se formado no ambiente neokantiano do pré-1914, em que a lógica e a ética estavam essencialmente ligadas entre si e com a crítica à linguagem (Sprachkritik), e um público de estudantes cujas questões filosóficas haviam sido moldadas pelo empirismo[ ... ] neo-humiano de Moore, Russell e seus colegas" (pp. 21-2). 30. Monk, op. cit. , p. 20. 15. Ele

223

INCOMPLETUDE

"Os pensamentos suicidas recorrentes de Wittgenstein entre 1903 e 1912, e o fato de que esses pensamentos só diminuíram depois do reconhecimento de sua genialidade por Russell, indicam que ele aceitou esse imperativo (de Weininger) em todo o seu rigor assustador." Monk, op. cit., p. 25. 32. Jaakko Hintikka, op. cit., p. 3. Hintikka fala aqui de modo mais amplo, não só da lógica; ele está falando de toda a matemática. 33. Remarks on the foundations of mathematics. Cambridge, MA: MIT Press, 1967, p. 11 O. 34. Ele escreve, por exemplo: "A maldição da invasão da matemática pela lógica matemática é que agora qualquer proposição pode ser representada em simbolismo matemático, e isso faz com que nos sintamos obrigados a entendê-la. Embora esse método de escrita não passe de uma tradução obscura de prosa banal". Wittgenstein, op. cit.,p.155. 35. Monk, op. cit., p. 243. 36. Eckehart Kõhler, "Gõdel and the Vienna Circle: platonism versus formalism", em History oflogic, methodology, and philosophy ofscience, seção 13. Vienna Institute for Advanced Studies. Mais tarde citado em S: G. Shanker (org.), Godel's theorem in focus. Londres: Croom Helm, 1988. 37. Citado em Janik e Veigl, op. cit., p. 63. 38. Monk, op. cit., p. 284. 39. Feigl, op. cit., p. 638. 40. Menger, op. cit., p. 66. 41.Ibid. 42. Carta a Ludwigvon Ficker, citada em Monk, op. cit., p. 178. A carta está sem data, mas Monk informa que quase certamente foi escrita em 19 de novembro de 1919. 43. Menger, op. cit., p. 201. 44. Feigl, op. cit., p. 640. 45. A logical journey from Godel to philosophy. Cambridge, MA: MIT Press, 1996. 46. Bertrand Russell para Ottoline Morrell, 23 de abril de 1912. 47. Fania Pascal, "Wittgenstein: a personal memoir ", em Recollections ofWittgenstein, R. Rhees (org.). Oxford: Oxford Press, 1984, pp. 28-9. 48. Menger, op. cit., p. 230. 49. A passagem está em Observações sobre os fundamentos da matemática, apêndice 1, p. 19: "Você diz: [...],portanto Pé verdadeiro e improvável. Isso presumivelmente significa: Portanto P. Tudo bem para mim - mas com que finalidade você escreve essa 'afirmação'? (É como se alguém tivesse extraído de certos princípios sobre for mas naturais e estilo arquitetônico a idéia de que no monte Everest, onde ninguém consegue viver, caberia um chalé no estilo barroco.) Como tornar a verdade da afirmação plausível para mim, se ela não tem nenhuma utilidade a não ser esses pequenos truques lógicos?". 50. Menger, op. cit.,p. 231. 51. Georg Kreisl, "Wittgenstein's 'Remarks on the foundations of mathematics"'. British Journal for the Philosophy of Science, rv, 1958, pp. 143-4. 31.

224

NOTAS

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS [pp. 102-23] 1.

2.

3. 4. 5.

David Hilbert, "Mathematische Probleme: Vortrag, gehalten auf dem internationale Mathematischer-Kongress zu Paris 1900". Nachrichten von der Koniglichen Gesellschaft der Wissenschaften zu Gottingen, pp. 253-97. Tradução inglesa em Felix Brower (org.), "Mathematical developments arising from the Hilbert problems", Proceedings of Symposia in Pure Mathematics xxvm, partes 1 e 2. Providence, RI: American Mathematical Society, 1976. Gottlob Frege, Begriffsschr~ft, eine der arithmetischen nachgebildete Formelsprache des reinen Denkens. Halle: Nebert, 1879. Tradução inglesa em Jean van Heijenoort (org.), From Frege to Godel: a source book in mathematical logic, 1879-1931. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1967, p. 279. Jean van Heijenoort ( org.), op. cit., p. 242. Citado em John de Pillis e Nick Rose, Mathematical maxims and minims. Raleigh, NC, 1988. David Hilbert, "On the infinite", em Philosophy of mathematics, Paul Benacerraf e Hilary Putnam ( orgs.). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1964, p. 141 . Tradução inglesa de uma palestra proferida em 4 de junho de 1925 num congresso da Sociedade Matemática da Vestfália, em Münster, em homenagem a Karl Weierstrass. Traduzido por Erna Putnam e Geral d J. Massey deMathematischeAnnalen (Berlim), nº 95, 1925,pp.161-90.

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE [pp. 124-73] Monk, op. cit., p. 295. Hao Wang, From mathematics to philosophy. Nova York: Humanities Press, 1974, pp. 8-9. 3. O relato de Reichenbach foi publicado em Die Naturwissenschaften , vol. 18 ( 1930), pp. 1093-4. 4. John Dawson, "The reception of Gõdel's incompleteness theorems", em Gode l's theorem in focus, S. G. Shanker (org.). Londres: Croom Helm, 1988, p. 91, nota de rodapé 2. 5. Ver Dawson ( 1988) para uma discussão minuciosa da reação, ou falta inicial dela, ao primeiro teorema da incompletude de Gõdel. 6. Kuhn, op. cit., p. 64. 7. Ver Hintikka, op. cit., p 33. a. Hilbert 1964, op. cit., p. 151. 9. "Über eine bisher noch nicht benutzte Erweiterung des finiten Standpunktes", Dialectica 12 (1958),pp. 280-7. 1o. Carta a Constance Rei d Bernays, 3 de agosto de 1966; citado em Dawson 1997, p. 72. 11. Wittgenstein 1967, op. cit., p. 158. 12. Philosophical remarks, p. 296. 13. Remarks on the foundations of mathematics v, p. 16. 1.

2.

225

INCOMPLETUDE

14. Tractatus,

6522.

15. Stephen C. Kleene, "Gõdel's impression

on students oflogic in the 1930s", em Godel remembered, Paul Weingartner e Leopold Schmetterer (orgs.). Naples: Bibliopolis, 1987,p. 52. 16. "Wittgenstein's lectures on the foundations of mathematics: Cambridge 1939", em Notes of R. G. Bosanquet, Norman Malcolm, Rush Rhees, Yorick Smythies, Cora Diamond (org.) Ithaca, NY: Cornell University Press, 1976, palestra xx1, pp. 206-7. 17. J. R. Lucas, "Minds, machines, and Godel':Philosophy, xxxv1 (1961), p. 112. 18. Roger Penrose, Shadows of the mind: A search for the missing science of consciousness. Oxford: Oxford University Press, 1994, pp. 64-5. 19. Wang, 1974, op. cit., p. 324. 20. Shervert H. Frazier e Arthur C. Carr, Introduction to psychopathology. Jason Aronson, 1983, p. 106. 21 . James W. Anderson, professor adjunto de psicologia clínica, Northwestern University, comunicação pessoal, 7 de outubro de 2003.

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL [pp. 174-219] Conversa particular com Morton White, maio de 2002. Wang1987,op.cit.,p.9. 3. Wang 1987, op. cit., p. 29. 4. O original saiu noAmerican MathematicalMonthly 54 (1947), pp. 515-25. O original havia sido publicado antes de Paul Cohen provar que a hipótese do continuum não podia ser deduzida dos axiomas da teoria dos conjuntos. 5. Menger, op. cit., p. 205. 6. Stanislaw M. Ulam, Adventures of a mathematician. Nova York: Charles Scribner's Sons, 1976, p. 80. Como observa Dawson (Dawson 197, p. 302, nota 462), "Vale a pena observar que o próprio Gõdel parece nunca ter reclamado de sua posição, seja em público ou em observações privadas ou correspondência". 7. Wang 1988, op. cit., p. 4 7, nota de rodapé 7. 8. Menger, op. cit., p. 123. 9. Dawson 1997, op. cit., p. 90. 10. Menger, op. cit., p. 124. 11 . Dawson, 1977,op. cit.,p.148. 12. Dawson, 1997, op. cit., p. 244. 13. Morton Gabriel White,A philosopher's story. University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 1999, p. 303. 14. Menger, op. cit., p. 226. 15. Menger, op. cit., p. 19. 16. Dawson, 1997, op. cit., pp. 249-50. 17. Documentos de Morgenstern, Perkins Memorial Library, Duke University, pasta "Gõdel, Kurt, 1974-1977". 1.

2.

226

NOTAS

18. Wang

1987, op. cit., p. 133. Ibid. 20. Ibid. 21. "The time we thought we knew", Brian Greene, editorial opinativo, The New York Times, 1º de janeiro de 2004. 22. Kurt Gõdel, ''A remark about the relationship between relativity theory and idealistic philosophy", em Albert Einstein philosopher scientist, org. Paul Arthur Schilpp. Nova York: MJF Books,1949, p. 560. 23. Einstein, op. cit., pp. 687-8. 24. Jeremy Bernstein, Quantum profiles. Princeton, JN: Princeton University Press, 1991,pp.140-l. 25. Wang 1987, op. cit., p. 46. 26. Wang 1987, op. cit.,_p. 196. 19.

227

SUGESTÕES DE LEITURA

Como muitos antes e depois de mim, minha primeira exposição substantiva aos teoremas da incompletude de Godel não se deu através do estudo do próprio artigo famoso de 1931, mas da leitura, quando estudante de graduação, do célebre Godel's proof, de Ernest Nagel e James R. Newman (Nova York: NewYork University Press, 1968). Trata-se de uma exposição popular que consegue detalhar até certo ponto a substância da prova. Meu mundo se abalou. Ao relê-lo após todos esses anos, voltei a me impressionar. É um livrinho maravilhoso, de certa forma um clássico. O livro fininho (setenta páginas) de Jaakko Hintikka, On Godel (Belmont, cA: Wadsworth Thomson Learning, 2000), também é uma apresentação clara e concisa da prova de Godel para, o não-especialista. Como o mais extenso Godel'sproof, o livro de Hintikka não requer conhecimentos prévios de lógica. O autor também tem bom senso de humor. No tocante à vida do lógico, Logical dilemmas: The life and work of Kurt Godel (Wellesley, MA: A K Peters, 1997), de John Dawson, é definitivo. Por ser um lógico e também o arquivista de Godel, cuja esposa aprendeu a traduzir a taquigrafia de Godel, Dawson esteve numa posi228

SUGESTÕES DE LEITURA

ção incomparável para apresentar a vida de Gõdel. Fui informada pelo matemático Armand Borel, do instituto, que o legado literário de Gõdel, que havia sido doado para o Instituto de Estudos Avançados pela viúva de Gõdel, jazia num caos total, empilhado desordenadamente em caixas velhas, até que "um jovem" (Dawson) se ofereceu para pôr tudo em ordem. "Ele fez um bom trabalho, me contaram." Bota bom nisso! John Dawson também escreveu dois artigos sobre Gõdel que são acessíveis e interessantes: "Kurt Gõdel in sharper focus" e "The reception of Gõdel's incompleteness theorems". Ambos foram republicados em Godel's theorem in focus, organizado por Stuart Shanker, junto com outros ensaios interessantes, inclusive "Kurt Gõdel: conviction and caution", de Solomon Feferman. Hao Wang produziu três livros um tanto excêntricos, mas intrigantes, com base em suas sondagens da mente de Gõdel: From mathematics to philosophy (Nova York: Humanities Press, 1974), Reflections on KurtGodel (Cambridge, MA: MIT Press, 1987) eA logical journey (Cambridge, MA: MIT Press, 1996). Os livros narram conversas que Wang teve com Gõdel, entremeadas com a história da vida do lógico e as próprias visões de Wang sobre os temas que ele e Gõdel discutiram. O que falta em estrutura, eles compensam em conteúdo. Há vários estudos biográficos sobre Gõdel, escritos por quem o conheceu originalmente em Viena, e eles são fascinantes e de certo modo tocantes. Em primeiro lugar, vem Georg Kreisl, "Kurt Gõdel: 1906-1978 ", Biographical memoirs offellows of the Royal Society, vol. 26 (1980), pp. 148-224. Kreisl, um eminente lógico matemático, está numa posição singular, tendo conhecido bem Wittgenstein quando estudante (Kreisl) e, mais tarde, tendo travado conhecimento com Gõdel em Princeton. Karl Menger havia sido convidado, junto com Gõdel, a ingressar no Círculo de Viena, como alunos preferidos de Hans Hahn, e suas reminiscências em primeira mão de Gõdel são contadas em "Memories of Kurt Gõdel': em Reminiscences of the Vienna Circle and the Mathematical Colloquium, org. Louise Golland, Brian McGuinness eAbe Sklar (Dordrecht: Kluwer, 1994). Depois vem Olga 229

INCOMPLETUDE

Taussky-Todd, ela própria uma teórica dos números, que também conheceu Gõdel quando eram estudantes. Suas "Remembrances of Kurt Gõdel" estão em Godel remembered (Naples: Bibliopolis, 1987). Se o leitor estiver interessado em ver como um polímata contemporâneo aplica os teoremas de Gõdel ao seu próprio pensamento científico criativo, deve ler Roger Penrose, The emperor's new mind: concerning computers, minds, and the laws of physics (Nova York: Penguin, 1989) [ed. brasileiraA mentenovadorei,RiodeJaneiro:Campus, 1993] e seu Shadows of the mind: A search for the missing science of consciousness (Oxford: Oxford University Press, 1994). Assim como Gõdel, Penrose é um platônico matemático convicto; ele interpreta os teoremas da incompletude exatamente como Gõdel fazia. Discute ainda outros pontos fascinantes da matemática - inclusive as contribuições de Turing à obra iniciada por Gõdel, o conjunto de Mandelbrot e o próprio trabalho de Penrose sobre o ladrilhamento do plano - e afirma que apontam na direção do platonismo. O argumento geral de Penrose é que o conhecimento matemático, o fato surpreendente de que o temos, é indício de que as leis da física são de um caráter fundamentalmente diferente do que imaginamos até agora. O livro de Hofstadter ganhador do Prêmio Pulitzer, Godel, Escher, Bach: the eternal golden braid (Nova York: Basic Books, 1974 [ed. brasileira Godel, Escher, Bach: Um entrelaçamento de gênios brilhantes, Brasília: Editora da UnB, 2000) é uma incursão animada pela auto-referencialidade. Hofstadter entrelaça magnificamente idéias da lógica, arte e música, como promete o título. Quando, ao ser indagada em que vinha trabalhando nos últimos anos, eu respondia "Gõdel': com freqüência recebia em resposta um olhar vago. Aí eu mencionava o título do best-seller de Hofstadter, e o olhar inexpressivo dava lugar a um sorriso e um "Oh, sim!': Finalmente, existem os textos do próprio Gõdel, seus poucos arti- · gos publicados e as muitas obras que deixou inéditas, em Collected works, org. Solomon Feferman et al. (Oxford: Oxford University Press, 1986-). Até agora saíram três volumes.

230

AGRADECIMENTOS

Se falta alguma coisa a Tina Bennett para ser a agente literária perfeita, é algo que não consegui descobrir. O projeto atual serviu para revelar aspectos novos das formas de Tina apoiar irrestritamente seus escritores. Sou extremamente grata às seguintes pessoas que compartilharam comigo suas lembranças de Kurt Gõdel: John Bahcall, Paul Benacerraf, Armand Borel, Thomas Nagel, Morton White. Todos me dedicaram um tempo enorme. Simon Kochen, além de falar longas horas comigo, também leu generosamente meus originais, detectando alguns erros técnicos, pelo que sou profundamente grata, e respondendo a consultas adicionais por e-mail. Berel Lang também leu os originais, e seus comentários, também, foram profundos, substantivos e úteis. Agradeço a John Dawson não apenas pelo trabalho hercúleo que realizou como arquivista de Gõdel, que possibilitou o trabalho de todos os estudiosos subseqüentes, mas também às suas respostas imediatas a todas as perguntas que surgiram. Como sempre, o físico-filósofo Sheldon Goldstein teve idéias que foram preciosas. Ele, mais que ninguém, me ajudou a retornar à lógica 231

INCOMPLETUDE

· matemática. Aposto que não há ninguém neste mundo capaz como ele de lembrar alguém da beleza e elegância do pensamento abstrato. Steven Pinker generosamente leu alguns capítulos ainda incipientes, quando eu estava treinando a "escrita técnica popular", e seus comentários e encorajamentos me deram a maior força. E, quando quase desisti, Yael Goldstein calmamente me fez voltar ao teclado, oferecendo o tipo de conselhos sábios e críticas e orientação substantivas sem os quais este livro não teria sido escrito. Por isso, dedico este livro a ela, com gratidão, amor e admiração.

232

ÍNDICE REMISSIVO

"A matemática é a sintaxe da linguagem?" (Gõdel), 222 Adler, Max, 62 álgebra, 69,112,202 algoritmos, 112,145, 166-7, 169 "Algumas observações sobre a teoria dos conjuntos axiomatizada" (Skolem), 130 Alliluieva, Svetlana, 202 Alt, Rudolf von, 59 Altenberg, Peter, 61 análise não-standard, 202 Analítica anterior (Aristóteles), 47 Anselmo, santo, 176 "argumento diagonal': 117 Aristóteles, 26,41,47, 127,173,177,217 aritmética: completude versus consistência, 56, 114-22, 130-1, 137~1412, 148, 153-8, 178, 186; prova de Gõdel da consistência, 178; vertambém números

aritmetização de Gõdel, 56, 132, 137, 139,141, 144-5,149,151-3 Artin, Emil, 206 Atlantic Monthly, 202 Autobiografia (Russell) , 98 auto-referenciais, afirmações, 41, 42, 56,76,139-41,165 "axioma da escolha", 189 Aydelotte, Frank, 193, 199 Ayer,Alfred Jules, 74, 91 , 180 Bahcall, John, 26, 221 Bambergér, Louis, 12-4, 199 Bárbara ou compaixão (Werfel), 61 Barrett, William, 32,222 Beethoven, Ludwigvan, 81~ 95, 96 Bellah, Robert, 203, 204, 205 Benacerraf, Paul, 17, 94,181,183,194, 221,225 Berg,Alban, 59,61 Bergmann, Gustav, 190,191 233

INCOMPLETUDE

Bernays,Paul,159,178,179,225 Besso, Michele, 214 Bick, Auguste, 173 Blackwell, Kenneth, 98 Bohr,Niels,31-3,35,37,43, 180 Boltzmann, Ludwig, 68, 223 Bolyai, Farkas, 11 O Bolyai, János, 11 O bomba atômica, 18,199 Borel,Armand, 26, 28, 198, 20 l, 204,221 Born, Max, 3 7 Borsuk, Karol, 200 "Bourbaki, Nicolas", 203 Branca de Neve (filme), 211 Brouwer, Luitzen, 121 Bundy, McGeorge, 203 cálculo dos predicados, 126, 130, 186, 187 Cantor, Georg, 78, 117 Cantor, hipótese do continuum de, 94, 117,118,182 Cantor,paradoxo de, 79,121 Carnap, Rudolf, 68-9, 88-9, 91, 125, 134-5,179,191,214,222-3 Chaitin, G. J., 140 Chomsky, Noam, 27,221 ciência: metodologia, 25-6, 64; pura, 14, 22-3, 72, 83-4; revoluções na, 18, 136, 194; subjetividade na, 31, 32,33,71 Círculo de Viena, 37, 62, 64, 67, 70-5, 87 8,90-2,94,95,97-8, 101,115,124, 134,163,180-1,185,205,222-3 Cocteau, Jean, 64 cognição,21-3,27,32,33,169-73,l77 Cohen, Paul, 118,182,189,226 computabilidade, 166 computadores, 17,22, 112,168, 170-1 234

Comte, Auguste, 71 Concerto para a mão esquerda (Ravel), 76 conjectura de Goldbach, 73, 131, 183 conjunto universal, 78, 121 Constituição Americana, 195 Contributions to the analysis of sensation (Mach), 71 Copenhague (Frayn), 31-2 curvas complexas, 200 Darwin, Charles, 168 Dawson,John,46,49-50, 186,190,195, 222,225-6 decidibilidade, 166 Descartes, René, 23, 116,218 Deus, existência de, 65-6, 176, 177 Dukas, Helen, 17, 197, 221 Edmonds, David, 63, 222-3 Eidinow, John, 63 Einstein, Albert: antecedentes judaicos, 16; como cidadão norte-americano, 195; como exilado político, 29, 105; como físico, 25, 29 (ver também teoria da relatividade); como realista científico, 35-8, 213-4; fotografias de, 19,212; Gõdel comparado com, 29-31,34, 37,40-1, 95, 164,208,211; interesse pela matemática, 25, 29, 54; isolamento intelectual, 29-32, 34-7, 40-1; lendas sobre, 26, 34-5; morte, 52, 196-8, 206, 214; no Instituto de Estudos Avançados, 12, 16-7, 40, 196-9; notas autobiográficas, 36; relacionamento de Gõdel com, 17, 18,19,25-37,40-l,43,179,184,1958,200,206,212-6;reputação, 16-7, 29,32, 186

ÍNDICE REMISSIVO

Eisenhower, Dwight D., 26

Elementos (Euclides), 110 empirismo, 65,223

Encyclopedia ofphilosophy, 20, 22 Epimênides, 140 epistemologia, 21, 23-5

Equivalents ofthe axiom ofchoice (Rubin e Rubin), 189

Estrutura das revoluções científicas, A (Kuhn), 136 Euclides,108,109,116,157,189 evolução, 27, 168 existencialismo, 115, 159 experimentos de pensamento, 55-6

Fackel, Die, 60 Feferman, Solomon, 222 Feigl, Herbert, 70-2, 89, 92, 93, 115, 135,180,191,223-4 Fermat, Pierre de, 131 Fermat, último teorema, 131 filosofia, 17, 20, 24, 32, 39, 50, 52, 58, 60, 62,64,68, 74,80,83,85-7,92,96, 98,99, 100,114,164,170, 178-81, 194, 218 física, 16, 17, 24-5, 29, 31, 34.,9, 49-50, 55,58,68,72,74,103,124,171,180, 182,192,199,213,214,217 Flexner,Abraham, 12-7,28, 184, 192-3, 199,205 formalismo, 20, 39, 113, 115-6, 118, 120,122,125,136-7,141,158,1667,184 Forman, Philip, 196 fórmulas, 72,111,120,122,142, 144-7, 151,153 Francisco José, imperador da Áustria, 59 Frayn, Michael, 31, 222

Frege, Gottlob, 47, 68-9, 77, 81, 94, 101, 109,122,183,225 Freud, Sigmund, 59- 60 From a logícal point ofview (Quine), 180 From mathematics to philosophy (Wang), 94,225 Fuld, sra. Felix:, 12-4, 28, 199-200, 212 "Fundamentos intuicionistas da matemática, Os" (Heyting), 125 Furtwangler, Phillip, 49, 52, 98, 173, 187 galáxias, rotação das, 216-7 Gauss, Carl Friedrich, 11 O Geertz, Clifford, 203 Gentzen, Gerhard, 156 geometria,52,62, 72,81, 107,109,111, 116, 120, 189 geometria não-euclidiana, 110 Gõdel, Adele Nimbursky (Porkert), 187-9,192-3,208,209

Godel, Escher, Bach: Um entrelaçamento de gênios brilhantes (Hofstadter), 23 Gõdel, Kurt: "axioma interessante", 17, 18,25,26,40, 198;ambição,25, 40, 43,51,54,100,158,164,187,217-8; antecedentes alemães, 45-9, 105; aparência física, 12, 178, 191-2; auto-inanição, 178, 208-9; casamento, 28,175, 188-9, 192-3,209; como cidadão norte-americano, 46, 195-6; como exilado político, ll -2,29,45,49,105,l84-6,l89-96; como lógico,, 17 -20, 26, 40-3, 48-50, 55,63-4,98, 117,177,184, 195-6, 198,201,21 7; como platônico, 3740,50,52-4,62-3, 73-4,88,93-5,98, 99,130,156,162,164, 179,181-4, 235

INCOMPLETUDE

204,214,218; conferências em Yale (1941), 179; correspondência, 28, 50-l, 94,98-9,162,190,196-8,211; dissertações de doutorado, 124, 126,129-30,134,157,186;I)ozente Privatdozent,nomeações, 132, 1856, 190-l;educação,25,28,30,43, 45, 48-50; encontro da autora com, 177-8, 202; falsamente tachado de judeu, 98, 185, 190-3; febre reumática,48, 192; fotografias, 19,47,212; infância, 45-9, 218; influências sobre, 49-50, 94, 97-8, 163; interesse pela física,29-30,49, 179, 2138; isolamento intelectual, 25-7, 302, 37-40, 51,179, 181-4, 198-209, 217-8; legado literário (Nachlass ), 50-2, 75, 98-9, 179, 195; lendas sobre,26-7,175,177-9,195,216-7; morte, 209-11, 218; na conferência de Kõnigsberg, 55-6, 124-6, 131-6, 165, 170, 184; na Universidade de Viena,25,28,30,43,45,49-50,5686,97, 124, 184-6,190-3, 214,218; nascimento, 45; no Círculo de Viena, 91-9, 115, 135, 163, 180-1, 191,198,223; no Instituto de Estudos Avançados, 12, 18, 19, 26-8, 40, 174,177-8,181,184,187,189,1934, 197-209; oposição ao positivismo lógico, 74, 92, 180-4, 198, 223; palestra Gibbs (1951), 171; palestras de Harvard, 181; paranóia, 26, 41 , 48,173,178,188,192, 202, 206-9; personalidade, 26-7, 41, 48,50,52 , 64,97, 188-94,222;problema cardíaco, 48, 192, 218 (ver teoremas da incompletude); publicações,29, 51, 94, 178-9, 181-3, 206, 236

215,222; questionário respondido, 51, 97-8, 163; reputação, 18-9, 29, 57,124, 174-9, 181, 185-7, 192-4, 207,210-l,217,226;reserva,49-51, 64, 92-3, 97-8, 115, 132-3, 164-5, 174-5, 177-9, 181; respeito pelas autoridades, 198-201, 204-5; revolução da matemática, 18-9, 32-3, 54,136,174, 183-7, 193-4;saúde fraca,48, 185, 192,208-9,218;serviço religioso em sua memória, 201, 210-1; tendências legalistas, 195, 196, 209-1; títulos honorários, 187, 194; visão da linguagem, 93, 133, 219 Gõdel, Marianne, 28, 45-7 Gõdel, Rudolf (irmão), 46-8 Gõdel, Rudolf (pai), 45-6, 188 Godel's proof(Nagel e Newman), 132 Goethe, Johann Wolfgang von, 49, 211 Goldbach, Christian, 73, 131 Gomperz, Heinrich, 50, 52, 62, 98 Gomperz, Theodore, 50 Grandjean, Burke D., 51-2, 94, 97,163 Grundgesetze der Arithmetic (Frege), 77 Grundlagen der Geometrie (Hilbert), 116 Hahn, Hans, 69, 70, 82, 93, 98, 132, 134, 186, 191 Hardy, G. H., 39, 40 Heidegger, Martin, 33 Heisenberg, Werner, 18, 31-6, 43,180 Hempel, Carl, 74, 180 Herzl, Theodore, 59 Heyting,Arend, 125 Hilbert,David,39,41, 101-2, 104, 1158, 120-3, 125, 129, 136-9, 156-9, 166-7,178-9,183-4, 225

ÍNDICE REM ISSIVO

Hintikka, Jaakko, 55-6, 83, 124, 222, 224-5 Hirshfeld, Leon, 190 "História da família Gõdel" (R. Gõdel), 46 História da filosofia ocidental (Russell), 86 Hitler,Adolf, 11,189,191 Hofstadter, Douglas, 23 Homem sem qualidades, O (Musil), 49 Hõrmann, Theodor, 59 Hume, David, 65 Império dos Habsburgo, 45, 58 infinito, 110, 117, 121-2, 156-7, 166-7, 189 instanciação universal, 107 Instituto de Estudos Avançados: diretores, 16-7,28, 177,184,193, 199-200, 203 -5; Einstein como membro, 16-7, 40, 196-9; exilados políticos, 11-2, 29; faculdade de matemática, 14-7, 26, 136, 165, 193, 198-205; fundação, °12-3; Gõdel como membro, 12, 17-9,26-8,40,174, 177-8, 181, 184, 187-9, 193-4, 197-209; nomeações para, 193, 198-205 inteligência artificial, 170 Introdução à filosofia matemática (Russell), 99 intuição, 29, 34, 84, 102-4, 108-14, 157, 167, 182-3 intuicionismo, 121, 125, 179 Irrational man: A study in existentialist philosophy (Barrett) , 33 jogo,85,103,113,115,120,160,166 judeus,67,82,98,105,190-2

K. -K. Staatsrealgymnasium mit deutscher Unterrichtssprache, 49 Kafka, Franz, 143,211 Kant, Immanuel, 62, 15 7, 179 Kaysen, Karl, 177, 203-5 Kesten, Herman, 5 7 Khwarizmi,Abu Ja'far Muhammad ibn Musa al-, 112 Kleene,Stephen,165,210,226 Klepetaf, Harry, 49 Kochen,Simon,20,143,158,194,202, 210,211 Kraus, Karl, 57, 60 Kreisl, Georg, 100--1, 224 Kuhn, Thomas, 136,164,225 Language, truth, and logic (Ayer ), 74, 180 Leibniz, Gottfried Wilhelm, 23, 27, 40l, 52,116,176, 198, 206-7 Leoncavallo, Ruggero, 149 Lewis, Clarence I., 69 linguagem: "jogos" de, 34, 85; abstração e, 11, 60-1, 66, 133; paradoxos, 42, 86-7, 160; significado e, 66, 723, 93, 127-30;sintaxe, 72-3,84,87, 91,95,160;verdadee,83,88,160 Lobatchevski, Nikolai Ivánovitch, 110 lógica: "límpida", 127-30, 134, 186-7; contradição na, 77, 79, 85-6, 100, 113 -4, 118-20, 162, 166; dedução na,34,47, 115, 121, 142;formal,20, 68, 77, 96, 142,202; natureza abstratada,60,66,99, 130, 168-73,218; natureza sintática, 72-3, 84-5, 87, 91,95, 128-30, 138, 144-5, 148-9, 153-4, 159-60; paradoxos na, 41-2, 55-6, 76-8,83-4,86-7,99- 100,120l, 123, 138,140, 152, 156,160,162, 166-7; predicados na, 126-30; pro237

INCOMPLETUDE

posições na, 37, 66, 71-2, 78, 82-7, 127-30; provas na, 122, 166; regras, 84-6, 129-30; silogística, 47; simbólica, 69, 145-6; tautologias na, 72, 83-4, 90, 104, 125, 127; variáveis na, 127-8, 146;verdadena,37-8,42,826, 98, 99, l28-30, l66, 224 "Logical positivism: a new movement in European philosophy" (Blumberg e Feigl), 71 Loos, Adolph, 60-1 Lucas, John, 169-70, 178,226 luz, propriedades, 29, 38, 72 Mach,Ernst,68,71,72,95 Marchet,A., 192 Marx, Groucho, 23 matemática: axiomas, 63, 94, 103-13, 118-9, 122, 137, 156-8, 169, 182, 189, 194; combinatória, 100, 138, 17l;comociência pura, 14,22-3, 72, 83-4; diagramas e esboços, 104-5; filosofia e, 24, 50, 52-4, 85-6, 164; física comparada com, 25, 30-1; formalismo, 22, 39, 73-4, 83-6, 109, 111, 113-22, 125, 136; influência de Gõdel sobre a, 18-9, 32-3, 50, 54, 135, 174, 183 -7, 193-4; metamatemática,22,33,39-42,53,56, 75, 1134, 121, 125,130,132,153,160,1637;naturezaapriori, 14-5,23-4,41-2, 65,72, 102-3, 112-3,218;natureza sintática, 84-5, 95, 111, 159, 168; provas na, 64, 97, 103, 116, 121, 133, 167; realidade da, 37-40, 54, 103, 113, 114, 119; realidade objetiva na, 24, 31-40, 94; regras, 85-6, 103, 107 12, 115-6, 130, 144, 167, 169-71; símbolos, 72-3, 85,104, 111-2, 116, 238

130, 142, 167; teor descritivo, 72-4, 93, 115, 119, 158; teoremas, 99, 1078, 111, 113-4, 119, 169; verdade da, 72-3, 82-6, 91-3, 116, 118-9, 125, 133-4, 159, 172-3; ver também aritmética; geometria; lógica Mathematician's apology, A (Hardy), 39 Mauthner, Fritz, 87 mecânica quântica, 32, 34, 37, 171 Medalha Fields, 39 Mendel, Gregor, 45 Menger, Karl, 70, 93, 99, 126, 133, 185, 189-91,205-7,210,223-4;226 Mente nova do rei, A (Penrose), 21, 170 mente ver cognição metafísica, 38, 63, 90, 93, 136, 181 Milnor, John, 200-1 Misner, Charles, 216 misticismo, 90,116, 161-2 modus ponens, 78 Monk, Ray, 125 Montgomery, Deane, 200-1 Moore, G. E., 81,223 Morgenstern, Oskar, 28, 40, 177-8, 188, 193-6,206-10,226 Morrell, Ottoline, 79,224 Musil, Robert, 49 mutação genética, 27 Nagel, Ernest, 132 Nagel, Thomas, 27 Natkin, Marcel, 92 "Natureza da matemática: o ponto de vista de Wittgenstein, N' (Waismann), 125 nazismo, 16, 19, 28, 59, 67, 180, 190-1, 193 Nelbõck, Johann (Hans), 67 Neurath, Olga, 69

ÍNDICE REMISSIVO

N eurath, Otto, 69-70, 93 New York Times, 202-3, 213,222,227 Newman, James R., 132 Newton, Isaac, 49,213 "Nicolas Bourbaki", 203 Nietzsche, Friedrich, 33 "Notas autobiográficas" (Einstein), 36 números: conjuntos, 53, 70, 76-8, 94, 110,115,117,120,122,179,182,188, 189,2ll;naturais,38,94, 107, 117-8, 137-40, 146,151, 156-8;pares, 73, 131, 140, 183; primos, 73, 145, 148; propriedades, 145-7, 150-5, 158; reais, 94, 117, 118; teoria dos, 20, 4950, 52, 54, 70,131,167,183,l87 Observações sobre os fundamentos da matemática (Wittgenstein), 99, 161,224 "On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem" (Turing), 167 ontologia, 65, 176 Oppenheimer, J. Robert, 199-200, 203, 205 Organon (Aristóteles), 4 7 Ovídio, 176 Pagliacci, I (Leoncavallo), 149 paradoxo de Richard, 140,152 "paradoxo do mentiroso", 42, 76, 140, 152,166 Pascal, Fania, 96, 224 Peano, Giuseppe, 81, 107, 109 Peebles, Jim, 217 Penrose, Roger, 21-2, 170-1, 226 Philosophy of mathematics (Benacerraf e Putnam, orgs.), 94,181 Pinker, Steven, 27

pitagóricos, 33 Planck, Max, 68 Platão, 33, 39-40, 52-4, 95, 102, 116, 168,204,214,218 platonismo, 37-40, 50, 53, 56, 62-3, 73, 93,98,99, 114,122,125,132,162, 181,214 Polgar, Alfred, 61 Popper, Karl, 62, 222 positivismo lógico, 37, 62-5, 71-2, 74, 83,91,159,180,198 pós-modernismo, 115,159 postulado das paralelas, 109, 189 Primeira Guerra Mundial, 58, 76, 81 "Principais idéias do logicismo, As" (Carnap), 125 Principia mathematica (Russell e Whitehead), 78, 81, 86,122,135 princípio da incerteza, 18, 31 "Problemas matemáticos" (Hilbert), 117 proposições"ou-ou", 171-3 proposições analíticas, 3 7 proposições descritivas, 3 7 proposições indecidíveis, 99, 182 Protágoras,32,38,52,73 provas construtivas, 121, 125 provas finitárias, 100, 122, 125, 130, 137, 156-8, 179 provas não-finitárias, 130, 179 "pseudoproposições", 66 psicologia, 58, 64, 67,121,226 Putnam, Hilary, 94,181,183,225 Quine, Willard vau Orman, 74, 180 Ravel, Maurice, 76 Razão Pura, 13, 15, 57, 104,184,200, 216 239

INCOMPLETUDE

realidade: abstrata, 37, 38, 43, 53-4, 180; como incognoscível, 91; contingência e, 17-8, 27; delírio versus, 171, 172-3; empírica, 27, 42, 64-7, 71 -5, 91, 93, 116, 181, 216-7, 223; matemática,37-40,56, 103,114,159, 161 3; objetiva, 19-24, 31-40, 43, 52-4, 94,111,113, 118-9,159, 171 -3,180, 213; percepção da, 39, 71, 94, 103, 114, 182; significado e, 37, 66-8, 71 2, 82, 84-5, 94,110, 119, 162; subjetiva, 21, 24, 31-3, 53, 71-5, 171-3; transcendental, 75,162, 214-5, 218 Redlich, Friedrich, 46 Reichenbach, Hans, 69, 124, 134, 180, 183,225 Reidemeister, Kurt, 82 religião, 162, 188, 203-4 Richard, Jules, 140 Robinson,Abraham, 100, 202 Rorty, Richard, 175 Rubin, H., 189 Rubin, J., 189 Russell, Bertrand: Gõdel e, 98-9, 181-3, 190; paradoxo formulado por, 767, 85 -6, 120, 122; Wittgenstein e, 78-81,86,91,95, 101,224 "Russell's Mathematical Logic" (Gõdel), 181 Schilpp, P. A., 36, 91,215, 221-3, 227 Schimanovich, Werner, 186 Schlick,Moritz, 62, 67-72, 74, 81-2, 8790, 93, 99,125,180,185,191 Schõnberg, Arnold, 59 Secessão, 59 Shadows ofthe mind (Penrose), 22, 170, 226 Snow, C. P., 39 240

sociologia, 21, 204 Sócrates, 47, 53, 83,214 sofistas, 52, 71, 95,204 Solovay, Robert, 21 O Spencer, Herbert, 71 Spinoza, Benedictus, 23, 81, 105, 168, 174 Sprache, Die (Kraus), 60 Sprachkritik (Mauthner), 87,223 Stálin, Iossíf, 27,191,202 Straus, Ernst Gabor, 17, 25, 26, 29 Survey ofsymbolic logic (Lewis), 69 Tagore, Rabindranath, 87 Tarski, Alfred, 74 Taussky-Todd, Olga, 91, 173, 184 tempo, natureza do, 29, 35, 38, 212 -8 teorema da extensão de Hahn-Banach, 69 "Teorema de Gõdel" (Encyclopedia of philosophy), 20 teoremas da incompletude, 131-58; analogia musical, 132, 149; aritmetização de Gõdel nos, 56, 132, 137, 141, 143-51; como "logische Kunststücken", 99, 100, 160, 224; como modelos conceituais, 22; completude versus consistência, 19-20, 56, 118-22, 129-31, 135, 137, 141-2, 148, 153-8, 162, 166-7, 186; contexto cultural vienense, 56-86; contradizendo o positivismo lógico, 63, 88, 95,135,159,16 1,223; definições preliminares para, 139; desenvolvim ento, 19, 30, 40, 50, 55-6, 63, 131-5, 218; divulgação pública, 56, 63,93, 124-6, 131-6, 165,170,184; enunciado, 20, 22, 63,131; explicação da autora, 139-58; formalismo

ÍNDICE REMISSIVO

e, 113-4, 123, 126, 136-8, 141-2, 148-50, 154-8, 167,170,172,184; fórmulas nos, 142-7, 151; impactos científicos, 18-9, 136, 158, 164-5, 167-73, 194; implicações filosóficas, 24, 57, 162, 168-73, 178; implicações matemáticas, 21, 24, 43, 63, 133-8;158, 160, 186-7, 194,210-1, 218; implicações metamatemáticas, 22-4, 3 l -3, 42, 88, 100-1, 138, 143-9, 158-64, 167-73, 187; interpretação de Turing, 165,167; interpretação popular errônea, 20-2, 323, 52, 63-4, 133,223; justaposição de dígitos, 145-7; lema diagonal, 152-4; objetividade e, 32-3, 43; paradoxos e, 41-2, 55-6, 83, 138-9, 152, 156; primeiro teorema, 20, 30, 33,42,55,63,114,133,137,139-54, 167, 171, 178, 202, 225; procedimentos mecânicos nos, 143-9, 154; propriedades dos números nos, 145-7,150-5,158;prova,56,63,97, 99, 129-30, 133, 136-8,141-4, 14855, 158, 166; publicação (1931), 20, 140, 165, 167; reação de Von Neumann, 136, 137, 158; reação de Wittgenstein, 75, 83-4, 86, 95-101, 133, 159-65, 183; relações sintáticas nos, 144-5, 148-9, 153-4, 159;segundoteorema,20,30,63, 135,137, 155-8, 178; teoria da relatividade comparada com, 31-3 teoria da prova, 122,211 teoria da recursão, 41, 164, 211 teoria da relatividade: como revolução conceitua!, 18, 31-6, 71; continuum de espaço-tempo na, 35, 38, 213-8; desenvolvimento, 29, 55; equações

de campo para, 29, 214-6; geral, 16, 35,215; interpretação popular errônea, 32-3, 212; realidade objetiva e, 31-2, 35-6, 71,212; restrita, 16, 29, 35, 55; sistema de coordenadas na, 35; trabalho de Gõdel na, 29, 179, 212-8 teoria dos conjuntos transfinitos, 182 teoria dos jogos, 28, 34, 85 teoria dos modelos, 41, 158, 164, 211 teoria dos tipos, 78, 84, 122 teoria molecular, 68 terceiro excluído, lei do, 121 termodinâmica, 68 "Tertium non datur" (Hilbert), 184 thaumázein (assombro ontológico), 46 Thorne, Kip, 216, 217 Time, 186 Tractatus logico-philosophicus (Wittgenstein), 81 Tractatus theologico-politicus (Spinoza), 81 triângulo isósceles, 105 Turing,Alan, 140,160, 165-7, 184,186 "Two dogmas of empiricism" (Quine), 180 "über formal unentscheidbare Satze der Principia Mat:hematica und verwandter Systeme I" (Gõdel), 20; ver também teoremas da incompletude Universidade de Princeton, 11-2, 14, 16-20,25-6,29,31,37,43,50-l,57, 74,105,131,136,165, 174-5, 181, 184-5, 188-94, 199-200,203,206, 208-10, 215,217 Veblen, Oswald, 16, 184, 185,190,193 verdade: absoluta, 96, 105; beleza e, 24, 241

INCOMPLETUDE

53-4; leis de herança da, 107; lingüística, 82-3, 88, 160; matemática, 72-3, 82-6, 91-3, 116, 118-9, 125, 133-4, 159,172,173; moralidade e, 52, 60, 73, 90, 105, 223; na lógica, 37-8,41-2,82-6,98-9,128-30,166, 224; objetiva, 19-21, 53, 65, 72, 98, 99,119,182,204 Voltaire, 207 Von Neumann, John, 16-7, 28, 74,125, 136-7, 158, 165, 179, 184, 187-9, 193,200 Wagner-Jauregg, Julius, 185 Waismann, Frederich, 70, 88-9, 93, 125-6,135 Wang,I-Iao,29,46,48-9,54-5, 70,94, 130, 134, 171, 179, 187, 209-10, 217-8, 222-7 Weil,André, 203, 210 Weil, Simone, 204 Weininger, Otto, 80-1, 224 Werfel, Franz, 61 "What is Cantor's continuum problem?" (Gõdel), 181 Wheeler, John Archibald, 216-7 White,Morton, 176,18 1 Whitehead, Alfred North, 78, 81, 94, 122,167

242

Whitney, I-Iassler, 201,209,210 "Wiener !(reis inAmerica, The" (Feigl), 180 Wiles, Andrew, 131 Wirtinger, professor, 186-7 Wissenschaftliche Weltauffassung: Der Wiener Kreis, 71 Wittgenstein, Karl, 59 Wittgenstein, Ludwig: análise lingüística, 60, 81-6, 89-92, 99; Círculo de Viena e, 3 7, 38, 75-92, 99-100, 224; filosofia inicial versus final de, 846, 159; formação, 75, 86; Gõdel comparado com, 92, 96-7, 99-100, 159-64, 183; influência, 37, 88-92, 95-6, 100; na Universidade de . Cambridge, 79-80, 88, 95-6, 165, 167; personalidade, 79-80, 88-90, 95-7, 99-100, 224; positivismo lógico e, 37, 87-92, 100, 159, 161; reputação, 125, 180, 183, 186; Russell e, 79-81, 85-6, 91, 95,100,224; teoremas de Gõdel vistos por, 75, 83-4,86,95-101,133,159-65,183 Wittgenstein, Paul, 76 Wi ttgenstein's poker (Edmonds e Eidinow), 63,222 zen-budismo, 87

Esta obra foi composta em Janson por Osmane Garcia Filho e impressa pela Prol Editora Gráfica em ofsete sobre papel Pólen Soft da Suzano Papel e Celulose para a Editora Schwarcz em setembro de 2008.

Related Documents


More Documents from ""

January 2021 0
February 2021 0
Ansys_gidrodinamic.pdf
January 2021 0