Rene Guenon - Autoridade Espiritual E Poder Temporal

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Paris, 1929

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Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais IRGET, Editora e Distribuidora São Paulo - 2011

Fone (li) 8384 4440 [email protected] WWW.RENEGUENON.NET Resen-ados os direitos de publicação para a língua portuguesa. Copyright() Abdel Wahid Yebya

René Guénon

AUTORIDADE ESPIRITUAL

E

PODER TEMPORAL

PRÓLOGO Não temos o hábito, em nossos trabalhos. de nos referir à atualidade imediata, já que o que constantemente temos em vista são os princípios, que são, poder-se-ia dizer, de uma atualidade pennanente. posto que se situem fora do tempo: e. inclusive. embora saiamos do domínio da metafísica para considerar cenas aplicações. fazemo-lo sempre de tal maneira que estas aplicações conservem um alcance completamente geral. É o que faremos aqui também; e, entretanto, devemos convir que as considerações que vamos expor neste estudo oferecem ainda certo interesse mais particular no momento presente, em razão das discussões que se produziram nestes últimos tempos sobre a questão das relações entre a religião e a política, questão que não é mais que uma forma especial. em certas condições detenninadas, das relações entre o espiritual e o temporal. Isso é certo, mas seria um engano acreditar que tais considerações nos foram mais ou menos inspiradas pelos incidentes aos quais aludimos, ou que pretendemos relacioná-las diretamente com eles, pois isto seria conceder uma importância muito exagerada a questões que têm apenas um caráter puramente episódico e que não poderiam influir sobre concepções cuja natureza e origem são na realidade de uma ordem muito diferente. Como nos esforçamos sempre em dissipar, em primeiro lugar, os mal-entendidos que nos é possível prever, devemos descartar acima de tudo, tão clara e explicitamente quanto

seja possível, essa falsa interpretação que alguns poderiam dar sobre nosso pensamento. seja por paixão política ou religiosa, ou em virtude de algumas idéias preconcebidas, seja inclusive por simples incompreensão do ponto de vista no qual nos situamos. Tudo o que aqui diremos o teríamos dito também. e exatamente da mesma maneira. se os fatos que hoje em dia atraem a atenção sobre o assunto do espiritual e do temporal não se tivessem produzido; as circunstâncias presentes somente nos demonstraram, mais claramente que nunca, que era necessário e oportuno dizê-lo; constituíram, caso se queira, a ocasião que nos conduziu a expor agora certas verdades com preferência a muitas outras que igualmente nos temos proposto fommlar. mas que não parecem suscetíveis de uma aplicação Ião imediata; e a isto se limita lodo seu papel no que a nós concerne. O que nos chamou especialmente a atenção nas discussões de que se trata é que. nem de um lado nem de outro, existiu a princípio a preocupação por situar as questões em seu verdadeiro terreno, para distinguir de maneira precisa entre o essencial e o acidental, entre os princípios necessários e as circunstâncias contingentes; e, para falar a verdade. isto não nos surpreendeu. pois não vimos nisso senão um novo exemplo, entre muitos outros, da confusão que hoje em dia reina em lodos os domínios, e que consideramos como eminentemente característica do mundo moderno, pelas razões que já explicamos em precedentes obras (1). Não obstante, não podemos impedir de deplorar que esta confusão afete até os

representantes de uma autoridade espiritual autêntica, que parecem ter perdido de vista o que deveria ser sua verdadeira força. quer dizer. a transcendência da doutrina em nome da qual estão qualificados para falar. Faria falta distinguir acima de tudo entre questão de princípio e questão de oportunidade: sobre a primeira não cabe discutir, pois se tratam de coisas que pertencem a um domínio que não pode estar submetido aos procedimentos essencialmente "profanos" de discussão; e, enquanto à segunda, que, por outro lado, não é senão de ordem política e, poder-se-ia dizer, diplomática, é em lodo caso muito secundária e. inclusive, rigorosamente, não deve contar com respeito à questão de princípio; consequentemente. teria sido preferível não oferecer ao adversário a possibilidade de expô-la. embora não seja senão sobre simples aparências; acrescentaremos que, quanto a nós, não nos interessa absolutamente. Pretendemos, pois, de nossa parte, nos situar exclusivamente no domínio dos princípios; é o que nos pennite permanecer inteiramente além de toda discussão, de toda polêmica. de toda querela de escola ou de partido. estes assuntos com os quais não queremos nos misturar. nem de peno nem de longe, de nenhum modo e em nenhum grau. Sendo absolutamente independentes com relação a tudo o que não é a verdade pura e desinteressada, e decididos a permanecer nesta, simplesmente nos propomos a dizer as coisas tal como são, sem o menor cuidado de agradar ou desagradar a quem quer que seja; não temos nada a esperar nem de uns

nem de outros, não concamos inclusive com que aqueles que possam tirar vantagens das idéias que formulemos o agradeçam de algum modo e. além do mais, isto nos importa muito pouco. Advertiremos uma vez mais que não estamos dispostos a nos deixar encerrar em nenhum dos limites ordinários, e que seria perfeitamente vão tentar nos aplicar uma etiqueta qualquer, pois, entre aquelas que existem no mundo ocidental, não há nenhuma que na realidade nos convenha; algumas insinuações, chegadas simultaneamente dos setores mais opostos, demonstraram-nos de novo recentemente que era bom renovar esta declaração. a fim de que as pessoas de boa fé saibam a que se ater e não sejam induzidas a nos atribuir intenções incompatíveis com nossa verdadeira atitude e com o ponto de vista puramente doutrinal que é o nosso. Em razão da própria natureza deste ponto de vista. separado de toda'i as contingências, podemos considerar os fatos atuais de uma maneira tão completamente imparcial como se tratassem de acontecimentos que pertencessem a um passado longínquo, como aqueles dos quais trataremos, sobretudo aqui, quando citarmos alguns exemplos históricos para esclarecer nossa exposição. Deve ficar claro que damm a esta. tal e qual dissemos desde o começo, um alcance completamente geral. que supera todas as formas particulares das quais se podem revestir, segundo os tempo~ e lugares, o poder temporal e, inclusive. a autoridade espiritual; e é necessário estabelecer especialmente, sem demora, que esta última,

para nós, não tem necessariamente uma fonna religiosa, ao contrário do que usualmente se acredita no Ocidente. Deixamos a cada um o cuidado de fazer com estas considerações as aplicações que julgue conveniente em relação aos casos particulares que, a propósito. nos abstemos de considerar diretamente; basta que esta aplicação, para ser legítima e válida, esteja feita com um espírito verdadeiramente conforme aos princípios dos quais tudo depende, espírito que é ao qual chamamos espírito tradicional no verdadeiro sentido da palavra. e do qual, infelizmente, todas as tendências especificamente modernas são sua antítese ou sua negação. Precisamente é um desses aspectos da separação moderna o que vamos considerar e. a este respeito, o presente estudo completará o que já ti\'emos ocasião de explicar nas obras às quais aludimos anteriormente. Verse-á, além do mais. que, sobre esta questão das relações entre o espiritual e o temporal, os enganos que se desenvolveram no curso dos últimos séculos estão longe de ser novos; mas ao menos suas manifestações anteriores jamais tiveram mais que efeitos bastante limitados, enquanto que hoje em dia estes mesmos enganos se tomaram, de certa forma, inerentes à mentalidade comum, fonnam parte integrante de um estado de espírito que se generaliza cada vez mais. Isto é o mais particularmente grave e inquietante e, a menos que em breve não se opere uma retificação, é previsível que o mundo moderno seja arrastado a alguma catástrofe, para a qual parece marchar com uma rapidez sempre crescente.

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Tendo exposto em outro lugar as considerações que podem justificar tal afirmação (2), não insistiremos sobre elas, e somente acrescentaremos o seguinte: se ainda há, nas presentes circunstâncias. alguma esperança de salvação para o mundo ocidental, parece que esta esperança deve residir, ao menos em parte, na manutenção da única autoridade espiritual que subsiste; mas para isso é necessário que esta autoridade possua uma plena consciência de si mesma, a fim de que seja capaz de oferecer uma base efetiva aos esforços que. de outro modo, correm o risco de permanecer dispersos e sem coordenação. Este é, ao menos, um dos meios mais imediatos que podem ser tomados em consideração para uma restauração do espírito tradicional; sem dúvida há outros, se este faltar; mas, como esta res1auração, que é o único remédio à desordem atual, é o propósito essencial que temos em vista desde que. saindo da pura metafísica. devamos considerar as contingências, é fácil compreender que não desprezemos nenhuma das possibilidades que se oferecem para alcançá-la, ainda que estas possibilidades pareçam ter no momento muito poucas chances de realização. Nisso, e somente nisso, consistem nossas verdadeiras intenções; todas as que nos poderiam atribuir. além delas, são perfeitamente inexistentes; e, se alguns chegassem a pre1ender que as reflexões que vamos dar a seguir nos foram inspiradas por influências ex.teriores, sejam quais forem, opomos a partir de agora nosso mais formal desmentido.

lO

Dito i~to, já que por experiência sabemos que tais precauções não são inúteis, pensamos poder nos dispensar a seguir de toda alusão direta à atualidade. a fim de fazer ainda mais sensível e indubitável o caráter estritamente doutrinal que pretendemos conservar em todos nossos trabalhos. Sem dúvida, as paixões políticas ou religiosas não contam aqui, mas isto é algo do qual devemos nos felicitar, pois absolutamente se tratam para nós de alimentar novas discussões que nos parecem muito vãs, inclusive bastante miseráveis. senão, pelo contrário, de recordar os princípios cujo esquecimento é, no fundo, a única verdadeira causa de rodas estas discussões. É, repetimo-lo, nossa própria independência que nos permite realizar esta pontualização com toda imparcialidade, sem concessões nem compromissos de nenhum tipo; e. ao mesmo tempo. ela nos proíbe qualquer outro papel distinto do qual acabamos de definir, pois não pode ser mantida senão à condição de pennanecer sempre no domínio puramente intelectual, domínio que. por outra parte, é o dos princípios essenciais e imutáveis e. em conseqüência. aquele do qual todo o resto deriva mais ou menos diretamente. e pelo qual deve forçosamente começar a retificação da qual falamos: fora da vinculação aos princípios, não se podem obter mais que resultados exteriores. instáveis e ilusórios; mas isto, para falar a verdade, não é mais que uma das formas da própria afinnação da supremacia do espiritual sobre o temporal, que precisamente vai ser o objeto deste estudo.

li

Notas (l) "Oriente e Ocidente'· e ··A Crise do Mundo Moderna·· (2) "A Crise do Mundo Moderno"

Capítulo 1: AUTORIDADE E HIERARQUIA Em épocas muito diferentes da história. e inclusive nos remontando muito além do que se conveio chamar "tempos históricos", na medida em que nos é possível fazê-lo com ajuda dos testemunhos coincidentes que nos subministram as tradições orais ou escritas de todos os povos (1), encontramos os indícios de uma freqüente oposição entre os representantes dos dois poderes, um espiritual e o outro temporal, sejam quais forem por outra parte as formas especiais que se tenham revestido um e outro para se adaptarem à diversidade das circunstâncias. segundo as épocas e os países. Isto não significa, entretanto, que esta opo~ição, e as lutas que engendra, sejam "velhas como o mundo", segundo uma ex.pressão da qual se abusa muito; seria esta um exagero manifesto, pois, para que se cheguem a produzir, é preciso, segundo o ensino de todas as tradições, que a humanidade já tenha alcançado uma fase bastante afastada da pura espiritualidade primitiva. Por outra parte, na origem. ambos os poderes não deveriam existir em estado de funções separadas, exercida~ respectivamente por individualidades diferentes; pelo contrário, deviam estar contidas, então, no princípio comum de que procedem. e do qual representavam somente dois aspectos indivisíveis, indissoluvelmente unidos na unidade de uma síntese simultaneamente superior e anterior a sua distinção. É o que expressa especialmente a

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doutrina hindu quando ensina que não havia no princípio mais que uma só casta; o nome de Hamsa dado a esta casta primitiva única indica um grau espiritual muito elevado, hoje em dia completamente excepcional, mas comum então a todos os homens e que, de certo modo, possuíam espontaneamente (2); e este grau está para além das quatro castas que se constituíram posteriormente, e entre as quais se repartem as diferentes funções sociais. O princípio da instituição das castas, tão completamente incompri!endido pelos ocidentais. não é outra coisa que a diferença de natureza existente entre os indivíduos humanos, e que estabelece entre eles uma hierarquia cujo desconhecimento só pode levar à desordem e à confusão. É precisamente este desconhecimento que está implícito na teoria "igualitária", tão cara ao mundo moderno, teoria que é contrária aos fatos melhor estabelecidos, e que inclusive é desmentida pela simples observação, posto que a igualdade não exista na realidade em parte alguma; mas não vamos nos estender sobre este ponto, que já tratamos em outro lugar (3). As palavras que servem para designar à casta, na Índia, significam "natureza individual"; por isto deve ser entendido o conjunto dos caracteres que se acrescentam à natureza humana "específica" para diferenciar os indivíduos entre si; e convém acrescentar, a seguir, que a herança entra apenas em parte na determinação dos caracteres, já que do contrário os indivíduos de uma

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mesma família seriam ex.atamente semelhantes, de modo que, em princípio, a casta não é estritamente hereditária, ainda que de fato tenha chegado a sê-lo freqüentemente na prática. Além disso, posto que não poderiam ex.istir dois indivíduos idênticos ou iguais em todos os aspectos, há forçosamente diferença entre aqueles que pertencem a uma mesma casta; mas. tal como há mais caracteres comuns entre os seres de uma mesma espécie que entre seres de espécies diferentes, há também mais, no interior da espécie, entre os indivíduos de uma mesma casta do que entre os de castas diferentes; poder-se-ia dizer então que a distinção das castas constitui, na espécie humana, uma verdadeira classificação natural, à qual deve corresponder à repartição das funções sociais. Efetivamente. cada homem, em razão de sua natureza própria, é apto para cumprir algumas funções definidas com a exclusão de outras; e, numa sociedade regulannente estabelecida sobre bases tradicionais. estas aptidões devem ser determinadas segundo regras precisas, a fim de que, pela correspondência entre os diversos gêneros de funções com as grandes divisões da classificação das "naturezas individuais" -salvo ex.ceções devidas a enganos de aplicação sempre possíveis. embora reduzidas de certa forma ao mínimo- cada um se encontre no lugar que deva ocupar normalmente, e desta forma a ordem social traduza ex.atamente as relações hierárquicas que resultam da própria natureza dos seres. Tal é, resumida em poucas palavras, a razão fundamental da existência das castas; e é necessário conhecer ao menos estas noções essenciais para compreender as alusões que

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forçosamente estaremos obrigados a fazer em seguida, seja a sua constituição tal como existe na Índia, seja às instituições análogas que se encontram em outros lugares, pois é evidente que os mesmos princípios, embora com modos de aplicação diferentes, presidiram a organização de todas as civilizações que possuem um caráter verdadeiramente tradicional. A distinção das castas, com a diferenciação das funções sociais à qual corresponde, resulta, em suma, de uma ruptura da unidade primitiva; e é então quando aparecem também, como separados um do outro, o poder espiritual e o poder temporal. que constituem precisamente, em seu exercício distinto. as funções respectivas das duas primeiras castas, a dos Brâhmanes e a dos Kshatriyas (Kshatriyas). Por outra parte, entre ambos os poderes, assim como de uma forma geral entre todas as funções sociais atribuídas após a grupos diferentes de indivíduos, devia haver originariamente uma perfeita harmonia, pela qual a primeira unidade era mantida tanto quanto o permitiam as condições de existência da humanidade em sua nova fase, pois a harmonia não é, em suma. mais que um reflexo ou uma imagem da verdadeira unidade. Seria apenas em outro estágio, quando a distinção deveria transformar-se em oposição e em rivalidade, que a harmonia haveria de ser destruída e deixaria lugar à luta dos dois poderes, chegando ao ponto em que as funções inferiores pretendessem, por sua vez, a supremacia. para terminar finalmente na confusão mais completa, na negação e na

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inversão de toda hierarquia. A concepção geral que acabamos de esboçar assim, de um modo geral, é conforme à doutrina tradicional das quatro idades sucessivas nas quais se divide a história da humanidade terrestre, doutrina que não só se encontra na Índia, mas também era igualmente conhecida pelos Gregos e pelos Latinos. Estas quatro idades são as diferentes fases que atravessa a humanidade afastando-se do princípio. quer dizer, da unidade e da espiritualidade primitiva; são como as etapas de uma espécie de materialização progressiva, necessariamente inerente ao desenvolvimento de todo ciclo de manifestação, tal e como em outro lugar já o explicamos (4). É só na última destas quatro idades, à qual a tradição hindu chama de Kali-Yuga, ou "idade sombria", e que corresponde à época em que nos encontramos, quando a subversão da ordem normal pôde se produzir e quando, em primeiro lugar. o poder temporal pôde se elevar sobre o espiritual; mas as primeiras manifestações da revolta dos Kshatriyas contra a autoridade dos Brâhmanes podem, não obstante, se remontar a muito antes do início desta idade (5), início que é ele mesmo muito anterior a tudo o que conhece a história ordinária ou "profana". Esta oposição dos dois poderes, esta rivalidade de seus representantes respectivos, estava representada entre os Celtas com a figura da luta entre o javali e o urso, segundo um simbolismo de origem hiperbórea que se vincula a uma das tradições mais antiga'i da humanidade. caso não o seja, inclusive, à

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primeira de toda-;, à verdadeira tradição primitiva; e este simbolismo poderia dar lugar a amplos desenvolvimentos, que não podem encontrar aqui seu lugar, mas que possivelmente tenhamos ocasião de expor algum dia (6). No que vem a seguir. não temos intenção de nos remontar até as origens, e todos nossos exemplos serão tirados de épocas muito mais próximas a nós, inclusive circunscrita-; unicamente no que podemos chamar de última parte do Kali-Yuga, a qual é acessível à história ordinária, e que exatamente começa no século VI antes da era cristã. Não menos necessário era oferecer estas noções sumárias sobre o conjunto da história tradicional, sem as quais o resto não seria compreendido senão de uma forma muito imperfeita. pois não se pode compreender verdadeiramente uma época qualquer senão a situando no lugar que ocupa dentro do todo, do qual é um dos elementos; assim, como tivemos que demonstrar recentemente, as características particulares da época moderna não se explicam senão quando se considere a esta constituindo a fase final do Kali-Yuga. Bem sabemos que este ponto de vista sintético é completamente contrário ao espírito de análise que preside o desenvolvimento da ciência "profana", a única que conhecem a maioria de nossos contemporâneos; mas precisamente convém afirmá-lo tanto mais claramente quanto mais seja desconhecido e, por outra parte. é o único que podem adotar todos aqueles que, como nós, pretenderem se manter escritamente na linha da

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verdadeira ortodoxia tradicional, sem nenhuma concessão a esse espírito moderno que. jamais insistiremos muito, não constitui mais do que uma coisa só com o próprio espírito antitradicional. Sem dúvida, a tendência que prevalece atualmente é tratar de "lendários" e inclusive de "míticos" os fatos da história mais longínqua. tais como aqueles aos quais acabamos de aludir, ou inclusive alguns outros que não obstante serem muito menos antigos, como os que poderemos tratar a seguir, porque escapam aos meios de investigação de que dispõem os historiadores "profanos". Quem assim pensa, em virtude de costumes adquiridos por uma educação que, hoje em dia, não é com muita freqüência mais que uma verdadeira deformação mental, poderá ao menos. se apesar de tudo conservou certas possibilidades de compreensão, tomar estes fatos simplesmente por seu valor simbólico~ sabemos, quanto a nós, que este valor nada tira a sua realidade própria enquanto fatos hi:itóricos, ma~ é em suma o que mais importa, posto que lhes confere um significado superior, de uma ordem muito mais profunda que o que em si mesmos podem ter; e este é um ponto que requer certas explicações. Tudo o que é. sob qualquer modo que seja, participa necessariamente dos princípios universais, e não é nada senão por participação em tais princípios, que são as essências eternas e imutáveis contidas na permanente atualidade do Intelecto divino; em conseqüência, pode-se

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dizer que toda~ as coisas, por contingentes que sejam em si mesmas. traduzem ou representam os princípios a sua maneira e segundo sua ordem de existência, pois, de outro modo. não seriam mais que puro nada. Assim. de uma ordem a outra, tudo se encadeia e se corresponde para concorrer à harmonia universal e total. pois a harmonia, como já indicamos. não é mais que o reflexo da unidade principiai na multiplicidade do mundo manifestado; e esta correspondência é o verdadeiro fundamento do simbolismo. Tal é a razão pela qual as leis de um domínio inferior sempre podem ser tomadas para simbolizar as realidades de uma ordem superior, no qual têm sua razão profunda, que é simultaneamente seu princípio e seu fim; e assinalaremos de passagem, nesta ocasião, o engano das modernas interpretações "naturalistas" das antigas doutrinas tradicionais, interpreiações que invertem pura e simplesmente a hierarquia das relações entre a~ diferentes ordens de realidades. Por exemplo, para não considerar mais que uma das teorias mais estendidas em nossos dias. os símbolos ou os mitos jamais tiveram o papel de representar o movimento dos astros, embora o que é certo é que freqüentemente se encontram figuras inspiradas neste e destinadas a expressar Analogicamente outra coisa, posto que as leis deste movimento traduzem fisicamente os princípios metafísicos dos quais dependem; e nisto se fundamenta a verdadeira astrologia dos antigos. O inferior pode simbolizar o superior. mas o contrário é impossível; por outra parte, se o símbolo estivesse mais afastado da ordem sensível que aquilo que

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representa, em lugar de estar mais próximo, como poderia cumprir a função à qual está destinado, que é a de fazer a verdade mais acessível ao homem lhe oferecendo um "suporte" para sua concepção? Além do mais, é evidente que o emprego de um simbolismo astronômico, para retomar o mesmo exemplo, não impede absolutamente que os fenômenos astronômicos existam como tais, e que tenham, em sua própria ordem, toda a realidade da qual são suscetíveis; ex.atamente o mesmo ocorre com os fatos históricos, pois estes, como todos os outros, ex.pressam segundo seu modo as verdades superiores e se adequam a esta lei de correspondência que acabamos de indicar. Estes fatos, também, ex.istem realmente como tais, mas, ao mesmo tempo, são igualmente símbolos: e, desde nosso ponto de vista, são muito mais dignos de interesse enquanto símbolos do que enquanto fatos; não pode ser de outra forma a partir do momento em que pretendemos nos vincular aos princípios. e é isto precisamente, como em outro lugar já explicamos (9), o que distingue essencialmente a "ciência sagrada" da "ciência profana". Se insistimos ainda um pouco sobre isso é para que não se produza nenhuma confusão a este respeito: é necessário saber pôr cada coisa no lugar que normalmente lhe corresponde; a história, à condição de ser considerada como convém, tem, como todo o reslO, seu lugar no conhecimento integral, ma" carece de valor, sob este aspecto, se não permitir encontrar, nas próprias contingências que são seu objeto imediato, um ponto de apoio para elevar-se acima de tais contingências. Quanto ao ponto de vista da história "profana", que

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exclusivamente se apega aos fatos e não os transcende, não tem interesse para nós. tal como tudo o que depende do domínio da simples erudição; não é então absolutamente como historiador, caso se entenda em tal sentido, como consideramos os fatos, e é isto o que nos permite não levar em conta certos preconceitos "críticos" particulannente caros a nossa época. Parece, além do mais, que o emprego exclusivo de certos métodos foi imposto aos historiadores modernos para lhes impedir de ver claramente em questões às quais não terei que tocar, pela simples razão de que teriam podido conduzi·los a conclusões contrárias às tendências "materialistas" que o ensino "oficial" tem por missão fazer prevalecer; é evidente que. por nossa parte, não nos sentimos de modo algum obrigados a manter a mesma reserva. Dito isto. pensamos já poder abordar diretamente o tema de nosso estudo, sem nos demorar mais nestas observações preliminares, que em suma não têm como fim senão o definir o mais claramente possível o espírito no qual o escrevemos, e no qual igualmente o convém ler se verdadeiramente quer compreender seu sentido.

Notas (1) Estas tradições sempre foram primeiramente orais; às vezes,

como entre os celtas. nunca seriam escritas; sua concordância prova ao mesmo tempo a comunidade de origem e, portanto, a vinculação a uma tradição primitiva. e a rigorosa fidelidade da transmissão oral. cuja manutenção é, neste caso. uma das principais funções da autoridade espiritual. (2) A mesma indicação se encontra também claramente formulada na tradição extremo-oriental. como o mostra concretamente esta passagem do Lao-Tse: «Os Antigos, mestres possuíam a Lógica. a Clarividência e a Intuição; esta Força da Alma permanecia inconsciente: esta Inconsciência de sua Força Interior dava a sua aparência a majestade ... Quem poderia, em nossos dias, por sua claridade majestosa. clarificar as trevas interiores? Quem poderia. em nossos dias, por sua vida majestosa, revivificar a mone interior?. Eles levavam a Via (Tao) em sua alma e foram Indivíduos Autônomos: como tais. viam as perfeições de suas debilidades» (Tao-te-king. c. XV: também Chuang-tse. c. VI. que é o comentário desta passagem). A «Inconsciência» da qual se fala aqui se refere à espontaneidade desse estado, que não era então o resultado de nenhum esforço; e a expressão «Indivíduos Autônomos» deve entender-se no sentido do sãnscrito. swêc/1chllâchâri. quer dizer. «que segue sua própria rnntade», ou segundo outra expressão equivalente que se encontra no esoterismo islãmico. «que é ele mesmo sua própria lei». (3) "A Crise do Mundo Moderno... e. VI: por outra pane, sobre o princípio da instituição das casta~. ver. Introdução geral ao eswdo da.f do14tri11as hindus. 3ª parte, c. VI.

(4) "A Crise do Mundo Moderno... c. 1. (5) Encontra-se uma indicação a este respeito na história de Parash11Râma. que. diz-se. aniquilou aos Kshatriyas rebeldes. numa época em que os antepassados dos hindus habitavam ainda uma região setentrional.

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(6) Por oulra pane. é necessário dizer que os dois símbolos do javali e do urso não aparecem sempre forçosamente em luta ou em oposição. mas sim podem também representar às vezes os dois poderes espiritual e temporal, ou as duas castas dos druidas e dos cavaleiros. em suas relações normais e harmônicas, como se vê concretamente na lenda de Merlin e de Artur, que. efetivamen1e, são também o javali e o urso. assim como o explicaremos se as circunstâncias nos permitirem desenvolver este simbolismo em outro estudo. (7) "A Crise do Mundo Moderno". e. IV.

Capítulo li: FUNÇÕES DO SACERDÓCIO E DA REALEZA A oposição entre os poderes espiritual e temporal. sob uma forma ou outra, encontra-se em quase todos os

povos. o que não tem nada de surpreendenle, posto que corresponda a uma lei

geral da história humana,

relacionada. além do mais, com todo o conjunto dessas "leis cíclicas" às quais, em quase todas nossas obras. fizemos freqüentes alusões. Para os períodos mais antigos, esta oposição se acha habitualmente, nos dados tradicionais, expressa sob uma forma simbólica, tal como indicamos anteriormente no que concerne aos Celtas; mas

não é este aspecto da questão que nos propomos especialmente desenvolver aqui. Ater-nos-emas, sobretudo, no momento. em dois exemplos históricos, tirados um do Oriente e outro do Ocidente: na Índia, o antagonismo de que se trata se encontra na forma da rivalidade entre Brâhmanes e K.rhatriyas, da qual mencionaremos alguns episódios; na Europa da Idade Média aparece. sobretudo, como o aquilo que se chamou a questão entre o Sacerdócio e o Império. embora também tivesse então outros aspectos mais particulares, ainda que não menos característicos, como se verá posteriormente (1). Por outra parte. não seria muito difícil comprovar que a mesma luta prossegue ainda em nossos dias, embora, devido à desordem moderna e à "mescla das castas", complique-se com elementos heterogêneos

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que podem dissimulá-la às vezes ante o olhar de um observador superficial. Não é que se conteste, no geral ao menos, e excetuando alguns casos extremos, que ambos os poderes, aos quais podemos chamar o poder sacerdotal e o poder real, pois são estas suas verdadeiras denominações tradicionais, não lenham um e outro sua razão de ser e seu domínio próprio. Em suma, o debate não alcança habitualmente mais que sobre a questão das relações hierárquicas que devem existir entre eles; tratase de uma luta pela supremacia, e esta luta se produz invariavelmente da mesma maneira: vemos os guerreiros, depositários do poder temporal, depois de estarem a princípio submetidos à autoridade espiritual, rebelarem-se contra ela e se declararem independentes de toda potestade superior, ou inclusive tentar submeter esta autoridade da qual não obstante, na origem. houvessem reconhecido seu poder. e fazer dela um instrumento a serviço de sua própria dominação. Tão somente isto basta para demonstrar que deve haver, em tal rebeldia, uma inversão das relações nonnais; mas esta se vê ainda muito mais claramente ao se considerarem estas relações como sendo, não simplesmente as de duas Funções sociais mais ou menos claramente definida~ e nas quais cada uma pode ter a natural tendência a elevar-se sobre a outra, mas sim as de dois domínios nos quais se exercem respectivamente tais funções; são, efetivamente, as relações entre ambos domínios o que deve logicamente detenninar as dos poderes correspondentes.

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Entretanto, antes de abordar diretamente estas considerações, devemos formular algumas observações que facilitarão sua compreensão, tomando preciso o sentido de alguns dos termos dos quais deveremos nos servir constantemente; e isso é ainda mais necessário quando tais termos, no uso corrente, tenham adotado um significado bastante vago e, às vezes, muito afastado de sua concepção original. Em primeiro lugar. se falarmos de dois poderes, e se podemos fazê-lo nos casos nos quais cabe, por razões diversas, guardar entre eles uma espécie de simetria exterior. preferimos não obstante. mais freqüentemente e para marcar melhor a distinção, empregar, para a ordem espiritual, a palavra "autoridade", mais que a de "poder", que reservaremos à ordem temporal, à qual convém mais propriamente quando quer entender em seu sentido estrito. Efetivamente, a palavra "poder"' evoca quase inevitavelmente a idéia de potência ou de força. e, sobretudo, de uma força material (2). de uma potência que se manifesta visivelmente fora e que se afirma mediante o emprego dos meios exteriores; e tal é, por própria definição, o poder temporal (3). Pelo contrário, a autoridade espiritual, interior por essência, não se afirma senão por si mesma, independentemente de todo apoio sensível, e de certo modo se exerce invisivelmente; caso possa se falar aqui de potência ou de força não é mais que por transposição analógica e, ao menos no caso de uma autoridade espiritual em estado puro, se assim pode ser dito, deve se compreender que se trata de uma potência totalmente intelectual, cujo nome é "sabedoria", e da única força da verdade (4).

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Algo que também precisa ser explicado, e inclusive um pouco mais amplamente, são as expressões, que faz um momento empregamos, de poder sacerdotal e de poder real: o que deve ser entendido exatamente por sacerdócio e por realeza? Começando com esta última, diremos que a função real compreende tudo o que, na ordem social, constitui o "governo" propriamente dito, e isso ainda que este governo não tenha forma monárquica; esta função, efetivamente, é a que propriamente pertence à casta dos Kshatriyas, e o rei não é mais que o primeiro deles. A função de que se trata é em certo modo dupla: administrativa e judicial por um lado. militar por outro, pois deve assegurar a manutenção da ordem, simultaneamente dentro, como função reguladora e equilibradora. e fora, como função protetora da organização social; ambos os elementos constitutivos do poder real estão, em diversas tradições, simbolizados respectivamente pela balança e pela espada. Vê-se com isso que "poder régio" é realmente sinônimo de "poder temporal", inclusive tomando este último em Ioda a extensão de que é suscetível; mas a idéia muito mais restrita que o Ocidente moderno faz da realeza pode impedir que esta equivalência apareça imediatamente. e por isso foi necessário fonnular esta definição, que jamais se deverá perder de vista a partir de agora. Quanto ao sacerdócio, sua função essencial é a conservação e a transmissão da doutrina lradicional, em que toda organização social regular encontra seus princípios fundamentais: esta função, além do mais, é

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evidentemente independente de toôas as formas especiais que pode revestir a doutrina para se adaptar, em sua expressão, às condições particulares de tal povo ou de tal época, e que não afetam em nada o fundo mesmo desta doutrina, que permanece sempre e em todas panes idêntica e imutável, desde que se tratem de tradições autenticamente ortodoxas. É fácil compreender que a função do sacerdócio não é precisamente a que as concepções ocidentais, especialmente hoje em dia, atribuem ao "clero" ou aos "sacerdotes", ou que, ao menos, ainda que o seja em certa medida e em alguns casos, também pode ser algo distinto. De fato, o que possui propriamente o caráter "sagrado" é a doutrina tradicional e o que se refere diretamente a ela. e esta doutrina não toma necessariamente a fonna religiosa (5); "sagrado" e "religioso" não são equivalentes de modo algum, e o primeiro de ambos os tennos é muito mais abrangente que o segundo; embora a religião forme parte do domínio "sagrado", este compreende elementos e modalidades que não têm absolutamente nada de religioso; e o sacerdócio, como seu nome indica, referese, sem nenhuma restrição, a tudo o que verdadeiramente deva ser chamado "sagrado". A verdadeira função do sacerdócio é, pois, acima de tudo, uma função de conhecimento e de ensinamento (6) e por isso, como dissemos anteriormente, seu atributo próprio é a sabedoria; com segurança, algumas outras funções mais exteriores, como o cumprimento dos ritos, pertencem-lhe igualmente. porque requerem do

conhecimento da doutrina, ao menos em princípio, e panicipam do caráter "sagrado" inerente a esta; mas tais funções não são senão secundárias, contingentes e de certo modo acidentais (7). Se, no mundo ocidental, o acessório parece aqui haver se convertido na função principal, quando não -inclusive- na única. é porque a natureza real do sacerdócio foi esquecida quase que por completo; este é um dos efeitos da separação moderna, que nega a intelectualidade (8), e que, embora não pôde fazer desaparecer todo o ensino doutrinal, ao menos o "minimizou" e o relegou a um segundo plano. Nem sempre foi assim, e a própria palavra "clero" nos oferece a prova, pois, originariamente, "clérigo" significava "sábio" (9), e se opõe a "laico", que designa ao homem do povo, quer dizer. ao "vulgar", comparado ao ignorante ou ao "profano", a quem não se pode pedir senão que creias no que não é capaz de compreender, porque é este o único meio de lhe fazer participar da tradição na medida de suas possibilidades (10). É inclusive curioso notar que as pessoas que, em nossa época, vangloriam-se de chamar-se "laicos", assim como aquelas a quem agrada intitularem-se "agnósticos", e que por outra parte freqüentemente são as mesmas, não fazem com isso senão gabar-se de sua própria ignorância; e, para que não se dêem conta de que tal é o sentido das etiquetas com as quais se adornam, é preciso que esta ignorância seja efetivamente muito grande verdadeiramente irremediável.

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Embora o sacerdócio é, por essência, o depositário do conhecimento tradicional, isso não significa que tenha o monopólio do mesmo, posto que sua missão consiste, não somente em conservá-lo integralmente, mas também em comunicá-lo a todos aqueles que sejam aptos para recebê-lo, em distribuí-lo de certo modo hierarquicamente segundo a capacidade intelectual de cada um. Todo conhecimento desta ordem tem então sua origem no ensino sacerdotal, que é o órgão de sua transmissão regular; e o que aparece como mais particularmente reservado ao sacerdócio, em razão de seu caráter de pura intelectualidade. é a parte superior da doutrina, quer dizer, o conhecimento dos próprios princípios, enquanto que o desenvolvimento de certas aplicações convém melhor às aptidões de outros homens, a quem suas funções próprias põem em contato direto e constante com o mundo manifestado, quer dizer, com o domínio ao qual se referem ditas aplicações. É a razão de que vejamos na Índia, por exemplo, que certos ramos secundários da doutrina tenham sido estudados mais especialmente pelos Kshatriyas, enquanto que os Brâhmanes não lhes concedem senão uma importância muito relaliva, estando sem cessar sua atenção fixada na ordem dos princípios transcendentes e imutáveis, dos quais todo o restante não são mais que conseqüências acidentais, ou, caso se tomem as coisas em sentido inverso, sobre a meta suprema, em relação à qual todo o resto não são mais que meios contingentes e subordinados (li). Existem inclusive livros tradicionais particularmente destinados ao uso dos Kshatriyas, já que

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apresentam aspectos doutrinais adaptados a sua natureza própria (12); há "ciências tradicionais" que convêm, sobretudo, aos Kshatriyas, enquanto que a metafísica pura é patrimônio dos Brâhmanes (13). Não há aqui nada que não seja perfeitamente legítimo, poi:-. tais aplicações ou adaptações formam também parte do conhecimento sagrado considerado em sua integralidade e, por outra parte, embora a casta sacerdotal não se interesse diretamente nelas. entretanto é sua obra, posto que unicamente ela esteja qualificada para controlar sua perfeita conformidade com os princípios. Ainda assim, pode ocorrer que os Kshatriyas. quando entram em rebelião contra a autoridade espiritual. desconheçam o caráter relativo e subordinado de tais conhecimentos, aos quais ao mesmo tempo consideram como seu bem próprio, e negam havê-los recebido dos Brâhmanes. e que finalmente cheguem inclusive até pretendê-los superiores aos que são da posse exclusiva destes últimos. O que disso se resulta é, nas concepções dos Kshatriyas rebeldes, a inversão das relações normais entre os princípios e suas aplicações, ou inclusive às vezes, nos casos mais extremos, a pura e simples negação de todo princípio transcendente; trata-se então, em todos os casos, da substituição da "metafísica" pela "física". entendendo ambos os termos em seu sentido rigorosamente etimológico. ou, em outras palavras, o que se pode chamar o "naturalismo". assim como se verá melhor ainda na continuação (14).

Desta distinção, no conhecimento sagrado ou tradicional, de duas ordens que se podem, de maneira geral. designarem como a dos princípios e a das aplicações, ou ainda. segundo o que acabamos de dizer, como a ordem "metafísica" e a ordem "física", derivavase, nos mistérios antigos. tanto no Oriente como no Ocidente, a distinção entre o que se chamava "grandes mistérios" e "pequenos mistérios", implicando estes. de fato, essencialmente o conhecimento da natureza, e aqueles o conhecimento do que está além da natureza (15). Esta mesma distinção corresponde precisamente à existente entre a "iniciação sacerdotal" e a "iniciação real", quer dizer, que os conhecimentos que eram ministrados nestas duas classes de mistérios eram os que se consideravam necessários para o exercício das respectivas funções dos Brâhmanes e dos Kshatriyas. ou do que era o equivalente destas castas nas instituições de diversos povos (16): mas, é obvio, é o sacerdócio o que, em virtude de sua função de ensino, conferia igualmente as duas iniciações. e o que assegurava assim a legitimidade efetiva, não só de seus próprios membros, mas também daqueles da casta à qual pertencia o poder temporal; e disso, como veremos, procede o "direito divino" dos reis (17). Se isto é desta forma. é porque a posse dos "grandes mistérios" implica, a fortiori e "além disso", a dos "pequenos mistérios"; como toda conseqüência e toda aplicação estão contidas no princípio do qual procedem, a função superior engloba "eminentemente" as possibilidades das funções inferiores (18); necessariamente é assim em toda hierarquia

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verdadeira, quer dizer, fundada sobre a natureza mesma dos seres. Há ainda um ponto que devemos assinalar, ao menos sumariamente e sem insistir muito: junto às expressões de "iniciação sacerdotal" e de "iniciação real", e por assim dizer de forma paralela, encontram-se também as de "arte sacerdotal" e "arte real", que designam a colocação em prática dos conhecimentos adquiridos nas correspondentes iniciações, com todo o conjunto das "técnicas" que dependem de seus respecLivos domínios (19). Estas denominações se conservaram durante longo tempo nas antigas corporações. e a segunda. a de "arte real", teve inclusive um destino bastante singular, pois se tran!-.mitiu até a Maçonaria moderna. embora seja evidente que já não subsista, assim como muitos outros termos e símbolos, mais que como um vestígio incompreendido do passado. Assim que a designação de "arte sacerdotal" desapareceu completamente: entretanto, convinha evidenlemente à arte dos construtores de catedrais da Idade Média, do mesmo modo que aos construtores dos templos da Antigüidade; mas aconteceu de se produzir posteriormente uma confusão entre ambos os domínios. devido a uma perda ao menos parcial da tradição, conseqüência das usurpações do temporal sobre o espiritual; perdeu-se assim inclusive o nome de "arte sacerdotal", sem dúvida na época do Renascimento, que assinala efetivamente, sob todos os aspectos, a

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consumação da ruptura do mundo ocidental com suas próprias doutrinas tradicionais (20).

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Notas (1) Poder-se-iam encomrar mui1os outros exemplos sem muito

esforço. especialmente no Orieme: na China. as lutas que se produziram em certas épocas emre os taoís1as e os confucionistas, cujas respecti..,as doutrinas se referem aos domínios de ambos os poderes. como mais adiame explicaremos: no Tibete. a hostilidade testemunhada em princípio pelos reis contra o Lamaísmo. que por outra pane acabou não somen1e por triunfar. mas também por absorver completamente o poder temporal na organização "teocrática" que ainda atualmeme existe [N.T.: O livro foi escrito antes da invasão do Tibete pela China. em 1951 ]. (2) Poder-se-ia, além do mais, fazer entrar também nesta noção a força da vomade, que não é •·material" no semido estrito da palavra. mas que, para nós. ê ainda da mesma ordem. já que está essencialmente oriemada à ação. (3) O nome da casta dos Ksfiatriyas [K.fhatriyas] deriva de kshatra. que significa "força". (4) Em hebraico. a distinção que aqui indicamos es1á expressa pelo emprego de raízes que se correspondem. mas que diferem pela presença das letras kaf e qiif, que são respectivamente. por sua interpretação hieroglífica. os sinais da força espiritual e da força material, de onde. por um lado, os sentidos de verdade, sabedoria, conhecimento, e, por outro, os de potência, posse, dominação: tais são as raízesjaq e joq, kall e qah, designando as primeiras formas de cada par as atribuições do poder sacerdotal, e as segundas as do poder real (ver ··o Rei do Mundo", cap. VI). [N. T.: Do JAK deriva JOJMA (Sabedoria). do JOQ deriva JOQ (lei. decreto). do KAH deriva KOHEN (Sacerdote). e do QAH deriva QAHAL (Reunir. congregação)].

(5) Além do mais, mais adiante veremos por que motivo a forma religiosa propriamente dita é algo particular ao Ocidente.

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(6) Em razão desta função de ensino. no P1m1sha·sltkra do Rig-Vêda, os Brâhmanes são representados como correspondendo à boca de P11rusha. considerado como o "Homem Universal". enquanto que os Kshatriyas correspondem a seus braços. posto que suas funções se refiram essencialmente à ação. (7) Às vezes, o exercício das funções intelectuais por um lado e rituais por outro deu na:o.cimento. no próprio sacerdócio. a duas divisões: encontra-se um exemplo muito claro disso no Tíbete: '"A primeira das duas grandes divisões compreende a quem preconiza a observação dos preceitos morais e das regras monásticas como meios de saJvação; a segunda engloba a aqueles que preferem um método puramente intelectual (denominado "via direta"), liberando a aquele que a segue de todas as leis, sejam quais forem. "Nenhum biombo perfeitamente estanque separa os aderentes de ambos os sistemas. Muito raros são os religiosos vinculados ao primeiro que não reconheçam que a vida virtuosa e a disciplina das observâncias monásticas. por excelentes e, em muitos casos. indispensáveis que sejam, não constituem entretanto mais que uma simples preparação a uma via superior. Quanto aos partidários do segundo sistema, todos, sem exceção, acreditam plenamente nos efeitos benéficos de uma estrita fidelidade às leis morais e a aquelas que foram especialmente decretadas para os membros do Sangha (comunidade budista). Além disso, todos são unânimes em declarar que o primeiro dos métodos é o mais recomendável para a maioria dos indivíduos" (Alexandra David-Neel. "Le Thibet mys1iq11e". na "ReV11e de Paris", 15 de fevereiro de 1928). Reproduzimos textualmente a passagem, embora quamo a algumas das expressões utilizadas se requeira alguma reserva: assim, não há dois .. sistemas'", que, como tais, se excluiriam forçosamente: mas o papel dos meios contingentes que é o dos ritos e das observâncias de toda classe e sua subordinação com respeito à via puramente intelectual está definido muito claramente. e de uma maneira que. por outra parte. é

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exatamente conforme aos ensinos da doutrina hindu sobre o mesmo assunto. (8) Pensamos que é quase supéríluo recordar que tomamos sempre esta palavra no sentido em que se reíere à inteligência pura e ao conhecimento supra-racional. (9) Não é que seja legítimo estender o significado da palavra "clérigo" como tem íeito Julien Benda em seu livro liJ Trahison des Clercs. pois tal expressão implica o desconhecimento de uma distinção fundamental, a mesma que a existente entre "conhecimento sagrado" e "saber profano"; a espiritualidade e a intelectualidade não têm cenamente o mesmo sentido para Benda que para nós, e faz entrar no domínio ao que qualifica de "espiritual" muitas coisas que, a nossos olhos. são de ordem puramente temporal e humana, o que, por outra pane. não nos deve impedir que reconheçamos que há em seu livro considerações muiw interessantes e justas em muitos aspectos. (10) A dii.tinção feita no Catolicismo entre a "Igreja ensinadora" e a "Igreja ensinada" deveria ser precisamente uma distinção entre "quem sabe" e "quem acredita": o é em princípio, mas, no presente estado das coisas. é ainda de fato? Limitamo-nos a expor a pergunta, pois não é a nós a quem corresponde resolvê-la e, por outra parte, não lemos os meios para isso; efetivamente, se muitos indícios nos fazem temer que a resposta não deve ser positiva, não pretendemos entretamo ter um conhecimento completo da organização atual da Igreja católica, e não podemos senão expressar o desejo de que ainda exista, em seu interior. um centro no qual se conserve integralmente não só a "letra". mas também o "espírito" da doutrina tradicional. (11) Tivemos, além do mais, ocasião de assinalar um caso ao qual se aplica o que aqui dizemos: enquanto que os Brâhma11es sempre estão vinculados quase exclusivamente. ao menos em seu âmbito pessoal, à realização imediata da "Liberação" final, os Kshatriyas desenvolveram preferentemente o estudo dos estados condicionados

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e transilivos que correspondem aos diversos estados das duas "vias do mundo manifes1ado". chamadas dfra-yâna e pitri-yâna ("'O Homem e seu Devir Segundo o Vedama", 3" ed., cap. XXI). (12) Tal é, na Índia, o caso dos /tihâsas e dos Purânas. enquanto que o estudo do Vêda concerne propriamente aos Brâhmanes, porque neles se encontra o princípio de todo o conhecimento sagrado; verse-á além do mais posteriormente que a distinção dos objetos de estudo que convêm às duas castas corresponde. de maneira geral. à das duas panes da tradição que, na doutrina hindu, são chamadas Shrnti e Smriti. (13) Falamos sempre de Brâhmanes e Kshatriyas tomados em seu conjunto; embora existam distinções individuais. isso não implica nenhum prejuízo ao próprio princípio das castas. e somente provam que a aplicação deste princípio não pode ser senão aproximada, especialmente nas condições do Kali-Yuga. (14) Embora falemos aqui de Brâhma11es e dos Kshatriyas. porque o emprego de tais palavras facilita enormemente a expressão daquilo do que se trata, deve ficar claro que tudo o que aqui dizemos não se aplica unicamente à Índia; e esta mesma observação será válida todas as vezes que empreguemos tais termos sem nos referir expressamente à forma tradicional hindu; explicar-nos-emo mais completamente sobre isso, além de tudo, um pouco mais adiante. (15) De um ponto de vista um pouco diferente, embora não obstante estreitamente ligado a este, pode-se dizer 1ambém que os "pequenos mistérios" concernem somente às possibilidades do estado humano, enquanto que os ··grandes mistérios" concernem aos estados suprahumanos; pela realização destas possibilidades ou estados, conduzem respectivamente ao "Paraíso terrestre" e ao "Paraíso celestial". tal e como afirma Dante num texto do De Monarchia que mais adiante citaremos; e não se deve esquecer que, como indica o mesmo Dante bastan1e claramente em sua Divina Comédia, e como teremos ocasião de repeti-lo a seguir. o "Paraíso terrestre" não de\·e ser considerado,

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na realidade, mas sim como uma e1apa na via que conduz ao "Paraíso celestial". (16) :'\o antigo o Egito, cuja constituição era claramente "1eocrática", parece que o rei era considerado como assimilado à casta sacerdotal pelo fato de sua iniciação aos mistérios. e inclusive. às vezes, foi eleilo demre os membros desta casta; ao menos é o que afirma Plutarco: .. Os reis eram escolhidos dentre os sacerdotes ou os guerreiros, porque ambas as classes, uma em razão de sua coragem, a outra em virtude de sua sabedoria. gozavam de uma estima e de uma consideração paniculares. Quando o rei provinha da classe dos guerreiros. enb'ava do momento de sua eleição a formar parte da classe dos sacerdotes; era então iniciado nessa filosofia em que tantas coisas, sob fórmulas e mitos que envolviam com uma aparência obscura a verdade e a manifestavam por transparência, estavam ocuhas" (Ísis e Osiris. 9. tradução de Maria Meunier). Advertir-se-á que o final desta passagem contém uma indicação muito explícita do duplo sentido da palavra "revelação" (cf...O Rei do Mundo'". P. 38). (17) É necessário acrescentar que. na Índia, a terceira casta. a dos Vaisl1yas, cujas funções próprias são as de ordem econômica. também é admitida a uma iniciação que lhe outorga direito às qualificações, que lhe são assim comuns com as duas primeiras, de âry•a ou "nobre" e de dwija ou "duas vezes nascido"; os conhecimentos que lhe convêm especialmente não representam por outra parte. em princípio ao menos, mais que uma porção restringida dos "pequenos mistérios" tal como acabamos de defini-los; mas não vamos insistir sobre este ponto, já que o tema do presente estudo não implica propriamente senão a consideração das relações entre as duas primeiras castas. (18) Pode-se dizer então que o poder espiritual pertence "formalmente" à casta sacerdotal. en~uanto que o poder temporal pertence "eminentemente~ a esta mesma casta sacerdotal, e "fonnalmente" à casta real. Assim, segundo Aristóteles. as "formas" superiores contêm ~eminentemente" as "formas" inferiores.

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(19) Devemos notar a propósito disso que. entre os romanos. Jano. que era o deus da iniciação aos mistérios. era ao mesmo tempo o deus dos Coffegia fabrorum: este paralelismo é particularmente significativo do pomo de visla da correspondência que aqui indicamos. Sobre a 1ransposição mediante a qual toda arte. assim como toda ciência. pode receber um valor propriameme "iniciático", ver "O Esoterismo de Dante'". pp. 12-15. (20) Alguns fixam com precisão na metade do século XV a data desta perda da antiga rradição, que entranhou a reorganização. em 1459, das confrarias de construtores sobre uma nova base, desde então incompleta. É de as'iinalar que é a partir desta época quando as Igrejas deixaram de estar oriemadas regularmente, e este fato tem, quanto àquilo do que se trata. uma importância muito mais considerável do que se poderia pensar a primeira vista (cf. "O Rei do Mundo"" . pp. 96 e 123-124 ).

Capítulo Ili: CONHECIMENTO E AÇÃO Dissemos anteriormente que as relações entre os poderes espiritual e temporal devem ser determinadas pelas de seus respectivos domínios; reconduzida assim a seu princípio, a questão nos parece muito simples. pois não é diferente. no fundo, que a das relações entre o conhecimento e a ação. Poder-se-ia objetar a isto que, segundo o que acabamos de expor, os depositários do poder temporal devem também possuir normalmente um

detenninado conhecimento; mas, além de que não o possuem por si mesmos, mas o recebem da autoridade espiritual, este conhecimento não corresponde senão às aplicações da doutrina. e não aos próprios princípios; não é então. propriamente falando, mais que um conhecimento por participação. O conhecimento por excelência, o único que verdadeiramente merece esse nome na plenitude de seu sentido, é o conhecimento dos princípios, independentemente de toda aplicação contingente, e é este o que pertence exclusivamente a aqueles que possuem a autoridade espiritual. porque não há nele nada que dependa da ordem temporal. inclusive entendida em sua acepção mais ampla. Pelo contrário, quando se passa às aplicações. encontramo-nos nessa ordem temporal, posto que o conhecimento já não é considerado então unicamente em si mesmo e por si mesmo, mas sim enquanto que dê à ação sua lei; e é nesta medida que é necessário {o conhecimento) àqueles cuja

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função própria depende essencialmente do domínio da ação. É evidente que o poder temporal, em suas diversas fonnas, militar, judicial e administrativa, está completamente envolto na ação: encontra-se então, por suas próprias atribuições, encerrado nos mesmos limites que esta, quer dizer, nos limites do mundo ao qual se pode chamar propriamente "humano", compreendendo, além disso, neste termo. possibilidades muito mais amplas das que habitualmente se consideram. Pelo contrário, a autoridade espiritual se funda inteiramente no conhecimento. já que, como se viu, sua função essencial é a conservação e o ensino da doutrina, e seu domínio é ilimitado como a própria verdade (1); o que lhe está reservado pela natureza mesma das coisas. aquilo que não pode comunicar aos homens cujas funções são de outra ordem, e isto porque suas possibilidades não o implicam, é o conhecimento transcendente e "supremo" (2), o que supera o domínio "humano" e inclusive, mais geralmente, o mundo manifestado, que é, não somente "físico", mas sim "metafísico" no sentido etimológico da palavra. Deve compreender-se que não se trata aqui de uma vontade da casta sacerdotal de guardar só para si o conhecimento de certas verdades, mas sim de uma necessidade que diretamente se desprende das diferenças de natureza que ex.istem entre os seres, diferenças que. como já dissemos, são a razão de ser e o fundamento da distinção das castas. Os homens que estão feitos para a ação não estão feitos para o puro conhecimento e. numa sociedade constituída

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sobre bases verdadeiramente tradicionais, cada um deve desempenhar a função para a qual está realmente "qualificado"; de outro modo, não há mais que confusão e desordem, nenhuma função se desempenha como se deveria, e é isto precisamente o que se produz na época atual. Bem sabemos que, por causa desta confusão, as considerações que aqui expomos podem parecer muito estranhas no mundo ocidental moderno, no qual o que se chama "espiritual" freqüentemente não tem senão uma muito longínqua relação com o ponto de vista estritamente doutrinal e com o conhecimento desligado de todas as contingências. Pode-se inclusive, a este respeito. fazer uma curiosa observação: hoje em dia ninguém se limita a distinguir entre o espiritual e o temporal, como seria legítimo e inclusive necessário, senão que se tem a pretensão de separá-los radicalmente; e justamente ocorre que ambas as ordens jamais estiveram tão mescladas como no presente, e que, sobretudo, as preocupações temporais nunca afetaram tanto àquilo que lhe deveria ser absolutamente independente; sem dúvida, é inevitável que o seja assim, em razão das condições própria., de nossa época, às quais descrevemos em outro lugar. Devemos. além disso. para evitar toda falsa interpretação, declarar claramente que o que aqui dizemos não concerne senão ao que anteriormente chamamos autoridade espiritual em estado puro, e seria necessário abster-se de procurar exemplos disso ao nosso redor. Poder-se-á inclusive, caso se queira,

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que aqui não se trata mais que de um tipo teórico e de certo modo "ideal". embora, para falar a verdade, esta maneira de considerar as coisas não seja inteiramente a nossa: reconhecemos que. de fato. nas aplicações históricas. é sempre necessário ter em conta as contingências em certa medida, mas, entretanto. tomamos à civilização do Ocidente moderno tão somente pelo que ela é, ou seja, uma separação e uma anomalia. que por outra parte se ex.plica por sua correspondência com a última fase do Kali-Yuga. Mas voltemos para as relações entre o conhecimento e a ação; já tivemos ocasião de tratar este tema com certo desenvolvimento (3). e. em conseqüência. não repetiremos aqui tudo o que dissemos então; mas é, não obstante. indispensável recordar ao menos os pontos mais essenciais. Consideramos a antítese entre o Oriente e Ocidente, no presente estado das coisas. como podendo em suma reduzir-se a isto: Oriente mantém a superioridade do conhecimento sobre a ação. enquanto que o Ocidente moderno afinna pelo contrário a superioridade da ação sobre o conhecimento, e isto quando não chega à completa negação deste; dizemos somente o Ocidente moderno, pois foi de um modo muito distinto na Anrigüidade e na Idade Média. Todas as doutrinas tradicionais, sejam orientais ou ocidentais, são unânimes em afirmar a superioridade e inclusive a transcendência do conhecimento sobre a ação, com respeito à qual desempenha de certo modo o papel do "motor imóvel" de Aristóteles, o que, é obvio, não quer

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dizer que a ação não tenha também seu lugar legítimo e sua importância em sua ordem, mas esta ordem não é mais que a das contingências humanas. A mudança seria impossível sem um princípio do qual procedesse e que. precisamente por ser seu princípio, não pode estar submetido a ele. logo é forçosamente "imóvel", sendo o centro da "roda das coisas" (4); da mesma forma, a ação. que pertence ao mundo da transitoriedade, não pode ter seu princípio em si mesma; toda a realidade da qual é suscetível é extraída de um princípio que se encontra além de seu domínio, e que não pode estar mais que no conhecimento. Só este, efelivamente, pennite sair do mundo da transitoriedade ou do "suceder" e das limitações que lhe são inerentes e, quando alcança o imutável, o que é o caso do conhecimento principiai ou metafísico, que é o conhecimento por excelência (5), possui a imutabilidade. já que todo conhecimento verdadeiro é essencia1mente identificação com seu objeto. A autoridade espiritual, devido ao que se implica neste conhecimento, possui em si mesma a imutabilidade; o poder temporal, pelo contrário, está submetido a todas as vicissitudes do contingente e do transitório, a menos que um princípio superior lhe comunique, na medida compatível com sua natureza e seu caráter, a estabilidade que não pode obter por seus próprios meios. Este princípio não pode ser mais que o que é representado pela autoridade espiritual; o poder temporal tem então necessidade, para subsistir, de uma consagração que lhe venha desta; é esta consagração a que proporciona sua legitimidade, quer dizer, sua conformidade com a ordem

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mesma das coisas. Tal era a razão de ser da "iniciação régia", à qual definimos no capítulo anterior; nisso consiste propriamente o "direito divino" dos reis, ou o que a tradição extremo-oriental denomina o "mandato do Céu"; trata-se do exercício do poder temporal em virtude de uma delegação da autoridade espiritual, à qual este poder pertence "eminentemente". tal como já explicamos (6). Toda ação que não proceda do conhecimento carece de princípio e não é mais que uma vã agitação; do mesmo modo, todo poder temporal que ignore sua subordinação frente à autoridade espiritual é igualmente vão e ilusório; separado de seu princípio, não poderá exercer-se mais que de uma maneira desordenada, e irá fatalmente a sua perdição. Posto que falamos do "mandato do Céu". não estará fora de propósito narrar aqui como, segundo o próprio Confúcio, devia cumprir-se este mandato: "Os antigos príncipes, para fazer brilhar as virtudes naturais no coração de todos os homens, aplicavam-se em primeiro lugar a governar bem seus principados. Para governar bem seus principados, punham antes em ordem suas famílias. Para pôr ordem em suas famílias, trabalhavam antes em aperfeiçoar-se a si mesmos. Para aperfeiçoar-se a si mesmos. ordenavam antes os movimentos de seus corações. Para ordenar os movimentos de seus corações, tornavam antes sua vontade perfeita. Para tomar sua vontade perfeita, desenvolviam seus conhecimentos ao máximo. Desenvolviam seus conhecimentos escrutinando a

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natureza da'i coisas. Uma vez escrutinada a natureza das coisas, os conhecimentos alcançavam seu mais alto grau. Tendo chegado os conhecimentos a seu mais alto grau, a vontade se fazia perfeita. Sendo perfeita a vontade, os movimentos do coração se ordenavam. Ordenados tais movimentos, lodo homem está isento de defeitos. Depois de haver-se corrigido a si mesmo, estabelece-se a ordem na família. Reinando a ordem na família, o principado está bem governado. Estando bem governado o principado, muito em breve todo o reino desfruta da paz" (7). Há que se reconhecer que existe aqui uma concepção do papel do soberano que difere singularmente da idéia que disso se faz o Ocidente moderno, e que o converte por outra parte em algo muito difícil de cumprir, embora também lhe dê um alcance muito diferente: e particularmente se observará que o conhecimento está expressamente indicado como a primeira condição para o estabelecimento da ordem. inclusive no domínio temporal.

É fácil agora compreender que a inversão das relações entre o conhecimento e a ação, numa civilização, é uma conseqüência da usurpação da supremacia por parte do poder temporal; este, efetivamente, deve então pretender que não exista nenhum domínio superior ao dele, que é precisamente o da ação. Entretanto, embora as coisas se apresentem assim, não chegam ainda ao ponto em que as vemos atualmente, onde todo valor é negado ao conhecimento; para que assim seja, é preciso que os próprios Kshatriyas tenham sido alheados de seu poder

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pelas castas inferiores (8). De fato, como indicamos anteriormente, os Kshatriyas, inclusive rebeldes, têm mais tendência a afirmar uma doutrina truncada, falseada pela ignorância ou pela negação de tudo o que supera a ordem "física", mas na qual subsistem ainda certos conhecimentos reais. embora inferiores: podem inclusive albergar a pretensão de fazer passar a esta doutrina incompleta e irregular como expressão da verdadeira tradição. Há aqui uma atitude que, embora imperdoável com respeito à verdade, não está desprovida ainda de certa grandeza (9); por outra parte, termos como os de "nobreza". "heroísmo", "honra", não são, em sua acepção original. a designação das qualidades que são essencialmente inerentes à natureza dos Kshatriyas? Pelo contrário, quando os elementos correspondentes às funções sociais de uma ordem inferior chegam a dominar por sua vez. toda doutrina tradicional, inclusive mutilada ou alterada. desaparece inteiramente; nem sequer subsiste o menor vestígio da "ciência sagrada'', e é o reino do "saber profano", quer dizer, da ignorância, o que se toma por ciência e sente prazer em seu nada. Tudo isto poderia resumir-se em poucas palavras: a supremacia dos Brâhmanes mantém a ortodoxia doutrinal; a rebelião dos Kshatriyas conduz à heterodoxia; mas com a dominação das castas inferiores. entramos na noite intelectual, e é ela a que domina atualmente no Ocidente, que por outra pane ameaça estendendo suas próprias trevas sobre o mundo inteiro.

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Seremos reprovados possivelmente por falar como se houvesse castas em toda pane, e o estender indevidamente a toda organização social denominações que não convêm propriamente mais que à Índia; e, entretanto, posto que tais denominações designam, em suma, funções que necessariamente se encontram em toda sociedade, não pensamos que tal extensão seja abusiva. É certo que a casta não somente é uma função, que também é, e acima de tudo, o que, na natureza dos indivíduos humanos, os faz aptos para desempenhar essa função preferencialmente a qualquer outra; mas tais diferenças de natureza e de aptidões existem também em todo lugar onde haja homens. A diferença entre uma sociedade em que há castas, no verdadeiro sentido da palavra. e outra em que não as há. consiste em que na primeira se dá uma normal correspondência entre a natureza dos indivíduos e as funções exercidas por eles, com a única reserva dos enganos de aplicação que, em todo caso, não são senão na segunda, esta exceções, enquanto que, correspondência não existe, ou, ao menos, não se encontra mais que acidentalmente; e este último caso é o que se produz quando a organização social carece de base tradicional (10). Nos casos nonnais sempre há algo comparável à instituição das castas, com as devidas modificações requeridas pelas condições próprias a tal ou qual povo; mas a organização que encontramos na Índia é a que representa o tipo mais completo, enquanto aplicação da doutrina metafísica à ordem humana, e esta única razão bastaria em suma para justificar a linguagem que adotamos preferentemente a toda outra que

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tivéssemos podido tirar de instituições que tenham, por sua forma mais especializada, um campo de aplicação muito mais limitado e, em conseqüência, não possam oferecer as mesmas possibilidades para a expressão de cenas verdades da ordem completamente geral (11). Há, por outra parte, outra razão, que, sendo mais contingente, nem por isso é desprezível. e é esta: é muito notório que a organização social da Idade Média ocidental estava exatamente calcada sobre a divisão das castas, correspondendo o clero aos Brâhmanes, a nobreza aos Kshatriyas, o terceiro estado aos Vaishyas e os servos aos Shúdras; não se tratava de castas em toda a acepção da palavra, mas esta coincidência, que com segurança não tem nada de fortuito, permite efetuar bem facilmente uma transposição de tennos para passar de um ao outro de ambos os casos; e esta observação encontrará sua aplicação nos exemplos históricos que consideraremos a seguir.

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Notas (1) Segundo a douuina hindu, os três termos "Verdade, Conhecimen10. Infinito" estão idemificados no Princípio Supremo: é o sentido da fórmula Satyam Jnânam Anantam Brahma. (2) Na Índia, o conhecimento (l'idyâ). segundo seu objeto ou seu domínio, distingue-se em "supremo" (parâ) e "não supremo" (aparâ).

(3) "A Crise do Mundo Moderno". cap. Ili.

(4) O centro imóvel é a imagem do princípio imutável. e tomamos aqui o movimento para simbolizar a mudança em geral. do que não é mais que uma espécie particular. (5) Pelo contrário. o conhecimento "físico" não é mais que o conhecimento das leis da mudança. leis que somente são o reflexo dos princípios transcendentes na natureza: esta. integralmente, não é mais que o domínio da mudança; por outra parte. o latim natura e o grego physis expressam ambos a idéia de "devir". (6) Por isso, a palavra melek. que significa "rei" em hebraico e em árabe, tem ao mesmo tempo, e inclusive em primeiro lugar. o sentido de "enviado". (7) Ta-hio, 1• parte, tradução de P. Couvreur. (8) Em particular. o fato de conceder uma importância preponderante às considerações de ordem econômica, que é um caráter muito patente de nossa época, pode ser considerado como um sinal da dominação dos Vaisliyas. cujo equi\'a]ente aproximado está representado no mundo ocidental pela burguesia; e efetivamente é esta a que domina depois da Revolução. (9) Esta atitude dos Kshalriyas rebeldes poderia ser caracterizada exatamente pela denominação de "luciferismo", que não deve ser

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confundido com o "satanismo", embora sem dúvida entre um e outro exista certa conexão: o "\uciferismo" é a repul~ ao reconhecimento de uma autoridade superior; o "satanismo" é a inversão das relações normais e da ordem hierárquica; e este é freqüentemente uma conseqüência daquele, assim como Lúcifer se converteu em Satã depois de sua queda. (10) Quase não há necessidade de assinalar que as "classes" sociais. tal como se as entende hoje no Ocidente. não têm nada em comum com as verdadeiras castas. e não são mais que uma espécie de falsificação sem valor nem alcance. ao não estarem absolutamente fundadas sobre a diferença das possibilidades implícitas na natureza dos indivíduos. (11) A razão pela qual é dessa forma consiste em que a doutrina

hindu é. entre as doutrinas tradicionais que subsistiram até nossos dias. a que parece derivar mais diretamente da tradição primitiva; mas este é um ponto sobre o qual não vamos insistir aqui.

Capítulo IV: NATUREZA RESPECTIVA DOS BRÂHMANES E DOS KSHATRIYAS Sabedoria e força. tais são os atributos respeclivos dos Brâhmanes e dos Kshatriyas. ou, caso se prefira, da autoridade espiritual e do poder temporal; é interessante notar que, entre os antigos egípcio~. o símbolo da Esfinge. num de seus significados. reunia precisamente estes dois atributos considerados segundo suas relações normais. De fato, a cabeça humana pode ser considerada como representando a sabedoria. e o corpo de leão, a força; a cabeça é a autoridade espiritual que dirige. e o corpo é o poder temporal que atua. É. além disso. digno de assinalar que a Esfinge sempre está representada em repouso, tomando-se aqui o poder temporal no estado de "não ação" em seu princípio espiritual. no qual está contido "eminentemente", quer dizer, apenas como possibilidade de ação, ou. melhor dizendo. no princípio divino que unifica o espiritual e o temporal, estando além de sua distinção, e sendo a fonte comum da qual ambos procedem, embora o primeiro diretamente e o segundo de maneira indireta e por mediação do primeiro. Noutro lugar encontramos um símbolo verbal que. por sua constituição hieroglífica, é um exato equivalente daquele: é o nome dos Druidas, que se lê dru-vid, no qual a primeira raiz significa a força, e a !->egunda a sabedoria (1); e a reunião de ambos os atributos ne~se nome, como a dos dois elementos da Esfinge num só ser, além de

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indicar que a realeza está implicitamente contida no sacerdócio, é sem dúvida uma lembrança da longínqua época em que os dois poderes estavam ainda unidos, em estado de indistinção primitivo, em seu princípio comum e supremo (2). Já consagramos um estudo especial a este princípio supremo dos dois poderes (3); indicávamos então como, de visível que era a princípio, fez-se invisível e se ocultou. retirando-se do "mundo exterior" na medida em que este se afastava de seu estado primitivo, o que necessariamente devia conduzir à aparente divisão de ambos os poderes. Demonstramos também como esse princípio se encontra, sob nomes e símbolos diversos, em todas as tradições, e como aparece especialmente na tradição judaico-cristã nas figuras de Melquisedeque e dos Reis Magos. Recordaremos apenas que, no Cristianismo, o reconhecimento deste princípio único subsiste sempre, ao menos teoricamente, e se afinna pela consideração das duas funções sacerdotal e real como inseparáveis na própria pessoa de Cristo. Desde certo ponto de vista, por outra parte, ambas as funções. referentes assim a seu princípio, podem ser consideradas como sendo de certo modo complementares, logo, embora a segunda, para falar a verdade, possua seu princípio imediato na primeira, há não obstante entre elas, em sua própria distinção, uma espécie de correlação. Em outras palavras, do momento em que o sacerdócio não implica, de maneira habitual, no exercício efetivo da realeza, é preciso que os representantes respectivos do

sacerdócio e da realeza extraiam seu poder de uma fonte comum. que está "além das castas"; a diferença hierárquica que existe entre elas consiste em que o sacerdócio recebe seu poder diretamente desta fonte, com a qual está em contato imediato por sua própria natureza, enquanto que a realeza. em razão do caráter mais exterior e propriamente terrestre de sua função, só pode receber o seu apenas por mediação do sacerdócio. Este, de fato, desempenha verdadeiramente o papel de "mediador" entre o Céu e a Terra; e não é casual que a plenitude do sacerdócio tenha recebido, nas tradições ocidentais, o nome simbólico de "pontificado". pois, tal e como disse São Bernardo, "o Pontífice, como o indica a etimologia de seu nome, é uma espécie de ponte entre Deus e o homem" (4). Se for possível então remontar-se à origem primitiva de ambos os poderes, sacerdotal e real. é no "mundo celestial" onde é preciso buscá-lo; isto. além do mais. pode ser interpretado real e simbolicamente, simultaneamente (5); mas esta questão é [uma] daquelas cujo desenvolvimento transbordaria o limite do presente estudo e. se tivennos devotado uma breve visão de conjunto, é porque não vamos poder evitar, no que se segue, aludir às vezes a esta fonte comum dos dois poderes. Retomando o que foi o ponto de partida desta digressão, é evidente que os atributos de sabedoria e de força se referem respecti,vamente ao conhecimento e à ação; por outra pane, na lndia, ainda se diz. em conexão com o mesmo ponto de vista, que o Brâhmane é o tipo

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dos seres estáveis, e que o Kshatriya é o tipo dos seres mutáveis (6); em outros termos, na ordem social. que além do mais está em perfeita correspondência com a ordem cósmica, o primeiro representa o elemento imutável, e o segundo o elemento móvel. Aqui ainda, a imutabilidade é a do conhecimento, que por outra pane está representado sensivelmente pela postura imóvel do homem em meditação; a mobilidade, por sua parte, é aquela que é inerente à ação, devido ao caráter transitório e momentâneo desta. Enfim, a natureza própria do Brâhmane e a do Kshatriya se distinguem fundamentalmente pelo predomínio de um guna diferente; como em outro lugar explicamos (7), a doutrina hindu considera três gunas, qualidades constitutivas dos seres em todos seus estados de manifestação: sattwa, a conformidade à pura essência do Ser universal, que se identifica com a luz inteligível ou com o conhecimento, e é representado como uma tendência a'icendente; rajas, o impulso expansivo, segundo o qual o ser se desenvolve num determinado estado e, de certo modo, num nível determinado da existência; finalmente, ramas, a obscuridão, assimilado à ignorância, e representado como uma tendência descendente. Os gunas estão em perfeito equilíbrio na indiferenciação primitiva. e toda manifestação representa uma ruptura deste equilíbrio; estes três elementos estão em todos os seres. mas em proporções diversas. que determinam as respectivas tendências de tais seres. Na natureza do Brâhmane predomina sauwa, orientando-o para os estados suprahumanos; na do Kshatriya, rajas, que tende à realização

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das possibilidades compreendidas no estado humano (8). Ao predonúnio de sattwa corresponde o da intelectualidade; ao de rajas, o que, a falta de um tenno mais adequado, podemos chamar a sentimentalidade; e esta é outra justificação do anterionnente mencionado, que o Kshatriya não está feito para o puro conhecimento: a via que lhe convém é a via à que poderia denominar-se "devocional", se nos é permitido empregar tal tenno para significar, bastante imperfeitamente por sinal, a palavra sânscrita bhakti, ou seja, a via que toma como ponto de partida um elemento da ordem emotiva; e, embora esta via se ache também fora das formas propriamente religiosas, o papel do elemento emotivo não está em parte alguma tão desenvolvido como nestas. onde afeta com um colorido especial à expressão da doutrina toda inteira. Esta última observação permite advertir a verdadeira razão de ser destas formas religiosas: convêm particularmente às raças cujas aptidões estão, de maneira geral, dirigidas, sobretudo, à ação, quer dizer, àquelas que, consideradas coletivamente, têm nelas um predomínio de elementos "rajásicos", característicos da natureza dos Kshatriyas. Este caso é o do mundo ocidental e, por isso, como já em outro lugar assinalamos (9), diz-se na Índia que, se o Ocidente retornasse a um estado nonnal e possuísse de novo uma organização social regular, encontrar-se-iam muitos Kshatriyas, mas poucos Brâhmanes; também por isso a religião, entendida em seu sentido mais estrito, é algo propriamente ocidental. Além disso, é o que explica que não pareça

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haver, no Ocidente, autoridade espiritual pura, ou que ao menos não se afirme exteriormente como tal, com as características que precisamos anteriormente. A adaptação religiosa, assim como a constituição de qualquer outra forma tradicional, é entretanto devida a uma verdadeira autoridade espiritual. no sentido mais completo da palavra; e esta autoridade, que parece então ao exterior como religiosa, pode também, ao mesmo tempo. ser algo distinto em si mesma. enquanto haja em seu seio verdadeiros Brâhmanes, e com isto entendemos uma elite intelectual que conserve consciência daquilo que está além de todas as formas particulares, ou seja, da essência profunda da tradição. Para tal elite, a forma não pode desempenhar mais que um papel de "suporte" e, por outra parte, oferece um meio de fazer participar da tradição àqueles que não têm acesso à pura intelectualidade; ma<; estes últimos, naturalmente, não vêem nada mais além da forma, já que suas próprias possibilidades intelectuais não lhes permitem ir mais longe e, consequentemente, a autoridade espiritual não tem por que mostrar-se a eles sob outro aspecto senão o que corresponda a sua natureza (10), embora seu ensino, inclusive o exterior. esteja sempre inspirado no espírito da doutrina superior (11)_ Mas também pode ocorrer que, uma vez realizada a adaptação, aqueles que são os depositários desta forma tradicional se encontrem, por sua vez, fechados nela, devido à perda do conhecimento efetivo do que está além; isto, por outra parte. pode ser devido a diversas circunstâncias, especialmente à "mescla das castas", em razão da qual pode acontecer que entre

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eles se encontrem homens que, na realidade, são em sua maior parte Kshatriyas; é fácil compreender, por isso acabamos de dizer, que este caso seja possível principalmente no Ocidente, tanto mais na medida em que a forma religiosa possa prestar-se particularmente a isso. De fato, a combinação de elementos intelectuais e sentimentais que caracteriza a esta fonna cria uma espécie de domínio misto, no qual o conhecimento é considerado muito menos em si mesmo que em sua aplicação à ação; se a distinção entre a "iniciação sacerdotal" e a "iniciação real" não se manteve de uma fonna clara e rigorosa, tem-se então um terreno intennediário no qual podem produzir-se toda classe de confusões, sem necessidade de se falar de certos conflitos que nem sequer seriam concebíveis caso o poder temporal tivesse a sua frente uma autoridade espiritual

pura (12). Não vamos aqui investigar qual é, das duas possibilidades que acabamos de indicar, a que corresponde atualmente ao estado religioso do mundo ocidental, e a razão disso é fácil de compreender: uma autoridade religiosa não pode ter a aparência do que denominamos uma autoridade espiritual pura, mesmo que possua interiormente sua realidade; certamente houve um tempo no qual possuiu esta realidade, mas ainda a possui de fato agora? (13) Isto seria muito difícil de responder, pois no momento em que a verdadeira intelectualidade se perdeu tão completamente como na época moderna, é natural que a pane superior e "interior" da tradição se

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torne cada vez mais oculta e inacessível. posto que aqueles que são capazes de compreendê-la não são já mais que uma ínfima minoria; queremos. até que não nos demonstre o contrário, admitir que possa ser assim e que a consciência da tradição integral, com tudo o que ela implica. subsista ainda efetivamente em alguns, por pouco numerosos que sejam. Por outra parte, ainda que esta consciência tivesse desaparecido por completo, nem por isso deixaria de ser ceno que toda forma tradicional regularmente constituída, tão somente pela conservação da "letra" ao abrigo de toda alteração, mantém sempre a possibilidade de sua restauração, que se produzirá se algum dia se encontrarem, entre os representantes desta forma tradicional, homens que possuam as aptidões intelectuais requeridas. Em todo caso. embora, por qualquer meio. tivéssemos a este respeito dados mais precisos, não os exporemos aqui publicamente a menos que sejamos levados a isso por circunstâncias excepcionais, e eis aqui o porquê: uma autoridade que não é mais que religiosa, no caso mais desfavorável, é ainda uma autoridade espiritual relativa; queremos dizer que, sem ser uma autoridade espiritual plenamente efetiva. leva em si a virtualidade para isso. que extrai de sua origem e, por isso, sempre pode desempenhar sua função no exterior (14); cumpre então legitimamente seu papel frente ao poder temporal, e deve ser verdadeiramente considerada como tal em suas relações com este. Quem tenha compreendido nosso ponto de vista poderá. sem dificuldade, dar-se conta de que, em caso de conflito entre uma autoridade espiritual. seja qual for,

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inclusive relativa, e um poder puramente temporal, sempre devemo~ nos situar a princípio do lado da autoridade espiritual~ dizemos "a princípio", pois deve ficar claro que não temos a menor intenção de intervir ativamente em tais conflitos, nem sobretudo de adotar uma posição qualquer nas questões do mundo ocidental. o que, por outra parte, não seria absolutamente nosso papel. Não faremos então, nos exemplos que vamos considerar a seguir, distinções denrre aqueles dos quais se tratam de uma autoridade espiritual pura e daqueles nos quais não podem se tratar mais do que de uma autoridade espiritual relativa; consideraremos como autoridade espiritual, em todos os casos, àquela que socialmente desempenhe esta função; e, além do mais, as notáveis ~imilaridades que apresentam todos estes casos, por afastados que possam estar uns de outros na história, justificarão suficientemente esta assimilação. Não teríamos que estabelecer distinções, ainda que se expusesse a questão da po~~e efetiva da pura intelectualidade e, de fato, esta não é exposta aqui; igualmente, do mesmo modo, no que concerne a uma autoridade vinculada exclusivamente a certa forma tradicional, não teremos que nos preocupar de delimitar exatamente suas fronteiras, se nos permite a expressão, mais que no caso no qual as pretendesse transpor. e este caso não é o que vamos agora a examinar. Sobre este último ponto, recordaremos o que dissemos antes: 0 superior contém "eminentemente" o inferior; aquele que é competente em certos limites, que definem seu domínio

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próprio, o é também então. a fortiori, para tudo o que está mais para cá desses mesmos limites, enquanto que, pelo contrário, não o é quanto ao que está além; se esta regra muito simples, ao menos para quem possui uma justa noção da hierarquia, fosse observada e aplicada como convém, nenhuma confusão de domínios e nenhum engano de "jurisdição". para dizer desta forma, produzirse-ia jamais. Sem dúvida, alguns não verão, nas distinções e reservas que fonnulamos. senão precauções de uma utilidade bastante duvidosa, e outros se sentirão tentados a não lhes atribuir, quando muito, mais que um valor puramente teórico; mas pensamos que há outros que ainda compreenderão que, na realidade, são [coisas] muito distintas, e convidamos estes últimos a refletir com uma atenção muito particular.

Notas (]) Este nome tem. além do mais. um duplo sentido. que se refere a outro simbolismo: dru ou dero, como o latim rob11r, designa ao mesmo tempo a força e o carvalho (em grego drus); por outra parte, vid é, como em sânscrito, a sabedoria ou o conhecimento, relacionado à visão. enquanto que 1ambém é o visgo: assim. dni-i•id é o visgo do carvalho, que efetivamente era um dos principais símbolos do Druidismo. e ao mesmo tempo é o homem em quem reside a sabedoria apoiada sobre a força. Além disso, a raiz dru, como se vê nas formas sânscritas equivalemes dhru e dhri, implica a idéia de estabilidade, que, além do mais. é um dos sen1idos do símbolo da árvore em geral e do carvalho em particular; e este sentido de estabilidade corresponde aqui exatamente à ati1ude da Esfinge em repouso. (2) No Egito. a incorporação do rei ao sacerdócio. que assinalamos anteriormeme segundo as palavras do Plutarco. era por outra parte como um vestígio deste antigo eslado de coisas. (3)

·-o Rei do Mundo".

(4) Traculf11s de Moribus et Officio Episcoporum. III. 9. A propósito

disso, e em relação com o que indicamos a respeilo da Esfinge. é de se destacar que esla representa o Harmakliis ou Honnaklro111i, o "Senhor dos dois horizontes". quer dizer. o princípio que une os mundos sensível e supra-sensível. 1errestre e celeste: e esta é uma das razões pelas quais. nos primeiros tempos do Cristianismo. foi considerada como um símbolo de Cristo. Outra razão para este fato é que a esfinge. como o grifo ·do qual fala Dante, é "o animal de duas na1urezas". representando por isso a união das naturezas divina e humana em Cristo: e pode encontrar-se ainda urna terceira razão no aspecto sob o qual ele simboliza. como dissemos, a união dos dois poderes, espiritual e temporal. sacerdotal e real, em seu princípio supremo. (S) Trata-se aqui da concepção tradicional dos "três mundos". que já explicamos além de tudo em diferentes ocasiões: desde este ponto de

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vista, a realeza corresponde ao "mundo terres1re", o sacerdócio ao "mundo intermédio", e seu princípio comum ao "mundo celestial": mas é conveniente acrescentar que, desde que este princípio se fez invisível aos homens. o sacerdócio representa também exi.erionnente o "mundo celestial". (6) O conjunto de todos os seres, assim divididos em estáveis e mutáveis, é designado em sânscrito com o nome composto sthâ\'aradesta forma. todos, segundo sua natureza. estão principalmente em relação, seja com o Brâhmane, seja com o

jar1gama;

Kshatriya.

(7) ..O Homem e seu Devir Segundo o Vedanta", cap. IV. (8) Aos três gunas correspondem três cores simbólicas: o branco a satf\\'a, o vermelho a rajas, o negro a tamas; em vinude da relação aqui indicada. as duas primeiras cores simbolizam também. respectivamente. a autoridade espiritual e o poder temporal. É interes~nle notar a propósito dislo que a "auriflama" dos reis da França era vermelha; a posterior substituição do vermelho pelo branco como cor real indica, de certo modo. a usurpação de um dos atributos da autoridade espiritual. (9) "A Crise do Mundo Moderno", P. 45 (2ªed.). (10) É dito simbolicamente que os deuses. quando aparecem ante os homens, revestem!-se] sempre (com as] formas que estão relacionadas com a natureza própria daqueles a quem se manifestam. Trata-se ainda, aqui. da distinção. que já indicamos anteriormente, entre "quem sabe" e "'quem acredita".

(li)

(12) Tendo sido esquecido o conhecimento "supremo", não subsiste. então, mais que um conhecimento "não !>Upremo". não mais devido a uma revolta dos Ksliatriya:'i. como no caso que anteriormente consideramos, senão por uma espécie de degeneração intelectual do elemento que corresponde aos Brâlmranes não por sua função, mas !>im por sua natureza; neste último caso. a tradição não é alterada como no outro. mas tão somente diminuída em sua parte superior; o último grau desta degeneração é aquele no qual já não subsiste

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nenhum conhecimento efetivo. aquele em que só a virtualidade deste conhecimemo subsiste graças à conservação da "letra", e onde somente existe uma simples crença, indistintamente em lodos. Deve se acrescemar que os dois casos que aqui separamos teoricameme podem, também, combinar-se de fato, ou ao menos produzir-se concorrentemen1e num mesmo meio e, por assim dizer, condicionarse reciprocamente; mas isto pouco importa, pois, neste ponto. não pretendemos fazer nenhuma aplicação de fatos detenninados. (13) Esta questão corresponde. sob uma forma diferente. àquela an1eriormen1c ex.posta com relação à "Igreja ensinadora" e a "Igreja ensinada". (14) É necessário indicar que quem desempenha assim a função exterior dos Brâhmai1es, sem possuir realmente as qualificações para isso. não é por causa disso [um] usurpador. como o seriam os Kshatriyas rebeldes que tivessem tomado o lugar dos Brâhmanes para instaurar uma tradição desviada; não se trata aqui. de fato, mais do que uma siruação devida às condições desfavoráveis de certo meio. que, por outra parle, assegura a manutenção da doutrina em toda a medida compatível com tais condições. Sempre se poderia. inclusive na hipótese mais desfavorável, aplicar aqui esta sentença do Evangelho: "Na cadeira de Moisés se assentam os escribas e fariseus. Portanto, 1udo o que vos disserem, isso fazei e observai" (Mateus. XXlll. 2·3).

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Capítulo V: DEPENDÊNCIA DA REALEZA COM RELAÇÃO AO SACERDÓCIO Voltemos agora para as relações entre Bnihmanes e Kslwrriya.'i na organização social da Índia: aos Kshatriyas pertence normalmente toda a potência exterior, já que o domínio da ação, que é o que diretamente lhes concerne, é o mundo exterior e sensível; mas tal potência não é nada sem um princípio interior, puramente espiritual, encarnado na autoridade dos Brâhmanes. e no qual encontra sua única garantia real. Comprova-se assim que a relação entre ambos os poderes poderia também ser representada como a do "interior" e do "exterior". relação que, efetivamente. simboliza a existente entre o conhecimento e a ação. ou. como queira, entre o "motor" e o "móvel", retomando a idéia que anteriormente expusemos ao nos referirmos tanto à teoria aristotélica quanto à doutrina hindu (1). É da harmonia entre este "interior" e este "exterior" (haJTilonia que, por outra pane, não deve absolutamente ser concebida como uma espécie de "paralelismo". pois isso seria desconhecer as diferenças essenciais dos dois domínios) de onde resulta a via normal do que pode se denominar "entidade social", sem pretender sugerir no emprego desta expressão uma comparação qualquer entre a coletividade e um ser vivo, ainda mais que, em nossos dias. alguns tenham abusado que modo estranho de dita comparação.

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tomando erroneamente como identidade verdadeira o que não é mais que analogia e correspondência (2). Em troca da garantia que oferece a sua potência a autoridade espiritual, os Kshatriyas devem, com ajuda da força da qual dispõem, assegurar aos Brâhmanes o meio de cumprir em paz. ao abrigo da confusão e da agitação. sua própria função de conhecimento e de ensino; é o que o simbolismo hindu representa na figura de Skanda, o Senhor da guerra. protegendo a meditação da Ganêsha, o Senhor do conhecimento (3). Cabe notar que o mesmo era ensinado, inclusive exteriormente, na Idade Média ocidental; efetivamente. Santo Tomás de Aquino declara expressamente que todas ao;; funções humanas estão subordinadas à contemplação como a um fim superior. "de maneira que. ao considerá-las como se devem, todas aparecem ao serviço de quem contempla a verdade", e que o governo da vida civil tem, no fundo, como verdadeira razão de ser, assegurar a paz necessária para esta contemplação. Vê-se quão longe islo está do ponto de vista moderno. e também se observa que o predomínio da tendência à ação, tal como indubitavelmente existe entre os povos ocidentais. não implica necessariamente na depreciação da contemplação. ou seja. do conhecimento, ao menos enquanto tais povos possuam uma civilização de caráter tradicional, seja qual for, por outra parte, a forma com a qual se revista a tradição. e que aqui era uma forma religiosa, de onde o matiz teológico que, na

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concepção de Santo Tomás. se vincula sempre contemplação, enquanto que, no Oriente, esta considerada na ordem da metafísica pura. Por outra parte, na doutrina hindu e na organização social -que constitui sua aplicação, e por conseguinte num povo no qual as aptidões contemplativas. entendidas aqui num sentido de pura intelectualidade, são manifestamente preponderantes e inclusive estão geralmente desenvolvidas num grau que possivelmente não se encontre em parte alguma, o lugar que corresponde aos Kshatriyas, e consequentemente à ação, estando subordinado como normalmente deve ser. acha-se não obstante muito longe de ser desprezível, posto que compreende tudo aquilo que pode ser chamado "poder aparente". Por outro lado, como já indicamos em outra ocasião (4). quem, sob a influência das interpretações errôneas que têm lugar no Ocidente, duvidasse desta importância muito real, embora relativa, concedida à ação pela doutrina hindu, e também por todas as demais doutrinas tradicionais, não teriam, para se convencer, mais que acudir ao Bhaga1'ad-Gi1â, que -não se deve esquecer caso se queira compreender seu sentidoé um desses livros especialmente destinados ao uso dos Kshatriyas e aos quais aludimos anterionnente (5). Os Brâhmanes devem exercer uma autoridade de certo modo invisível, que, como tal, pode ser ignorada pelo vulgo, mas não deixa de ser o princípio imediato de todo poder visível; tal autoridade é como o pivô em tomo do qual gira todo o contingente, o eixo fixo ao redor do qual o

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mundo cumpre sua revolução. o pólo ou o centro imutável que dirige e regula o movimento cósmico sem participar dele (6).

A dependência do poder temporal com respeito à autoridade espiritual tem seu signo visível na coroação dos reis: estes não são realmente "legítimos" senão quando recebam do sacerdócio a investidura e a consagração, que implica na transmissão de uma "influência espiritual" necessária para o exercício regular de suas funções (7). Esta influência se manifestava às vezes ao exterior mediante efeitos claramente sensíveis, e citaremos como exemplo o poder de cura dos reis da França. que efetivamente estava diretamente relacionado com a consagração; não era transmitida ao rei por seu predecessor, mas simplesmente a recebia por ocasião da coroação. Isto demonstra que tal influência não pertence propriamente ao rei, mas lhe é conferida por uma espécie de delegação da autoridade espiritual, delegação em que, como já indicamos antes, consiste propriamente no "direito divino"; o rei não é, pois. mais que seu depositário e, em conseqüência. pode perdê-lo em certos casos; por isso, na "Cristandade" da Idade Média. o Papa podia liberar as pessoas de seu juramento de fidelidade ao soberano (8). Além disso. na tradição católica, São Pedro é representado tendo em suas mãos não só a "chave de ouro" do poder sacerdotal, mas também a "chave de prata" do poder real; ambas as chaves eram. entre os antigos romanos, um dos atributos de Jano, e se tratava então das chaves dos "grandes mistérios" e dos "pequenos

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mistérios" que, como já explicamos. correspondem também respectivamente à "iniciação sacerdotal" e à "iniciação real" (9). É preciso observar a este respeito que J ano representa a origem comum dos dois poderes, enquanto que São Pedro é propriamente a encarnação do poder sacerdotal. ao qual as duas chaves são assim transferidas, pois é por sua mediação que se transmite o poder real, enquanto que o primeiro é recebido diretamente da fonte comum (10). O que acabamos de dizer define as relações normais entre a autoridade espiritual e o poder temporal; e se estas relações fossem sempre e em todas as partes observadas, jamais nenhum conflito poderia interpor-se entre um e outro. ocupando assim cada um ~eu lugar em virtude da hierarquia das funções e dos seres, hierarquia que, insistimos. é estritamente conforme à natureza mesma das coisas. Infelizmente, de fato. isso está longe de ser sempre assim, e tais relações normais freqüentemente foram ignoradas e inclusive invertidas; a este respeito, importa notar primeiro que é já um grave engano considerar simplesmente o espiritual e o temporal como dois termos correlativos ou complementares, sem dar-se conta que o temporal tem seu princípio no espiritual. Tal engano pode ser cometido com mais facilidade visto que, como já indicamos, tal consideração da complementaridade tem também sua razão de ser desde certo ponto de vista. ao menos no estado de divisão dos dois poderes. no qual um não tem no outro seu princípio supremo e último, senão somente seu princípio

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imediato e também relativo. Tal e como temos feito notar em outro lugar no que concerne ao conhecimento e à ação (11), tal complementaridade não é falsa, mas apenas insuficiente, porque só corresponde a um ponto de vista que ainda é exterior, como o é, por outra parte, a própria divisão entre ambos os poderes, tornada necessária devido a um estado do mundo no qual o poder único e supremo já não está ao alcance da humanidade ordinária. Poder-se-ia, inclusive. dizer que, quando se diferenciam, os dois poderes se apresentam em princípio forçosamente numa relação normal de subordinação. e que sua concepção como correlativos aparece numa fase posterior da marcha descendente do ciclo histórico; a esta nova fase se referem particularmente certas expressões simbólicas que põem especialmente em evidência o da complementaridade, embora uma aspecto interpretação correta possa fazer reconhecer também aqui uma sugestão da relação de subordinação. Tal é concretamente o apólogo bem conhecido, embora pouco compreendido no Ocidente, do cego e do paralítico, que efetivamente representam, num de seus principais significados. ao;; relações entre a vida ativa e a vida contemplativa; a ação liberada a si mesma é cega, e a imutabilidade essencial do conhecimento se traduz ao exterior como uma imobilidade comparável à do paralítico. O ponto de vista da complementaridade está indicado pela ajuda mútua entre os dois homens, em que cada um supre com suas próprias faculdades aquilo de que carece o outro; e se a origem desce apólogo. ou ao menos a consideração mais especial da aplicação que

assim se faz dele (12), deve ser relacionada com o Confucionismo, é fácil compreender que este efetivamente deve se limitar a tal ponto de vista, assim como exclusivamente se mantém na ordem humana e social. Indicaremos inclusive, a propósito disso, que, na China. a distinção entre o Taoísmo, doutrina puramente metafísica, e o Confucionismo, doutrina social, provenientes um e outro de uma mesma tradição integral que representa seu princípio comum, corresponde exatamente à distinção entre o espiritual e o temporal (13); e devemos acrescentar que a importância do "nãoagir" do ponto de vista do Taoísmo justifica especialmente, para quem o considere do exterior (14). o simbolismo empregado no apólogo em questão. Não obstante, é necessário ter em conta que, na associação entre ambos os homens, é o paralítico o que desempenha o papel diretor, e sua própria posição -montado sobre os ombros do cego- simboliza a superioridade da contemplação sobre a ação, superioridade que o próprio Confúcio estava muito longe de negar em princípio, como testemunha o relato de seu encontro com Lao-Tsé, tal como foi conservado pelo historiador Sse-ma-tsien; confessava, além disso, que ele não havia "nascido no conhecimento", quer dizer, que não tinha alcançado o conhecimento por excelência, que é o da ordem metafísica pura, e que, como dissemos anteriormente, pertence exclusivamente, por sua própria natureza, aos depositários da verdadeira autoridade espiritual (15).

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De modo que, se é um engano considerar o espiritual e o temporal como simplesmente correlativos, há outro. mais grave ainda, que consiste em pretender subordinar o espiritual ao temporal, quer dizer, em suma, o conhecimento à ação; este engano. que inverte completamente as relações normais, corresponde à tendência que é, de uma maneira geral, a do ocidente moderno, e evidentemente que não se pode produzir exceto num período de decadência intelectual muito avançada. Em nossos dias, por outra parte, alguns chegam inclusive mais longe neste sentido, até à negação do valor próprio do conhecimento como tal, e também, por uma conseqüência lógica. pois ambas são estreitamente solidárias. até a negação pura e simples de toda autoridade espiritual; este último grau de degeneração, que implica o domínio das castas mais inferiores, é um dos sinais característicos da fase final do Kali-Yuga. Se em particular consideramos a religião, posto que é a forma especial que adota o espiritual no mundo ocidental. a inversão das relações pode se expressar da seguinte maneira: em lugar de considerar a ordem social por completo como derivando da religião, como, de certa forma, estando suspensa dela e tendo nela seu princípio, tal como era na "Cristandade" da Idade ~édia, e tal como igualmente o é no Islã. que a este respeito é muito comparável. não se quer hoje em dia ver na religião, no máximo, senão um dos elementos da ordem social, um elemento dentre os outros e sob o mesmo título que os outros; é a servidão do espiritual ao temporal, ou inclusive sua absorção. à espera da completa negação

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espiritual que é sua conclusão inevitável. De fato, considerar as coisas desta maneira induz forçosamente a "humanizar" a religião, quer dizer, a tratá-la como um fato puramente humano. da ordem social ou, melhor, "sociológica" para uns, ou da ordem psicológica para outros; e. então. para falar a verdade, já não é religião, pois esta implica essencialmente algo "supra-humano", à falta do qual já não estamos no domínio espiritual, sendo em realidade idênticos no fundo o temporal e o humano, segundo o que anterionnente explicamos; há aqui então uma verdadeira negação implícita da religião e do espiritual. sejam quais possam ser suas aparências, de tal modo que a negação explícita e provada será menos a instauração de um no\'o estado de coisas que o reconhecimento de um fato completo. Assim, a inversão das relações prepara diretamente a supressão do termo superior, inclusive a implica, ao menos virtualmente, tal como a rebelião dos Kshatriyas contra a autoridade dos Brâhmanes, tal como veremos, prepara e impulsiona. por assim dizer, o predomínio das casta<; mais inferiores; e quem tenha seguido até aqui nossa exposição compreenderão sem muito esforço que há nesta relação algo mais que uma simples comparação.

Notas (1) Também poderia se aplicar aqui, como fizemos emão, a imagem

do centro e da circunferência da "roda das coisas" (2) O ser-vivo tem em si mesmo seu princípio de unidade, superior à multiplicidade dos elementos que entram em sua constituição; não há nada assim na coletividade, que é propriamente tão somente a soma dos indivíduos que a compõem; em conseqüência, uma palavra como a de "organização". quando é aplicada a ambos, não pode rigorosamente ser tomada no mesmo sentido. Não obstante, é possível afirmar que a presença de uma autoridade espiritual introduz na sociedade um princípio superior aos indivíduos. já que esta autoridade, por sua natureza e por sua origem, é "supra-individual"; mas isto ~upõe que a sociedade não é considerada somente sob seu aspecto temporal, e esta consideração, a única que pode fazer dela algo mais que uma simples coletividade no sentido indicado, é precisamente daquelas que escapam por completo aos sociólogos contemporâneos que pretendem identificar a sociedade com um ser vivo. (3) Ga11êsha e Skanda são, além disso, representados como irmãos. sendo ambos os filhos do Shil'a; eis aqui. pois, outra maneira de expressar que os dois poderes espiritual e temporal procedem de um princípio único. (4) "A Crise do Mundo Moderno", P. 47 (2.edição). (5) O Bhagal'ad-Gitâ não é, propriamente falando. mais que um episódio do Mahâbllârata. que é um dos dois ltihâsas. sendo o outro o Râmâmna. Esta característica do Bhagavad-Gitâ explica o emprego. de um simbolismo guerreiro. comparável, em cenos aspectos, ao da "guerra Santa" entre os muçulmanos: existe por outra parte um modo "interior" de ler este livro, dando-lhe al>sim seu sentido profundo. e então toma o nome de "Atmâ-Gitâ". (6) O eixo e o pólo !ião acima de tudo símbolos do princípio único dos dois poderes, assim como explicamos em nosso estudo sobre "O

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Rei do Mundo"; mas tais símbolos também podem ser aplicados à autoridade espiritual em referência ao poder temporal, como aqui fazemos, pois e::.ta autoridade, em razão de seu atributo essencial de conhecimento, forma parte efetivamente da imutabilidade do princípio supremo, que é o que os mencionados símbolos expressam fundamentalmente, e 1ambém porque, como já dissemos, representa diretamente esse princípio com relação ao mundo exterior. (7) Traduzimos como "influência espiritual" a palavra hebraica e árabe barakah; o rito da "imposição de mãos" é uma das formas mais habituais de transmissão da barakah e também da produção de cenas efeitos, especialmente de cura, por meio deste. (8) A tradição muçulmana também ensina que a barakah pode ser perdida; por outra parte. na tradição extremo-oriemal igualmente. o "mandato do Céu" é revogável quando o soberano não cumpre regularmente suas funções. em harmonia com a ordem cósmica. (9) São também. segundo outro simbolismo. as chaves das portas do "Paraíso celestial" e do "Paraíso terrestre". como se verá no texto do Dante que mais adiante citaremos: mas possivelmente não seja oportuno. ao menos no momento. dar algumas considerações de certo modo "técnicas" sobre o "poder das chaves". nem de explicar outros vários assuntos, que mais ou menos diretamente se referem a isso. Se fizemos aqui esta alusão é unicamente para que quem já possua algum conhecimento disto veja que se trata aqui. por nossa pane. de uma reserva voluntária, à qual não nos aderimos por nenhum tipo de compromisso. (10) Há, não obstante, no concernente à transmissão do poder real, alguns casos excepcionais nos quais. por razões especiais. é diretamente conferido por representantes do poder supremo, origem dos outros dois: assim. os reis Saul e David não foram consagrados pelo Grande Sacerdote. mas sim pelo profeta Samuel. Poder-se-á relacionar com isto o que em outro lugar dissemos ( ''O Rei do Mundo" . cap. IV) sobre o tríplice caráter de Cristo como profeta, sacerdote e rei. em conexão com as funções respectivas dos três Reis Magos. correspondendo eslas à divisão entre os "três mundos" que

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recordamos numa nota anterior: a função "profética", já que implica a inspiração direta. corresponde propriamente ao "mundo celeste". (li) "A Crise do Mundo Moderno'', P. 44 (2• edição).

(12) Existe oulra aplicação do mesmo apólogo, já não social. mas sim

cosmológica. que se encontra nas doutrinas da Índia. e que propriamente pertence ào Sânkhya: aqui, o paralítico é Purusha. enquanto imutável ou "não agente", e o cego é Prakriti. cuja potencialidade indiferenciada se identifica com as trevas do caos; trata-se efetivamente de doi!> princípios complementares, dos pólos da manifestação universal, e procedem além do mais de um princípio superior único, que é o Ser puro. quer dizer. lslnvara, cuja consideração supera o especial ponto de vista do Sânkhya. Para conectar esta interpretação com a que acabamos de indicar, é necessário observar que se pode estabelecer uma corTespondência analógica entre a contemplação ou o conhecimento com a Purusha. e entre a ação com o Prakriri; mas naturalmente não podemos entrar aqui na explicação de ambos os princípios, e devemos nos limitar a remeter ao exposto a este respeito em "O Homem e seu Devir Segundo o Vedanta". (13) Esta divisão da tradição extremo-oriental em dois ramos diferentes se produziu no século VI antes da era cristã. época da qual tivemos ocasião em outra obra de demonstrar seu caráter especial ("A Crise do Mundo Moderno", pp. 18-2\), e sobre a qual voltaremos a seguir. (14) Dissemos do exterior porque, do ponto de vista interior, o "nãoagir" é na realidade a atividade suprema em toda sua plenitude; mas. precisamente em razão de seu caráter total e absoluto, tal atividade não se mostra ao exterior como as atividades particulares. determinadas e relativas. (15) Se vê com isso que não existe nenhuma oposição de princípio entre o Taoísmo e o Confucionismo, que não são nem podem ser escolas rivais, posto que cada uma tenha seu domínio próprio claramente dislinto; se não obs1ante houve lutas, às vezes violentas. como demons1ramos, foram. sobretudo. devidas à incompreensão e

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ao exclusivismo dos confucionistas. que tinham esquecido o exemplo que seu próprio meslre os deu.

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Capítulo VI: A REBELIÃO DOS KSHATRIYAS Em quase todos os povos, em diversas épocas, e cada vez mais freqüentemente na medida em que se aproximam da atualidade, os depositários do poder temporal tenderam, como dissemos, a se fazer independentes de toda autoridade superior, pretendendo não obter seu próprio poder senão de si mesmos e separar completamente o espiritual do temporal, ou inclusive submeter aquele a este. Nesta "insubordinação", no sentido etimológico da palavra, existem graus diferentes, dentre os quais os mais acentuados são também os mais recentes, como indicamos no anterior capítulo; as coisas jamais chegaram tão longe neste sentido como na época moderna e. sobretudo. não parece que, anteriormente, as concepções que lhe correspondam sob diversos aspectos tenham sido alguma vez incorporadas à mentalidade geral como o tem acontecido no curso dos últimos séculos. Poderíamos repetir especialmente, a propósito disso. o que já em outro lugar dissemos sobre o "individualismo". considerado como característico do mundo moderno (1): a função da autoridade espiritual é a única que se refere a um domínio supra-individual; no momento em que esta autoridade é ignorada, é lógico o individualismo aparecer imediatamente, ao menos como tendência, senão como afirmação definida (2), pois todas as restantes funções

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sociais. começando pela função "governamental" que é a do poder temporal, são de ordem puramente humana, e o individualismo é precisamente a redução de toda a civilização tão somente a seus elementos humanos. Ocorre igualmente com o "naturalismo". tal como indicávamos anteriormente: estando ligada a autoridade espiritual ao conhecimento metafísico e transcendente, só ela tem um caráter verdadeiramente "sobrenatural": o resto é da ordem natural ou "física", como fazíamos notar no que concerne ao gênero de conhecimentos que é principalmente, em uma civilização tradicional. Por outra parte. patrimônio dos Kshatriyas. individualismo e naturalismo são estreitamente solidários. pois quase não são, no fundo. mais que dois aspectos que adotam uma só e mesma coisa, conforme se considere com respeito ao homem ou com respeito ao mundo; e poderia constatar-se, de uma maneira muito geral, que a aparição de doutrinas "naturalistas" ou antimetafísicas se produz quando o elemento que representa o poder temporal adquire, numa civilização, predomínio sobre o que representa a autoridade espiritual (3). É o que ocorreu na própria a Índia, quando os Kshatriyas, não se contentando por ocupar o segundo

nível na hierarquia das funções sociais, embora este segundo nível implicasse no exercício de toda a potência exterior e visível, rebelaram-se contra a autoridade dos Brâhmanes e quiseram se liberar de toda dependência a seu respeito. Aqui. a história traz uma assombrosa confirmação do que dizíamos antes, que o poder temporal

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arruína a si mesmo ao ignorar sua subordinação diante da autoridade espiritual, porque, como tudo o que pertence ao mundo da mudança. não pode baslar-se a si mesmo, sendo a mudança inconcebível e contraditória se carecer de um princípio imutável. Toda concepção que negue o imutável, situando o ser integralmente no "devir". oculta em si mesmo um elemento de contradição; tal concepção é eminentemente antimetafísica. já que o domínio metafísico é precisamenle o do imutável, o do que está além da natureza ou do "devir"; e poderia ser também chamada "temporal", para indicar com isso que seu ponto de vista é exclusivamente o da sucessão; é necessário, além disso, destacar que o próprio emprego da palavra "temporal". quando é aplicada ao poder que é assim denominado. tem por razão de ser significar que este poder não se estende além do que está inscrito na sucessão. pelo que está submetido à mudança. As modernas teorias "evolucionistas", em suas diversas fonnas, não são os únicos exemplos desse engano que consiste em situar toda realidade no "devir", embora tenham adicionado um matiz especial com a introdução da recente idéia de "progresso"; teorias deste gênero existiram da Antigüidade. especialmente entre os gregos. e este caso foi também o de certas fonnas de Budismo (4). às quais. por outra parte, devemos considerar como fonnas degeneradas ou desviadas, embora, no Ocidente, adotou-se costume de considerá-las como representando o "Budismo original". Na realidade, quanto mais se estuda de perto o que é possível saber deste, mais diferente aparece da idéia que dele se fazem geralmente

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os orientalistas; em especial. parece estabelecido que não implicava de modo algum na negação do Atmâ ou do "Si", quer dizer, do princípio pennanente e imutável do ser, que é precisamente o que, sobretudo, temos aqui em conta. Que tal negação tenha sido introduzida posteriormente em certas escolas do Budismo hindu pelos Kshatriyas rebeldes ou sob sua inspiração, ou que somente tenham querido utilizá-la para seus próprios fins, é algo que não tentaremos elucidar, pois no fundo importa pouco. e as conseqüências são as mesmas em todos os casos (5). De fato, pôde-se ver (por isso o expusemos) o vínculo direto que existe entre a negação de todo princípio imutável e da autoridade espiritual. e entre a redução de toda realidade ao "devir" e a afinnação da supremacia dos Kshatriyas: e devemos acrescentar que. submetendo o ser por completo à mutabilidade, se lhe reduz por isso ao indivíduo, pois o que pennite superar a individualidade, o que é transcendente com relação a ela, não pode ser senão o princípio imutável do ser; comprova-se então claramente aqui essa solidariedade entre o naturalismo e o individualismo que indicamos faz um momento (6). Mas a rebelião superou seu objetivo, e os Kshatriyas não foram hábeis para deter no ponto preciso

do qual poderiam ter adquirido vantagem, o movimento que a:-1sim tinham desencadeado: foram as castas mais inferiores as que na realidade se aproveitaram dele, e isso se compreende facilmente, pois, uma vez comprometidos neste declive, é impossível não descer até o final. A

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negação do Atmâ não era a única que se introduziu no Budismo desviado; também o estava a da distinção das ca-;tas, base de toda a ordem social tradicional; e esta negação, dirigida primeiro contra os Brâhmanes, não devia demorar em voltar-se contra os próprios Kshatriyas (7). De fato, do instante em que a hierarquia é negada no seu próprio princípio, não se explica como uma casta qualquer poderia manter a supremacia sobre as outras, nem, além do mais, em nome do que l se J pretenderia impô-la; qualquer [um], em tais condições, pode acreditar que tem tanto direito ao poder como qualquer outro, por pouco que materialmente disponha da força necessária para apropriar-se dele e para exercê-lo de fato; e, se não for mais que uma simples questão de força material, não é evidente que esta deva ser encontrada em maior grau nos elementos que simultaneamente são os mais numerosos e, por suas funções. os mais afastados de toda preocupação relativa. sequer indiretamente, à espiritualidade'! Com a negação das castas, a porta se abria assim a todas as usurpações; também os homens da última casta. os ShUdras, podiam prevalecer; de fato, viu-se em ocasiões alguns deles apoderarem-se da realeza e, por uma espécie de "repulsa" que estava na lógica dos acontecimentos. desapropriarem os Kshatriyas do poder que lhes tinha pertencido em princípio legitimamente. mas do qual haviam, por assim dizer, destruído eles mesmos a legitimidade (8).

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Notas (1) "A Crise do Mundo Moderno". cap. V.

(2) Es1a afirmação. seja qual for a forma que se adote. não é na

realidade. além de tudo. senão uma negação mais ou menos dissimulada: a negação de todo princípio superior à individualidade. (3) Ouuo fato que não podemos senão destacar incidentalmente é o imponame papel que desempenha freqüentemente um elemento feminino, ou simbolicamente representado como tal. nas doutrinas dos Ksliatriyas. tratando-se por outra pane de doutrinas regularmente

constituídas para seu uso ou de concepções heterodoxas que eles mesmos fizeram prevalecer: é inclusive digno de destacar, a este respeito. que a existência de um sacerdócio feminino. em certos povos. aparece como ligada à dominação da casta guerreira. Este fato pode ser explicado, por um lado. pela preponderãncia do elemenlo "rajásico" e emo1ivo nos Kslwtriyas, e. especialmente, por oulro lado. pela correspondência do feminino, na ordem cósmica. com o Prakriti ou a "Na1ureza primitiva", princípio do "devirH e da mutação temporal. (4) Por isso, os budis1as destas escolas receberam o epí1eto de san'a1•ainâshikas, quer dizer. "aqueles que sustentam a dissolubilidade de tudo": esta dissolubilidade é, em suma. um equivalente do "fluido universal" ensinado por alguns "filósofos físicos" da Grécia. (5) Não se pode invocar contra o que aqui dissemos do Budismo original e de uma separação posterior o fato de que o próprio ShâkyaMu11i pertencia por nascimento à casta dos Kshatriyas, pois isto pode legitimamente explicar-se pelas especiais condições de uma época, condições que resultam das leis ciclicas. Pode-se. além do mais, indicar a este respeito que Cristo também descendia da tribo real de Judá, e não da tribo sacerdolal de Levi.

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(6) Poderá se notar. além disso. que as teorias do "devir" tendem muito naturalmente aceno "fenomenismo". embora. por outra parte. o "fenomenismo·· em sentido estrito não seja, para falar a verdade. mais que algo muito moderno. (7) Não se pode dizer que o próprio Buda tenha negado a distinção das castas. senão somente que não tinha por que tomá-la em conta. já que o que tinha realmente em mente era a constituição de uma ordem monástica, no interior da qual esta distinção não se aplicava; é só quando se pretendeu estender esta ausência de distinção à sociedade exterior que se transformou numa verdadeira negação. (8) Um governo no qual os homens de casta inferior se atribuem o título e as funções da realeza é o que os antigos gregos denominavam "tirania": o sentido primitivo do termo está. como se vê. bastante afastado do que tomou entre os modernos. que mais o empregam como um sinônimo de "despotismo".

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Capítulo VII: AS USURPAÇÕES DA REALEZA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS Diz-se às vezes que a história se repele, o que é falso, pois não pode haver no universo dois seres nem dois acontecimentos que sejam rigorosamente semelhantes entre si sob todas as relações: se fossem, já não seriam dois, pois, coincidindo em tudo, pura e simplesmente se confundiriam. de forma que não seriam mais que um só ser ou um só acontecimento (1). A repetição de possibilidades idênticas implica, além disso, numa hipótese contraditória, a de uma limitação da possibilidade universal e total e. como já explicamos em outro lugar com todos os desenvolvimentos necessários (2). é isto o que permite repelir teorias tais como as da "reencarnação" e do "eterno retorno"_ Mas outra opinião não menos falsa é aquela que, no extremo oposto, consiste em pretender que os fatos históricos são completamente diferentes entre si, que não têm nada em comum; a verdade é que sempre existem simultaneamente diferenças em certos aspectos, e semelhanças em outros, e que, tal como há diferentes gêneros de seres na natureza, também há, neste domínio como em outros, gêneros de fatos; em outras palavras, há fatos que são, em circunstâncias diferentes, manifestações ou expressões de uma mesma lei. É a razão de que às vezes se encontrem situações comparáveis, e que. caso se

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esqueçam as diferenças para não se reterem senão os pontos de semelhança, podem dar a impressão de uma repetição; na realidade, jamais existe identidade entre os diferentes períodos da história, mas há correspondência e analogia, tanto aqui, quanto entre os ciclos cósmicos ou entre os estados múltiplos de um ser; e, assim como diferentes seres podem passar por fases comparáveis, com a reserva das modalidades que são próprias à natureza de cada um deles, o mesmo ocorre também quanto aos povos e às civilizações. Assim, como ressaltamos antes, existe, apesar das grandes diferenças, uma analogia indubitável. e que jamais pode ser evidenciado o ba-.tante. entre a organização social da Índia e a da Idade Média ocidental; entre as castas de uma e as classes da outra não há identidade. senão correspondência, mas tal correspondência não deixa de ser importante, porque pode servir para demonstrar, com uma particular claridade, que todas a<> instituições que apresentam um caráter verdadeiramente tradicional se apóiam nos mesmos fundamentos naturais e não diferem, em suma, mais que por uma adaptação necessária às diferentes circunstâncias de tempo e de lugar. É necessário observar. por outra parte, que não pretendemos absolutamente sugerir com isso a idéia de uma aquisição que a Europa, nesta época. teria absorvido diretamente da Índia, o que seria muito pouco verossímil; tão somente dissemos que há aqui duas aplicações de um mesmo princípio e, no fundo, só isso que importa. ao menos do

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ponto de vista no qual atualmente nos situamos. Por conseguinte, reservamo-nos quanto à questão de uma origem comum, que, em todo caso, não poderia encontrar-se certamente mais que se remontando muito longe no passado; esta questão se vincularia à da filiação das diferentes formas tradicionais a partir da grande tradição primitiva. e nisso, compreender-se-á sem esforço, há algo extremamente complexo. Se não obstante ressaltamos tal possibilidade é porque não pensamos que, de fato, estas semelhanças tão claras possam ser explicadas de uma maneira totalmente satisfatória fora de uma transmissão regular e efetiva. e também porque encontramos, na Idade Média, muitos outros indícios concordantes, que mostram muito claramente que havia então no Ocidente um vínculo consciente, ao menos para alguns, com o verdadeiro "centro do mundo", fonte única de todas as tradições ortodoxas. enquanto que, pelo contrário, não vemos nada semelhante na época moderna. Na Europa encontramos também, da Idade Média. uma analogia com a rebelião dos Kshatriyas; vemo-la, inclusive, com particularidade na França, onde, a partir de Felipe, "o Belo", que deve ser considerado como um dos principais autores da separação característica da época moderna, a monarquia tenta, quase constantemente, fazerse independente da autoridade espiritual, conservando não obstante, por um singular ilogismo, a marca exterior de sua dependência original. posto que, como já explicamos, a consagração dos reis não era outra coisa. Os "juristas" de Felipe, "O Belo" são assim, muito antes

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que os "humanistas" do Renascimento, os verdadeiros precursores do "laicismo" atual; e é nesta época, quer dizer, a princípios do século XIV, onde é preciso fazer remontar, na realidade. a ruptura do mundo ocidental com sua própria tradição. Por razões que seria árduo expor aqui. e que por oucra parte já indicamos em outros estudos (3), pensamos que o ponto de partida de tal ruptura esteve muito claramente marcado pela destruição da Ordem do Templo; recordaremos tão somente que esta [se} constituía [tal] como um laço entre o Oriente e Ocidente, e que, no próprio Ocidente, era. por seu duplo caráter religioso e guerreiro, uma espécie de sinal de união entre o espiritual e o temporal, se é que este duplo caráter não deve ser interpretado como o signo de uma relação mais direta com a fonte comum dos dois poderes (4). Possivelmente alguém estará tentado a objetar que tal de!itruição. embora tenha sido desejada pelo rei da frança. ao menos foi realizada de acordo com o Papado; a verdade é que foi imposta ao Papado. o que é muito diferente; e foi assim como, invertendo as relações normais, o poder temporal começou desde então a se servir da autoridade espiritual com a finalidade de dominação política. Sem dúvida se dirá que o fato de que esta autoridade espiritual se deixasse subjugar assim demonstra que já não era o que deveria ser, e que seus representantes já não possuíam plena consciência de seu caráter transcendente: isso é certo e, além do mais, é o que ex.plica e justifica, nesta mesma época, as imectiva!-. freqüentemente violentas de Dante a seu respeito; mas nem por isso deixava de ser, apesar de tudo, frente ao



poder temporal, a autoridade espiritual, e dela o primeiro obtinha sua legitimidade. Os representantes do poder temporal não estão, como tais, qualificados para reconhecer se a autoridade espiritual que corresponde à forma tradicional da que dependem possui ou não a plenitude de sua realidade efetiva: inclusive são incapazes disso por definição, já que sua competência está limitada a um domínio inferior; seja qual for esta autoridade, se ignorarem sua subordinação com relação a ela, comprometem com isso sua legitimidade. É necessário então tomar cuidado em distinguir a questão do que pode ser uma autoridade espiritual em si mesma, em tal ou qual momento de sua existência, e a de suas relações com o poder temporal; a segunda é independente da primeira. que não considera senão a quem exerce as funções da ordem sacerdotal ou a quem normalmente estaria qualificado para exercê-la; e, inclusive embora esta autoridade, por um defeito de seus representantes, tivesse perdido completamente o "espírito" de sua doutrina, tão somente em se mantendo depositária da "letra" e das formas exteriores nas quais esta doutrina está de certo modo contida, continuaria ainda lhe assegurando a potência necessária e suficiente para exercer validamente sua supremacia sobre o temporal (5). já que esta supremacia está vinculada à própria essência da autoridade espiritual e lhe pertence, enquanto subsistir regularmente, por diminuída que em si mesma possa estar, pois a menor parcela de espiritualidade é incomparavelmente superior a tudo o que depende da ordem temporal. Disso resulta que. enquanto que a

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autoridade espiritual pode e deve sempre controlar ao poder temporal, ela mesma não pode ser controlada por nada, ao menos exterionnente (6); por estranha que tal afirmação possa parecer aos olhos da maioria de nossos contemporâneos, não duvidamos em declarar que não é mais que a expressão de uma verdade inegável (7). Mas voltemos para o Felipe, "O Belo", que nos oferece um exemplo particularmente típico para o que nos propusemos explicar agora: é digno de notar que Dante atribui como móvel de suas ações à "cobiça" (8), que é um vício dos Vaishya, e não dos Kshatriyas; poderia se dizer que os Kshatriyas, do momento em que entraram em estado de rebeldia, degradaram-se de certo modo e perderam seu caráter próprio para adotar o de uma casta inferior. Poderia. inclusive, acrescentar-se que tal degradação deve inevitavelmente acompanhar à perda de sua legitimidade; se os Kshatriyas forem, por sua falta, despojados de seu direito normal ao exercício do poder temporal, é porque não são verdadeiros Kshatriyas. quer dizer. porque sua natureza já não é tal que os faça aptos para desempenhar àquela que era sua função própria. Se o rei já não se limitar a ser o primeiro dos Kshatriyas, quer dizer, o chefe da nobreza, e a cumprir o papel "regulador" que pertence a este título, perde então o que constitui sua razão de ser essencial e, ao mesmo tempo, fica em oposição com essa nobreza da qual não era senão sua emanação e como sua expressão mais acabada. É assim como vemos à monarquia, para "centralizar" e absorver nela os poderes que pertencem coletivamente à nobreza

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em seu conjunto, entrar em luta com esta e trabalhar com encarniçamento para a destruição do feudalismo. do qual, não obstanre. tinha surgido; por outra parte. não o poderia fazer mais que se apoiando sobre o terceiro estado, que corresponde aos Vaishya; e é esta a razão de que vejamos. precisamente a partir do Felipe, "O Belo", os reis da França se rodearem quase constanlemente de burgueses, especialmente àqueles que, como Luís XI e Luís XIV. levaram muito longe o trabalho de "centralização", do qual a burguesia devia, além do mais, recolher posterionnente os benefícios quando se apropriou do poder mediante a Revolução. A "centralização" temporal é geralmente a marca de uma oposição frente à autoridade espiritual. e os governos que a praticam se esforçam por neutralizar assim a influência daquela e substituí-la pela sua; por isso, a fonna feudal. que é aquela em que os Kshatriyas podem exercer mais integralmente suas funções normais. é, ao mesmo tempo, a que parece convir melhor à organização regular das civilizações tradicionais. tal como o era a Idade Média. A época moderna, que é a da ruptura com a tradição. poderia. no a'l.pecto político, caracterizar-se pela substituição do sistema feudal pelo sistema nacional; e é no século XV quando as "nacionalidades" começaram a constituir-se, através desse trabalho de "centralização" do qual acabamos de falar. Há razão ao dizer que a formação da "nação francesa", em particular, foi obra dos reis; mas estes, precisamente por tal motivo, prepararam, sem o saber, sua própria ruína

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(9); e se a França foi o primeiro país da Europa no qual a

monarquia foi abolida, é porque na França a "nacionalização" teve seu ponto de partida. Por outra parte, quase não há necessidade de recordar que a foi ferozmente "nacionalista" e Revolução "centralizadora", e também o emprego propriamente revolucionário que se fez. durante todo o curso do século XIX, do suposto "princípio das nacionalidades" (10); existe então uma singular contradição no "nacionalismo" que esgrimem hoje certos adversários declarados da Revolução e de sua obra. Mas o mais interessante agora para nós é o seguinte: a fonnação das "nacionalidades" é essencialmente um dos episódios da luta do temporal contra o espiritual; e se quer chegar-se ao fundo das coisas, pode-se dizer que exatamente por isso foi fatal para a monarquia. que. inclusive, embora parecesse realizar todas suas ambições. não fazia mais que correr para sua perdição (11). Há uma espécie de unificação política. completamente exterior, que significa o desconhecimento, quando não a negação, dos princípios espirituais que são os únicos que podem fazer a unidade verdadeira e profunda de uma civilização, e as «nacionalidades» são um exemplo disso. Na Idade Média, havia, em todo ocidente, uma unidade real, fundada sobre bases da ordem propriamente tradicional, que era a da «Cristandade»; quando se formaram essas unidades secundárias. de ordem puramente política, quer dizer, temporal e já não espiritual, que são as nações. esta

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grande unidade do ocidente se quebrou irremediavelmente, existência efetiva da «Cristandade» chegou a seu fim. As nações, que não são mais que os fragmentos dispersos da antiga «Cristandade», as falsas unidades que substituíram à unidade verdadeira pela vontade de domínio do poder temporal, só podiam viver, pelas condições próprias de sua constituição, opondo-se umas às outras, lutando sem cessar entre elas sobre todos os terrenos (12); o espírito é unidade, a matéria é multiplicidade e divisão, e quanto mais nos afastamos da espiritualidade, mais se acentuam e amplificam os antagonismos. Ninguém duvidará de que as guerras feudais, estreitamente localizadas e, por outra parte, submetidas a uma regulamentação restritiva que emanava da autoridade espiritual, não eram nada em as guerras nacionais. que comparação com desembocaram, com a Revolução e o Império, nas "nações em armas" (13), e que vimos apresentar em nossos dias novos acontecimentos muito pouco tranqüilizadores para o futuro. Além do mais. a constituição das "nacionalidades" tornou possíveis verdadeiras tentativas de subjugação do espiritual ao temporal, trazendo assim uma inversão completa das relações hierárquicas entre ambos os poderes; esta servidão encontra sua expressão mais definida na idéia de uma Igreja "nacional", quer dizer, subordinada ao Estado e fechada nos limites deste; e a mesma palavra de "religião de Estado", sob sua voluntariamente equívoca aparência, não significa no

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fundo outra coisa; trata-se da religião da qual o governo temporal se serve como de um meio para assegurar seu domínio; é a religião reduzida a não ser mais que um simples fator da ordem social (14). Esta idéia de Igreja "nacional" viu a luz em primeiro lugar nos países protestantes. ou, para dizê-lo melhor, é talvez. sobretudo. para realizá-la que se tenha suscitado o Protestantismo. pois bem parece que Lutero quase não tenha sido, politicamente ao menos, mais que um instrumento das ambições de alguns príncipes alemães, e é muito provável que, sem isso, embora se tivesse produzido sua rebelião contra Roma, as conseqüências disso tivessem sido tão completamente desdenháveis como as de muitas outras dissidências individuais que não foram mais que incidentes sem decorrências. A Reforma é o sintoma mais aparente da ruptura da unidade espiritual da "Cristandade", mas não foi ela a que começou, segundo a expressão de Joseph de Maistre, a "rasgar a roupa sem costuras"; esta ruptura era então um fato consumado há muito tempo, já que, como mencionamos, seu início se remonta na realidade a dois séculos antes; e poderia se fazer uma observação análoga com relação ao Renascimento, que, por uma coincidência que nada tem de fortuito, produziu-se quase ao mesmo tempo que a Refonna, e somente quando os conhecimentos tradicionais da Idade ~édia haviam se perdido quase que por completo. O Protestantismo foi então, a este respeito. mais um desenlace que um ponto de partida; mas, se acima de tudo foi, na realidade, obra de príncipes e soberanos, que a utilizaram em primeiro lugar com fins

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políticos, suas tendências individualistas não deviam demorar a voltar-se contra eles, pois prepararam diretamente a via para as concepções democráticas e igualitárias características da época atual (15). Retomando o concernente à subjugação da religião ao Estado, sob a forma que acabamos de indicar, seria, além de tudo, um engano acreditar que não se encontrariam exemplos disso fora do Protestantismo (16): se o cisma anglicano de Henrique VIII é o resultado mais completo na constituição de uma Igreja "nacional", o próprio galicanismo, tal como Luis XIV pôde concebê-lo, não era outra coisa no fundo; se tal intento tivesse triunfado, a vinculação com Roma sem dúvida haveria subsistido em teoria, mas, virtualmente, os efeitos teriam sido completamente anulados pela interposição do poder político, e a situação não teria sido sensivelmente diferente na França do que o poderia ser na Inglaterra, se as tendências da facção "ritualista" da Igreja anglicana chegassem definitivamente a prevalecer (17). O Protestantismo, em suas diferentes fonnas, levou as coisas ao extremo; mas não foi só nos países onde este se estabeleceu que a realeza destruiu seu próprio "direito divino", quer dizer, o único fundamento real de sua legitimidade e. ao mesmo tempo, a única garantia de sua estabilidade; segundo o que acabamos de expor, a monarquia francesa, sem chegar a uma ruptura tão manifesta com a autoridade espiritual, atuou. em suma, exatamente da mesma forma, embora utilizando outros meios mais sutis e, inclusive, parece que foi a primeira a

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se envolver nesta via; aqueles de seus partidários que fazem disso uma espécie de glória quase não parecem dar-se conta das conseqüências que esta atitude conduziu e que não podia não conduzir. A verdade é que foi a realeza a que com isso abriu inconscientemente o caminho à Revolução, e que esta, ao destruí-la, não fez mais do que ir um pouco mais além ao sentido da desordem na qual a própria monarquia havia começado a se enredar. De fato, por toda parte no mundo ocidental, a burguesia chegou a tomar o poder, no qual a realeza a tinha feito, primeiro, participar indevidamente; pouco importa, além do mais, que haja então abolido a monarquia como na França, ou que a tenha deixado subsistir nominalmente como na inglaterra ou em outros lugares; o resultado é o mesmo em todos os casos, o triunfo do "econômico", sua supremacia abertamente proclamada. Mas. à medida que tudo se afunda na materialidade, cresce a instabilidade e as mudanças se produzem cada vez de forma mais rápida; assim, o reino da burguesia não poderá ter senão uma cuna duração comparada com a do regime ao qual sucedeu; e, como a usurpação chama à usurpação. depois dos Vaishyas, são agora os Shúdras os que, por sua vez, aspiram à dominação: é este, exatamente. o significado do bolchevismo. Não desejamos, a este respeito, fonnular nenhuma previsão. mas sem dúvida não seria muito difícil extrair, pelo precedente, certas conseqüências para o futuro: se os elementos sociais mais inferiores chegarem ao poder de uma ou outra maneira, seu reino será possivelmente o mais breve de todos, e marcará a

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última fase de certo ciclo histórico. posto que já não é possível descer mais baixo; inclusive, ainda que tal acontecimento não tivesse um alcance mais generalizado, é de se supor que ao menos será, para o Ocidente, o fim do período moderno. Um historiador que se apoiasse nos dados que indicamos poderia sem dúvida desenvolver estas considerações quase indefinidamente, investigando fatos mais particulares que fariam ressalt:u, de uma forma mais exata, o que quisemos principalmente demonstrar (18): essa responsabilidade pouco conhecida do poder real na origem de toda a desordem moderna, essa primeira separaçào, nas relações entre o espiritual e o temporal, que inevitavelmente devia abarcar a todas as restantes. Quanto a nós, não pode ser esse nosso papel; somente quisemos oferecer exemplos destinados a esclarecer urna exposição sintética; devemos pois nos ater às grandes linhas da história, e nos limitar às indicações essenciais que se desprendem da própria série dos acontecimentos.

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Notas (l) t. o que Leibnilz chamou de "princípio dos indiscerníveis"; tal como já tivemos ocasião de indicar, Leibnitz. diferentemente dos restantes filósofos modernos, possuía alguns dados tradicionais, ainda que, por outra parte. fragmentários e insuficientes para lhe

permitir franquear cena!> limitações. (2) "O Erro Espírita". 2• parte, cap. VI. (3) Veja-se especialmente "0 Esoterismo de Dame". (4) Ver a este respeilo nosso estudo sobre São Bernardo; indicamos que os dois caracteres do monge e do cavaleiro se encontravam reunidos em São Bernardo, autor da regra da Ordem do Templo, qualificada por ele como "tropa de Deus", e com isso se explica o papel que constantemente teve que desempenhar de conciliador e árbitro entre o poder religioso e o poder político. (5) Este caso é comparável ao de um homem que li vesse recebido em herança um cofre fechado que contivesse um tesouro. e que. não podendo abri-lo. ignorasse a verdadeira natureza des1e: tal homem não deixaria de ser o autêntico dono do tesouro; a perda da chave não anularia sua propriedade, e. se certas prerrogativas exteriores estivessem vinculadas a esta propriedade, conservaria sempre o direito às exercer; mas. por oUlra parle, é evidente que. no que lhe concerne pessoalmente, não poderia. em tais condições, ter efetivamente pleno desfrute de ~u tesouro. (6) Esta reserva concerne ao princípio supremo do espiritual e do temporal, que esiá além de todas as formas particulares. e cujos representantes diretos possuem evidentemente o direito de controle sobre um e outro domínio: mas a ação deste princípio supremo. no atual estado do mundo. não se exerce visivelmente. de modo que pode se dizer que toda autoridade espiritual aparece ao exterior como suprema. inclusive ainda que somente seja o que ante!> denominamos uma autoridade espiritual relativa, e inclusive também quando. em tal

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caso, tenha perdido a chave da forma tradicional da qual está encarregada de assegurar sua conservação. (7) O mesmo ocorre com a "infalibilidade pontifícia", cuja proclamação levantou tantos protestos devidos simplesmente à incompreensão mcxlerna. incompreensão que. por outra parte. fazia sua afirmação explícita e solene tão mais indispensável: um representante autêntico de uma doutrina tradicional é necessariamente infalível quando fala em nome desta doutrina; terá que dar-se conta de que esta infalibilidade está vinculada à função, e não à individualidade. Assim, no Islã, tcxlo mufti é infalível enquanto intérprete autorizado da shariyah, quer dizer. da legislação essencialmente baseada na religião. embora sua competência não se estenda a uma ordem mais interior; os orientais poderiam então se assombrar. não de que O Papa seja infalfvel em seu domínio, o que não poderia ter para eles a menor dificuldade. senão de que seja o único a sê-lo em todo o Ocidente. (8) Por isso se explica não só a destruição da Ordem do Templo. mas também. ainda mais visivelmente, o que se chamou a alteração da moeda. e ambos os fatos possi\'e\mente estejam mais estreitamente ligados do que se poderia supor à primeira vista; em todo caso. se os contemporâneos de Felipe. "O Belo", entenderam como um crime esta alteração, deve se deduzir que. ao trocar por própria iniciativa o lítu\o da moeda, transpunha os direitos reconhecidos ao poder real. Há aqui uma indicação que deve ser retida. pois este assunto da moeda tinha. na Antigüidade e na Idade Média, aspectos absolutamente ignorados pelos modernos. que se acolhem ao simples ponto de vista "econômico"; se indicou que, entre os Celtas, os símbolos que apareciam nas moedas não podem ser explicados senão quando se os refere a conhecimentos doutrinais próprios dos druidas, o que mostra uma intervenção direta destes em tal domínio; e esse controle da autoridade e~piritual se perpetuou até o final da Idade Média. (9) À luta da monarquia contra a nobreza feudal pode aplicar-se estritamente esta frase do Evangelho: "Toda casa dividida contra si mesma perecerá".

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(10) Cabe dizer que este "princípio das nacionalidades" foi, sobretudo, explorado contra o Papado e contra Áustria. que representava o último bastião da herança do Sacro Império. (li) Ali onde a monarquia pôde ser mantida. transfonnando-se em "constitucional". já não é mais que a sombra de si mesma e quase não tem senão uma existência nominal e "representativa", tal como expressa a conhecida fórmula segundo a qual "o rei reina, mas não governa"; verdadeiramente. não é mais que uma caricatura da antiga realeza.

(12) Por isso, a idéia de uma "sociedade de nações" não pode ser senão uma utopia sem alcance real; à forma nacional lhe repugna essencialmente o reconhecimento de uma unidade qualquer superior à dela; por outra pane, nas concepções que saem atualmente à luz, não se trataria evidentemente mais que de uma unidade da ordem exclusivamente temporal. logo ineficaz, e jamais poderia ser mais que uma paródia da verdadeira unidade. (13) Como em outro lugar indicamos ('"A Crise do Mundo Moderno", pp. 104-105), ao ohrigar a todos os homens indistintamente a tomar pane nas guerras modernas. ignora-se por completo a distinção essencial das funções sociais; esta é, além do mais, uma conseqüência lógica do "igualitarismo". (14) Esta concepção pode por outra parte realizar-se sob outra<> formas distintas às de uma Igreja "nacional" propriamente dita; temse disso um exemplo do mais notável num regime como o de "Concordata" napoleônico, que transformou os sacerdotes em funcionários do Estado, o que é uma verdadeira monstruosidade. (15) Cabe notar que o Protestantismo suprime o clero. e que, embora preten~a manter a autoridade da Bíblia. arruína-a de fato pelo "livre (16) Não considera~os aqui o caso da Rússia, que é um pouco especial e que deveria dar lugar a distinções que complicariam inutilmente nossa exposição; é certo que, também ali, encontra-se a "religião de Estado" no sentido que definimos; mas ao menos as

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ordens monásticas puderam escapar de certa forma à subordinação do espiritual ao temporal, enquanto que nos países protestantes sua supressão 1em 1ornado esta subordinação tão completa quanto era possível. ( 17) Observar-se-á, além do mais. que existe. enU"e as denominações de "anglicanismo" e "ga\icanismo". uma estreita similitude que corresponde à realidade. (18) Poderia ser interessante. por exemplo, estudar especialmente desde este ponto de vista o papel de Richelieu, que se tomou de fúria na destruição dos últimos vestígios do feudalismo, e que, combatendo aos protestantes no interior, aliou-se com eles no exterior conlfa aquilo que ainda podia subsistir do Sacro Império, quer dizer. contra as sobrevivências da antiga "Cristandade".

Capítulo VIII: PARAÍSO TERRESTRE E PARAÍSO CELESTIAL A constituição política da "Cristandade" medieval era, como dissemos, essencialmente feudal; sua cúspide residia numa função. verdadeiramente suprema na ordem temporal, que era a do Imperador, que devia ser com relação aos reis o que estes, por sua vez, eram com relação a seus vassalos. É necessário dizer, além disso, que esta concepção do Sacro Império era acima de tudo teórica e que jamais foi plenamente realizada, sem dúvida por causa dos próprios Imperadores. que, desorientados pela amplitude da potência que se lhes tinha sido conferida, foram os primeiros a duvidar de sua subordinação frente à autoridade espiritual, da qual entretanto obtinham seu poder. como todos os outros soberanos, e inclusive ainda mais diretamente (1). Foi isto o que se conveio chamar de "querela entre o Sacerdócio e o Império", cujas diversas vicissitudes são bastante conhecidas para que tenhamos que as recordar aqui, nem sequer sumariamente, ainda mais que o detalhamento de tais fatos importa pouco para o que nos propusemos; o mais interessante é compreender o que verdadeiramente deveria ter sido o Imperador, e também o que é que pôde dar nascimento ao engano que lhe fez tomar sua supremacia relativa como uma supremacia absoluta.

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A distinção entre o Papado e o Império provinha, de certo modo, de uma divisão dos poderes que, na antiga Roma, tinham sido reunidos numa só pessoa. já que, por então, o lmperator era ao mesmo tempo Pontifex Maximus (2); não iremos, além do mais, investigar aqui como se pode explicar, neste caso especial. esta reunião do espiritual e do temporal, pois correríamos o risco de nos perder em considerações bastante complexas (3). Seja como for, O Papa e o Imperador não eram exatamente "as duas metades de Deus", como escreveu Vítor Hugo, senão mais precisamente as duas metades desse Cristo~ Jano que algumas representações nos mostram tendo em uma mão uma chave e na outra um cetro. emblemas respectivos dos poderes sacerdotal e real, unidos nele como em seu princípio comum (4). Esta assimilação simbólica de Cristo com Jano. enquanto princípio supremo dos dois poderes, é uma marca muito clara de certa continuidade tradicional, muito freqüentemente ignorada ou negada de antemão, entre a antiga Roma e a Roma cristã; não se deve esquecer que, na Idade Média, o Império era "romano" como o Papado. Mas esta mesma representação nos oferece também a razão do engano que acabamos de indicar, e que devia ser fatal para o Império; tal engano consiste. em suma, considerar como equivalentes as duas metades de Jano. que efetivamente o são na aparência, mas que, quando representam o espiritual e o temporal, não o podem ser na realidade; em outras palavras, é o mesmo engano que consiste em considerar os dois poderes unidos mediante uma relação de coordenação, quando verdadeiramente se trata de uma

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relação de subordinação, posto que, desde o momento em que estão separados, enquanto um procede diretamente do princípio supremo. o outro não procede dele senão indiretamente; já nos explicamos suficientemente sobre isso no que precedeu, para não haver, por isso, a necessidade de se insistir ainda mais sobre o assunto. Dante, ao final de seu tratado De Monarchia, define de uma fonna muito clara as respectivas atribuições do Papa e do Imperador; eis aqui esta importante passagem: "A inefável Providência de Deus oferece ao homem dois fins, ou seja: a felicidade da vida presente, que consiste no exercício da virtude própria e que se simboliza pelo paraíso terrestre; e a felicidade da vida eterna, que consiste no gozo da visão de Deus. à qual a virtude humana não pode ascender se não for ajudada pela divina luz. felicidade esta que nos é dada a entender como Paraíso celestial. A estas duas felicidades, como a duas diferentes conclusões, pode-se chegar por diversos meios. De fato, à primeira podemos chegar pelos ensinos filosóficos. contanto que as sigamos. operando de acordo com as virtudes morais e intelectuais. À segunda podemos chegar por preceitos espirituais que transcendem a razão humana, contanto que os sigamos, operando de acordo com as virtudes teologais. fé. esperança e caridade. Estas conclusões e estes meios. bem que nos sejam ensinados, uns pela razão humana que nos é manifestada inteiramente pelos filósofos, os outros pelo Espírito Santo que nos revelou a verdade sobrenatural. necessária para nós, pelos profetas e

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escritores sagrados, e pelo Filho de Deus, Jesus Cristo. coeterno ao Espírito, e por seus discípulos, tais conclusões e tais meios, a concupiscência humana os faria abandonar se os homens, semelhantes a cavalos que vagabundeiam em sua bestialidade. não fossem conduzidos pelo freio em seu caminho. Por isso foi necessário ao homem ter uma guia dupla. de acordo com esta dupla finalidade, ou seja: o Supremo Pontífice. que conduziria ao gênero humano à vida eterna segundo a Revelação, e o Imperador, que, segundo os ensinos filosóficos. dirigi-la-ia à felicidade temporal. E como a este porto ninguém poderia chegar, ou não chegariam senão muito poucas pessoas e ao custo das piores dificuldades, caso o gênero humano não pudesse repousar livre na tranqüilidade da paz. depois de que tivessem sido apaziguadas as ondas das paixões, é esta meta para onde deve tender, sobretudo. aquele que rege a terra. o Príncipe romano: que nesta pequena morada dos mortais se viva livremente em paz (5)". Este texto precisa de certo número de explicações para ser perfeitamente compreendido. já que é necessário não se deixar confundir com ele: sob uma linguagem na aparência puramente teológica, encerra verdades de uma ordem muito mais profunda, o que por outra parte está de acordo com os costumes de seu autor e das organizações iniciáticas às quais estava vinculado (6). Por outra parte, é bastante estranho. digamos de pa<;sagem, que quem escreveu estas linhas tenha podido,

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às vezes, ser apresentado como um inimigo do Papado; sem dúvida, tal como antes dissemos, denunciou as insuficiências e as imperfeições que pôde comprovar no estado do Papado em sua época e, particularmente, como uma de suas conseqüências. o recurso muito freqüente aos meios propriamente temporais, logo pouco convenientes para a ação de uma autoridade espiritual; mas soube não imputar à própria instituição os defeitos dos homens que a representavam circunstancialmente, o que nem sempre sabe fazer o individualismo moderno (7).

Se nos referirmos ao que já explicamos. \"er-se-á sem dificuldade que a distinção que Dante estabelece entre os dois fins do homem correspondem exatamente à dos "pequenos mistérios" e dos "grandes mistérios", e também, em conseqüência. à da "iniciação real" e a da "iniciação sacerdotal". O Imperador preside os "pequenos mistérios". que concernem ao "Paraíso terrestre", quer dizer, a realização da perfeição do estado humano (8); o Soberano Pontífice preside os "grandes mistérios". que concernem ao "Paraíso celestial", quer dizer, à realização dos estados supra-humanos, ligados assim ao estado humano pela função "pontifical" entendida em seu sentido estritamente etimológico (9). O homem, enquanto tal, não pode evidentemente alcançar por si mesmo senão o primeiro destes fins. que pode ser chamado "natural", enquanto que o segundo é propriamente "sobrenatural",já que reside para além do mundo manifestado; tal distinção corresponde à da ordem "física" e a da ordem

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"metafísica". Aparece aqui tão claramente como é possível a concordância de todas as tradições, sejam do Oriente ou do Ocidente: ao definir como o temos feito as atribuições respectivas dos Kshatriyas e dos Brâhmanes, estávamos autorizados a não ver tão somente nisso algo aplicável a uma determinada fonna de civilização, a da Índia, posto que as encontramos, definidas de uma maneira rigorosamente idêntica, naquilo que foi. antes da separação moderna, a civilização tradicional do mundo ocidental. Dante atribui então por funções ao Imperador e ao Papa o conduzir a humanidade respectivamente ao "Paraíso terrestre" e ao "Paraíso celestial"; a primeira de ambas as funções se cumpre ''segundo a filosofia". e a segunda "segundo a Revelação"; mas estes termos requerem uma cuidadosa explicação. É evidente, de fato, que a "filosofia" não poderia ser entendida aqui em seu sentido ordinário e "profano", pois, se assim o fora. seria manifestamente incapaz de cumprir o papel que lhe é atribuído; é necessário, para compreender aquilo de que realmente se trata. restituir a esta palavra seu significado primitivo, que tinha para os Pitagóricos, que foram os primeiros em empregá-la. Como em outro lugar o (10), esta palavra. significando indicamos etimologicamente "amor à sabedoria", designa em primeiro lugar uma disposição prévia requerida para alcançar a sabedoria, e também pode aludir, por uma extensão natural, à busca que. nascendo dessa mesma disposição, deve conduzir ao verdadeiro conhecimento:

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não é então senão um estádio preliminar e preparatório, um caminho para a sabedoria, assim como o "Paraíso terrestre" é uma etapa na via que conduz ao "Paraíso celestial". Esta "filosofia", assim entendida, é o que se poderia chamar, caso se queira, a "sabedoria humana", já que compreende o conjunto de todos os conhecimentos que podem ser alcançados apenas pelas faculdades do indivíduo humano, faculdades sintetizadas por Dante na razão, pois esta é o que propriamente define ao homem como tal; mas esta "sabedoria humana". precisamente por não ser mais que humana, não é absolutamente a verdadeira sabedoria, que se identifica com o conhecimento metafísico. Este é essencialmente supraracional, logo também supra-humano; e. do mesmo modo que, a partir do "Paraíso terrestre", a via do "Paraíso celestial" deixa a terra para "salire alie stel/e", como diz Dante (11). quer dizer, para elevar-se aos estados superiores, representados pelas esferas planetárias e estelares na linguagem da astrologia, e pelas hierarquias angélicas no da teologia, as faculdades individuais são impotentes para o conhecimento de tudo aquilo que supera o estado humano, e são precisos outros meios: é aqui quando intervém a "Revelação", que é uma comunicação direta com os estados superiores, comunicação que, como indicávamos anteriormente, é efetivamente estabelecida pelo "pontificado". A possibilidade desta "Revelação" se apóia na existência de faculdades transcendentes com respeito ao indivíduo: ~eja qual for o nome que se lhe dê, falando, por exemplo, de "intuição intelectual" ou de "inspiração", é sempre no

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fundo o mesmo; o primeiro destes termos poderá fazer pensar num sentido nos estados "angélicos", que efetivamente são idênticos aos estados supra-individuais do ser, e o segundo evocará, sobretudo. essa ação do Espírito Santo à qual Dante alude expressamente (12); poderá se dizer, também, que o que é interiormente "inspiração", para aquele que a recebe diretamente, será exteriormente "Revelação" para a coletividade humana à qual se transmitiu por sua mediação. na medida em que tal transmissão é possível, quer dizer. na medida do que é expressável. Naturalmente, não fazemos mais do que resumir aqui, muito sumariamente e de uma forma possivelmente um pouco simplificada. um conjunto de considerações que, caso fosse desenvolvida de um modo mais completo. levar-nos-ia a certas complexidades e escapariam por outra parte de nosso tema; o que acabamos de dizer é em todo caso suficiente para o fim que atualmente nos propomos. Nesta acepção, a "Revelação" e a "filosofia" correspondem respectivamente às duas partes que, na doutrina hindu, são designadas com os nomes do Shruti e de Smriti (13); devemos destacar que. também aqui. dizemos que existe correspondência. e não identidade, pois a diferença das formas tradicionais implica uma diferença real dos pontos de vista dos quais as coisas são consideradas. A Shruti, que compreende todos os textos védicos, é fruto da inspiração direta. e a Smriti é o conjunto das conseqüências e aplicações diversas obtidas mediante a reflexão; sua relação é, em diversos aspectos.

Ili

a do conhecimento intuitivo e o conhecimento discursivo; e, de fato, de ambos os modos de conhecimento, o primeiro é supra-humano, enquanto que o segundo é propriamente humano. Tal como o domínio da "Revelação" é atribuído ao Papado e o da "filosofia" ao Império, a Shruti concerne diretamente aos Brâhmanes, cuja principal ocupação é o estudo do Vêda, e a Smriti. que compreende o "Dharma-Shâstra" ou "Livro da Lei" (14), logo a aplicação social da doutrina, concerne mais aos Kshatriyas, aos quais estão mais especialmente destinados a maioria dos livros contidos ne~ta expressão. A Shruti é o princípio do qual deriva todo o resto da doutrina, e seu conhecimento, ao implicar o dos estados superiores, constitui os "grandes mistérios"; o conhecimento da Smriti, quer dizer, das aplicações no "mundo do homem". entendendo por isso o estado humano integral. considerado em toda a extensão de suas possibilidades, constitui os "pequenos mistérios" (15). A Shruri é a luz direta, que, como a inteligência pura (que ao mesmo tempo é aqui a pura espiritualidade), corresponde ao sol, e a Smriti é a luz refletida, que, como a memória, da qual leva o nome e que é a faculdade "temporal" por definição, corresponde à lua (16); por isso, a cha\"e dos "grandes mistérios" é de ouro, e a dos "pequenos mis1érios" de prata, pois o ouro e a prata são, na ordem alquímica, o equivalente exato do que são o sol e a lua na ordem astrológica. Ambas as chaves, que eram as de Jano na antiga Roma, constituíam um dos atributos do Soberano Pontífice, ao qual estava essencialmente vinculada a função do "Hierofante" ou "mestre dos

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mistérios"; com o próprio título de Pontifex Maximus, mantiveram-se entre os principais emblemas do Papado e, além do mais, as sentenças evangélicas relativas ao "poder das chaves" não fazem em suma. assim como igualmente ocorre com respeito a outros pontos, mais que confirmar plenamente a tradição primitiva. Pode agora se compreender, ainda mais completamente, pois já o tínhamos explicado antes, por que estas duas chaves são ao mesmo tempo as do poder espiritual e do poder temporal; poder-se-ia dizer, para expressar as relações entre ambos os poderes. que o Papa deve guardar para si a chave de ouro do "Paraíso celestial", e confiar ao Imperador a chave de prata do "Paraíso terrestre"; e acabamos de ver que. no simbolismo, esta segunda chave era às vezes substituída pelo cetro, insígnia mais específica da realeza (17). Há no que precede um ponto sobre o qual devemos chamar a atenção, com o objetivo de evitar inclusive a aparência de uma contradição: dissemos, por um lado, que o conhecimento metafísico, que é a verdadeira sabedoria, é o princípio do qual deriva qualquer outro conhecimento a título de aplicação em ordens contingentes, e. por outro, que a "filosofia", em seu sentido original, segundo o qual designa o conjunto de tais conhecimentos contingentes, deve ser considerada como uma preparação à sabedoria; como podem conciliar-se ambas as afirmações? Já em outro lugar nos explicamos sobre este assunto, a propósito do duplo papel das "ciências tradicionais" (18): há aqui dois pontos de

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vista, um descendente e o outro ascendente, correspondendo o primeiro a um desenvolvimento do conhecimento que parte dos princípios para chegar às aplicações, cada vez mais afastadas deste, e o segundo a uma aquisição gradual deste mesmo conhecimento, procedendo do inferior ao superior, ou também, caso se queira, do exterior ao interior. Este segundo ponto de vista corresponde, então, à via segundo a qual os homens podem ser conduzidos ao conhecimento, de uma maneira gradual e proporcionada a suas capacidades intelectuais; e é a<;sim que, em primeiro lugar, são conduzidos ao "Paraíso terrestre", e depois ao "Paraíso celeslial"; mas esla ordem de ensino ou de comunicação da "ciência sagrada" é inversa a sua ordem de constituição hierárquica. De fato, todo conhecimento que verdadeiramente po~sua o caráter de "ciência sagrada", seja da ordem que for, não pode ser validamente constituído exceto por aqueles que, acima de tudo, possuem plenamente o conhecimento principiai. e que, por isso mesmo, são os únicos qualificado~ para realizar, conforme à ortodoxia tradicional mais rigorosa, todas as adaptações requeridas pela~ circunstâncias de tempo e de lugar; por isso, tais adaptações, quando são regularmente efetuadas, são necessariamente obra do sacerdócio, ao qual. por definição, pertence o conhecimento principiai; e também por isso só o sacerdócio pode legitimamente conferir a "iniciação real", mediante a comunicação dos conhecimentos que a constituem. Pode se deduzir disso que as duas chaves, consideradas como sendo as do conhecimento na ordem "metafísica" e na ordem "física",

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pertencem ambas realmente à autoridade sacerdotal, e é somente por delegação, se assim pode se dizer, que a segunda é confiada aos depositários do poder real. De fato. quando o conhecimento "físico" é separado de seu princípio transcendente, perde sua principal razão de ser e não demora para converter-se em heterodoxo; é então quando aparecem. tal como explicamos, as doutrinas "naturalistas", resultado da adulteração das "ciências tradicionais" por parte dos Kshatriyas rebeldes; trata-se já de um caminhar para a "ciência profana", que será a obra própria das castas inferiores e o sinal de sua dominação na ordem intelectual, se ainda. em semelhante caso, pode falar-se de intelectualidade. Aqui. como na ordem política, a rebelião dos Kshatriyas prepara a via à dos Vaishyas e dos Shtidrm; é assim que, de ecapa em etapa, se chega ao mais baixo utilitarismo. à negação de todo conhecimento desinteressado, ainda que seja de um nível inferior. e de toda realidade que supere o domínio sensível; é isto. ex.atamente. o que podemos comprovar em nossa época, em que o mundo ocidental quase chegou ao último grau dessa descida que, como a queda dos corpos pesados, acelera-se sem pausa. Ainda fica, no texto do De Monarchia, um ponto que não elucidamos, e que não é menos digno de destacar que o resto do que até aqui explicamos: é a alusão à navegação contida na última frase, segundo um simbolismo do qual, além de tudo, Dante se serve freqüentemente (19). Entre os emblemas que foram antigamente os de Jano, o Papado não somente conservou

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as chaves, mas também a barco, igualmente atribuída a São Pedro e convertida na figura da Igreja (20); seu caráter "romano" exigia esta transmissão de símbolos, sem a qual não teria representado senão um simples fato geográfico sem alcance real (21). Quem não visse aqui exceto "empr6timos", com os quais estaria tentado a reprovar o Catolicismo por isso, dariam assim mostra de uma mentalidade absolutamente "profana"; por nossa parte, vemos nisso, pelo contrário, uma prova dessa regularidade tradicional sem a qual nenhuma doutrina poderia ser válida, e que se remonta de degrau em degrau até a grande tradição primitiva: e estamos seguros de que nenhum dos que compreende o sentido profundo destes símbolos poderá nos contradizer. A figura da navegação foi empregada freqüentemente na Antigüidade gregolatina: especialmente. podemos citar como exemplos. a expedição dos Argonautas à conquista do "Tosão de ouro" (22) ou as viagens de Ulisses; é encontrada também em Virgílio e em Ovídio, e igualmente na Índia esta imagem se encontra às vezes, e já tivemos ocasião de citar noutro lugar uma frase que contém expressões estranhamente semelhantes às de Dante: "o Iogue, diz Shankarâchárya, tendo atravessado o mar das paixões, está unido à tranqüilidade e possui o "Si" em sua plenitude" (23). O "mar de paixões" é evidentemente o mesmo que as "ondas da cobiça", e, em ambos os textos, trata-se igualmente da "tranqüilidade": efetivamente, o que representa a navegação simbólica é a conquista da "grande paz" (24). Esta pode, além do mais, ser entendida de duas maneiras, caso se refira ao "Paraíso terrestre" ou

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ao "Paraíso celestial"; neste, identifica-se com a "luz de glória" e com a "visão beatífica" (25); no outro, é a "paz" propriamente dita. num sentido mais restrito, embora ainda muito diferente do sentido "profano"; deve se destacar que Dante aplica a mesma palavra "beatitude" aos dois fins do homem. O barco de São Pedro deve conduzir os homens ao "Paraíso celestial"; mas o papel do "príncipe romano", quer dizer. do Imperador, é o de conduzi-los ao "Paraíso terrestre", e também há aqui uma navegação (26); por isso a "Terra Santa" das diversas tradições, que não é mais que esse "Paraíso terrestre", freqüentemente é representada como uma ilha: o objetivo atribuído por Dante "àquele que rege a terra" é a realização da "paz" (27); o porto para o qual deve dirigir o gênero humano é a "ilha sagrada" que permanece imutável em meio da agitação incessante das ondas. é a "Montanha de Salvação". o "Santuário da Paz" (28). Deixaremos aqui a explicação deste simbolismo, cuja compreensão, depois destas elucidações, não deve já oferecer a menor dificuldade, ao menos na medida em que é necessário para o entendimento dos respectivos papéis do Império e do Papado; por outra parte. quase não poderíamos dizer mais sobre isso sem entrar num domínio que não queremos agora abordar (29). A citada passagem do De Monarchia é, a nosso entender, a exposição mais clara e completa, em sua voluntária concisão, da constituição da "Cristandade" e da maneira em que as relações de ambos os poderes deveriam ser consideradas.

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Sem dúvida nos perguntará a razão de que tal idéia se manteve como a expressão de um ideal que jamais haveria de ser realizado; o estranho é que, no preciso momento em que Dante a formulou assim, os acontecimentos que se sucederam na Europa eram justamente de tal calibre que deviam impedir para sempre sua realização. A obra inteira do Dante é, em certos aspectos. como o testamento da Idade Média agonizante; mostra o que teria sido o mundo ocidental se não tivesse quebrado com sua tradição; mas, se acaso se pôde produzir separação moderna. é porque, verdadeiramente, esse mundo já não possuía tais possibilidades, ou ao menos não eram senão o patrimônio de uma elite muito restringida, que sem dúvida as realizou em si mesma, embora sem que nada disso pudesse passar ao exterior e refletir-se na organização social. Tinha chegado já então esse momento da história em que devia começar o período mais obscuro da "idade sombria" (30) caracterizado, em todas as ordens, pelo desenvolvimento mais inferiores; e este das possibilidades desenvolvimento, avançando sempre no sentido da mudança e da multiplicidade, devia desembocar inevitavelmente no que hoje em dia comprovamos: do ponto de vista social, como desde qualquer outro ponto de vista. a instabilidade está de certo modo em seu máximo grau, a desordem e a confusão reinam em todas as partes; jamais, com toda segurança, a humanidade nunca esteve tão afastada do "Paraíso terrestre" e da espiritualidade primitiva. É preciso concluir que este afastamento é definitivo, que nenhum poder temporal

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estável e legítimo voltará a reger jamais na terra, que toda autoridade espiritual desaparecerá deste mundo. e que as trevas, estendendo-se do Ocidente ao Oriente, ocultarão para sempre aos homens a luz da verdade? Se esta fosse a nossa conclusão, certamente não teríamos escrito estas páginas, assim como tampouco, por outra parte, nenhuma de nossas outras obras, pois isso seria, ne:".ita hipótese, um esforço inútil; fica por dizer por que razão não pensamos que isso tenha que ser assim.

Notas (1) O Sacro Império começou com Carlos Magno. e se sabe que foi o

Papa quem conferiu a este a dignidade imperial: seus sucessores não poderiam ser legitimados de um modo diferente. (2) É notável que O Papa sempre tenha conservado este título do Pontifex Maximus, cuja origem é tão evidentemente estranha ao Cristianismo e. além disso, tão anterior; este é um desses fatos que deveriam fazer pensar. a quem é capaz de reflexão, que o suposto "paganismo" possufa na realidade um caráter muito diferente ao qual normalmente se lhe atribui. (3) O Imperador romano aparece de ceno modo como um Kshatriya que exerce, além de sua função própria, a função de um Brâhmane; parece então que exista aqui uma anomalia. e seria preciso saber se acaso a tradição romana não possuía um caráter particular que permitisse considerar este fato de uma maneira distinta de uma simples usurpação. Por outra parte. pode se por em dúvida que os Imperadores tenham estado. em sua maioria. verdadeiramente "qualificados" do ponto de vista espiritual; mas às vezes deve se distinguir entre o representante '"oficial" da autoridade e seus depositários efetivos. e basta que estes inspirem àquele. inclusive ainda quando não seja um deles, para que as coisas sejam como devem ser. (4) Ver um artigo de L. Charbonneau-1..assay intitulado "Un ancien embleme d11 mois de janrier". publicado na revista '"Regnabit" (março de 1925 ). A chave e o cetro equivalem aqui ao conjunto mais habitual das duas chaves de ouro e de prata; ambos os símbolos estão. por outra pane, diretamente referidos a Cristo por esta fórmula bíblica: "O Clavis David, et Sceptrum domus Israel..." (Breviário romano. oficio de 20 de dezembro). (5) De Monarchia.111. 16.

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(6) Ver especialmeme, a este respeito. nosso estudo "O Esoterismo de Dante'', e 1ambém a obra de Luigi Valli. II Linguaggio se greto di D:mte e dei Fedeli d'Amore; infelizmente, o autor morreu sem ter podido levar suas investigações até o final, e justo no momento em que estas pareciam lhe conduzir a considerar as coisas num espírito mais próximo ao esoterismo tradicional. (7) Ao se falar do Catolicismo. dever-se-ia sempre tomar cuidado em distinguir o que concerne ao Catolicismo em si enquanto doutrina e o que somente se refere ao atual estado da organização da Igreja católica: seja o que for que se possa pensar desta última questão, a pnmeira não podia ser absolutamente afetada. O que aqui dissemos do Catolicismo. já que este exemplo apresenta imediatamente a propósito de Dante. poderia além do mais encontrar muitas outras aplicações; mas são muito poucos os que hoje em dia sabem, quando faz falta, liberar-se da~ contingências históricas, até tal ponto que, para seguir com o mesmo exemplo, alguns defensores do Catolicismo. e também seus adversários. acreditam poder reduzir tudo a uma simples questão de "historicidade", o que constitui uma das formas da moderna "superstição dos fatos". (8) Esta realização constitui. efetivamente, a restauração do "estado

primitivo" do que se trata em todas as tradições. tal como já tivemos oportunidade de expor em diversas ocasiões. (9) No simbolismo da cruz, a primeira de ambas as realizações está

representada pelo desenvolvimento indefinido da linha horizontal. e a segunda pelo da linha vertical: trata-se. segundo a linguagem do esoterismo islâmico. dos dois sentidos da "amplilude" e da "exaltação". cujo plena expansão se realiza no "Homem Universal". que é o Cristo místico. o "segundo Adão" de São Paulo. (10) "A Crise do Mundo Moderno", pp. 21-22 (2•edição). (li) Purgatório. XXXllI, 145; ver "O Esoterismo de Dante , P. 60.

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(12) O intelecto puro. que é da ordem universal e não individual. e que religa entre si todos os estados do ser. é o princípio ao qual a doutrina hindu denomina Buddhi. nome cuja raiz expressa essencialmente a idéia de "sabedoria". (13) Veja-se "O Homem e seu Devir Segundo o Yedanta". cap. Iº. (14) Sob este aspecto, poderiam possivelmente extrair-se certas conseqüências do fato de que, na tradição judaica, origem e ponto de partida de tudo o que pode levar o nome de "religião'' em seu sentido mais exato, já que o Islã se relaciona com ela tanto quanto o Cristianismo. a denominação da Thorah ou "Lei" é aplicada a todo o conjunto dos Livros sagrados: vemos nisso, sobretudo, uma conexão com a conveniência especial da forma religiosa para os povos nos quais prepondera a natureza dos Kshatriyas. e também com a importância particular que adma nesta forma o ponto de vista social. havendo entre estas considerações. além do mais. laços bastante estreitos. (15) Deve ficar claro que, em tudo o que dissemos. se trata sempre de um conhecimento que não é só teórico, mas também efetivo. e que, em conseqüência, compreende essencialmente a correspondente realização. (16) A este respeito, devemos assinalar que o "Paraisa celestial" é essencialmente o Brahmâ-loko., identificado com o "Sol espiritual" ("O Homem e seu Devir Segundo o Yedanta", capítulos. XXI e XXII), e que, por outra parle, o "Paraíso terrestre" é descrito como tocando a "esfera da Lua" ( ··o Rei do Mundo" , P. 55): o cume da montanha do Purgatório. no simbolismo da Divina Comédia. é o limite do estado humano ou terrestre, individual. e o ponto de comunicação com os estados celestes, supra-individuais. (17) O cetro. como a chave. tem relações simbólicas com o "eixo do mundo"; mas este é um ponto que não podemos mais que destacar

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aqui ocasionalmente. reservando-nos desenvolvimento para outros estudos.

convemen1e

(18) ''A Crise do Mundo Moderno'', pp. 63-65 (2• edição) (19) Cf. a este respeito Anuro Reghini. "L'Alfegoria esoterica di Dante", em "li Niwvo Pa1to". setembro-novembro de 1921, pp. 546548. (20) O "barco simbólico" de Jano era um barco que podia avançar nos dois sentidos. para frente e para trás. o que corresponde às duas faces do próprio Jano. (21) Observar-se-á. (>Or outra parte. que. se houver no Evangelho frases e fatos que permitem atribuir diretamente as chaves e o barco a São Pedro. é porque o Papado, desde sua origem, estava destinado a ser "romano", em razão da situação de Roma como capilal do Ocidente. (22) Dante alude precisamente a isso numa das passagens da Divina Comédia mais característicos no que concerne ao emprego do simbolismo (Paraíso. li. 1-18); e não é casual que recorde esta alusão no último canto do poema (Paraíso, XXXllI, 96); o significado hermélico do "Tosão de ouro" era além do mais bem conhecido na Idade Média. (23) Atmâ-Bodlia; veja-se ..O Homem e seu devir Segundo o Vedanta... cap. XXIII e ·-o Rei do Mundo'", P. 121. (24) Esta mesma conquista está também represenlada às vezes em forma de uma guerra: destacamos antes o emprego deste simbolismo no Bhaga1·ad-Gitâ, assim como entre os muçulmanos, e podemos acrescentar que se enconira também um simbolismo do mesmo gênero nas novelas de cavalaria da Idade Média.

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(25) É o que indicam muito clarameOle os diferentes sentidos da palavra hebraica Shekinal1: por outro lado. os dois aspectos que mencionamos aqui são os que designam as palavras Gloria e Pa.t na fónnula "Glorifica in excelsiJ Deo et in terra Pax homil1ibus bonae vol11nta1is", como o explicamos em nosso estudo "O Rei do Mundo"

Capítulo IX-A LEI IMUTÁVEL Os ensinos de todas as doutrinas tradicionais são, como se já viu. unânimes em afirmar a supremacia do espiritual sobre o temporal e em não considerar como normal e legítima senão uma organização social em que se reconheça esta supremacia e se traduza nas relações entre os poderes correspondentes a ambos os domínios. Além do mais, a história mostra claramente que o desconhecimento desta ordem hierárquica traz consigo sempre e em todas as partes as mesmas conseqüências: desequilíbrio social. confusão das funções, domínio dos elementos inferiores, e também degeneração intelectual, esquecimento dos princípios transcendentes, primeiro. para chegar depois, de queda em queda, até a negação de todo conhecimento verdadeiro. É preciso. por outra parte. insistir em que a doutrina. que permite prever que tudo deva irremediavelmente ocorrer deste modo, não tem necessidade. em si mesma, de tal confirmação a posteriori; mas, se apesar disto acreditam dever insistir nisso, é porque, sendo nossos contemporâneos panicularmente sensíveis aos fatos em razão de suas tendências e de seus hábitos mentais, aqui há com o que lhes incitar a refletir seriamente. e talvez inclusive possam ser levados a reconhecer a verdade da doutrina. Se esta verdade fora reconhecida, ainda que só por um pequeno número, seria um resultado de uma importância considerável. já que não é mais que desta forma que se pode começar uma mudança de orientação tendente a uma restauração da ordem normal; e esta restauração,

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sejam quais forem seus meios e modalidades, necessariamente se produzirá cedo ou tarde; sobre este último ponto devemos dar ainda algumas explicações. O poder temporal, dissemos, concerne ao mundo da ação e da mudança; agora, não possuindo a mudança em si mesma sua razão suficiente (1), deve receber de um princípio superior sua lei. tão somente pela qual se integra na ordem universal; se, pelo contrário. pretende-se independente de todo princípio superior, já não é, por isso mesmo, senão pura e simples desordem. A desordem é, no fundo, o mesmo que o desequilíbrio, e, no domínio humano, se manifesta através disso que se chama injustiça, pois há identidade entre as noções de justiça, ordem, equilíbrio, harmonia... ou. mais precisamente, todos estes não são mais que distintos aspectos de uma só coisa, considerada de diferentes e múltiplas maneiras segundo os domínios nos quais se aplique (2). Agora, segundo a doutrina extremo-oriental, a justiça é feita da soma de todas as injustiças, e, na ordem total, toda desordem se compensa por outra desordem; por isso, a revolução que eliminou à realeza foi, ao mesmo tempo, sua conseqüência lógica e seu castigo, quer dizer, a compensação da anterior revolta desta mesma realeza contra a autoridade espiritual. A lei é negada do instante em que se nega o princípio mesmo do qual ela emana; mas seus negadores não puderam realmente suprimi-la, e se volta assim contra eles; deste modo, a desordem deve finalmente entrar na ordem, à qual nada poderia se opor,

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se não for tão somente na aparência e de uma forma totalmente ilusória. Objetar-se-á, sem dúvida, que a revolução, substituindo o poder dos Kshatriya ...· pelo das castas inferiores, não é mais que um agravamento da desordem e, com segurança, isto é certo se não forem considerados mais que os resultados imediatos; mas é exatamente este mesmo agravamento que impede a desordem se perpetuar indefinidamente. Se o poder temporal não perdesse sua estabilidade ao ignorar sua subordinação com respeito à autoridade espiritual, não haveria nenhuma razão para que cessasse a desordem uma vez introduzida na organização social; mas falar da estabilidade da desordem é uma contradição nos termos, já que não é em suma. caso possamos dizer assim, senão a mudança reduzida a si mesma; seria como pretender encontrar a imobilidade no movimemo. Cada vez que se acentua a desordem. o movimento se acelera, pois se dá um passo a mais no sentido da mudança pura e da "instantaneidade"; por isso, como antes dissemos, quanto mais inferior é a ordem dos elementos sociais que preponderam, menos duradouro é seu domínio. Tal como tudo o que não tem mais que uma existência negativa, a desordem se destrói a si mesma; é em seu próprio excesso onde se pode encontrar o remédio para os casos mais desesperados, posto que a rapidez crescente da mudança necessariamente terá um término; e, na atualidade, não começam muitos a sentir mais ou menos confusamente que as coisas não poderão continuar assim indefinidamente? Inclusive, ainda que no ponto em

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que está o mundo já não seja possível uma retificação sem uma catástrofe, não é esta uma razão suficiente para considerá-la apesar de tudo? E. se isto fosse rechaçado, não constituiria esta uma forma de esquecimento dos princípios imutáveis, que estão além de todas as vicissitudes do "temporal" e que, em conseqüência, nenhuma catástrofe poderia afetar? Anteriormente dissemos que a humanidade jamais esteve tão afastada do "Paraíso terrestre" de como atualmente o está; mas, entretanto, não deve se esquecer que o fim de um ciclo coincide com o começo de outro; além do mais, se nos remetermos ao Apocalipse, ver-se-á que é no limite extremo da desordem, quase na aparente destruição do "mundo exterior", quando deve produzir o advento da "Jerusalém celestial", que será. para um novo período da história da humanidade, o análogo do que foi o "Paraíso terrestre" para aquele que terminará nesse mesmo momento (3). A identidade entre as características da época moderna e aquelas que as doutrinas tradicionais indicam para a fase final do Kali-Yuga permitem pensar, sem muito engano, que esta eventualidade poderia não ser muito longínqua; e este seria, com segurança, depois do atual obscurecimento, o completo triunfo do espiritual (4).

Se tais previsões parecerem muito incertas, como efetivamente podem parecer para aqueles que não possuam suficientes dados tradicionais para as apoiar, podem ao menos lhes recordar exemplos do passado, que claramente demonstram que tudo o que não se apóia

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senão no contingente e o transitório passa fatalmente, que sempre a desordem se desvanece e a ordem finalmente se restaura, de modo que, ainda que às vezes a desordem pareça triunfar, este triunfo não poderia ser mais que passageiro, e tanto mais efêmero quanto maior seja a desordem. Sem dúvida, ocorrerá o mesmo. cedo ou tarde, e possivelmente mais cedo do que se estaria tentado a supor, no mundo ocidental. onde a desordem. em todos os domínios, levou-se atualmente mais longe do que jamais o esteve em parte alguma; aí também, convém esperar o fim; e, inclusive se, como há alguns motivos para temêlo, esta desordem deva se estender por um tempo à terra inteira. isso tampouco seria sufiriente para modificar nossas conclusões, já que seria apenas a confirmação das considerações que indicávamos faz um momento quanto ao fim de um ciclo histórico, e a restauração da ordem só teria que se operar, neste caso, numa escala muito mais vasta que em todos os exemplos conhecidos, embora também teria de ser incomparavelmente mais profunda e mais integral. posto que chegaria até esse retomo ao "estado primitivo" do qual falam todas as tradições (5). Além do mais, quando alguém se coloca, como nós o temos feito, sob o ponto de vista das realidades espirituais, pode-se esperar sem desconcerto, e tanto quanto seja necessário, posto que, como o dissemos, trata-se do domínio do imutável e do eterno; a pressa febril, que é tão característica de nossa época, prova que, no fundo, nossos contemporâneos ficam sempre no ponto de vista temporal, inclusive quando acreditam lhe haver

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superado, e que. a despeito das pretensões de alguns a este respeito, quase não sabem o que é a espiritualidade pura. Por outra parte, entre aqueles mesmos que se esforçam em reagir contra o "materialismo" moderno, quantos haverá que sejam capazes de conceber essa espiritualidade fora de toda fonna especial, e mais particularmente de uma forma religiosa, e extrair os princípios de toda aplicação circunstâncias contingentes? Entre os que se erigem em defensores da autoridade espiritual, quantos há que suspeitem o que pode ser esta autoridade em estado puro, como dizíamos mais atrás, que se dêem conta verdadeiramente do que são suas funções essenciais, e que não se detenham em aparências exteriores, reduzindo tudo a simples questões de ritos, cujas razões profundas pennanecem, além do mais, totalmente incompreendidas. e inclusive de "jurisprudência". que é algo totalmente temporal? Entre aqueles que quereriam tentar uma restauração da intelectualidade, quantos haverá que não a rebaixem ao nível de uma simples "filosofia", entendida esta vez no sentido habitual e "profano" desta palavra. e que compreendam que, em sua essência e em sua realidade profunda. intelectualidade e espiritualidade não são absolutamente mais que uma única coisa sob dois nomes diferentes? Entre aqueles que guardaram, apesar de tudo, algo do espírito tradicional, e não falamos mais que desses porque são os únicos cujo pensamento pode ter para nós algum valor, quantos terá que considerem a verdade por si mesma, de uma maneira inteiramente desinteressada, independente de toda preocupação

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sentimental, de toda paixão de partido ou de escola, de toda preocupação de dominação ou de proselitismo? Entre aqueles que. para escapar ao caos social no qual se debate o mundo ocidental, compreendem que é necessário, acima de tudo, denunciar a vaidade das ilusões "democráticas" e "igualitárias", quantos haverá que tenham a noção de uma verdadeira hierarquia, apoiada essencialmente sobre as diferenças inerentes à natureza própria dos seres humanos e sobre os graus de conhecimento aos quais estes chegaram efetivamente? Entre aqueles que se declaram adversários do "individualismo", quantos haverá que tenham neles a consciência de uma realidade transcendente em relação aos indivíduos? Se formularmos aqui todas estas perguntas, é porque permitirão, àqueles que queiram refletir bem nelas, encontrar a explicação da inutilidade de alguns esforços, apesar das excelentes intenções das quais estão sem dúvida animados aqueles que os empreendem. e também a de todas as confusões e de todos os mal-entendidos que surgem hoje em dia nas discussões às quais fazíamos alusão nas primeira'\ páginas deste livro. Entretanto, enquanto subsista uma autoridade espiritual regularmente constituída, ainda que seja desconhecida de quase todo mundo e inclusive de seus próprios representantes, ainda que esteja reduzida a não ser mais que a sombra de si mesma, esta autoridade terá sempre a melhor parte, e esta parte não lhe poderia ser arrebatada (6). porque nela há algo mais alto que as

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possibilidades puramente humanas, já que, inclusive debilitada ou adonnecida. ainda encarna "a única coisa necessária", a única que não passa. "Patiens quia aeterna", diz-se às vezes da autoridade espiritual, e muito justamente, não porque alguma das formas exteriores que possa se revestir seja eterna, pois toda fonna não é mais que contingente e transitória. mas sim porque. em si mesma, em sua verdadeira essência, participa da eternidade e da imutabilidade dos princípios; e é por isso que, em todos os conflitos que enfrentem o poder temporal com a autoridade espiritual. pode-se estar seguro de que, sejam quais possam ser as aparências, sempre é esta a que terá a última palavra.

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Notas (1) Trata-se propriamente da própria definição da contingência.

(2) Todos estes sentidos, e também o de "lei", estão compreendidos no que a doutrina hindu designa pelo termo dhanna; ao cumprimento por cada ser da função que convém a sua natureza própria, sobre o qual repousa a distinção das castas, chama-se .nvadharma. e se poderia fazer uma aproximação com o que Dante. no texto que citamos e comemamos no capítulo precedente, designa como "o exercício da virtude própria". A propósito disto, remetemos também ao que dissemos em outra pane sobre a '1ustiça" considerada como um dos atributos fundamentais do "Rei do Mundo" e suas relações com a ..paz" (3) Sobre as relações do "Paraíso terrestre"" e da "Jerusalém celeste". ver "O E~terismo de Dante'". pp. 91-93 (edic. francesa). (4) Seria também, segundo algumas tradições do esoterismo ocidental. que se vinculavam à corrente à qual pertencia Dante. a

verdadeira realização do "Sacro Império": e. efetivamente. a humanidade teria reencontrado então o ..Paraíso terrestre", o que, além do mais, incluiria a reunião dos dois poderes espiritual e temporal em seu princípio, estando este manifestado de novo visivelmente como o estava na origem. (5) Deve se emender bem que a restauração do "estado primitivo" é sempre possível para alguns homens. mas que não constituem então senão casos de exceção; aqui se trata desta restauração considerada para a humanidade tomada coletivamente e em seu conjunto. (6) Pensamos aqui no relato evangélico bem conhecido. no qual Maria e Mana podem ser consideradas. de fato, como simbolizando respectivamente o espiritual e o temporal, enquanto co1Tespondem à vida contemplativa e à vida ativa. Segundo Santo Agostinho (Contra Fa11stunr, XX, 52-58), encontra-se o mesmo simbolismo nas duas esposas do Jacó: Lia (laboram) representa à vida ativa, e Raquel (visum principium) à vida contemplativa. Além disso, na "Justiça'" se

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resumem todas as virtudes da vida ativa, enquanto que na "Paz" se realiza a perfeição da vida contemplativa; e se encontram aqui os dois atribulas fundamemais do Melquisedeque, quer dizer. do princípio comum dos dois poderes espiritual e temporal, que regem respectivameme o domínio da vida contemplativa e o da vida ativa. Por outra parte, para Santo Agos1inho igualmente (Senno XL/11 de Verbis lsaiae, c. 2). a razão está no topo da parte inferior da alma (sentido. memória e cogitação). e o imelecto no topo de sua parte superior (que conhece as idéias eternas que são as razões imutáveis das coisas): à primeira pertence a ciência (das coisas terrenas e transitórias). à segunda a Sabedoria (conhecimento do absoluto e do imutável); a primeira se refere à vida ativa. a segunda à vida contemplativa. Esta distinção equivale a das faculdades individuais e supra-individuais e a das duas ordens de conhecimento que lhes correspondem respectivamente; e também se pode aproximar disto este texto de Santo Tomás de Aquino: "Dicendwn quod sicut ra1ionabiliter procedere aflrib11it11r namrali philosoplriae, q11ia in ipsa obsermtur maxime modus rationis, ita intel/ect11a/11er procedere attribuilllr divinae scier1tiae, eo qrwd in ipsa obsen-arur maxime modus intellecrus" (111 Boetium de Triniuue. q. 6. art. l. ad. 3). Viuse precedentemente que, segundo Dame. o poder temporal se exerce de acordo com a "filosofia" ou a "ciência" racional. e o poder espiritual de acordo com a "Revelação" ou a "Sabedoria.. supraracional, o que corresponde exatamente a esta distinção das duas partes -inferior e superior- da alma.

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ÍNDICE René Guénon ...... 3 PRÓLOGO.. . .......................... .5 Capítulo I: AUTORIDADE E HIERARQUIA ............. 13 Capítulo II: FUNÇÕES DO SACERDÓCIO E DA REALEZA... ........................ ...25 .. ........ .42 Capítulo III: CONHECIMENTO E AÇÃO.. Capítulo IV: NATUREZA RESPECTIVA DOS BRÂHMANESE DOS KSHATRIYAS... .. ....... 54 Capítulo V: DEPENDÊNCIA DA REALEZA COM RELAÇÃO AO SACERDÓCIO.. .. .. 67 Capítulo VI: A REBELIÃO DOS KSHATRIYAS ......... 80 Capítulo VII: AS USURPAÇÕES DA REALEZA E SUAS CONSEQÜÊ:-ICIAS ............. .. ....... 87 Capítulo VIII: PARAÍSO TERRESTRE E PARAÍSO .. 104 CELESTIAL ................................ Capítulo IX - A LEI IMUTÁVEL... ......... 125 ÍNDICE.. .. ........ 135

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