Songbook - Cartola

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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA NÚCLEO DE SAÚDE DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA MESTRADO ACADÊMICO EM PSICOLOGIA

MAHAMOUD BAYDOUN

“NÃO SOU NEM CURTO AFEMINADOS”: REFLEXÕES VIADAS SOBRE A MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E A EFEMINOFOBIA NO GRINDR

Porto Velho- RO 2017

MAHAMOUD BAYDOUN

“NÃO SOU NEM CURTO AFEMINADOS”: REFLEXÕES VIADAS SOBRE A MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E A EFEMINOFOBIA NO GRINDR

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia – (UNIR). Linha de Pesquisa: Psicologia da Saúde e Processos Psicossociais. Orientadora: Profa. Dra. Melissa Andrea Vieira de Medeiros.

Porto Velho- RO 2017

Dedico esse manuscrito a todas, todos e todxs aquelas, aqueles e aquelxs que foram alocados ao abjeto.

AGRADECIMENTOS

A elaboração dessa dissertação e minha jornada no Mestrado Acadêmico em Psicologia (MAPSI) da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) foram perpassadas por inúmeros desafios cuja superação apenas me foi possível devido ao apoio imensurável que recebi de muitas pessoas que fizeram parte da trajetória que trilhei enquanto mestrando. Portanto, venho por meio destas palavras agradecer todos que ajudaram a regar meus sonhos e propulsionar meu crescimento acadêmico-profissional. Agradeço primeiramente a minha orientadora Profa. Dra. Melissa Andrea Vieira de Medeiros, ou desorientadora como ela própria se autodenomina por sempre respeitar minha liberdade intelectual e meu tempo de escrita, sem pressões, sem coerções, sem beliscões. Não existe amor sem liberdade! Expresso minha imensa gratidão a Profa. Dra. Carmita Helena Najjar Abdo, ao Prof. Dr. Estevão Rafael Fernandes e ao Prof. Dr. Giancarlo Spizziri pelas considerações cruciais que teceram durante a banca de qualificação as quais contribuíram para o enriquecimento desse manuscrito. Quero expressar meus agradecimentos a todos os professores e todas as professoras que dedicaram parte do seu tempo e compartilharam parte de sua sabedoria

durante

nossa

jornada

como

pesquisadores

em

formação.

Agradecimentos especiais a Profa. Dra. Marli Lucia Tonato Zibetti por ser, na minha opinião, uma professora exemplar. A ela, sou muito grato por me ensinar a escrita científica, por me encorajar sempre a me engajar em projetos de pesquisa e extensão e por se preocupar sempre com meu crescimento acadêmico, tanto nos tempos da graduação em psicologia quanto nos anos do mestrado. Agradeço ainda ao padrinho do MAPSI- nosso querido Antenor por toda a atenção dispensada durante os dois anos do programa. Quero expressar também meus imensos agradecimentos a todos/todas meus/minhas colegas da turma do mestrado pelos momentos inesquecíveis que passamos juntos e pelo compartilhamento de conhecimentos e experiências que foi tão ou até mais enriquecedor que a miríade de textos/livros aos quais tivemos acesso durante as disciplinas. Agradeço especialmente a Luciana Duarte por ser o melhor presente que o MAPSI me deu e por me livrar sempre do maior pesadelo de todos os estudantes da

UNIR: O “Ônibus Campus UNIR” e ao Luciano Fonseca por se dispor voluntariamente a me entrevistar usando os roteiro de consignas disparadoras que elaborei para essa pesquisa. Esse processo contribuiu significativamente para uma escuta com maior qualidade durante a realização das entrevistas com meus colaboradores. Agradecimentos especiais a Mestre Maria Enilsa Januário Falcão por me emprestar seu aparelho de data show para a defesa da dissertação. Expresso, além disso, minha gratidão a psicóloga Bruna Cerqueira Paes e a toda família Bem- Viver pelo carinho, coleguismo e compreensão, principalmente no último mês antes da entrega do manuscrito quando tive que desmarcar inúmeros atendimentos e compromissos profissionais para conseguir finalizar a escrita dessa dissertação. Destaco ainda que sou muito grato a Hanady Baydoun pela vida que ela me deu, por ser a melhor mãe da minha vida e por me apoiar sempre apesar de todas as dificuldades que tenho enfrentado. Ela e minhas irmãs Monaliz e Jana são as pessoas mais importantes da minha vida. Agradeço a minha terapeuta Patrícia Rafaela por acompanhar meu desenvolvimento pessoal, acadêmico e profissional durante os últimos seis anos. Sou imensamente grato por ter acolhido todas minhas angústias, anseios, frustrações e crises existenciais que foram intensificadas durante o andamento da pesquisa e a elaboração da dissertação. Quero, além disso, expressar meus imensos agradecimentos a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) por me permitir o privilégio de receber uma bolsa de estudos durante os dois anos do programa. Digo “privilégio” porque dificilmente receberia esse apoio indispensável em outro país, ainda mais sendo estudante de uma instituição pública isenta de mensalidades. Agradeço, ainda, a todos/todas meus/minhas pacientes, alunos e alunas, pois sem a confiança depositada na minha capacidade profissional, não seria possível apresentar trabalhos acadêmicos – frutos do programa- em congressos nacionais e internacionais. Expresso também meus imensos agradecimentos a Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana (SBRASH) pela oportunidade de receber um prêmio pelo vídeo-produção: “Meu lado feminino não fere meu lado masculino” que foi fruto das reflexões sobre efeminofobia tecidas no bojo dessa dissertação. Tais

iniciativas são imprescindíveis para o incentivo de jovens pesquisadores e mestrandos como eu. Não posso esquecer de agradecer minhas amigas Camila Patriota, Fernanda Andrade, Mariana Toledo por acolher minhas lamúrias, crises de ansiedade, lamentações e dramas histéricos. Sem vocês, a vida seria mais difícil! A Marisa Almeida pela sabedoria, serenidade e pelos bons vinhos e deliciosos cafés também. Agradecimentos especiais também a Fernanda Rocha e Marcela Abiorana pela ajuda imensurável na transcrição das entrevistas- o maior pesadelo de qualquer mestrando. Por fim, gostaria de expressar meus imensos agradecimentos aos dez colaboradores que se dispuseram a fazer parte dessa pesquisa de forma completamente voluntária. Sou muito grato por contribuírem para a produção científica do nosso estado e para a promoção de reflexões e debates acerca das relações homodesejantes mediadas online. Além de me oferecer uma nova titulação, me permitir o crescimento enquanto pesquisador e ser humano e ampliar meus conhecimentos na área da psicologia e nos estudos de gênero e sexualidade, minha passagem pelo MAPSI me proporcionou momentos inesquecíveis e me mostrou que a conquista dos nossos sonhos não depende apenas da nossa perseverança e determinação, mas também da presença daqueles com os quais podemos sempre contar para compartilhar nossas experiências, leituras, reflexões, pensamentos, esperanças, expectativas, medos e anseios.

“Meu lado feminino não fere meu lado masculino”. Pepeu Gomes

BAYDOUN, Mahamoud. “Não sou nem curto afeminados”: Reflexões viadas sobre a masculinidade hegemônica e a efeminofobia no Grindr. Porto Velho, 2017, 195 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Fundação Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, 2017. RESUMO O Grindr é considerado um dos maiores aplicativos baseados na localização voltado para homens que buscam por relações homodesejantes. O nome da plataforma digital foi inspirado pela ação de uma moedora de café (em inglês: grinder), uma vez que seu principal objetivo é promover a sociabilidade entre os usuários, tanto online como off-line. Observa-se, todavia, que as relações homodesejantes são permeadas pelos ideais da masculinidade hegemônica e pela abjeção ao efeminamento. Enquanto os homens que se enquadram no modelo dominante de masculinidade são constantemente erotizados, os efeminados se tornam vítimas da efeminofobia, tanto no mundo real quanto no virtual. Portanto, essa pesquisa qualitativa visou tecer reflexões acerca dos ideais de masculinidade hegemônica e os discursos efeminofóbicos que perpassam as relações homodesejantes mediadas pelo Grindr na zona urbana de Porto Velho-Rondônia, pautando-se nas contribuições dos estudos viados. A investigação se consolidou sobre dois arsenais metodológicos: a etnografia virtual e a realização de entrevistas individuais com 10 usuários do aplicativo. Foram evidenciados sentimentos e discursos efeminofóbicos nas descrições de perfil analisadas. O estigma e a estereotipia socialmente afligidos aos homens efeminados se replicam no Grindr em forma de preferências eróticas expressas em descrições de perfil com discursos apologéticos. Os relatos dos colaboradores demonstraram a internalização desses discursos e dos ideais da masculinidade hegemônica cuja supremacia se perpetua não apenas através da coerção, mas também através do consentimento. Destacou-se, além disso, que as demandas referentes a esse modelo de expressão de gênero giram em torno do mesmo ideal: “Pareça heterossexual”, mesmo que não seja! Ressaltou-se que tais exigências se camuflam por trás da idealização reiterada do corpo “sarado, musculoso e liso” concebido socialmente como sinônimo de enquadramento nos ideais da masculinidade hegemônica cuja propagação passa também pelo crivo de intersecções como o papel sexual, a classe social, a faixa etária e a raça. Os relatos dos colaboradores expuseram comparações entre a plataforma digital e o mercado de carnes, evidenciando a lógica mercadológica que pervaga aplicativos como o Grindr. Assim, muitos usuários se apresentam imagética e discursivamente como consumidores-produtos cuja característica mais importante é o enquadramento no modelo dominante de masculinidade (ser macho). Para tanto, precisam renegar atributos que remetam ao efeminamento ou ponham em xeque os ideais de masculinidade hegemônica impostos pela matriz heterossexual, pois aqueles os alocariam ao abjeto e os arremessariam fora do mercado das relações homodesejantes mediadas online. Recomenda-se que plataformas digitais como o Grindr lancem campanhas contra a efeminofobia, principalmente em cidades de médio porte como Porto Velho onde os ideais da masculinidade hegemônica se propagam coercitivamente. Palavras- Chave: Masculinidade hegemônica. Efeminofobia. Aplicativos baseados na localização. Relações homodesejantes. Abjeção.

BAYDOUN, Mahamoud. “I’m not a sissy nor into one”: Queer reflections about hegemonic masculinity and effeminophobia on Grindr. Porto Velho, 2017, 195 p. Thesis (Masters Degree in Psychology). Fundação Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, 2017. ABSTRACT Grindr is one of the world’s largest gay location- based apps. Its name was inspired by the action of a coffee grinder because its main purpose is to promote sociability among its users, both online and offline. However, homoerotic relations are influenced by the ideals of hegemonic masculinity and the abjection towards effeminacy. While men who fit into the dominant model of masculinity are constantly eroticized, those who are effeminate have become victims of anti-effeminacy, both in the real and virtual worlds. Therefore, this qualitative research aimed elaborate reflections about the hegemonic masculinity ideals and anti-effeminate discourses that pervade the homoerotic relations mediated by Grindr in the urban area of Porto Velho-Rondônia. The investigation was based from two methodological bodies: a virtual ethnography and face-to-face interviews with 10 Grindr-users. Effeminophobic feelings and discourses were evident in the analyzed profile descriptions. The stigma and stereotypes that are socially inflicted on effeminate gay men seem to be replicated on Grindr in the form of erotic preferences, which are expressed in profile descriptions containing apologetic discourses. The interviews shed light on the internalization of these discourses as well as the ideals of hegemonic masculinity whose supremacy is not only perpetuated through coercion, but also through consent. Besides, it was depicted that the demands regarding this model of gender expression revolve around the same ideal: “Look heterosexual”, even if you’re not! These exigencies can be concealed by the reiterated idealization of the “ fit, muscled and hairless” body that is socially conceived as a synonym of fitting into the ideals of hegemonic masculinity whose propagation is also influenced by intersections like sexual role, social class, age and race. The interviews made comparisons between the digital platform and the meat market, which illustrates the marketing logic that hovers over apps like Grindr. As such, a lot of users present themselves, both through images and texts, as consumers/products whose most important characteristic is fitting into the dominant model of masculinity (be a macho). For this reason, it is necessary to deny attributes that are associated to effeminacy or raises doubts over the hegemonic masculinity ideals imposed by the heterosexual matrix, because those can allocate them to abjection and throw them out of the market of homoerotic relations mediated online. Gay location-based apps like Grindr must be urged to launch campaigns to fight against anti-effeminacy, especially in middle-sized cities like Porto Velho where hegemonic masculinity ideals are coercively propagated. Key words: Hegemonic masculinity. Effeminophobia. Homodesiring relations. Abjection.

Location-based apps.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1- Imagem promocional do Grindr disponível no site do aplicativo até o primeiro semestre de 2016. ....................................................................................... 22 Figura 2- Grindr (Nova Versão) ................................................................................. 23 Figura 3- Área de mensagens (Grindr) ...................................................................... 25 Figura 4- Como funciona o Grindr? ........................................................................... 26 Figura 5- Informações do perfil (Grindr) .................................................................... 27 Figura 6- Sexo de Nascimento .................................................................................. 52 Figura 7- Gênero Designado ..................................................................................... 53 Figura 8- Alinhamento (sexo-gênero-sexualidade).................................................... 57

LISTA DE TABELAS

Tabela 1-Síntese de dados dos participantes das entrevistas .................................. 84

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIDS

Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

APA

Associação Americana de Psiquiatria

CAPES

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEP/UNIR

Comitê de Ética em Pesquisa/ Fundação Universidade Federal de Rondônia

CID-10

Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde- 10ª Edição

CONEP

Comissão Nacional de Ética em Pesquisa

DSM-5

Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais- 5ª Edição

GLS

Gays, Lésbicas e Simpatizantes

GPS

Sistema de Posicionamento Global

GRID

Gay Related Immuno-deficiency

HIV

Vírus da Imunodeficiência Humana

HSH

Homens que fazem sexo com homens

ISTs

Infecções Sexualmente Transmissíveis

LGBTIQA

Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Interssexuais, Questioning, Assexuais

MAPSI

Programa de Mestrado Acadêmico em Psicologia da Fundação Universidade Federal de Rondônia

OMS

Organização Mundial da Saúde

ONGs

Organizações Não-Governamentais

TCLE

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO ................................................................................................... 1 2 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12 3 AS RELAÇÕES HOMODESEJANTES MEDIADAS DIGITALMENTE .................. 17 3.1 AS RELAÇÕES HOMODESEJANTES: DO PASSADO AO PRESENTE ......... 17 3.2 UM PASSEIO PELO GRINDR .......................................................................... 21 3.3 AS RELAÇÕES HOMODESEJANTES MEDIADAS PELO GRINDR ................ 30 4 CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS VIADOS ........................................................ 37 4.1 O NASCIMENTO DA TEORIA QUEER VIADA ................................................. 37 4.2 A PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO E A ABJEÇÃO DOS CORPOS ESTRANHOS ........................................................................................................ 45 5 MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E EFEMINOFOBIA ........................................ 49 5.1 EXPRESSÕES DE GÊNERO, MASCULINIDADE E OUTROS CONCEITOS BÁSICOS EM SEXUALIDADE HUMANA............................................................... 49 5.2

MASCULINIDADE

HEGEMÔNICA

E

MACHOFASCISMO:

O

ENALTECIMENTO DO HOMEM VIRIL .................................................................. 59 5.3 EFEMINOFOBIA: A GUERRA CONTRA O MENINO/HOMEM AFEMINADO .. 68 6 MÉTODO................................................................................................................ 72 6.1 OBJETIVOS ..................................................................................................... 72 6.2 TIPO DE PESQUISA ........................................................................................ 73 6.3 LOCAL DO ESTUDO E SUJEITOS DA PESQUISA ......................................... 76 6.3.1 Pesquisando online: A imersão no Grindr ................................................. 76 6.3.2 Pesquisando offline: Local e sujeitos das entrevistas individuais ............. 76 6.4 PROCEDIMENTOS ......................................................................................... 77 6.5 ANÁLISE .......................................................................................................... 85 6.6 PROCEDIMENTOS ÉTICOS ........................................................................... 89 7 “PAREÇA HETEROSSEXUAL”, MESMO QUE NÃO SEJA: DISCUSSÕES E REFLEXÕES VIADAS .............................................................................................. 91

7.1 “FORA AFEMINADOS”: AS DIFERENTES FACETAS DA EFEMINOFOBIA NO GRINDR................................................................................................................. 94 7.2 “ FESTIVAL DE BÍCEPS E TRÍCEPS”: O CORPO SARADO COMO METÁFORA DA MASCULINIDADE ..................................................................... 117 7.3 “O PADRÃO DO PADRÃO”: A MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E OUTRAS INTERSECÇÕES ................................................................................................ 131 7.4 “ O SHOPPING DA CARNE: QUE CORPOS SE VENDEM E QUE CORPOS SE DESCARTAM? ” .................................................................................................. 142 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 149 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 152 APÊNDICE

A- TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

(MODELO) .............................................................................................................. 165 APÊNDICE B-TERMO DE COMPROMISSO DA ORIENTADORA ........................ 169 APÊNDICE C-TERMO DE COMPROMISSO DO PESQUISADOR ........................ 170 APÊNDICE D- TERMO DE ANUÊNCIA DA INSTITUIÇÃO ................................... 171 APÊNDICE E- ROTEIRO PARA AS ENTREVISTAS INDIVIDUAIS ...................... 172 APÊNDICE F- COMPROVANTE DE SUBMISSÃO DO PROJETO DE PESQUISA AO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA (CEP) ...................................................... 174 APÊNDICE G- PARECER CONSUBSTANCIADO DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA (CEP) ................................................................................................... 175

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1 APRESENTAÇÃO Acredito que o título dessa dissertação “‘ Não sou nem curto afeminados’”: Reflexões viadas sobre a masculinidade hegemônica e a efeminofobia no Grindr” gere curiosidade na grande maioria dxs prospectivxs leitorxs. Isto não se deve apenas à utilização de um termo socialmente associado ao chulo como parte do título. A expressão “viados” provavelmente fará com que alguns/algumas/algxs arregalem os olhos e exclamem “que absurdo! ” Tais acontecimentos me fariam muito feliz, pois o uso desse termo visto culturalmente como pejorativo não visa nada mais nada menos do que criar uma sensação de desconforto e estranhamento por parte dxs leitorxs antes mesmo do início do manuscrito. Se eu usasse a expressão queer, alguns/algumas/algxs talvez achariam “bonitinho” ou até “chique” por ser em inglês, o que não faria jus a toda a luta travada pelos estudos queer desde seu surgimento nem aos objetivos que direcionaram a investigação que inspirou a elaboração dessa dissertação. Não obstante, suponho que a curiosidade maior seria gerada pelos termos pouco comuns no cotidiano da maioria dos cidadãos brasileiros: efeminofobia e Grindr. Embora muitxs provavelmente se sentiriam instigadxs a ler o texto porque utilizam ou já utilizaram o aplicativo Grindr e viram no título, além do nome da plataforma digital, uma das frases com a qual qualquer sujeito que roda o aplicativo em seu tablet ou smartphone dentro do território brasileiro já se deparou: “ Não sou nem curto afeminados”, muitxs outrxs possivelmente se perguntariam: “ Que diabos é o Grindr?” E, portanto, decidiriam ler o trabalho numa tentativa desesperada de matar a curiosidade. Para não enrolar muito ou soar prolixo-algo que domino fazer- o Grindr é um dos maiores aplicativos baseados na localização voltado a homens homossexuais ou outros homens que fazem sexo com homens (HSH). Os usuários o baixam em seus smartphones ou tablets no intuito de triangular parceiros sexuais, eróticos ou amorosos em potencial com base na proximidade geográfica, utilizando a tecnologia do Sistema de posicionamento global (GPS). Todavia, nessa apresentação, não quero me deter sobre aspectos estruturais e funcionais do aplicativo, pois isso será tratado numa seção específica do

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manuscrito na qual a plataforma digital e suas ferramentas serão apresentados detalhadamente, a partir das minhas próprias experiências dentro da plataforma e das observações de outrxs pesquisadorxs que já desenvolveram pesquisas sobre essa mídia digital. Quero escrever aqui sobre o início da minha relação com o Grindr e os acontecimentos que me levaram a desenvolver a minha pesquisa do mestrado especificamente sobre as expressões da efeminofobia (preconceito contra homens efeminados ou que não se enquadram no padrão hegemônico de masculinidade) nas relações homodesejantes mediadas pelo Grindr. Peço licença para escrever essa apresentação na primeira pessoa do singular-algo que evitarei fazer ao longo dessa dissertação para tentar deixa-la o menos pessoal possível, embora tenha certeza que não obterei nenhum êxito nessa tentativa. Meu primeiro contato com o Grindr foi em Janeiro de 2014. Na véspera, fazia parte de um programa de trabalho voluntário em Lima-Peru. Os/As/xs responsáveis pelo projeto prometeram um alojamento em casa de família, pois eu havia destacado na minha ficha de inscrição que gostaria de treinar meu espanhol. Ao contrário do combinado, fui arremessado sozinho num quarto minúsculo dentro de um prédio localizado perto da última estação do metropolitano. Longe dos bairros boêmios e do centro da cidade e sem muito dinheiro para gastar em transporte e baladas, passava noites solitárias e carentes olhando o teto, até que outro voluntário brasileiro me recomendou usar o Grindr. Baixei o aplicativo com o intuito de encontrar parceiros em potencial sem ter que me despencar para a boate GLS, treinar meu espanhol nas conversas de bate-papo e de quebra, quem sabe eu não encontraria meu tão sonhado “príncipe encantado”. Fiquei maravilhado pelo uso do aplicativo e por sua facilidade de promover encontros reais através de uma mera conversa online. Embora não encontrasse o grande homem da minha vida ali, não posso negar que conheci várias pessoas interessantes e tive diversas experiências agradáveis por meio do aplicativo. Estava tão fascinado pois o aplicativo era uma novidade para mim na época e não lembro de ter me deparado com qualquer tipo de angústia enquanto usava o mesmo fora do país. O desconforto e a agonia começaram quando retornei ao Brasil e decidi rodar o aplicativo na minha cidade Porto Velho. De repente, os convites para jantar à beira

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do Pacífico foram substituídos por uma chuva de comentários e descrições preconceituosas de perfil, perguntas incessantes sobre minha discrição e sobre minha expressão de gênero antes de pelo menos iniciar uma conversa e chamadas por telefone para verificar como seria minha voz caso eu decidisse dar continuidade à conversa com outro usuário. Me chamou atenção a quantidade de descrições de perfil com frases do tipo: “ Não a gordos”; “ Macho a procura de macho” ; “Macho, discreto e fora do meio”, entre outras. Mas confesso que as que mais me incomodavam eram aquelas que anunciavam uma guerra contra usuários efeminados como: “ Fora afeminados”; “Não sou nem curto afeminados”; “Fugindo de afeminado, pois de mulher o mundo tá cheio”. Tais perfis me causavam tanta angústia que no primeiro momento os bloqueava para não aparecerem mais na minha plataforma. Quando algum usuário “puxava papo” comigo e perguntava se eu era efeminado, eu o ignorava, negava ou bloqueava, pois sabia que se eu admitisse a verdade, eu que seria ignorado ou bloqueado após ter minha identidade de gênero como homem questionada, algo que me causa muito ódio. Isso, todavia, se repetia tanto, que não dava mais para simplesmente ignorar. Portanto, parti de uma atitude de vistas grossas para uma atitude de confronto e comecei a debater com usuários que carregavam esse tipo de discurso, problematizar, perguntar sobre as razões por trás das descrições de perfis que apresentavam e tentar convencê-los que essas poderiam “fazer mal” aos homens que se identificavam como efeminados, mas tudo em vão. A princípio, pensava que tais discursos resultavam da homofobia internalizada e da nãoaceitação dos próprios desejos sexuais. Portanto, por trás deles teriam homens que ainda não tiveram a coragem e/ou oportunidade de sair do armário. Mas como Porto Velho é uma cidade de médio porte, eu já conhecia de vista alguns dos usuários da plataforma. Percebi, portanto, que mesmo alguns dos usuários que não se enquadram no padrão hegemônico de masculinidade e já saíram do armário carregavam esse tipo de discurso. Depois, percebi, que eu mesmo, me sentia mais atraído por perfis onde os caras apresentavam fotos ou descrições que os assemelhavam à figura do homem titular da masculinidade hegemônica. A angústia se mesclou com sentimentos de raiva e se acentuava cada vez mais. Já tinha em mãos a mola propulsora da minha futura pesquisa de mestrado: o desconforto que os discursos/atitudes efeminofóbicas me causavam ao acessar o Grindr. Estava

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convicto que teriam outros usuários que sentiam o mesmo e pensei que algo deveria ser feito urgentemente para quebrar o silêncio e dar visibilidade a essas questões. Não posso negar que, de fato, o tema-pivô da investigação “mexe” muito com meus “conteúdos psíquicos”, e não digo inconscientes, porque o sofrimento é consciente, e até demais. Tanto o acesso ao aplicativo antes e durante a realização da pesquisa quanto a escrita desse texto foram intercalados por inúmeras pausas de resistência, períodos longos de procrastinação e noites mal dormidas pensando em como a sociedade não é justa com aquelxs que assim como eu põem em xeque os ideais da masculinidade hegemônica e as normas impostas pela matriz heterossexual. Acrescenta-se a isso visitas frequentes a minha analista para falar dos sentimentos negativos que frases, expressões e descrições de perfil como “ Não sou nem curto afeminados” e “ Fora afeminados” me causavam. O desconforto era tão grande que se eu acessasse o aplicativo à noite e visse um comentário desses, eu passava o próximo dia inteiro refletindo e pensando cabisbaixo. De certa forma, essas descrições me remetiam à exclusão que outrora sofrera na escola antes mesmo de entender a natureza dos meus desejos sexuais ou saber o que de fato era “desejo” ou “sexualidade”. A única coisa que passava na minha cabeça era: “ Meu Deus! Isso de novo”! Como eu não era um menino que se enquadrava nos padrões hegemônicos de masculinidade socialmente impostos seja pelo contexto cultural libanês ou brasileiro, eu fui vítima crônica de chacotas e coerções tanto por parte de professores como por parte de outrxs alunxs durante minha infância e adolescência em Beirute. Como minha forma de andar, minha voz fina, meu desinteresse em esportes e muitos dos meus gestos eram socialmente associados ao feminino, eu era comumente taxado pelos meus “colegas” como Bannouti- expressão libanesa para menino efeminado- ou então exigido tanto pelxs alunxs quanto pelxs professorxs a mudar meu jeito de ser, ou então, a “ser homem”, como se o fato de ser efeminado significasse que eu não era menino/homem. Na véspera, sentia como se o mundo estivesse em guerra contra mim e não me sentia confiante o suficiente para me defender. Minha resposta era sempre o silêncio, pois para o status quo lá vigente, o errado sempre era eu: afinal das contas, quem mandou não ser capaz de performatizar as características socialmente

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associadas

à

masculinidade?

Quem

mandou

avassalar

a

imagem

do

“menino/homem viril” visto como a única possibilidade de ser “menino/homem”? Sem a existência de leis no país que defendiam os direitos de minorias como aquela da qual faço parte, sem o apoio dos pais que então residiam no Brasil e sem uma estrutura psicótica de personalidade para surtar e desequilibrar de vez, minha única saída era e sempre foi estudar. No Ensino Fundamental II, ser estudioso não foi suficiente para me salvar das retaliações morais e sociais infligidas sobre aquelxs que põe em xeque as normas impostas pelo patriarcado. “Mahamoud tem um QI acima da média, mas tem que apertar os parafusos (expressão utilizada no Líbano para se referir a um menino/homem que precisa ser mais viril)”, disse uma professora de inglês na Oitava série. “ O que adianta ser estudioso e inteligente se é bannouti desse jeito”, disse um professor de matemática na Nona série. Embora as chacotas e coerções continuassem, o Ensino Médio finalmente me permitiu ao menos amenizar as pressões e criar uma rede de apoio constituída daquelxs que outrora me caçoavam por ser “diferente dos outros meninos”. As disciplinas se tornavam cada vez mais difíceis, os conteúdos cada vez mais complexos e xs professorxs cada vez mais exigentes. As reprovações e número de visitas dxs alunxs à sala do diretor aumentavam paulatinamente. Certo dia, um adolescente rico e que se encaixa nos padrões hegemônicos de masculinidade chegou na escola e começou a me caçoar enquanto eu lia na escada. “ Seu bannouti”, exclamava em frente a todxs. “Você deveria se vestir de rosa”, gritava ele, enquanto xs outrxs gargalhavam. Como sempre, me mantive em silêncio, não por sabedoria ou serenidade, mas por covardia e por desconhecimento do que poderia acontecer se eu decidisse me defender- algo que era longe de ser uma opção então. Poucos minutos depois, o adolescente entra na sala do diretor e sai chorando, pois havia sido ameaçado por expulsão caso não melhorasse seu rendimento escolar. O adolescente correu aos meus pés, pedia desculpas aos prantos enquanto implorava que o ajudasse com os conteúdos de química e biologia para passar na prova. Meus olhos brilharam e finalmente tive a convicção que se algo iria me salvar daquele inferno seria meu cérebro, com toda modéstia. Dito e feito, eu não apenas

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consegui que o garoto parasse de tirar sarro de mim, mas também ganhei um guarda-costas, pois toda vez outrxs tentavam me caçoar, ele se levantava para me defender. E foi assim com várixs outrxs: me zoavam por ser efeminado, precisavam de ajuda nos estudos, eu ajudava e elxs paravam. Digamos que foi de uma forma ou outra: conhecimento em troca de respeito. Não relatei esses acontecimentos com o objetivo de despertar pena ou me colocar no lugar de vítima, pois esse é um lugar que jurei nunca mais ocupar desde que decidi voltar ao Brasil onde sabia que teria uma proteção legal mais robusta caso decidisse me defender. Eu narrei os mesmos porque eu acredito que influenciaram na escolha do tema-pivô da pesquisa do mestrado que deu origem a esse manuscrito. Para Juan-David Nasio (1997), só existe uma dor D2 se existisse uma dor D1. Sem as experiências acima apresentadas, as descrições de perfil do tipo “ Não sou nem curto afeminados” provavelmente não me causariam um desconforto pessoal tão grande a grau de dedicar dois anos da minha trajetória acadêmica para tecer reflexões acerca dos meandros que permeiam esse tipo de discurso. Eis que depois de 10 anos uso o mesmo mecanismo de intelectualização e busco a mesma saída nos estudos para aquilo que me atormenta. A impessoalidade e neutralidade absoluta do pesquisador são mitos, sobretudo em pesquisas em ciências humanas. Tanto meu interesse na psicologia e paixão pelos estudos em sexualidade humana quanto a escolha do tema-central da pesquisa são perpassados por minha subjetividade e pelas experiências que me constituíram como sujeito único e singular. Digo isso, desde o início, para que ninguém seja pervagado por pensamentos do tipo: “Ele não tá sendo imparcial”, “Essa análise está enviesada”, “ Ele está defendendo os afeminados e atacando os titulares de masculinidade hegemônica”. Não há como ser totalmente neutro e imparcial se minhas experiências de vida fazem parte da minha constituição como sujeito único e singular, e portanto, como pesquisador-mestrando também único e singular: penso com base nas minhas leituras e naquilo que aprendi, vejo com meus olhos e escrevo com minhas mãos usando uma linguagem que adquiri a partir do contato com o meio sociocultural que me cerca. Por isso, as reflexões que trago no bojo desse manuscrito não seriam tecidas da mesma forma por qualquer outrx mestrandx, pois todxs temos experiências de vida diferentes e é praticamente

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impossível deixar nossa subjetividade por inteiro no vestuário enquanto praticamos o trabalho de escrita. Eu juro que tentei fugir de mim mesmo. Inclusive, antes de entrevistar meus colaboradores durante o andamento da pesquisa, solicitei a um colega do mestrado que me entrevistasse usando o mesmo roteiro de entrevista, porque queria me esvaziar de mim e não queria que minha escuta fosse poluída com meus conteúdos e questionamentos. No início, na verdade, queria pesquisar o impacto da virtualização nas relações sexuais como um todo. Mas, continuava acessando o Grindr por fins pessoais e aqueles comentários não paravam de me atordoar. Comecei a fazer o curso de Especialização em Sexologia na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e enquanto rodava o aplicativo na grande metrópole, apareciam os mesmos tipos de descrições, comentários e exigências. Me questionava cada vez mais sobre o caráter repetitivo desse discurso no aplicativo, mas lembrava sempre de algumas frases que minha desorientadora sempre dizia na graduação: “ Cada um sabe da dor e delicia do que quer” e “ Cada um goza como pode”. Mas eu pensava se a pulsão, para Freud (1915/2006) não tem objeto definido, e cada um de nós possui desejos únicos e singulares, onde estaria essa singularidade se a maioria dos homens que buscam por relações homodesejantes procuram o mesmo perfil de homens? Eu guardava meus pensamentos para mim mesmo, até que um dia conheci um sociólogo através do aplicativo e ao compartilhar meus questionamentos, ele sugeriu que lesse as publicações de Richard Miskolci. Assim, além do meu background pessoal, as pesquisas que Miskolci desenvolve acerca das relações homodesejantes mediadas digitalmente há mais de 10 anos serviram de inspiração para esse trabalho. A leitura de dois artigos publicados por Miskolci foram essenciais para o desenvolvimento do projeto que deu origem a essa dissertação: “ Machos e Brothers: uma etnografia sobre o armário em relações homoeróticas criadas on-line” (2013) e “ ‘ Discreto e fora do meio’- Notas sobre a visibilidade sexual contemporânea” (2015). Achei fantástica a ideia de usar expressões, frases e vocábulos comuns na sociabilidade dos homens que utilizam aplicativos como o Grindr para intitular as publicações e me senti inspirado a fazer o mesmo com o

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comentário que mais me causava desconforto e me gerava questionamentos: “ Não sou nem curto afeminados”. Outro aspecto que me instigou na leitura de Miskolci foi a apropriação da Teoria Queer1 e a leitura crítica que fazia das suas observações na pesquisa etnográfica e da busca desses homens por vivenciar seus desejos em segredo. Eu fui mordido pelo queer aos 16 anos quando buscava um suporte em leituras na internet para entender meus desejos durante o processo de saída do armário. Desde então, não consigo enxergar nem a sexualidade nem o mundo como um todo de forma binário ou simplista. Desde então, compreendo a sexualidade, as identidades e expressões de gênero como construções socioculturais e históricas que ultrapassam a mera biologia. A leitura do livro “Teoria Queer: Um aprendizado pelas diferenças” (MISKOLCI, 2012) me permitiu o acesso a um pequeno texto de Giancarlo Conejo (2012) publicado no final do livro: “ A guerra declarada contra o menino afeminado”. O título é inspirado por um texto publicado por Eve Kosofsky Sedgwick em 1991: “How to Bring Your Kids Up Gay: The War on Effeminate Boys”, cuja leitura me apresentou a expressão “efeminofobia” utilizada aqui para se referir ao preconceito que aflige meninos/homens efeminados ou que não se enquadram no padrão hegemônico de masculinidade. Finalmente, consegui nomear aquilo que outrora me afligira e que me causava tanto desconforto ao acessar o aplicativo, tanto como pessoa quanto como alguém que questiona o tempo todos as normas impostas pela matriz heterossexual. Pronto! Já tinha angústia e suporte teórico- tudo o que ao meu ver era necessário para dar início à investigação. Escrevo isso porque a leitura desse manuscrito pode gerar a sensação que estou

atacando

aqueles

que

não

curtem

afeminados

e

fazem

uso

de

comentários/descrições de perfis do tipo que me fazia marcar uma sessão extra de análise, e de alguma forma isso não deixa de ser verdade. Os/as/xs adeptxs da psicanálise podem pensar que seja recalque, questões edípicas mal resolvidas, ou

A expressão “queer” é uma expressão comumente utilizada por falantes da língua inglesa para se referir àqueles que não se enquadram nas normas impostas de gênero e sexualidade. Embora soe um termo clássico e romantizado quando se usa em textos em português, “queer” significa “estranho”, “anormal”, enfim “uma aberração”. A teoria/estudos queer adotam essa nomenclatura como protesto contra à subalternização reiterada daqueles que põem em xeque o alinhamento (sexo-gênerosexualidade) e as lógicas binárias construídas a base de relações de poder (homem-mulher; heterossexual-homossexual; masculino-feminino, etc.) 1

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então, inveja daquilo que não tenho: a masculinidade hegemônica, e eu também pensava isso no início. Não obstante, é importante lembrar que as reflexões e considerações que teço nesse trabalho são em grande parte permeadas por contribuições da teoria queer que desde sempre adota uma posição crítica e de subversão frente às hierarquias e lógicas binárias de gênero e sexualidade, numa tentativa de dar voz e visibilidade àqueles que foram historicamente invisibilizados pelos binarismos e pela matriz heterossexual. Por isso, acredito que escrevi de certa forma tentando defender os efeminados dos ataques dos titulares da masculinidade hegemônica, pois na dicotomia: viril-efeminado, o efeminado sempre ocupou o lugar do subalterno. Se Sedgwick (1991) escreveu sobre a guerra contra o menino afeminado que pelo visto ainda perdura, tentei desenvolver uma pesquisa e elaborar um manuscrito em “defesa do homem afeminado” ou como “um grito contra a efeminofobia”, pois em meio de uma pletora de pesquisas sobre homofobia, transfobia, racismo, machismo e outros tipos de preconceito, pouco tem sido escrito acerca da efeminofobia. É nítido que este trabalho não irá acabar com a efeminofobia no mundo, mas estava mais que na hora de romper com o silêncio. Meu objetivo, através dessa pesquisa, muito longe do rigor científico e de contribuir para o avanço acadêmico no país, era causar desconforto/estranhamento por parte dox leitorxs, gerar

reflexões

acerca

das

consequências

das

imposições

coercivas

da

masculinidade hegemônica e matriz heterossexual e destacar a necessidade de abordar e desenvolver mais pesquisas acerca da efeminofobia, abordando a sexualidade de forma interseccional. Quero destacar que minha “defesa do homem afeminado” não engloba de forma alguma uma tentativa de vitimá-lo, muito menos de culpabilizar os titulares da masculinidade hegemônica e os detentores de discursos efeminofóbicos e machofascistas pelo sofrimento afligido àqueles que não se enquadram nos padrões hegemônicos de masculinidade.

Quero deixar claro que acredito fielmente na

premissa que somos constituídos através do meio no qual somos inseridos e mais ainda na concepção gramsciana de que a hegemonia se mantém não apenas através da coerção, mas também através do consentimento. Portanto, acredito que tanto os efeminados quanto os detentores de discursos efeminofóbicos são

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simultaneamente vítimas das normas ditadas pela masculinidade hegemônica e pela matriz heterossexual e perpetradores dessas imposições, seja através de práticas coercivas, seja através da internalização dos discursos segregatícios e o consentimento, às vezes inconsciente e imiscuído na linguagem, com os mesmos. Longe de querer fiscalizar os desejos alheios ou elaborar conclusões generalizadas acerca das relações homodesejantes mediadas digitalmente e dos ideais de masculinidade hegemônica que pairam em aplicativos como o Grindr, viso tão-somente levantar considerações e tecer reflexões acerca das diferentes expressões da efeminofobia e imposições machofascistas (exacerbação das coerções em relação ao enquadramento no padrão ditado de masculinidade hegemônica) que permeiam as relações homodesejantes mediadas pelo Grindr na cidade de Porto Velho-Rondônia, pautando-se, principalmente, em contribuições do s estudos queer/ teoria queer doravante denominados de estudos viados/ teoria viada para que gere nos leitores o mesmo desconforto/estranhamento que a expressão queer causa nas pessoas de países anglo-saxões. É imprescindível destacar que nesse manuscrito, adoto a expressão relações homodesejantes para me referir ao que é comumente conhecido como “relações homossexuais, homoeróticas ou homoafetivas”, a expressão homens que buscam por relações homodesejantes para me referir ao que é comumente conhecido como “homossexuais, gays ou homens que fazem sexo com homens (HSH)” e a expressão desejos homo-orientados (same-sex oriented) para me referir ao que é comumente

conhecido

como

“homossexualidade,

homoeroticidade

ou

homoafetividade”. A adoção dessas expressões é primeiramente uma tentativa de evitar com que o texto seja contaminado pelo negativismo e estereótipos historicamente atribuídos a essa população. Além disso, essas expressões partem da evidente distinção que Bauman (2008) traça entre desejo sexual, erotismo e amor. “Sexo(sic), erotismo e amor estão ligados, ainda que separados. Dificilmente um pode viver sem o outro, embora a existência deles seja gasta em uma eterna guerra de independência” (BAUMAN, 2008, p. 275). Desta forma, suponho que a expressão “homossexualidade” limitaria a busca por relações com outros homens à prática sexual, a expressão “homoeroticidade” restringiria essa busca ao “erotismo” e a expressão “homoafetividadade” reduziria essa busca às relações amorosas.

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Considerando o “desejo” tanto uma condição sine qua non para a relação sexual, erotismo e o amor quanto um elo que une entre os três, sugiro a expressão “relações

homodesejantes”

como

acima

destacado

para

evitar

possíveis

reducionismos. Embora não use a primeira pessoa do singular no resto dessa dissertação, e embora tente ao menos usar um tipo de linguagem formal e imparcial, é nítido que as entrelinhas das diferentes seções desse manuscrito carregam parte da minha subjetividade, parte das minhas experiências e parte da minha dor-uma dor que partilho com a maioria dos meninos/homens efeminados ou que não se enquadram nos padrões hegemônicos de masculinidade e por isso, foram arremessados fora das salas de aula, fora do mundo do trabalho e fora do campo do desejo. Desejo a todxs uma leitura desconfortável! Não se sintam à vontade! É preciso não se sentir à vontade para ter vontade de lutar por mundo mais justo a todxs, independentemente da orientação afetivo-sexual, identidade ou expressão de gênero.

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2 INTRODUÇÃO A ubiquidade dos aplicativos baseados na localização voltados para busca de parceiros sexuais e amorosos no cotidiano dos homens que buscam por relações homodesejantes chamou a atenção de vários pesquisadores, alguns dos quais trouxeram grandes contribuições sobre as dimensões psicológicas e socioculturais incutidas no uso do Grindr, especificamente. (CROOKS, 2013; MILLER, 2015; BLACKWELL et al, 2015; MISKOLCI, 2009a, 2013, 2015, 2017; RACE; 2015; LICOPPE et al, 2015). Os resultados dessas pesquisas apontam que a eclosão de aplicativos como o Grindr constitui uma faca de dois gumes para as relações homodesejantes na atualidade, pois ao mesmo tempo que gera experiências de satisfação e prazer para muitos usuários, transforma outros em constantes vítimas de atitudes preconceituosas e exigências inalcançáveis em relação ao corpo, masculinidade e discrição. Devido à disseminação da homonegatividade e a propagação do preconceito contra homens que buscam por relações homodesejantes, muitos destes optam por não vivenciar seus desejos de forma plena numa tentativa de evitar as retaliações morais social e historicamente atribuídas à expressão de desejos por pessoas do mesmo sexo. Como nunca antes, aplicativos como o Grindr oferecem um espaço seguro para que os usuários tirem a máscara, vivenciem seus desejos e construam relações mediadas pela interface online-offline. Citando Miskolci (2015, p. 66): Por meio do uso de aplicativos, homens que mantém uma apresentação e comportamento discreto em locais de trabalho, na família e em ambientes educacionais, conseguem expressar seu desejo sem se expor a possíveis retaliações sociais, repreensões morais ou mesmo violências. Trata-se de um uso da tecnologia para lidar com a ausência (ou insuficiência) de segurança e reconhecimento para a expressão do desejo por pessoas do mesmo sexo.

Ao contrário dos antigos sites de relacionamento e salas de bate papo, o Grindr e outros aplicativos baseados na localização facilitam e favorecem encontros off-line, ou seja, face-a-face, entre os usuários. Miskolci (2015), todavia, apontou que esses encontros são perpassados por um constante regime de visibilidade através do qual muitos usuários tentam negociar e manipular a visibilidade social de seus desejos por outros homens, potencializando, portanto, uma nova economia do desejo que os incentiva a buscar por parceiros “discretos” que não denunciariam a

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natureza de seus desejos ou ameaçariam a visibilidade condizente ao status quo heterofalocêntrico em possíveis encontros off-line. Aponta-se, nesse sentido, que muitas relações homodesejantes mediadas pelo Grindr são regidas por demandas intransigentes em relação ao sigilo e anonimato. (CROOKS, 2013; BLACKWELL et al, 2014; MILLER, 2015; MISKOLCI, 2015). No ímpeto de vivenciar os desejos afetivos ou sexuais por outros homens de forma sigilosa que reverencie uma representação centrada na hegemonia heterossexual, muitos usuários passam a sobrevalorizar os padrões hegemônicos de masculinidade socialmente atribuídos à heterossexualidade, transformando o aplicativo em um campo fértil para a disseminação de discursos contaminados pelo machismo, efeminofobia, promoção da masculinidade hegemônica e o culto a um tipo específico de corpo- sarado, liso e musculoso- em detrimento de todos os outros tipos que são frequentemente vítimas de crítica e ojeriza (BAUREMEISTER et al, 2011; FARIS; SUGIE, 2012; RACE, 2015). De um lado, tais discursos opressores privilegiam e superiorizam usuários que adotam padrões imagéticos e comportamentais socialmente atribuídos à “heterossexualidade”´/masculinidade hegemônica tornando-os o centro de desejo dos usuários. Por outro lado, tais discursos discriminam e inferiorizam homens que adotam

padrões

comportamentais

socialmente

atribuídos

à

“homossexualidade”/efeminamento, gerando neles grandes cargas de sofrimento e sentimentos de exclusão e os impelindo a adotar medidas por meio das quais possam se tornar “desejáveis”. Ainda que as novas tecnologias comunicacionais provenham contatos e experiências de socialização mais numerosas e, para alguns, melhores do que as alcançáveis off-line, elas treinam seus usuários para uma forma de se apresentar, se comportar e se relacionar que pode corroborar com o contexto sociopolítico hostil em que vivem. Induzidos, regulados e até mesmo controlados pelas demandas coletivas de que não publicizem seu desejo e não permitam que ele seja reconhecível têm tolerada sua existência desse que subjetivem segundo os padrões que corroboram a hegemonia política e cultural da heterossexualidade. (MISKOLCI, 2015, p. 72).

Nesse sentido, evidencia-se que um público que foi historicamente oprimido torna-se per si detentor de um discurso opressor e categórico que se segrega e pratica o preconceito contra si mesmo, contribuindo para a perpetuação de lógicas

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binárias baseadas em relações de poder e a discriminação daqueles que não se encaixam na matriz heterossexual tradicional ou nos padrões hegemônicos de masculinidade atribuídos ao status quo patriarcal e heterofalocêntrico. Desta forma, as descrições em alguns perfis pessoais são substituídas por comentários normativos, discriminatórios e efeminofóbicos contra usuários que não se encaixam nas demandas intransigentes de masculinidade hegemônica e discrição. “Não sou nem curto afeminados!”, “Que me desculpem os afeminados, mas de mulher o mundo tá cheio”, “Não aos gays!”, são alguns dos comentários que qualquer homem que busca por relações homodesejantes pode se deparar ao rodar o aplicativo em seu smartphone. Conforme Miskolci (2015), trata-se de uma desqualificação dos desejos homo-orientados que são socialmente atrelados ao “efeminamento”- característica vista como inferior e adversa aos ideais normativos da masculinidade hegemônica. Por outro lado, tais comentários revelam uma clara confusão feita por alguns usuários entre a orientação afetivo-sexual, identidade de gênero e expressão de gênero, pois categoriza usuários discretos como homens desejáveis e exclui outros usuários, categorizando-os como mulheres. Trata-se de um status quo tão hegemônico, potente e metastático que parece penetrar até na essência do desejo, marca mais singular do sujeito. Surgem, portanto, várias perguntas: Será que o desejo é perpassado por ideais impostos pelos padrões hegemônicos socialmente construídos? Se o desejo de tais usuários é centrado na figura de um homem que possui padrões imagéticos e comportamentais

condizentes

à

matriz

heterossexual

e

à

masculinidade

hegemônica, por que se investe tanto discurso para difamar quem não se encaixa nesses padrões? Por que o desejo de tais homens é predominantemente expresso a partir de uma negativa e não a partir de uma afirmativa? Como os usuários que não se enquadram na matriz heterossexual se sentem frente aos discursos efeminofóbicos constantes e às exigências incessantes por uma masculinidade hegemônica? Seria esse desejo preponderantemente centrado na figura de um homem veementemente masculino resultado do contexto social extremamente machista e heteronormativo no qual esses usuários se inserem? Como a sociedade homonegativizante, machista e normativa interfere nos desejos e fantasias desses

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usuários? E como esses constantes discursos de ódio afetam as relações homodesejantes mediadas digitalmente? Considerando

todos

esses

questionamentos

que

propulsionaram

a

investigação aqui abordada, faz-se oportuno destacar que o texto a seguir é composto por três seções teóricas, uma seção metodológica e uma seção de análise dos dados obtidos por meio da incursão etnográfica no Grindr e das entrevistas individuais com usuários da plataforma digital, e por fim as considerações finais. A primeira seção teórica se divide em três partes. Na primeira, traça-se um panorama histórico das relações homodesejantes mediadas digitalmente até o advento de aplicativos baseados na localização como o Grindr o qual é apresentado e descrito detalhadamente na segunda parte. Por fim, são ressaltadas as contribuições de alguns autores que desenvolveram pesquisas acerca da plataforma digital em questão. A segunda seção teórica é composta por duas partes. Na primeira, traça-se um panorama histórico do surgimento da teoria viada que constitui o principal arcabouço teórico para o tratamento e análise dos dados obtidos nessa investigação. Aponta-se ainda as razões pelas quais opta-se por substituir a expressão queer em “estudos queer” por viados. Na segunda parte, são resgatadas algumas noções principais dos estudos viados, enfatizando, sobretudo, os conceitos de “performatividade de gênero” e “abjeção” a partir das contribuições de Judith Butler (1986, 1993, 1998, 2003). A terceira seção teórica se divide em três partes. Na primeira, aborda-se a diferença entre diferentes conceitos básicos em sexualidade humana como o sexo de nascimento, gênero designado, expressão de gênero, identidade de gênero e orientação afetivo-sexual a partir de uma perspectiva viada no intuito de facilitar a compreensão do que seria “masculinidade”. Na segunda parte, apresenta-se o conceito de “masculinidade hegemônica” e discorre-se acerca dos meios de propagação dos ideais que garantem sua supremacia. Na terceira parte, apresentase o conceito de “efeminofobia” e disserta-se sobre a abjeção da figura do “homem afeminado” pelo status quo vigente, pautando-se em contribuições da teoria viada.

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Na seção metodológica que sucede, resgatam-se os objetivos que permearam o desenvolvimento dessa investigação, define-se o tipo de pesquisa, descrevem-se os locais de coleta de dados tanto online quanto off-line e discorre-se acerca dos procedimentos metodológicos, éticos e de análise que direcionaram o andamento da investigação. Apresenta-se, além disso, uma síntese dos dados dos colaboradores entrevistados. Logo após a seção metodológica, evidencia-se a seção de análise na qual se apresentam reflexões viadas sobre os dados obtidos pela imersão etnográfica e pelas entrevistas semi-estruturadas, enfatizando a propagação dos ideais de masculinidade hegemônica e a abjeção ao efeminamento vigentes no universo de homens que buscam por relações homodesejantes através de aplicativos baseados na localização como o Grindr nos quais paira o ideal: “Pareça heterossexual, mesmo que não seja”. Espera-se que as reflexões viadas oriundas dessa pesquisa abram novas conjecturas

para a compreensão

das relações homodesejantes mediadas

digitalmente, considerando as especificidades do contexto sociocultural em questão e as nuances subjetivas daqueles que se propuseram a fazer parte dessa investigação.

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3 AS RELAÇÕES HOMODESEJANTES MEDIADAS DIGITALMENTE Uma vez destacados os questionamentos que permearam o surgimento do tema-pivô dessa pesquisa e esquematizadas as diferentes seções que constituem este manuscrito, faz-se oportuno delinear um panorama histórico das relações homodesejantes até o surgimento dos aplicativos baseados na localização direcionados a homens que buscam por relações homodesejantes. Apresenta-se, em seguida, uma descrição detalhada do Grindr- a plataforma digital que constitui o foco dessa pesquisa e as principais características e ferramentas disponibilizadas pelo aplicativo através de um entrelaçamento entre as próprias observações do pesquisador, informações publicadas no site oficial da mídia digital e contribuições de outros autores que já desenvolveram pesquisas no e sobre o Grindr. 3.1 AS RELAÇÕES HOMODESEJANTES: DO PASSADO AO PRESENTE O

poeta

estadunidense

Frank

O’hara

inicia

seu

poema

intitulado

“Homossexualidade” (1950) com um questionamento: “Então, estamos tirando nossas máscaras, não estamos? E deixando nossas bocas caladas? ” Percebe-se que esse trecho escrito há mais de 65 anos descreve uma grande parte das relações homodesejantes construídas na atualidade, apesar das mudanças drásticas pelas quais a sexualidade e a liberdade sexual passaram na segunda metade do século XX. Para esclarecer tal afirmação, será contextualizado um panorama das relações homodesejantes no Ocidente ao longo dos últimos sessenta anos, enfatizando o paradoxo que se vive na atualidade: por um lado, destaca-se a crescente conquista de direitos civis, sexuais e humanos para os cidadãos independentemente da dita orientação afetivo-sexual e por outro lado, ressalta-se a propagação do estigma e discriminação contra aqueles que não se encaixam no padrão heteronormativo hegemônico. Stearns (2010) aponta que os últimos sessenta anos foram perpassados por vários processos de redefinição por meio dos quais se fortaleceu a concepção das práticas sexuais como recreação e fonte de prazer em detrimento de uma sexualidade meramente voltada a fins de procriação. Destaca-se, nesse sentido, que

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as relações homodesejantes também passaram por uma série de transformações que permitiram maior liberdade sexual e afetiva para a construção de laços homodesejantes sejam sexuais, eróticos ou amorosos. Tais transformações se solidificaram a partir da revolução sexual na década de 1960 que promoveu além do reexame dos papéis sociais e sexuais da mulher e o fortalecimento do exercício da sexualidade por fins recreativos, a de um forte movimento

ativista

dos

direitos

das

pessoas

que

buscam

por

relações

homodesejantes, principalmente nos Estados Unidos Americanos (E.U.A). As agressões da polícia estadunidense no Stonewall Inn em 28 de junho de 1969 resultaram em “(...) um movimento mais público de liberação gay (sic), que exerceu tremendo impacto no que tange a encorajar os homossexuais (sic) a afirmarem publicamente suas convicções bem como contribuiu para a alteração de algumas atitudes públicas” (STEARNS, 2010, p. 274). Outra conquista nesse âmbito se concretizou em 1973 quando a Associação Psiquiátrica Americana (APA) aboliu as referências ao “homossexualismo” como distúrbio ou transtorno. Apesar da existência das relações homodesejantes desde os primórdios

da

humanidade,

é

imprescindível

destacar

que

a

expressão

“homossexualismo” se consolidou no contexto da psiquiatria na segunda metade do século XVIII como uma nomenclatura referente ao desejo que alguns homens e algumas mulheres possuíam por pessoas do mesmo sexo, desejo este que era visto como sinônimo de doença mental e perversão. Concomitantemente, reforça-se a expressão “heterossexualidade” como sinônimo de normalidade, pois para categorizar os “homossexuais” como anormais e perversos, era preciso potencializar outra categoria que servisse como modelo de normalidade. Todavia, em 1973, eliminou-se o sufixo “-ismo” que remete à doença e fortaleceram-se as discussões acerca da “homossexualidade” como uma orientação sexual que faz parte intrínseca da personalidade, não sendo passível de tratamento. A Organização Mundial de Saúde (OMS) foi influenciada pela iniciativa estadunidense e em 1993 excluiu as

19

referências da “homossexualidade” como doença da Classificação Internacional de Doenças- Versão 102 (ABDO, 2014). Além disso, no final da década de 1980, surgiram os primeiros estudos da teoria viada que abriu novas conjecturas para a compreensão das relações homodesejantes, criticando veementemente o binarismo “heterossexualidadehomossexualidade” baseado em relações de poder. Todavia, a década de 1980 também trouxe em seu bojo uma surpresa desagradável: o pânico sexual da Síndrome de Imunodeficiência Humana (AIDS). Surgiu, nesse ínterim, uma forte associação midiática das relações homodesejantes à promiscuidade e maior risco de contaminação pelo Vírus de Imunodeficiência Humana (HIV), que só pôde ser parcialmente superada com o surgimento da terapia anti-retroviral na década de 1990 quando começaram a emergir novas representações midiáticas referentes às relações homodesejantes. Nesse sentido, Miskolci (2015) apontou que a disseminação das demandas dos movimentos ativistas nas sociedades ocidentais só foi de fato possível após o pânico sexual da AIDS. Dessa forma, geraram-se debates profundos e provocou-se a efervescência de novas representações midiáticas mais positivas de “gays e lésbicas”, que conforme Miskolci (2013, 2015, 2017) definem os modelos para o reconhecimento social das relações homodesejantes. Stearns (2010), por outro lado, destacou que a mídia popular passa a tratar as relações homodesejantes com mais franqueza no início do século XXI, retratando beijos, carícias e vínculos afetivos entre pessoas do mesmo sexo. Portanto, a luta pela tolerância, o movimento pelo direito ao casamento e o combate contra a homofobia se intensificaram. Esse processo foi acompanhado pela “[...] emergência do Pink Money, que, no Brasil, foi marcada pela popularização de

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primeira versão do CID a ser publicada sem referências à homossexualidade como doença é a décima versão (1993). Apesar disso, essa versão ainda chama atenção à existência de uma homossexualidade egodistônica passível de tratamento psicoterápico no intuito de promover a autoaceitação.

20

negócios classificados como GLS, sigla para gays, lésbicas e simpatizantes” (MISKOLCI, 2015, p. 66). Tais negócios permitiram uma maior aproximação e sociabilidade entre homens que buscavam por relações sexuais, eróticas ou afetivas com outros homens. Não obstante, muitos destes se abstém desses lugares que caracterizam o “meio gay” para se prevenir de possíveis recriminações sociais e morais que ainda são associadas às relações afetivas e sexuais entre homens (BORGES,2009; MISKOLCI, 2013, 2015). Portanto, a valorização do sigilo e a manutenção de um status quo pautado no binarismo e na matriz heterossexual levaram esses homens a buscarem formas através das quais possam se relacionar sexual e/ou afetivamente com outros homens sem ter que confrontar as represálias associadas à assunção de uma “identidade gay”. Dessa forma, “a rede mundial de computadores permitiu a socialização em rede- de forma anônima e relativamente segura- para pessoas que temiam retaliações sociais afastando-as da solidão e permitindo o contato efetivo e modulado com eventuais parceiros e amigos” (MISKOLCI, 2015. p. 66). A partir do início do século XXI, a legalização do casamento gay, o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo em vários países e a criminalização da discriminação devido à orientação sexual passam a se configurar como o apogeu das lutas confrontadas pelo movimento LGBTIQA (Lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexuais, questioning e assexuais). Apesar desses avanços e conquistas significantes, a recusa social das relações afetivo-sexuais entre homens está longe de ser eliminada. E é justamente nesse sentido que em pleno século XXI, muitos homens preferem passar-se por heterossexuais e manter relações com outros homens de forma discreta e anônima, vivendo uma espécie de dupla biografia que é prejudicial aos vínculos relacionais entre pessoas do mesmo sexo como já apontado por vários autores (BORGES, 2009; FROST; MEYER, 2009; DAVIES; NEAL, 2009; RIESENFELD, 2010). Apesar disso, percebe-se que muitos desses homens se empenham em manter essa dupla biografia lançando mão de diferentes meios, entre os quais se inclui o ciberespaço. Este, em suas diferentes modalidades, se configura como uma

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das vias mais seguras através dos quais esses homens podem vivenciar a sexualidade de forma anônima, e isso se evidencia pela eclosão de plataformas digitais de busca de parceiros do mesmo sexo que hoje em dia tomam a forma de location-based

apps

(aplicativos

baseados

na

localização)

operados

em

smartphones e tablets como o Grindr que é voltado especificamente para homens que por diferentes motivos buscam se relacionar com outros homens. Nota-se, desta forma, que a dinâmica de muitas relações homodesejantes mediadas por aplicativos como o Grindr remete ao trecho declamado por O’hara (1950) com o qual se iniciou esse panorama histórico das relações homodesejantes. Ou seja, esses aplicativos, independentemente do público, permitem que os usuários tirem a máscara, vivenciem seus desejos, e construam relações mediadas pela interface online-offline, mas esses mesmos desejos são constantemente silenciados em ambientes off-line para evitar o risco de retaliações morais e sociais atreladas histórica e culturalmente à homossexualidade, fato que chamou a atenção de vários pesquisadores no contexto nacional e internacional, cujas contribuições serão ressaltadas após a exposição de detalhes acerca da estrutura e funcionamento do aplicativo em questão. 3.2 UM PASSEIO PELO GRINDR O Grindr é um aplicativo de busca de parceiros sexuais ou amorosos do mesmo sexo voltado para o público masculino. O Grindr e outros aplicativos semelhantes funcionam em dispositivos móveis como smartphones (ios e android) e tablets. Foi lançado em 2009 por Joel Simkhai e de acordo com informações do site do próprio aplicativo, conta com mais de 3.5 milhões de usuários em 192 países. O nome do aplicativo se origina do termo inglês para “moedora de café”- Grinder, pois de acordo com o criador, um dos objetivos do aplicativo era mesclar os homens. É interessante destacar que o aplicativo surge em Los Angeles, uma cidade conhecida por não ter centro ou pontos de referências para a sociabilidade diária para homens que buscam por relações homodesejantes (MISKOLCI, 2015, 2017). A logo do aplicativo é uma máscara preta sob um fundo amarelo que de acordo com o criador remete a uma comunidade africana primitiva, pois “estar com o outro” é uma necessidade humana primitiva e básica. O’hara (1950) encerrou seu

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famoso poema com um estofo que remete evidentemente a este objetivo do aplicativo: “[...] é uma noite de verão e tudo que eu quero é ser desejado!” Blackwell et al (2015) discorreram acerca da própria experiência como pesquisadores e usuários desse aplicativo e destacaram os aspectos básicos relacionados ao seu uso. Segundo os autores, quando o usuário acessa o Grindr, ele vê uma rede de imagens de usuários próximos que acessaram durante a última hora, agrupados em ordem crescente de proximidade geográfica. Esta é calculada com base em coordenadas do Sistema de Posicionamento Global (GPS) e é automática e imediatamente compartilhada quando o usuário efetua o login. A Figura (1) abaixo, tirada do site do aplicativo (Grindr), mostra a “arquitetura” original desse aplicativo tão popular entre homens que buscam por relações sexuais ou afetivas com outros homens, como era até meados de 2016. Figura 1- Imagem promocional do Grindr disponível no site do aplicativo até o primeiro semestre de 2016.

Fonte: http://www.grindr.com/. Acesso em: 02 de fevereiro de 2016. Na primeira tela, visualiza-se a página inicial do aplicativo onde aparecem as fotos dos homens mais próximos geograficamente. Embora todas as fotos acima expostas revelam fotos de rosto, os usuários, na realidade, recorrem a diferentes tipos de fotos. Blackwell et al (2015) e Crooks (2013) destacaram que a escolha da

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foto já transmite uma mensagem sobre o usuário. Pessoas que usam fotos do rosto tendem a ser assumidas sexualmente ao passo que pessoas que usam fundos pretos provavelmente preferem manter o anonimato devido a não-assunção dos próprios desejos homo-orientados ou bi-orientados. Usuários que postam fotos do dorso sem camisa, ou do corpo na academia tendem a estar mais interessados em práticas sexuais casuais ou na cultura do fast-foda (ou hook-up). Para Miskolci (2015, p. 75), “um dos elementos mais evidentes está no design das plataformas e aplicativos dirigidos a esse público, o qual valoriza a imagem em detrimento da escrita”. Tocar a foto de um usuário revela seu perfil (segunda tela), que inclui a foto, um anúncio breve (headline), traços físicos (altura, peso, idade), o que a pessoa busca no aplicativo, a distância do usuário e um pequeno texto sobre o “parceiro em potencial”. A partir desse perfil, o usuário pode começar uma conversa particular na qual se pode trocar mensagens, compartilhar mais fotos e a localização, conforme exposto na terceira tela. Conversas em grupo não são possíveis através desse aplicativo. Nesse sentido, Blackwell et al (2015) destacaram que há três tipos possíveis de comunicação no Grindr: (1) de um a todos (na descrição do perfil); (2) de um a um (na conversa particular) e (3) não-comunicação (através do bloqueio).

Figura 2- Grindr (Nova Versão)

Fonte: http://www.grindr.com/. Acesso em: 03 de março de 2017.

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As configurações e o design da plataforma digital passam por modificações de tempos em tempos, no intuito de melhorar o funcionamento, acrescentar novas ferramentas para a busca do parceiro potencial e eliminar “bugs” que dificultam o uso do aplicativo ou tornam seu processamento mais lento. Inicialmente, a mídia digital era disponível apenas em inglês, mas a partir de 2016, passou a ser disponível em diferentes idiomas, incluindo o português a fim de facilitar seu uso por homens de diferentes países e regiões do mundo. Na segunda metade de 2016, quando a pesquisa ainda se encontrava em andamento, o design passou por uma mudança drástica, conforme exposto nas figuras a seguir, obtidas do site oficial do próprio aplicativo. Além das mudanças nas principais cores da página inicial da plataforma, que mostra os usuários mais próximos (100, no caso da versão gratuita e mais de 300, no caso da versão XTRA paga), observam-se três ícones ou símbolos no topo da página: (i) uma estrela, (ii) uma máscara amarela que constitui a logo do aplicativo, (iii) um símbolo de mensagem [o ponto vermelho significa que o dono do perfil apresentado pelo site recebeu uma ou mais mensagens de outro (s) usuário (s). Tocar a estrela permite acessar os perfis de parceiros em potencial que foram outrora “favoritados” para que possam continuar sendo acessíveis mesmo à longa distância. A máscara amarela no meio, por outro lado, possui uma finalidade meramente ilustrativa ou figurativa. Ao tocar no terceiro atalho, o mesmo mudará de cor, tornando-se amarelo, e acessa-se a área das conversas ou chats particulares, conforme exposto no registro fotográfico (screenshot) a seguir feito pelo próprio pesquisador durante a imersão no ambiente digital, pois um registro da nova versão dessa tela não está disponível no site oficial.

Figura 3- Área de mensagens (Grindr)

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Fonte: Arquivo pessoal do pesquisador. Observa-se que, ao contrário das versões anteriores do aplicativo, a atual tela das mensagens particulares possibilita que o usuário escolha se deseja visualizar: (i) todas as mensagens; (ii) apenas as não lidas e (iii) aquelas que envia e recebe de usuários marcados como favoritos. Isso favorece a economia do tempo e facilita a comunicação entre usuários com mais afinidades- dois dos objetivos principais do uso da plataforma digital em questão (MILLER,2015). Voltando à página inicial do aplicativo, para o usuário visualizar as fotos dos parceiros em potencial mais próximos, basta que passe o dedo para cima na tela. Usuários da versão gratuita conseguem visualizar até 100 perfis ao passo que usuários da versão Xtra paga terão acesso a mais de 300 perfis. Caso os usuários da versão gratuita queiram acessar perfis de um número maior de homens, basta que assistam vídeos comerciais cujos links aparecem no final da tela com a seguinte mensagem: “Assista esse vídeo para acessar mais perfis”. É importante destacar que ao tocar a foto de um dos vários perfis de usuários na página inicial do perfil conforme exposto na parte esquerda da figura (2), aparecerá uma foto maior desse usuário com seu nome de exibição, idade, status (online ou off-line) e distância do internauta, podendo ser no sistema de unidades universal (metros e quilômetros) ou no sistema americano de unidades (pés e milhas).Se o dono do perfil fora previamente “favoritado” pelo dono da conta acessada, aparecerá uma estrela amarela em destaque ao lado do nome da

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exibição. O sinal que aparece na parte superior direita da foto é reservado para bloquear o usuário, excluindo a possibilidade dos usuários acessarem o perfil um do outro. Para visualizar mais informações sobre o usuário por trás do perfil cuja foto foi tocada, basta que toque a foto e passe o dedo para cima, conforme exposto nas figuras a seguir, obtidas do site oficial do aplicativo que conta com um espaço de suporte reservado para ensinar prospectivos usuários como utilizar a plataforma digital em seus smartphones, sejam android ou ios. Figura 4- Como funciona o Grindr?

Fonte: http://www.grindr.com/. Acesso em: 03 de março de 2017.

Através de um círculo e uma seta amarelos, ilustra-se como o usuário deve tocar a tela e mover o dedo para cima no intuito de visualizar a descrição de perfil e mais informações sobre o prospectivo parceiro em potencial, conforme exposto na figura a seguir.

27 Figura 5- Informações do perfil (Grindr)

Fonte: http://www.grindr.com/. Acesso em: 03 de março de 2017. Conforme a preferência de cada usuário ou dono do perfil e como este configura sua própria conta, os outros usuários podem acessar uma descrição intitulada “Sobre mim” na qual se pode registrar uma pequena descrição sobre si mesmo, usando até 255 caracteres. Além disso, pode-se acessar informações relacionadas à altura, peso, etnia, porte físico, tribo, status de relacionamento, posição sexual e preferências de busca. Acrescenta-se que o aplicativo permite que os usuários registrem informações sobre a própria saúde sexual bem como links de acesso às próprias contas no Instagram, Twitter e Facebook. É imprescindível destacar que o aplicativo conta com uma ferramenta denominada “filtro” que possibilita direcionar as buscas por “parceiros em potencial" de acordo com as informações e características descritas nos perfis e os interesses e preferências do próprio usuário. Essa ferramenta é representada por um símbolo/ícone na parte inferior direita da página inicial do aplicativo. Ao apertá-lo, aparecem na tela duas possibilidades para direcionar a busca: (a) Meu tipo e (b) conectados. Os usuários da versão gratuita podem filtrar “os parceiros em potencial” de acordo com a faixa etária de interesse, motivos para o uso do aplicativo (bate-papo, encontros, amigos, relacionamento, sexo imediato, sem motivo específico) e 13 diferentes Grindr Tribes (tribos grindr). Essas tribos foram sugeridas com base nos tipos corporais e estilos de vida dos usuários e se assemelham significativamente

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aos personagens da indústria pornográfica gay. Nesse sentido, Miskolci (2015, p.69) apontou; que “ o uso de aplicativos de busca de parceiros, por serem fortemente centrados na imagem, incentivam e se associam a práticas corporais como a musculação ou a corporificação de tipos eróticos criados pela indústria pornográfica”. Sendo assim, os tipos de tribos disponíveis são: (1) Urso (terminologia utilizada entre os homens brasileiros que buscam por relações homodesejantes para se referir a um homem peludo, mais maduro e muitas vezes acima do peso e másculo; utiliza-se também a palavra em inglês “Bear”. Para se referir a homens peludos, porém jovens e magros, utiliza-se a palavra lontra, considerada uma subcategoria dos ursos); (2) Elegante (estereótipo do homem com cabelo curto cortado, rosto limpo, bem-vestido e não fumante); (3) Papai ( homem mais velho ou maduro com características e atitude paternas); (4) Discreto (adjetivo utilizado para se referir a homens não assumidos sexualmente, ou em outras palavras não saíram do armário; também pode ser usado para se referir a homens que não possuem comportamentos que possam ser associados socialmente aos desejos homoorientados); (5) Nerd (homens intelectuais); (6) Barbie ( terminologia utilizada entre os homens brasileiros que buscam por relações homodesejantes para se referir a homens que malham bastante e cuidam exageradamente do corpo; podendo apresentar ou não trejeitos femininos); (7) Couro ( homens que fazem uso de botas e roupas de couro e são geralmente associados ao movimento BDSM – Bondage, Domination and Sado-masoquism); (8) Cafuçu ( termo utilizado por homens brasileiros que buscam por relações homodesejantes para se referir a um homem considerado feio, porém com um corpo bonito; usa-se também a expressão “homemcamarão”, aludindo à famosa fama com qual se come o molusco, arrancando a cabeça fora); (9) Soropositivo (categoria referente a homens HIV-positivos); (10) Malhadinho (homem jovem e másculo com hábitos atléticos e uma aparência considerada extremamente sexy); (11) Trans (homens com características transgêneras); (12) Garotos (um homem jovem no final da adolescência e sem pelos no corpo) e (13) Sem resposta ( categoria criada para usuários que sentem que não se enquadram em nenhuma das categorias propagadas entre os homens que buscam por relações homodesejantes).

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Ao passo que os usuários da versão gratuita podem escolher apenas uma das 13 tribos supracitadas para filtrar sua busca por parceiros em potencial, usuários da versão paga podem fazer o mesmo escolhendo até três tribos simultaneamente. Além disso, os usuários da versão Xtra (paga) possuem outras vantagens ao filtrar os “parceiros em potencial”, pois podem fazê-lo de acordo com o porte físico (comum, grande, magro, musculoso, parrudo, torneado), altura, peso, etnia (asiático, branco, latino, mestiço, negro, sul asiático, árabe, índio e outros), status de relacionamento (casado, caso, com parceiro, comprometido, exclusivo, noivo, relacionamento aberto, solteiro) e posição sexual ( ativo, versátil ativo, versátil, versátil passivo e passivo). Os usuários da versão Xtra, adicionalmente, podem optar que apenas homens com fotos de perfil apareçam na página inicial, uma vez que muitos usuários preferem não usar fotos de perfil, o que pode ser considerado uma perda de tempo por outros. Além disso, a versão X-TRA permite que o usuário filtre os parceiros em potencial de acordo com o status de conectividade, optando pelo aparecimento exclusivo de outros usuários que estejam online na página inicial de sua conta. Além de possuir ferramentas adicionais supracitadas para a busca de parceiros em potencial, a versão XTRA isenta os usuários das dezenas de anúncios publicitários que aparecem continuamente quando se usa a versão gratuita, permite marcar um número ilimitado de homens como favoritos, possibilita que o usuário salve suas frases favoritas no bate-papo e se conecte de forma mais rápida, bloqueie um número ilimitado de usuários, envie várias fotos de uma vez e acesse o perfil de seis vezes mais homens, ampliando suas possibilidades de encontro de um parceiro em potencial e a eficiência de suas buscas. A assinatura do pacote mensal da versão XTRA custa $9.99, sendo disponíveis pacotes trimestrais, semestrais e anuais com os preços promocionais de $6,99 por mês, $4.99 por mês e $3.99 por mês respectivamente. Para que seja possível que os usuários, tanto da versão gratuita como o da XTRA, filtrem suas buscas de acordo com suas preferências sexuais, eróticas ou românticas, cada usuário possui a opção de preencher sua página de perfil com as informações necessárias referentes à idade, à altura, ao peso, à etnia, ao porte físico e à posição sexual, conforme explicitado anteriormente. Além disso, o perfil de

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cada usuário conta com a possibilidade de fazer upload (carregar) uma foto de perfil, registrar um nome de exibição e escrever um pequeno paragrafo sobre si, podendo utilizar até 255 caracteres. Destaca-se ainda que cada usuário pode disponibilizar links para o acesso a outras plataformas digitais e redes sociais como o instagram, o twitter e o facebook. Cabe frisar que informações sobre a saúde sexual podem ser registradas na página de perfil de cada usuário, com enfoque exclusivo ao status sorológico referente ao Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV). Caso o usuário opte por revelar as informações acerca do respectivo status sorológico, o aplicativo dispõe de quatro categorias entre as quais aquele pode escolher: (a) Negativo; (b) Negativo, usando PrEP; (c) Positivo; (d) Positivo, não detectável. Acrescenta-se que cada usuário pode registrar a data do último teste realizado. Após pressões de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e ativistas de saúde pública, sexual e LGBTIQA, muitos aplicativos de busca de relacionamentos baseados na localização, inclusive o Grindr, passaram a disponibilizar, em diferentes idiomas, um link de acesso a informações, perguntas e respostas sobre saúde sexual, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), centros de testagem e profilaxia. E por fim, cabe destacar que no início de 2017, foi acrescentada ao aplicativo uma ferramenta intitulada “Caras Novas” que permite com que os usuários, tanto da versão gratuita como da Xtra, vejam em destaque os novos usuários do aplicativo no espaço geográfico proximal onde o acessam. 3.3 AS RELAÇÕES HOMODESEJANTES MEDIADAS PELO GRINDR Conforme destacado anteriormente, a ubiquidade dos aplicativos baseados na localização voltados para busca de parceiros sexuais e amorosos do mesmo sexo como o Grindr no cotidiano dos homens que buscam se relacionar com outros homens chamou a atenção de vários pesquisadores, alguns dos quais trouxeram grandes contribuições sobre dimensões psicológicas e sócio-culturais incutidas no uso do Grindr. A partir de um levantamento bibliográfico no portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior (CAPES), serão destacados a seguir os resultados de algumas dessas pesquisas que podem servir

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como base para a análise das informações obtidas por meio da etnografia virtual e das entrevistas individuais. Crooks (2013) se baseou em uma inovadora autoetnografia e em um diálogo entre diversos arcabouços teóricos incluindo os estudos viados, design e informática urbana para abordar o uso do Grindr no contexto das práticas espaciais. Conforme o autor, esse aplicativo se coloca como um caso singular para examinar questões sobre espaço e mídias baseadas na localização. Nesse sentido, Crooks (2013) argumentou que o Grindr é um espaço social ad hoc que retorna aos modos de socialização dos “homossexuais” (sic) anteriores aos acontecimentos do Stonewall Inn através da manipulação de códigos e símbolos. Através da auto-etnografia, Crooks (2013) buscou ressaltar como mídias digitais a exemplo do Grindr formam um espaço híbrido que é ao mesmo tempo físico e virtual, reinventando o conceito de “vila gay” ou “gueto” e propiciando novas formas de encontrar parceiros, construir amizades e compartilhar informações sem necessariamente requerer contatos pessoais ou consolidar relações longínquas. O autor, portanto, levantou novas considerações acerca das representações socialmente atribuídas aos homens que buscam por relações homodesejantes, da formação de corpos no espaço digital e acima de tudo acerca da natureza das relações construídas por meio desse espaço híbrido que são permeadas por negociações e etiquetas diferenciadas do desejo. Nesse sentido, Crooks (2013) apontou que não importa a forma que eles tomam, os relacionamentos homodesejantes ocorrem numa sociedade heterossexista e então, por definição, os homens que buscam por relações homodesejantes devem refazer as categorias tidas como certas das relações humanas socialmente aceitas para se adequarem às próprias experiências vividas. As reflexões tecidas por Crooks (2013) vêm ao encontro das contribuições das pesquisas que Miskolci desenvolve desde 2007 acerca das relações homodesejantes mediadas por ambientes virtuais. Desta forma, Miskolci (2015) se referiu às etiquetas de desejo com a expressão: nova economia do desejo, compreendendo as negociações que pervagam as relações homodesejantes mediadas por aplicativos baseados na localização como parte intrínseca do regime

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de visibilidade que caracteriza um dos pontos-pivô de suas pesquisas (2009ª, 2013, 2015, 2017). Sob uma perspectiva atenta ao papel que as diferenças têm na regulação da vida social, e em especial no caso as diferenças de sexualidade e gênero, é necessário reconhecer que um regime de visibilidade não se apresenta a sujeitos previamente concebidos, antes os engendra ou recria por meio da maleabilidade do próprio desejo em sua inserção cultural e material (MISKOLCI, 2015, p. 72-73).

Nesse sentido, Miskolci (2015) discorreu sobre as razões que levam homens a adotar o uso de plataformas digitais (por exemplo, o Grindr), a partir de uma etnografia conduzida com homens paulistanos. O autor ressaltou as dimensões sociológicas e históricas para refletir sobre o caráter social do desejo que alimenta essa procura e o novo regime de visibilidade em que esses homens se inserem. Assim, o autor (2015) questionou: por que a busca por um parceiro online é guiada pela discrição, masculinidade e pela recusa de qualquer elemento ou lugar que pode ser evidentemente associado aos desejos homo-orientados? Numa tentativa de compreender o contexto sócio-histórico no qual se estabelecem as relações homodesejantes mediadas digitalmente e desconstruir as representações hegemônicas e práticas sociais que repercutem sobre o sujeito no milieu sociotécnico, Miskolci (2013, 2015) levantou considerações acerca das restrições morais, simbólicas e materiais que configuram a economia do desejo permeada na maioria das vezes por demandas incessantes de discrição e sigilo. Miskolci (2015, p. 69), portanto, ressaltou “[...] como o uso das mídias digitais expõe usuários a modelos regulatórios sobre como ser, a quem desejar e o que fazer”. Os modelos regulatórios apontados por Miskolci (2015) são uma das formas através das quais alguns homens que buscam por relações homodesejantes garantem que seus desejos não sejam visíveis, o que significa que suas experiências sejam permeadas pela segurança. Conforme Miller (2015), essa “segurança” é o principal fator pelos quais esses homens utilizam aplicativos baseados na localização em busca de relações homodesejantes.

Assim como

Crooks (2013) e Miskolci (2015), Miller (2015) destacou que se tornou significativamente comum para os homens se que relacionam com homens buscar outros por meio de redes sociais online por diversos motivos. Conforme Miller (2015, p. 481), “é evidente que o uso de redes sociais voltadas especificamente aos HSH

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(homens que fazem sexo com homens) (sic) é motivada por uma multidão de gratificações buscadas [...]”. Nesse sentido, Miller (2015) explorou as motivações para o uso desses aplicativos específicos para homens que buscam por relações homodesejantes e as gratificações associadas a esse tipo de interação mediada digitalmente. Sendo assim, Miller (2015) conduziu uma pesquisa online com 143 participantes, mostrando que homens que buscam por relações homodesejantes, sui generis, lançam mão de aplicativos de relacionamentos em dispositivos eletrônicos em

busca

de:

segurança,

controle,

facilidade,

acessibilidade,

mobilidade,

conectividade e versatilidade. Conforme Miller (2015), a popularidade crescente desses espaços é revolucionária para pessoas que buscam por relações homodesejantes, pois abrem o caminho para que todos os tipos de homens explorem sua identidade sexual assim como facilita a concretização de novas práticas sexuais, conforme já foi apontado por Miskolci (2013, 2015). Nesse sentido, muitos usuários que não pretendem assumir publicamente sua orientação sexual, levam vidas diferentes online e off-line. Essa interface também foi abordada por Miskolci (2013, 2015), e foi também um dos pontos principais da pesquisa de Blackwell et al (2015). Blackwell et al (2015) destacaram que a ubiquidade dos aparelhos de celular e smartphones baseados na tecnologia de GPS implica que os espaços e comunidades online transcendam a geografia, possibilitando que as interações online sejam transportadas a lugares e relacionamentos off-line reais com mais facilidade. Ao passo que o Grindr e outros aplicativos baseados na localização promovem o encontro com pessoas mais próximas e oferecem novas oportunidades sociais, eles também complicam a interação, pois co-situam os ambientes online e off-line, transformando o espaço de interação em um espaço híbrido conforme apontado por Crooks (2013). Essa co-situação e agregação aparece evidentemente nas formas de autoapresentação e formação de impressão que são sempre permeadas por demandas normatizadas e hegemônicas, como também foi destacado por Miskolci (2015), cuja pesquisa apontou a exacerbação de demandas de discrição e sigilo nas relações homodesejantes mediadas pelo Grindr. A partir de entrevistas semi-estruturadas com 36 usuários do Grindr, Blackwell et al (2015) concluíram que a co-situação influencia a autoapresentação dos usuários devido à

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tensão constante entre “desejar” ser percebido positivamente por outros usuários atraentes do Grindr que estejam próximos geograficamente e queiram se encontrar, e “evitar” as consequências negativas ou estigma por parte daqueles que se encontram fora do grupo. Race (2015), por outro lado, caracterizou o Grindr e aplicativos semelhantes como a infraestrutura emergente do encontro sexual que se tornou popular entre homens que buscam por relações homodesejantes em centros urbanos. Nesse sentido, tornaram-se elementos centrais dos encontros eróticos e práticas sexuais homodesejantes contemporâneas. Portanto, Race (2015) traçou um panorama sobre alguns novos modos da interação sexual mediada por aplicativos que rodam em dispositivos eletrônicos como smartphones e tablets através de uma autoetnografia semelhante àquela conduzida por Crooks (2013), enfatizando a significância do “prazer” entre os usuários, apontando as interações entre práticas, desejos e identidades preventivas, abordando a especulação sexual e a co-construção de fantasias e portanto abrindo novas conjecturas para a compreensão do contexto sociotécnico no qual se consolidam as relações homodesejantes mediadas digitalmente. Tziallas (2015), por outro lado, analisou como o uso de aplicativos baseados na localização voltados a homens que buscam por relações homodesejantes, incluindo o Grindr, facilitam a propagação de conteúdos auto-pornográficos através de um processo de erotismo lúdico permeado por troca de nudes e conversas (chats) de caráter erótico. Sendo assim, Tziallas (2015) argumentou que os programadores desses aplicativos estão cientes do impacto central que a pornografia tem historicamente exercido sobre as relações homodesejantes entre homens e, portanto, construíram os aplicativos, incluindo o Grindr, em forma de “pornoesferas” que viabilizassem a ubiquidade e onipresença dessa influência. É imprescindível destacar que o impacto da mídia e indústria pornográfica sobre as vivências e relacionamentos homodesejantes já foi um tema amplamente abordado por vários autores (BORGES, 2009; MOWLABOCUS, 2010; GAGNÉ, 2012; MISKOLCI 2012, 2013, 2015, 2017; CROOKS, 2013). Nesse sentido, Miskolci (2012, 2013) argumentou que ao contrário de casais heterossexuais que sempre contaram com modelos de relacionamentos heterossexuais propagados pela família, pela

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mídia, pela indústria cultural e pela sociedade como um todo, homens que buscam por relações homodesejantes foram por muito tempo privados desses tipos de modelos e representações, recorrendo, portanto à pornografia cujo conteúdo e imagens passaram a permear as relações que construíam durante muitos anos. Jaspal (2016) desenvolveu um estudo para abordar as formas por meio das quais homens que buscam por relações homodesejantes constroem e gerenciam sua identidade no Grindr, o que vem ao encontro com as propostas de Miskolci (2013; 2015) e Blackwell et al (2015). Nesse sentido, Jaspal (2016) realizou entrevistas com uma amostra de 18 homens que buscam por relações homodesejantes e fazem uso do Grindr e as analisou por meio da análise fenomenológica interpretativa, enfatizando a construção e reconstrução das identidades no Grindr, a sustentação da autoeficácia sexual e o gerenciamento das identidades nos ambientes online e off-line.

O autor concluiu que apesar dos

benefícios sociais e psicológicos aparentes dos aplicativos como o Grindr, as pressões oriundas das normas coercivas que se replicam no aplicativo assim como o uso excessivo (vício) do aplicativo podem infligir efeitos deletérios sobre a identidade dos usuários, intensificar problemas associados à autoestima e, portanto, ameaçar o bem-estar psíquico e social dos usuários. Através de entrevistas com 23 homens que fazem uso do Grindr, Licoppe et al (2015) analisaram como esses desenvolveram uma ideologia linguística que lhes é particular tanto em conversas casuais como no uso de redes sociais e aplicativos baseados na localização como o Grindr. Os autores defenderam que os usuários se tornam reflexivamente cientes que o uso de conversas casuais ou do dia-a-dia nas plataformas digitais com o aplicativo em questão favorecem a sociabilidade e a construção de relacionamentos e interações de diferentes tipos, não sendo uma abordagem necessariamente apropriada para o fim de um encontro meramente sexual com um desconhecido. Para este fim, os autores apontaram que se faz necessário que os usuários produzam uma forma distinta de abordagem, que também faz parte do repertório linguístico exclusivo e particular que permeia as relações homodesejantes mediadas digitalmente e que se ajusta de acordo com as intenções dos usuários e do contexto sóciotecnológico no qual se encontram inseridos.

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Por fim, Brubaker et al (2016) desenvolveram uma pesquisa qualitativa com 16 homens que pararam de usar o Grindr e ressaltaram os diferentes significados atribuídos à saída do aplicativo, enfatizando a definição que aqueles atribuem à saída, como saem do aplicativo e o significado da exclusão dos perfis na plataforma para eles. Nesse sentido, Brubaker et al (2016) defenderam que a saída do aplicativo ou a exclusão do mesmo da lista de aplicativos que rodam no smartphone não se dá em um único instante, mas envolve um processo de atos sociais e técnicos sobrepostos. Os autores acrescentaram que as concepções e os significados atrelados a este processo são permeados pela localização geográfica ou contexto no qual cada ex-usuário se encontra.

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4 CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS VIADOS Após delinear um panorama histórico das relações homodesejantes até o advento de plataformas digitais como o Grindr, descrever a estrutura e o funcionamento desse aplicativo baseado na localização voltado a homens que buscam por relações homodesejantes e apresentar aportes de algumas pesquisas anteriormente desenvolvidas acerca das relações homodesejantes mediadas pelo Grindr, dedica-se a seção a seguir, para traçar um panorama histórico sobre o surgimento dos estudos viados /teoria viada que serve como o principal arcabouço teórico para a problematização dos questionamentos centrais que pervagaram o desenvolvimento dessa pesquisa bem como

a contextualização do

tema-pivô

dessa investigação: as diferentes expressões da discriminação contra homens afeminados nas relações homodesejantes mediadas pelo Grindr e a imposição dos ideias de masculinidade hegemônica ali vigentes. Além disso, explicita-se detalhadamente, nessa seção, as razões pelas quais se optou pelas expressões “estudos viados” e “teoria viada” para substituir as expressões originais “estudos queer” e “teoria queer”. Por fim, visa-se, a partir das contribuições de Judith Butler em “Gender Trouble” [ “Problemas de Gênero” (2003)] e “Bodies that Matter” (1993), resgatar as noções de performatividade de gênero e abjeção de corpos que põem em xeque as normas impostas pela matriz heterossexual. Ambas as noções emergem no bojo dos estudos viados e são imprescindíveis para a compreensão dos discursos e atitudes efeminofóbicas que pervagam as relações homodesejantes mediadas pelo Grindr. 4.1 O NASCIMENTO DA TEORIA QUEER VIADA Antes de se debruçar acerca dos aspectos epistemológicos e políticos que permearam

o

surgimento

dos

estudos

viados/teoria

viada,

é

necessário

compreender semanticamente o significado do termo queer, proveniente do inglês, que deu origem à teoria à qual se refere aqui como viada, conforme já explicitado na introdução deste manuscrito. Afinal das contas, o que é queer? O que é viado? Seria o primeiro termo, em inglês, sinônimo do segundo, em português brasileiro? Ou seria o caráter aberrante e pejorativo que cada contexto sociocultural concede às

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respectivas palavras que explica o uso delas como nome central da teoria aqui abordada? De acordo com o Macmillan English Dictionary (2002), o termo queer originariamente

possuía

uma

conotação

negativa,

chula

ou

ofensiva

independentemente da função sintática: adjetivo, substantivo ou verbo. Como adjetivo, remete-se a três características distintas, sendo nenhuma de caráter positivo. Antes do surgimento dos estudos aqui abordados, o adjetivo queer era utilizado para: (a) descrever ofensivamente pessoas transgêneras ou àqueles que buscam por relações homo ou bi-orientadas (algo como viado, bicha, marica, sapatão, em português) (b) descrever algo estranho, como na seguinte frase por exemplo: “ He has a queer expression. on his face” ( ele tem uma expressão estranha no seu rosto); (c) descrever uma pessoa fisicamente doente. Cabe frisar, também, que antigamente, a expressão “ in queer street” (em uma rua queer) era comum no Reino Unido para se referir a alguém que não tinha muito dinheiro (pobre) ou estava devendo “muita grana” para outras pessoas (caloteiro). Nota-se, nesse ínterim, outras conotações negativas do termo queer como adjetivo. Como substantivo, o termo queer era utilizado ofensivamente para se referir a pessoas que buscam por relações homoorientadas (gay, viado, bicha, sapatão etc). Cabe ressaltar, também, a existência de outro substantivo derivado do temo queer: “queerness” que pode ser compreendido em português como “estranheza”, ou melhor, como “gayzice” ou “viadagem”- termos coloquialmente utilizados no contexto sociocultural brasileiro. Por outro lado, o verbo queer era antigamente utilizado no Reino Unido na expressão idiomática “queer someone’s pitch” que significa estragar o que alguém está fazendo ou planejando fazer. Ressalta-se, assim, outra conotação negativa do mesmo termo.

Cabe destacar, também, o uso informal da expressão “queer

bashing” que significa atos violentos contra pessoas que buscam por relações homodesejantes. O Macmillan English Dictionary (2002) aponta, além disso, a existência do advérbio “queerly” que pode ser traduzido como “estranhamente”. Entre tantas definições e conotações negativas- estranho, bizarro, doente, viado, violento, caloteiro, pobre, entre outras- por que se optou aqui por se referir à

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teoria queer/estudos queer como “teoria viada/estudos viados”. Por que não seria “teoria estranha”, “ teoria caloteira”, “teoria doente” ou “teoria bizarra”, etc. Dizer que o motivo da escolha seria o fato que essa dissertação discorre sobre um tema relacionado a gênero e sexualidade seria um tanto simplista. O critério de escolha é nada mais nada menos que o grau de estranheza e desconforto que a expressão causa no imaginário social brasileiro. A expressão “viado” no contexto brasileiro causa mais estranheza e ofensa aos titulares da masculinidade hegemônica e defensores da matriz heterossexual que as palavras: doente, caloteiro, estranho, bizarro. Aliás, todos esses podem ser em algum momento descritos como “ viados” porque fogem das normas impostas pelo ethos social dominante. A palavra “ viado” possui um caráter pejorativo tão forte quanto o termo “queer” em contextos anglosaxões, senão mais potente e difuso. Embora à primeira vista pareça ser um termo ofensivo utilizado meramente para se referir a homens que buscam por relações homodesejantes, uma análise mais minuciosa do nosso cotidiano como brasileirxs nos faz se deparar com o fato que o “buraco” da terminologia “viado” “é muito mais fundo”. O termo em questão é utilizado para se referir a qualquer coisa, pessoa ou situação que sai dos parâmetros da normalidade e nos tira das nossas zonas de conforto. Qualquer ser humano, independentemente da sua orientação afetivo-sexual, corre o risco de ser taxado ou chamado de “viado” no Brasil, principalmente se nascer com um pênis entre as pernas e se comportar de uma forma não-esperada de alguém que nasceu com este órgão entre as pernas. O termo “ viado” é sim um substituto ofensivo de “ homem homossexual”, mas quando os motoristas estão com raiva um do outro no trânsito se chamam de “ viados”, que no imaginário social brasileiro não significa apenas “gay”, mas também “não-homem”, “emasculado” e maior sinônimo de alguém que se desvia das normas éticas e sociais pré-estabelecidas. Afinal das contas, apesar de todos os avanços legislativos e debates acadêmicos multidisciplinares, a heterossexualidade continua sendo a norma, e qualquer atributo que foge da sua matriz é tratado como aberrante, anormal, estranho, “viado”, sobretudo na linguagem. Quando estamos com raiva de um homem porque ele chegou atrasado ou está nos devendo dinheiro, é comum o chamarmos de “viado” para expressar nossa

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ira e indignação. Se um homem se veste de uma forma diferente daquela esperada dos homens no atual contexto sociocultural brasileiro, ele é taxado de “viado”, mesmo não buscando necessariamente por relações homodesejantes. Mulheres transgêneras, que põem em xeque as normas impostas pelo patriarcado, pelo binarismo homem-mulher e pelo alinhamento sexo-gêneroorientação sexual são amiúde agredidas verbalmente com o termo “ viado”, embora saibamos que identidade de gênero e orientação afetivo-sexual são intersecções totalmente diferentes da nossa personalidade. O uso do termo “viado”, nesse caso especificamente, soa esquizofrênico, pois se a origem da conotação negativa da palavra está no fato que ela é utilizada para se referir pejorativamente a um homem que busca por relações homodesejantes, não há sentido em chamar uma mulher de “viado”, principalmente por parte daqueles que lutam fervorosamente para preservar as dicotomias: homem-mulher/ masculino-feminino e se apegam com unhas e garras ao discurso: menino nasce menino e menina nasce menina. Embora muitxs acreditem que o termo “viado” em “homem viado” se deriva do animal “veado” e advoguem que se escreve com “e” e não com “i”, defende-se, aqui, que a palavra em questão é uma redução derivada do termo “transviado”, mantendo apenas alguns fonemas no final da palavra: transviado/ trans-viado/ viado. Cabe frisar que de acordo o Ferreira (1999), o termo “ transviado” se refere àquelxs que se desviaram dos padrões éticos e sociais vigentes. Visto que os homens que buscavam por relações homodesejantes eram considerados historicamente como desviantes da moral sexual regente e imposta tanto pela religião quanto pela sociedade e posteriormente pela psiquiatria, eram descritos como transviados; transviados; viados, ou então, desviados; des-viado; viado. Essa explicação parece ser mais lógica que a origem do termo a partir do animal “ veado”. Afinal das contas, quem de nós vê um “veado” atravessando a rua no dia-a-dia? Nós, brasileirxs, enviadecemos o veado, o personagem Bambi, o número 24 do jogo do bicho, devido à semelhança linguística, embora não sejam necessariamente homo-orientados. Assim como há diferentes funções sintáticas e derivados do termo queer em inglês- queering, queerness, queerly- podemos também brincar com a palavra “viado” e derivar outros termos a partir dela: viadagem, viadinho, viadão e por fim o verbo “enviadecer”, que possivelmente nunca foi visto antes, mas será utilizado

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nessa dissertação como sinônimo de “achar alguém estranho, viado” e/ou “subalternizá-lo”/”rejeitá-lo”. Compreendidas as semelhanças que regem o uso dos termos “queer” e “viado” nos dois contextos socioculturais, torna-se possível se depreender acerca do surgimento e desenvolvimento dos estudos viados, substituindo sempre o termo “queer” por “viado” em citações sejam diretas ou indiretas. Para Guacira Lopes Louro (2016, p. 7-8), o (viado) é o: [...]estranho, bizarro, raro. (Viado) é, também, o sujeito da sexualidade desviante- homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não deseja ‘ser’ integrado e muito menos ‘tolerado’. (Viado) é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do “entre lugares”, do indecidível. (Viado) é um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina.

Os precursores e pioneiros da teoria viada3 reformularam uma palavra que possuía um significado extremamente negativo ( algo bizarro, anômalo, estranho) e que era utilizada para se referir a pessoas que punham em xeque as normas impostas pelo status quo patriarcal e heterofalocêntrico, abrindo, portanto, novas conjecturas para a análise dos processos sociais por meio dos quais se constroem as sexualidades, as identidades e expressões de gênero a partir de uma perspectiva comprometida com aqueles que foram cultural e historicamente estigmatizados. Butler (2003), uma das pioneiras dos estudos viados se alimenta da dialética hegeliana, da psicanálise neolacaniana e do pós-estruturalismo foucaultiano, para argumentar que os gêneros e as sexualidades são discursivos e não hegemônicos como socialmente vistos. Assim, as categorias baseadas na matéria biológica pura como “macho” e “fêmea” passam a ganhar significado a partir da penetração do sujeito pela linguagem. A mesma lógica ocorre com as relações dicotômicas entre “homem” e “mulher”, “ masculino” e “feminino”, “branco” e “negro”, “heterossexual” e “homossexual”, “másculo” e “afeminado”.

3

A teoria viada é significativamente influenciada pelos pensamentos de Laurent Berlant, Leo Bursani, Judith Butler, Lee Edelman, Jack Halberstam, David Halperin, José Esteban Muñoz e Eve Kosofsky Sedgwick.

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Nota-se que tais lógicas binárias não são baseadas em relações de igualdade, mas análogas aos antônimos “superior” e “inferior”. Desta forma, a primeira parte das díades acima destacadas é vista como superior e hegemônica ao passo que a segunda parte é vista como inferior e, portanto se torna vítima da exclusão, escárnio e ojeriza numa tentativa desenfreada de manter o status quo normativo

vigente

sempre

alimentado

pelo

machismo,

patriarcado

e

heteronormatividade. A “homossexualidade”, em particular, ou “desejo homoorientado”,

como

referimos

aqui,

é

vista

como

inferior

na

dicotomia

“heterossexualidade-homossexualidade” e, portanto, foi historicamente permeada pelo negativismo, atribuição de estereótipos e a estigmatização que se tornaram mais hostis com o advento da Sindrome de Imunodeficiência Humana (AIDS). Enquanto os estudos de gênero, os estudos gays e lésbicos e a teoria feminista podem ter tomado a existência de ‘o sujeito’ (isto é, o sujeito gay, o sujeito lésbico, a ‘fêmea’, o sujeito ‘feminino’ como um pressuposto, a teoria queer empreende uma investigação e uma desconstrução dessas categorias, afirmando a indeterminação e a instabilidade de todas as identidades sexuadas e ‘generificadas’. É importante ter em mente que um dos contextos definidores para a teoria queer nos anos 1980 e 1990 foi o vírus da Aids e as reações de muitos defensores da ‘cultura hetero’ contra os gays, em resposta ao que era ( e ainda é) geralmente visto como ‘ praga gay’ (SALIH, 2013, p. 20).

Esse “algo estranho”, “ fora da regra”, “ fora do caminho”, “abjeto” enviadecido pelo outro social serviu de semente revolucionária para o crescimento de uma teoria que se pauta em um modo de apontar em frente sem saber ao certo o que apontar (HALPERIN, 1995; O’ROURKE, 2006), mas que ao mesmo tempo se transformou em sinônimo de resistência, justiça e luta incessante pelo “lugar” daquelxs que sempre foram alocados ao a-lugar, cultural, institucional e linguisticamente. “Podese dizer que a teoria (viada) é, efetivamente, justiça” (O’ROURKE, 2006, p.131). Cabe frisar que se escreve “lugar” entre aspas porque a palavra nos remete a algo fixo e imóvel, mas para a teoria viada, nossas identidades não são estáveis ou estanques. Portanto, estamos sempre no “entre-lugares”, principalmente no que diz respeito às relações entre identidade de gênero, expressão de gênero e orientação afetivo-sexual. Nesse ínterim, a teoria viada ou estudos viados se consolidam como um campo de teoria critica pós-estruturalista que nasceu no início dos anos 90 ,

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originando-se dos estudos feministas desconstrutivistas dos anos 80, dos estudos culturais norte-americanos e da crítica ao feminismo burguês que eclipsava as demandas de mulheres negras e pertencentes às camadas sociais mais baixas e aos estudos gays e lésbicos então vigentes que negligenciavam as intersecções típicas das nossas sexualidades. Os estudos gays e lésbicos que surgiram no bojo do ativismo gay norteamericano após os acontecimentos de Stonewall inn em junho de 1969 pautavam-se contraditoriamente num discurso de igualdade e respeito à diversidade sexual por um lado, e numa compreensão estanque e linear sobre gênero e sexualidade. Tendiam, assim, a lutar pela diversidade sexual, porém cultuando

e

envaidecendo

a

imagem

do

homem

homossexual

branco

norteamericano de classe média alta que se enquadrava perfeitamente nos padrões impostos pela matriz heterossexual. Aquelxs que não se encaixavam nesse perfilmulheres, drags, homens efeminados, butches (machudas) - continuavam sendo enviadecidxs, subalternizadxs, tratadxs como corpos estranhxs, apesar da efervescência de discursos acerca da importância da diversidade sexual e do respeito ao próximo. Ao passo que os estudos gays e lésbicos pautam-se na defesa da homossexualidade sob a perspectiva da diversidade e possuem uma concepção do poder como repressor, os estudos viados trazem em seu bojo uma crítica feroz aos regimes de normalização sob a perspectiva da diferença, pois para os teóricos viados, o poder é disciplinar/controlador (MISKOLCI, 2009b, 2012). Enquanto o destaque nos estudos gays e lésbicos e movimentos de luta pró-homossexualidade é o binário heterossexual/homossexual, os teóricos viados direcionam seus olhares às lógicas dicotômicas analógicas ao binômio normal-anormal (MISKOLCI, 2009b, 2012; LOURO 2016) e a existência de uma hierarquia entre as duas partes da díade: o considerado normal é sempre visto como a regra e é eleito superior àquele taxado como anormal que passa por processos crônicos de repressão, silenciamento, disciplinamento, subalternização e enviadecimento. Depreende-se, portanto, que a teoria viada se compromete com o confronto, a desconstrução e a superação das dicotomias e dos alinhamentos socialmente impostos entre gênero e sexualidade (BUTLER, 2003; LOURO, 2016). Há uma recusa quase total de que gênero e sexualidade sejam determinados apenas pela

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biologia, chegando em alguns casos a negar o uso das expressões binárias (homem em mulher), como no Manifesto Contrassexual de Preciado (2014) no qual o autor se refere aos sujeitos simplesmente como “corpos falantes”.

Não há nenhuma

pesquisa genética que demonstra que características associadas aos papéis de gênero sejam determinadas pelo código genético. Quando se trata de gênero e sexualidade, as identidades não podem ser compreendidas como os fenótipos: cor de olho, formato da orelha, entre outros. A biologia determina apenas aspectos anatômicos e fenotípicos da existência do ser humano, que inclusive apenas pode ser considerado como tal se passar pelo crivo da cultura e se for penetrado pela linguagem, senão nada o diferenciaria de outros mamíferos. Nesse contexto, a genitália- seja o pênis ou a vagina- não passam de meros órgãos que fazem parte dos nossos corpos falantes assim como as mãos, os pés, o nariz. E é justamente aqui que está o cerne dos principais questionamentos viados: por que a sociedade determina e nos designa nossas identidades de gênero a partir da expressão fenotípica do sexo (quem tem pênis, é menino! Quem tem vagina, é menina!)? Por que meros órgãos vistos num exame de ultrassom antes de nascermos seriam considerados determinantes inquestionáveis e irrefutáveis daquilo que seriamos, daquilo que desejaríamos, da forma como nos comportaríamos, da roupa que preferiríamos vestir, do jeito que andaríamos? Já que meros órgãos do nosso corpo tem a capacidade de determinar aquilo que deveríamos ser ou a forma como deveríamos nos comportar, por que não ceder essa responsabilidade ao nosso nariz, nossas mãos, nossas orelhas, nosso fígado? Desde quando sexo de nascimento é sinônimo de gênero? Como a complexidade das nossas identidades e formas de ser podem ser reduzidas à mera diferença entre o pênis e a vagina? Embora

o

sexo

seja

aparentemente

binário,

por

ser

determinado

biologicamente, o gênero não o é. Mas a redução do gênero à esfera meramente genital perpetuou uma compreensão dicotômica tanto da identidade de gênero (ou se é homem ou se é mulher) quanto da expressão de gênero (ou se é masculino ou se é feminina), estabelecendo um alinhamento entre as duas intersecções. Enquanto paira no imaginário social a convicção de que “ Meninos nascem meninos” e “Meninas nascem meninas”, os estudos viados criticam a biologização das identidades e expressões de gênero e a redução binária destas à esfera genital.

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Se houvesse um slogan para a teoria viada, seria: “Nascemos corpos”. E a partir da linguagem e inserção desses corpos na cultura, se transformam em “corpos falantes” munidos de identidades e expressões de gênero que são perpassadas pelas especificidades e determinações de cada contexto sócio-cultural, dando-lhes, portanto, um caráter performativo (BUTLER, 1986, 1998, 2003). É a partir da linguagem

que

se

compreendem

os

binarismos:

menino-menina/homem-

mulher/masculino-feminino, pois ninguém é “menino” e ninguém é “menina” fora do campo da linguagem, e é justamente por isso que ninguém nasce “menino” ou “ menina”; o processo de socialização através da linguagem não se completa imediatamente após o nascimento. Nesse sentido, segundo Butler (2003), uma das teóricas viadas mais eminentes, o gênero, seja qual for, é a repetida estilização do corpo; uma série de ações repetidas dentro de um quadro amplamente rígido e regulatório que se congela ao longo do tempo para produzir a aparência de uma substância natural. Depreende-se, assim, que é o comportamento e a linguagem que produzem o gênero, e não vice- versa. Como as identidades, papéis e expressões de gênero são socialmente construídos e perpassados por fatores históricos e culturais, os corpos falantes passam a ser impelidos a “performatizarem” o comportamento socialmente associado ao gênero que lhes foi designado ao nascimento que per se foi atribuído ao corpo do recém-nascido com base na expressão fenotípica do sexo. Destaca-se, nesse sentido, o conceito de “performatividade de gênero”- uma das principais contribuições Butlerianas aos estudos viados, e aos estudos de gênero e sexualidade, sui generis. 4.2 A PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO E A ABJEÇÃO DOS CORPOS ESTRANHOS A noção de performatividade de gênero, conforme proposta por Butler (1993, 2003) nos permite tecer uma reflexão sobre as influências sociais, culturais e históricas sobre nossas sexualidades, identidades e expressões de gênero. Embora estas aparentemente façam parte de um processo subjetivo, psicodinâmico e intrapsíquico, não se pode negar que são perpassadas por nuances de confluências socioculturais

e

históricas,

uma

vez

que

o

que

é

considerado

como

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homem/masculino em certo contexto social e/ou histórico difere daquilo que é considerado como tal em outros contextos. Os estudos viados se baseiam na crença que não existem “jeitos de ser” essencial ou biologicamente inscritos na natureza humana. Todos passam pelo crivo das construções sociais, culturais e históricas, pois o “eu” é produto do Outro. As expressões e identidades de gênero não se reduzem ao binarismo dos sexos biológicos (pênis-vagina). Todavia, devido a este binarismo, propagou-se uma concepção reducionista de gênero e sexualidade, através da qual associa-se um conjunto de características/atitudes/comportamentos a todos aqueles que se identificam como homens (masculinidade) e um conjunto dos mesmos a todas aquelas que se identificam como mulheres (feminilidade). A coerência interna ou unidade de cada gênero, homem ou mulher, requer uma heterossexualidade tanto estável quanto oposicional. Essa heterossexualidade institucional tanto requer quanto produz a univocidade de cada um dos termos gendrados que constituem o limite das possibilidades gendradas dentro de um sistema oposicional, binário de gênero. (BUTLER, 2003, p. 22).

Levando em consideração que cada ser humano possui um “jeito de ser” e uma forma de se expressar que lhe é única e singular, as expressões de gênero macrossocialmente

propagadas

e

vistas

como

dominantes

(masculinidade-

feminilidade) não passam de efeitos de uma mera performance. Nesse sentido, muitos homens introjetam e performatizam as expressões e atitudes atreladas ao ser homem no contexto social no qual se inserem para que possam ser aceitos e nomeados como tal. Qualquer performance de expressão de gênero que foge desse padrão

pode

levar

ao

questionamento

de

sua

masculinidade/virilidade/heterossexualidade/identidade como homem- aspectos da personalidade que são comumente vistos como sinônimos. O conceito de “performatividade”, nesse ínterim, questiona esse alinhamento entre sexo de nascimento, gênero e orientação afetivo-sexual numa tentativa de subverter as identidades binárias e reducionistas que nos foram historicamente impostas como as únicas possibilidades de ser/existir/desejar. Dentro da lógica binária, a existência/materialização de um corpo só é concebida dentro dos parâmetros do ethos sexual heteronormativo que se pauta sobretudo na diferença anatômica (pênis-vagina) e no atrelamento da sexualidade a

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fins meramente reprodutivos. Estipula-se, então, identidades, papéis e expressões possíveis/socialmente aceitáveis de gênero, a partir de um processo discursivo de alinhamento entre essas diferentes intersecções, pautando-se, sobretudo, na hierarquização das diferenças: enquanto uns são intitulados como hegemônicos, outrxs são subalternizadxs, enviadecidxs, transformadxs em abjeto. A

abjeção

dos

corpos

está

expressamente

relacionada

à

ordem

heteronormativa e às imposições da matriz heterossexual (BUTLER, 1993, 2003; PRINS; MEIJER, 2002). Para um corpo não ser considerado abjeto, há que ser capaz de performatizar os atributos/características associadas a um dos gêneros binários que lhe foi designado ao nascimento com base nos resultados de exames ecográficos durante a gestação. Os corpos falantes que não são capazes de performatizá-las, põem em xeque o binarismo e alinhamento (sexo-gênero) naturalizados, e portanto, perdem seu lugar de sujeitos e passam a serem objetificados/abjetificados/enviadecidos. O binarismo e alinhamento (sexo-gênero) se imiscuíram na linguagem, nos amarrando acriticamente a eles e nos incapacitando, por muito tempo, de referir aos corpos fora do binômio: homem-mulher. O binarismo e alinhamento (sexo-gênero), portanto, nos impossibilitaram de compreender e aceitar o corpo sem sexualizá-lo a base da diferença pênis/vagina, porque é justamente essa sexualização que reforça e dá continuidade à matriz heterossexual. Os corpos que não são sexualizados conforme as regras binárias e lineares socialmente estabelecidas entre sexo, gênero e orientação sexual passam por um processo discursivo de abjeção (BUTLER, 1993; PRINS; MEIJER, 2002). Aquelxs que desestruturam as regras/leis que perpetuam esse binômio tornam-se objetos/abjetos. Diga-se “objetos” porque a abjeção faz com que percam sua materialidade/existência como humanos e sejam arremessados fora do campo da linguagem- aquela que nos tira da biologia para a culturas e faz com que sejamos sujeitos únicos e singulares. Um exemplo nítido desse processo é a divulgação de mortes de pessoas LGBTIQA. Nas notícias, sempre se refere às vítimas como: “transexual”, “homossexual”, “lésbica”, “gay”, eclipsando as histórias por trás de cada uma e negligenciando as especificidades de cada “sujeito”. As vítimas raramente são identificadas pelo nome, pois são reduzidas a uma única esfera, uma única

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intersecção da personalidade- justamente aquela que lhes tirou a existência antes mesmo da própria morte. Butler (1986, 1993, 1998, 2003) se debruça profundamente sobre a noção de “ corpos abjetos” em sua obra “ Bodies that matter” (1993), cujo título se baseia-se num trocadilho de palavras ou em um deslizamento de significantes, lacaniamente falando. Ao mesmo tempo que o vocábulo “matter” pode significar “materializar” referindo-se aos corpos que se materializam, adquirem significado e existência e obtém legitimidade através da linguagem, ele pode significar “ importar”. Segundo Butler (1993), há corpos que importam para a matriz heterossexual e corpos que não importam. Os corpos que importam são justamente aqueles que se materializam e ganham

existência

dentro

dos

parâmetros

dos

binômios:

homem/mulher;

masculino/feminino alinhados com a diferença anatômica: pênis/vagina. Os corpos que põem em xeque essas regras naturalizadas não são inteligíveis pelo status quo, criam lacunas e pontos de interrogações na linguagem e só conseguem existir como corpos excluídos, disruptivos que não importam, pois apenas importam os corpos que retroalimentam ao ethos heteronormativo vigente. O abjeto, para Butler (1993; 2003), relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas vidas e cujas materialidades são entendidas como “não importantes” (PRINS; MEIJER, 2002). É mister destacar que devido ao caráter performativo das expressões e identidades de gênero, o que é considerado abjeto ou não depende das especificidades de cada contexto sociocultural e histórico. No contexto das relações homodesejantes mediadas digitalmente entre as quais pairam os ideais de masculinidade hegemônica, a figura do homem efeminado é renegada e alocada ao campo do abjeto, pois põe em cheque as normas impostas pelo binarismo e pelo alinhamento (pênis-homem-masculino).

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5 MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E EFEMINOFOBIA Após descrever o setting virtual onde originaram os questionamentos que instigaram o desenvolvimento dessa pesquisa e apresentar algumas das principais contribuições dos estudos viados que servem como principal suporte teórico para as reflexões tecidas no bojo desse manuscrito, faz-se oportuno discorrer acerca do tema-pivô dessa investigação: a efeminofobia e os ideais hegemônicos de masculinidade, para que posteriormente seja possível levantar considerações acerca dos discursos/atitudes efeminofóbicas e imposições maschofascistas que permeiam as relações homodesejantes mediadas pelo Grindr. Portanto, visa-se, nessa seção, apresentar conceitos básicos em sexualidade humana a partir de um olhar viado, enfatizando a distinção entre sexo de nascimento, gênero designado, identidade de gênero, expressão de gênero e orientação afetivo-sexual e viabilizando a discussão sobre o que seria a masculinidade e como ele se constrói dentro de cada contexto sociocultural. Em seguida, serão apresentados os conceitos de masculinidade hegemônica e machofascismo, sobretudo através das contribuições de White (1980/1994) e Connell e Messerschmidt (2013). Discorre-se, além disso, acerca da hegemonia e a partir de uma concepção gramsciana que oferece pressupostos teóricos e epistemológicos para explicar a manutenção e propagação dos ideais de masculinidade hegemônica. Por fim, será abordado o conceito de efeminofobia e a abjeção e exclusão que aflige meninos/homens efeminados ou que não se enquadram nos padrões ditados de masculinidade a partir de contribuições de teóricxs viadxs como Eve Kosofsky Sedgwick (1990, 1991). 5.1 EXPRESSÕES DE GÊNERO, MASCULINIDADE E OUTROS CONCEITOS BÁSICOS EM SEXUALIDADE HUMANA Antes de se debruçar especificamente sobre a prevalência de um padrão hegemônico de masculinidade em cada contexto sociocultural e como este se evidencia nas relações mediadas virtualmente entre homens que buscam por relações homodesejantes, faz-se necessário primeiramente tentar compreender o que é “masculinidade”, ou melhor, o que são as “masculinidades”. Torna-se imprescindível, para tanto, que se definam e se distingam diferentes conceitos que

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emergem corriqueiramente no bojo dos estudos em sexualidade humana, estudos “viados”, psicanálise, entre outros. Tais conceitos, como sexualidade, sexo, gênero designado, identidade de gênero, expressão de gênero (no qual se enquadra a masculinidade, conforme aqui proposta) e orientação afetivo-sexual, são, muitas vezes, vistos pelo status quo vigente como sinônimos. Nesse sentido, Louro (1997, 2000, 2016) apontou que as relações humanas são permeadas por um alinhamento (sexo-gênero-orientação afetivo-sexual). Ou seja, prevalece a falsa ideia de que quem nasce com pênis, se considera necessariamente um homem que per si deve ser extremamente másculo/viril e desejar outra mulher. Partindo desta mesma visão linear e limitada da sexualidade humana, se um “homem” apresentar desejos homo-orientados, ele tem sua masculinidade posta em xeque, ao mesmo tempo que se aquele apresentar comportamentos e atitudes que não se enquadram naquilo que a sociedade associa normativamente à masculinidade, ele terá sua heterossexualidade presumida posta em xeque. Devido a esse alinhamento, por exemplo, é comum na sociedade brasileira, que pessoas usem a expressão “pinto pequeno” para depreciar alguns homens e questionar a masculinidade deles, pois ter um pênis grande, na atual sociedade brasileira, é concebido como um símbolo máximo da masculinidade. Não obstante, é nítido, que sexo, identidade de gênero, expressão de gênero e orientação afetivo-sexual são categorias distintas e independentes. Ou seja, não há uma relação linear e direta entre elas como é socialmente pré-concebido. Portanto, ter uma certa identidade de gênero, por exemplo, não significa necessariamente ter uma expressão de gênero específica ou uma orientação afetivo-sexual particular, embora para a maioria dos leigos essa associação seja naturalizada, entranhada no discurso e consequentemente ocorre de maneira espontânea e inevitável (FOUCAULT, 2000; BUTLER, 2003). Afinal das contas, o que é sexo, o que é identidade de gênero, o que é expressão de gênero e o que é orientação afetivo-sexual? A seguir, abordar-se-ão estas categorias a partir do viés da interseccionalidade: diversos aspectos que formam um ser humano e constituem sua identidade (DAWSON, 2015). Em sua polêmica obra “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud (1905/2006) apontou que não se deve confundir o sexual com o genital. Em outros

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termos, a sexualidade não se restringe à genitalidade. Sendo assim, Freud (1905/2006, 1938/2006) rompeu com a visão reducionista da sexualidade que a limita a aspectos meramente biológicos/genitais e ressaltou que a sexualidade não se restringe à função dos órgãos genitais nem ao ato sexual em si (KAUFMANN, 1996; ROUDINESCO; PLON, 1998; LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Primeiramente, “sexo” corresponde à expressão biológica tanto genotípica como fenotípica e abrange características anatômicas e funcionais tanto genitais como extragenitais. A determinação sexual biológica em humanos é estritamente cromossômica e não sofre de influências socioculturais como o a expressão de gênero ou a vivência da sexualidade (BONFIM, 2012; BAYDOUN, 2016). Pessoas com o genótipo XX geralmente nascem com uma vagina, ao passo que pessoas com o genótipo XY geralmente apresentam um pênis. É fundamental destacar que a expressão fenotípica nem sempre corresponde a expressão genotípica do sexo de nascimento. Destaca-se, nesse sentido, os intersex4 (popular e vulgarmente conhecidos como hermafroditas) que possuem genótipos XX ou XY, mas apresentam características sexuais primárias e secundárias de ambos os sexos de nascimento. Destaca-se, além disso, as alterações cromossômicas que acometem o vigésimo-terceiro par de cromossomos (cromossomos sexuais) e se caracterizam por expressões genotípicas como X, XXX, Y, XYY, XXY, entre outras que podem causar ambivalências na expressão fenotípica das características sexuais primárias e/ou secundárias. Nesse sentido, é possível afirmar que muitas vezes existem divergências entre o “sexo de nascimento” em sua expressão genotípica e o “sexo de nascimento” em sua expressão fenotípica. Ou seja, não é possível dizer que “quem nasce com XX possui uma vagina” e “quem nasce com XY um pênis”. Em insetos de quatro espécies diferentes do gênero Neotrgla, as fêmeas, ou seja, os insetos que possuem uma expressão genotípica correspondente ao sexo de nascimento feminino, apresentam um órgão erétil parecido com um falo ou pênis que foi apelidado de gynosome ao passo que os machos, ou seja, os insetos que possuem uma expressão genotípica correspondente ao sexo de nascimento

4

Nesse caso, intersexo é um termo utilizado para se referir a um grupo de variações congenitais de anatomia sexual que não se encaixam nas definições binárias tradicionais. Longe das categorias diagnósticas propostas pelo CID-10 (OMS, 1993) ou DSM-5 (APA, 2013), refere-se aqui à minoria sexual representada pela letra I na sigla LGBTQIA.

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masculino, apresentam nenhum tipo de órgão erétil. Assim, durante o ato sexual, a fêmea penetra o macho e consequentemente seu gynosome infla, absorbendo nutrientes e sêmen de dentro do macho (inseto com a expressão genotípica correspondente ao sexo de nascimento feminino). 5 Em suma, o termo “sexo” se refere especificamente à marca biológica, genital e natural (NUNES; SILVA, 2000). Fala-se, nesse sentido, da presença de um pênis, de uma vagina ou das duas marcas biológicas (intersexo), conforme ilustrado no esquema a seguir. Não há relatos na literatura médica de pessoas que nasceram com outras marcas genitais fenotípicas Figura 6- Sexo de Nascimento

Fonte: Arquivo pessoal do autor Embora sexo e gênero sejam categorias independentes; pois a primeira é puramente biológica ao passo que a segunda é perpassada por processos psicossociais; todos os sujeitos são designados um gênero de acordo com o sexo de nascimento. De acordo com o Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM-5), trata-se de um “gênero designado” cujo processo de designação ocorre mesmo antes do nascimento do próprio sujeito (APA, 2013). Com o avanço das tecnologias de diagnóstico por imagem e ultrassom, é possível visualizar as características sexuais fenotípicas do embrião já nos primeiros meses da gravidez. Assim, ao visualizar um pênis, o (a) médico (a) exclama: “É Menino!” Designa-se, portanto, a esse “sujeito”, um gênero, ao qual nos referimos aqui por “Male”. Utiliza-se, nesse caso, o vocábulo em inglês, para diferenciar o masculino como gênero designado (Male), aquilo que é inscrito nos nossos registros gerais e documentos legais, do masculino como expressão de gênero, conceito que

5

Para maiores informações, acesse o http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140418_femea_penis_ms.

seguinte

link:

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será tratado posteriormente. Por outro lado, ao visualizar a vulva, o (a) médico (a) exclama: “ É Menina!” Designa-se, então, a esse “sujeito”, o outro gênero que compõe a díade, ao qual nos referimos aqui por “Female”. Nesse caso, utiliza-se o termo em inglês também, para diferenciar o feminino como gênero designado (Female) do feminino como expressão de gênero. Haja vista a “existência predominante” de dois sexos de nascimento- pênis e vagina- esse processo de designação de gênero antes do nascimento ocorre de forma binária/dicotômica (BUTLER, 2003; APA, 2013), conforme ilustrado no esquema a seguir:

Figura 7- Gênero Designado

Fonte: Arquivo Pessoal do Autor

Devido ao alinhamento (sexo-gênero-sexualidade) e a sobreposição imposta social, cultural e historicamente entre sexo biológico, identidade de gênero, expressão de gênero e orientação afetivo-sexual (BUTLER, 2003; LOURO, 2000; BONFIM, 2012; APA, 2013), esse processo de designação de gênero é acompanhado por uma série de expectativas e associações sobre a futura vida desse sujeito, englobando a “verdadeira” identidade de gênero, a expressão de gênero e a orientação afetivo-sexual. É nítido, todavia, que tanto a identidade de gênero, quanto a expressão de gênero e orientação afetivo-sexual independem de do sexo de nascimento e do gênero designado ao nascimento, assim com independem uma da outra. Segundo o DSM-5 (APA, 2013), a identidade de gênero é uma categoria de identidade pessoal/social que se refere à identificação como homem, mulher, ou,

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ocasionalmente, outra categoria não-binária que não seja nem homem nem mulher, ou, simplesmente, nenhuma categoria (pessoa agênera). Consiste, portanto, na forma como alguém se sente, se identifica e se apresenta para si próprio e para os que o rodeiam, relacionando-se, assim, à percepção de si mesmo como um todo (BONFIM, 2012). Como a identidade de gênero independe do sexo biológico, esta não pode ser compreendida a partir da mesma lógica binária e dual que permeia o processo de designação de gênero antes do nascimento. Ressalta-se, nesse sentido, que há uma multiplicidade de possíveis identidades de gênero:

as binárias (homem e

mulher) e as não-binárias, cujo número de possibilidades tende ao infinito. Surge, nesse contexto, terminologias como transgênero, cisgênero, pangênero, bigênero, demigênero, entre outras, para se referir às múltiplas possibilidades de identidade de gênero. Considerando que a pesquisa foi realizada apenas com homens cisgêneroshomens que se identificam com o sexo de nascimento (pênis) e com o gênero designado ao nascimento (Male)- não serão aprofundadas as diferenças entre as diferentes identidades supracitadas. Destaca-se, no entanto, que se viu necessário conceituar e traçar um panorama acerca da identidade de gênero no fito de distinguila da expressão de gênero e da orientação afetivo-sexual, conceitos que estão diretamente relacionados ao tema-pivô da pesquisa: as exigências intransigentes em relação à masculinidade hegemônica e a aversão contra aqueles que não se enquadram neste padrão nas relações homodesejantes mediadas pelo aplicativo baseado na localização- Grindr. Considerando o conceito de performatividade proposto pelos pioneiros dos estudos viados (SEDGWICK, 1990, 1991; BUTLER,1993, 2003), pode-se definir a “expressão de gênero” como um conjunto de características e comportamentos determinados e associados dicotomicamente pelo contexto sócio-cultural dominante aos que se identificam como homens e às que se identificam como mulheres. Denomina-se, a seguir, o conjunto de características e comportamentos esperados do homem, de masculinidade (masculino). Atribui-se a palavra feminilidade (feminino) para se referir à expressão de gênero que o contexto social atribui à mulher.

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Nota-se que tanto a masculinidade quanto a feminilidade são perpassados por fatores histórico-culturais, ou seja, passam por mudanças de acordo com o contexto social e histórico no qual os sujeitos estão imersos. Não obstante, faz-se necessário destacar que, apesar dessas transformações, tais conjuntos são vistos como padrões hegemônicos, quase que incontestáveis, dentro de cada cultura vigente. Por isso, quando um homem, apresenta comportamentos que são associados culturalmente ao feminino no contexto social atual (rebolar, gesticular com as mãos, ter voz fina, cuidar muito da aparência), ele tem sua identidade como “homem” questionada, pois segundo a lógica do status quo vigente, para alguém ser considerado homem, ele precisa necessariamente apresentar um conjunto de comportamentos e características que podem ser associadas à masculinidade como concebida pelo contexto sóciohistórico em questão. Cabe frisar também que, na maioria dos contextos sócio-culturais, constrói-se uma lógica dicotômica entre mulher/feminino e homem/masculino baseada em hierarquias e relações de poder que superiorizam o homem/masculino e inferiorizam a mulher/feminino, assemelham a relação (homem/masculino: mulher/feminino) à analogia (síntese: antítese), intitulando uma como oposto da outra, e negando, portanto, a possibilidade de coexistência em um único ser. Além disso, devido ao alinhamento (sexo-gênero) e as lógicas binárias historicamente propagadas (LOURO, 2000, 2016; BUTLER, 2003), ocorre reiteradamente uma sobreposição naturalizada entre a “identidade de gênero” e a “expressão de gênero”: quem se identifica como homem deve necessariamente apresentar um comportamento associado à masculinidade; quem se identifica como mulher deve obrigatoriamente apresentar um comportamento associado à feminilidade.

Não

obstante,

a

existência

de

homens

cisgêneros

com

comportamentos e características vistas como femininas, independentemente da orientação afetivo-sexual, põe em xeque essa visão reducionista que permeia nossas relações sociais. Torna-se, nítido, nesse contexto, que ser homem não significa necessariamente ser masculino/viril e vice-versa, e ser mulher não significa obrigatoriamente ser feminina, e vice-versa. No entanto, devido ao alinhamento (sexo-gênero- orientação afetivo-sexual) e ao binarismo que permeia nossas relações e a forma com a qual compreendemos

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nossa sexualidade e o mundo que nos cerca, pressupõe-se erroneamente que todos os homens que não são titulares da masculinidade hegemônica (comumente denominados de homens afeminados) apresentem necessariamente desejos homoorientados. Destaca-se, nesse sentido, que embora sejam conceitos diferentes, a expressão de gênero e a orientação afetivo-sexual, são, amiúde, vistas como sinônimos. Ou seja, crê-se que se uma pessoa é “feminina”, ela deseja necessariamente um homem/masculino e vice-versa. A orientação afetivo-sexual é resultado de uma complexa interação entre fatores biológicos, psicológicos e socioculturais se relaciona ao desejo sexual e a natureza das fantasias sexuais e se caracteriza por um sentimento de atração afetiva, erótica e/ou sexual por pessoas do mesmo sexo/mesmo gênero designado, sexo oposto/gênero designado oposto, ambas as possibilidades ou nenhuma delas (BONFIM, 2012; ABDO, 2014; DAWSON, 2015; BAYDOUN, 2016), As inúmeras possibilidades de orientações afetivo-sexuais, entre as quais se incluem os desejos homo-orientados, se constituem de forma independente da expressão de gênero, identidade de gênero ou sexo de nascimento/gênero designado da dita pessoa. Embora estas sejam intersecções diferentes que compõem a personalidade, estrutura psíquica e sexualidade de cada sujeito, de forma única e singular, enfatizase que são compreendidas de forma linear e reducionista pelo status quo vigente, devido a um processo que Louro (1997, 2000, 2016) denomina de alinhamento (sexo-gênero-orientação afetivo-sexual) que normatiza, estipula e faz com que concebamos apenas duas possibilidades de ser, se constituir como humano e se relacionar com outro: (i) quem nasce com pênis deve se identificar como homem quando adulto, se enquadrar no padrão de comportamentos associados à masculinidade e desejar uma mulher (ser heterossexual/ desejos hetero-orientados); (ii) quem nasce com vagina deve se identificar como mulher quando adulta, se enquadrar no padrão de comportamentos associados à feminilidade, e desejar um homem (ser heterossexual/ desejos hetero-orientados).

57 Figura 8- Alinhamento (sexo-gênero-sexualidade)

Fonte: Arquivo Pessoal do Autor Nota-se que as duas possibilidades de existir/ser/desejar socialmente impostas são permeadas por uma matriz heterossexual que tem historicamente influenciado nossas relações. Tal matriz traz em seu bojo a pressuposição que todos somos heterossexuais (heterossexismo) até que se prove o contrário. Nesse sentido, quando um homem apresenta um comportamento socialmente associado à masculinidade, o outro social considera isso como afirmação da heterossexualidade pressuposta, mas quando aquele apresenta características que não se enquadram no padrão hegemônico de masculinidade, o outro social passa a questionar tal heterossexualidade. Trata-se de uma associação extremamente reducionista, uma vez que ser másculo está longe de ser sinônimo de ter desejos hetero-orientados e ser afeminado está longe de ser sinônimo de ter homo-orientados. Ao anunciar que um sujeito “É MENINO” antes do próprio nascimento (gênero designado: male), porque possui um pênis, espera-se que, ao se tornar adulto, se identifique “cisgenericamente” como um homem (identidade de gênero), apresente uma série de comportamentos, atitudes, preferências e características que são socialmente associadas à masculinidade (expressão de gênero) e tenha desejos afetivos/eróticos/sexuais hetero-orientados (orientação afetivo-sexual). Caso este

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sujeito apresente qualquer característica, comportamento, preferência ou desejo que rompa com essa expectativa linear e reducionista, cria-se, no outro, um sentimento de estranhamento que põe em xeque as normas social e historicamente impostas pelo status quo patriarcal e heterofalocêntrico e pela matriz heterossexual (SEDGWICK,1991; LOURO, 2000, 2016; BUTLER, 2003; MISKOLCI, 2013). Este sujeito,

consequentemente,

torna-se

vítima

de

um

processo

crônico

de

subalternização da própria identidade, pois esta é vista como subversiva, estranha, bizarra, “viada” (LOURO, 2000, 2016; BUTLER, 2003). Nesse ínterim, nota-se que tal processo aflige homens que apresentam comportamentos, atitudes, trejeitos, preferências e gostos que não se enquadram no padrão de expressão de gênero socialmente esperada para os mesmos. Destacase, como exemplo, os “homens afeminados”, que embora se afirmem e se identifiquem como homens, perdem os privilégios exclusivos dos titulares da masculinidade hegemônica, e passam por um processo de subalternização e exclusão semelhante àquele que aflige as mulheres. Tal marginalização ocorre independentemente da orientação afetivo-sexual desses homens, que são amiúde, vistos como pessoas que buscam por relações homodesejantes, uma vez que a presença do efeminamento em um homem questiona a matriz heterossexual. Cabe frisar que tal renegação do “menino/homem afeminado” à posição do “abjeto inquietante” (SEDGWICK, 1990; CONEJO, 2012), aliada ao constante enaltecimento da figura do “homem viril” titular da masculinidade vista como hegemônica não só pervaga nossas relações sociais como um todo, mas também permeia as relações construídas entre homens que buscam por relações homodesejantes, fato que gera um paradoxo, pois estes, assim como aqueles, foram historicamente subalternizados. Especificadas as diferenças entre as diversas intersecções que nos constituem como sujeitos, faz-se oportuno tecer uma discussão adiante com ênfase no tema: a masculinidade e a hegemonia de um padrão específico desta sobre as outras modalidades de expressão de gênero no universo dos homens que buscam por relações homodesejantes. Afinal das contas, o que é masculinidade? O que é hegemonia? O que é masculinidade hegemônica e machofascismo e como se evidenciam nas relações homodesejantes contemporâneas?

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5.2 MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E MACHOFASCISMO: O ENALTECIMENTO DO HOMEM VIRIL Considerando os conceitos de performatividade e discursividade propostos por Butler (1993, 2003) e outros teóricos viados em suas discussões sobre gênero, pode-se frisar que o conceito de masculinidade é líquido, mutável, flexível e moldável conforme as exigências/características do contexto sóciohistórico em questão. A masculinidade, portanto, “[...] é fluida e seu significado muda conforme as circunstâncias

que

ditam

o

modo

para

sua

composição.



(LANZIERI;

HILDEBRANDT, 2011, p.277). Destaca-se, neste sentido, que aquela se molda pelas nuances socioculturais que configuram incessantemente suas construções nas áreas de gênero e sexualidade (BUTLER,1993; LANZIERI; HILDEBRANDT, 2011). Devido à performatividade e a constante configuração/ reconfiguração que caracterizam a masculinidade, torna-se complexo conceitua-la, defini-la ou localizar precisamente suas origens e raízes. Nesse sentido, Connell e Messerschmidt (2013) criticam o uso da terminologia no singular, pois se ela é moldada de acordo com o contexto sociocultural e histórico vigente, significa que já existiram e existem diferentes expressões da masculinidade, ou seja, masculinidades, no plural. As masculinidades se caracterizam como conjuntos de comportamentos, características físicas, atitudes e traços de personalidade que são determinados e associados por cada cultura àqueles que se nomeiam e se identificam como “homens”. Embora as masculinidades, como diferentes expressões de gênero, sejam também perpassadas por fatores psíquicos e experiências de vida que fazem com que cada “ser homem” tenha uma masculinidade- uma expressão de gêneroque lhe é única e singular, dissemina-se, dentro de cada contexto histórico e cultural, um modelo de masculinidade, visto como hegemônico, que influencia a forma como os homens se enxergam, como se constituem e como o dito contexto os trata (SEDGWICK, 1993; TAYWADITEP, 2001; LANZIERI; HILDEBRANDT, 2011; CONEJO, 2012; CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013). Cabe frisar que como esse padrão considerado como soberano muda de cultura para outra, e de contexto histórico para outro, Connell e Messerschmidt (2013) também criticam o uso da expressão “masculinidade hegemônica” no singular, propondo seu uso no plural “masculinidades hegemônicas”. Antes de se debruçar especificamente acerca do

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conceito de “masculinidade hegemônica/masculinidades hegemônicas”, faz-se necessário conceituar o que seria “hegemonia” e como se associa a cada cultura a partir das colocações do filósofo e crítico literário italiano Antônio Gramsci. “A noção de hegemonia foi criada no seio da tradição marxista para pensar as diversas configurações sociais que se apresentavam em distintos pontos no tempo e no espaço” (ALVES, 2010, p. 71). Embora Gramsci (1971) a propusesse no bojo de estudos sobre filosofia política para abordar a subordinação do proletariado às classes sociais dominantes, o conceito de hegemonia também serve para abordar a produção de concepções reducionistas de gênero e sexualidade e como tais ideologias se radicaram na estrutura da sociedade ao longo da história. Nesse sentido, além da política, as relações hegemônicas permeiam diferentes aspectos de um determinado contexto sóciohistórico- o cultural, o ideológico, o estético, entre outros. (HARGREAVES; MCDONALD, 2000; LANZIERI; HILDEBRANDT, 2011). Depreende-se, portanto, que as concepções de mundo que pervagam as relações constituídas no seio de uma determinada sociedade e por meio dos quais ela se representa são ditados ideologicamente pelos aparelhos propulsores da hegemonia. (GRAMSCI, 1971; ALTHUSSER, 1985; SCHLESENER, 1992). Cita-se, como exemplo, os meios de comunicação de massa e a indústria cultural que atualmente exercem um papel central na formação de opiniões e na reconfiguração das preferências, desejos, dogmas de acordo com o status quo vigente e as exigências do sistema capitalista. É mister destacar que um padrão hegemônico ou uma cultura hegemônica não se constituem meramente a partir de um predomínio coercitivo e totalitário. Ao contrário, há um consenso de que a hegemonia se caracteriza por uma combinação paradoxal entre a coerção e o consentimento (SCHLESENER, 1992; ALVES, 2010; LANZIERI; HILDEBRANDT, 2011; MISKOLCI, 2012). De forma geral, segundo Gramsci, a cultura hegemônica não é resultado de uma dominação coercitiva direta, mas, antes, o resultado de um contexto onde os próprios subalternizados apoiam os dominantes. A hegemonia é resultado da cumplicidade dos dominados com os valores que os subalternizam (MISKOLCI, 2012, p. 52).

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Para Gramsci (1971), a hegemonia, ou seja, a subordinação de certo grupo cultural por outro dominante que expressa e propaga reiteradamente a supremacia de suas ideologias, não se dá apenas através de um sistema de forças coercitivas e de subalternização mas também através do consentimento/identificação dos reprimidos. É muito comum, portanto, que um grupo subordinado adote a concepção de vida de outro grupo cujas ideologias, valores e características se consolidam como um aparato hegemônico (ALVES, 2010). Nota-se, nesse sentido, que os conceitos gramscianos de cultura e hegemonia constituem um arcabouço teórico plausível para a compreensão das relações de poder e hierarquias que permearam a configuração das diferentes masculinidades ao longo da história, comumente intitulando um padrão de masculinidade como hegemônico de acordo com as particularidades de cada contexto sóciohistórico e dos aparatos ideológicos predominantes em seu seio. Tais reformulações pelas quais este padrão passa de acordo com cada contexto social e histórico são possíveis, uma vez que “a própria estrutura da sociedade e a característica dinâmica das relações de hegemonia abre perspectivas de transformação.” (SCHLESENER, 1992, p. 31-32). Connell e Messerschmidt (2013) traçam um panorama histórico acerca do surgimento e desenvolvimento do conceito de masculinidade hegemônica. Este surge no bojo de críticas amplas ao conceito de papel sexual masculino, se consolidando como uma alternativa para a compreensão das masculinidades a partir de múltiplas hierarquias e relações de poder. Nesse ínterim, nasce o conceito de masculinidade hegemônica com base em debates, discussões e estudos pioneiros desenvolvidos na Austrália e sistematizados no artigo “Towards a New Sociology of Masculinity”, influenciando, a partir de então, os estudos de gênero e sexualidade em diferentes áreas do conhecimento, e moldando o pensamento atual sobre homens e hierarquia social (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013). Conforme Collier (1998), a masculinidade hegemônica se constitui por uma série de ideologias populares associadas constitutivamente a um modelo ideal ou às verdadeiras características do que é “ser homem”, evidenciando, portanto, o alinhamento social e historicamente reiterado entre identidade e expressão de gênero. Nesse sentido, Connell e Messerschmidt (2013, p. 255) apontaram que: “O

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comportamento dos homens é reificado em um conceito de masculinidade que, em um argumento circular, se torna a explanação (e a

desculpa) para o

comportamento”. Cabe frisar que este conceito se pauta na hierarquização e na normatização de relações de poder entre as diferentes identidades e expressões de gênero, exercendo domínio não só sobre as mulheres, mas também sobre aqueles que ameaçam sua soberania e conceituação como modelo de identidade global (PRINGLE,

2005;

LANZIERI;

HILDERBRANDT,

2011;

CONNELL;

MESSERSCHMIDT, 2013). Ressalta-se, nesse sentido, que a característica-chave para o conceito de masculinidade hegemônica é a multiplicidade de modelos de masculinidades e a existência de uma hierarquia entre elas (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013). Devido à intersecção entre diferentes aspectos/fatores que constituem a identidade/personalidade de cada “ser homem”, existem inúmeros modelos de masculinidades. Todas estas, todavia, são marginalizadas, subalternizadas e equiparadas ao “feminino”- visto pelo status quo vigente como expressão desprezível e inferior de gênero- em detrimento da supremacia do modelo hegemônico de masculinidade. Para Connell e Messerschmidt (2013, p. 245): A masculinidade hegemônica se distinguiu de outras masculinidades subordinadas. A masculinidade hegemônica não se assumiu normal num sentido estatístico; apenas uma minoria dos homens talvez a adote. Mas certamente ela é normativa. Ela incorpora a forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens.

Devido ao patriarcado social, histórica e culturalmente instituído e perpetuado, as relações dos homens com outros homens são inevitavelmente moldados e padronizados pelas normas patriarcais e heteronormativas que regem a construção do modelo de masculinidade hegemônica específico de cada contexto. Aliado à hierarquia e poder sobre as mulheres, os homens criam relações de poder entre si de acordo com o critério da masculinidade dominante vista, amiúde, como sinônimo da máxima virilidade (PLECK, 1974/1989; CARRIGAN et al, 1985; TAYWADITEP, 2001). A sobreposição entre as múltiplas masculinidades e as inúmeras identidades e expressões de gênero é condição sine qua non para a soberania de um modelo de

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masculinidade visto como hegemônico (CONNELL E MESSERSCHMIDT, 2013). Este, per se, é permeado e normatizado pela indústria cultural e pelas imposições midiáticas, atribuindo um caráter mutante e/ou performativo às características associadas hegemonicamente à masculinidade (GRAMSCI, 1971; SCHLESENER, 1992; BUTLER, 2003). Portanto, o predomínio fascista sobre outras masculinidades e expressões de gênero e o efeito transformador dos meandros dos contextos sociohistóricos sobre o modelo de masculinidade constituem os fatores principais para a consolidação desta. Nota-se, nesse sentido, que a preeminência daqueles que se enquadram no modelo socialmente imposto de masculinidade hegemônica e a subordinação daqueles que não se encaixam nela, independentemente da orientação afetivosexual ou identidade de gênero, é um processo histórico e não autorreprodutor. Ou seja, longe de ser autorreprodutora, a masculinidade hegemônica, como se constitui dentro de cada milieu, é fruto de um longo processo histórico e resultado de interferências socioculturais; sua manutenção depende da hierarquização e rehierarquização (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013). Na mitologia grega, por exemplo, Herácles- o famoso Hércules- era considerado símbolo da masculinidade apolônea. Possuía um corpo atlético e atributos como a coragem e a força- características estas ainda associadas aos homens titulares da masculinidade hegemônica na maioria das culturas ocidentais. Todavia, uma análise rápida das pinturas e estátuas do Herácles que a história nos deixou como legado, mostra que Herácles tinha um pênis pequeno, pois isto era visto como sinônimo de beleza masculina e virilidade. Nos dias atuais, ao contrário, o pênis grande (ser bem dotado) é considerado uma característica central do modelo ideal de masculinidade, principalmente entre homens que buscam por relações homodesejantes. Não fosse suficiente, é comum que as pessoas, sui generis, usem referências ao tamanho pequeno do pênis como tentativa de depreciar a imagem de um “ser homem” e pôr sua masculinidade em xeque, evidenciando, portanto, o conspícuo

falocentrismo

que

permeia

as

relações

sexuais

e

eróticas,

pormenorizadamente, as homodesejantes. É importante destacar que um número conspícuo de estudos demonstrou que as masculinidades são propensas a mudanças que se caracterizam como desafios

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frente à hegemonia (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013). Desse modo, Cavender (1999) traçou um paralelo comparativo entre os modelos de masculinidade hegemônica construídos em filmes de longa-metragem nos anos 1940 e 1980, e, consequentemente, ressaltou a existência de divergências alarmantes. Ferguson (2001), por outro lado, apontou o declínio dos ideais históricos de masculinidade na Irlanda e sua substituição por padrões mais modernizados e direcionados pelo mercado. Tais conclusões vêm ao encontro das discussões propulsionados por vários teóricos “viados” e sociólogos da masculinidade que versaram sobre as transformações que afligem os padrões hegemônicos de acordo com o contexto sociocultural e hustórico, propulsionando os sujeitos nela inseridos a performatizar as características e atitudes associados pelo status quo ao “que é de fato ser homem” (LOURO, 2000; BUTLER, 2003; MISKOLCI, 2013; BARRETO, 2016). Nota-se que tais padrões se configuram de uma forma tão ubíqua e onipotente que a soberania da masculinidade hegemônica como único modelo de “ser homem” é visto como normal e naturalizado (TAYWADITEP, 2001; LANZIERI; HILDEBRANDT, 2011), se imiscuindo, portanto, no discurso e nas relações que os sujeitos constroem por meio deste (FOUCAULT, 2011). A supremacia das características associadas ao modelo ideal de masculinidade que prevalece na cultura ocidental atual é constantemente propagado pela indústria cultural, pela mídia, abrangendo os programas televisivos, os filmes hollywoodianos e os anúncios publicitários propulsionados diariamente em redes sociais, dando, cada vez mais, um caráter imagético ao “que é de fato ser homem” na pós contemporaneidade. Nesse sentido, Connell e Messerschmidt (2013) citam como exemplo a ostentação da masculinidade hegemônica nos programas televisivos de esporte, a censura midiática dos modelos marginalizados de masculinidade e a interconexão entre aquela, a força e a coragem nos imaginários de guerra. Alia-se a isso, que quando expostos na mídia, homens que não se conformam às características normativas de masculinidade, são retratados de forma cômica ou caricaturesca. É incomum, por exemplo, vermos nas representações midiáticas, homens que são simultaneamente afeminados e heróis de guerra. É importante ressaltar que tais idealizações propagadas midiaticamente exercem efeitos diários sobre diferentes aspectos da vida de meninos e homens-

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potencializando desajustes, tensões e resistências (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013). Tais idealizações sobre a masculinidade põem em xeque a identidade desses sujeitos como “meninos” ou “homens” e passam a fazer o que der para gozarem dos privilégios exclusivos daqueles que se enquadram no padrão hegemônico de masculinidade. Assim, muitos meninos e homens “[...] se acomodam a um ideal e se tornam tipos que são cúmplices e resistentes, sem que qualquer um incorpore exatamente aquele ideal” (WETHERELL; EDLEY, 1999, p. 377). No geral, as pressões para se enquadrar no modelo ditado de masculinidade emergem desde a infância e adolescência (MACCOBY,1987; TAYWADITEP, 2001). Várias pesquisas mostraram que os “meninos” se ensinam o comportamento masculino visto como hegemônico/normal/correto e o impõem coercitivamente (FAGOT, 1977; TAYWADITEP, 2011; CONEJO, 2012). “O status hegemônico regional dos jovens homens na realidade alerta para que eles façam as coisas que seu grupo de pares local define como masculinas” (CONNEL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 252). Os meninos que não se conformam às características associadas normativamente ao “que é de fato ser homem”, ou, ao menos tentem performatizálas, são comparados às “meninas” e passam por um processo de ridicularização, rejeição, alienação e exclusão das atividades grupais (FAGOT, 1977; HARRY, 1982; TAYWADITEP, 2001; CONEJO, 2012). Isso enfatiza novamente que para se sustentar um dado padrão de masculinidade hegemônica, é necessário o policiamento de todos os homens e suas expressões de gênero e o descrédito daquilo que não se enquadra no que se espera de um “ser homem de verdade” no contexto sóciohistórico atual. Nota-se que tal policiamento das diferentes expressões de gênero e as tentativas compulsórias de masculinização/virilização dos meninos e homens são tão extremos e tão potentes que constituem o que White (1980/1994) e Taywaditep (2001) denominam de machofascismo. Este pode ser definido como a exacerbação acentuada das exigências em relação à adoção dos valores e características associadas à masculinidade hegemônica. Na cultura ocidental pós-contemporânea, predomina-se um conceito de masculinidade hegemônica que traz em seu bojo a imagem de um homem independente, forte, agressivo e que não expressa suas emoções ou qualquer sinal

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de

compaixão

ou

ternura

(KIMMEL,

1994;

CONNELL,

2005;

LANZIERI;

HILDEBRANDT, 2011; CONEJO, 2012; BARRETO; 2016). Devido à globalização, a aceleração exacerbada da troca de informações e a internacionalização dos meios de comunicação de massa, os modelos de masculinidade hegemônica específicos de cada contexto sociocultural ocidental recebem influências de um modelo global vigente, aproximando os padrões locais um do outro. Nesse sentido, Connell e Messerschmidt (2013, p. 274) apontaram que “[...] os processos de globalização abriram as ordens de gênero regionais e locais para novas pressões por transformações e também abriram caminhos para novas coalizões entre grupos de homens poderosos” Assim, a branquitude, a heterossexualidade e o pertencimento à classe média alta ou elite se constituem também

como

parâmetros

para

enquadramento/não-enquadramento

a

comparação

destes

no

padrão

entre

homens

socialmente

e

o

imposto

(KIMMEL, 2008; LANZIERI; HILDEBRANDT, 2011). Alia-se a isso a associação do modelo hegemônico de masculinidade a um padrão ideal de porte físico/fisicalidade reiterada e compulsoriamente propagado pela mídia e indústria cultural, alinhando, ideologicamente, a força, a estética, a saúde e o atletismo. Os homens que possuem desejos homo-orientados e as relações construídas entre eles também são influenciados pelas exigências do modelo hegemônico de masculinidade embora este passe por ligeiras alterações devido às especificidades sócio-históricas que permearam o grupo em questão. Vários autores apontaram que prevalece entre os homens que buscam por relações homodesejantes uma concepção heterofalocêntrica de masculinidade (TAYWADITEP, 2001; BORGES, 2009; LANZIERI; HILDEBRANDT, 2011; ANNES; REDLIN, 2012; CONEJO, 2012; MISKOLCI, 2013; 2015, BARRETO, 2016). Nesse sentido, Annes e Redlin (2012) apontaram que ser identificado como “heterossexual” (normal) a partir da aparente expressão de gênero ocupa o centro das preocupações de muitos homens que buscam por relações homodesejantes , justamente porque se enquadrar totalmente nos padrões de masculinidade hegemônica e ser “heterossexual” são características desejáveis pelo outro social.

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Internaliza-se, portanto, as características atreladas ao modelo hegemônico de masculinidade: homem branco, rico/classe média alta, extremamente viril ( porque isto

é

visto

como

sinônimo

de

ter

desejos

hetero-orientados),

corpo

atlético/sarado/malhado/bombado, voz grossa, entre outras características. Em uma etnografia sobre casas de orgias direcionadas a homens que buscam por relações homodesejantes, Barreto (2016) concluiu que as relações eróticas e sexuais entre estes são regidas por três princípios: a masculinidade (aquela vista como hegemônica), a discrição (ter um comportamento ou expressão de gênero que não revele a natureza dos desejos sexuais, ou ao menos conseguir performatizá-los) e a safadeza (aguentar o “tranco” e conseguir se engajar no máximo de relações sexuais possíveis). Assim, para que um homem possa ser aceito nesse grupo, é necessário que seja “macho, discreto e puto” sem qualquer vestígio de efeminamento ou outro traço que possa “denunciar” seus desejos homoorientados. Etnografias virtuais desenvolvidas por Miskolci (2009, 2013, 2015) já demonstraram também o caráter crucial do padrão hegemônico de masculinidade e da discrição nas relações homodesejantes mediadas online, apontando o enaltecimento da figura do homem “macho, discreto e fora do meio”. Percebe-se, entre os homens que buscam por relações homodesejantes, um culto

exagerado

das

características

associadas

à

safadeza,

putaria

ou

promiscuidade. Isto pode ser explicado pela influência acentuada que a indústria pornográfica exerce sobre estes homens (BORGES, 2009; MISKOLCI, 2009, 2013; TZIALLAS, 2015). Devido à falta de representações midiáticas afirmativas das relações homodesejantes antes do advento do século XXI, muitos homens com desejos homo-orientados recorriam aos filmes pornôs em busca de um relacionamento com o qual se identificassem (MISKOLCI, 2009, 2013; TZIALLAS, 2015). Isso alimentou, entre os homens que buscam por relações homodesejantes, a concepção de um homem perfeito baseada na imagem de um ator pornô: um homem musculoso, macho (se enquadra perfeitamente no padrão hegemônico de masculinidade) dotado, safado e liso (sem pelos), associando, muitas vezes, de forma normativa, as relações peno-anais receptivas à branquitude e as relações peno-anais insertivas à negritude. A manutenção da supremacia dessa concepção de “ser homem” heternormativa e pornograficamente influenciada se torna possível

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devido a dois fatores: (a) o consentimento de muitos homens que buscam por relações homodesejantes que tentam simultaneamente se enquadrar no modelo ideal de masculinidade e se relacionar com homens que se encaixam nele; (b) a depreciação e exclusão constante de homens que possuem um comportamento, expressão de gênero, porte físico ou estilo de vida que põe em xeque os atributos do modelo supracitado. Destaca-se, nesse sentido, a aversão contra aqueles cujo comportamento é caracterizado pelo efeminamento, doravante denominada de “efeminofobia”- significativamente disseminada entre homens que buscam por relações homodesejantes, visando, acima de tudo, a manutenção do modelo hegemônico

de

masculinidade

imposto

pelo

status

quo

patriarcal

e

heterofalocêntrico. 5.3 EFEMINOFOBIA: A GUERRA CONTRA O MENINO/HOMEM AFEMINADO O termo “efeminofobia” foi primeiramente cunhado por Eve Kosofsky Sedgwick (1990, 1991) da qual também tomo emprestado o subtítulo dessa seção do manuscrito em referência ao texto “The War on Effeminate Boys” (SEDGWICK, 1991), para se referir a uma forma peculiar de preconceito e exclusão que aflige homens afeminados ou aqueles cujo comportamento, “jeito de ser” ou preferências não se enquadram nos padrões impostos de masculinidade hegemônica Desde então, várias nomenclaturas surgiram para se referir a este tipo de estigma na literatura norte-americana. Não obstante, nota-se que pouco tem sido escrito acerca desse fenômeno que acomete pessoas que se identificam como homens, mas não se expressam ou se comportam da forma como o contexto sociocultural normatiza ou espera que um “homem” o faça. Embora Richardson (2009) definisse a efeminofobia como o medo do efeminamento, aqui faz-se uso deste termo para se referir aos sentimentos de aversão

e

atitudes

de

discriminação

contra

homens

que

apresentam

comportamentos/atributos socialmente atrelados à feminilidade. Tal efeminamento é visto por muitos como prova infalível da existência de desejos homo-orientados, pois aquele tem sido historicamente considerado o significante supremo do desejo por outro homem (TAYWADITEP, 2001; RICHARDSON, 2009). Devido a essa associação historicamente naturalizada e propagada, pouco tem sido escrito sobre a “efeminofobia” propriamente dita, sendo interpretada como uma manifestação da

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homofobia.

Aponta-se,

todavia,

que

ambas

se

tratam

de

tipos

de

preconceito/discriminação distintos. Ao passo que a homofobia, expressão cunhada por Weinberg (1972) no final da década de 60, se refere à aversão contra aqueles que possuem desejos homo-orientados, a efeminofobia, se caracteriza como o horror frente aos homens que possuem comportamentos/atitudes socialmente associados ao feminino, independentemente da orientação de seus desejos sexuais. É possível se referir a este fenômeno também como anti-effeminacy (antiefeminamento) ou sissyphobia (bichafobia)- expressão cunhada por Bergling (2006) para se referir às atitudes negativas contra “homens afeminados” que buscam por relações homodesejantes (EGUCHI, 2011). A efeminofobia é amplamente disseminada tanto em culturas anglo-saxões como em culturas latino-americanas nas quais, dependendo do contexto, o “ homem afeminado” se torna uma figura caricaturesca ou um monstro a ser temido, uma vez que põe em xeque as expectativas patriarcais tradicionais que não levam em consideração a distinção entre sexo de nascimento, identidade de gênero, expressão de gênero e orientação afetivo-sexual e presumem uma única forma de ser/existir/desejar como homem: pênis-homem-masculino (másculo/viril)- titular de desejos hetero-orientados (SEDGWICK, 1990; 1991, RICHARDSON, 2009; EGUCHI, 2011; CONEJO, 2012; ANNES; REDLIN, 2012). A presença do efeminamento no comportamento/atitudes de um homem, independentemente da natureza de seus desejos sexuais, eróticos ou amorosos, denuncia o fracasso do binarismo e alinhamento socialmente impostos entre expressão de gênero e sexualidade e se constitui como prova da plasticidade das relações gênero-sexualidade. A figura do “homem afeminado” constitui, portanto, uma ameaça ao patriarcado, pois numa era durante a qual a masculinidade se encontra em crise, o espectro de um homem que renuncia os privilégios exclusivos dos titulares da masculinidade hegemônica é considerado desconcertante (RICHARDSON, 2009; CONEJO, 2012; ANNES; REDLIN, 2012). Como homens que buscam por relações homodesejantes reproduzem o sistema de gênero/sexualidade binário e normativo no qual estão inseridos, essas se tornam inevitavelmente permeadas por uma notável aversão ao efeminamento (RICHARDSON, 2009; EGUCHI, 2011; ANNES; REDLIN, 2012). Tal aversão se evidencia nas formas

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através das quais muitos desses homens se apresentam em aplicativos baseados na localização e na consideração do efeminamento como um turn-off erótico (algo broxante) (RICHARDSON, 2009; MISKOLCI, 2013). É mister destacar que a efeminofobia se funda em diferentes raízes, todas as quais reiteram os sentimentos/atitudes negativos contra o “homem afeminado”. Este, conforme Richardson (2009, p. 532) “[...] descontrói ideias essencialistas de gênero e se as lógicas binárias de gênero são os andaimes da heterossexualidade, então, violar este binarismo se torna um desafio frente à heteronormatividade” Nesse sentido, a efeminofobia pauta-se, sobretudo, na negatividade/aversão através dos quais a contemporaneidade enxerga as performances/expressões de gênero transgressivas que questionam as normas impostas pelo status quo patriarcal e heterofalocêntrico e, portanto, se consolidam como problemas de gênero (SEDGWICK, 1991, 1993; BUTLER, 2003; RICHARDSON, 2009). Por outro lado, é imprescindível destacar que a misoginia se estabelece também como um dos pilares da efeminofobia, embora as vítimas sejam homens. Levando em consideração alguns termos em português abrasileirado que se consolidam como efeminofóbicos, como por exemplo: “bicha”, “bichona”, “florzinha” ou o uso de adjetivos e substantivos no feminino para se referir a homens que não se enquadram nas normas impostas pela matriz heterossexual, observa-se que todas as expressões apontam diretamente à “feminilidade” do sujeito. Depreende-se, portanto, que descrevê-lo como feminino pode ser considerado imediatamente um insulto uma vez que o feminino ocupa o lugar do subalterno nas hierarquias de gênero instituídas pelo status quo machista, misógino e patriarcal. Como não vivemos numa cultura de igualdade entre as diferentes identidades e expressões de gênero, taxar um homem de afeminado ou “bicha” pode ser considerado inevitavelmente pejorativo (RICHARDSON, 2009; EGUCHI, 2011; ANNES; REDLIN, 2012). Além das razões que levam à consolidação de discursos efeminofóbicos, sui generis, há outras que são específicas, e portanto, constituem uma dimensão especial dos sentimentos/atitudes de anti-efeminamento que permeiam as relações homodesejantes entre homens. Para Sedgwick (1991, p. 156):

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Uma razão mais compreensível para a efeminofobia é a necessidade conceitual do movimento gay de interromper uma longa duração de ver o gênero e a sexualidade como categorias contínuas e coladas- uma tradição de assumir que qualquer pessoa, homem ou mulher, que deseja um homem deve por definição ser feminina, e que qualquer pessoa, homem ou mulher, que deseje uma mulher deve, pela mesma razão, ser masculina.

Como os “homens efeminados” que buscam por relações homodesejantes reforçam o discurso hegemônico e a ideologia social dominante que associam os desejos homo-orientados ao efeminamento, Annes e Redlin (2012) concluíram que uma grande parte dos homens que buscam por relações homodesejantes, principalmente aqueles que se enquadram ou conseguem performatizar as características socialmente associadas à masculinidade hegemônica, possui uma visão negativa e estereotipada dos homens efeminados. Tal visão negativa foi corroborada pelo fato que os homens que buscam por relações homodesejantes são amiúde representados/retratados na cultura popular, indústria cultural e meios de comunicação de massa como efeminados, alegres, extrovertidos e “espalhafatosos” criando, portanto, um efeito cômico ou caricaturesco (SEDGWICK 1991, 1993; ANNES; REDLIN, 2012; CONEJO, 2012). Além disso, muitos homens que buscam por relações homodesejantes culpam os “homens efeminados” por disseminar “imagens negativas” sobre os desejos homo-orientados, devido

à

preocupação

excessiva

com assuntos

superficiais como roupas, moda e encontros sexuais casuais (ANNES; REDLIN, 2012). Enfatiza-se, nesse sentido, a introjeção dos estereótipos e preconceitos macrossocialmente associados aos homens efeminados e aos homens que buscam por relações homodesejantes cujos desejos, relações, atitudes e comportamentos acabam sendo permeados por processos que corroboram com a estigmatização e subalternização daqueles que põe em xeque as normas impostas pelo patriarcado e pela matriz heterossexual.

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6 MÉTODO Considerando os questionamentos que permearam o surgimento do temapivô dessa investigação, evidenciou-se que a pesquisa qualitativa oferece os instrumentos necessários para aborda-los. Conforme Minayo (2008, p.57), a pesquisa qualitativa pode ser considerada o tipo mais apropriado para abrir novos paradigmas frente a compreensão “das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam”. Turato (2005), por outro lado, ressaltou que a pesquisa qualitativa se detém ao significado que o fenômeno tem para os sujeitos investigados. Uma vez contextualizado o problema central dessa investigação, o arcabouço teórico e a abordagem metodológica mais adequados para endereça-lo, torna-se necessário se debruçar acerca dos aspectos metodológicos que permearam o desenvolvimento da pesquisa. Portanto, apresenta-se a seguir os objetivos dessa pesquisa assim como aspectos metodológicos imprescindíveis como: tipo de pesquisa, locais do estudo (tanto online como offline), sujeitos da pesquisa, procedimentos, tipo e etapas da análise e procedimentos éticos. 6.1 OBJETIVOS Visou-se, por meio dessa pesquisa qualitativa, abordar o discurso dos usuários do Grindr em Porto Velho- RO sobre as demandas intransigentes em relação ao corpo, masculinidade hegemônica e discrição. Além disso, objetivou-se abrir novas conjecturas para a compreensão das repercussões da virtualização e do status quo heterofalocêntrico sobre os desejos, fantasias e subjetividades dos homens que buscam se relacionar com outros homens e sobre as relações homodesejantes sexuais e amorosas construídas no contexto social contemporâneo.

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6.2 TIPO DE PESQUISA “A Internet pode ser representada como uma instância de múltiplas ordens espaciais e temporais que se às vezes cruzam a fronteira entre o online e off-line” (HINE, 2000, p. 21). Trata-se de uma pesquisa qualitativa baseada em dois arsenais ou corpos metodológicos: (a) a etnografia virtual por meio da qual o pesquisador imergiu no ambiente virtual em questão, ou seja, o aplicativo baseado na localização denominado Grindr, observando o setting virtual e explorando as descrições e informações expostas nos perfis dos usuários que acessavam o aplicativo na zona urbana de Porto Velho; (b) a realização de entrevistas individuais presenciais e semi-estruturadas (in depth interviews) com usuários do aplicativo que residem na zona urbana de Porto Velho. Os avanços tecnológicos e a expansão das comunicações mediadas digitalmente, como fenômenos, são considerados um agente potencial de transformações socioculturais que repercutem sobre as relações construídas na póscontemporaneidade (HINE, 2000). Tais efeitos podem ser evidenciados tanto no mundo virual (online) quanto no real (offline) Haja vista as vicissitudes socioculturais, comunicacionais e relacionais propulsionadas no bojo das transformações sóciotecnológicas que a póscontemporaneidade vivencia incessantemente, a etnografia virtual ou digital se consolida como uma possibilidade metodológica plausível para o estudo das práticas, subculturas e relações que se constroem na Internet e as formas através das quais esta tem influenciado o cotidiano dos seres humanos, em diferentes aspectos (HINE, 2000; SANTANAELLA, 2004). Nota-se, nesse sentido, que o advento e a evolução da Internet; vista simultaneamente como uma cultura propriamente dita (o ciberespaço) e como artefato ou produto cultural; não só caracterizam os protótipos principais do contexto tecnossocial contemporâneo, mas também apresentam um desafio conspícuo para a compreensão dos métodos de pesquisa (HINE, 2000). Segundo Hine (2000), o impacto revolucionário da Internet se deve à capacidade de facilitar a comunicação entre as pessoas através da transmissão de

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informações entre computadores, ipads, smartphones, entre outros aparelhos digitais e/o eletrônicos. Tal transmissão abreviada e rápida de informações, assim como outros avanços tecnológicos, exerceu implicações culturais drásticas sobre a experiência do espaço e do tempo (KERN, 1983; HINE, 2000). O ciberespaço, como produto do avanço tecnológico, e as consequentes transformações socioculturais que potencializa, constituem um campo fértil para o desenvolvimento de estudos que abordem as relações, comunidades e práticas cotidianas que florescem em torno da Internet (GRINT; WOOLGAR,1997; HINE, 2000), seja em sites, bate-papos, redes sociais ou os aplicativos baseados na localização como o Grindr. Além disso, tais estudos em torno do ciberespaço facilitam a compreensão sobre como o sujeito experimenta e administra as fronteiras entre o real (online) e o virtual (off-line) (RACHEL, 1995; LÉVY, 1996/2014; HINE, 2000). Segundo Hine (2000, p. 13), a etnografia voltada a Internet, ou seja, a etnografia virtual ou digital é a metodologia ideal para o estudo das questões supracitadas, pois “[...] pode servir para explorar as complexas interrelações existentes entre as asserções que se vaticinam sobre as novas tecnologias em diferentes contextos. ” Através de uma etnografia virtual, o pesquisador pode observar detalhadamente as formas através das quais se experimenta o uso de uma tecnologia (HINE, 2000). Conforme a autora, a etnografia digital ou virtual favorece a abertura de novas conjecturas para a compreensão do ciberespaço e das relações que ali se constituem, enfatizando os significados que os usuários atribuem às suas capacidades interativas, às repercussões da Internet (neste caso das mídias digitais) sobre as relações sociais espaço-temporais e às barreiras entre a experiência do virtual e do real físico (HINE, 2000; SANTANAELLA, 2004). Considerando os objetivos do estudo e a natureza virtual dos aplicativos baseados na localização voltados aos homens que buscam por relações homodesejantes, destaca-se que a etnografia virtual, através da imersão do pesquisador no ambiente virtual em questão, se consolida como um dos aparatos metodológicos mais ideais para abordar como as demandas intransigentes em relação à masculinidade hegemônica e os consequentes discursos e atitudes efeminofóbicas



existentes

entre

homens

que

buscam

por

relações

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homodesejantes, se replicam na plataforma digital, haja vista a dissolução das barreiras entre o real e o virtual. Além disso, os pressupostos da etnografia virtual favorecem a exploração das implicações sociais e espaçotemporais que o advento dos aplicativos baseados na localização exerce sobre as relações homodesejantes mediadas digitalmente, possibilitando uma leitura das nuances subjetivas que regem essas relações na interface online-offline no contexto sociocultural e geográfico da zona urbana de Porto Velho. Nesse sentido, cabe frisar que, desde a origem desse arcabouço metodológico, tanto os etnógrafos tradicionais como os virtuais têm enfatizado que a etnografia não se trata de um protocolo, guia ou “receita pronta de bolo”, pois não se pode dissociá-la do espaço de aplicação, nem do sujeito que a desenvolve (HINE, 2000; GUIMARÃES, 2005). “A metodologia de uma etnografia é inseparável do contexto onde se desenvolve e por isso a consideramos desde uma perspectiva adaptativa que se flexiona precisamente ao redor do método”. (HINE, 2000, p. 23). É justamente esse caráter moldável da etnografia virtual que tanto nos permite adequá-la às particularidades da interface entre o espaço virtual abordado e do espaço geográfico onde os usuários se encontram de fato inseridos, como nos possibilita levar em consideração os fatores sociais, históricos e culturais que têm permeado as vivências e relações dos homens que buscam por relações homodesejantes. É importante ressaltar que o uso da etnografia virtual para a compreensão das relações mediadas digitalmente traz à tona um problema de autenticidade uma vez que é quase impossível determinar a fidedignidade das afirmações expostas em ambientes virtuais e a identidade dos respectivos autores (HINE, 2000). Portanto, optou-se por aliar a experiência etnográfica digital do pesquisador à realização de entrevistas individuais presenciais e semi-estruturadas com homens residentes na zona urbana de Porto Velho-RO que usam ou já usaram o aplicativo baseado na localização em questão. Vê-se, nesse sentido, que o caráter presencial das entrevistas garante maior autenticidade e aproximação das experiências pessoais de cada entrevistado em comparação à realização das entrevistas a partir de um simples bate-papo na ferramenta de mensagens disponibilizada pelo aplicativo.

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Faz-se necessário destacar que esse acoplamento metodológico entre a etnografia virtual online e as entrevistas individuais off-line favorece a interação realvirtual do pesquisador tanto com as ferramentas disponibilizadas pelo aplicativo como com os usuários que se dispuseram a participar das entrevistas, considerando que o Grindr é um aplicativo baseado na localização voltado a homens que buscam por relações afetivas, amistosas, eróticas ou sexuais com outros homens e seu poder de triangular usuários a base da proximidade geográfica indica que um dos seus principais fins é transformar interações virtuais (online) em relações no campo físico-real (off-line). 6.3 LOCAL DO ESTUDO E SUJEITOS DA PESQUISA 6.3.1 Pesquisando online: A imersão no Grindr As informações da pesquisa foram coletadas em dois ambientes diferentes, sendo um virtual/digital (online) e outro físico (off-line). Tendo em vista que o temapivô desse estudo são as relações homodesejantes mediadas pelo Grindr e como nele se replicam as exigências intransigentes em relação à masculinidade hegemônica e discrição bem como as atitudes e discursos de aversão direcionados ao não-enquadramento nas normas imposta pelo status quo heteronormativo e machofascista, o primeiro local do estudo foi a própria plataforma digital em questão. É através do uso do Grindr que o pesquisador pôde levantar considerações tanto acerca da estrutura e do funcionamento do aplicativo quanto acerca do perfil dos usuários do Grindr no contexto regional de Porto Velho-RO. Através do aplicativo também, o pesquisador-mestrando pôde divulgar a pesquisa e os seus respectivos objetivos e convidar alguns usuários para a possível participação das entrevistas individuais face-a-face -parte da pesquisa desenvolvida off-line. 6.3.2 Pesquisando offline: Local e sujeitos das entrevistas individuais As entrevistas individuais e presenciais (off-line) foram realizadas nas salas de entrevista do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR), pois se configura como um ambiente silencioso, neutro e sem interferências, o que ajudou o entrevistado a conquistar maior credibilidade e confiança por parte do entrevistador. Além disso, trata-se de uma clínica-escola

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vinculada ao Departamento de Psicologia (DEPSI), cuja meta é viabilizar pesquisa, extensão e atendimento à comunidade. O SPA-UNIR é localizado na zona central da cidade de Porto Velho-RO, sendo, portanto, de fácil acesso aos colaboradores, independentemente das zonas ou bairros onde residem. A importância de um setting diferenciado para a condução de entrevistas foi destacada por Zago (2003) ao passo que a credibilidade foi apontada por Szymanski et al (2002) como aspecto central da interação face-a-face que caracteriza a entrevista reflexiva. Foram entrevistados 10 homens que faziam uso intermitente ou contínuo do Grindr por uma duração de pelo menos três meses. Como critério de inclusão, os participantes deviam necessariamente ter no mínimo uma idade igual ou maior a 18 anos, sem uma idade máxima pré-estipulada. Cabe frisar, nesse sentido, que o aplicativo só permite a criação de perfis por homens que se declaram maiores de idade, fato que facilitou, de forma ou de outra, filtrar os prospectivos colaboradores de acordo com esse critério. Destaca-se, além disso, que os participantes da etapa off-line da pesquisa deviam obrigatoriamente ser residentes da zona urbana de Porto Velho- RO. Ressalta-se, desta forma, que o aplicativo oferece as ferramentas necessárias para garantir que os prospectivos colaboradores fossem de fato residentes da zona urbana de Porto Velho-RO, uma vez que os perfis de usuários que estavam “de passagem” na cidade desapareciam da tela do pesquisador quando retornavam às suas respectivas cidades. A participação dos colaboradores teve caráter voluntário e não-remunerado, o que foi esclarecido já nos primeiros contatos virtuais via o aplicativo e posteriormente assegurado mediante a assinatura dos Termos de Consentimento Livres e Esclarecidos (TCLEs). 6.4 PROCEDIMENTOS Assim como a etnografia tradicional, a virtual exige a presença do pesquisador e a observação in loco (HINE, 2000; GUIMARÃES,2005). Considerando

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o caráter virtual do Grindr, a primeira etapa da pesquisa se constituiu na imersão do pesquisador na plataforma digital como usuário comum do aplicativo. Nesse sentido, a etnografia virtual- como arsenal metodológico- permitiu ao pesquisador imergir no campo virtual no qual se encontrariam os participantes das entrevistas individuais (etapa off-line da pesquisa). Isso implicou baixar o aplicativo no smartphone do pesquisador-mestrando e criar uma conta para que possa explorar o aplicativo, acessá-lo diariamente, fazer observações acerca do ambiente virtual que constitui o objeto-pivô da pesquisa, manter contatos iniciais online com os usuários e trocar mensagens com aqueles que o acessavam dentro da zona urbana de Porto Velho e registrar os nomes de exibição e descrições de perfil por meio de screenshots ou printscreens. Nesse sentido, o pesquisador se torna um informante reflexivo e não um mero observador participante do grupo sob observação, ou seja, usuários online do aplicativo Grindr na plataforma digital. Conforme Anderson (2006), a etnografia ou autoetnografia em um ambiente virtual é um paradigma naturalístico de pesquisa por meio do qual o pesquisador se torna um membro do grupo estudado, apresenta reflexividade analítica, dialoga com outros informantes na comunidade e se faz visível no texto produzido. Nota-se que diferentes estratégias de etnografia e auto-etnografia virtuais já foram utilizadas por pesquisadores cujas pesquisas visavam abordar as relações homodesejantes mediadas virtualmente (MISKOLCI, 2009, 2013, CROOKS, 2013; BLACKWELL et al, 2015). Tais experiências serviram como pilares para a própria experiência do pesquisador, sem eliminar o caráter flexível e singular característico de cada etnografia, seja tradicional ou virtual (HINE, 2000). Como parte da etnografia virtual, foram realizados registros fotográficos (do tipo print screen ou screenshots) de 64 descrições de perfil de usuários do Grindr a partir das navegações do próprio pesquisador-mestrando no aplicativo dentro da zona urbana de Porto Velho- Rondônia. Cabe frisar que tais descrições são visíveis para qualquer pessoa que acesse o aplicativo nas proximidades.

79

O print screen é um recurso existente em basicamente todos os aparelhos com sistema Android ou ios e permite registrar fotograficamente tudo aquilo que aparece na tela do celular em um dado momento. Assim, quando o pesquisador se deparava com descrições de perfil cujo conteúdo se associa a demanda da pesquisa, ele apertava e mantinha pressionado, simultaneamente, o botão de desligar o aparelho e o botão para diminuir o volume, efetuando, portanto, um registro fotográfico para posterior análise. Após a imersão do pesquisador no ambiente virtual e um período de observações in loco e conversas informais com diferentes usuários que acessavam o aplicativo na zona urbana de Porto Velho-RO, o pesquisador editou seu perfil pessoal e registrou seu nome de exibição do perfil como “Pesquisa”. Na parte da descrição de perfil intitulada “Sobre Mim”, o pesquisador registrou o seguinte comunicado: “Estou desenvolvendo uma pesquisa sobre o Grindr. Para maiores informações, me enviem uma mensagem”. Assim, foi enviado um convite formal para a participação na etapa das entrevistas individuais para todos aqueles que demonstraram interesse por meio de mensagens pessoais ao pesquisador dentro do aplicativo. Evitou-se o envio do convite para todos os usuários, uma vez que o aplicativo podia confundir o envio repetitivo da mesma mensagem com uma corrente e, portanto, cancelar a conta do pesquisador, medida prevista pelos termos de uso da plataforma digital em questão. O convite enviado aos usuários interessados apresentava os critérios para a escolha dos prospectivos colaboradores na etapa off-line da pesquisa.

Nesse

sentido, a mensagem de convite explicitou que as entrevistas seriam realizadas com homens acima de 18 anos de idade que fazem uso contínuo ou intermitente do Grindr, por um período de pelo menos três meses na zona urbana de Porto VelhoRO e que residem, de fato, nessa região. O pesquisador, então, informou seu número de telefone àqueles que se enquadravam nos critérios supracitados a fim de combinar a data e o horário da entrevista bem como enviar a localização prevista por meio do aplicativo whatsapp, garantindo, portanto, maior facilidade, agilidade e confiabilidade, uma vez que o whatsapp, ao contrário do Grindr, informa os usuários sempre que recebem mensagens mesmo que estejam off-line.

80

A entrevista é uma das pedras angulares e fontes mais ricas para a obtenção de dados em pesquisas qualitativas. Apesar da existência de outras formas de coleta de dados como a observação e a aplicação de questionários, acredita-se que nenhuma pesquisa é tão completa quanto aquela que faz uso de entrevistas tête-atête com os colaboradores. A entrevista é permeada pelo dito, pela linguagem pronunciada e, portanto, pela escuta. Longe do estabelecimento de qualquer relação de poder ou superioridade entre o entrevistador e o entrevistado, o caráter sincrônico da relação entre o pesquisador que indaga e escuta e o colaborador que fala e responde, mas também questiona torna a entrevista uma das etapas-pivô de inúmeras pesquisas qualitativas. As entrevistas individuais e semiestruturadas foram pautadas sobre os pressupostos da entrevista reflexiva apresentados por Szymanski (2002) e da entrevista compreensiva, preconizados por Zago (2003). Szymanski (2002) se debruça acerca dos aspectos psicológicos que permeiam a condução da entrevista reflexiva, principalmente no que se refere à interação entre o entrevistador e o colaborador. As autoras veem a entrevista reflexiva como produto de uma interação social, de uma relação face-a-face. Portanto, tanto a entrevista como o material que dela emerge é influenciada pelas nuances subjetivas suscitadas por essa interação. Partimos da constatação de que a entrevista face a face é fundamentalmente uma situação de interação humana, em que estão em jogo as percepções do outro e de si, expectativas, sentimentos, preconceitos e interpretações para os protagonistas: entrevistador e entrevistado (SZYMANSKI, 2002, p. 12).

Essa interação/influência mútua e bidirecional entre pesquisador e entrevistado é condição sine qua non para que uma entrevista reflexiva se configure como tal. “Não podemos deixar de considerar o entrevistado como tendo um conhecimento do seu próprio mundo, do mundo do entrevistador e das relações entre eles” (SZYMANSKI, 2002, p. 13). Embora seja o pesquisador que propõe o tema da pesquisa e constrói o roteiro da entrevista, não se pode de forma alguma negligenciar o papel central que o entrevistador exerce no decorrer de uma entrevista.

81

Conforme Szymanski (2002), o processo de entrevista abrange também uma série

de

questões

que

podem

ser

esclarecedoras,

focalizadoras

ou

de

aprofundamento. Além disso, a autora (2002) enfatizou a relevância de conduzir um trabalho de devolução após a transcrição das entrevistas, durante a qual o entrevistado possa ter acesso às informações produzidas durante as entrevistas anteriores. Conforme Zago (2003), a realização de uma entrevista compreensiva, ou seja, reflexiva é condição indispensável para favorecer a compreensão do contexto social no qual os colaboradores se encontram inseridos. Sendo assim, Zago (2003) explora a relação inseparável entre entrevista e observação, destacando a escolha do local da pesquisa e da condução da entrevista como um fator relevante para o desenvolvimento da pesquisa. A autora (2003) também destacou o caráter fundamental do uso de um gravador no trabalho com entrevistas, sem negligenciar a indispensabilidade de uma negociação prévia com o colaborador. Tal negociação com o colaborador vem ao encontro de uma série de aspectos relacionais e interacionais que permeiam a relação entrevistadorinformante como também apontou Szymanski (2002). Conforme Zago (2003), a entrevista é uma relação social singular, pois exige acima de tudo, o estabelecimento de uma relação de confiança. “A entrevista expressa realidades, sentimentos e cumplicidades que um instrumento com respostas estandardizadas poderia ocultar, evidenciando a infundada neutralidade científica daquele que pesquisa” (ZAGO, 2003, p. 301). Outros aspectos cruciais para a condução de entrevistas que a autora (2003) destacou são a organização e a dinâmica de uma entrevista. Nesse sentido, destaca-se a importância de organizar uma entrevista compreensiva de forma flexível, mas sem perder de vista os objetivos da pesquisa. Essa flexibilidade destacada por Zago (2003) deve caracterizar não apenas o roteiro da entrevista mas também o tempo da entrevista, sempre levando em consideração as singularidades dos colaboradores e evitando a manipulação dos dados pelo pesquisador. Conforme destacado anteriormente, a etnografia virtual foi utilizada para manter contatos iniciais online com os prospectivos colaboradores e após conquistar

82

a confiança necessária, propor a participação em uma outra etapa da pesquisa em um ambiente físico, não-virtual, off-line adequado para a realização de entrevistas individuais no âmbito das pesquisas qualitativas. Assim, foram realizadas entrevistas com 10 colaboradores- número previsto no projeto de pesquisa que originou este manuscrito. A duração de cada entrevista não foi pré-estipulada, pois isso depende sobretudo dos conteúdos e experiências compartilhadas por cada sujeitoparticipante. Assim, a duração das entrevistas desenvolvidas variou entre 40 e 90 minutos, respeitando as particularidades e fluxo discursivo de cada colaborador. A variação do tempo de duração de uma entrevista foi apontada por Zago (2003). Conforme a autora,“ [...] o encontro com o entrevistado se amplia para além do que foi previsto, produzindo uma conversação rica em detalhes. Por isso, o tempo de duração de cada entrevista de tipo qualitativo é variável” (ZAGO, 2003, p. 304). Para facilitar a posterior análise final dos dados, primou-se pela realização das entrevistas com o uso de gravador mediante o consentimento dos colaboradores cujo sigilo, privacidade e anonimato foram asseguradas pelos Termos de Consentimento Livres e Esclarecidos (TCLEs) Nesse sentido, Zago (2003) apontou que escutar a entrevista e transcrevê-la é um procedimento significativamente importante para o andamento da pesquisa, pois permite além de tudo um olhar crítico e reflexivo por parte do “pesquisador”. Citando Szymanski (2002, p. 74): A transcrição é a primeira versão escrita do texto da fala do entrevistado que deve ser registrada, tanto quanto possível, tal como ela se deu. Ao escrever faz-se um esforço no sentido de passar a linguagem oral para a escrita, ou seja, há um esforço de tradução de um código para outro, diferentes entre si. (SZYMANSKI, 2002, p.74).

Após os procedimentos de transcrição e análise, foi realizada uma entrevista com cada colaborador no intuito de compartilhar o material colhido. A devolução em forma de entrevista é de extrema importância, pois conforme Szymanski (2002), a devolução serve tanto para a aprovação da compreensão do pesquisador como para ampliação de suas colocações anteriores. Trata-se da exposição posterior da compreensão do entrevistador sobre a experiência relatada pelo entrevistado, e tal procedimento pode ser considerado como um cuidado em equilibrar as relações de poder na situação de pesquisa (...) Podem ser apresentadas a transcrição da entrevista e a pré-análise para consideração do entrevistado. O sentido de apresentar-se esse material decorre da consideração de que o entrevistado deve ter acesso à interpretação do entrevistador, já que ambos produziram

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um conhecimento naquela situação específica de interação. A autoria do conhecimento é dividida com o entrevistado, que deverá considerar a fidedignidade da produção do entrevistador. (SZYMANSKI, 2002, p. 52).

Levando em consideração os apontamentos de Zago (2003) e os objetivos da pesquisa, preconizou-se a realização de entrevistas semi-estruturadas de maneira aberta. Conforme Bleger (1984), essas se caracterizam pela ampla liberdade do entrevistador-pesquisador em perguntar e fazer intervenções. Tal roteiro semi-estruturado é condição sine qua non para garantir a interação face-aface que é característica central da entrevista reflexiva conforme apontado por Szymanski (2002). Sendo assim, um roteiro de cosignas disparadoras foi elaborado no intuito de assegurar que os sujeitos se expressassem livremente através da fala, mas ao mesmo tempo os conduziam a falar sobre assuntos relevantes ao tema da pesquisa. Trata-se de perguntas curtas e abertas que remetiam a aspectos relevantes ao tema-pivô da pesquisa cujo conjunto constitui o roteiro semiestruturado da entrevista construído em prol dos objetivos da pesquisa, conforme exposto no Apêndice E. Na entrevista reflexiva, os objetivos da pesquisa serão a base para a elaboração da questão desencadeadora, que deverá ser cuidadosamente formulada. Ela deve ser o ponto de partida para o início da fala do participante, focalizando o ponto que se quer estudar e, ao mesmo tempo, amplia o suficiente para que ele escolha por onde quer começar. Com isso, já teremos um direcionamento das reflexões do entrevistado, ao qual será oferecido, inicialmente, um tempo para a sua expressão livre a respeito do tema que se quer investigar. A questão tem por objetivo trazer à tona a primeira elaboração, ou um primeiro arranjo narrativo que o participante pode oferecer sobre o tema introduzido. (SZYMANSKI, 2002, p. 24).

Os entrevistados tinham o livre direito de interromper as entrevistas a qualquer momento. Este direito foi assegurado também mediante a assinatura de duas vias do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), facilitando ainda mais o processo de instauração de credibilidade e confiança indispensáveis na interação face-a-face entre entrevistador e colaborador (SZYMANSKI, 2003). Portanto, foram adotados os cuidados necessários durante as entrevistas para a promoção de um clima mais favorável e sem empecilhos frente à fala dos entrevistados e escuta atenta e respeitosa do pesquisador-mestrando. Nesse sentido, Zago (2003) ressaltou que “[...] em vez de se deixar paralisar pela noção de neutralidade, o pesquisador deve estar preocupado em obter a confiança do entrevistado,

condição fundamental na situação

da entrevista

e

de

sua

84

produtividade” (p. 302). Após a transcrição das entrevistas de forma integral, os principais dados dos colaboradores foram organizados no quadro a seguir. É importante ressaltar que tanto os nomes citados na tabela a seguir quanto aqueles que aparecem no anexo são nomes fictícios escolhidos pelos próprios colaboradores no intuito de resguardar o sigilo e o anonimato assegurados mediante a assinatura do TCLE.

Tabela 1-Síntese de dados dos participantes das entrevistas

Nome Fictício

Idade

Estado Civil

Lucas

24

Solteiro

Abelardo

26

Solteiro

Francisco

19

Solteiro

Oséias

30

Solteiro

Caio

21

Solteiro

Enrique

37

Casado

Ricardo

24

Solteiro

Théo

26

Solteiro

Emanuel

18

Solteiro (namorando)

Oswald

36

Solteiro (namorando)

Fonte: Material produzido pelo autor a partir de dados coletados na pesquisa.

85

6.5 ANÁLISE Szymansky (2002) e Zago (2003) apontaram o caráter essencial da entrevista reflexiva e compreensiva no âmbito da pesquisa qualitativa. No entanto, os dados obtidos através da realização de entrevistas ou das observações in loco online só se tornam válidos e úteis a partir do momento que são analisados pelo pesquisador. Nesse sentido, Minayo (2008) caracteriza a análise final de dados como um “movimento circular, que vai do empírico para o teórico e vice-versa” (p. 358). Compreende-se que é justamente nessa etapa que o pesquisadormestrando é capaz de organizar e relacionar os conhecimentos empíricos que obteve durante a realização e transcrição de entrevistas e os conhecimentos teóricos que obteve durante a leitura de livros, artigos e produções científicas referentes ao tema-pivô da pesquisa. Citando Bogdan e Biklen (1994, p.205): A análise de dados é o processo de busca e de organização sistemático de transcrições de entrevistas, de notas de campo e de outros materiais que foram sendo acumulados, com o objetivo de aumentar a sua própria compreensão desses mesmos materiais e de lhe permitir apresentar aos outros aquilo que encontrou. A análise envolve o trabalho com os dados, a sua organização, divisão em unidades manipuláveis, síntese, procura de padrões, descoberta dos aspectos importantes e do que deve ser aprendido e a decisão sobre o que vai ser transmitido aos outros.

Minayo (2008) apresentou três diferentes caminhos (técnicas) que podem ser seguidos para a análise final de dados em pesquisas de cunho qualitativo como a proposta aqui: (a) A análise de conteúdo, (b) A análise de discurso e (c) A Hermenêutica Dialética. A autora aponta que a técnica mais utilizada no âmbito do tratamento de material de uma pesquisa qualitativa é a análise de conteúdo. Portanto, para a organização e sistematização dos materiais acumulados ao longo da pesquisa, seja através da experiência etnográfica virtual seja através das entrevistas, foram adotados os procedimentos da análise de conteúdo com ênfase na temática conforme preconizada por Bardin (1979/2012). Estes apresentam um arcabouço teórico-metodológico e analítico sólido para levantar novas considerações acerca das relações homodesejantes mediadas pelo Grindr a partir do diálogo entre a literatura existente e o material empírico obtido das observações etnográficas e as entrevistas com os colaboradores, ressaltando a disseminação de exigências

86

intransigentes em relação à masculinidade hegemônica e as atitudes aversivas contra os sujeitos que não se enquadram nesse padrão machofascista socialmente imposto, ambas as quais subjazem as relações homodesejantes na póscontemporaneidade, seja online ou off-line. Bogdan e Biklen (1994) dividem a análise de dados em duas etapas: (a) a análise no campo de investigação e (b) a análise após a coleta de dados. Para essas pesquisadoras (1994), o processo de análise de dados não se inicia após a saída do pesquisador do campo de investigação. Pelo contrário, tal análise faz parte intrínseca do processo de coleta de dados, engatinha durante o levantamento de conhecimentos teóricos e dá seus primeiros passos durante a observação e realização de entrevistas para a coleta de material empírico. Nesse sentido, Bogdan e Bilken (1994) aludem que uma análise astuta durante a coleta de dados é condição sine qua non para a operacionalização de uma análise final de dados com êxito. “Quanto mais dados tiver sobre um tópico, contexto ou grupo de sujeitos específico, mais fácil será pensar aprofundadamente sobre ele e maior será a probabilidade de ser produtivo quando realizar a análise final.” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 207-208). Desta forma, enfatizou-se a importância de escrever uma grande quantidade de “comentários do observador” acerca das ideias que surgem para o pesquisador seja durante a etnografia proposta ou a realização das entrevistas individuais. Nesse sentido, Minayo (2008) ressaltou que a escrita de uma grande quantidade de anotações, observações e memorandos do pesquisador auxiliam no processo de análise final dos dados, pois esses mesmos se transformam em material qualitativo a ser analisado. Esse material certamente facilitou o processo de análise final de dados, e promoveu a categorização de temáticas para a análise. Conforme Minayo (2008), a análise de conteúdo não é meramente fruto de pressupostos técnicos e metodológicos, mas resultado de uma histórica busca teórica e prática no campo das investigações sociais. Com base nas definições apresentadas por Bardin (1979/2011), Minayo (2008) relaciona a análise de conteúdo a “[...] técnicas de pesquisa que permitem tornar replicáveis e válidas inferências sobre dados de um determinado contexto, por meio de procedimentos

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especializados e científicos. Em comum, as definições ressaltam o processo de inferência.” ( p. 303). Além disso, Minayo (2008) apontou que a análise de conteúdo como técnica de análise de dados traz em seu bojo uma lógica semelhante às metodologias quantitativas, pois busca a interpretação cifrada do material qualitativo. Não obstante, a técnica de análise de conteúdo dá ênfase ao conteúdo manifesto ou latente das comunicações e concede uma relevância às regularidades da fala, sua análise léxica e à significação. Nesse sentido, Minayo (2008) apontou que “historicamente a Análise de Conteúdo clássica tem oscilado entre o rigor da suposta objetividade dos números e a fecundidade da subjetividade” (p. 304). Nota-se que Minayo (2008) enfatizou a análise temática ou análise de conteúdo com ênfase na temática postulada por Bardin (1979/2011) por ser a mais adequada para o tratamento de material qualitativo quando se utiliza a análise de conteúdo no âmbito de pesquisas qualitativas nas áreas das ciências sociais e humanas. A análise temática de conteúdo proposta por Bardin (1979/2011) se consolida sobre um conjunto consistente de técnicas e procedimentos teóricopráticos e metodológicos. Nesse sentido, Minayo (2008) ressaltou os diferentes passos que compõem uma análise temática. A autora apontou que é preciso primeiramente descobrir os núcleos de sentido dentro de um texto, comunicação ou transcrição cuja presença signifique algo para o tema-pivô da pesquisa. Conforme Bogdan e Biklen (1994), um passo essencial para a análise final de dados se refere à criação de uma lista de categorias de codificação após a coleta dos dados. Ao abordarem a análise após a coleta de dados, Bogdan e Biklen (1994) se debruçaram especifica e detalhadamente sobre o desenvolvimento de diferentes categorias de codificação. “As categorias constituem um meio de classificar os dados descritivos que recolheu (...) de forma que o material contido num determinado tópico possa ser fisicamente apartado dos outros dados” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 221). Com base nos pressupostos de Bardin (1979/2011), Minayo (2008) apresentou as três etapas que constituem a análise de conteúdo com base na temática:

88

(a)

A pré-análise que se desdobra na escolha dos documentos a serem

analisados, a leitura flutuante, a constituição de um corpus do material a partir dos critérios de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência, a formulação e reformulação de hipóteses e objetivos e a determinação das unidades de registro e de contexto, os recortes, a forma de categorização, a modalidade de codificação e os conceitos teóricos gerais que orientarão a análise. (b)

A exploração do material na qual o pesquisador busca encontrar

categorias a partir de expressões ou palavras significativas no bojo do texto (transcrições de entrevistas e outros tipos de material qualitativo) e, portanto especifica os temas e realiza a classificação e associação relacional dos dados coletados. (c)

O tratamento e interpretação dos resultados obtidos através da qual os

resultados são sistematizados, interpretados e associados ao arcabouço teórico inicialmente sugerido, abrindo novas conjecturas para a compreensão do material coletado e do tema-pivô da pesquisa. Destaca-se, nesse sentido, a relevância de criar tais categorias temáticas com base nos objetivos da pesquisa e na leitura exaustiva dos depoimentos transcritos dos colaboradores e do material colhido no decorrer da etnografia virtual. É crucial destacar que a análise de dados requer um vai-e-volta inevitável aos objetivos da pesquisa conforme apontado por Minayo (2008) pois de acordo com Bogdan e Biklen (1994), esta se inicia já nos primeiros passos de uma investigação qualitativa. A contemplação de todos os objetivos da pesquisa é condição sine qua non para uma próspera análise de dados. Trata-se um consenso entre a maioria dos autores que se debruçam acerca da metodologia da investigação qualitativa como Minayo (2008) e Bogdan e Biklen (1998). Conforme Minayo (2008), o objeto de estudo, incutido nos objetivos da pesquisa, deve revestir, impregnar e entranhar todo o texto final. Além disso, nota-se que tanto a codificação quanto a análise final do material qualitativo é permeada por uma série de elementos. Nesse sentido, Bogdan e Biklen (1994) discorrem acerca dos diferentes fatores que influenciam na codificação de temas para a análise dos dados, ressaltando que as diversas abordagens teóricas dos investigadores modelam a forma como esses classificam, consideram e

89

analisam os dados. Portanto, a pluralidade das abordagens teóricas abre as portas para uma grande variedade de possibilidades de análise, demonstrando evidentemente à subjetividade inerente às pesquisas nas áreas de ciências sociais e humanas e a impossibilidade de rendê-las ao modelo positivista como já apontando por AlvesMazotti e Gewandsznadjer (1999). “Sempre que fazemos análises somos, usualmente, parte do diálogo acerca do tópico que estamos a considerar. Por isso, podemos analisar e codificar o nosso tópico de várias formas diferentes” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 232). Dito de outra forma, Minayo (2008) sintetiza que “[...] compreender implica a possibilidade de interpretar, de estabelecer relações e extrair conclusões em todas as direções. Mas compreender acaba sempre sendo compreender-se” (p. 337). 6.6 PROCEDIMENTOS ÉTICOS O projeto que originou este manuscrito foi cadastrado na Plataforma Brasil sob o título “ Desejo no Bolso: Um Olhar Psicanalítico sobre as relações homodesejantes mediadas pelo Grindr” e consequentemente recebido pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Universidade Federal de Rondônia (CEP/UNIR) no dia 02 de abril de 2016 (CAAE: 54787816.9.0000.5300), como se observa no Apêndice F. O projeto recebeu parecer favorável à aprovação no dia 02 de maio de 2016 (Número do parecer: 1.524.096), como se observa no Apêndice G. As entrevistas foram, portanto, realizadas entre julho e setembro de 2016. Todas as pesquisas que envolvem seres humanos, seja de forma direta ou indireta; individual ou coletiva; englobando o manejo de informações ou materiais, são regulamentadas pelo Conselho Nacional de Saúde por meio da Resolução 466/2012 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Conforme a referida resolução, a submissão de todos os projetos deste tipo aos Comitês de Ética em Pesquisa é condição sine qua non para o desenvolvimento das respectivas pesquisas. De acordo com as diretrizes da CONEP, as pesquisas desenvolvidas com seres humanos devem se comprometer com a ética de pesquisa e demonstrar respeito à dignidade humana no intuito de preservar a integridade

90

física e psíquica dos sujeitos que nela participam e do meio no qual se encontram inseridos. Nesse sentido, primou-se pelo uso de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLEs) assinados pelo pesquisador-mestrando, pela orientadora e pelos colaboradores a serem entrevistados. Além disso, a CONEP apontou que as pesquisas só podem ser desenvolvidas em casos nos quais o risco justifique os benefícios esperados. Supõe-se que a pesquisa desenvolvida não exerça riscos conspícuos sobre a integridade física e psíquica dos colaboradores entrevistados. Conforme destacado anteriormente, riscos referentes à privacidade e sigilo dos participantes foram amenizados mediante a assinatura dos TCLEs e mediante o uso de nomes fictícios em qualquer produção que abranja a utilização do material qualitativo proveniente das entrevistas realizadas. Conforme a CONEP, é imprescindível desenvolver as pesquisas com pessoas que possuam capacidade de autodeterminação e sejam isentos de qualquer tipo de vulnerabilidade ou incapacidade. Nesse caso, vulnerabilidade se refere a sujeitos que por algum motivo tenham a sua aptidão de autodeterminação reduzida e incapacidade diz respeito àqueles que não tenham capacidade civil de dar seu consentimento livre e esclarecido. Portanto, a proteção àqueles que fazem parte de grupos vulneráveis ou legalmente incapazes foi garantida na pesquisa proposta, pois esta contou apenas com a participação de homens acima de 18 anos que buscam por relações homodesejantes por meio de um aplicativo baseado na localização- o Grindr. Sendo assim, destaca-se que os sujeitos da pesquisa eram capazes e possuíam plena lucidez e estabilidade mental e emocional. A preservação do sigilo foi prezada através do uso de nomes fictícios e a não revelação de informações que possam direta ou indiretamente remeter à identidade dos colaboradores.

91

7 “PAREÇA HETEROSSEXUAL”, MESMO QUE NÃO SEJA: DISCUSSÕES E REFLEXÕES VIADAS “Quem está fora do padrão normativo, está sujeito a ser julgado. É como se o que está dentro do padrão normativo é gente e o resto é resto” (Théo, 26 anos). Nesta seção, visa-se levantar considerações e tecer reflexões acerca das diferentes formas e tipos de expressões e discursos através dos quais a abjeção do efeminamento e a imposição dos ideais de masculinidade hegemônica se manifestam nas relações homodesejantes mediadas pelo Grindr dentro do contexto social de Porto Velho- cidade na qual o pesquisador imergiu no ambiente virtual do aplicativo e realizou as entrevistas com os colaboradores. As reflexões apresentadas a seguir são baseadas em um entrelaçamento entre as observações realizadas pelo pesquisador-mestrando durante a imersão etnográfica no Grindr, pautando-se sobretudo nos registros fotográficos de diferentes descrições de perfil dos usuários que rodavam o aplicativo na zona urbana em questão, e a leitura e análise das entrelinhas das entrevistas realizadas com dez usuários do Grindr que residem em Porto Velho e aceitaram participar voluntariamente da etapa off-line da pesquisa. As reflexões aqui tecidas serão permeadas por contribuições da teoria viada, apropriando-se, sobretudo, das noções de performatividade de gênero e da abjeção de corpos que põem em xeque as normas binárias impostas pelo patriarcado e pela matriz heterossexual. Embora as entrevistas abordassem diferentes aspectos do uso do Grindr como as vicissitudes da virtualização sobre as relações homodesejantes, razões que levaram os colaboradores ao uso do aplicativo, prazeres e desprazeres que vivenciaram e vivenciam mediante a utilização da plataforma, as reflexões serão direcionadas a partir dos objetivos anteriormente apresentados da investigação, dando ênfase, portanto, aos discursos efeminofóbicos e à propagação dos ideais de masculinidade hegemônica que pervagam aplicativos como o Grindr e as relações homodesejantes como um todo, conforme já destacado em outras pesquisas (TAYWADITEP, 2001; LANZIERI; HILDERBRANDT, 2011; ANNES; RIDLES, 2012; MISKOLCI, 2013, 2015, 2017; MILLER, 2015; RACE; 2015). Por motivos didáticos, as reflexões viadas expostas nesta seção

são

divididas em quatro subseções oriundas do entrelaçamento entre as leituras das

92

descrições de perfil selecionadas e as entrevistas transcritas com os colaboradores, facilitando,

portanto

o

levantamento

de

considerações

acerca

do

ethos

machofascista e heteronormativo que rege as relações homodesejantes mediadas pelo Grindr e a abjeção dos corpos falantes que avassalam e põem em xeque os princípios e normas impostas por tal ethos. Os títulos das subseções foram inspirados por trechos das descrições de perfil analisadas ou das entrevistas semiestruturadas com os colaboradores. Na primeira subseção denominada “ ‘Fora afeminados’: as diferentes facetas da efeminofobia no Grindr”, visa-se abordar algumas das expressões explicitas e implícitas da abjeção contra homens efeminados ou titulares de masculinidades

marginalizadas

entre

homens

que

buscam

por

relações

homodesejantes através da plataforma digital em questão no contexto social portovelhense. Visa-se, ainda, tecer reflexões sobre a corroboração dos diversos discursos efeminofóbicos com a propagação dos ideais da masculinidade hegemônica

entre

homens

que

buscam

por

relações

homodesejantes,

considerando, a partir de uma concepção gramsciana, que a supremacia de tais ideais se mantém tanto através de discursos e atitudes efeminofóbicas e machofascistas coercivas quanto através do consentimento e da internalização desses discursos por parte daqueles que foram alegados à abjeção devido à performatização de masculinidades ou expressões de gênero não-hegemônicas. Na segunda subseção intitulada “ Festival de bíceps e tríceps: o corpo sarado como metáfora da masculinidade”, busca-se abordar a abjeção do efeminamento e as imposições hegemônicas de masculinidade em intersecção com a propagação de um modelo ideal de corpo sarado, malhado e liso- entre homens que buscam por relações homodesejantes.

Muito além das influências

pornográficas e midiáticas sobre o ideal de corpo dominante entre esses sujeitos, advoga-se, nessa subseção, que o corpo sarado e atlético é visto como símbolo máximo da masculinidade/virilidade no contexto social atual. Levando em consideração que “ser sarado” é visto como sinônimo de “ser macho (viril)”, compreende-se que as exigências em relação à corporeidade musculosa e atlética são inerentemente exigências em relação ao enquadramento nos padrões vigentes de masculinidade/virilidade. Considerando que a virilidade é concebida socialmente

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como prova suprema e até sinônimo de heterossexualidade, advoga-se, nessa subseção, que o corpo sarado não é apenas uma metáfora de “ser um homem másculo”, mas também uma metáfora de “ ser um homem heterossexual”- sujeito que ocupa as fantasias eróticas de muitos daqueles que buscam por relações homodesejantes, conforme já apontado em pesquisas anteriores (LANZIERI; HILDERBRANDT, 2011; ANNES; RIDLES, 2012; MISKOLCI, 2017). Na terceira subseção denominada “ O padrão do padrão: a masculinidade hegemônica e outras intersecções”, visa-se tecer reflexões acerca das imposições de masculinidade hegemônica e do processo de abjeção dos corpos não-conformes a essas exigências, a partir de um olhar interseccional que compreende que atributos como idade, classe social, papel sexual e raça interferem na construção e propagação dos ideais de masculinidade hegemônica entre homens que buscam por relações homodesejantes que usam aplicativos como o Grindr. Ressalta-se, nesse sentido, que o ideal atual de masculinidade hegemônica entre homens que buscam por relações homodesejantes não se pauta apenas na ausência do efeminamento e na presença de um corpo malhado, mas também em exigências que passam pelo crivo da faixa etária, da classe social, da posição sexual e da raça, entre outras intersecções. Na quarta e última subseção intitulada: “ O shopping da carne: Que corpos se vendem e que corpos se descartam? ” visa-se tecer reflexões acerca da propagação dos ideais de masculinidade hegemônica, considerando a lógica mercadológica que permeia as relações homodesejantes mediadas por aplicativos como o Grindr. Nesse ínterim, vale ressaltar que a maioria dos entrevistados fizeram comparações entre o aplicativo e um mercado de alimentos, loja virtual ou vitrine. Advoga-se, nesse sentido, que o ethos machofascista e heteronormativo leva muitos usuários a se apresentarem como se fossem produtos cuja característica mais importante é a masculinidade hegemônica. Para tanto, precisam renegar qualquer característica que remeta ao efeminamento ou ponha em xeque os atributos da masculinidade hegemônica- a característica mais vendível (desejada) no açougue de homens. Assim, proliferam perfis com fotos de corpos sarados e adjetivos como: macho, sarado, liso, puto, safado, ativo, pois quanto mais másculo o usuário parecer, mais vendível (desejado) será. Nesse açougue de carne de homens, o

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“macho sarado” é visto como a “picanha”- tipo de carne mais valorizado no mercado brasileiro- ao passo que o “magro”, o “efeminado”, o “pobre” e os que não se encaixam nos ideais de masculinidade hegemônica são vistos como os restos de carne podre a serem descartados. Antes de apresentar as reflexões, faz-se oportuno destacar que em certos momentos, as discussões das subseções acima categorizadas podem se confluir, o que é considerado inevitável uma vez que se evidencia que os discursos efeminofóbicos, as exigências referentes à masculinidade hegemônica, porte físico, classe social, papel sexual, idade e raça e o ethos sexual que permeia as relações homodesejantes mediadas pelo Grindr, giram em torno do mesmo ideal: PAREÇA HETEROSSEXUAL, MESMO QUE NÃO SEJA! 7.1 “FORA AFEMINADOS”: AS DIFERENTES FACETAS DA EFEMINOFOBIA NO GRINDR As exigências em relação à masculinidade hegemônica e a abjeção de atributos vistos socialmente como femininos entre homens que buscam por relações homodesejantes já foram apontadas em diversas pesquisas (TAYWADITEP, 2001; LANZIERI; HILDERBRANDT, 2011; EGUCHI; 2011; ANNES; REDLIN; 2012; BARRETO,

2016).

As

repercussões

desses

ideais

sobre

as

relações

homodesejantes mediadas por aplicativos baseados na localização também já foram objetos de várias investigações (CROOKS, 2013; MISKOLCI, 2013, 2015, 2016; RACE, 2015). Uma rápida análise das descrições de perfil que aparecem na plataforma digital Grindr quando rodada na zona urbana de Porto Velho corrobora com os apontamentos das pesquisas acima destacadas. A efeminofobia e a imposição de ideais da masculinidade hegemônica se manifestam dentro do aplicativo através de diferentes formas e tipos de discurso, tanto explícita como implicitamente. No entanto, antes de abordar as múltiplas facetas da efeminofobia e da imposição dos ideais de masculinidade hegemônica que permeiam as relações homodesejantes mediadas pelo Grindr, cabe frisar que a facilidade de transformar contatos online em encontros off-line é um dos principais objetivos pelos quais

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homens que buscam por relações homodesejantes lançam mão de aplicativos como o Grindr (MILLER, 2015). Portanto, faz-se atraente pensar simplesmente que a exposição da falta de interesse por homens efeminados e a preferência por homens “másculos” seja uma forma de filtrar e delimitar o perfil de pessoas com as quais certo usuário esteja disposto a falar e conhecer pessoalmente, uma vez que desperdiçaria muito tempo mantendo contato com outros usuários que não se enquadram em seu perfil erótico. Isso se evidencia nas descrições de perfis com frases simples como aquela de “TestosteronaH”, 30 anos: “Estou afinzão de curtir uma boa transar com outro camarada que não seja afeminado com pegada e que curta paradas com pura testosterona” (sic.), ou mais explicitamente na descrição de outro usuário de 21 anos que utiliza como nome de perfil o vocábulo “ Objetivo”: “ Oi+ FT ROSTO (não precisa mandar, só não chama faz fvr) DISPENSO fakes /coroas/ afeminados/ peludos /gordinhos/ ursos/ fumantes/ chatos. PREFERÊNCIA novinho/ lisinho/ macho/ discreto/ magrinho/ sarados/ passivo/ ou/ versátil” (sic). Tal busca por objetividade, através da delimitação das características desejadas em outro usuário no fito de facilitar encontros off-line, se evidencia também nas descrições de perfil com frases do tipo: “Só chama com local” ou exigências em relação à proximidade geográfica, como se observa nas descrições de “AtvoPVH”, 21 anos: “Afim agora. Só chama c/Local. Só macho. Fora afeminados!” (sic) e “TOP20cmAlpha”, 30 anos: “ Sou HETERONORMATIVO. Ñ acredito em 2o chance.ñ insista. Eu SÓ VOU TE RESPONDER COM ROSTO CLARO SEM BONÉ/ÓCULOS, CORPO E NUDES. Ñ ACEITA? Ñ FALA COMIGO. Ñ p/Casal, GP, drogado, piercing, fora do centro, +30 anos, careca, afeminado,+ 3km” (sic). Em busca de explicações para o número significante de usuários que postam descrições de perfil do tipo destacado acima, Oséias, 30 anos, um dos colaboradores entrevistados, ressaltou: “Eu acho que é um processo para não ter perda de tempo porque as pessoas querem sexo” (sic). Além disso, outro usuário entrevistado se referiu à necessidade de filtrar os parceiros em potencial segundo as próprias identificações, como se observa a seguir: “Ahh eles filtram muito. Isso é feito para afastar as pessoas que...Pois querendo ou não muitos que se encaixam ali também não gostam de gays afeminados. Eu vou ver e percebo que ele não gosta de gays afeminados,

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não gosta de gays espalhafatosos, ele não gosta disso, não gosta daquilo. Opa eu também não gosto, me identifiquei, vou conversar com ele.” (sic) (LUCAS, 24 anos).

Nesse ínterim, a opinião apresentada por Emanuel, 18 anos que também participou das entrevistas, corrobora com as razões propostas por Lucas. Segundo Emanuel, alguns usuários fazem uso de descrições de perfis com discursos excludentes para “afastar” as pessoas que não se enquadram em seu perfil erótico, como se observa no trecho a seguir: Entrevistador: Porque você acha que essas pessoas têm esse tipo de descrições? Emanuel: Sei lá, porque elas já querem afastar, entendeu? As pessoas, as pessoas que ficaram ali no meio. Afeminados ou vão ser expulsos por serem gordos. Entrevistador: E porque você acha que elas querem afastar esse tipo de pessoas? Emanuel: Porque elas não devem gostar, né? Não querem, eu sei que alguns são porque preferem não fazer, no caso, fazer sexo porque acham muito escandaloso e tal. (ENTREVISTA COM EMANUEL, 18 anos).

Longe de questionar as preferências e exigências dos usuários ou julgar as razões pelas quais decidem fazer uso de discursos excludentes nas descrições pessoais de perfil, afirma-se aqui que pairam discursos efeminofóbicos e imposições reiterada dos ideais de masculinidade hegemônica no Grindr não só a partir das contribuições de outras pesquisas, mas sobretudo, a partir da repetição exacerbada dessas exigências e preferências em vários perfis encontrados durante a incursão etnográfica e do “exagero” da recusa ao efeminado e da ditadura do “macho”, evidenciadas em algumas descrições de perfil como aquela apresentada por “Afim curte a3”, 25 anos: “só não curto caras afeminado” (sic). Destaca-se, nesse sentido, o uso da palavra “só” que gera a ideia de exclusividade, ou seja, nesse caso, pode-se ler: desejo tudo menos homens efeminados. Mobilizam-se, portanto, alguns questionamentos: o que há de tão abjeto no homem efeminado para ser o único “ser” não-desejado? E o que há de tão nobre no “macho” para ser o único “ser” desejado? Refere-se, nesse caso, a descrições de perfil como aquela disponibilizada por “Yes or not”, 38 anos: “só curto macho”, e a nomes de perfil como “só Dotados” ou “só discretos”, pois tanto o pênis grande quanto a discrição se incluem na lista de características associadas à masculinidade hegemônica.

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Cabe frisar, além disso, que um tipo de discurso efeminofóbico observado comumente nas descrições de perfil encontradas durante a imersão etnográfica é o discurso apologético ou o discurso de apologia, que faz uso de expressões como “me desculpem”, “longe de ser preconceituoso” e “nada contra”, numa tentativa de amenizar o “peso” que a mensagem por trás do comentário carrega ou tenta explicar que a “exclusão” do perfil afeminado de homens se trata apenas de uma questão de “gosto” ou preferência sexual, longe de qualquer tipo de preconceito. Em um dos acessos ao aplicativo, foi encontrado o perfil de um usuário de 40 anos que se apresentava como “BearbiPVH” (sic) em seu perfil e cuja descrição era a seguinte: “Gordinho Parrudo e meu stilo de vida pede sigilo, então dou e peço isso tb. Mas S/Foto S/Papo. Longe de ser preconceituoso mas, NADA de efeminados, delicados ou very fashion! O q rolar; foda, papo e/ou amizade, tá blz, MAS que venha manso. Alterou, tchau”! (sic). Em sua descrição, BearbiPVH deixa claro a outros usuários que não tem interesse em conhecer homens efeminados ou que tenham uma expressão de gênero ou jeito de se vestir que possam ser socialmente associados aos desejos homo-orientados (delicados, very fashion). Assim, o usuário exige a mesma discrição que ele afirma proporcionar uma vez que se subentende da própria descrição que não deseja assumir seus desejos publicamente, pois seu estilo de vida pede sigilo. Isso pode ser ressaltado pelo uso destacado da palavra “NADA..” em caixa alta, pois manter contato, conhecer e se relacionar com outro homem que seja “efeminado, delicado ou very fashion” pode denunciar a natureza dos seus desejos sexuais e torna-lo suscetível a retaliações sociais e morais que afligem aqueles que assumem seus desejos por outros homens ou performatizam uma expressão de gênero culturalmente vista como sinônimo de ter desejos homoorientados. A busca pelo sigilo e discrição por grande parte daqueles que utilizam aplicativos baseados na localização como o Grindr já foi abordada densamente pelas pesquisas desenvolvidas por Miskolci (2013, 2015, 2016). Ressalta-se, nesse ínterim, que a associação da exclusão da figura do homem afeminado às exigências de discrição e sigilo se manifesta também na descrição de perfil apresentada por “Ativo, só sexo”, 28 anos: “Um cara de boa, não sou nem curto afeminando. O sigilo é primordial. Não seja chato, já é um bom

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começo” (sic). Por outro lado, ao refletir sobre o uso do aplicativo antes da saída do armário, um dos colaboradores ressaltou que sempre buscava por homens que se enquadravam no padrão hegemônico de masculinidade no fito de manter seus desejos homo-orientados em segredo, como se observa a seguir: “Às vezes a gente vê, fora do aplicativo, por exemplo, você vê as pessoas conversando. Elas idealizam, procuram o macho alfa. O homem que é meio lenhador, barbudão e tal. Macho. Como dizem, fora do meio. Às vezes a gente vê nas descrições assim ‘sou assim, assim, assim, fora do meio’, sou macho e não sei o quê e já teve época que eu procurava pessoas assim até porque eu não queria que descobrissem que eu era gay. Então tipo, eu preferia alguém que fosse discreto para as pessoas não perceberem, não levantar suspeita” (sic) (THÉO, 26 anos).

No entanto, o que mais chama atenção na descrição de BearbiPVH e nos leva a pensar que há algo em seu discurso, além da mera busca por discrição e sigilo é a frase apologética: “Longe de ser preconceituoso” que ele utiliza antes de excluir os “efeminados, delicados e very fashion” da lista de seus interesses. Se o usuário considera que se trata apenas de uma questão de “prioridade” e necessidade de manter a discrição e sigilo, possivelmente para não sofrer de retaliações caso assumisse seus desejos homo-orientados, por que aludir que “não é preconceituoso”? Seria uma preocupação com um possível receptor dessa mensagem que se identifica como efeminado, e portanto tenta amenizar ou reduzir o efeito daquilo que vem depois da frase “longe de ser preconceituoso”, admitindo, portanto, que não seja algo muito agradável de se ler e que por mais que não seja explicito, há algo de preconceito no que segue? Não seria a negação do preconceito, nesse caso, uma confirmação da existência do mesmo? Uma negação apologética de tipo semelhante se manifesta na descrição de perfil de outro usuário que, no espaço reservado para o nome, afirmava ter 25 anos, ser ativo e se apresentava com um nome próprio que não será revelado aqui por questões éticas, pois não é possível identificar se é um nome fictício ou seu nome verdadeiro. No espaço reservado para a descrição do perfil, se lia: “Prazer, estou a procura somente de sexo e amizade, sem compromisso. Sou ativo, n sou e n curto afeminado, mas sem preconceito e também n sou malhadinho. Papo somente com foto blz”(sic).

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Observa-se que o usuário se descreve como alguém que se expressa, se comporta e performatiza trejeitos, características e papéis de gênero que não são socialmente associados ao “feminino”. Como as lógicas binárias (masculinofeminino; homem-mulher) pervagam nossas relações sociais e consequentemente as virtuais, se descrever como “ não afeminado” pode ser compreendida como uma forma de tentar afirmar que se é “macho” (viril), ou seja, que possui características socialmente associadas à masculinidade, pois para o status quo vigente, as duas expressões de gênero são vistas como oposições e não como um continuum. Nesse contexto, cabe lembrar que, para o imaginário social, quando um homem se expressa de uma forma culturalmente associada à masculinidade, ele apresenta uma prova de sua heterossexualidade compulsória. Mas, quando um homem se expressa de uma forma culturalmente associada à feminilidade, ele passa a ser enviadecido, pois põe em xeque o alinhamento (sexo-gênero-orientação sexual) e a forma socialmente idealizada como a única possibilidade de ser-existirdesejar como homem. Além de vangloriar-se da própria masculinidade de forma indireta, o usuário aponta que não sente atração por homens efeminados (n sou nem curto afeminados). Para Freud (1915/2006), a pulsão não tem objeto definido, e portanto, cada sujeito tem desejos únicos e singulares, e compreende-se que assim como qualquer outro, o usuário esteja seguindo o desejo que lhe habita, sobre o qual, inclusive ele não tem controle, pois o “eu” não é dono da própria casa (FREUD, 1923/2006). Todavia, várias pesquisas já apontaram que homens efeminados são vistos como um turn off erótico pela maioria dos homens que buscam por relações homodesejantes cujo ideal de beleza e atração traz em seu bojo exigências da masculinidade hegemônica (LANZIERI; HILDERBRANDT, 2011; ANNES; REDLIN, 2012). Ressurge, então, a pergunta: se cada um tem um desejo único e singular, porque o “homem efeminado” é concebido como um turn-off erótico pela maioria daqueles que buscam por relações homodesejantes, ao passo que os titulares da masculinidade hegemônica são vistos como símbolo máximo de erotismo e tesão sexual? Será que tais desejos são tão únicos e livres como se afirma serem?

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Além disso, chama a atenção na descrição desse usuário a frase apologética: “(....) mas sem preconceito” que segue as informações que descrevem sua suposta expressão de gênero e seus supostos “gostos” sexuais. Se o usuário considera que seja apenas uma questão de “gosto” ou preferência sexual como se evidencia no verbo “curto”, qual o motivo de tentar se explicar e afirmar que não há preconceito naquilo que escreve? Se paira no imaginário social as ideias que “gosto é gosto” e que “gosto não se discute”, qual a necessidade de esclarecer que aquilo que ele “curte” não carrega preconceitos? Tais contradições apologéticas, discursos efeminofóbicos camuflados em forma de “gostos” e tentativas de se desculpar ou se isentar da responsabilidade daquilo que se publica acerca das preferências sexuais e exigências em relação à masculinidade apareceu em várias descrições de perfil com as quais foi possível se deparar durante a imersão etnográfica. Nesse contexto, destaca-se a descrição de perfil de outro usuário que se apresentava com um nome próprio e não disponibilizava informações sobre sua idade: “Solteiro, busco relacionamento sério! Casual, talvez, pois não sou de ferro! Não CURTO AFEMINADOS! A culpa é do meu P....! Não sou do tipo ‘máquina’ de sexo! Curto uma boa companhia, carinho e respeito em 1o lugar! Deixe msg! Caras com foto têm preferência” (sic). Após ressaltar que não possui interesse erótico por “afeminados”, o usuário tenta fornecer justificativas para suas preferências, o que se evidencia no que segue: “ a culpa é do meu P” (sic), (subentende-se “pau”- referência coloquial ao órgão sexual masculino). Ao se referir ao seu pênis, o usuário possivelmente visava reafirmar que “não curtir afeminados” é apenas questão de “gosto” erótico, pois não consegue sentir atração sexual ou ter uma ereção com um “afeminado”, e isso foge ao seu controle, pois não é uma “máquina de sexo” que funciona de qualquer jeito. No entanto, a utilização do vocábulo “culpa” chama atenção, pois nos remete ao mundo do crime, erro ou pecado, como se os “afeminados” fossem vítimas daquilo que é culpa do pênis do usuário.

No campo da subjetividade, todavia,

ninguém é culpado por aquilo que deseja ou deixa de desejar, muito menos vítima do desejo do outro. Então, se “não curtir afeminados” é apenas uma questão de “gosto” e os desejos não são crimes nem pecados, por que o esforço de se isentar da “culpa” daquilo que não deseja?

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Cabe frisar que tais esforços apologéticos e tentativas de oferecer justificativas para a falta de interesse sexual em “afeminados”, ou então, amenizar o peso da mensagem publicada, se evidenciam no uso comum da expressão “nada contra” em descrições de perfil que trazem em seu bojo exigências em relação ao não-efeminamento dos parceiros em potencial. Na descrição de perfil de um usuário de 28 anos que se apresentava com o nome “sou passivo”, lia-se: “não curt cara afeminados tenho nada contra mas não, faz meu tipo não quero nada sério no momento só curtição sou solteiro... 178 alt 75 kg” (sic.) No perfil de outro usuário de 23 anos que se apresentava no aplicativo com o nome “perfil”, lia-se: “Seja prático foto com oi se não nem respondo! Não curto afeminados, nada contra só não faz meu tipo”(sic). Destaca-se, além disso, o perfil de um terceiro usuário de 27 anos que se apresentava com um nome próprio, a palavra Top (provavelmente se referindo a sua posição sexual como ‘ativo’- aquele que penetra) e o emoticon de um braço forte. No espaço reservado à descrição de perfil, lia-se: “ Seja humilde, legal, camarada é educado, tranquilo não gosto de afeminados nada contra cada um com seu cada um. Sou safado gosto de soca muito falou comigo manda foto gosto de macho dispenso fumantes brigado” (sic). Outro usuário de 28 anos, cujo perfil foi encontrado durante a imersão etnográfica, apresentava a seguinte descrição de perfil: “ Não curto caras assumidos, afemidado nada contra só que comigo não rola, sou discreto e gosto tbm de caras discreto” (sic). Tal descrição apresenta demandas em relação à discrição semelhantes àquelas destacadas por BearbiPVH, mas carrega um discurso apologético semelhante àquele que se manifesta na descrição de perfil do “Good Bye Grindr” (sic), 23 anos: “ Pergunte, antes de pedir foto mande. Não curto frescuras, afeminados nada contra só não curto” (sic). Nota-se que os usuários por trás dos perfis acima destacados expressam a falta de atração sexual por “afeminados” em suas descrições de perfil, mas tentam se justificar em seguida afirmando que não possuem “nada contra” homens que

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performatizam uma expressão de gênero socialmente associada ao feminino. O que seria esse “nada contra”? Seria um “ódio” contra, uma “aversão” contra, uma “abjeção” contra, um “preconceito” contra; dentre outras possibilidades de interpretação? Será possível não ter “nada contra” homens afeminados se somos imersos num contexto sociocultural que tem “tudo contra” qualquer corpo falante que põe em xeque o alinhamento (sexo-gênero-orientação sexual) e as normas impostas pela matriz heterossexual? A figura do “homem efeminado” foi alocada ao lugar do abjeto há muitos séculos. Na antiguidade, os eunucos- que eram castrados e, portanto, concebidos como efeminados e não viris- viviam como servos ou escravos, ocupando quase sempre posições inferiores aos titulares da masculinidade hegemônica segundo as exigências vigentes em cada contexto histórico. Após a revolução sexual e a eclosão dos movimentos de ativismo gay e lésbico do final da década de 60 que permitiu com que muitos saíssem do armário, aqueles que não eram capazes de performatizar comportamentos, atitudes e expressões socialmente associadas à masculinidade foram culpabilizados por criar uma imagem estereotipada negativa sobre os homens que buscam por relações homodesejantes. Assim, se consolidou, no imaginário social, as ideias estereotipadas de que “todo homem afeminado é homodesejante” e “todo homem homodesejante é afeminado”, pois não se compreendia a distinção entre expressão de gênero e orientação afetivo-sexual. As poucas representações de homens que buscam por relações homodesejantes na mídia, então, os retratavam comicamente com trejeitos femininos e como pessoas espalhafatosas,

extrovertidas,

espampanantes,

dramáticas,

barraqueiras,

fofoqueiras, “venenosas”, cheias de “frescura” e sem o mínimo de discrição. Tanto a imersão etnográfica quanto as entrevistas com os colaboradores possibilitam pensar que o enquadramento nos ideais da masculinidade hegemônica (ser macho) é visto como sinônimo de discrição e capacidade de manter o sigilocaracterísticas socialmente associadas à figura do homem heterossexual. Por outro lado, a não-conformidade com os mesmos (ser efeminado) é concebida como sinônimo de extravagância, frescura e extroversão- características socialmente associadas à mulher.

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Isso se evidencia na descrição de perfil de um dos usuários que não apresentava nome de perfil ou informações em relação à idade: “ Falo mande foto to afim de um cara safado pra fuder nada de mimimi, sem frescura, sem enrolação não gosto de afeminados. Alguém afim? E só chama sou de boa tranquilo, sarado chega junto aí a mamadeira ta cheia” (sic). A sinonímia entre discrição e falta de afetação ou qualquer trejeito feminino também aparece na forma com a qual “AtvoDotado 20 cm” (sic), de 35 anos, se descrevia em seu perfil no Grindr: “Sou muito tranquilo na minha, discreto e sem afetação” (sic). Ao tentar explicar as razões por trás de tantas descrições de perfil expressando falta de interesse sexual por homens afeminados e os associando à extravagância, um dos participantes das entrevistas apontou: Ah, logo no começo eu achava que muito, por questão de sei lá, a pessoa não gostava, não gostava, né? Ah... Mas a gente vai crescendo, a gente vai lendo, a gente vai aprendendo e aí você vai vendo que é uma questão realmente de preconceitos das pessoas, que já é estereotipado. As pessoas já olham e já sei lá “ah, esse aí vai fazer barraco. Aquele tipo de pessoa que só gosta de música POP, só gosta de diva POP então eu acho que tem muito isso de rótulos (THÉO, 26 anos).

Além da associação do efeminamento à falta de discrição e extroversão exacerbada, cabe frisar que o advento do pânico sexual da AIDS afligiu novas estereotipias sobre os homens que buscam por relações homodesejantes e consequentemente sobre os homens efeminados, uma vez que pairava a ideia préconcebida que “todo homem afeminado buscava por relações homodesejantes”. No primeiro momento, sabe-se que a AIDS foi assimilada tanto pela ciência quanto pelo imaginário social como uma “praga” ou “doença gay”, o que se evidencia no primeiro nome proposto para se referir à síndrome: Gay Related Immuno-deficiency (GRID). Logo, os homens efeminados não ocupavam mais o lugar de abjeto somente por causa da expressão de gênero concebida como prova indestrutível de possuir desejos homo-orientados, mas também porque passaram a serem vistos como promíscuos, “aidéticos”, não saudáveis, fracos e magros. A divulgação midiática de imagens de pacientes terminais de AIDS contribuiu para o fortalecimento da associação da magreza à doença e ao efeminamento, no imaginário social (MISKOLCI, 2017).

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Por muito tempo, a pornografia era o único meio através do qual homens que buscam por relações homodesejantes poderiam encontrar referências “positivas” sobre si mesmos (MOWLABOCUS, 2010; GAGNÉ, 2012; TZIALLAS, 2015; MISKOLCI, 2015, 2017). Não obstante, tais referências positivas dificilmente contemplavam aqueles que se identificam como afeminados ou expressam masculinidades marginalizadas ou não-hegêmonicas. Na pornografia mainstream, atores pornôs, brancos, lisos, musculosos e que performatizavam comportamentos e atitudes conforme os ideais vigentes da masculinidade hegemônica eram erotizados e amiúde retratados como dominantes ou como “modelos” de homens a serem seguidos ou desejados. Em suas poucas aparições, atores pornôs não-conformes aos ideais da masculinidade hegemônica eram retratados sempre como submissos, objetificados, penetrados e tratados com desprezo pelo “macho” dominante. Propagou-se, consequentemente, a ideia de que o “normal” é sentir atração sexual pelo “macho” que ocupa uma posição de dominância em relação ao “efeminado” concebido como inferior e submisso. Isso se evidencia no relato de um dos usuários, sobretudo quando utiliza o vocábulo “fetichismo” para se referir à atração que alguns homens sentem por homens afeminados: Entrevistador: Hum. E você acha que existe efeminofobia no aplicativo? Ricardo: Acho. Só que ao mesmo tempo tem um fetichismo disso, sabe? Então tem muito cara que ao mesmo tempo que ele não quer se relacionar mais a fundo com o cara afeminado, ele quer se sentir bem indo para a cama com o afeminado, dominando um afeminado, entendeu? Eu até não consegui entender como funciona isso na cabeça da pessoa, mas, é, eu vejo, tipo, é, cara que quer ficar com cara afeminado, mas não dá beijo na boca, sabe? Essas idiotices assim. É como se usasse mesmo para suprir uma necessidade dele, não sei, e jogar fora. (ENTREVISTA COM RICARDO, 24 anos) (grifos nossos).

Considerando o panorama acima delineado, surge a pergunta: como “curtir”, ou melhor, desejar uma figura que foi social e historicamente associada ao abjeto, sem que seja considerado um “fetiche”? A figura do homem efeminado foi materializada como um corpo abjeto que põe em xeque a sexualização binária das nossas existências e o alinhamento (sexo-gênero-orientação sexual) - um corpo que não vale a pena existir e ser desejado. Por isso, é compreensível que a efervescência de perfis que expressam falta de interesse sexual por homens efeminados, seja realmente uma questão de “gosto”.

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Não se pode negar, todavia, que “gostos”, preferências sexuais e eróticas se constituem por meio da linguagem e portanto, são influenciadas pelos discursos vigentes em cada contexto histórico e social. Por trás dessa miríade de “Não curto afeminados” dentro do aplicativo, jaz toda a abjeção, recusa e subalternização afligidas social e historicamente sobre a figura do homem efeminado. Por isso, afirmar que não há “nada contra” os homens efeminados é uma apologia dubitável, pois os gostos e preferências sexuais internalizam os preconceitos, estereótipos, negativismo e discursos aversivos infligidos ao efeminamento pelo contexto sociocultural através do qual se constituem nossas subjetividades. Nesse sentido, Butler (1993, 2003) aponta que os corpos carregam discursos com parte do próprio sangue (PRINS; MEIJER, 2002). Embora ninguém escolha conscientemente o que deseja ou deixa de desejar, é evidente que os desejos, jeitos de ser e se expressar são perpassados por imposições e exigências do status quo heteronormativo, machofascista e efeminofóbico vigente, que é continuamente alimentado e perpetuado através da linguagem- ferramenta por meio da qual passamos da condição biológica para a condição cultural (LACAN, 1949/1998; HARARI, 2006). Nesse ínterim, Butler (2003) afirma que não há ator por trás do ato, pois a internalização desses discursos, a associação binária de características e comportamentos associados aos gêneros designados antes do nascimento e a coerção reiterada para performatizá-los de acordo com o sexo ocorre de forma naturalizada, visando a manutenção e fortalecimento da matriz heterossexual que permeia as relações humanas em diversos aspectos. Cabe frisar, nesse contexto, que esse processo de internalização é inevitável uma vez que tanto o “eu” quanto os desejos que o constituem não passam de meros efeitos de linguagem. A internalização dos discursos efeminofóbicos e machofascistas socialmente propagados se evidencia claramente nos relatos de alguns dos entrevistados, mesmo que se identifiquem, eles próprios, como homens efeminados. Durante a entrevista, Lucas – 24 anos, se queixou da efervescência de descrições de perfil com conteúdos do tipo “Não sou nem curto afeminados”, como se observa a seguir:

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“As que mais me chama atenção são bom. geralmente as que chama atenção são aquelas que não tem as palavras “macho” por que isso é ruim. Cara macho? “Sou discreto”, “Não gosto de afeminados”. Por que se ele não gosta de um gay afeminado ele é machista e o cara que “poxa cara eu sou gay por que eu vou ter preconceito com outro cara que é gay”? (sic) (voz de indignação do entrevistado) (LUCAS, 24 anos).

Além disso, o mesmo colaborador se queixou de algumas experiências dentro do aplicativo durante as quais foi bombardeado por um parceiro em potencial com perguntas em relação a sua expressão de gênero, como se observa no trecho a seguir: “Eu já cheguei a conversar com um rapaz do aplicativo e pediu logo o meu numero de telefone, mas eu não suporto falar no telefone, mas tudo bem. Ele me ligou e foi logo me bombardeando com um monte de perguntas. “Você é afeminado” e eu expliquei pra ele o que era ser afeminado. Dá vontade de falar você é um gay machista e eu não quero ter nada com você. Você tem que ser muito educado para sair dessas situações. E aí eu falo que eu não quero nada com ele, quero apenas uma simples amizade e eu sendo afeminado ou não não vai interferir nisso e ele nunca mais me ligou” (LUCAS, 24 anos).

No entanto, a internalização dos discursos de abjeção que afligiram o cotidiano do colaborador no aplicativo se manifestou quando Lucas foi indagado sobre as características que mais o atraem e mais o incomodam em outros usuários, como se observa a seguir: “O que me incomoda é a característica machista e o que me atrai eu particularmente gosto de meninos que tem uma idade próxima ou mais velhos que eu não gosto de caras muito velhos, gera um choque de gerações terrível. Eu gosto muito daqueles garotos, nada contra afeminados, nada contra, eu gosto da figura masculina. Eu gosto daquele padrão. Gosto daqueles que se vestem como meninos, que são normais, mas nada contra espalhafatoso. Eu mesmo já desmunhequei várias vezes aqui” (LUCAS, 24 anos).

Ainda que o colaborador esteja ciente e se incomode das pressões e exigências em relação ao seu jeito de ser, percebe-se que o entrevistado repete em seu relato algumas das expressões mais utilizadas em descrições de perfil que visam afastar ou excluir homens que não se enquadram nos padrões hegemônicos de masculinidade- “nada contra afeminados, nada contra”. Embora “como o colaborador se considera ser” e “o que o entrevistado deseja” são intersecções totalmente diferentes da sexualidade, não se pode negar que há em seu relato um exemplo da propagação de discursos segregatícios por meio da linguagem.

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Nota-se que a contradição evidenciada no relato de Lucas se manifesta mais claramente na entrevista realizada com outro colaborador. Caio, 21 anos ressaltou que se incomodava com “o preconceito contra, é, pessoas assumidas, hum...E a grosseria das pessoas com algumas perguntas” (sic). Ainda que sofra com as pressões e exigências em relação à discrição e ideais da masculinidade hegemônica, o trecho da entrevista destacado a seguir revela que o colaborador sente mais atração pelo mesmo perfil de usuários que o exclui, pois o mesmo admite que não se enquadra nos ideais vigentes de discrição e masculinidade hegemônica, conforme se observa no mesmo trecho: Entrevistador: Tá. Que tipo de descrição te chama atenção? Caio: Que tipo de descrição?... Aquelas que falam, é... Deixa eu ver como... Hum... (Pausa)... As que dizem que procuram pessoas discretas. Entrevistador: Te chamam atenção? Caio: É. Eu sei que não sou (Risos). E, é... Espera aí, foto no perfil e espera aí, mandar foto do rosto ou do corpo antes de mandar qualquer conversa. Entrevistador: Essas te chamam atenção? Caio: Chamam porque eu puxo assunto com conversa, não com foto. Justamente pelo fato de fazer o que a pessoa não quer que faça, entendeu? É, é um sentimento de... Como eu posso explicar? É... (Pausa)... Um sentimento de se sentir persuasivo, de sentir fazer com que a pessoa faça o que ela não quer fazer e depois com sentimento de “nossa, consegui fazer o que ela não... Que as pessoas fizessem. Entrevistador: Ok. É... algum tipo de descrição te incomoda, te causa algum tipo de angústia? Caio: Hum... Uhum. As mesmas que pedem justamente, é... Procuro pessoas discretas, não afeminadas, não assumidas ou aquelas que são mais específicas: procuro pessoas entre tal idade, tal idade, brancos, é... trejeito de macho ou hum... É, é isso. Entrevistador: Deixa eu ver se entendi: te chamam atenção, te atraem no aplicativo onde usuários se apresentam como discretos e te incomoda aqueles aplicativos onde usuários, é, mostram uma repulsa contra aqueles que não são discretos e que são afeminados. Caio: Uhum. Uhum. É meio contraditório, mas (...) (ENTREVISTA COM CAIO, 21 anos).

Corrobora-se, portanto, com as contribuições gramscianas acerca da manutenção da hegemonia: os ideais da masculinidade hegemônica se propagam não apenas através das coerções exercidas por parte de usuários que fazem uso de descrições de perfil com conteúdos efeminofóbicos e machofascistas e adotam estratégias como o “teste da voz” e perguntas “grosseiras” acerca da expressão de gênero, mas também através do consentimento daqueles que são mais acabrunhados por esses discursos coercivos que passam a ser internalizados e portanto, replicados imperceptivelmente, sobretudo, por meio da linguagem. Nota-se que o consentimento daqueles que ocupam a posição do subalterno com os ideais e discursos que lhes subalternizam e a internalização e replicação,

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por vezes imperceptível, dos mesmos, foi frisada por Théo, 26 anos, como se observa nos seguintes trechos da entrevista: “Mas eu acho que é geral, eu acho que a gente segrega muito. Separa e rotula as coisas e isso é muito interessante porque você pensa que dentro do meio homossexual ou GLS não vai ter, ah... Preconceito, mas a gente tem muito preconceito aqui dentro.” (sic)/ “(...) eu acho que é mais essa questão mesmo de a gente continuar perpetuando esses estereótipos que foram, que foram definidos por esse tipo de pessoas e a gente acaba perpetuando isso, não tem jeito, está imerso” (sic) (THÉO, 26 anos).

Muitas vezes, essa replicação/perpetuação ocorre de forma tão sútil, como por exemplo através do uso de diminutivos para se referir àqueles que ocupam a posição do abjeto ou subalterno nas lógicas binárias socialmente instituídas em relação ao gênero e sexualidade. Tal sutileza se evidenciou no relato de outro colaborador quando foi indagado sobre as razões pelas quais acreditava que havia exclusão contra os efeminados; uma exclusão da qual ele próprio se queixou por se identificar como um homem que não se enquadra nos padrões hegemônicos de masculinidade. “(...)a maioria dos gays não quer pessoas afeminadas porque chamam atenção e não é uma atenção favorável porque querendo ou não se você é discreto você está ao lado de um afeminado, o afeminado vai chamar a atenção. Todos vão te julgar como afeminado também porque você está com ele. Alguns gays não querem isso, até porque alguns gays não têm amizades com afeminados por causa disso, por causa desse medo que eles tem de serem encaixados como afeminados, como mulherzinhas, é ego fraco, ego fraco, mente fraca. Porque se eu tenho na minha cabeça que eu não sou afeminado, não é um viadinho, não é uma mulherzinha ali na esquina que vai me fazer tremer a base, não. Então para mim é mente fraca”(sic.) (FRANCISCO, 19 anos) (Grifos nossos).

Nota-se que Francisco compreende a recusa reiterada do perfil de homens afeminados pela maioria daqueles que buscam por relações homodesejantes sob o viés da busca pela discrição e sigilo e a fuga de possíveis retaliações morais e sociais infligidas sobre aqueles que assumem a natureza dos seus desejos homoorientados. Tal explicação corrobora com as reflexões tecidas acima acerca da sinonímia entre efeminamento e falta de discrição e as contribuições das pesquisas realizadas por Miskolci (2013, 2015, 2017). No entanto, chama a atenção no relato de Francisco o uso dos vocábulos “mulher” e “viado” no diminutivo; termos comumente utilizados para se referir a homens efeminados ou que não se enquadram nos ideais de masculinidade hegemônica como o próprio Francisco se descreve: “(...) querendo ou não eu sou um metro e meio, não sou tão macho, mas

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também não sou tão mulher” (sic)/ “(...) querendo ou não eu tenho alguns traços afeminados, eu não posso lutar contra isso que é natural (sic)”. Destaca-se, nesse caso, a repetição da expressão “querendo ou não” que agrega um tom de tristeza e disforia à afirmação de não se enquadrar nos padrões hegemônicos de masculinidade e a possibilidade de não-aceitação total da própria expressão de gênero, pois, “querendo ou não” ter uma expressão de gênero como a de Francisco torna o sujeito alvo de retaliações, represálias e coerções que se manifestam no aplicativo em forma de descrições excludentes, perguntas “grosseiras” em relação ao jeito de ser e testes de voz para averiguar “o grau de masculinidade”, que podem se transformar em experiências desagradáveis, justamente para aqueles que não conseguem passar o teste ou performatizar uma voz socialmente associada aos ideais de masculinidade hegemônica. Cabe frisar, nesse sentido, que o chamado “teste de voz” é uma prática comum entre usuários do Grindr, sobretudo entre aqueles que buscam por sigilo, discrição e parceiros que se enquadram nos ideais de masculinidade hegemônica, conforme já apontado por Miskolci (2016). Nesse ínterim, Oswald, 36 anos, ressaltou durante a entrevista que muitos usuários que buscam por discrição e sigilo “(...)não colocam foto de rosto no perfil né, então é geralmente se vai para um lugar público ficam com medo, perguntam se, faz o teste de voz né, ligam pra fazer o teste de voz, pra ver se tem a voz afinada” (sic). Ainda que Oswald saísse do armário e assumisse seus desejos homoorientados, o colaborador admitiu também fazer uso do teste de voz, como se observa no trecho a seguir da entrevista: Entrevistador: Você já fez esses tipos de testes como o teste de voz? Oswald: Claro, claro. Entrevistador: Mas você que pedia ou outra pessoa? Entrevistador: Era uma via de mão dupla, eu não gosto de pessoas afeminadas, curto outro perfil né? É eu não gosto. (ENTREVISTA COM OSWALD, 36 anos).

O colaborador declarou abertamente a falta de interesse sexual e tesão por homens efeminados tanto em sua descrição do perfil disponibilizada no aplicativo quando se dispôs a participar da pesquisa como no decorrer da entrevista à qual se submeteu. Na véspera, Oswald se apresentava no Grindr com o nome de perfil:

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“Macho versátil procurando outros machos versáteis ou ativos, não curto novinhos” (sic). No espaço reservado à descrição de perfil, lia-se: “Inteligente, sarcástico, educado e carinhoso, porém não pisa no meu calo. Busco homens inteligentes, maduros e saudáveis, se tem HIV, obesidade e é afeminado, por favor, mantenha distância, não curto moleques e idosos, sem fotos, sem papo” (sic). Ainda que Oswald se apresentasse como “macho” no aplicativo, a entrevista pessoal demonstrou que sua expressão de gênero não se encaixava completamente nos ideais vigentes de masculinidade hegemônica, impressão que foi corroborada pelo próprio colaborador quando frisou o seguinte: “(...) sempre fui o mais afeminado da relação onde eu sempre fui mais sensível da relação por ser (X) 6”. Além de ser uma tentativa de se tornar “mais desejado” aos olhares dos outros usuários do aplicativo que geralmente buscam por homens que se enquadram no padrão hegemônico de masculinidade e afastam aqueles que não se encaixam neste modelo, a autodescrição como “macho” e a negação das características pessoais associadas socialmente à feminilidade também podem ser compreendidas sob o viés da internalização dos ideais da masculinidade hegemônica e o consentimento com os discursos efeminofóbicos que outrora afligiram o próprio colaborador, como se observa no trecho a seguir: “É, beijei na boca a primeira vez com vinte anos então, é, eu era gordinho, é usava óculos, é vozinha fina, então, é, todas essas coisas que eu não curto eu era (risos). Então é interessante agora que eu estou pensando nisso porque eu sempre fui excluído na escola por ser gordinho, por ter voz fina, eu sempre fui taxado de gay, eu passei por muito bullying de diversos tipos, hoje o que a gente chama de bullying, na época não existia esse termo, eu fui entre aspas bullyinado digamos (risos), né? Eu era gordo, gay, eu era extremamente afeminado, vozinha fina, eu batia nos meninos para me defender, tá, é, fazia esportes, fazia vôlei, handball, então sempre fui, e fazia teatro, então eu sempre tive à margem do comportamento heteronormativo. Será que hoje eu estou comprando esse pensamento, pode ser, não sei, é muito complexo, né?” (sic) (OSWALD, 36 anos).

O relato de Oswald e as reflexões que tece sobre sua infância e adolescência quando se considerava “gordo”, “gay” e “extremamente afeminado” corroboram com as contribuições de Taywaditep (2001) acerca das atitudes efeminofóbicas entre homens que buscam por relações homodesejantes. Segundo Taywaditep (2001),

6

A palavra foi omitida por questões éticas. Mas o colaborador se referia à profissão que exercia a qual é socialmente associada à sensibilidade e feminilidade.

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embora os homens que buscam por relações homodesejantes sejam marginalizados pelo status quo vigente e alocados ao abjeto, aqueles que não se conformam às normas e ideais impostos de masculinidade hegemônica são propensos ao estigma e à discriminação não apenas por parte da sociedade, sui generis, mas sobretudo por parte de outros homens que buscam por relações homodesejantes que possivelmente já foram estigmatizados e taxados como “afeminados” na infância. Isso se faz evidente no relato de Oswald quando brinca: “(...) então, é, todas essas coisas que eu não curto eu era” (sic) ou reflete: “ (...)eu sempre tive à margem do comportamento heteronormativo. Será que hoje eu estou comprando esse pensamento, pode ser, não sei, é muito complexo, né”? (sic). Desde a tenra idade, meninos/homens efeminados ou que não se enquadram nos padrões impostos de masculinidade sofrem de coerções para adotarem comportamentos culturalmente considerados como viris. Assim, muitos empreendem tentativas para conformar seus jeitos de ser e formas de se expressar aos ideais vigentes de masculinidade, performatizando comportamentos e se engajando em atividades socialmente associadas à virilidade, como se evidencia no relato de Oswald quando ressalta: “ (...) eu batia nos meninos para me defender, tá, é, fazia esportes, fazia vôlei, handball (...)” (sic). Aqueles que são incapazes de performatizar as características e comportamentos normativamente associados à única forma socialmente aceita de ser-existir-desejar como homem não conseguem se livrar do estigma, preconceito e discriminação afligidos àqueles que foram alocados ao abjeto. Por não se enquadrar nos padrões socialmente impostos, os homens efeminados passam a ocupar o mesmo lugar de marginalização e objetificação reservado para outras minorias sexuais, sociais e de gênero como as mulheres, por exemplo. Como o homem efeminado ocupa a mesma posição de subalterno no binômio (macho-afeminado) que a mulher ocupa na dicotomia (homem-mulher), a efeminofobia também se faz presente no aplicativo de forma oculta e implícita por trás de descrições pautadas sob um discurso misógino. No aplicativo, tais discursos se consolidam sob uma ideia pré-concebida de que “ser efeminado” é sinônimo de “ser menina/mulher”, ou seja, “não ser homem”, não sendo, portanto, passível de ser um objeto de desejo dentro de um aplicativo

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voltado para homens que buscam por relações eróticas, sexuais ou amorosas com outros homens. Isso se evidencia na descrição de perfil apresentada por “Boy”, 26 anos: “Fugindo de afeminado, não curto meninas. Prefiro os discretos com jeito e postura de Homem” (sic). Outro usuário, que usava como nome de perfil “ Brazilian. Fotos Por favor (> 18) No afem! Macho com Macho” (sic) e informava ter 78 anos de idade, apresentava a descrição seguinte de perfil na qual a efeminofobia se ocultava por trás de um discurso misógino: “ Que me desculpem os afem, mas de mulher o mundo tá cheio! A” (sic). Um discurso efeminofóbico camuflado por trás da misoginia também aparece na descrição de perfil de “Mlk Afim”, 25 anos: “ Não respondi= não curti; DISCRIÇÂO!! Já aviso logo, se vai pedir foto, já pede mandando uma sua; use o bom senso. Curto homem, não mulherzinha. Se é desse tipo nem puxa assunto, nada contra, mas não rola” (sic). Destaca-se, nessa descrição, o uso do vocábulo “mulherzinha”, forma diminutiva de “mulher” que assim como o efeminado que busca por relações homodesejantes, ocupa uma posição inferior nas lógicas binárias de gênero e sexualidade perpetuadas pelo status quo vigente. Lembrando que devido ao alinhamento (sexo-gênero-orientação sexual), a sexualização binária dos corpos e sinonímia socialmente pré-concebida entre a identidade de gênero, a expressão de gênero e a orientação afetivo-sexual, não se presume apenas que os homens afeminados tenham desejos homo-orientados, e portanto, são enviadecidos e alocados à posição de abjeto, mas também se presume, pelo imaginário social, que não são homens, que são mulheres, e portanto, se fixam ainda mais no lugar do abjeto. Essa falta de compreensão das diferenças entre as diferentes intersecções que constituem a sexualidade humana se evidencia em perguntas coloquialmente comuns como: “ Você é gay ou homem”? Ou seja, só é homem quem é heterossexual, e como o enquadramento nos ideais da masculinidade hegemônica é concebido como sinônimo de “ser homem”, aquele que nelas se encaixa, confirma, para

o

imaginário

social,

a

“heterossexualidade”

que

lhe

foi

atribuída

compulsoriamente ao nascimento. A masculinidade hegemônica, que traz em seu bojo a ausência de qualquer característica socialmente associada à feminilidade, é, portanto, metáfora da heterossexualidade. E assim, atinge-se o fio que une os

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discursos efeminofóbicos e imposições machofascistas aqui abordadas: a figura do homem heterossexual como apogeu dos desejos e fantasias eróticas daqueles que buscam por relações homodesejantes. Quando Butler (2003) afirma, em “Gender Trouble”, que há uma matriz de relações de gênero, a autora se refere justamente à matriz heterossexual. A heterossexualidade, assim, se institui como “regra” ou “norma” a ser seguida, pautando-se na perpetuação de lógicas binárias de gênero e sexualidade (homem/mulher;

masculino/feminino;

heterossexual/não-heterossexual)

e

do

alinhamento (sexo-gênero-orientação sexual). Assim, os padrões normativos impostos pelo status quo visam a manutenção do “homem”, da masculinidade e da heterossexualidade no topo das hierarquias de gênero e sexualidade. Nesse ínterim, ser ou ao menos “parecer ser” homem viril heterossexual é elegido como a norma, como o “queridinho” do patriarcado, como a única possibilidade de ser-existir-desejar sem julgamentos ou represálias. Ao passo que o enquadramento

“visível”

no

alinhamento

(pênis-homem-masculinidade-

heterossexualidade) garante um lugar de supremacia/superioridade nas hierarquias binárias historicamente perpetuadas de gênero e sexualidade, a “mulher” como identidade de gênero, o feminino como “expressão de gênero” e o nãoheterossexual (viado) como orientação afetivo-sexual são alocados ao mesmo lugar, ou melhor, a-lugar: ao abjeto. Reformulando as palavras do colaborador Théo, 26 anos: quem é ou ao menos parece ser homem viril heterossexual branco é gente, o resto é resto, dejeto, abjeto, viado. Em outros termos: “ Os machos e fortões botam na mente que ele são um e os outros são dois” (sic) (EMANUEL, 18 anos). Dessa forma, percebe-se que tanto os discursos efeminofóbicos, as imposições em relação à masculinidade hegemônica, os gostos e as preferências sexuais, as prioridades e necessidades em relação à discrição e sigilo- todos os quais foram abordados nessa subseção- giram em torno do mesmo ideal: PAREÇA HETEROSSEXUAL, MESMO QUE NÃO SEJA! Assim como em múltiplos aspectos do convívio social e das relações humanas, o homem viril heterossexual está no centro dos desejos e fantasias dos homens que buscam por relações homodesejantes, pois é visto como o único ser cuja vida é considerada uma vida, e portanto vale a pena deseja-lo ou sê-lo (ou parecer sê-lo). Isso se evidencia na

114

seguinte descrição de perfil encontrada durante a incursão etnográfica: “KRA MAXO, SÓ CHAME C/LOCAL, SÓ P/DISCRETOS, NÃO AOS GAYS! OBRIGADO” (sic). Cabe lembrar, nesse contexto, que a palavra “gay” é utilizada coloquialmente para se referir a homens que buscam por relações homodesejantes e a todos aqueles que possuem desejos não-hetero-orientados. Considerando que para o imaginário

social,

a

sexualidade

é

compreendida

através

da

dicotomia

“heterossexual/não-heterossexual (gay; viado)”, depreende-se que a exclusão de “gays” da lista dos seus interesses sexuais indica a inclusão de apenas “homens heterossexuais”, o que é irônico, uma vez que o aplicativo é voltado a homens que buscam por relações homodesejantes. É mister destacar, nesse sentido, que a manutenção da superioridade da “heterossexualidade”

e

seu

status

“natural”

depende

da

existência

da

“homossexualidade” que ocupa o outro lado da oposição binária como o suplemento abjeto e enviadecido (SPARGO, 2017). Por isso, a existência de discursos contra a não-heterossexualidade (“não aos gays”), mesmo em ambientes voltados a homens que buscam por relações homodesejantes. O ideal “ PAREÇA HETEROSSEXUAL, MESMO QUE NÃO SEJA” que permeia as relações homodesejantes se evidencia também na seguinte descrição de perfil: “ I’m looking for straight acting Tops !” (sic) (estou procurando por ‘ativos’ que pareçam heterossexuais). É imprescindível destacar, nesse ínterim, que se trata de um ideal impossível de ser alcançado, pois os desejos hetero-orientados assim como todos os desejos estão no campo do “subjetivo”, do “invisível”. Todavia, a sinonímia culturalmente propagada entre “ser homem”, a masculinidade hegemônica e a heterossexualidade, cria uma falsa ideia de que os corpos falantes podem “parecer” o que desejam. Cabe frisar, nesse sentido, que entre a identidade de gênero, a expressão de gênero e a orientação afetivo-sexual, a única que pode ser, de fato visível e, portanto, performatizada é a segunda. Assim, para que “pareçam heterossexuais”atributo visto como grande qualidade entre homens que buscam por relações homodesejantes- deve-se ser capaz de performatizar as expressões, características e

comportamentos culturalmente

associados aos

ideais da

masculinidade

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hegemônica. Nesse ínterim, a “heterossexualidade” como qualidade se evidencia na descrição que um dos entrevistados faz de um dos usuários do aplicativo com qual teve um encontro pessoal: “E aí eu cheguei e aí era bem bonito, bem interessante, aham e tinha bastante jeito de homem. De homem no sentido, tinha bastante, era bastante másculo e se relacionava com mulheres, é, mas com homens era raramente pelo que ele me falou né? E também já, depois eu tirei essa conclusão também porque eu acabei o vendo em outros locais que ele sempre estava com mulheres e nunca deu, nunca demonstrou que ficava com homens escondido, mas enfim. Aí fomos para o quarto dele (...)” (sic) (CAIO, 21 anos).

Ao mesmo tempo que o colaborador se referia ao fato do seu parceiro sexual “se relacionar com mulheres” (ter desejos hetero-orientados) como uma qualidade a ser celebrada assim como “ser bonito”, “ser másculo” e “ser interessante”, ele se queixou ter sofrido de pressões e exigências de outro usuário do Grindr em relação à discrição, masculinidade hegemônica e “aparência hetereossexual”. “É, eu estava conversando com um rapaz ... E aí ele... começou a me criticar. E, é, começou no mesmo momento a olhar as minhas redes sociais. E aí ele começou a falar das minhas amizades e falou que eu andava com muitos ‘viadinhos’ nas palavras dele, muitos, muitas ‘bichas’, muitas pessoas que eram, é, extravagantes, disse que eu tinha que me comportar mais e ter mais jeito de homem, que eu tinha que me esconder mais e ser mais discreto e começou a realmente é, me denegrir (...)Nossa, realmente, agora relembrando, tiveram coisas bem escrotas que ele me falou tipo, é... Que eu tinha que arranjar, é, uma namorada e usá-la como fachada para manter a minha... Foi outra palavra que ele usou, mas para afirmar a minha sexualidade hétero que eu não tinha, mas eu tinha que afirmar isso para população e escondido eu tinha que ficar com outros caras. Mesmo tendo essa namorada de fachada e aí... E foram coisas a esse nível que demonstrou que ele tinha bastante preconceito e talvez uma homofobia, não sei” (sic) (CAIO, 21 anos).

Nesse relato, observa-se que o colaborador se sentiu exigido por outro usuário a “arranjar uma namorada de fachada”, possivelmente porque isso o associaria à “heterossexualidade” vista como qualidade por muitos homens que buscam por relações homodesejantes. Essas exigências em relação a manutenção de uma “aparência heterossexual” e a busca ensandecida pelo “homem heterossexual” também se manifestam nas experiências relatadas por outro colaborador nas quais se evidenciam a concepção da masculinidade como metáfora da heterossexualidade e a percepção do efeminamento como metáfora da “nãoheterossexualidade” (ser viado).

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Oséias, 30 anos, relatou que certo parceiro em potencial se recusou a se engajar em relações sexuais, porque de acordo com o segundo, o colaborador apresentava comportamentos socialmente associados à feminilidade, como se observa a seguir: “Até porque no meu caso, por exemplo, eu já ouvi o cara falar: ‘ah, eu não vou transar com você, porque eu te acho afeminado” (sic). Indagado sobre os sentimentos que lhe pervagaram ao vivenciar essa experiência, o colaborador ressaltou lidar com facilidade com esse tipo de situações, como se observa a seguir: “Olha, eu tenho uma facilidade para lidar com esse tipo de coisa, então eu não me sinto mal, eu me sinto agradecido. Eu me sinto agradecido, porque quando há o preconceito, quando a gente vai lidar com esse tipo de preconceito, eu me sinto livre desse tipo de pessoa, então tipo “ah, que bom que você, que a gente não transou, que ótimo que nós não transamos. Porque você procura o que? Você procura um hétero. Eu não sou um hétero.” Foi essa resposta que eu dei.” (grifos nossos) (OSÉIAS, 30 anos).

Nota-se, nesse ínterim, que Oséias associa a recusa do efeminamento à busca por um “homem heterossexual”, uma vez que seu relato induz a pensar que acredita que “não ter trejeitos femininos” indica necessariamente “ser hétero” e que todo homem que busca por relações homodesejantes apresenta impreterivelmente alguns trejeitos femininos cuja expressão, nesse caso, é concebida como prova máxima de possuir “desejos homo-orientados”. Essa associação sinonímica, metafórica e linear entre a masculinidade hegemônica e a heterossexualidade por um lado, e o efeminamento e a não-heterossexualidade por outro lado se evidencia no relato a seguir: “Mas é certo que todo homossexual, todos têm distinção que eu conheço em algum momento tem características que é homossexual. E no meu caso, a pessoa disse que não transava comigo por algumas características pequenas de ‘homossexualismo’. Então tipo, pô, se você não transa comigo, porque você achou que eu fui cumprimentar aquela pessoa minha amiga e eu dei um jeito de ser homossexual”. Cara, você está procurando um hétero e não é isso. Eu não vou deixar de viver a minha vida para você transar comigo. Eu não vou mudar o meu jeito de ser para alguém transar comigo. Não. Eu não me senti mal por isso, mas eu imagino que há outras pessoas se incomodam” (sic) (OSÉIAS, 30 anos).

Cabe lembrar, nesse contexto, que a sinonímia socialmente instituída entre identidade de gênero, expressão de gênero (jeito de ser) e orientação afetivo-sexual alimenta a falsa crença de que as pessoas podem “parecer” o que desejam, como se observa quando Oséias relata: “(...) e eu dei um jeito de ser homossexual”. Supõe-se, nesse caso, que o colaborador visava se referir a alguma característica

117

socialmente associada a feminilidade, e por ser apresentada por um homem, é vista como sinônimo da manifestação de desejos homo-orientados. Por não cumprir com o ideal inalcançável “ Pareça heterossexual, mesmo que não seja”, é alocado à posição do abjeto e arremessado fora do campo do desejo que pertence tãosomente àqueles que são capazes de performatizar perfeitamente as características atribuídas ao padrão hegemônico de masculinidade, ou em outras palavras, são capazes de “parecer heterossexuais” mesmo que não sejam. Cabe frisar que essa busca impetuosa por “um cara que passa por hetéro” já foi apontada por Miskolci (2017) em sua análise sociológica da busca por relações homodesejantes online. Segundo o autor, “passar-se por hetéro” se demonstra extremamente

central

para

alguns

homens

que

buscam

por

relações

homodesejantes tanto “na forma como lidam consigo próprios quanto na busca de parceiros” (p. 162). Destaca-se que tal ideal que pervaga muitas das relações homodesejantes mediadas pelo Grindr não é propagado apenas pela exclusão discursiva dos homens efeminados e daqueles que põe em xeque as normas ditada pela matriz heterossexual

e

pelas

exigências

intransigentes

explicitas

referentes

ao

enquadramento nas imposições da masculinidade hegemônica, mas também pela idealização e normatização de um tipo específico de porte físico entre os homens que buscam por relações homodesejantes: o corpo sarado/musculoso/atlético. Afinal das contas, a “ditadura do macho” e a “ditadura do corpo musculoso” aparentam ser, nesse contexto, as duas caras da mesma moeda: discursos coercivos que visam a manutenção da supremacia do “homem viril heterossexual” sobre as outras formas enviadecidas de “ser-existir-desejar” que foram social e historicamente alocadas ao abjeto. 7.2 “ FESTIVAL DE BÍCEPS E TRÍCEPS”: O CORPO SARADO COMO METÁFORA DA MASCULINIDADE Destaca-se que a influência dos padrões de “beleza masculina” idealizados midiaticamente sobre as preferências dos homens que buscam por relações homodesejantes já foi apontada por vários pesquisadores (TAYWADITEP, 2001; MOWLABOCUS, 2010; LANZIERI; HILDERBRANDT, 2011; TZIALLIAS; 2015,

118

MISKOLCI, 2013, 2015, 2017). Nesse ínterim, ressalta-se que há uma atração predominante entre homens que buscam por relações homodesejantes por parceiros que tenham corpos sarados, musculosos e atléticos (LANZIERI; HILDERBRANDT, 2011; MISKOLCI, 2017). Nota-se que a supremacia do corpo sarado/musculoso sobre os outros tipos de porte físico não se manifesta apenas na atração e busca por homens que se enquadram nesse padrão, mas também através de esforços para conformar o próprio corpo aos ideais de “beleza” midiaticamente propagados (MOWLABOCUS, 2010; LANZIERI; HILDERBRANDT, 2011; MISKOLCI, 2017). É mister destacar que o ímpeto de ter e/ou desejar o “ corpo sarado, musculoso, atlético e liso” entre os homens que buscam por relações homodesejantes se pauta na associação socialmente perpetuada desse tipo de corpo ao enquadramento nos ideais da masculinidade hegemônica (LANZIERI; HILDERBRANDT, 2011; MISKOLCI, 2017). Considerando o panorama acima descrito, várias pesquisas já apontaram que as relações homodesejantes mediadas por aplicativos como o Grindr são permeadas pela imposição do ideal do “corpo sarado, musculoso, liso”, pois assinala, ao menos no campo imaginário, a conformidade às normas impostas pela masculinidade hegemônica e afasta a possibilidade de qualquer manifestação de efeminamento alocado ao abjeto não só pela sociedade como um todo, mas também pelos homens que buscam por relações homodesejantes

(TAYWADITEP, 2001;

EGUCHI, 2011; CROOKS, 2013; RACE, 2015; MISKOLCI, 2017). Nesse ínterim, destaca-se que a predominância da atração pelo padrão corporal idealizado pela mídia e indústria cultural, entre homens que buscam por relações homodesejantes em plataformas digitais foi apontada durante a entrevista com Caio, 21 anos, como se observa no relato a seguir: “Cada pessoa tem seu gosto, sua preferência e muitas vezes, muitas dessas pessoas têm preferência que sejam influenciadas pela mídia, procurando aquele corpo padrão que é o corpo mais, é, corpo de academia, é, de pessoas que malham, mais massa muscular e definição. Mas também existem outras pessoas que é uma, uma classe menor que procuram pessoas de outros padrões... Sejam pessoas magras, pessoas mais cheias, pessoas peludas, mas a maioria procura, assim, que eu tive contato, procurava pessoas com, é... Com o corpo mais definido que chamasse mais atenção, que despertasse mais tesão nela.” (sic) (CAIO, 21 anos).

119

Em consonância com as considerações levantadas por Caio acerca da supremacia da preferência erótica por corpos “definidos” em detrimento de outros tipos de porte físico, a superioridade socialmente imposta dos corpos malhados também foi apontada no relato a seguir: “Eu acho que é uma questão de costume, que a gente criou uma sociedade que endeusa pessoas que são definidas. Não que eu diga que são feios ou alguma coisa do tipo, mas às vezes parece que as pessoas preferem aquela... Parece que elas preferem aquelas pessoas que lembrem, sei lá, os atores de filme, por exemplo, que sejam bonitos de corpo e de cara, definidos e ‘estilo Rambo’,, do tipo, não me, não é o perfil que me agrada, mas para mim, a maioria se agrada desse tipo.”(sic) (THÉO, 26 anos).

Ressalta-se a referência ao famoso personagem “Rambo”, conhecido não só pelos músculos e pela força física, mas também pela virilidade exacerbada que o torna um modelo exemplar do que é ser, de fato, “macho” conforme os ideais vigentes

de

masculinidade

hegemônica.

Corrobora-se,

portanto,

com

a

compreensão da idealização do corpo “sarado, musculoso e liso” entre os homens que buscam por relações homodesejantes sob a égide das exigências de “nãoefeminamento” e enquadramento no padrão hegemônico de masculinidade (MOWLABOCUS, 2010; LANZIERI; HILDERBRANDT, 2011; MISKOLCI, 2017). Destaca-se, por outro lado, que o acesso à plataforma digital na zona urbana de Porto Velho durante a incursão etnográfica possibilitou algumas observações in loco que corroboram com as contribuições das pesquisas acima destacadas. Ao passo que as exigências diretas em relação ao “não-efeminamento” e o enquadramento nos ideais da masculinidade hegemônica (ser macho) se manifestavam

principalmente

através

dos

nomes

e

descrições

de

perfil

disponibilizadas pelos próprios usuários do aplicativo e através de estratégias de “filtração” dos parceiros em potencial com perguntas “grosseiras” em relação à expressão de gênero e o “teste de voz”, evidencia-se que o culto ao corpo sarado e musculoso no Grindr se propaga não só através das descrições de perfil, mas predominantemente por meio do campo visual. Isso se faz possível devido à disponibilização de fotos de perfil por parte de vários usuários, as quais comumente priorizam a exposição de barbas, bíceps, tríceps, peitos malhados e barrigas saradas-atributos que também são concebidos pelo imaginário social como símbolos do modelo dominante de masculinidade. A cornucópia de fotos de perfil com esse tipo de conteúdo constatada durante a imersão etnográfica foi corroborada pelo

120

relato do colaborador Lucas, 24 anos que fazia uso do aplicativo em Porto Velho, como se observa a seguir: “É um festival de bíceps, de tríceps, de barrigas saradas, de bocas carnudas. É só isso. Às vezes são homens de sunga, mas nunca mostram o rosto. Às vezes tiram fotos de costas para mostrar como as costas deles são definidas ou às vezes eles mostram que eles estão tirando fotos no espelho para mostrar que o corpo dele é lindo [...]” (sic) (LUCAS, 24 anos).

Além de ser uma forma de provar, ou ao menos mostrar aos outros usuários a conformidade com os ideais de beleza, masculinidade, discrição e “aparência heterossexual” vigentes entre homens que buscam por relações homodesejantes, o uso de imagens de atributos físicos socialmente associados às práticas de musculação e consequentemente aos ideais de masculinidade hegemônica em plataformas digitais como o Grindr se popularizou devido a uma série de fatores (MOWLABOCUS, 2010; MISKOLCI, 2017). Segundo Miskolci (2015, 2017), o “festival de bíceps e tríceps” e a efervescência de fotos de peitos e abdomens em aplicativos geossociais como o Grindr se consolidaram, sobretudo, devido ao design dessas mídias digitais as quais priorizam o imagético em detrimento do visual. Cabe frisar, nesse ínterim, que a predominância de partes específicas do corpo- braços, peitos e abdomens- no campo visual da plataforma digital se deve a restrições legais às imagens de perfil que se pautam na “proibição de fotos de corpos nus, e inclusive as que mostram abaixo do umbigo, que geraram a profusão de fotos de peitos e abdomens em aplicativos voltados para a paquera entre homens” (MISKOLCI, 2017, p. 98). Depreende-se, portanto, que a supremacia do imagético sobre o textual contribui para a potencialização das exigências em relação ao tipo corporal, colocação com a qual Enrique, 37 anos, corrobora, conforme observado no relato a seguir: Entrevistador: Tá. Mas você acha que o aplicativo potencializou essas exigências, essa? Enrique: Sem dúvida porque você está lidando ali com imagens direto. Você não está lidando com descrição. Por exemplo, eu tenho um amigo, eu tenho dois amigos que pesam 82 quilogramas. Mas aí a pessoa não fala “Ah, eu sou definido, eu faço musculação”. No aplicativo você está vendo a foto da pessoa. (ENTREVISTA COM ENRIQUE, 37 anos).

Vale ressaltar, nesse ínterim, que os próprios criadores da plataforma digital em questão contribuíram para a propagação do ideal de corpo ali predominante, pois as imagens promocionais do Grindr disponibilizadas pelo site do aplicativo amiúde

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retratava usuários brancos, sarados que se enquadram ao menos visualmente naquilo que o imaginário social associa à “heterossexualidade”, como se observa nas figuras da seção “Um passeio pelo Grindr”. Foi apenas recentemente que o site do aplicativo passou a usar também outros tipos de imagens na página inicial e abriu um espaço no qual se encontram informações sobre “identidade de gênero”, possivelmente devido à exclusão aparente de usuários que põe em xeque o alinhamento (sexo-gênero-orientação sexual), evidenciada no dia-a-dia da mídia digital. Devido a supremacia do campo visual nos contatos online viabilizados por aplicativos como o

Grindr, muitos usuários são

impelidos a

reforçar a

performatização de características socialmente associadas à masculinidade e consequentemente a capacidade de “parecerem heterossexuais, mesmo que não sejam” lançando mão de meios imagéticos (MOWLABOCUS, 2010; CROOKS, 2013; MILLER, 2015; MISKOLCI. 2015, 2017). Impossibilitados de usarem imagens do “pênis ereto”- concebido socialmente como símbolo supremo da masculinidade hegemônica- como fotos de perfil, tais usuários passam a utilizar imagens de partes de corpo associadas à prática de exercícios físicos ou musculação (bíceps e tríceps definidos, peitos sarados, barrigas tanquinho) no intuito de provar, ou ao menos, demonstrar o enquadramento nos ideais vigentes de masculinidade hegemônica, discrição e “aparência heterossexual”. Isso se evidencia, além disso, no uso excessivo de fotos de perfil dentro de academias, seja no banheiro masculino ou nos aparelhos, conforme constatado pela imersão etnográfica durante a qual também se observou a utilização de imagens de potes de suprimentos como fotos de perfil, provavelmente devido a associação desses às práticas de musculação concebidas socialmente como atributos dos titulares da masculinidade hegemônica. Devido a imposição coerciva do ideal de beleza corporal em questão e sua associação aos padrões ditados pelo modelo de masculinidade dominante, e consequentemente à capacidade de “parecer heterossexual”, muitos homens que buscam por relações homodesejantes se sentem impelidos a se enquadrar nesses

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ideais para que possam gozar da possibilidade de “serem desejados”, como se evidencia no relato apresentado a seguir: “Eu nunca fiz uma academia, nunca malhei, o único esporte que eu pratiquei na vida e que eu gosto é natação. E quando você vê aquilo automaticamente você se sente... você se sente... você não se sente bom o bastante. Você acaba ficando assim ‘Nossa eu tenho eu ficar tão sarado e gostoso suficiente para que alguém se sinta atraído por mim ou tirar uma foto assim’” (sic). (LUCAS, 24 anos).

Observa-se, no relato acima, que a não-conformidade ao padrão corporal idealizado no contexto dos homens que buscam por relações homodesejantes online, pode criar um sentimento de menos-valia por parte de alguns usuários que sentem que só podem ser desejados se tivessem um corpo “sarado e gostoso”, pois este como já apontado, é concebido como metáfora do enquadramento nos ideais da

masculinidade

dominante

que

per

si

é

associado

socialmente

à

“heterossexualidade”. Tais sentimentos de menos-valia e as repercussões da normatização e idealização do corpo “sarado, musculoso e definido” sobre a autoestima e imagem corporal dos usuários se evidenciam também no relato a seguir: “É, você começa a se questionar "será que alguém vai me querer?" A gente tem esses momentos de fraqueza, até as personalidades mais fortes tem esse sentimento de fraqueza em algum momento. Eu mesmo tive, é, teve uma vez que eu realmente pensei "será que eu sou feio demais? Será que alguém vai me querer? Será que tem alguém que goste de pessoas do meu tipo?" Então a gente chega a pensa nisso por causa dessas, é por causa dessas opções” (sic) (FRANCISCO, 19 anos).

Ressalta-se que os questionamentos indagados por Francisco em relação a própria aparência giram em torno de um ponto central: a possibilidade de ser desejado pelo outro. Assim como os discursos efeminofóbicos são internalizados inclusive por aqueles que não se enquadram nos ideais da masculinidade hegemônica conforme apontado na primeira subseção, a imposição do “corpo sarado, musculoso, definido e liso” também é introjetada por aqueles cujos corpos são considerados estranhos e, portanto, são alocados ao abjeto, pois não vale a pena serem desejados. Isso não se reflete apenas através dos sentimentos de menos-valia em relação a própria aparência ou indagações referentes à possibilidade de ser desejado, mas também através dos termos que alguns usuários usam para descrever a si mesmos em contraste aos vocábulos utilizados para se

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referir àqueles que se encaixam no padrão de beleza corporal concebido socialmente como ideal. Destaca-se, nesse ínterim, o uso do adjetivo “gostoso”, no relato de Lucas, para se referir ao “corpo sarado”. Esse adjetivo é utilizado coloquialmente para descrever pessoas que são consideradas “atraentes” ou “sexualmente apetecíveis”. Corrobora-se, portanto, com a associação exclusiva do “corpo sarado, musculoso, definido e liso” à atração e apetência sexual, que se evidencia também no relato de Oswald 36 anos: “Olha, geralmente é com esse tipo de pessoa que eu conversava mais, sabe? É porque como eu te disse, é legal você ver um cara bonito com olhos azuis, verdes com esse perfil, lisinho, fortinho, ou seja fala ‘nossa que gostoso’, atrai o olhar, né?” (sic). Uma associação semelhante se consolida através do uso do vocábulo “melhor” ao se referir ao “corpo malhado” no trecho da entrevista com Abelardo, 26 anos, apresentado a seguir: Abelardo: É porque, é mais a coisa visual, então como eles veem as fotos, o perfil, tudinho, então eles veem, então esse aqui é malhado, esse aqui eu quero, esse aqui é estranho, esse aqui tem o corpo estranho, então esse aqui eu não quero, então eles procuram aquela coisa melhor. Entrevistador: Melhor? Abelardo: Melhor no sentido do padrão do corpo, do desejo, do desejado (Entrevista com Abelardo, 26 anos).

Destaca-se, nesse sentido, que há uma hierarquia entre o “corpo malhado” visto como o “melhor”, “o desejado” , “ a norma a seguir” e outros tipos de porte físico concebidos como inferiores numa dicotomia semelhante às lógicas binárias de gênero e sexualidade, uma vez que a relação estabelecida entre as partes é analógica à oposição: superior/inferior; normal/anormal; heterossexual/viado etc. Cabe frisar, nesse sentido, que a hierarquização estabelecida entre os tipos corporais não se pauta apenas na imposição imagética coerciva do corpo “sarado, músculoso, definido e liso” mas também pelo consentimento daqueles cujos corpos não se conformam aos ideais impostos pelo status quo heteronormativo vigente, que se evidencia também no depoimento de Francisco, 19 anos o qual demonstra que o próprio colaborador “não acha seu corpo bonito” devido ao não-enquadramento nos ideais do corpo sarado, musculoso e definido,. Isso se observa quando Francisco

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ressalta: “(...) eu não me preocupo muito com o corpo do outro até porque meu corpo não é mil maravilhas” (sic). Tal discurso é compreensível em meio à imposição normativa do padrão de beleza corporal que paira entre homens que buscam por relações homodesejantes, uma vez que o único corpo visto como “mil maravilhas” é aquele considerado sarado, musculoso, definido e liso. Todos os outros tipos de corpos “não são mil maravilhas”, são estranhos, enviadecidos, abjetos. Reforça-se, portanto, a ideia de que para “ser desejado”, há que ter ou ao menos mostrar que tenha um corpo “sarado, musculoso, definido e liso”. Assim, alguns passam a adotar medidas como a prática de exercícios físicos e de musculação e mudanças no estilo de vida no fito de se enquadrarem no padrão corporal idealizado pelos homens que buscam por relações homodesejantes, ainda que a consolidação de tais táticas seja contra a própria vontade, como se evidencia no relato a seguir: “Por que eu fiquei assim, não agora no começo, ‘agora eu tenho que estar padrãozinho para ser atrativo, para ser bom o bastante para alguém’ Aí depois da primeira semana tentando ser padrãozinho eu fiquei “não... quem eu quero enganar. Eu gosto de comer besteira, eu não gosto de brincar de surfista, eu gosto de dormir tarde, eu gosto das minhas coisas, quem gostar de mim tem que gostar do jeito que eu sou”. E sabe dá mais certo você ser quem você é do que se esconder por trás de um corpinho sarado” (sic) (LUCAS, 24 anos).

Ao contrário do Lucas que chegou à conclusão que seria mais fácil aceitar a si do “jeito que é” após tentativas de mudanças no estilo de vida, alguns usuários adotam medidas mais drásticas devido às exigências em relação ao corpo, lançando mão de suprimentos para o crescimento muscular ou até mesmo de anabolizantes, como se observa no trecho de entrevista a seguir: Entrevistador: Quando eu te perguntei se você se sentia exigido a se encaixar nesse padrão, em algum momento você já procurou meios no mundo real para se encaixar nesse padrão? Enrique: Já, já cheguei a tomar anabolizantes, já, já cheguei sim (...) Entrevistador: Você acha que isso é comum entre homens homossexuais? Enrique: Bastante. Aqui em Porto Velho eu conheço gente que faz uso disso (...) Eu falo Porto Velho, porque como eu te disse, eu nunca tinha vista numa cidade com tão, tão assim voltada para isso. Eles são, qualquer pessoa você vê que é, é ‘bombadinha’, é, eu não sei se procede, mas eu fiquei sabendo que é pela facilidade do uso de anabolizantes que tem por conta da fronteira com a Bolívia que é fácil de arrumar. Já falaram para mim que com 500 reais você compra um ciclo inteiro. Então eu acho que é isso, eu acho que tem esse

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padrão aqui. Entrevistador: Você acha que muitos usuários fazem uso do anabolizante? Enrique: Bastante. Entrevistador: Ou é... De suprimentos? Enrique: A única coisa que cresce naturalmente é planta. Então uma pessoa bombada falar para mim que é suprimento, é mentira. (ENTREVISTA COM ENRIQUE, 37 anos).

A supremacia dos ideais da musculação e do corpo “sarado, definido e liso” e a associação sinonímica desse padrão ao modelo dominante de masculinidade em plataformas digitais como o Grindr se mantém também através da exclusão e abjeção afligidas àqueles que possuem corpos não-conformes aos ideais estipulados, e portanto, são taxados como “corpos estranhos” e arremessados fora do campo do desejo. Isso se evidencia nas experiências que alguns colaboradores vivenciavam durante contatos online com outros usuários, sendo negligenciados ou ofendidos pelo outro devido ao não-enquadramento nos ideais vigentes de “beleza corporal”. Por exemplo, Ricardo, 24 anos, relatou já ter sido “ignorado” por outros usuários após o envio da foto como se observa a seguir: (...)é mais aquela coisa assim vê a foto e ignora às vezes ou às vezes responde por responder, mas você sente que não está, que não está fluindo porque a pessoa está desinteressada, sabe? E é uma decepção estética eu não falo física, sabe? Ah é corpo malhado e tal, se é gordo ou não. Mas pela, pelo fato de você é, ser ignorado assim exclusivamente com base nisso (sic) (RICARDO, 24 anos).

Por outro lado, Théo, 26 anos, relatou que tanto ele quanto alguns amigos já receberam ofensas de outros usuários por não se enquadrarem no padrão corporal idealizado por homens que buscam por relações homodesejantes, como se observa a seguir: “ Já falaram que eu tenho o corpo estranho, que eu tinha barriga quebrada, coisa do tipo, mas isso não me incomodou” (sic). Embora apontasse que não se incomodou com os comentários que outro usuário tecera a respeito de seu corpo, Théo mostrou-se bastante irritado com a ofensa que afligiu um de seus amigos no aplicativo, como se observa no relato a seguir: “Ah, eu tenho um amigo que ele está um pouco acima do peso. Então, já teve coisa ofensiva de chamá-lo de gordo ou ah, coisas pejorativas tipo “rolha de poço” e ele me mostrava isso e aquilo me incomodava bastante, né? Porque a gente toma a dor dos amigos, não tem jeito, a gente se compadece dos amigos, então eu queria, eu, eu não tive esse tipo de preconceito, mas ver isso... Eu achava que não tinha esse tipo de preconceito, eu achava que a pessoa no aplicativo não curtiu, não curtiu, beleza, cortava papo. Mas se dar ao trabalho de fazer uma ofensa para uma pessoa que ela não conhece, que ela não sabe quem é... Então isso eu achei, sei lá, muito pesado. Muito desnecessário” (sic) (THÉO, 26 anos).

126

Nota-se que, devido a tais pressões e exigências em relação ao corpo que por vezes se materializam em forma de ofensas e tentativas de invisibilização daqueles cujos corpos não se conformam aos ideais impostos pela matriz heterossexual, alguns usuários acabam evitando o uso de plataformas como o Grindr para evitar as represálias que afligem aqueles que foram alocados ao abjeto, como se observa no trecho de entrevista apresentado a seguir: Enrique: Eu conheço gente que já saiu do aplicativo por conta disso, por conta desse tipo de exigências. Entrevistador: Poderia me falar mais sobre essas pessoas, se você puder? Enrique: Sim. Porque eu perguntei para a pessoa porque a pessoa gosta muito de sexo e eu falei “mas porque você não está no aplicativo?”. E a pessoa falou “porque eles exigem um padrão, um padrão estético, um padrão de idade, então por isso eu saí porque eu não vou, eu não, eu me senti humilhado dentro do aplicativo (sic) (ENTREVISTA COM ENRIQUE, 37 anos).

Além do uso exacerbado de imagens corporais, das ofensas e das tentativas de invisibilização daqueles que não se enquadram no padrão de corpo idealizado por homens que buscam por relações homodesejantes, as exigências em relação ao porte físico e associação do corpo sarado ao modelo dominante e desejado de masculinidade e à ausência do efeminamento também se replicam por meio de algumas descrições de perfil como a disponibilizada por “Bi”, 28 anos: “Gostoso malhado. Curto uma pegação entre machos. Chupação, beijos, punheta, gozar litros hehehe. Não curto afeminados. Curto caras com corpos legal” (sic). Isso também se evidencia em descrições de perfil comumente encontradas ao rodar o aplicativo em Porto Velho que contém frases excludentes como: “Não a gordos!” , “Não a magros!” ou “não curto peludos”. Embora o pelo corporal seja uma característica visivelmente associada à masculinidade/virilidade/ser homem, esse atributo físico não se inclui nos ideais de beleza e masculinidade hegemônica que permeiam as relações homodesejantes, devido à pornificação do corpo dos homens que

possuem

desejos

homo-orientados

apontada

por

vários

autores.

(MOWLABOCUS, 2010; TZIALLIAS, 2015; MISKOLCI, 2015, 2017). Destaca-se, nesse ínterim, que a “pornografia gay” mainstream “hipererotizava”

atores

pornôs

brancos,

sarados,

lisos

e

que

performatizavam

características socialmente associadas aos ideais da masculinidade hegemônica e consequentemente à “heterossexualidade”. Esses eram, amiúde, representados

127

tanto como dominantes quanto como o centro das cenas eróticas e sexuais, ao passo que a figura do homem efeminado e/ou magro era comumente retratada pela indústria pornográfica como um ser submisso, “passivo” e alvo do desprezo do ator macho, “ativo” e dominante. Como já apontado antecipadamente, a pornografia foi por muitos anos o único meio através do qual homens que buscam por relações homodesejantes poderiam ter acesso a representações e referências sobre si mesmos. Por isso, muitos dos ideais propagados pela indústria pornográfica se manifestam nas preferências eróticas, padrões corporais e modelo dominante de masculinidade idealizados por homens que buscam por relações homodesejantes (MOWLABOCUS, 2010; TZIALLIAS; 2015; MISKOLCI, 2015, 2017). Nesse sentido, observa-se que a influência da indústria pornográfica sobre os desejos e estilos de vida daqueles que buscam por relações homodesejantes promoveu a propagação do alinhamento sinonímico entre o “corpo sarado”, o “macho discreto” e o “homem heterossexual” cuja figura ocupa o centro dos desejos homo-orientados. Cabe frisar, além disso, que a perpetuação dessa sinonímia socialmente construída e normatizada só é possível devido à subalternização daqueles que não têm corpos sarados, não são machos discretos e portanto não conseguem “parecer héteros”, mesmo que não sejam. Destaca-se, nesse caso outro alinhamento sinonímico socialmente propagado entre o “corpo magro”, o “efeminamento” e “ser não-heterossexual” (viado) cuja figura é alocada ao abjeto, taxada como corpo estranho e portanto arremessada fora do campo do desejo, pois tal sujeito nem é considerado “homem” para ser desejado por um homem que busca por relações homodesejantes. Esse processo de invisibilização daqueles que foram alocados ao abjeto devido à não-conformidade com os ideais de beleza corporal e masculinidade hegemônica se evidencia no relato a seguir: “Às vezes, as pessoas pegam pesado. Às vezes as pessoas, uma pessoa, por exemplo, que está dentro do padrão normativo de que é bonito, ahm a pessoa que tem o corpo definido e ele se desfaz de uma pessoa que não tem, sem pensar no que aquela pessoa tem a oferecer, às vezes ela tem muito a oferecer, mas ela simplesmente por não se encaixar, ele prefere ofender e excluir e evitar como se não, se aquela parcela do grupo não existisse” (THÉO, 26 anos).

128

Observa-se, nesse sentido, que quem está “dentro do padrão normativo” é concebido pelo ethos sexual ali vigente como a única possibilidade de ser-existirdesejar como homem que vale a pena ser desejado. A existência daqueles que põem em xeque as regras impostas por esse “padrão normativo”, como os efeminados, os magros ou homens que não conseguem “parecer heterossexuais” mesmo que não sejam passa a ser negligenciada, invisibilizada simplesmente “por não se encaixar” nos pressupostos heteronormativos idealizados. É nesse sentido que se destaca que o abjeto é reservado àqueles cujas vidas não são consideradas vidas (BUTLER,1993, 2003; PRINS; MEIJER, 2002). Considerando que tanto o “efeminamento” quanto a “magreza” e a “nãoheteroosexualidade” são alocados ao abjeto, faz-se oportuno destacar que a associação socialmente estabelecida entre as três dimensões se fortaleceu devido ao legado do pânico sexual da AIDS. Segundo Miskolci (2015, 2017), a divulgação midiática de fotos de pacientes terminais propagou uma associação entre a magreza e a doença. Como a AIDS era concebida como “praga gay” e pairava, no imaginário social, a associação entre o “efeminamento” e os desejos homo-orientados, se solidificou um atrelamento da magreza ao efeminamento (e vice-versa), ambos os quais são renegados ao abjeto, ao viado. Aponta-se, nesse sentido, que a manutenção desse padrão ideal de homem baseada na figura de um “ator pornô” pauta-se na exclusão daqueles cujos corpos não se enquadram no protótipo de homem malhado, sarado e praticante de atividades físicas. Esse “não-enquadramento” no padrão ideal de corpo pode ser visto, muitas vezes, como sinônimo de “efeminamento” e, portanto, põe em xeque o ethos predominante de discrição, masculinidade hegemônica e a necessidade de “parecer heterossexual”, mesmo que o sujeito não seja. Assim, no contexto das relações homodesejantes mediadas por plataformas digitais como o Grindr, evidencia-se a supremacia de quem se apresenta como “sarado= macho discreto= homem heterossexual=centro do desejo” sobre aquele que é concebido como “magro=efeminado=viado= corpo estranho (abjeto) ”. Tal preponderância se manifesta na seletividade e filtração excessiva de alguns usuários que só se mostram receptivos a manter contato com o “sarado= macho discreto=homem heterossexual”. Isso se evidencia no relato de Abelardo, um dos

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colaboradores, que se queixou que nenhum usuário respondia suas mensagens quando sua foto de perfil era uma foto dele mesmo: um homem visto socialmente como “magro”. A partir do momento que Abelardo criou um perfil fake com as fotos de um homem cujo corpo se enquadra no padrão pornográfico visto como ideal, a maioria dos usuários passaram a responder suas mensagens e mostrar maior receptividade e desejo de manter contato, como se observa no trecho da entrevista a seguir: Abelardo: Por exemplo, eu já usei muito o aplicativo sendo eu mesmo, eu ali, então eu conversava com certas pessoas e elas me ignoravam por ser eu. Então eu comecei... Teve uma época que eu criei um fake e esse fake era o que as pessoas desejavam assim... Na forma... Entrevistador: Como que era esse fake? Abelardo: Na forma física, na forma física. Era imagem de internet que tinha o corpo bacana, que tinha o rosto bonito, então as pessoas aceitavam. As pessoas conversavam, as pessoas mandavam números, mandavam contatos, mandavam isso e aquilo, elas se interessavam mais. Quando era somente eu, pelo meu porte físico, isso é que as pessoas me ignoravam, as mesmas pessoas. Eu acabava fazendo esse teste com as mesmas pessoas. E elas sempre me ignoravam, não me respondiam, deixavam-me de lado (ENTREVISTA COM ABELARDO, 26 anos).

Observa-se que, quando Abelardo era “ele mesmo” no aplicativo e disponibilizava fotos reais que demonstravam seu porte físico magro que não se enquadra nos padrões midiática, pornográfica e socialmente impostos de corpo ideal, ele foi alocado ao abjeto- mesma posição ocupada pelos efeminados e por aqueles que não conseguem “parecer heterossexuais” no contexto das relações homodesejantes mediadas digitalmente. Assim como esse colaborador, usuários que apresentam características que os arremessam ao campo do subalterno são geralmente ignorados ou bloqueados pelos usuários que apresentam demandas coercivas em relação aos ideais da masculinidade hegemônica camuflados por trás da busca ensandecida pelo “corpo sarado, definido e liso”. Nesse sentido, Abelardo ressaltou: “Pelo fato de não ter aquele padrão de um corpo bem malhado, bem estruturado, por ser magro do jeito que eu sou. As pessoas excluíam. Não, não quero papo com você. Você malha? Então não quero papo com você.” (sic). Cabe frisar que demonstrar o não-enquadramento no padrão de corpo sarado e musculoso acarreta uma série de ideias pré-concebidas acerca do “jeito de ser” dos usuários que se apresentam como magros, uma vez que a magreza é associada à fragilidade, ao efeminamento e consequentemente à não-heterossexualidade,

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todas as quais são alvos da abjeção e arremessam os usuários fora do campo dos desejos homo-orientados mediados digitalmente que giram em torno da figura do homem heteressoxual ou ao menos aquele que “pareça ser” mesmo que não seja. Reversamente, o suposto enquadramento no padrão de corpo idealizado entre usuários de plataformas digitais como o Grindr que pode ser presumido no contato online por meios imagéticos ocasiona uma gama de ideias pré-concebidas acerca do parceiro em potencial, uma vez que o corpo sarado e musculoso é associado à força física, à virilidade/masculinidade hegemônica, à discrição e consequentemente à “heterossexualidade”, todas as quais ocupam posições superiores nas hierarquias e lógicas binárias de gênero e sexualidade impostas pela matriz heterossexual. Isso se evidencia no relato de Ricardo, 24 anos ao considerar que certos atributos físicos que possui criam uma falsa ideia sobre sua conformidade aos ideais da masculinidade hegemônica, como se observa no trecho da entrevista apresentado a seguir: “A impressão que uma pessoa pode ver de mim, tanto por causa da voz, por causa da barba, por causa da, da, às vezes da barba dá cara de mal, a altura. Mas assim, se eu disse que me sinto encaixado nisso eu não me sinto, entendeu? Às vezes as pessoas tem uma impressão e criam até às vezes uma... Um certo receio de decepcionar, entendeu? Então tipo, muitas vezes eu não dou andamento na conversa porque é aquilo, tipo assim, como só é vendida uma parte minha no aplicativo, a pessoa vem com uma ideia errada, às vezes, tipo assim, já chega achando que sou o ‘ativão’, o dominador, não sei o quê, não sei o quê e não necessariamente é assim, entendeu? Eu já sou um cara mais ‘light’, eu gosto mais de conversa, é, gosto do sexo, gosto do, do, estou disposto ao que rolar, estou, e aí a pessoa já vem vendendo uma imagem que às vezes até me decepciona porque aí... Eu, por exemplo, eu não quero uma pessoa que seja submissa, que faça tudo pelo outro, sabe? Aquela pessoa que se molda e as pessoas às vezes vêm se moldando para mim, para conversar comigo e até eu explicar que ‘focinho de porco não é tomada’, a conversa não flui mais, entendeu?” (sic) (RICARDO, 24 anos).

Aponta-se, nesse relato, que alguns usuários elaboram conclusões acerca do “jeito de ser” do parceiro em potencial a partir da impressão registrada pelas fotos disponibilizadas tanto no perfil quanto na troca de mensagens. Considerando que a “barba”, “ cara de mal” e “ser alto” são atributos físicos e visuais socialmente associados aos ideais da masculinidade hegemônica, alguns usuários presumiam que Ricardo necessariamente apresentava outras características de personalidade que são culturalmente atreladas aos mesmos ideais: gostar de penetrar (ativão), ser “dominador”, desejar pessoas submissa etc. Apesar do seu porte físico (alto e com

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cara de mal), o colaborador demonstra que possui características e preferências que fogem do padrão normativo e dominante de masculinidade, pois se descreve como uma pessoa “light” e que prefere conversar do que se engajar em práticas sexuais. Depreende-se, portanto, que a busca frenética pelo “corpo sarado” e por atributos físicos como a barba, “cara de mal” e “ser alto”, no contexto das relações homodesejantes mediadas por aplicativos como o Grindr, é intrinsicamente uma busca por um parceiro que performatiza comportamentos associados ao modelo dominante

de

masculinidade

e

consequentemente

é

capaz

de

“parecer

heterossexual”, mesmo que não seja. Uma

vez

comportamentos

que

a

performatização

culturalmente

associados

de à

características, masculinidade

atributos

e

hegemônica

é

concebida pelo imaginário social como metáfora de “heterossexualidade”, o corpo sarado visto como metáfora da masculinidade dominante passa também a ser atrelado pelo status quo vigente à “heterossexualidade”. Todavia, faz-se mister destacar que a propagação dos

ideais de

masculinidade hegemônica e a sinonímia socialmente perpetuada entre o enquadramento nesses padrões e a heterossexualidade, entre homens que buscam por relações homodesejantes, não se pautam apenas na supremacia do “macho, discreto e fora do meio” sobre o efeminado e na predominância do corpo “sarado, liso e musculoso” sobre os outros tipos de porte físico, mas também na reiteração de hierarquias

e lógicas binárias que englobam outras intersecções como o papel

sexual, a classe social, a idade e a raça. 7.3 “O PADRÃO DO PADRÃO”: A MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E OUTRAS INTERSECÇÕES A busca impetuosa por uma masculinidade pautada nos modelos impostos pela matriz heterossexual entre homens que buscam por relações homodesejantes já foi apontada em diversas pesquisas (TAYWADITEP, 2001; MOWLABOCUS, 2010; LANZIERI; HILDERBRANDT, 2011; ANNES; REDLIN, 2012; MISKOLCI, 2013, 2015, 2017). Além das representações midiáticas e das imposições pornográficas, é imprescindível destacar que os próprios movimentos de ativismo “gay e lésbico”

132

decorrentes dos acontecimentos do Stonewall Inn contribuíram para a propagação dos padrões de masculinidade pautados na matriz heterossexual e para a supremacia e imposição do modelo norteamericano de ser/existir/desejar como homem (STEARNS, 2010; MISKOLCI, 2012, 2015). Ao passo que tais movimentos concediam visibilidade aos homens que buscam por relações homodesejantes que se enquadravam no modelo “branco, jovem e rico” e não punham em xeque as normas impostas pelo alinhamento (sexogênero-orientação sexual) que asseguravam a hegemonia do homem heterossexual branco, as especificidades e necessidades daqueles que não se conformavam aos ideais desse padrão eram constantemente eclipsadas. A invisibilização das diferentes formas de ser/existir/desejar como homem repercutiu

consequentemente

sobre

o

ethos

que

permeia

as

relações

homodesejantes uma vez que esse se pauta na supremacia dos “machos”, “sarados”, “ativos”, “jovens”, “ricos” e “brancos” -que ocupam a mesma posição de centro de desejo que a heterossexualidade ocupa nas hierarquias de sexualidade sobre os “efeminados”, “magros/gordos”, “velhos”, “pobres” e “negros” alocados ao campo do abjeto, do viado. Destaca-se, nesse ínterim, que a inclusão de diferentes características no padrão normativo preeminente de masculinidade hegemônica visto como sinônimo de “heterossexualidade” ou capacidade de “parecer heterossexual” vigente no contexto das relações homodesejantes mediadas digitalmente, se evidencia no relato a seguir: “Tem pessoas que procuram pessoas jovens bonitas gostosas e ricas, ou seja, é o padrão do padrão né, o cara é gostoso tem pau grande, tem bunda gostosa não tem estria, é musculoso, é liso, além de ser um príncipe maravilhoso que é do conto de fadas o cara é rico ou nossa que legal ser perfeito né, é o príncipe encantado, então tem gente que busca isso (sic)” (OSWALD, 36 anos).

Ressalta-se, nesse relato, a referência ao “príncipe encantado”, personagem principal de muitos contos de fada que é amiúde retratado pela indústria cinematográfica

como

um homem

branco,

rico,

jovem e que

apresenta

características socialmente associadas à masculinidade hegemônica como a força e a coragem. Na dinâmica das relações homodesejantes, características como o papel

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sexual insertivo (ativo), a branquitude, a riqueza e juventude ocupam a mesma posição de superioridade reservada àqueles que se enquadram nos padrões hegemônicos de masculinidade

e,

portanto,

são

capazes de

“parecerem

heterossexuais” mesmo que não sejam. Em consonância ao modus operandi das hierarquias e lógicas binárias de gênero e sexualidade socialmente vigentes, a supremacia do “ativo”, “rico”, “jovem” e “branco” evidenciada nas relações homodesejantes mediadas online se pauta na subalternização do “passivo”, “pobre”, “velho” e “negro”. Reforça-se, portanto, a necessidade de abordar a imposição dos ideais de masculinidade hegemônica entre homens que buscam por relações homodesejantes considerando as seguintes intersecções: posição sexual, classe social, idade (faixa etária) e raça. Primeiramente, faz-se mister destacar que várias pesquisas já apontaram a existência de uma dinâmica de poder que superioriza o parceiro insertivo (aquele que penetra) e subalterniza o parceiro receptivo (aquele que é penetrado), entre homens que buscam por relações homodesejantes (ROSSER et al, 1998; TAYWADITEP, 2001; DAMON; ROSSER, 2005; COLLIER et al, 2015). Tal dinâmica se manifesta nitidamente nas nomenclaturas coloquialmente utilizadas para se referir aos homens que buscam por relações homodesejantes segundo o papel sexual. Nesse ínterim, aponta-se o uso da expressão “Top” (em cima) nos países anglo-saxões para se referir ao parceiro insertivo que ocupa uma posição superior em relação ao parceiro receptivo ao qual se refere como “Bottom” (em baixo), pois ocupa uma posição inferior na dinâmica de poder que rege as relações homodesejantes, geralmente e aquelas mediadas online, especificamente. No Brasil, por outro lado, é comum a utilização do termo “ativo” para se referir ao parceiro insertivo concebido como superior ao parceiro receptivo ao qual se refere como “passivo”. Nesse sentido, o binômio ativo-passivo nos remete à lógica binária de gênero historicamente perpetuada entre a masculinidade e a feminilidade, pois ao passo que a “atividade” é vista como característica exclusiva da masculinidade, a “passividade” é socialmente associada à feminilidade. O relato de um dos entrevistados acerca do relacionamento com o ex-marido corrobora com a dinâmica de poder aqui explicitada, conforme se observa a seguir:

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Raramente ele queria fazer passivo comigo eu não entendia porque, quando nós abrimos relacionamento ele fazia passivo com os outros caras, mas comigo ele não fazia então eu acho de certo modo era uma relação de poder, porque ele queria manter esse lugar na hierarquia, ele ganhava mais, a profissão dele entre aspas era mais importante né? Ele achava que era mais importante, mais útil, né”? (sic) (OSWALD, 36 anos).

Embora existam muitos homens que buscam por relações homodesejantes que desejam tanto penetrar quanto serem penetrados, aos quais se refere coloquialmente e dentro de plataformas digitais voltadas ao público masculino como “versáteis”, evidencia-se que a dicotomia “ativo-passivo” vige entre homens que buscam por relações homodesejantes. A propagação desse binarismo pauta-se no culto ao “ativo” visto como sinônimo de enquadramento no padrão hegemônico de masculinidade e consequentemente à capacidade de “parece heterossexual” mesmo que não seja e no desprezo ao “passivo” cujo papel sexual é associado ao efeminamento. Ou seja, ao passo que aquele que possui um papel sexual “ativo” é concebido imaginariamente como “ homem viril heterossexual”, aquele que prefere ser penetrado (passivo) é enviadecido, alegado ao abjeto, lugar também ocupado pelo feminino. Essa dicotomia e a associação do papel sexual receptivo (passivo) ao efeminamento se evidencia quando Francisco, 19 anos que fazia uso do Grindr na zona urbana de Porto Velho ressaltou: “Uma das primeiras coisas que eles perguntam, depois que eles perguntam se é passivo ou ativo é se você é afeminado ou não” (sic). Destaca-se, além disso, que a associação do “passivo” ao efeminamento e o atrelamento do “ativo” à masculinidade se evidenciam mais nitidamente no relato a seguir: Então eu tenho preferência homens ativos ou versáteis que é, rasgando o verbo, que me coma também. Ponto! Porque eu gosto de fazer troca troca na relação sexual, é isso, né? Em termos de afeminado porque se tem no geral que os afeminados são mais passivos, não é regra eu já tive contato com afeminado que eram extremamente ativos, mas me dava uma sensação muito estranha, (risos) me dá uma sensação estranha. (Oswald, 36 anos).

Devido a sinonímia entre “ser ativo” (desejar penetrar) e o enquadramento nos ideais de masculinidade hegemônica, perpetuada no bojo das relações homodesejantes, o contato com “efeminados” que “eram extremamente ativos” foi

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concebido pelo colaborador como “estranho”, uma vez que esses põem em xeque as lógicas binárias e o alinhamento (sexo-gênero-sexualidade) impostos pela matriz heterossexual. Reforça-se, portanto, que o papel sexual insertivo é visto no imaginário dos homens que buscam por relações homodesejantes como símbolo máximo e exclusivo de “masculinidade” e, portanto, ocupa um lugar de superioridade em comparação ao papel sexual receptivo (passivo), compreendido como sinal de “efeminamento”. Logo, afirmar que se é “ativo” em aplicativos como o Grindr nem sempre tem o mero objetivo de informar o papel sexual para facilitar a concretização de encontros sexuais casuais, mas muitas vezes traz em seu bojo uma afirmação vangloriada da “masculinidade” e da capacidade de “parecer heterossexual”, mesmo que não seja. Segundo Miskolci (2017), isso explica a profusão exacerbada de perfis no Grindr com descrições do tipo “Ativo a procura de Ativo” em contraste à ausência de descrições do tipo “Passivo a procura de Passivo”. Nota-se, nesse ínterim, que a incursão etnográfica possibilitou o encontro de diversos perfis nos quais se associava o “ativo” à figura do “macho” concebido socialmente como metáfora do “homem heterossexual”. Isso, por exemplo, se evidencia nitidamente na descrição de “LEIA o perfil” (sic): “Tenho 45 anos, jeito, cara e postura de macho, sou ativo, mas isso nada impede de ficar com outro ativo (pegação entre dois machos)- se você tiver local irá facilitar nossas vidas” (sic). Vale ressaltar, nesse sentido, que por trás do “Ativo a procura de Ativo” ou do “nada impede de ficar com outro ativo”, jaz o mesmo objetivo por trás de descrições de perfil como “ Macho a procura de Macho” e “Não curto afeminados”, uma vez que a busca do parceiro em potencial gira em torno do mesmo ideal: “Pareça heterossexual, mesmo que não seja”. A propagação deste ideal e da supremacia do modelo de homem heterossexual branco, jovem e rico no bojo das relações homodesejantes mediadas online se consolidam também por meio das exigências reiteradas em relação à classe social do parceiro em potencial. A opulência, o poder financeiro e a posse de bens e propriedades foram historicamente associados à figura do homem heterossexual branco, considerado como esteio de sustentação da família tradicional. Por outro lado, aqueles que pertenciam às camadas sociais mais pobres

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foram renegados ao abjeto- campo também ocupado pelas mulheres, pelos negros e por todos aqueles considerados viados pelo status quo vigente, pois põem em xeque as normas impostas pela matriz heterossexual. Nesse ínterim, Ricardo, 24 anos que fazia uso do Grindr na cidade de Porto Velho ressaltou: “Eu acho que tem gente, por exemplo, tem gente que é rica e só fica com gente que aparenta ser rica” (sic). Nota-se, por outro lado, que as exigências em relação ao pertencimento a uma classe social abastada se observam mais nitidamente na experiência vivenciada por Francisco enquanto usava o aplicativo, como se evidencia a seguir: “Já aconteceu comigo também, uma vez, que uma das fotos do meu perfil eu estava no ônibus dava para ver as barras aqui atrás e tudo, mas o foco era eu e teve uma vez que eu puxei assunto com o menino e ele me discriminou porque eu estava no ônibus. Simplesmente eu fiquei sem reação, eu comecei a rir por que...Gente, não tem como, cara! É, você não querer uma pessoa porque ela anda de ônibus” (sic) (FRANCISCO, 19 anos).

Destaca-se, nesse relato, que “andar de ônibus” é socialmente concebido como uma indicação que o sujeito não possui muitos recursos financeiros, pois se os possuísse, teria um carro. Nesse sentido, Lucas, 24 anos brincou: “ Tem gente que fala ‘ Ah você não tem carro, não quero mais’. Isso é mais importante pra você então tá bom e tenha um relacionamento com seu carro” (sic). Oséias, 30 anos, por outro lado, ressaltou: “ As classes sociais nos aplicativos, no mundo gay em geral são o maior preconceito. Ninguém quer um gay que vá andar de bicicleta” (sic). Considerando que a “riqueza” é ainda concebida pelo imaginário social como característica exclusiva de homens heterossexuais brancos titulares dos ideais dominantes da masculinidade, quem carece de muitos recursos financeiros passa a sofrer de retaliações semelhantes aquelas afligidas à figura do homem efeminado, uma vez que tanto a “pobreza” quanto o “efeminamento” ocupam o mesmo a-lugar nas relações de poder socialmente instituídas: o abjeto, que é arremessado fora do campo do desejo, pois é concebido como sinônimo de inexistência e invisibilidade. Todavia, faz-se mister destacar que na dinâmica da maioria das relações homodesejantes mediadas digitalmente, a expressão de gênero (ser macho) e o padrão de corpo (sarado, musculoso e liso) exercem um papel maior na escolha do

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parceiro em potencial que a classe social propriamente dita. Logo, o enquadramento em algumas características físicas e pessoais associadas aos ideais da masculinidade hegemônica pode elevar alguns homens que não possuem muitos recursos financeiros do campo do abjeto para a posição do centro de desejo, principalmente quando conseguem “parecer heterossexuais”, mesmo que não sejam. Esse caráter interseccional das relações de poder vigentes entre a maioria dos homens que buscam por relações homodesejantes mediadas online se evidencia nitidamente no relato de Oséias, 30 anos, apresentado a seguir: “Por exemplo, vamos citar exemplos de preconceitos nos aplicativos: se você está no aplicativo e morar num bairro periférico você não vai pegar alguém da zona central, dos bairros de classe alta, com algumas exceções, por exemplo, se você for aquele menino pobre, mas for aquele menino malhado, ‘tanquinho’ e tal e for ativo e tiver lá os seu dotes de ‘20’.Você vai pegar as mariconas daqui da área central, porque elas vão lá tentar te oferecer financias, tentar te, é, elas vão tentar que os seus olhos brilhem, a palavra me fugiu a memória agora, mas elas vão tentar te seduzir pelo que elas possuem.”(sic).

Ressalta-se, nesse relato, que características socialmente associadas aos ideais da masculinidade hegemônica, como o corpo malhado, o papel sexual insertivo e o pênis de 20 cm, elevam o “menino pobre” da posição periférica do abjeto para a posição central de desejo ocupada por aqueles que conseguem “parecer heterossexuais” mesmo que não sejam entre homens que buscam por relações homodesejantes. Além disso, Oséias acrescentou: “Ainda tem a questão do preconceito em relação à idade, né? Porque você vê muito no aplicativo “ai curto de tal idade a tal idade” (sic). Várias pesquisas já abordaram a vigência da discriminação etária entre homens que buscam por relações homodesejantes e as repercussões do etaismo sobre as preferências eróticas desses homens (ADELMAN, 1990; ADELMAN et al; 2006; ASENCIO et al; 2009 BORGES, 2009; DAVIES; NEAL, 2009). Nesse sentido, Davies e Neal (2009) destacaram que a exclusão de homens mais velhos no universo dos homens que buscam por relações homodesejantes é uma manifestação de homofobia internalizada e medo do próprio envelhecimento, uma vez que paira no imaginário social, a ideia que tais homens envelheceriam solitários pois “não podem ter filhos”.

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Embora existam categorias como “Daddy” (homem com características paternas) e “Mature” (homem mais velho) fetichizadas pelo imaginário dos homens que buscam por relações homodesejantes a partir de influências pornográficas, prevalece em plataformas digitais como o Grindr a busca por homens mais jovens que não ultrapassem a faixa etária entre 30 e 35 anos. Isso se observa no trecho da entrevista com Enrique apresentada a seguir: Entrevistador: Tá, em algum momento você se sentiu excluído por algum usuário do aplicativo? Enrique: Pela minha idade, porque eu tenho 37 anos, eles já falaram que eu sou muito velho assim. (ENTREVISTA COM ENRIQUE, 37 anos).

Destaca-se que a exclusão e abjeção dos homens que buscam por relações homodesejantes acima dos 30 se evidencia nitidamente na expressão “gay death” (morte gay) comumente utilizada por tais homens em países anglo-saxões para se referir aos “30 anos de um homem que busca por relações homodesejantes”. Depreende-se, portanto, que no imaginário de muitos desses homens, aqueles que ultrapassaram a casa dos 30 são concebidos como “mortos”, ou seja, “ inexistentes” e “invisíveis”. Portanto, são arremessados fora do campo do desejo visto como “normal” e alocados ao abjeto-mesmo alugar ocupado pelos efeminados, magros/gordos, passivos e pobres. Esse tipo de exclusão etária nas relações homodesejantes mediadas online foi também apontado por Abelardo no trecho de entrevista apresentado a seguir: Entrevistador: Além de excluir, digamos as pessoas que não se enquadram no padrão de corpo, você acha que existe outro tipo de exclusão dentro do aplicativo? Abelardo: Eu acho que por idade também. Entrevistador: Por idade. Você ia me falar mais alguma coisa sobre isso? Abelardo: Ah, as pessoas mais velhas. Muitas delas são mais excluídas, mais deixadas de lado, porque muitas delas já não, as pessoas já não procuram mais. É tanto que elas buscam incessantemente por pessoas, elas sempre estão ali, mas nunca conseguem nada. Entrevistador: A partir de que idade? Abelardo: Acho que depois dos 30 e poucos, 35, numa faixa etária de 40, por aí. É mais difícil. (ENTREVISTA COM ABELARDO, 26 anos).

Essa dificuldade para encontrar parceiros em potencial vivenciada por parte de homens que buscam por relações homodesejantes que ultrapassaram a casa dos 30 se evidencia na efervescência de perfis com descrições que apresentam exigências em relação à idade de forma semelhante àqueles que explicitam demandas referentes à expressão de gênero e porte físico.

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Destaca-se,

nesse

ínterim,

a

descrição

de

perfil

apresentada

por

“Top20cmAlpha” (sic): “Sou HETERONORMATIVO. Ñ acredito em 2o chance.ñ insista. Eu SÓ VOU TE RESPONDER COM ROSTO CLARO SEM BONÉ/ÓCULOS, CORPO E NUDES. Ñ ACEITA? Ñ FALA COMIGO. Ñ p/Casal, GP, drogado, piercing, fora do centro, +30 anos, careca, afeminado, + 3km” (sic). As tentativas de “filtrar” os parceiros em potencial de acordo com as idades e as influências do etaismo

sobre

as

preferências

dos

homens

que

buscam

por

relações

homodesejantes online se manifestam também na descrição de “Ativo20cm” (sic): “Sou atv. curto malhado de leve e magros sem foto sem papo não a gordos E afeminados. Até 27 anos” (sic). Outro exemplo de descrição de perfil com critérios de seleção etários encontrada durante a incursão etnográfica e disponibilizada por um usuário de 24 anos que não usava um nome de perfil é: “ Sexo! Nada mais que isso. Não curto caras acima do peso, afeminados, nem acima dos 35. Papo saudável, sem muita frescura, pq estamos aqui é pra fuder. Chamou manda foto” (sic). Reforça-se, portanto, que homens que buscam por relações homodesejantes que ultrapassaram a casa dos 30 são alocados ao mesmo alugar reservado para os efeminados, magros/gordos, passivos e pobres pelas relações de poder vigentes nesse universo as quais visam a reiteração dos ideais impostos pela masculinidade hegemônica e matriz heterossexual. Ao passo que a juventude é concebida como sinônima de força física e disposição; características socialmente associadas ao modelo dominante de masculinidade, o “envelhecimento” é visto como sinônimo de fragilidade e falta de agilidade; atributos atrelados ao efeminamento/feminilidade não só pela sociedade como um todo, mas também pelo universo das relações homodesejantes mediadas digitalmente. Assim, aquele que é “acima dos 30” é amiúde arremessado ao abjeto e por ser invisibilisado e concebido como inexistente perde seu lugar no “mercado” de desejo que ali vigora. Vale ressaltar que, para reconquistar seu lugar no “mercado” das relações homodesejantes mediadas digitalmente, basta apresentar uma expressão de gênero conforme aos ideais da masculinidade hegemônica ou um porte físico consoante às imposições vigentes do corpo “sarado, musculoso e liso”. Isto é porque tais intersecções ocupam uma posição superior na lista de exigências referentes ao

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parceiro em potencial que permeiam as relações homodesejantes mediadas digitalmente, pois aquelas são diretamente associadas à capacidade do outro “parecer heterossexual” mesmo que não seja. Enfatiza-se, além disso, que essa dinâmica interseccional entre as exigências referentes ao perfil do parceiro sexual que vigem muitas das relações homodesejantes mediadas por aplicativos como o Grindr se evidencia também no cotidiano de muitos usuários negros. Nota-se, nesse ínterim, que várias pesquisas já abordaram a profusão de discursos e estereótipos racistas entre homens que buscam por relações homodesejantes, tanto contra asiáticos quanto contra negros. (EGUCHI, 2011; COLLIER et al, 2015; CALLANDER et al, 2015; MISKOLCI, 2017). Ressalta-se, além disso, a replicação desses discursos e estereótipos em aplicativos baseados na localização como o Grindr e as repercussões que exercem sobre as exigências em relação aos parceiros em potencial (ALBURY; BYRON, 2016; CALLANDER et al, 2016). Ao contrário de etnografias desenvolvidas em outros países em meios virtuais semelhantes ao Grindr onde pairavam comentários do tipo “No Blacks”, não foram encontradas descrições de perfil com conteúdo racista excludente visível durante a incursão etnográfica no Grindr dentro da zona urbana de Porto Velho. Apesar da ausência de descrições excludentes em relação à negritude semelhantes àquelas referentes às expressões de gênero e portes físicos alocados ao abjeto, faz-se mister destacar que o racismo evidenciado entre homens que buscam por relações homodesejantes no geral se manifesta na plataforma digital em questão de uma forma muito mais sútil, conforme se aponta no relato a seguir: “Se você pegar um aplicativo, no mesmo aplicativo, se você for negro, de cara você já tem uma pergunta que é “ah, os negros têm, são dotados, os negros são dotados”. Então quando você vê no aplicativo um negro que não é dotado. Eu falo isso porque eu tenho amigos negros que usam o aplicativo e a gente conversa muito sobre isso, se você ver um negro no aplicativo que não é dotado e que seja passivo, por exemplo, ele está perdido. O negro no aplicativo tem que ser ativo e dotado. Então é uma forma de preconceito” (sic) (OSÉIAS, 30 anos).

Destaca-se que os negros foram historicamente alocados ao mesmo alugar nas hierarquias raciais que as mulheres e os não-heterossexuais ocupam nas lógicas binárias de gênero e sexualidade: ao abjeto, ao inexistente, ao invisível.

141

Assim,

homens

negros

que

buscam

por

relações

homodesejantes

são

arremessados fora do “mercado” do homo-desejo uma vez que se afastam do modelo de “homem branco” propagado pela mídia e indústria cultural. Isso se intensifica, sobretudo, quando o negro apresenta características associadas ao efeminamento tanto pela sociedade como um todo, quanto pelo universo das relações homodesejantes mediadas online. Assim, “se você ver um negro no aplicativo que não é dotado e que seja passivo, por exemplo, ele está perdido” (sic), pois a junção das posições inferiores que este corpo falante ocupa em diferentes intersecções (expressão de gênero, papel sexual, raça etc) o aloca repetitivamente ao abjeto e reitera sua subjugação, perpetuando consequentemente a supremacia do ideal de “homem branco, macho, ativo, rico” que “parece heterossexual” mesmo que não seja. A preeminência deste ideal foi apontada por Abelardo, 26 anos, conforme se observa a seguir: “As pessoas procuram mais as pessoas, as pessoas como posso dizer, mais padronizadas do branco, daquela coisa europeia, aquele loiro de olhos azuis, então as pessoas procuram alguém mais próximo daquele padrão, daquela forma” (sic). Por outro lado, a associação da negritude ao tamanho avantajado de pênis apontada no relato de Oséias pode ser compreendida sob o viés da objetificação e erotização compulsória do corpo do negro abordadas em diferentes estudos (SANTOS, 2000; SILVA et al, 2012). Não obstante, faz-se oportuno destacar que o dote, ou o tamanho grande do pênis é concebido pelo status quo vigente como símbolo máximo do enquadramento nos ideais hegemônicos de masculinidade propagados pela ditadura do “macho”. Considerando que a conformidade com os ideais da masculinidade hegemônica (ser macho) ocupa a posição superior entre os critérios que pervagam a busca por parceiros em potencial online entre homens que buscam por relações homodesejantes, basta que o negro apresente certas características socialmente associadas ao ideal de masculinidade hegemônica para ocupar um lugar no “mercado” homodesejante mediado digitalmente. Para tanto, “ O negro no aplicativo tem que ser ativo e dotado” (sic), pois ao apresentar características socialmente atreladas à masculinidade hegemônica, corrobora com o ideal: “ Pareça heterossexual, mesmo que não seja”. Isso se evidencia na profusão de perfis de usuários negros que disponibilizam nomes de perfil associando a cor da

142

pele ao papel sexual ativo ou tamanho do pênis, como por exemplo: “NegãoAtv” e “NegoDotado”, pois desta forma se elevam do abjeto ao campo do desejo. Depreende-se,

portanto,

que

apesar

da

interferência

de

diferentes

intersecções como papel sexual, classe social, idade e raça na dinâmica das relações homodesejantes mediadas digitalmente, é nítido que a expressão de gênero ocupa a posição superior entre os diferentes “critérios de seleção” do parceiro em potencial vigentes entre homens que buscam por relações homodesejantes. Aponta-se, nesse sentido, que apesar de ocupar a posição de subalterno em hierarquias e relações de poder sociais, raciais e etárias, o enquadramento nos ideais de masculinidade hegemônica pode elevar o usuário do alugar do abjeto para o apogeu do “mercado” homodesejante mediado digitalmente. Para tanto, basta que os usuários se apresentem lançando mão de expressões como “macho”, “não sou afeminado”, “discreto”, “ativo”, “fora do meio”, “dotado”, pois para que sejam desejados ou “vendam sua imagem” no “mercado” das relações homodesejantes

mediadas

digitalmente,

devem

carregar

o

lema:

“Pareça

heterossexual, mesmo que não seja! ” 7.4 “ O SHOPPING DA CARNE: QUE CORPOS SE VENDEM E QUE CORPOS SE DESCARTAM? ” Um rápido acesso a plataformas digitais baseadas na localização como o Grindr gera a sensação de estar diante de uma loja virtual, sobretudo devido à semelhança no design e nas ferramentas disponíveis e à supremacia do campo imagético sobre o textual.

Aplicativos como o Grindr, todavia, são voltados ao

encontro de parceiros eróticos, sexuais ou amorosos em potencial os quais passam a exercer tanto o papel de “consumidores” quanto o papel de “produtos”, levando em consideração a lógica mercadológica que permeia as relações homodesejantes mediadas por mídias digitais desse tipo. Ressalta-se, nesse sentido, que vários entrevistados que faziam uso do Grindr na zona urbana de Porto Velho, ou teceram comparações entre o aplicativo e o mercado de alimentos, ou se referiram à plataforma lançado mão de expressões e terminologias do universo da economia, do marketing e das vendas. Nesse ínterim, Lucas, 24 anos, ressaltou: “Às vezes é como se fosse o shopping da carne mesmo.

143

Tanto é que as fotos de perfil elas falam muito isso” (sic). Nota-se, além disso, que o mesmo colaborador compara a plataforma digital a um famoso aplicativo de entrega de comida a domicílio, como se evidencia a seguir: “Ás vezes você tá com muito tesão você quer uma coisa rápida, uma coisa naquela hora e você tem aquele aplicativo nas mãos. É como se fosse um... é como se fosse aquele Ifood” (sic). Abelardo, 26 anos, por outro lado destacou: “ Porque ali é uma vitrine que as pessoas veem. Esse eu quero, esse eu não quero, esse eu quero, esse eu não quero. Por causa disso, disso e daquilo” (sic). Ressalta-se que a comparação do aplicativo a uma vitrine e a repetição do “esse eu quero, esse eu não quero” remetem a uma transação de compra e venda dentro de uma loja, seja real ou virtual. A associação do aplicativo a uma vitrine também se evidenciou no relato de Théo, 26 anos, conforme se observa a seguir: “Ah, às vezes eu sinto que o aplicativo, ele é uma vitrine de açougue e que tem ali um pedaço de carne pendurado e que a pessoa escolhe qual pedaço de carne agrada mais” (sic). Além disso, Emanuel, 18 anos, também comparou o aplicativo a uma vitrine enquanto sugeria melhorias na plataforma digital: “Eu acho que pode melhorar colocando outras categorias dentro do aplicativo, isso pode melhorar muito, menos vitrine de loja, menos corpinho sarado, mais galera colocando ‘vamos conversar’, me chama aqui, vamos nos conhecer e tal” (sic). Por outro lado, ao descrever a dinâmica das relações homodesejantes mediadas pelo bate-papo UOL- antecessor de aplicativos como o Grindr, Oswald, 36 anos, se referiu repetitivamente aos parceiros em potencial como “produtos”, conforme se evidencia a seguir: “Por exemplo, o bate papo UOL a gente conversava com a pessoa que tinha um perfil e essa pessoa descrevia, né? O seu perfil “ah eu sou alto, eu tenho um metro e tanto e aquilo, aquilo, aquilo, aquilo, aquilo...” então a gente tinha que partir para o esforço de acreditar naquilo que a pessoa estava dizendo, mas eu sempre levava no caso o MSN né? Aí eu tentava inserir ao MSN o, o, como é que se diz isso? O nick, né? Na época era o Nick (risos) e dali ver, conferir, de certa maneira entre aspas o produto, né? Porque de certa maneira, né? Era um produto digamos assim, a gente inseria para ver o produto” (sic).

Além disso, Oswald se refere às práticas sexuais casuais lançando mão do termo fast-foda cujo uso é comum entre homens que buscam por relações homodesejantes online, conforme já apontado por Miskolci (2017). Tal termo é

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derivado da famosa expressão fast-food utilizada para se referir a refeições rápidas preparadas por franquias de restaurantes como McDonald´s, evidenciando, portanto, a lógica mercadológica que permeia as relações homodesejantes aqui abordadas. Tal lógica também se observou quando Francisco comete um ato falho e se refere ao “meio LGBTIQA” como “ramo homossexual”, conforme se evidencia a seguir: Entrevistador: Ok. É, o que fazia você permanecer no aplicativo? O que ele te trazia de vantagens? Francisco: Ah, conhecer as pessoas, porque eu não tenho muita prática de sair, então eu não conheço muito as pessoas, tanto fora do ramo homossexual, como dentro do ramo homossexual e basicamente é isso. (ENTREVISTA COM FRANCISCO, 19 anos) (Grifos nossos).

Ao contrário do vocábulo “meio” que é utilizado para se referir a uma região espacial ou ao centro de um espaço, o termo “ramo” é geralmente utilizado para se referir a uma especialidade de uma categoria ou atividade profissional a qual consequentemente gera lucro, como por exemplo: ramo da administração; ramo da medicina; ramo do comércio, etc. Além disso, a comparação do aplicativo a um “ramo homossexual” se evidencia nitidamente quando Ricardo, 24 anos, ressaltou: “Eu acho, pelo menos, super raro ver um rosto no Grindr, é sempre peito, é, é, perna, é barriga, são músculos, sabe? É gente se vendendo mesmo” (sic). Observa-se, portanto, que para Ricardo, os usuários que buscam por relações homodesejantes por meio de plataformas digitais como o Grindr se vendem um para o outro, pois na lógica mercadológica que ali permeia, todos são ao mesmo tempo “consumidores” e “produtos”, ou seja “consumidores-produtos”. Considerando que o “ramo homossexual” de plataformas digitais como o Grindr se trata de um “açougue”, “shopping da carne”, “ifood” ou uma vitrine virtual na qual os usuários tentam “se vender” um ao outro, sendo ora “consumidores”, ora “corpos-produtos”, surgem algumas

perguntas:

Quais

são

as

características

mais

almejadas

pelos

usuários/consumidores-produtos? Quais corpos-produtos ocupam o topo das vendas e quais são descartados? Como que os usuários/consumidores-produtos se publicitam para serem vendidos mais, desejados mais? Qual dicas de marketing seguem? Embora se compreenda que todo usuário-consumidor do “ramo homossexual” do Grindr é desejante, pois está ali em uma busca ativa de um parceiro em potencial que deseje e faça se sentir desejado, nem todos os usuários-produtos ou corpos-

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produtos são desejados, uma vez que “aquilo que vende ou não se vende” e “aquilo que é desejado ou não”, se influencia por imposições do status quo heteronormativo vigente que permeia as relações homodesejantes como um todo, e as mediadas online, pormenorizadamente. Nas subseções anteriores, destacou-se que usuários que “vendem uma imagem” de “cara macho” que assegura o enquadramento nos ideais da masculinidade hegemônica e afasta qualquer atributo socialmente associado ao efeminamento, são concebidos como centro de desejo entre homens que buscam por relações homodesejantes digitalmente, uma vez que conseguem “parecer heterossexuais, mesmo que não sejam”. Depreende-se, portanto, que no “shopping da carne”, a característica mais considerada durante o ato de venda e compra (a busca pelo parceiro em potencial) é o enquadramento nos ideais da masculinidade hegemônica. Cabe frisar, nesse ínterim, que a escolha do corpo-produto mais “macho” engloba necessariamente a exclusão dos corpos-produtos que não sejam “machos” (efeminados e titulares de masculinidades marginalizadas) da lista de compras. Faz-se oportuno destacar ainda que o “macho” é mais desejado que o “efeminado”

nesse

“ramo

homossexual”

devido

às

imposições

da

matriz

heterossexual que se pautam nas lógicas binárias de gênero e sexualidade baseadas em relações de poder, no alinhamento (sexo-gênero-orientação afetivosexual) e na propagação do ideal “Pareça heterossexual, mesmo que não seja”. Afinal das contas, “ sempre foi vendido que o homem deveria ser desse jeito e que quem procura um homem, deveria procurar um homem desse jeito, entendeu? ” (Sic) (RICARDO, 24 anos). Outra característica apreciada nos consumidores-produtos por parte deles mesmos durante as transações de compra e venda na vitrine do açougue conhecido como Grindr, é o tipo corporal ou porte físico. Destaca-se, nesse ínterim, que aqueles que apresentam um corpo “sarado, musculoso e liso” ou atributos físicos socialmente associados à masculinidade hegemônica, são os consumidoresprodutos mais vendidos (mais desejados) e consequentemente os que mais conseguem comprar, pois são concomitantemente “consumidores” e “corposprodutos”. Destaca-se, nesse sentido, a efervescência de perguntas no espaço dedicado à troca de mensagens: “Você é sarado? ” “Você malha? ” “Tem foto do

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corpo aí? ”. Nota-se que todas essas interrogações giram em torno do ideal: “Pareça heterossexual, mesmo que não seja” pois, o corpo sarado é visto como sinônimo de “ser macho” concebido como símbolo máximo da heterossexualidade compulsória. Faz-se mister ressaltar ainda que a manutenção do corpo “sarado, musculoso e liso” no topo das vendas depende da exclusão dos corpos estranhos que não se conformam aos ideais de beleza impostos social, midiática e pornograficamente. Destaca-se, além disso, a popularização da troca de nudes em aplicativos como o Grindr, uma vez que o tamanho do pênis é outra característica apreciada pelos consumidores-produtos durante a “compra e venda” de parceiros em potencial. Se for grande, vende mais. Além da expressão de gênero e do porte físico, é imprescindível negritar outras características que são avaliadas pelos consumidores-produtos que fazem uso do “ifood” de homens que buscam por relações homodesejantes. Nesse sentido, são analisados, em segundo plano, os critérios: i)

Papel sexual: o consumidor-produto que se apresenta como “ativo” é vendido

mais facilmente que aquele que se apresenta como “passivo”, uma vez que “penetrar” é socialmente associado ao enquadramento nos ideais da masculinidade hegemônica vistos como prova suprema de ser “heterossexual”, ou ao menos parecer que seja. Por outro lado, “ser penetrado” é atrelado ao efeminamento concebido como sinônimo de não ser “heterossexual”, e é portanto enviadecido e alocado ao abjeto. No açougue Grindriano, os consumidores-produtos “machos” e “ativos” são a picanha (tipo de carne mais desejado no mercado brasileiro), ao passo que os “passivos” e “efeminados” são considerados o resto de carne podre. ii)

Classe social: o consumidor-produto que se apresenta como pertencente às

classes sociais mais abastadas é mais vendido (desejado) que aquele que demonstre que é “pobre”, uma vez que o “pobre” é alocado ao mesmo alugar de abjeto ou “resto de carne podre” ocupado pelos efeminados, magros/gordos, passivos e por aqueles que não são capazes de “parecerem heterossexuais”, mesmo que não sejam. Afinal das contas, “ninguém quer um gay que ande de bicicleta” (sic) (OSÉIAS, 30 anos).

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iii)

Idade/Faixa Etária: o consumidor-produto é geralmente mais vendido

(desejado) no ifood dos homens que buscam por relações homodesejantes quanto mais jovem ele apresenta que seja. A juventude é associada à força e disposição que são simultaneamente atreladas ao enquadramento nos ideais da masculinidade hegemônica. Portanto, os consumidores-produtos que se apresentam como “jovens” ocupam uma posição superior na hierarquia etária semelhante àquelas ocupadas pela masculinidade e pela heterossexualidade nas lógicas binárias de expressão de gênero e orientação sexual as quais são perpetuadas historicamente e vigem sobre as relações homodesejantes mediadas digitalmente. Por outro lado, aqueles que ultrapassaram a “casa dos 30” são alocados ao mesmo alugar de abjeto ou “resto de carne podre” ocupado por aqueles que assumem posições subalternas e inferiores nas hierarquias e relações de poder socialmente instituídas que per si permeiam o “mercado digital” de homo-desejos. iv)

Raça: o consumidor-produto que se apresenta como negro só é vendido

(desejado) se for dotado, “ativo” e “macho”. Caso contrário, esse consumidorproduto é arremessado fora da “vitrine do açougue”, uma vez que ocupa a posição de subalterno tanto nas lógicas binárias de gênero e sexualidade quanto nas hierarquias raciais historicamente perpetuadas. “Se você ver um negro no aplicativo que não é dotado e que seja passivo, por exemplo, ele está perdido” (sic) (OSÉIAS, 30 anos). Evidencia-se, portanto, que a lógica mercadológica vigente no açougue de homens que buscam por relações homodesejantes online é pervagada pela propagação sociocultural e histórica de lógicas binárias de gênero e sexualidade e hierarquias sociais, etárias e raciais baseadas em relações de poder e analógicas às díades: “normal-anormal”; “superior-inferior”, “gente-resto”7, “um-dois”8, “picanhacarne podre”. Independentemente das nomenclaturas utilizadas para designar os lados opostos das díades, ressalta-se que a supremacia daqueles que ocupam a posição do “normal”/“superior”/ “gente”/ “um”/ “picanha” se perpetua mediante a

“ Quem está fora do padrão normativo, está sujeito a ser julgado. É como se o que está dentro do padrão normativo é gente e o resto é resto” (sic) (Théo, 26 anos). 7

“ Os machos e fortões botam na mente que eles são ‘um’ e os outros são ‘dois’”(sic) (Emanuel, 18 anos). 8

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subalternização daqueles que assumem o alugar do “anormal”/ “inferior”/ “resto”/”dois”/ “carne podre”. Continuação... No shopping da carne aqui abordado, o consumidor-produto vendível é

aquele que se apresenta como macho, discreto, fora do meio, sarado, “ativo”, rico, jovem, branco e “parece heterossexual”, mesmo que não seja, uma vez que ocupa uma posição privilegiada nas lógicas binárias historicamente perpetuadas que o elegem não só como a norma/modelo a ser seguido, mas também como a única possibilidade de ser/existir/desejar/ser desejado como homem. Por outro lado, são dificilmente

vendíveis

os

consumidores-produtos

considerados

efeminados,

magros/gordos, “só passivo”, pobres, acima dos 30, negros e que não conseguem “passar por heterossexuais”, uma vez que são alocados ao abjeto-alugar que une todos aqueles que ocupam posições subalternas nas hierarquias e relações de poder socialmente instituídas. Observa-se, no ifood dos homens que buscam por relações homodesejantes, que o enquadramento nos ideais de masculinidade hegemônica visto como sinônimo de “aparência heterossexual” é considerado geralmente o critério principal de avaliação na busca de parceiros/consumidores-produtos em potencial. Portanto, os usuários/consumidores-produtos precisam renegar as características socialmente associadas ao efeminamento e reforçar imagética e discursivamente os atributos normativos da masculinidade hegemônica- a característica mais vendível (desejada) no açougue grindriano. Assim, proliferam, na “vitrine do açougue” perfis com fotos de corpos sarados e adjetivos como: macho, sarado, liso, puto, safado, ativo, “negãodotado”, pois quanto mais másculo o consumidor-produtor parecer, mais vendível (desejado) será, uma vez que mostrar-se “macho” lhe assegura os privilégios exclusivos daqueles que “parecem heterossexuais, mesmo que não sejam” na dinâmica desejante de muitos homens que buscam por relações homodesejantes através de aplicativos como o Grindr.

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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Predomina-se, entre os homens que buscam por relações homodesejantes, tentativas reiteradas de aclamar, erotizar e ressaltar os símbolos dominantes da masculinidade hegemônica os quais são liderados, no contexto social atual, pelo protótipo de homem com corpo atlético, forte e musculoso, que per se é concebido como característica-chave da masculinidade contemporânea, camuflando, na concepção do imaginário social, qualquer traço ou trejeito feminino visto como desprezível pelo status quo vigente que permeia as relações homodesejantes construídas tanto no mundo real como no virtual. Ser “efeminado”, “ não-sarado“ ou ter qualquer outra característica que avassala a estrutura ou imagem desse homem titular da masculinidade hegemônica faz com que o sujeito se torne alvo da exclusão e da aversão. Essas se observaram nas descrições de perfil selecionadas e nas entrelinhas dos discursos dos colaboradores dessa pesquisa. Nesse sentido, evidencia-se na plataforma digital abordada, uma busca frenética por homens que se enquadram no modelo de corpo e padrão de comportamento socialmente associados ao “homem macho” percebido pelo status quo vigente como hetero-orientado. Alia-se a isso, tentativas ensandecidas, por parte de alguns usuários, de se encaixar nesse modelo de expressão atribuído hegemonicamente à matriz heterossexual dominante, perpetuando o ideal “Pareça heterossexual, mesmo que não seja” que pervaga a busca por parceiros em potencial mediada pelo Grindr concebido por muitos dos entrevistados que fazem uso do mesmo na cidade de Porto Velho como “açougue”, “shopping da carne” ou “ifood”. Ainda que Miskolci (2013, 2015, 2017) apontasse que as demandas intransigentes

em

relação

à

masculinidade

hegemônica

evidenciadas

em

plataformas digitais como o Grindr giram amiúde em torno da busca pelo sigilo e pela discrição necessários para a manutenção da expressão sexual e do desejo em segredo no fito de evitar retaliações sociais e morais associadas aos desejos homoorientados, a investigação aqui desenvolvida abriu novas conjecturas para o entendimento das imposições dos ideais da masculinidade hegemônica ali vigentes e a disseminação da abjeção ao efeminamento. Destaca-se, nesse sentido, que a

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internalização dos discursos machofascistas e efeminofóbicos vigentes, inclusive por aqueles que se apresentam como efeminados e/ou já assumiram publicamente seus desejos homo-orientados, aponta que a ditadura do “macho” e do “fora afeminados” não se pauta apenas na busca pelo sigilo e discrição, mas na concepção do “macho” que “parece heterossexual” como o modelo a seguir e como a única possibilidade de ser/existir/desejar/ser desejado como homem. Ressalta-se, nesse ínterim, que “ser sarado”, “ ser macho” e “ser heterossexual” são vistos não só como socialmente desejáveis, mas também como sinônimos. Nesse contexto, só pode ser considerado “homem” quem é viril, pois para uma sociedade permeada pelo binarismo e pela normatividade, são negadas aos homens outras formas de performatização de expressões de gênero. Percebe-se, portanto, um modelo de masculinidade hegemônica vista como superior a outras formas de expressão de gênero que questionam o binarismo socialmente imposto e passam a ser marginalizadas e subalternizadas. Tal aversão é perceptível em descrições de perfil do tipo: “Fora afeminados”; “ Fora Gays”; “Macho a procura de macho”; “Não tenho saco para menininhas”; “ Não sou nem curto afeminados”. Nessa lógica, quem não se enquadra nos padrões impostos pela matriz heterossexual é arremessado fora do “mercado” virtual de homo-desejos e passa a ser visto como um turn-off erótico, o que corrobora com as repercussões do status quo heteronormativo vigente sobre as preferências homodesejantes apontadas por Richardson (2009). Vale, nesse sentido, ressaltar novamente que a figura do “afeminado” tem sido historicamente associada à comicidade e jocosidade, ao passo que a figura do homem viril é associada pela mídia e indústria à força e erotismo. A estereotipia, exclusão e subalternização macrossocialmente infligidas aos homens afeminados e outros que põe em xeque as normas impostas pela cultura patriarcal, misógina e heterofalocêntrica se reproduzem na plataforma digital em forma de “gostos”. Por isso, proliferam “descrições de perfil” com apologias do tipo: “Não é preconceito, apenas questão de gosto”; “Nada contra, apenas não curto” ou “Não curto afeminados. Não me julgue, é culpa do meu pau”.

151

Nesse ínterim, destaca-se que o preconceito e a normatização não se manifestam apenas nas palavras e atitudes, mas também se imiscuem nas fantasias e nos desejos sexuais e eróticos. Apesar das diferenças que constituem cada um de nós como sujeito único e singular, os desejos de muitos corpos falantes absorvem parte dos preconceitos e estereótipos dominantes que centralizam as relações homodesejantes na figura idealizada de homens “machos”, ricos e com corpos cujo padrão ideal é intransigente, mas muda de tempos em tempos. Assim, os desejos se constituem invisivelmente como excludentes e segregatícios. Embora se advogue que cada sujeito é livre para desejar o que deseja, faz-se oportuno destacar que a incursão etnográfica e as entrevistas desenvolvidas no bojo dessa pesquisa apontam que as relações homodesejantes mediadas pelo Grindr são permeadas por um ethos que replica as hierarquias e relações de poder historicamente

perpetuadas,

enaltece

as

características/

comportamentos

associados aos ideais da masculinidade hegemônica e aloca aqueles que põe em xeque os padrões impostos pela matriz heterossexual e pelas lógicas binárias socialmente instituídas, ao abjeto. Portanto, só “sobrevive” como centro de desejo no “shopping da carne” ali vigente, aquele que segue e se conforma ao ideal inalcançável: “ Pareça heterossexual, mesmo que não seja”. Por fim, faz-se oportuno destacar que o desenvolvimento de pesquisas futuras é condição sine qua non para um melhor entendimento dos meandros que permeiam as relações homodesejantes mediadas por aplicativos baseados na localização como o Grindr os quais devem ser impelidos a lançar campanhas contra a efeminofobia e outros tipos de preconceito ali vigentes e fomentar mais discussões acerca da diversidade das expressões e identidades de gênero e as diferenças entre essas intersecções a fim de assegurar o bem-estar psíquico e a saúde sexual de todos os usuários.

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165

APÊNDICE A- TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (modelo)

O Sr. foi selecionado, e está sendo convidado a participar, como voluntário, em uma pesquisa intitulada: “DESEJO NO BOLSO: UM OLHAR PSICANALÌTICO SOBRE AS RELAÇÔES HOMODESEJANTES MEDIADAS PELO GRINDR”. Após ser esclarecido sobre as informações a seguir, no caso de aceitar fazer parte do estudo, assine ao final deste documento, que está em duas vias. Uma delas é sua e a outra é do pesquisador responsável. Em caso de recusa você não será penalizado de forma alguma.

INFORMAÇÕES SOBRE A PESQUISA:

Título da pesquisa: Desejo no Bolso: Um Olhar Psicanalítico sobre as Relações Homodesejantes mediadas pelo Grindr. Pesquisadora responsável: MAHAMOUD BAYDOUN Telefone: (69) 9240-9629. [email protected].

E-mail:

[email protected]/

Orientadora da pesquisa: Melissa Andréa Vieira de Medeiros Telefone: (69) 2182-2112 E-mail: [email protected]. Entidade responsável: Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Universidade Federal de Rondônia (CEP/UNIR), telefone: (69) 2182-2199 endereço: Campus José Ribeiro Filho, BR 364, KM 9,5 sentido Rio Branco, CEP 7680-059. Ou via email [email protected].

1. Natureza da pesquisa: O Sr. está sendo convidado a participar desta pesquisa que tem como objetivo levantar considerações acerca das relações homodesejantes mediadas digitalmente.

2. Envolvimento na pesquisa: Ao participar deste estudo, o Sr. permitirá que o pesquisador Mahamoud Baydoun realize algumas entrevistas com o uso de gravador e a sua

166

participação consistirá em responder algumas perguntas voluntariamente e falar sobre sua experiência com o uso do aplicativo e as relações sexuais e amorosas mediadas por ele.

3. Sobre a entrevista: Serão realizadas algumas entrevistas com duração aproximada de uma hora que consistem em explorar as experiências virtuais e reais vivenciadas mediante o uso do aplicativo e os diferentes fatores que as influenciam na sua opinião. A partir das informações coletadas, a pesquisador fará uma leitura psicanalítica dos aspectos subjetivos das relações homodesejantes mediadas digitalmente, para que este estudo alcance seus objetivos. Posteriormente, será realizada uma entrevista de devolução durante a qual o pesquisador lhe mostrará o conteúdo transcrito da primeira entrevista e compartilhará as ideias que teve para a análise.

3. Confidencialidade: Todas as informações coletadas neste estudo são estritamente confidenciais, sendo preservada sua identidade. Suas respostas serão tratadas de forma anônima e confidencial fazendo uso de um nome fictício, isto é, em nenhum momento será divulgado seu nome ou qualquer característica que o identifique. Somente a pesquisador e a orientadora terão acesso aos dados individuais e as gravações das sessões de entrevista. Os dados coletados serão utilizados apenas nesta pesquisa e os resultados divulgados em eventos e/ou revistas científicas.

4. Garantia de acesso: Em qualquer etapa do estudo, você terá acesso aos profissionais responsáveis pela pesquisa e também para esclarecimentos de eventuais dúvidas, sendo o principal o investigador Mahamoud Baydoun, que você poderá entrar em contato no telefone (69) 9240-9629 ou via e-mail: [email protected] ou [email protected]. A professora orientadora deste estudo é a Dra. Melissa Andrea Vieira de Medeiros, disponível no telefone: (69) 2182-2112.

5. Garantia de saída: Sua participação é voluntária, isto significa que a qualquer momento você pode recurar-se a responder qualquer pergunta ou desistir de participar e retirar seu consentimento. Sua recusa não trará prejuízo, independente do motivo ou de apresentar justificativas.

167

6. Riscos e desconfortos: A participação nesta pesquisa não traz complicações legais. Ressaltamos que não há uma previsão quanto aos riscos e desconfortos que a entrevista pode causar. Porém, destacamos que se alguma pergunta lhe causar constrangimento, incomodo ou desconforto, pedimos que, por favor, comunique ao pesquisador para que sejam tomadas as possíveis providências: novas explicações sobre o projeto; encerramento da entrevista ou troca de horário (caso haja imprevistos no horário marcado); desistência em participar do estudo, etc.

7. Benefícios: O Sr. não terá benefícios diretos. Porém, espera-se com o resultado desta pesquisa levantar novas considerações acerca das nuances subjetivas que permeiam relações homodesejantes (amorosas, sexuais e eróticas) mediadas digitalmente e abrir novas conjecturas frente à compreensão dos aspectos sóciotécnicos que interferem nessas relações e nos desejos, fantasias e sentimentos dos usuários de aplicativos baseados na localização, como o Grindr. 8. Pagamento ou formas de ressarcimento:

Informo-lhe que o Sr. não terá nenhum tipo de despesa para participar desta pesquisa, bem como não será fornecido nenhum tipo de pagamento, pois se trata de uma pesquisa de cunho acadêmico, e a participação dos colaboradores deve ser voluntária.

9. Direitos:

O Sr. terá os seguintes direitos: a garantia de esclarecimento e resposta a qualquer pergunta; a liberdade de abandonar a pesquisa a qualquer momento sem qualquer prejuízo. Declaramos conhecer e cumprir as resoluções éticas brasileiras, em especial a Resolução 466/12, a qual incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, as quatro referências básicas da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, as quais visam assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado. Caso tenha alguma dúvida, sobre qualquer informação da pesquisa, você poderá entrar em contato com o pesquisador Mahamoud Baydoun ou a orientadora Prof. Dra. Melissa Andrea Vieira de Medeiros.

168

O Sr. receberá uma cópia deste termo onde consta o celular/e-mail do pesquisador responsável, podendo tirar as suas dúvidas sobre o projeto e sua participação a qualquer momento. Após estes esclarecimentos, solicitamos o seu consentimento de forma livre para participar desta pesquisa. Observação: NÃO ASSINE ESSE TERMO SE AINDA TIVER DÚVIDA A RESPEITO. DESDE JÁ AGRADECEMOS!

Consentimento Livre e Esclarecido

Eu,_________________________________________________________________ __, após ter recebido todos os esclarecimentos e ciente dos meus direitos, declaro estar de concordo em participar desta pesquisa, sabendo que dele poderei desistir a qualquer momento, sem sofrer qualquer punição ou constrangimento, bem como autorizo a divulgação e a publicação de toda informação por mim transmitida, exceto dados pessoais, em publicações e eventos de caráter científico. Desta forma, assino este termo, juntamente com a pesquisadora, em duas vias de igual teor, ficando uma via sob meu poder e outra em poder do pesquisador.

Local: ____________________________________________Data:___/___/___

________________________________ Assinatura do participante

______________________________ Assinatura da pesquisadora

169

APÊNDICE B-TERMO DE COMPROMISSO DA ORIENTADORA

Eu, Melissa Andréa Vieira de Medeiros, pertencente ao Programa de Pós-graduação Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Rondônia – UNIR, na condição de orientadora do projeto de pesquisa intitulado “Desejo no Bolso: Um Olhar Psicanalítico sobre as Relações Homodesejantes Mediadas pelo Grindr”, o qual será desenvolvido pelo acadêmico Mahamoud Baydoun, matriculado sob o nº 201520394, comprometo-me a observar e cumprir as normas da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e as resoluções correlatas em todas as fases da pesquisa, bem como preservar o sigilo e a privacidade dos sujeitos entrevistados e, ainda, assegurar que as informações serão utilizadas única e exclusivamente para a execução do projeto em questão e que os resultados da pesquisa somente serão divulgados de forma anônima, por meio da apresentação coletiva dos resultados. Destaco que os dados coletados nesta pesquisa ficarão armazenados em pastas arquivo e computador pessoal, sob a responsabilidade da aluna/pesquisadora, pelo período estipulado na legislação e que o projeto será custeado com recursos próprios do orientando, não sendo, por sua vez, financiado pela instituição a qual estou vinculada. Declaro ainda que a pesquisa só será iniciada após a avaliação e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

Porto Velho, _____ de _____________ de 2016. __________________________________________ Prof.ª Dr.ª Melissa Andréa Vieira de Medeiros Orientadora

170

APÊNDICE C-TERMO DE COMPROMISSO DO PESQUISADOR

Eu, Mahamoud Baydoun, discente no Programa de Pós-graduação Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Rondônia - UNIR, regularmente matriculada sob o nº 201520394, afirmo para os devidos fins que sou o pesquisador responsável pelo projeto de pesquisa intitulado ““Desejo no Bolso: Um Olhar Psicanalítico sobre as Relações Homodesejantes Mediadas pelo Grindr” e que estou sendo orientado pela Prof.ª Dr.ª Melissa Andréa Vieira de Medeiros. Comprometo-me a observar e cumprir as normas da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e resoluções correlatas em todas as fases da pesquisa, bem como preservar o sigilo e a privacidade dos sujeitos entrevistados, assegurar que as informações serão utilizadas única e exclusivamente para a execução do projeto em questão e que os resultados da pesquisa somente serão divulgados de forma anônima por meio de apresentação coletiva dos dados. Destaco que os dados coletados nesta pesquisa ficarão armazenados em pastas e computador pessoal, sob minha responsabilidade, pelo período mínimo de cinco anos, conforme Resolução nº 007/2003 do Conselho Federal de Psicologia. Declaro que o projeto será custeado com meus próprios recursos, não sendo, por sua vez, financiado pela instituição de ensino a qual estou vinculado. Destaco ainda, que a pesquisa só será iniciada após a avaliação e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

Porto Velho, _____ de _____________ de 2016.

________________________________________

Mahamoud Baydoun Pesquisador Responsável

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APÊNDICE D- TERMO DE ANUÊNCIA DA INSTITUIÇÃO

Eu, ___________________________________, diretora do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) autorizo o mestrando Mahamoud Baydoun a utilizar as salas de atendimento da Clínica de psicologia da UNIR (SPA/UNIR) localizada na Avenida Presidente Dutra, 2965- Centro, Porto Velho-Rondônia dentro de horários pré-estipulados para a realização de entrevistas individuais como parte do projeto de pesquisa “Desejo no Bolso: Um Olhar Psicanalítico Sobre as Relações Homodesejantes mediadas pelo Grindr” desenvolvido pelo Mestrado Acadêmico em Psicologia (MAPSI/UNIR)- Linha 2: Psicologia da Saúde e Processos psicossociais sob a orientação da Prof. Dra. Melissa Andrea Vieira de Medeiros.

Local: ___________________________________________. Data:___/___/___

_____________________________

_____________________

Assinatura da diretora do SPA/UNIR

Assinatura do pesquisador

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APÊNDICE E- ROTEIRO PARA AS ENTREVISTAS INDIVIDUAIS

APRESENTAÇÃO

Olá! Primeiramente gostaria de agradecer sua disponibilidade de fazer parte dessa entrevista. Conforme já conversamos no aplicativo, meu nome é Mahmoud Baydoun. Sou mestrando em Psicologia na Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Estou desenvolvendo uma pesquisa sobre o uso do Grindr. O objetivo é analisar como o uso desse aplicativo afeta as relações sexuais e afetivas entre homens. Por isso, teremos um espaço para falarmos sobre suas experiências como usuário do aplicativo. Gostaria que você ficasse tranquilo, pois vamos assinar um documento chamado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que assegura seu sigilo e privacidade. Como eu considero muito importante tudo o que for dito na nossa conversa, gostaria de gravá-la, com sua permissão, mas já adianto que só eu e

minha

orientadora teremos acesso ao que foi dito na íntegra, e no meu trabalho final usarei nomes fictícios. Após a transcrição da entrevista, o arquivo da gravação será eliminado.

DADOS PESSOAIS - NOME FICTÍCIO: - IDADE: - ESCOLARIDADE: - PROFISSÃO:

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- ESTADO CIVIL: - COM QUEM RESIDE: - RELIGIÃO: CONSIGNAS DISPARADORAS 1) O que te levou ao uso do aplicativo? 2) Há quanto tempo você usa o aplicativo? 3) Com que frequencia ? 4) O que te faz permanecer no aplicativo? O que ele traz de vantagens? 5) Você acha que o app supre as suas necessidades.....? 6) Como tem sido usar o aplicativo? 7) Poderia relatar algumas experiências ? 8) Você se autodenomina homossexual? 9) O que o app já te possibilitou e o que ele ainda não te possibilitou? 10) O que mudou na sua vida sexual e amorosa após o uso do app? 11) Algo te incomoda no aplicativo? 12)O que mais te chama atenção no uso do aplicativo? 13)O que mais te atrai nos outros usuários e o que mais te incomoda?

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APÊNDICE F- COMPROVANTE DE SUBMISSÃO DO PROJETO DE PESQUISA AO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA (CEP)

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APÊNDICE G- PARECER CONSUBSTANCIADO DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA (CEP)

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