Viagens E Outras Viagens - Antonio Tabucchi

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CAPA

ANTONIO TABUCCHI VIAGENS E OUTRAS VIAGENS

Badana da Capa

Antonio Tabucchi (1943-2012) nasceu em Pisa, onde fez os seus estudos, primeiro na Faculdade de Letras e depois na Scuola Normale Superiore. Ensinou nas Universidades de Bolonha, Roma, Génova e Siena. Foi Visiting Professor no Bard College de Nova Iorque, na École de Hautes Etudes de Paris e no Collège de France. Publicou 27 livros, entre romances, contos, ensaios e textos teatrais. As suas obras estão traduzidas em mais de 40 países. Recebeu numerosos prémios nacionais e internacionais. Sozinho, ou com Maria José de Lancastre, traduziu para italiano a obra de Fernando Pessoa. Considerando que a sua pátria é também a língua portuguesa, escreveu um romance em português, Requiem, 1991. O seu teatro foi levado ao palco, entre outros, por Giorgio Strehler e Didier Bezace. O Fio do Horizonte, Nocturno Indiano, Afirma Pereira e Requiem foram adaptados ao cinema respectivamente por Fernando Lopes, Alain Corneau, Roberto Faenza e Alain Tanner.

Badana da Contracapa

OBRAS DO AUTOR PUBLICADAS EM PORTUGAL

O JOGO DO REVERSO (contos, 1984)

MULHER DE PORTO PIM (ficção, 1986)

NOCTURNO INDIANO (romance, 1987)

O FIO DO HORIZONTE (romance, 1987)

PEQUENOS EQUÍVOCOS SEM IMPORTÂNCIA (contos, 1988)

CHAMAM AO TELEFONE O SENHOR PIRANDELLO (teatro, 1988)

OS VOLÁTEIS DO BEATO ANGÉLICO (ficção, 1989)

REQUIEM - Uma alucinação (romance, 1991)

O ANJO NEGRO (contos, 1992)

SONHOS DE SONHOS (ficção, 1992)

AFIRMA PEREIRA - Um testemunho (romance, 1994)

OS ÚLTIMOS TRÊS DIAS DE FERNANDO PESSOA (ficção, 1995)

A CABEÇA PERDIDA DE DAMASCENO MONTEIRO (romance, 1997)

ESTÁ A FAZER-SE CADA VEZ MAIS TARDE (romance, 2003)

TRISTANO MORRE - Uma vida (romance, 2006)

O TEMPO ENVELHECE DEPRESSA (contos, 2012)

VIAGENS E OUTRAS VIAGENS (viagens, 2013)

CONTRACAPA

“Sou um viajante que nunca fez viagens para escrever sobre elas, o que sempre me pareceu estúpido. Seria como se alguém quisesse apaixonar-se para escrever um livro sobre o amor.”

Mas é verdade que Antonio Tabucchi viajou muito. E que escreveu sobre as suas viagens. Textos com destinos diversos e até agora inevitavelmente dispersos. Este livro inverte essa tendência: convoca os lugares visitados e revisitados reunindo-os numa obra muito especial em que, sobre o mapa do mundo, se desdobram as vastas leituras que anteciparam, provocaram e sempre acompanharam as viagens. Os lugares são nomes, etapas, permanências. Mas o mais importante é a capacidade de olhar, de recordar e de relacionar os lugares com as pessoas. Ir e demorar-se. Descobrir, juntamente com a beleza, a diversidade do mundo. E assim vemos Antonio Tabucchi sentado no pedestal da estátua do abade Faria em Goa; diante do templo de Poseidon no cabo Sunion, na Grécia; no «cemitério marinho» de Sete, no Languedoque. E aí, com ele, partilhamos as reminiscências d'0 Conde de Monte Cristo, os versos de Sophia de Mello Breyner, o «mar que se repete» de Paul Valéry. Vemo-lo de noite a admirar as grandes estátuas, barrocas do Aleijadinho em Congonhas do Campo, no Brasil, ou a deixar-se inspirar por Cortázar nas salas de Paleontologia do Jardin des Plantes em Paris. E, ainda, a transformar-se em presença afectuosa quando com simplicidade nos conduz por uma certa rua, uma ruela da «sua» Lisboa e nos mostra a evidência de um sentimento - e de uma palavra - que não é facilmente explicável: a saudade. No entanto, o mapa ideal deste livro abre-se aos lugares que visitamos «por interposta pessoa»: as cidades fantásticas dos escritores, as geografias imaginárias, as histórias literárias. Num e noutro caso - nas viagens reais como nas literárias, Tabucchi convida-nos a partir e a regressar. De todas as vezes o encontro é uma surpresa, porque o mundo é sempre um lugar diferente, uma descoberta de nós próprios através dos outros.

Página de rosto

Antonio Tabucchi Viagens e Outras Viagens 2.a edição Tradução de Maria da Piedade Ferreira

D.QUIXOTE

Ficha técnica

Publicações Dom Quixote [Uma editora do Grupo LeYa] Rua Cidade de Córdova, n.° 2 2610038 Alfragide - Portugal www.leya.com / www.dquixote.pt Reservados todos os direitos incluindo o direito de reprodução no todo ou em parte, em qualquer suporte, de acordo com a legislação em vigor Título: Viagens e Outras Viagens Título original: Viaggi e Altri Viaggi ©2010, Antonio Tabucchi Edição: Maria da Piedade Ferreira Design da capa: Rui Garrido Fotografia da capa: © Robert Doisneau/Gama-Rapho Getty Images Este livro foi composto em Rongel, fonte tipográfica desenhada por Mário Feliciano 1ª edição: Maio de 2013 2ª edição: Setembro de 2013 Paginação: José Campos de Carvalho Revisão: Sofia Graça Moura Impressão e acabamento: Eigal Depósito legal: 364 309/13 ISBN: 978-972-20-5225-2 Por vontade expressa dos herdeiros do autor, a tradução respeita a ortografia anterior ao actual acordo

Para a Zé, também companheira de viagens

Nota do Autor

Nascidos nas mais variadas circunstâncias, sempre a partir de viagens mas nunca de viagens realizadas para se transformarem depois em literatura de viagens, estes textos vagueavam como ilhas num arquipélago flutuante, espalhados aqui e ali nos lugares mais variados e sob diferentes bandeiras, quase sem consciência de pertença ou identidade, à sua maneira à deriva. Reuni-los foi como fazer de todos eles uma única embarcação, uma canoa, um barquinho; calafetar as fendas da quilha, e a partir das correntes a que tinham sido confiados encaminhá-los numa única direcção: a viagem de um livro. Espúria é, pois, a natureza deste navio, por mais compacta que seja, do mesmo modo que muitas pessoas formam uma multidão. E é curioso observar a ponte da embarcação: às vezes há um navegador solitário em que julgo reconhecer-me, outras vezes estou na companhia da Maria José, e noutras ocasiões não me conto entre os viajantes e limito-me a acompanhá-los da costa com os binóculos. E a verdade, no fim de contas, é que viajei muito, admito: visitei e vivi em muitos lugares. E sinto-o como um enorme privilégio, porque pousar os pés no mesmo chão durante toda a vida pode originar um perigoso equívoco, o de fazer-nos crer que essa terra nos pertence, como se não a tivéssemos por empréstimo, como por empréstimo temos tudo na vida.

9

Konstantinos Kavafis disse-o num extraordinário poema intitulado «Ítaca»: a viagem encontra sentido só em si própria, no facto de ser viagem. E isto é uma grande lição se soubermos captar o seu verdadeiro significado: é como a nossa existência, cujo principal sentido é o de ser vivida. Releio estas viagens que de certo modo são a trama da Viagem que fiz até agora. Algumas suscitam-me alegria, outras nostalgia, e outras ainda saudade. Muitas trazem boas recordações: foram (continuam a ser na memória) viagens muito belas. Mas talvez faltem as viagens mais extraordinárias. São as que não fiz, as que nunca poderei fazer. Ficam por escrever, ou encerradas no seu próprio alfabeto secreto debaixo das pálpebras, à noite. Depois chega o sono, e levantamos a âncora.

A.T.

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O tio de Lucca em Singapura Conversas com Paolo Di Paolo

«Muitas vezes imaginava partir. Via-me a subir para um daqueles comboios durante a noite, sorrateiramente... Levava comigo uma bagagem minúscula, o meu relógio de ponteiros fosforescentes e o meu livro de geografia» diz a personagem de um conto seu, «As tardes de sábado» (O Jogo do Reverso, 1988). O verbo partir, que imagens evoca em si? Quando começou apensar que esse verbo podia ter a ver consigo? É compreensível que um jovem, depois de ter passado a infância com o horizonte monótono do campo (ainda que seja a bonita campagna toscana) e um interminável ano da adolescência preso à cama por causa de uma doença num joelho e a sonhar com os livros de Stevenson e de Conrad que o meu tio me fornecia, é compreensível que esse jovem desejasse partir. Mas o que me decidiu a fazê-lo não foram os romances de viagens longínquas, foi um filme: La dolce vita de Federico Fellini. O retrato da Itália que Fellini dava naquele filme impiedoso não correspondia ao que a Itália queria que um estudante liceal acreditasse. Depois do liceu não me senti com vontade de me inscrever logo na universidade e preferi, com a cumplicidade do meu pai, ir para Paris. Naquele tempo não havia Erasmus e nós estudantes mantínhamo-nos a lavar pratos, além de que ser auditeur libre na Sorbonne não prometia uma carreira brilhante.

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Mas Paris trouxe consigo a descoberta do mundo ou pelo menos a descoberta de que o mundo é grande. Não é verdade que o mundo é pequeno. Também não é verdade que seja uma «aldeia global» como pretendem os meios de comunicação. O mundo é grande e diverso. Por isso é tão belo: porque é grande e diverso, e é impossível conhecê-lo todo. «Estou aqui e ninguém me conhece, sou um rosto anónimo nesta multidão de rostos anónimos, estou aqui como podia estar noutro sitio, é a mesma coisa, e isto dá-me uma grande angústia e uma sensação de liberdade bela e supérflua, como um amor rejeitado», lê-se no conto «Any where out of the world» (Pequenos Equívocos sem Importância, 1985). Chegar a um lugar: nascer também significa isso. Mas depois, alguma coisa começa a ficar-nos apertada; então partimos. Embora não seja fácil encontrar um lugar que nos baste. A questão é essa: «conseguir que os lugares nos bastem». Por onde começar? A literatura - disse um poeta - é a prova de que a vida não basta. Porque a literatura é uma forma mais de conhecimento. É como a viagem: é uma forma mais de conhecimento, várias formas mais de conhecimento. Muitas coisas podem bastar-nos, e devem bastar-nos, na vida: o amor, o trabalho, o dinheiro. Mas o desejo de conhecer nunca é suficiente, julgo eu. Pelo menos se temos vontade de conhecer. O rapazinho do seu conto «Fim de Ano» (O Anjo Negro, 1991) viaja com os livros, com as histórias. Viaja estando parado. O que tem que ver a experiência da leitura com a da viagem? E será a escrita, como ouvimos dizer, outra forma de viajar?

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Ao escrever imaginamos estar noutro lugar. A espaço. A viagem, a horizontal, mas sempre

ser outro e viver uma vida diferente. E escrita é uma viagem fora do tempo e do viagem geográfica, é um movimento na ancorado na crosta do mundo.

Há um livro de Carlo Emilio Gadda intitulado As Viagens a Morte. Escrito assim, sem virgula. As personagens dos seus livros deslocam-se, viajam e pensam frequentemente na morte. O que diz «eu» no romance Requiem (1992) atravessa Lisboa, viaja dentro dela e encontra continuamente, a cada esquina, presençasausências que evocam a morte, os mortos. Quando viajamos, deparamo-nos sobretudo com os vivos. As vezes também com os moribundos. E também com verdadeiros mortos. Depende dos lugares. Hoje, em certos países, por exemplo, podemos encontrá-los em quantidades consideráveis. Mas também com os nossos mortos, ou os mortos que conhecemos quando estavam vivos. Pode acontecer. Pode acontecer, por exemplo, que numa modesta pensão de Lisboa, num domingo de Agosto, quando a cidade está deserta, recebamos a visita do nosso próprio pai que morreu há algum tempo. Porque é que não vinha lá a casa? I (ma forma de timidez que os defuntos têm? Uma certa dificuldade em voltar a um lugar que lhe era demasiado familiar? Pode acontecer que num anónimo quarto de hotel em Singapura, lá em cima no último andar de um arranha-céus, chegue de repente a voz do tio de Lucca, e é estranho, a poucos quilómetros de distância nunca tinha chegado; uma pessoa está a dormir num hotel de Singapura e é acordada pela voz do tio de Lucca. Que força de voz, se vem de Lucca. E é estranho, porque quando estava a poucos quilómetros de distância nunca te tinha chegado. Será possível que o tio de Lucca precisasse que o sobrinho estivesse em Singapura para lhe dizer uma coisa ao ouvido?

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Porque será? Será porque esta noite não viste os telejornais italianos, de resto uma coisa impossível em Singapura? Será porque não soubeste que o papa se mostrou na praça com um novo chapéu, que o deputado do partido da Mão Dura hoje não incitou ninguém a disparar, que esse jornalista televisivo que de humano não tem quase nada considera que o embrião é sagrado? Será por te teres libertado das escórias que contaminam a vida quotidiana? Será porque os mortos, como os cetáceos que comunicam entre si com uma espécie de sonar para não serem perturbados por todos os sons artificiais que contaminam os oceanos, têm necessidade de águas acusticamente limpas para que a sua voz não se perca no ruído de fundo que nos envolve? E o tempo? O que acontece ao tempo (à nossa percepção do tempo) enquanto estamos em viagem? Parece reduzidíssimo no momento de nos deslocarmos, de nos movermos, mas depois dilata-se, fermenta milagrosamente quando o reconsideramos já parados. Que maravilha, os horários! Os horários são feitos de um tempo especial que não pertence ao Tempo com maiúscula, pertence a um tempo limitado, que pode ser contabilizado, que cabe nas páginas de uma agenda. Fazemos os cálculos: se apanhar o autocarro das quatro da manhã chego a Oaxaca às sete da tarde. A cerimónia dos curandeiros zapotecas nas colinas é às nove da noite, se o autocarro não se atrasar chego a tempo. Esta segunda-feira. Para terça-feira logo se vê. Acha que a experiência da viagem teve uma grande importância nos livros que escreveu? Houve viagens que hoje, pensando no seu trabalho, considera decisivas?

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É sempre difícil afirmar se as coisas que pensamos têm mais influência nas coisas que fazemos ou se as coisas que fazemos têm mais influência nas coisas que pensamos. Provavelmente equivalem-se. Houve viagens que se transformaram em escrita. São viagens que já não existem, quase me esqueci delas. Ou melhor, continuam a existir porque as transformei em romances. Viver e escrever são a mesma coisa, mas são duas coisas diferentes. A vida é uma música que se desvanece mal acabamos de a tocar. A música é mais bela que a sua partitura, não há dúvida. Mas da música, uma vez tocada, resta na vida a partitura. Que espécie de viajante é Antonio Tabucchi? O despaísamento, a estranheza ou a interrupção dos hábitos, o encontro com o desconhecido assustam-no? Sou um viajante que nunca fez viagens para escrever sobre elas, o que sempre me pareceu estúpido. Seria como se alguém quisesse apaixonar-se para escrever um livro sobre o amor. Talvez muitas vezes o tédio, no seu sentido mais profundo, tenha sido um grande propulsor. Mas é difícil de saber, Em certas ocasiões o tédio, sempre no sentido profundo, pode ser um propulsor, mas também um fascínio a que nos abandonamos até tocar no fundo. E o desconhecido, o verdadeiro desconhecido, onde o encontramos, apanhando um avião que vai para longe ou no fundo desse poço de imobilidade num dia passado a pensar sem sairmos de casa, olhando para um muro sem o vermos? E depois o desconhecido está sempre a espiar-nos, e surge na primeira ocasião.

Há autores ou livros que lhe serviram de guia, que sentiu como companheiros de viagem nas viagens da sua vida?

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Mais do que autores diria versos, ou fragmentos de poemas, trazemo-los dentro de nós sem sabermos que os sabemos. E às vezes chegam sozinhos, como a assinalar uma circunstância em que nos encontramos, emergem da memória por associação de ideias, porque definem uma situação, «dão sentido», são verdadeiros companheiros de viagem, aquele companheiro que nos diz a coisa certa no momento certo. Não sei, por exemplo citando ao acaso versos que me vieram à cabeça e que talvez tenha repetido como um estribilho durante toda uma viagem: «Detesto o poema épico e não gosto dos caminhos que muitos pisaram» (uma viagem enganada?)»; «Estrangeiro, pouco tenho a dizer-te: pára e lê» (uma lápide encontrada por acaso); «Meu Deus, que século, diziam os ratos, e começavam a roer o edifício» (perante cenas que teria preferido não ver); «Viajar, perder países» (diferentes situações); «Estaria onde não deveria estar» (um pensamento frequente); «Ar, reconheces-me, tu que dantes conhecias os lugares que eram meus?» (certos regressos); «Quando te perderes no deserto da tarde e o azul do mar longínquo te provocar sede» (uma premonição que se cumpre); «Acontece que é Dezembro em todo o mundo e é sábado em toda a Colômbia» (uma noite de Natal, perguntando-me o que estava a fazer ali); «Tenho saudades de casa, o que é evidentemente uma estupidez, porque por aqueles lados nunca fui um apreciado chauvinista» (pode acontecer).

«Gostava muito de ler a viagem no rosto dos outros». É uma frase muito bonita que está num livro seu. Há alguma viagem que tenha vivido por tê-la lido no rosto de alguém? Parentes, amigos, pessoas encontradas por acaso...

Um encantamento muito especial provocado pela viagem pode ler-se sobretudo nos rostos dos que vão «em excursão».

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«Os Italianos em excursão», como diria Paolo Conte. Mas até aqui em Portugal, de onde lhe estou a responder, os que aos domingos vão em excursão a Fátima ou às terras de mar, e em França as pessoas da periferia parisiense que aos domingos vão visitar a catedral de Chartres. Ainda há «excursões», embora estejam destinadas a desaparecer. Mais do que uma vez fui esperar o autocarro que voltava de um sítio qualquer, fingindo esperar alguém, para observar as pessoas que se apeavam. Nos seus rostos havia encantamento, excitação, cansaço, às vezes já não são muito novos, há os que levaram os netos mais crescidos. Gosto de observar essas pessoas: nota-se que fizeram realmente uma viagem, embora de poucas centenas de quilómetros. Talvez, não sei, da minha aldeia na Toscana, tenham ido a Assis, ou ao lago Trasimeno. E trazem a viagem nos olhos ensonados onde permaneceram os incómodos e a alegria daquela breve evasão. Em vez disso, pelo contrário, tive ocasião de observar certos casais jovens de hoje, que se calhar nunca viram os Uffizi ou o Coliseu mas que quando se casam vão em lua-de-mel às Seychelles ou às ilhas Comores. Quando voltam, não há nada escrito nos seus rostos. Aliás, o que é que se faz nas ilhas Comores? A única coisa que se vê é que estão muito bronzeados. Poderiam ter conseguido o mesmo resultado sentados no pátio da casa ou no terraço.

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I

A caminho



Atlas

A descoberta (e o fascínio) da literatura veio com a adolescência graças a um livro «mágico» que para mim continua a ser mágico, A Ilha do Tesouro. A editora chamava-se GiuntiMarzocco e tinha uma excelente colecção de livros para rapazes. Aquele livro transportou-me para oceanos fabulosos, era um vento que não enfunava só as velas do navio que zarpava à procura do tesouro mas que agitava sobretudo as asas da imaginação. Seguindo a fantasia, mas confiando no princípio da realidade, procurava aquela ilha no meu atlas, que foi o outro livro «mágico». Era o atlas De Agostini. A única representação geográfica que até aí conhecia era o desenho da Itália, a bota. Mas agora era diferente, tinha o mundo à minha frente. Na primeira ilustração do atlas, o globo dividido em dois como uma laranja, e de pois as ilustrações sucessivas dos vários continentes. Começava-se pela Europa uma vez que, segundo os europeus, o mundo começa na Europa. De resto aquele atlas não podia ter acolhido a antropologia cultural, quer dizer, a ideia do relativo. O que mais me fascinava era que na página da direita estava representado um continente e na da esquerda havia uma série de fotografias «representativas» do continente em questão. Recordo-me de algumas da Europa: o Coliseu, a Torre Eiffel, a Sereiazinha de Copenhaga, a ponte de Londres.

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De África apareciam, entre outras, as pirâmides, o Kilimanjaro, uma mesquita de Marrocos, uma cidade de argila do Mali. Da Ásia, o porto de Singapura, um pagode de Tóquio e uma vista de Samarcanda. Para a Oceânia lembro-me do porto de Sydney e do rosto de um homem com um osso enfiado no nariz. Aquele era o mundo. E aquela foi a minha primeira ideia da Terra. Para mim era imutável e segura, porque de um lado estava a representação abstracta da sua forma geográfica e do outro as imagens fotográficas, o «conteúdo». Ainda tenho esse atlas e recentemente tive ocasião de o folhear. Curioso: agora é inutilizável, como um horário de comboios caducado; se o quisesse usar como guia seria como apanhar um comboio para ir para uma cidade e chegar a outra. Para quê conservar aquele atlas? Não por nostalgia, certamente. Para mim que nunca pretendi ensinar nada a ninguém, à parte os instrumentos de trabalho para reconstituir filologicamente um texto literário, aquele atlas é um precioso instrumento didáctico. Guardo-o para os meus netos para que não pensem, como eu pensava então, que o mundo será sempre aquele que conhecem; para que se dêem conta de que a representação do mundo é relativa, de que as cores dos mapas geográficos mudam, de que um país que estava colorido a vermelho se torna branco, de que um que era amarelo se torna verde, de que um que era grande se torna pequeno, de que as fronteiras se deslocam e os confins são móveis. Restam o curso dos rios, a altura dos montes e a linha das costas, mas se agora pertencem a um país, isso não quer dizer que amanhã não possam pertencer a outro. As únicas «fronteiras» que nunca mudarão são as do corpo humano e o que este sente quando são violadas.

24

«Nada mudou. / Excepto o curso dos rios, / a linha das florestas, dos desertos e glaciares. // E nestas paragens que vagueia a alma, / parte, volta, vai e vem, / alheia a si mesma, intangível, / ora certa, ora incerta da sua existência. // Mas o corpo está e está e está, sem ter outra saída.»

E a última «Torturas».

estância

de

um

poema

de

Wislawa

Szymborska,

A primeira diz assim: «Nada mudou. / O corpo sente dor, / necessita comer, /respirar e dormir, / tem a pele tenra e logo abaixo sangue, / tem uma boa reserva de unhas e dentes, / ossos frágeis, juntas alongáveis. / Nas torturas leva-se tudo isso em conta.»

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II

Viagens com objectivo



O comboio para Florença

Quando era pequeno tinha um tio que me levava a Florença. Guardo dele uma recordação maravilhosa. Era um rapaz alegre e curioso, gostava de arte e de literatura e escrevia comédias em segredo. Tinha decidido que devia dar uma educação estética aos sobrinhos, e eu era o seu único sobrinho. Vivíamos na zona rural de Pisa e naquele tempo ir a Florença era uma verdadeira viagem. Levantávamo-nos de madrugada, apanhávamos uma velha camioneta que nos levava a Pisa e aí esperávamos o comboio para Florença. Lembro-me ainda daquelas manhãs de viagem, o café com leite bebido na cozinha com a luz acesa, porque no Inverno ainda estava escuro, o papo-seco comido no comboio, as coisas que o meu tio me contava enquanto a paisagem desfilava pela janela. Falava de nomes que para mim eram mágicos e das coisas que iria ver nesse dia. E dizia: o Beato Angélico, Giotto, Caravaggio, Paolo Uccello. Enquanto comia o papo-seco pensava naquele Beato que pintava anjos e que tinha coberto de frescos o convento para felicidade dos seus confrades. Giotto, em contrapartida, era a marca dos meus lápis, e finalmente veria o O de Giotto, que era a coisa mais perfeita do mundo. E depois chegávamos a Florença e percorríamos a cidade a pé. Eu olhava para os enormes tectos dos Uffizi, aqueles quadros misteriosos, aquelas tábuas impressionantes.

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Pela mão do meu tio caminhava pela galeria de Vasari. Este é um lugar sagrado, dizia-me. Mais tarde íamos para a via Ghibellina, para uma velha trattoria. E o meu tio perguntava-me: queres provar umas tripas à florentina? E dali íamos para San Marco, para ver o Beato. Beato de verdade, pensava eu, pois via os anjos. Eu nem sequer o meu anjo-da-guarda tinha conseguido ser, e no entanto à noite, antes de ir para a cama, virava-me de repente pensando surpreendê-lo, ou olhava-me ao espelho por cima do ombro. E perguntava: tio, como se faz para ver os anjos? E ele respondia-me: tens de saber pegar no pincel para ver os anjos. Que frase misteriosa. Ruminava-a de mim para mim, enquanto deambulava pelas celas do convento de San Marco.

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Pisa. Onde Leopardi renasceu

Entre as chamadas «cidades monumentais» italianas que são objecto de um intenso turismo sobretudo no Verão, Pisa, com Florença e Siena, é uma das mais visitadas em Itália. A torre inclinada é célebre em todo o mundo e secundo uma estatística é a imagem italiana mais célebre depois do rosto da Gioconda. Com efeito, o complexo formado pela torre, a catedral e o baptistério, dispostos com sabedoria geométrica sobre o verde de um imenso prado delimitado pelas muralhas medievais, é de uma perfeição arquitectónica que bem merece o nome de praça dos Milagres. A pressa dos nossos tempos obriga o viajante a visitas cada vez mais rápidas e com uma meta definida: uma a vez visto o ícone principal e tirada a fotografia ritual, o automóvel ou o autocarro engolem o turista para outros destinos. E no entanto, até o viajante apressado ou limitado aos horário do grupo pode permitir-se em poucos minutos um pequeno desvio e percorrer, a não mais de quinhentos metros de distância da célebre praça, uma deliciosa ruazinha geralmente ignorada pelo turista. Da adjacente praça do Arcebispado pode-se de facto entrar na via della Faggiola, ladeada por antigas casas e palacetes. Quase no final, antes de desembocar na piazza del Cavalieri, uma lápide de mármore na fachada do palacete que pertenceu aos Soderini lembra que Giacomo Leopardi passou aqui quase um ano como hóspede da família, do Outono de 1827 ao Verão de 1828.

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Leopardi amou Pisa e a cidade reservou-lhe uma hospitalidade calorosa. Leopardi gostou do clima e dos Lungarni, os passeios que bordejam o rio, que preferia aos de Florença. Numa carta a Giampietro Vieusseux escreve: «O aspecto de Pisa agrada-me muito. Este Lungarno, num dia bonito, é um espectáculo que me encanta: nunca vi nada semelhante.» Gostava da franqueza das pessoas e do ambiente cosmopolita favorecido pela antiga universidade que tinha atraído exilados e patriotas gregos e polacos. Atravessava então um período de grande desconsolo e de inércia criativa: em Pisa sentiu que o seu coração voltava a bater de novo e que recuperava as suas emoções. Furou o casulo da depressão (provavelmente era disso que se tratava) e renasceu para uma neva vida, essa «vida do coração», como ele lhe chamou, que deu origem às suas composições poéticas mais admiráveis. Em Pisa escreveu «A Silvia» e «Il risorgimento» porque estava bem consciente do seu próprio renascer. «Depois de dois anos», confidencia à irmã Paolina, «voltei a fazer alguns versos neste Abril; mas versos verdadeiramente à antiga, e com aquele meu coração de outrora.» Em 1998, para as celebrações dos duzentos anos do nascimento do poeta, uma grande estudiosa de Leopardi, Fiorenza Ceragioli, em colaboração com um bibliófilo e bibliotecário de grande valor como Marcello Andria, organizou no Palazzo Lanfranchi, situado naqueles Lungarni tão caros a Leopardi, uma extraordinária exposição documental dedicada ao poeta, Leopardi a Pisa. Nela figuravam documentos, retratos, esboços, cadernos, objectos, pinturas e sobretudo cartas e manuscritos dos poemas pisanos. O catálogo, obviamente, já não está à venda, mas com alguma sorte ainda se consegue encontrar.

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Numa rua adjacente à via della Faggiola, junto à Faculdade de Línguas e Literaturas Estrangeiras, há alguns alfarrabistas. Talvez esse turista que se afastou por alguns minutos do percurso pré-estabelecido acabe por voltar ao seu autocarro com uma relíquia.

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Paris. Delacroix em casa

No coração de Saint-Germain-des-Prés, pouco antes de desembocar na rue de Seine, a rue Jacob (uma das mais atraentes da velha Paris, onde se concentram editoras, livrarias e galerias de arte) abre-se para uma pequena praça com uma atmosfera secreta própria, talvez porque os autocarros com turistas não consigam aqui chegar: place de Furstenberg. Circundada por casas de aspecto elegante, a praça foi recentemente rejuvenescida por obras de restauro que lhe devolveram o brilho da antiga beleza. Num dos lados, também ela restaurada com o seu pátio lajeado e os seus interiores setecentistas, fica a casa-museu de Eugène Delacroix. O pintor viveu aqui nos últimos anos da sua vida e no jardim traseiro mandou construir o seu atelier, que talvez seja o lugar mais fascinante de toda a casa. Todos os guias turísticos nos dirão que as obras de Delacroix expostas no museu da place de Furstenberg são obras «menores», uma vez que as «maiores» estão no Louvre, mas não é certo que uma pérola não possa valer um diadema inteiro. Delacroix é sem dúvida o maior pintor do romantismo francês, atraído pela mitologia e por episódios históricos que retratou em telas «titânicas» (a mais célebre de todas La Liberté guidant le peuple, com uma Mariana de viçosos seios nus que, erguendo o estandarte nacional, atravessa, intrépida, barricadas e cadáveres).

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É uma tela grandiloquente e retórica que se tornou o «cartão-devisita» de Delacroix, mas mais do que uma pintura aquela tela em cinemascópio é uma época histórica: estamos em 1830, Napoleão morreu há dez anos, sobre a Europa sopra o vento restaurador do Congresso de Viena que restabeleceu os Bourbon em França, o Reino das Duas Sicílias, os Estados pontifícios; Chopin está exilado em França, Mazzini na Suíça e o Império Otomano domina a Grécia onde Byron morreu heroicamente. Entre as obras «maiores» expostas no Louvre, em vez das imponentes telas históricas como esta, a minha preferência vai antes para o tigre fêmea com a sua cria, digna de um pintor visionário, para a insólita naturezamorta «carne e peixe» (a lagosta junto ao faisão) ou para La palette de l'artiste, genial auto-retrato. Porque creio que ao pintar a sua paleta, Delacroix estava a pintar-se a si próprio. A vetusta paleta encontra-se intacta no atelier do museu da place de Furstenberg. Além da paleta, os que cultivem esse mínimo de fetichismo que os grandes artistas merecem, encontrarão na casa da place de Furstenberg muitos outros objectos dignos de ser admirados: sobretudo os instrumentos musicais e os utensílios que Delacroix recolheu numa longa viagem pela Andaluzia, Marrocos e Argélia, uma viagem que influenciou muito a sua pintura. Observador atento da luz e das cores intensas do Sul, retratou as paisagens da Espanha meridional e do Magrebe em aguarelas de uma extraordinária modernidade, que roçam a abstracção e parecem antecipar Paul Klee. Também as figuras que povoam algumas dessas paisagens são belíssimas, sobretudo as mulheres, muitas mulheres, retratadas com toda a sua sensualidade e muitas vezes em atitudes melancólicas. Delacroix tivera o privilégio de entrar num harém em Marrocos (viajava com uma missão diplomática em visita ao sultão) e a tristeza daquelas mulheres prisioneiras provocou-lhe uma profunda emoção.

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Quem soube compreender a importância capital que aquela teve sobre a sua pintura foi o seu amigo Baudelaire, defensor das novidades de Delacroix face ao classicismo então no auge (Ingres, por exemplo, pelo qual Delacroix uma evidente e compreensível aversão, aliás mútua).

viagem grande formal nutria

Sobre esta sua experiência, Delacroix escreveu um diário que é um dos mais fascinantes livros de viagens do século dezanove francês. Era também um escritor de talento, e os seus textos sobre pintura e sobre arte revelam uma mão literária insólita para quem está habituado aos pincéis. As suas observações sobre a música são admiráveis e explicam a sua grande amizade com Chopin, de quem pintou indiscutivelmente o mais belo retrato. Muitas das suas páginas manuscritas podem ser lidas sobre os móveis ou nas paredes do pequeno museu da place de Furstenberg, um lugar de uma riqueza que a enorme porta cocheira num canto da praça não nos permitiria suspeitar.

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O Jardin des Plantes

A ideia desta maravilha de Paris ocorreu em 1626 a Jean Héroard, médico de Luís XIII, eruditíssimo homem de ciência autor entre outras obras de um saboroso diário sobre a infância e a juventude do rei que deliciou Carlo Emilio Gadda. Héroard concebeu o Jardim Botânico para os estudantes de Medicina da época, e Luís XIII, que segundo Gadda «cultivava o gosto pelas pequenas ocupações, até porque Richelieu não lhe permitia que se ocupasse seriamente das coisas demasiado sérias» (Il Luigi di Francia, 1964), apressou-se a criar um cargo de nomeação real, o de «Droguista do rei». Mas para que o Jardin des Plantes atinja o esplendor de que hoje goza será preciso esperar uma centena de anos, o reinado de Luís XV e o maior cientista da sua época, Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, finíssimo homem de letras, naturalista, biólogo, astrónomo. A sua visão da natureza abriu o caminho a Darwin e às teorias do evolucionismo. Belíssimo na Primavera e no Verão, o Jardin é um lugar de grande fascínio mesmo no Inverno pelo contraste entre a paisagem natural exterior e os grandes pavilhões reservados à vegetação tropical. Recomendo a entrada pela rue Cuvier, dedicada a um dos naturalistas que construíram este jardim, porque ali se encontra um pavilhão especial que merece, como se verá, uma visita especial.

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Pode-se obter um plano pormenorizado da enorme geografia de todo o Jardin na bilheteira da Ménagerie, que marca também a entrada para o mais antigo jardim zoológico público do mundo, que podemos evitar (se pensarmos no destino reservado aos antepassados destes animais num determinado momento da história de Paris, a vontade de o evitarmos é ainda maior: em 1870, durante o cerco de Paris, quase todos os animais foram comidos e figuravam explicitamente nos menus dos grandes restaurantes da cidade. Em todo o caso, a zona de restauração pode visitar-se com tranquilidade e a sanduíche de jambon de Paris parece estar acima de qualquer suspeita). Depois de uma paragem em frente da estátua de Bernardin de Saint-Pierre, pioneiro da festa de S. Valentim e inventor do amor e uma cabana reservado aos jovens e eternos apaixonados Paul e Virginie, entra-se no Jardim de Inverno com uma estufa mexicana anexa povoada de bananeiras, bambus e outros arbustos arborescentes amazónicos. Se lá fora faz frio (e no Inverno em Paris faz frio), pelo módico preço da entrada não só poderemos gozar do privilégio de uma ilusão tropical, mas também dos autênticos benefícios do clima tropical (ou banho turco, se preferirmos), porque um higrómetro marca uma implacável humidade constante de noventa por cento. Os visitantes mais ágeis poderão trepar à grande rocha ao fundo do pavilhão, que proporciona uma excelente vista de cima e permite o acesso ao pavilhão dos cactos (sem dúvida o local mais «picante» de uma cidade célebre pelos seus locais nocturnos). Dada a vastidão do Jardin, é preciso fazer escolhas radicais, a não ser que se queira passar lá dias inteiros. Julgo que se possa ficar fascinado pela Galeria de Mineralogia, onde se encontra exposta a maior colecção do mundo de cristais gigantes. Na cave está a chamada Sala do Tesouro, que guarda extraordinárias pedras preciosas provenientes das antigas colecções reais.

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Outra galeria inevitável é a de Paleontologia e Anatomia comparada. A arquitectura de ferro típica de finais do século dezanove vale por si só a visita, mas os amantes dos dinossauros e das outras criaturas que noutros tempos povoaram a Terra encontrarão aqui com que se deleitar. Aos visitantes com predilecção pela literatura fantástica estão reservadas duas belas surpresas: o esqueleto do celacanto, um peixe que os paleontólogos julgavam desaparecido há sessenta e cinco milhões de anos e de que se encontraram exemplares vivos nas profundezas de um lago andino (sobre este ser submarino o poeta português Herberto Hélder escreveu um dos seus mais belos contos no livro Os Passos em Volta); e, procurando bem, poderemos encontrar também outra estranha criatura aquática, o axolotl, tema do conto fantástico homónimo de Júlio Cortázar (no livro Final do Jogo). História de uma involução biológica, o conto de Cortázar começa assim: «Houve uma época em que pensava muito nos axolotls. Ia vê-los ao aquário do Jardin des Plantes e ficava horas a olhar para eles, observando a sua imobilidade, os seus o obscuros movimentos. Agora sou um axolotl.» Para acalmar a perturbação (ou aumentá-la) sobre a excentricidade das leis da biologia que Cortázar nos inoculou, é aconselhável visitar a Grande Galeria da Evolução. Não há palavras para a descrever. A visita é aconselhável não só a quem fez estudos normais, mas sobretudo a todos os que se sintam seduzidos pelas teorias bíblicas provenientes das seitas criacionistas do Far West de George Bush ou pelas crenças do Vaticano. Quem sabe se o visitante não começará a suspeitar de que foram precisos milhões de anos para nos tornarmos tão inteligentes e tão estúpidos. No caminho de regresso, uma paragem obrigatória é o pavilhão Becquerel. Nestas salas o físico Henri Becquerel descobriu a radioactividade através dos sais de urânio.

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Becquerel (que hoje se tornou uma unidade de medida) recebeu em 1903 o Prémio Nobel juntamente com o casal Curie. Era um optimista: junto aos outros dois grandes cientistas tinha dedicado a sua descoberta «ao benefício da Humanidade». Os efeitos maléficos viram-se em Hiroxima e Nagasáqui. A ciência, como se sabe, é em si mesma imparcial, tudo depende do uso que dela se faz. Enquanto se espera pelas utilizações futuras, convém apanhar o metro para regressar ao centro, estação Jussieu ou Gare d'Austerlitz, à vossa escolha.

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Sète. O cemitério marinho

Eis-nos em Sète, cidadezinha costeira do Languedoc, a dois passos da medieval Montpellier, onde Rabelais foi médico, e elegante estação balnear que se gaba de uma praia de areia finíssima com quinze quilómetros de comprimento. Um lugar imprescindível de Sète é o museu dedicado a Paul Valéry, que nasceu nesta cidade. E no interior do museu, como uma pequena gema encastoada na jóia principal, o «museuzinho» dedicado a outro poeta, o chansonnier Georges Brassens, também ele natural de Sète. Uma coabitação verdadeiramente digna da sólida democracia francesa: o burguês conservador Valéry, fotografado com os seus impecáveis coletes e o uniforme de académico, e o anárquico Brassens, com as mangas da camisa arregaçadas e a guitarra nas mãos, que nas suas canções tanto troçou da burguesia. Mas os museus, onde necessariamente se deambula, não são os lugares ideais para uma pausa. «Para pensar, ou melhor ainda para fantasiar, é preciso estar sentado», dizia o filósofo espanhol Eugénio D'Ors, um esteta preguiçoso. A verdadeira pausa que proponho ao viajante em busca de sítio especial fica acima da cidade de Sète, sobre a colina, no cemitério onde Paul Valéry está sepultado e que hoje é conhecido pelo título do seu poema mais célebre: «Le cimetière marin», O cemitério marinho.

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Se, como o filósofo espanhol, também formos estetas preguiçosos, podemos lá chegar de táxi em poucos minutos. Se tivermos boas pernas, espera-nos uma boa caminhada, depois da qual a pausa nos parecerá ainda mais agradável. A primeira coisa que apreciamos é o silêncio: sepulcral, obviamente. Apagou-se o rumor de Sète, a chilreada do passeio marítimo, o ruído dos tamancos dos veraneantes sobre o empedrado. Quando muito, o silvo da sirene de um navio (Sete é também um importante porto comercial); mas sobretudo, diante dos nossos olhos, o azul do mar e o amplo horizonte, aquela «mediterraneidade» solene e um pouco pagã que é um dos elementos fundamentais da poesia de Valéry. Para os Franceses, Paul Valéry (1871-1945) é um poeta de grandeza idêntica à de Mallarmé, que foi o seu mentor. Classificações difíceis de estabelecer. Certo é que a sua poesia é como que «perturbada» por uma prevalência de lucidez e de razão que parece renegar por vezes a própria natureza da poesia. De resto, a tormentosa «noite de Génova» no final dos anos noventa (a mãe de Valéry era italiana), na qual, como se depreende da sua biografia, decide abandonar a «nebulosa» poesia a favor da lúcida especulação filosófica, fez dele também uma grande figura intelectual. Desta sua escolha a favor do intelecto «puro», que na recusa das emoções aparece mais voluntarista do que autenticamente intelectual, resulta a sua entrega ao estudo das matemáticas e um livrinho exemplar, La soirée avec M. Teste (que o poeta Vittorio Sereni traduziu há alguns anos para o italiano) e que é a personagem que deveria representar o homem absolutamente senhor da sua vida mental. Na época de Valéry os grandes estudos neurológicos sobre a interacção dos dois hemisférios do cérebro, o das emoções e o da lógica (por exemplo os estudos de Sacks ou de António Damásio, este último com o seu O Erro de Descartes) não existiam ainda, e é compreensível que um francês de formação iluminista como Valéry privilegiasse as «luzes» da lógica.

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Que no fim se revelou menos lógica do que pensava, visto que a sua simpatia (embora moderadamente) foi para personagens políticas não propriamente exemplares, como Mussolini. Felizmente voltou à poesia em 1917 com o poema «A jovem Parca» e mais tarde, na década de vinte, com «O cemitério marinho». «Este tecto tranquilo, onde caminham pombas, / e palpita entre pinheiros, entre túmulos; / o exacto meio-dia acende de fogos / o mar, o mar que sempre se repete.» É o incipit do poema. A monotonia do universo, talvez, ou antes «a comercial pontualidade dos astros», como a definiu Drummond de Andrade. Ou ainda os pré-socráticos que Valéry tanto amou? Anaximandro e o seu eterno retorno? Talvez. São pensamentos a que podemos abandonar-nos com as pálpebras semicerradas, porque a luz mediterrânica é ofuscante, e a questão é complicada. Faz-nos falta um desses inteligentes como Monsieur Teste, mas quem sabe onde terá ido parar por esta altura. Talvez seja preferível deixar correr, porque entretanto nos sentámos numa antiga lápide de mármore, que oportunamente refresca a suada nádega, também a brisa é fresca e o nosso olhar perde-se entre as pequenas ondas, sempre iguais, do mar. E talvez nos sintamos realmente bem. Que, no fundo, é o mais importante.

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Mougins. A Provença que Picasso amou

A dois passos de Cannes mas na colina, ultrapassada a barreira de cimento que agora caracteriza a Costa Azul desde Menton até quase Cap d'Antibes, espera-nos uma das mais bonitas aldeias da Provença: Mougins. A estação de Cannes fica a uns vinte quilómetros que se podem percorrer de táxi, mas quem viajar de carro deve tomar a auto-estrada A8, saída 42; é facílimo chegar à aldeia. Pousada numa colina, rodeada de pinheiros e lavanda, a primeira impressão quando entramos a pé (o parque de estacionamento fica rigorosamente fora do centro habitado), sobretudo se vimos de um país onde os chamados bens culturais estão em tão mau estado, é que a aldeia foi conservada numa redoma de vidro e que ao penetrar na estrutura urbanística em caracol que a encerra corremos o risco de estragar o produto. O «descobridor» de Mougins nos anos trinta foi esse génio, Picasso, que aqui montou casa e aqui instalou o seu atelier, atraindo mais tarde para esta aldeia Éluard, Man Ray, Cocteau e o resto do grupo. Picasso voltou a refugiar-se em Mougins nos seus últimos anos, pintando aqui esses extraordinários quadros, autênticas explosões de cor e de vitalidade, que constituem uma das homenagens mais sensuais à paisagem da Provença. Perto da Porte Sarrazine, no que foi o Hotel Les Muscadins há agora um museu fotográfico que lhe é dedicado, com uma centena de imagens dos anos cinquenta da autoria de André Villers, Robert Doisneau, Jacques Henri Lartigue e Edward Quinn.

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Na aldeia conta-se que quando Picasso chegou e alugou um quarto no pequeno hotel, numa noite de incontida inspiração cobriu de pinturas as paredes do quarto e que o dono, ignorante, o obrigou a reparar os «prejuízos». Provavelmente um mito urbano (embora em ambiente campestre). Situada na estrada da rica Grasse, percorrida por mercadores, é evidente que na época medieval Mougins foi habitada por pessoas de posses. São testemunho disso as mansões de fachadas aristocráticas, as elegantes fontes, a bela igreja românica. Os cafés e restaurantes de estilo antigo, com os balcões de latão e as cadeiras de palhinha na esplanada, conservam uma atmosfera de outros tempos. A cozinha provençal é de primeira qualidade; os dois ou três pequenos hotéis, também antiquados, são de charme, como os Franceses gostam. As duas ou três lojas de arte (gravuras, molduras, bibelôs, recordações), de um refinamento sóbrio. Uma mercearia com produtos locais (azeite, frascos de lavanda, mel, guloseimas) é uma tentação a que não se pode resistir. Mas o melhor «produto» é o silêncio, e obviamente é gratuito. Uma das ruas mais bonitas é a rue des Orfèvres, onde no século dezassete se concentravam as oficinas dos artesãos, a mais célebre das quais a do ourives Bernardin Bareste, que cunhava moedas de ouro para a abadia de Lérins. Na pequena place des Múriers ergue-se a velha torre na qual, segundo parece, vivia o barbeiro que tinha a arriscada incumbência de fazer a barba ao bandoleiro Gaspard de Besse (bandido com um coração de ouro) que aparece inclusivamente no Maurin des Maures. Além de passar o dia, também passar uma noite em Mougins pode ser extremamente agradável.

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Para quem preferir não se instalar num dos elegantes hotel de charme da aldeia, a três ou quatro quilómetros, na estrada para Cannes, fica o Hotel de Mougins, imerso num jardim luxuriante, com uma óptima piscina e quartos amplos. O charme talvez seja menor, mas tem ar condicionado, o que no Sul da Provença, em certas estações, é preferível.

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Madrid e arredores: Goya para lá do Prado

Madrid não costuma fazer parte dos destinos das chamadas «férias inteligentes» sugeridos pela imprensa quando fala de viagens. No Verão faz muito calor, dizem, a cidade está deserta, as distracções são relativamente escassas. E então porque é que, perguntamo-nos, no feriado do meio de Agosto se ouve falar tanto italiano no Museu do Prado? Provavelmente porque há turistas inteligentes que, sem que ninguém lhes tenha sugerido, escolheram como destino uma das mais belas capitais da Europa. E das mais agradáveis. É verdade que em Madrid em Agosto faz calor: mas não é o calor húmido de Milão ou de Florença nem é preciso esperar pelo cair da tarde para que chegue a mítica brisa ponentina de Roma. Uma vez passadas as horas mais duras, sai-se para o ar seco e agradável da meseta, janta-se uma taça da sopa fria mais sábia do mundo (o gazpacho) e vai-se fazer alguma coisa inteligente. Por exemplo, uma visita ao Prado. Sei por experiência que as salas mais frequentadas pelos visitantes italianos são as de Goya. Depois da visita obrigatória às pinturas de Velázquez, «o maravilhoso», vê-se os visitantes entrar nas salas deste pintor desconcertante que está praticamente todo aqui, no Prado. Francisco Goya y Lucientes é o maior pintor do século dezoito, «a cavalo», como se costuma dizer, do século dezanove.

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Cada século tem o pintor que lhe é destinado. Dois séculos antes a Itália tinha tido Leonardo e Miguel Ângelo, mas enquanto noutros países, a Itália incluída, imperava um neoclassicismo maneirista, a Espanha teve este pintor visionário, dotado de um pincel portentoso, que fixou o olhar nos horrores do seu tempo e da condição humana em geral. E pintou-os. Aos apaixonados deste grande artista aconselho uma pequena excursão, logo nos arredores da cidade, à ermida de San António de la Florida, onde se chega facilmente. Ali onde a cidade se dilui no campo, nas margens do Manzanares, rio celebrado pelos poetas (mas também nas canções republicanas da Guerra Civil) onde as famílias madrilenas ainda hoje gostam de ir em excursão aos domingos, surge a pequena ermida encomendada por Carlos IV ao arquitecto italiano Filippo Fontana em 1798. Construída segundo o modelo renascentista com planta de cruz grega e cúpula central, esconde no interior da cúpula uns frescos de Goya (cujos restos mortais foram trasladados para aqui em 1919) que ilustram um acontecimento maravilhoso, um curioso milagre: Santo António ressuscita um homem assassinado para o interrogar, provando assim a inocência do seu pai, injustamente acusado da sua morte. A cena ocupa todo o interior da cúpula em cujo vértice está pintada uma apoteose de anjos, embora os protagonistas da cena principal, que assomam a uma balaustrada de ferro pintada a toda a volta, tenham rostos de pessoas comuns, pessoas da rua. A cena religiosa transforma-se assim, lá no alto, numa cena popular, quase como se fosse uma feira de aldeia ou um grupo de pessoas em peregrinação. Esta deslocação de planos (o elemento terreno colocado à altura do divino) provoca um efeito quase de desregramento. Há um vasto fundo de céu azul, nuvens e árvores ao vento; crianças a brincar na balaustrada, populares que falam entre si, homens absortos em orações e outros a gesticular.

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Na concepção espacial reconheceremos Tiepolo, mas é como se no sublime azul de Tiepolo estivesse projectada a miséria humana. Um conselho prático: leve uns binóculos. Fora da basílica, à esquerda, a poucos passos, há uma velha fonda, uma casa de comes e bebes popular. Come-se em mesas de madeira toscas sem toalha, marcadas por inúmeros círculos de copos que durante anos foram ali pousados antes do nosso. Há muitas famílias madrilenas com crianças, reina uma atmosfera alegre e um simpático ruído de fundo. Bebe-se uma sidra de excelente qualidade que o patrão serve directamente do barril. Está-se bem.

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O Escorial

Conta a lenda que quando Filipe II de Espanha encarregou Juan Bautista de Roledo e Juan de Herrera de desenhar o projecto do Palácio Real e do Mosteiro do Escorial lhes disse: «Fazei-me um edifício que faça crer à posteridade que éramos loucos.» Ao contrário dos verdadeiros loucos que abundam na História, que tentaram imprimir a sua loucura nos mármores dos edifícios, Filipe, que recebeu o trono do seu pai Carlos V que se retirara prematuramente para o Mosteiro de Yuste, estava consciente da sua obrigação de erigir um «monumento» que afirmasse a grandeza da Espanha (ao fim e ao cabo, no seu império o Sol nunca se punha: era rei de Espanha e das Índias Ocidentais, de Nápoles, da Sicília, de Milão, dos Países Baixos e das Filipinas) e o afirmasse também a si próprio como uma barreira católica inultrapassável à Reforma protestante. Digamos que por motivos contingentes «tinha a obrigação» de ser megalómano, sem deixar de estar perfeitamente consciente da sua megalomania. Enfim, que quem afirma ser louco sabe o que diz, como reza um provérbio cigano. O Escorial ergue-se a uns cinquenta quilómetros de Madrid, na encosta da serra do Guadarrama, e domina a agradável aldeia de San Lorenzo do Escorial, que com os séculos se foi desenvolvendo à sua volta.

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Do centro de Madrid chega-se facilmente num confortável comboio. O sítio é o verdadeiro «bom retiro» para o viajante que deseje desintoxicar-se do stresse citadino: bosques solenes, casas de uma elegância sóbria com telhados de ardósia ao estilo alpino (no Inverno neva muito), praças onde brincam crianças e onde as pessoas se encontram para conversar. Visto de fora, o edifício, mastodôntico e severo, tem um aspecto sombrio (a planta arquitectónica reproduz uma grelha em recordação do martírio de S. Lourenço, um mártir que morreu grelhado sobre carvões). As maravilhas estão no interior, e portanto é aconselhável pagar uma entrada completa (pode adquirir-se também uma entrada parcial) para visitar todo o mosteiro: a basílica, as Salas do Capítulo, o panteão, a biblioteca e as galerias de pintura. A última pedra do edifício foi colocada em 1584, mas dos trabalhos de decoração Filipe II quis encarregar-se pessoalmente, ele que se afeiçoara à sua «loucura» e que aqui passou largos períodos até à sua morte em 1598. Filipe dominava o mundo inteiro, mas do mundo amava a variedade de culturas: é exemplo disso a riquíssima biblioteca (mais de quarenta mil volumes) com manuscritos, incunábulos e volumes do século dezasseis em grego, hebraico e árabe, entre os quais um precioso Corão iluminado do século décimo. Os frescos ao estilo de Miguel Ângelo do tecto da biblioteca são de Tibaldi, enquanto os das abóbadas da basílica e da galeria das batalhas são de Cambiaso e de Giordano. Mas as emoções estéticas mais intensas esperam-nos na galeria de pintura: uma Anunciação de Veronese, assombrosa, com o Anjo segurando um lírio da altura de um abeto. E um Velázquez que à primeira vista parece um Piero della Francesca e que no entanto não deixa de ser também, em absoluto, um Velázquez. E depois um Ticiano. Um Ticiano tão sublime (uma Última Ceia) que só o adjectivo «sublime» o pode descrever. Numa das capelas há uma jóia inesperada: um crucifixo de mármore branco de Carrara cravado numa cruz de madeira negra.

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Cellini esculpiu-o cerca de 1560 para ser colocado no seu próprio túmulo na igreja da Santíssima Annunziata de Florença, mas um senhor da família Medici convenceu-o a vender-lho para o oferecer ao rei de Espanha. Para compensar as doses excessivas de austeridade e de sublime que a visita inevitavelmente comporta, descer a pé até à aldeia em baixo pode ser uma ajuda. E uma refeição num dos numerosos restaurantes da praça ainda mais. A especialidade de Madrid e arredores são os callos (as tripas): podemos contrabalançar o sublime de maneira egrégia.

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Em terra basca para ver o vento

Eduardo Chillida (San Sebastián, 1924-2002) é o maior escultor espanhol do século vinte e um dos maiores da Europa. Destinado provavelmente a uma vida de brilhante futebolista (aos vinte anos era guarda-redes titular da Real Sociedad, a grande equipa de futebol de San Sebastián) se uma lesão no joelho não o tivesse forçado à imobilidade. Na vida há contrariedades que por vezes são providenciais. Estudante de arquitectura, apaixonado pela escultura, começou a trabalhar com as mãos, e em vez de defender golos tornou-se o grande artista que todo o mundo conhece. Na idade madura, comprou uma quinta nos campos de Hernâni, nos arredores da cidade onde viveu e trabalhou, para onde se retirou. Reformulou o antigo baserrí, sobre cuja fachada se destaca um belíssimo brasão de pedra (o baserrí é a típica casa principal das quintas bascas, com paredes de granito e telhado inclinado), alisou em verdes prados as colinas que a rodeavam e aí instalou as suas monumentais esculturas de aço, alabastro e granito. Hoje, aquele que foi o sonho da sua vida e que conseguiu realizar é um dos mais belos presentes que um artista pode ter legado à sua terra. O Chillida-Leku é um imenso museu ao ar livre, ainda que a palavra «museu» não seja a mais adequada: é antes um espaço, um lugar a percorrer e onde passar algum tempo, onde a natureza e a arte se combinam, criando uma espécie de magia que arrebata o visitante.

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A emoção estética, fortíssima, é temperada por um grande sentimento de serenidade: naquele lugar as figuras humanas encolhem, tornam-se mais pequenas, o espaço agiganta-se, as proporções alteram-se, e altera-se em nós a ideia absurda de sermos os donos desta Terra. As cores brilham: o vermelho e o cinza das esculturas gigantescas, o verde cintilante dos prados e os tons escuros dos carvalhos centenários, o azul intenso do céu. A humildade invade-nos, varrendo a arrogância com que costumamos deambular pelas urbes modernas. (Nota 1) A poucos quilómetros fica San Sebastián, com o seu ar intacto de elegante cidade balnear de inícios dos anos vinte, o seu festival de cinema, os seus palacetes Art Nouveau, o imenso semicírculo da praia, os restaurantes de grande qualidade (a cozinha basca é célebre pelo seu alto nível de sofisticação), os estabelecimentos balneares mais belos da Europa (nos banhos La Perla podemos desfrutar de uma talassoterapia inigualável). Depois do grande incêndio de 1813, o centro histórico de San Sebastián foi reconstruído em estilo neoclássico seguindo o traçado medieval. O coração da cidade está dividido em dois bairros: os habitantes da zona que rodeia a igreja gótica de San Vicente são os Joshemaritarras, os da paróquia de Santa Maria são conhecidos por Koxkeros. O centro urbanístico é a monumental plaza de la Constitución (familiarmente Constí), onde em tempos se realizavam as touradas. Um lugar a não perder, na direcção do monte Urgull que domina a cidade, é o Museo San Telmo, em grande parte dedicado à cultura basca e às suas fascinantes e misteriosas origens (amuletos mágicos, estranhas pedras funerárias, instrumentos musicais); uma cultura belíssima que devido ao fanatismo da ETA corre o risco de se tornar odiosa.

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E para melhor apreciar o fascínio das lendas e das tradições bascas, leve consigo um livro de Bernardo Atxaga, o maior escritor de língua basca e um dos grandes escritores espanhóis de hoje. E já de regresso ao mar, onde ainda chega o velho teleférico, mesmo à saída da enorme praia da Concha, voltamos a encontrar Chillida. Inseridas em dois grandes esporões de rocha que se enfrentam, duas esculturas dentadas que se lançam para o horizonte desafiam-nos a «ver» o vento. Talvez o vento tenha também a sua geometria própria, deve ter pensado Chillida quando forjou O Pente do Vento que admiramos diante do Atlântico enquanto a espuma das ondas nos bate na cara.

Nota 1 - Este Chillida-Leku.

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texto

foi

escrito

antes

do

encerramento

do

Barcelona. A praça do Diamante

Quem visita Barcelona como turista deve passar necessariamente nas proximidades da praça do Diamante para chegar a uma das preciosidades de visita obrigatória da cidade, o Parc Güell, o admirável delírio arquitectónico de Antoni Gaudí, o genial arquitecto modernista cuja concepção do espaço parece pertencer mais às associações livres do estado onírico do que às leis de Euclides. Uma visita que não deixa ninguém indiferente, porque este bizarro parque, uma espécie de fantasy da vanguarda catalã dos princípios do século vinte, tem um fascínio que não é inferior ao de outras obras mais conhecidas de Gaudí, como o edifício da Pedrera e a catedral da Sagrada Família. Pequeno bairro popular e industrial conhecido pelas suas tendências anarquistas e republicanas, a comuna de Gracia foi incorporada no município de Barcelona no final do século dezanove. Das suas origens sociais manteve uma arquitectura modesta e uma atmosfera popular, com algo de perdido e fora do tempo, um ar de periferia no coração desta cidade de uma vitalidade extraordinária. A praça do Diamante («placa del Diamant» em catalão) é uma pequena praça com um ar vagamente melancólico que os recentes trabalhos de restauro não apagaram, como não apagaram a sua atmosfera crepuscular.

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Precisamente neste bairro decorre a acção do mais belo romance da maior escritora catalã contemporânea, Mercê Rodoreda, que tem o nome desta praça: A Praça do Diamante (1960) e que é sem dúvida um dos grandes romances europeus do século vinte, traduzido hoje nas línguas mais importantes. Apesar do sucesso da crítica de que goza (Garcia Marquez escreveu um prefácio entusiástico para A Praça do Diamante), Mercê Rodoreda continua a ser uma escritora para um círculo restrito de admiradores, uma espécie de clã «carbonário» existente em diversos países. Mas por que razão não nos sentiríamos «carbonários» num mundo onde a norma é representada pelos best-sellers? Talvez seja exactamente por essa razão que o leitor veio ter a esta pequena praça: porque por acaso (esse acaso que às vezes guia as melhores escolhas) trouxe consigo o romance de Mercê Rodoreda. Narrado na primeira pessoa pela ingénua protagonista, Colometa (que traduzido à letra quer dizer «Pombinha»), uma mulher que enfrenta os dramas da vida e da História com um heroísmo inconsciente, A Praça do Diamante é sem dúvida o romance mais comovente sobre as atrocidades da guerra civil espanhola, precisamente porque a guerra civil está muito presente nas suas páginas, embora nunca se fale dela. Mercê Rodoreda conseguiu mostrar a monstruosidade da guerra sem falar directamente dela, mas relatando os seus «efeitos colaterais» na pobre vida de Colometa. Se por acaso trouxe consigo o livro, um destes bancos é o lugar ideal para começar a lê-lo, ou a relêlo. Na primeira página: «Quando chegámos à praça, os músicos já estavam a tocar. A praça estava enfeitada com flores e grinaldas de papel de todas as cores: uma tira de grinaldas, uma tira de flores. (...) O elástico do saiote, que tanto me custara a enfiar com um alfinete-de-ama que não queria passar, fechado com um botãozinho e uma aselha de linha, apertava-me.

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Já devia ter uma marca vermelha na cintura. De vez em quando respirava fundo para aliviar a pressão, mas mal o ar me saía pela boca o elástico voltava a martirizar-me. O palanque dos músicos, que estava enfeitado com espargo, fazia uma varanda, e o espargo estava enfeitado com flores de papel ligadas com arame fino. E os músicos suados e em mangas de camisa. A minha mãe morta há anos e sem poder aconselhar-me e o meu pai casado com outra. O meu pai casado com outra e eu sem a minha mãe que só vivia para mim. E o meu pai casado e eu nova e sozinha na Praça do Diamante, à espera que rifassem cafeteiras, e a Julieta a gritar para que a voz passasse por cima da música, não te sentes que te amarrotas!, e à frente dos olhos as lâmpadas revestidas de flores e as grinaldas coladas com pasta de água e farinha e toda a gente contente, e enquanto estava assim pasmada uma voz ao ouvido disse-me: quer dançar?»

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Solothurn, pequena cidade cosmopolita

Confederação helvética, cantão de Berna, não longe da região dos três lagos: Solothurn, conhecida como Soleure em francês e Soletta em italiano, a mais bela cidade monumental da Suíça. Depois da sua fundação pelos Celtas foi uma grande cidade romana e mais tarde, ao manter-se católica depois da Reforma, foi escolhida como residência dos embaixadores franceses na Confederação Helvética. O seu refinamento foi credor do neoclassicismo iluminista francês e do barroco da Companhia de Jesus, uma combinação que ideologicamente é conflituosa mas que produziu óptimos resultados estéticos. O núcleo histórico, situado na margem direita do plácido rio Aar, está unido pela Kreuzacker Brücke à parte nova da cidade, onde se situa a estação de caminho-de-ferro e onde é aconselhável chegar (as estradas da Suíça podem ser um tormento, mas os comboios, grandes ou pequenos, são sempre uma delícia). E uma vez chegados à estação, depois de atravessarmos as poucas centenas de metros da providencial ponte, esquecemo-nos num abrir e fechar de olhos da Neue-Solothurn. Cidade pequena, mas cosmopolita e plurilingue (o alemão prevalece, fala-se bastante o francês, o italiano usa-se moderadamente), deparamo-nos com a setecentista Sankt Ursen Kathedrale, situada no cimo da colina, que, não obstante o exemplar estilo neoclássico com que é descrita nos folhetos turísticos locais, exibe uma influência descarada do barroco italiano.

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Além das belas fontes ornamentais, destacam-se as estátuas dos santos patronos da cidade, Ursus e Victor, mártires cristãos em Solothurn quando ali assentaram arraiais os romanos pagãos. Mas as verdadeiras maravilhas de Solothurn estão na cidade baixa: a Rathaus, hoje palácio comunal, de um barroco a roçar o maneirismo, a Jesuitenkirche, e finalmente a Zytglocke Turm. O impressionante relógio astronómico de 1545, onde de hora a hora assomam as figuras que representam a vida do Homem, parece troçar do estúpido lugar-comum segundo o qual a Suíça em mil anos de história só teria inventado o relógio de cuco: para além de uma democracia invejável que funciona como um relógio, a Suíça, país de alta engenharia, produz como se sabe os melhores relógios do mundo e algumas das marcas mais prestigiosas têm as suas sedes precisamente em Solothurn. Que não oferece só relógios, mas também uma cultura vivíssima. Antes de iniciar a visita, é aconselhável uma paragem de «cultura material», que, como nos ensinam Remo Ceserani e Lidia De Federíeis (Il materiale e l’immaginario), conforta o imaginário. Por exemplo um almoço no restaurante do Hotel Krone, onde a truta com amêndoas é excelente. Depois podemos passar algum tempo nas livrarias, as novas e os alfarrabistas, nas galerias de arte como outrora se viam em Milão, ou no teatro, ou em espectáculos de marionetas e, se as datas coincidirem, nos encontros anuais de literatura e de cinema. Nos anos sessenta, os neovanguardistas italianos, com a filantrópica intenção de nos desprovincializarem, queriam mandar-nos para Chiasso, a cidade suíça mais próxima da fronteira italiana. Já agora, podiam fazer o esforço de alguns quilómetros e mandarem-nos para Soletra. Não sendo localidade de fronteira, Soletta não é tão movimentada como a outra, é antes isolada como condiz com o seu nome, mas em compensação é muito mais cosmopolita.

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E no dia seguinte (os lugares elegantes e afastados podem ser aborrecidos, como se sabe), se não nos apetecer fazer uma longa viagem até Lugano como se descreve no belo romance de Giovanni Orelli, Gli occhiali di Gionata Lerolieff, podemos sempre apanhar um ferry que navega ao longo do Aar e chegar a Biel (em francês Bienne, que alguns consideram mais sugestiva que Soletta), cidade natal de Robert Walser, um dos grandes escritores europeus do século vinte que só agora começa a ter o reconhecimento que merece. E que se escapava muitas vezes de Biel para Soletta, que achava mais sugestiva do que Biel. Baudelaire escreveu doentes gostariam de pensa que se curaria tem a cama ao pé da da estufa.

que a vida é um hospital onde todos os mudar de cama: o que está ao pé da estufa mais rapidamente ao pé da janela, e o que janela pensa que se curaria primeiro perto

Ir até Biel poderia ser uma boa ideia.

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Spoon River entre os Cárpatos

Na região de Maramures, a zona dos Cárpatos do Noroeste da Roménia, erguem-se as igrejas antigas classificadas como património universal pela UNESCO. Mais austeras que os mosteiros de Bucovina (também património universal da UNESCO, caracterizados pelos extraordinários frescos das paredes exteriores), são construídas em madeira, com campanários pontiagudos e telhados em forma de pagode que lembram o Extremo Oriente. Tudo aqui é de madeira: as casas, as estalagens e todos os utensílios quotidianos. Madeira de carvalho e faia de florestas que são das mais belas da Europa. Na remota região de Maramures, de rigoroso rito ortodoxo, onde nos dias de festa, nas igrejas e nos mercados, os habitantes continuam a usar com orgulho os trajes tradicionais, em Sapanza encontra-se o mosteiro de madeira mais antigo de toda a Roménia (1393), centro de culto venerado e hoje destino turístico. A construção primitiva erguia-se a pouquíssima distância daqui, em Peri (hoje Ucrânia, estamos precisamente na linha de fronteira), e já nas suas origens foi um importante centro monástico elevado a sede arcebispal pelo patriarca de Constantinopla. Foram esses antigos monges que pela primeira vez traduziram para o romeno os salmos bíblicos e os Actos dos Apóstolos e os imprimiram, porque além de uma escola de teologia e de música o mosteiro possuía uma importante tipografia.

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Transportado e depois refundado como nova sede arcebispal em Sapanza, o mosteiro retomou as suas antigas actividades culturais, religiosas e musicais e durante as cerimónias podem ouvir-se os cânticos litúrgicos das vozes brancas (é um mosteiro feminino e as monjas dedicam-se também a tecer tapetes e a fabricar objectos de madeira). O complexo arquitectónico surpreende pela elegância dos edifícios e a harmonia da sua localização no espaço, no centro de uma paisagem de colinas verdíssimas, por detrás das quais se avistam os Cárpatos: à direita, depois do portal da entrada, a igreja com o campanário pontiagudo do cimo do qual se pode desfrutar o panorama; aos lados, os edifícios monásticos, em parte de pedra, de construção mais recente, adornados de requintadas cornijas de madeira entalhada. E no centro do espaço circular um enorme quiosque de madeira, em forma de losango, onde nos dias de culto as monjas oferecem aos peregrinos e aos hóspedes cestos de flores e alimentos envoltos em linhos bordados a vermelho (se por acaso viermos na época da Páscoa ortodoxa, encontraremos os tradicionais ovos pintados à mão). Segundo parece, em Maramures a morte é encarada com uma filosofia que pressupõe um certo sentido de humor (não é por acaso que a Roménia é a pátria de Tristan Tzara e de Ionesco). Na cidadezinha de Sapanza há um dos cemitérios mais alegres que vi na minha vida (o outro fica nos Andes peruanos). Nos anos trinta, um marceneiro local, Ion Stan Patras, também poeta popular e pintor naif, começou a construir para os habitantes da aldeia cruzes de madeira com uma base larga sobre a qual era pintada em cores garridas a imagem do defunto representado na actividade que tinha exercido em vida (por exemplo, uma mulher no seu tear, um camponês a cavar, o médico, o músico da banda, etc.).

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Um pacto secreto ligava as pessoas que «encomendavam» a sua futura sepultura e o marceneiro, e depois da morte deste a continuação do trabalho foi deixada a outro marceneiro, Dumitru Pop: num envelope selado, o cliente confiava ao artista o resumo da sua própria vida. Há um carteiro que se desculpa por ter perdido algumas cartas que devia entregar: é que a taberna atraía-o demasiado, e a aguardente daqueles sítios é muito boa, espera que o compreendam e lhe perdoem. Há o funcionário municipal com uma vida irrepreensível que confessa ter-se deixado atrair por um sítio de raparigas alegres da cidade vizinha. E a mulher do funcionário que, para enganar os melancólicos serões em que o marido dizia ter obrigações profissionais, convidava para tomar café um amigo de infância que também foi amigo na idade madura. Em suma, a vida. Um anti-Spoon River que não aspira à tragédia grega como o poema americano de Edgar Lee Masters, mas se contenta com a pequena comédia quotidiana que faz parte da vida normal. E da qual não está ausente alguma melancolia porque há um traço comum que reúne todas as vidas resumidas nas coloridíssimas lápides de madeira, desde a mais humilde do carroceiro à privilegiada do funcionário público: que cada um deles gostaria de ter tido outra vida para viver. Que pena a vida ser só uma.

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Dez anos de Creta

Creta começou assim, com um gigantesco cartaz de uma oliveira centenária arrancada por um caterpílar. Mil novecentos e noventa e oito, Atenas, o gabinete de Stavros Petsopoulos, o meu editor grego. Eu estava acompanhado pelo meu tradutor e amigo Anteos Chrisostomidis. O cartaz estava preso à parede com fita adesiva, por trás da secretária de Stavros. Fiquei a olhar para ele com os olhos muito abertos e virei-me para os meus amigos com um ar interrogador. Resumo as explicações deles: os geniais economistas do Conselho da Europa tinham chegado à conclusão de que a Grécia produz demasiado azeite (para mais, de excelente qualidade). E que este não é «competitivo» no mercado com o azeite espanhol e italiano. Competitivo no sentido em que a sua abundância faz baixar excessivamente o preço. E se o preço é baixo, ainda que beneficie os consumidores, não «favorece» a economia. Por isso tinham tido a magnífica ideia de oferecer dinheiro aos camponeses que abatessem as árvores e as substituíssem por plantações de quivis. Os quivis, segundo parece, eram mais adequados ao mercado europeu. Obviamente não era uma proposta, era uma chantagem. Os camponeses gregos, particularmente em certas zonas do Peloponeso e do Epiro, são pobres, e o dinheiro é um meio de persuasão eficaz. Stavros confessou-me ter visto um velho lavado em lágrimas enquanto os filhos arrancavam as oliveiras.

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Tinha sido posta em marcha uma campanha de protesto dos intelectuais contra a idiotice burocrática de Bruxelas. Se quisesse dar um contributo, um artigo meu seria muito bem-vindo. Logo que voltei ao hotel escrevi um artigo. Anteos traduziu-o e publicou-o no Ta Nea, o jornal grego mais vendido. Não me foi muito difícil falar da importância da oliveira (e do azeite) na nossa cultura: do símbolo bíblico da pomba que regressa depois do dilúvio com o raminho de oliveira no bico, a Atena, que antes de iniciar a construção do Pártenon planta uma oliveira, ao leito nupcial de Ulisses e Penélope escavado no tronco de uma oliveira, a Cristo, o ungido pelo Senhor, etc. Concluía de maneira um tanto pérfida: enquanto ateu o problema não me dizia respeito, mas tinha muitos amigos gregos que eram cristãos praticantes e imaginava a tristeza dos seus últimos momentos quando, esperando a extrema-unção, vissem chegar o pope munido de um sumo de quivi numa embalagem de cartão em vez dos santos óleos. O artigo foi retomado por Anteos Chrisostomidis a concluir o seu belo livro de conversas comigo, Ena pukamiso ghemato Ekedes (Uma camisa cheia de nódoas), publicado em 1999Entretanto a Grécia tinha ganho a batalha: os economistas de Bruxelas tinham renunciado a substituir as oliveiras pelos quivis. Alguns meses depois recebi uma carta. Vinha de Chania, Creta. Estava escrita em italiano, estava assinada Ioanna Koutsoudaki e dizia-me simplesmente que em Creta há as oliveiras mais antigas do Mediterrâneo, algumas ainda da época veneziana; gostaria muito que as víssemos, e ela e a sua irmã, Rena, convidavam-me a mim e à minha mulher, quando quiséssemos, para sua casa, que era a antiga casa de família transformada num pequeno hotel: haveria sempre um quarto para nós. Fomos pela primeira vez em Maio de 2000 e voltámos sempre. Depois da viagem à Grécia que eu e a Maria José fazemos todos os anos, como um ritual, Creta tornou-se a etapa final, o ponto de chegada obrigatório.

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Ioanna é agora uma das nossas melhores amigas, os meus amigos gregos tornaram-se por sua vez seus amigos e é em Creta que nos encontramos todos. É lá que discutimos o último filme de Angelopoulos; é lá que discutimos a suposta superioridade de dois poetas que, aliás, é estúpido comparar: são mais belas as «laudes» de Elitis ou a «mitologia» de Seferis? Tudo isto enquanto comemos kalizounia e bebemos raki. Creta como um simpósio platónico (o que se pode querer mais de uma ilha?). Um simpósio nascido das oliveiras. Conheço todos os olivais de Creta. E as oliveiras mais vetustas, das quais tenho dezenas de fotografias. Fomos procurá-las nos locais mais remotos do interior, nos vales ou nos montes onde Creta é mais verdadeira, intacta, ainda não contaminada por um turismo devastador. E graças a Ioanna e ao seu sobrinho Michalis Virvidakis, que tem um pequeno teatro em Chania onde se pode ver um Beckett de primeira qualidade ou uma pièce de um poeta popular, graças a ele e aos outros amigos cretenses, como Antonis e Zampia Gheorgoulakis, pude conhecer sobretudo as aldeias mais remotas, onde hoie me sinto em casa. Em muitas aldeias há um rosto que reconheço e que me dá as boas-vindas: «Ti kànete?» Como estás? A batalha de Creta, em 1941, foi o início da derrota do exército de Hitler. Os nazis tinham invadido a ilha e lançado de páraquedas pelotões de soldados armados de metralhadoras. Os Cretenses atacaram-nos com os podões das oliveiras, quando os pelotões dos super-homens atravessavam as quebradas, e aniquilaram-nos.

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Creta. Um hotel, uma aldeia

Estou em Creta, ou melhor dito, em Creta ocidental (Creta estende-se em comprimento por cerca de 260 quilómetros), em Chania, a mais bela cidade de Creta, a que os Venezianos, a quem pertenceu, chamavam La Canea. Dos Venezianos resta ainda o porto velho com os imponentes arsenais recentemente restaurados. O viajante que vem a Chania não é o veraneante ansioso pelos prazeres estivais sob a forma de discotecas e de praias onde o aroma do spray bronzeador prevalece sobre o cheiro a maresia. Para isso há Platanías, uma espécie de gueto balnear algarvio a alguns quilómetros a leste. Há também pequenas praias tranquilas frequentadas pelas famílias locais, naturalmente, mas vem-se a Chania por outras razões: o sabor ainda relativamente intacto de uma velha cidade cretense e a sua história. E a história de Creta no século passado e o facto de pertencer hoje à Grécia tem um nome, o de Eleftherios Venizélos (1864-1936), um político membro da Assembleia cretense que, em 1905, face à recusa do príncipe Giorgio de aceitar a unificação de Creta com a Grécia, convocou em Thériso uma assembleia revolucionária e declarou a união da ilha à Grécia. A monarquia receava ainda provocar a ira do império otomano e das grandes potências da época. Venizélos, com um grupo de guerrilheiros, tomou a iniciativa e soube imporse às grandes potências, porque a rebelião estendeu-se rapidamente a toda a ilha.

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Vindo do aeroporto em direcção à cidade, pouco antes de tomar a estrada costeira, vemos à direita a casa de Venizélos, uma sólida mansão. Poderia ser a nossa primeira paragem. Tem um bonito jardim, com palmeiras antigas. Um pouco mais acima, as sepulturas do político e do seu filho. Ao lado, uma geladaria, frequentadíssima pelas famílias nos dias de festa. Depois, sem nos afastarmos muito, um lugar em perfeita sintonia com o ambiente de profunda civilização recém-descoberto onde pousarmos a nossa mala e o nosso corpo, o Hotel Donna, no início do passeio marítimo. Donna, um pequeno palacete neoclássico, até há poucos anos residência de uma família local, foi transformado pelas minhas amigas Rena e Ioanna Koutsoudaki (duas senhoras, agrada-me repeti-lo, cujo refinamento, cultura e gentileza são tais que, à falta de melhor adjectivo, poderemos definir como «neoclássicas» como a sua casa) num pequeno e elegante hotel que tem a extraordinária virtude de nos fazer sentir em casa mesmo que, como no nosso caso, nada tenhamos de neoclássico. O mobiliário do hotel é de família, quadros, objectos e, pendurados na parede, velhos retratos de uma família (ou de famílias cretenses) que não nos pertence, mas que imediatamente adoptamos, porque também é nossa, sem o ser: é, de certo modo, o passado da nossa velha Europa, tão igual e, por sorte nossa, tão diversa. De manhã, numa sala de refeições cujas enormes janelas se abrem para o mar, sobre mesas cobertas de toalhas de linho, haverá marmelada feita em casa e um iogurte para guarnecer com mel, gelatina de rosas e nozes. Mas estávamos a seguir os passos de Eleftherios Venizélos, e nesta altura gostaríamos de visitar a aldeia de montanha de onde, com os seus guerrilheiros, reivindicou a pertença de Creta à Grécia.

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Se tivermos alugado um carro, no hotel indicam-nos o caminho, fácil de encontrar. A estrada para Thériso é um dos mais belos percursos de toda a ilha. Depois de passarmos por algumas localidades com ar de periferia, tomamos uma estrada que trepa entre montes, entre desfiladeiros, pinhais e olivais e riachos e rochas nuas, através de paisagens que pensávamos só existirem nas ilustrações dantescas de Doré, embora sem nada de tenebroso ou infernal: só uma áspera beleza. Um motivo de orgulho seria pensar que não muito longe ficam as gargantas de Samaria, obrigatórias para o turista, que serão muito bonitas mas que têm de ser percorridas em procissão entre uma multidão de penitentes como uma via-sacra. E o que há de melhor, para os turistas que no fundo todos somos (talvez sejamos todos turistas neste mundo), do que pensar, por um momento, que não somos turistas? E por fim chegamos a Thériso, uma aldeia que por si só não tem nada a oferecer para além de si própria, o que é bastante tranquilizador. Mas há um plátano, um enorme plátano centenário digno de veneração e que dá sombra às mesas de uma das duas casas de pasto onde podemos provar as excelências de uma cozinha arcaica, preparadas e fumadas durante o Inverno e armazenadas depois em velhas despensas. Há também um minúsculo museu da Resistência Nacional, também ele venerável e bastante feioso. E um pequeno monumento às mulheres gregas da Resistência, de formas tão rebuscadas que não podemos deixar de nos perguntarmos que ideia teria o escultor na cabeça sobre as mulheres da Resistência. E inevitavelmente a lápide comemorativa daquela histórica reunião de patriotas. Mas enquanto ali estamos, debaixo do plátano, a comer cabrito e uma fatia de tarte de ervas silvestres, contemplamos os bosques e as montanhas que temos diante de nós e pensamos que este era realmente o lugar mais apropriado para fazer uma paragem.

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Entre ervas e montes

Muitos, quase todos, vão a Creta por causa do mar. Mas pode-se ir sobretudo por causa dos montes, porque Creta é uma imensa montanha, ou melhor, um conjunto de montanhas de todos os géneros e tamanhos: picos intransitáveis, gargantas dantescas, cumes majestosos, suaves colmas cobertas de olivais imensos. E se algumas zonas costeiras, apesar do mar belíssimo, se viram desfiguradas por construções «turísticas» erguidas de qualquer maneira, as aldeias do interior conservam a arquitectura, os costumes, os hábitos e os alimentos da antiga civilização mediterrânica que se manteve orgulhosamente intacta. E em primeiro lugar a xenofilia (à letra, amor pelo estrangeiro) que é exactamente o contrário da xenofobia, tão em voga hoje em Itália. Os melhores guias dizem-nos que Creta é o lugar mais rico em plantas, ervas e flores de toda a Europa. São usadas de diversas maneiras, mas as principais são as da farmacopeia antiga que remonta a Hipócrates e a Teofrasto e que mais tarde Galeno, com os seus estudos sobre a flora, transformou numa verdadeira ciência terapêutica. Para os que se interessam por plantas, Creta é um paraíso. Para encontrar as mais raras é preciso um certo esforço, o que é óbvio, porque crescem nas fendas, nas gargantas ou nos desfiladeiros mais escarpados.

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Um poeta local, Spiridonos Zambeliou, compara a liberdade às ervas silvestres: «Em Creta a liberdade cresce / nas fendas dos montes / selvagem e com as suas próprias forças / como o láudano de Milopotamos ou o dítomo de Idis.» Mas quem não tiver forças ou vontade de chegar a lugares tão inóspitos pode recorrer à amabilidade dos habitantes das aldeias. No café local, o inevitável cafenío, indicar-lhe-ão a pessoa certa a quem poderá comprar as ervas que lhe interessam. Por exemplo a borragem, conhecida em Creta por «erva dos melancólicos». Esta planta herbácea parasita, de pequenas flores violeta, é usada desde a Antiguidade como infusão pelas suas propriedades antidepressivas. Já Dioscórides e Galeno a recomendavam, mas julgou-se sempre que era um placebo. Recentemente, os cientistas descobriram que a sua molécula contém um princípio activo rico em óxido gama-linoleico, precioso para as doenças cardiovasculares, com propriedades simultaneamente tranquilizantes e tónicas, que as empresas farmacêuticas sintetizam quimicamente para os antidepressivos mais vulgares. Outra planta difícil de encontrar é o dítimo. As suas folhas, fervidas e espalmadas entre duas gazes, são usadas como cataplasma para as pernas inchadas e as varizes. Mas parece ter também outras virtudes: chamada em Creta Fito tou erota («erva do amor»), tem propriedades interessantes, porque não é o típico «afrodisíaco», desses que se vendem até no supermercado e que prometem milagres, mas que, como certos fármacos químicos recentemente descobertos, impede um rápido refluxo sanguíneo do órgão do corpo em causa. Timo, sálvia, louro, rosmaninho, orégãos, funcho, açafrão: já os conhecemos. Mas em Creta, silvestres, têm um aroma surpreendente. Vou deixar de lado o uso terapêutico em favor do gastronómico, que é também uma excelente terapia. Um pão de pita recheado de funcho com queijo fresco e regado com mel pode ser sublime.

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Um prato de horta stamnagathi, ervas das montanhas que só crescem entre cardos, de sabor amargo e intenso, temperadas com azeite e limão e acompanhadas pelo paximathia (um pão duro com azeite e orégãos) pode ser um excelente almoço. E por último, uma sobremesa insólita: uma tarte de pétalas de papoila vulgar moídas dentro de uma pasta de amêndoas. Quais são as melhores aldeias para encontrar estas plantas? Creta é uma ilha enorme. Depende de onde nos encontramos. Por trás de Chania fica a minúscula aldeia de Lakki, perto dos desfiladeiros de Vryssi, imersos no verde. No centro, para sudoeste, Kandanos, onde os nazis fizeram uma matança semelhante à de Sant Arma di Stazzema, em Itália. A leste, no planalto de Handràs, as aldeias de Ziros e Armeni, onde ainda hoje há moinhos de vento. A poucos quilómetros, se a arqueologia nos interessar tanto como a botânica, poderemos fazer uma excursão às grutas dos túmulos minóicos. Aí encontraremos as plantas e as ervas que quisermos. E finalmente, para os mais corajosos, o monte Psiloritis (2456 m), onde há flores raras que talvez nunca tenham visto. Sem água, as plantas não crescem. As montanhas de Creta são sulcadas por riachos de uma limpidez extraordinária, cujas águas, que correm sobre seixos polidos ou sobre leitos de agriões, são de uma frescura revigorante, bebê-las é um prazer e banhar-se nelas provoca uma sensação de grande bem-estar. Os Cretenses sabem que estas águas são mágicas e que nunca ficam estagnadas. Por isso um dito popular ensina-nos: «A água dorme uma hora por noite nos rios e nas nascentes. Quem quiser bebê-la nessa hora deve acordá-la suavemente com a mão, caso contrário ela irrita-se e rouba-lhe o juízo.»

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Entre o Grand Canyon e a Capela Sistina

O que nos levou à Capadócia foi a força de uma frase, pois de outra forma a nossa viagem teria acabado em Ancara, para onde nos dirigíamos, vindos de Istambul, para ver um museu. Última noite em Istambul, um jantar em casa de amigos. Entre os convidados, inesperadamente, uma pessoa que conheço. Meio americana e meio florentina, professora de matemática em Nova Iorque, era desde há um ano visiting professor na Universidade de Istambul e tinha percorrido a Turquia de cima a baixo. Não sei se será pela sua familiaridade com a matemática, mas é capaz de curto-circuitos de ideias que vão para além da lógica comum. «A Capadócia? É uma mistura entre o Grand Canyon e a Capela Sistina», disse-me ela. Não se pode resistir a uma definição destas. Em Ancara, primeira etapa, visitamos o museu que tínhamos programado, o das Civilizações da Anatólia, entre outras razões porque sempre suspeitei que os Hititas fossem uma fantasia do meu velho professor de liceu, e esperava daquele museu uma confirmação ou um desmentido. Tinha razão o meu professor: os Hititas, para mim um povo com nome de peixes imaginários, existiram realmente, e o Museu das Civilizações da Anatólia, com aquelas surpreendentes estatuetas que parecem saídas do ventre do tempo, testemunha-o sem possibilidade de desmentido.

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O avião para a Capadócia estava cheio para os três dias seguintes, de modo que aluguei um carro e, depois de uma viagem de várias centenas de quilómetros muito pouco cómoda, chegámos a Ürgüp, a cidade mais importante dessa região de montanhas erodidas pelo vento e pintadas pelos homens. Com uma paisagem lunar de montes de terra argilosa (cinzas, lava e lama, a zona é vulcânica) escavados pelas intempéries e altíssimos cogumelos calcários chamados «chaminés das fadas» (Pasolini filmou aqui a sua Medeia), a região oculta no interior das montanhas igrejas e capelas decoradas com extraordinários frescos bizantinos. Dotadas de armazéns para trigo, estábulos, cozinhas, condutas de ar, enormes salas para reuniões e dormitórios, estas autênticas cidades escavadas na rocha (as mais célebres são as de Özkonak, Tatlarin, Kaymakli, onde os cristãos se refugiaram no século sétimo para fugirem às perseguições, evitando as invasões turcas e o conflito com a iconoclasta Bizâncio) são uma assombrosa manifestação da capacidade de resistência e adaptação humanas. Nem sempre é fácil penetrar nestes labirintos subterrâneos. Por vezes é preciso percorrer longas galerias quase de gatas, ou em todo o caso em condições difíceis, e para quem sofra de claustrofobia é mais prudente uma visita ao mosteiro de Eskigümüs, onde os frescos bizantinos, nunca retocados, se conservaram de maneira surpreendente. Ou ao museu ao ar livre de Göreme, um conjunto monástico de igrejas e capelas rupestres com frescos extraordinários, um dos sítios arqueológicos mais famosos da Turquia. Daquele lugar ficou-me na memória uma pequena igreja (não me recordo do nome e não o anotei no caderno de viagem), com a representação de um inferno onde os condenados estão envoltos em espirais de serpentes (lembro-me com exactidão das portentosas e surrealistas serpentes, enquanto os réprobos me pareceram mais vulgares).

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Em Ürgüp alojámo-nos na Esbelli Evi Pension, um minúsculo convento troglodita com seis ou sete quartos que há alguns anos um jovem advogado turco transformou em hotel de charme. Creio que ultimamente surgiram numerosas imitações, provavelmente não à altura do modelo original. A decoração dos quartos, com móveis antigos escolhidos pelo proprietário, é elegante sem ser snobe; os tapetes (alguns antigos, de família) belíssimos; alguns degraus levam a um pequeno terraço privado com uma vista soberba. Em cada quarto, uma dezena de livros de óptima qualidade em várias línguas, e na sala comum há uma colecção de discos impressionante (o proprietário é um requintado melómano). Além disso (uma sorte inesperada), coincidimos com uma harpista que habitualmente se refugia aqui para praticar antes de cada concerto. Tocava à luz da tarde ajoelhada num pequeno tapete Kilim, as mãos parecendo dançar no ar. A Maria José lembrou-se de uns versos de Pessoa e recitou-lhos numa língua que a intérprete compreendia: «Ó tocadora de harpa, se eu beijasse / Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!» E ela improvisou um pequeno concerto só para nós.

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O Cairo. Um Nobel. Um café

Metrópole caótica e sobrepovoada, onde reina um tráfego impossível e um rumor constante, o Cairo não é uma cidade fácil de visitar por conta própria, sem o apoio de uma boa agência de viagens (convém que seja particularmente especializada no Egipto); mas com alguma iniciativa e espírito de aventura pode tentar-se. De resto, apesar das inevitáveis dificuldades de todas as metrópoles, o Cairo é uma cidade com um enorme fascínio e os seus habitantes (como todos os egípcios) são de uma extrema cortesia e disponibilidade. Hoje em dia, certos operadores turísticos, desejosos de enviar os viajantes para o fabuloso Sul de Luxor e Assuão, tendem a fazer do Cairo uma cidade de curta permanência, quase de passagem, depois da visita obrigatória às pirâmides de Gizé e ao Museu Egípcio (que aliás é absolutamente extraordinário). Mas o Cairo merece muito mais que uma curta permanência: em poucos dias sabe mostrar-se confidencial e o seu fascínio conquistanos. Muitas são as cidades dentro desta mastodôntica cidade: há o Cairo residencial de Heliopolis, com os seus parques e os palacetes extravagantes do início do século vinte; a cidade copta das igrejas bizantinas e de um museu que por si só merece um dia de visita; a fantasmática Cidade dos Mortos, onde os que não têm casa transformaram os túmulos do antigo cemitério em casas para vivos.

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Há a requintada Zamalek, nas margens do Nilo, com os seus hotéis de luxo e os antiquários elegantes, e obviamente o Cairo islâmico, o coração da cidade, onde se erguem as mesquitas mais belas e o imenso souk (um dos mais belos do Médio Oriente), é por si só um bairro: um mercado, um lugar de negócios, de convivência e da pequena vida quotidiana. É o bairro de Naghib Mahfuz, prémio Nobel da Literatura de 1988, e dos seus principais romances, a chamada «Trilogia do Cairo», cujos títulos são os nomes das três ruas principais do bairro islâmico: Bain el-Qasrain (Entre os Dois Palácios), QasrEshShawq (O Palácio do Desejo) e As-Sukkariyya (A Rua do Açúcar). Mahfuz é um narrador de veia épica que soube fundir a narrativa tradicional egípcia de estilo episódico com o realismo ocidental. Mas um realismo que tem sempre um sabor ligeiramente fantástico, como entre o verdadeiro e o possível, e que nos lembra de certa maneira o Zavattini de I poveri sono matti ou de Milagre em Milão, com um olhar afectuosamente atento ao quotidiano do povo miúdo da sua cidade. A sua Trilogia é uma saga familiar que narra a desagregação da sociedade tradicional, de uma mudança de civilização através de três gerações, e a pitoresca vida das ruelas deste bairro é a sua música de fundo. Uma tarde no bazar de Khan el-Khalili proporciona muitas descobertas e maravilhas, mas também causa um enorme cansaço. Ficamos um tanto aturdidos pelas vozes, os sons, as cores e os perfumes infinitos das especiarias expostas em grandes sacos de algodão, as mais variadas especiarias: cinamomo, açafrão, gengibre, paprica, cravinho e outras especiarias desconhecidas, com nomes árabes indecifráveis. Temos vontade de as comprar todas, mas onde vamos metê-las?

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Uma ideia um tanto extravagante é comprar um cofrezinho de cedro com embutidos de madrepérola (são bonitos e a um preço muito razoável) e enchê-lo de especiarias ao nosso gosto. E em seguida agitá-lo para fazer um cocktail absolutamente pessoal que podemos levar connosco para deixar escapar o perfume de vez em quando. Munidos do cofrezinho, e talvez de um livro de Mahfuz, logo à saída do bazar deparamos com o Café Fishawi. É o mais antigo café do Cairo. Aqui pode-se descansar a qualquer hora, porque está aberto vinte e quatro horas sobre vinte e quatro; e à noite, quando os turistas de passagem já partiram, é frequentado pelos habitantes do bairro que conversam, jogam xadrez ou fumam a shisha, o cachimbo de água com perfume de rosas. Agora o café invadiu a rua e se a noite estiver boa pode-se gozar o fresco. Mas vale a pena entrar. O interior tem grandes salas adornadas com antigos espelhos com molduras embutidas, e as mesinhas, cambaleantes de velhice, têm tampos de cobre batido. Não se vendem bebidas alcoólicas, mas pode-se pedir um exótico café turco (fortíssimo), uma ampla variedade de chás, uma tisana de carcadé de primeira qualidade (segundo parece, a infusão das flores de hibisco tem propriedades relaxantes) e sumos de fruta fresca (aconselha-se o de limão, que na realidade tem sabor a lima e é doce). Este era o café onde Mahfuz vinha escrever à tarde, que é mencionado nos seus romances e onde tinha encontros literários que ficaram célebres. Ao fundo há uma sala de que ele gostava particularmente, onde nos podemos instalar para fumar uma shisha. Parece que é muito relaxante, e de facto favorece o sono. Mas se por acaso adormecermos, não há motivos para preocupações: o patrão dirá aos empregados que prestem atenção e ninguém nos incomodará.

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Quioto. A cidade da caligrafia

Muitas são as belezas de Quioto, demasiadas para caberem numa página. Bem o sabia Wislawa Szymborska, que dedicou um poema à beleza que salvou Quioto. «Quioto tem sorte, / sorte e palácios, / telhados alados, / degraus em escala musical. / Velha mas coquete, / de pedra mas viva, / de madeira, mas como se crescesse do céu para a terra. / Quioto é uma cidade bela / até às lágrimas. // Verdadeiras lágrimas / de um certo senhor, / um conhecedor, um amador de antiguidades, / que num momento decisivo / à mesa das conferências exclamou / que afinal havia tantas cidades piores, / e de repente rompeu em lágrimas / na sua cadeira. // Assim se salvou Quioto / decididamente mais bela que Hiroxima.» A cidade mais amada do Japão, fundada em 800 a. C, foi a primeira capital imperial, e a sua arquitectura está organizada geometricamente em relação ao palácio do imperador, no lado norte da cidade. Situada num côncavo entre verdes colinas onde se encontram os mais belos templos, o encanto da cidade surge sobretudo no antigo centro histórico, ainda com muitas casas de madeira em volta dos canais, o bairro dos pintores e dos calígrafos. Entrar numa oficina dedicada ao papel pode ser toda uma experiência.

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Uma vez uma pessoa de Quioto que me tinha cumulado de gentilezas e a quem queria retribuir de alguma forma levou-me a uma delas. Pedi-lhe que escolhesse pessoalmente um presente e me levasse a uma loja de papel e tintas. A pessoa que me acompanhava iniciou uma viva conversa com a dona da loja, uma senhora que vestia um quimono elegantíssimo, a que se seguiu uma longa apresentação de papéis de arroz de diferentes formas. Escolhido finalmente o papel, a senhora pegou num pincel e num tinteiro e desenhou nele um ideograma, escolheu uma caixa de cartão, envolveu-a no papel, e com uma fita de seda confeccionou um entrelaçado de nós e laços e entregou-a à pessoa que me acompanhava. (No Japão, nas escolas, há uma disciplina dedicada ao papel e à maneira de fazer os nós.) É difícil subtrairmo-nos à nossa própria cultura. Quando saímos, disse à pessoa que me acompanhava: «Desculpe, mas não compreendo bem, não há nada dentro da caixa, qual é o presente?» «É este», respondeu-me, mostrando o invólucro, «é muito bonito, obrigado». Lembro-me de que Roland Barthes no seu livro sobre o Japão, O Império dos Signos, fala da maior importância da forma face ao conteúdo. Mas uma coisa é ler isso num livro, outra muito diferente é viver essa experiência. O Outono é talvez a melhor altura para visitar Quioto, os templos e os jardins. O jardim de Entsuji, com o terreno de musgo semeado de pedras; o complexo de templos de Daitokuji, com os papéis de Ikkyu, o maior calígrafo zen, que morreu nos finais do século quinze; o santuário Nashiki, onde se realizam as festas dedicadas à planta do haji, de delicadas folhas redondas, a planta mais celebrada na poesia tradicional. Em Novembro, os habitantes de Quioto saem da cidade para ver os bosques que se cobrem com o amarelo e o vermelho do Outono. Num confortável autocarro chega-se aos pequenos templos nos bosques em volta de Ohara, e no segundo domingo de Novembro, nas colinas a oeste, outrora lugar de veraneio, celebra-se a Festa dos Aceres.

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O jardim mais aristocrático é o Kinkakuji, o Pavilhão Dourado, celebrado no romance de Yukio Mishima. Mas quem preferir ao barroco deste templo (e à prosa de Mishima, que se lhe assemelha) a sobriedade e o claro-escuro do autor do Elogio da Sombra, o venerável Tanizaki, pode visitar o seu túmulo, situado no cemitério-jardim de um dos mais belos templos budistas de Quioto. Ergue-se no declive de uma colina arborizada e deixo a sua localização à iniciativa do intrépido viajante. O túmulo de Tanizaki é uma enorme pedra redonda assente sobre a terra nua. Quando ali estive o terreno estava coberto de folhas de ácer vermelhas e a pedra pareceu-me natural, ou seja, não trabalhada pela mão do homem, ainda que por vezes no Japão seja difícil (veja-se os bonsai) identificar à primeira vista o que é realmente natural daquilo a que a mão do homem deu a aparência de natural. Afastei as folhas à procura de inscrições ou de signos. Na pedra havia apenas um ideograma cinzelado e depois pintado. Copiei-o no meu caderno tentando ser o mais exacto possível e nessa noite mostrei-o ao empregado da recepção, que falava um inglês perfeito. «O que significa?» perguntei-lhe. «Silence», respondeu-me. E depois, com um ligeiro sorriso, acrescentou: «Or "Nothing", Sir.»

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Nova Iorque-Rhinebeck de comboio

Suponhamos que estamos em Nova Iorque e dispomos de algum tempo, por exemplo, um fim-de-semana. E que sentimos necessidade de nos evadirmos de uma cidade extraordinária, talvez a mais extraordinária de todas, mas face ao ritmo da qual, em determinado momento, é preciso fazer uma pausa. Para chegar a Rhinebeck apanha-se um comboio na Penn Station, direcção Albany ou Montreal. O percurso, ao longo do majestoso Hudson que corre à nossa esquerda enquanto à direita se abrem os vales de bosques de aceres, é extremamente agradável e em menos de duas horas estaremos em Rhinebeck (paragem Rhinecliff). De lá, entre outras coisas, podemos chegar ao museu da DIA, na localidade de Beacon. Arqueologia industrial reconvertida (era uma antiga fábrica de biscoitos), este Centro de Arte contemporânea situado em pleno campo nas margens do Hudson recebe-nos à entrada com uma imensa sala dedicada a Andy Warhol, o que poderá compreensivelmente desanimar o visitante que não o aprecie particularmente. Mas se não desistir ao primeiro inconveniente será recompensado por emoções inesperadas (limitome a dois artistas: Dan Flavin e Agnes Martin). Para chegar a Rhinebeck temos de apear-nos em Rhinecliff, uma pequena estação de outros tempos perdida no meio dos bosques (aparentemente, porque Rhinebeck fica na realidade a poucos quilómetros).

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Se for hora de almoço, é aconselhável uma refeição leve na estalagem Beekman Arms, onde pode reservar um quarto para a noite. É a estalagem mais antiga dos Estados Unidos, onde George Washington dormiu durante a Guerra da Independência; uma placa recorda a sua permanência ali. À tarde, em poucos minutos podemos chegar a Annandale-on-Hudson e visitar o Bard College. Fundado em 1860, Bard é uma universidade residencial de Liberal Arts and Sciences. Aqui estudam aproximadamente mil e quinhentos estudantes provenientes de todos os Estados Unidos, embora quase metade seja oriunda de outros continentes, África, Ásia e América Latina, graças às generosas bolsas de estudo desta democrática universidade. O ambiente, posso assegurar, é dos melhores. As disciplinas mais frequentadas são literatura, antropologia, artes visuais e música (o director da universidade é Leon Botstein, célebre musicólogo e maestro): isto é, disciplinas que não têm uma imediata aplicação prática mas adequadas para cultivar o espírito. Todavia, os alunos estudam biologia ou engenharia e tornam-se biólogos ou engenheiros com uma boa cultura. Porque, segundo a filosofia da universidade, um biólogo ou um engenheiro que conheça Tolstoi e Mozart, por exemplo, tem um cérebro que funciona melhor do que os seus congéneres que não os conhecem. O território do Bard College é bastante extenso: uma boa solução é alugar uma bicicleta junto à Security, que fica perto do centro administrativo. A primeira paragem aconselhável é o auditório construído por Frank Gehry, o Richard B. Fisher Center for the Performing Arts, revestido de titânio como o Museu Guggenheim de Bilbau, mas ainda mais impressionante talvez pela paisagem em que está inserido. Não muito longe do resplandecente Gehry, por detrás da biblioteca de estilo neoclássico, há um pequeno cemitério com poucas sepulturas, lajes de pedra cobertas de folhas.

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Aqui repousam, lado a lado, três grandes mulheres que ensinaram nesta universidade: Mary McCarthy, Hannah Arendt e Irma Brandeis. Mary McCarthy ficou célebre pelo romance O Grupo (1963), que foi um best-seller. Mas merecem também ser relidas as suas notas de viagem e os seus ensaios políticos (Vietnam, 1967, e Hanoi, 1968): a cultura progressista americana deve-lhe muito. Hannah Arendt é uma das maiores intérpretes dos desastres do século vinte, sobretudo do nazismo; em jovem teve o azar de se apaixonar por Martin Heidegger, o filósofo da Selva Negra, como lhe chama Thomas Bernhard, e de escrever-lhe cartas que preferiríamos não ler. Irma Brandeis é uma das maiores estudiosas americanas de Dante; teve a bondade de não devolver ao remetente as cartas que lhe enviava Eugénio Montale. Foi verdadeiramente «um anjo». O regresso a Rhinebeckpode fazer-se no autocarro do Bard College, ao cair da tarde. Se tivermos feito uma reserva na velha estalagem, encontraremos um quarto com vigas amigas, soalho de tábuas de madeira e mobiliário rústico de época. A lareira está acesa e o restaurante é de primeira qualidade; por aqui passaram os franceses, os colonos holandeses e alemães chegaram mais tarde. Uma teoria linguística sustenta que na difusão de um idioma as áreas marginais são mais conservadas do que o núcleo central, mantendo intactas as características originais. Além da linguística, tenho a impressão de que essa regra é válida também na gastronomia: provar para crer, basta pedir no restaurante da estalagem a soupe à l'oignon.

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Washington. Uma pausa com Einstein

Washington é uma cidade muito bela, e de Nova Iorque chega-se lá facilmente. O mais aconselhável é ir de comboio, pela comodidade dos comboios mas, sobretudo, pela estação de chegada, um lugar suficientemente singular para merecer uma visita. Habitualmente as estações não se visitam, limitamo-nos a passar por elas. Um antropólogo contemporâneo, Marc Augé, incluiu-as, juntamente com os aeroportos e os hipermercados, no seu livro Não-Lugares (NonLieux), os espaços arquitectónicos da nossa época nos quais passamos uma boa parte do nosso tempo mas onde vivemos de maneira «suspensa» porque são espaços de uso e de passagem, uma espécie de limbos urbanos. No ensaio de Augé, a estação de Washington (Union Station) mereceria uma nota de excepção: não é só um lugar onde se chega e de onde se parte, mas a visitar com prazer pela sua beleza arquitectónica. Na minha vida vi muitas estações curiosas nas grandes cidades do mundo, mas a Union Station de Washington bate-as a todas. Inaugurada em 1908, obra do arquitecto Daniel Burnham, no estilo que na América do Norte é conhecido pela expressão francesa «Beaux-Arts», é ao mesmo tempo majestosa e de uma rara elegância, com pavimentos de mármore branco, tectos abobadados, grades de bronze e painéis de mogno.

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Esta arquitectura palaciana permitiu que aqui se celebrassem inclusivamente cerimónias e banquetes de Estado, em alternativa à Casa Branca. Outro motivo de paragem são os restaurantes, entre os melhores da cidade, a livraria e as lojas, incluindo o pequeno local de artesanato africano (Zimbabué, se bem me lembro) cujo proprietário, não afro-americano mas africano de África, pode contar-nos coisas de África que dificilmente encontramos nos jornais. Em Washington, a História que nos toca e continua a tocar-nos foi «monumentalizada»: os memoriais da Segunda Guerra Mundial, da Guerra da Coreia e da Guerra do Vietname são testemunhos impressionantes. E quando estivermos cansados (os memoriais estão dispostos em parques imensos) de percorrer as guerras do último meio século, a dois passos fica outro tipo de monumento de um género completamente diferente que merece uma paragem diferente. Estranhamente os guias não o mencionam e os próprios habitantes de Washington, excepto raríssimos casos, não o conhecem. Próximo do Departamento de Estado, num jardim afastado, junto à Academia Nacional das Ciências fica o Einstein Memorial. A enorme escultura de bronze, obra do escultor Robert Berks, representa o grande cientista sentado num dos três degraus que servem de base ao próprio monumento. Calça sandálias e tem na mão um manuscrito com as equações matemáticas das suas principais descobertas: a teoria da relatividade, a equivalência entre massa e energia e o efeito fotoeléctrico. Olha aos seus pés um mapa circular do céu esculpido num granito verde-esmeralda pontilhado de lascas de metal brilhante que representam as estrelas e os planetas. O seu rosto tem uma expressão ao mesmo tempo afável e perplexa, como se dissesse: «Esta agora!»

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Se for hora de almoço e o dia estiver bonito, ficar por ali a comer uma sanduíche enquanto olha para aquele génio que interrogou o universo e odiou todas as guerras pode ser uma boa ideia. Talvez lá esteja uma família de visitantes e um rapazinho trepe para a estátua como se estivesse nos joelhos do avô. Vontade não nos falta de fazer o mesmo.

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México. Viagem pelos chiles

No México, país imenso de uma extraordinária variedade, para onde quer que se vá, desde o Sul tropical da civilização maia ao Norte desértico, às cidades coloniais, ao fascinante monstro da capital, o viajante não poderá evitar o encontro com um elemento unificador e comum às culturas mexicanas mais diversas: os chiles. Elemento básico e indispensável da cozinha mexicana nas suas infinitas variedades regionais (a palavra não é exacta porque o México é uma confederação de estados), já usado na farmacopeia das culturas pré-colombianas (algumas substâncias «medicinais» encontradas pelos arqueólogos no Vale de Tehuacán testemunham que as populações locais os usavam seis mil anos antes de Cristo), deparamo-nos com o chile ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar, segundo o gosto e o aroma adequados à refeição. E embora os europeus em geral procurem evitá-lo (em parte por causa do rumor malévolo espalhado por certos guias turísticos um pouco levianos que o responsabilizam falsamente pela famosa «vingança de Montezuma»), ele é omnipresente e mais vale conhecê-lo. Traduzir chiles por «malaguetas» é absolutamente inadequado, tantas são as variedades, as formas, a intensidade e as diferenças de gosto destas solanáceas, e descobri-las é como explorar os abismos insondáveis da alma humana, com as infinitas gradações dos sentimentos que nos alimentam, da tolerância ao rancor, do ódio à vingança e ao perdão, do terno amor filial até à paixão mais desenfreada.

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Se perguntar a um mexicano quanto tipos de chiles existem ele far-lhe-á uma lista interminável, desculpando-se por eventuais esquecimentos. Vou procurar esboçar uma rápida lista começando com o Chile poblano. O Chile poblano é familiar e materno. Enquanto tal, dispõe de um ventre acolhedor para recheios de verduras e de queijos e acompanha assados e estufados. Em resumo: uma reunião de família para o aniversário da nossa querida avó. Também o Secoa tem um aspecto familiar, sábio como uma velha tia. Perdeu a vitalidade que a tia teve na juventude, mas não o perfume coquete que usava quando era uma rapariga. Usa-se para aromatizar os molhos mais diversos, misturado com sumo de lima. O Dulce, verde e gorduroso, típico da cozinha do Iucatão (inesquecíveis os pratos «nostálgicos» de Mérida), oferece um ligeiro picante, de uma elegância pudica e ao mesmo tempo maliciosa, como certas damas do século passado. O Güero, de dimensões robustas e de um amarelo-esverdeado, com uma epiderme ligeiramente rugosa, deixa entrever uma maturidade já alcançada com um picante ainda válido mas com uma ponta de cansaço, como a tender para a resignação. O Serrano, popular, com um vigor juvenil, é agressivo. Faz pensar em certos lenhadores loiros ou nas camponesas robustas de certos filmes alemães de propaganda dos anos trinta. O seu picante não só não satisfaz como não estimula, e o seu sabor grosseiro é feito só de veleidades. O Chile de árbol é francamente irreverente. De um vermelho-vivo, robusto e retorcido, a tender para o lúbrico, parece-se com o que no dialecto napolitano se chama «"o cazzillo" e diavolo», quer dizer «a pila do diabo», e no México é tido em muito melhor conta do que o Viagra.

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O Jalapeño, em contrapartida, assemelha-se à flor da idade: possui a força certa numa perfeita sintonia com a comida; um autêntico grande amor com a pessoa adequada na idade adequada, para assegurar a descendência (e neste caso uma boa sobremesa de fruta). Poderia continuar a lista. Mas como fazem os Mexicanos, pedindo desculpa por eventuais omissões, concluo com o Chile Habanero. O Habanero, brilhante e ovóide, de aspecto inocente e de um verdeamarelento que pode tender para o alaranjado, é o Pontifex maximus de todos os pratos mexicanos de superior qualidade, dos petiscos mais complicados, como a Cochinita, à inflamada (embora delicadíssima) sopa de lima. Mas atenção: o Habanero ultrapassou as fronteiras do picante até atingir o alarme radioactivo. A sua força pertence ao nuclear, é a cisão do átomo que os Maias descobriram na natureza antes de Fermi ou de Oppenheimer. Quem resiste às suas radiações internas pode com todo o direito reivindicar a pertença a uma cultura ultramilenar que a colonização europeia fez o possível por destruir. Se conseguir prová-lo diante de um mexicano mantendo uma expressão serena e sem começar aos gritos, terá conquistado a cidadania honorária.

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Os Robinsons

A praia solitária

O jumbo descarregou-os em Cancún, cidade do Iucatão e praia internacional do mar das Caraíbas. Vêm de Francoforte, onde chegaram vindos das mais remotas localidades da Alemanha. São cerca de trezentos, homens e mulheres: todos loiros, altos, robustos, cansados. Vêm passar umas férias no México. No aeroporto aguardam-nos autocarros moderníssimos. Está uma bela noite tropical. Os autocarros percorrem durante cerca de setenta quilómetros a sugestiva estrada que ladeia a costa e os leva para o Sul, para Tulum, até chegar a Akumal, uma praia rodeada por uma selva tropical onde as tartarugas marinhas vêm depositar os ovos. Os autocarros param diante de um enorme pórtico de cimento corde-rosa com palmeiras pintadas. Atingiram a sua meta: o hotel. A mesma meta que para nossa desgraça também atingimos, a Maria José e eu, graças ao equívoco de um amigo meu que, da Cidade do México, inspirado pelo lugar afastado e pelo nome evocativo do hotel, nos tinha reservado um quarto: com um nome daqueles, Robinson, só podia tratar-se de um pequeno hotel perdido, talvez de madeira, sobre o mar, como ele se recordava da sua infância passada no Iucatão.

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Assim, atraídos pela miragem de uma solidão absoluta, eu e a Maria José tínhamos pensado concluir no Iucatão a nossa viagem, iniciada no Norte do México, uma vez que aqui estão as imponentes pirâmides maias e uma cidade colonial que dizem belíssima, Mérida. A barreira vigiada por guardas uniformizados levanta-se, os viajantes descem ordenadamente dos autocarros e fazem fila para a recepção ao lado de uma mesa compridíssima repleta de bebidas. São servidas por duas empregadas loiras como eles que só falam alemão ou inglês. Os líquidos nos jarros de vidro são muito vermelhos, muito verdes, muito alaranjados e todos têm o mesmo letreiro: Tropical cocktail. Entregam os passaportes na recepção e retiram-se para os quartos que os esperam. Os outros trezentos quartos estão já ocupados por outros Robinson chegados no dia anterior do Texas pela mesma companhia, a Touristik Union International, que, como posso ver no folheto ilustrado no balcão da recepção, tem idênticos centros robinsonianos em Espanha, no Egipto, no Quénia e em praias longínquas de outros países do mundo.

Aeróbica

Na manhã seguinte um sol magnífico brilha sobre a vasta praia do hotel, delimitada aos lados por duas paliçadas baixas de palha e dotada de grandes chapéus-de-sol de palha de aspecto indígena, sob os quais os Robinson podem relaxar em espreguiçadeiras de inclinações variáveis. Há quem entre timidamente na água turquesa do mar das Caraíbas, mas a maioria prefere a enorme piscina com um estranho desenho (um coração com braços?) do hotel, na qual podem acompanhar o ritmo de uma ginástica aeróbica obedecendo a uma música ensurdecedora.

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O exercício, como repete ao megafone um rapaz que faz de «animador», terá efeitos incríveis nos seus corpos e nos seus espíritos. Quem parece ter mais fé na dança aquática são as senhoras mais velhas. Abandonam os seus pareos coloridos nas espreguiçadeiras e esforçam-se por seguir obedientemente o ritmo da aeróbica, movendo uns corpos que, como todos os corpos dos seres humanos daquela idade, sofreram os inexoráveis estragos do tempo. Depois de uma semana nos trópicos, talvez possam sacudir algum ano de cima, nunca se sabe.

La siesta Depois do almoço, servido debaixo dos guarda-sóis (enormes bandejas com torres de sanduíches e montanhas de frutos tropicais), impõe-se a sesta. Porque o México é o país da sesta. Aeróbicos e aeróbicas deixam à beira da piscina os seus disparatados chapéus de palha fabricados em Taiwan postos à disposição pelo hotel e nos quais a Direcção afixou um cartãozinho com os seus nomes, Ulrike, Klaus, Alice, Renate, e retiram-se para os respectivos quartos onde um ventilador de tecto de estilo colonial e uma tapeçaria popular pendurada na parede por cima da cama confirmam que estão realmente no México. E tempo de enfrentar a tarde. Outros cocktails coloridíssimos esperam-nos em mesinhas junto à piscina sobre a qual começa a cair um pôr-do-sol sanguíneo como deve ser um pôr-do-sol nos trópicos. E pouco depois espera-os o jantar com um monstruoso buffet disposto exoticamente entre abóboras, folhas de palmeira, panos artesanais de formas estranhas, ananases e instrumentos musicais indígenas. Nunca na vida tinha visto tamanha exibição de comida. Não é no Robinson Crusoe que estou, mas em Gargântua e Pantagruel: enganei-me de romance.

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O jantar

Os extraordinários pratos mexicanos são trazidos à famélica fila por criados maias de pequena estatura e rostos antigos cor de argila aos quais a direcção do hotel obriga a usar enormes chapéus de cozinheiros para poderem aproximar-se da altura dos clientes. São pratos autóctones ou coloniais, que os Robinson cobrem de ketchup, disponível à vontade em grandes recipientes de artesanato local. Mas estes são os comensais mais corajosos, animados de curiosidade étnica. A maioria permanece em fila diante do enorme churrasco ao fundo da sala, de onde regressam à mesa com o prato a transbordar de salsichas. Os filhos dos Robinson, entretanto, pedem insistentemente batatas fritas: «Chips, chips, chips...», ouve-se chilrear em todas as mesas. E os papás e as mamãs, levantando o braço, repetem o chilreio. O velho cozinheiro maia que já está a fritar as batatas, sorri: com os gringuitos, já se sabe, há que ter paciência.

La fiesta

Depois do jantar começa a fiesta. Esta consiste numa música ensurdecedora, difundida por altifalantes titânicos, que chega até à praia onde nos refugiámos. Ninguém, num raio de cinco quilómetros, está a salvo. É a mesma música que presumivelmente se pode ouvir nas discotecas da Baviera ou do Texas e que se faz acompanhar de luzes psicadélicas que iluminam sinistramente a vegetação tropical. As criaturas de Düsseldorf ou de Austin (são muitos os americanos), desejosas de provar a sensualidade dos trópicos, oferecem os seus corpos numa dança frenética ao Deus do Turismo Global.

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Depois do sacrifício humano espera-os o televisor do quarto com canais exclusivamente em inglês e em alemão, não vá acontecer sentirem-se tentados a ouvir o som da língua falada no país em que casualmente se encontram. Para o dia seguinte, o programa que se encontra na mesa-decabeceira promete para a tarde uma visita de autocarro às ruínas maias de Tulum, uma pirâmide junto ao mar sobre a qual os Robinson esperarão o pôr do Sol seguindo um ritual conduzido por um «especialista», e em tudo semelhante (garante o folheto distribuído no hotel) ao dos adoradores do Sol da época précolombiana.

O regresso

Depois de uma semana (o «pacote» prevê oito noites), os Robinson europeus e americanos regressarão aos seus lugares de origem e contarão aos amigos que visitaram o México. Para o provar, exibirão os diapositivos e as incontestáveis imagens das suas câmaras fotográficas que levaram para todo o lado: quando comiam, quando tomavam banho, quando dormiam debaixo das palmeiras, assim como certos índios de uma tribo da Amazónia trazem sempre pendurado um osso dos seus progenitores. Serão substituídos por outros Robinson aos quais (como marca da sua passagem) deixaram generosamente na «biblioteca» do hotel os livros que leram nesta maravilhosa praia mexicana: volumosos best-sellers em edições de bolso, com o título estampado na capa em letras douradas em relevo, que compraram previamente nos aeroportos de partida para não se aborrecerem sob o sol dos trópicos. São quase todos romances americanos de mistery ou de horror. Fizeram a escolha certa: a vida é um mistério e às vezes causa horror.

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Brasil. Congonhas do Campo

Para chegar aqui é preciso vir de propósito, como muitas vezes é preciso para os lugares um pouco especiais. Para abreviar: estamos no Brasil, suponhamos que chegámos ao Rio de Janeiro. Que é, como justamente lhe chamam, a Cidade Maravilhosa. Mas uma vez vistas as suas maravilhas (em positivo e em negativo), os dias nas praias de Copacabana ou do Leblon são idênticos aos de todas as partes do mundo onde existem praias do género, só um pouco mais pitorescos e um pouco menos «têxteis», dados os exíguos centímetros das tangas das raparigas: mas o sol é o mesmo e a água do mar também. Portanto, podemos partir para Congonhas do Campo. A direcção é Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, a cerca de quatrocentos quilómetros, servida por voos frequentes. Cidade que merece uma paragem, dirá o vosso guia, sobretudo pelo monumental complexo arquitectónico da Pampulha, obra de Oscar Niemeyer e Burle Marx. Fica para outra vez. Pedimos desculpa à arquitectura contemporânea, mas temos um encontro com a antiga, e o carro alugado no aeroporto servirá também de máquina do tempo para retroceder até ao século dezoito, ao magnífico barroco português de Congonhas do Campo.

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Convém chegar a Congonhas ao cair do Sol para aproveitar a luz de espelhismo do ocaso, passar sem olhar para eles os edifícios construídos nos anos cinquenta, quando o governo brasileiro decidiu voltar a explorar as minas (o pouco que restava das grandes jazidas auríferas que fizeram a fortuna de Minas Gerais na época colonial), e dirigir-se para a basílica do Bom Jesus de Matosinhos, que permaneceu intacta na periferia da localidade, num enorme espaço em declive onde palmeiras de graciosas copas sobre troncos altíssimos acompanham as seis capelas da Via Sacra que conduzem à catedral. Sobre a espectacular escadaria rombóide erguem-se com uma graça surpreendente, dada a sua mole gigantesca, as estátuas de pedra dos doze profetas. Esculpiu-as António Francisco Lisboa dito o Aleijadinho, filho ilegítimo de mestre Manuel Francisco Lisboa e da sua escrava Isabel. Este prodigioso escultor, talvez o maior da época barroca portuguesa, contraiu a lepra muito novo e conta-se que quando já estava incapaz de andar se fazia conduzir numa liteira até à catedral para esculpir as suas estátuas com os cinzéis ligados aos cotos dos braços roídos pela doença. As enormes estátuas são de pedrasabão, uma pedra macia e friável a que os ventos do sertão carcomeram os rostos como a doença que devorou quem os esculpiu. Entretanto caiu a tarde e as capelas da Via Sacra estão fechadas. Mas o guarda, que vive numa casinha próxima, abri-lasá para si se souber ser convincente, porque - é um argumento a usar - gostaria mesmo de as ver iluminadas pelas luzes artificiais. Contemplando à luz irreal dos focos os grupos de esculturas em tamanho natural do Aleijadinho (A Última Ceia, O Horto das Oliveiras, A Prisão de Cristo, A Flagelação, O Calvário, A Crucificação), que apesar da patina do tempo mantêm ainda as cores fortes de que os barrocos tanto gostavam, talvez pense que este era um lugar que merecia uma paragem. Entre uma capela e outra, no tapete de erva, cantam os grilos.

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São pequenos grilos verdes quase diáfanos: ao segurar na palma da mão um desses instrumentistas que com os seus realejos parecem tocar um requiem à paixão de Cristo esculpida por um artista infeliz, enquanto à sua volta centenas de outros grilos o acompanham, terá a sensação de dirigir uma orquestra lunar, onde tudo é absurdo, música e figurantes. Não muito longe dali há uma pousada. É rústica, com camas antigas e adornos de couro, como convém à vida dos vaqueiros destes sítios. A princípio, o colchão de crina poderá parecerlhe incómodo, mas depois dormirá magnificamente. Talvez a pensar como o Brasil é grande e surpreendente para fazer só esta paragem.

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Ouro Preto

O viajante casual que eventualmente se tivesse detido em Congonhas do Campo na etapa precedente, não terá dificuldade em chegar a Ouro Preto, praticamente «a dois passos», tendo em conta as distâncias deste imenso país. Estamos ainda no estado de Minas Gerais, região em tempos riquíssima de jazidas de ouro, prata e diamantes que no século dezoito fez da Coroa portuguesa uma das mais ricas da Europa. Minas Gerais é, entre outras coisas, o cenário do fabuloso Sertão de Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas, Corpo de Baile, Miguilim). Afastado dos grandes centros urbanos, descurado pelo poder central, abandonado a si próprio e às suas leis muitas vezes cruéis, o Sertão, até há poucos anos zona de latifúndios e de grandes pastagens, tem uma vaga semelhança com o Far West americano, onde o vaqueiro e o pistoleiro são as figuras dominantes. O pistoleiro (que não raras vezes é também o vaqueiro) que se chamava «jagunço»: personagem a meio caminho entre o bandoleiro à Robin Hood, o fora-da-lei e o mercenário ao serviço dos latifundiários. Andava vestido de couro, armado até aos dentes, com um chapéu em meialua enfeitado com moedas e dentes de animais. No ecrã, o grande realizador Glauber Rocha imortalizou-o no filme António das Mortes, enquanto Guimarães Rosa fez dele uma figura icónica, o homem preso entre o bem e o mal no labirinto da vida.

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Um labirinto que é um deserto (Sertão, etimologicamente, significa «grande deserto»), uma planície sem fim caracterizada por uma vegetação avara e espinhosa onde aparecem repentinamente, como incongruentes colunas jónicas num mar de nada, as altíssimas palmeiras buriti com uma grácil copa de folhas por capitel. O significado de Ouro Preto nada tem que ver com o que a expressão significa hoje para nós. O petróleo não entra nesta história: o preto refere-se aos escravos negros que trabalhavam nas minas de ouro, uma mão-de-obra robusta e gratuita que os Portugueses importaram das suas colónias africanas (Angola, Guiné e Moçambique), uma vez que os nativos morriam com extrema facilidade (o índio, dada a sua grácil, quase feminina estrutura física, não resistia ao pesado trabalho debaixo da terra). A monarquia portuguesa, muito católica, foi bastante apoiada nessa importação por uma Bula papal segundo a qual os pobres selvagens que adoravam os rios, as florestas e a abóbada celeste, recebendo o baptismo dos patrões europeus, podiam aceder ao paraíso ainda que fosse com cadeias nos tornozelos, bemaventurança de que nunca teriam gozado se tivessem ficado nas suas florestas. E assim os escravos foram levados para o Brasil, em grande número. E escavaram as minas com os seus braços robustos. E converteram-se à nova fé, acreditando num deus que os libertasse da escravidão e que por coincidência era o mesmo daqueles que os tinham feito escravos. As mais belas igrejas de Ouro Preto, como a de Nossa Senhora do Pilar, a de São Francisco de Assis ou de Nossa Senhora da Conceição foram construídas por esses «mineiros». O projecto pertence obviamente a arquitectos portugueses ou a um grande mestre local como o Aleijadinho, o escultor leproso de Congonhas do Campo. Mas a construção é daqueles anónimos braços africanos («ao negro»: não há expressão mais adequada para o dizer).

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Conta-se que para poderem fazer donativos ao novo deus salvador, dado que os faziam sair nus das minas e eram submetidos a uma inspecção rectal, os escravos salpicavam o couro cabeludo com pó de ouro bem oculto pelos seus cabelos crespos. Em casa, as mulheres lavavam as cabeças dos homens numa bacia, recolhiam o pó de ouro e ofereciam-no às igrejas para decorar os altares e os tectos. Os deslumbrantes interiores das igrejas de Ouro Preto que agora são admirados pelos viajantes casuais (que somos todos); esses altares, os anjos e os coros barrocos talhados na madeira e cobertos de uma folha de ouro finíssimo foram assim feitos. Talvez seja a altura de nos sentarmos (ou de nos ajoelharmos, depende do viajante) no banco de uma destas igrejas. Pausa para reflexão.

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No Canadá por causa de um filme

Visitei o Canadá há muitos anos por ocasião de um congresso universitário, e pareceu-me um país belíssimo embora tenha conhecido apenas o Canadá das metrópoles. Voltei recentemente por puro capricho, motivado por um filme de Claude Jutra: Mon oncle Antoine. É um filme de 1971, mas vi-o em Paris muito tempo depois. Jutra é um grande cineasta pouco conhecido em Itália. Amigo e colaborador de Louis Malle e Bernardo Bertolucci, realizou alguns documentários magníficos e poucas longas-metragens, entre as quais uma verdadeira obraprima que é Mon oncle Antoine. É uma história que se passa na província do rio São Lourenço que percorre o grande território oriental do Canadá, o Quebeque: a história de uma iniciação, de descoberta da vida por parte de um adolescente, uma iniciação à vida que acontece através da descoberta da morte. Será ele, o rapazinho protagonista, que, vencendo o medo e superando a própria «linha de sombra», irá no meio da noite recuperar entre a neve dos bosques de abetos o cadáver de um menino que o tio, proprietário de um armazém e da agência funerária, deixou cair da carreta. O pobre tio Antoine, simpático e um tanto cobarde, tinha apanhado uma bebedeira para aguentar o trajecto nocturno de um casario afastado até à aldeia com um cadáver atrás.

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Acontece às vezes que a sugestão de um filme nos leva a lugares onde nunca teríamos ido. A antiga capital, Quebeque, que dá o nome ao imenso território, é uma pequena cidade do século dezoito com ruas tortuosas percorridas por carruagens, um ambiente tradicional e hospedarias que servem uma boa cozinha familiar. O centro mais animado é a place Royale frente à igreja de Notre-Dame des Victoires, incendiada pelos Ingleses em meados do século dezoito e depois reconstruída. O viajante mais avisado poderá deparar-se com certos clichés turísticos aborrecidos: o pintor de paisagens ingénuas, o desenhador que faz um retrato a carvão em cinco minutos, o acordeonista que toca velhas melodias. Mas quem saiba apreciar os matizes apercebe-se de que são clichés com uma fruição diferente. Porque os Canadianos, não tendo nada de mais velho, acham antiquíssima a cidade de Quebeque, como se fosse o seu Pártenon ou o seu Coliseu: as famílias vindas em excursão das províncias mais remotas têm no rosto um ar tão feliz que seria maldade estragar-lhes a inocência. E chegados a este ponto podemos ter vontade de conhecer a província da província. No centro há uma estação de autocarros de onde partir para St.Jean-Port-Joli, Rivière du Loup, TroisPistoles, na direcção do enorme delta do São Lourenço. Se depois alguém, um pouco mais aventureiro, quisesse descer até às reservas índias a noroeste do Quebeque, encontraria os descendentes dos Iroqueses e dos Uroni. As suas condições sociais não são das melhores, como aconteceu a todos os povos colonizados, mas o governo canadiano promoveu em benefício destes povos um sistema de ajuda e de protecção muito melhor do que o da Austrália ou dos Estados Unidos. Pelo menos não produziu os desastres da chamada «integração» na cultura do homem branco.

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As tribos que por motivos históricos mais se integraram são os chamados Bois Brûlés, um pouco mais a oeste, descendentes da mistura entre a população local e os colonos franceses que negociavam em peles e madeira e se instalaram naquela zona nos finais do século dezoito. Aos jovens franceses loiros e de olhos azuis que vinham na maior parte da Normandia e da Bretanha agradaram aquelas belíssimas raparigas de pele ambarina e cabelos de azeviche. E as raparigas não desdenharam daqueles rapazes loiros. Os Bois Brûlés são muito hospitaleiros, o seu território é belíssimo, as suas cabanes (como lhes chamam) são na realidade espaçosas e confortáveis construções de troncos de abeto dotadas dos confortos essenciais. Para quem escreve, passar ali o Inverno é mais atraente (e muito mais económico) do que passá-lo em lugares «da moda» que nunca foram o meu género. Por isso me deu vontade de ficar numa cabana índia dos Bois Brûlés. Mas antes, para acalmar a macaia, como se chama em Génova à saudade, que me apanhou de repente, quis regressar, como se estivesse preso por um feitiço, a uma cidade italiana. Há anos, quando decidi abandoná-la, era percorrida pelas Brigadas Vermelhas, e não voltei lá. Agora, que é percorrida também pelas Brigadas Negras, chegou o momento de voltar a visitá-la.

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Génova

Há aqui qualquer coisa de diferente dos outros lugares, mas o que será? Talvez «o hálito salino que transborda dos molhes»? Vem-nos à cabeça este verso porque «o hálito salino» é seguramente o mistral ou um vento parecido: do sudoeste, mistral, do sul, de qualquer maneira um vento do Mediterrâneo, e por isso estamos num país do Sul, e nos países do Sul, com estes ventos, também há roupa estendida às janelas, lençóis que estalam ao vento como bandeiras. Ventos nossos, roupas nossas. Hoje sopra o mistral sob as antigas arcadas que estou a percorrer, está um dia luminoso, mas nas ruelas em volta, estranhamente, não há roupa a secar às janelas. Perguntar a alguém se os moradores já não fazem a barrela ou pensar que esta aparente luminosa Primavera é, pelo contrário, «a obscura Primavera de Sottoripa»? O melhor é acreditar em Moutale, às vezes os poetas têm intuições que um dia acabam por se tornar realidade. E hoje não é o Julho de hoje, é o Julho de alguns anos antes, porque esse é o privilégio concedido a quem está a escrever esta página: passear também no tempo. Parti da Sottoripa, ponto cardeal de uma cidade que conserva intacto o seu mistério. Que talvez a faça parecer avarenta, porque é cautelosa, não se entrega, não se fia.

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Mas quem a acha avarenta não compreendeu a sua generosidade: a cidade é medalha de ouro da Resistência. Génova dá-se quando é necessário. Da Sottoripa continuei pela via Prè, a mal-afamada, e depois vou ao acaso, quem sabe porquê, talvez porque «um zumbido longo vindo de fora incomoda como a unha no vidro» (ainda a voz de Montale). Também eu procuro, como ele, «o sinal perdido»? Procuro-o porque nesta cidade o Estado passou realmente os limites. E tentou apagar as marcas. Continuo. Piazza Fossatello, via Lomellini, onde fica a casa de Mazzini, coitado, que tinha curiosas ideias republicanas. Mas já meti pela via del Campo, seguindo a magia de outra voz. Como era bela essa voz, e verdadeira, cantava a vida com todas as máculas que a vida tem, e Génova, e a Itália, tal como existia e que um palhaço milionário fez desaparecer. E o que é que há na via del Campo? Já se sabe: na via del Campo há uma puta. Talvez duas ou até mais. Mas hoje, que estranho, não há nem uma, talvez a Security as tenha posto a enxugar em casa como a roupa, a via del Campo está um brinco, parece um postal ilustrado. Querido Fabrizio De André, a falta que me fazes. Gostaria que pudesses devolver a autenticidade a estes lugares raspando o falso verniz com que o palhaço pincelou esta cidade, para voltar a dar vida à vida na sua simples verdade feita sobretudo de misérias. Lá em cima no alto há uma água-furtada, é sem dúvida a velha mansarda de Gino Paoli, de onde se via o mar e onde havia uma gata com uma malha preta no focinho, com uma estrelinha que descia muito, muito perto. Mas hoje a gata já lá não está, e o mar não se vê, e a estrelinha também não, no seu lugar está um dirigível negro de onde vão descer os Black Bloc.

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Cheguei ao passeio marítimo, onde se pode apanhar o autocarro para Sampierdarena e Bolzaneto. Mas hoje não há autocarros. Não importa, posso ir com o pensamento, porque é precisamente do cimo da fortaleza de Bolzaneto, erguida em 1380 pela Repubblica Marinara para protecção da cidade, que se domina a cidade inteira: as torres medievais, os telhados de ardósia, as chaminés da zona industrial de Ponente e estes mesmos bairros com os seus modestos prédios populares, a estação, os correios, o quartel. E enquanto a olhamos hoje, «com aquela cara tão assim, aquela expressão tão assim», perguntamo-nos verdadeiramente «se esse lugar para onde vamos não nos engolirá para nunca mais voltarmos» (Nota 1). É esta, hoje, Génova para nós, depois do estupro. Na minha cabeça ressoa a voz de Paolo Conti, e parece-me mais rouca do que habitualmente, com uma estranha fissura, como o som de um vidro partido.

Nota 1 - Alguns elementos deste texto, como os Black Bloc ou o quartel de Bolzaneto, fazem pensar no episódio de violência por parte da polícia aquando do G8 de 2001. (N. da T.)

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III

Na Índia



Diferentes ideias da Índia

Uma história exemplar: quando os portugueses de Vasco da Gama desembarcaram numa ilhota em frente de Bombaim e penetraram nas grutas do templo rupestre de Elephanta deitaram mão às picaretas e arremeteram furiosamente contra as ciclópicas estátuas do panteão hinduísta talhadas na rocha. Irremediavelmente desfiguradas assim são mostradas hoje, com o humilde pesar do guia local, ao visitante europeu. Muitas vezes me interroguei sobre o que terá levado àquele acto de vandalismo. As crónicas portuguesas da época são pródigas em informações sobre a fervorosa fé cristã que animava os navegadores. Mas não se tratou apenas de uma cruzada contra os «ídolos». Aqueles exaustos navegantes vinham de um país do Ocidente contra-reformista, estavam habituados a uma religião tranquilizadora feita de um inferno que punia e de um paraíso que recompensava, povoada de santos de rostos amáveis, com um demónio claramente malvado e madonas azuis e maternais. Conheceram de repente um universo sem centro, o conceito do híbrido; suspeitaram de uma reciclagem cósmica, uma visão terrífica e não antropomórfica do mundo. Tiveram medo. As suas picaretas foram movidas pelo Medo. Hoje, face ao calafrio de loucura que percorre a Índia, face ao medo que este enorme ventre nos infunde e se infunde, vem-nos o desejo de reler a antiga Mãe da cultura através dos olhos e da literatura do Ocidente.

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Mas antes do Medo, naturalmente, houve a Maravilha: Marco Polo, Mandeville e as montanhas de ouro guardadas pelas formigas, e os rios que correm do Paraíso terrestre, e porque é que o imperador da Índia era chamado Preste João: e toda a mitologia que floresceu na Europa sobre esta fabulosa personagem; e as expedições dos Portugueses em busca do reino da felicidade, nessa Taprobana (Ceilão) que foi depois de Os Lusíadas de Camões e onde Campanella colocou a sua Cidade do Sol. E o florentino Filippo Sassetti; e Francesco Carletti, aventureiro e esteta cínico; e «o apóstolo das Índias», Francisco Xavier, sepultado na «dourada» Goa. E depois veio o exotismo; mas já saltámos dois ou três séculos. O exotismo de finais do século dezanove de uma literatura cansada das tertúlias burguesas, das traições conjugais das províncias e dos subúrbios de Zola. A Índia era o algures por excelência: porque era misteriosa, evidentemente, os cadáveres dos parsis apodreciam nas Torres do Silêncio, os diamantes do reino de Golconda eram grandes como ovos, as selvas inextricáveis escondiam seitas sanguinárias, nos palácios fabulosos dançavam as baiaderas para divertimento do mogol e do marajá. Senhoras com o busto cingido por barbas de baleia e cavalheiros de bigode enganavam o tédio vespertino lendo as aventuras do oficial de marinha Pierre Loti (Linde, 1898), verosímeis como uma oleografia. Era o cinema que ainda não havia. O século vinte literário europeu vira-se assim para a Índia: na esteira de um exotismo que significa evasão, desejo de êxtase e de viagens oníricas. E que no fundo representa a ideia de um Oriente em oposição a um Ocidente colonialista e belicoso mas intimamente cansado.

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Um Oriente, como escreverá dia e a fé / Ao Oriente Oriente excessivo que eu bramânico, / sintoísta, / temos, / Que tudo o que nós

Fernando Pessoa, «donde vem tudo, o pomposo e fanático e quente, / Ao nunca verei / Ao Oriente budista, Ao Oriente que tudo o que nós não não somos».

Este Ocidente esgotado, com o olhar velado pela melancolia e a febre, tem no caso da Itália o rosto de um jovem dandy de Turim, Guido Gozzano, também ele em busca do berço do mundo, viajante embusteiro e genial que sobre a Índia inventa tudo o que não pode ver e que capta, em contrapartida, o que transporta imprescindivelmente na alma: o sentido da morte e a veemente consciência de uma inultrapassável indecifrabilidade. Omitindo, indevidamente sem dúvida, o grande Kipling que foi capaz de ver e de «compreender» a Índia com os olhos da sua soberana, a literatura europeia do século vinte admite em relação à Índia a sua substancial incapacidade de compreender. E a glacial conclusão de Passagem para a Índia (1924) de Forster, o mais admirável romance sobre a Índia elevada a metáfora da incompreensão universal: a incompreensão dos colonizadores face aos colonizados, dos colonizados face aos colonizadores, de ambos face a si próprios. E além destes há Um Bárbaro na Ásia (1933) de Henri Michaux, viajante interior por natureza que, conscientemente, se recusa a compreender a Índia limitando-se a observá-la com a ironia e a leveza de quem já não se sente europeu porque já encontrou o seu Algures privado. Mas antes dele há o vagabundo Hermann Hesse, e naturalmente o seu Deambulações Fantásticas povoado de viajantes e peregrinos; e principalmente a Viagem à índia, diário da viagem empreendida em 1911. Mas Hesse não procurava a Índia, procurava a negação da antinomia kantiana, um Absoluto Impessoal que outros escritores menos místicos e mais sensuais talvez tenham encontrado no esteticismo helenizante (penso em Kavafis e em Durrell, e talvez esteja a dizer uma heresia).

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Romain Rolland (Inde. Journal, 1915-1943) procurava pelo seu lado a tolerância, o grande entendimento universal, aquilo a que hoje se chama «o diálogo»: e entrelaçou-o principalmente com a tolerância feita pessoa, Gandhi (Rolland-Gandhi, Correspondance). E depois veio Malraux, que procurava o Homem e o sentido da existência e para além da enfurecida Indochina colonial se dirigiu à Índia (Antimemórias, 1967). Estamos nos nossos dias, no passado recentíssimo. E nas crónicas de viagem dos autores italianos mais representativos. Há o Flaiano de Un giorno a Bombay (1980) e Uma Ideia da Índia (1962) de Moravia. Uma Índia, esta última, olhada sobretudo nos seus problemas humanos e sociais, mas também uma Índia fugidia e enigmática porque lá só se pode «sentir», assim como «se sente, no escuro, a presença de alguém que não se vê, que se cala, e no entanto está aí». Mas quem mais «sentiu» a Índia, num livro admirável, foi Pasolini. Renunciando a compreendê-la com os olhos do Ocidente, Pasolini compreendeu-a de maneira directa e profunda: com os sentidos. O Cheiro da Índia (1962) é o livro de um homem que reencontrou a sua angústia de viver numa humanidade desventurada e dolorosa e que compreendeu que a Índia possui esse estranho sortilégio: fazer-nos realizar uma viagem circular no fim da qual talvez nos encontremos realmente face a nós mesmos. Sem saber quem somos.

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Bombaim. A porta da Índia

O viajante ocidental que chega à Índia não pode deixar de visitar Bombaim, magnífica e espantosa metrópole que é a porta de entrada obrigatória para a índia do Sul. Quando os primeiros navegadores portugueses desembarcaram em 1534, Bombaim era formada por sete ilhas de pescadores habitadas por culis (mais tarde coolies no idioma dos colonizadores britânicos para assinalar uma pessoa de ínfima condição social) e devastadas pela malária e a febre tifóide. Em 1661, com a prodigalidade com que se dispensa as coisas caídas do céu, os Portugueses incluíram Bombaim, que lhes tinha sido oferecida pelo sultão de Gujarate, como dote nupcial de Catarina de Bragança, filha do rei de Portugal, que ia casar-se com Carlos II de Inglaterra. Em 1668, o Governo inglês alugou as sete ilhas à Companhia das Índias Orientais pela ridícula soma de dez libras esterlinas por ano. O desenvolvimento de Bombaim começa exactamente neste período e coincide com a chegada dos ricos parsis, os zoroastrístas que a invasão muçulmana tinha feito fugir da sua Pérsia natal. A primeira Torre do Silêncio, sinal de uma colónia já instalada, é de 1675. Actualmente existe em Bombaim um número considerável de construções deste tipo, afastadas e vigiadíssimas, no cimo das quais, para não contaminar os quatro elementos do Cosmos (Água, Ar, Terra e Fogo), os parsis expõem os seus mortos aos corvos e aos abutres.

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Parece que a administração municipal teve de colocar tampas nos depósitos de água porque pode acontecer, de vez em quando, que as aves deixem cair neles algum bocado que transportem no bico. Mas estava a falar dos primeiros navegadores portugueses. Hoje o que resta dos portugueses em Bombaim (agora Mumbai) é sobretudo o antigo nome, cuja etimologia é o português Boa Baía por causa do enorme porto natural que com o passar do tempo se tornou o maior porto comercial de toda a Ásia. Logo do outro lado do rio Ulhas, que separa a terra firme das ilhas de Bombaim, deparamo-nos com Baçaim, que foi uma cidade fortificada portuguesa de 1534 a 1739. Os Portugueses conquistaram-na e ali construíram um recinto muralhado que albergava uma cidade de tão grande pompa e esplendor que foi conhecida pela Corte do Norte. Só aos nobres era permitido viver dentro do recinto das muralhas e nos finais do século dezassete habitavam ali trezentas famílias nobres portuguesas e quatrocentas famílias indo-cristãs pertencentes à elite local. Aqui se edificaram cinco conventos, treze igrejas e uma catedral. Em 1739, os Marattis puseram cerco à cidade, que se rendeu depois de três meses de resistência obstinada. Aqueles três meses foram descritos, com uma fantasia que pede meças a um livro de aventuras, na crónica de um viajante anónimo do século dezoito, conservada na Biblioteca Vaticana. A narrativa não fica atrás do Salgari mais imaginativo. Como eram ferozes os príncipes Maratti. E o terror que provocavam os elefantes lançados a galope contra as portas da cidade! Segundo o anónimo cronista, os Portugueses, pelo contrário, eram muito bons, rezavam muito e, de vez em quando, para se fazerem respeitar, lançavam óleo de palma a ferver sobre os Marattis que se aproximavam demasiado.

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Até que por fim o jejum pôde mais que a honra. Hoje, da fabulosa Corte do Norte só restam as impressionantes muralhas e as ruínas da catedral de São José sobre as quais saltitam corvos de inusitadas dimensões.

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Elephanta

Diante de Bombaim, a uma dezena de quilómetros da costa, há uma pequena ilha coberta de vegetação que antigamente se chamava Gharapuri. Hoje o seu nome é Elephanta, como a rebaptizaram os Portugueses por causa do enorme elefante de basalto que ali encontraram e que em 1912 os Ingleses colocaram nos Victoria Gardens de Bombaim. Apesar dos estragos do tempo e dos homens, os templos cavernícolas de Elephanta sobrevivem em todo o seu extraordinário esplendor; extraordinário e impressionante, porque um sentimento de desorientação que se assemelha a um vago terror se apodera do visitante ocidental que, depois de ter subido os trezentos degraus de pedra, atravessa o escuro subterrâneo que conduz às grutas sagradas mais célebres e provavelmente mais belas da Índia hinduísta. A Trimurti que domina as grutas com o seu sorriso enigmático (Brahma o criador, Vixnu o conservador e Shiva o destruidor) provoca um indefinível mal-estar. E também Shiva bailando o Tandava, a dança que agita o mundo, é outra imagem que nos deixa atónitos. Lá fora, sob uma luz violenta, ladram uns horríveis símios empoleirados nos ramos de uma vegetação que Guido Gozzano, no seu fantasioso livro Verso la cuna del mondo (Até ao Berço do Mundo), classificou de «demente».

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É de manhã. Cheguei no primeiro transporte. O templo está deserto, à excepção de um velho casal de japoneses silenciosíssimo que fez a viagem no mesmo barco. Penso nos Portugueses, os primeiros europeus que visitaram este lugar, a meio caminho entre o pesadelo e a perfeição estética. O meu guide book, com uma linguagem adaptada a quem viaja de jacto, define os Portugueses como um povo intolerante e fanático por causa dos graves danos que provocaram nas esculturas. Intolerantes e fanáticos sem dúvida que foram, mas provavelmente conceberam pela primeira vez o Cosmos como uma ideia terrível e absurda e perceberam como eram estúpidos, limitados e optimistas.

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Bombaim. O Taj Mahal

Junto ao Gateway of India, diante do embarcadouro para Elephanta, domina o Taj Mahal, imponente edifício do final do século dezanove, extravagante conjugação do estilo mogul e da arquitectura vitoriana. Uma noite no Taj Mahal talvez seja um capricho demasiado caro para o turista comum, mas é uma aventura que vale a pena. O Taj é a outra face da Índia: é a Índia do fausto e do privilégio, onde deambulam os últimos marajás, os sheiks e os reis do petróleo chegados da Arábia Saudita para passarem as férias no hotel mais sumptuoso de toda a Ásia. Mais do que um hotel, o Taj Mahal é uma cidade independente. Dotado de múltiplos restaurantes (chineses, indianos, franceses, internacionais), luxuosamente decorado mas com a sobriedade da elegância, repleto de lojas em cujas montras cintilam maravilhosos artefactos indianos, este famoso hotel convida mais a estar acordado do que a fechar-se a dormir no quarto. No seu imenso hall circula a multidão mais pitoresca e cosmopolita que se pode encontrar no mundo. Mas também lá fora, na buliçosa Bombaim, nos submergimos na multidão mais heteróclita do mundo: muçulmanos, hindus, parsis, judeus, chineses, culis, jainistas com os rostos pintados de alvaiade, monges budistas em procissão. Sabemos que não muito longe, para tornar ainda mais paradoxais os contrastes deste imenso país, funciona a torre do reactor nuclear de Trobay, templo da mais terrível divindade da nossa época.

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Por baixo de nós, do cimo do moderníssimo arranha-céus onde está instalada a ala mais recente do hotel, brilham as luzes desta vastíssima cidade. Talvez as que se vêem à esquerda, as mais longínquas, sejam as luzes do aeroporto de Santa Cruz. Outro símbolo do Ocidente, pelo menos no nome, que ficou enredado nesta metrópole do Oriente.

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Goa. O abade Faria

Ao viajante que atravesse a Índia e se detenha em Goa, que pertenceu a Portugal até 1961, um tourist operator culto aconselhar-lhe-á em primeiro lugar a Velha Goa (ou a Dourada Goa, como era conhecida no século dezassete), a antiga capital do vice-reino português das Índias. Naquele lugar foram edificadas as grandes catedrais barrocas, hoje praticamente engolidas pela selva; aqui se conservam ainda as marcas do grande vice-rei Afonso de Albuquerque, fundador de Goa em 1512; aqui encontram-se ainda o convento de São Francisco, os velhos mosteiros, a basílica do Bom Jesus. E entre os dourados dos altares, numa urna de cristal, repousam os restos mortais de São Francisco Xavier, que conseguiu em Goa uma sepultura digna da sua vida depois de ter sido transportado até aqui do Extremo Oriente. Mas quantas vicissitudes sofreram os seus restos mortais! Nas Molucas, segundo algumas hagiografias, para o encaixarem num caixão demasiado pequeno para o seu corpo partiram-lhe o pescoço inclinando-o sobre o ombro. Quando o caixão foi aberto em Goa, uma das suas devotas, num excesso de devoção, arrancou-lhe um polegar com uma dentada. Finalmente, por ocasião de um dos centenários comemorativos, os prelados locais decidiram retirar-lhe outro fragmento do corpo e enviá-lo para Roma, onde está conservado numa urna na igreja de Jesus.

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Um guia com espírito de férias, neste pequeno estado indiano caracterizado por uma extraordinária hibridação cultural (os Portugueses, ao contrário de outros colonizadores, sempre se misturaram com a população local, na Índia como no Brasil ou em África ou em Macau), aconselharia sem lugar para dúvidas as imensas praias do oceano Índico onde se erguem fabulosos hotéis como o Fort Aguada Beach. Eu, pelo meu lado, prefiro recomendar uma visita a Pangim, como se chama hoje Nova Goa, ou seja, a cidade para onde os Portugueses mudaram a capital em 1760. Pangim, na margem esquerda do Mandovi, tem uma única maravilha arquitectónica, a basílica da Imaculada Conceição, no cimo de uma escadaria, de uma brancura que fere a vista. De resto é um porto comercial, pois como tal nasceu e como tal cresceu. Mas tem um fascínio subtil, um tanto retro, com um centro histórico recentemente restaurado. E na realidade estou a seguir o rasto de uma personagem histórica que foi hostil ao Portugal dominador e em especial ao Tribunal da Inquisição, particularmente activo em Goa. Trata-se de José Custódio de Faria (1756-] 819), um frade mestiço que passou à história como o abade Faria. Imbuído das ideias revolucionárias francesas mas também da cultura científica da época, liderou o movimento liberal que visava a independência de Goa do reino de Portugal. Deportado para Lisboa, conseguiu enganar o Tribunal da Inquisição graças à sua astúcia e dialéctica, em 1788 refugiou-se em França e pouco depois tornouse um dos principais intelectuais dos movimentos revolucionários, encabeçando uma secção do 10 Vindemiário. Em 1811 foi nomeado professor de filosofia em Marselha, graças aos seus estudos de física e fisiologia e às suas teorias sobre o magnetismo e a hipnose, aliás cientificamente válidas porque contrárias à teoria fisiologista de Mesmer da existência de um fluido magnético e contra a de Puységur, segundo o qual o verdadeiro agente terapêutico seria a vontade do hipnotizador.

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Em 1819 publicou em Paris De la cause du sommeil lucide ou Étude de la nature de l'homme, que provocou uma grande polémica mas que o tornou na coqueluche dos intelectuais parisienses. Depois de uma curta permanência, cujo motivo se ignora, na prisão do castelo de If, morreu de uma apoplexia em Paris. A sua figura inspirou vários escritores a criarem personagens excêntricas e um tanto loucas: Chateaubriand (que chegou a relacionar-se com ele) evoca-o nas suas Mémoires d'outre-tombe e Alexandre Dumas imortalizou-o em O Conde de Monte Cristo. A sua Pangim dedicou-lhe uma estátua de bronze frente ao Palácio Idalcão onde o abade, com os braços estendidos para a frente, transmite generosamente o seu fluido terapêutico a uma senhora semi-reclinada em estado de êxtase. O viajante cansado pode fazer uma pausa no pedestal de pedra. O fluido do abade Faria perdeu-se já no tempo e as estátuas, como sabemos, não emanam magnetismo algum. E no entanto podemos sentir uma curiosa quietude, como uma sonolência da alma; mas talvez o que a provoque seja a vida da Índia que decorre perante os nossos olhos a um ritmo simultaneamente lento e implacável, sem tempo.

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A caminho de Mahabalipuram

A partir de Madrasta, o único meio de chegar a Kancheepuram e Mahabalipuram, as duas cidades santas da ponta extrema do Sul da Índia, era o automóvel. Mas no hotel tinham insistido amavelmente para que alugássemos um carro com motorista. A dada altura compreendi que por detrás da insistência amável havia uma precisa proibição estatal: por razões de segurança, no estado de Tamil Nadu não é permitido aos turistas conduzir pessoalmente um carro alugado. De maneira que eu e a Maria José estávamos entre Kancheepuram e Mahabalipuram. A viagem tinha sido muito longa, o carro era um Ambassador em mau estado de fabrico indiano, sem ar condicionado. Do meu lado, o vidro da janela descia só alguns centímetros. O motorista era um homem silencioso e circunspecto com o qual tinha tentado falar das tradições religiosas das duas grandes cidades santas. «Provavelmente o seu guia pode dar-lhe informações melhores do que as minhas», tinha ele atalhado para acabar a conversa e desde então tínhamos ficado em silêncio. Fazia um calor terrível, os amortecedores do Ambassador estavam completamente gastos e cada buraco da estrada entrava-me nos rins. Tentava inutilmente fazer funcionar o manipulo da janela, e os assentos revestidos de falsa pele tinham-me colado a camisa às costas com o suor.

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Fechei os olhos e resignei-me. A estrada estava ladeada por mangueiras, o motorista conduzia concentrado e fumava um desses cigarros indianos aromatizados, feitos de uma única folha de tabaco, que se chamam Ganesh. Tinha adormecido, abri os olhos e olhei através do pára-brisas. Havia uma passagem de nível fechada. Na Índia, numa passagem de nível, pode encontrar-se de tudo. E de facto os viajantes parados diante da barreira eram bastante heterogéneos. Havia um riquexó motorizado, do qual o condutor tinha saído, pintado de amarelo e com um enorme letreiro indecifrável, talvez em hindi, talvez numa língua do Sul. Em suma: o desconhecido. Havia um homem de bicicleta com a cara pintada de alvaiade e uma gaze na boca, era certamente de religião jainista, o alvaiade era um sinal de humildade e a gaze na boca impedia-o de engolir um insecto que podia ser a forma de uma pessoa que estava a atravessar um estádio diferente da existência. Também havia um elefante com a fronte pintada com símbolos violeta, talvez um elefante sagrado, montado pelo seu karnak. Finalmente chegou uma motocicleta que se colocou à direita do carro, mesmo ao meu lado. Era conduzida por um homem bastante jovem com dois sinais coloridos na testa e uma camisa branca que lhe chegava aos joelhos. Atrás, no porta-bagagens, meio atravessado, havia um volume estreito e comprido envolto em faixas brancas como uma enorme baguette. Perguntei ao motorista o que é que o homem transportava. Ele deu uma passa no cigarro e respondeu como se fosse a coisa mais natural do mundo: «um cadáver». Não tive coragem de dizer nada. O sol era implacável, eu estava a suar, sentia-me desconfortável, queria estar noutro sítio qualquer e em vez disso estava ali, parado naquela absurda passagem de nível, ao lado de um homem de motoreta que transportava um cadáver como se fosse uma encomenda postal. Depois venci a minha relutância e repliquei: «Um cadáver, porque é que ele leva um cadáver?»

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«Leva-o para ser incinerado num templo de Mahabalipuram», respondeu calmamente o motorista, «lá há piras e as águas dos lagos são santas, podem receber as cinzas». Dei uma olhadela furtiva ao homem pela abertura da minha janela. Ele sentiu-se observado e olhou-me por sua vez. Fiz-lhe um sinal de saudação com a cabeça, mas ele permaneceu impassível, olhava em frente para a passagem de nível, ou melhor dizendo, para lá da passagem de nível. Comecei a sentir um desconforto difícil de definir, como se sentisse o dever de lhe dar parte da minha solidariedade, ou qualquer coisa parecida, e a impossibilidade de o fazer me causasse um sentimento de culpa. Aquele bendito comboio demorava a passar, agora estávamos parados pelo menos há um quarto de hora, eu estava ensopado em suor, o matraquear da motoreta, que o homem não tinha desligado, martelava-me na cabeça. Tentava pensar o que se pode dizer a uma pessoa que faz o mesmo percurso que nós, por esses estranhos acasos que o acaso arranja, e em vez de fazer uma viagem de prazer como era a minha, leva um cadáver na motoreta, talvez o pai ou a mãe, quem sabe. Talvez dizer-lhe: também vai para Mahabalipuram? Ou então: os meus sentidos pêsames? E depois: dois seres humanos, em tais circunstâncias, devem realmente dizer alguma coisa um ao outro? Olhei para a Maria José como a pedir-lhe uma sugestão, mas percebi que estava tão perdida como eu. Ao nosso lado estava um marciano na sua total humanidade, mas nós, por nossa vez marcianos, como podíamos comunicar com um humano? Foi um impulso, as palavras saíram-me da boca antes que me fosse possível formulá-las no pensamento; olhei para o homem e pronunciei a frase mais ridícula que alguém pode dizer numa circunstância daquelas. Apontando para o peito com o dedo, disse-lhe: «I am Italian.»

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Ele também olhou para mim, era um olhar doce e opaco, onde não brilhava qualquer forma de compreensão. Apertei a mão da Maria José e repeti automaticamente em voz baixa: «Italian.» Mas naquele momento o comboio parou, a passagem de nível abriuse e o nosso motorista arrancou sem hesitar, buzinando para tentar ultrapassar animais e bicicletas. Instintivamente vireime a olhar para o homem com o cadáver. O seu rosto abrira-se num sorriso rasgado, brilhavam-lhe os olhos, batia no guiador da motoreta: «Vespal», gritou, «Vespal». Recordo-o assim, enquanto se afastava no vidro traseiro do carro e me fazia amplos gestos de saudação com os braços. E saudei-o também, metendo a mão pela abertura da janela.

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A Índia. Que sais-je?

Num capítulo de Nocturno Indiano um membro da Sociedade de Teosofia de Madrasta, um senhor requintado e distante, submete a minha personagem (o viajante ocidental que chegou à Índia no rasto de um amigo desaparecido) a uma espécie de exame, interrogando-o sobre os seus conhecimentos da Índia. Embaraçado pela sua ignorância, apanhado em falta, o protagonista responde com uma certa insolência: os seus conhecimentos sobre a Índia consistem num guia em inglês, India, a travel survival kit, e sobretudo num livrinho da colecção francesa «Que sais-je?» intitulado L’Inde. Que sais-je? Aquele meu romance era precedido de uma nota com as minhas iniciais que começava assim: «Este livro, mais do que uma insónia, é também uma viagem. A insónia pertence a quem o escreveu, a viagem, a quem a fez.» Por detrás desta especificação, plausível para qualquer livro mas que parece escrita propositadamente para os narratologistas, esconde-se, não o nego, uma excusatio non petita. É tempo de o admitir: os conhecimentos sobre a Índia do insone, que é o mesmo que escreveu o livro, provavelmente não eram muito diferentes dos daquele que tinha feito a viagem, isto é, o seu protagonista. A «má consciência», um facto que obviamente só se verifica a posteriori, não tardou a intervir.

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Desejoso de tirar a minha personagem da profunda ignorância em que se encontrava, comecei a ler tudo o que ele devia ter lido sobre a Índia antes de empreender uma viagem daquele género. Será possível, comecei a interrogar-me, que com os conhecimentos que nos deixaram desde a Idade Média até hoje todos os nossos grandes viajantes, um escritor tivesse a coragem de meter num seu romance, num continente como aquele, e numa situação que era tudo menos fácil, uma personagem tão vergonhosamente ignorante? Livros e mais livros começaram a amontoar-se na minha escrivaninha, até me parecer que tinha material suficiente para poder sugerir à personagem o comportamento adequado e as respostas adequadas à situação em que se encontrava. Relendo, por exemplo o capítulo em que o meu viajante conversa de noite na estação de Bombaim com um jainista que vai morrer a Benares, dizia-lhe: «Arranja pelo menos uma frase decente sobre o jainismo como as que leste naquele historiador das religiões, não te dás conta de que a vossa conversa é uma conversa de surdos?» Ou então, relendo por exemplo o capítulo em que o viajante entra no sórdido hotelzeco Khajuraho e, vítima de um estúpido ataque de medo, reage dando a entender que a sua embaixada está ao corrente dos seus movimentos, dizia-lhe: «Comporta-te como aquele jornalista inglês que percorreu o mundo todo e que, numa situação dessas, sabe perfeitamente que a um ocidental nunca tocariam num cabelo, fizeste figura de parvo.» Assim pensava eu, convencido de que já sabia o suficiente sobre a Índia. Mas nunca se sabe o suficiente sobre a Índia. Há pouco tempo veio parar-me às mãos uma verdadeira «enciclopédia» sobre a Índia: L’elefante ha messo le ali. L’India dei XXI secolo (O Elefante Ganhou Asas. A Índia no século XXI), de António Armellini, publicado pela Universidade Bocconi de Milão em 2008.

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0 autor foi embaixador de Itália em Nova Deli e é actualmente embaixador junto da OCDE em Paris. Defini o seu livro como uma «enciclopédia» ainda que o objectivo do autor, um economista de vasta cultura, seja analisar a Índia sobretudo de um ponto de vista social e económico. De facto, o livro, a que não faltam gráficos, estatísticas e dados concretos, está dotado de um pormenorizado aparato crítico sobre os partidos políticos indianos com uma lista dos vários ministros do governo de Manmohan Singh (há ministérios surpreendentes para nós, como o Ministério para os Assuntos Tribais, para a Promoção e Justiça Social, para os Recursos Hídricos, para as Minorias, para a Indústria Têxtil e para as Ciências da Terra). Para mim, são estes capítulos do livro que na sua secura estatística resultam numa leitura mais difícil e nos quais o literato se perde. Mas evitados oportunamente os obstáculos dos números e das estatísticas, quem tiver curiosidade sobre a Índia encontrará no livro de Armellini tudo o que há a saber sobre a Índia. «São muitos os rostos que a Índia apresenta a quem dela se aproxima. Há a Índia espiritual e fantástica, que seduz com a sua mensagem de tolerância e sabedoria milenárias, preenchendo os ashram das pessoas em busca de si próprias. Há a Índia dos turistas, que exploram as suas riquezas de maneira por vezes apressada, ficando ofuscados por elas. E há a Índia vista por quem nela vive e trabalha, confrontando-se todos os dias com as suas extraordinárias oportunidades e as suas igualmente extraordinárias idiossincrasias. Pretender relatá-las todas seria mais do que ambicioso, intransponível: são realidades demasiado complexas e diversas entre si para poderem ser contidas em poucas páginas. Fixei-me no objectivo mais modesto de descrever a última das três Índias que indiquei, esforçandome por dar uma possível chave interpretativa de quanto ali acontece com os olhos de quem passou nesse país vários e espero que não desatentos anos.»

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O autor, modestamente, afirma circunscrever o seu estudo ao âmbito social e económico; mas o seu livro oferece uma perspectiva muito mais ampla da Índia, abarcando o aspecto cultural, literário, espiritual, etnológico, antropológico, sem esquecer os primeiros olhares ocidentais sobre a Índia quando a descobrimos com Marco Polo, Matteo Ricci e Filippo Sassetti. Quando por exemplo o autor se ocupa da sociedade indiana (e por conseguinte das castas), inevitavelmente o discurso desemboca no perfil religioso da Índia, materializado na estrutura social; do mesmo modo quando se ocupa dos sistemas de comunicação, da formação do consenso, do sistema político, da imprensa, aborda inevitavelmente a cultura e portanto também a literatura. Por outro lado, a bibliografia, vastíssima, que se estende no tempo e inclui as disciplinas mais variadas, de um estudo sobre Gandhi (B. R. Ambedkar, Gandhi and Gandhism), até ao sistema educativo (Myron Weiner, The child and the state in India: child labour and education), à análise do sistema militar (The International Institute for Strategic Studics, The military balance), convida inclusivamente à leitura de livros mais adequados aos interesses literários (Karan Thapar, Face to face India e Sunday sentiments), chegando a incluir incautos viajantes que da Índia apenas tiveram uma ideia (Moravia, Uma Ideia da índia), captaram o seu cheiro (Pasolini, O Cheiro da Índia) ou que a observaram de noite (Nocturno Indiano). Mas pergunto-me, se naquela época do Nocturno Indiano tivesse ido à Índia com a quantidade de informação que hoje possuo, teria escrito o meu romance? E supondo que o teria feito, seria o mesmo livro? Certamente que não. Teria sido um livro diferente, um livro de alguém que sabe do que fala.

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Ainda que o livro pertença a quem o escreveu e a viagem a quem a fez, talvez o verdadeiro «valor» desse pequeno romance esteja precisamente na inconsciência de quem fez aquela viagem. Às vezes a inconsciência inocente que o teósofo de Madrasta confundiu com arrogância pode ser um bom salvo-conduto num país absolutamente desconhecido. L’Inde. Que sais-je?

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IV Caderno australiano



1. Os mitos aborígenes morrem no museu

A recepção é dura, fria, quase de rejeição. Enquanto estamos a aterrar, o altifalante informa que, logo que pararmos na pista de Melbourne, o avião (com os seus passageiros) será «desinfectado» (sic) com um spray especial aprovado pelo Conselho Mundial de Saúde para matar os eventuais micróbios que podem ser nocivos para a fauna australiana. É evidente que a Austrália adopta as medidas mais drásticas para proteger o seu maior recurso económico, um património zootécnico de treze milhões de ovelhas e vinte e dois milhões de cabeças de gado. Troco um olhar com a minha filha, que me acompanha nesta viagem. Mas contra que micróbios terá tanto poder esse milagroso spray? Mistério. «O problema é outro» confidencia-me um dos assistentes de bordo, «acredite em mim que conheço bem os Australianos, não é por causa dos animais, têm medo das doenças, têm medo de ser contagiados». Talvez tenha oportunidade de aprofundar este assunto, durante a minha estada, com os australianos que vier a conhecer. Com efeito, há povos que têm mais medo das doenças do que outros. Enquanto difundem a típica musiquinha de avião, ocorre-me que os povos que têm mais medo da morte são os que têm uma cultura jovem, que chegaram recentemente à História.

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Os povos mais antigos têm mais familiaridade com a morte. Exorcizaram-na com os rituais, com as festas, com os mitos. Os povos jovens não têm esta familiaridade: tomam vitaminas, emanam energia e no entanto vivem aterrorizados pelos micróbios. E é então que, com o avião já parado, sobem dois homens vestidos com casacos aos quadrados como nos filmes americanos dos anos trinta. Vêm armados de duas pequenas bombas e começam a borrifar por todo o lado para exterminarem os perigosos micróbios italianos. E em seguida toda a gente sai do avião por um estreito corredor onde o melhor ainda estava para vir. Porque um Boeing 747 transporta muitos passageiros e o avião que esta manhã chega de Itália está cheio a deitar por fora: a maior parte são emigrantes italianos que regressam à Austrália depois das férias ou parentes de emigrantes que vêm visitar os familiares. A fila avança com uma lentidão exasperante e depois de meia hora percebo porquê. À saída há um inflexível agente da polícia que deixa passar três pessoas de cada vez e as escolta até três guichês onde estão sentados três colegas seus, igualmente inflexíveis, pelos quais é preciso passar para entrar na Austrália. Finalmente chega a minha vez. Mostro o visto válido que me foi dado pela Embaixada australiana em Roma, mas que não satisfaz o polícia. Quer saber mais: onde irei ficar alojado, quanto dinheiro trago, quanto tempo ficarei. Um interrogatório em regra. Agora estou na recepção das bagagens à espera das malas. Com um amigo, um editor italiano que veio também para o congresso sobre tradução, comentamos o sucedido e imaginamos como reagiriam os Australianos se de repente chegasse uma onda de imigrantes como aconteceu na Europa. Dei uma gargalhada. Um jovem polícia aproxima-se de mim e intima-me cortesmente a mostrar-lhe o passaporte.

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Já passei a barreira, respondi a todas as perguntas do seu colega, tenho o carimbo de entrada no passaporte. Pergunta-me secamente qual é o motivo da minha viagem à Austrália. Respondo que fui convidado a fazer algumas conferências. Mostre-me a carta com o convite, insiste ele. A carta de convite ficou em casa. Em meu auxílio vem o meu amigo editor que, mais previdente, trouxe a carta de convite com ele. O polícia afastou-se e só então compreendi por que motivo tinha vindo interrogar-me. Porque me estava a rir. A minha alegria «perturbava» a sua maneira de pensar, a sua prosopopeia, o seu «território». A reacção dele era uma reacção xenófoba. E aqui estou eu em Melbourne. Percorro a cidade de carro com o meu anfitrião, Carlo Coen, o director do Instituto Italiano de Cultura, com quem combinara um encontro. Os outros dois amigos italianos, Luigi Brioschi e Maurizio Cucchi, vão directamente para o hotel. Trânsito calmíssimo, ruas calmíssimas, gente calmíssima. Para quem chega de uma cidade italiana causa um efeito estranho. E a isto vem juntar-se a estranheza provocada pelo espaço: grandes espaços com pequenas casas de madeira rodeadas de jardins e muito afastadas umas das outras. E também velhas casas de tijolo, com varandas de chapa ondulada que revelam uma origem pioneira. Descemos pela Alexandra Avenue, ao longo do rio Yarra, que é o bairro «bem» da cidade. Aqui as casas vitorianas são de uma elegância sóbria, a avenida está ladeada por carvalhos seculares e relvados impecáveis, e curiosas pontes de ferro atravessam o rio. Há pessoas a fazer jogging, uma canoa com remadores que mergulham os remos sincronizadamente, algumas velhas senhoras que passeiam.

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Uma atmosfera de velha Inglaterra, um pedaço da Europa transplantado para os Antípodas, um país com a casca dura dos pioneiros, como se pode observar nos funcionários, misturada com a memória de uma antiga civilização. Mas o motivo que me levou a pedir ao meu anfitrião para atravessarmos South Yarra é que, como é de manhã e apesar do cansaço é preferível tentar adaptar-me de imediato ao novo horário, queria ver os Royal Botanic Gardens, de que tinha ouvido dizer maravilhas. E as maravilhas são naturalmente grandes. Um jardim onde convivem rosas e fetos, pinheiros e tamareiras, carvalhos e figueiras-da-índia. E inúmeras espécies que desconheço, eu que não sou um botânico mas apenas um nostálgico de uma natureza que hoje parece condenada em todo o mundo. Julgo que é a melhor maneira de estabelecer um primeiro «contacto» com a Austrália. Final da manhã de um feriado. O Sol brilha e as acácias e as magnólias começam a florir. Eu e a minha filha decidimos passar o dia na National Gallery of Victoria, o mais importante museu de artes figurativas de Melbourne. Tenho curiosidade em ver um Goya e um Rembrandt que, sabe-se lá como, vieram aqui parar. A National Gallery fica a dois passos da City. Pode-se ir a pé. É um edifício moderníssimo de arquitectura arrojada iluminado por uma monumental superfície de vidro. É hora de almoço. No interior do museu há um bonito restaurante que dá para um jardim com uma imensa magnólia. Há jovens com ar intelectual, duas elegantes senhoras de chapelinho, muitos casais da província que vêm certamente de longe e têm um ar um tanto perdido. Além de um buffet de saladas e pratos frios, o prato do dia é um meat pie, o prato nacional australiano, que nos servem afogado em molho de tomate. Na mesinha ao lado da nossa está um jovem casal que francês. Têm um aspecto cuidado e um ar de gente arejada.

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fala

Meto conversa e pergunto se são turistas. São canadianos do Quebeque. Imigrados na Austrália há dois anos, vivem nos arredores de Melbourne. Ele trabalha numa companhia aérea, ela é secretária numa empresa de import-export. Vêm todos os domingos à National Gallery. «Para ver Manet e Monet», diz ele como quem não admite réplica, «os maiores pintores da época moderna». Tinha vindo à National Gallery por causa de Goya e Rembrandt, mas o impacte vem de três quadros inesperados. O primeiro é um óleo de amarelos flamejantes de Turner, A Mountain Scene of Val d'Aosta, de 1836, um desses Turner que nos põem a cabeça a andar à roda, onde a cor se torna pura abstracção e música. Um pouco mais adiante, entre quadros franceses um tanto medíocres, um Bonnard de 1900, La sieste, um lânguido nu feminino que jaz de borco sobre uma cama desfeita. E a um lado, como se alguém se tivesse esquecido dele, um Modigliani assombroso, Ritrato del pittore Manuel Humbert, que me olha com os olhos húmidos. Quem sabe como se sentirão estes três quadros neste museu com uma arquitectura moderníssima mas que exibe pinturas de todas as épocas e de todas as escolas como num armazém. A parte mais fascinante do museu, pelo menos para nós, são as salas da arte aborígene. A Austrália tardou a elevar os aborígenes à categoria de cidadãos. Só em 1967 um referendo nacional concedeu aos aborígenes a nacionalidade, o direito de voto e a liberdade de circulação. E de seguida, como se fosse decretado por uma lei parlamentar, «descobriu» também a cultura aborígene, a que foi dada entrada nos museus. De tudo o que li, julgo ter compreendido que «os selvagens mais desagradáveis que se podem ver», como os definiu nos finais do século dezassete o inglês Dampier, são um dos povos mais espirituais da Terra. A sua cultura não precisa nem de templos nem de sacerdotes, baseia-se na Idade do Sonho, um mítico começo do mundo, génese da Terra e do homem, quando as forças espirituais que governavam o universo se materializaram para povoar a Terra e dar lugar à vida.

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O olimpo destes «desagradáveis selvagens», que é dificilmente traduzível para as nossas categorias culturais, é sofisticado e abstracto, absolutamente mitológico e profundamente animista. Deste olimpo, há na National Gallery duas magníficas pinturas de dois artistas aborígenes do nosso século: Watjinbuy Marawili, que pintou o deus Baru, criador do Fogo, e Narritjin Maymuru, que pintou Guwark, o Pássaro da Noite. São pigmentos de terra sobre casca de árvore, negros e ocres que formam uma espécie de labirinto, a remota geometria de uma cultura que a civilização branca assassinou.

2. Melbourne, sexo e credit card

Dia de trabalho no Beckett Theater. O congresso tem por tema a tradução: a possibilidade da tradução, os limites da tradução, experiências de tradução. Os participantes, escritores e críticos, têm todos experiência profissional do problema: não só em traduções de outros idiomas, mas alguns também de traduções que poderíamos definir como «de si próprios». Quer dizer, são escritores «alógenos», provenientes de outras áreas linguísticas, que escolheram o Inglês como língua de expressão. É fácil perceber a plausibilidade deste tema numa terra de imigração como a Austrália. O congresso foi organizado pelo Instituto Italiano de Cultura, ou melhor, por Carlo Coen, que se ocupou pessoalmente de tudo. Cocktail com escritores em South Yarra. A feliz surpresa de encontrar um rosto amigo, Gaia Servadio, chegada de Londres. O ambiente é formal, escritores e críticos estão de blazer e gravata.

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À entrada, duas diligentes meninas puseram-nos ao peito um cartãozinho com o nosso nome. À maneira anglo-saxónica, é muito importante conversar chamando-se pelo nome. Ao cabo de uma hora, confesso a Gaia Servadio que estou um tanto farto de ouvir chamarem-me mister Tebucci, que é como pronunciam o meu nome. Gaia propõe-me que mudemos os cartões: também ela não aguenta mais ser chamada misses Servêdio. De modo que começamos a circular entre os convidados, eu como Gaia Servadio, ela como Antonio Tabucchi, sem que ninguém se dê conta da mudança e quando saímos eu sou mister Servêdio e ela misses Tebucci. Assim nos dizem «bye bye». Às oito da noite, passeando a pé por uma transversal da Collins Street, na City de Melbourne. Diante de um pequeno portal que parece de uma casa sobrevivente entre os arranha-céus aproxima-se de mim um indivíduo com um gorro com viseira e estende-me um bilhete onde está escrito: Malaisyan sex. Estamos habituados a coisas destas em Pigalle ou em Hamburgo, onde o sexo é publicitado com luzes de néon e lâmpadas coloridas. Mas aqui não há qualquer vestígio de anúncio: só um portão de ferro que parece a entrada de uma garagem. Curioso, aproximo-me do portalzinho. Há uma bilheteira e um cartaz muito discreto que em tom burocrático informa que, mediante o pagamento de alguns dólares, esta noite poderá desfrutar de um espectáculo de sexo malaio. É um local de alterne. E parece clandestino. A Austrália é um país ainda vitoriano, disse-me um amigo australiano, aqui a sexualidade é vigiada, a censura é implacável e todos os filmes que passam na televisão são censurados, só a SBS transmite os filmes em versão integral, mas a altas horas da noite, e ninguém os vê. E depois, conclui: aconselho-te a dares uma vista de olhos à secção «Escort» das Páginas Amarelas, compreenderás muitas coisas.

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Na secção «Escort», as páginas são um verdadeiro entretenimento: por ordem alfabética, a agência Ali Night enumera: Young or mature companions. Passa-se à Annabella, continua-se com a Linda e Fanny, Pussy Pussy, Spanish Fire e por aí fora, ao logo de dezoito páginas da lista telefónica. Todas as raparigas, fotografadas com roupas sucintas (ou em seu lugar a agência), descrevem as suas «qualidades» e uma pormenorizada descrição física. Por vezes o texto, além do inglês, está em japonês. Evidentemente que os turistas japoneses em particular precisam de escort. Todas atendem em casa, mas com o devido suplemento também vão aos hotéis. E todas aceitam cartões de crédito. Pergunto-me se a Pussy Pussy que se encontra com o turista japonês no quarto do Hilton chega com a sua linda bolsinha de onde retira como se nada fosse a pesada maquineta para creditar o cartão de crédito. Milagres dos tempos modernos! A prostituição parece ser considerada um serviço de utilidade pública, como as farmácias, os canalizadores e as oficinas de automóveis. E como tal está devidamente classificada, com uma eficiência burocrática, nas Páginas Amarelas. Será uma forma de hipocrisia que regula o comércio sexual pelo telefone, como afirma o meu amigo George, ou uma decisão pragmática de sabor genuinamente britânico? Agradável conversa à tarde com o professor Tom 0'Neill. Culto, requintado, com um conhecimento profundo da literatura italiana, Tom 0'Neill é um escocês (apesar do nome) que estudou em Dublin e agora tem a seu cargo a cátedra de Italian Studies na Universidade de Melbourne. É autor, entre outras obras, de uma edição crítica do Contesto de Sciascia publicada pela Irish Academy Press e de um ensaio crítico sobre Foscolo, Of virgin muses and of love.

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É um apaixonado por Florença, onde viveu alguns anos, e isto faz surgir de imediato uma certa cumplicidade. Fala-me da trattoria Da Nello, em Borgo Pinti, e pergunta-me se continua aberta. Assim começamos a falar de Florença, de Stendhal em Santa Croce e da síndrome que tem o seu nome. Parece que entre os turistas o fenómeno está mais difundido do que se pensa, e uma psicanalista italiana está a estudar a nova síndrome. Tom ri-se: «Na Austrália não se corre esse perigo», conclui.

3. Da Universidade a Hanging Rock

No Club Malthouse da Sturt Street, o local onde decorre o festival dos escritores. Longa conversa com Mark Worner e Brian Matthews. Hoje há um cocktail de «confraternização» e portanto vim confraternizar. Mark Warner é o director literário do Melbourne International Festival. Diz-me que o festival começou em 1986 com Spoleto-Melbourne, quando era dirigido por Giancarlo Menotti. Depois decidiram fazê-lo sozinhos. Está muito orgulhoso da sua iniciativa, o seu objectivo é sobretudo dar a conhecer os escritores australianos no estrangeiro e os escritores estrangeiros na Austrália. Brian Matthews é um escritor muito apreciado pela crítica australiana mas pouco conhecido em Itália. É considerado próximo das posições das feministas, que aqui são muito activas, e não é uma coisa que aconteça todos os dias encontrarmos um escritor «feminista». Diz-me que sim, que o seu Quickening and Other Stories, que é o livro que lhe deu a notoriedade, fala da relação homem-mulher, mas que não o definiria como «feminista».

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Na realidade é um livro crítico para ambos, homens e mulheres, um livro que pretende analisar a relação fugidia e difícil que se estabelece sempre entre homem e mulher. Em contrapartida, Louisa é a biografia da mãe do grande poeta australiano Henry Lawson, uma mulher que foi certamente uma protofeminista. Se os contos lhe deram a notoriedade, Louisa trouxe-lhe o sucesso, e Brian está orgulhoso deste livro. Pergunto-lhe se a Austrália é um país patriarcal. Responde que sim. Replico que as mulheres dos colonos devem ter sido fundamentais para a história do país. Talvez mais do que os homens, responde, mas a história oficial não fala disso. A Melbourne University é um campus situado em Parkville, no limite da cidade, uma vasta extensão de edifícios baixos mergulhados no verde. Na parte de trás há um grande estacionamento subterrâneo e depois é preciso ir a pé. Tom 0'Neill convidou-me para um encontro com os estudantes de italiano. O departamento de estudos italianos, juntamente com o de estudos franceses, conta com cerca de duzentos inscritos para o quadriénio. Vou falar aos alunos do primeiro ano, uma vez que o sistema adoptado pelo departamento começa pela literatura contemporânea, linguisticamente mais acessível, para se ocupar do século dezanove e dos clássicos nos anos seguintes. Este ano, o professor 0'Neill adoptou como texto de leitura Nocturno Indiano. A universidade tem óptimas instalações: uma belíssima biblioteca que está aberta até à noite, salas espaçosas e limpas, duas cantinas para os estudantes, uma mais cara onde se é servido à mesa e outra mais económica self-service que se chama Pizza House. Os estudantes de italiano são amáveis, bem-comportados, educados, alguns de gravata, outros mais desportivos, de jeans. Só dois usam brinco e o cabelo curtíssimo.

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Muitos são de origem italiana mas, explica-me 0'Neill, mesmo esses frequentam o laboratório linguístico porque a cultura linguística da família é quase sempre dialectal. Depois da conferência, um estudante cuja família era oriunda da região das Marcas pergunta-me como é a universidade italiana. Talvez pense ir estudar para Itália, quem sabe. Não há cantinas como as vossas, nem bibliotecas abertas até à noite, nem sítios para estudar, nem salas de reuniões. Ele olha para mim, pouco convencido, e vejo que gostaria de me fazer mais perguntas. Finalmente chegam as perguntas sobre literatura. Comemos na Staff House, que é como quem diz a Casa do Professor, um perfeito clube à inglesa onde não faltam a biblioteca, a lareira acesa, cómodas poltronas, um piano e sala de refeições. Intervenho no Writer's Festival. Paolo Bartolini, jornalista e escritor australiano de família italiana, centra a conversa no Anjo Negro. Em todo o caso, o público acompanha com atenção. As intervenções dos ouvintes são numerosas e precisas. Uma rapariga italiana intervém na conversa perguntando-me o que deve fazer um escritor para se opor à americanização que se abate sobre o mundo. Pede a palavra outro estudante e pergunta secamente porque é que o mal me interessa tanto. Porque estou a envelhecer, respondo, quando se tem a sua idade tem-se uma relação mais solar com a vida, na minha idade vêem-se mais facilmente os lados negativos. O rapaz parece satisfeito. As outras perguntas são mais genéricas: qual é a situação da literatura em Itália, o que é que o governo italiano faz pela literatura (ai, ai), quais são os escritores australianos conhecidos em Itália. Em seguida passa-se à leitura. Os reading a cargo dos escritores, de tradição anglo-saxónica, que são muito apreciados.

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E com isto estão terminados os meus compromissos nesta cidade. Resta-me ainda um dia livre antes de deixar Melbourne. Piquenique em Hanging Rock. Saímos de manhã cedo. A expedição é composta por mim, pela minha filha, por Maurizio Cucchi e Paolo Bartolini. Depois da longa travessia de Melbourne, uma periferia feita de casinhas de madeira pintadas de branco e azul e por fim o campo: espaços imensos a perder de vista, um horizonte infinito. Depois de alguns quilómetros sentimo-nos ligeiramente aturdidos pela monotonia da paisagem e na primeira localidade paramos para tomar um café. Poderia ser um lugar qualquer do Oeste americano, como se vê no cinema: a estação de serviço com o snack-bar, o edifício dos correios, vinte casas pintadas de branco. Tudo muito limpo e cuidado. Do outro lado da estrada há uma lojinha de artesanato. A empregada é uma rapariga muito sorridente que me dá logo um folheto. A loja é gerida por uma associação de apoio aos aborígenes e vende artesanato aborígene. Compro dois ou três pequenos objectos e partimos. Para chegar a Hanging Rock temos de deixar a estrada nacional. Chegamos com o carro até um parque de estacionamento bastante longe do «penhasco» e depois continuamos a pé. O local está deserto, somos os únicos visitantes. De resto a época não é a mais adequada para piqueniques, está uma Primavera tímida e faz frio. Como se não bastasse, levantou-se um vento desagradável que faz dobrar os ramos dos eucaliptos. Em cima de uma pequena construção pousam uns estranhos pássaros cinzentos (chamam-se kookaburra) que se disputam emitindo um som que faz lembrar uma risada de troça. O lugar é sinistro, a tender para o lúgubre. Hanging Rock é um enorme maciço avermelhado e amarelado mergulhado como por encanto na planura do campo.

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O guia (Lonely Planet, como sempre) afirma que se trata de um «tampão vulcânico», uma massa de lava condensada em épocas remotíssimas sobre a abertura de uma erupção rente ao solo. Neste sítio, em 1900, três raparigas de um colégio elegante, em passeio com os professores, desapareceram misteriosamente. Criou-se de imediato a lenda de um lugar enfeitiçado e sobre o sucedido escreveram-se rios de tinta. Enquanto subo, penso porque é que tinha gostado do filme de Peter Weir. Porque o realizador tinha feito desta estranha formação rochosa uma alegoria e um símbolo: a imagem de um continente remoto e misterioso que a civilização europeia nunca compreendeu. Hanging Rock é a Austrália, a jovem rapariga a inocência. E os súbditos de Sua Majestade que aqui chegaram, os ladrões de um mundo virgem. Aos pés da rocha há uma barraca de madeira onde se vendem souvenirs e há um snack-bar. O proprietário é um homem com aspecto de farmere o rosto marcado pelas intempéries. Perguntolhe se tem diapositivos mas responde-me que se acabaram: nesta época quase não há visitantes. Compro alguns postais e depois, como o tempo está inclemente, paramos a reconfortar o estômago antes de começarmos a subir. Sou o último do grupo, a subida é cansativa, as rochas arredondadas são escorregadias e não trago calçado adequado. Sento-me numa pedra, tiro algumas fotografias daquela estanha paisagem. Sem me dar conta deixei passar algum tempo e por cima da minha cabeça, sem que consiga ver alguém, oiço a voz preocupada de Maurizio Cucchi que pergunta à minha filha: «Onde está o teu pai?» «Desapareci!» O eco repete as minhas palavras como se fizessem ricochete nas grutas. Oiço uma gargalhada e o grupo desce. A tarde já vai avançada, são horas de voltar a Melbourne.

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4. Cangurus em Cambara

Camberra. Quem é que alguma vez se lembrou de ir a Camberra? Pergunto a mim próprio enquanto com a minha filha nos dirigimos para a Black Mountain, a torre da televisão que domina Camberra, no cimo da qual há um restaurante giratório que permite admirar a vista da cidade. Não há nenhuma razão na vida para visitar Camberra. Camberra é uma cidade artificial, construída do nada como capital federal para resolver a rivalidade entre Melbourne e Sydney. A sua concepção coube a um arquitecto americano de desenhos medíocres, Burley Griffin, que deu início aos trabalhos na primeira década do século vinte, trabalhos esses que continuaram nas décadas de vinte e trinta. Hoje é uma cidade de pouco mais de duzentos mil habitantes, que, dizem-me, se aborrecem de morte aqui (e isto percebe-se mal se aterra) e que na maioria fogem aos fins-de-semana, sobretudo os funcionários das embaixadas, que são obrigados a viver aqui. Além das embaixadas, por si só não especialmente atraentes, em Camberra não há absolutamente nada. Para chegar à torre da televisão dei crédito ao meu guia, Austrália, a travel survival kit, que aconselha a apanhar o autocarro Canberra Explorer ou então ir a pé, porque é um passeio agradável. Perdemos o autocarro e viemos a pé, mas a «passeata» revelou-se um tanto cansativa. Encontrámos dois pequenos cangurus que comiam saltitando na beira da estrada. O meu guia tinha razão: logo que se sai da cidade podem ver-se cangurus com um ar tão doméstico como cães rafeiros. Cangurus em Camberra. Sento-me numa pedra enquanto os observo e pergunto à minha filha: «Mas porque é que viemos a Camberra?»

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Ela pensa e responde: «Sabes aquele nosso vizinho fala-barato que está sempre a gabar-se das suas magníficas viagens? Vamos mandar-lhe um postal de Camberra, para ver a cara que ele faz.» A vista da cidade, do alto da torre, é ainda mais deprimente. Vê-se perfeitamente a forma em «y» do traçado urbano, a geometria exacta das ruas, o lago artificial. Sinto o mesmo malestar que experimentei em Brasília, a sensação de não pertencer a sítio nenhum, uma enorme vontade de fugir. Mas temos de estar aqui em Camberra pelo menos até amanhã, portanto vamos dar a esta estada uma nobre justificação. Amanhã iremos visitar o Australian War Memorial, o grande monumento aos cem mil soldados australianos caídos pela velha Europa. Porque o facto de estes soldados terem ido morrer na Europa de um lugar tão longínquo merece uma homenagem. Talvez eu tenha vindo a Camberra, inconscientemente, por esse desejo de homenagear estes soldados vindos de tão longe para combater o fascismo na Europa. Esquecia-me de dizer que Camberra significa «ponto de encontro».

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5. Sydney

Quando se chega de avião à noite, Sydney parece uma cidade infinita: tem quatro milhões de habitantes mas estende-se por um diâmetro de mais de cem quilómetros. Aqui se realizou o sonho australiano da casinha com jardim, do campo na cidade. Mas a City é uma coisa bem diferente, uma cidade dentro da cidade, e parece uma mistura entre Hong Kong e Londres. Ao aeroporto vem receber-me Angelo Carriere, do Instituto Italiano de Cultura de Sydney, que me espera à saída com um jornal italiano debaixo do braço. É uma pessoa amável e atenciosa que me dá as boas-vindas e me acompanha ao meu hotel.

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É de manhã. Depois de uma visita ao Teatro da Ópera, um passeio ao aquário de Sydney, uma construção branca sobre a baía. Seguindo a minha filha, atrevo-me a meter-me nos tubos de plexiglás submarinos que penetram nos tanques dos tubarões. Há ali tubarões de todos os tipos e de todos os tamanhos que abrem as mandíbulas a dois centímetros da nossa cara. Alguns turistas japoneses tiram fotografias. Em seguida os peixes tropicais. Impressiona-me um giant crab, um caranguejo enorme que respira pousado placidamente no fundo. Mas sobretudo um cherne de dimensões monstruosas imóvel no seu tanque de vidro. Teria agradado a Hieronymus Bosch. A quarenta quilómetros da City de Sydney, para lá de Parramatta, surge um grande Koala Park onde se podem admirar os coalas em liberdade. A vida destes ursinhos de aspecto patusco com um grande nariz húmido é praticamente vegetativa: comem e dormem. Alimentam-se das folhas mais tenras dos eucaliptos, que têm um efeito soporífero, e adormecem. Podemos segurá-los nos braços, basta ter atenção às unhas, que são muito afiadas. Logo que sentem o calor do corpo fecham os olhos com um ar beatífico e aninham-se para uma soneca. Visita ao Australian Museum, entre a William e a College Street. É um museu de ciências naturais, com uma magnífica colecção de aves e insectos australianos. Mas abriga sobretudo uma grande secção dedicada à cultura aborígene, e é isso que nos atrai. Instrumentos, objectos, tótemes, gravuras de pinturas rupestres: aqui a cultura aborígene está catalogada com cuidado, explicada e comentada. O museu é frequentado por alunos das escolas.

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Os miúdos estão atentos, curiosos, ouvem de boca aberta as explicações dos professores, tiram apontamentos. Amanhã talvez façam uma redacção sobre este assunto na aula. Penso nos paradoxos da História: uma civilização destrói outra e depois mete-a no museu. Num esplêndido, moderníssimo museu. O senhor Gustavo é um natural de Livorno que em 1967 emigrou para a Austrália. É mecânico, vive em Sydney, é casado e tem dois filhos crescidos. Conhecemo-nos no avião e ele deu-me a sua morada. Telefono-lhe para o convidar para jantar e ele convidame para tomar um aperitivo em sua casa. A minha filha vai jantar com a filha de Angelo Carriere e eu estou curioso para ver como vive um operário italiano emigrado na Austrália. Para chegar a casa dele demoro quarenta minutos de táxi, porque vive na periferia noroeste da cidade. É uma casinha branca e azul revestida a madeira. Na casa de jantar há um grande quadro a óleo com o monumento dos Quatro Mouros do porto de Livorno. Foi o senhor Gustavo que o pintou e está muito orgulhoso dele. A mulher é uma australiana de olhos azuis que só esteve em Itália na viagem de núpcias mas que se sai bem com o italiano. Os filhos são dois rapagões com o cabelo cortado à escovinha, que se exprimem com dificuldade em italiano, mas de vez em quando exclamam «deh!», a típica exclamação livornesa. O senhor Gustavo propõe-me sairmos para jantar e a família fica em casa. O bairro é uma vasta periferia formada por casinhas individuais, com alguns letreiros de néon. Chegamos a um pequeno restaurante cujo letreiro de néon diz «Italian Food». Na ementa, minestrone, cacciucco, triglie alla livornese. O proprietário chama-se Anselmo, um livornês que vive há trinta anos na Austrália. Um cacciucco assim só se pode comer no bairro de Ardenza ou no porto de Livorno.

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O senhor Gustavo está contente de me ter trazido a um sítio que me agrada, fala-me da sua vida na Austrália, diz-me que agora já não pode voltar para Itália porque os seus laços se romperam, tinha uma velha mãe que morreu este ano, por isso teve de ir a Itália. Agora a sua vida é aqui, está bem, ganha bem, está contente. Mas sente saudades de Itália. Quando chega a conta há uma pequena discussão, pois gostaria de ser eu a convidá-lo. Mas tenho de ceder, pois ficaria ofendido. Da próxima vez é por minha conta, em Livorno, digo-lhe. Despedimo-nos como velhos amigos, um e outro seguros de que não voltaremos a ver-nos. Depois chega um táxi. O ornitorrinco, ou platypus, é o animal mais surrealista do mundo. Vamos vê-lo ao jardim zoológico de Sydney, num ambiente que reproduz o seu habitat natural. Vive só na Austrália e é, com o canguru, o símbolo nacional. Tem um estilo de vida bastante bizarro. Vive nas margens de rios e lagos, onde come, nada e escava galerias. É o único animal no mundo com bico, pêlo e patas palmípedes. Pode estar até oito minutos debaixo de água. Põe ovos mas é um mamífero, porque amamenta as crias. Alimentase de vermes, insectos e larvas. Não deixa que ninguém se aproxime dele e ataca quem o incomoda. Debaixo da palma tem um gancho venenoso com o qual se defende. É uma pena que os surrealistas não o tenham incluído nos seus bestiários, preferindo-lhe unicórnios e hipogrifos: perderam uma oportunidade. Até Apollinaire se esqueceu dele. Mas as vanguardas históricas não conheciam a Austrália. O Boeing da Alitalia corre pela pista de Sydney. Depois vejo o vasto panorama da cidade. Penso no que vi nesta viagem. Austrália. Um continente maior que a Europa com apenas dezoito milhões de habitantes.

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Um país que faz um rigoroso controlo das fronteiras e que no entanto está disposto a acolher os fugitivos vietnamitas dos boat-people. Um país pacífico, multicultural, com uma democracia sólida, mas que antes aniquilou os aborígenes. Um país sem energia nuclear, onde o serviço militar não é obrigatório e onde aos alunos da escola primária, rapazes e raparigas, se ensinam, entre as outras disciplinas, quatro coisas: coser um botão, lavar e passar a ferro uma camisa, fazer uma cama e preparar uma refeição normal para duas pessoas. É matéria de exame. Bye bye, Austrália.

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V Oh, Portugal!



A Lisboa de um livro meu

O meu romance Requiem tem como subtítulo Uma alucinação. O protagonista, que numa tarde de Verão está a ler um livro à sombra de uma árvore no campo nos arredores de Lisboa, como por feitiço vê-se projectado para um dos cais do porto da cidade. Provavelmente só adormeceu, mas uma vez entrado no seu sonho, como Alice, «atravessou o espelho» e alcançou essa dimensão em que o sonho se torna mais real que o real: o estado alucinatório. Mas, além de uma alucinação, o romance é também uma vagabundagem, uma errância através da cidade que não corresponde a nenhuma lógica topográfica. No fim deste percurso ilógico fica talvez a ideia de uma cidade, como a partir de alguns fragmentos dispersos de um mosaico se pode ter a ideia do mosaico inteiro. Tentemos reconstruí-lo. O percurso inicia-se a partir do cais de Alcântara, onde se ergue a gare marítima homónima. Não é um acaso, porque o protagonista «sabe» que ao meio-dia tem ali um encontro com um grande poeta português morto e que nunca é nomeado. Uma espécie de Convidado de Pedra que talvez seja Fernando Pessoa. O cais de Alcântara era de facto um lugar predilecto de um dos heterónimos de Pessoa, Álvaro de Campos, engenheiro naval que estudou em Glasgow e dandy sem profissão em Lisboa, que na sua fase «futurista», antes de alcançar um irónico e desesperado pessimismo, nesse cais compôs belíssimas odes furibundas e grandiloquentes evocando os descobrimentos marítimos do Portugal do século dezasseis.

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Alcântara não é um lugar bonito: o Tejo alarga-se até se tornar um mar, é uma paisagem de ferragens e de atracações, de embarcadouros e de passadiços, dominado pelos pilares da mastodôntica ponte que atravessa a foz do Tejo. E é exactamente em Alcântara, que é por antonomásia o coração do porto de Lisboa, que o romance se conclui, num sítio extravagante, o Alcântara-Café, um imenso restaurante instalado numa antiga fábrica (arquitectura industrial) com uma decoração pós-moderna e uma atmosfera irreal como a que o protagonista do livro está a viver. Regressando de Alcântara para a cidade (a avenida ao longo do Tejo é muito comprida, é melhor percorrê-la num dos característicos eléctricos amarelos de Lisboa), depois do Cais do Sodré e depois de ter subido a íngreme Rua do Alecrim, começa o Chiado, a zona elegante da capital. Continuamos obviamente a seguir o percurso do protagonista de Requiem, que se dirige ao café A Brasileira. É um dos mais célebres e tradicionais cafés da velha Lisboa, onde desde sempre marcaram encontro os literatos citadinos. Aqui, no início do século vinte, encontrava-se o grupinho de amigos que, sob a direcção de Pessoa, daria vida à revista de vanguarda Orpheu; mas depois também a frequentaram os intelectuais marxistas da Seara Nova e, nos anos cinquenta, em plena época salazarista, os escritores empenhados do neo-realismo e do surrealismo. A pausa do protagonista é brevíssima. Depois de comprar uma garrafa de champanhe gelado, «sabe» que tem de visitar a sepultura de um amigo no cemitério monumental de Lisboa com o insólito nome de Cemitério dos Prazeres. Sigamo-lo.

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As lápides são sóbrias, a arquitectura dos jazigos discreta, a relva impecável, a paz, obviamente, eterna. O prazer, para além da vista de um soberbo panorama do Tejo, é poder demorar-se ad libitum num banco das veredas de ciprestes sem que vivalma, sem metáfora, nos incomode. No livro, com um salto ilógico, como acontece nos sonhos, o protagonista encontra-se num velho apartamento junto da Sé, a catedral românica. Estamos no bairro do Castelo de São Jorge, ruelas que trepam entre casas modestas, tascas, oficinas, velhotes que preguiçam nos bancos, artesãos. Daqui domina-se o bairro de Alfama e aqui fica o mais bonito miradouro de Lisboa, o Miradouro de Santa Luzia: um terraço com azulejos do século dezoito e uma monumental buganvília. Aqui, na tasca do senhor Casimiro, o meu protagonista e o fantasma do seu amigo Tadeus, vão comer um sarrabulho, um fulminante prato de tripas de porco cozinhadas em sangue e em vinho. Para fazer a digestão pode-se deambular pelo interior do mercado da Ribeira, o mercado central de Lisboa. Lagostas ameaçadoras, chernes monumentais, varinas mais monumentais do que as suas mercadorias. Mas o peixe mais extraordinário pode admirar-se no tríptico das Tentações de Santo António de Bosch do Museu de Arte Antiga, também conhecido por Museu das Janelas Verdes, o nome da rua onde está situado; é um peixe que viaja pelo céu cavalgado por duas misteriosas personagens. Fica ali a dois passos. Atravessa-se um espaço vazio e entra-se no museu mais rico de Lisboa (primitivos portugueses, arte renascentista, arte indo-portuguesa, objectos japoneses). E depois? E depois a cidade é grande e grande o ânimo da personagem que na minha história a percorre à procura de recordações e de fantasmas. Mas não poderá faltar uma paragem na Casa do Alentejo, um clube do século dezanove sobrevivente a si próprio, num extravagante estilo mourisco, com salas de teatro e restaurante.

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Neste clube, os latifundiários do Alentejo vinham jogar bilhar e beber vinho do Porto quando vinham a Lisboa para negócios ou às putas. Estamos na Baixa, podemos aproveitar para um passeio até à vizinha Praça do Comércio, um cenário de teatro setecentista dominado pela estátua corroída pelo salobro do rei D. José. Na época colonial, quando chegavam mercadorias da Índia e do Brasil, as naus atracavam justamente aqui, na Praça do Comércio. Mas entretanto caiu a tarde, a praça debruça-se na água e os cacilheiros iluminados que atravessam o Tejo convidam à melancolia. Há um ar de saudade, é melhor evitá-lo. O comboiozinho para Cascais parte do Cais do Sodré. Sem entrar em Cascais, localidade na moda e destino turístico, pode-se tomar a estrada do Guincho. E depois de ter passado a Boca do Inferno, onde o oceano ruge de maneira ensurdecedora, chega-se ao cabo da Roca, o ponto mais ocidental da Europa. Falésias abruptas, praias vastíssimas batidas pelo vento, moradias solitárias. E os faróis, naturalmente. Faróis que avisam os navegantes e que agora, com a sua luz intermitente, parecem enviar um sinal ao amante de percursos ilógicos que, por causa de um romance, se vê a percorrer um lugar de misteriosa beleza, Por sorte, há algumas tascas nas redondezas. Come-se amêijoas à Bulhão Pato e carne de porco à alentejana. Lá fora cai a noite atlântica, ventosa nos dias de Verão, com neblina nas outras estações. É tempo de regressar a Lisboa, é quase meia-noite. De resto o meu Requiem acaba à meia-noite e o protagonista encontra-se, como por feitiço, numa cadeira de repouso debaixo da amoreira onde tinha adormecido. Talvez acorde, não sei. Ou talvez nesse preciso momento comece a sonhar.

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Lisboa. Rua da Saudade

Os turistas ficaram na rua de baixo, diante da catedral medieval, nesta colina de Lisboa onde se ergue o Castelo de São Jorge. Tomámos essa decisão por iniciativa própria, porque a Sé e o Castelo de São Jorge são dois locais obrigatórios para o visitante, dois símbolos da cidade, dos poucos monumentos medievais poupados pelo terrível terramoto que destruiu Lisboa em 1755. Mas provavelmente já os vimos, sozinhos ou com os nossos eventuais companheiros de viagem, ou iremos vê-los daqui a pouco, porque não podemos nem devemos ignorar os monumentos obrigatórios de uma cidade. Aqui, no entanto, na Rua da Saudade, a poucos metros da Sé, nunca vem ninguém. O visitante ocasional de Lisboa não tem nenhum motivo para vir aqui, porque aparentemente não há nada que o justifique, e por esse motivo o guia que trazemos no bolso, embora extremamente minucioso, não o refere. Mas há razões que escapam mesmo aos melhores guias. Neste caso a saudade, a que aliás é dedicada esta pequena rua. «Saudade» é uma palavra portuguesa difícil de traduzir, pois é uma palavraconceito, e por isso é traduzida para outros idiomas de maneira aproximativa. Em qualquer dicionário vulgar vamos encontrá-la traduzida por «nostalgia», palavra excessivamente jovem (foi cunhada no século dezoito pelo médico suíço Johannes Hofer) para uma questão tão antiga como a saudade.

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Se consultarmos um dicionário português respeitável, como o Morais, depois da indicação do étimo soidade ou solitate, isto é «soledade», teremos uma definição muito complexa: «Melancolia causada pela lembrança do bem do qual se está privado; pesar, mágoa causada pela ausência de alguém ou de objecto querido; lembrança suave e ao mesmo tempo triste de pessoa que se nos tornara simpática.» Trata-se portanto de qualquer coisa de dilacerante, mas que também pode enternecer, e não diz exclusivamente respeito ao passado mas também ao futuro, pois exprime um desejo que quereríamos ver realizado. E aqui as coisas complicam-se porque a nostalgia do futuro é um paradoxo. Talvez um equivalente mais adequado pudesse ser o disìo de Dante, que traz consigo certa doçura, visto que «enternece o coração». Em suma, como explicar esta palavra? É por isso que, afastando-nos alguns metros, aqui viemos. Porque do cimo desta pequena rua o olhar abarca toda a cidade e a enorme foz do Tejo. E pouco mais adiante o Oceano e o horizonte infinito. O português desconhecido que deu o nome a esta rua tinha certamente contemplado bem o panorama. Um grande linguista disse que é impossível explicar o significado da palavra «queijo» a alguém que nunca tenha provado um queijo. Portanto, para compreender o que é a saudade, nada melhor do que senti-la directamente. O melhor momento é obviamente o entardecer, que é a hora canónica da saudade, mas também são adequadas certas noites de névoa atlântica, quando sobre a cidade desce um véu e se acendem os candeeiros. Ali, sozinhos, contemplando este panorama que se abre à nossa frente, talvez nos invada uma espécie de comoção.

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A nossa imaginação, fazendo uma pirueta ao tempo, levar-nos-á a pensar que, uma vez regressados a casa e aos nossos hábitos, nos invadirá a nostalgia de um momento privilegiado da nossa vida em que estávamos numa belíssima e solitária viela de Lisboa a contemplar aquele panorama. Pois bem, a sorte está lançada: estamos a sentir nostalgia do momento que estamos a viver neste momento. É uma nostalgia no futuro. Sentimos pessoalmente a saudade.

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No café com Pessoa

A Brasileira do Chiado, um dos mais ilustres cafés literários de Lisboa, situa-se no coração da cidade, no bairro reconstruído segundo critérios iluministas pelo marquês de Pombal depois do terramoto que, em 1755, destruiu Lisboa. E em frente do café, praticamente a meio das mesas da esplanada, foi colocada há alguns anos uma estátua de bronze do poeta que foi um frequentador habitué da Brasileira, Fernando Pessoa. É pouco vulgar que numa mesma cidade as estátuas de dois poetas se encontrem a escassos metros uma da outra. Acontece en Lisboa, e pode ser interpretado como um óptimo sinal. A elegante praceta do Chiado, onde se situa a Brasileira, é de facto dedicada ao poeta do século dezasseis António Ribeiro Chiado, cuja pequena estátua, também de bronze, o representa com uma expressão de escárnio no rosto, como de escárnio foi a sua poesia. Portugal tem uma vasta tradição de poesia irreverente e satírica, já desde os trovadores medievais, e é um género poético que goza de grande apreço, como em qualquer país civilizado, porque é sabido que sem sátira todo o monarca (ou figura análoga) seria um monarca absoluto, um tirano. A poucos metros daquele rosto trocista está o rosto indecifrável de Fernando Pessoa com um sorriso irónico nos lábios. O escultor Lagoa Henriques esculpiu-o como se estivesse realmente no café, sentado numa cadeira e com uma perna cruzada horizontalmente sobre a outra (uma posição muito desenvolta que destoa da personagem).

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A ironia está muitas vezes patente nos seus versos, mas talvez seja o seu pensamento que é irónico, dotado, digamos, dessa «consciência irónica», para usar as palavras de um filósofo francês, que o fez pensar que nós somos Um, Nenhum e Cem mil e que lhe permitiu criar a sua própria comédia humana em poesia. E assim inventou um núcleo de poetas e escritores, seus heterónimos. Álvaro de Campos, engenheiro naval formado em Glasgow, dandy desocupado em Lisboa, que começou por ser futurista por divertimento, depois autor de odes sensuais e furibundas, mais tarde um amargo pessimista leitor de Pascal e de Nietzsche e por fim niilista sem apelo. Ricardo Reis, classicista e pagão, uma espécie de Omar Khayyám do século vinte, cantou a futilidade da vida e a necessidade do estoicismo («senta-te ao sol / abdica / e sê rei de ti próprio», diz um poema seu). Alberto Caeiro, considerado o mestre de todos os outros, impassível observador do real, foi um poeta-filósofo que recorreu à fenomenologia para falar do mistério das coisas. De si próprio, escreveu: «Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.» E depois Bernardo Soares, que vivia numa das águas-furtadas que se vêem da Brasileira, modesto empregado de uma loja de tecidos, autor do Livro do Desassossego, um diário composto de prosas impressionistas, de descrições de Lisboa, de anseios, de sonhos, de viagens nunca feitas. E ainda o filósofo António Mora, autor de um tratado sobre o regresso dos deuses, e o Barão de Teive, pensador de descendência leopardiana, e o poeta inglês Alexander Search e, por último, o Pessoa ortónimo, ou seja, o que assinava como Fernando Pessoa (mas era realmente ele, ou outro?).

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Em suma, uma literatura completa, uma obra vastíssima que por si só enche um século. Mas Pessoa, para além dos poetas a que deu vida, teve uma vida própria: amores, dissabores, felicidade, entusiasmos. De pensamento aristocrático e conservador, odiou no entanto os totalitarismos comunistas e fascistas, detestou o salazarismo e Salazar, de quem troçou em poemas obviamente impublicáveis no seu tempo e só recentemente editados. Criou movimentos e revistas literárias. Viveu geralmente em modestos quartos alugados até que, em 1920, teve um quarto só para si na casa da Rua Coelho da Rocha (hoje casa-museu), que tinha arranjado para a família regressada da África do Sul. Foi na Brasileira do Chiado, onde ia todas as tardes, que com os seus companheiros fundou a revista Orpheu e os grandes movimentos de vanguarda da sua época. A Brasileira manteve praticamente intacta a decoração original: as mesas, os espelhos, alguns quadros. O café expresso à italiana é de óptima qualidade e tomá-lo numa mesinha da esplanada na companhia daquele senhor de sorriso inefável não acontece todos os dias.

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O Palácio Fronteira

Pascal Quignard é conhecido em Itália sobretudo por um romance muito belo, Todas as Manhãs do Mundo, que deu lugar a um filme igualmente belo de Alain Corneau que conheceu um grande êxito tanto da crítica como do público. Romancista, ensaísta, musicólogo, mereceria da nossa parte um conhecimento mais aprofundado e uma difusão mais ampla. Elegante e cultíssimo, dotado de um rigor estilístico de sabor flaubertiano, possui uma escrita límpida e enxuta, com um idiolecto estético imediatamente reconhecível. Atrai-o sobretudo a época barroca da França e de outros países. Seduzido por um dos mais belos palácios portugueses, o Palácio Fronteira, em Lisboa, escreveu um admirável texto de ficção que acompanha as fotografias dos azulejos que cobrem as salas e os jardins desta insólita mansão, outrora em pleno campo e hoje engolida pela prepotente banlieue de Lisboa, que o marquês de Mascarenhas mandou construir no século dezassete (Pascal Quignard, A Fronteira - Azulejos do Palácio Fronteira). Homem de espada e de aventura, o marquês de Mascarenhas participou na conjura palaciana que em 1640 pôs fim ao breve domínio espanhol em Portugal. Viajou sucessivamente pela Índia portuguesa, participou em várias acções militares, cobriu-se de glória, voltou à pátria e retirou-se para o palácio que mandou construir nos campos de Benfica.

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Mandou-o cobrir de azulejos, e a história conta que foi ele próprio que desenhou os motivos das bizarras majólicas que hoje constituem um dos tesouros do século dezassete português, com desenhos esotéricos (misteriosos cavaleiros, animais fantásticos, macacos músicos, gatos hieráticos) sobre os quais se exerceu abundantemente a fantasia dos exegetas. Ao escritor francês tudo isto inspirou um magnífico conto cuja sugestão não é inferior às misteriosas cenas dos painéis de azulejos, uma história de amores perversos e de vinganças, de castrações e de crimes. Não vou revelar os pormenores da trama da história, que põe em cenas personagens históricas como o próprio marquês de Mascarenhas, certos cavaleiros da época, o rei D. Afonso VI e o seu pérfido sucessor. É uma história tenebrosa, contada com essa fria elegância que muitas vezes os romancistas franceses possuem. Ficaria perfeita por si só num livro próprio, uma história para ser lida noutros idiomas, fantástica como é e ao mesmo tempo tão verosímil e repleta de referências aos acontecimentos portugueses da época. O Senhor de Jaume, um nobre aventureiro francês protegido do marquês de Mascarenhas, tece uma trama paciente e diabólica durante to ia a vida e no fim consegue pôr em prática o seu cruel desígnio. Mas o destino, que Pascal Quignard interpreta como fado português que não poupa ninguém, não o deixará sair indemne e o Senhor de Jaume terá de expiar as suas culpas. Uma insuspeita Senhora de Oeiras, alvo dos seus desejos, vingar-se-á atrozmente dele. E a história portuguesa, como se seguisse as tramas das personagens de ficção, viverá por sua vez um momento de vingança. O Palácio Fronteira é a casa do actual marquês de Mascarenhas, mas é também um museu aberto ao público.

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Aconselho uma visita com bom tempo, porque o jardim à italiana, elegantíssimo, merece um passeio. Para além disso, os azulejos dos bancos não são inferiores aos da fachada. Aliás, há um que pede uma paragem especial: como os azulejos se tinham deteriorado irremediavelmente, voltou a desenhá-los uma grande pintora contemporânea, Paula Rego, uma artista cuja força visionária não é inferior à dos antigos mestres. O seu banco, que se chama Fogo, tem figuras que «ardem» e é impossível sentar-se nele.

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Alentejo. Alter do Chão

Um anúncio português aos vinhos do Alentejo onde um rapaz segura por brincadeira duas ovelhinhas pela trela, diz: «A autenticidade do Alentejo é contagiosa.» Pura verdade. Neste tempo de variadas epidemias há um lugar que nos «contagia» por causa de uma virtude tão rara como a autenticidade. Grande região que se estende do centro de Portugal até ao Algarve e que traça uma longa fronteira com a Espanha, o Alentejo, pela sua inconfundível fisionomia (os montados de sobreiros, os olivais, as planícies de pastagens, as casas brancas com barras azuis, as formas dos trajes femininos, os chapéus dos homens, a bonomia das pessoas), apresenta uma fortíssima diversidade. As zonas do litoral, onde a actividade mais importante é a pesca, têm um clima e uma paisagem que se parece com o Mediterrâneo. O interior, caracterizado por Invernos rigorosos e Verões escaldantes, é mais áspero e secreto. E das vastas planícies, como fatas morganas no deserto, surgem antigas e belíssimas cidades. Por exemplo Évora, a Liberalitas Julia dos Romanos (notável o Templo de Diana, mesmo em frente do Convento dos Lóios, de estilo manuelino), depois Yebora para os Árabes; Beja, a Pax Júlia dos Romanos e a Baju dos Árabes, com o seu soberbo castelo; ou Elvas, encerrada nos seus bastiões.

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Hoje muitos destes ideia de um turismo foram transformados uma gestão perfeita

antigos castelos e fortificações, graças à inteligente que o Estado tomou a seu cargo, em pousadas, hotéis de grande qualidade com e preços mais do que aceitáveis.

Mas para além das soberbas cidades do interior, o Alentejo é uma região de aldeias e vilas extraordinárias onde reina uma atmosfera verdadeiramente «diferente». Entre tantas que poderíamos escolher, o viajante ocasional deteve-se em Alter do Chão. Para os próprios alentejanos, Alter é quase o emblema da sua região, mas os portugueses em geral reconhecem que Alter do Chão tem mais «qualquer coisa». Porque Alter, para jogar com o seu nome, tem qualquer coisa de altaneiro, uma característica que o tempo, a civilização, a história lhe conferiram. Fundada pelos Romanos cerca de 200 d. C. (Abelterium ou Ekteri), a sua importância ficou a dever-se sobretudo à sua posição geográfica, situando-se na estrada que ligava Olissipo (Lisboa) a Emérita Augusta (Mérida), e portanto lugar de trânsito das mercadorias entre o litoral atlântico e a Ibéria interior. Festas tradicionais populares ainda hoje vivíssimas (o chamado Festival Romano) comemoram, segundo se diz, a passagem do imperador Adriano que aqui veio reprimir contendas locais e dotou a vila de privilégios imperiais. Mais tarde foi conquistada pelos Vândalos, que destruíram as suas fortificações, reconstruídas no ano 900 d. C. pelos Árabes. Voltou a ser cristã (e segundo parece novamente destruída) graças à espada reconquistadora de D. Nuno Álvares Pereira. Em 1359, o rei D. Pedro I mandou novamente edificar o castelo pentagonal que domina a vila, onde há um belíssimo pórtico gótico. Em 1748, D. João V, aconselhado pela sua consorte Mariana de Áustria, mandou importar cavalgaduras andaluzas com a intenção de criar uma raça equina portuguesa. Assim nasce o Alter Real, vulgarmente chamado cavalo lusitano, ainda hoje usado na Escola Portuguesa de Arte Equestre (às vezes também nas touradas).

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No monumento equestre do século dezoito da Praça do Comércio em Lisboa, o rei D. José cavalga um Alter. Recentemente, os arqueólogos encontraram o pavimento de uma casa aristocrática da época romana com um extraordinário mosaico que representa cenas da Eneida. O acaso quis que eu o pudesse ver enquanto os arqueólogos o traziam à luz, varrendo os detritos do tempo. Só tinha assistido a uma aparição semelhante no cinema, no Roma, de Fellini. Caminhando entre a poeira das escavações, vi-me em determinado momento sobre os ombros de Eneias. E sentime Anquises. As escavações arqueológicas estão hoje abertas ao público. O mosaico, por sorte, não se desvaneceu como os frescos do filme de Fellini.

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Ao longo do molhe da Horta. Faial, Açores

Se aportámos aqui, isso quer dizer que temos um belo barco que nos permite fazer a travessia atlântica; ou então que somos navegadores solitários, não necessariamente providos de um barco de luxo, mas privilegiados, em qualquer caso, pelo vento de liberdade que sopra nas velas da nossa vida. Se no entanto não tivermos aportado, faríamos bem em vir de propósito (há dois voos diários a partir de Lisboa). O que é em todo o caso um privilégio. O lugar de que falo é o pequeno porto da Horta, Faial, nas ilhas dos Açores. O arquipélago dos Açores, em pleno oceano Atlântico, praticamente a meio caminho entre a Europa e a América, estendese ao longo de cerca de 600 quilómetros na direcção NO/SE entre os 36/39 graus de latitude e os 25/3 de longitude. É território português, agora com administração autónoma mas de ardente espírito lusitano. No século quinze, quando os Portugueses as descobriram, as ilhas dos Açores (da palavra «açores», ou seja, gaviões, porque os primeiros navegadores confundiram com gaviões os numerosos milhafres que povoam as falésias), eram desabitadas, e o padre Gaspar Frutuoso, o cronista da época que foi o primeiro a dar notícia do lugar, numa sugestiva descrição descreve-o como «Terra de fogo, vento e solidão».

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São ilhas vulcânicas, mas verdíssimas devido às abundantes chuvas do clima subtropical, de costas ásperas e com uma luxuriante e variada vegetação que vai das bananas e dos ananases ao nível do mar até aos abetos de tipo alpino das inacessíveis montanhas, caracterizadas por nascentes quentes e chaminés profundas, as caldeiras, dentro das quais aos domingos, nos piqueniques, os habitantes costumam introduzir panelas com carne e verduras para um cozido. E depois, flores. Flores por todo o lado, sobretudo hortênsias. Os Açorianos separam a propriedade das terras com sebes de hortênsias, não usando muros nem cercas. Há muitos anos passei por aqui e sobre estes lugares, particularmente a ilha do Faial, cheguei a escrever um pequeno livro, Mulher de Porto Vim. O Faial era então uma ilha de baleeiros, e no porto encontrei um café, o Peter's Café Sport, onde um velho arpoador reformado, que cantava pessimamente antigas canções das ilhas para «os senhores de passagem», me contou uma história, não sei até que ponto verdadeira, que depois contei à minha maneira. Era um café muito especial, com uma clientela muito variada e à sua maneira interclassista, como se podia avaliar pelos pés dos fregueses: descalços os dos pescadores locais, com elegantes sapatos de vela os dos «senhores de passagem». Voltei recentemente. Imaginava talvez algumas mudanças, até porque a velha fábrica onde outrora se manipulavam as baleias é agora um centro cultural com biblioteca e videoteca. Mas o Peter's Café Sport manteve mais ou menos a mesma atmosfera. Os baleeiros são todos ex-baleeiros, agora pescam atum e calçam sapatos de ténis. Mas os rostos e os gestos são os mesmos. Até os dos «senhores de passagem» são os mesmos. O mundo, que muda tão depressa, às vezes possui uma curiosa monotonia própria. Mesmo o gin fizz, especialidade da casa, é tão bom como dantes (a genebra é de produção local, com um sabor particularmente áspero) e o preço em euros corresponde ao dos velhos escudos.

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No placard ao lado do balcão continuam afixados os misteriosos anúncios (ou mensagens) dos navegadores solitários, que trocam informações só decifráveis entre eles, como os telegrafistas. O gim do Peter's pode ser um bom carburante para enfrentar uma caminhada até ao molhe. É um molhe muito comprido, que se adentra pelo oceano. Na calçada, ao longo de centenas de metros, há murais pintados pelos navegadores solitários com as tintas dos barcos. Cada um deles é um quadro que tem por moldura o azul do Atlântico: emblemas, paisagens, rostos, barcos, nomes. Talvez seja altura de nos sentarmos num banco a olhar aquelas pinturas. Mesmo que não nos digam nada, mesmo se não as compreendemos, aquelas imagens merecem ser contempladas: são como mensagens que em vez de vaguearem numa garrafa foram confiadas a um muro delimitado pelo Atlântico. E o seu significado profundo, para lá das imagens pintadas, consiste no facto de que nós as recolhemos com os nossos olhos. Quem as pintou «queria» que alguém as olhasse. Ao passar por aqui, quis fazer saber que existia, e deixou um testemunho da sua passagem. Ao recolhermos o seu testemunho, transformamo-nos nós próprios em testemunhas da sua passagem. Que na realidade não saibamos quem era, e que ele não saiba quem somos, é absolutamente secundário.

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Os meus Açores

Um lugar nunca é apenas «aquele» lugar: aquele lugar somos um pouco também nós. Seja como for, sem o sabermos, trazíamo-lo dentro de nós e um dia, por acaso, chegamos lá. Chegamos no dia certo ou no dia errado, conforme, mas isso não é responsabilidade do lugar, depende de nós. Depende de como lermos esse lugar, da nossa disponibilidade para o acolhermos dentro dos nossos olhos e dentro da nossa alma, de estarmos alegres ou melancólicos, eufóricos ou disfóricos, de sermos jovens ou velhos, de nos sentirmos bem ou de nos doer a barriga. Depende de quem somos no momento em que chegamos a esse lugar. Estas coisas aprendem-se com o tempo e, sobretudo, viajando. Mas há muitos anos, quando fiz a minha primeira viagem aos Açores, ainda não o sabia. «Reconheces-me tu, ar, cheio dos lugares que uma vez foram meus?» É um verso de Rainer Maria Rilke que neste livro é recorrente. Alguém está a regressar a um lugar que conheceu noutros tempos e pede ao ar (o espírito do lugar?) que o reconheça, porque ele próprio não reconhece já esses lugares. Não reconhece o que contemplou noutros tempos nem o que nesse tempo sentia ao contemplar: as suas emoções, o seu eu de então. Cada lugar a que chegamos de viagem é uma espécie de radiografia de nós próprios.

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Muitas vezes, ingenuamente, tiramos fotografias com a ilusão de levarmos alguma coisa connosco. Mas as imagens são apenas a pele, pura aparência: o que esse lugar provoca em nós ao contemplá-lo e vivê-lo não é fotografável. Acontece o mesmo que com os sonhos. Impelidos pelo desejo de comunicar a emoção sentida a alguém e quase com espanto damo-nos conta de que a história daquele sonho era banal, era um sonho como outro qualquer: assim, ao contá-lo, não comunica nenhuma emoção, nem em quem nos escuta nem a nós próprios que o contamos. O que é que tinha então de tão especial para ter provocado tanta emoção? Nada. O importante daquele sonho não era o que acontecia, mas a maneira como o estávamos a viver: o sonho era a nossa própria emoção. Com um lugar é a mesma coisa. Contá-lo não significa descrevê-lo, mas conseguir transmitir, mesmo numa ínfima parte, as emoções que nos suscitou. Mulher de Porto Pim é à sua maneira uma cartografia pessoal, o traçado da geografia íntima do que eu era então. Que não era um verdadeiro livro de viagem mas antes uma circumnavegação metafórica em volta de mim próprio, a viagem em volta do próprio quarto de quem paradoxalmente tinha feito na realidade aquela viagem aos Açores, procurei dizê-lo nas três paginazinhas do prólogo, e voltou a dizê-lo também, com palavras sóbrias, o texto da capa, que foi escrito por Leonardo Sciascia mas que não está assinado. Aludindo a Leopardi, o texto de Sciascia fala daquilo que dentro de nós encontra ressonância, por ser «antigo» e «longínquo», evocando estas duas dimensões como se fossem dois pontos cardeais da narrativa. Relendo o livro agora, se tivesse de completar os hipotéticos pontos cardeais da rosa-dos-ventos que então guiaram a escrita, talvez lhe acrescentasse um terceiro, cheio de imprudência e de inocência, e um quarto que me parece sugerido pelo temor, pela apreensão, pela inquietação, quase um alarme.

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Imprudência porque é pouco ponderado quem escreve um livro feito de palavras roubadas, de fragmentos, de estilhaços, de migalhas. Inocência porque me parece que nos olhos daquele narrador havia assombro, que é talvez o melhor dom do viajante, e que é difícil de manter com o tempo. Alarme porque se fala muito do naufrágio, como se em cada página o temesse. Talvez aquele viajante temesse aquele canto de sereias que leva o barco contra os recifes. Escrever aquele livro talvez fosse para ele um meio de se atar ao mastro real sem pôr cera nos ouvidos, porque o canto das sereias pode ser fatal mas não o escutar é de medrosos, quando se está verdadeiramente de viagem.

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As serras ideais de Eça de Queirós

Na literatura portuguesa, marítima como poucas outras, povoada de viagens e aventuras oceânicas, os textos de ambientação montanhosa, em todo o caso terrena, não são frequentes. A situação geográfica de Portugal, e sobretudo as vicissitudes da sua história, explicam de resto a prevalência do elemento marítimo. A aventura oceânica, iniciada no século quinze, que conduziu Portugal aos lugares mais remotos do globo, deixou uma marca indelével (e uma constante) na sua literatura que, a partir desse momento, regista um pulular de crónicas de viagem, de portulanos, de roteiros, de diários de bordo, de descrições de descobertas geográficas, de peripécias e de naufrágios. Essa constante, uma espécie de «baixo contínuo» que chega até aos nossos dias, proporciona por outro lado pontos altíssimos em obras-primas dos mais diversos géneros: um simples livro de bordo transforma-se numa descrição paradisíaca que roça o fantástico na Carta do Achamento do Brasil, de Pêro Vaz de Caminha, a viagem de Vasco da Gama de Lisboa até à Índia forma a estrutura do poema épico de Camões; as desventuras de um «viajante por acaso», meio corsário e meio pobre-diabo, transformam-se na extraordinária picaresca da renascentista Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, português esfarrapado e ladino, arrastado pela vida para as aventuras mais incríveis desde a Abissínia até à costa do Malabar, de Malaca ao Camboja, da China ao Japão; as desgraças da aventura marítima (a outra face da medalha ou «os desastres com que se compra a glória» parafraseando Pessoa) constituem o tema da compilação do frade setecentista Bernardo Gomes de Brito, que recolhe numa vasta antologia as descrições dos mais espantosos naufrágios ao longo de mais de dois séculos (História Trágico-Marítima).

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E por fim, torna-se exaltante e ao mesmo tempo aventura metafísica na furibunda Ode Marítima de Pessoa e interpretação esotérica da História no seu poema «Mensagem» de 1934. Por sua vez, a dicotomia Mar/Terra determina outra segunda, de conotações que superam as dimensões geográficas para atingir as filosóficas, e que significa substancialmente uma oposição entre Permanência e Lonjura. Oposição que obviamente atinge ainda outra dimensão, porque se o mar, a viagem e a lonjura representam simbolicamente o sentido da sede de conhecimento, da descoberta, do desconhecido e do abandonar-se à aventura, a Terra (a Permanência) constitui o sentido da reflexão sobre o já conhecido, sobre as próprias origens e raízes, sobre a própria identidade. Conceitos que trazem consigo, mais ou menos patentes (manifestas), a ideia do Mar (ou seja, Lonjura) como «temeridade» e de Terra (Permanência) como «sabedoria». Na literatura portuguesa do século dezanove, os dois romances mais representativos (e célebres) da vertente terrena são Viagens na Minha Terra (publicado em 1846), de Almeida Garrett, e A Cidade e as Serras (publicado postumamente em 1901) de Eça de Queirós. Escritores a quem coube a tarefa, como se lê nos livros escolares, de introduzir em Portugal os dois grandes movimentos do seu século: o Romantismo e o Realismo. Escritores, note-se, que foram ambos «expatriados»: por razões ideológicopolíticas o antiabsolutista Garrett (mais tarde par do Reino e ministro com a chegada ao poder dos liberais); por motivos profissionais Eça de Queirós, cônsul de Portugal primeiro em Cuba e depois em Inglaterra e finalmente em Paris, onde acabou a sua vida.

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E ambos com uma boa formação cultural estrangeira, anglo-alemã o primeiro, substancialmente francesa o segundo: cultos, cosmopolitas e criadores, além de importadores de ideias novas. Mas se a afinidade da ambientação rural acompanha estes dois romances, e se o seu papel de inovadores se aplica aos dois escritores, é oportuno estabelecer uma hierarquia de julgamento sobre a qualidade das suas obras. Sem negar a Garrett o papel de importador das poéticas românticas, a sua figura aparece (para quem a leia de fora, despojada dos atributos que inevitavelmente as leituras escolares nacionais sobrepõem por vezes à qualidade estética) mais como a de um imitador animado de boas intenções mas caracterizado por um verso bastante inerte, por uma prosa convencional e por uma temática que resta confinada à fruição de um leitor português. Em suma, um romântico menor, importante sem dúvida para Portugal, mas que não resiste à comparação com os grandes românticos europeus. De uma espessura completamente diferente é a arte de Eça de Queirós: não só pela qualidade da escrita mas também pela sua capacidade de tornar exemplares acontecimentos que, embora portuguesíssimos pela ambientação e pelos mecanismos sociais, resultam universais. E a confirmação está na respectiva fortuna de crítica e de público fora das fronteiras pátrias: vastíssima a de Eça, praticamente nula a de Garrett. Mas além do seu comum tema telúrico, o que une idealmente as Viagens na Minha Terra de Garrett e A Cidade e as Serras de Eça é sem dúvida o tema do nostos: o regresso a casa de dois ilustres escritores «exilados» nas grandes capitais culturais europeias.

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Contudo, se o «regresso» de Garrett é uma espécie de reportagem celebrativa suscitada por uma viagem real do autor à magnífica propriedade rural de um seu influente amigo, a quinta de Santarém de um influente político de então (um lugar requintadíssimo do qual não surpreende que Garrett cante com entusiasmo as sãs virtudes do frugal e arcaico campo português), o retorno de Eça, completamente romanesco, apresenta aspectos bastante mais complexos. Jacinto, o protagonista de A Cidade e as Serras, descendente de uma rica família portuguesa e minado por uma crise existencial causada, se assim se pode dizer, pelo excessivo conforto de uma elegante vida parisiense (o jovem «fedia de bem-estar» diria Gadda), decide ir retemperar o corpo e o espírito enfraquecidos pelas luzes da metrópole com os frugais costumes das arcaicas serras do seu Minho. Esta é, a um primeiro nível, a leitura do romance. Mas uma tal leitura é evidentemente insuficiente, para não dizer elementar. A escrita de Eça (e com ela todo o chamado «realismo» a que por convenção pertence) não se detém nunca no «primeiro nível», e nele «sobre a nudez crua da verdade, o manto diáfano da fantasia» (assim reza uma célebre frase sua interpretada depois como um manifesto de poética), oculta muitas vezes uma fantasia ainda mais subtil. Parece-me portanto de escassa utilidade reler este romance com as categorias com que sempre foi lido (tanto para o criticar como para o defender) que privilegiam a ideia de uma «modernidade corruptora» que se opõe à da «tradição salvadora», identificadas respectivamente na urbs (neste caso a metrópole) e na rus (neste caso o montanhoso Douro). Creio ser mais razoável observar que A Cidade e as Serras não se inscreve no genuíno elogio da ruralidade com a idêntica e simples convicção a que pertence De agricultura de Catão o Censor, mas antes a esse desejo dela que se traduz na literatura, e portanto no mito literário do telúrico (campo ou montanha, tanto faz) que é em todo o caso o do Virgílio das Geórgias ou, melhor ainda, de um Horácio que com inultrapassável snobismo afirma detestar a insuportável cidade de Roma e exalta as virtudes do saudável campo e da sua villa na Sabina, mas que de Roma sai o menos possível ou antes, quase nunca.

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Em suma, as serras de Eça pertencem à dimensão da contemplação, do desejo e da insatisfação. Dimensão essa que aliás percorre sob várias formas a literatura ocidental como uma corrente alterna, desde as pastoreias dos trovadores provençais ou da corte de D. Dinis à Aminta de Tasso, à Arcádia, aos textos que se referem ao mito do bom selvagem de Rousseau, à cabana de Paul e Virginie e por aí fora. Até chegar ao cínico poema de D'Annunzio «Porque não estarei eu com os meus pastores?» ao qual respondeu de maneira inigualável o editor Leo Longanesi: «Porque estás hospedado no Grande Hotel de Montecarlo.» Talvez, desse ponto de vista, o nostos de Eça (e com Eça o seu personagem Jacinto, tão atormentado e profundamente contraditório) mais do que um verdadeiro retorno às próprias raízes será uma forma de nostalgia sublimada de uma «saúde» irremediavelmente perdida.

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VI Por interposta pessoa



Da parte da Mongólia

Vai à horta apanhar uma couve, precisamos dela para a sopa.

disse

a

mãe

à

rapariga,

A rapariga saiu do casario, olhando em volta com preocupação. Não gostava de sair de casa ao entardecer. Os alemães tinham ocupado os estábulos e os palheiros do convento e àquela hora havia o perigo de encontrar algum soldado que a molestasse. Na sua retirada, os nazis tinham feito alguns prisioneiros, soldados russos e anglo-indianos que tinham fechado no armazém de cereais. Diante do armazém havia sempre uma sentinela armada de metralhadora e ela nunca tinha visto os prisioneiros. Para ir à horta tinha de passar em frente do armazém. A rapariga encaminhou-se de má vontade, tentando ganhar coragem. Quando passou diante da sentinela deu-lhe as boas-noites. O alemão rosnou qualquer coisa na sua língua sem se mover. Era uma pequena horta que o seu pai, o hortelão do convento, tratava com amor. Havia couves, espinafres, alfaces e batatas. A rapariga dirigiu-se para as fileiras de couves. Eram plantas grossas e escuras dessa qualidade que se chama couve-de-sabóia. Vagueou entre as filas de couves indecisa sobre a escolha. Depois viu uma muito repolhuda que curiosamente lhe pareceu mais alta do que as outras.

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Era mesmo aquela. Tinha trazido uma faca para a cortar, mas tinha o caule demasiado grosso, talvez fosse mais fácil arrancála pela raiz. Agarrou-a pelas folhas e puxou, e para seu espanto a couve ficou-lhe nas mãos sem oferecer resistência. A rapariga olhou para o chão e viu um buraco com cerca de um metro coberto por canas e folhas. Com um pé afastou as canas e viu um homem. Era um homenzinho gordo com traços mongóis que a olhava com os olhos arregalados. Vestia uma farda militar desconhecida e tinha a cara suja de terra. «O que estás a fazer aqui?», perguntou a rapariga. O mongol levantou os braços como se estivesse em frente de um inimigo e disse: «Italia bella.» Depois tirou do bolso do casaco uma carteira e estendeu-lhe uma fotografia. A rapariga olhou-a rapidamente à luz incerta do crepúsculo. Conseguiu ver uma grande tenda oval no meio de uma planície. Fora da tenda estava um homem, o mesmo homem que tinha na sua frente. Ao lado dele uma mulher com um estranho chapéu na cabeça que lhe tapava as orelhas e depois, em fila decrescente, quatro crianças. Era uma fotografia de família. O soldado levou uma mão ao pescoço como se quisesse estrangularse e começou a chorar. Chorava em silêncio e as lágrimas abriamlhe sulcos claros no rosto cheio de terra. «O que é isso, estás a chorar?», disse a rapariga. «Não chores, por favor não chores, senão fazes-me chorar também.» O mongol pôs as mãos na barriga, esfregando-a. Depois abriu a boca e meteu a mão lá dentro. «Italia bella», disse com ar de sofrimento. «Ai meu Deus», disse a rapariga, «não sabes dizer mais nada?» O soldado bateu de novo na barriga como se batesse num tambor. «Já percebi, já percebi», disse a rapariga, «tens noite não há nada a fazer, tens de aguentar amanhã, amanhã à noite trago-te de comer, e não uma coisa, se os alemães te encontram aqui fuzilam-me também a mim, e agora adeus.»

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fome, mas esta as tripas até te esqueças de fuzilam-te, e

«Italia bella», disse o soldado. «Vai para o diabo», disse a rapariga.. Durante um mês, todas as noites, a rapariga levou ao soldado pão e sopa de couves. Até que os alemães, retirando para norte, abandonaram o convento. Então o mongol foi acolhido na casa e ali ficou até à chegada das tropas aliadas. Esta é uma história autêntica. Foi-me contada pela senhora Rita, que mora perto da minha casa. O episódio passou-se numa pequena aldeia da Toscana, perto de Pisa, no Inverno entre 1944 e 1945. Durante muito tempo, a senhora Rita não teve mais notícias daquele soldado mongol. Nos anos setenta, chegou ao convento, apesar do endereço aproximativo, uma carta para Rita. Lá dentro estava só uma fotografia. Diante de uma tenda, um homem e uma mulher velhos e à sua volta filhos e netos. No homem a senhora Rita reconheceu com uma certa dificuldade o soldado mongol. Por trás da fotografia estava escrito: «Italia bella.»

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Saudades de Drummond

É um domingo de Lisboa, e eu sinto saudades de Drummond. É um daqueles domingos que o meu amigo Alexandre 0'Neill imortalizou num poema, quando a doce saudade que os Portugueses trazem dentro de si, no rosto dos habitantes de Lisboa (e até no meu) se transforma em tédio, em azedume. Tenho saudades de Drummond. Está um calor tórrido, a cidade está quase deserta, passa uma turista de calções curtos, de pernas brancas e compridas; esta noite os amigos convidaram-me a comer junto ao Tejo um besugo «como nunca comeste na tua vida». Eu sinto saudades de Drummond. Mesmo sem o som, as imagens do televisor são compreensíveis. É uma velha história: quem assassinava ontem é assassinado hoje esperando que os seus filhos tenham bons motivos para assassinar amanhã. Esperemos que mais tarde se levante uma brisa, como prometeu o boletim meteorológico. E eu tenho saudades de Drummond. O campeonato de futebol acabou: Uns perderam e outros ganharam: O clube Tal de Tal festeja a vitória com foguetes e promete triunfos futuros. Uma estimada catedrática francesa nos seus passeios pelo bosque narrativo revela-nos, a nós comuns mortais, que a escrita só pode medir-se consigo própria. Eu sinto saudades de Drummond.

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Numa situação como a presente, a limpeza étnica é uma questão secundária, afirma no Corriere della Sera um comentador político, e a tortura é uma prática necessária «em caso de necessidade» (sic). O míssil que atingiu o hospital desviou-se sozinho, declara um estratego americano com o respeito que merece a autodeterminação dos mísseis. Comprei demasiados jornais e sinto saudades de Drummond. Os críticos literários não têm dúvidas: se ao lipograma corresponde o lipossema, isso tem como consequência que esse determinado texto é ao mesmo tempo lipogramatico e lipossémico. Talvez fosse oportuno estudar a teoria dos equívocos, mas receio muito que o tempo aperte. E eu sinto saudades de Drummond. De Drummond que escreveu: «Amor — pois que é palavra essencial / comece esta canção e tudo a envolva. / Amor guie o meu verso, e enquanto o guia, / reúna alma e desejo, membro e vulva. / Quem ousará dizer que ele é só alma? / Quem não sente no corpo a alma a expandir-se /até desabrochar em puro grito de orgasmo, / num instante de infinito?» De Drummond que escreveu: «A bomba / é uma flor de pânico apavorando os floricultores /(...) / A bomba arrota impostura e prosopéia política / A bomba envenena as crianças antes que comecem a nascer /(...)/ pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo.» De Drummond que escreveu: «Não serei o poeta de um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro. / Estou preso à vida e olho meus companheiros.» De Drummond que escreveu: «Das relações entre topos / do elemento suprassegmental / libera nos, Domine. vocóide, / do vocóide nasal puro ou sem fechamento do vocóide baixo e do semivocóide homorgâmico / Domine. /(...)

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e macrotopos I (...) / Do consonante / libera nos,

/ Do programa epistemológico da obra / do corte epistemológico e do corte dialógico / do substrato acústico do culminador, / dos sistemas genitivamente afins / libera nos, Domine.» De Drummond que escreveu: «Stéphane Mallarmé: esgotou a taça do incognoscível. / Nada sobrou para nós senão o quotidiano!» De Drummond que escreveu: «Quando nasci, / um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida!» Há anos, quando te conheci, querido Carlos Drummond de Andrade, estava uma límpida tarde de Copacabana. E tu eras um velho poeta que me falava do cometa Halley admirado em criança no remoto planalto de Minas Gerais. E eras tão magro que receei que o vento do Atlântico te arrebatasse. Agora que passaram tantos anos da tua morte, deves ser mais leve do que uma folha. Porque não aproveitas a brisa que a televisão prometeu para esta tarde e vens conversar comigo neste domingo de Lisboa?

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As cidades do desejo

A literatura e a filosofia são pródigas em cidades fantásticas. Começou tudo com Platão, que fez derivar de Parménides a oposição Aparência/Verdade. O Sofista está construído sobre a impossibilidade de distinguir o verdadeiro do falso, e aquele que possui a verdade, afirma essa raposa do Platão, tem também direito a mentir. Com este sofisma se inventou do nada um continente e uma civilizadíssima cidade, adversária de Atenas, que no entanto, diz ele, foi engolida pelo mar: a Atlântida. A Atlântida é o primeiro lugar fantástico da literatura e o seu mito atravessou os séculos com uma «verdade» tal que ainda hoje há quem procure os seus vestígios. A Cidade do Sol comunista e teocrática de Tommaso Campanella é outra cidade fantástica. Tal como a Utopia de Thomas More é uma ilha totalmente fantástica, a tal ponto que aquele estado ideal baseado na tolerância, onde as tiranias, a pena de morte, as guerras e a propriedade privada são banidas, se tornou a metáfora de uma condição política a que só podemos aspirar. A cidade de Helsingor, com o seu castelo, que existe na realidade, torna-se num lugar fantástico graças à sobreposição do castelo de Elsinor do Hamlet de Shakespeare.

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Tal como são maravilhosamente fantásticos todo o País de Alice, a Babel com a Biblioteca e a Babilónia com lotaria de Borges, a Macondo de Garcia Marquez, as geométricas Cidades Invisíveis de Calvino. Mas também há as cidades do desejo. Reais, mas remotas, muitas vezes inalcançáveis ou marcadas pela nostalgia de um retorno impossível, estão encerradas numa espécie de feitiço que as transfigura até as tornar fantásticas. A pequena cidade de Combray de Proust, na realidade não muito longe de Paris, vive suspensa num tempo perdido. O Maradagal de O Conhecimento da Dor de Carlo Emilio Gadda é sem dúvida alguma uma zona da sua Lombardia natal, tecida de remorsos, rancores, amores e nostalgia. A Dublin de Joyce, amada e odiada, revivida a partir de Zurique, é de certo modo fantástica. Como o são a Lisboa de Pessoa, metáfora de um Molhe Absoluto a que o homem aporta para depois partir para o desconhecido, e mais ainda a inalcançável Samarcanda sonhada pelo seu heterónimo Bernardo Soares no Livro do Desassossego. Talvez as cidades mais desejadas vivam nesta dimensão: cidades verdadeiras tornaram-se na «ideia» de cidade.

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de

Na Grécia com Sophia

A primeira vez que fui a Delfos não pensava em Sophia. Cheguei numa gélida tarde de Janeiro, já estava escuro, tinha atravessado um Parnaso coberto de neve com grave risco em cada curva porque não tinha correntes nas rodas. Ali perto havia um hotel moderno, estranhamente semi-subterrâneo. Deixei lá as malas e depois introduzi-me entre as ruínas dos templos através de uma brecha na rede metálica. A Sibila em que pensava não antevia os versos de Sophia. Só mais tarde, voltando a pensar em Delfos, me vieram à cabeça. Também na primeira vez que visitei Cnossos não pensava em Sophia. Pensava no labirinto, no seu símbolo misterioso, quase como se procurasse uma solução. Pareceu-me encontrá-la no dia seguinte no museu de Heraclion, observando a sua representação numa das mais antigas tabuinhas de argila. Convenci-me de que se tratava de um cérebro humano. A forma ligeiramente oval, os circuitos que se perdiam em si próprios, fazendo perder o fio da sua geometria aos que o olhavam, pareceram-me a representação perfeita de um cérebro extraído da caixa craniana, como uma TAC arcaica: este labirinto és tu próprio que me estás a olhar, é o teu pensamento, dizia-me aquela tabuinha. Mas não me veio à cabeça Sophia.

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Talvez estivesse demasiado ocupado a pensar em Borges; em Dürrenmatt, porque imediatamente vi o seu pobre Minotauro, tão humano e infeliz, preso naquelas espirais; e em Freud, engenhoso Dédalo que tinha pensado poder percorrer o labirinto em sentido inverso para encontrar o ponto de partida. Mas onde está o ponto de partida do labirinto? Perguntei-o a mim próprio ao sair do museu, sob a luz ofuscante do pátio. Era Verão, a pior época para visitar aqueles lugares. Lembro-me do calor, do cansaço, da sensação de aturdimento. Sentei-me numa grande pedra redonda, talvez uma coluna truncada, e o meu olhar pousou-se numa laranjeira ao fundo do pátio, numa laranja que ninguém tinha colhido. E só então, sabe-se lá porquê, me vieram à cabeça uns versos de Sophia, quando escreveu que pertencia «à raça dos que percorrem o labirinto / Sem nunca perderem o fio de linho da palavra». A palavra, a sua tessitura que percorre o tear de um extremo ao outro: começa, acaba, recomeça, acaba, recomeça. O fio das nossas vidas que percorre o tear da palavra. Sophia de Mello Breyner Andresen, um dos maiores poetas portugueses da segunda metade do século vinte. Nascida no Porto em 1919, morreu em Lisboa em 2004. Autora de uma obra vastíssima, pertencia a uma antiga família aristocrática portuguesa com um ramo de ascendência dinamarquesa. Católica, paladina de um cristianismo originário, adversária do cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, bispo de Lisboa e grande amigo do ditador, opôs-se firmemente durante toda a vida ao fascismo português, a esse Salazar mesquinho e beato que com a polícia política conseguira impor a Portugal a sua mentalidade de feroz sacristão. Intransigente, orgulhosa, indiferente, impávida face às perseguições da ditadura, a voz de Sophia de Mello Breyner foi o fio da palavra que guiou Portugal durante a escuridão do labirinto salazarista.

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Conheci-a pessoalmente. Era amiga da mãe da minha mulher e mais tarde tornou-se também amiga da Maria José a quem tinha oferecido um manuscrito com dedicatória quando a Maria José era pequena. Era uma senhora muito bonita de olhar altivo. Tinha gestos elegantes como elegante é a sua poesia. Elegante no sentido em que a estética se transforma em rigor ético. Era inevitável que o seu pensamento se encontrasse com a antiga Grécia. «Apoderou-se de mim uma fúria de viajar. Mas acima de tudo queria voltar à Grécia, que foi para mim o deslumbramento inteiro e puro e onde me senti livre e com asas. A felicidade grega, felicidade do mundo objectivo, sem a menor mancha de caso pessoal, é qualquer coisa de inimaginável e da qual só o Homero dá uma ideia.» Numa outra carta do mesmo ano diz também: «De certa maneira encontrei na Grécia a minha própria poesia, "o primeiro dia inteiro e puro - banhando os horizontes de louvor", encontrei um mundo em que eu já não ousava acreditar. (...) O que eu sabia da Grécia adivinhei-o através de pedras, pinhas, resinas, água e luz. (...) Ali encontrei as coisas todas inteiras e presentes na sua unidade. Não estou a falar só de coisas, mas da ligação do homem com as coisas.» É uma carta que Sophia escreveu em 1964 ao amigo Jorge de Sena, poeta e romancista que com outros intelectuais portugueses colaboravam em O Tempo e o Modo, uma das mais importantes revistas portuguesas dos anos sessenta e setenta, de matriz católico-progressista e fortemente antifascista. Noutra carta do mesmo ano diz também: «Depois da Acrópole, São Pedro de Roma pareceu-me mundano e fútil e pesado. É uma religiosidade tão nua, tão funda, tão intensa, tão solene como eu nunca tinha encontrado.

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É uma atitude de ligação com o real que está presente em todas as coisas. Só em Ésquilo se pode encontrar um reflexo desse espírito que está presente, inteiramente presente, nas ruínas despedaçadas dos templos gregos.» Portugal é um país atlântico. Mas foi fundado pelos Gregos (a origem é fenícia, os vestígios arqueológicos são visíveis em Lisboa, cidade cuja etimologia está em Ulisses, «Ulissipona»), que aqui trouxeram a primeira civilização, vencendo os pastores autóctones, os Lusitanos, tão celebrados pela retórica salazarista. Mas Portugal tinha-se esquecido da Grécia. Demasiado forte e galvanizante foi a vocação dos oceanos para esse país entalado entre a poderosa Espanha e o Atlântico, para se recordar da bacia do Mediterrâneo de onde lhe tinha chegado a civilização. Assim Portugal enfrentou o Oceano hostil, sulcou as suas ondas, descobriu países, chegou ao Brasil com Pedro Alvares Cabral, circum-navegou a África, chegou até à Índia com Vasco da Gama. A sua literatura mais importante tem tons épicos e heróicos: assim são Os Lusíadas, tornados no poema nacional por excelência, embora Camões tenha também uma poesia lírica de tons petrartescos onde o sentido da fugacidade do tempo, do carácter ilusório do amor e das misérias da carne não é menos fascinante que o vigoroso verso do seu poema épico. Mas na história literária foi a aventura que se impôs. E com toda a justiça, porque magníficas são as aventuras que aqueles intrépidos navegantes enfrentaram, magníficas são as descrições dos escrivães de bordo que contavam ao rei a descoberta de terras virgens onde homens e mulheres andavam nus e enfeitados com plumas, magníficas são as peripécias de certos pobres pícaros quinhentistas perdidos nos países mais exóticos, a China, as Molucas, o Japão. Tudo demasiado vasto e demasiado longínquo para Portugal se lembrar da Grécia, lugar de exacta geometria, feito mais de ideias do que de conquistas, mais de perfeição acabada que de horizontes infinitos.

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Da Grécia lembrou-se Sophia de Mello Breyner. E na Grécia não só voltou a encontrar os mitos fundadores da nossa cultura, como reconheceu ali o «seu» Portugal: descobriu que o que acontecia no seu país já tinha acontecido na história da Grécia clássica e que a tragédia e o mito o tinham reflectido. Não é tanto aquela beleza branca e azul-pastel de calendário, definida pela vaga palavra «mediterraniedade» que muitas vezes se aplica como um cliché que Sophia encontrou na Grécia: Sophia reconheceu na Grécia clássica o seu próprio país, ganhou maior consciência, se é que lhe faltava, da tragédia que o seu povo estava a viver. A Grécia «ensinou-lhe» Portugal. É o Portugal de Creonte, porque Creonte era estúpido, pequeno e mesquinho como Salazar. Creonte, como Salazar, é «a banalidade do mal». E Delfos é o lugar onde o mundo será reconstruído partindo de um centro, aquele é o lugar que Zeus escolheu como umbigo do mundo, o omphalós onde as duas águias vindas de direcções opostas se encontram para desenhar a geometria da terra e da alma. «Caminhei para Delfos / Porque acreditei que o mundo era sagrado / E tinha um centro / Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado.» Quando fui a Delfos não pensava nos versos de Sophia. Mas naquela noite de Inverno, depois de me ter introduzido nos templos através da rede metálica que impedia o acesso nocturno, enquanto as solas dos meus sapatos ressoavam no empedrado vitrificado pelo frio, a poesia de Sophia veio-me à cabeça e compreendi que tinha ido a Delfos pelos mesmos motivos que ela. Como se o meu pensamento seguisse uma espiral, compreendi que Sophia tinha compreendido Portugal em Delfos, e compreendi que através dela eu compreendia melhor o seu Portugal, e a mim mesmo, que conhecia Portugal.

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E assim compreendi verdadeiramente Delfos que se me abria à frente como um abismo que parecia engolir-me: e a enorme massa escura das oliveiras no vale aos meus pés sobre cujas folhas brilhava fugaz a lua quando o vento as agitava pareceu-me o mar ignoto da vida que eu observava de uma rocha. O mesmo me aconteceu sob a ofuscante luz estival de Heraclion quando sentado numa coluna truncada do museu, pensando que a imagem do labirinto é o desenho do cérebro humano, vi uma laranja e pensei em Sophia. «Em Creta, onde o Minotauro reina / Banhei-me no mar // Há uma rápida dança que se dança em frente de um toiro / Na antiquíssima juventude do dia // (...) Em Creta / Os muros de tijolo da cidade minóica / São feitos de barro amassado com algas / E quando me virei para trás da minha sombra / Vi que era azul o sol que tocava o meu ombro / Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga / De olhos abertos inteiramente acordada / Sem drogas e sem filtro / Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas / Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto / Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.» A palavra. A única maneira possível de fugir do labirinto do nosso cérebro e que é o que de melhor o nosso cérebro possui: a palavra. Graças a Sophia tinha «compreendido» Cnossos. Dizem que as colunas do templo de Poseidon, de mármore avermelhado, são as mais belas da Grécia. Treze nos lados e seis na fachada, o esqueleto branco do animal sagrado recorta-se no alto sobre esporões de rocha contra o azul marinho. O velho Egeu atirou-se desta rocha, assim o afirma o mito, quando viu as naves do filho que regressavam com as velas negras: Teseu era um homem superficial, não teria morto o Minotauro sem o fio que Ariadne lhe deu, e por recompensa abandonou-a em Naxos; depois, sempre por leviandade, levou o pai ao suicídio.

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Cheguei a cabo Sunion sob a plena luz de uma tarde de Verão e um vento forte trazia um cheiro a maresia. Numa das colunas Byron gravou o seu nome; a «assinatura» só se consegue ver com os binóculos porque a coluna está rodeada por uma corda que a protege dos eventuais estragos dos visitantes. Sentei-me à sombra e em voz alta contei as colunas. Mentalmente voltava a pensar num poema de Sophia: «Na nudez da luz (cujo exterior é o interior) / Na nudez do vento (que a si próprio se rodeia) / Na nudez marinha (duplicada pelo sal) / Uma a uma são ditas as colunas de Sunion.» Quando fui à Grécia pela primeira vez, há muitos anos, compreendi imediatamente que nunca deixaria aquele país. Voltei lá todos os anos. Levava para a Grécia a «minha» Grécia, a que tinha estudado na universidade, a filosofia sobre a qual tinha moldado o meu pensamento, os mitos fundadores do Ocidente, as personagens da História, a ideia da perfeição de Fídias que a imagem do Cristo crucificado irremediavelmente rompeu, a ideia do trágico revisitada por Nietzsche, a Vénus numa concha de Botticelli, as «sagradas margens» de Foscolo. Se Sigmund Freud recolheu tudo isto para elaborar uma magnífica teoria científica que ainda nos alimenta, eu tinha necessidade de vê-la «aplicada» à geografia, de platónica torná-la aristotélica, para que assim pertencesse à minha experiência. Depois, pouco a pouco, a minha Grécia tornou-se a Grécia de Sophia de Mello Breyner. A «pedregosa Ítaca» a que Ulisses foscolianamente regressou, tinha-se sobreposto não só a Ítaca de Kavafis, mas a Ítaca de Sophia, com um Ulisses que já não é só um navegante que sulca as ondas, mas que sabe também sulcar os torrões da terra, e esta é a sua verdadeira grandeza.

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«A civilização em que estamos é tão errada que / Nela o pensamento se desligou da mão / Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco / E gabava-se também de saber conduzir / Num campo a direito o sulco do arado» (O rei de Ítaca). Com Sophia revisitei também as figuras da tragédia. Num poema seu encontrei um significado novo para o mito de Electra, «Porque o grito de Electra é a insónia das coisas / A lamentação arrancada ao interior dos sonhos dos remorsos e dos crimes / (...) / Para que a justiça dos deuses seja convocada» (Electra). São versos dedicados a Aspassia Papathanassiou, que não só foi a grande intérprete do teatro trágico grego, mas também uma mulher que desafiou o fascismo e dos palcos de toda a Grécia soube transformar as vozes de Esquilo e de Eurípides num apelo à democracia confiscada. Sophia de Mello Breyner encontrou pois na Grécia o seu Portugal; compreendeu que o que lhe era dado viver tinha já sido vivido, que o que parece moderno pode ser muito antigo; ela, que com a sua lucidíssima consciência tinha tomado consciência não só das condições políticas do seu país mas da nossa condição humana, na Grécia ganhou uma hiperconsciência, como se aquela luz ofuscante tivesse dado ao seu olhar uma voltagem superior que lhe permitisse atravessar a opacidade da matéria para atingir a arquitectura das coisas, o seu esqueleto. Como numa radiografia. Por tudo isto vou hoje à Grécia com Sophia. O meu Guide Bleu que me seguia sempre fica na escrivaninha, prefiro consultá-lo no regresso. Em viagem levo os poemas de Sophia: são leves, sei-os de cor. Depois, quando volto a casa, traduzo-os para a minha língua.

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Um palco móvel que dá a volta ao mundo Em recordação de Torgeir Wethal, da sua arte, da sua alegria

Estamos na ponte de Brooklyn e o ano é 1984. Elevada sobre andas altíssimas, a Morte chegou diante de Nova Iorque. Os braços levantados, uma batuta na mão como um director de orquestra, esta Morte com o seu fraque e o lacinho de borboleta quer dizer qualquer coisa. É uma sedução ou uma ameaça? É uma partida ou um retorno? Por trás da caveira de madeira, debaixo do fraque gigantesco, está uma actriz. Chama-se Júlia Varley, a «cena» que estamos a ver faz parte de um espectáculo do Odin Teatret intitulado Anabasis. Mas será um retorno ou uma partida? Agora, em contrapartida, estamos em 1988, a Morte saiu de um espectáculo para entrar noutro que se chama Rum i kejserens palads, que em dinamarquês significa «Quartos do palácio do imperador». Mudou o espectáculo e mudou o país, mas ela continua a ser a mesma. Está a exibir-se em Santiago do Chile, em frente do Palácio de la Moneda, e os polícias com capacetes e viseiras de plexiglás agridem-na com os cassetetes, porque não a querem diante daquele palácio. Estranho. Poucos anos antes, estes mesmos polícias, comandados pelo general Pinochet, assaltaram este mesmo palácio e assassinaram o presidente legítimo. Encheram os estádios de pessoas, torturaram-nas e massacraramnas.

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Trouxeram a morte, mas não toleram a sua imagem diante do palácio que usurparam. A imagem da Morte perturba-os mais do que a morte. Quem sabe se o papa Wojtyla, quando foi a Santiago, enquanto da varanda saudava a cidade com o general Pinochet, se daria conta de que esta sinistra personagem era precisamente o seu anfitrião. Viramos a página e encontramos... É difícil dizer o que encontramos. Parece um desfile, mas não é um desfile. Também não é uma procissão. É uma espécie de cortejo que faz lembrar os comediantes de O thiasos de Angelopoulos, quando percorreram a dançar uma estrada de montanha da Grécia. Há quem esteja vestido de índio dos Andes, outro de escandinavo, e depois há um tocador de tambor, e uma grande máscara com os saiotes e os folhos e as meias às riscas, e a Morte vem no fim de todos, porque vão em fila indiana, só que a actriz Roberta Carreri, vestida de cómico do cinema mudo, troça dela e puxa-lhe as abas do fraque. Estão em viagem, e eu sigo-os com um livro cheio de fotografias (Tony D'Urso e Eugénio Barba, Viaggi con / Voyages with Odin Teatret). À cabeça segue Torgeir Wethal. Mas é uma anabasis ou uma catabasis? Tanto faz: viaja-se. Neste caso através dos Andes peruanos, numa aldeia que se chama Uampani. No Peru vigora a lei marcial. É proibido dar espectáculos, porque as autoridades daquele país, que são bastante autoritárias, sabem que os espectáculos atraem a multidão, e eles não gostam de multidões, receiam que possam causar distúrbios. Por isso os actores, que não podem atrair a multidão, utilizam uma estratégia que já muitas vezes puseram em prática nas suas viagens através do mundo. Usaram-na por exemplo em Carpignano Salentino, na zona de Ollolai, na Sardenha e nos sítios mais remotos, até na Amazónia, com uma tribo yanomani, por toda a parte. É uma técnica, mas é também uma forma de espectáculo. E, de facto, um dos seus espectáculos tem como título o que nesse mesmo espectáculo se faz.

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Chama-se Trocas. Uma troca é uma coisa muito antiga, usava-se na noite dos tempos, quando os homens ainda não tinham inventado o dinheiro. Eu sou um pastor, e dou-te essa coisa que se chama queijo. Eu pelo meu lado sou um pescador, e dou-te essa coisa que se chama peixe. Isto é uma troca. Aquele pastor e aquele pescador que, sem falar, intercambiavam esta mensagem com a sua troca, não precisavam de palavras. Entendiam-se perfeitamente através de gestos ou com o olhar ou a expressão do rosto. Em suma, com o corpo. É isso é o que faz o Odin Teatret, nas suas Trocas. Dizem os actores do Odin: vimos de um lugar chamado Holstebro, fica num país que se chama Dinamarca, que fica num continente que se chama Europa, agora vamos fazer-te ver ou ouvir uma coisa, o que sabemos fazer, agora ponho esta máscara, foi feita por um escultor que se chama Klaus Tams; e entretanto Roberta Carreri ou Torgeir Wethal ou outros recitam, ou então Iben Nagel Rasmussen ou Tom Fjordefalk, ou Tage Larsen ou Jan Fersley ou algum outro tocam ou dançam. Isto é o que nós sabemos fazer, agora ensina-nos o que tu sabes fazer, queremos aprender contigo. O cabelo loiro e comprido de Tage Larsen cai-lhe sobre os ombros, pára de tocar o violino. Sobre a clareira da floresta amazónica está a cair o crepúsculo. Os Yanomani começam a dançar em círculo, batem nos tambores feitos de juncos e carapaças de tartarugas, e um caçador yanomani acocora-se e olhando as árvores emite sons que imitam os pássaros da floresta, diz a legenda da fotografia. É a sua música. O Odin fez uma troca. Agora estamos em Lima, e Roberta Carreri está vestida com a cartola e os suspensórios sobre a camisa branca. Passa uma jovem crioula com um chapéu de palha e uma saia com flores coloridas.

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Roberta dança como dançam os palhaços do circo. E a rapariga crioula levanta graciosamente com a mão esquerda uma ponta da saia e começa uma dança que os seus avós escravos dançavam nas plantações, não há muito tempo. É mais uma troca. «Pode-se pensar o teatro em termos de tradições étnicas, nacionais, de grupo ou inclusivamente individuais», escreve Eugénio Barba, «mas se procuramos com isso compreender a própria identidade, é essencial também a atitude contrária e complementar: pensar o próprio teatro numa dimensão intercultural, no fluxo de uma «tradição das tradições». O Odin nasce da ideia da antropologia cultural, e vai mais além, multiplicando-a. Eh, selvagem, deixa-me olhar para ti, queres ver o selvagem que eu sou? «Imaginem duas tribos que são muito diferentes e que se encontram em margens opostas de um rio: cada tribo pode viver sozinha, pode falar da outra tribo, tanto para dizer mal dela como para elogiá-la. Mas de todas as vezes que alguém rema de uma margem à outra troca qualquer coisa. Ninguém passa o rio para fazer pesquisa etnográfica, para ver como os outros vivem, mas para dar qualquer coisa e receber qualquer coisa em troca. Continua a ser Eugénio Barba a falar. A que tribo pertences?, escreveu Moravia. Mas o Odin sabe bem que as trocas não são fáceis. Conta Eugénio Barba que uma vez, na região sarda de Barbagia, fizeram uma «troca» de teatro, depois as pessoas convidaram-nos para a velha escola da terra e prepararam uma festa, os pastores trouxeram queijo, toucinho, salsichas e pão ázimo. E havia um homem, um acordeonista, que tinha posto a região inteira a dançar, e cortava o toucinho e oferecia-o a todos, era a imagem da generosidade. «E a certa altura entrou um cão vadio. E o homem o acordeonista - enquanto cortava e oferecia toucinho às crianças todo sorridente, levantou o pé debaixo da mesa e com a bota, de repente, com precisão, deu um pontapé ao cão.

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Desatei a rir: não pude evitá-lo, sob o olhar de ódio dos meus companheiros. Não sei porque me ri. Pensando nisso, era como um riso de felicidade: ver o homem na sua totalidade, a maneira como somos feitos, prontos a oferecer tudo e ao mesmo tempo esta crueldade insensata. Estamos perante o desconhecido.» A crueldade do homem. E do mundo. De outro modo seria demasiado fácil: tu dás-me uma coisa a mim, eu dou-te uma a ti, viva a festa da amizade. Mas o mundo não é uma dança de roda. Nem sequer um clube de «Étonnants Voyageurs». É tão cruel a cena em que Otelo estrangula Desdémona, e como a representa bem aquele grande actor inglês num palco de Nova Iorque!, informa-nos o entusiasta chroniqueur enviado por um jornal italiano. O público debulha-se em lágrimas, porque Shakespeare é insuperável na crueldade. Mas as favelas do Rio não diferem na crueldade. Tal como Ayacucho, no Peru, e a sua colónia penal. E a tribo da Amazónia, e a crueldade da natureza luxuriante (como se percebe em Tristes Trópicos). Que é como quem diz: o vasto mundo. Será então o Grande Teatro do Mundo? E o que se representa neste palco? Foi essa a ideia que o Odin teve quando começou: «Uma luta contra o outro que nasceu em nós.» É impossível enumerar os lugares do globo onde o Odin levou a sua luta contra o Outro que nasceu em nós: da Europa à Austrália, do Pólo aos Trópicos. Em todo o lado. E todo o lado não é um lugar. Tinha-me proposto falar do lugar de residência, a sede do Odin Teatret, ou seja, Holstebro, na Dinamarca. Mas é demasiado limitativo, posso fazê-lo numa nota final. Qual é o verdadeiro lugar do Odin, qual é o espaço de um teatro (ou de um actor)?

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Julgo lembrar-me que Heidegger disse que o vazio não é uma carência, mas o lugar em que se fundam os lugares, e que criar o espaço traz liberdade, a abertura para que os homens se estabeleçam e o habitem (cito-o de maneira aproximativa, e julgo que o diz num ensaio intitulado A Arte e o Espaço). Mas é um lugar afastado de certos lugares pretensamente fantásticos muito ao gosto dos epígonos de Borges. E naquele espaço estes actores recriam o mundo e reinventam-no. Como toda a arte. Que nos olha e que nós olhamos. É um olhar cruzado. Falar deste espaço significa pois falar deles, dos actores do Odin. Basta nomeá-los. Com Eugénio Barba estão Kai Bredholt, Roberta Carreri, Jan Fersley, Else Maria Laukvik, Tina Nielsen, Iben Nagel Rasmussen, Isabel Ubeda, Júlia Varley, Torgeir Wethal, Frans Winther. Sem contar os colaboradores e os actores que ali trabalharam antes. O seu modo de construir um «lugar» é semelhante ao do poema de Gianni Rodari cantado por Sérgio Endrigo. «Para fazer uma mesa é preciso madeira, / para fazer a madeira é preciso a árvore / para fazer a árvore é preciso a semente /para fazer a semente é preciso o fruto / para fazer o fruto é preciso uma flor...» (1997-2010) O Teatro de Odin, ou antes, o Odin Teatret, nasce na Dinamarca em 1964, pela vontade e a paixão de Eugénio Barba, um jovem de Gallipoli (Apúlia) profundamente contagiado pela doença do teatro por outro mestre da cena alternativa, o polaco Jerzy Grotowski. Mas entre os seus inspiradores contam-se também Artaud e Stanislavskij, Mejerchol'd e Eisenstein. Inquieto e vagabundo como as suas ideias, em 1966 Barba e o seu grupo deitam raízes em Holstebro. E aí, todos juntos, criam o «método», que é substancialmente o da improvisação.

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Escolhido um tema, os actores tentam vivê-lo improvisando várias situações, minuciosamente, obsessivamente, durante horas e horas. Em seguida, através de uma viva discussão colectiva, escolhe-se as que parecem melhores e constroem-se pouco a pouco as diferentes cenas. O que conta e está em primeiro plano não é a palavra mas o corpo, que se alimenta de elementos físicos e religiosos do teatro oriental, da Commedia dell’arte, do circo, do teatro dos mimos. Holstebro é uma pequena cidade da Jutlândia, na parte setentrional da Dinamarca, onde o governo dinamarquês alberga artistas, escolas e laboratórios teatrais. A Jutlândia (entre o mar do Norte, Skagerrak, Kattegat e o Pequeno Belt) tem uma superfície de cerca de 30 000 quilómetros quadrados e 2 milhões de habitantes. Arhus, a segunda cidade da Dinamarca, cumpre as funções de capital regional da Jutlândia. Outra cidade importante é Alborg, centro industrial e portuário, na extremidade setentrional da Jutlândia, enquanto o principal porto de pesca da região é Esbjerg, no mar do Norte. Holstebro (40 000 habitantes) é atravessada pelo rio Stora e orgulha-se de ser um importante centro cultural. Ali reside há muitos anos o Odin Teatret e ali prepara os seus espectáculos antes de os levar à volta do mundo. Junto com a cidadezinha dinamarquesa é oportuno lembrar o teatro de Pontedera (Pisa), onde o Odin realiza frequentemente os seus laboratórios e seminários.

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A geografia imaginária de Gregor von Rezzori

Li sempre com admirado assombro os escritores que inventaram um mundo paralelo, um condado imaginário próprio que coincide com o real e que, sendo idêntico ao real mas não sendo o real, é em relação a ele outro e diverso: é aquele mas sem o ser. Refiro-me sobretudo a William Faulkner e ao seu condado de Yoknapatawpha, a Musil e à sua Cacânia, a Garcia Marquez e à sua Macondo, a Gregor von Rezzori e à sua Magrebínia, o espaço geográfico em que se movem as suas Histórias de Magrebínia, o livro que em 1953 o tornou conhecido. Aceita-se convencionalmente que a Yoknapatawpha de Faulkner seja o Mississipi, que a Cacânia de Musil seja a Áustria pré-nazi, a Macondo de Garcia Marquez a Colômbia caribenha e a Magrebínia de Rezzori o império austro-húngaro em dissolução. Mas não é assim tão simples. Trata-se do problema análogo posto pela personagem literária modelada sobre a pessoa real. E a este propósito vemme à cabeça uma inigualável reflexão que sobre este tema fez Carlo Emilio Gadda muito antes que as disciplinas narratológicas elaborassem a formulação da chamada «autonomia da personagem»: «... Eu cultivo com a fantasia uma certa senhora X, uma personagem "minha": cultivo-a ao ponto de sonhar com ela de noite: acordo em sobressalto, levanto-me da cama em estado de transe, sento-me à mesa, escrevo: depois de meses e meses retomo aquela folha, reescrevo, risco, apago, reescrevo, copio-a quarenta vezes: dou-a ao editor.

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A senhora X veio ao mundo. Acontece que em Brembate ou em Garbagnate há realmente uma senhora que é tal e qual a senhora X. Trata-se, como qualquer um percebe, de um incidente combinatório, que cai sob a alçada do princípio de indeterminação absoluta ou princípio de Heisenberg. Como quando a dois jogadores, que jogam aos dados, lhes calha a ambos um cinco e um três. Eu no meu cérebro, na minha psique criei: amadureci lentamente a senhora X ao mesmo tempo que com idêntica ponderação o Padre Eterno, em Garbagnate, amadureceu por sua conta uma outra senhora, as quais, no entanto, se parecem como duas gotas de água.» Penso que «a autonomia do lugar», em vez da autonomia da personagem, quando se torna alteridade em literatura, é uma questão que tem mais que ver com a História do que com a geografia. No sentido de que estes escritores mantêm uma relação especial com essa dimensão a que costumamos chamar História. Explico-me. A metáfora é um estratagema que permite evadir-nos do objecto de que estamos a falar. A metáfora, por outras palavras, vive num plano diferente do real. Mas se a metáfora que usamos coincide com o real, esta ganha um duplo poder. Precisamente porque cria um duplo idêntico a si próprio. Em suma, o condado de Yoknapatawpha não é o Mississipi, mas a metáfora do Mississipi. Só que esta metáfora coincide com o Mississipi, isto é, com o objecto metaforizado. Do mesmo modo, a Magrebínia de Rezzori não é a finis Austriae, não é o império austro-húngaro em dissolução, mas a metáfora do império austrohúngaro em dissolução. Só que coincide com ele. Os escritores a que me refiro tecem a sua memória literária sobre este duplo tear.

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No sentido em que trabalham não sobre a memória histórica, não se limitam a afrontar a História, mas sobem a fasquia: «tratam» a metáfora da História. E desse modo instauram uma relação diferente com a dimensão-Tempo. Isto enriquece-os com uma valência que o simples plano do real ou do evento histórico não possui, e permite-lhes uma mais plena harmonia com os atributos poliédricos que os Antigos atribuíam a Clio, a musa da História mas também escrava da Memória e do Tempo. Isto constrói a dimensão do Epos. Que obviamente não depende da quantidade da escrita, mas da qualidade dos ingredientes, porque um texto, para ser épico, não precisa do tamanho de um poema homérico: pode ficar perfeitamente contido num conto de poucas páginas. Nesta tridimensionalidade, se assim posso dizer, a memória perdura, ganhando uma duração que desafia o evento e a sua efémera contingência: fixa-o numa temporalidade que vai mais além do aqui e agora, do ali e do então. Eterniza-o no exemplum. Desta memória exemplar se alimentam muitos outros romances de Rezzori, os mais célebres, como Um Arminho em Chernopol e as Memórias de um Anti-semita, mas na realidade toda a sua obra. E é uma memória exemplar porque afastando-se do acontecimento particular torna-se universal e fala da condição humana, nas suas circunstâncias afortunadas ou desventuradas. Há outros aspectos da obra de Rezzori de que gostaria de falar, mas prefiro deixar espaço a exegetas mais autorizados do que eu, que não sou mais que um simples leitor. Queria só acrescentar que o que mais gosto dele é da sua mediterraneidade (porque não nascemos mediterrânicos, tornamo-nos), que é um modo de viver a vida e de a amar. Porque só quem compreende a morte pode também amar a vida na sua plenitude dos sentidos e na sua carnalidade mais feroz. E para acabar gostaria de fazer-lhe uma homenagem, porque quando falamos de um escritor que acolhemos na nossa bagagem é nosso dever oferecer-lhe pelo menos uma xenia (uma «cortesia para com os hóspedes»).

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Remeto-lhe uns versos tomados de empréstimo a um grande poeta brasileiro da geração de Rezzori, Murilo Mendes, que os escreveu inspirando-se no epitáfio de Stendhal:

«Amò prima di tutto la libertà / la donna / il dialogo / la musica / le galassie / la pietra ovale / il teatro fuori dal teatro (...)/ Il suo cervello fu rivoluzionario / la sua fisiologia conservatrice. /(...)/ Fece la guerriglia contro se stesso / capì l’irrealtà della realtà.» (Nota 1)

Nota 1 - Escrito em italiano por Murilo Mendes. «Amou acima de tudo a liberdade / a mulher / o diálogo / a música / as galáxias / a pedra oval / o teatro fora do teatro / (...) / O seu cérebro foi revolucionário / a sua fisiologia conservadora / (...) Fez a guerrilha contra si mesmo / compreendeu a irrealidade da realidade.»

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Com Borges nas ruas de Buenos Aires

«Fomos o imagismo, o cubismo, / as capelinhas e seitas / que as crédulas universidades veneram. / Inventámos a falta de pontuação, / a omissão de maiúsculas / as estrofes em forma de pomba, / dos bibliotecários de Alexandria. / Cinza, o trabalho das nossas mãos / e um fogo ardente a nossa fé.»

Com estes versos, a muitos anos de distância daquele fogo, evocou Borges a experiência das vanguardas dos princípios do século vinte e em particular a do Ultraísmo argentino que o viu esquivo e controverso participante daquela aventura com os poemas de Fervor de Buenos Aires, de 1923. Gostaria de evocar a maneira como o livro surgiu. O próprio Borges vem em nosso auxílio no seu Esboço de Autobiografia: «O livro foi impresso em cinco dias, à pressa, porque se tomava necessário fazer uma nova viagem à Europa... foi publicado com muita desenvoltura. Não tinha índice e as páginas não estavam numeradas. A minha irmã fez uma xilogravura para a capa e imprimiram-se trezentos exemplares. Naquele tempo publicar um livro era uma espécie de aventura privada. Não me passou sequer pela cabeça mandar exemplares aos livreiros ou aos críticos. Ofereci a maior parte. Lembro-me de um dos meus métodos de distribuição. Tendo reparado que muitos dos que iam aos escritórios da Nosotros (uma das mais antigas e mais sérias revistas literárias da época) deixavam os capotes pendurados no cabide da antecâmara, levei cinquenta ou cem exemplares a Alfredo Bianchi, um dos redactores.

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Bianchi olhou para mim, estupefacto, e disse: que eu venda estes livros, pois não? Não, estúpido a esse ponto, pensava pedir-te o alguns nos bolsos daqueles capotes. Ele assim

Não estás à espera respondi, não sou favor de enfiares fez.»

Pensar que em 1923 Borges enfiava aquele livro nos bolsos dos capotes dos literatos argentinos, aquele Fervor de Buenos Aires que se tornou mítico, quase faz sorrir. Mas talvez distribuir os livros pelos capotes fosse também um gesto «ultraísta», de um vanguardista tímido, introvertido e contraditório. Era um gesto de vanguarda ao estilo de Borges. E é de nos perguntarmos se com efeito Fervor de Buenos Aires é realmente um livro de vanguarda. A metrópole das luzes e das máquinas que os ultraístas, como os nossos futuristas italianos, tanto amaram, em Borges está ausente ou antes vivida em negativo. Borges, já doente de metafísica, canta as madrugadas e as noites, a música de Buenos Aires, praças dechirichianas onde o tempo parece ausente. Buenos Aires é já, pelo contrário, uma cidade símbolo, uma cidade metáfora. Uma daquelas cidades que como símbolo e metáfora entraram na literatura do século vinte. E de resto em 1925, só dois anos depois da controversa experiência ultraísta, Borges escreverá com uma lucidez quase cruel: «Constatei que, sem o querer, tínhamos caído noutro género de retórica, tão presa como as outras ao prestígio verbal. Compreendi que a nossa poesia, cujo voo julgávamos livre e desenvolto, se pôs a traçar uma figura geométrica no ar do tempo. Bela e triste surpresa sentir que o nosso gesto de então, tão espontâneo e livre, não era senão o começo de uma liturgia.» Uma outra liturgia pessoal devia traçar, daí em diante, Jorge Luis Borges: a liturgia dos seus Aleph, do «seu» Schopenhauer, do labirinto do cosmos.

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Mas entretanto, daquele mítico livrinho que foi Fervor de Buenos Aires, que Borges nos anos que se seguiriam massacrou com infinitas variantes, resta a beleza imóvel e onírica de uma cidade metafísica surpreendida no seu mistério. E aqui recordo um dos mais comoventes poemas que naquele livro Borges dedicou à sua cidade: «As ruas de Buenos Aires / são já as minhas entranhas. / Não as ávidas ruas, / incómodas de turba e de azáfama / mas as ruas indolentes do bairro, / quase invisíveis de tão habituais, / enternecidas de penumbra e de ocaso...»

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A omeleta e o Nada

A minha amiga Dora envia-me um bilhete-postal de Praga. Dora é uma empreendedora jornalista freelance e teve a ideia original de escrever uma série de reportagens para propor a um importante jornal diário intituladas Os lugares da literatura. Por isso, há já algum tempo que se junta a delegações de escritores que vão de excursão às várias capitais europeias para debater temas difíceis, como por exemplo «O futuro do romance europeu». Um chroniqueur cáustico, que na coluna que mantém há anos fustiga o nosso desolador (na sua opinião) ambiente literário, escreve que já não se pode com os intelectuais que todo o santo dia, mesmo à hora da sesta, debatem o papel do intelectual. Como não dar razão a um intelectual que abre um debate ao quadrado sobre o papel e que levantou a questão em Buenos Aires, a expensas do contribuinte? Mas o que mais abunda são os intelectuais que periodicamente participam em debates sobre o futuro do romance, preocupados que um dia destes alguém o faça desaparecer debaixo do seu nariz. As iniciativas e as delegações são múltiplas: eu sei lá, o Prémio Conde de Monte Cristo organiza uma mesa-redonda sobre o futuro do romance de aventuras; o Prémio Barrica de Ouro, uma sobre o papel do vinho no romance no tempo do conde Camillo Benso di Cavour (enologia e literatura); o Clube Amigos dos Bovinos, uma magnífica discussão nas cataratas do Niágara sobre o cerimonial da morte e da fiesta em Hemingway.

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E a minha amiga Dora não deixa escapar nenhuma. Ela viaja à sua custa, porque é uma rapariga entusiasta, enquanto as delegações viajam à custa dos municípios, do Estado ou de qualquer outra instituição pública, e pergunto-me quantos serão objecto de investigação judicial. Mas a minha amiga Dora não corre esse risco: viaja com as suas próprias poupanças e conhece os incómodos dos albergues de juventude, do fast food, dos comboios regionais e dos voos charter. Em compensação, não se preocupa com o futuro do romance e por isso pode permitir-se viagens bastante «desportivas». Há tempos esteve em Buenos Aires seguindo uma delegação cultural que sentia a necessidade de sensibilizar os Argentinos sobre o futuro do romance que se escreve no idioma que pertenceu noutros tempos aos seus antepassados emigrantes, e mandou-me um artigo entusiástico (ainda não publicado) sobre o «significado» dessa cidade. Porque Dora tinha descoberto que Buenos Aires é uma cidade «labiríntica». Apanhou um eléctrico, atravessou o bairro de Palermo, encontrou-se por acaso em Belgrano, e no reflexo de uma montra entreviu a sua imagem que «lhe devolvia o seu duplo». E acabou por se perder. O artigo de Dora termina com uma citação de um poema de Borges, dedicado a Buenos Aires («Te sentia en los pátios / del Sur y en la cresciente / sombra que dedibuja lentamente...», Sentia-te nos pátios do Sul, e na crescente sombra que lentamente apaga...), a quem ela define como «o grande intérprete da cidade labiríntica». Praga, segundo Dora acaba de descobrir, talvez depois de ter lido Angelo Maria Ripellino, é em contrapartida uma cidade «mágica». E o artigo que me manda (ainda não publicado) fala da magia do velho bairro de Mala Strana, do Cemitério Judaico, das pontes barrocas e de um lugar «genial» (a definição é de Dora), a meio caminho entre uma cervejaria e um café literário, do qual me junta uma base para copos de papel onde aparece impresso o perfil de Kafka ameaçado por um garfo «divino».

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Não vou falar, para poupar tempo, do colóquio que levou Dora a viajar até Paris, onde descobriu um celebérrimo café, tornado célebre por um celebérrimo filósofo, onde o preço de uma omelette au jambon ronda hoje os cinquenta euros. O artigo de Dora intitula-se «A omelette e o Nada». E isso sim, parece-me «genial». Que sonhos evocarão estes artigos para quem, como eu, nunca esteve em Buenos Aires, desconhece as omelettes metafísicas e se esteve em Praga foi em tempos longínquos, quando nas ruas ainda havia soldados russos e ao entrar na chamada Livraria Internacional da praça Venceslau, desprovida de quaisquer livros que não fossem as «obras» do camarada Brejnev, e perguntando ao director por um livro de Kafka, o ouviu responder-lhe num francês perfeito: «Kafka? Connais pas, monsieur.» Mas hoje Dora faz-me saber que na Primavera uma delegação irá a Lisboa, cidade de Pessoa e da saudade. E suspeitando de que eu percebo alguma coisa de lugares nostálgicos e pessoanos, conta ardentemente com a minha presença. Que fazer para escapar a tão fatal encontro? Talvez recorra obliquamente a uma mentira cibernética. Querida Dora, escrevo-lhe, nessa altura estarei provavelmente em Portugal. Mas não em Lisboa, num lugar remoto da província profunda. Mas hoje até nas províncias profundas existem cibercafés, e graças à Internet poderei navegar consigo e com os outros no site www.lugaresliterarios.chic. Navegaremos juntos sobre as asas da saudade, de acordo?

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A síndrome de Stendhal

Parece que uma nova doença, nobre e elegante, percorre o chamado Bel Paese, fazendo vítimas sobretudo durante o Verão e atacando de preferência os viajantes com débeis anticorpos culturalemotivos que escolheram a Itália como destino das suas férias. A «doença» foi identificada por uma psiquiatra florentina, Graziella Magherini, que registou a sintomatologia no hospital Santa Maria Nuova de Florença e que, baseando-se nas suas próprias experiências terapêuticas, publicou um livro na editora Ponte alle Grazie: A Síndrome de Stendhal. Explicar em poucas palavras em que consiste tal síndrome não é fácil. Numa primeira aproximação, poderíamos dizer que se trata de uma perturbação que apresenta sintomatologias diversas segundo os doentes e que afecta o viajante em cidades com um grande património artístico: um «conflito» de natureza estética que pode provocar estranhas perturbações e que muitas vezes obriga à hospitalização das infortunadas vítimas. No hospital de Santa Maria Nuova de Florença, no serviço que dirige, a professora Magherini tratou muitos doentes com esses sintomas, ou pelo menos o número suficiente para os catalogar, classificar e analisar numa série de casos que formam a parte central do livro: casos clínicos que são histórias de viajantes de todas as partes do mundo que precisamente em Florença «perdem a cabeça» e acabam nas urgências do serviço psiquiátrico.

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O que tem Stendhal que ver com estas moléstias psíquicas? Parece que Stendhal é o exemplo mais ilustre de um perfil análogo, razão por que foi escolhido como paradigma. Com efeito, o escritor francês, no seu diário de viagem em Itália, anotou uma perturbação que o acometeu precisamente em Florença, durante uma visita a Santa Croce. Estamos em 1817. Stendhal, que atravessou os Apeninos vindo de Bolonha, entra em Florença pela porta de San Gallo e dirige-se em primeiro lugar a Santa Croce. Entre os montes, de noite, a carruagem em que viajava tinha sido assaltada por um grupo de bandoleiros, provavelmente de pouco excelso nível estético. Diante de Santa Croce, o seu coração começou a palpitar loucamente. Começa a sentir uma forte emoção pela atmosfera de intensa religiosidade da igreja, da fachada, das tumbas de tantos homens ilustres. Depois pede a um frade que o acompanhe à capela Niccolini e fica a contemplar as Sibilas de Volterrano. E é nesse momento que aflora o mal-estar. «Absorto na contemplação da beleza sublime, via-a de perto, quase a tocava por assim dizer. Tinha atingido aquele grau de emoção onde convergem as emoções celestiais da arte e os sentimentos mais apaixonados. Ao sair de Santa Croce, o coração palpitava-me com força: senti fortes pulsações no coração, aquilo que Berlino define por "nervos", sentia a vida abandonar-me, caminhava com receio de cair.» Mas o «turista» Stendhal sabe como intervir no mal-estar que o assaltou, a sua cultura proporciona-lhe um antídoto para se poder curar: «Sentei-me num dos bancos da praça de Santa Croce; reli com deleite os versos de Foscolo que trazia na carteira sem ter em conta certas imperfeições: precisava de um amigo com quem partilhar as minhas emoções.» Stendhal traz consigo aqueles versos dos Sepulcros nos quais Foscolo canta os monumentos dos italianos ilustres: e precisamente nesse momento em que o forte mal-estar o ataca, procura um sinal tranquilizador (um amigo) em que se possa reflectir para partilhar a emoção, para a conter e para a exprimir linguisticamente.

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Em contrapartida, muito menos protegido perante o conflito estético está hoje em dia o turista normal que deambula pelas capitais da arte. Como observa Graziella Magherini, «o turista moderno deixou de ser o visitante com sólidos princípios de erudição e de doutrina; o turista é o símbolo de uma identificação precária, de uma frágil aproximação ao valor da arte. Fragilidade que remete para o seu mundo interior, não para o seu mundo exterior, em certos casos mesmo excessivamente garantido o organizado. Desta forma, mesmo numa tipologia de viagem em que tudo está previsto e preestabelecido, em que não há lugar para o risco ou a aventura, permanece a possibilidade de uma aventura interior por vezes sob a forma de uma crise, de um desequilíbrio, de uma perda momentânea do sentido da própria identidade». Tomemos por exemplo a história de Kamil, um jovem pintor de Praga que chegou a Itália à boleia (mas com um smoking na mochila), que perdeu os sentidos à saída da capela Brancacci, perturbado pela energia que se desprende de Masaccio. Ao sair da capela sente, cito-o, «a impressão de me dissolver, de sair de mim próprio como um líquido que se derrama e se perde. Caí no chão, sentindo-me como se estivesse a morrer. Então disse a mim próprio que tinha de fazer qualquer coisa para me conter lá dentro, para me agarrar a alguma coisa como quando nos estamos a afogar. A única coisa que era capaz de ver, de imaginar, era a cama da minha casa de Praga».

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E depois há a história de Sally, uma jovem americana da boa burguesia de Nova Iorque, tomada pelo mal-estar num quarto de hotel que dava para o rio Arno (quarto com vista); a história de Franz, o senhor bávaro de meia-idade vítima de um desfalecimento diante do Baco adolescente de Caravaggio, que talvez tenha descoberto contra a sua vontade uma sempre reprimida pulsão homossexual; a história de Isabelle, uma jovem francesa professora de educação artística, que entrou em estado de depressão fóbica perante a beleza dos Uffizi e se vê arrebatada por um repentino impulso de rasgar alguns quadros. Entre muitas outras, a história de Isabelle parece-me a mais emblemática deste livro, que não é um tratado de psicanálise do turista mas antes, acima de tudo, um ensaio sobre o «conflito estético». Um livro sobre o Belo, nesse caso? De certo modo é também um livro sobre o Belo. Basta ler os capítulos finais, «Viagem e visão da arte em Sigmund Freud» e «As férias da mente», onde uma análise do «perturbador» nos conduz às regiões remotas nas quais a arte provoca em nós conflitos e perturbações. Mas é também (ou sobretudo) um livro sobre a viagem: ou melhor, um livro acerca da viagem para a arte, tal como se foi configurando no decurso dos séculos até alcançar a modalidade do turismo actual. Porque sem a viagem, quer dizer, sem a estranheza, o mal-estar artístico não se produz. E é realmente um mal-estar de antigas raízes que Graziella Magherini documenta desde o Magister Gregorius, um viajante do século doze. Somos seres antigos, mas somos também seres frágeis, e tal como estamos expostos à fealdade, estamos também expostos à beleza. Perturbamo-nos e ao mesmo tempo alegramo-nos. Todos os dias somos perseguidos pela fealdade do mundo, é-nos familiar no ecrã do televisor e habituámo-nos a ela. Em contrapartida, a beleza pode fazer-nos adoecer.

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A síndrome oposta

Se o «conflito estético» pode provocar um certo tipo de malestar, o conflito religioso provoca seguramente um ainda maior. Não me refiro às guerras, que há séculos são alimentadas em parte por este conflito; falo de perturbação individual, de desassossego, até de uma alteração física como a alteração das pulsações cardíacas (condição que, como refere Stendhal, na sua época os médicos definiam como «nervos»). Encontrando-me em Israel e visitando a Cidade Santa por excelência, serviu-me de guia «um livro iluminador» (a definição é de Philip Roth) escrito por Amos Elon, um intelectual israelita que viveu muito tempo em Jerusalém: Jerusalém. City of Mirrors. Nos capítulos «Holy City» e «Cruel City» faz-se referência aos visitantes que sentiram mal-estar e perturbação («o chamado síndrome de Jerusalém») ao visitar a cidade. Por exemplo, um peregrino dominicano do século quinze, Félix Fabi, observa que se a concepção de um deus único (o monoteísmo) une as diferentes religiões de Jerusalém, a prática dessas religiões no fundo as separa muito mais.

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O bom peregrino faz uma lista longuíssima das fés ali praticadas, e de todas as gamas do judaísmo, do islamismo e do cristianismo: gregos, sírios, arménios, nestorianos, gregorianos, maronitas, beduínos, turcomanos, mamelucos e, podemos acrescentar nós, coptas (etíopes e egípcios), jacobitas sírios, gregos ortodoxos (que são Igrejas nacionais, a cada uma das quais corresponde um período de tempo durante o dia, com as suas respectivas liturgias nos seus respectivos lugares santos), que todos os dias em Jerusalém se sucedem com uma cerradíssima agenda horária para honrar e guardar a memória do mesmo Deus. Deus, que em princípio seria o mesmo, mas de quem cada um se sente na realidade o «verdadeiro» intérprete. É plausível que no visitante laico, até então serenamente ateu, comece a surgir a angustiosa dúvida de que podem existir três deuses diferentes que não se suportam, velhos lunáticos e conflituosos que nunca nos deixarão em paz por causa do seu mau carácter. A tensão palpável que tudo isto transmite impressionou negativamente muitos visitantes, de Flaubert a Selma Lagerlöf, de Koestler até aos nossos dias. Jerusalém é a memória, dissese. É possível que assim seja, ainda que segundo a recente e escorregadia definição de Yehuda Amichai (sem dúvida um magnífico Witz freudiano) seja antes «a cidade onde todos se recordam de ter esquecido alguma coisa». A concentração num espaço tão restrito de tantas convicções diferentes faz pensar nas numerosas viúvas de um mesmo defunto que vivem na mesma casa, cada uma delas convencida de ser a autêntica e única viúva. É de supor que o espírito do defunto, na eventualidade de existir, se tenha entretanto trasladado para outro sítio, deixando um enorme vazio. De o preencher se encarregam os seus adeptos, com todo o seu zelo e a sua granítica fé, representando-se só a si próprios e preenchendo o Nada.

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Na Casa de Quartzo

Em 1980, numa edição da etnóloga brasileira Berta G. Ribeiro, era publicado em São Paulo um documento de excepcional interesse: uma cosmogonia amazónica intitulada Antes o Mundo Não Existia, cujos autores eram dois índios da tribo Desana, pai e filho, Umusin Panlon Kumu e Tolaman Kenhiri. Agora este texto, numa edição revista e aumentada pelos autores, surge na versão italiana publicado pela editora Sellerio (Firmiano Arantes Lana e Luiz Gomes Lana, Il ventre dell'universo, com edição de Ernesta Cerulli e Silvano Sabatini). Os senhores Firmiano e Luiz que aparecem como autores na edição italiana são, naturalmente, os dois índios Desana, que aqui se apresentam (desconheço se por sua explícita vontade ou pelos bons ofícios de um dos editores, Silvano Sabatini, que é um padre missionário) com o nome português que lhes foi dado com o baptismo. Mas o problema dos nomes tem uma importância secundária, embora não seja de importância tão secundária o problema da aculturação (e eventual conversão) dos índios; por isso a nota final do padre Sabatini corre o risco de não ser objectiva. Os dois autores são oriundos da aldeia do lago da Mona Walu, que se ergue nas margens de um subafluente do rio Negro na Amazónia; e trata-se obviamente de dois índios aculturados.

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Melhor dizendo, o verdadeiro aculturado, aquele que entrou na posse da escrita, é o filho. Tolaman Kenhiri, que recolheu da boca do seu pai o relato da cosmogonia (o pai, que foi um chefe, é um homem iniciado e designado para a transmissão da cultura e da religião Desana); fixou-o em primeiro lugar na língua Desana e depois traduziu-o para português e por último acompanhou-o de 198 aguarelas (46 das quais reproduzidas na edição italiana) através das quais pretende ajudar a compreender melhor a simbologia dos rituais Desana, obviamente difícil de descrever por palavras. É evidente que estes desenhos, que deveriam ter uma função didáctica, têm principalmente para nós uma função estético-evocativa. Porque se é difícil penetrar no relato do mito primitivo, igualmente difícil é decifrar a iconografia que representa o seu ritualismo. Este hieróglifo amazónico é misterioso e atraente como um alfabeto remoto. Face às figuras que representam o Mundo, a Casa de Quartzo, os Trovões, o Eixo do Universo, sentimos o mesmo fascínio que perante os graffiti de Altamira ou os desenhos rupestres de Timor. Mas a diferença, neste caso, está no efeito tempo. Porque uma coisa é contemplar as representações de Altamira e sentir que uma profunda camada de séculos nos separa dos homens que pintaram aqueles símbolos, e outra é saber que os homens que representaram a simbologia Desana são nossos contemporâneos, vivem entre nós, no mesmo mundo, e agora se chamam Firmiano e Luiz. Dá-se aqui um desfasamento que inquieta e perturba: porque se o primitivo é misterioso, é misterioso também que exista a civilização. Em suma, é inquietante a subsistência desta trigonometria: o plano horizontal, ou seja, a abcissa da préhistória, e o plano vertical a que nós pertencemos. Como ler, pois, estes mitos? Para o leitor comum, que é também este que escreve, creio que podem ter o fascínio da pura narração.

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Uma narração a que convém abandonarmo-nos não como nos abandonamos às fábulas, que possuem uma lógica própria, mas como nos abandonamos à narrativa pré-fabulística, ao fluxo de palavras da lengalenga, por exemplo, na qual as braquilogias, os deslizamentos de sentido e as incongruências não têm de ser justificadas. O poder de sedução que caracteriza a oralidade e o mito consiste em não prever ainda a trama, mas uma série de microacontecimentos dispostos um ao lado do outro como as pérolas de um colar. Em definitivo, o mito primitivo não pode resumir-se, e a sua estrutura assemelha-se a certas formas antiromanescas das vanguardas do século vinte. Mário de Andrade provou tê-lo compreendido na perfeição quando, reelaborando precisamente um mito índio (estava-se nos anos vinte), escreveu o primeiro romance verdadeiramente de vanguarda do Brasil, Macunaíma. Mas o leitor que quiser aproximar-se do mitos Desana com os instrumentos da interpretação, encontrará neste livro dois excelentes ensaios de Ernesta Cerulli, que introduziu o texto mítico entre um indispensável trabalho propedêutico (A Cultura Tradicional do Vaupés e o Conhecimento Etnológico dos Desana) e um guia inspirador e cultíssimo para a simbologia do mito (A Análise do Mito e a Cultura Tradicional Desana). Um guia indispensável, entre outras coisas, para eliminar a convicção, se algum de nós ainda a tem, de que o plano horizontal (a cultura primitiva) se baseia na simplicidade e o plano vertical (a cultura da História) está baseado na não-simplicidade. O grande problema é que o pensamento humano nunca é simples, quer seja civilizado ou primitivo. Este livro é um extraordinário exemplo disso.

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O sonho amazónico

Entre os inúmeros sonhos que os homens alimentaram no decurso da sua história, os que alcançaram efeitos contrários às ilusões que os suscitaram são sem dúvida os mais trágicos e muitas vezes os mais perniciosos. Porque não se voltam apenas contra quem os concebeu, mas alastram como por contágio, alcançam toda a colectividade, são socialmente nocivos. Baseados em geral no que a sociologia designa como «decisões absurdas», os danos que acarretam não dependem unicamente do erro de avaliação que os determinou mas da persistência em reiterá-lo, da incapacidade de avaliar os flagrantes danos progressivos, até ao inevitável desastre geral. A maldade é tão velha como o mundo, mas quando é exercida em larga escala tem o efeito de uma epidemia. A avidez é uma característica humana constante, seja qual for o sol que brilhe, mas quando é enaltecida por determinados sistemas económicos que promovem o lucro a benefício social, tem efeitos devastadores. O gosto de manchar o que é belo e violentar o que é puro é um dom que pertence unicamente ao Homo sapiens, mas quando é exercido com os poderosos meios da modernidade torna-se um flagelo. Arguto detective da estupidez humana e profundo conhecedor do continente latino-americano, que lhe inspirou ensaios e romances famosos não só em França, neste livro em que uma escrita de uma clareza cartesiana é muitas vezes velada por uma melancolia amarga, Michel Braudeau, nas páginas de Le Rêve amazonien, detém o olhar no pulmão ferido do nosso globo, a Amazónia.

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E fá-lo através de uma selecção de pessoas reais que viram a Amazónia não já como mito edénico ou como sonho de uma nossa pureza primordial que a civilização acabou por desbaratar, mas como presa fácil, como iguaria exótica, como vítima indefesa a submeter. Depois de Cândido Rondon, cândido de nome e de facto, inocente pioneiro da espoliação futura que confiou o seu próprio sonho à avidez de descendentes sem escrúpulos, desfilam numa sequência onde o sonho vai ganhando traços de pesadelo os funestos empreendimentos do potentado fascistóide Henry Ford; os projectos megalómanos da feroz junta militar que durante anos privou o Brasil da democracia; as iniciativas não menos megalómanas de Daniel Ludwig, outro funesto potentado; a agressão da misteriosa companhia CVRD de participação estatal que sacrifica milhares de escravos (os garimpeiros) nas explorações auríferas, até chegar à inquietante espionagem por satélite exercida hoje sobre a Amazónia e rodeada de assassinos, de guerras secretas e de corrupção. Neste sentido, a Amazónia, esse imenso depósito de riquezas naturais, sede de uma infinita biodiversidade e talvez tesouro da nossa medicina do futuro, não é apenas o exemplo mais alarmante dos estragos causados pela avidez humana contra o equilíbrio do planeta, mas torna-se metáfora desta nossa civilização paranóica que, quanto mais produz, mais se devora a si mesma.

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O Éden dos nossos remorsos

Noutros tempos, quando o leitor culto e curioso partia em viagem para países desconhecidos e longínquos, metia na maleta (os baús de certos viajantes são por si só matéria de literatura) não guias turísticos (que não existiam), mas livros de viajantes que antes deles tinham visitado esses países. Esses livros não incluíam indicações sobre onde alojar-se, não proporcionavam moradas de embaixadas nem de escritórios da American Express nem tão-pouco listas das vacinas indispensáveis. Ensinavam outras coisas: como se vivia, como se pensava, como se falava, como se escrevia e que categorias mentais vigoravam nesses lugares longínquos. Esta advertência é-me indispensável para me aventurar num livro, uma espécie de enciclopédia raisonnée dotada de uma bibliografia vastíssima, de um incrível aparato de notas, de um glossário fundamental, definitivamente um livro de estudo que pertence aparentemente ao género das histórias literárias e que em vez disso gostaria de propor como um extraordinário livro de viagem. É a História da Literatura Brasileira de Luciana Stegagno Picchio. Um livro de viagem que começa por sua vez com um livro de viagem: a Carta do Achamento, redigida por Pero Vaz de Caminha, escrivão de bordo do navegador Pedro Alvares Cabral e dirigida a D. Manuel I, rei de Portugal, em 1500.

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Um texto que assinala, segundo Luciana Stegagno Picchio, a certidão de nascimento da literatura brasileira. E lendo esta «Carta» e imaginando o Éden que Pero Vaz de Caminha descreve, com aquelas praias douradas, os palmares, aqueles índios inocentes e felizes, com o lábio inferior trespassado por uma lasca de osso e a moça que os acompanhava («toda tingida de baixo a cima daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha - coisa que ela realmente não tinha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela»), lendo tudo isto compreendemos que a Europa não descobriu tanto o Brasil como os seus desejos mais ocultos: A Evasão e o Diferente. E que o Brasil constituiu desde o início para a Europa a projecção daquelas míticas «Ilhas Afortunadas» das quais os historiadores e geógrafos gregos tinham já tecido a ideia para toda a posteridade. Desta descrição do Éden, que na Europa encontra o seu sensual maneirismo em Botticelli, Poliziano e Camões (mas o Concílio de Trento está à porta), nascerá mais tarde o mito do bom selvagem e da natureza feliz, que Jean-Jacques Rousseau, meditabundo e fugitivo durante as suas promenades no fundo não tão solitárias, elaborará tecendo o fresco mitema da futura poética romântica do amor e uma cabana de Bernardin de Saint-Pierre. Para a literatura francesa o filão do exotismo está fixado. O que esta produziu, desde Pierre Loti a Victor Segalen ou a Blaise Cendrars (que embora usando o seu galurin cinzento, o chapéu de vagabundo, soube evitar o pitoresco), até aos snobíssimos e cosmopolitas chroniqueurs dos anos vinte, está já inscrito no ADN do texto do escrivão português. A passagem para a antropologia não se fará esperar, com as academias tardo-barrocas, sobretudo francesas. E quanto à antropologia, o livro de Luciana Stegagno Picchio é riquíssimo.

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O Negro, o cultivo da cana-de-açúcar, as minas de ouro do século dezoito (que ergueram as catedrais barrocas de Ouro Preto), portas, pintores e um escultor genial e desgraçado como o Aleijadinho, que esculpiu os majestosos profetas de pedra de Congonhas do Campo com o escopro atado aos pulsos devorados pela lepra. A sociedade esclavagista brasileira do século dezanove, ou melhor dizendo, as divisões sociais que a nossa civilização exporta para o Éden recém-descoberto, são o tema de um dos maiores estudos antropológicos de sempre: Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freire. Que é acima de tudo uma trigonometria que atravessa o tempo: a Europa que chega com as suas categorias sociais às selvas tropicais do Brasil. Como à sua maneira tinha já chegado, qual etnólogo, nos finais do século dezasseis o jesuíta José Anchieta, com o seu Quam plurimarum rerum naturialum, obra em que informava os atónitos europeus sobre as populações, os costumes, a fauna e a flora daquele longínquo país. «Ó Virgem Maria / Tup cy etê / Abá pe ára porá / Oicó endê gabe», cantam na língua tupi os índios convertidos pelo padre Anchieta na selva amazónica. E a pedra angular do Indianismo que percorrerá todo o século dezanove brasileiro, século de reivindicações nacionalistas e busca das raízes, quando as plumas dos índios se tornaram numa bandeira para os literatos do Rio de Janeiro cheios de boas intenções (esses escritores «de sala de jantar», como perfidamente os definiria mais tarde o vanguardista Ronald de Carvalho). E um belo dia o Indianismo acaba, ou melhor dizendo, acaba cozido na panela. Quem acende o lume debaixo da panela são os vanguardistas da Semana de Arte Moderna de São Paulo com o «Manifesto Antropofágico» e especialmente um provocador literário chamado Oswald de Andrade que em 1928 celebra a cozedura na panela, às mãos dos índios amazónicos, do bispo português Sardinha.

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Um facto que ocorreu na realidade. Evidentemente que aos índios, à força de cantarem a Ave-maria em tupi, abriu-se-lhes o apetite. Uma impiedosa xilogravura europeia do imundo banquete torna-se a capa da Revista de Antropofagia, e Oswald de Andrade dirige o seu manifesto «contra Goethe, a mãe dos Gracos, a corte de D. João VI, rei de Portugal» e sobretudo «contra a realidade social vestida e opressora, cadastrada por Freud». Um belo corte com a Europa. E o momento mais feliz e liberatório da literatura brasileira, a época dourada que verá poetas e escritores como o próprio Oswald de Andrade (Memórias Sentimentais de João de Miramar e Serafim Ponte Grande) e com ele o outro Andrade, Mário, que com o seu Macunaíma, 1926, define os caracteres arquetípicos do herói (melhor dizendo, anti-herói) nacional: um híbrido racial, meio índio e meio negro, gordo, folgazão, embusteiro, guloso e libidinoso: o Macunaíma nacional. E também Manuel Bandeira e, sobretudo, Drummond de Andrade. Mas o século vinte traz consigo também o empenhamento social que o Brasil acolhe com os seus temas e problemas específicos. Por exemplo a seca do Nordeste brasileiro, que obriga milhares de retirantes a deixar as suas terras para se lançarem numa viagem através das terras mais desérticas do imenso país à procura de um Éden próprio absolutamente o oposto do nosso: a Metrópole. Veja-se Vidas Secas (1938) de Graciliano Ramos. E na poesia sobretudo Morte e Vida Severina (1956) de João Cabral de Melo Neto (existe também uma belíssima versão teatral cantada e recitada de Chico Buarque de Hollanda). Mas também a sociologia e a antropologia, embora com atraso relativamente à literatura, oferecem um sinistro panorama do latifúndio nordestino. Sete Palmos de Terra e um Caixão (1956) que era tudo o que tinham a esperar na morte os trabalhadores rurais nordestinos (Uma Zona Explosiva: o Nordeste do Brasil).

236

Mas o livro de Luciana Stegagno Picchio pode ler-se sem levar em conta a cronologia, escolhendo as épocas conforme nos apetecer. Por exemplo, voltando ao barroco de Minas Gerais sobressai a figura de Gregório de Matos. Poeta, pícaro dos trópicos nascido de família abastada (pai português e mãe baiana), foi mandado estudar para Coimbra onde cultivou a poesia de Camões, Góngora e Quevedo. Educado pelos jesuítas e encaminhado para tarefas curiais, a que preferiu a advocacia, escolheu por vocação troçar em verso do clero e da nobreza. As suas rimas iconoclastas, além de lhe granjearem a alcunha de Boca do Inferno, valeram-lhe também um processo do Tribunal do Santo Ofício e uma deportação para Angola. Escreveu versos como estes: «Estupendas usuras nos mercados / Todos os que não furtam muito pobres.» Do paradigma da corrupção à sociedade da violência, às abissais diferenças sociais, às tensões pseudomísticas, ao sincretismo religioso, este «livro de viagem» tudo regista através da literatura. Os grandes livros que o Brasil deu ao século vinte estão vivos e, felizmente, facilmente acessíveis. Guimarães Rosa, épico e homérico cantor de Minas Gerais (que alguns críticos que gostam de etiquetas classificaram de «o Joyce brasileiro): plotiniano, botânico de profissão e observador ao microscópio da infelicidade humana; Clarice Lispector, metafísica, visionária, uma marciana que observa a condição humana; Carlos Drummond de Andrade que, com Fernando Pessoa, é seguramente o maior poeta da língua portuguesa do século vinte. Drummond é um poeta que soube subverter a sua condição de homem dos trópicos num humorismo gélido que estuda a outra face do mundo e dos homens: como Beckett, pôs em equilíbrio sobre uma fina corda estendida no vazio um saltimbanco de olhos revirados que com uma lágrima pintada na bochecha canta os materiais da vida: Faço o meu amor em vidrotil / nossos coitos são de modernfold / até que a lança de interflex / vipax nos separe / em clavilux / camabel camabel o vale ecoa / sobre o vazio de ondalit / à noite asfáltica / plks.»

237

Mas cantou também os remorsos de ser o que foram os seus antepassados, e o remorso de todos nós: «Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo, / mas estou cheio de escravos / minhas lembranças escorrem / e o corpo transige / na confluência do amor. // Quando me levantar, o céu / estará morto e saqueado / eu mesmo estarei morto / morto meu desejo, morto / o pântano sem acordes.» O Brasil como o «nosso remorso»?, interroga-se a autora no prefácio. Remorsos nossos que estamos deste outro lado do Atlântico e que o descobrimos? Talvez. Mas o Brasil também como espelho, como nossa consciência. Quando conheci Drummond de Andrade, há alguns anos, uma tarde, enquanto nos cumprimentávamos, sussurrou-me uma frase. Não sei se era uma pergunta ou uma constatação. Estávamos no passeio marítimo de Copacabana e um sol vermelho começava a pôr-se. «Sabe o que é este vosso Brasil?», perguntou-me como se perguntasse a si próprio, «é um sonho vosso. Só que nós vivemos nele».

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Sem terra

Saki, diz o antigo poeta persa ao velho criado que lhe deita o vinho filosofando, não penses na rotação da terra, pensa antes na minha cabeça. Terra. Planeta do Universo, quarto em tamanho. Sólido irregular subesférico caracterizado por um achatamento nos pólos. Descreve uma órbita elíptica, com uma ligeira excentricidade. A trajectória dessa órbita designa-se por elíptica, o lapso de tempo da sua rotação em volta do Sol chama-se ano sideral, o período de rotação em volta do eixo que atravessa os pólos dizse dia sideral. O raio médio da Terra é seis mil trezentos e setenta e um quilómetros. A Terra está coberta por setenta e quatro por cento de água e por vinte e seis por cento de terras emersas. E estas terras são a terra da nossa Terra. Meu irmão, diz o homem sem terra ao astrónomo que lhe explica o Universo, não penses nas rotações da Terra, pensa antes nas minhas mãos que a trabalham e não a possuem. Eu vivo nesta terra, lavro esta terra, e sou um Sem-terra. Parece-te possível, irmão astrónomo, tu que conheces o Universo? Universo. Conjunto constituído pela totalidade do espaço e do tempo e por toda a energia existente sob a forma de matéria. As teorias físicas mais recentes datam o seu nascimento entre há oito e dezoito biliões de anos, a partir de um ponto que continha toda a energia com uma densidade infinita e que em seguida teria continuado a expandir-se e a arrefecer permitindo a organização de galáxias e de agrupamentos de galáxias, que podemos observar.

239

A evolução futura do universo está ligada à sua densidade: se esta se tornar superior a um certo valor crítico, o Universo irá diminuindo progressivamente a sua própria expansão até a inverter numa contracção que acabará novamente num ponto de densidade infinita. Se pelo contrário for inferior, a expansão prosseguirá até ao infinito. Irmão astrónomo, diz o homenzinho sem terra ao astrónomo, se se podem observar as galáxias, porque é que ninguém me vê? Não sou eu também um habitante do Universo? E se para o medir se adoptaram grandezas astronómicas, sabes que medida me espera, segundo o dono do latifúndio que lavro? Esperam-me quatro palmos de terra para acolher o meu caixão, porque só isso me restará depois da minha morte: quatro palmos de terra e um caixão. Meu pobre homenzinho sem terra, diz o astrónomo, os donos da Terra não previram para ti quatro palmos de terra sobre esta terra, mas só debaixo dela, num buraco, um minúsculo buraco de terra que te receberá e te albergará no seu nada, como um buraco negro. O homem é a primeira estrela do universo criado, mas a ti, homem-nada, espera-te um buraco negro. Buraco Negro. Fase final da evolução de uma estrela na qual a matéria, reduzida a um gás de neutrões, sofre um colapso imparável na direcção de um ponto onde a luz fica armadilhada tornando o objecto invisível. Ou seja, negro. Irmão astrónomo, diz o homenzinho sem terra, ontem participei no funeral de um trabalhador braçal, irmão na miséria, e os nossos irmãos cantavam esta cantilena: «Essa cova em que estás, com palmos medida, é a cota menor que tiraste em vida. E de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe neste latifúndio.

240

Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida.» Irmão astrónomo, tu conheces as medidas do Universo. Parece-te que esta cova seja a medida de um homem? Ano-Luz. Unidade de medida usada em astronomia. Definido como a distância percorrida pela luz no decurso de um ano, à velocidade de trezentos mil quilómetros por segundo. Para chegar aos confins da nossa galáxia, no ponto em que começa a galáxia de Andrómeda, são precisos cerca de cem anos-luz. Irmão astrónomo, diz o homenzinho sem terra, há muitos anos um poeta que andava descalço para sentir a terra escreveu: «Louvado sejas, Senhor, pela nossa irmã a Mãe terra, que nos sustenta e governa e produz diversos frutos com coloridas flores e erva.» Assim pois, irmão astrónomo, juntei-me aos meus outros irmãos sem terra, aos que trabalham esta terra para extrair os seus frutos e decidimos que os frutos que ela dá hão-de sustentar-nos a nós, porque são nossos. Terra. Planeta do Universo, quarto em tamanho. Sólido irregular subesférico caracterizado por um achatamento nos pólos. Descreve uma órbita elíptica, com uma ligeira excentricidade. A trajectória dessa órbita designa-se por elíptica, o lapso de tempo da sua rotação em volta do Sol chama-se ano sideral, o período de rotação em volta do eixo que atravessa os pólos dizse dia sideral. O raio médio da Terra é seis mil trezentos e setenta e um quilómetros. A Terra está coberta por setenta e quatro por cento de água e por vinte e seis por cento de terras emersas. E estas terras são a terra da nossa Terra. Meu irmão, disse o homem sem terra ao astrónomo que lhe explica o Universo, não penses na rotação da terra, pensa antes nas minhas mãos que a trabalham e que não a possuem. Eu vivo nesta terra, lavro esta terra, e sou um Sem-terra. Parece-te possível, irmão astrónomo, tu que conheces o Universo?

241

Os lugares deste livro

<Mapa-mundo com a localização dos lugares mencionados no livro: omitido>

Os livros deste livro



Alguns livros citados nestas páginas tiveram várias traduções em épocas diversas, ou noutros casos nunca foram traduzidos. Optouse assim por citar o título original e o ano de publicação, indicando-se entre parêntesis, quando se julgou necessário, o título traduzido.

Jean Aicard, Maurin des Maures, 1908, p. 45. Bhimrao Ramji Ambedkar, Gandhi and Gandhism, 1970, post., p. 132. José de Anchieta, Epistola Quam plurimarum rerum naturalium..., 1560, p. 235. Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética, 1990-1991, pp. 198-202. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo, 1940, pp. 236-237; Claro Enigma, 1951, p. 193. Mário de Andrade, Macunaíma, 1926, pp. 230,236. Oswald de Andrade, Memórias Sentimentais de João de Miramar, 1924, p. 236. António Armellini, L'elefante ha messo le ali. L’India del XXI secolo, 2008, p. 130. Marc Auge, Non lieux. Introduction a une anthropologie de la surmodernité, 1992, p. 86. Roland Barthes, L'empire des signes, 1970, p. 81. Jorge Luis Borges, Fervor de Buenos Aires, 1923, p. 217; Un ensayo autobiográfico, 1999 post., p. 216. Michel Braudeau, Le rêve amazonien, 2004, p. 232.

249

Bernardo Gomes de Brito, História Trágico-marítima, 1735, p. 182. Ítalo Calvino, 1972, p. 196.

Le

città

invisibili

Pero Vaz de Caminha, Carta publicada em 1817, p. 233.

do

(As

Cidades

Achamento

do

Invisíveis),

Brasil,

1500,

Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, 1572, p. 112, 200. Josué de Castro, Sete Palmos de Terra e um Caixão. Ensaio sobre o Nordeste, zona explosiva, p. 236. Marco Porcio Catão (O Censor), De agricultura, 160 a. C, p. 184. Remo Ceserani, Lidia de Federicis, Manuale de letteratura. Il materiale e l'immaginario, 1994, p. 60. François-René de Chateaubriand, Mémoires d'outre-tombe, 18481850, p. 124. Antheos Chrisostomidis, Ena pukamiso ghemato likedes, 1999, p. 66. Júlio Cortázar, Final del juego (Final do Jogo), 1956, p. 39 António Damásio, Descartes’Error (O Erro de Descartes), 1994, p. 43. Daniel Defoe, The life and strange surprising adventures of Robinson Crusoe, 1719, p. 94. Alexandre Dumas pai, Le comte de Montecristo (O Conde de Monte Cristo), 1844-1845, p. 124. Toni D'Urso, Eugénio Barba, Teatret, 1994, p. 206.

Viaggi

com

/

Voyages

with

Odin

Amos Elon, Jerusalém. City of Mirrors, 1996, p. 226. José Custódio de Faria, De la cause du sommeil lucide ou étude de la nature de l'homme, 1819, p. 124. Ennio Flaiano, Un giorno a Bombay, 1980, p. 114. Edward Morgan Forster, Índia), 1924, p. 113.

A

Passage

to

India

(Passagem

para

a

Ugo Foscolo, Deisepolcri, 1807, p. 223. Gilberto Freyre, CasaGrande & Senzala, 1933, p. 235. Carlo Emilio Gadda, La

cognizione dei dolore (O Conhecimento da Dor), 1963, p. 196; II Luigi di Francia, 1964, p. 37. J. B. de Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, 1846, pp. 182183. Guido Gozzano, Verso la cuna del mondo, 1917 post., p. 118.

250

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, Corpo de Baile, Miguilim, 1956, p. 100. Martin Heidegger, Die Kunst und der Raum (A Arte e o Espaço), 1969, p. 210. Herberto Hélder, Os Passos em Volta, 1963, p. 39. Hermann Hesse, Aus Indien (Viagem à Índia), 1913, p. 113: Wanderung (Deambulações Fantásticas), 1920, p. 113. Firmiano Arantes Lana Luiz Gomes Lana, II ventre dell’universo, (Antes o Mundo Não Existia), 1980, p. 228. Claude Lévi-Strauss, Tristes Tropiques (Tristes Trópicos), 1955, p. 209. Pierre Loti, L’Inde, 1898, p. 112. Graziella Magherini, La síndrome di Stendhal (A Síndrome de Stendhal), 1989, p. 222. Naghib Mahfuz, Bain el-Qasrain, p. 78; Qasr Esh-Shwq, p. 78; As--Sukkariyya, 1946-1952, p. 78. André Malraux, Antimémoires (Antimemórias), 1967, p. 114. Edgar Lee Masters, Spoon RiverAnthology, 1915, p. 64. Brian Matthews, stories,

Louisa,

1987,

p.

146;

Quickening

and

other

1989, p. 145. Mary McCarthy, The Group (O Grupo), 1963, p. 85; Vietnam, 1967, p. 85; Hanoi, 1968, p. 85. João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina, 1956, p. 236. Henri Michaux, Un barbare en Asie (Um Bárbaro na Ásia), 1933, p. 113. Yukio Mishima, Kinkakuji, 1956, p. 82. Alberto Moravia, Un'idea dell’India (Uma Ideia da Índia), 1962, p. 114; A quale tribú appartíeni? (A Que Tribo Pertences?), 1972, p. 208. Tom 0'Neill, Of virgins, muses and of love. A study of Foscolo's Del sepolcri, 1982, p. 145. Giovanni Orelli, Gli occhiali di Gionata Lerolieff, 2000, p. 61. Pier Paolo Pasolini, L’odore dell’India (O Cheiro da índia), 1962,

p. 114. Fernando 167,196;

Pessoa,

O

Livro

Mensagem, 1934, p. 182.

251

do

Desassossego,

1982

post.,

pp.

Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, 1640 post., p. 181. Platão, Sofista, 365 a. C, p. 195. Eça de Queirós, 181,182,183.

A

Cidade

e

as

Serras,

1901,

post.,

p.

Pascal Quignard, Tous les matins du monde (Todas as Manhãs do Mundo), 1991, p. 169; La Frontière. Azulejos du palais Fronteira (A Fronteira. Azulejos do Palácio Fronteira), 1992, p. 169. François Rabelais, Gargantua Pantagruel), 1532-1552, p. 94.

et

Pantagruel

(Gargântua

e

Graciliano Ramos, Vidas Secas, 1938, p. 236. Gregor von Rezzori, Maghrebinische Geschichten (Histórias de Magrebínia) 1953, p. 212; Ein Hermelin in Tschernopol (Um Arminho em Chernopol) 1958, p. 214; Memoiren eines Antisemiten (Memórias de um Anti-semita), 1979, p. 214. Mercê Rodoreda, La placa del Diamant (A Praça do Diamante), 1962, p. 57. Romain Rolland, Inde. Journal 1915-1943, 1960. post., p. 114. William Shakespeare, Hamlet, 1600-1601, p. 195. Luciana Stegagno Picchio, Storia della letteratura brasiliana (História da Literatura Brasileira), 1997, p. 232. Robert Louis Stevenson, Treasure Island (A Ilha do Tesouro), 1883, P-23; Wislawa Szymborska, «Torture» (Torturas) in Ludzie na moscie, 1986, p. 25; Scritto in un alberge in Sto pociech, 1967, p. 80. Jun'ichiro Tanizaki, In'ei raisan (Elogio da Sombra), 1993, p. 82. Torquato Tasso, Aminta, 1573, p. 185. Karan Thapar, Face to face Índia. Interviews with Karan Thapar, 2006, p. 132. Paul Valéry, La soirée avec M. Teste, 1896, p. 42; La jeune Parque (A Jovem Parca), 1917, p. 45; Le cemitière marin (O Cemitério Marinho), 1920, p. 43. Virgílio, Georgiche (Geórgicas), 37-30 a. C, p. 185.

Myron Weiner, The Child and the State in India. Child Labor and Education Policy in Comparative Perspective, 1990, p. 132. Cesare Zavattini, I poveri sono matti, 1937, p. 78.

252

Índice

Nota do Autor 9 O tio de Lucca em Singapura: Conversas com Paolo di Paolo 11

I. A caminho

Atlas

II. Viagens com objectivo

O comboio para Florença 20 Pisa. Onde Leopardi renasceu 31 Paris. Delacroix em casa 34 O Jardin des Plantes

37

Sete. O cemitério marinho

41

Mougins. A Provença que Picasso amou

44

Madrid e arredores: Goya para lá do Prado O Escorial

50

Em terra basca para ver o vento

53

Barcelona. A praça do Diamante

56

Solothurn, pequena cidade cosmopolita Spoon River entre os Cárpatos 62 Dez anos de Creta

65

Creta. Um hotel, uma aldeia

68

59

47

253

Entre ervas e montes 71 Entre o Grand Canyon e a Capela Sistina 74 O Cairo. Um Nobel. Um café 77 Quioto. A cidade da caligrafia 80 Nova Iorque-Rhinebeck de comboio 83 Washington. Uma pausa com Einstein 86 México. Viagem pelos chiles 89 Os Robinsons 92 Brasil. Congonhas do Campo 97 Ouro Preto 100 No Canadá por causa de um filme 103 Génova 106

III. Na Índia

Diferentes ideias da Índia 111 Bombaim. A porta da Índia 115 Elephanta 118 Bombaim. O Taj Mahal 120 Goa. O abade Faria 122 A caminho de Mahabalipuram 125 A Índia. Que sais-je?

IV. Caderno australiano

129

V. Oh, Portugal!

A Lisboa de um livro meu 159 Lisboa. Rua da Saudade 163 No café com Pessoa 166 O Palácio Fronteira 169 Alentejo. Alter do Chão 172 Ao longo do molhe da Horta. Faial, Açores 175 Os meus Açores 178 As serras ideais de Eça de Queirós 181

254

VI. Por interposta pessoa

Da parte da Mongólia 189 Saudades de Drummond 192 As cidades do desejo 195 Na Grécia com Sophia 197 Um palco móvel que dá a volta ao mundo 205 A geografia imaginária de Gregor von Rezzori Com Borges nas ruas de Buenos Aires A omeleta e o Nada

219

A síndrome de Stendhal A síndrome oposta Na Casa de Quartzo O sonho amazónico

222

226 228 231

O Éden dos nossos remorsos Sem terra

239

Os lugares deste livro 243 Os livros deste livro

255

FIM

247

233

216

212

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