Viktor E. Frankl - Fundamentos Antropologicos Da Psicoterapia.pdf

  • Uploaded by: Emilia Figueiredo
  • 0
  • 0
  • January 2021
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Viktor E. Frankl - Fundamentos Antropologicos Da Psicoterapia.pdf as PDF for free.

More details

  • Words: 109,271
  • Pages: 145
Loading documents preview...
FUNDAMENIOS _ ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

Título originalz Anthropologische Grundlagen der Psychoterapie Traduzido da edição publicada em 1975 por HANS HUBER VERLAG. de Berna, Suíça

Copyrighl © 1975 by Hans Huber Verlag Direítos reservados. Proibida a reprodução (Lei n°. S.988).

Traduçãb de Renato Bittencourt Revisáb Técnica do Professor Jorge Alberto Costa e Silva Profcssor Titular dc Psicologia Mddica o Psiquictria da Faculdada da Ciôncías Módicas dc Univcnidada do Río dc Janairo

Capa de Jane

1978 Direitos para a língua portuguesa adquiridos por ZAHAR EDITORES Caí›.a Postal 207. ZC-00, Río que se reservam a propriedade desta versão Impresso no Brasil

Para ALEXANDER

_ _r

ÍNDICE

Prefácio

m

Introducão O Homem em Busca do Senlido Os Descaminhos do Pensamento Psicoterapêutico Na Fronteira enlre a Psicoterapia e a Filosoña ............... Monantropismo Para uma Antropología do Esporle Amor e Sexo ...................................................... O Homem lncondicionado (Lições Metaclínicas) Prefúcio à Primeira Edição ...................................... Prefácio à Segunda Edicão lntrodução l. O Problema Corpo-Alma ll. O Problema do Espirilo .................................... I. A Essência do Espírilo .................................. 2. O Vir-a-Ser do Espírilo Patologia Ccrebral e Filogênese do Espírilo Onlogênese do Espírito e Heredopatologia Nota paru a 2* Edição lIl. O Problema da Morlalidade ............................... IV. O Problema do Livre Arbílrio ............................. Nola pura a 2~' Edição ........................................... "Hom0 Patiens“ (Projelo dc uma Palodicéia) ................. Prefácio à Primeira Edição ......................................

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSlCOTERAPlA

A. Do Aulomatismo à Existênciaz Crítica do Niilismo l. Psícologismo ............................................... l. Psicologismo e Psicoterapia 2. Psicolerapia e Logoterapia Nota para a 2'~ Edição .................................... 3. Logoterapia c Análíse Existencial 4. Análise Exislencial c Psicanálise ...................... a) Prazer e Valor b) Impulso e Sentido 5. Psícanálíse c Psicologia Individual Il. Sociologismo .............................................. Patología do Espírito da Época ......................... B. Da Negação à lnterprelação do Sentido lnterprelação Metaclínica do Sentido do Sofrimento Suplemento à 2'› Edíçãoz Que É o Homem? C. Da Aulonomia à Transcendênciaz A Crise do Humanismo Observação Preliminar para a 2-' Edíção ................... l. Antropocentrismo ll. Antropomorñsmo Bibliograña Latino-Americana sobre Logoterapia

PREFÁCIO

257 257

Este volume consíste, em sua maior parte. de duas obras já esgotadas - Der unbedingte Mensch (Melaklim'sche Vorlesungen) e Homo PaIiens (Versuch einer Pathodizée), textos de conferências que pronunciei na Faculdade de Medicina da Universidade de Viena. cm 1949 e 1950, com o objetivo de expor os fundamentos ñlosóñcos da Logoterapia. Embora tenham lranscorrido nada mcnos dc 25 anos. decidi, incentivado pela edítora Hans Hubcr. correr o risco de reimprimi-los sem quaisquer alterações, levando em conta que mesmo a partc dc seu conteúdo já superada ainda pode apresentar valor históric0. Por outro lado, a ñm de ilustrar o desenvolvimento da Logoterapia e atualizar alguns conceitos, incluí os artigos e preleções abaixo relacionados: à guisa de lntrodução, a palcstra que pronunciei. em 1968. a convite do Congresso lnternacional de Filosoña; o Artígo “Os Descaminhos do Pensamento Psicoterapéutico" publicado na revista Nervenarzl (l960); o Ensuio “Na Fronteira entre a Psicoterapia e a Filosoña“. encomendado em 1961 pelas Academias de Ciências de Berlim, Gottingen, Heidclberg, Lcipzig, Munique e Viena, e inserído em Forschungen und Forstschrinem a Tradução da palestra rcalizada, cm l969, numa conferência lnternacional sobre “O Papel da Universídade na Guerra e na Paz"; a Preleção “Para uma Antropologia do Esporte". lida num simpósio cientíñco a convite do Comitê Olímpico. em l972; a tradução alemã do ensaio “Amor e Sexo”, que consta da coleção japonesa editada por Sadayo lshikawa (Scishin Shobo) e da colcção dinamarquesa lançada por Knud Simon Christensen em 1973;

IO

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

o rcsumo da conferência solicitada pelo Conselho Acadêmico para comcmorar o scxto centcnário da Universidade dc Viena. em |9_65, c quc serviu dc comentário ao volume Der unbedingle Mensrh; a alocução feita. em 1949. a pedido da Socicdade Médica de Viena. cvocando seus associados mortos no período l939-45 e que constitui, dc ccna forma. um complemcnto do livro Homo Pau'ens. VIKTOR E. FRANKL

San Diego. Califórnia Novembro de 1974

lntroducão O Homem em Busca do Sentido

Extraído das atas do XlV Congresso lnternacional de Filosoña (Herder, Viena, 197l_ pp l7-28). Versão ampliada. O lítulo não se limita a esboçar um tema; já contém uma deñnição. ou pelo mcnos uma interpretação do homem visto como um ente empenhado na busca do sentido. O homem. de fato. está sempre orientado para algo que o transcende. seja um sentido a realizar, seja uma pessoa a encontrar. De uma maneira ou de outra, sua naturcza o lcva a sc ultrapassaL A transcendência de si mesmo constitui. assím. a essência da cxistência humana. Não é verdade quc o homem se esforca untes dc tudo para ser feliz? O próprio Kanl o admitiu, acrescentando apenas que ele deveria igualmentc tentar ser digno dessa felicidade. Eu diria que, no ñnal das contas, o que procura não é a felicidade em si, mas uma raz_ão para ser feliz. Tão logo a descobre, têm lugar o prazer e a fel1'cidade. Añrma Kant, em A Metaflsica dos Coslumes, que “a bemaventurança é a conseqüência do cumprimento do dever" e que “0 prazer. para ser encomrad0, deve ser precedido pela norma". A meu ver, o que ali se diz sobre o cumprimenlo do dever e a obediência à Leí tem um alcance mais geral e pode ser transposto do domínio dos costumes para o da sensualidade. Nós neurologistas possuímos vasta experiência disso. Com efeito. no dia-a-dia da clinica. vemos que é precisamente por não contar com uma “razão para ser fcliz" que o

12

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

neurótico scxualmente perturbado, impotente ou frígido. encontra~se impossibilitado de obter a felicídade. Mas de que modo ocorre 0 abandono patogênico dessa molivação? Pela dedicação forçada à conquista dircta do prazer e da felic1'dade. Kierkegaard tinha razão quando declarou que a porta da felicidade se abre para fora; quem a força no semido inverso acaba por bloqueá-la. Como se poderá esclarecer a questão? Antes dc mais nada, dcstaque-se o scguintc: o que de fato ímpulsíona o homem não é ncm a vontade de poder nem a vontade de prazcr, mas sim o que chamo de vontade de sentido. " Razáo

Vonlade de sentldo

Eleno

Vontade de prazer

Minhas teorias motivacionais, justamente no que concerne à noção dc uma vontade de sentido, foram. añnaL conñrmadas através dc pesquisas realizadas no lnstituto dc Psicologia Experimental da Universidade de Viena por Elísabeth Lukas, com base nos dcpoimentos de 1.340 pessoas, tendo os milhares de dados sido submetidos ao processamento por computadores. 0 estudo da senhora Lukas gerou como subproduto outro teste - o Logoteste - que visa dar uma interpretação mais exata da frustração da vontade de sentido, bem como explorar numerosas possibilidades terapéuticas e proñlálicas. Em virtude de sua vontade de sentido. o homem não só tende a buscar um sentido, e realizá~lo, mas também a enconlrar outras existências sob a forma de um tu a ñm de lhes dedicar o seu afelo. Am-

' Der Wille zum Sinn é propriamcnte imraduzlvcl em portugues'. Falar em uma “busca" de sentido ê lomar o efeito pela causa e cair no óbvio c no lriviaL Ao cunhar a exprcssão. Frankl pensou decerto no conccito dc Wille zum Mach1. de Nielzschc. Cuidando de preservar a lcrminologia do autor. oplamos assim por “vontade de scntido", a cxcmplo, aliás. do que ñzeram Huberto Schcnfeldt e Konrad Kôrncr, cm A Psicote~ rapia na Prálica (Editora Pedagógíca e Univcrsitária Ltda., São Paulo. p. 50). Tcmos outro preccdentc na fórmula pelo consagrado lradulor dc Heidcgger. Emmanucl Carneiro Leão. “vomade dc polência" (veja-se lnlroducão à Melajísica. Tempo Brasilciro. p. 29l). (N. do T.)

O HOMEM EM BUSCA DO SENTIDO

l3

bos, o alcanceído sentido c o encontro. Ihe forneccm um motivo de ser feliz e obter prazer. No neurótico, esse esforço primário e'. no entant0. dcsviado para o objetivo dircto da felicidadc. em função da procura de prazer. O prazer. em vez de permanecer o que deveria ser quando sc produzisse. ou seja. um efcito eventuaL vira objctivo de uma hiperinIencionalidade acompanhada dc uma hiper-re/Iexão: pussa a ser conteúdo exclusivo c objcto único da atenção. O neurótico. na medida em que dele se ocupa. perde dcvista a razão em que assenta, 0 que o impede inclusivc de se manifestaL Quanto mais alguém sc concentra no prazen mais ele sc esquiva. Se o indivíduo, condenado ao fracasso pela ânsia dc prazer, tenta salvar o que ainda pode recorrcndo ao “am0r" como mera te'cnica, a hiperimencionalidade e a hiper-reflexão se imensiñcum com influência ainda mais perniciosa sobre a potência c o orgasmo. Outrossim, a existência hoje em dia de uma verdadeíra indústria dc informaçõcs acaba por nos privar do que ainda restava daquela candura que é condição fundamental para o funcionamento normal da vida sexuaL Em conseqüência da pressão do consumo scxual em larga escala. as pessoas, sobretudo os jovens. são induzidas a um tal grau de hiper-reflexão que não é de espantar a crescente proporção de conflitos neuróticos sexuais que requerem tratamento. 0 homem de nossos dias tende para a hiper-reñexão. A professora Edith Joelsom da Universidade da Geórgia. foi capaz de-demonstrar que a auto-interpretacão e a auto~realizacão ñguram, aos olhos dos universitários norte-americanos, entre os mais altos valorcs. É claro que se trata de um conhecimento de si mesmo impregnado de um psicologismo dinâmico e analítico que faz com que o americano culto atribua a todo instante motivos inconscientes para o seu comportamento consciente. No que tange à auto-realização. não he~ sito em añrmar que somente é conseguida na medida em que o sentído é realizado. O imperativo de Pindaro, segundo o qual o homem tem de sc lornar aquilo que na verdadc é. precisa ser completado com outra sentença. a de Jaspers, quando adverte que “a pessoa é caracterizada pelo tipo de relacionamento que mantém com as coísas. sua capacidade, enñm, de se aproximar autenticamente delas. Assim como o bumerangue só volta ao caçador que o lançou no caso de não alingir o alvo, da mesma forma o homem que anseia pela auto-rcalização é aquele que não consegue preencher o sentido, e nem sequcr às vezes identiñcá-lo. Com a procura de prazer se dá o mesmo quc com a procura de poder. Todavia, se o prazer é um produto secundário da satisfação dos sentidos, o poder, pelo fato de ser um instrumento para atingir um objetivo, se vê ligado, tal como a própria satisfação dos sentidOS,

14

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA O HOMEM EM BUSCA DO SENTIDO Eíeno Ob1elnvo _____,

Melo

a determinadas condições c requisitos sociais e econômicos. Quando o homcm se concentra exclusívamente no produto sccundário “prazer” e quando se limita ao meio para conquistar um ñm denominado °^p0der"? Bem, a resposta é que isso acontece quando a vontade de semido é frustrada; em outras palavras, o princípio de prazer, bem como a ambição dc mando representam uma motívação neurótíca. Daí Frcud e Adler, que elaboraram suas teorias, inspirados nos neuróticos, terem errado na descrição das tendêncías do ser humano. Não se vive maís, como na época de Freud, num ambientc de frustação sexuaL mas de frustação existenciaL É especialmente entre os jovcns que se nota a frustração da vontade de sentido. "Que signiñca para a geração dc hoje a líção de Freud ou de Adler?" - indaga Becky Lect, redalora-chefe de um jornal editado pelos estudantes da Universidade da Geórgia. “Possuímos a pílula, que nos lívra das conseqüências da satisfação do instínto sexual do ponto de vista médico, portamo não cxíste mais motivo para ínibições sexuais. E detemos uma parcela do poder - basta pensar nos polítícos amerícanos tremendo diante da juventude, ou na Guarda Vermelha chinesa. Mas Frank|_ diz que as pessoas vivem hoje num vazio cxistencial que se manifesta através do tédio. O tédio é uma palavra que soa diferente, um conceito mais inofensivo, não acham? Vocês todos dccerto conhecem muítas pessoas que se queixam de tédio scm perceberem que bastaria estender a mão para terem tudo, inclusíve o sexo dc Frcud ou o poder de Adler." De fato. aumenta cada dia o número de pacientes que vêm a nós se lamentando de sentir um vazio ínterior, o “vazio cxistencial”, como o denomineL um profundo semimento de que a vida não tem sentid0. ' l Sou gralo a Hcrbcn Spielberg por mc haver assinalado. nos Lextos póslumos de Alexandcr Píãndcn a seguinte descrição do vazio existencialz "Vivemos numa época de crescente descrcnça nos valores c, ponanlo, dc desespcro e de impressão de quc a vida carccc de sentido. Nem a escola nem a cducação cm geral se mostram capazes de

15

Seria errôneo supor que o vazio cxistencial se rcstringe ao mundo ocidentaL Assim, dois psiquiatras checos. Stanislas Kratochvil c Osvald VymctaL salientaram. numa série de publicações. que “cssa doença contemporânea - a perda do sentido da vida - enconlrada particularmente no meio dos jovens. transcende as fronteíras das organizacões sociais capitalistas e socialistas". Osvald VymetaL na ocasião de um Congresso da Neurologia por ele prcsidido, cmbora manifestando sua adesão entusiáslica às teorias de Pavlov, admitiu que uma psicoterapia de orientação pavloviana não é suñciente para proporcionar ao terapeula os meios de curar o vazio exislenciaL Tanto os adeptos de Freud quanto os de Marx admitiram a prcsença do vazio existenciaL Os primeiros relataram num congresso internacional casos freqüentes de pacientes que se queixavam menos de sintomas clínicos puros do que da falta dc um sentido para a vida. Quanto aos segundos, Christa Kohlcr da seção de Psicoterapia e lnvestigações sobre Neuroses da Clínica Psiquiátrica da Universidadc Karl Marx. de Leipzig, assinalou a ocorrência reiterada do sentimento de vazio existencial em seus próprios pacicmes. Finalmente, um professor americano convidado por universidades africanas, Klitzke, num relatório publicado no American Journal of Humanistic Psychology (“Students in Emerging Africa - Logoteo raphy in Tanzania”) constatou'que o vazio existencial pode ser observado no Terceiro Mundo, pelo menos entre os jovens de cultura 'universitária. Como anteviu Paul Pollak, numa conferência feita em 1947 na Sociedade de Psicologia IndividuaL “a solução da questão social deveria primeiramente liberar a problemática espirituaL mobilizá-Ia. O

oricmar as massas popularcs, cada dia maiorcs. a respeito da cscala objcliva dos valores e dos na'o-valores. Veriñca-se que se vai espalhando pelo mundo uma cegueira dianlc dos valorcs e alé um secrclo ceticismo quamo a sua cxistência. Por conscgu¡'nle, a humanidade ingressou numa fase caraclcrizada pclo dcclínio dos valorcs. A gcração que vive ncsse crepúsculo de valores". prosscgue o tcxlo dc Pfãndcn “c' ccga para eles c ncm desconña de sua 1'ncapacidade. A única teoria dc valorcs quc subsistc é o ulilitarismo, em que o intercssc gera| é lido não apenas como o mais allo 'inleresse', mas lambém como o mais elevado *valor'. não se percebcndo que elc pressupõc outro valor. não uu'|ita'rio. O pensamemo ñca a meio caminho. fal(a-lhc fundamcnto. A decadência dos valores faz o mundo e a alividade dos homens parccerem insensatos e cstéreis. A nalureza das coisas" - conclui - “não pcrmile. contudo. quc os valorcs scjam criados arlITlcialmenle. 0 conceilo de 'va|or' não admilc a imcrferência da vontadc dos homens. E preciso que 0 indivíduo seja gradaüvamcnte cducado c criado num ambiente impregnado do conhccimenlo dos valores. A cegueira nesse ponto propicia o surgimemo dos fantasmas do desespero e do scmimcmo de que a vida não tem scnti~ d04" (Obras póslumas sobrc Pcnomenologia c Eu'ca. organizadus por Herben Splcgelberg. volume l. Munique. Edilora Wilhelm Finp. l973. p. l27).

16

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

homem deveria 1ornar-se antes dc tudo livre, abordar seus problcmas inlcriores. reconheccr corretamente sua própria problemática exislcncial." Ernest Bloch martelou na mesma tecla quando adverlíu que “muitos hoje se inquietam com coisas que pertencem à hora da m0rte." De minha parte. ao tentar identiñcar as causas do vazio cxistenciaL reduzo-as a duas espéciesz carência instintiva e quebra dc tradíção. Em contraste com os anímaís, nenhum ínstínto ensina ao homem como é preciso agir; nenhuma tradição o ajuda a cncontrar o camínho do dever. Frequ“entemcnte, parecc até que ele nem sequcr sabe o que deseja. Limila-se a desejar o que os outros fazem ou a fazer o que os outros desejam. No primeíro caso, temos o conformismo. lípico do hemísfério ocidenlaL onde se vem difundindo, no segundo. o totalitarísmo, que prevalcce no hemisfério orientaL Não são apenas estes os cfeitos do vazío exístenciaL Cabe citar aínda 0 ncurolicismo. A par das neuroses de fundo psícológico, no sentido estrito, existcm as que chamci de noagên1'cas. ou seja, uma enfermidadc dc natureza menos mental do que espirituaL e não raro proveniente da convicção de que nada lem sentido. Num cenlro de pesquisas psiquiátricas nos Eslados Unidos c_riou-se um teste capaz dc estabelecer o diagnósüco diferencial da neurose noogênica. Jamcs C. Crumbaugh aplícou em l.200 casos o seu PIL-teste (PIL é a abreviatura para a cxpressão ínglesa “purpoxe ín lfie”), e após ter submctido os dados aos computadores concluiu estar díame de uma nova conñguracão nosológica - justamente a neurose noogênica - que não se enquadra nos ensinamentos da psiquiatría tradícíonaL seja no campo do diagnóstico, seja no do tratamento. Investigações estatísticas levadas a cabo em Londres, Massachusetts. Tubíngen e Víena conñrmaram símuhancamente que as ncuroses desse tipo surgem em

20 por cento dos resultados. Quando me interrogam sobre a dífusão do scntimento de vazio existencial (e não somente da neurose noogênica), costumo cítar uma amostragem estatística que durante anos venho rcalízando nos meus cursos na Faculdade de Medicina da Uníversídade dc Viena, e segundo a qual 40 por ocnto dos ouvintes já o experimentaram, cifra que sobe para 80 por cento quando se trata de norte-americanos. Por quê? Talvez porque nos países anglo-saxônicos predomine. na vida espirítual, o reducionismo, cuja caractcrística, como se sabe, é o uso da cxpressão “nada mais do que". Naturalmente, não estamos diante dc um fcnômeno exclusivo do nosso tempo. Há uns 50 anos, meu profcssor de Hístória Natural cnsinavaz “A vida, em última instância, nada mais é do que um proccsso de combustão, um caso de oxidacão". Ouvindo isso e sem sequer pedir permíssão para falar. levantei-me e veementemcnte lhe atirei a perguntaz “Bem, cn-

0 HOMEM EM BUSCA DO SENTIDO

|7

lão que sentido tem a vida?" Sejamos francosz na prática. o reducionismo se esconde por trás de um “oxidacionismo"... lmaginemos 0 que signiñca para um moço receber dos mestres o ensinamento cínico de que “os valorcs não constituem mais do que mecanismos de defesa e formaçõcs reativas", como está escrito no American Joumal ofPsycholherapy. Em face de tal teoria, argumento 0 seguintez no que mc díz respeito, nunca será um mecanismo de defesa que me dará a vontade dc viver. ncm mc inclinarei para a morlc impulsionado por alguma formação reativa. Não mc interpretam mal. Em The Modes and Morals of Psychotherapy, lemos a seguinte deñniçãoz “O homem não passa de um mecanismo bioquímico movido por um sistema de combustão que fornece energia aos computadores". Como neurologista. reconheço scr legítimo tomar o computador como modelo do sistema nervoso centraL O erro consiste no “nothing but", ' na asserção de que o homem não é senão um computador. Certamente é um computador, mas também é, ao mesmo tempo. muilo mais do que um compulador. A obra de um Goethc ou a de um Kant se compõe, no ñnal das contas, das mesmas 26 letras do alfabeto que compõcm um Iívro dc Courth-Mahler ou Marlítt. Mas que importa? Seria ínadequado ver em A Crítica da Razão Pura, ou mesmo em O Segredo da Anciã. um mero amontoado de caracteres gráñcos, a menos que se adotasse o ponto de vista de um impressor, e não o de um cdilor. O reducionismo é válido nos limites do seu próprío campo de ação, nada além. E 0 pensamcnto unidimcnsional lhe é fataL Antes de mais nada. porque lhe tira a oportunidade de encontrar um sentido. O fato de que o séntido de uma estrutura transcenda a soma de elementos que 0 constituem signiñca que ele se situa num nível mais alto do que aquelc cm que se localizam os elementos. Assim. pode acontecer que o sentido de uma série de acontccimcntos não se conñgurc na mesma dimensão em que eles ocorrem. Falta a tais acontecimentos uma conexão. Em virtude disso, veríamos nas mutações da Bíologia puras casualidades, e em toda a evolução um acidente. Na geometria. a curva sinoidalçortada perpendicularmentc não deixa. no plano de intcrscção, senão cinco pontos isolados, aos quais falta um clo de ligação. Em outras palavras. 0 que se omite é a sinopse. a consideração do sentido, mais elevado ou mais profundo, conforme o caso, do acontecimemo - na geometria. por exemplo, o plano dc in~ terseção ascendente ou a parte da curva sinoidal que ñca embaixo. 1 ' Em ínglês no original (N. do T.). 2 Ondc houver diferenlcs dimensõcs podc haver projeçõcs. Posso projclar um fenômeno da drm'ensa'o que Ihc é própria até oulra infcrion Um fcnômcno humano. por cxcmplo. é suscclível de scr transportado para um plano subumano. O processo é in-

18

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

Retornemos contudo ao semímento de que a vida carece de sentido. O sentido não é algo que possa ser dado, isso seria moralismo. E moraL na acepção tradicionaL é um conceito fadado a ser breve~ mente superado. Mais cedo ou mais tarde deíxaremos, com efeito, de moralizar e daremos à moral um caráter ontológico. O bem e o mal passarão a ser deñnidos não mais em função do que devemos ou não

lciramcntc legítimo, e penence à essência da alividadc cicnlíñca o fato de quc. por mzõu heurísticas. ela faça abstração da pluridimcnsionalidadc dc um fenômeno e parta da ñcção da unidimcnsionalidadc. Para citar meu caso. sou ao mcsmo tcmpo ncurologista c psiquiatraz como neurologista. vejo no pacientc apenas os seus renexos c como psiquiuxra. suas reações. Mas. como sc cosluma dizen “somenle um bom homem é capaz de ser um bom médico“, ou. como prcñro cxprcssan dc maneira mais modesta, “o mêdico dcve lambém ser um homem", c por isso o ncurologisla e o psiquiatra vêem o quc cslá por lrás dos reflcxos e daS' rcaçoes'. isto c'. a pessoa, enxergam além du doença o docnlc. pcrcebcm o quc eslá por dclrás do Homo IapÍPIIL o Homo palierm Na qualidadc de ser humano. o médíco examina o pacícnle c o segue alé a dimensão do humano, mame'm-se receplivo c alento diamc dcssa dimensão. No cmanto. também como cicntisla. há de ter consciência da ñctícia unidimensionalidade em quc rccai, e conscrvar o espírito aberto à consideração de oulras e mais allas dimensõcs. Se agir assim. mereccrá o nomc de sábio. pois a sabcdoria podc deñ~ nir~sc como um conhecimenlo associado à consciência dos limitcs do campo que lhe é próprio. E correme añrmar-se quc as Ciências naturais não consegucm descobrir ncnhuma leleologia. mas essa cxprcssão vazia deveria ser reformu|ada da scguinle maneiraz é vcrdadc quc no plano de projcçõcs das ciéncias nalurais não se configura nenhuma tclcologim mas isso não exclui o' fato dc que ela possa cxislir numa outra dimensão. superioL Scria lícilo. ponanto. falar~sc de uma Ieleologfa negaliva cstribada na noção de uma “leologia negau'va". que se recusa a dizcr o que Deus é. prcfcrindo h'mitar-se a d¡zer o quc Ele não é. Negar a possibilidade da existência da leleologia num nível superior ao das ciências namrais ullrapassaria o domínio da expcriência. já que se siluaria no campo da f_1losoña. N_ão de uma ñlosoña crítica. refletida, mas sim antiquada. dilclanle c apriorís~ uca.

0 HOMEM EM BUSCA DO SENTIDO

19

fazer. e sim da sua influéncia relativamentc à realização do scntido. posiliva no primciro caso, negativa no scgundo. O sentido não podc ser dado, deve ser encontrado. Certamcnte, é possível atribuir sentido a uma das manchas de Rorschach, mas aí o semido lem uma origem na subjetívídade de quem sc submete a sssa experiência projeliva e que, por esse mcio. se desvenda. Mas a vida não é um teste de Rorschach. é um enigma. O que chamo dc procura dc sentido equivale à apreensão dc determinadas características do reaL O próprio Werthemeier, ao se rcferír ao caráter objelivo das exigências inerentes a cada uma das situações que se apresentam na vida, pronunciou-se dentro da mesma orientação. 0 scmido há de ser encontrado. não pode ser criado. É. no entamo. fácil de cntender que o indivíduo que não mais esleja em condições de julgar que sua vida tenha sentido, e muito menos dc dcscobri-lo, venha a criar um não-senso ou um sentido puramente subjctivo, na tcntaliva de escapar desse sentimento de vazio. O primeiro caso se dá no palco (o teatro do absurdo); o segundo. no 1ranse. sobrctudo no produzido pelo LSD, quando o resullado é obtido sob pena dc ser deixado de lado o sentido verdadeiro das tarefas aulênticas do mundo externo (em contraste com um sentido experimemado na pura inlerioridade). Vêm-me à lembrança os animais cm cujo hípotálamo pesquisadores da Califórnia implantaram elétrodos, e que obtinham prazer mcdiante a satisfação do instinto sexual ou da alimentação tão logo a corrente clétrica fosse desligada. Ora, acabaram aprendendo a desligar sozinhos a eletricidade e posteriormente a prescindir do parceiro sexual e do alimento reais que lhes eram ofere~ cidos. O sentido não só deve ser achado. como pode ser achado. E nessa busca o homem é orientado pela consciência. Em uma palavra. a consciência é o órgão do xenu'du. é a capacidade de descobrir o sentido único e irreprodutível que se esconde em cada situação. Por outro lado, eslamos, hojc em dia. tâo dcñcientes nesse domínio que atribuímos. em boa parte. o vazio existencial à perda da tradição. Tendo as tradiçõcs perecido. não se foi com elas o sentido quc veiculavam? A resposta é não, e pelo simples motivo de que o caso das tradições afeta apenas os valores, de modo algum o scntido. Este é poupado. na sua condição de algo de único c irreprodutível.'- a ser descoberto 3 O senlido é na verdade lão singular quanlo cada uma das situaçõcs quc a vida aprcsenta, E nós próprios. quc nos deparamos com elas. somos singularcs c únicos. Disso não sc depreendc quc não haja um senlido da vida como um lodo, mas este só sc rcali~ za dcpois quc sc realizaram os sucessivos semidos dc cada uma das situaçôcs isoladas (o “valor de situação". na exprcssão dc Max Schclcr). De qualquer forma. somcnte o scntido parcial e' pcrceplível nesta vida. cnquanto 0 global não seria acessívcl scnão

20

FUNDAM ENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

oportunamente, cnquanto o valor constitui uma situação típica, recorrente. que caractcriza a condição humana. Em vez de algo de absolutamente singular, temos no valor um fenômeno dc índole universaL Em conclusão, a vida pcrmanccerá dotada de sentido. mesmo quando todas as lradições desaparecerem e nenhum valor de aplicação geral se mantiver. Não há dúvida de que a conscíência ê também capaz dc levar o homem por caminhos errados. Ainda mais: até o u'ltimo instante, até o último sopro, o homem não tem possibílídade de saber se realízou o sentido de sua existência ou se viveu na ilusãoz ignoramus c ignorabimus. O fato de que até no lcíto dc morte não lemos meios de nos certiñcar se a nossa consciência é um guia seguro ou um órgão enganador. signiñca. outrossim, que a consciência dos outros tem 0 dircito dc ser levada em consideração. Mas tolerância não quer dizer indiferença. Rcspcitar a opinião dos outros não é o mesmo que identiñcar-sc com elas. Vivemos numa época em que predomina um sentimento difuso de que a vida carece de sentido. Cumprc, portanto, que a educação não se Iimite a transmítir conhecimentos, mas contribua para o apn'moramento da consciência, de forma que o homem alcance uma sensibilidade suñcientemente apurada para captar as exigências íncrcnles a cada situação. Numa época em que os Dez Mandamentos para-

_cem ter perdido o valor para muita gente. o homem dcve estar apto a

aprender os Dez Míl Mandamentos que estão inscritos em código nas dez mil situações que ele enfrenta. Quando o indivíduo se toma atento às situações, a vida volta a ter senu'do para ele. E ñca imunizado contra as duas sequelas do vazio existencial que são o conformismo e totalitarismo. Uma consciência "a|erta” lhe dá a força de resistin e assim ele nem se resigna ao conformismo nem se curva diante do totalitan'smo. De uma maneira ou de outra, trata-se. sobretudo, de educação. mas de uma educação voltada para o senso de resp'onsabilidade. Ser responsável signiñca ser seletivo. escolher. Vivemos numa afjluent sociely ' saturados de estímulos recebidos dos meios de comunicação de massa. Vívemos na época da pílula. Sc não quisermos soçobrar na avalancha desses estímulos, numa total promiscuidadc, então tercmos de aprender a decidir o que é essencial e o que não é essenciaL o

posl morlem. ou seja. justamenle quando não cslañamos mais cm condições de vivê~lo ou expcrimentá-lo. Mais aindaz elc só poderia ser descobcrto. achado, satisfeito ou realizado sob a forma dc um scnlido de uma situação. assim como um ñlme que sc de~ senrola dianle do espectador é vislo a partir dos fotogramas que o compõcm. O enre~ do, porém, só se torna inteiramentc compreensível no ñnal da exibição. ' Em inglês no on'ginal (N. do T.)

O HOMEM EM BUSCA DO SENTIDO

Zl

quc tem semido e o que não tcm sentido, o que se justiñca c o que não se justiñca. Ouso prever que cedo ou tardc se apossará do homcm contemporâneo um novo sendo de responsabilidade. do qual a onda dc contestação que varre o mundo já é um prenu'ncio. Cumpre não esquccer, lodavia, que muitos dos protestos. como as demonstraçoc's hostis às experiências atômicas, são meramente “contra", e não ofcrccem uma altcrnaliva construtiva. A liberdade que se exerce arbitrariamente provoca degenerescéncia e dcstruíção; dcve, portanto, scr complemcntada pelo senso de responsabilidade. Minhas senhoras e meus senhores! Eu falo não como ñlósofo, ou pelo menos não exclusivamente nessa qualidade, e sim como psiquiatra. Nenhum psíquiatra, nenhum psicotcrapêuta - c, do mcsmo modo. nenhum logoterapeuta - está habilitado a indicar ao doentc o que é o sentido. Pode, ísto sim, añrmar-lhe enfaticamenle que a vída tem um sentido. Mais aindaz que esse semido, a vida o conserve cm quaisquer círcunstâncias. graças à possibilídade que a pessoa tcm dc descobrir um sentido mesmo para o sofrimento e de transmudá-lo, no plano humano, em realizações. Dito dc maneira diferente: cabcIhe mostrar aquilo dc que é capaz o homem até na derrota. Na mçsc ma linha de pensamento se expressou Lou Von Salomé numa carta em resposta a Freud. o qual não conseguia se rcsignar ao caráter incurável da enfermidade que o atormentavaz “Compartilhar o sofn'mento de outro e sua maneira própria de enfremar a situação é uma prova daquilo que está ao nosso alcancc." 0 logoterapeuta, na verdade, não obcdece a considerações moralistas, apenas fenomenolo'gicas. Não faz julgamentos de valor, límita-se a registrar os valores vivenciados pclo homem comum, o qual não perde de vista a relação com o sentido da vida, do trabalho. do amor, e. Iast but nol least, ' do valoroso sofrimento que resistc a tudo. O homem comum vê sentido em fazer ou criar. ter experiências ou amar alguém. Mesmo a uma situação desesperada, que ele cnfrenta sem espcranças. atribui um sentido. O que importa é a sua atitude diante de um destino inevitável e imutáveL E tudo que acabamos de referir é do conhecimento do homem da rua, ainda que por vezes não o saiba expressar. Se é verdade, como añrma Paul Polak. que a logo~ terapia. em teoria. traduz para a linguagem cientíñca a autocompreensão do homem comum, vale acresccntar que. na prática, cabclhe transpor de novo para a linguagcm do dia-a-dia seus conhccímentos das possibilidades de ser encomrado um semido para a vida. Como foi dado a cntender, a análise fenomcnológica dos valorcs do ' Em inglês no originaL (N. do T.)

22

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

homcm da rua permitc identiñcar uma axiologia caractcrizada por uma tricotomia. Três são os tipos de valorz criativos, vivenciais c atitudinais. Uma pesquisa fcita cm 1340 pessoas concluiu pela cxístêncía de uma hierarquia entre cles. vindo os atitudínais em primeiro lugar, seguidos pelos criatívos c os vivenciais. ^ chetmdoz a fenomenologla' transpoe° para a linguagem cientíñca o saber adquírido pcla observação do homem simplcs enquanto a logoterapia, partindo do que foi assímilado, traduz a teoria novamcnte para a linguagem do homem da rua, o que é perfeitamente possíveL Citemos o caso de Modcsto Canales, um trabalhador, “um homem da rua“, que, em seguida a uma palestra que pronunciei em Nova Orleans, contou-me que tínha estado durantc onze anos num estabelecimento penal onde lhe haviam dado para ler meu livro Man's' Search for Meaning (versão norte-americana), o qual fora a única coisa capaz de lhe servír de ajuda durantc todo aquele tempo. 4. Augustíne Mcier. numa dissertação para a Univcrsidade de Ottawa. cm l973, intilulada “Frankl's Will lo Meaning as Measured by thc Purpose in Life Test in Relatíon to Age and Sex Differenoes", informou. com base cm testes c cstatísticas. que o grupo clário dc 13 a lS anos tem mclhor compreensão dos valorcs vivenciais; cntre 45 c 55. dos criativos; acima dc 50. dos atitudinais. Por outro lado. sua invcsligação Ievou à conclusão irrefutávcl de que o descobrimento do sentido podc ocorrer. indepcndenlcmcmc de idadc, grau dc instrução. scxo c crcnça rcligioszL O que foi dito concorda intciramcnte com o resultado das invcstigaçõcs dc Lgonard Murphy em “Extem of Purpose-ín~Lifc and four FrankI-proposcd Life Objectives" (disserlação de 1967 para a Univcrsidadc dc Oltawa), igualmcntc baseadas cm tcsles e dados estalísticosz “As pessoas que escolheram Deus ou outra pcssoa como objeu'vo de suas vidas não diferem de mancira signiñcativa quanto ao dcscmpenho no testc. Ambos os grupos encontraram ígualmcnte scntido para suas vidas.” A conclusão dc Mcier. não no que respeita a difercnças cntre crcnlcs e ateus. mas no que se refere aos crcdos aos quais os indivíduos interrogados añrmam pertcnccr. é formulada da scguinte manciraz “0 fato dc que não podem ser detectadas difercnças nos testes de propósito na vida entre adeptos dc seilas divcrsas conñrma a idéia dc Frankl de que Deus. tal como é experimemado pelos mcmbros de vários cultos. é uma fonte de sentido para lodos eles.“ Segundo Meier, essas experiêncías cstatísticas “são compatíveis com a tcoria dc Frankl dc que todo mundo é capaz dc dcscobrir objctivos que dêcm sentido à vida". Rcsultados equivalenlcs foram obtídos com um trabalho investigador de Thomas D. Yarnell (“Purposc in Life Tcstz Further Correlates". Journal oflndividual nychology 27. 76, l972) c não somente com rclaçâo ao grau de instrução. sexo, crcnca rcligiosa. mas lambém no que concernc à idade c ao quociente intelectuaL Conformc rclalou YarnelL ele pôde vcriñcar. com o auxílio do testc de propósito na vida. que ncm cm 40 mcmbros da Força Aérea, nem em 40 esquizofrênicos internados se notou a menor correlação enlrc o senlimemo de haver encontrado um senlido para a vida e a idade ou o Ql. Crumbaugh. na mesma línha. não achou rclação. no resultado do teste. com o grau de inslruçãa Segundo lodas as probabilidades, os indivíduos, ponanto. estão capacitados a dcscobrir um scnlido para a vida. independemcmcme dc fatorcs como idadc, QI. ou grau de instrução, como concluiu YarneIL

0 HOMEM EM BUSCA DO SENTIDO

23

Ou devo aínda relatar-lhes a históría de Aaron MitchelL que aguardava a hora de sua execução na prisão dc San Quentin, pcrto de São Francisco, ondc os prcsos me haviam convidado pa'ra falaü Tratava-sc dos piores crimínosos, alguns condenados à prisão perpétua, outros, à mortc pela câmara dc gás. A cxccução de Aaron Mitchell estava marcada para alguns dias mais tardc. Em vista dísso, os detentos me solicitaram que pronunciasse algumas palavras dirigidas especialmente a clc. Depositaram conñança em mim. Dissc-lhcs que eu tivera também, anos atrás, uma expen'ência pessoal com a câmara da morte. mas que em ncnhum momento perdcra a esperança. Acrcscentei que a vida tem um sentido iscnto de limitações. Quc seja brevc ou longa, não importa. Ou a vida tcm um scntído, c cla o conscrvará, independentemcnte do fato de que sua duração seja grande ou pequena; ou a vida carecc de sentido. e aí também não importa o quanto dure. Disse-lhes ainda que mesmo uma vida arruinada pode readquirir riqueza de signiñcado desde que adotemos uma atitudc para conosco que nos pcrmita superar a nós mesmos. Narrci-|hcs A Morte de lvan llitch, dc TolstóL E clcs entendcram o que eu quis dizcr, os pobres diabos!... 0 Professor Farnsworth, numa conferéncia na Universidade Harvard, añrmouz “A medicina está diantc da tarefa de alargar seus horizontes e ampliar suas funções. Num período de crise como o que ora atravessamos, o médico há nccessariamente de incursionar na ñ~ losofia. O grandc mal dc nossos dias é a falta dc objctivo, o tédio. a carência de sentído e de propósito." Assim scndo. vé-se o médíco às voltas com questões de natureza ñlosóñca para as quais não está preparado. Pacientes procuram 0 psiquiatra porquc duvidam do sentido de suas vidas ou porque estão desesperados por não encontrarem um sentido'geral para a existéncia. Basta seguir o preceito kantiano, conforme já citamos, para que a ñlosoña seja usada como uma forma dc medicina. Se ela recuar diante da tarefa, é porque receia ter dc defrontar-se com o vazio existencial É claro que também podemos ser médicos sem cuídarmos intímamentc dc nossos semclhantes. Nesse caso - conformc comentou Paul Dubois, a propósito de uma situação análoga -, o médico só se distinguírá do veterinário pela clientela.

Os Descaminhos do Pensamento Psicoterapêutico

Para a psicologia dinâmica, o homem é menos um ente movidb por impulsos - conccpção que lhc tem sido atribuída com fíeqüência - do que um ente que, no ñnal das contas, visa satisfazer seus impulsos. Ou melhor, para usar uma fórmula de alcance geraL que visa satísfazer suas necessidades. É nesse sentido que opina D. McGregor. [l] “Todo comportamento humano é orientado para a satisfação das necessidades”. ' Fica patente, na verdade, que tal satisfação de minhas própñas neccssidades é uma paciñcação, uma tranqüilização de mim mesmo. “Ao longo da vida” - escreve 0. Murelius [2] - “esforçamo-nos por satísfazer várias necessidades, ou seja, reduzir tensoe's.” 2 Trata-se, assim, dc uma redução de tensoc's - possam elas ter sido produzidas no âmbito interno ou por estímulos de fora para dentro - tal como aparece na idéia de Freud [3] que idemiñcou no “aparelho psíquico" o “propósilo" dc “dominar c liquidar a multidão de estímulos e excitações provenienles de fora e de dentro". Trata-se, numa palavra. do restabelecimento de um equlll"bn'o. oonforme esclarece l. Knickerbocker |:4]: “Pode-se considerar a exístên~ cia como uma luta contínua para satisfazer neccssidades, aliviar tensões. manter o equilíbrio." 3 Em outros termos, estamos diame do

..›~

._. _.-

Extraído de Der Nervenarzt, ano 31, n° 9, 20 de setembro de l960, pp. 385-92.

l Em inglês no originaL (N. do T.) 2 Em inglês _no originaL (N. do T.) 3 Em inglês no on'ginal. (N. do T.)

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

pn°ncípio dc homeostasc dc B. W. Cannon [5], c com razão añrma Charlottc Bühler [6]: “Dcsdc as primeíras formulaçõcs dc Frcud do princípio dc prazer até as mais rccentes versões do princípio de homeostasc c rclaxamcnto dc tensôcs (como, por cxcmplo, represcntado no modclo dc Rappoport), o rcstabelecimento do equilíbrio individual tcm sido conoebido como o objetivo ñnal da vida ao longo dc toda a sua duração." ' Mas as críticas a cssa teoría ou “vísâo" do homem não tardaram a surgir. Assim sc manifcsta G. W. Allport [7]: “A motívação é tida oomo um estado de tcnsão, que nos lcva a procurar equilíbn'o, sossego, adaptação. satisfação ou homeostase. Deste ponto de vista, a parsonalidadc scria apenas o nosso modo habítual de reduzir tensões." 5 E acrescentaz “Tal formulação mostra-se inadequada para captar a essência do esforço propriamcnte dito, cuja característica é a de se opor ao equilíbrio. A tensão, em vez de sc reduzir, é mantida." Charlotte Bühler [8] aparcntemente scguc a mcsma Iinha quando observaz “As tendências fundamentaís da motivação são concebidas por Frcud em termos de homeostase. considerando todo comportamento como servíndo à restauração de um equilíbrio alterado. No entanto, o crescimento e a reprodução evidentemente não admitem uma ínterpretação baseada apenas no princípio de homeostase. A hípótese de Freud, inspirada na Física do seu tempo, e segundo a qual o relaxamento das tensoe's constítuí a única tendência primária da vida, não corresponde à realidade." Não se trata de simples restauração do equilíbrio intrapsíquico em geraL mas de algo como uma igualação, um compromísso cntrc as diversas entidades psíquicas. a saber, de um lado o ego, de outro, o id ou o superego. Ora, isso equivale a fazer abstração do que há de impróprio, do ponto de vista cientíñco, no fato de supor seriamente que exístam essas “pseudopessoas", como eu as denomino. Diz J . H. Masserman [9]: “A mitologia da psícologia dinâmíca não perde em nada quando comparada, quanto ao teor fantástíco, com a mitologia dos índios. Tendo criado essas fascinantcs dramatis personae, os primeiros cscritos freudianos descreviam o íd, o ego e o supcrcgo às voltas com estranhas ilusões, alianças subversivas, defesas desesperadas e vitórias de Pirro - combates tão fantasiosos e vívidos como os que a mitologia índia, a legenda homérica ou as sagas nórdicas pintaram. Hoje em dia, a maior parte da literatura analítica nesse campo mostra-sc mais sóbria (e. em conseqüência, lamentavelmente menos divertida), mas uma análise serena de muítos dos chamados °dinamis-

4 Em ingles' no on'ginal. (N. do T.) S Em inglês no originaL (N. do T.)

OS DESCAMINHOS DO PENSAMENTO PSICOTERAPEUTICO

tm~

26

27

mos psiquicos' revela a pobreza de sua concepção c sua natureza cssencialmente animista..“ ° Finalmente, junta-se outra dimcnsão onde se supõe havcr similitudez o compromísso entre “o aparelho psíquico" e a rcalídadc. a adaptacão do eu à realidadc. Charlotte Bühler [8] critica a conccpção freudiana do processo de adaptação, que “dá uma conotação negativa ao esforço visando o cquilíbrio do indivíduo adaptado”, quando, em verdade, “o indivíduo criador coloca seu produto c scu trabalho numa realídade que ele conccbe dentro de um enfoque positivo". .lá A. H. Maslow [lO] havia comentado: “Homeostase, equilíbrio,› adaptação, autopreservação, defesa. ajuste são conceitos meramente negatívos, e devem ser complementados por conceítos positivos.” 7 chundo a psicologia dinâmica, a realidade é apenas um instrumento para a satisfação dos instintos ou, mais precisamenle, o ganho de prazer. O “princípio de realidade” está também a serviço do prazer, representando uma simples “modiñcação“ ou “a continuação, por outros meios. do “princípio de prazer” (H. Hartmann, na revista Psyche, l4,8|, l960. “A Psicologia do Ego e o problema da Adaptação”). Por isso, dc acordo com.Freud[l lJ, “um prazer momentânco e de conseqüências incerlas só é abandonado com vistas a se alcançaf outro mais garantido.” No quadro dessa concepção do homem, os objctos que ele encontra no curso de seu “ser no mundo” - as coísas - ou as pessoas com as quais se depara quando de seu “ser com os outros" (M. Heidegger) - os parceiros - constituem meros instrumcntos para a satisfação de necessidades. A visão do homem acima exposta foí esquematizada de acordo com o modelo inspirado na obscrvação dos animais. Ela sc harmoniza de fato com as idéias que podemos formar a partir das imprcssões deixadas pclo relato das ex eriências com animais feitas por Olds, P. Milner [12] J. V. Brady [13 . G. Werner 043 e outros, e nas quais foram empregados auto-estímulos elétn'cos. Os ratos de Olds. por excmplo, aprenderam a desligar a corrente que alimentava os elétrodos implamados no cérebro puxando uma alavanca e provocando. assim, alívio e prazer. Esse estímulo acidental transformou-se num hábito fervoroso, em dctrimento da satisfação normal proporcionada pelo alimento ou os objetos sexuais (R. Jung [15] ). Os objelos intramundanos scrvem apenas como meios para restaurar cstados in-

6 Em inglês no originaL (N. do T.) 7 Em inglês no originaL (N. do T.)

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

OS DESCAMINHOS DO PENSAMENTO PSICOT_›ERAPEUTICO

29

-Mesmo deíxando de lado cssa neutralidade idcológicocientíñca, a conccpção do homem adotada pela psícologiá dinâmica apresenta ainda outro aspecto funesto, qual seja, o de que ela faz o jogo da neurose. Com efeito, tão logo a autocompreensão do neurótico é inñuencíada por uma interpretação unilateral e exlusívamente dinâmica da vida humana, sua ínclinação ara focalizar a atenção sobre si mesmo é nolens volens reforçada-. típico do neurótico - a exemplo dos animais das cxperiências dc Olds, Brady, Milner e Werner - não mais sc oríentar no rumo das coisas. preferindo concentrarse em seus próprios estados mentais. Ao contrárío do homem normal, que se estrutura e orienta cm relação a pessoas e parceiros. objetos e coisas no mundo. ele se líga a situações internas, sejam elas tingidas de “semimentos de carátcr geral - “sentimentos sítuacíonaís” (segundo M. Scheler) - ou, cspec1'ñcamente, sensaçõcs de prazer c desprazer. No cntamo, se obcdeccsse a sua natureza origínaL o homem não daria maior atenção aos estados ínteriores, particularmente às sensações de prazer c desprazcr; cle se dedicaria aos objetos, ao

._ T ..,¡ ._v , fmvfw V _

Com tudo isso. não é destituída de ínteressc ou indiferente a tarefa de construír uma imagem adequada do ser que se reñra, doravantc, não à “vísão”. à “teon'a”, mas à “prática”, à alividade clíníca. Com efeito'. é de valor duvidoso adotar uma visão teóríca que abrigue conceitos como responsabílidade e líberdade e, ao mesmo tempo, na prática. deíxa'-los de fora, inoperantes. Tal atitude equivale ao que poderíamos designar de neo-averroísmo. Como se sabe, a doutrina de Avcrróís permitia a coexisténcia dc duas verdades divergemes: de um lado, a verdade da fé; de outro, a do conhecimenm Hoje, em lugar disso, temos, de uma partc, a verdade de uma antropologia unidimcnsional muito abrangente, e em contraposição, a verdade de um psicologísmo dinâmico.

"-" V“" .«.

sx -""',

trapsíquicos. R. Jung Dq salienta que os animaís das experiências tinham tido durante o dia um comportamento suscetível de scr interpretado nos tcrmos do “príncípio de prazer da primeira fase da psicanálise". Com efeito. eles se componaram, conforme podemos formular, lal qual o homcm no conceito de uma psicomecânica que, por cufemismo. quer ser chamada de psicologia dinâmica, isto é, sc interessando pelas coisas tão-somente na mcdida em que elas represenlam um meio para um ñm, ou seja, a rcstauração de um estado que é o de uma necessídade satísfeila. Acrcscente-se que o “estímulo eIétri~ co normal” produz uma “excitação que não se pode Chamar propriamente de ñsíológica c que o ambiente de ísolamento do engradado cm que ñca o animal contribuí para o surgimcnto de um comportamento mórbido” (R. Jung [16]).

7"'.'2'-T

"

r'

28

sentido e ao valor. Por isso, a Iogoterapia, a cssc respcito fala de uma vontadc de sentido ' e a considera - cm contraste com a vontadc de prazer. ou a vontadc do prazer, ou ainda a vontade do poder - como algo de primário. A vontade de sentido é primária. Todavia. tão logo fenômcnos especiñcamente humanos, como scntido e valor, sejam projctados do plano noológico para o psicológíco e inlerpretados à luz da psicologia dinâmíca, adquirem a aparência de secundários. ou melhor, tudo que é normativo passa a dar a ímpressão de secundárío. para não dizer deñciente. Como observou Charlotte Bühler °: “As teorias da satisfação das necessídades, todas mais ou men'os sob a inñuência avalassadora de Freud, reduzem o *deve ser', o aspeclo obrigacíonal da vida, a um plano secundário." 9 Aproveitando uma expressão de L. Seif, pode-se dízer que hojc em dia é mais fácil do que nunca qualiñcar a típica ínclinação neurótica para uma situação absolutamente ísenta dc conflítos (homeostase) como sendo justamente a meta da existêncía do neurótico. Afora isso, uma marca da época em que vívemos é o fato de que o consumo, para não dizer o abuso, de tranqüilizantcs se lenha expandido tanto, desmascarando as tendências neu›róticas increntes à busca da ataraxia. O que, outrossim, lança luz sobre o rumo para o qual sc dirigcm os interesses da neurose coletiva são os títulos decertos bestsellers, como Peace of Mind ou Pursuil of Happiness. ' Este último título é bem um sinal de que todo esforço neurótico é em si mesmo destinado ao fracasso, pois a felicidade não vem quando a tratamos como um objetivo visado dirctamente; ela é um subproduto. Do mosmo modo, só em casos cxcepcionais o prazer pode representar um ñm do comportamento humano (Kant. Scheler). o qual lende originariamentc para 0 preenchimento do senlido e o desenvolvimento do valor. A caça à felicidade acaba por expulsá-la, bem como a procura do prazer tem por resultado afasta'-lo - pelo menos é o que nos mostram os numerosos casos de conflitos neuróticos sexuaisz o prazer

foge do homem .quando este o assedia, e só aparece sob a forma de um “efeito”.

8 Não se devc cnlendcr cstc conceito numa accpção volumaristaL 0 fato de que facamos rcferência a uma “vomadc". c não a um “instinto". não signiñca adesão ao valuntarismo. É que se sc tratasse de instinto. o homem só realizaña o sentido com o ñm dc sc liberlar do aguilhão do impulso c rccuperar o equilibrio. Emão. não estaria efetivamcnte visando o senlido. apcnas eslaria procurando atcnuar a pressão do instinto; e toda a nossa tcoria sobrc a motivação da condula rccairia sob a influéncia do princí~ pio de homeoslasc.

' Em inglês. no originaL (N. do T.)

OS DESCAMINHOS DO PENSAMENTO PSICOTERAPEUTICO

Com rclação ao homem. em sua origem, a essência, o que conta é o precnchimento do sentido e a efetivação do valor - em síntese, a realização no plano exístencial (a nosso ver. “existencial" tem a vcr não somente com existência, mas com o sentido dessa exístêncía). O oposto da rcalização existencíal é o que, cm logoterapia, chamamos de vazio existenciaL Bem. para comprcender quão pouco sc justiñca uma teoria do homem baseada na salisfação das neccssidades, basta fazer a scguinte renexãoz se o conjunto das necessidades expcrímentadas em dcterminado pcríodô fosse saüs'feito, dísso resultaria uma sensação de plenitude? Ou não se daria o contrário, ísto é, uma impressão de profundo tédio, dc falta de chão ñrme onde pisar - em outros termos, o vazio existencial? Nós, neurologístas, temos uma experiência diária, nas consultas, de confrontação com esse vazio. Uma pesquisa cstatística efetuada pelos meus colaboradores entre pacíentes e pessoas normais. assim como entre os próprios proñssionais encarregados do tratamento médico, demonstrou que 55/,,° dos ínterrogados admitiam haver sentido essa impressão de vazio. Depois da expulslão do homem - na condição autêntíca de ser humano - do Paraíso, a segurança e a certeza proporcionadas pelo instinto e próprias dos animais se extinguiram. E a cssa perda sc ajuntou outra, a da tradíção. O homem se víu dimínuído não só no terreno vilal, como também no sociaL A reação a esse vácuo interior consíste no que a Logotcrapía desígna como ncurose “noogência”, islo c', uma neurose que nâo provém de conñitos ou complexos mentais, mas dc problemas espirituais e existenciaís. Não se trata, portanto, daquele conñito de impulsos quc a psícologia dinâmica analisa, mas, no fundo, de uma colisão de valores, de uma luta cm torno do sentido da existência que deve decidir quais os valorcs mais altos em outras palavras a vontade de sentido. Esta noção implica a existência de uma lacuna, com base na cxperiéncía e apoio em amostragens cstatísticas scgundo as quais 90/°° ou mais das pessoas ínterrogadas a respeito e'xpressaram a opinião de que o homem prccisa de algo “para o que" viver, algo ao qual 60/0° declaram estar dispostos a dedicar suas vidas. A vontade de sentido não é um simplcs conceito, é um fator terapêutico. Seu despertar constituí o único recurso à disposição do homem modcrno - e não apenas do enfermo - capaz de ajuda'-lo a superar o vazio existenciaL Para cssa superação, a Logoterapia, na condição de terapia por meio do logos, ou seja, do senlido, pretende contribuir. É evidcntc que não basta receitarmos para nossos pacientes o tão falado hobby. Do ponto de vista existenciaL pouco importa saber se alguém é ou

waxúvmwm

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

.¡-<_.

30

31

não colecionador de selos. 0 que cstá em causa, num dado momento, é um sentido de vída concreto e pessoaL cuja realização se exigc c espera de cada indivíduo; só ísso tem dignidade enquanto terapia. Em conexão com o termo “Logoterapia”, “Iogos" não dcve scr entendido somcnte no signiñcado original de “sentido", mas no de “espírito”. “Se respeitarmos a realidade que nos é 'dada', como ensina a fcnomenologia, então distinguire_mos três formas dc scr: corporaL mental e espin'tual” (F. S. Rothsch1'|d[l7_'|). Analogamente, cabenos diferençar entre somato, psico e noogênese. Como um exemplo e paradigma do nagrante desprezo pcla difercnça dimcnsíonal entrc a somato e a noogênese, pode-se citar a interpretacão da depressão endógena como uma docnça quc tcm por base literalmente a culpa existenciaL “' Uma coisa é levar a sério o doente, e outra tomar a doença ao pé da letra. Que o pacíentc atacado de deprcssão endógena acredite ser culpado existencialmente ou de outra forma, isto é patognomônico, mas não patogênico - é algo que pertcnce à sintomatologia da doença, e não à sua ctiologia. Outra coisaz se o médico não se contenta em atribuir à culpa existencial um papel patogénico, mas vai além e não hesita cm condenar o deprimido apresentando-lhe diante dos olhos a causa presumível da enfcrmidade, agravar-se-á de forma absurda a auto-acusação tão típica nos casos de depressão endógena. Pensemos um pouco num caso análogoz quando me ínstilam um mídriático e, em conseqüência, a luz do dia passa a me ofuscar, o fato deve ser imputado à midríasc, e não à luz; quando, como sequela de uma paresia faciaL se manifesta uma hiperacusia e o barulho da rua me perturba em demasia, a hipcracusia não foi provocada pelo baru1ho. O mesmo se passa na depressão endógena, que faz aparecer uma culpa que é inerente à existência e, de modo algum, a causa da enfermidade. É, sim, o efcito de uma “hiperacusia" da consciência, que se traduz no absurdo das auto-acusações e na intensídade da “voz“ da consciência. “ lO Quando L. Biswangcr (no seu trabalho “M artin Heidcgger e a Psíquialria". publícado no Neue Zur"cher Zeilung. de 26 de sclcmbro de l959. p. lO) indicou não tcr sido ^°possívcl atê hoje dcscobrir qualqucr anormalidade ccrebral ligada às doenças mcntais mais difundidas. a sabcr. a csquizofrenia c a psicosc maníaco~dcpressiva“. cabe acrescentar quc não só não sc conscguiu esclareccr a ctiologia somatogênica das psicoses_ como também não se pôde ainda compreender a sua simomatologia psíquica. ou scja. “não se alcança caplar como é que docnças mcmaís do tipo da paralisia gcral progressiva" ou “as demências. em quc se vcriñcam claras altcraçoc's do córlcx carebraL em vez de limitarem a condição dc doenças cerebrais, rcpresentam lambém inalterudameme docnças mcntais, no sçnlido próprio da cxpressâo" (loc. cil), ll Quando. no refluxo da maré. um rccifc sc lorna visích a ninguém ocorreria añrmar que o recifc scja a cau'sa da marê. Por intermédio dela ele simplcsmemc aparece. 0ra. alravés da depressão endógernm não scria o caso de dizcr que o abismo entrc o ser c o devcr ser meramcnlc sc rcvcla. por meio dcssa ma¡é vilal?

32

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

OS DESCAMINHOS DO PENSAM ENTO PSICOTERAPEUTICO

33

K. Goldstein situa-se entrc os primeiros e mais enérgicos críticos da tesc que vê no homem uma criatura voltada para a satisfação dos impulsos ou, em geral, das necessidades; argumenta contra a teoria, muito difundida no campo da motivação. segundo a qual o motivo fundamental sería a redução da tensâo e. por conseguinte. o restabeIecimento do equilíbrio, e levanta objcções à homcostase como teoria motivacional; contraría a idéía de que o objetivo dos impulsos seria a elíminação da tensão perturbadora que eles mcsmos produzem. Em suma. opõe-se ao príncípio de prazer de Freud e à lcoria da distensãoz “para Goldstein, uma pessoa cuja principal meta é a manute'nção do nívcl dc adaptação já manifesta sinais de doença. No eslado dc saúde. a expressão de si mesmo e a auto-realização constituem o motivo essencia|." ” (Z. A. Piotrowski [l8]). Charlotte Bühler [I9] também contrapõe a teoria da autorcalização à teoria da satisfação das neccssidades ao resumir a situa~ ção nestes termosz “Hoje em dia, distinguem-se, na verdade. duas concepções principais quanto às tendências básicas da vida, na medida em que a qucstão é objeto de cstudo por parte da psicoterapia. A primeira pertence à teoria psicanalítica. que vé no reslabelecimento do equilíbrío homcostático a única tendência primária da existência. Esse equilíbri0, segundo essa concepção, precisa ser restaurado por meio da dosagem balanceada de satisfação das necessidades, da aprecíação correta da realidade e da observâncía dos deveres. A segunda concepção foi originariamente defendida por Nietzsche e depois adotada. com variantcs. por Carl Jung. Karcn Horney - adepta da “nova psicanálisc" - Erich Fromm. Frieda Fromm-Reichmann. Kurt Goldstein, Abraham Maslow, Carl Rogers, o representante da psic0logia organísmíca. J. H. Schultz. segundo a idéia de um “Crescimenlo" mental e. enñm. pelos existencialista5. no contexto da noção do encontro de si mesmo." Se passarmos à crítíca dessa segunda tcoria motivacionaL veremos logo, em particular no que concerne à nova psicanálíse. o aspecto que H. Elkins [20] ressalta ao falar de Horney e Fromm: “Suas concepções revestiram-se de conotações místicas que lembram a noção do si mesmo elaborada por Jung. a quaL por sua vez. faz pensar nas conotações místicas das religiões orientais.“ ” Já Charlotte Bühler [6] havia feito a seguinte crítica: “Os adeptos do princípio de auto-realização deixam-se. ¡'nfelizmente, seduzir pcla tendência em voga no pensamento atual a ponto de voltarem a

se rcfcrir a °necessídades' c 'impulsos'.” " Deplorou espcciñcamcnte o fato dc Goldstein chamar a auto-realização de “impulso" c de Maslow citá-la como uma “necessidade”. De nossa parte. achamos. porém, que a polêmica de Bühler não foi corretamente equacionada, já que cla própria reclama contra o fato de que a auto-rcalização não cstá claramente formulada e de que não se sabe como ela sc produz c em que consíste a sua dinâmica (sic!). Dessa forma, a autora inverte os termos do problema, fazendo com que parcça que a dinâmica dos impulsos e necessidades satisfaça nossa necessidade de autocompreensão. Não devemos contudo, esquecer, segundo W. Keller L22], que “a suposição baseada na teoria do conhecimento do período moderno de que toda a realídade e, por consegu1'nte, também a existência humana, tenha de scr concebida de maneira metódica como dependendo exclusivamente de condições dadas, fatores atuantes e causas dctcrminadas, já foi, quanto ao aspecto da 0brigatoriedade, amplamente superada pela evolução dos acontecimentos históricos; no mesmo caso se sítua o modo de pensar que procura entender as vivências e o comportamento do homem, assim como seu desempenho no plano espírituaL segundo o princípio de uma infra-estrutura de processos mecânicos, dinâmicos e energéticos. modo de pensar que não é dígno de crédíto, como tem sido comprovado claramente.”

|2 Em ínglés no oríginuL l3 Em inglês no originaL

14 Em I'ngles“ no originaL lS Em inglês no originaL

Não basta. como faz Charlotte Bühleríl9], limitar-se à evidência de que “em num_erosas culturas, inclusive na nossa, existem pessoas que não colocam em primeiro plano a auto-realização e perseguem outros objetivos". O que. pelo contrár¡o, ressalta é a circunstância de que se trata de puro “psicologísmo" quando o indivíduo, mesmo no esforço de auto-realízaçâo, se subordina a um mecanismo de impulsos e parace empenhado em satisfazer o aparelho psíquico e em se tranqu"ilizar, |ivrando~se das tensões. Além disso. cumpre notar que a “monadologia”, como costumo dizer, ou. em outras palavras. a-condição do homem privado do mundo, lal como o conccbe a psícología dinâmica, não é superada, em defmitivo. apenas com o fato de o mundo deixar de ser vxsto como um meio para um ñm (assim como não foi superada pela teoria mais amiga do homem voltado apenas a satisfação de suas necessidades). “0 mcio ambiente não é mais do que um instrumento para a pessoa alcançar o ñm. que é a auto-realízação” (A Maslow [10], p. ll7). “ Esqueçamos a questão do meio para um ñm e nos concentremos no ñm em si. 0 homem realmente o visa ou ele só lhe interessa na

34

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

mcdida cm que favorecc a auto-realização? Anteriormcnte, já sc disse que a tcsc da logotcrapia é bcm díferentc: para ela, o homem é na verdade (ou se não maís o e'. o era pelo menos on'gínariamente) voltado para a realízação do sentido e a efetivação do valor; a busca de prazer (príncípio de prazer da psicanálise) e a vontade de poder (anseio dc mando, da psícologia índíviduaD são modalidades °°cundárias c deñcientes da inclinação normal c primária do homcní para a rcalização do sentído c a efetivação do valor. Veriñcamos, portanto, quc nesse contexto não é o caso de se falar cm satísfação ou alívio. mas em preenchimento, realízação, pois só sou capaz de satísfazer mcus própríos ímpulsos, minhas próprias neccssidades. ou, cm última análise, a mím mesmo. No que concerne ao scntido e ao valor, trata-se, pelo contrário, de algo que “vcm a mim”, de algo que me é trazido pelo mundo. não de algo que seja a simples exprcssão de mím mesmo ou a projeção de meus próprios impulsos e neccssidades. É assim, no entanto, que o valor é considerado pelo monadologismo. e nisso o existencialismo não constitui exceção quando deixa o mundo dissolver-se num projeto. Do slogan existencialista “ser-no-mundo”. pouco maís resta que um ser solipsista. ao passo que o mundo oorrelato é visto como um mero esboço. 0 fato de que o sentido reside no mundo e não em nós mesmos tem tal alcance que, na verdade, o homem não devería perguntar pelo sentido da exístência, mas, 1'nversamente, considerar a si mesmo como o interrogado, sua própria existência como o que deve ser interpretado e questionado. A vida lhe faz uma pergunta, cabe-lhe responder e, assím fazendo, ser responsável.* Deve, por conseguínte, buscar uma resposta para a vida. buscar o sentido da vida; este, todavia, precisa ser achado, e não inventado. O homem não pode simplesmente “dar" um sentído à vida, tem de “experimentá-lo”. x Como ñca, cntão, a auto-realização? Não existirá algo assim como a satisfação de si mesmo? Evidente que sím, mas somente na mcdida cm que o homem realizar o sentido e efctivar o valor, o que é uma maneira dc se realizar e de se concretizar como ser humano. A auto-realização manifesta-se, portanto, como um efeíto da concretização do valor e da realízação do sentido, nunca como o objetivo desscs dois processos. Pelo contrárío: se o homem quisesse fazer a sério da auto. rcalízação um 'objetivo imediato, fracassaria. Já havíamos visto algo de scmelhante no caso da intenção, ou melhor, da ímpossibílidade de

“intencionar“ o prazer.

' 0 aulor faz um jogo dc palavras com os signiñcados de antworlen, beanlworlen e vemnlworlm (N. do T.)

OS DESCAMINHOS DO PENSAMENTO PSICOTERAPEUTICO

35

Digamos, em síntesez somente a cxisténcia que transccndc a si mesma, somentc a vída humana que ultrapassa seus limites na direção do mundo é capaz de se realizar. Do contrário, ao visar diretamente a auto-realízação, fracassa. Desta vez damos razão a Charlotte Bühler [6] . quando cscrcvez “0 que eles (os representames do princípio de auto-rea|ização) na verdade queriam dizer é que se trata de realizar o potencial individual." "' E cita Fromm. para qucm “todos os organismos têm uma tcndência inerente a concretizar suas potencialidadcs especíñcas". ” Realmente, toda auto~realização objetiva basicamente'a efetivaçâo das possibilidades de cada um. Seria esta, então, a ñnalídade? Para simpliñcar, lcmbremo-nos do precedente histórico dc Sócrates, pensador que indagou o que teria sido dele se houvesse desenvolvido todas suas possibilidades adormecidas. Deu-se conta de que no conjunto havia também nele o germe do malfeitor. Que quer isto dizer? Quer dizer que não devemos cogitar de desenvolver um potencial qualquer, de dar expressão a tudo que em nós venhamos a descobrir, mas somente o que é nosso dever cultivar. Chegamos. com ísso, diante de um ponto capitalz é que o verdadeiro problema é camuflado pelos que vivem a falar dc potencialidade (os “potencialistas”, como os designo). E o verdadeiro problema nada mais é do que o defrontar-sc com o valor, decidir qual das possibilidades merece ser dcsenvolvida, qual é necessária. A confrontação com essa problemática cquivale à confrontação com a nossa responsabil1'dadc. Não constitui novidade o fato de que o psicolog1'sm0, do qual aparenlemenle o potencialismo ainda não foi capaz de se liberar, deixa de perceber a colisão de valores. já que tanto o sentido quanto o valor só se manifestam no campo humano-espíritual e não no plano psíquico, no qual se projcta justamentc o psicologismo. Ele só conseguc distínguir o conflito de impulso, ignorando quase por completo a oposição de valores. a exemplo. aliás, do que faz o próprio neurótico. Que intercsse há na origcm da investígação da problemálica do valor, diante da qual mesmo o potencialismo se esquivou? Bem, de início, digamos que o escapismo faz adoecer. Charlotte Bühlerjá observou que “tudo parece tão simples, como se fosse algo de evídente, desde 0 momento em que se fala no objetivo de cada um tornar-sc o que na verdade é”. '° De nossa parte. diríamos que não só parece simples, como agradáveL Com cfeito, se me levam a crer que sou. e

16 Em ingles' no originaL l7 Em inglés no originaL 18 Rollo May.

36

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

sempre fui, o que dcvo ser, então me livram do tormcnto da escolha, poupam~me do trabalho de dccidir, em cada caso, qual das potencialidades devo rcjeitar. deixando-a no limbo, e qual dentre elas devo imortalizar. cultivando-a. Justamcnte as possibilidades são, por sua transitor1'edade, pre~ servadas no passado, tão logo se vêem realizadas. Não ñcam nele esquecidas, e sim aninhadas, protegidas. Pois o que aconteccu uma vez nunca mais pode ser desfeito, expulso do passado. Mas não se torna tudo mais importante precisamente pelo fato de cair no passado? E é o que marca profundamente a responsabiiidade do homcm. Vemos, portanto, quc ao tormento da escolha se acrescenta a pressão do tem-

po.

0 tormento da escolha - ainda mais sob o efeito da pressão do tempo - é que induz os homens. nos moldcs do potencialismo, a atrelar sempre a noção do que é devido à noção do que já é sabido, reduzindo destartc a tensão entre o ser e o devcr-ser. lsso, contudo, equivale a submeter-se o homem ao princípío de ncutralização de Iensões característicc da neurosc. como já assinalamos. O potencialismo insuprimível e inalíenável na medida em que se radica no próprio homem - tende a anular a tcnsão cntre ser e dcver-ser, enquanto o existencialismo procura superar a separação entre sujeito e objeto, mais que isto, pretende já o ter conseguido. Que validade tem tal pretensão? Achamos que num tal projeto o resultado almejado só pode ser atingido com o sacriñcio ou do sujeito ou do objeto. M. Thiel a esse respeito fala em “auto-engano” e añrmaz “0 existencialismo. na medida em que pensa, permanece no domínio da separação sujeitoo.bjeto". Quem, por conseguinte, tencionar, nos termos do provérbio popular, jogar fora ao mesmo tempo a criança (o objeto) e a água da banheira (o cartesianismo), dcixando-se seduzir pelo palavreado em torno de uma possível scparação sujcit0-objeto, há de ser admoestado de que tal coisa não é possíveL Nem possível nem necessária. Assim como, no campo decisórío, as exigências da situação não constituem uma expressão da pessoa (sua projeção no mundo) da mesma forma, no campo cognitivo, há uma transcendência, isto c', algo mais do que a simples expressão da interiorídade. Somentc na medida em que a existência humana se constitui como sujeito visando um objeto. somente a esse preço, o conhecimento é possíveL Ele se baseia no campo tensional em que se encontram o sujeito e o objeto. Toda a “noodinâmica" tem aí, em suma, suas raízes. O desconhecimento da noodinâmica, a negligência do correlato objetivo do conhecimento correspondcme não só a um subjetivismo vago. mas a um típo especíñco que podemos denominar “calidoscopismo”. Através de um calidoscópio, só ele mesmo se torna visíveL

OS DESCAMINHOS DO PENSAMENTO PSICOTERAPEUTICO

37

enquanto através dc binóculos é possível observar uma cena de teatro ou as cstrelas, conforme o caso. O calidoscopismo signiñca quc o homem, ao lançar-se no mundo, só consegue projetar o seu próprio mundo, só alcança expressar a si mesmo e por conseguime no mundo acaba encontrando só a si próprío, a ele. o “lançador”, o único a se tornar visíveL Precisamente como o “lançamento" de pedras colorídas. no exemplo do calidoscópío, tem por efeito de um modo ou de outro uma ordenação, na opinião de L. B1'nswanger[24], ao lançar-se do ser corresponde um projeto de mundo. poís, ainda segundo ele, “a existência, em seu projeto de mundo, não é livre”. à sua “nãolíberdade“ corresponde a “condição de ser lançado do ser-aí”. por exemplo, “a melancolia é uma doença espiritual da existência como um tod0, íncluindo. portanto, o fator espiritual no homcm“. De forma análoga se expressa J. Zutt [25]: “Uma alegria, uma tristeza, um desgosto. um mau humor... taís estados de ânimo não constitucm tendências isoladas dc uma vída anímica solípsista, mas ígualmente meios de tornar evidcnte uma determinada realídade do mundo." A. Storch bate na mesma teclaz “Se o mundo oríginariamente aparece em outra pcrspectiva, abre-se, añnaL uma brecha pela qual se divisa no horizonte uma ordenação possível, válida para cada um, ou seja, o conhecimcnto de um mundo coletivo, na condição de objcto discerníveL ñrme, identiñcávcl (E. Straus).“ A nosso ver, o lançar no mundo não é o projeto subjetívo de um mundo subjetivo. Pode ser corte subjetivo, mas um corte que o sujeito efetua numa rcalidade objetiva. Em outras palavras, este mundo é essencialmente mais do que mera expressão do meu próprio ser. Retornando agora à comparação com o calidoscópio, diremos que somente na medida em que eu desisto, em que renuncio ao meu ser-assim, tudo que é mais do que eu pode tornar-se visíveL Esta renúncia é o preço que devo pagar para conhecer o mundo, para conhcccr aquilo que é mais do que a simples expressão do meu próprio ser. Em síntesez devo transcender a mim mesmo. Se não puder fazêlo, então minha capacidade cognitiva ñca restríngida; eu mesmo e o conhecimento de mim mesmo ñcamos no caminho, tornamo-nos obstáculos. Ad hoc, uma derradeira comparaçãoz quando é que os olhos (execctuando-se o caso do espelho) se podem ver'? Só nos casos de turvação do cristalino ou do corpo vítreo. quando a capacidade visual já está afetada. Em outras palavras: a reflexão é um modo deñciente e secundário de intenção do ser, do mcsmo modo que o é a auto-realização com relação à imenção de realização do scntído.

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGÍCOS DA PSICOTERAPIA

O normal e fundamcntaL mesmo para o neurótico, não é satisfazer os instintos e as necessídadcs, a ñm de restaurar o esquilíbrio psíquico; é. essencialmente, ou pelo menos, originaríamente, realizar um sentido. concrcnz'ar um valor, e só na mcdida em que assim age é que o homem consegue se realizar. O mundo não é nem um meio para um ñm da satisfação dos instintos e das necessidades. ncm de expressão de si mesmo na acepção de um “projeto de mundo”. A humanidade se coloca absolutamentc c irremedíavelmente num campo polar de dupla tensão entre 0 ser e o dever~ser, entre o subjetivqe o objetivo. Assim como o potencialismo ignora o primeiro, o calidoscopísmo ignorà o segundo. Em vcz do ser-no-mundo, aparece aqucle desvinculamento com o mundo pelo qual o monadologismo tanto desvirtuou a concepção do homem.

39

Bíbliograña ã McGrcgor. D.: .I. Social lssues. 4. S. 1948.

m

W làü

Resumo

OS DESCAMINHOS DO PENSAMENTO PSICOTERAPEUTICO

ÍUD em

38

Murclius. 0.: .I. Psychother. 12. 64|, l958. Freud. S.: Gesammelle Werke XL S. 370. Knickcrbocker. l.: .I. Social lssues 4. 23. l948. Cannon. B. W.: The Wisdom ofrhe Bady. Nova York. l932. Bühlcr, Charlottez “Basíc Tendencies of Human Lifc. Thcoretical and Clinical Considerations". ln: Wisser. R. (org.): Sein und Sinn. Tübingen. l960. Allport. G. W.: Becoming, Basic Consideralionx far a Psychology of Personalily. New Havcn, Yalc Univcrsity Prcss. l955. Bühler, Charlottez PsychoL Rdsch. 8, l956. Masscrman. J. H.: “Science, Psychiatry and Religion". ln.' Progress in Psychatherapy, voL lV. org. por .I. H. Masserman e J. L. Moreno. Nova York, Grune & Strauom 1959. Maslow, A. H.: Motivation and Personali1y. Harpcr & Brother. Nova York 19S4. Freud, S.: Gesammelle Werke Xl, S. 370. Olds. .I., Milner. P.: .I. Comp. PhysioL PsychoL 47. 4l9. l954. Brady, .I. V.: ln Jasper, H. H. Relicular Formalion oflhe Brain. p. 689, l958. Werner, G.: Klin. Wschr. 36. 404. l958. Jung. R.: Klin, Wschr. 36. 1153. l958. Jung, R.: Dtsch. med. Wschr. 83. 1716. l958. Rothschíld. F. S..' Sludium gen. 12, 242, l959. P1'otrowski, Z. A.: Amer. J. Psychother. l3. 553. l959. Bühler, Charlouez Z. exp. angew. PsychaL 6. l959. Elkin. H.: PsychoanaL and. Psychoanalytic Rcv. 45. 57. l958/l959. Bühler. Charlottez Amer. J. Psycholher. l3. 561. l959. Keller. W.: “Das Problem der W1'licnsfrcithc1't".ln: FrankL V. E.. GcbsattcL V. E. Von Schultz. .I. H. (org.) Handbuch der Neurosenlehre und Psycholherapie. Bd. V. Urban & Schwarzenberg. Munique. Bcrlim. l960. Thie|, M.: Jb. PsychoL Psycholher. 2. 297. 1954. Binswanger, L.: "Dic Bedeutung dcr Daseinsanalytik M. Hedcggers mr das Selbstverstãndnis dcr Psychiatn'c". 1n:. M. He1'degger. Einfluss auf die WissenschafL Berna. 19S9. Zutt, J..' Wien. Z. Nervenheilk. 10. 285. l955. Storch, A.: °°Existentialanalyse“. ln: Stern, E.: Die Psychotherapie in der GegenwarL Rascher. Zurique. l958.

Á _ . _ .4

. ,_

«

-5_. _. . .

~;» " 543

Eà4.

il

ríí Fronteira entre a Psicoterapia e a Filosoña

Publicado em Forschungen u'nd Forlschritle, tomo 35, cadernp 2, fe~ vereiro de l962, pp. 36-38, encomendado pelas Academías de Ciências de Berlim, Go"ttingen, Heidelberg. Leipzig, Munique e Víena (redaçãoz Academia de Ciências). Edit. Akadem1'e, Berlim. 0 respeito aos grandes homens consn'rui, sem dúvida, uma das mais Iouváveis características da natureza humana. Deve, no entanlo, ceder diante do respeito aos falos. Não é preciso se ler receio de expressar um julgamemo próprio quandofundamemado no exame dosfatos, ainda que não se Ienha o endosso dos meslres. (S. Freud, Wiener med. Wschr. 39, I889.) l. Fundnmentos Filosóñcos da Teoria Psicoterapêuticn Uma das mais citadas añrmaçoe's de Freud é aquela em que elc se refere às três ocasiões em que o narcisismo da humanidade recebeu um grande abalo. A primeira foi em virtude dos ensinamentos de Copérníco, a segunda, em razão das teorias de Darwin. e a terceira por causa do próprio Freud. O tercciro abalo é o que maís facilmente nos pareceria válido. Quanto aos dois outros,já à primeira vista, custa entender por que o “onde” e respectivamente o “de onde" da humanidadc seriam moti~ vo de abalo. O merecimento da humanidade não é, em ncnhum grau. diminuído pela circunstância dc que ela habíta um planeta do sístema solar e não o centro do universo. AñnaL isso não tem por que afetar a dignidade do homem, assim como a obra de Freud não se

A questão de saber se o homem é um macaco tornou-se carregada de emocionalismo em virtude da idéía de que, com isso. o relato bíblico da Criação ñcava desmoralizado. 0 que me faz recordar uma velha anedota. Um talmudista pergumou a outroz “Por que Moisés se escreve com e?" Ao que o outro respondeuz “E Moisés se escreve com e." Pergunta de novo o primeiroz “E por que não se pode escre›ver Moisés com e?” lmpaciente e aborrecido, o segundo contesta: “Mas por que se deve escrever Moisés com e?" “É o que eu lhc parguntei no início", retruca o primeiro. À pergunta se o homem é um macaco, cabe contestar: Por que o homem deve ser um macaco? E a resposta seria: Porque ísso contradlZ o relato bíblico. Daí provém a carga de emoção que a questão encerra. Em contrapartida, não teríamos nada a objetar se se provasse que o homem é realmente um macaco. Muito menos nos oporíamos à evidência de traços humanos nos símios e, em tal caso, não hesítaríamos em chamá-los de seres humanos. O que nos ímporta é menos a diferença entre o homem e o macaco do que o reconhecimento do fenômeno especzfz'camente humano como irredutíveL Não é ccrto dizer que a natureza não dá saltos. Ela dá saltos quânticos, saltos qualitativos ou - conforme añrmam os marxistas - a quantidade se transforma em qualidade. E assim pode também existir uma diferença qualitativa entre o homem e o animal.

43

Bem, ns'so nem sequer foi negado por Konrad Lorcnz. que aludc mesmo a uma fulguração. Segundo ele. há um fator especiñcameme humano, com o que a questão que unícamcnte nos intcressa - a de uma diferenciação qualitativa enlre o humano c o subumano - tem o dircito de obter uma resposta empírica. No emanto. prcñro falar de uma diferença dimensionaL em vez de qualitativa. A vantagcm é que os resultados elevados a díversos níveis e contraditórios cnlre si não se mantêm num relacionamcnto de exclusão. apesar das contradi~ ções. Pelo contra'rio, entre as várias dimensões. aquela que é mais elevada abrange. encerra cm sí. a que lhe é inferíor. Pcrante o modelo ontológico em camadas elaborado por Nicolai Hartmann - segundo o qual a camada mais alta do Ser sobrelcva a mais baixa - nossa concepção ontológico-dimensional aprcsenta a vantagem de que. apesar da especf11'a'dade de cada fenômcno na dimensão que lhe é própria. é preservada a cominuidade de um fenômcno para outro. Voltemos agora ao tema do homemz apesar do seu lado especiñcamente humano, o homem não deixa de ser um animal. Ser homem e ser animal não estão mais em conlradição. Não há exclusão dc um em detrímento do outro. Finalmente, diga-se que ondc houver dimensõcs diversas havcrá projeções de uma para outra. Posso projetar um fenômeno da dimensão que lhe é própria para uma mais abaixo. Por exemploz um fcnômeno humano projetado numa dimcnsão subumana. Tal procedi~ mento é lícito e até mesmo constituí a cssência da atividade cientíñca. a qua1, por motivos heurísticos, faz abstração da plun'dimensiona|idade de um fenômeno c cría a ñcção de uma realidade unidimcnsional. Esse procedimento só se torna crilicável quando afetado pela ideologia. Nesse caso, añrma-sc não apenas que exislem no homem mccanismos disparadores inatos, mas também que o homem nada mais é do que um umacaco nu”. 0 reducíonismo não se limita a projetar, por motivos hcurísticos, o humano no subumano - ele ncga em geral a cxistência de uma dimensão humana c, o que é pior, o faz a pn'ori. O que vem de ser dito é válido não só para a relação enlre homem e animaL como para a que existe cntre os homens. Quanto à idéia de que, no domínio da natureza. não se pode veriñcar qualquer teleologia, essa fórmula vazia há de ser expressa prefercntemente como segue: demro do plano de projeçoe's da biologia ou da etologia. não se vê, de fato, nada parecido com a teleologia. Daí a concluír que, de um modo geraL não existe teleologia. já seria abandonar o empirico e cntrar no campo da ñlosoña, e uma ñlosoña, nole-se bem. apriorística. Só nos seria permitido añrmarz no plano de projeçõcs de Konrad Lorenz, não se constitui réalmente uma tcleologia. Poder-se-

wln1

dcsvaloríza nem um pouco pelo fato de cle ter passado a maior parte de sua vida. não no centro da cidade de Viena, mas na nona circunscríção municipaL E evidente que o mérito de um homem, ou mesmo da humanidade, cncontra~se num outro plano que não o da localização no mundo materiaL Em síntese, trata~sc de uma contaminação dc diferentes dimensões do Ser, de uma negligência das diferenças omológicas. É de tal maneira justo, no sentido de uma quesn'ojurís. contestar o ponto dc vísta dc que o valor e a dignidade dependem da categoria espacial, assim como, no sentido de uma questiofacm é duvidoso que o darwinísmo tenha reduzido a consciência de sí mesmo da humanidade, cm vez de té-la aumentado. Qucr nos parecer que a geração da época dc Darwin, crentc no progresso, embríagada de progresso, não dava de modo algum a impressão de desencorajamcnto - pelo contrário, mostrava-se orgulhosa de quão esplendidamentc longe ela tinha sído levada pclos seus antepassados símiescos, tão longe, efet1'vamente, que um outro progrcsso evolutivo maior na direção do “super-h0mem” cstava em cogitação. O evolucionismo dera aos homcns tal sensação de vcrtigcm que eles de fato se comportavam como se fossem “nada mais do que" mamíferos aos quais o andar ereto tívesse subido a cabeça.

NA FRONTEIRA ENTRE A PSICOTERAPIA E A FILOSOFIA

WVM4W<~W~VI

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

'I

42

44

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSlOTERAPlA

ia contudo falar de uma leleologia negativa - análoga à chamada teologia negativa. que se recusa a dizer o que Deus é, limítando-se a dizer o que Ele não é. E se Konrad Lorenz renunciasse à negação da possibilidadc de uma telcologia no sentido acima formulado, não só faria jus ao Prêmio Nobel pela sua capacidade cientíñca, como se tornaria candidato a um Prêmio Nobel que ainda não cxíste, o da sabedoria. Sabedoria, no ñnal das comas, pode-se deñnir como saber c simultaneameme a consciência dos Iimites de Ial saber. Voltando a falar de Freud. foi ele próprio quem se referiu ao psicanalista como sendo um “íncorn'gível mecanicista e materialista". “ Só que nos dias de hoje daremos menos ênfase ao termo “materialista”, nesse contexto. 0 essencial é a negligência pela psicalálise de dois aspectos que, a par da espiritualidade. fundamentam o serhomcm: liberdade e responsabilidade. Em outros termos, o determinismo é o que torna tão característica a imagem do homem elaborada pela psicanálíse (ver “Determinísmus und Humanismus“, no meu livro Der Wille zum Sinn). Certamente, Freud cultivava o determinismo só na teoria. Na prática, não chegava a ser cego para a liberdade, tanto que queria alterá-la. Ao defmir a meta que a psicanálise se propunha, estabeleceu que se tratava de “dar ao ego do indivíduo doente a liberdade de se decidir por isso ou aquilo” (sublinhado no original de Freud). O argumento de que a psícanálise é pansexualista caíu em desuso. O que, agora como antes, nela pode ser criticado é sua tendéncia para o que eu chamo de pandeterm1'm'smo, embora já se note que as muralhas do pandeterminismo sofrem um processo de inñltração. Queremos apenas cítar uma añrmação do psícólogo americano Rogers 1 feita no decorrer de um símpósío de Psicologia Existencial e Psicoterapia, em Cincinatti, a 4 de setcmbro de l959, díante da Sociedade Americana de Psícología, no sentido dc que o mais chocante para os psicólogos norte-americanos tradicionais é ouvir falar no homem como se se tratasse de uma crialura livre e responsáveL Um dia, porém, um dos alunos de Rogers fez uma dissertação que denotava de forma evidente que uma análise exata dos fatores estatísticos não conduzia aos resultados esperados, isto é, que o modo mais adcqua~ do dc ñxar as chances de reíncídêncía de um delínqüente scria o exame detalhado das suas condíçoc's socíaís e familíares; pelo contrário, 0 que ressaltava do trabalho era a importância da compreensão de sí mesmo do índivíduo ou, como dízemos, a capacidade de entrar em si

I S. Frcud. 0bra:. Edição de Londrcs. vol. XVlL p. 29, 2 C. R. Rogers, “Discussion". Exislencial lnqu1'r¡es. l. l960. nV 2 pg. 9.

NA FRONTEIRA ENTRE A PSICOTERAPIA E A FILOSOFIA

45

mesmo. A partir daqucle dia, añrmou Rogcrs, ele passou a acredilar dc novo na líberdade da vontadc humana. A cssc rcspeito, rccordo-mc de um epísódio que se passou cntrc um emincnte psicanalista nortc-americano e um logoterapcuta curopeu. Estc último convidou o primciro a acompanhá-lo na escalada dc uma montanha. diante do quc o psicanalista abanou a cabcça e fmalmente pedíu quc comprcendesse o horror com que encarava todo tipo de aventura alpinístíca. É que - explicou - na infâncía, o pai 0 lcvara a cxcursões entediantes e cansativas. 0 logoterapcuta retrucou e aí está o picantc da coisa - que a cle também o pai, na ínfância. carregara para passeíos longuíssimos que o deixavam exausto e por isso eram temidos e odiados. Daí, ao sair da infância, tcr-se tornado_alpinista... Em face do grande nu'mero, abstraindo-se do cálculo das probabilidades estatísticas, uma previsão psicológica é um absurdo. A pessoa mais meñstofélica que jamais encontrei foi o Doutor J., meu colega de Faculdade, conhecido como um matador em grande escala. Era elc com efeíto o encarregado da eutanásia no chamado Pavilhão de Tratamento dos Psicóticos de Viena. Orgulhava-se de que nenhum doente lhe tinha cscapado. Ele próprio. depois da ll Guerra Mundial, teve sua punição. Alguns anos após o término do conñito, procurou-me em meu consultório um diplomata austríaco cm busca de um parecer sobre as conseqüências, no domínio psíquíco, dos anos que passara em campos de concentração. “Não conheceu o Dr. J.?” pcrguntou-me. Em virtude de meu aceno añrmativo, prosseguiuz “Partílhei com ele uma cela da conhecida prisão moscovita de L., antes de minha libertação. E lá ele morreu de um câncer na vesícula. ainda relativamente moço. Uma pena, pois era o melhor dos co'mpanheiros, ajudava sempre que podia, consolava a todos que sofriam... devo dizer que era como que um santo." Nesse caso, único em seu gênero, uma conclusão rcflexiva e antccipatória sobre a aparcnte encarnação de um princípío dcmoníaco ao longo de uma vida e até seu ñm teria me induzido a um erro. A atitude do médico, seja ela em conformídade com o pandeterminismo, que nega a liberdade, ou favorável ao reconhecimento da liberdade, e até mesmo estimulando o paciente nesse rumo, redunda scmpre em beneñcio da prímeira opção, ainda que não haja formulação expressa quamo a isso no decorrer do tratamento. A professora Edith Weisskoff-Joelson, da Universídade de Purdue. no Simpósio Unitarista n9 12, a 13 de novembro de l959, em CincinattL declarouz “A maioria dos psicoterapeutas deste país está convencida de que o terapeuta não deve. em hipótese alguma, inñuenciar o paciente no que se reñra a um sistema de valores qualquer. Acata-sc a idéia dc

46

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

quc o lerapcuta não dcvc dc modo algum guiar o pacíeme - pelo contrárío, dcve límitar-se a ajudá-lo a desenvolver sua personalídade. Tais lcrapcutas, naturalmentc, falam muito pouco durantc as sessõcs; uma exprcssão, contudo, que usam com freqüência é 'hum. hum'. Sc os scnhores invcstigarcm essc díálogo terapêutico, concluirão que 'hum, hum' é uma exprcssão dc grande força e que, em determinadas circunstâncias, pode equivaler a uma Iavagem cerebraL Na Uníversidadc de lndiana fcz-se uma expcríência na qual se pediu a um estudante de psicología que díssesse todas as palavras que lhe vinham à mente; todas as vezes que usava um plural - “mesas', por cxcmplo - o pesquisador comentava *hum. hum'. Depois de algum lempo, o estudantc passou a empregar maior número de palavras no plural do que o fazia no inícío da experiência. “Hum. hum' é, por consegu1'nte, uma poderosa expressão." A “transferência" inconscieme da visão, do homem e da imago mundi do médico para o pacícnte pode tornar-se cspecialmente discutível se o homem é visto implicitamcnte como uma criatura verdadcira ou. pelo menos. originariamcnte voltada para a satisfação dos ínstintos e orientada por um hípotétíco princípío de homeostasc que visa aquietar o “aparelho psíquic0" cxcitado pelas nccessidades (Freud). 3 Se o ser humano foí reduzido pela primeira fase da psicanálise ao seu aspccto do “tem de ser”, a “nova psicanálise" - não menos unilateral - enfatizou apenas a auto-realizaçâo, o aspecto “poder ser". "A teoria da auto-rcalização considera que a meta da existência é o desdobramento das melhores possibilidades a ñm de se conseguir a completa satisfação do próprio indívíduo” (Charlotte Bu"hler),4 com o que a problemátíca do valor, que averigua quais as “melhores" possibilidades a desenvolver, é reprimida. Em contrapartida. achamos que as possibilídades de que se trata são as que se refcrem ao cumprímento do sentído e da realização de valores. O fato de que essas possibilidades scjam transitórias. de que elas. se não efetivadas. desaparecem deñn1'tl'vamentc. Ieva-nos a proclamar que o homem não só é lívre, mas responsáveL Na verdade, ele é responsável pela concretização das possibilidades transitórias. pelo precnchimento do scntido de sua exislêncía pessoal, em especíal das situaçoe's concretas que ela apresenta, e assim, mediante tal realização, ele as eterniza, uma vez que elas ñcam para sempre realízadas. Realizar algo signiñca precisamente introduzir o elemento transilório no passado, de modo a obrigá-lo, anínhá-lo para sempre. J S. Frcud, Obras ('omplela5. vol. Xl, p. 370. 4 C . Bühlcr - “Dic Wcrtproblemdik dcr Psychotherapic". Handbuth der Neurosemble und Ps_vcha(llemp¡e, organizado por V. E. FrankL V. E. Gcbsaucl e J. H. Schullz. vol. VL Munique, Bcrlim. l960.

NA FRONTEIRA ENTRE A PSlCOTERAPlA E A HLOSOHA

47

2. Questoe's Filosóñcns no Limite da Prática Psicoterapêuticn A intcrpretação do semido pressupõe que o homem scja cspirixuaL assim como a realização do sentido pressupõe que clc seja Iivrc e rcs~ ponsáveL Estes três fatores da existência só nos são accssíveis quando os seguimos até a dimensão noológica. na qual o homcm. tendo sc soerguido desde a dímensão psicobl'ológica, se constilui como homem. Já no nível do biológico e do psico|o'gico. nola-se a lendéncia primária do homem para sc orientar no rumo do scnlido. o quc. no aspecto negativo. representa propriamemc a sua frustrucão. É sabido que a interrupção de excitação scnsorial - 1a| como ocorre nos experimentos que antecedem as viagens espaciais - pode suscitar alucínações. Pesquísas feitas em Yale e Harvard indicam. todavia, quc os efeitos veriñcados não dccorrem da ausência de cstímulos, mas especiñcameme da ausência de estimulos signiñcutivos. do que os autores dos trabalhos concluemz “Para funcionar, um cérebro precisa. normalmente. de um contato contínuo e signiñcativo com o mundo cxlerior." 5 A ñnitude do espírito humano faz com que somcnlc Ihe seja acessíveL em cada caso, um 5cntido parliculat 0 scntido do lodo excede a capacidade perceptiva do homem. e à “procura de semido" só pode corresponder um conceil0-limite. como 0 “supcrscntido". ” Neste ponlo, o saber cede diante da fé. Pode ser demonstrado casuis~ ticamentc que a fé no supersentido é o que há dc mais evidenlc e naturaL tão logo o caminho lhc seja previamente facilitado pelo exercício da reflexão, o “esforçar-se do conceito". Um diu, em uma sessão de psícoterapia de grupo organizada pelo mcu assn'stente. Dr. K. Kocourek, cstava em pauta o caso de uma mulhcr que reccntcmenlc perdera 0 ñlho de l l anos. em conseqüéncia de perfuração do upêndice. restando-lhe um outro. de 20. que. padecendo dc Morbus little. só sc locomovia numa cadeira de rodas. A mãe, desesperada. eslava à beira do suícídío. Então. intervim e exortei uma jovem prescnte a improvisar. imaginando~se no lugar de uma anciã de 80 anos. na iminência da mortc. e pcdi-lhe que contcmplasse relrospectivamente sua vida, uma vida chcia de prestígio sociaL éxitos amorosos. porém nada mais do que isso. Que diria ela a si mesma'? “Vivi uma hoa vida. fui rica. mimada. Ievei homens à Ioucura. e não mc privci de nada, Agora sou velha, não deixo ñlhos, c devo rcconhccer quc. cslrita-

5 J› M. Davis. W. F. McCourl e P. Solomon. “Thc Effcct of visual slimulalion on hallucinatíons and olhcr mental expcrienccs during sensory dcprivalion". Amen J P.\'_l't'hlafrvl', I|6. 889. 1960. 6 chu-se Ãrlzliche .S'eelwrge, l" edição. Vienu. l946.

48

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSlCOTERAPlA

mentc falando, minha vida foi um fracasso. pois da vida nada se leva. Para que fui posta no mundo?" Dcpois, convidei a mãe do aleijado a tomar 0 scu lugar e dízer o que ela pensariaz “Desejei ter ñlhos e meu dcsejo foi satísfeito. 0 mais moço morreu, ñquei com o 0utro. Se eu não estivesse presente, nada de valor se conseguiria dele; seria jogado no pavilhão de idiotas dc algum asilo. Coube-me fazcr dele um ser humano. A minha vida não foi nenhum fracassa Por mais dura que tenha sído. ela me ofereceu oportunidades de levar a cabo inúmeras tarefas. o que a fez signiñcativa De agora em diamc.já posso morrer tranqüíla." Somente soluçando pôdc cla pronunciar estas últimas palavras. Scus companhciros de grupo concluíram, com basc nesse caso, que importa menos saber se a vida de um homem é prazerosa ou pcnosa do que saber sc ela tem scntído. E sua duração maior ou menor é um fator secundárío. no caso.

NA FRONTEIRA ENTRE A PSICOTERAPIA E A FILOSOFIA

49

civilização foi sempre acompanhada por um coro de vozes. cm todos os tons, manifestando ansiedade diante da possibilidadc dc que a vida viesse a ser abafada pelo gigantismo do intelecto. Hoje essas vozes adotaram um tom de agressiv1'dadc.“ 7 Por isso dcveríamos cuidar para que a agressão conlra o espírito não venha a se descnvolver numa regressão ao obscurantismo.

Não baslou. Sentindo que a questão do sentido do sofrimento não fora discutida a fundo, acrescenteiz "lmaginem um macaco ao qual se aplicam injeções dolorosas necessárias para a preparação de um soro contra a poliomielite. Poderá ele chegar a compreender que scu sofrimento é necessário e qual a sua causa? Na verdade, cle é incapaz de sair dc seu mundo e acompanhar o homem em seus raciocí~ nios. O mundo dos homens, u_m mundo de valores e de sentido. não lhe é acessíveL Não consegue penetrar na dimensão do humano. Mas será o mundo dos homens o ponto ñnal da víagem. de forma a não haver nada a|ém? Não scria mais legítimo supor que, acima do nosso mundo, há um outro que não conseguimos alcançar, cujo sentído, cujo supersentido, podcria dar ao sofrimento do homem na terra um sentído?" O'me'dico dos nossos tempos deve ter a coragem de se envolver nesses diálogos socráticos, de levar a sério sua missão de tratar não só de enfermos, mas ae homens. A dúvida quanto ao semido da vida, o desespero de um índivíduo diante da aparente ausência de sentído não constitucm uma doença, mas uma das possibilidades da natureza do homcm. Enquanlo anligamente 0 aturdido e o desesperado buscavam auxíliojunto ao sacerdote, hoje eles se dirigem, para conselho e orientação, ao médico. Essa situação não só permite, como de certo modo obriga o médico a enfocar - para além da enfcrmídade corporal e psíquíca - a necessidade espiritual do paciente como uma característica inerente ao ser humano, e não como um traço mórbido. Scría tão inaceitávcl acusar-nos de transposição de limites quanto de supervalorização do espirituaL Podcríamos opor a esses maus agouros provenientes das ñleiras da psicanálise o que um eminente psicanalista enunciou: a História não nos mostra nenhuma época caracterizada por um excesso prejudicial de espírito. A evolução da

7 H. Hanmanm “lch-Psychologie und Anpassungproblcm". Psyrhe.

l4. 81.

l960.

Monantropismo

Palestra proferida durante a conferência internacional sobre “0 Papel da Universidade na Guerra e na Paz“. (Viena, 25 a 29 de agosto de 1969) A princípio, experimcntei certa resistência a aceitar o convite para falar nesta assembléia. Sou um tanto cético quanto aos resultados que possam eventualmente ser alcançados em reuniões deste tipo. Muito frequ“entemcnte, nelas nos deparamos com uma ingenuidadc que nos faz lembrar a história daqueles soldados que de repente caem numa emboscada e se tornam alvo de inimigos escondidos nas copas das árvores. Fogem. mas um deles, que ñcou para trás. gríta na direção dos franco-atiradorcs: “Parem de atirar! Não estão vendo que somos

homens." De mais a mals, não sou como aqueles psiquiatras possuídos de

um sentimento de onisciéncia e onipotência que os leva a agir como diletantes no campo de outras disciplinas. No's, psíquiatras. ignoramos a cura da esquizofrenia, para não dizer que desconhecemos sua verdadeira natureza. E poderíamos añrmar que sabemos como acabar com a guerra? Não acreditem mais n_a onisciência do psiquiatra é um míto. E não acreditem mais na onipotência do psiquiatra - é uma superstição. Só a ubíqüidade do psiquiatra é uma realidade, a julgar pelo que se vê nos congrcssos internacionais. Não é, porém, de cxcluir que a psiquiatria tenha algo a oferecer no âmbíto do tema que nos ocupa. Existem. decerto. paralelos entre a patologia individual e a sociaL Há mecanismos ncuróticos. como 0 círculo vicioso da angústia de expectativaL Se o desejo é o pai do pen-

52

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSlCOTERAPlA

samento. o medo é a mãe do acontecimenta. Quanto mais um conferencista receia enrubescer ou títubear, tão logo entra em ccna. mais clc enrubesoc ou títubcía. 0 mcdo produz, portanto, aquílo de que se tem medo. Este efeito conñrma e rcforça o medo inicial e é, por sua vez. acentuado pclo medo suplementar. Não seria concebível que também o medo da guerra provocasse a guerra? E que pudesse ser desenvolvida uma técnica, assím como no tratamento da neurose. capaz de romper cssc círculo vicíoso? Nesse contexto, vem-mc ao cspírito não só o mecanismo da neurose. mas o da psicose. Existem pacientes acometidos do delírio de perseguição para os quais foi cunhada a expressão “persecuteur persecute'“. Só posso constatar que tais pacicntcs, logo que param de observar os outros para ver se estão sendo seguidos, deixam de sentir-se perseguídos. Em geraL a desconñança gera a desconfiança no interlocutor, e por esse mcio se conñrma e se reforça. Não havcria nos critérios sociais um paralelo aplícável à prevenção da guerra? A guerra. como se sabe. foí deñnída como a polítíca defendida por outros meios. Isso, no entanto, só vale para um dos doís tipos de política que costumo dístinguir. Para um lipo de política, osfms apa~ rentemenzejusuflcam os meios. 0 outro tipo, pelo contrârio, sabe muito bem que existem meios capazes de estragar os fms mais puros. É claro que tudo ísso, afmaL vai dar numa questão dc valores. O que é o “ñm"? Quando se trata de um valor - há valores reconhecídos por todo um grupo? E há denominadores comuns a respeito daquilo que, para esses grupos, constitui o valor da vida? O que é possívcl vcriñcar é o seguinte: sobrevíver apenas não pode ser o mais alto valor. 0 ser-homem sígniñca ser dirigído no rumo de, e subordínado a, algo que é mais do que o índivíduo. A _existência humana caracten'za-se pelo fato de transcender a si mesma. Tão logo a exístêncía humana deixa de se transcender, o permanecer em vida se toma sem sentido e ímpossíveL Foí pelo me_nos a lição que me coube aprender em três anos passados em Auschwitz e Dachau, ' c os psiquiatras militares em todo o mundo puderam vcríficar que os prisioneiros mais aptos a suportar o cativeiro eram os que tinham algo por que esperar, 2 um objetivo no futuro, um sentido

l No caso do conTnnamento, a oricntação para o scntido é uma condiçâo neccssárfa da sobrcvívéncia. Milhões morrcram em Auschwitz. cmbora conhecessem o scntido da vida. Sua fé não lhes pôdc salvar a vida. No entanto, graças a cssa fé. puderam caminhar para a mortc dc cabcça erguida. conformc eu disse na palestra que profcri na inauguração do lnstítuto de Logoterapia da Universidade lnternacional dc San Dicgo. Calífórnia. 2 Lc Shan examinou 450 canccrosos e descobriu que o começo da docnça coincidia com o momenlo em que cles haviam deíxado dc se orientar com rclação ao futuro.

MONA NTROPISMO

53

a realizar. lsso não deve também ser válido para a humanidadc c sua sobrevivência? Se devemos determinar valores c um sentido que tenham aplicação geraL então a human1'dade. dcpois de ter passado milénios sob a influência do monoteísmo. deverá dar um grande passo adiante. encaminhando-se para o saber do homem. Aquilo de que mais prccisamos hoje é de um monantropísma

Para uma Antropologia do Esporte

Rclatório complementar para um simpósio cientíñco internacional promovido pelo comitê de organização dos Jogos Olímpicos de Mum'quc, l972.

M3mm:m

wvw

<›, ñz

'-*'-;

.

Foi-me assegurado que aqui eu poderia falar de esporte no scntído mais amplo, ou scja, na qualidade de fenômeno humano, aquém da degradação e do abuso. O acesso a esse fenômeno é a priori barrado enqua_nto nossa análise se apoiar num modelo antropológico que vê no homem uma criatura que tem necessidade e tende a satisfazê-las e que sc concentra em atingir objetivos, aliviar tensões e restabelecer o equilíbrio interior.l Em outras palavras: essa antiquada teoria da motivação insiste no conceito da homeostase, plagiado da b1'ologia.c que na biologia já perdeu seu valor. Dc há muito Ludwig von Bertalanffy pôde demonstrar que fenômenos biológicos importantes, como o crescimento e a procriação, não podem ser explicados à iuz da homeostase. Kurt Goldstein, eminente patologista cerebraL indicou, por seu lado, que somentc o cérebro avariado procura a todo o preço cvitar tensões. Quanto a mim. sou de opinião que o homem não procura atingir certo estado interior, de homeostase ou outro qualquer, mas sim procura voltar-se para as coisas e as pessoas no mundo (a menos que seja neurótic0), sem tratá-las como meios para

l Claparêdc considerou que a neccssidadc é a expressão dc uma pcrturbaçào do equilíbrio. cnquanto a satisfacão rcprcsenta o sinal da recupcraçào dessc equilíbrio (citado conformc Jean PiageL Theorie und Melhoden der Modemen Erziehung, Moldcm Vicna. l972. p. 281).

56

PARA UMA ANTROPOLOGIA DO ESPORTE

FUNDAMENTOS ANTROPOLÔGICOS DA PSICOTERAPIA

conscguir um ñm, o da satisfação das necessidades. As coisas e as pessoas (parcciros) valem, para ele. cm si mesmas. Dilo de outro modo: a cxisténcia humana é caraclerizada por sua “autotranscendéncia". 2 que reprcscnta o único caminho para se conquistar a autorealização. O que entendo por autotranscendéncia nada tem a ver com o Além; siginiñca que 0 homem é tamo mais humana quamo mais é ele mesmo. quamo mais ele se supera e se esquece a si próprio na dedicação a uma tarefa. a uma coisa ou a um companheiro. Eu não sei scjá ocorrcu aos senhores que o olho humano também é autolranscendentez sua capacidadc dc perceber o mundo circundantc depende, absolutamcnte de que ele não seja capaz dc se perceber a si mesmo. Quando é que o olho se vê a si mesmo - cxceto no espelho? Quando sofre de catarata, então enxerga uma névoa, que corresponde à turvação do próprio cristalino; quando padece de glaucoma, divisa cm torno da fome de luz um halo com as cores do arco~íris. Da mesma forma, o homem consegue auto-realização quando sc esquece de si próprio, dedicando-se a uma pessoa ou sc entregando a uma coisa. Para retornar à hipótese dc que toda motivação é condicionada pelo princípio da homeostase, devo contrapor a ela as quatro tcses seguintesz l.O homem não tende a evitar tensões a qualquer preço, pelo contrário, o homem precisa de tensões. 2. Outrossim, 0 homem procura tcnsões. 3. Hoje, ele encontra pouca tensões. 4. Por isso é que cria tcnsões. Vejamos uma por uma. l. Êcvidente que não se trata de esmagar o homem com uma tensão giganlesca. O de que ele precisa é de uma tensão sadia. dosada. Não é apenas a exigência excessiva da vida que pode tornar-se patogênica; a ausência de exigências, de tensões, pode também vir a sê-lo. Werner Schulte falou, nesse contexto. em “sinal” de doença neurovegetativa. Hans Selye, que cunhou o conceito de “stress". qualiñcou-o de “0 sal da vida". De minha parte, acho que o homem necessita de uma tensão espeaf1'ca. como pode ocorrer num campo tensional polar entre ele e um sentido, que espera dele, dele exclus¡'vamentc, uma atitude que o realize. Uma prova disso é que quando a vida não exige do ho-

57

mem uma tarcfa ligada a clc, pessoalmentc, c. por isso, criadora dc uma tcnsão adcquada. surge uma “neurosc noogênica" ' 2. 0 homem, como eu disse, procura tcnsões. bs'pecia|mcntc. procura tarefas signiñcativas que lhe proporcioncm uma “lcnsão sadia". Em outras palavras: exístc o que chamci de “vontade de scnlido". Este conceito já dc há algum tempo foi conñrmado pela experiéncia. Não ê este o momento de rclatar as pesquisas fcitas a seu respcito. Limitome a citar uma estatística publicada pcla maior auloridndc cm ps¡quiatria nos Estados Unidos, o National lnstítutc of Mcnlal Health, por onde se vê que, entre 8.000 cstudamcs de 50 univcrs¡'dadcs, 16/,,° pretcndiam, no decorrcr da vida. "1o make a lot ofmoney” (“ganhar muito dinheiro"), enquanto a maior pcrccntagem. 78/°°, añrmou sc ocupar de “tofmd a meaning and purpose in their lives" - "cncontrar um sentido e um propósito em suas vídas". ' 3. Hoje acontece que o homem não se mostra capaz dc dotar sua vida de um sentido. Ele não está mais, como na época dc Freud. sexualmente frustrado, mas existencialmente frustrado. E sofre menos de um sentimento de ínferioridade, como no tempo de Alfrcd Adler. do que de um semímento de carência de senlid0. de "vazio cxistencial" *, como o denominci. No século passado, Schopenhaucr ensinou que o homem oscila entre doís extremos, a necessidade e o tc'di0. e hoje o pêndulo está na scgunda extremidade. Na sociedadc afluentc, há muito dinheiro, não há um objctivo de vida. As pessoas lêm de que viver, não para que viver. A disponibihdade de tempo, o lazcr. aumenta nas várias camadas de nossa socicdade, mas não se sabe em que empregar, dc maneira signiñcativa. o tempo adquirido. Na sociedade afluente existe muito pouca tensã0. Em relação aos períodos anteriores, o homem está em melhor situação no que tange a privaçõcs e tensões. por isso é menos capaz de suportá-los. seu limite de tolerância baixou. Nessa situação, comprova-se que Holderlin tinha

í. iY \,

2 Viklor E. FrankL “Grundriss dcn Existcnzana|yse und Logotherap¡'e“. in Handhudl

rrr

der Neurasenlehre und Psycholerapx'e, organizado por Viktor E. FrankL Victor E. von Gcbsattcl e J. H. SchullL Vol. ll|. Urban & Schwarzcnberg. Muniquc/Bcr|im. I959. p. 690.

3 Viklor E. FrankL Logox und Exmenz. Amandus - Vcrlag. Vicnu. l951. p. 88. 4 0 mesmo sc obscrvou _nas_sondagcns realizadas emre adultos pelo Survey Research Ccmer, da Univcrsídadc de Michigam quc intcrrogou l.533 Imbalhadorcs e veriñcou que o salário sc siluava cm quinto lugar entrc suas cogitaçóes. A contraprova é dada pelo psiquíatra Robert Colcs. ao qual os lrabalhadores se qucixaram da "fnlta de scntido". Joseph Satz da Universidade dc Nova York prcviu que a nova safra dc pcswal na indústria se mostrará interessada cm proñssões que façam scntido, e não em dinhciro. O American Council on Educalion, analisando sob esse aspecto l71.509 cstudantes, dcscobríu que 68,°,,/ dclcs dcñncm como objetivo na vida “seguir uma fllosoña que dê semido à vida". ou seja. adquirir a convicção de que a vida lem um semido. (Roben .l. Jacobson. The Chronicle oj Higher Educan'on, 1972). 5 Viklor É. FrankL Palologie des Zeilgeistes, Dcuticke, Viena. l9$5. p. 84.

58

FUNDAM ENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPlA

razâo ao dizcr: "Onde cstá o perigo. astá o reméd¡o“. Conforme vemos na minha tesc seguinte... 4. O homem cria artiñcialmente as tcnsões que lhc faltam. No seio de uma socíedade de abundância, ele começa a se privar de coisas, engcndra situações dc necessidade. Fabrica, por assim dizcr, “ilhas de asccse" no seio da opulência. E aí vejo a função do esportez trata-se de uma asccse secular, moderna. Numa época em que o homem não anda - circula dc carro. não sobe cscadas - loma o elevador -. cle resolve escalar montanhas. Cria. porlanto, necessidades artiñciais. Ele. o “macaco nu”. como o designa o título dc um besI-seller, não scnte mais nÀecessídade de trepar em árvores. então galga rochcdos. Neste momento, devo rcstringir. porém, o signíñcado que dou às ascaladas, o que só é válido até o terceiro grau das diñculdades. Ncnhum macaco realizou proesas nesse terreno. E estou convencido de que o famoso macaco que domina os rochedos de Gibraltar não seria capaz de subir no Pão de Açúcar do Rio de Janeiro. como o fez, há algumas semanas. uma dupla composta de um tirolês e um bávaro. Rccordemos a deñnição do sexto grau das diñculdadcs. “nos limites das possibilídades humanas”. Assim. o alpinista mais desenvolvido não cria apenas necessidades, explora possíbilídades. Elc gostaria de chegar até onde vão os “limitcs“ das possibilidades humanas. E vejam bem. assim como o horizonte se afasta à m'edida que dele nos aproximamos. assim também ocorre neste caso. Somos gratos à professora Sher1'f, dos Estados Unidos, pela atitude de distanciamento que tomou, em relatório anterior ao meu, com relação ao conceito mecanícista, subumano do chamado potencíal agressivo. ° A visão do homem como um ser que reage agressivamente, fazendo da agressividade uma válvula de escapc de tensões ínterioresx, um ser que toma os objetos e as pessoas como meíos para atingir detcrminados ñns, essa visão pressupõc por base um sistema fechado. Ao contrário. vejo o homem como um ser caracterizado pcla autotranscendêncía, aberto ao mundo, voltado para o sentido da vida e tendido ao encontro com outros seres humnos (parcciros). Quanto à alternativa, a senhora Sherif nos advertiu contra a ilusão da sublimação, a idéia de que a agressividade possa ser canalízada para objetivos superiores, de forma inofensiva. Esse modelo mecanicista, subumano do esporte não é correto. só prejudicaria a comprcensão do mesmo. Não sou contra a exploração da agressã0, sou a favor de sua humanizacão. Um exemplo nos foi dado anteriormente pela senhora 6 Curolyn Wood Shcn'f. lnlergroup Conflivl and Compeliliom Social-Psychological Analnixz (Congresso Cienlíñco. XX Jogos 0Iímpicos. Muníquc. 22 de agosto de l972.)

PARA UMA ANTROPOLOGIA DO ESPORTE

59

SherilÇ quando mencionou o caso dos jovens quc “csqucccram" sua agrcssividadc ao se unirem no esforço comum para cmpurrar um carro atolado. É também minha convicção a de que a humanidade só tcrá uma chance de sobrcviver se cncontrar uma tarcfa quc todos possam descmpenhar solidar1'amcnte, animados por uma mcsma vontade de cncontrar um scntído. Quando sc mostram os homcns mais agressivos? Ouçamos o que ensina Robcrt Jay Lifton, o conhccido psiquiatra social: "Men are mosl apl to k¡ll when Iheyfeel overcome by meam'ngless" (“Os homens eslão mais dispostos a malar quando sc sentcm esmagados pcla falta de sentido"). É nesse sentido que um oentro de reabiütaçâo pma dclinqücntns juvo~ nls na Califórnía pôde apresentar resultados supcriores à média rcgistrada em escala nacionaL conseguindo manter a taxa de reincidência no nível de l7/¡,°, em vcz de 40,°/°. O descmpcnho consisliu cm lcvar os jovens a reenconlrar um sentido para suas vidas. Outrossim. a socióloga da Pennsylvania Statc Univcrsity. cm seu relatórío. afirmou ser falsa a ídéia popular de quc a compctição esportiva é uma guerra artiñcial sem derramento de sangue. Três grupos de jovens isolados num campus, entregues a uma competição esportíva, organizaram a agres_sividade dc uns contra os outros. em lugar de atenuá-la. Segundo o professor Gluckman. de Manchastcr, os jogos não reduzem e sim estimulam a agressividadc. Já destaquci que, na moderna socicdade aflucme. 0 esportc é uma forma de ascese leiga. Acrescenlei que o homem tem curiosida~ de de investigar os limitcs de suas potencialidades, os quais. conludo, se dístanciam à medída que ele avança. o quc o lcva a transccnder sempre a si mesmo. Na competição csportiva. compete consigo mesmo, é o seu próprio adversário. 7 Sc cfetivamente isto não acontece. é o que deveña pelo menos acomecer em beneñcio de melhores desempenhos. Dizendo ist0, não falo como moralista. mas como psiquiatra. Nessa condição, seí que uma dose excessiva de intenção ou um excesso de atenção - o quc a logoterapia desígna respectivamenle por hiperintencionalidade c híper-reflexão - constituem uma desvanta~ gem. Podem, por exemplo, prejudicar não somente o desempenho sexuaL mas a capacidade de gozo. Na proporção em que nossos pacicntes masculinos se concentram em demonstrar sua potência. já se mostram impotentes. 0 mesmo sucede com as pacientes femininas que se tornam frias quando querem provar sua capacidade de atingir

7 Em oulro tcrmos, nâo devc dízcr “l am 1hegrealesl" (eu sou o maior) como Cnssius Clay. e sim, como na pcça de Nestroy. Judire e Holofernes. a exemplo do scgundo personagem do título. “agora vamos ver quem é o mais forle. eu ou eu!"

60

FUNDAMENTÕS ANTROPOLÓGICOS DA PSlCOTERAPIA

o orgasmo. De acordo com o que costumo ensinar aos mcus alunos. o prazcr sc csquiva quanto mais concentramos nele nossa atenção. Da mesma forma, no esporte, o alvo é tanto mais diñcil de conquistar quanto mais nos ñxamos nele. A melhor motivação na competição é a que leva alguém a se medir com outro, embora não o queíra, dirctamente, vencer. Quanto mais o competidor pcnsa na vitória, mais ñca tenso. llona Guscnbaucr. atual recordista mundial de salto em altura, disse numa cntrevístaz “N ão devo mctcr na cabcça que tenho de venocr“. Em ocasião anterion llona, no auge da disputa com a recordista mundial Jordanka Blagojewa, na semiñnal da Copa da Europa em Varsóvia, anunciaraz “Para mim, só o que conta é a vitória". E aconteceu que ela, que no correr do ano fora a melhor do mundo. com a marca de l,9l m, alcançou someme l,90 m na primeira tentativa, enquamo a então detentora do título mundiaL Jordanka. atingiu l,92 m, colocando-se assim na líderança dos mclhores do ano. Um outro casoz num jogo eliminatório entre Àustria e H ungria. o score. no intervalo, era 2x0 a favor da segunda. Os jogadores austríacos, conformc relatou a ímprensa, chegaram ao vestiário alquebrados. pessimistas e desanimados. Instantes depoís, saíram conñantes. Que ñzera naquele meio tempo o treinador Leopold Stastny? Ele disse aos jogadores que ainda havia possíbilidade de vitória, mas que. em todo o caso, admitia a idéia da derrota, com uma condiçãoz a dc que fosse mostrada ao público até o apito fmal do juiz uma partida ideaL não importando que o score fossc de 2xl ou 4xl. Não quero dizer que seja prejudicial que o desportista acredite na sua vitória, Como psiquiatra, bem sei o que signiñca para um paciente a conñança em si mesmo. Se não soubéssemos disto, não haveria hoje nem tcrapia sugestiva nem psicologia individuaL Eu também não disse que o dcsportista não deva gostar do triunfo. 0 que eu disse é que, a cxemplo do que sucede no campo amoroso, onde o prazer sexual foge quando o orgasmo é objeto de uma atcnção excessiva, no esporte, o competidor, em vez de pensar no adversárío, deve atcntar para o seu próprio desempenho. A Logoterapia descnvolveu uma técnica para neutralizar os impedimentos resultantes da hiperintencionalidade e as inibições conseqüentes à hiper-reñexãoz a “desreflexão" ou “imenção paradoxal”. A Logoterapia tem tratado unicamcnte das perturbações scxuais ou proñssionais - o nervosismo que tem o ator de entrar cm cena -, mas parece que ela é aplicável igualmente ao espone. Robert L. Kor~ zep, treinador de um time de beísebol nos Estados Unidos, no quadro do lnstituto dc Logotcrapia da Universidade lmernacional de San Diego. Califórnia, declarouz “Sou um treinador e muito interes-

PARA UMA ANTROPOLOGIA DO ESPORTE

61

sado na atitude mcntal e seus cfeitos eventuais no dcscmpcnho das equipes. Acredito que a Logoterapia possa scr utilizada com relação a situações que surgcm no atlctismo. como ansicdadc anles dos jogos. brigas por causa de derrotas. falta dc conñança. sacriñcio, dedicação, e atletas causadores dc problemas. Olhando retrospecu'vamente para minhas experiências como treinador. percebo episódios envolvcndo comportamcnto tanto de grupos quanto dc indivíduos que podcriam ter sido solucionados por meio da Logoterapia. lntcresso-me particularmente pelos resultados a sercm obtidos com o rccurso ao conccito da intenção paradoxaL Parece que essa técnica também é útil no caso de incidentes no campo em torno de resultados contestados.” A Logoterapia. ao que tudo indica. portamo. não tem seu âmbíto restrito às perturbações sexuais ou proñssionais (tcatro), mas é suscetível dc ser empregada no esporte. '

8 A esse rcspcito. o técnico dc natação Warrcn chfrcy Bycrs teslcmunhouz “Todo lreínador sabe que a tcnsão é o grande inimigo do bom dcscmpcnho. A cnusa fundamcntal da tensão é a prcocupacão cxcessiva com a vitória (ou scja. a hipcrintencionalidadc relativa à vitória). No momcnto cm que isso ocorre. aperformance é prcjudicada. O atlcta conccnlra-se cm observar o oponcntc. De minhu panc, quando cslou às voltas com um caso dcsscs. enfalizo a importância dc que o nadador nadc para si. Tcnho recorrido lambêm à intcnção paradoxaL Nos excmplos cm que o nadador cslá ncrvoso. c não conscguc dormir. sugiro quc elc dcixe dc pensar na vitóría. O ntlcla nadará mclhor sc lcntar rivalizar consigo mcsmo. Acho que a Logotcrapiu podc scr um inslrumemo eñcaz para o lrcinamcnlo. lnfclizmenlc. poucos técnicos eslão familiarizados com o assunta Quando houvcr maior divulgacão. alravés dus publicaçõcs cspecializadas nesle csponc. cstou ccrlo dc que o uso da Logotcrapia na natação sc gcncrnlizará." Até aqui. um lrcinador dc natação. Agora. dcmos a palavra a um compelidor. um atlcta quc foi campcão curopcuz “Fiquei invicto durantc 7 anos“. E cntão passa a descrever uma siluacão como a que Bycrs obscrvara: "Mais tarde cntrci para a equipe nucionaL Comecci a scmir a prcssão cxcrcida cm cima dc mim. Eu Iinha de vencen lodo um pals espcrava isso. O tcmpo que precedia cada compclição cra terrível". A hipcrin~ tencionalidadc inlcnsiñcou-se a tal ponlo que a camaradagcm desaparcccuz "Esscs sujeitos são excclentes. excelo anlcs da compctição. quando se põcm a odiar uns aos outros." Finalmente. ouçamos 0 que diz a pára~qucdísta Kim Adamsz "0 verdadeiro allem xó compere consígo mesmo." O campeão absoluto de pára-qucdismo esponivo. Clay Schoelpplc, analisando por que os Estados Unidos, e não a Uniño Soviêlica, haviam vencido a u'ltima compcu'ça'o. explicou com símplicidadcz “E porque a URSS vcio para ganhar. Clay só tcm por adversário clc mcsmo“. E assim foi elc qucm ganhou.

4 ›.,› V 1 U1WRA °'~ -

~,

-4-=_.

4-"'

Amor e Sexo

Casamento e amor pareccm estar em cstrcita relação. Estc é o caso hoje em dia, quando há os chamados casamentos por amor. cuja rcalizaçâo (se não a duração) se baseia nesse sentimcnto. Ncsse sentido, porém, o casamento por amor é um dado relativamentc recente. como acentuou o sociólogo Helmut Schelsky em seu trabalho SozioIogie der Sexualita"t. Pode-se dízer com razão que, em geraL o amor é a condição e'o pressuposto de um casamcnto feliz. A questão não é essa, o que importa é saber se com ele se pode construir um casamcnto duradouro. O am0r, de certo, é uma condição necessária para o casamento feliz, mas isso não qucr dízer que scja suñciente. E que é amor exatamente? Será que não passa de sexualidade desvíada de seu ñm, como queria Freud? Pode ser rcduzido a uma sublímação do instinto sexual? Assim crê o reducionismo, que procura, a qualquer preço, transformar esse fenômcno num epifenômeno. lsso não tem fundamento numa pcsquisa empíríca, mas numa visão do homcm que não declara nada de parecido, mas o subentcnde. Se não quisermos deitar um fenômeno como o amor no leito dc Procusto, precisaremos de algo mais do que a psícanálise - teremos de recorrer à análise fenomenológica. Nesse contexto, o amor surge como um fenômeno antropológico no prímeiro plano. O amor constituí um dos dois aspectos do que desígnei como a autotranscendência da existência humana. Com isso, abranjo o fato antropológico fundamental dc que o ser - homem sempre indica um transcender na direção de um sentido, que o homcm preenche, ou de um companhciro. que ele encontra. E somente na medida em que o homem assim sc transcende, ele se realiza - a serviço de uma causa. por amor a alguém. Dito de outra formaz o homcm só se torna completamcnlc ho-

64

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

mem quando sc diríge para uma causa ou para uma pessoa. E só chega a se rcalizar quando se esquece e se supera a si mcsmo. Como ê bonito o cspetáculo de uma criança absorvida nos seus foiguedos e quc não percebc que cstá sendo fotografada! Falamos anteríormente em encontro. Será que o amor pode ser dcñnido como um encontro? Encontro é o rcconhecimento no outro do que nelc há de humano. Daí decorre que outra pessoa não pode scr utílizada como mcío para se alcançar um determinado ñm, o que consta da segunda versão do ímperativo kantiano. O amor me parece dar um passo além do puro encontro, na medída em que não sc trata somente dc reconhecer no companheiro o clemento humano mas de ídentíñcar nele a singularidade, a originalidade - em uma palavra, a “pessoa". 0 homem é pessoa, visto que não se limita a ser um índívíduo entre muitos, mas é diferente dos outros. E consíderando que quem ama concebe o amado em sua síngularidade e originalidade, vê-se que o amado é, para quem o ama, um "tu”. 0 aspccto da autotransccndência unc-sc ao conceíto de “busca dc semido". como costumo dízer. Tal conceito é conñrmado empírícamente (Elisabeth Lukas, James Crumbaugh e outros). Kratochvil e Planova acham que a busca de sentido é um conceito sui generis quc, como tal, não pode ser reduzido a outro qualqucr. A. Maslow chcga ao ponto de qualíñcar a procura de sentido como um motivo “prí-

mário” no homcm. Hoje, observamos que a busca de sentído está scndo frustrada; nós, psiquiatras, observamos a expansão dessa diñculdade, inclusive já apontada cm paíscs comunistas ou em via de desenvolv¡'mento! Essa sensação de carência de sentido já suplantou mesmo o sentímento dc ínferíoridade a que Adler deu tanta importâncía na orígem da neurose. Nesse vazio exislenciaL como o chamei, pulula a Iibido sexuaH Assim, e somente assim, se cxplica a inflação sexual de hoje. Como toda inñação, ela implica desvalorização. A sexualídade é realmente desvalorizada na proporção em que se desumaniza. A sexualidade humana, contudo, é mais do que simples sexualidade. E o é na medída em que constitui um meio de expressão para um relacionamento amoroso. Na vcrdade, a añrmação de que a sexualidade humana é mais do que simples sexualidade não díz tudo. A scxualidade animal está no mesmo caso, conforme mostrou Irinãus Eibl~Eíbesfeldt no seu livro Liebe und Hass. Em várías formas de cxistência animaL em particular no caso dos prímatas, “o comportamcnto scxual está subordinado ao serviço do grupo." A copulação entre os babuínos, por exemplo, atende a essa ñnalidade sociaL “Scm dúvida as relações sexuaís dos homens tanto contribuem para a missão de um'-los uns aos outros

AMOR E SEXO

65

como a de propiciar a fecundação”. “O fato dc que a scxualidade forje laços cntrc os parccios funciona como pressuposto dc um macionamento na base da parceria, levando ao amor como uma ligação individualizada". O amor é um relacíonamento individualizado com um parceiro, e um constantc trocar de parcciros é a sua negação. Neste sentido, o homem já nasce predisposto para um rclacionamenIO estáveL O autor adverte contra o perigo da dcspersonalização do amor, que constituiria a sua morte. Maís do que a “mortc do amor", havería uma diminuição do próprio prazcr, scgundo cremos. Nós psíquíatras sabemos que no momcnto em que o sexo não é mais a cxpressão do amor, mas simples meio para um ñm. a própria aquisição de prazer é perturbada. Quanto mais o homem corrc em busca do prazer. mais este se esquiva. As conseqüências, de acordo com a minha experíência clínica, são a impoténcia c a frigideL Segundo pesquisas da revista norte-americana Psychology Today junto a 20.000 assínantes, o fator que mais contribui para a potência c o orgasmo 6 o amor. Seria, pois. no interesse da melhoria do prazcr sexual que a sexualidade não se isolasse e não se desintegrasse ao se apartar do amor e com isso se desumanizar. É mister Iembrar que a scxualidadc não é de antemão algo de humano, mas algo quc tem dc ser humanizad0. A ñm dc aclarar esses pontos, pensemos na distinção que Freud fez entre a “meta” e o “objeto" da pulsão. Quando a scxualidade se instala na puberdade - sexualídade no senlido estrito dc “mcta” - a descarga pode lcvar não ao ato scxuaL mas à masturbação. Posteriormente, em outra fase do descnvolvímemo sexual e da maturação, um objeto sexual é acrescentadm qualqucr que se_ja elc. um parceiro scxual é então visado e a prostituição servc para satisfazer a essa necessidade. Note-se que, nesse estáglo a que nos refcrimos. a sexualidade ainda não alcançou o plano autenticamente humano, porque nestc o parceiro é sempre sujeito, nunca objeto, nunca meio, sempre ñm. O que não exclui que o prazer cominue a vir, c ainda em maior escala, quando não é alvo de atenção exclusiva. Que acontecc quando o indivíduo não avança para um grau

mais elevado ou é vítima de uma regressão? Contenta-se com 0 onanísmo e a pornograña, se permanece na pnmelra fase; se se mantém

na scgunda, com a promiscuídade (“ñxa-se" na prostiluição. por exemplo). Todos esses aspectos do comportamemo. portamo, são diagnosticáveis como sintomas de um relardamenlo psicossexuaL No entanto, a indústria do prazer sexual procura gloriñcá-los. mostrando-os como “progressistas". Aprcsenta como luta contra a hipocrisia o que é, em si mesmo, hipocrisía. Proclama liberdade da censura. quando o

66

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

que pcnsa é em libcrdadc dc fazcr negócíos e ganhar dinheiro. Infelizmcntc cspalha-sc no mundo de hojc uma prcssão para maior “consumo" dc prazer scxual, o que prejudica a potência. Essc distúrbio ocorrc quando o índívíduo considera a atividade sexual como um desempcnho que dclc sc cxige, sobretudo se a cxigência parte da parcei~ ra amorosa. lsso ocnre também com diversos animais. Assim, Konrad Lorcnz pôde levar as fêmeas de ccrtos peixes a se aproximarem do macho não de mancira insuante, mas enérgica, e a tal ponto que o aparelho reprodutor masculino ñcou bloqueado por via reflexa. George L. Ginsberg, Wílliam A. Frosch c Theodore Shapiro, da Universidadc de Nova York, rclataram nos Archives ofGeneral Psychiatry, que entrc os jovens a impotência é maís corrente do que se supunha. Esses trés psiquiatras assinalaram que as mulhcres, em virtude de sua recém-adquirída liberdade em matéría de sexo, exigem e reivindicam um dcsempenho sexuaL conforme foí possívcl concluir interrogando os pacientes. Já falamos que a sexualídade é desumanizada quando transformada em meio para atingir um ñm. 0 mesmo ocorre quando é posta a scrviço da procríação, em vez de ser a expressão do amor. Uma religião que apresenta e deñne Dcus como sendo o amor não deveria defender ex cathedra a idéia de que o matrimônio e o amor só têm sentido quando a serviço da fccundação. No entanto, isso foi proclamado numa época em que o casamento por amor constituía uma exceção e a mortalídade ínfantil era enorme. Hoje a situação mudou: está em curso uma explosão demográñca e temos à nossa disposição a pílula antíconcepcíonaL No entanto, ela só poderá contríbuir para humanizar a sexualidade na medida em que esta se emancipar. Então só de vcz em quando e livremcnte, a ativídade sexuaL isenta de pressões, sería colocada a serviço da procríação, o que cquivalería à coroação do amor.

O Homem Incondicionado Liçoe's Metaclinicas

Para minha leha Gaby

Prefácio à Primeira Ediçâo O “homem incondicionado” é, cm primciro lugar. o homem quc é homem em todas as condições, e que mesmo nas sítuações maís desfavoráveís e indignas permanecc homem - o homem quc em condição alguma renega sua humanidade, mas pelo contrário. “está com cla” de forma incondicionaL Vemos que essa dcñnição do homem incondicíonado é de caráter ético; correspondc a uma norma moral (não a uma média estatística), a um típo ídeaL A par desta deñníção normativa, conformc ao dever, apresenta-se, todavia, outra, que é cxistcnciaL ontológica. e no sentido desta concepção o homem é incondicionado na medida em que “não se deixa absorvcr" na sua cond1'cionalidade, na medida cm que nenhuma condícíonalidade é capaz de “fazer” plenamentc o homem, na mcdida em quc ela, na verdade, o condiciona, mas não o constitui. Colocado nas condições do ser-homcm. o homem incondicionado se mantém, não obstante, em seu ser~homem2 ele resiste às condíções no mcio das quais se encontra colocado. Nessc senlido. ontológico, só condicionado é que o homem é incondicionadoz ele pode ser 1'ncondícionado. mas não tem de sê-lo. Em contraposição. a fórmula ética análoga seríaz ele, na realidade, não tem de sê-lo. mas deve sê-lo. '

I Vale consultar o lrabalho ankls Exislenzanalyse ín ihrer Bedeutungfu'rAnthropo/ogie und nycholerapie, cd. Tyrolía, lnnsbruck. l949. no qual o autor. Paul Polak. rcssaltou pela primcira vez a relação de quc estamos nos ocupando.

70

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

A ontologia do homem não considcra. portanto, o homem cxístcntc, mas o ser-homem em s¡'. Ao contrário dela, a ciência ôntica enfoca o existente singular e, assím. o homem existente singular; como taL cla o vê, de uma maneira ou de outra, condicionado, conformc o caso, biológica. psicológica ou sociolog1'camente. A ontologia, contudo. não dcixa também de conhecer o homem para além de toda condicionah'dade; ela o conhece na sua qualidadc de incondicionado; afora o homem condicionado biológica. psicológica, sociologica~ mente, o Homo sapiens recens, o animal racionaL o zoon polilikom cla conhece ainda o homem incondicionado ~ este substamivo ao qual só depois são "adicionadas” todas as condicionalidadex expressas em mdos esses aqfetivos - substantivo de que essas condicionalidades precisam como seu pressuposto. Numa palavra: a ontologia do homem, ao lado da factícidade humana. conhcoe ainda a cxistencíalidade2 do homem ou. se preferirmos, o homem existencial '°ames da queda" na faclicidada O homem incondicionado não é nem o Homo sapiens recenls condicionado pelo fator vitaL nem o animal racíonaL nem o zoon politikon condicionado socíalmente; o homem incondicionado é o homem como tal, 0 Homo humanus. Neste livro. cumpre demonstrar em que medida o homem pode exístir como incondicionado - exístír, a despeito de toda condicionalidade. Dito de outro modo: cumpre demonstrar em que medida o homem, em sua condicionalidade, está sempre além dela, ou pelo menos pode astan c cm que medída consegue “existir", na incondicionalidade. acima de sua condicionalídade factual e acima da condicionalidade de sua “facticídade” 3 lsso deve scr demonstrado justamente no terreno daquela facticidade, daqueles fatos que parecem límitar, da forma mais impressionantc, o espaço livre em que atua o espírito humano. Não é menos 1'mpressionante, porém, poder~se mostrar em que medida o homem é capaz, por força de sua Iíberdade. de afastar-se do tcrreno da factícidade. Queremos referir-nos àqueles fatos biológicos e psicológicos com que se dcparam o clínico e, em especiaL o neurologista e o psiquiatra. À condicionalidade factual do homem se deve contrapor sua incondicionalidade facultativa. O neuropsiquiatra é precísamente um conhecedor da condicionalídade psicofísica da pessoa espírituaL

2 C§f. Jaspcrs. Ausser den psychologisch und saziologisch fassbaren Moliven Wirkl in der Welt das Unbedingle der Exislenz und die GeisligkeiL 3 Comparosq a respeito, a formulaçâo expresswa de Leo Gabriel em Logik der Weltanschauung (Pustet. Graz. l949. p. 162). “O homem sc comporta. no condicionado. com rclação ao incondicionado. c no I'ncondiconado. com relacão ao condícionado“.

O HOMEM lNCONDlCIONADO

7l

mas é, ao mesmo tempo. leslemunha da sua liberdade. O conheccdor da impotência é aqui Citado como testcmunha daquilo quc chama~ mos de forca de resislência do espírila A problemálica da liberdade espiritual se apresenla aqui peranlc a condicionalidadc física e psíquica sob a forma de dois grandcs problemas: o problema corpo-alma c o problema do livre arbitrio. E por isso que as “lições de metaclínica” aqui cxpostas foram tiradas de um curso semcstral ministrado pclo autor na Universidadc dc Vicna, no verão dc l949, sob o título precisamente de “O problcma corpo-alma e o problema do livre arbítrio à luz da investigação clínica“.

Prefácío à Segunda Edição

Introduçâo

Minhas senhoras c meus senhores,

lndagar o que o homem verdadeiramentc é signiñca indagar pelo sentido do ser-homem. A reflexão assim feita cquivale, todavia. a uma reflcxão regressiva, à redescoberta de algo que tinha caído no esquecimento e que agora é tirado de lá. Em uma passagem do Tal~ mude está escrito que todo rece'm-nascido, no ínstante em que chega ao mund0. recebe de um anjo um tapa na boca, após o que esquece tudo que viu e aprendeu antes de nascer. Essa lenda trata de um saber preexisleme e de uma verdade. ”a" verdade, mas pode ser interprctada igualmente no senlido de um emcndimcmo pré-reflexivo, que inclui necessariamente um auta-entendimemo pre'-reflex¡vo. Quando a questão do sentido do ser-homem é colocada. só se pode csperar uma rcsposta em função do recurso ao auto-entendimento pré~reflexivo que é. como taL ínerente ao homem, Basta que o ho~ mem tome conscíência daquilo que na verdade sempre soube, de uma maneira qualquer. Este tornar-se consciente requer e exige, no entanto. uma sistemática e um método. No que tange ao método, o conscientizar›se redunda na análise fenomenológica; e quanto à sistemática. vai ter numa antropologia explícita. Em contraposição às antro~ pologias explícitas, as implícitas servem de fundamento a muitos enunciados aparentemcnte cíentíñcos que, a partir de investigaçõcs empíricas, se ocupam da questão do que é, no fundo, o homem. Como amropologias. não constituem algo de admitído. declarad0, mas algo de contrabandeado, no que escapam à crítica e ao controle. A falta que faz ao tornar-se consciente um daqueles métodos críticoreñexivos traduz-se no perigo de que o aspecto especiñcamente humano vcnha a ser ignorado pelas antropologias implícitas.

Não sei se é do conhecimento de todos que nesta sala dc conferências da policlínica de Vlena os senhores se encontram em terreno acadêmi~ co, portanto, propriamente. no terrcno da Univcrsidade. mas é decerto do seu conhecimento o que signiñca “univcrsidade": signiñca a Universitas Iitterarum, a totalidade das Ciências. o cosmo do Logos. Os que aqui me ouvem devem estar ainda f.1'miliarizados com outra Universiras: pcnso, com isso. naquela Um'ver.s'ims, que cstá expressa no título a que os senhores e as senhoras aspiram com scus estudos, 0 título de "Doctor uníversae medicinae", e exalamentc esse título indica que a medicina, a faculdade de mcdícína›-dentro da Universidade, também represema uma Um'vers¡tas; e poder-se-iu dizer. talvez, que a Universitas medicinae se comporta com relação à Universitas Iitlerarum como um microcosmo em relação u um ma~ crocosmo. A especialidade, a disciplina médica que eu tenho a honra e a missão de rcpresentar. chama-sc Neurologia e Psiquialria. Enquanto, porém, a Neurologia se ocupa. como as dcmuis espccialidades da ciéncia médica, do somático, a Psiquiatria ultrapassa esses limites. transpõc as fromeiras do mero somático e invade outro domínio. o do psíquíco. Com tudo isso, a Universitas medícinae não deixa de ser defendida. Mais aindaz sob a forma da Ncuropsiquialria. ou da Madicina Psícossomática, as duas especialidades constituem uma verdadeira unidade, uma verdadeira unitas. Essa unidade. todavia. não é. em última análise, senão 0 termo corrclativo daquela unidadc que já encontramos como objeto da Medícina, quero dizcr. a unidadc cor-

74

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

po-alma do “ser-homem". A unÍIas da Neuropsiquiatria é, por conscguinte. uma- imagem da unídade corpóreo-psíquica do próprio homcm. No entanto, a unidadc corpo-alma não contitui ainda, nem de longc, o homcm integraL À totalidadc do homem pertence um tercciro clemento - cssencialmente o espirituaL Mesmo nessa árca avança a Medícína, até ncla ousa penetrar e sob a forma do que se chama Psicoterapia. Cumpre ressaltar, porém, que isso não se aplica à Psicoterapia psicologicísta, a qual não consegue idcntíñcar o espíritual como um domínio 1'ndcpendentc, essencialmcnte divcrso do psíquico; ela não alcança reconhecer essa indepcndência, essa especiñcídade, desliza no espín'tual e acaba semprc resvalando para o psíquico. A exigência dc que em Medicina, se faça também justiça ao espírito só poderá ser atendida por uma Psicoterapía cxercida “a partir” do espírito - como eu deñni em outra ocasião a Logoterapia - ou por uma Psicotcrapía dirigida “para” o espíríto - como se pode deñnír a análise existenciaL Sobre o conceito de somático mencionado antes, os senhores devem levar cm conta que ele não pode ser equiparado ao “físíco", que ora é maís, ora é menos do que o somático. O conceito de somático tem ao mesmo tempo, maior e menor âmbito do que ñsico. Assim, se os senhores entenderam que o ñsico abrange o materiaL diremos que o somático ultrapassa o domínio do meramente materíal. Pensem naquelas relações que Haldane deñne com as scguintes palavras: “Se a Biologia é vista como uma ciéncia que busca apenas explicações físico-químícas, não é então nem uma ciéncia exata nem, principalmentc, uma cíência real, apenas um tatear cego atrás de uma coisa que não se pode encontrar.” Por outro lado, o físico reprcsenta mais do que o somático, na medida em que Physis pode ser interpretada como Natureza. A naturcza, contudo, abrange não só o materíal e, para além, o somático (biológico, ñsiológico), mas ainda o psíquíco. Neste sentido. a Psicologia - e com ela a Psiquiatria, considerada como a sua aplicação - pertence'inte1'ramente às ciências da natureza, enquanto a Psicoterapia, pelo contrário, ao tratar de outras coisas além da psique, ao tratar também do espírito, ñca fora de tal classiñcação.. Onde devc ela ser situada? - perguntarão os senhores. Suporã0, talvez, que ela se inclua nas cíências do espíríto, que se ocupam habitualmente do que os ñlósofos designaram por cspírito objetivo ou objetivado. A Psicotcrapia, entretanto, tem em vista o espírito intcgraL no sentido dc "espírito subjetivo". Conseqüentemente, cm relação àquela cíência problemática cuja aplicação a Psícoterapia representa. deveríamos falar de uma Noologia.

O HOM EM lNCONDlClONADO

75

Ora, tal Noologia. e com ela uma Psicoterapia nela baseada (nâo praticada ou dirigida psícologisticamentc). nada mais tcm a vcr, cm caso algum, com o físico, também não naquelc scntido amplo de physis que contém o psíquico. Pelo contrário, tal Noologia ou Psicotcrapia seria oricntada “mcta-ñsicamcntc“. Contudo, nâo se dcve, dc modo algum. imaginar quc o "mctafísico“ que somos forçados a introduzir aqui nas nossas considcrações esteja “além" do ñsico. O metafísico não cstá além do ñsíco. só a metañsica cstava além do físíco, no tempo cm que Andrônícos de Rodes editou as obras de Aristótelcs e à falta dc um título prcvisto pclo autor as designou como “metafísica". domínio do que não pcrtencia à física. Quão pouco o metafisíco está mesmo “além" do físico. os senhores podem ver por imcrmédio de uma obscrvação fcita por Max Planck em seu livro Sinn und Grenzen der Exacten Wissenschafl (Leipzig, l942. p. 20): “0 real metafísico não cstá cspecialmeme além dos dados da expcriência, mas se esconde no meio deles... O cssencial é que o mundo das sensações não é o úníco conccbível que existc. há ainda outro mundo que. sem du'vida. não nos é imediatamcnte acessíveL mas ao qual somos constantcmente remetídos com clarcza indiscutíveL não só pela vida prática como também pelo trabalho cicntíñco.” ' Já se fala hoje de uma metabiologia (Rudolf Ehrcnberg, Erich Heintel). E também já sc fala, de há muito. em mctapsicología (o que habitualmente se entende por isso seria mais justamente denominado “parapsicolog¡a"). Mas - para uma vez mais nos servirmos das palavras de Planck - também a '*vida prática“ do clínico, também o “trabalho da ciência médica" nos remetem “constantemente, com clarcl O falo dc que nada sc ajusta menos ao metafísico do que considcrá-lo como algo que ñca além do ñsico torna-sc ainda mais evidcme se eu lhes rccordar que. segundo Kant. uma metañsica - a qual somcntc no scmido dc scus prolcgómcnos poderá ser tida como cíência - diz esencialmente respeito a algo que, de certa forma. está mesmo “anlcs" do flsico, anles dos “dados da cxpen'ência". na acepção de Planck. portanto “antes” da experiência. como scu a prion'. como prcssuposto. como condição da possibilidadc da cxpcriência. Em Metaphysischen Anfangsgrunden der Nalurwissenschafh Kam añrma que as mu'ln'p|as rcprcsemações emplricas podem vir a scr por isso “conhecimemo empírico". islo é. “expen'encia“ submctida a uma conexão nos tennos da lei. Leis. porém. scgundo Kant. são “pn'ncipios dc neccssidndc do que pertencc à cxislência de uma coisa". Dcixcmos. portanto. estabelecidoz segundo Kanl, toda cxpeñência visa uma “nccessidadc". Por outro lado, a_seu ver. a metañsica uma das Ieis "que pos~ sibílitam a idéia de uma natureza“. Reítcremosz de acordo com Kant. a mclañsica visa a questào da “possibilídadc da cxperiênc|"a". Rcsumindo. podemos ousar fazer a seguinte fonnulação: a vivência tem por objcto a realidade: a cxperiêncía lcm por objclo a necessidade dessa realidade; e a metañsica tcm por objcto a possibllidade dcssa necessidade de realidadc.

76

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

za indlscutível". para a metafísica - ou, como cu doravame prcferíria chamar. “metaclíníca". _ Heidcgger disse certa feitaz “Na medida em que o homem existe, aconlcce a metafísica". Com muito mas razão se poderia proclamarz na medida em que o médico pratica, acontece a metafísica. O que te~ mos cm vísta não c', de modo algum. uma metafísica imroduzida por nós na Medícina por essa ou aquela via, ou objeto de uma suposição nossa. Do que se trata aqui é da metafísica implícita cm toda Medicina, são as implicações metañsícas que todo comportamento médico permite presumiL Trata-se, por consegu1'nte. dos prcssupostos matañsicos da atividade médica. E mesmo que esses pressupostos fosscm em geral pouco perceptívcis, tanto mais teríamos de combater o perigo de considerá-los como falsos. Sendo verdadeiros, nem por isso seria supérnuo explícá-Ios, tirá-los da obscun'dade, liberar do esconderijo em que se mantêm tanto a verdade metafísica em que se baseía a Mcdicina quanto os seus pressupostos metafísicos, transladando-sc para uma àxñôewz E isso por quê? F. Th. Vischcr proferiu a conhecida frase: “O moral comprcende-se por si mesmo.“ Talvez o que é melafísico também se compreenda por si mesmo e, num certo sentido, toda a metañsica pode, de fato. de algum modo, ser compreensívelz cada um de nós sabe, de um modo ou de outro, que o homem “tem” corpo e alma e “é" espírito. e, adcmaís. que é livre e responsáveL Nesse sentído, a metafísca ensina o que todos já sabemos, mas não é desnecessárío que ela o diga porque lhc compete dcfendcr-nos conlra 0 sarcasmo de uma ciência que não conhece as suasfromeiras e, por esla razão, as ullrapassa consIamemoma Se. portant0. a metafísica implícita na Medicína é explicítada, sc se fala de “metaclínica", então ocorre que uma evidência é levada a comprcender-se a si mesma. Ao mesmo tempo, acontece com ísso que a evolução normal do jovem médico é contrariada (normal não no semido de norma moraL mas de média estatística) - aquela cvolução que faz desaparecer a ingenuidade primária do médíco principiame por meio do exercícío da simples rotína de um tipo de médico destinado a não representar daí em diante nenhuma ciêncía de curar, ncm mesmo uma arte de curar. mas apenas uma técnica de curar. Para esse tipo de médico, tudo é evidente, qualquer coisa que faça, ele o fará com a maior naturalidade. Enquanto essa evolução mediana acarreta uma banalização da ativídade proñssíonaL o desdobramcmo da “evidcncialidade" no rumo da comprecnsão pode, as'sim esperamos. conduzir a uma caplacão do sentído mais profundo e um enlendimemo mais prcciso da dignidade do ato médíco e, desta forma, a uma conccituacão mais elevada da proñssão.

0 HOMEM lNCONDlCIONADO

77

Voltemos uma vez mais à nossa citação de Planck. Ele difcrencia o “mundo das sensaçõcs" de um “outro mundo... ao qual... somos constantemente remetídos com clareza indiscutível... pelo trabalho cientíñco“. No entanto, o “mundo das sensaçõcs" ou “os dados da experiência”, como Planck também o chama. é exatamcnte aquclc que nós experimentamos; ncssa expcriência e com ela. chcgamos, tadavia, a “um outro mundo” - de tal modo que podemos dízcr que por meio da nossa expeírência “atcrrissamos" ncsse outro mundo. Planck, porém. diz exprcssamente que somos “constantementc" rcmetídos para essa região, o que signiñca que não podemos tê-la scmpre à vista. ela nunca é visível como um todo cocrente. em relação “sistcmáu'ca". Numa palavraz essa rcgião nunca nos aparcce como um “comineme”. Por consegu1'nte, em nossos esforços rclativos ao metafísico na Medicína, mais precisamentc ao mctaclínico, não dcvemos procurar a priori o sistcmático, mas tão-somente o problemático. os problemas metafísicos que a Medicina nos aprcscnta. assím como os problemas metaclínicos que a rolina médíca nos revcla logo que tenhamos aprcndido a ver os fenômenos clínicos como que numa transparência sobre os problemas metaclínicos. Não esqueçamos, porémz mesmo na ñlosoña o lempo dos grandes sistemas parece já ter passado deñnitivamcnte. Na mcdida em que a ñlosoña. dentro de seus próprios limíles, não é mais exercida dc forma sistemática, e sim histórica, na medida cm quc. ponanto. ela é história da ñlosoña, é tambe'm. prcdom1'nantemente. hístória dos probiemas ñlosóñcos. Quais são os problemas metafísicos fundamcntais da Mcdicína, os problemas. para sermos exatos, metaclínicos? Não são outros senão os problemas cternos de uma philosophia perenm's, 0u seja, corpo-alma e livre arbítrio. O problema corpo-alma, como os scnhores Iogo compreenderão, não c'. scm mais nem menos, equivalcnte ao problema psicofísíco; o que tcmos em vista é o problcma psicossomático. Depois, porém, do que aprcndcmos po início sobre o domínio objetivo das disciplinas médícas, ñca claro que o problema psicossomático constílui um problcma da Psiquiatria ou da Neuropsiquiatna. Agora. no que concerne ao livre arbítrio, eu gostaria de dizer que ele é um pendam do problcma corpo-a|ma, na medida em que, em última análisc. cle contém o problema alma-espírito. Sc se quiser, a formulacão seria: frente ao problema psicossomático está 0 problcma noopsíquico. *'

2 Não confundir com o conceito cie noopanue - em oposição à limopsique - de Erwm Stransky.

78

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

Façamos abstração do fato dc que o livrc arbítrio, sob a forma da imputabílidadc. já caiu do domínio da psiquiatria, ou scja, da psiquiatria forcnse, e sc lorna claro que o problema alma-espírito tem de ser. por exceléncia. o problcma da psicotcrapia (não psicologicista). l. O Problema Corpo-Alma De quc forma se apresenta ao clíníco o problema corpo-alma? Se ten~ tarmos esquematizar grossciramente as formas fundamentais em que existem as docnças. chcgaremos à conclusão de que são quatro as categorias principais. Em primeiro lugar. situam-sc as doenças orgânicas banais. São chamadas de orgânicas, já que se desenvolvem imeirameme no somálic0; elas têm no interior do somático tanto a sua on'gem como o seu campo de expressãm elas derivam do somático e cxprimem-se somau'camen(c. Em outras palavras: sua etiologia, bem como sua sintomatologia são igualmeute somáticas. Em seguida. conheccmos as psicoses. Estas também são dc orígem somática. mas, ao contrárío das doenças orgânicas banais, só a sua etiología, nunca a sua sintomalologia, é somática; elas se cxprimem por meio de sintomas psíquicos. Depoís conhecemos as neuroses, ou seja, enfermídades psicogênicas reñnadas. Sua origem é psíquíca, assim como, em gcraL sua sintomatologia. 3 Finalmente, conhecemos aind_a, em especial, como simples subgrupo das neuroses, as ncuroses orgânicas. Sua etiologia é, como nas neuroses, indubitavelmcnte psíquicas, mas sua sintomatologia é somáticaz seus sintomas desenvolvem-se no órgão eventualmentc atingido. Consequ"cntemente, em relação à etiologia como à sintomatologia. podemos distinguir. quer um grupo dc docnças somáticas, quer um grupo de doenças psíquicas, ou dito de outra maneiraz uma vez o estado mórbido é “causado”, conforme o caso, somaticamente ou psiquicamente; de outra vez, o “quadro sintomático" é somáticq ou psíquico. No primeiro caso, dividem-se as doenças em somatogênícas e psicogênicas (princípio de divisão; gêncse), enquantq no segundo caso as doenças se dividem (princípio de divisão; fenomenologia) em fenossomáticas e fenopsíquicas. '

3 Evitamos aqui. intencionalmente. usar o tcrmo “psiconeurosc". entre outms. sobrecarrcnado e prejudicado pela Psicanálisc. c por isso ambíguo. 4 Ver meu trabalho Theoríe und Therapie der Neurosem Munique/Basilein. l970).

O HOMEM lNCONDlClONA DO

79

Não é preciso quc cu coloquc à vista dos senhorcs a cxislência dc algo como a psicogênese; todas as nossas demonstracõcs psicotcrapéuticas tém-na sempre. naturalmen¡c, pressuposto como uma coisa evidente por si mcsma. *- Com isso, não sc deve ocultar que a Psicoterapia é possíveL e necessária, em condições onde não haja propriamente psícogênese. Como também não deve ser omitido que ncm tudo o que carece de base orgânica só por isso deva ser classiñcado como psicogénico = neurótico, pois de há muito sabcmos com ccrtcza que existem estados mórbidos que se cxp'rimcm scm qualquer |esão orgânica demonstrável e não devem sua origem à psiquc. São chamados de funcionais e podem ser exempliñcados por várias docnças endócrinas. bcm como neurovcgetativas. E aconselháveL por conscguinte. acentuar que o diagnóstico de uma neurose não tcm dc se Iimitar à docnça psícogênica. mas deve basear-sc numa possível ctiología psíquica demonslrâveL Este diagnóslico é sempre positivo. isto c', nunca deve ser fcito per exclusíonem. o que signiñcaria um diagnóstico negativo. Tampouco é permitido diagnosticar psicogênese ex juvann'bus. pois nem a ausência de uma lesão orgânica. ncm também. por outro Iado. o efcito positivo da Psicoterapia, seu êxito. no caso concreto. provam que estejamos em presença de uma doença psicogénica, uma neurose. Ainda reccntemente obtivcmos um sucesso espctacular num caso que dava a ímpressão de histeria - utilizando injeção dc soro ñsiológico com grande aparato, acompanhada de sugestão verbal ~ e, no enlanto. quando. no mesmo dia, por não cslarmos conñantes na prova do êxito do tratamento como argumcnto válid0, pedímos uma investigação de conlrole radiológico. ñcou constalada a prcscnça dc uma metástasc carcinomalosa. 0 fato de existirem distúrbios funcionais. e não psícogênicos, nãn prejudica a justeza da nossa distíncão. Não são raras também as doencas orgânicas banais que são descncadeadas através do psiquismo - citem-se as cardiovasculares que se exarccbam ou se manifestam reativamcnte diante da menor excitação afetiva ou da elevação concomitante da pressão arteriaL As repercussões das doenças fun~ cionais sobre o psiquismo - bem como das doenças orgânicas banais - explicam~se, todavia, pclo constante e semprc possível aparccimento da angústía de expectatwa. Logo que entra em ação este mecanismo funcsto, qualquer doença, e não apenas as funcionais. é “secundariamente ncurotizada" °

5 Consulte-se meu livro A Psicoterapla na Pnílica - E.P.U. 6 O caráler secundário em questão lambém cosluma ser designado por “supcreslrutura psíquica“ ou “sobrcposição psíquica“.

80

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

Rctornemos ao tema da psncogênesez começando pela possíbilidade de sc produzirem empolas dc queimadura em virtude dc influência psíquica, ou scja, a hipnose, até a experiéncia involuntáría do médico que, tcndo assistido um doentc do qual foram extraídos dois lerços do estômago, tevc ele próprio de scr submetido, no día soguintc. a operação idêmíca, depois de uma hemorragia aguda no órgão. a psicogênese se faz valer de forma imprcssionante em todas as ocasiões ( o caso do médico é relatado por Avancini em “Ein Beitrag zur Neurogenese des Ulcus Pepticum". publicado em Wiener innishe Wochenschnf1', 61. lO4, l949). H. Kleinsorge e G. Klumbies, da Policlínica da Universidade de Jcna, conseguiram, ñnalmcnte, a comprovação exata de que a formação de estímulos, a contração das aurículas, a propagação da excitação nos vcntrículos, o refluxo da excitação, a nova síntcse do glicogênio e o calibre das coronárias modiñcam-se sob o efeito do psíqu¡'smo. Os citados autores “causaram vívências psíquicas de toda a espc'cie pela hipnose mamendo um controle eletrocardiográñco e inter~ prelando posteríormente os elctrocardiogramas". Em tais experimentos, “as preocupaçõcs, dcsgostos e saudades revelaram agir como tóxicos causadores de espasmos nas coronárias. A alegria funcionou como antídoto e remédíoz mostrou-se tão dilatadora das coronárias quanto o nitrato." Contudo, a análise cletrocardiográñca permitiu que os aulores concluíssem que “nem todas as formas dc alegria exercem tal efeito. A alegria da expectativa não o faz, só a da rcalizaça'0." Tão cngraçada como comovcnte nos parcce a obscrvação dos investigadores dc que “essa alegría não depende em nada dc uma vida luxuriosa". No exemplo deles, os fatores determinantcs são, pelo contrário, a visão do céu azul, flores de varíadas cores ou o brilho do sol, coísas que cstão ainda hoje ao alcance de todos, conforme nos garante esse semanário (Deustche medizinische Wochenschrflt', 74, 2, 4l, 1949). No entauto, enquanto falamos continuameme de psicogêncsc, não tomamos consciência de quanto essa palavra está carregada dc problemática. verdadeira problemática metafísica! Não nos esqueçamos: o que se pressupõe é, nada mais nada menos, que existe cntre, de um lado, o psíquico, e de outro, o somátíco, algo como uma gêncse. Gêncsc equivalc a “causa" e em contraposição a ela tcríamos um efeito. Sígniñca que, ao accitarmos a psicogênese, cstaremos nos ñxando numa determinada teoria da relação entre o psíquica e o somático, ou seja, na chamada teoria da ação recíproca? Sabem as senhoras e os senhores que, do ponto de vísta problemático-hístórico, se nos deparam três teoremas fundamentaís no que concerne ao problema corpo-alma: a par da teoria da ação recíproca. a teoria da ídentidade, bcm como a do paralelismo 'psicofísico”.

0 HOMEM INCONDICIONADO

8l

Lembremo-nos. contudo. daquilo que nos propusemosz primeiro vcr os problemas. Devcmos. por conseguinte. tralar de problcmas c não de teoremas. Em face destes. não nos devc restar mais que a é1wxñ . assim chamada pelos anligos gregos, isto é. abstcrmo-nos de toda atitude teórica. Qucrcmos ver somente os problemas. dízíamos nós - e assim devcmos agora acrescentar. também. as aporias com as quais devcmos contar em todas as tentativas para resolvê-los: as diñculdadcs a que todas as Xentativas típicas de solução, em conjunto, cstão sujeitas através da história da problemática. A título de antecipaçãoz ñca de uma vcz estabelecido que o somático c o psíquico não se podem rcduzir um ao outro. ncm podcm derivar-se um do oulr0. O somático e o psíquico são, portanto, dados irredutíveis ou indeduzíveis. 7 Não crciam que, em apoío disso tudo que venho dizcndo, eu só possa oferecer lestemunhos que, para além da ciência “exata" e “pura", perseguem espcculações estéreis; pelo contrári0. recorro a Heisenbcrg - um nome eminentc que escolhi como exemplo cnlre outros de um ciemista indubitavelmeme exato - o qual assim exprimiu: “Não espcramos que haja qualquer via direta do entendimento ligando os movimentos dos corpos c os proccssos psíquicos. já que. também na ciência exata, a realidade se dospedaça cm camadas separadas." Não creiam. todavia. que assim a coisa ñca resolvida. com a separação cntre duas camadas do corpo e da alma. São _necesa'rias mais scparações. Nicolai Hartman. em Der Reale Aujbau der Welt (Bcrlim, l940, p. 429). añrmouc “Quem quer explicar a vida orgânica pclas forças mecânicas e pelas relações de causa e efeito, quem quer apreender a consciência pelos processos físicos, ou o ethos do homcm pela lei psíquica do ato. choca-se contra a lei da propriedade das camadas. Assim, o que perlence a uma camada é transfcrído para outra camada mais evo'luida." Tcríamos assim quatro camadas em que “se despedaça“ o serz as camadas do ñsico. do orgânico, do psíquico e do espirituaL ' Parccc-nos digno de nota que, a um exame mais atento. as separações entre as várias camadas citadas mostram-se divcrsamentc marcadas. Assim, por exemplo, não se pode conlestar que entre o psíquico c o físico se evidencia um certo paralelismo; não é sem razão que se falou, e se fala, cm paralelismo psicoñsico. E quando cito o

7 Vcr. de minha autoria. Der Wille zum Sinm Bcrna. Stutgart, Vicna. l972. 8 Jaspcrs ensinouz “Emrc os fcnômenos nãmorgànicos da nalureza c a vida. cntrc . vida c a consciência. enlrc a consciência c o espirilo. abre-se um abismo inuanspom vel."

. . <ñ

82

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

fato mais banal possível ilustrativo dessc paralclismo, ou scja, que o indivíduo encolcrizado fica rubro, vê-sc como o psíquico está perto do físico. Também no indivíduo mclancólico cstamos em prcsença dc uma “inibíção psicomotora paralela” - portanto, também, dc igual modo, um rcsultado psíquico c físico. Enquamo, porém. o mclancóIico toma uma atitude diantc de sua doença na qual de algum modo nela “se consome” (na medida cm que ele se negligencia a si mesmo), outro doente, perante a mesma doença, comporta-sc dc modo a procurar dcfcnder-se dela e, assím, está “acíma de|a" - cspiritualmcnte acima do somátíco. Aqui, como vêcm os senhores, trata-sc dc uma difercnça n'o que conceme à atitudc espirituaL a tomada de posíção diame de uma coisa, c essa tomada de posição cría um distanciamcn~ to para com o acontccimento psicoñsico paralelo. Não se pode falar mais, bcm como ainda cm relação com o psicossoma'tico. em paralclismo; pclo contrário, podc-sc dizerz cm analogia com o paralelismo psicoñsíco, caberia tão-somente citar um antagonísmo “noopsíquico". Ninguém melhor do que Ludwig Klages víu, talvez, esta rclação, quando, com propósíto programático. aprcscnta “o espírito como comradítor da alma", no título que se tomou famoso de um de scus livros. Klages viu muito bem cssa divísão profunda do ser. com uma ñssura peculiar, um híato entre o cspiritual e o psíquico, mas errou ao acentuar o antagonismo de modo a parecer que a alma tcnha dc ser defendida. numa posição humana ou humanítária, contra a “erupção” do espírito na “vida”, na exístência. Por ísso, podemos, dizerz Klages arriculou corretamente, mas acenluou maL ›Se assím fosse. tcríamos de admitir, em vista das “camadas separadas" nas quais, segundo Heisenberg, “a realidade se dcspedaça". que o mundo está esfacelado? Não é nada disso, e foi o próprio Hartmann quem voltou a observar: “O mundo real tem unidadc, não a de um princípio, mas a de uma ordem.“ Hâ, por consegu1'ntc, unidade “sobre” o mundo e “no” mundo, uma unídade num plano mais elevado, se me é pcrmitído dizer, do que aquele em que ela é geral~ mente procurada pela nccessidade metafísíca de unidade. Não se trata, portanto, da “unidade de princípio" a que se refere Hartmann. corrcspondente a um c_sforço de claboração de uma imagem unitáría do mundo, porque tal unídade sería uma unídadc à tout prix - seria un1'dade_ao preço da unilateralidadel Tal uniñcação unilatcralizante constitui precisamente o crro de toda conccpção do mundo que sc pode desígnar como monista, em oposição a uma pluralista. Entrc tais monismos, destacamos doís: o materialismo e 0 espiritismo. Enquanto o primeiro reduz a realidade, o ser, o mundo, à matéria, o scgundo deduz o mundo do espirituaL Se quíserem. podemos também dizer: o matcrialismo - na medida cm

O HOMEM INCONDICIONADO

83

que rcduz tudo às camadas“inferjorcs" do scr - é um monismo que espccula na baixa; o cspiritualismo. pclo contrário - na mcdida em que reduz tudo a uma camada “superior“ - é um monismq que espccu1a na alta. É prcciso salientar que falamos aqui dc cspiritualismo. c não de espiritism0. Estc último mcrecc uma cxplicação à partc. Ele podc caracterizar-se como uma formação ambígua. Do ponto de vista da tcmática, admite a qualiñcação de cspiritualista, mas, do ponto dc vista do método, cumprc classiñcá-lo como matcrialista. Com relaçâo ao scu enfoquc, é complctamentc cspin'tualista; com rclação à sua posição, é tipicamentc matcrialista. Os senhores desejam, decerto, a prova da verdadc. Ei~laz cspiritismo alude rcpelidamente a “corpos astrais", “vibrações. raios, ondas cspirituais". e assim por diantc. É lícito añrmar. pois. que clc faz do espm"tual um quasomatcnal'. Dito de outro modo: o cspm"¡.|sm'o materializa o cspírito considerado na perspcctiva histórico-espíritual c, por isso, se torna aquilo sobrc que justamentc tanto gosta de se fa~ lar_. ou seja, um fenômeno de “matcriahz'ação"! ' O espiritismo não é uma verdadcira mctaflsica, mas sim uma pseudomctafísica. Isso torna-sc claro quando vcrificamos que para os espíritas o espirito não está ^°atrás do ñsico” como algo demetafisico. Pelo contrário, o espírita vê por detrás do espiritual algo (quase) físico. Os espíritas não sc csforçam somcntc, a cxcmplo dc muitos metañsicos, por dar uma cspiada atrás dos bastidorcs, a ñm de ver o que há por trás do físico, mas gostam aínda, como pseudometañsícos que são, dc dar uma olhada no que ñca atrás do segundo plano. Nào se contentam com o que aparccc à luz da metañsica como rcalídade espiritual |'ndcpcndentc; pclo contrán'o, eles - esscs mclhores conhecedores metañsicos, como podcmos chamá-los - tratnm esse cspírito como se fosse físico c distorcem cada proposição metafísica do conhecímcnto no scntido do matcrialismo vulgan 0 espírito é, como tal, naturalmente, invisívch o cspíritismo. na sua pseudometañsica, quer todavia tor_ná-lo de alguma forma visíveL Não se podc ver o espírito, já que ele é invisíveL há de se acrcditar ne~ le. Todavía, a metafísica cspírita - na mcdida em que transform_a o espírito em algo dc visíveL cm que dcscja, portanto, vê-lo - numa palavra, a crença no espírito daquele que vê o espírito degencra exatameme, por isso, em superstição.

9 Fazendo-se abstração de todo o amropomorñsmo groueiro que gcralmenle cstá ligado às conccpções espíritas (basta pensar no dispnnte da hiernrquia emrc os espln'tos), trata~se, no cspin°tismo. aobretudo de um “ñsiomorñsmo". se nssim mc posso exprim¡r.

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

jar” “por trás” de todas as “signiñcações profundas”, e a supor liga-

_4_

Rcstam ainda duas objeçõesz uma díríge-se contra a realidade do cspiritual por ser elc ínvísível. Baseia-se no argumento de que não não está certo acredítar-se em algo que não podc ser visto. Ora, devese cnfau'zar. contra isso, que nem tudo o que é invisívcl é irreaL Eu gostaria de lhes explicar cste ponto relatando o díálogo que tivc, ccrta vcz, com um jovem que me pergumou que importâncía podia tcr a rcalidade da alma, considerando que ela é invisíveL Concordeí que cle nunca podcria ver algo parecido com uma alma por meio de uma díssccação ou um exame microscópíco do cérebro, mas lhe perguntei, ao mcsmo tempo, por que ele iria empreender tal díssecação ou tal exame microscópico. O jovcm respondeu-me o seguimcc por amor à verdade. pclo interesse ínvestígador-cienu'ñco de encontrar a verdade! Aí cheguei aonde eu qucria porque bastava indagar: o que é o amor à verdade, etc., se não algo de referentc à alma? E sobretudo se ele pensava que coisas como “amor à verdade" pudessem ser vistas ao microscópio. Então tudo lhe ñcou claro: o que se procura por meio do microscópio, e que por esse caminho nunca será achado, esse invisível, a alma propriamcnte díta, é o que csteve sempre pressuposto em todo examc microscópíco! Agora, a segunda objeção possívelz far-nos-ão, ao lado do espiritismo, uma reserva na direção oposta. Não vão pôr em dúvida a realidade do espírito por ser ele ínvisível, mas a realidade do físico, isto é, da matéria, na medída em que mesmo a ñsica moderna comcçou a eliminar, a superar e a lançar fora essc conceito. Contudo, tal apelo à ciência tem pouco fundamento. '° _ Não se alteraría no mínimo grau o fato de que uma imagem monista do mundo, ainda que revcstida da roupagem dos resultados das modernas investigações cientíñcas, nos deíxaria insatísfeitos, pois uma coisa deve ser dítaz chega a nos parecet indíferente que coisas como alegria, fé, amor, alma não sejam “maís do que” vibraçoe's moleculares ou saltos quântícos. Para concluir nossa br6ve palestra sobre espín't¡'smo, gostaría ainda de dizer uma palavra sobre suas causas psíquícas. Não há dúvídas de que a origem índivídual do que anteríormente chamamos de “o melhor saber metafísico” deve ser procurada e também achada na estrutura neurótica do homem em questão. Não se deve contudo, pcrder de vista que frequentemcntc taís quadros mórbídos dc fundo neurótico assumem aspectos psícótico, e então esse homem começa a “fare-

O HOMEM INCONDICIONA DO

m__

84

85

ções cruzadas e “re1açõcs” entre os fatos mais disparatados (desde as influências cósmicas no sentido astrológico até a mística maís pueril e insensata dos nu'meros). Quando semelhantes rclações pscudomctafísícas, são “vistas“ em profusão, justiñca-sc o diagnóstico dc “delírío de rclacão metañsica". No meu entender, e contrariamente a uma idéia largamentc difundida, o que caracteriza o niilismo não é a referência ao “nada". c sim o uso da expressão “nada mais que”. Com efcito, por trás do conceito do “nada” utilizado pelos niilistas supostamcntc atcus (especialmente muitos existencialistas) esconde-se um valor altamentc positivo. Heideggcr. na realidade, não se limita a empregar o substantivo "o nada" e o advérbio “nada", recorre ainda a um verbo da mesma família, “nadificar". Por trás do “nada” ele parcce conccbcr o Ser. e só o chama de “nada" porque não se trata de um “entc" (Seiena') emre outros entes. pelo conlrárío. trata-se do fundamento de todos os entes. Enquanto de um lado o suposto níílismo se rcvcla como um positivismo, como a expressão agnóstica de um extremado posítivismo, ou se se preferir, de um realísmo radical (representando nisso uma determinada analogia com a “teología negau'va"), de outro lado 0 chamado positivismo demonstra ter añnidades com o niilismo, na medida em que para ele também o mundo nada mais é do que um complexo de sensações (Mach). Aliás, de certa forma todo “ismo" é um niilismo. Que o biologismo declare ser capaz de explicar tudo à luz da biologia, que o sociologismo pretenda o mesmo nome da sociologia. e o psícologismo em função da psicologia, ou, enñm, o antropologismo a partir da imanência humana, sempre estamos às voltas com a redução à fórmula “nada mais que”. De direito. todavia. os fatorcs vital, sociaL psíquico e humano não deveriam ser endcuzados dessa forma. nem deveria cada uma dessas ciências ambicionar ter a sua própría “visão do mundo”. Conlra isso, ergue-se a verdadeira metafísica ou, como já dissemos anteriormcnte. contra um saber que não conhece seus limítes, e por conseguinte os ultrapassa, é oportuna a cxisténcia de uma metafísica dcfensiva. As raízcs psicológicas colctivas da cresccnte difusão de tal pseudometafísico espírita não são dífíceis de localizar. Segundo Scheler, o homem ou tem Deus ou tem ídolos. Basta-nos ampliar essc conceito para chegarmos à fórmulaz o homem tem uma crença ou tem uma superstiçã0. ” Quamo menos se cogila do espírito, mais se fala de espírilos.

10 Jaspcrs cscreveuz “.›. o grandc pu'blico... faz uso dos resultados da ciência como, antgamcmeI os povos primitivos fazíam com rclação aos chapéus coco. as sobtecasacas c as missangas dos curopcus" (Der philosophische Glaube. Zurique. l948, p. 153).

12 Quem sc recorda, a essc respeito. do tempo da gucrra - na freme de batalha. n010cal dos bombardeios. na rctaguarda. no campo dc prisionciros ou no campo de con-

86

FUNDAMENTOS ANTROPOLÔGICOS DA PSICOTERAPIA

Se eu resumir o que revclou a investigação do “Caso Mírin Dajo". comentado amplamcnte na imprensa, não há muito tcmpo, manifesta-se quão profundamente cstá cnraizada, coletiva e psicologicamente. a vtendência à superstíção e à crença em milagres, c que fontes de erro há nesse contcxlo. Como se sabe. Mírin Dajo añrmava ser invulnerável e, para prová-lo. deixava-sc trespassar repetidas vezes por um floretc. É Curioso que leigos prescntes à dcmonstração acreditas~ sem que, naquela perfuracão. o coração fossc atingído, ainda que o florcte nunca fosse enñado no lado esqucrdo, mas sempre no lado dircito do peíto (remeto-mc aqui, como adiante. às publícações respecn'vas dc Schlãpfer, da Cliníca Círúrgíca dc Zuríquc. c de Undritz, da Sociedade Med'ica Basiléia, na Schweízer Medizinische Wochenschrf¡1', 1947 e 48). Até que ponto ia sua prctensa invulnerabilidadc? O florete não tinha gume. Quando penetrava no corpo, os tecídos tinham. por consegu¡'nte, a possibilídade de sc separarcm sem serem cortados; em virtude de sua clastícídadc, não se rasgavam e, ademais, por efeito dessa mesma elastícidade, a parte atravessada pelo Horetc em sua trajetória podía fechar-se depoís da demonstração. O florcte, aliás. era introduzido lentamente e, em conseqüência, os tecídos dispunham de bastante tempo para se fecharem (Schlãpfer, em suas experiéncias com animais, tentou mesmo espetar a aorta sem ferí-la, e o conseguiu). lsso explica por que um projétil rcdondo (com uma superñcie lísa) deve ter um efeíto incomparavclmente piorz a velocidade da pcnetração desempenha aí um papel essencíaL Fínalmcnte, nas cxperiências como Mirín Dajo, o florete ñcava tanto tempo no corpo que ferimentos dos vasos ou hemorragias eram, por assim dizer, tamponados. Como, além dísso, a espada era retirada lentamente, também se tinha o cuidado de evitar que eventual coagulo se despreendesse. À pergunta “por que não ocorríam grandes hemorragias" podese lambém responder esclarecendo que Mirin, ou seus auxíliares, oompnm'íam a fcrida ímedíatamente após a expen'ência, sem mencionar o fato de que ele costumava logo se vestír. Ainda assim, era possível perceber uma hcmorragía de pcquenas proporções e. ocasionalmenle. na colheita de sangue com um flebotomo, que servía para pcsquisas no laborato'rio. manifestava-se também o escoamento normal de uma gota de sangue. A espada não saía ensagüentada porque a pele elástica cerlamente limpava o sangue que podia ter aderído a ela no momenlo em que era arrancadaL Argumentando desta forma, esta-

cemração - em toda parte aconlccia o mesmoz quamo menos notícias. mas havía boalos.

O HOMEM lNCON DICIONA DO

87

mos fazcndo abstração de outro fator que. scgundo os parccercs dc observadores clínicos. poderiam cstar em jogo. isto é. a auto-sugestão Que as hemorragias estancam sob a influência da sugestão. cu próprio pude constatar. quando espetei na pele de uma docnte em ancs~ lesia hipnótica sugcrida uma agulha que em seguida reu'rei, não aparecendo hemorragia no lugar da picada senão no momcnto de dcspertar. Enquanto a mulher estcve sob hipnose. apresentou uma con~ dicão de anemia apurente que não lhe havia sido sugerida. E a sensibilidade à dor. no caso Mirin Dajo? Foram notados objetivamcnte. no momento das cxperiências. suores. palidez c taquícard¡a. Além disso. deve-se. de antemão, ressaltar que os órgãos internos não são, em geraL sensíveis à dor (como é impressionantcs ver-se nas operações do lobo parietal do cérebro, sede cortícal da scnsibilidade dolorosa, que ele é insensível à dor! Numa palavra: o centro com que noé sentimos a dor é, ele próprío. insensivel à dor). No que concerne à insensibilidadc da pelc, poderíamos, sem dúvida. explicá-la em função dos momentos sugcstivos. Em pacientes angustiados. tenho expcrimentado com sucesso sugestioná-los dizcndo que lhes administro uma injeção de novocaína no local em que faço uma punção lombar. Na realidade, introduzo apenas a agulha da punção e eles nada sentem. Depois, não qucrem admitir que foram puncionados sem anestesia local. Não precisávamos, contudo. recorrer à sugcstão como fator explicativo. lsso signiñcaria fazer abstração do fato de que Mirin Dajo. na citada colheita de sangue do dedo, se comportou normalmcnte, estremecendo no momento da espetada e por isso o simples autodomínio basta para explicar que elc chcgasse a suportar a estocada do florete sem manifestação de dor. Mirin Dajo a suportava exatamente por motivos pacifístico-idea|istas. por amor dc suas ide'ias. cnquanto os docntcs de nossa clínica diária suportam-na por amor de sua saúdc - e assim artistas que fazem pretcnsas experiências auto~ sugestivas coram publico toleram essas dores ou praticam tal autodomínio por apego ao dinhçiro. Um efeilo sugestivo desempenha aqui um papel somente na medida em que é procurado pelo público.

Quando, como aconteceu uma vez, um artista, num espetáculo dc variedades, espeta uma agulha comprida de cabeça esférica (naturalmente de material leve) através dc uma prcga da pele scm cstrcmecer. _a platéia ñca -emocionada e impressionada, e não pensa que nossa agulha de punções é muito mais grossa... Mirin Dajo acabgu morrendo. Engoliu. para “desmaterializar", um instrumento pomcagudo mais grosso do que dc hábito e não pôdc ser salvo. apcsar de logo operado. Os médicos tinham-no advertido do risco. Um diagnóstico psíquíátrico mostrara que estava possuído

..

FUNDAMENTOS ANTROPOLÔGICOS DA PSÍCOTERAPIA

por uma idéía de sobrevalorizacão, prevendo que essa enfermidade menlal se rcvelaria mais cedo ou mais tarde como “uma doença para a morte”. De morluis nil nisi bene - e gostaria, portanto, de ressaltar que o dito parecer psiquiátríco sobre Mirin Dajo o qualiñcava, do ponto de vista de caráter. como uma pessoa honesta movida por molívos elevados.

ILO Pmblema do Fspírito I. A Essência do Espírito Depois da crítica do espiritismo, da pseudometafísica espírita, voltemo-nos agora para a do matcríalismo. Já o deñnimos como uma metañsíca monista, e a propósito díssemos que, ao contrário do espiritualísmo igualmenle unílateralizante-uníñcantcV. ele representa uma especulação metañsica â baw'se. Antes de emrarmos na crítica propriamente díta, devemos precísar que o materialísmo mctafísico que temos em vista e ao qual nos opusemos não deve ser, de modo algum, confundído com o que hoje se chama de ma_terialísmo dialético. Para conñrmá-lo, basta tão somente a citação de uma tese de Lénin, “Materialismo e Crítica Empíríca”, onde sc lêz “A u'nica qualidade da matéria à qual o materialísmo ñlosóñco adere é a de ser realidade objetiva e de existír fora do nosso conhecímento.” O que se nos depara, por consegu1'nte, não é nenhuma metafísíca, mas uma teoria do conhecimento e, como taL um realísmo. Pode- mos. scm diñculdade, aderir a csse realísmo, e cle próprío está de acordo com quasc todas as orientações ñlosóñcas contemporâneas. A aínda assim, havería_algo a dizer sobre isso. Na crônica escandalosa em que parece consístír a história da ñlosoña, o escândalo acomeceu duas vezes: uma delas foí quando Kant chamou de “escândalo da ñlosoña" o fato de ela não ter sido capaz, alé então, de trazer a prova da realidade do “mundo exterior”. “ A segunda foi quando Heidegger añrmou que tinha de considerar como escândalo da ñlosoña o fato de ela ter julgado que “a reali› dade” do mundo exterior precísasse de tal prova! " Nessa posíção de realismo epistemológico, encontramo-nos, como foi díto, em conso-

13 Tcxtualmcntc. trata-sc da "cxíslêncía das coisas fora de nós”, no Prefácio da scgunda edíção da Crítica da Razãa Pura. nota. p. 39. l4 Na vcrdade. houve um lerceiro escãndalo. apontado por Dillhey na scguínte passa-

gcm: “Eslc é 0 cscândalo da ñlosoña: que cada um dos sistcmas cxclua o outr0. cada um conlestc o outro. c ncnhum dclcs possa provar o quc diz".

"*-à-.v

88

O HOMEM INCONDICIONADO

89

nância com a ñlosoña moderna. Que idéia temos nós. porc'm, do prodomínio do idealismo na teoria do conhecimento dos tempos passados? Como se sabe, añrmou-sc, outrora, com frequ"ência. que tudo é representaça'o, aparência, ilusão. Ora era a “coisa em sí", ora, por assim dizer, o '°eu em si" irreconhccíveL ora era tudo somcnle cu. era o eu, era o sí mcsmoz solus ipse. O idealismo conduzia ao solipsismo através do agnosticismo. Hoje, a u'ltíma crítica não apresenta mais qualquer diñculdade. Essa crítica teria de fazer, a nosso entender, a prova de que ao se añrmar que tudo é realmente só representação ou ilusão há, por um lado, um nivelamento do ser, cujo aplanamento é realizado com o sacrífício de toda a estrutura das camadas, enquanto por outro lado. em conseqüência do solípsismo. há simultaneamentc uma duplicação desnecessária do mundo. No que tange à primeira objeção, posso tornar claro meu ponto de vista dizendo o seguintez não é possível que °°tud0” seja apenas representação, porquc - para escolher um exemplo - a representação "vermelho" não é propriameme de cor vermelha. da mesma forma que a representaçâo "círculo" não é, como representação, deforma redonda. Há, porém, algo como o vermelho cor (não exatamente idêmico à representação dessa cor) e algo como o círculo; logo, ao lado das representação “de“... cumpre existír alguma coisa que é representada “por”. E deixamos dc lado o fato dc que o representado deve, forçosameme, ser anterior àqui|o que o representa. De fato, originariamente, nunca nos são dadas “representações”, e sim as coisas mesmas (não a “coisa em si“). No que concerne à duplicação do mundo. gostaria de ilustrar os pontos a serem objetados mediante o relato de uma pequena história. Vivia na Índia, outrora, no palácio dc um monajá, um sábio que vivía a dizer-lhe que tudo não passava de sonho, mera ilusão. Um dia. impaciente, o scnhor atiçou_ os clefa_ntes mais selvagens dc seujardim zoológíco contra o nosso ñlósofo, que fugiu o mais depressa que pôde. 0 marajá pediu-lhe que explicasse seu modo de agir, anunciando que o mandaria decapitar porque ele, o sábio, não tinha. ao que parecia, levado a sério o que prcgava e, por consegu1'nte, o tinha enganado. “Tu disseste - rcprecndeu-o o scnhor - que tudo é só ilusão, então m_eus elefantes deveriam também ser apenas ilusões?”. Nosso ñlósofo contestou rapidamente, pensando em salvar sua vidaz “Desculpe, mas a minha fuga também foi só ilusa'o..." '5 15 Tal como o problcma cpistcmológico da verdade. o problcma êlico da liberdade também leva a uma dcmonstração ad absurdumí sc um assassinonão é livre em sua vomade c. portanto, não é responsável por scus atos, o mcsmo sc podcria aplicar ao juiz que o condcnassc à morte.

90

.' UNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

Quando declaro quc tudo é ilusão, nada mudou no mundo em virtude dessa minha declaração. E quando tanto uma coisa como outra são ílusões (o ser perseguido c o ter fugido), então é demais falar ainda em ilusãoz essa pregação scria supérflua no mais alto grau, e constituiria somente uma duplicação dcsnecessária da realidade, quc sería desdobrada assim numa realidade reconhecída, supostamente aparcnte, e numa segunda rcalidade supostamente reaL mas absolutamente desconhecida, podendo esta u'ltima, por hipólese, ser dispen~ sada. Mesmo quando o idealísmo epistemológico não se refcre à ilusão (no sentido mais fortc do solipsismo) e sim à “aparência”, contraposta à “coisa em si'"incognoscível, mesmo aí se põe em dúvida, eo ipso, todo o conhecimento objetivo, ou seja. na medida em quc também o sujeito do conhecimento nunca abrange completamente o objeto do conhecimento. Assím como 0 homem não “pode sair dc sua pele", também nâo pode chegar à “coisa em si". Esta é a tese do idealismo epistemológico. As coisas em si. os objetos do conhecimenlo. na sua maneira real de ser, escapam do conhecimento. ñcam-lhe subtraídos para todo o sempre. Em face do objeto do conhecimento, o sujeito do conhecimento comporta-se como um escafandristaz sua mão segura um 0bjeto, mas ela própria é envolvida pela Iuva. Quando a mão procura "agarrar”, é sempre a própria luva - esse existeme de permcío - quc ela consegue tocar. Do ponto de vísta idealista, é o quc acontece conosco: o que nós apreendemos, aprecndêmo-Io apcnas nós, mas o que nós simplesmente lemos não é 0 quc somos. Uma “luva” separa eternamente, na nossa percepção e compreensão, o quc somos do quc temos. Toda nossa percepção. todo o conhecimento perceptível é somente essc “ter" - não o ter da cxisténcia, mas precisamente o do serassim, da essência. E tudo isso vale para os atos reñexivos, o conhecimento do meu próprio eu, pois o eu, além de não poder “penetrar" no não-cu, também não o pode em si mesmo: fazcndo de mim o objeto. passo a scr. cm relação a mim mcsm0, transcendente. O ente espiritual só “é” na medida em quc se realiza completamente a si mesmo. Já por isso ele nunca pode ser visado em si mesmo e por sí mesmo, ou só na medída em que o seja como ser transcendente a si próprio. '°

16 A auto~rea|ização cspiriluaL a rcalização complcta de atos espir1'tuais. nâo pode. tampouco. comprecnder-se a si mesma como “rcalídade dc realização". como. por cxemplo. o desenrolar dc um ñlmc podcrá ler sido vislo por um cspectador; tanlo no fotograma como na projecão do ñlmc. o movimcnlo é ímperceptívch o que o obscrvador pode vcr é apcnas o automovimento dos objetos ñlmados. dos objetos "no" ñlme.

O HOMEM lNCONDIClONA DO

Embora com letamente “meu". o meu

9l

róP no ato obscrvado

por mim mesmo não é mais eu, não é o eu autêntico. Ninguém exprimiu isso melhor do que E. Frciherr von Feuchlersleben em Lehrbuch der a"rtzlichen Seelenkunde, 1845, p. lO: “Não podemos aprecndcr o eu porque nós próprios o somos. assim como uma mão não sc pode agarrar a si mesma.“ E válido dizcr, portantoz o quc cu (inlcncional) “tenho" eu não o sou (não o sou existencialmente). lnvcrsamcnte, é válido quc o quc eu (existencialmente) sou. não posso cu (intcncio-

nal) “ter“ ” Assim como o sujcito faz com rclação à existência, da

mesma forma o objeto tem e mantém a sua transccndência. Apesar de tudo ls'so, o homem nâo p_recisa duvidar ainda da pasmenologia. " Esta sua “visão essencíal" não é outra coisa, portanto, senão um rcalismo radícaL Uma observação mais atcnta revcla quc se trata de “olhar" uma pura essência, um puro “ser-assim, do que resulta quc não sc pode falar dc conhecimento “absoluto"; pelo contrário, todo conhecimento essencial é. no máximo. e no melhor dos casos, objetivo. Só o conhecimcnto existencial pode ser absolulo. De resto. voltaremos a falar nísso. Devcmos, mesmo, considerar como legítima a pretcnsão à objetividade do conhecimento essenciaL do conhecimento do ser-assim. da visão da essên'01'a, da fenomenologia? Sobrc isso deveríamos dizer o seguintez se bem comprcendo HusserL ele acha. de forma um tanto vaga, quc o fenômeno (igual à essência) “vermelho”, quando apreendido no modo “absoluto", poderá ser contemplado de tal maneira nem Deus poderia observar diferentementc. ou melhor. “Vermelho” é e permanece exatamente vermelho, não importa quem o esteja vendo, pois a “pura" essência chega à vista como um “dado" primário. Talvez me seja permitido tentar indicar. partindo do cstético, essa possíbilidade de conhecimento objetívo. Benedetto Croce defendeu. certa fcita, a opinião de quc “se encontra uma certeza sensorial primítiva na visão eslética, onde não há distinção emre sujeito e objeto” (Lebendiges und Totes in Hegels Philosophie, Heidelberg. 1909). No entanto, nós temos dúvidas dc quc aqui, nesse caso indiscutívcl de simples conhecimento essenciaL “a diferença emrc sujeito c objeto" esteja realmente superada. Eu poderia imaginar. e os senhores

"no" fotograma. mas não o movimcnlo progrcssivo "das" imagcns. "do" ñlme masmo. A imcrmiténcia dcsse movimento pode fazcr com quc cada “instantâneo" no tem~ po corresponda ao caráter “pumiforme" dos alos espirituais a quc se refenu PalagyL l7~ Angelus Silesius. como se sabe. resumiuz “Eu não sci 0 quc sou. cu não sou o quc scn." 18 Eugen Fink. “Die phãnomenologishe Phllosophie Husserls, Leipzing. l934. interprelação autenticada por HusserL

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

m _

também, que alguém apreendesse a substância musical, por exemplo, da Nana Sinfonia de Beethoven de uma maneira que nem Deus pudessc superar, o ñzesse, por conseguinte, dc uma mancira “absoluta e porque cle esse nosso ouvinte perfeito, não poderia afmal fazê-lo? O que um homem chamado Beethoven foi capaz de críar, certamente, pelo menos em princípio, podc também um outro ser humano apreendcr como no caso do nosso ouvintc musical perfeito? Mas isso é su'ñciente quanto ao problcma da possibilídade do conhecimento objetivo. E agora, falemos sobre o problema do conhecimento propriamente absoluto que, como já foi dito, dcve ser algo mais do'que conhecimento objet1'vo. Até que ponto? Toda teoría do conhecímento que indaga como o sujcito do conhecímento podc chegar ao objeto do conhecimento parte do pressuposto de uma nítída separação entre sujcito e objeto. Tal leoria baseia~se na concepção de que entrc sujeíto e objeto exíste uma ñssura inextinguíveL um abismo intransponíveL um precípicio inacessível. Essa posição epistemológíca signiñca cxatamente o “pecado original" ñlosóñco - o “fruto da árvore da teoria do conhecimento”. De vez que a separação foi uma vez estabelecída, nunca mais vale a pena passar por cima do “abismo", voltar atrás, poís não há rccuo possível! Na mcdida em que tencionamos afastar-nos dessa separação funesta entre sujeito c objeto ~ com a intenção de considerar a possibilidade do conhccimento absoluto e, por consegu1'nte, de um realismo que seja o mais radical possível -, devemos retroceder até antes dessa divisão da existência em sujeito e objeto. Ouvimos que na teoria idealísta do conhecimento sc cogita da prova da realidade de um “mundo exterior”. E de Kant sabemos que, apesar do seu agnosticismo da “coisa em s1'”, disse que as coisas em si “afetaram” de algum modo a “sensorialídadc”, a percepção “interna“ ou “extema”. Com tudo isso, incluiu-sc, a nosso ver arbilrarl'amente, na metafísica do conhecimento, a espacialidade (“mundo exterior"!) e a causalidade (“afetaram”) - e isso quer dizerz as categorias respectivas. ou seja, espaço e causah'dadc, que só são válídas na ínterioridade do mundo, só dentro do mundo dos "fenômenos”, foram transportadas para fora desse mundo, portanto, para fora das relaçõcs conhecidas, conhecíveis ou a conhecer, e postas na relação que conhece, na relação do conhecímento mesmo. Em outraé palavras: transformou-se em ôntíca o que era uma relação ontológíca. A rclação epistemológica, entretanto, como relação ontológica, não admite ontízação, nem no sentído da espacialidade nem da causa|1'dade. G. Jacoby a chama de “relação gnoseológica” e Egon Brunswick (Wahmehmung und Gegenstandwe11x, Grundlegung einer Psychologíe vom'Gegenstandher, Viena, l934, p. 29 ou 32) a qualiñca, cítando Jacoby. e também Brentano. como °°uma relacão que não é

0 HOMEM INCON DICIONADO

me_-_-r~_ _

92

93

analisável ou redutível a outras relações". Losskij. que a csse mcsmo respeito fala de “coordenação gnoseológica“, designa-a exprcssamente como uma “relação singular. não causaL entre sujcito e objcto” (“Dcr lntuitionismus". em Archív fur die gesamre Psychologie, 87, l933, p. 380). lnsistindo: em toda teoria ideaiista do conhecimcnto. não só nesta, mas também na crítica transcendental do conhecimento, a espacialidade é transportada do domínio ôntico para o ontológico. Com isso, comete-se um erro que não é menor do que aquele em que incorreram os p0vos primitivos. Como se sabe, os povos primitivos têm a idéia (naturalmeme primitíva) de que a “alma” do sonhador abandona seu corpo. vagucia pelo mundo e acaba por se ñxar em algum objeto do sonho. Será que isso é falso, pergunto eu. e se o e'. em que medida? Bem, não hesito em añrmar que essa idéia dos primitivos é falsa somente na medída em que eles imaginam em tcrmos espaciais esse pairar da alma. csse ñxar-se “em” algo. Cometem um erro que não é menor em. por outro lado. mais grosseiro do que o de Kam. Em que medida. indagarão os senhores, não é mais grosseiro? O meu espírito, cvidentemente. está “em“ tudo que cle cventualmente pcnsa. em que “toca". Só que esse está “em" não pode ser exatamente representado espac1'almente. e isso porque não se trata dc um estar ou ser “em” espaciaL mas “rea|". 0 sentido não é, no caso. ôntico, e sim ontodológico. Ou, se me posso exprimir de maneira simpliñcada: penso, por exemplo, em minha irmã que reside na Austrália - estou espiritualmente, “em espírito“, nela, meu espírito "é“. desse modo, “em" minha irmã. O errado seria añrmar que meu espírito “e'" ou está “cm" minha irmã “na” Austrália. Em outras palavras: só minha irmã é que cstá na Austrália, somente esse seu ser-lá comporta uma expressão cspacíal - o fato ontológico do meu "ser cm” espiritual não deve. contudo. ser formulado em termos espaciais. Se não pensarmos mais esse ser ou estar “em“ no sentido espacial, então nada impede a añrmação - uma aflrmação feita muito a sérío - de que o ente espiritual “está" realmente "em" outro ente. como os primítivos pensavam - só que não em termos espaciais. ao contrásio do que pensavam os primitivos. porque o ente espiritual não é sujeito à categoría do espaço. Por esse motiv0, choca-nos a imagem dos prímitivos que se refere a um “espírito" que “abandona 0 corpo" e que. conseqüentemente. esteve “nele" antcs. Ora, o espirilo, essencialmente alheio à dimensão espaciaL nunca está no espaco e. por conseguinte. nunca está “no corpo”. “No espaço ele nunca é” - esta añrmação nunca mais deve espama'-los, pois a "inespacialida-

94

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

de" do conheccr c do ser espirítual já foi por nós suñcientementc ressaltada. “Onde” deveria cstar o espírito, cm que lugar do cspaço? Na mcdida em que o cspírito não está no corpo e também em partc alguma do espaço - c em toda a partc (pois que ambos estão, por si mesmos, elimínados), ele está tanto demro como fora do corpo; “fora", no extcrior, no am biente exterior. numa palavraz o espírito cstá (“é") nas coisas. O entc espíritual "é". em rcalidade. “em” outro ente espiritual eis a nossa xese; a rcalidadc a que nos referimos não é. todavia, ôntica, e sim. ontológica. O ente espiritual não “é”. conscqüememente, em outro ente em termos de espaço. Temos. portanto, o direito de nos chocarmos díante das exprcssões comumentes usadas ncsse terreno. A mcnos que “fora", ^^exterior”, “em” sejam concebidos imagisticamente, alegor1'camcnte, e que tenhamos consciêncía desse uso. Aí não cometeríamos o menor erro. Onticamente, o espírito não está jamais “fora"; contudo, ontologicamente, ele está. cm cada caso “quase fora”. Onticamente, nunca é espacial; ontolog1'camentc, sempre o é. Sempre que somos obrigados a nos servir dc tais expressoe's, tanto vale dízer que o espírito está no corpo (que é seu suportc) como dizer que o espírito ou alma vagueía “longe" do corpo e se ñxa nas coisas. ch, não dcveríamos - no que concerne às nossas queixas acerca da tendência da línguagem para a representação espacial - lamcntar em demasia o fato de que pensamos tudo em sentido ñgurado, pois - notem bem! - poder-se-ia, inversamente, dizer que o “estar em" corporal (algo como o “ser junto” de duas pessoas) é um estar em no sentído restrito, isto é, num sentido restrito ao cspacial ou, se assim se prefere, restrito ao corporaL Com efeilo. o sentido relacionado com 0 ser é o primordial: o sentido não-espacial, não~corporal, relacionado com o próprio corpo. A esta altura de nossa exposição, podemos assim resumir o resultado a que chegamos: a questão que marca todas as teorias de conhecímento foi, desde o início, mal colocada! Perguntar como o sujeito pode chegar ao objeto (para tornar possível e constituir um conhecimento objetívo) não faz sentido, porque essa pergunta representa, desde logo, o rcsultado de uma espacialização inadmissível e, por conseguinte, de uma ontízação do fato verdadeiro. E ocioso pargumar como pode o sujeito sair “de si para fora” e alcançar seu objeto, que está “no exten'or”, símplesmente porque esse objeto, no sentido ontológico, metañsíco-gnoseológico, nunca esteve “no interior”. Sc. no entanto, a pergunta for pensada no sentido ontológico e puramente metañsico, e “exterior“ for empregado ñgurativamente, “como se", nossa resposta, no caso, deveria ser: o chamado “sujcito” esteve sempre “fora”, no chamado “objeto”!

O HOMEM INCONDICIONADO

95

Em outras palavrasz não podcmos. dc modo algum. imroduzir numa mctañsica do conhecímento. por ímitação. aqucla distância aberta, aquela scparação de sujeito e objcto que a teoria do conhccimento. cm virtude de sua espacialização incorrcta, permitc que sc astabcleça; só então conscguircmos formar os rudimcntos dc uma auténtica ontologia do conhecímcnto. só cntão é que não se abrirá o abismo entre o entc espiritual que é sujcito do conhccimcmo c o cntc espiritual que é objeto do conhccimento. Toda a distância cntre “fora de" e “dentro de”, “fora" c “dcntro”. todo o longe c pcrto dcvc-sc exatamente à teoria ontizantc não-ontológica. do conhecimento. à aceitação no sentido cspacial dessas maneiras de dizcr. Do ponto de vista ontológico, pode-se dizer que “na realidadc" o ente espiritual “é“ no outro ente; este entc. por sua vcz. não é evidentcmente nem “fora" nem “dentro" do ente espiritual - nem "fora“ nem “dentro". Este ente é simplcsmente “aí”. “' Nem um nem outro ente “c"' (cstá). portanto. fora ou dentro. Pelo menos não no sentido ôntico-espacial; só no ontológico é que ele é ambos, simultancamentc. lsso constitui aqucla rclação rccíproca que foi observada, desde a Ant1'guidadc, emre o mundo e a consciência: o mundo não “é" somcnte na consciência (h'tcralmente “dentro“. como “conteu'do" da consciéncia). mas a consciência “é" também no mundo, “íncluída" no mundo; “há”. portanto, algo como a consciência. Sujeito e objeto são. dcssa mancira particular, complcta~ mente entrelacados, para o que se nos ofercce. como ilustração, o símbolo úníco do Yang-Yin chinês. Aqui se pode perfeitamente imaginar que a parte prcta cinge a branca, e vice-vcrsa. Podcríamos falar também, em vez de entrelaçamento. em encadeamento, e cscolhcr para mostrar esse encadeamento outra ñguraz o projeto e a planta dc dois anéis de uma cadcia, digamos um preto e um branco. de modo que no plano do anel branco se adapta uma das duas seções do anel preto dentro do anel branco, enquanto no plano do anel preto sc adapta uma das scções do anel branco dcntro do anel preto; conforme se queira. o preto é então “conteúdo" do branco, c vicc-versa. Já vai ñcando claro para nós como é errado querer “omizar" totalmente as relações do conhecimento, assim como fazer da relação gnoseológíca uma relação ñsiológica, e interpretá-la a partir da ñsiologia sensoriaL Para a ñsiologista, é muito fácilz basta añrmar que os raíos luminosos produzem na retina do sujeito uma imagem invertida e menor, embora em outros aspectos absolutamente correspondcntc ao objeto. Tal “produto", tal “efeito”, pode parecer plausível

19 O “scr-a¡“ é, por assim dizer. mais antigo do que o “mundo exterior”.

96

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPlA

no domínío da ñsiologia. mas no domínio dc uma ontologia do conhccimcnto eu jamais poderia aludir a um “cfeito”. e não poderia dizcr quc a árvorc “lá fora", quc estou vendo c quc é citada, na maioria das vczes, em taís excmplos. atua em mím desta ou daquela maneira. Estc 0u aqucle cfeito. em gcraL valc somcntc no mundo interior, no “mundo da árvore e da vísta" da ñsiología dos sentídos, se me permitem exprimir dessa forma; no cntamo, não valc mais na referência ontológica ao rclacionamento gnoseológico entre a “coisa em si" e o cu “em si“. A possibilidade de o ente espíritual “ser” (cstar) em outro cntc é uma capacídade primitiva. é a essência do ser espirituaL da realídadc cspirituaL e uma vcz rcconhecida livra-nos da velha problemátíca do sujeito e do objeto, livra-nos do onus probandi do problema de como um pode chegar ao outro. Esta liberação há de ser conquistada ao preço da renúncia a outras perguntas - e, portanto, à pergunta “o quc é que má 'por trás, dessa u'ltima' e extrema possibilidade de o espírito °ser' (estar) 'em' outro scr?" E muito menos devemos apelar para a ñsiologia dos scntidos, pois então cairíamos. sem salvação, numa pelitio principii. Como poderíamos nós, também, apelar para a perccpção ñsiológica, sendo ela condicionada pela possibilidade fundamemal da capacidade primordial de “ser (estar) em”? Ressaltcmos. contudo, quc o “ser em" é condição de algo como a percepÇã0, m quc permancceria ínexplícada e inexplicável se a capacídade primitíva - que a antccede e fundamenta - de todo espiritual apreender, de qualquer modo, outro ente, não fosse pressuposta, tácita ou insuspeitadamente. “ Já falamos quc a aprecnsão se faz “de qualquer modo”. De fato, uma ontologia do conhecimento não podc mostrar ou añrmar mais que o seguintez o ente espiritual é “de qualquer modo" em outro

20 Se a perccpção não chcga a ser csclarecida scqucr por cstc meio. conscqücmcmente podc-sc espcrar ainda menos quc a partir dcla vcnhamos a csclarecer oulros proccssos espiriluaís mais complicados, mais complcxos - no scntido dc uma explicação partida dc baixo. do elementar. Dc resto. a inexplicabilidadc íntima da pcrccpcãojá tinha sido conslalada por Driesch (Alltagra"txel des Seelelebens, Sluugart. l938. p. 32). cm cuja opinião. a cxcmplo dc Losskij, a pcrcepção ótica é pelo mcnos tão enigmática quanlo a lclcpalia, só quc cla é “canalizada" através do aparelho perccptivo. Finalmcnle. Dricsch acha que a interposição dc fcnômcnos ñsicos na percepção ótica é o quc torna tão cnigmálico 0 ato normal da pcrccpção. 2I Observou Viktor V. Wcizsãckcrz “A comparacão dc uma supcrfícic scnsoriaL como a retina. com a superfície de imagem na pcrccpção ímplica também. por sua vez. quc possamos pcrccbcr o órgão “olho'... Sabemos. por cxperiência como a coisa ^pareoe' somentc através dc como as coisas de uma maneira ou oulra ^parecem'.,." (Der Geslalrkre¡'s, Lcipzig, l940).

O HOM líM INCONDICIONA DO

97

entc. Somente cstc “que" podc ser atingido ontologicamcntc; não sc podc atingir, porém. “o quê". a cssênciu do “cstar cm". É ccrlo quc o ente espiritual deve “scr" (cstar) cm outro cntc pura podcr aprccndê~ Io, mas também para podcr pcnsar nelc. c principalmcntc poder falar ncle; o modo como ele “é" cm, a onlologia não sabc. “ A ontologia não podc fazcr oulra coisa scnão cxprcssar vagamcntez o cntc espiritual é “dc qualqucr modo" “cm“ oulro cnlc. Esta capacidadc primitiva. csta possibilidade primitiva do scr cspiritual é. portanto. a condição de outras possibilidadcs. islo e'. da pcrcepção. do pensamento e da fala. O "estar em“ não é, notc-se bcm, o primciro resultado. mas já uma condiçãb de ulgo como pcnsar c fular - c isto se chama compreender outro c enlendcr-sc com outro -. mas também de recordar e tornar prcscme - c islo sc chama "scr em“ tcmporal e espacialmcntc longe. Tal como o "scr cm" anlerior a lodo pensan fular, etc.. numbém uma ontologia do conhecimento deve preceder toda psicologia. o quc é compreensíveL 0 grau em quc isso é neccssário rcve|a-sc no scguintez em relação ao ente espiritual que conhecc. o cntc nunca está ”fora”, assim o dissemos, mas simplesmcme “aí". Agoraz só nuquclu posição reflexiva quc sc presta à psicologia é quc sc rompc cste simples “ser›aí” c se divíde em sujeito e objeto. Essa aliludc rcflexivu não c'. como ta|, ontológica; pelo contrário, é ôntica - precn'san1enlc. psicológica. Da “relação gnoscológica“ resulta uma psicológica: o “scr em". um modus ontológíco é onlizado. psicologizado. é psicologicamente interpretado ao invcrso num fato ônlico; é coisiñcado. transformado numa relação entre coisas. Enlão. o cntc cspiritual tornou-se também uma coisa cntre as coisas “ e o seu “ser em". uma rc. lação do mundo interipr. O quc é, añnaL este "ser em“ do enle espiritual? Não c' outru coisa senão a intencíonalidade deste cnte espirituaL O ente cspirilual é intcncional somente no fundo de suu essência. c assim é permitido dizerz o entc espiritual é emc espiriluaL é scr-consciente. é “cm si". na medída em quc “c'“ (esta') em outro cnte. na mcdida cm quc “tem" consciência dc outro ente. Assim se realiza o ente cspiritual cm "screm", c este “ser cm" do ente espiritual é a sua possibilidude inlrínseCa mais antíga, logo a sua capacidadc primiliva pro'pria. Sintctizemosz o ente cspiritual quc conhcce so “tem" - scgundo a possibilidade - o outro ente conhecido na medida em quc cstá nele.

22 Em lugar da cxprcssão “sci quc nño sei nada". podcr-so-ia dizcr "nào sci como su alguma coisa" (comparc-sc com o pcnsamcmo dc Einsleinz “o mais incomprecnsivcl cm rclação ao mundo é o fato dc quc ele scja compreensívc|“). 23 Veja Dcscancs c a rcs(!)cogítans.

98

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

“em elc". Ora, no caso dc tal conheccr cxistenciaL “tcr“ signiñca asscncialmentc algo diferente do que no caso do conhecímento essencíaL no caso da vísão fenomenológica da essência de HusserL pois ncsle caso “ter" signíñca sempre. exatamcnte, o ter da essência, do puro “scr-assím". O conhecímento existencial se caracteriza, contudo, pelo fato dc ser mais do que o ter da simples essência do simples ter - mais do que a sua símples “presença": o conhecer existencial não signíñca a prescnça do que é conhecido, mas o “ser em” daquele que conhecc. De modo que podemos dízer: a diferença entre o conhecímento essencial e o cxístencíal é a seguíntez essemia (conhecída assencialmente pelo ente cspirituaD "manífcsta" existemia; existentia (aquele que conhece existencíalmente outro ser) “é” (está) 'nele (“em" ele). Assim como o conhecer exístcncíal eslá além da divisâo sujeitoobjeto, ou, melhor dízendo, despreza essa divisão, elc é capaz de ser não só objetivo (a exemplo do conhecer essenciaL da visão da essêncía). mas também absoluto. Quod eral demonslrandum Para conhecer de uma forma não apenas objetíva, mas absoluta. 0 entc espíritual deve poder “ser cm” outro enle; isso lhe é possíveL se não no sentído ôntico~espacial, pelo menos no ontológico. É, em suma, 0 que resultou de nossos esforços para fundamentar um conhecimento exístencial ou, mais precisamente, uma metafísica omológico-cxistencial do conhecimento. A possíbilidade do ser-em espiri~ tual - por sua vcz, a condíção de todas as outras possibilidades do cspín'to - revelou-se oomo rcalidade espín'tual, oomo uma ta'cticidade. Outrossím, o ente espírituaL além dessas possibilidades básícas, dessas possibílidades que fundamentam a possibilidade, ainda lem uma possíbilídade dístínta: além de “ser em" (estar) outro ente de modo absolut0, ele tem a possíbilidade de “ser” (eslar), em especiaL “em” um ente da mesma qualidade, isto é, cspirítuaL e por isso semelhante. Este “ser em" do ente espiritual em outro ente espilrituaL este “ser em,” entre entes espírítuajs nós os chamamos dc “ser-um-no-outro”. Vale ressaltar que só é possível um completo “ser em” num tal “serum-no-outro", portanto, entre entes da mesma qualidade. Atente~ mos símplesmentc para o seguintez não podemos compreender a co¡sa, podemos apenas explicá-la; o humano, porém, somos capazes de compreender - os homens podem compreender_-se uns aos outros. O ente não deve se limítar a ser de qualídade diferente só no que sc referc ao que ñca abaíxo; pode também ser de qualídade diferente, a bem dízer. para címa. E o que de fato ocorrc, já que de Deus, que lhc é superion o homem não pode ter uma compreensão totaL Nunca “entendcmos” os caminhos de Deus; podemos, quando muito, pressentí~los. Como Deus não é um ente relativo, e sim absoluto - o Absoluto, o próprío ser -, estamos. neste caso de desigualdade, em pre-

O H'OMEM lNCONDlClONADO

99

sença da absoluta superioridade c, conseqüentemente. de algo qualitativamentc (e não apenas gradual e°quantitativamcntc) Outro. “ Em hebraico, como é sabido, o termo "conhcccr" denota também ter relações sexuais. Bem, isto está de acordo com nossa teoría do conhecimento. pois achamos que o conhecimcnto prcssupõe, até certo ponto, ígualdade de parccria - assim como a procriação só é possível entrc parceiros. Esta analogia mereceria exame cuídadoso. Dissemos antesz entre parceiros desiguais, a relação de conhecimento não podería ser recíproca; só o ser espíritual humano poderia entender o outro, ser-no-outro. Isso só é possível no integral dar-seum-ao-outro que chamamos amor. Na medida em que. por conseguínte. o ser-um-no-outro é o “ser" de uma pcssoa “em" outra, como taL c isso signiñca tanto quanto “em" essa outra pessoa em sua absoluta alteridade (alteridade perante todas as demais pessoas); e55a alteridade o ser-em alcança amorosamente - na medida em que o processo se dcsenrola dessa forma, pode-se dizer que o amor representa absolutamente a maneira de ser interexistenaaL Somente os que se amam uns aos outros podem realmente compreender-sc mutuamente, só os que são capazes de entrar em rclacionamento sexual (copular) conseguem “se conhecer" uns aos outros. O homem não está, contudo. perante Deus como um "n0ivo”. e sim como uma criança diante do pai, Propriameme falando, também isso nâo sería certo, poís a criança será um adulto um dia, comparando-se com o pai e igualando~se a ele, enquanto o homcm em faoe dc Dcus nunca o iguala em qual¡'dadc, apenas se lhe assemelha na im'agem. O homem comporta-se, portanto, frente a Deus, como um animal com relação aa homemz assim como o “mundo" do homcm abrangc o “meio“ do animaL assim o mundo do homem é abrangido

pelo ultramundo. 15 O que ñcou demonstrado mais uma vez? Que o todo o conhecí~ mento humano é válido, por assim dizer, só para o reino intermédio

24 Essa difercnça, mais do quc quant1'tau'va-gradual. é rcferida de maneim muilo cx~ pressiva numa passagcm da Bíblia (lsaías 55.9) que sc relaciona oom nosso tcmai “A5sim como sâo maís altos os céus do quc a lcrra. mnís altos são os mcus caminhos do que os vossos. c os meus pensamcntos do que os vossos pcnsamcnlos" (c' o vcrsiculo sobre o Etemo). Pois o oéu. em rclação à tenn. não é mais alto de uma mancira gra~ dual-quanti¡aliva. e sim qualitaliva - na medida cm quc signiñca um absolulo; umase. com efeíto. da reprcsentação simbólica da altura cm si mcsma. 25 Que o homem é comprcendido por Deus - a quem o homcm jamais compreendc inteiramentc - não só de forma completa. mas também numa proporção incomparavclmcntc maior do que o homem pode sc comprecndcr a si mcsmo, é o que sc conclui dn analogia feita acima. O homem. de fato. comprcendc o animal c sua vida inslimiva mclhor que o animal tcrá algumn vez condiçõcs dc fazê-lo.

-' 1:'.'d

100

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

- para o humano e para o que lhc cstá um pouco abaixo e um pouco acima. Nosso entcndimcnto falha diante dos clétrons do mesmo modo quc falha cm face de Dcus. 0 homcm é precisamcntc um ser médío. um scr que está no mcio entre potemia e aclus. ou é constituído por ambos - enquanto os clétmns são simples potências (de resto, uma opinião adotada pcla ñsica moderna); Deus, pelo contrário, c' tradicíonalmcntc dcfmido como actus purus. O que são, na rcal¡'dade, todas essas coisas derradeíras, esscs extrcmos que sc situam profundamcnte abaixo do humano. ou muito acima dclc, bem como aquilo que sc ofcrecc a uma plcna compreensão - nós não o sabcmos, c como homens nunca poderemos sabcr. E toda nossa sabedoria conseguc aqui pouco mais do que - na maís aguda consci_êncía dc sua própria limilação - colocar aspas em “matéria". “Dcus”... Esta consciência da límitação parece ser semprc a u'ltima palavra de toda a sabedoria ñlosóñca. Se, todavia, me for permitído ilustrar, por mcio de uma ímagem, o sentido profundo de tal conclusão - por conseguinte, o sentido profundo do ponto dc partída ñlosóñco - então gostaria de pedir que os senhores imagínassem que estão agrupados no centro de círculos concêntricos, cujo diâmetro aumcnta sucessivamente até que, por ñm, se atinge um raio inñnitamente grande. Então. o último, o “círculo” tornado inñnitamente grande. não apresenlaria maís curvalura alguma! E agora explicitemos o que queremos dizer com esta imagem: teoricamente. uma auto-reflexão gran~ demcnte potencializada, uma consciência muíto elevada, da limitação do conhecimento humano, poderia, de ceno modo, anular e superar todo o antropocentrismo dessc mesmo conhecimento, a sua rclatívidade e subjetividade globais - numa palavra. a sua ñnitude. No ínício deste capítulo, em relação estrita com a crítica que nos propusemos fazer do monismo materíalista, partimos daquele materialismo que sc autodenomina “dialético". Ficou demonstrado que nele não se trata de nenhuma metañsica, mas, pelo contrário, dc uma posição epistemológica. Como teoria do conhecimento, dissemos, aqucle maten'alísmo é um realismo. Em tal contexto, teria cle toda a razão de se considerar como um_ antiidealismo. Já não ocorre o mesmo se o analisamos dc outro ponto de vístaz veriñcamos, então, que é um sistema ético. Nessa qualidade, não se pode aceitar que seja antíidealista; pelo contrárío, como ética, é idealista. Analisemos sucintamente csse aspecto. Sob a forma do materialismo histórico, o materíalismo moderno proclama o primado do social e do econômico. Observemos mais de perto até chegarmos à íntímidadc da motívação, ao elhos em que se baseia. Veriñcamos que o primado econômico-social é proclamado

O HOMEM INCONDICIONADO

lOl

por amor à justiça, particularmente da justiça social e cconômicm Façamos abstração dc que o matcrialismo histórico cm si mcsmo não quer ser senão um princípio heurístico de invcslígação cicnlíñca; procuremos, pelo comrário, ressaltar a sua máxima c'tica. Assim, veremos que ela corresponde a uma variantc do primum vivere deinde... O “primeiro". no caso. passa a ser a vita sorialís. ao qual sc dá primazia. Ela - e dentro dela ajustiça - é vista como o que há dc mais urgente, passando a cultura a ter um sígniñcado sccundário. Scria. contudo, incorreto imputar ao matcrialismo histórico. numa análíse em profundidade. como aqui tentamos fazer, o propósito de degradar a cultura. Já assinalamos que o primado econômico-social origina-se do amor. àjusliça. portanto a ênfase no sooial se faz por causa da cultura. Preserva-se a signiñcação ñnal porque a signiñcação do culxural. que motiva e fundamenta a primazia do sociaL é absolutameme reconhecida, na medida em que sempre é pressuposta. n Agora, ñnalmentc. podemos ocupar-nos do malerialismo propnamcnte dlto. Ele, c somente ele. seria na verdade uma metafísnca. c não. como o materialismo díalético, uma teoria do conhccimento e, como taL um realismo, nem tampouco. como o materialismo histo'n'co, um sistema de ética c. nessa qualídade, um idealismo. Doravante. não nos ínteressa nem aquele matcrialismo que representa uma leoria realista do conhecimemo (por conseguintc. não-¡dealista) nem aqucle materialismo que se baseia numa ética idealista (porque antiepicurista ou anti-hedonista), mas. pel_o contrário. o materialismo que signiñca mctañsica; como laL como metafísica, nada tcm a vcr com a antílese “idealismo-antiidealismo" porque a melafísica materialista, o materialismo metañs¡'co. teria como oposilor 0 espiritualismo mctañsic0. A csse rcspeito, deve~se considerar que nos colocamos, polemicamente, em especial contra aquelc matcrialismo metafísíco cm face do qual o materialismo histórico-dialético se distancia critícamcnte, isto e', contra o materialismo mecanic1'sta. como se uutodeno~ mina. A essência desse materialismo, podcmos vê-la no fato dc que elc qualiñca de simples epifenômeno da matéria os fcnômcnos anímicocspíriluais. Em outras palavras: tudo que é cspiritual derivaria da matéria. Este spiritux ex materia é. e pcrmanece, juslamente. um Deus

26 A que ponlo a cxigência dc que o fator cullural (por causa de si mesmo) rcnuncie ao primciro lugar corrcspondc. de falo. ao cspírilo do Velho Teslamento, a scguimc passagem o dcmonslra (Amós. 5-23/24): “Aparta dc mim o ruído dos lcus câmicosz nào ouvirci o som de tua Iira. Antcs quero que o direito scja como um regato c a jusliça como uma torrcnle que jamais scca". Mas seria dcsejávcl que nessc regalo os bens culturais chegasscm à Xcrra como despojos. e nào como supcrestrulura.

102

ex machina, pois o espírito humano nunca se deixa converter em “homem-máquina”. 2. 0 Vir a Ser do Espírilo Patologia cercbral e ñlogênese do espírito

, w

I l

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSlCOTERAPlA

l I

Antcs dc iniciarmos a tarefa de contcstação das propostas centrais do materialismo, acima cxpostas, dcvcmos examinar tudo o que aparcntemcme lhcs é favorável c em que procura apoiar-se. Um dos pontos de sustcntação mais importantes são os resultados a que tcm chegado a invcstigação da patología. À primeira vista, cssa ciência está empenhada em evídcnciar a tcse da dependência totaL não só da alma, como também do espín'to, e dc enfraquecer a validadc da tese, por exemplo. de Nicolai Hartmann, da “autonomia apesar da dcpendênc¡a”. Note-sc bemz só “à primeira vista”. Como será demonstrado adiame, apesar de tud0, “apesar da dependência”, existc também muita autonomia. Na verdade, “à primcira vista”, as correspondências entre, dc um lado, a ñsiologia e, de outro. a alma c o espiríto são, em geraL tão numerosas e tão extcnsas que é fácil compreender que elas impre'ssionem e fascinem o 0bscrvador. O material de experiência acumulado pela ñsiopatologia cerebral parece favorecer a possíbilidadc de que “as funções” da alma e do espírito “sc localízem” nos chamados centros cerebrais. Desde que Broca, em 1860, pôde vcriñcar a relação da base da terccira circunvolução frontal esquerda (nos destros) com a função da fala, viveu-se muíto tempo como se nada impedisse a idéia de cquiparar 0 cérebro a um mapa geográñco e nelc inscrever cada vez maior número de centros. Tinha-se a esperança de restringir as “manchas brancas” (a “terra desconhecida") ls'to é. as “zonas mudas”. Foi tão longe esse modo de ver que Meynert não hesitou em propor a substituição do nome “psiquiatría” pelo de “ch'nica de

docnças do cérebro anterior”. Scria um grande equívoco querer duvidar da exatldão cuentíñca

das observaçõcs empiricamente comprovadas: elas se basearam, realmcnte. em experimentação. Uma série de experiêncías de cxcitação e extirpação fortaleceram a teoria da integração geral das “funções elevadas da alma” (inclusive as espirituaís), mas fortaleceram “aparcnlcmentc“, como havcremos de ver. Essas investigaçõcs referiam-se não só a oportunidades fornecidas pelo desenrolar de operacões cerebrais realizadas em pacientes humanos, como também ao material proporcionado pclo exame do comportamento animal em detcrminadas condições. Assim, Franz, Rothmann e outros puderam mastrar que a extirpação de ambos os lobos frontais em cães c macacos conduzia à perda dos atos aprendidos. Katzcnstein conseguiu obter

O HOMEM INCONDICIONADO

l03

provas de que há no cão um centro que rcsumc todo o complexo emlssor de sons - uma reglão no gyrus cemrali anterior - CUJa cxtirpação bilateral interrompe por alguns mescs a capacidade de ladrar. Kalisher chegou a provocar num papagaio uma fasia motora para as palavras humanas aprendidaa por mcio de cxtirpações bilatcrais em parte do lobo frontal e no mesoestriado v11inho. H. Munk pôde pro~ duzir num cão uma “cegueira psíquica" pela dcstruição bilateral dc uma rcgião no meio da convexidadc do lobo occipitah o animal cvitava os obstáculos prontamcme, mas não era capaz dc rcconheccr. como o fazia antes. 0 chicote. o prato com comida clc. Finalmcntc. depois de lesões parciaís bilaterais do córtex da esfcra auditiva, aparece. algumas vezes, uma “surdez psíquica" na qual se pcrde o conhecimento da signiñcação dos sinais, das chamadas. c assim por díanle. embora isso possa ser recuperado mediantc n0vo treinamento do animaL Estamos familiarizados com tal rccuperacão também nas clínicas das doenças humanas: o afásico é capaz de rcaprendcr a falar, mesmo nos casos em que os centros correspondemes foram Icsados. Como conciliar esse fato com a pretensa intcgrução gcraL completa. de função e centro? Bem. essa integração não é unívoca ou decisiva. Pelo contrário, podcmos provar repetidameme a cxperiência de que para o cemro lesado surge logo uma outra partc do cércbro que assume e conserva a função da parte lesada. Em síntcsez conhecemos o fenômeno da chamada v1'cariedadc. Não há possibilidade de uma |ocalização exata do centro psíquico-espiritual nem de uma completa in~ tegração função-centro. Portanto, deve havcr uma força de reserva, como células ccrebrais sem trabalho e que, cm caso de necess¡'dade. podem ser cmpregadas na "vicariação". Aonde porém, vai o cérebro humano buscar essas células substitutas7 Devc-se lratar, certameme. de células glanglionares ou neurônios que até então estavam inazivos. Pois bem: para respondermos a cssa questão. teremos de recuar um pouco. Já dc há muito se provou que a frase "natura non facit sallus” nem sempre é válida. lsso se evidencia na Física desde que Planck aparcceu com a sua teoria dos quan1a. Fora do seu microdomínio, para além do domínio que a físjca nuclcar estuda, a natureza também dá “saltos quânticos", o que C. V. Economo dcsígnou como “cerebração progressiva" e oulros autores, como “cefalização”. E. Dubois acha verossímil que. no decurso do desenvolvimento dos antropóides - portanto, dos homens-macacos - através dos antropídcos ou seja, dos macacos-homcns - até os homínídeos ultcriores, a cefalização se fez aos saltos, na medida em que o cérebro aumentava dc tamanho, passando, por exemplo. a relação do número de ce'lulas_ganglíonares do córtex cerebral de 3 1/2 para 7 c dcpois para l4. Dcu-se.

lO4

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

por consegu1'ntc. uma duplicação dos ncurônios. Deve tar-se tratado de mutaçõcs e. por conseguinte. de aumentos intermitentes das células ganglionares, aumentos que não podem ser interpretados nem em termos de scleção ncm de adaptação. Bolk considera, entre outras coisas, também essc fenômeno como inerente ao tornar-se homem (compare-se com o que Versluys. Põtzl e Lorenz escreveram em Hirngrõsses und hormonales Geschehen bei der Menschenwerdung, Viena, Maudrích, l939). Para nós, é importantc saber que os quase 14 bilhões de neurônios do córtex cerebral dc que dispõe, segundo Economo, o homem atual (Homo sapiens recensl já estivcram à disposição. não ainda dos antropídeos, isto e', de forma primária da espécíe “homem”, mas sem dúvida já dos neandertalídeos, portanto, da forma primitiva dos hominídeos e clarameme também de sua forma antiga (Homo sapiens fossilis). Por mw's, no entanto, que o homem de Neandertal tenha estado de posse do mesmo número de neurônios de que dispomos, esses neurônios dcvem ter signiñcado para ele um luxo: com certeza, não os utilizava. O homem de hoje também não os utiliza. Não se lrata de mera suposição de nossa partcz Põtzl conseguiu prová-lo. Chamou, por cxemplo. a atenção para o caso dos paralíticos recuperados pela malarioterapia c que rcadquiriram capacidade de ação, muíto embora o cérebro revelassc histologicamcnte uma perda considerável de células (Strãussler e Koskinas). Os doentes praticamcnte curados pcla malarioterapia (alguns morreram de outras causas) tinham neurônios suñcientes, apesar das perdas. para satisfazer a suas necessidades cotidíanas. Dito de outra maneira: desde então. sabemos que o homem comum - inclusive o de hoje - faz render pouco o “dote" dc células ganglíonares, os “talentos” recebidos da “natureza“. " Quais as conseqüências de tudo isso? A primeira refere-se à doença, individualmente considerada; depois do que dissemos sobrc a possibilidade da vícariedade estamos sabendo que, na ocorrência de certas lesões do aparelho cerebral, há ainda no homem um espaço no qual as funções anímico-espirituais podem restabelecer-se. Estamos capacitados, outrossim, a responder agora à questão inicial sobre aonde vai o cérebro arranjar as “forças de reserva” dos neurônios com funçoc°s vicariantesz eles estavam, de fato, “sem trabalho", inativos. A segunda conseqüência não se aplica ao caso individuaL mas ao geraL à espécie “homem". Resulta da nossa veriñcação de que a

' O Autor ncste trecho usa imagens inspíradas na parábola dos taIentos do Evangelho dc São Matcus (25-l4) (N. do T.)

O HOMEM INCONDICIONADO

105

humanidade, no todo. hojc como omem - atualmente ou na êpoca do homem de Neandertal - tcm sempre uma oportunidade para progredir e se desenvolver mais. A “human¡zação" está, portanto. inacabada. O último salto. um aumento sob a forma de mutação, das células ganglionarcs do córtcx cerebraL deu à espécie “homem" uma oportunídade inaudita: mas o homem tem ainda de fazer muito para utilizar essa oportunidadc. O homem ainda não tirou de si o possíveL o máximo! Não se descobrc em parte alguma uma písta do profetizado super-homem (pelo manos não desde o tempo dos super~homens profctizadores, dos profetas), somos ainda homens intermediários. Com a mutação que proporcionou subitamcntc ao hominídeo l4 bilhões de neurônios. estamos habilitados a datar cssa humanizacão incompleta. ou, se preferirem. a alvorada do sexto dia da Criação. Quando, entretanto. se diz no Gênesis que 0 homem foi criado no sexto dia e que Deus descansou no sétimo, cabe o comelário: de lá para cá compete ao homem fazcr-se a si mesmo. E Deus? Elc espcra e observa como o homem realiza as possibilidades criadas. Possibilidades que, conforme foi dito antes. não estão esgotadas. Deus dcscansa ainda, espera ainda, ainda é o Sabath. um Sabath permanenle. A essa luz, a humanização se revela não como criação, mas a ca~ pacitação do homem - quando muito, criação indirelamente. na mcdida em que essa capacitação no sentido biológico pode, por sua vez. ser compreendida como criação no sentido teolo'gico. Seja como for. a "capacitação" do homem aguarda a auto-realização. Como processo incompleto, o tornar-sc homem biológico não é menos, mas também não é maís do que uma razão necessária, embora não suñciente, do scr-homem. E csse motivo temático irá enredar-sc ao longo de nossas investigações futuras, conforme veremos. como um ño vermelho que nos servirá de guia. Oricntados por ele, divisaremos sempre, a cíntilar, uma verdade nas maís variadas facetas e reflexõesz que o bios jamais engendra o logos. assim como a physis jamaíx causa a psyche; ambos são apenm farores cond¡'cz'onames. De tudo que aprcndemos até agora resulta que não sc pode falar de uma localízação rígida de diferentcs funções em diferenles ccntros, pelo menos não no sentido de uma integração geral dc uns e outros. Estamos, pois, autorizados a aderir ao juízo formulado por Hans Hoff numa publicação comcmoratíva de Põtzl (lnnsbruck. l949, p. 232): “Broca, Wernicke e outros tentaram decompor o cérebro em funções. numa representação cartográñca. Funções alteradas nas lesões cerebrais foram atribuídas por eles a cenas regiõcs. Esse método malogrou rapidamente." Como exemplo nagrante, cita Hoff: “Era difícil acreditar que exístisse um engrama da palavra “casa' no nosso cérebro depois dc ver que um doemc que não conseguia

106

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

achar essa palavra levantava-sc e dizia “É inútiL preñro ir para caon

sa.

Os atos psíquicos nunca são localizávcis; pelo contrário, quando muito o são certas condiçõcs somáticas de seu decorrer. Menos ainda do que o fluxo psíquico, a alma in tolo admítc uma localização. Ou falamos dc alma, e cntão não conscguircmos Iocalizá-Ia, ou falamos dc localização. e então. no melhor dos casos. podcremos añrmar que a integrídadc dc algumas partcs do cérebro é, até oerto ponto, um prcssuposto para as funçoe's psiquicas com que se coordenam, mas que nelas não se localizam. Conscqüentemcnte. só nos pode parccer um disparate aludir a uma °°sede da alma". Klagcs advcrte enérgica e exprcssamente, a esse respeito, comra uma “obscrvacão supersticiosa do cérebro". e julga acertadamcntc que “a fmalídade da investigação cerebral não é a busca de uma sede da alma. mas sim das condiçõcs cercbrais de realização dos fcnômenos psíquicos e das disposíções". Com_o imagem adequa'da. diz o seguíntez a ninguém ocorrerá que o comutador é a scde da luz com que a lâmpada elétrica ilumina a sala, Hoff argumenta dc maneira idénticaz “Está claro para todos que um automóvel cuja vela dc igníção deixou dc funcionar não pode andar. Ninguém, contudo, vaí achar que a vela aciona o carro.” Em vista dísso tudo, somos pouco receptivos às menções de “certas partes celulares” ou “sistemas celulares” que, scndo “muito numerosos c fortes”. provocam os processos nervosos de que resultam a ambição do dinheiro ou o impulso para o conhccimento ou para a representação artística”. No nosso entender, o somático não produz e não dá origem a nada - não realíza, apcnas condiciona. Na _medída em que, por motivos práticos, nos aproximamos da tcoria da interação psicoñsica. não aderimos inteiramente a ela, justamente porque não é lícito falar de um efeito real do ñsico sobre o psíquíco. De antemão, deve causar-nos uma impressão ridícula ouvir (alguém) añrmar, ainda hoje, para além da interação ou do paralclismo, a identidade do físico e do psíquíco. Lemos nas chamadas Diretlrizes de uma Filosofm da Medicina, do norte-americano A. W. Kneucker (publicado na Áustria por Maudrich, em l949): “A alma não é scnão a mais alta rcpresentação da atividade geral do sistema nervoso... conseqüentemente, função da matéria... dito mais resumídamente - tudo é matéria ou função da matéria... o cérebro é a máquina da alma. De acordo com sua montagem, funciona a máquina." 0 autor fala, bem entendido, somente da “chamada alma” e, logicamente, da “chamada psicología” - em compensação de uma “psiqucctomia“ por elc assim denominada. As funções psíquicas são condicionadas, mas não causadas pelo somático. Onde se pode falar dc “causalidade” é no terreno das per-

O HOM EM INCONDICIONADO

107

turbações das funçõcs em apreço. chamos Põtzlz “Nâo parccc que sejam localizáveis as funçõcs mas apcnas as penurbaçõcs da função." (°'cherkungen zum Agnosic" - o caso de Clcmens Faust, publicado em Nervenarzt 29. 8. 354. l948). Não devemos dcixar dc r'essaltar quc o que é válido para o sistema ncrvoso. inclusivc o ncurovegetativo, também o é para as disfunçõcs do sistcma endócrino. ” - Afmal de contas, comprecndcmos muíto bcm o motivo que lcvou Weizsãcker a assevcrar: “A investigação das ciéncias naturais sobre a esséncia da vida esclarece. no sentído mais profundo, apenas a sua patologia". Do mesmo modo como a enfermidade somática não ocasiona senão uma perturbação psíquica funcíonaL assim também o tratamemo somátíco (medicamentoso, cirúrgico, etc.)' não pode fazer mais do que restabelecer o funcionamento psíquico pcrturbado. Agora, como antes, será mantida nossa añrmaçào de que o psíquico não é causado pelo ñsíco, mas é simplesmentc condícionado por c|e. Numa palavra: o que a doença impossibilita o tratamemo volta a possibilitar. lsso, e nada mais, é o que signiñca a cxprcssão “restabelecimento dc uma função". Mais uma vez havcmos. portanto. dc nos precavcr contra uma confusão cntre condicionalismo e “constitucionalismo", tanto na abordagcm da docnça como na da tcrapéutica. Tomemos um exemplo do día-a-dia: alguém é convidado “para comer”; o convilc rcalmcnte é para comer? Os donos da casa estranhariam se o convidado. tomando ao pé da Ietra o convite, se comportasse dentro desscs limites; ele tcria. no caso. cometido um grosseíro cquívoco e uma falta grave contra os bons costumcs. porque não foi lá para saciar o apetítc, mas para conversar; a comida destina-sc a facilitar a conversação. tornando-a livre de inñuências perturbadoras de cstômagos insatisfeitos. Mesmo o cafê que é scrvido após a refeição não atcnde ao propósito de promover a convcrsação, mas sim dc condicioná-la, na mcdida em que liberc os participantes de um evcntual cansaço. Esta referência a um eslimulante (o café) leva-nos à discussão da terapêutica por meío de medicamentos. Do mesmo modo como há uma patogênese psicossomática especíñca, também conhccemos uma terapêutica medicamentosa especíñca. Assim como o processo somático de evolução cíclica a que denominamos depressão endógcna conduz a uma ansiedade especíñca, também o Tryptizol como sc sabe, tcm uma ação não menos específlca sobre cssa ansiedade. Quanto

27 Comparc-se. por cxcmplo. mcu trabalho "chr cin psych-ndynam1'sches Syndrom und scine Bczíehungcn zu Funktionstõrungen dcr Nebennieren-rindc", Schwmzer Medizinische Wochenschnfl'. 79, 1057. l949).

108

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

mais banaís são cssas conexões, mais impressionantes parecemz não é raro que as distimias menstruais, por exemplo, sejam favoravelmente influcnciadas pela íngestão de sal de cozinha. o que talvez sc explique pela influência da acidose ou da alcalose sobre a afetividadc. É claro quc, sempre quc identiñcamos a etiologia especíñca de um sintoma psíquico somatógeno. também uma terapêutica igualmente especíñca é indicada. Sabemos, por cxemplo, que não raral mcme uma agorafobia se rclaciona com o hipcrtircoidismo - relacionamcnto a que já me referi frcqüentememe em outras ocasiões -, o que fornece um ponto de partída para uma medicação especíñca. Por outro Iado. quando ouvimos dizer, inversamente, que o síndrome de despersonalização se relaciona, especiñcamente, com a desoxicorti~ costerona, então é permitido. pelo menos em alguns casos, tirar conclusões sobre uma patogcnia igualmente especíñca. Anteriormente, dissemos que a cura das perturbações psíquicas de origem somática também se realiza por meios cirúrgicos. Existe, de fato, para a tão apregoada medicina psícossomática, um correlato no domínio terapêutico, no sentido dc uma terapia inversamente dirigida. E esse correlato torna-se mais impressionante quando cstá cm causa o local que é díretamentc interessado no somático, o cérebro. Já se discutc a “psicocirurgia", como se alguma vez se pudcsse efetivamente operar a psique, como se se pudesse atingír com o bisturi a realidade da alma ou do espíríto. Também se tem trazido à baila a “psicoquímica” e, ainda que com isso sc aluda menos a um tratamento do que à “inñuenciabílidade” etiológica do psíquico pelo químico, a .expressão só é válida no sentido da condic1'onah'dade. nunca da causalídade. Sempre que as expressões “psicoquímica" ou ”psicocirurgia” são empregadas sem espírito crítico, e se cria, com isso, a ilusão de que a psícoterapia pode vir a scr algum dia substituída por elas, devemqos fazer uma advertência contra uma evolução que levaria à “químização”, à “cirurgização" e à coletivização daquilo que outrora para justiñcar o nome de psicoterapia, se apcgava ao conceito dc psique, signiñcando, no caso, a pessoa humana, o fator espirítual no homem. ' 0 que entendemos por coletivização da psicoterapía? Temos em meme a tão propalada psicoterapia de grupo. Esta, sem dúvida, tem suas 1'ndicaç'ões. Não devemos, todavia. esquecer que só se admite em determinados casos, porque lhe falta o objcto adequado - a “psique de grupo“ que não existe numa acepção rigorosa, ontológica. Na psicoterapia genuína. o valor rcside em que se aplica individualmente, ao indivíduo como taL Não é por acaso que Jung vê no desenrolar da psicoterapia um ^°processo de individuação”. Ao mencionarmos “indivíduo“. cstamos,' contudo, dizendo muito pouco; o indivíduo é

O HOMEM lNCONDlClONADO

109

sempre uma entidadc biopsicológica; ora, a psicotcrapia tem por objcto o espirituaL a pessoa cspirituaL precisamcme na sua singularida~ de e originalidade. Por conseguinte, nesse sentido, nunca é demais individualizar, no que tange à psicoterapia. É o que indica muito apropriadamente o título de uma obra programática de Paul Tournicr: Médecine de Ia Personne. Resta a “quimização” da psicoterapia. Temos em mentc a narcoanálise. Ela surgiu, como se sabe. na ll Guerra MundiaL de forma notáveL e em contraposição à “eletriñcação" da psicoterapia ocorrida na l Guerra, quando as neuroses eram tratadas com o cmprego de correntes elétricas mais ou menos intensas. Na narcoanálise, não se trata dc nenhum processo analítico verdadeiro. porque o que uma psicanálise autênlica produz é a liberação dos necalqucs e a tomada de consciência. Em relação a isso, o que se pede à narcoanálise? Das publicações respectivas. bcm como de nossas próprias cxperíências. 23 narcoanálise reside. dc um lado. no dcsmascaramento de uma simulação ou dissimulacão e, por outro. no rompimento do estupor. Cumpre notar que, no tocante à simulação. não se trala. ao contrário de uma psícanálise, de material recalcado, e sim oculto, não de inconsciente, mas de nâ0-dito. A verdade a que se chcga não é a verdade intcira ou pura. 0_u o doente guarda para si alguma coisa, ou diz o que lhe é sugerido - e na situação narcoanalítica o homem é reconhecidamente sugestionáveL Assim como na descoberta de uma simulação não se trata de recalcado, mas de ocultado, também no caso de rompimcnto do estupor não estamos diante de um fenômeno de liberação de um recalque, mas de superação de uma inibição. Entrc recalque e inibição existe, porém, uma diferença essenciaL que se torna clara tão logo nos Iembramos de que o id é recalcado pelo ego, enquanto inversamente o ego é inibido pelo id. A narcoanálise baseia-se fundamentalmeme numa variame do princípio in vino veritas, isto é, in sero veritas, a saber, no "soro da vcrdade”. Na narcoanálise. porém, só a parte instintiva da realidade psíquica, e não toda a verdadc - à qual pertencem os recalques - é re_velada. Assim como. segundo Max Liebermann. a arte do desenho vale pelo que omite, o ser do homem consiste em deixar dc lado aquilo para o que é impulsionado e recalcar aquilo para o que é impelido. Do ponto de vista terapêutico, a instintividade, o id. é menos relevante do que aquilo que o ego começa a fazer com cla. Na narcoaná-

28 Vcr "Narkodíagnose". dc Frankl e Strolzka. Wiener klimsche Wochenschrfil 61. 569. |949.

llO

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

O HOMEM INCONDICIONADO

lise, porém. o que comcçou já acabou. Nela é trazído “à fala” o id, mas o cgo silencía. E sc a cxprcssão de Schiller tem algum valor, é justamente no que tange à narcoanálisez “Fala a alma; ail a alma não fala mais!" Quanto à “cirurglz'ação" da psícoterapía. haveria a dizer o seguintcz os pressupostos da psicocirurgia vêm de longe. Em primeiro plano, há dc ser lcmbrada a conhecida observação de que a chamada moria - uma ccrta euforia com pcndor para gracejos, vida desleixada, etc. - revela~se como sintomática de processos dos lobos frontais, enquanto processos mórbidos também ali localizados podem levar a pcrturbações especíñcas do instinto. justamente a obliterações, tipícamente frontais, do instinto. De vcz que Po"tzl ("Psychische Enthemmungsreaktion nach Operation eincr Zyste im Schwcífkern”, Medizinische Kl¡m'k, l, l925) pôde demonstrar que um toque no cpêndimo ventricular conduz a um estado de excitação maníaca e, mais tardc. Fõrster c Gagel também puderam veriñcar o mesmo efeíto nas intervcnções na vizinhança do terceiro ventrículo, parece não havcr mais qualquer contradição entre esta minus variante e csta plus variantc do comportamento. isto é, entre perturbação do impulso e excitação. No caso concreto. pode haver inclusive a transição dc um comportamento para outro. Assim, recordo o caso de um ganglíoma do lobo fromal diagnosticado no meu serviço de Neurologia. Localizado, foi operado, veriñcando-se então a necessidade de abrir o vcntrículo lateral e lesar, por conscguinte, o epêndimo. Enquanto, antes da operação, o doente estava moroso e denotava perturbações instintivas. mostrava, agora, uma moria acentuada, caractcrística exalamente de lesão do epêndimo. Assim. por exemplo, quando a en-

. fermeira lhe perguntou (há) “quanto” (tempo) estava na clínica, res-

pondeu chistosamentez "l metro e 72!”. 29 "' Depois que Burkhardt, já em 1890, emprcendeu a tentativa de tratar de psicoses por mcios cirúrgicos, foram Hoff e Põtzl que. cm l932, tentaram interpretar terapeuticamente cfeitos psíquicos acídentais dc intervençoe's ciru'rgicas. Tais tentativas só foram cmpreendidas com aplitude por Moniz, em l935, quando apareceu com sua leucotomia frontaL ou lobotomia. Fazendo~se abstração de todos os êxitos na prática, cumpre salientar que os pressupostos teóricos de que Moniz partiu não são nada convincentes. Ele tinha a intenção de intcrceptar sinapses ope~

29 Ver FrankL "M_anísch-depressive Phascn nach Schãdeltrauma”. Monallsschrfn jumr Psychiatrie und Neurologze ll9. p. 307. 1950. ' Chistc intraduziveL 0 docnte imerpretou o “wie lange" tcmporal da cnfermeira no scnlído espacial dc estatura, comprimemo (“der Tisch ¡'slfunfMelerlong"). (N. do T.)

›'

lll

ratoriamente e destruir, por essc meio, associações que. no psicótico, deviam constituir o fundamento de idéias delirantcs. Essas idéias delirantcs - como o grande Moniz imaginara - seriam topícamcntc vinculadas a certas vias e poderíam ser desviadas pela intervenção. Moniz, portanto, ensaiou resolver com o bisturi o problcma da psiquc doente. da mesma maneira como Alexandre resolvera o problema do nó górdio: queria literalmente golpear as idéias delirantes. Já com o aparecimemo do tratamento das psicoscs por meio dc choques ou convulsões acontecera que os pressupostos teóricos de modo algum afmavam com a rcalidadc. o que não impedia que se registrassem resultados bem sucedídos na prática. Só que o investigador não deveria deixar-se iludir com isso. Muítas vezes, porém, as tentativas teóricas dos sucessores dos que fundam novos métodos terapêuticos resvalam para o que os psiquiatras chamam dc “delírio interpretativo racionalizante secundário". O que se passa rcalmente com a acessibilidade da psique à cirurgia? A pergunta é tanto mais importante quanto mais reitcradamente, nos últimos tempos. se tem añrmado que a leucotomia destrói efetivamente a alma, termo com que, sem dúvida. se abrange a pessoa espirituaL Acerca disso, haveria a dizer o seguinte2 Erwin Stengel (Die La"sionen im Stirnhirn nach prãfromaler Leukotomie, publícação comemorativa de PõtzL p. 446) comunicou resultados que ilustram “a espantosa variabilidade dos achados patológicos ñnais alcançados por meio da leucotomia” e fala dc “uma espantosa irregularídade das lesões operatórías nas técnicas usuaís de leucotornia". Quando e onde é encontrada a “alma"? Esta pergunta topográñca - errada a priori. como sabemos - não pode encontrar solução, é fundamentalmente irresponsáveL Mais aindaz A. Meyer e E. Beck (Joumal of Mental Science 89, 161, 1943 e 9l, 4l l) foram capazes de veriñcar, na autópsia, que num caso em que houvera melhoria psíquica. o ramo tála~ mo-frontal estava intacto. e no entanto era aquele ramo precisamente que deveria estar destruído. Apesar dc tudo, fala~se na destruição do ego e do superego, como se alguma vez estes pudessem ser localizados. Díz~se que “por meio da destruição do lobo frontal o homem é excluído do domínio da responsabilidade moral e da consciência", “ínterrompc-se um sistema de comando orientado segundo pontos de vista axiológicoespirituaís",' a leucotomia identiñca-se com “uma destruição do substrato frontal correlacionado com a expcriência dos valores" c leucomotomizar signiñca “pôr ñm ao ser-homem do doente" (S. Haddenbrock, “Radikaltherapie durch Defrontalísation?", Medizinische Klinik 44, 3, l949, p. 69). Segundo F. Reitmann (J. menL Sci. 9l. l945, 318). em tais o'perados, sobrevém. em lugar de uma concepção

AMÁ_

|12

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

moral idcalista, uma concepção moral mais práticaz a mulher de um docnte lobolomizado añrma quc “nele a alma foi destruída“ (comunicado por S. L. Hutton, J. Men. Sci. 93, l947, p. 3l). Reitmann (loc. ciL ) acredita poder obscrvar “falta de compreensão para os fatos teóricos, estéticos, éticos e religiosos". Tod'avia, nota-se quc a intcligência pouco é afelada pela Ieucotomia. Quc outra coisa isso signiñca. scnão o fator gnóstico no serhomem foi relativamente conservado após a operação? Que acontece com o segundo fator que constitui o ser-homem - o ético? (esses dois fatores correspondem ao duplo aspccto da cxistência_como consciência e como responsabilidade). O homem Ieucotomizado tem de se tornar realmente outro, não mais “elc mcsmo”? Pois bem, no nosso entcnder isso não acontcce. Uma doente Ieucotomizada (por nossa indicação, em virtude de um tumor talâmico, ínterrogada sobrc pcrturbaçõcs da personall'dade, declarou apenas que se tornara menos sensíveL menos ativa, menos chorosa. Essa doclaração concorda exatamenle com a dc Stransky (“Leukotomie bei einer schwercn Zwangsneurose". em Wiener klinische Wochenschrf¡t', 61, l7, 263, l949), segündo a qual “cessa a impressão afetiva mórbida de determínadas rcprescntações" e indica, em geral, que o fator pático é o mais afetado, em primeiro lugar. pela Ieucotomia. Esta a razão por que o mcdo da mortc inevitávcl desapareceu. depois da leucotomia, num enfermo portador de um cancro inoperável (Hadenbrock, Iac. c¡t.). Não compreendemos, todavia, por que. por essc molivo, “o homem deve ser despojado do substrato do seu serhomem" (ib¡d.). Com isso. chegaríamos, dc novo, à questão da influencíabilidade da vida pessoal pcla leucotomia. Ocupcmo-nos ainda de outra doente da nossa clíníca. Ela havia sofrido de grave enfcrmídadc obsessiva, rcveland0-se ineñcazcs vários anos de tratamento por meio da psícanálise. psico› logia individuaL insulina, cardiazoL elctrochoqucs. m Conseqüentemente. e depois de frustradas tentativas psicoterapêuticas, indicamos a leucotomía, que obtevc êxito absolutamente notáveL Deixemos, porém, quc a própria doente nos conte: “Estou muito melhor. posso trabalhar de novo, como no tempo em que gozava de saúdc; as representações obscssivas não desapareceram, mas sou capaz dc me defender delas. Antigamentc, cu não conseguia Ier, por causa das obses~ sõcs, tinha dc ler tudo dez vezes para entender, agora não preciso mais repetir.” E sobre os intcresses estétícos. a cujo desaparccimento

30 “Dcpois do choque. eu esquecia até o endereço dc casa - menos a minha ansieda~ dc".

0 HOMEM lNCONDlClONA DO

113

aludem tantos autorcs? “Sinto novamcntc um grandc intcressc pcla música." E os interesscs éticos? A docntc mostra uma viva compai~ xão c exprime, devido à mesma, um desejo: quc os outros que sofrem como cla outrora sofria scjam ajudados como cla o foi! Depois, perguntamos se ela sc considerava mudada. Respondcuz “Vivo agora num outro mundo, não se podc de modo algum cxpressar por palavras. Antígamente não era um mundo. cra um vegetar no mundo, não cra vida; estava tão martirizada. agora estou no mcu rumo; o pouco que ainda resta. posso rapidamente supcrar." (“Você conlinuou a ser você mesma?") “Tornei-me outra." (“Em que mcdida?“) “Agora vivo realmente." (“Quando se scntiu ou se tornou autênti~ ca?”) “Agora. depois da operação. E tudo muito mais natural do quc antes. Antigamcme. tudo era obsessão para mim; agora, tudo é como deve ser. Rcencontrei o caminho. Antes da operação. eu não era propriamentc um ser humano. apcnas um peso para a sociedade e para mim mesma; agora. as outras pcssoas já dizem que eu sou outra." À pergunta dircta sobre se perdeu o seu eu. ela responde: “Eu já o havia perdido; depois da operação retornci a mim mesma, para a minha pessoa (nole-se bem: a palavra “pessoa" havia sido proposiladamenle evitada no imerrogatório da enferma). Não estou nada zangada por ter adoccido, aprendi a convivcr com o sofrimento; lucrci muito espiritualmente com isso; eu era ensimesmada, mas isáo não passou com a operação." A pessoa tornou~sc humana através da operação - tornou-se cla mcsma, pois o que a tinha afastado da condição humana, da autorcalização, era a doença, não a intervenção cirúrgica. Aliás. as consc~ qüências psíquicas da operação constituem o menor dos prejuízos. Tem razão Max Zchnder (“P_sychochirurgie in USA", Schweizer Medizinische Wochenschnft 79, 9l. l85, l949) ao d¡z'er que “convém considcrar se o indivíduo modiñcado pela enfermidade é mais prejudicado pelos ímpetos obsessivos cndógcnos ou pela opcração”. No caso da nossa paciente, não denotou qualquer prcjuízo aprcciávcl ocasionado pela intcrvenção; pelo contrário, ñcou incomparavelmenle mais natural, mais sintonizada (a exemplo da doente de Stransky. loc. cit.). Apesar disso, queremos interrogar-nos sobre se as conseqüências operatórias cventuais são atribuíveis à pessoa espirituaL Poís bem. pensamos que muitos defeitos gnósticos e éticos são atribuíveis crradamente a um defeito do espírito ou da consciência, mas na ver~ dadc se devem a não cstar presente o cspírito ou a não manifestar sua presença a consciência. Essa suposição permitc comprcender os atos de curto-circuito do pós-operatório. Contra a ausência da consciência. é possíveL entretanto, atuar por mcios psicotcrapêuticos. A priori, não devc ser possível que algo como 0 cu ou a pessoa espiritual seja atingido pelo bisturi. Admitir tal possibilidade csconde

“.' ¡r,_;'?3'_

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

0 HOMEM lNCONDlClONADO

ll5

¡ 1

uma grande dose de materialismo. A leucotomia, por consegu1'nte, nâo afeta de modo algum a pessoa espirituaL Pelo contrário, só o organismo psícofísico é tocado - só a facticidade. mas não, como pcnsa Haddenbrock (loc, ciL ), a exístenc1'ah'dade. Onde poderíamos identíñcar o essencial da modiñcação da facticidade psicoñsica do leucotomizado? Segundo nossa convicção. o “eu" está Iá como antes, portanto ínalterado depoís da operação; somente o id se tornou mais afastado do ego - o id é empurrado pela opcração para longe do ego. E, por isso, as partcs em conflito são separadas: o id daí em diante deixa o ego cm paz e více-versa. Com toda razão, añrma Haddenbrock (Ioc. cit. ): “Não é a doença, mas sim a vivência da doença que determina a indicação para a leucotomia.” De acordo com o nosso ponto dc vista, não é o que se vive que é modiñcado por ela, mas sim a área circundante da vivência, e este ganho dc distância se impõe como uma perda do eu, precisamente porque o eujamais se manifesta “em si mesmo", mas na for~ mação e no domínío do id, visto que, não nos csqueçamos, o eu “e'” sobretudo em relação ao “não-eu”. somentc na medida em que se destaca do “não-eu" - qucr neste não-eu se trate do id (Freud), do “se" (Adler) ou do “tu” (L. Bínswangcr). Aqui se dcixa ver que todo ser se constitui como um ser-outro, o que signíñca “em relação”. “ Quando Haddcnbrock (loc. cit.) escreve que, a exemplo da psicoterapía, a leucotomia “não atua sobre o organismo doente, mas sobre a personalídade doente” e persegue e atinge “f'ms que, em sentido lato, são o alvo dos cuidados da alma, isto é. o modiñcar a atitude do doeme no que tengc à doença", ele não tem razão, na medida em que nem a personalidadenem a atitude são modiñcadas pela leucotomia, mas a atitude é apenas aliviada por ela." O homem não é atingido pela leucotomia como ser espiritual reativo”; ela possibilita muitas vezes ao ser espíritual ter uma reação dígna exatameme para que, depois da operação, “as renresentacões obscssivas parecem menos próximas da personalidade” do doente obsessivo grave, como, por cxemplo, se exprime Stransky (loc. cit.) e como se revelou no

caso da nossa própria paciente. ”

31 Ver FrankL Ãrzrliche Seelsonge, Dcuu'ckc, Viena, l946. p. 3. 32. tntrememcs veio o lume uma publicação de Haddcnbrock na qual formula tào cuidadosameme os fatos em exame que ncnhum mal-entendido pode subsistir e só nos resta concordar quando ele declara que seria “uma conclusáo precipitada localizar a capacidade de rcflexâo a respcito da existéncia no Iobo frontal do cércbro. 0 fenómeno pslquico não é IocalizáveL nem em seu aspccto mais simples. vegctativo-animal, nem em suas manifestacócs de ordem upiritual mais elcvada. Ciemiñcamcmc falan-

. "í“ *'

'*

H4

Accntuemos, portantoz o que constitui o íd ñca mais longc do eu pela leucotomia. DaL a indicação para a intervcnção; agora sabemos quando ela é admissívelz só no caso de sofrimento na esfcra do id, não na do ego. O sofrimemo do primeiro tipo. tal como o causado por dores originadas por carcínomas, é desneccssário; o sofrimento do segundo tipo, entretanto, é nccessário. 0 sofrimcnto sob o jugo do destino - a tristeza provocada pelo falecimento de um cnte queri~ do - é próprio do homem, jamais se deveria tentar suprimi~lo pela leucotomia. Sofrimento desnecessário é sofrimento destituído de sentido; sofrimento necessário é sofrimento dotado de sentido. Dcixar sofrer um homem desnecessariamcnte é um erro médico; abandonar um homem ao sofrimento necessário seria impiedoso. mas o homem tem o direito de sofrer suas dores, tanto como, segundo Rilke, de morrer a sua morte, c como, segundo Scheler, o criminoso tem o direito de expiar a sua culpa. E mister, todavia, que nos asseguremos de que a dor à qual deixamos conscientememe o homem entregue é a “sua" dor - por consegu1'me, da esfera do eu. e não do id. Dores originadas por um carcinoma pertenoem mais ao tálamo do que ao ego, enquanto tristcza pela mortc de um cme querido pertcnce ao homem. e não ao tálamo. 0 que sc conseguiria, no último caso, mediante a leucotomia seria não o distanciamento do ego, mas sua auto-alienação. Só então acabaria a leucotomia, por ser algo que se poderia designar como uma eutanásia parciaL Quem, como nós, defende a ídéia dc que não compele ao médico conscguir a euforia a qualquer_preço - e. portanto, também, ao prcço do sentido diminuído da vida - desistirá de tirar do sofredor a sua dor, a sua dor signiñcativa e propiciadora de sentído. Procurará, pclo contrário, dar-lhe o que cle precisa: capacidade de sofrer. Não existc qualquer indicação especíñca para a leucotomia. Por esta razão, também não se pode dizer, simplesmente. que o domínio da indicação seja limitados às psícoses, ou então deveríamos acrescemarz e àquelas neuroses que são consideradas análogas das psicoses. Essa equiparação pode ser quoad gênese ou quoad prognose, quer dizer, ou em relação a uma gênesc somática recente (pseudoneur0se) ou em relação a um prognóstico infausto, na medida em que há um perigo imineme de suicídio - no caso. a indicação é vital - ou falha~

do. só é válido apomar em geralz o corporal como condicionanle da manifcstaçño do pslquico difcrenciado. e cm particular a inlcgridade funcional do Iobo fronlnl como condição corporal espccíñca do cspírito da pcssoa, ao nível das disposições individuais dadas em cada caso ( Úber den Beirrag der Leukoromie - Erfahrungen zur Fard"emng allgemeinmedizinischer Pmbleme, Verhandlungen der Deulschen Gexellschafl für innere Medzin. 559 Congresso de Wiesbadem l949).

l|6

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

ram todas as tc_ntativas de tratamemo de outra espécie; eis por que Stransky (loc. c'it.) tcm razão quando neste contexto fala da leucotomia como a “ulu'ma rau'o"'. Tentemos agora fazer um confronto entrç a leucotomia e a nar~ coanálisc. Nesta, dissemos, o eu é silenciado; naquela, é posto em descanso. Na narcoanálise, o eu é desligado do id; na leucotomia, o eu é “aliviado” do id, a afetividadc c a impulsividade são embotadas, o vis a tergo é estrangulado - numa palavra, a situação interior-do homem, na narcoanálise, correspondc a um vemo sem vela. e a do homcm após a leucolomia, a uma vela sem vento. Qucremos rciterar: não se deve, de modo algum, julgar o espiritual com base no efeito terapêutico de uma íntervenção cirúrgica. O espiritual no homcm é tão pouco susceptível de exploração por uma operação como o seria por meio de uma autópsia. Sc quisermos emprcgar o jargão clínico, diremosz nunca podemos julgar o espíritual ex juvann'bus. Só uma coisa sabemosz o psico-espiritual é influenciado pelo corpóreo - de uma maneira ou de outra - favorável ou desfavoravelmente. Seria, no entanto, inadmissível quercr ampliar a tese mediante a oonclusão de que o espiritual é simples cfeito, simplcs produto, simplcs resultado. simples epifenômeno, ou, como os autores citados, algc “produzido", °°nada maís que função da matéria”, e assim por diante. 0 corpóreo é conditio, mas não causa do psico-espiritual. A doença ñsica limita as possibilidades de desenvolvimento da pessoa espiritual e o tratamcnto somátíco as rcstitui, d'á-lhe nova oportunidade para sc desdobrar - é o que nos ensina a clínica, nem maís nem menos. 0 que somos capazes de explicar através da clínica é apcnas a diminuição das possibilidadcs do espiritual; quanto à realidade espirituaL só poderemos compreende-^la a partir de uma metaclínica. Quão precipitada há de nos parecer a seguinte passagem encontrada numa publicação amerícana! Ei-la: °°Substâncias tireoidais aumentam a inteligência nos cretinos. Tóxicos perturbam as funções espirituais. Que nos ensínam esses fatos? Que o entendimento é uma substância que surgc naturalmente. Ou é ele uma espécic de radiação?" 0 hormônio da tireóide é aqui pura e simplesmeme equiparado ao espírito. numa identiñcação grosse1_'ra. Só falta que, em decor› rência dos eletrochoques, o espírito acabe sendo considerado o equívalente da eletricidadel Na verdade, a corrente elétrica nada tem a ver com o espín'to - um não consegue criar nada com o outro. Perguntcmos, contudo, de uma maneira geralz quem, ou o quê, é atingido, rcalmcnte, no tratamento por eletrochoque? Bem, não certamente a pessoa cspin'tual; resta o organísmo somático. Não seria talvez oponuno que indagássemosz como se comportam ambos entre si? Temos ouvido repetidamente que as camadas do ser devem permanc-

0 HOMEM lNCONDlClONADO

l|7

cer completamente separadas umas das outras. Cumpre evítarmos com respeíto a essa separação METOWOLÇ elç õuw 7e'voç. A separação exclui uma relação mútua? Achamos que nã0. A relação entre a pessoa espiritual e o organismo somático é instrumentaL 0 espírito instrumenta o psicoñsico a pessoa organiza o organismo psicoñsico - sim, ela o forma "para sí", na medida em que o faz utensílio, órgão. instrumemum A pessoa espiritual comporta-se. em relação ao scu organismo. de modo análogo ao músico em relação ao seu instrumento. Uma sonata não pode ser tocada sem piano nem sem pianista. Como toda imagem, também esta claudica, porque o pianista é visíveL enquanto o espírito é essencialmente invisível (sem que seja irreal). O fato de que a imagem falhe neste ponto deve-se a que o pianista e o piano estão num plano - literalmentez isto é. no mesmo podium; já o cspírito e o corpo de modo algum se encontram num e no mesmo estrato do ser. Apesar dessa deñciência. consideramos ainda frutífera a imagem escolhida. Fixemo-nos nisto: mesmo o melhor pianista ” não poderá tocar bcm num instrumento desañnado (¡magem para doen~ ça). Então chama~sc o añnador (o médíco). que añna o instrumento (tratamento). Quem ousa agora añrmar que a añnação do piano faz a arte do pianista? Sabemosz não se reparam os erros de um mau pianista. Como se passa quando não é um piano que está dcsañnado, mas um homem? Desañnado no sentido de um estado de desañnação endógena, portanto, no sentido de uma psicose. Já sabemos que a psícose não é uma enfermidade da pessoa espirituaL é verdadeiramente uma somatose. Por consegu1'ntc. não é de mancira alguma a pessoa espiritual que está doente “de” psicose. com o que não se comesla que ela sofra sob a influência de uma psicosc. Adoecer, na signiñcaÇãO geral de “ser doente", só se aplica ao organismo psicoñsico; ele, por conscguinle. é que pode ser atíngído pela psicose. ReveIa-se aqui. maís uma vez, que é só o instrumento que está desañnado - tomando-se “instrumento” e “desañnado" tanto literal quamo ñgurativamentc. Agora compreendemosz o médico com a aparelhagem de eletrochoque correspondc complctamente ao añnador de piano. A missão de um, bem como a função do outro, limita-se à restauração de um

33 Compare~se com Gregor von Nyssa. citado por Migncl em PatroIagia Gmeca.À44. |6l A/B. 164 Dz “0 Nous se exterioriza. ou não - do mesmo modo como um cilansta domina scmpre sua arte. mas num determinndo insxrumento toca maL e scm inslru. memo algum não pode tocar".

Lu

1l8

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPlA

aparelho. Tanto a doença quanto o tratamemo atuam exclusivamen~ te no aparelho, no ínstrumento; o tratamento restítui ao músico aquele °°espaço de tocar“ que a doença díminuíu. Todavia, no quc concerne à pessoa em si, ela é tão pouco atingida pela psicose quamo pelo tratamento; nem a enfermidade somática ncm a tcrapia somática afetam a pessoa espirituaL Ela não é alcançada pela psicose e a ela não se aplicam os eletrochoques. Quando não se trata de psícoterapia na acepção de logoterapia ou de análíse existenciaL isto é, de uma terapêutica “a partir” do espiritual (logos) e “para" o espiritual (pessoa existcncial), mas de terapêutica psiquiátrica de processos psícóticos (quer dizer, terapia somática para somatoses) o que é válido. hoje como ontem, e independentemente de modismos, é o seguíntez tratamos, de fato. someme das doenças. mas não dos doentes propriamente ditos. Se, no entanto. não tratamos de doenças, mas de homens doentcs, e nessa qualidade, pessoas espin'tuais, não é mais o caso de falarmos de doenças; deixam, então, de existir todas as categorias nosológicas e permanecem disponíveis. no domínio do espírito pessoaL somente as categorias noológicas. Elas, entrctamo, dc há muíto não exprímem como termos opostos “sadio”-“doente", mas “verdadeiro"-“falso". Por meío do eletrochoque não é dada ao mclancólico nenhuma nova alegria de viver, assim como tampouco o crctino adquire novas =nergias espirituais ao receber hormônio da tireóide. Pensar o contrário constituiria grave equívoco de índole matcriàlista~energética. A psicose como ta|, como somatose, nada tem a ver, já dissemos, com a pessoa espirítual; o espírito pessoal (que se pode reañrmar dapois de um bem sucedido tratamcnto da doença psicoñsica-orgâníca) nada tem a ver com a terapia somática. A pessoa cspirítual permanece íntegra, mesmo na psicose;' o espíñto pessoal não é afetado pela doença “do” espírito, embora a pessoa csteja escondída e dísfarçada pelos acontecimentos mórbidos do primeiro plano - ela se encontra, num plano recuado, agora como antes, se bem que impotente e invísívelz impoteme para o uso adequado do seu instrumcnto, o organismo psicofísico. invisível até chegar o instante em que, qual um raio, o espírito irrompe através das camadas psicofísicas que o isolam de nós. “

34 Ao “impotcme" corresponde a relação instrumcntal do cspiritual com o oorporak o que correspondcrl'a. porém, ao “invisível"? Bem. a relação da pessoa com o organismo não é someme instrumcntaL mas também expressiva, c ondc a pessoa espiritual não pode mais se exprimir cm nenhum organismo, ou organismo funcionalmente sadi0. torna-se invisívcl (compare-sc - no scnlido dc uma anlogia com csla diferenciaçãc enlre função expressiva e instrumemal - a minha conoepção de "neurosc como expressão e mcio“ publicada várias vezcs em outros lugarcs).

O HOMEM lNCONDlClONADO

ll9

É esse psicoñsico, c não o espfrito, quc está doeme. Nunca scrá dcmais sublínhar este aspecto. pois quem não atribui a psicose ao psicofísico, mas a refere á pessoa, caí facilmente no pcrigo dc ncgar a humanidade do doente do “espírito" e entra em conflito com o ethos médico. Sobretudo não verá mais nenhuma razão suñciente para a prática do ato médico, pois este pressupõe alguma coisa em nome de que ele seja praticado, ou melhor, alguém, uma pessoa, hoje como ontem, pré ou pós-mórbida. Ninguém gostaría de ser médico “para" um organismo e sim. pelo contrário, para a pessoa que “carrega” o respectivo organísmo doente. Alguém pode querer ser médico somente “por amor“ à pessoa cujo organísmo está doente, por amor à poessoa que não “é" docte, mas “tem" uma doença. É certo que eu trato “por causa” de uma doença, mas “por amor" a uma pessoa; não por amor ao organismo, mas à pessoa. A psicose é uma somatose, pois é uma doença fenotípica, aínda que somatogêníca. Como tal, é uma doença do organismo psicoñsic0, mas não da pessoa espirituaL A pessoa espiritual é apenas “emparedada” por ela. Quem senão o psiquiatra consegue descobrir a pessoa por trás do muro - a pessoa sofredora? Sim, a pessoa sofre, como sc dissc, sob o jugo da neurose, sem estar doente dela; a pessoa sofre simplesmentc em virtude da ímpotência a que está condenada pela psicose - a impotência para se manifestar, considerando que necessíta de um organismo para a automanifestação, um orgauísmo sem perturbações, quer instrumentais, quer expressivas. Assim, o homem psicótico sofre duplamente, por impotência instrumental e por invisibilidade expressiva de sua pessoa. Ou sofre unicamentc pclo seguintez Ier-se tomado um objeto, possível aínda, da biologia. deixando de ser um objelo de uma possível biografch Quem for capaz de falar de um estado esquizofrênico avançado como de um caput morluum de usar, nesse contexto, da expressão “um cadáver vivo", ou dizer que já não se trata aqui mais de um homem, me~ lhor faria afastando-se do serviço e da proñssão da psiquiatria, já que está a um passo da perfeita identíñcação com os esforços da eutanásia e o que se chamou de “exterminação das vidas sem valor". O que sc dcve entender por “vida sem valor"? Vem à mente a ídéia de ser inútiL Quem pensa assím, ignora, porém. a diferença entre utilidade e dignidade. A utílídade pode ser medida pela atividade e pela capacídade vital de um indívíduo, sua utilidade vital e social. A dignidade de um homem - de um homem como pessoa - permanece intacta depoís da perda da utilidade ocasionada pela desorganizaçâo psícofísica da pessoa espirituaL Assim como a pessoa espirilual cstá “atrás” - atrás do acontecimento mórbido psicofísico - também a sua dignidade está “por cima” - por cima da perda de valor biossociaL pois essa perda refere-se “ao ipso" à simples utílidade. E exata.

120

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

mente isso o que Rudolf Allers tinha em mente quando disse que homens diferentes têm valor diferente, mas dignidade iguaL Eles têm dignidade igual como pessoas espirituais que são, mas não como organismos psicoñsicos nem como indivíduos vitais~sociais. Seria mais apropriado não nos tornarmos psiquiatras se não estivermos compenetrados da dígnidade absoluta de cada um, até do psicótico. Enquanto não estivermos profundamente convencidos da dígnidade intacta e ñrme do doeme mental (como pessoa espirituaL e não como organismo psicoñsíco; no último caso, ele poderia ser não só impotente, como biossocialmcnte inútil) - enquanto não estivermos profundamente convencidos dessa dignidade invunerável será apenaj uma questão de maior ou menor persistência se nos limitaremos a flertar com a eutanásia ou se a postularemos e executaremos. A pessoa espiritual deixa-se perturbar, mas não dcstruir por uma enfermidade psícofísica. O que uma doença pode destruir, o que ela é capaz de desorganizar, é apenas o organismo psicofísico. 0 organismo representa, todavia, tanto o campo de ação da pessoa, como o seu campo de expressão. A desorganização do organismo não signiñca nem menos nem maís do que a obstrução do accsso à pessoa. Estc deveria ser o nosso credo psiquiátricoz crença absoluta no espírito pessoaL crença “cega“ na pessoa espiritual “invisível", mas indestrutíveL E se eu não tivesse essa crença, meus senhores e minhas senhoras, então preferiria não ser me'dico. Já dissemos que não é permitido tirar conclusões sobre o cspiritual exjuvantibus a partir do corp0'reo. Tínhamos em mcnte a conclusão a posleriori do corpórc0, realmente condicionante, para o espiritual como aparente condicionado. Em face disso, seria naturalmentc lícita uma conclusão per exclusionem 0 que nos está na idéia é a conclusão tirada do campo livre que a pessoa tem e conserva sempre em face dc todo o seu condicionamento psicoñsico. a liberdadc, a liberdade dessa mesma pessoa. portanto, o ser-aí e 0 scr-assim, a realidade e a eñcácia do espíríto da pessoa. O cspírito nos é revelado justamente como não completamente condicionado pelo corpóreo; o que se manifesta não é a sua completa cond|'cionalidade. mas uma liberdade residuaL a indepcndência relativa, ou se o quisermos exprímir com as palavras de Nicolai Hartmann. “autonomia apesar da dcpendéncia”. Devo dizer que vemos tanto dessa “relativa" autonomia, um tamanho quamum satis. que sempre é possível descobri-la pela análise cxistenciaL para se poder chamar por ela, fazer-lhe um apelo Iogoterapêutico (em que nunca se deve perdcr de vista o aspecto posilivo dessa líberdadcz a responsabilidade - o para-quê da liberdade equivalentc do seu de-quê).

O HOM EM lNCONDlClONADO

12l

Por que chamamos antcriormeme à conclusão da liberdade para a espiritualidade, cm jargão clínico, uma conclusão per exclusionem? ch, nota-se que em condições psícoñsícas idênticas o quc vos paracc condicionado, ísto é, espiñtuaL difere scgundo as circunstâncias. Portanto, há de se ver no espíritual um incondicíonado. A realidade espiritual não podc ser completamente condicionada; pelo contrário. é condiconante de si mesma. A realidade espiritual é cla mesma a eñcácia. Já se disse uma vcz que aquele acontccimento mórbido psicofísico (ou melhor, somatogênico + fcnopsíquico) a que chamamos de deprcssão endógena admite as mais variadas atitudes cspirituals, isto é, da parte da pessoa espirituaL da portadora do organismo docntc. que tem um campo livrc. Nós iremos encontrar estc mesmo campo livre ao abordarmos a psiquiatria hercditárizL Ele ora é poupado pelo cond1'cionante, ora é ocupado pclo íncondiconado. O homem se mastra - no quadro do cspaço livrc para as atitudes espirituais - como incondicionado, pelo menos segundo as possibilidades. O homem é condicionado fatualmente, incondicionado facultatívamcntc. O patologista oerebral e o hcredo-psiquiatra são conhecedorcs das limitações que a liberdade espiritual sofre devido a uma docnça psicoñsica, mas justamentc csses conhecedores da condicionalidadc psicofísica são, ao mesmo tempo, testemunhas da liberdadc espiritual, tcstemunhas do campo lívre, que lhes permite concluir per exclusionem pela existência de um poder em facc da condicionalídade psicofisica, pela liberdade espirituaL O que se manifesta a tais testemunhas é a potência da pessoa espirituaL ainda e apesar de toda a sua “impotência” aparente - eu gostaria de dizer, se me permitem. o que se toma claro é a potência obstinada do espírito. 0 añnador de pianos tem a oportunidade de admirar como o virtuose consegue tocar melhor. talvez, num piano desañnado do que um mau executante num piano añnado. Kant, nos últimos dias de vida, teve à sua disposíçâo um cérebro no chamado status cribrosus, quando se instalou uma grave perturbação amnésica-afásica. Scntia diñculdades na evocacão das palavras; mas que palavras sabia elc ainda arrancar do seu “instrumcnto”! Os médicos tinham-no procurado para realizar uma conferência e 0 convidado ñcou cm pé, por muito tempo, até que ñnalmente compreenderam que ele se recusava a sentar enquanto eles não o ñzcsscm. Logo que sc sentaram, Kant arrancou ao seu cérebro arteríosclerosado as palavras comovcntes: “Ainda não perdí o sentido da humanidade”. Ecce: um virtuoso toca um instrumento defeituoso! Recapitulemosz o corpórco é a simples possibilidadc. Como taL está, de algum modo, abcrto a alguma coisa que scja capaz de realízar essa possibílidade, já que, em si, uma possibilidade corporal não é nem maís nem menos que uma forma vazía posta à dísposição pclo

4

. _. _o.

. M --t

p-

<-| 'NJUv mnm

122

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSlCOTERAPlA

biológico - uma forma vazna que cspcra ser preenchida. Nesse sentido, porém, não é só o somático abcrto ao psíquico. mas também o psíquíco é, por sua vez, abcrto ao espirituaL Para o invcstigador, importa guardar esse ser-abcrto. A ciência do somático e do psíquico - do condicíonamento somático e psíquico do homem - a biologia ou a psicologia têm de manter a porta abcrta, a porta que, para além do domínio desse duplo condicionamento, conduz literalmente ao campo lívre, à rcgíão do espírito, à liberdade. A ciência tem de manter essa porta aberta, mas exatamente por ísso o investigador não sc deve afastar da porta, não pode. ele próprío, din'gir~se para aquela terra que não é a sua - por exemplo, para o rcino do sobrenaturaL Podcria facilmente acontecer que a pona sc fcchassc abruptamente atrás dele. A ciência não pochazer mais do que fornecer o malerial suscctível de ser utilizado, sem objeções, mesmo na elaboração de uma imagem do mundo tcísta; ocupar-se, porém, da elaboração não é sua Larefa. mas de outros construtores. Voltemos, contudo, à nossa tese de que o corpóreo (como simples possibilitação) precisa do psíquíco para sua realízação e, ñnalmente, do espiritual para sua realização plena. Vemos que esta relação dupla podc exprímír-sc como segue, num'a frasc condicional e causal: se alguma coisa corporal é “possível“, é “realizada" pelo psíquico, porque é uma “necessidade” espirituaL Para tornar isto mais claro, precisamos servir-nos. oulra vez, de nossa imagem do pianoz toca píano? Não, apenas torna possívcl tocar. Toca, porém, o pianista, só porque sabe tocar? Não, mas porque deve uma vez que tocando "realiza” as possibilidades” do instrumento. scmpre, conforme as “necessidades artísticas". O mesmo se veriñca cóm as relações ontológicas entre as camadas ôntícasz o corporal torna possível a realização psíquica de uma exigência espiritual. Ontogênese do espírito e heredopatologia Concentramo-nos o tcmpo todo, como num leitmotiv, na fórmula de Nicolai Hanmanm “Autonomia apesar da dependéncia”. Ao problema da dependência do espirituaL associa-sc ímediatamente no homem, contudo. o problema da sua descendência - a pergunta sobre a origem do espírito, pergunta à qual já tentamos responder no sentido ñlogcnético. mas não ainda no sentido ontogcnético. Para obtcr essa resvosta. tcremos de rccuar um pouco. Como exporemos adiante novamentc, o homem e', apesar de tudo, unidade e totalidade. E nunca é demaís enfatizar essa unídade e totalidade. porque não afmnamos, de modo algum, que o homem seja

0 HOMEM INCONDlClONADO

|23

"composto" de corpo, alma e espírita Ele é ludo isto, pelo contrârio. unitan'amente, mas só o espiritual constítui e garante csta unidade. De onde provém a “varicdadc na unidade” do homcm? De onde vem a estrutura humana cm camadas? A estrutura em degraus do homcm? Devemos resp'onder que não é pelo fato dc se compor de corpo. alma e espírito, mas pelo fato de que o cspirítual sc confronta com o corporal e com o psíquico dc que o homcm, como espírito, se coloca sempre frente a si próprio como corpo e alma. 0 que ele "tem " perame si próprio é corpo e alma: o que ”esta"' perante o corpo e a alma é espíríla Neste sentido, somente ncstc scntido, é que concordamos com 0 conceíto de que todas cssas separações e individualizações são meramcnte heurístícas. O homem “tem" corpo c alma, mas “é" espírito. Em certo scnu'do, porém, pode-se também dizerz o corpo e a alma o têm, ao homem, uma vez que o homem é incondicionado somente na mcdida em que ele é espírito; no entanto, como homem pura e simplcsmentc. é, e permanece, condicionado. O homem é em primeiro plano condicionado no scu “scr-assim" ' corpóreo. Ele nunca é “aí" como que caído do céu; foi procriado. isto e', foram seus pais e não ele que dctermínaram a sua exístência corporaL Ele nunca é como poderia ser, se lhe coubesse escolhcr. Nem como os pais possam ter descjado, porque eles só podcm dctermina'-lo para existir, mas não para um detcrminado “scr-assim". Os filhos não escolhem assim como os pais não podem escolhcr os ñ~ Ihos. Fulamos do “ser-ass¡m". e não do “ser-ai”. Ser ou não ser não e',

portumo, aqui a questa'o. porquanto o próprio “ser-aí” está sempre nas nossas mãos - podcmos até cometer suicídio - e mcsmo o “seruí“ dos ñlhos está semprc em nosso poderz podçmos impedir a concepcão. O que eslá em causa é exclusivamente o “como-ser” dos ñIhos. e essa é uma pergunta absolutamenle irrcspondível; o “serassim“ de uma criança é completamente imprevisível e neste sentido lotalmente contingente. O “ser-assím" de uma criança é fruto do acaso. fruto do jogo de dados do destino, uma vez que mesmo as leis da hereditariedade eslabelecidas por Mendel são leis “do grande númer-o" e corrcspondem, por conseguinte, a um simples cálculo de probabilidadcs. Já se disse também que não são aplicáveis a um caso isolado, e quê o “ser-assim" de uma críança é incalculáveL A condenação de um homem à prisão perpétua é ilegal na medida em que ocorre no desconhecimento ou no conhecimento incompleto das leis naturais que dominam a hereditariedade. Um caso concreto pode ilustrar estas circunstâncias. Conhm mos uma doeme que sofre de depressão endógena pcriódica e grave. Os quatro avós da nossa pacíente eram psiquicamente saudávcís e

124

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSlCOTERAPlA

por isso os país obtiveram, mcsmo com o estabelccimcnto de critén'os rígorosos, uma auton'zação eugêníca de casamento, apesar de existirem inúmeros casos de depressão endógena na parentela afastada, tanto do Iado paterno, como materno. O aspecto relevantc da qucstão é saber-se. por excmplo, se os avós paternos da doente dcveriam ter recebído uma autorização de casamento, já que tanto a mãc quanto o pai ainda não haviam atingido, naquela ocasião, a idadc de manifestações de uma suposta disposição dcprcssiva hereditária e ambos tinham uma H'ma", mais velha, sofrendo de depressão. Este fato deveria ter sido lançado forçosameme nos pratos da balança das considerações do prognóstico hercdítário, ou ter suscitado uma contra-indicação absoluta do casamento. Em outras palavras, o caso do pai da doente, que devcria tcr sido qualiñcado de prognóstico hcreditário infausto, tcve um dcsfecho tão favorável quanto foi desfavorá~

vel o caso da nossa doente. _ Queremos nos deter agora para dxzer algumas palavras sobre o

problema do controle da concepção, ao qual ja nos referimos. Em oertas circunstâncias, especiñcamcnte no caso dc contra-indicações heredo~prognósticas, existe uma_obrigação de controlar a concepção. A obrigação contra a fecundação não é menor do que o dever restrito da fecundação, dever que certamente existe e resulta da simples rcñexão de que ninguém deu a vida a sí mesmo, e, portanto ninguém devc u'rar a vida a sí mesmo, devendo, outrossim, prOpagá-la; a vida é, na realidade, um feudo. Já é em si digno de nota que uma contra-índicação heredo~ prognóstica objetiva seja eñcaz subjetivamente tão logo é comunicado aos interessados, poís o que acontcce nesses casos é que duas pessoas, por compaixão para com um não-nascituro, opõem-se ao seu nascimento ou à sua procriação. O que motiva essas pessoas não é, portanto, nada menos que o paradoxo de um amor por algo nãoexístente. Não se deve de modo algum concluir do que foi dito que não haja moralmente nada a objetar contra uma evcntual interrupção da gravidez - na condição de haver uma contra-indicação hercdoprognóstica - porquanto, como aínda será demonstrado, no momcnto da procriação, e conseqüentemcnte antes do parto, cstá prescntc uma pessoa, pelo menos facultativa, e a dcstruição da sua existêncía equivaleria pura e simplesmente ao extermínio de uma pessoa. Não qucremos aqui entrar em detalhes, e portanto não vam_os falar sobrc o problema das difercnças cxistentes entre interrupçã0 da gravidez c assassinato. Todavia, uma coisa tem de ser ditaz qucm argumentar que o embrião, ao ser destruído, não sentea menor dor deixa de parceber que isso cnseja um outro argumento, qual seja, o de que scria permitido assassinar, desde que a vítima estivesse narcotizada.

O HOMEM INCONDICIONADO

125

O que nos intercssa agora é outro problcma, precisamcnte o dc determinur se o dever, fundamenlalmenle reoonhecido por nós. da provenção da concepção. se concilia com o díreito humano. gcralmcntc rcconhecido, ao am0r. Julgamos que aqucle dever c estc dircito são absolutamente compatívcis, e isto porquc o amor humano é semprc mais do que simples instinto de conscrvação da espécie, do mesmo modo como o trabalho humano (pelo menos quando dcve ser um trabalho digno do homem) é semprc mais do que o simplcs-instinto de conscrvação. Em que medida o amor humano ultrapassa o simples impulso, o simples instinto, pode ser veriñcado pclo fato dc quc o instinto de proteção à prole se manifcsta de modo mais intcnso exatamente ondc é mais desínibido, cm vez de se clevar ao plano próprio do sentimento de amor humano (um amor verdadciro dc mãc para ñlho) e de ser, portanto. existcncialmentc adequado. Tal como o amor, o casamento é, em sua cssêncía. mais do que o simples meio para o ñm da procriação. bcm como é sempre mais do que o simples meio para o gozo do prazcr sexuaL Sc se quisessc dasconhecer a essência do casamento, geralmente considerado como coabítação sexuaL rcconhecer-se-ia nele apenas um propósito pragmático de procriação ou só um propósito dc gozo dc prazer sexual (num caso. diríamos que se trata de uma íncompreensão de cunho biologístico. no outro, de uma incompreensão de cunho psicológico). Somente o amor é que, pelo contrán'o, dá ao casamento e ao ser-cmoutro sexual - entendido ontologicamente - valor humano. Aqui termina nossa digressão pelo campo da eugenia. Queremos reiterar, mais além, que o ser-assim de uma criança é. em cada caso, como já dito, ímprevisiveL Estamos cícntes de que toda a obra do homem é uma obra parcial; por vezes ñca incompleta para sempre. Pensemos nas relações respectivas quando se trata da “obra" dc um ho~ mem no sentído ñgurado. empregado habitualmentc para o trabalho literárioz neste caso, o autor, ainda que posleriormcnte, pode fazcr correço'es, vêm as primeiras pr0vas, depois as segundas, em seguida. as fmais, a paginação, e só então, a impressão. Tudo é difcrente na “obra” que é representada pelo próprio homcm, na vida de uma criança, que constituí a obra viva produzida pelos pais. Enquanio a obra litcrária é determinada no seu ser-assim antes mesmo de ser. no caso da criança, a determinação do existir, do ser-aí, precedc o serassim. Não se espera por nenhum imprimatur; um fzat é expresso ao acaso e o acaso pode signiñcar o risco de uma criança defcituosa. Somente Deus poderia prever que acharia bom o que criou. Ao homem, é negada tal garantia. Agora objetar-se-á que o ser-assim de uma criança não é passivel de correção, do ponto de vista biológico, mas pode ser corrigido por meios psicológicos. De fa›to, muiLa coisa pode ser com'gida atra~

l26

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTER_í_/XPIA

vés dc métodos pedagógicos. A exemplo da obra literária, cabe uma paginação. sob a forma de uma recducação da críança, que transforma um ser-assim num ser-outro. No cntamo, este tornar-se outro não sc rcgula. em u'ltima análise, pela vontade dos pais. mas por um dever que é vivenciado pela criança. Em outras palavras: esta póseducação é propriamente auto-educaçã0, autodeterminação. Na medida em que entendemos por vida a existência corpórea, portanto biolo'gica. a vida de uma criança é obra dos pais; todavia, na medida em que conccbemos a vida não como a existência do corpo, mas como o ser-assim espiritual (essência), por conseguinte em semido não-biológico e sim biogra'ñco. podemos dizer que a vida de um homem é a sua própria obra. Falou-se anteriormente no jogo de dados por cuja mercê seria determinado o ser-assím da criança. Nesse jogo, os dados são lança~ dos no momento da concepção. Aos pontos dos dados correspondem os cromossomas. O seu nu'mero, no caso do homem, é maíor do que no dado, ultrapassando 21. Segundo um cálculo. os pais podem criar numa única geração 281 bilhões de ñlhos diferentes. O que nos importa no contexto é o seguintez os pais, no momento da procriação dos ñlhos forneccmlhes os cromossomas; não lhes insuflam o espírito. Os cromossomas determinam unicamente o psicoñsico. Numa palavraz por meio dos cromossomas herdados dos pais, um homem somente é determinado naquilo que cle ^°tem", mas não no que ele u'n

e

_ Reflitamos simplesmente a rcspeito de uma circunstânciaz o pai, pos!-coitum, pesa algumas gramas menos, a mãe, post-partum. alguns quilos menos; no enfanto, o espírito, no caso, revela-se imponderáveL Ou sc há de pensar que ñcam os pais um pouco maís pobrcs em espírito quando nasce com seu fílho um novo espírito? Podem os pais, quando se forma um novo “tu” no seu ñlho - um novo ser capaz de dizcr “eu" para si mesmo - taIVez dizcr um pouco menos “eu" para consigo? Tçmos Iogo: em cada ser humano que vem ao mundo, é posto um novum absoluto, trazído para a realidade, pois a existência espíritual é intransmissíveL não é hepeditária. É possível transmitir somente uma possíbilidade psicofísíca, uma potência psicofísica; o que é transmissível é apenas o espaço psicofísico de ação -nunca a liberdadc espiritual dentro dele - o que é transmissível são as fronteiras psicoñsicas. não o que ñca entre elas. São as pedras da construção, jamais o m_estre-_de-obras. A exnstêncna etermza-se na medlda em que produz, mas lSSO nunca se dá pela procriação. Ela produz a sí mesma, efetivando as possibilidades .somato-psíquícas, atualizando espiritualmente a po-

O HOM EM lNCONDlClONADO

l27

tencialídade psicofísica. Ela realiza-sc em sí mesma; tentar realizar-sc nos ñlhos c nos netos é um crro; neles e com clcs podcm apenas novas potcncialidadcs scr criadas, podc apenas tornar-se possível para elcs a auto-realização. Com ísso, não queremos dizer que a auto-rcalizacão sc processe no homcm isolado. Pclo contrárioz a auto-realízação existcncial não acontece sem outra existéncia. Sempre sc lançam pontes de uma existêncía para outra. Na medida em que se realiza. a existêncía constantemcnte se supera a si mcsma. Estamos aqui em prcsença daquele fenômeno primário a que Heideggcr chama “transcendência". Jaspers e Binswanger a communio do amor. Esta transcendência da exístência nunca é no tcmpo, vai além do tempo. ao sobretemporaL Transccndendo-se no tempo - mesmo no tcmpo inñnito - a cxistência nunca seria capaz dc sc realiznr. Quem vive somcnte para ñlhos e nctos não sc realiza no inñnito, mas somente adia a realízação para além do inñnito. Tal infmitude seria, parém, “má-inñnitude". Na verdadeira inñnitude. a existência não transccnde a sí no sentido horízontal, mas no vertical - não exatamcnte no tempo ou no tempo inñnito, mas para além do tcmpo. no sobretemporaL Analogamentc ao que se passa com a maturação da existência, apresentam-se as relações conccrnentes aos que nós. segundo Binswanger, podemos chamar a sua espacíalidade. Já ouvimos dizer que, como ente espirituaL a existéncia “é" sempre já “em” outro ente, e como este outro cme. por sua vez, é também ente espirituaL o eme espiritual “é" também sempre “em um outro"; porém, como asseguramos. expressamente, um tal “ser em um outro" é sempre acima do espaço e, portanto, revela-se que a existência. mesmo no sentido espgaciaL só pode transcen'der quando cla - por cima do espaço, por cnma do “aí" - transcende para além do superespaciaL Retornemos à tesez cada homem é um novum absoluto. Sabemos, no cmamo, que tanto os espermatozóides quanto os óvulos são adiconáveis; añnal a fusão das células germinativas é a ñnalidade derradeira. Por outro lado. sabemos também que as células germinalivas, já amalgamadas entre si, são mmbém dívisíveis cm ccrtas condiçõesz foi Driesch quem fez esta cxperiência sensacionaL Assim. en~ quanto aquela potência física, que constitui a condição prévia da existéncia espirituaL mostra-se tão divisivel quamo adicíonáveL o mesmo não se pode dizer da existência cspüituaL É ccrto que o “ser“ espiritual é “ser” individualizado, a existêncía é pessoal; sim, a passoa existencial é, em essência, unidade e tolalidade, e isto signiñca quc cla não é, essencíalmcnte, divísivel ou adicionáveL Mcsmo quando distinguimos entre ñsico. psíquico e espirítuaL nunca o fazemos

I¡ l¡ I

128

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

0 HOM EM INCONDICIONADO

129

Neste sentido, não existc também nenhuma “alma do povo" como se o homem fossc assím “composto”, como se tais elemcntos ínem sequer uma “psique das massas", e na medida em que a exprcsfossem partes, já que o homem não é um “ser" admvo. mas mtegraL “psicología das massas" (Le Bon) quer dízer isso, cssa psicologia são Dcsignamos antcriormente a pessoa como “essencialmcnte indiseria sem objeto, no sentido mais verdadeiro da palavra. “Alma do visívcl não-adicionávcl”. Dc fato, a sua unidade nos permitc tanto a povo“, “psique das massas" não são entidades pessoais; rcprescndivisibilidadc como a sua totalidade permitiria algo como adicionatam, pelo contrário, pseudopessoas, entidades quase pessoais. Não mento. Torna-se claro para todos que cada homem é não só um "nosão sequer organismos, e muito menos pessoas, pois se fosscm orgae vum" absoluto, como também um "ín-dividuwn” um "innismos seriam órgãos humanos. Contradiz, todavia, completamenle summabile" absolutos. a essência do homem, não só do ponto de vista ontológico. mas tamPara voltarmos mais uma vcz à sua unidadc c totalídadcr na esbém do ético. que ele sc tornasse alguma vez apcnas órgão. isto é, quizofrenia nunca se manifesta uma divisibilidade. uma “ñssura” da simples utensílio para um ñm. Ncstc sentido, o homem não pode pcssoa; pelo contrário, o “palavrcado” a respeito de “ñssura da pernem deve ser apenas “organizado”. sonalidade ou da “consciêncía” (a chamada "doub1e conscience") é Na medida em que o homem é espírito, existe como pessoa; poque induz a crro - e induz a erro porque a palavra “esquizofrenin” é rém, neste sentido, pode-se também dizer que a sua existêncía é una, traduzida Iiteralmente de maneira errada por “demência de ñssura". tolal e nova. Una, porque índivisível; totaL porque inadicionável; c A esquizofrenia é uma psícose, ergo. uma somatose. Esta soma~ nova, porque a existência é inlransmissíveL Em rigorosa oposição a tose é provocada por uma causa ignorada; é incxplicável a partir do sua faticidade psicofísica, a pessoa espíritual-existencial do homem é somático; todavia, na medida em que pode ser compreendida a partir um in-dividuum, um in-summabile e um novum Eslas três existências, do psíquioo, só a podemos compreender se nela desooninarmos uma juntas, constituem o haecceitas - para nos servirmos desta expressão tentativa da pessoa para conservar justamcnte a sua unidade; a comda teoria do principum individuanonis dos escoláticos. ” Em vírtudc preensãao psicológica da esquizofrenia só começa quando vemos dela. existe algo como propagação sexuaL pois na propagação asse~ como a pessoa tcnta manter, por si própria, uma ordem ameaçada. xuada, resultam. de um indivíduo, dois iguais (a ele entre si), cnquanEsta ordem que intcressa à pessoa na esquizofrenia é aquela que to na propagação scxual dc dois indivíduos deseiguais resultam adiconstituí principalmentc o psíquico. aquela que estrutura o microcoscionalmeme, ao acaso. muilos indivíduos desíguais (a eles e cntre si) mo que sc encontra cm todo o psíquico. O que ameaça esta ordcm é o - de tal modo que o resultado da propagação sexual em facc da assc~ perigo de uma “erupção do orgânico” (Paul Schílder) no psíquico, é xual é superior, tanto quantitativa como qualitativamente. a destruição do psíquíco, a decomposição do microcosmo ou a sua Assim, chegamos, portanto, ao problema da origem do espírito transformação num mícrocaos. 0 doente esquizofrênico tem mcdo humano e, daqui em díante. do tornar-se homem, não no sentido Bde ser lançado nesse microcaos esquizofrênico. logenético, mas ontogenético. Todavia, só sabemos cientiñcamente Já dissemos o suñciente sobre a unidade da cxistência pessoal, uma coisa: de onde vêm as condições ñsicas da existência cspiritual que. mesmo na esquizofrenia, é não só guardada mas também conñrelas, isto é, os cromossomas, derivam dos pais; mas são somente o mada; voltemos a abordar a totalidade da existéncia pessoal: “nada minimum da existência. Esta existência cm scu mínímo é. certamente, do que existe tem a sua existência devido a ter sido composto”, disse razão necessa'n'a, mas não suñcicnte para a exislência in~totum que o certa vez o grande teólogo judeu Leo Baeck. ” Portanto, não há neespíritual contém. De onde vem então o espiritual? nehuma combinação, nenhuma síntese da existéncia. A existência já Segundo Aristóteles, _o espírito é üópaüev , isto é, ele vem é, pelo contrário, uma síntese, no sentido aproximado da “apercep“pela porta adentro"; mas não sabemos de onde vem. Esta pergunta ção sintética" de Kant. A existência é sempre o sujeito de uma síntenão foi respondida com o circunlóquio apresentado acima sobrc o se, nunca o seu objeto.

35. Difercnçar não signiñca o mesmo que subdivídir. 361ndiwd'mminefjabile. Eranos - Jahrbuch. tomo XV. Rhein-Verlag. Zun'que. l948. p. 386.

37 A "haecceims". propriameme. é a "haecceilas" da pessoa espirituaL Todavia. n pessoa espirilual pode ser compreend|'da. em úllima análise. somcnle por aquele que ama. Portamo. só. propr1'amemc. o que ama pode dístinguir 0 nmado do scu duplo psicofisico. pois - cetem' paríbuS (psicoñsico) - só a pessoa cspirilual diferc.

130

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

fato dc uma sobrevínda regular do espiritual (“para" o corpo-alma). Tcremos ainda dc voltar a cstc ponto. O espiritual devc, portanto, entrar primeiro, dc algum modo, no corpo-alma mas, tão Iogo isto acontece, ele é envolvido pelo siléncio, o espírito pessoal sc oculta no sílêncio, e assim permanece à espera dop momento cm que possa manifestar-sc, romper o “invólucro“ do psicofísico, as camadas de psicofísico que o cobrem. Espera, ainda, até poder anunciar-sc, até poder mostrar-sc no organismo psicofísico como o órgão de tal manifestação. Espera ainda... até o dia cm que domina a tal ponto o organismo que pode fazcr dele o seu campo de expressão. Quem, tendo passado pcla experiência de educar uma criança, não viu chegar o momento em que a pessoa espiritual se anuncia pela primeira vez? Quem, num caso desses, não se scntiu emocionado ao contemplar o primeiro ;orriso da criança? O instantc em que algo relampadeja, algo que parecc ter esperado sempre por esse minuto verdadeirameme luminoso, no qual algo brilha, exatamente por um momento, talvez somentc por uma fração de scgundo para logo desaparecer, recuando para trás do organismo psicoñsico - de novo oculto, aparentemente mcro autômato, que dá a impressão de ser apenas um aparelho controlado por reflexos condicionados e incondicionados. “Algo“, como disscmos há pouco, se anuncia; não devcriamos dizer “alguém'."7 Trata-se aquí exatamente de alguém e não de alguma coisa; não é de nenhuma coisa, mas da pessoa espirituaL Foi a pessoa que esperou até podcr brilhar como um relâmpago - até poder sorrir através do organismo, e neste primeiro sorriso, transformar, pela primcira vez, o organismo no “seu” campo dc exprcssão. O organismo revcla-se, assim, como um matcrial à espcra de ser modelado. Nessa qualidade, o psicoñsíco é perfeitamcnte plástico; não o é somcnte no sentido de uma plastícidade exterior e sim no scnu'do de uma imprcssionabilidade ínterior, de uma capacídade de exprcssão. Surge, a par da plasticídade exterior, uma espécie de plasticidade intcrior. No interior do fruto também se encontram impressões do cdaroço. Não sabemos dc onde vem o espirituaL a pcssoa espirituaL até alcançar corpóreo-psíquico. Uma coisa é certa: não provém dos cromossomas. lsso resulta per exclusionem, já que, segundo vimos, a pessoa espiritual é essencialmente um in-dividiuum e um ¡nsummabile. ela é esscncialmentc indivisível e inadicionável e nunca pode, como tal, derivar do divisível e do adicionáveL Pode-se. añnaL añrmar com razão: o ñlho é bem “came da carne” de seus pais. mas não “espírito de seu espírito". Ele é sempre e somcnte um ñlho “ñsico“, e isto na maís vcrdadeira accpção do termo: no sentido ñsiológico. Pelo contrário, no sentido metañsico.

O HOMEM lNCONDlCIONADO

l3|

cada ñlho é propriamente ñlho adotivo. Adotamo-lo no mundo, dentro do ser. Assim, pois, o pai nunca ê gerador. apenas é teslemunha. testemunha daquela maravilha, scmpre nova, que é, cm última análisc, o tornar-sc homem. Não geramos, na verdadc, nenhuma críatura. tcstemunhamos apenas, espir1'tualmente, esta maravilha: a cxistêncía pcssoaL como espiritual que ê, não se pode gerar. mas apenas possibilitar. Ela sc dcve auto-realízar para esse prooesso, c nós, os pais, podemos apenas contribuir na medida cm que colocamos à disposíção da existência espiritual o mínimo ñsiológíco dc cxistência. Jaspers rcferiu~se, certa feita, a algo de semelhante ao que estamos mostrando quando dissc que “se devc dar uma oportunidade à Providência”. No ato físiológico da procriação é dada realmente à Providência uma oportunidade de completar “uma maravilha sempre renovada em cada tornar-se homem. e de criar um homem novo". Esta criação é sempre possibilitada pelo progenitor, tcstemunha desta maravilha. Na ontogênese, vingam-se os homcns de sua ñlogênese; já ouvimos dizer que. no momento de sua criação. deu-se à humanidade uma oportunidade, no momento exato em que recebeu como doação l4 bilhões de neurônios. Añrmou-se há pouco que podíamos proporcionar à existéncia espiritual somente o mínimo ñsiológico de existência. 0 homem, como pessoa cspiriluaL não é, por conseguinte. criado por nós. Assim rcza a formulação'ontológica do fato. A formulação tcológica deveria acentuar uma pcquena difercnça. do quc resultariaz o homcm, como _pessoa cspirituaL não é criado por nós. Objetar-se-á que a hercditariedade demonstra que o espíritual tambem' é suscetível de transmissão de pai para ñlho. Isto, porém, não está certo. de modo algum, pois o que é herdado é o ñsico e, com cle, o psíquico. O espirituaL todavia, é intransmissíveL O psíquico, além de herdado através da disposição genética, é ainda plasmado pcla educação. Chegamos à seguinte formulaçãoz o ñsico é dado pela hereditariedade - o psíquico é dirigido pela educação; o espirituaL contudo, não pode scr educado, tcm de ser realizado - o espiritual “é" só na auto-realização, na “realidade da realização" da existêncna. Os cromossomas e as disposições psicoñsicas neles ñxadas são. por conseguinte, simples dote, simples materíal de construção da pessoa espirituaL O fato de eles serem apenas isto, e nada mais, rcssalta da circunstâncía de que este material, em ccrtas condiçoe's, também pode ser indesejáveL Dissc-o Paul Haeberlin há tcmpos: “a alma da

l32

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

cn'ança luta constantementc com os pais que estão dentro dcla". O que Hacberlin chamou de “alma” é o que chamamos de “espíríto". ” Exatamente como um construtor dependc do material de construção ao seu dispor, sendo, no entanto, lívrc de emprcgá-Io dcste ou daqucle modo, assim acontece com a pessoa espiritual (ou seu com. portamento Iivrc em relação às disposições psicofísicas hcrdadas). E visívcl outra vez nosso ño vermelho, o Ieitmotiv dc “autonomia apesar de dependência”. Os resultados da investigação da hcredopatolo~ gia parecem-nos indicados para demonstrar a dependência do construtor espiritual e a sua autonomia simultânea no emprego dos materiais psicofísicos de construção. Johannes Langc publicou o caso de irmãs gêmeas univitclinas em que ambas traziam traços de caráter de uma neurosc obsessíva. Uma, porém, era ensimesmada, indiferente ao mundo, sem vontade de viver, inapta para a vida, enquanto a outra era expansiva, franca, disposta e apta para a vida.' Comuns a ambas eram hábitos obsessívos absolutamente inofensivos, como, por exemplo, o de introduzir cartas na caixa do correio com um determinado rituaL Num outro caso da literatura sobre investigação heredopsiquiá~ trica de gêmeos, um irmão univitelino era um delinqüentc sabido e o outro, um astuto policial. Vemos, pois, que no caso de gêmeos univitelinos, não obstantc disposições idênticas, estabelece-se fenotipicamentc um carátcr dife~ rentez no primeiro caso citado, é diferente a vitalidade, no segundo, a sociabilídade. Não devemos subestimar o fato de que essa diversidadc - ceteris paribus - é caracterízada por diferenças dccísívas. Pouco signíñca que indivíduos coloquem na caixa do correío as cartas da mesma maneira, ou possuam os mesmos atributos (sabído, astuto) tudo isso signiñca pouco em face dos traços distintivos, como ser ou não apto para a vida e ser ou não capaz dc sociabilídade. Agora, de onde devem provir essas diferenças decisivas, se não daquela única instância cuja essência a faz scr justamente decisiva do espiritual no homem?

Este espirituaL no contexto da heredopsiquiatria, é sempre asquecido. FaIa-se constantemente de “cndo e cxogênese”, de “disposi-

38 Dc igual modo ele se refere à pssoa apiñtual quando. em outro lrabalho (“Der Cogenstand dcr Psychiatrie", em Schweizer Archivfür Neurologie und Psychialrie 60. l-2. l44. l947), asscverou com toda a razãoz “0 que nós chamamos de doenças memais não são. segundo o seu carátcr patológico. psicoses. mas “somaloses", c nas suas conseqnências - motívo por que rcoebcram o nome - não são docnças da alma (psicoses) mas impedimcntos da alma".

0 HOM EM lNCONDlCIONADO

133

T'n u

ção e melo , condições de hereditariedade e meio ambiente”, como sc houvesse um terceiro termo; mas rertium datur. Ficou dcmonstra~ do que a partir de uma mesma disposicão, um indivíduo constrói algo difercntc do que outro. No que tange ao ambiente. também sc mostrou que um ambiente idêntico possibilita atitudes diferentes para com cle. Dispomos de conhecimentos suñcientes a esse respeito - basta pensar-se no grande experimentum crucis dos campos de concentração. Neles era possível ver o "podcr dc dccisão" do espiritualz cnquamo um se deixava transformar num “patífe". outro - ceteris paribus - sc tornava um “santo". ” Para voltar. entretanto. ao problema heredobiolo'gico, demos a palavra àquele que é considerado um dos grandcs peritos em criminologia de índole biológica, Friedrich Stumpflz “Depois de todo o aparato de cunho natural-cienu'ñco da psicologia profunda, psíqu¡atria. ciéncias da hereditariedade, pesquisas sobre a consituição e sobrc o meio ambiente, o resultado é verdadciramentc decepcionante. Acreditamos que poderíamos mostrar, através de nossas investigações. o homem - na sua |imitação. na sua _vinculação com os instintos, com o estado de espírito, com a hereditariedade, com a estrutura físíca e o meio ambiente - como um produto de disposições heredilárias e meio ambiente, enteléquia do caráter e educação, constituicão física e doenca, mas o que se nos depara, depois de todos os esforços de longos anos, do pó e das cinzas da l|_ Guerra MundiaL é 0 quadro da sua Iiberdade“ (Viena, Zeilxchrflt' PrakL Psych., l. 25, l949). Em face disso, também não nos deixaremos enganar por aquelc fatalismo que encontramos, por exemplo, na “análise do destino" de Szondi. Embora este cientista tenha também dado à sua teoria uma interpretação tendente a reconhecer' uma certa margem de lívre ação, sua orientação é essencialmente voltada para a\ crenca no destino (Szondi refere-se inclusive a "fatalismo dirigido“). A sua conclusão é de que o destino nãp está escrito nos astros, mas nos genes. A hereditariedáüe não explica nada de autêntíco. na verdade, não explica nada. Por meio dela não se consegue sobretudo responder à perguma fundamcntalz que faz a pessoa espiritual com a respectiva disposição hereditária? O que faz ela com as condições sob as quais - em cada caso determinantes dc si mcsma - cstá colocada? A adocão da hereditariedade como princípio básico da explicação é errada. lanto ontogenética quanto ñlogeneticamente. Vale isto

39 A expcriência só seria rcalmentc dcmonstrativa. evidcntcmente. quando o psicoñsicoJosse incluído no ceteris paribus. isto c'. no caso dc gêmcos univilelinos em um campo dc concemração.

l34

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

tanto numa relação de fato, como de princípio. No que tange ao fatuaL gostaríamos de pedir aos senhores que reflctissem sobre o que segue. Segundo Darwin, a cvolução dos seres pode ser explicada pela seleção naturaL É o caso de indagar se o tempo, mesmo que tenha . sido relativamente longo, chcgaria para cxplicar tudo o que evcntualmente foi alcançado ao longo do desenvolvimento (por cxemplo, no domínió dos instintos) ou para fazer compreendcr o que foi adquírido por meio do “tn'al and error” ". Atememos nas circunstâncias a nosso ver análogas. do sabcr, de algum modo instintivo, sobre as chamadas ervas medicínaís entre os povos primiüv_os. Um pouco de rcflexão bastaria para nos levar a duvidar de que tal saber, em sua plenitude, surgisse unicamcnte. por assim dizer, de forma empírica portanto. hdo mesmo modo, pelos caminhos longos e penosos do “trial and err0r". Meditemos sobre com_o seria inverossímel o encontro casual de circunstâncias dc que resultaria, por exemplo. que um indívíduo do scxo femim'no,_pn'meiro com hemorragias uterinas. segundo. na bpoca da colheita, tivesse a idéia de. presumivelmente entre outras tentativas, experimentar uma cravagem (centeio espigado) - em si, já uma presença rara e pouco espetacular - como medicamento; tcrceiro. que propagasse o resultado favorável; e quarto, ñnalmente, que esse saber empírico acerca do efeito curativo dessa erva não se pardesse na consciêncía da comunidade. Sobre o ponto fundamental há de ser dito o seguinte: a teoría da cvolução da Darwin baseia-se na opiníão de que são herdadas todas as aquisições capazes de favorecer o indivíduo na sua luta pela sobrevivência. Ora, a herança de tais aquisíções e', por sua vez, uma das aquisições favorávéis, ela também ajuda o indivíduo na sua luta. Não seria. portanlo, lícito cxplicar a aquisição da própria hereditariedade, do mesmo' modo, pela seleção naturaL pois a exístência de algo como a hereditariedade é então pressuposla. Nessa tentatíva, seríamos culpados de um petitio principii sc, na explicação de alguma coisa, já pressupuséssemos aquilo que deve scr explibado primeiro. Foi dito que cada “tornar-se homem” é uma maravilha. A añrmação valc igualmente do polnto de vísta ñlogenético, aplica-se à humanidade como um todo. A “maravilha“ de que se trata nunca pode ser apreendida pela ciência naturah pelo contrárío, a ciência natural por si só conségue, eventualmen'te, cntender as condições naturais da maravilha, a naturcza pressuposta da maravilha. Quem acrcdítar que pode explicar a criacão ou mesmo a essência do fenômeno por meio

Ú

Em inglés no original (N. do T.).

0 HOMEM lNCONDlClONADO

135

do esclarccimento de simples prcssuposto, iguala-sc aos porta-vozes da opinião popular que acham que as pulgas nascem do eslerco e os piolhos do lixo. O que as ciências naturais estão em condições de explicar é apc~ nas sempre um ser natural; todavia. o que nunca se pode “esclarcccr" sem que antes seja “entendido“, o que as ciências naturais não são capazes de “comprecndcr", é o scntido sobrenaturaL Tal comprccnsão não está ao alcance de uma “ciência da natureza”, mas de uma crença numa supernatureza, na acepção mais vasta do termo. Na perspectiva dessa crença, não só a “humanízação" no plano ñlogcnético, mas cada “tornar-se homem" isoladamente considerado constiluem um novo alo de criação. Anteriormente estabelecemos que a maravilha da “encarnação" lem como pressuposto a natureza. No ñnal das contas, isto valc para tudo o que é signiñcativo; cada sentido pressupõe um ser - nenhum sentido pode ter cfeito sem que lhc sejam dadas condições pelo ser. Todavia, em que medida é va'lido que mesmo a maravilha do tornar-se homcm tenha prcssupostos naturais? Não seria o oposto, isto e', a maravilha não começaria exatamcnte onde a naturcza é, por assim dizer, desprezada? De modo algum. A física moderna ensina que, em princípio, tudo é possívelz as leis da _causalidade valem, a essa nova luz, apenas para o grande nu'mero. a massa. Compreendamos bemz possível é tudo; só que nem tudo é possível é também prováveL O improváveL porém, mostra-se também como algo “em que sc passam coisas exatas", o que não está. por conseguinte, cm contradição com as leis da natureza. Cerwz não é provável que ao sair desta sala de conferências, no caminho para casa. me caia um tijolo na cabeça - com essa improbabilidade se preocuparia apenas um neurótico angustiado; entretanto. o caso não constituiria uma impossibilidade. Em princípio, é igualmente possíveL embora muito menos provável, que o tijolo, ao invés de caír para baixo, caísse, por assim dizer. para cima. Seria isso de tal modo improvável que nem mesmo um neurótico, cm sua ansiedadc, iria preocupar-se com a idéia; mas os físicos modernos a admitem. Em relação à possibilidadc fundamentaL mesmo do improváveL existem graus, mas não frOntciras. Parece, assim, jusliñcado falar do improvável como de uma “maravilha" ou, em virtude dessa identiñcação, deñnir simplcsmente a maravilha como o improváveL Daqui resulta que a maravilha também não está em contrdição com as leis da natureza, não as viola de modo algum, não parte os elos da causalidade. A nosso ver. nâo há necessídade, com relação à maravilha, dc falar em “|acunas" da lci da causalidade, supor quc, no caso. irrompe na natureza uma lcgalidade mais alta. A maravilha, a sobrenatureza, não cogita de brincar com as leis da natureza; a maravilha prc-

136

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTE_íR/\PIA

-g

_-,_- :-_x_-

':; _-_.z_.2

Jxí

wm

cisa delas. a sobrenaturcza precisa delas, servindo-se da lci da causalídade; a sobrcnatureza não revoga a Iei da causalidade, mas, para usar uma imagem. comporta-se com relação a ela como se estivessc dcdilhando o tcclado de um piano. Nada é indeterminado - tudo é determinado e, portanto, também a maravilha; só que ela não é apenas determinada causalmentc, naturalmente, não só de baixo para címa, mas do alto, sobrenaturalmente determinada, ela é “superdcterminada”. Em outros termosz ela é determinada nãó só conforme o scr, mas igualmente conforme o sentido. As cadeias causaís permanccem completamente fechadas. Num plano mais elevado, são, entrelanto, simultaneamente abertas, abertas a uma “causalidade” mais alta. Um círculo, fechado em si, ñca fechado, enquanto elc - considerado como a projeção de uma meia esfera oca (projeça'o do espaço tridimensional no bídimensiona1) é simultaneamente aberto. Assim, o ser da causalidade. no sentido reslrito da palavra, signiñca abertura para o signiñcado. Está sempre pronto para rcceber um sentido mais profundo. Está sempre disposto a deixar emrar nele mais alta “causalídade”, a mais alta eflcácia da mais alta realidadc. Na abertura da camada inferior do ser insere-se em cada caso uma camada superior. No ser detcrminante introduz-se um sentido atuante - o que não qucr dizer que o ser não seja, por sua vez, condicionado, isto é, que não seja possível atuar sobrc ele. O sentido humano é exclusivamente apreendido pelo sentido superhumano, um supersentido. Este supersentido não tem, em primeiro 1ugar, nada a ver com o supersensoriaL signifíca apenas um sentído que ultrapassa essencialmente a capacidade humana de comprecnsão. O mesmo se dá com a supernatureza: não se trata de um conceíto religioso, e sím metafísí'C0.

Queremos insistir no pontoz a supernatureza não abre nenhuma brecha na natureza, não pcrfura, não criva a.continuidade da relação causal naturaL Pelo contrário, a natureza é, já foi dito, sempre aberta, sempre proma para a recepção do sobrenaturaL sem que a rccepção implique uma “violação” de sua lei própria por uma Iei mais alta. Para nos ocuparmos do caso mais s1m'ples de uma legalídade mais altaz a fmalidade também não abre brecha na causalidade. Não é preciso 1m'aginar a superposição ou supra-ordenação de uma lcgalidade por outra, como se fosscm rasgadas brechas; o que dá a impressão dc uma lacuna, na observação unidímensional, aparece, na observação bidimcnsionaL como um continuum. portanto, aberto.

O HOMEM lNCONDIClONADO l. d¡m'ensional: -

l37

2. d1m'ensional : U

Agora como antes, o nexo causal é sempre um conlinuum. Analogamente ao espaço "curvo” de Eisteim esse continuum cspaço tcmporal da lci da causalidade também 'é retiñcado pela legalidade mais alta. ldentiñquemos as correlações causais com as “linhas do mundo“ quadridimensionais, no sentido de Minkowskiz elas se mastram aqui e ali com depressões ou nichos. Os respectivos lugarcs (nichos) são as oportunidades que a causulidade dá à ñnalidade. A natureza é, neste ponto, abcrta para a supernatureza; nestas oportunidades. a supernatureza está metida na naturcza. obrigada nela. O acaso é o lugar onde a maravilha se abriga, ou para ser mais preciso, onde se pode abrigar, pois sempre algo pode, porém nunca deve, ser mais do que um simples acaso. Disso, tudo é suspeito. mas só suspeito. O ser natural pode sempre ser somcnte portador de um sentido sobrenaturaL de um supersentido; mas o supersentido é discreto, não importuna ninguém e pode passar despercebido. Temos agora de fazer um diagnóstico diferencial ao qual doravante nos apegaremos: o diagnóstico dfierencial “acaso ou mais do que rs°so?”. Recordemos, de passagcm, a humanização ñlogenética e per~ guntemos se a mutação que outrora doou a nós, hominídeos, subitamente, 14 bilhões de neurônios - um aconlecimemo da história natural - foi um acaso ou foi mais que isso. Esta pergunta redunda noutra que visa saber se no quadro de uma construção teórica puramente natural-cientíñca, a explicação muito plausível de que o desencadeamento da mutação (do salto quânticos, no domínio da genética) é dcvido à ação ionizante dos raios cósmicos. por um golpc do acaso. se uma tal cxplicação satisfaz nossa necessidade de causalidade (no sentido lato do termo). Houve aqui, efctivamente. causalidade signiñcativa ou absurda? A nós, represcntantes das ciências naturais, foi-nos dado apenas o ser condicionante, mas não o scntido atuame, não o sentido de um acontecimento como taL O nosso diagnóstico diferencial “acaso ou mais do que isso?” na alternativaz ação ao acaso de radiação cósmica ou algo que se esconde por tra's" - nunca pode ser formulado pela ciência naturaL Este °°nunca" é absolutamente nccessário, pois a ciência natural conduz sempre ao conhecer apenas; não é de sua competência perguntar pelo sentido. dar ao acontecimento natural um sentido. lsso não é da alçada de uma tomada de conhecimento, mas dc uma lomada de posição. Dar sentido é tomar posição. Enñm, o diagnóstico diferencial - a pergunta radicalmente formulada - soa bem diferente: o ser é um incomparável grande absurdo ou um único grande supersentido? A ciência natural não é capaz de res-

0 HOM EM INCONDICIONADO

Nota para a 2| edição (Extraída de Die Schshundertjahrfeeier der Universitãt Wien. 0fftzieller Festbericht im Selbstverlag der Universitãt Wien-. Viena, l965, p. 160-l7l.)

-4:~_- .r-_ .

ponder. A pergunta de modo geral não é respondích o problema não é solúvel - mas uma decisão a respcito há dc scr tomada. Todo ser é ambíguo; ambas as interpretaçoc's - absurdo ou supersentido - são admissíveis. concebívcis. Estamos, contudo, às voltaâ com duas conccpções, duas hipóteses, e não neccssidades teón'cas. A “decisão” que é exigida de nós não sc submete à lógica; não estamos logicamcnte obrigados a adotar outra decisão. Ambas as interpretaçõcs - absurdo ou supersentido - se justiñcam do ponto de vista da lógica. Aqui não sc trata do que é lógico, racionaL mas do que é ontológico, emocionaL “' A justíñcação de ambas as respostas - “absurdo absoluto" ou “supersentido absoluto" - é da responsabilidade de quem responde. A pcssoa interrogada, ao invés de ser colocada diante de uma pergunta sc vê perante uma dccisão existencial, não intelectuaL 0 que ela tem de efetuar não é o intelíegere, não é uma apreciação objetiva, é uma tomada de posição pessoaL A rgumentos e contm-argumentos equilibram a balança. mas quem decide lanca nos pralos da balança o peso do seu ser. Não é o saber que fundamenla a decisão, é a crença. A crença, porém, não é um saber díminuído da realidade do pensado, mas sim um pensar acrescido da existencíalidade do pensador.

--_

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

xrsu.

l38

l39

A característica da existência humana é a coexistência cntre a unidude antropológica c as diferenças ontológicas. entre o modo de ser unilário da realidade humana c as modalidades divcrsas em que ela sc divide. Em síntese. a existência humana é unilas mulliplcx, para usar uma expressão da ñlosoña de São Tomás de Aquino. A ela nâo fuzem justiça nem o pluralismo “ nem o monismo. tal como o encontramos em Spinoza, na elhica ordine geometrico demonstrata. Quc seja permitido esboçar uma imago hominis ordine geomelrico demons~ 1rara. que funciona como uma analogia. Trata-se dc uma ontologia dimensionaL “ com duas leis, a primeira das quais podc ser formulada como segue. (F¡gura l). Um objeto projetado em uma dímensão diferente da sua - a que estiver mais pcrto - forma-se de tal maneira que as ñguras se contradizem. Se eu p'rojeto, por exemplo, uma taça. geometricamentc um cilindro. do cspaço lridimensional para o bidimcnsional do plano horizontal e do perñL num caso teremos um círculo. noutro um rctângulo. Outrossim. da projeção resulta tanto mais uma contradição quanto cm cada caso se trata de uma ñgura fechada, enquanto a taça é um vaso aberto. A scgunda lci da ontologia dimensional rczac quando não um objeto. mas vários são projetados em uma outra dimensão (não em diferentes dimcnsões), a que está mais próxima da sua própria. formam-se eles de tal maneira que as ñguras, embora não sc contradizendo umas às outras, são ambíguas. Se eu projeto, por exemplo, um cilindro, um cone e uma esfera no plano bidimcnsionaL em todos os casos se obtém um círculo. Se suponho que o cone e a esfcra se tra-

É sabido que a arte costuma ser deñnida como unidade na divcrsidade. ch. cu gostaria dc deñnir o homem como unidade apesar da diversidade. Existe uma unidade antropológica apesar das difercnças onlológicas, apesar das diferenças cntrc as várias maneiras dc ser. “

40 Emolividade não equiva|c, porém, a afetividade. não é considêrada no sentido psi~ cológico de uma fact¡'cidade. mas no scntido ontológico. aproximadamcntc no sentido da raison du coeur de PascaL Nessc scntido, é o amor. por exemplo. accntuadameme cogniu'vo. não somenle em relação a um valor ou a um scnlido. mas também em rela~ ção a um ser e. assim. portamo. Lambém ao mais allo valor c ao mais allo ser. cm relação a Deus (ver a minha “prova da existen“cia dc Deus" com base no amorI em Zeil und Veramwortung. Viena. ed. Deulicke, l947. p. 40. amo, ergo esl). 4| Konrad Lorenz diz que “a parcde divisória entre os doís grandés incomensuráveís, o ñsiológico e o ps1'quico. é intransponível" e que ”a transferência dos rcsultados da ciéncia nalural para o dominio psicoñsico não nos aprox'ima da solução do problema

corpo-a|ma nem por um ño dc cabelo". No que concemc à espcrança dc que futuras invesligações venham a possibililar a so|ução. Werner Heisenberg se mostra pessimis› la quando añrmaz “Não cspcramos por ncnhum caminho direto do emcndimento conduzindo dos movimemos do corpo aos processos psíquicos. pois mesmo nas ciências exatas a realidade se fragmenta em camadas separadas". 42 Viklor FrankL “Der Pluralismus der Wissenschaften und die Einhcil des Mcnschen“. palcstra pronunciada em l3 dc maio de l965. na ocasião do 600° aniversário dc fundação da Univcrsidade dc Viena no Grandc Salão de Festas. 43 Viktor E. FrankL “Dimensionen dcs Menschseins“. Jahrbuch fur Psythalogie und nyrholherapie l. 186. l953. 44 Viklor E. FrankL “Dcr Pluralismus der Wissenschaflcn und das Menschlichc im Menschen“. in Arthur Koestler c J. R. Smythies (org.). Das neue Memsthenbild Die Revolutionierung der Wissenschafun vom Lebm Ein ínltmationales Symposion (Moldc'n. Viena/Muniquchuriquez l970). pp. 374-85.

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

2

Avñ

l40

Figura 2“

tam de sombras lançadas pelo cilíndro, então as sombras são ambíguas. na medida em que eu não consigo concluir, partindo de uma delas, sc foi o cilindro, o cone ou a esfera que a projetou. Como podemos aplicar ao homem tais considerações? Bem, o homem que é reduzido em sua dimensão especíñca e projetado an planos da biologia e da psicologia se conñgura de tal formas que as ñguras se contradizem umas às outras. A projeção no plano biológico produz fenômenos somáticos, enquanto a projeção no plano psicológico, fenômenos psíquicos. À luz da ontologia dimensional, a contradição não diz respeito à unidade do homem. Tanto quanto a contradição entre o círculo e o retângulo abrange o fato de que se

17_0 HOMEM INCONDlClONADO

l4l

trala da projeção de um meschilindm Não pcrcamos. porém. dc vista que a unidade do ser-assim do homem lança uma pontc sobre a diversidade das modalídades de ser em que se divide; assim, a supcração de opostos como soma e psique (coincidenlia oppositorum, no sentido de Nicolau Cusanus) não deve ser buscada no plano cm que o homem é projetado. Pelo contrário, é exclusivamente numa dimensão superior que podc scr encomrada. na dimcnsão do cspcciñca~ mente humano. Não é, pois. o caso de que venhamos a resolvcr o problcma psicofísico. É bem possível que a ontologia dimensional explique por que o problema não é solúveL O mesmo se dá com o problema do livre arbítrio. Assim como no caso da taça, um vaso aberto cuja projeção deu como resultado ñguras fechadas. o homem se constitui no plano biológico com um sislema fcchado de reflexos ñsiológicos, psicológico como um sistema fechado de reações psicológicas. De novo, da projeção resulta uma contradição, já que é inerentelà natureza do homem que seja aberto, “aberto para o mundo“ (Scheler, Gehlen e Portmann). O caráter fcchado do sistcma de reflexos fisiológicos e de reações psicológicas não contradiz, porém de modo algum, à luz da onlologia dimcnsionaL a humanidadc do homem. Ela o faz tão pouco quanto o caráter fechado das projeções no plano horizontal e lateral do cilindro contradiz a abertura deste. Agora, está claro para nós que as noçoe's adquiridas na dimcnsão mais próxima são válidas pelo menos para essa mesma dimensão. 0 que estamos dizendo se aplica às concepçoe's de investigações tão unilaterais quanto a reflexologia dc Pavlov, o behaviourismo de Watson. a psicanálisc de Freud e a psicologia individual de Adler. “ A ciência tem não só o direito, mas o dever, de deíxar de lado a multidimensionalidade da realidade, atcnuar a realídade, selecionar da realidade uma determinada frequ"ência. A projeção é. assim. mais do que legítimaz é obrigatória. 0 ciemista devc adotar a ñcção de que lida com _uma realidade unidimensionaL Precisa, contudo. ter cons~ ciéncia do que faz. isto e', conhecer as fontes de erro. a ñm de manter' a investigação sob controle. Com isso, chegamos à aplicabilidade da segunda lci da ontologia dimensional ao homemz sc projcto, não ñguras tridimensionais num plano bidimensionaL mas ñguras como Fioder Dostoievski ou

45 Frcud cra suñcientememe genial para perccbcr a vínculnção dc sua leoria ao ponto de vista dimensionaL Escrcveu. de fato, cm carta a Ludwig Binswangerz "Semprc vivi no andar lérreo e no subsolo do edificio" (Erinnemngen an Sigmund Freud. Berna. l956. p. 15).

F---!_-w_-'__*_r_.

l42

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

Bcrnadcttc Soubirous no plano psiquiátrico, então trato Dostoievski oomo se fose um epúép'uco' igual a tantos outros epüépucos,' Bana~ dctte uma hístéúca igual a tantas outras histéñcas com v15'ões alucinatórias. O que ambos são, além dísso, não se manifesÍa no plano psiquiátrico. E porqúe a produçâo artística dc um, a experiência religiosa da outra ñcam fora do plano da psíquiatn'a, demro do qual tudo é ambíguo. como as sombras que não sou capaz de identiñcar ou não posso detcrminar se pcrtencem ao cilindro, ao cone ou à esfera. IIL '0 Problema da Mortalidnde Ocupamo-nos até aqui. .no que dlz' rcspcito ao problema psicofisico, c'om o tornar-se homem, com a evolução do espíritual no homem, e isso sob um duplo aspecto: ñlogenético c ontogcnético. No que se mferc ao segundo, tratamos, cm especiaL da questão da proveniéncia da pessoa espirituaL a on°gem do espírito. Agora é o momento de perguntarmos sobre o futuro do cspírito. À pcrgunta de ondc ele veio na hora da procríacão. segu&se a de para onde ele vai na hora da morte. O surgimento do espírito,va sua entrada no ser, no mundo, já era considcrada, como vimos, uma “maravilha”, do puro ponto de vista da ciéncia naturaL algo de enigmático; assim, também a saída do espíñto no instante da morte dc um homem não é mcnos misteriosa. Dc um modo ou de outro, a existência é, e pcrmanece, em última análise, um myslerium Esta qualidadc é expressa nas palavras mais simples possíveís e, por isso mesmo, mais ímpressionantes, no primeiro cântico da Cancão da Terra de Gustav Mahlerz “Escura é a vida, escura é a morte” (que os compassos musicais corrcspondentcs scjam dos mais emocionantes que se possa imagínar, já é outro assunto). Vamos partir de um fato fenomenológicoz não podemos admitir, ninguém que tenha conservado um espírito lúcido, apesar de toda a pseudocultura, pode admítir que tudo tenha de desaparecer com a morte dc um homem. Não podemos admitir que o homem deva ser uma crialura que de um dia para outro csteja “aí” e setcnta c oito anos mais tarde, do mesmo modo, de um dia para outro, vire cadáver. É fácil veriñcar quão natural à sensibilidade do homem é a recusa dessa idêia pelo fato seguintc: ocorre freqüentemcnte que o homem - como o pregador à beira do túmulo - se inclina a tutear o morto. Não diz “tu" evidentemcnte ao corpo do morto, para o corpo “sem alma“. o cadávcr; pelo contrán'o, diz de espírito para espírito. Somente a uma pessoa espiritual posso din'gir-me usando “tu”; mas onde está o “tu", para onde foi ele, foi ela?

í O HOMEM INCONDICIONADO

l43

A essa pergunta sobre o ser-onde nao sc podc rcsponder caquanto não respondermos. na gcneralidadc. à perguntaz 0 que significa “ser aí"? 0 (Da-sein) de uma pessoa espiritual signiñca, cm prímeiro lugar, que ela se exprime corporeameme e, assim, ocasiona-mc uma impressão sensoriaL Por meio da impressão sensoriaL do conteúdo da consciência, é-me dado mais do que elaz viso. por mcio do conteu'do. um objeto. Trata~se, no caso concreto, desse objcto, da pessoa espiritual e. assim, dela me é dado mais do que o simples corporaL o simples sensoriaL mesmo já durame a vida da pcssoa. Durante a vida do seu organismo, apreendo a pessoa (não a “sua" pessoa, como se ele ou ela "tivesse” uma pessoa, mas exatamente “a" pessoa que ele ou ela “são") e aprcendo através do dado corpóreo e sensoriaL Pensemos agora simplesmenle no fato do amor. 0 amor, na medida em que é verdadeiro. é sempre amor de pessoa para pessoa, partanto. do mesmo modo, “de espírito para espírito”; não é o meu organismo que ama outr0, mas o a“eu” que ama “tu". Por isso, e só por isso. o amor consegue sobreviver à idade - essencialmente à idade de um organismo - e à morte do ser amado. Binswanger opôs ao angustiado “ser no mundo” de Heidegger o amoroso “no mundo para além do mundo"; podcmos, de nossa parte, contrapor à sexualidade do homem, à sua sensualidade, no semido de um "ser na corporeidadc", o amor como “ser na corporeidade para além da corporeidade". De fato, o amoroso “visa" o outro além de qualquer impressão sensoriaL ainda que através dela. Já que o amoroso ultrapassa a corporeidade do eme amado, ultrapassa igualmente a morte dessc outro. Em outras palavras: no amor. como também nas formas mais cotidianas da apreensão da outra existêncía, o homem sempre se agarrou ao “concreto” do ser no mundo. Que ninguém objete que nos estamos distanciando da nossa tese “ser = ser outro", “ pois o que foí dito não signíñca, em absoluto, que o ser no mundo do homem possa ser outra coisa do que ser individualizado e. nessa me-

46 Veja-se Ãrlzliche Seelsarge, p. 12. ou ainda 249-250: O que nós semprc captamos no ente em sua plenitude é por isso já delímitado na medida cm que é discerníveL E somentc no relacionar-sc de um cnte com o scr outro que ambos são cm gcral conslituí~ dos. A relação com o entc em scu aspcclo de scr oulro é para ele. de oerto modo, uma iniciação. Scr=ser outro como relação; na verdadc só a rclação "é“. De acordo com o que sc podc sabcr. o fenômeno “vermelh0" nunca é dador o que sc lcm sempre é a relacão “vcrmclho-vcrdc“. que seria. porlanto. o fenômeno originnL essenciaL ñnaL Uma constatação empírica desse argumemo é o fato de quc n cegucira para as corcs não surgc isolada e sim em combinação (vermelho-verde). Do que foi

íilü

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

dida, scr concrcto. A concretítude não é captada no todo; o quc ocorre é que cu, cm meio aos dados corpóreos-scnsoriais, avanço para uma concretitudc mais alla. A aprcensão da concretitude do outro abre para mim o caminho rumo a concretos mais elevados, ísto é, a concretitude da pessoa espírituaL não de um outro qualquer, do scr-

diw no parágrafo anlcrior a respcilo da relaçño emrc cntes. conclui-sc agora que na física ou na astronomia. como ciências dc objetos rclacionados, pressupõe-sc a mate~ málica. como ciência das relações. Cumpre acresoentar que não entendemos pelo mmo “relação" uma catcgoria; o conceilo é apresentado aqui ontologicamcme. Oulras conñrmações quanto à validadc do que dissemos sobre a relação podcm ser achadas no rclato dc determinadas cxpeñências com animais. Karl Bühler. por exemplo. em Dlt geixtige Enlwicklung dtx KÍMPLYOV cdição. Jena. Gustav Fischer. |924. p. l80), fala do conhecimento que os animais lêm da “rclação". c cita. com referência a este pomo. W. Kõhlcr (Nachweiseinfacher Struklur funktionen beim Sch¡mpansen undbeim Haushuhn, Abh. da Bcrl. Akad. d. Wiss.. l918. Phys. Math. KI. n9 2) cujo estudo proporciona o cxemplo da uma experiência com uma galinha que se maslrou capaz de eslabcleccr dcpois de treinada rclaçõcs cmre impressõcs. mas não de ter impressões àbsolutas (Ioc. cir., p. l78). Mais uma prova podemos ainda obtcr em certas pesquisas da flsica. Lcia-se A. March (Neuxon'enn'emngder Physik. Der StandpunkL 9. 5. l952. p. 5): “Quando cxaminamos a fundo as_.expen'ências ¡em quc sc fundamcma nossa crcnça na cxistência de eIé~ trons como subslâncias. não resta senão um sistcma dc rclaçoc's constames. de forma que deveríamos considcrar como rcais essas relaçõcs e não as partículas em scu aspeclo dc substâncíam a esséncia das coisas é rcprcsenlada por uma estrutura... esta imerpretação é hoje sustcmadas por nomes ilustrcs como Berlrand RussclL Eddingtom Schrõdin e muitos oulros. Nenhum dclcs considera o mundo objclivo como uma subs~ táncia." Anlen'ormente. falou~se na relação entre cmcs. enlrc o scr c o ser oulro. em particular na rclação “vermelho-vcrdc“. Há, lambém. o amarelo e o violeta. o azul e o laranja. cada um dos membros desses parcs é “outro" para o que cstá no lado dc lá da' rclaçâo. Uma ñgura vermelha de pcquenas dimensõcs sobre um fundo vcrde é outra com rclação a uma grandc. o mcsmo no que tange a um quadrado e um circulo ou uma ñgura lridimensional com rcferêncía a uma plana. 0 ser não apenas se constituiz oomo ser ouuo. ele vai galgando dimcnsões cada vez mais elevadas do ser outro! O' mundo. por conseguintc. pode ser dcñnido como um sistcma dc relações cscalonadas. Do caráter dimcnsional dessà gradação resulta que a relação emre correlalos dc um delerminado plano deve pertencer ao plano seguinte da cscala ascendeme. Assim. a re› lação cnlrc dois pontos. a linha rcta que os une. pcrtencc à primcira dimcnsão, cnquanto a rclacão cntrc duas linhas - unidimensíonais - ou seja, o plano que as liga. penence à segunda dimcnsão. 0 que Iança uma pome entrc os entes é o conhccimcnlo, que conscgue superar o scr oulro no emc. estabelecendo uma relação. No enlanto. o própria conhecimento já é uma relação; é o relacionamento entre o ser espiritual c o outro ente. e que costuma ser caracleñzado também sob a forma de um “ter". Do que já ñcou explicado. vbsc que o conhecimcnto como relação não penence ao mesmo plano em que eslão os corrclatos dcssa relnçño - de um lado o entc que conhccc, de oulro, o que é conhecido. Por isso. o conhccimcmo de um objeto não podc ser conhecido simultaneamente com o conhecimcnlo do objcto do conhecimento. O objeto do conhecimento é alcançado ao cuslo do conhecimcmo do obje(o. alé que añnal 0 primeiro deixe dc ser o que prelcnde ser_

0 HOM EM INCONDICIONA DO

145

outro scm critério de escolha. mas do scr-outro absoluto, a concrctitude dc um concrelissimum e. nessa medida. de um realissimwn. Com uma tal concretitude nósjá travamos conhecimcnto c a chamamos dc haecce1'1as. Ao positivista, escapa a circunstância de que o homem cstá scmpre para além da impressão sensorial e do conteúdo da consciência, mesmo quando ele se mostra capaz de conceber a pessoa cspiriluaL Já indicamos que o positivista é verdadeiramente um niilista. Agora se lornou claro que fatalmente ele eslá prcdestinado a não enconlrar nada, senão o “nada"; em vão ele procura algo. porque procura o transcendente da consciência no chamado posilivo, no clemcnto “positivo” dada. no que é imanente à consciência. O objeto transccndcnte jamais poderá ser cncontrado no conteúdo da consciência. Essa tentativa parece com a de uma criança que procura o canlor no gramofone ou o interlocutor no aparelho de telefone. Enquanto refli~ to somente o alo intencionaL nunca posso concebcr o objeto transcendente, só o consigo quando me dirijo para cle através do conteú~ do imaneme da consciência; em síntcsez somente quando executo inteiramenle o ato inlencionaL Nunca posso julgar um par dc óculos enquanto rcnilo “sobre" elc; é preciso que cu veja através dcle, quando observo um objelo através dc¡e. Enquanto obscrvo um homem que vê o vermelho, presencio somente o seu ver - nesse ínterim, desconhcco 0 que seja vermelho; eu próprio tenho de ver o vermelho para saber em que consiste (contanto que eu seja capaz. isto é. não seja cego). Ass¡m, a pessoa cspirituaL mesmo em vida, já se revela como algo que é mais do que a corporeidade e a sensualidade. Nós a seguimos no “além", na mcdida em que ultrapassamos a massa de impressões sensoriais. Sempre, pela imprcssão sensoríaL “temos” a própria pcssoa. por conseqüência lemos sempre algo mais do que a simples impressão sensoriaL Através do ólico, do acústico etc., “marcamos a posição“ do espirituaL A própria pessoa espiritual nos é dada. Todavia. ela é dada. conformc o caso, de maneira mais ou menos imedia~ ta. Há graus no medialo e no imediato e as diferentes formas do que é dado distingucm-se precisamente por esses graus - as diferenças são apenas graduais. não principiais. Escolhamos um exemplo: falo com alguém sem intermediários; recebo dele diversas impressões óticas. acu'sticas. e assim por diante. Suponhamos que falo ao telefone, então ele mc é dado menos imediatamente, a intcrmediação aumentou. Continuemos na escala dc comparaçãoz no caso de uma transmissão radiofônica. apenas o espaço foi vencíd0, enquanto no de uma reprodução em disco também o tempo foi superado. Assim. é possível ouvir cantar o já falecido Ri-

l46

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

0 HOM EM INCONDICIONADO

147

Tnhança, encontraremos, como sábia conclusão, na frase indiana lat chard Tauber. Por meio da rcprodução fonográñca de sua voz, ele twam asi. De acordo com a sabedoria que cssa frasc cnccrra. a idcntipróprio nos é de novo “dado", é-nos restituído, porque não é verdadade da pessoa espiritual podc. em gcraL não lhes scr conhecida dude que ouvimos apenas ondas sonoras, tanto no caso de um cantor rante toda a vida. Pelo contrário, podc apenas pcnctrar na consciênvivo que está num estúdío, como no de um cantor que já morreu. cia depois que o “véu de Maia” scja rasgada A cxislência corpóreoPclo contrário. em cada um desses casos, ouvimos o próprio cantor. psíquica é sempre no espaço e no lcmpo; mas as pontes cntre um Através da voz de Richard Tauber - seja ela transmitida por esse ou cxistente espacial-tcmporal e outro não são dc modo algum lançadas aquele meio - através de todas as diferentes impressões scnsoriais, através do espaço e do tempo. Essas pontcs não sào, por sua vez. esatravés dos vários graus do mediato, estamos sempre para além do paciais-temporais. Assím como um continuum cm tcrccira dimcnsão “temos” sempre a pessoa espiritual que é impressão sensoríaL que parcccrá descontínuo na segunda dimcnsão, o relacionamcmo contí“despcrta" a impressão sensorial e “se exprime". Ela mesma é dada, nuo das pessoas cspirituais umas com as outras podc ficar oculto na na sua singularidade e especiñdade. O “charme” de uma voz nos é dimensão corpo-alma. O ser próprio, o ser para além do tcmpo c do dado como um fator pessoal. Ainda que por cima do tum' ulo, chega a espaço. poderia muito bcm reprcsentar, ncsse sentido, um conlinuum nós o cantor. como personalidade. espirituaL A sua continuidade espalhar~se-ia no que nós, cm oulro Poder-se-ia considerar demonstrado, pelo que foi dito anteriorlugar, denominamos “o ser-em". Visto assim, o “ser-cm" do ente sigmente. que a pessoa espiritual já em vida não se oferece de modo niñcaria o mesmo que um ser-em-si do próprio ser. No que sve referc imediato; também depois da morte, ela nos é dada por íntermediaespecialmente ao “ser-em” (outro) amoroso do cmc (espiritual), sação. Disscmos antes que depois da morte ela "nos" pode ser restituíbemos, desde Binswanger, que se trata aqui de um modo duplo do da. Esta “imortalídade“ - indcpendcntemcnte da eventualidade dc ser, por conseguime não de um modo do entc - e já sabemos desdc que um morto possa dela participar - é evidentemente apenas subjeSpinoza que, em última análise. se ama ao próprio Deus no nosso tiva. Seria, então, o momcnto de abordarmos a questão da existência amor. no nosso amar um outro. de uma imortalidade objetiva, o prolongamcnto da vida espiritual do O que temos a objetar quanto à migração das almas situa-sc homem após sua morte, do aparecimento do organismo psicofísico. num plano diferente das objeções feitas até aqui. Diríamos, sobre A priori, isto seria possíveL pois estamos familiarizados com esse ponto. que a chamada migração das almas, como habitualmente uma certa independência do espírito em relação ao corpo, na medida é compreendida, não quer dizer migração de almas, nem tampouco em que sabemos, por exemplo, que a vida corporal prossegue durande pessoas cspirituais, mas sim migração de espíritos. “Os espíritos”, te o sono ou em gstados de hipnose profunda sem que se notc, nesses que o espiritismo, o ocultismo, a antroposoña e a teosoña “colocam casos, vida psíquico-espiritual. Há, por conseguinte, um continuum no corpo astral", não são de modo algum idênticos àquilo que nós corporal sem um continuum psíquico-espiritual. Por que, inversamendcsignamos por “o espiritual". Este espiritual não pode “migrar", te, não seria possívcl haver um continuum espiritual que subsistisse porquanto. no momento de sua morte, o homem não só perde a para além das múltiplas existências corporais? Defrontamo-nos, a consciência, a consciência do tempo, mas também o próprio tempo. essa altura, com a questão da possibilidade fundamental de exístênEle o perde na morte. exatamcnte como o ganha no momemo do' cias corporais repetidas, em outros termos, da migração da alma. nascimcnto. Só o “ser-no mundo” no espaço e no tempo e, cm conseNão é de admirar que a continuídade da pessoa espiritual, cuja qu”ência, no corpo, só tal “ser-aí" “tem” o tempo, "tem" um passado identidade, através das várias “encarnações”; desaparece, seja descoe um futuro. No entanto, o ser espirituaL como espirituaL não “é" nhecida de si própria durante a vida, porque quando sonhamos e de“concreto", é, ao contrário do “ser-no mundo", um ser para além do pois acordamos e voltamos a adormecer e sonhar quase não tomaespaco e do tempo. Não haveria como que um pressentimento de que mos conhecimento de que estivéssemos acordados entre doís sonhos. o puro ser não está sujeilo ao tempo, a nenhum passado. a ncnhum Por que não se'ria do mesmo modo possível que. por exemplo, no fuluro na circunstância de que não podemos construir nem o perfekcaso da reanimação de um afogado, logo que ele voltasse a si, tivesse tum nem o futurum do ser sem recorrer à palavra auxiliar “essência" a consciência de ter despertado já noutro ser talvcz “maís real” ainda ou “devir"?" que um_ ser noutro tempo, mas tempo incomensurável em relação ao nosso? ' A idéia se aplica à gramálica alemã ondc o verbo werden (vir a ser) auxilia a construUma analogia com a ocultação da identidade da pessoa espiríção de tempos do paasado e do futuro (N. do T.). tual, não no tempo, mas no espaço. não na sucessão, mas na vízi-

F__ÉÍ V

|48

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGlCOS DA PSlCOTERAPlA

Onde não há tcmpo, passado ou futuro, qualquer das cxpressões “mais cedo" ou “mais tarde”, “a'ntes" ou' “depoís”, “pré“ ou “pós" pcrdc seu sentído. 0 que é “pré" ou “pós” não é eo ipso “existência". Com isto, ñca eliminado todo o palavreado sobre existências revividas Não conhecemos outra existêncía cspíritual que não scja coexistênciabom o psicoñsico. Toda a añrmação sobre a existência espiritual para além desta exístência, para além do corpo, do espaçb c do tempo. carece de sentido. Só podemos sabcr da exístência espiritual cnquanto estiver unida, enquanto cstiver “completada” pclo corpo e pela alma na unidade e totalidade do ser “homem". 0 que está para além disto, o que está para além do corpo, do espaço e do tempo, o que se desenrola na zona do puro ser, é ímpossível conhecermos. Já vimos que a migração da alma é impossível; também vimos por outro lado que é “impensável” a sobrevívência do espiritualz não se pode pensar nem imaginar tal coisa. Entretanto, seria legítimo supor - não só legítimo, como necessário, já que o contrário não scria víável - que aquilo quc, cssencialmente, se situa para além do cspaço e do tempo deva sobrepor-se à morte. Proponho que falemos dc “sobrevida”, em vez de continuação da vida da pessoa; não todavia, de modo a que se pense que a pessoa espiritual sobrevivc à morte do corpo-alma, e sim na acepção a que já nos referimos, de um “supersentido" - que tínhamos deñnido como “um sentido que ultrapassa essencialmente a capacidade de comprcensão humana" - portanto, no sentido de uma supervída, isto é, um modus da vida, de que não fazemos mais idéia. que não seríamos capazes de conceber. De tudo isto resultam duas coisas: primeiro, vemos, ainda uma vez, como toda a separação e isolamento do espiritual do corpo-alma só pode ser heurísticaz o espiritual somente é conhecído por nós em união pessoal com o psicofísica Segundo. demonstra-se que añrmações sobre o puro espirituaL sobre o espírito em si, só são possíveis como negativas. Neste contexto, podemos nos referír também a añrmações “noonísticas” - para nos servirmos da expressão de Frítz KünkeL Poderíamos, outrossim, fazer mcnção a uma noologia nega~ tiva, em analogia com a “tcologia negativa". Esta noología negativa pode aflrmar apenas uma coisa sobre a existência da pessoa espiritual para além da sua coexístência com o psicofísicoz não é mortaL Esta añrmação negativa - de que a pessoa espirituaJ é i-mortal - não precisa, no entanto, causar~nos espanto. Represênta justamente a contrapartida daquela outra añrmação que não se referia à mortc, mas à procriação ou ao nascímento, e que era a seguíntez a pessoa é ín-criável. ' _ 4 " Devemos esclarecer, neste ponto, que o espirituaL como o conccituamos, não apenas nada tem a ver com os “espíritos”, como também não é idêntico à consciênciaz nossa concepção ontológíca man-

O HOMEM lNCONDlClONADO

l49

te'm-se tão afastada da pseudometafísíca cspiritista qu_amo da psicologia intclectualista. O espiritual não sc confundc com a consciêncía, como se conclui das investigaçõcs que publicamos cm outra oportu_nidade (A"rztliche Seelsorge; Derunbcuvussle Gott e outros trabalhos). Tentamos demonstrar ali que, ao lado do inconscientc instíntivo, há também um inconscicnte cspírituaL Este espiritual é inconscicntc na mcdida em que se “absorve" na cxecução irrenetida de atos espin'tuais. É incorreto añrmar - como já foi fcito - nâo só scíl mas tamc bém se scire scil; pelo contrário, tudo indica que o ato cspiritual pode visar também um objeto, sem com isso visar a si próprio, fazcndo do sujeito objeto, por consegu¡'nte, sem sobre isso rcfletin Ponamo, davemos distinguir entre um sabcr (primário) e uma consciéncia (secundária) deste mcsmo saber. 0 que sc chama cm geral consciência e', comudo. o mesmo que esta consciência retrospectiva, rcflexiva sobre si mcsma, esta consciência do próprio saber, cstc saber sobre si mcsmo - esta autoconsciência. A uma consciência=autoconsciência, teríamos, portanto, dc opor uma consciêncía íme'diata. Esla última corresponderia ao que se tem chamado de prima intenüo, enquanto que o ato (secundário) da reflexão, “derivado" do ato (pn'márío) da intenção. coincidiria com o que se tem designado como secunda intenlio.

A consciência, no entanto, em contraste com consciência imediata (Gewusstsein) é, segundo todas as aparências. dirigida a um organismo psícofísico. a uma psycophysís intacta. Por outro lado, seria concebível - enfatizo: ncm mais nem menos, “concebívc1” - que uma pura consciência imediata, o actus purus de uma prima intenlio, seja independente de uma organização psicofísica desponíveL Assim. seria portanto possível que, também para além do corpo e da alma, o espiritual - em tais “atos puros" - fosse capaz de uma visão pura. da visío beata. Nada mais se pode deduzir do que esta conccpção. Contudo, essa possibílidade, essa possíbilidade de pensar não contradiz o fató de que tal sobrevida do espintuaL tal sobrevida esp1'r¡tual, nunca nos seja consciente, pelo contrário, ñque sempre inconsciente, pois esta nmortandade nos é eo ipso mconsciente durante o tempo da nossa vida. e na sobrevida 0 é também eo ipsoz na sobrevida nada podc chegar à "'consciéncia” mas somente à consciência imediata. Por conseguinte, aparentemente, só o pragmático c o prático podem estar lígados ao corpo, aderentcs à vida, mas não o gnósico, isto é, o puro gnósico, o actus pums. Na morte, 0 h_omem mergulha dacerto numa:-apatia total e também numa “apraxia" total, mas somente numa “agnose" parcial: a consciência é, daí em diante, impossível - a consciência imediata seria todavia possíveL

150

:1 Hi 1

'

'›

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

Em rclação a tais perspcctivas de “futuro" ou de etcrnidade, dovemos nos intcrrogar se estamos satisfeitos com clas. Podcria ser objetado que, por esse meio. todo o indívidual é destruído. e. portanto, finalmente, também o pcssoaL Entretanto, não precisamos, de modo algum, ter esse rece¡o, pois o puro espíritual é, e pcrmanece, um espiritual individualizado: ser pcssoa espiritual signiñca ser espírito individualizado, e, para além disso, individual1'zantc, na medida em que a pessoa espirítual indivídualiza o organismo psicofísico em termos de um organismm especíñcamcntc o seu organismo. É claro, por outro lado, que um “acesso" da pessoa espiritual "a uma consciência mais alta" não chega a nos satísfazer. Essa perspec~ tiva idealista de eternidade opõe~se à materialista, igualmente insatisfatória, scgundo a qual deveríamos nos contentar com o fato de que os átomos que constituem nosso corpo também não se perdem depois da morte, mas representam adubo para as plantas e alimento para os vermes. Quero dizerz preñro estar bem morto e deíxar que apenas a minha obra perdure, “minha” obra, o que tenho de mais pessoaL Não esqueçamos: cada alo é o seu próprio monumento. Façamos uma pausa e voltemos, nesse contexto, ao problema da transitoriedadez o tempo passa, o tcmpo se escoa - é assim que se diz? 'Também se fala substantivamente do “fluxo do tempo” e, nesse caso, imagina-sc que o' tempo corre do futuro. através do presente, para o passado. A maioria dos homens, no entanto, ilude~se aí duplamente. Em primeiro lugar, observa-se constantemente que cssc “lfluxo” cava o seu leito e a nossa sepulturaz vê-se somente aqucle momento no fluxo do tempo a que os geólogos chamam erosão. Com efeito, fala-se na “Iima do tempo. Em tudo isto se esquece apenas que o nuxo do tempo não só continua a limar como também acumula; o acontecido e o realízado juntam-se continuamcnte no passado; nele sedimenta-se tudo o que passou, no seio do passado afunda-sc constantemente o que passou e lá ñca guardado. 0 tempoquí, mas o acon~ tecimento se coagula em forma de histo'ria. Nada que aconteceu pode ser desfeita Nada que foi criado pode ser extermínada No passado nada estâ irreparavelmenle perdido. No ser-passado eslá tudo absolutameme preservado. Reformulando tudo isto no jargão da gcologia; vivemos num cterno aluvião. Em segundo lugar, falcmos daquela “ílusão ótica" à qual geralmente nos sujcitamos, a saber: o tempo correria diante de nós, cstaríamos na margem dcste rio e íríamos ao encontro de um futuro. Entretanto, na realidade, nunca atuamos sobre o futuro, ao contrário, atuamos sempre sobre o passado. Salvamos, dentro do passado, as possibilidades. na medida em que as realízamos, na medida em que realizamos valores. Quer realizemos o que chamamos de valores cn'adores. quer realízemos o que designamos como valores viven-

O HOMEM lNCONDlClONADO

lSl

ciais. salvamos sempre alguma coisa dentro do passado; no caso dos valores criadorcs, salvamos a nossa interíoridade na realidadc extcrior; no caso dos valores vívenciais, a realidadc exterior dentro da> nossa inten'oridade. Não há dúvida dc que para cada possibilidade que salvamos dessa maneira. eliminamos milhares de outras possibilidades. “Commission is better than omission" ". como dízem os íngleses. Também nos quer parecer como se houvesse um un'ico perigo em nossa vída: o de não ter vivido. 0 de que nós precisamos é respeito ao passado, não ao futuro; o passado é inevitáveL o futuro. o nosso futuro está à frente da nossa decisão e da nossa responsabih'dade. Nesle ótica. ñca scm dúvída dcmonstrado que constitui um erro dizer que somos, perante o futuro, responsáveis pelo p'assado. Pelo contrário. somos precisamente responsáveis, perante o passado inevitáveL pelo futuro decísivo. Dentro do que nós chamamos rcspeito pelo passado, há tamo medo quanto consolo. 0 medo é porque se receia o que está escondido no futuro; mas o consolo é pelo que sc sabe que está escondido no passado. J_á dissemos o suñcientc sobre o problema da ñnitude temporaL da transitoriedade da existênc¡a. Retornemos à questão da mortalidade do homem: añrmamos que. no sentido de uma noologia negati~ va - somente negativa - se pode añrmar a i-mortah'dade da pessoa espiritual - nem mais nem menos do que tal imortalidade; pois sobre o modo da existência da pessoa cspirituaL para além da sua cocxistência psícofísica, para além do espaço e do tempo - numa palavra. a respeito da sóbrevida - não se podem fazer quaisqucr declaraçõcs. Vamos nos detcr um pouco neste ponto para seguir, por meio dc uma sinopse biolo'gica, o acesso à imortalidadc do homem como pessoa espiritualz é sabido que uma espécie de imortalidade também é própria aos seres unicelulares. Mas esta imortalidade é apenas corporal. Em contraste com a simples imortalidade corporal dos unicclularcs, os seres que representam organismos multicelulares. nos quais as células consituem, portanto. sistemas celulares. já são corporalmente monais; em compensação. são imortais do ponto de vista psíquic0, e isto num detcrminado sentido de que mais adiante falaremos. 0 homem, porém. é mortal tanto do ponto de vista do corpo quanto da psique - já dissemos expressamente que cle perde, na mortc, todo o seu psicofísico (não menos, mas também não mais). Entretanto, com csta perda. com a sua mortalidade psicofísica, “adquire“ aparentc-

° Em íngles no on'ginnl (N. do T.).

ñV

152

'_ o HOMEM INCONDICIONADO FUNDAMENTOS ANTROMLOG_r__ICOS DA PSICOTERAPIA

mente o que falta ainda aos seres que lhe estão "abaixo” na escala do desenvolvimcntoz a imortalidade cspírituaL Assim é a escala cresccnte na sucessão biogenética - uma escala na qual uma criatura, através do sacrifício. da renúncia à inñnitude (temporal) numa camada do ser, obtém a infinitude (tcmporal), até mesmo a “imortalidadc", numa camada imcdiatamente superior. Em quc sentido e com que razão podíamos añrmar amcriormentc que os seres não-humanos, tais como, por exemplo, os scres animais, seriam “imortais do pomo de vísta da psíque”? Pois bcm, em relação à sua vida psíquíca, os animais não são, se assim me é pcrmitido expressar, complctamcnte individualízados: o que ncles se pode descobrir no nuxo dos processos psíquicos pertencc, cm última análise, à psíque da espécie - que, sem dúvída, como tal, se subtrai, em si e no todo, à obscrvação e ao domínio das ciências naturais e simplesmente porque ela não é, como añrmam os biólogos, de natureza espacial e temporaL mas somente se manifesta espaçotemporalmcnte nos scres que se apresemam espaço-tcmporalmcntc, nos quais, portanto, ela é também apreensível cicnt1'ñcamentc. A totalidade da vida psíquíca dos indivíduos anímais submete-se a csta psíque da espécie - dela também vive o animal; dela são, em prímciro plano, produzidos e orientados os instintos - “dela" e para ela. De fato, os instintos de um animal são sempre instintos que funcíonam, em última análise, no intcrcssc da espécic e que, por este intercsse, sacríñcam mesmo, eventualmente, o intcrcsse indivíduaL No entanto, o falo de que a.psique da espécie é ímortal decorre necessariamcntc do scu caráter não~cspaço-temporal. Se é verdade, como disse Hegel e, de acordo com ele, L. Binswanger e G. Bally, que o individuum é o que o mundo de cada um é em outras palavrasz contanto que se possa realmente ler melhor a estrutura do ser de um indívíduo na construção do “seu" mundo, po-

demos justamente também esperar que o caráter coletivo não-, individuaL pelo contrário, genéríco, da psíque dva espec'ie igualmente corresponda um carátcr coletivo do “mundo” animal correlativo. lsto é verdadeiroz os “mundos ambientes" dos anímais - como V. Uexküll os analisou - revelam-se como mundos ambientes de cada espécie; eles não são de modo algum “mundos" individuais, no semido em que cada homem tem o “seu próprio” mundo. Mas não só o mundo ambicnte de um anímal ou de uma espécie de animais é igual de indívíduo para índivíduo (pois ele não é próprio dc cada indivíduo, mas sim dc uma espcc'ie), como também é o mcsmo de geração para geração de uma espécíe animal. Ele não se transforma. permanece rígído - permancce tão totalmente incapaz de transformação como a psíque da espécíe a que elc correspondc. 0 “mundo" correlativo dessa psíque da espécic é, por conseguinte.

153

além dc coletivo. não-histórico. Cada indivíduo reagc a partir de instintos ídênticos de igual modo. em situaçõcs iguais, c cada geração faz o mesmo. Um formigueiro não conhece uma história - tampouco conhcce o valor próprio dos indivíduos. Em compensação, o homcm não só é um ser completamente individuaL como também um scr completamentc histórico. Ele é sempre alguma coisa dc particular e alguma coisa de único, tal como também o é seu próprio mundo. Na qualidade de ser histórico, o homem nunca “é". mas sempre "vem a ser". Ele só será um “todo” quando sua vida tiver terminado; só então, seu “mundo” será completado. " Assim. a vida do homem se rcvcla como emidade temporal integralz cada momento u'nico de uma tal existência é refcrido ao “scu" passado. ao “seu" futuro e à sua “mortc” (Rilke); mortal, o homem circunscrcve “sua" vida num todo fechado. Assim como um círculo rcpresenta uma ñgura fechada em si - sem princípio e sem ñm. e apesar de completamcnte ñnito, ainda assim ilimitado - também a vida do homem, e, com cla o “seu” m.undo, é fechada em s¡, logo que ele morre. Como uma linha circular se fecha sobre si mesma, assim a vida o faz no momenlo da mortc. Entretanto, aquele “ponto de solda” que fecha a vida num todo, que junta o ñm ao princípio - cstc pomo dc solda é represcntado pelo inconsciente, do qual o homcm desperta para a vida e no qual cle adormece na morte. O caráter histórico da existência humana. a que Heidegger chamou “maturação" e Binswanger, recentemente, “historicidade”, também tem a sua patologia especíñca. Ela foi detalhadamente trata~ da além de Binswanger, por Erwin Slraus e Viktor E. v. GebsatteL Gostaríamos dc dar uma comribuição modcsta à patologia da vivência temporal na medida em que vamos estabelccer uma relação entre ' a vivência do “de'jà vu” “ e o fenômeno primitivo da maturação. Sobre isto, diríamos o seguintez na vivência do déjà vu, a uma observação mais atenta veriñca-se que não se experimenta propriamentc o que “já se viu”. tratar-se-ia, então. de uma alucinação da memória. Nc entanto, analísado mais cuidadosamente, encontra-se apenas uma qualidade anormal de conhecimento, não veriñcável pelos fatos, do já vivido alguma vez. Basicamente não é como se eu vivesse alguma coisa que eu já tenha conhecido; pelo contrário, tenho apenas o

48 Viktor E. FrankL Der Wille zum Sinn. Hubcr. Berna. Stuttgart. Viena. l972. 49 Compara-se com “Zur Metapsychologie des Déjà vu". Ouo PõlzL Imago. l2, 2/3. l926 (nu'mero em homenagem a Freud) 239. ou ainda. dc Viklor E. Frankl c Otlo PõtzL “Uber die seelischen Zuslãndc wãhren dcs Abslurzes. Eine physiologishe Studie“ in Karaslrophenreaktionem organizado por Charles Zwingmanm Akademishc Verlagsanstalt. Frankfurl/Main l97l. pp. 153-168.

ñ______

154

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSÍCOTERAPIA

sentimcnto de conhecer tão bem esta alguma coisa “como se" cu já a tivesse conhecido alguma vez. Em resumo, este “como se” rcpresenta uma racionalização secundária (ainda que tão evidente, e, por isso, surgindo involuntaríamente). Não se pode, portanto, dízer - como o tentou Havelock Ellis na sua ínterpretação do fcnômeno - que no “déjà vu" o agora é falsiñcado em um antes; mas a dístinção categorial cntre agora e antes acaba aqui, agora e antes convergcm aqui em um só - o tempo parece ler parado. Assim, a vivência do déjà vu revela-se como uma parada transitória da “maturação” da existência, como um “assalto" da existêncía não-histórica - por assim dizer, um assalto da “existência em nunc slans”. Como se sabe, a vivência da dcspersonalização está clinicamente muito próxima da vivência do déjà vu. Quer nos parecer notável no entanto, que a despersonalização também represente, do ponto de vista exixtencial - analítico, uma correlação com o déjà vu; pois enquanto o djéâ vu, como se dcmonstrou há pouco, é o mesmo que uma perturbação do vivcr do ser-agora, na despersonalização é perturbada a vivência de ser-no mundo: na despersonalização eu vivo assim como seu eu não estivesse “no mundo" ou como se não fosse o meu eu que “é" no mundo. Aqui, no caso da despersonalização, não é, portapto, perturbada a comp'recnsão categorial da estrutura do tcmpo - de modo que as “estases” do tempo (Heídegger) são misturadas - mas é perturbada a articulação espacial: a cstruturaçâo do mundo (não, porém, em um agora e um antes) em um aqui e em um aí - em um eu e em um não-eu. Resumindo: o bios pressupõe a physis, a psyche prcssupõe a soma e o espirituaL 0 mentaL O ser constítuído por camadas eventualmente maís elevadas semprc pressupõe, portanto, um ser constituído por camadas mais baixas. l. “Pressupor alguma coisa” não sígniñca, porém, “compor-sc r de alguma coisa". Nesta ordem de ide'ias, pode dízer-se do homem, na medida em que ncle o espírito pressupõe uma alma e uma alma pressupõe um corpo, que, de modo algum ele, se compõe de corpo, alma e espírito, mas, pelo contrário, representa uma unidade, uma totalidade corpo-alma-espírito. ll. “Pressupor alguma coisa", “ter alguma coisa por pressuposto“ signiñca o mesmo que “ser condícionado por alguma coisa". “Ser condicionado” não signiñca. no entanto, nem “ser acionado" ou "ser detcrminado". Na medida em que o homem é condícionado como unidade c totalidade corpo-alma-espíríto, isto exprime, portanto, que elc é condicionado pelo psicofísico “de baixo para cima”; ele é acionado e determinado pelo espírito “de cima para baixo”.

O HOM EM INCONDICIONADO

lSS

Vimos, em primeiro lugar. na discussão do problcma corpoalma, em que medida o homem não é acionado no dcvir, qua existentia pelo psicofísico; na discussão do problema do livre arbítrio mostraremos, em segundo lugar, em que medida ele não é dcterminado pelo psicoñsíco no modo de ser, na essência, quoad essentiam Ad. l. Na discussão do problema corpo-a|ma rcvelou-se que o homem é apenas condicionado, mas não constituído, apenas possibílitado, mas não criado pelo psicoñsico. A cxistência é “dada de presente” a alguém, como diz Jaspers. e isto a partir da transcendência. Ad. Il. Na discussão do problema do livre arbítrio, foi demostrado que o homem nao' é determinado pelo psicoñsico para um db terminado scr-assim, mas ele próprio tem o poder de se determínar. Essa autodeterminação. todavia. tem sempre presentc o mun'do subjetivo do sentido e do valor, do Iogos e do ethos. Em suma: a pessoa espiritual é acionada pcla transcendência, isto é, pelo “supersentido”, por um absoluto e, com ceneza. pelo mundo objetivo do sentido, isto e', por um mundo signíñcativo, objetivo. Em outras palavras. como disse Hegelc O “espírito subjetivo” é acionado pelo “espírito absoluto" e determinado pelo “espírito objez tivo". IV. O Problema do Livre Arbitrio Nossa autocompreensão nos dizz somos livres. 5° Esta compreensão, a evidência deste fato primitivo da nossa liberdadc, pode, todavia, ser facilmente obscurecida. A psicologia, por exemplo, é capaz de ofuscá-la:.a psicologia, pelo menos na sua expressão como cíência naturaL desconhec_c qualquer liberdade, não a podc conhecer - tampouco a ñsiología seria capaz de reconhecer ou ver algo como o Iivre arbítrio. A psicoñsiologia termina aquém do lívre arbítrio - exatamente como a teologia começa além do livre arbítrio, onde uma providência divina se coloca acima da liberdade humana. O fenômeno primitivo do livre arbítrio pertence portanto, completamente, ao domínio de uma metapsicoñsica. O investigador das ciências naturais só pode ser,

50 Essa autocompreensão existe antes de toda a autwobsewação retrospecu'va. e masmo antes de toda a psicologia imrospectiva. A partir do momemo cm que me observo não posso ver mais liberdade alguma. deve-me pareccr tudo dcterminado em mun'; mas o que cu. cntão. vejo já não corrcspondc a mim mesmo

156

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

como taL sempre determinista. *' Mas quem é que pode ser qualiñcado apenas como um praticantc das ciências naturais? Mcsmo o investigador dessa árca c', além de toda a posição cientíñca, um homem, um homem global e completo, a exemplo do objeto homem de que ele sc aproxima cientiñcamentee que é mais do que a ciência natural é capaz de ver nele. A ciência natural enxerga somente o organismo psicofísico, mas não a pessoa espírituaL Por conseguinte, não conseguc também pôr a descoberto aquela autonomia espiritual -do homem que lhe é peculiar, não obstante a dependência psicofísica. Da “autonomia apesar da dependência“ (N. Hartmann), a ciência natural (e também a psicologia natual) vê apenas o aspecto da dependência. Vê apenas as necessidades. Mas o homem, como tal, está semprc além das necessidades posto que aquém das possibilidadcs. O homem é, essenc1'almente, um ser que transcende as necessidades; raramente alguma coisa transpõe as possibilidades de um homem, mas este transpoe~ scmpre as neccssidades. Ele “é” com certeza somente em relação às necessídadcs, mas num rclacionamento livre com clas. Necessidade e liberdade não estão. de nenhum modo, em um mesmo plano. Na camada em que se encontra a dependêncía do homem nunca se observa a sua autonomia. Na mcdida em que considerarmos o problema do Iivre arbítrío, não podemos, portanto, admitir uma contaminação das camadas do ser. Onde, porém, não há qua|quer contaminação das camadas do ser, também não pode haver qualquer compromisso na mancira de ver. Assím, também não é admissível qualquer compromisso entre determinismo e indetcrminis-

5l 0 que sucede quando o dclerminismo. ligado complelamentc ao materialismo. se arrisca a cmitir opiniões sobre o homem. sobre o seu ser espiritual c sobre o seu ser livrc. demonslra-o a passagem seguinte das Richllinien einer Philosophie der Medízin. dc A. W. Kneucker (Viena. I949): “Se se pensar. por exemplo. o quanlo as glândulas sexuais dominam a vontade do homcm. lorna~se claro que não sc pode falar de livre nrbílrio. Uma prova da justeza dessa idéía é fornecida pelo exame do rcsullado da caslraçãoz os indivíduos aos quais se cxtirpam as glândulas sexuais lornam-se abúlicos, pelo mcnos no que langc às cmoções sexuais“ (p. 31). “Do ponto de vista médico não pode hçver l_ivre arbítrio. pois ncnhum indivíduo é capaz de sc livrar da innuêncía dos hormôníos.“ 0 aulor chega a falar cm “dikmt" das glândulas sexuais (p. 89). Tal fatalismo lcva-o ñnalmente a declarar: “o conhecido aforismoz tcus hormônios - tcu destic no. c'. sem du'vida. pcrfeitamente jusu'ñcado" (p. 32). Que este fatalísmo, cm sua cssên~ cia, não loma em consideraçào o elhos não nos dcvc causar admiraçãoz “quanlo mais ativas são as glândulas. majs passivas são. geralmentc. as idéias morais" (p. 84). Na realidade. uma “idéia mora|" ou, para melhor dizer. um propósito só começa verda~ dciramcmc quando um homem é senhor da “ativ¡dade" das suas “glãndulas“, isto é, quando Ihe opõc a atividade do seu espírito, qucr dizcr. quando reage como pessoa espirilual a um fakzum psicoñsico (que nunca representa um falum).

0 HOM EM INCONDICIONADO

IS7

mo. Não se pode ser um pouco determinista e indeterminista ao mesmo tcmpo. lsso seria assim como alguém que quisesse ser um pouco teísta e um pouco ateísta simultaneamente. Apesar dc tudo, procura~ se sempre trazer o dcterminismo e o indeterminismo para um mcsmo plano, numa aparente conc1'liaçãó. No entanto, a aparente reconciliação gratuita entre determinismo e indeterminismo não corresponde a qualquer pensamento intcgral; é uma má integração - a isto chama-se somar, mas não integran ” Necessidade e liberdade não ñcam em um mesmo plano, ao contra'rio, a liberdade ultrapassa e sobrepõe~se à necessidade. Já encontramos este fato quando dissemos que o nexo causaL no ser dominado pela lei da causal¡'dade, não e', de modo algum, rompido ou dastruído pelo sentido que intervém “de cima“. O domínio da necessidade é mesmo pressuposlo pelo domínio da liberdadc - Iiberta supponit necessilalem No entanto, novamente resulta que pressupostos podem apenas condicionar, mas não determinan Dissemos que o psicofísico só condiciona o espírito humano. não o determinando nem o realizando. N_unca añrmamos, contudo, que o homem seja apenas espírito, nem contestamos que ele tenha um psychophysicum Muito menos nos opomos a que ele tenha instíntos. 0 homem tem instintos - do ponto de vista ôntico - e dcve também tê-los - do ponto de vista ético. Não ncgamos, dc ncnhum modo, os instimos do homem; o que negamos é a instintividade do homem. O que negamos é que o homem seja movido pelos instintos. Ele os “tem” mas não é movido por eles. O homem tem instintos, mas estes não o têm. Ele faz alguma coisa por instinto, mas o instinto não o_plasma. Não negamos, de modo algum, a vida instintiva, o mundo dos instintos do homem. Assim como não negamos o mundo exterior. não negamos o mundo interior; não somos solipsistas nem em relação ao mundo circundante, ncm solipsistas, no sentido ñgurado, com rclação ao mundo interion O que, todavia, accmuamos é o fato de que o homem, como ser espirituaL não só se encontra colocado em face do mundo - interior e exlerior - mas também toma posição em relação a ele; podc, de qualquer modo, sempre, “tomar posicão”. “comp_ortar-se” perante o mundo, e este comportar-se é propriamenle livre. O homem, em cada momento da sua existência, toma posíÇão tanto perante o ambiente natural e social, pcrantc 0 meio exteri0r, como perante o mundo interior vital psicoñsico, o meio interior.

52 A inlegracão dos fcnômcnos que estão em planos ômicos difercntes não pode cfeluar-se em planos ônticos. mas som'cnte no contexto dc uma omologia.

.

~..

«.-A_.›

_..

158

I í

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPÍA

Não negamos, portanto, os instintos em si, e isto é válido não só do ponto de vista ôntico como do ético: onde é oportuno. o homem deve e pode añrmar os scus instintos; mas eu não posso, porém, añrmar alguma coisa scm que tenha tido antes libcrdade, mesmo para ncgar. E tudo depende desta liberdadc. Importa. para afirmar os instintos. não negar a liberdade perante eles. Importa añrmar os instintos mas não añrmá-10s à custa da ll'berdade, mas semprc no cõntexto, c em nome da liberdade. lmporta añrmar os instíntos sem nos entregarmos a eles ou abandoná-los. A añrmação dos instintos não está em contradição à liberdade. mas tem a liberdadc como pressuposto de negação. Liberdade e', essencialmente, libcrdade perame alguma coisa: “liberdade de" alguma coisa - e “liberdade para” alguma coisa (poís também, na medida em que eu não me deixo detcrminar por instimos, mas por va|ores. tenho a liberdade de dizer “não” às exigências éticas: eu apcnas me deixo determinar). A realidade psicológica nos revela, portanto, que os “instintos em s¡" nunca aparecem no homem. Os instintos estão sempre já añrmados ou ncgados. sempre. de qualquer modo, já formados; os instintos irrompidos do psicoñsico cstão sempre já assimilados pela pessoa, sempre integrados por ela. O id (instintividade) e_' sempre o id de um “eu” e este “eu“ não é joguete dos instintos (também não é um joguete dos “instintos do eu"). 0 “eu" não é uma simples resultantc dc componcntcs do “instinto" que tivésscmos imaginado como uma espec'ie de um paralelograma dc forças. Pclo contrán'o, o “eu" tem, desde o princípio, e em todos os casos, o poder de decisão. Este poder do eu em relação ao id não pode ser, por outro lado, derivado de l'nstinu'vidadc. Sobre isso já manifestamos nossa opinião várias vezes em outras ocasiões. Certa vez, com referência a esse ponto, indicamos que o poder apriorístico do eu em relação às “forças” do id podia ser comprcendido como o poder de um juiz velho e alquebrado que condena um réu'atlélico. Quem puser em dúvida esse poder do juiz confunde, a nosso ver, o poder judicial com o poder ñsico. Quem se espanta de que o eu possua a capacidade incondicional de dizer não aos instintos confunde duas coisas que se encontram em planos diferentes. ” 53 Martin Buber viu isto com muita clarcza no seu livro Das Problem des Menschen (Hcidelberg. l948, p. |38). no qual adverte contra “um cquívoco entre poder e força". e d1'su'ngue. exatamcnte, enlre "forças". por um lado. e “a capacidade de pôr forças cm movimento". por outro : esta última capacidade. de “poder pôr em movimento". csses podcres dc forças. o esplrito tem. Buber fala também (p. l42) expressamentc de um “domínio incondicionado" do cspírito. bem co'mo de um “pacto primitivo” que assegura a este último a predomináncia irrefutável e que os instimos cumprem, em alguns casos com raiva. na maioria com serenidade.

o O HOMEM lNCONDlClONADO

159

Na prátíca, o homcm freqüentcmentc não é livre; facultativamentc, ele é. e permanccc, livrc. Scmprc que parccc não scr livre. é porque renunciou livremcntc à sua liberdade. Quando o homcm se comporta como se fossc conduzido, ê porquc sc dcixa conduzir. Podc muito bem entregar-se aos seus instintos. mas mcsmo csta cntrega é de sua rcsponsabilídade. O homcm tem, por conscguintc, a liberdadc cm qualquer caso; não a tcm só para scr livrc. mas também. no masmo grau. para não ser livre. Tcm a libcrdade dc clcvar-se a um possível ser Iivre ou, da mesma maneira. deixar-se cair num possívcl ser conduzid0. A sua não-liberdade inclui-sc na sua libcrdadc. assím como a sua impotência na sua força. Sc existc “humor involuntário", exíste também “sabedoria involuntária". conformc se dcprecnde da seguinte frase de uma de minhas pacicntcs: “Eu sou livrc quando quero, e quando não quero. não sou livre”. O homem tem liberdadc em todos os casos; só que na maioria das vezes desiste dela, voluntariamente. É que nem scmprc tem consciência da Iiberdade, mas pode tomar consciência dela. Este é o alvo da análise cxistcnciaL como análise da cxistência n_o scntido da |iberdade e da responsabilidade; e apelar para a liberdade, tornada cntão consciente, é a missão do apcrfeiçoamento psiCoterapôutico da análise existcncial que a logoterapia apresema. Poderíamos ajnda dizer o seguintc sobre a liberdade do espiritualz já por dcñníça'o, espiritual é apenas a partc livrc do homcm. Chamamos de “pcssoa" a priori, geralmente, só ao que se comporta como ser livre. A pessoa espiritual é, no homcm, o que se pode opor sempre e em qualquer tempo a cada posição, não só exterior como interior. “Posição interior" é, todavia, justamcnte a que se identiñca ' como “dis-posição” (com isso, designa-se, de passagem, algo de cquivalente ao “carátcr”). 0 espiritual nunca se absorvc numa situação; ao contrário, cstá sempre apto para “desistir”, renunciar, ganhar distância, alheiar-sc da situação. Somente a partir dessa distância tem o espiritual liberdade. e somente a'partir dessa liberdade espiritual pode o homem decidir-se a favor ou contra uma posição, a favor ou contra uma dispos¡ção. um traço de caráter ou uma tendéncia instintiva. Em poucas palavrasz somente a partir dessa liberdade espirituaL pode o homcm añrmar ou negar o instinto, conforme o caso. Na medida em que o homem. graças à sua liberdade cspiritual, não precisa deixar-se absorver por qualquer situação. mas, pelo contrário. pode estar sempre “acima da situação", só sc de_ixará absorver voluntariamente, com o ñm de coIocar-se, de empenhar-se - no caso de uma “añrmação” da situação - eventualmente de ir ter com a situação.

160

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

À capacidade do homem de estar acima das coisas pertence também a possibilidadc que ele tem de cstar acima de si próprio. Deve~ mos distinguir então entre o eu que está acima de alguma coisa c o “eu” acima do qual está o homem. O eu mencionado em pn'meiro lugar é idêntico, scm dúvida. à peszoa cspirituaL Entretanto, o “eu” mencionado em segundo Iugar não é mais eo ipso a própria pessoa; csse “eu” não é mais alguma coisa que eu “sou", mas somente algo que eu “tenho” - tenho em freme de mim. Em palavras: esse “eu” não se situa mais na rcalidade consumada da auto-realização espirituaL csse “eu", como meu oposto, é transcendido por mim mcsmo, esse “eu” já é o id. Talvcz o id não seja no fundo, inclusive no sentido da psicanálise. mais do que um “eu" vencido no decorrer do tempo. Este pensamento, singularmente válido, foi manifestado, tanto quanto sabemos, pela primeira vez, por Berzez o id seria, a seu ver, propriameme o “ant¡go eu". De fato, as decisões do eu tomam-se no decurso do seu desenvolvimento atitudes permanentes do id. sedimentando~se portanto. Pode-se então dízer: a decisão de hoje é o instinto de amanhã. O id seria então o “eu" já dcsativado - uma tese que poderia conduzir a outra: o superego é o que ainda não foi realizado, é o eu ainda a sc realizar. Resumindoz o id é o quc não é mais “eu" - o superego é o que ainda não é eu. Resulta daí que, momentaneamente, na medida em que só falamos sobrc ele, deixamos que o cu se converta num id. Ele imediatamentc se ñxa e se torna objeto de uma hípótcse. A frase de Schillerz “a alma fala, ai. a alma já não fala maís” pode portanto ser assim modíñcadaz “falamos do eu e desde logo não estamos falando mais do verdadeiro eu". lsto é espccialmente signiñcativo em relação ao que chamamos de fatalismo neurótico: sempre que o neurótico fala da sua pessoa. do scu modo de ser pessoaL tende para a hípótese e age como se a sua maneira de ser não pudesse se diferente. Na medida em que ele veriñca em si um traço de caráter qualquer, tal vcríñcação torna-se para cle, automalicamente. uma ñxação. Ele não diz a si mcsmoz “até aqui era assim, comportei~me assim“; pelo contrário, ele se ñxa na idéia, pensa quc, já que foi assim uma vcz, não pode, por isso, ser de outra maneira. Esquece que não precisamos gostar de tudo o que somos. Há munto já foi pronunciada a epígrafc para aquilo que se enconlra em face do homem. isto é, o cara'ter. Aquilo no homem com que a pessoa espiritual é confrontada é o caráter psíquico. A pessoa é livre, o caráter. no cntanto. não é livrc em si, pelo contra'río, é exatamente aquilo frente ao qual a pessoa é livre. Isto resulta da circuns~ tância de que a pessoa é espirituaL enquanto o caráter representa alguma coisa de psíquico, e, como sabemos, corresponde c provém da

O HOM EM INCONDICIONADO

|6|

predisposicão hereditária. O que um homem reccbeu. no decorrer da vída, como herança psíquica, forma o seu caráter, reprcsentando, por ussim dizer. o genótipo psíquico; o que o homem faz das suas disposicõcs. o que ele. a partir delas. forma corrcsponderia portanto ao l'eno'tipo.. A entidade responsável por esta formação é a pessoa espiriluuL Assim. podemos dízerz o caráter é cr.iado. a pessoa é criativa. Enquanto falamos da maneira de ser de um homem. e com isso pensumos somentc no seu caráter. isto é, nas suas predisposições hcreditárius da alma para além de todas as formas já realizadas ou de lodus us futuras possíbilidades de forma, estamos no direilo dc falar em deslinoz do mesmo modo. estamos no díreito de aceitar o que Szondi pretende com a sua análise do destin_o. Logo que comecamos. cntrelunlo. u ver no homem não só essa maneira de ser mas também o seu poder ser outro, perde todo o díreito o palavreado acerca do dcslino. . Rohrucher disse: “Ta| como o químico pode predizer o que uconlece quando duas substâncias são postas em contato, também a c.1'r.1'cterologia. se liver em sua presenca um caso investigado com cxatidão. poderi_a predizer o que aconteccria se este homcm caísse numa determinada situação. “ Somente não se pode prever que ele... venha a cuír nessa situação". No entanto, apresenta-se à meme do autor não só uma longa série de situacões que todo homem pode esperar encontrar, mas também a invcstigação do caráter pode levar isso em conta e, dessa forma, transformar-se em uma investigação do destino. 55 Parece-nos, no cmunlo. quc. em todos esses cálculos. a coma foi feíta sem considerar o dono da casa. Esse “dono da casa“ nada mais é senão a pessoa cspiritual do homem. em estrita oposição ao seu caráter psíquico. Essu pessoa espiritual é em sua cssência, incalculáveL Posso, evenluulmente. no máximo, saber como um homem, a partir das suas disposições de curáler, se comportaria numa determinada situaçã0. Todavia. nuncu poderei prever ou predizer como depois se comportará dc fulo. porque, em última análise, o homem não se comporta. em virtude do “seu caráter", mas pelo contrário, sua pessoa toma posicão freme a ludo e a cada um, e. dessa forma, portanto também ao seu próprio caráter. O que dissemos se torna claríssimo se rccorrermos à fórmula simples e. no entanto. tão exata, de Allersz “0 homem “tem" um caráter. mas ele “e'" uma pessoa". Podemos ainda acrescentarz como

54 Klvinc ('haraAIerAunde. Viena. l948. 55 Locul ciludo. p. 232.

162

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSlCOTERAPIA

0 HOMEM INCONDICIONA DO

pessoa que ele é, o homem tem caráter, c tem Iíberdade em face dessc carátcr. A disposição de caráter não é, por conseguinte, em caso algum, decisiva; dccisiva, em último lugar, é, pelo contrário, sempre, a tomada de posição da pcssoa. “Em última instância” decide, portamo, a pessoa (cspiritual) sobre o caráter (psíquico) e, neste sentido, podemos dizcr: em último lugar decide o homem sobre si mcsmo. (Que ele não faça sempre ísso efetívamente, mas só facultat1'vamente, não modiñca a validade de princípio desta asscrção). O homem'tem, portanto, liberdade não só em relação às inñuências do seu mundo ambienle, como também em rclação ao seu próprio caráter. Em certo s'entido, tudo se passa de modo que a liberdade perante o ambiente se fundc com a liberdade perante o caráter, especiñcamente, na medida em que a menor inñzwncíabilidade do Iado do ambiente representa uma qualidade de carátcr, e o problema do homem em relação às influências do ambientc, decorre. em u'ltima análise, do modo como ele se coloca em face da influenciabilidade. Assim, o próprio caráter depende de que o homem scja livrc como pessoa, ou, pelo menos, p_ossa ser livrc. Assim, como cada “de que" da Iiberdade exíge um “para que”, assim também, a “liberdadc do” caráter. A Iiberdade da pessoa é, portanto, não só uma libcrdade de caráter como também uma liberdade para a personalidade. Ela é liberdade da própria facticidadc c líberdade para a própria exístência. Ela é liberdade do “ser assim" e líbcrdade para “se tomar outro". Esse tornar-se outro é sempre orientado para um mundo objetivo de sentidos e de valorcs, como já disscmos em outra ocasião; essa orjentação para o sentido dc toda auto-estruturação faz que a verdadcira personalidade não possa ser conccbida senão marcada pelos sentidos e pelos valores. 5° A minha libcrdade de ser assim cu a aprcendo na auto-reflexão; a minha Iiberdade de tornarome outro, eu a compreendo na autodeterminação. A auto-refíexão rcsulta do ímperativo délñco “conhecete a ti mesmo”; a auto determinação se dcsenvolve conforme a fórmula de Píndaro: “Torna-te o que tu és!” lntercalemos aqui uma curta nota psicoterapêuticaz o que a análise existencial pretende, em última instância, é csta auto-reflexão do

|63

homem sobre a sua liberdade e o que a Iogoterapia, também, em u'ltima análise; quer é esta aulodeterminação do homem baseado na sua responsabilidade e em relacão ao segundo plano do mundo dos scntidos _e dos valores. isto é. do “Iogos" e do “elhos". Com este duplo ñm. toda a psicoterapia deve contrariar a tendência típica do neurólico. para estagnar. na forma que lhe é particular, o seu caráter. a sua facticidade, o seu ser-assim. Ouvimos constantemente co_mo os nossos doentes sc referem ao seu caráler; mas o caráter a que eu me reñro torna-se. no mcsmo momcnto, um bode expiatórioz no momento em que falo dele. já estou a me dcsculpar dele. Nãosó do caráterz a rígor não posso nunca falar da pessoa sem me desculpar a ela própría. Mesmo à própria pessoa - logo que eu falo dela como da “minha" pcssoa (como se eu “tivesse" uma e, pelo contrário. não “fosse" pessoa) retiro, exatamente por isso. o seu próprio ser. islo é. a sua realidade de execução (só na qual cla pode “propriameme" ser). Falar da pessoa faz dela imediatamente um id. Do que se conclui que nós nunca podemos falar, de forma inteiramente válida, “dc" uma essência do modo pessoal do ser, mas, propríamenle. só "para"'cle. ” De resto. o homem neuró1íc0, não só se desculpa do seu caráter individuaL do id. mas também de alguma coisa supra-individual. um coletivo existente nele mesmo - ao “sc” ("Man") ativo nele e através delc (para nos servimos desta expressão dc Heidegger). Por conseguinte. pode ser não somente necessário, do ponto dc vísta psícotcrapêutico, contrariar 0 fatalismo neurótico indivídual, cm cada caso, mas também, não raras vezes. atuar do ponto de vista de uma psico-higiene coletiva. Ncste sentido, vale notar quc, nos tempo atuais, por toda parte, o homem tem tendência para se reportar ao ser-assim de qualquer grupo (classe ou raça) a que pertence. Esta aparente autojustiñcação lhe é facílitada porquc lhe é constantcmente mostrado o quanto elc é dcpendentc de qualquer coletividade e 0 quanto ele também, do ponto dc vista espirituaL cstá sujcito à sua influência. Desejamos demonstrar com um exemplo os perigos que su_rgem quundo sc mostra ao homem o seu ser-assim coletivo em vez de sç moslrar a ele o seu “poder ser outro" individuaL Como é sabido, o biólogo americano Kinsey publicou um relato estatístico no qual se ussinala como a moral sexual depende da eventual camada social a quie o indivíduo pertence e como é diminuta a minoria que de fato se mcntém ñel à moral sexual dominante. Entrc outras coisas, resultou que a maioria dos maridos é inñel à esposa. O que é lamenlável é que

56 "Scr oricmado para..." e “ser marcado por" dcvem fazcr acentuar que lodas estas aulo-cstru¡uras não rcprcscntam nenhum unívoco ser-dcterminado - nem mcsmo “de cima para baixo“. pois assim como o espírito sc “deíxa" impulsionar pelos instintos. assim também é válido añrmar que cle se deixa determinar pelos valores. A pessoa aspiriluaL o espírito subjclivo. lem liberdade não só “do" organismo psicoñsico c “para" o espírito objeu'vo, mas também pemnle o espírito objetivo. *

r

57 FrankL Zeil und Veramwonung, Deulicke. Vlem, l947. p. 42.

FUNDAMENTOS ANTROPOLÔGICOS DA PSICOTERAPIA

o “Relatório Kinsey" tenha virado best seller, pois não é lícito que todas as verdadcs dcvam ser publicadas. Se" eu, como médico. meço a pressão arterial de um doente e a encontro ligeiramente alta e depois Ihe digo somente a verdade, concluo que eu não lhe devo dizer de modo algum a “vcrdade", porque, no mesmo momento, eleva-se a sua pressão arterial (efeilo da excitação). Se, todavia. faço crer ao paciente que a sua pressão arterial está normaL então não lhe digo uma não-verdade. já que esta comunicação tranquilizante realmente Ihe normalizou a pressão arterial (l¡geiramcnte elevada pela “angústia da expectaliva“). Se, añrmo, agora, aos homens que a maioria dos maridos trai a mulher, a maioria destcs homens não dirá certamente a si mcsmaz “exatamente por isso devo comportar-me bem c ap'oiar a m¡noria dos sérios”. mas. pelo contrári0, o homem médio dirá: “não sou melhor do que a média". Resumindo: a comunicação da verdadc estalística falseia eo ipso esta verdadc - assim como a observação de um elétron. segundo Heisenberg. influêncía sempre sua posição. Observar signiñca. scmpre, simultaneamente também influênciar, quer queiramos ou não, sobretudo a comunicação de um resultado de Observação é sempre alguma coisa que pesa no prato da balança da dccisão. _ Ouvimos contantemcnle um doente dizcrz “cu sou assim” e com isto ele quer dizer - logo não poderia ser também, absolutamente, de outra maneira. Na real1'dade. todavia, ísto também signiñca: cu posso ser scmpre também diferente - logo não sou de uma maneira qualquer!" Eu sou - ou melhorz o eu nunca é factuaL mas facultativo. O ser aí não se esgota em um qualqucr ser-assim A existência “é em" sha faclicidade, mas não se esgota na sua própria facticidade. Ela “ex-iste“ c isto quer dizer que ela está sempre tam_bém além - para fora -' da sua própria factic1'dadc. Nisto reside ñnalmente também o cunho dialético particular do ser humanoz estes dois momcntos, com suas exígências mútuasz “existência-facticidade" e 0 ser dirigido um ao outro dcstes dois momentos. Estão os dois sempre entrclaçados um com o outro e, por isso. separáveis só pela força. Mitscherlich fala da “pcrsonalídade u u que alguém simultaneamente tem e é”, e Plesner diz do homem que ele tem existência e, ao mesmo lcmpo. é existência, e que o ser-no mundo representa para o homem uma rclação “entre si e si (para dizer mais exatamentez cntre ele e si)“. Quem exprcssou isto da foNrma mais bcla foi o poeta Dekmel ao escrever: “pairamos sobre a vida à qual estamos colados”. Em relação a estas unidade e totalidade dialéticas que estão Iigadas à facticidade psicofísica e à existência espiritual do ser aí humano, rcvela-se pela u'ltima vez o que já vimos rcpetidamentez que a separação nítida entre o espiritual e o psicofísico só pode ser fcita heu-

O HOMEM lNCONDlCIONADO

165

risticumeme. Mas não o pode ser. cntão. por outra Jazão? ch. ela deve ser uma simples parlicularidade hcurística, já que o espírito não ú .s'uh.vlância, mas puro movimento. Ouvimos antes que elc sc pode caracterizur como o que se opõe. como o que se coloca "contra". Como tuL o que é espírito não pode nunca ser substância no sentido tradicionuL chresenta. pelo comrário. uma entidadc ontológica, e dc uma enlidade ontológica nunca sc poderia falar como de uma realidade óntica, islo é. de subslância no senlido tradicionaL E também porque falamos do “espíritual“ scmprc, somente. nesta forma de expressão pseudo-substativa ou adjetiva substantivada e - aparentemente por instimo - evitamos 0 substanlivo “espírito": com um substuntivo só se pode designar uma substância. E é assim que o traçado nítído de fronteiras cntre o espiritual e o psicofísico se torna neccssário símplesmentc porque o espiritual e', em esséncia. o que se delimita a si mesmo, o queÀ se distingue a si mesmo o que se distingue. como existência (da facticidade) e como pessoa (do curátcr). a exemplo de uma ñgura que se dcstaca do fundo. É certo que não há no homem um sem o outro. No homem não há por exemplo instinto sem libcrdade nem liberdade scm instinto. Pelo contrário. como já nos foi demonstrado, toda a instintivídade tem passudo. sempre, como que através de um zona de líb_crdade antes de se ler manifestado, e, por outro lado, a Iiberdade humana precisu du instintividade, por assim dizcr. como base sobre a qual deve assentar - evidcntemente, ao mesmo tempo - também uma base sobre u qual possa erguer-sc. da qual sc possa lançar. lnslínto e libcrdude estão um para o outro numa relacao correlativa. Esta correlação e', no entanto, essencialmente díferente da que existe cmrc mvche e phy.w's. Em contraste com o paralelismo psicoñsico obrigalório há. na verdade, alguma coisa que podíamos designar como o anlagonismo facultativo psiconoético. Esze antagonismo corresponde. por inteiro. à capacidade do homem de se distanciar do psicofísico. Em vez de se identiñcar com os instintos, 0 homem dislanciu-se deles - embora possa, de tal distância, também. dizer-lhes sim. Finulmente. isto forma o que há de humano no homemz que o lmmem pode distanciar-se dos instinlos e não se deve idenlfll'car com vlos - o que o animal de modo nenhum pode fazer; o animal não pode. exutumente~ identiñcar-se com os seus instintos, porque ele já é, por assim dizer, idênlico a eles. O animal não “tem” instintos, ele "é" os seus instíntos. O animal não conhece. por consegu1'nte, nenhum unlugonismo. vivc semprc somente em paralelismo psicofísico - sempre somenle do psicoñsico unitário. O homem, porém, só comeca justamentc a ser homem quando é capaz de se opor ao seu próprio psicofísico.

,- - e.+. .

164

l64

ll

lx l; 5

í



l ›'

FUNDAM ENTOS ANTROPOLÓGÍCOS DA PSICOTERAPIA

o “Relatório Kinsey" tenha virado best seller, pois não é lícito que lodas as verdades devam ser publicadas. Se" eu, como médico, meço a pressão artcrial de um doentc e a encontro ligeiramente alta e depois lhe digo somente a vcrdade, concluo que eu não Ihe devo dizer de modo algum a “verdade", porque, no mesmo momento, eleva-sc a sua pressão arterial (efcito da excitação). Se, tvodavia. faço crer ao paciemc que a sua pressão arterial está normal, cntão não lhe digo uma não-verdade. já que csta comunicação tranquilizante realmente lhe normalizou a pressão artcrial (ligeiramente elevada pela “angústia da expectativa“). Se. añrmo, agora. aos homens que a maioria dos maridos trai a mulher, a maioria destes homens não dirá certamente a si mesmaz “exatamente por isso devo comportar-me bem e ap'oiar a mi~ noria dos sérios", mas. pelo contrário, o homem médio dirát “não sou mclhor do que a média". Resumíndoz a comunicação da verdade estalística falseia eo ipso csta verdade - assim como a observacão de um elétron, segundo H cisenberg. influência sempre sua posíção. Observar signiñca. sempre, simultaneamente também influênciar, quer queiramos ou não, sobretudo a comunicação de um resultado de observação é semprc alguma coisa que pesa no prato da balança da decisão. Ouvimos contantemente um doente dizer: “eu 'sou assim" e com isto ele quer dizer - logo não poderia ser também, absolutamente, dc outra mancira. Na realidade, todavia, isto também signiñcaz eu posso ser sempre também diferente - logo não sou de uma maneira qualquer!“ Eu sou - ou melhor: 0 eu nunca é factuaL mas facultativo. O ser aí não se esgota em um qualquer ser-assim. A existência “é em” sha facticidade, mas não se esgota na sua própria facticidade. Ela “ex-iste“ e isto quer dizer que ela está sempre tam_bém além - para fora -' da sua própria facticidade. Nisto reside ñnalmente também o cunho dialético particular do ser humanoz estes doís momentos, com suas cxigências mútuas: “existência-facticidade" e o ser dirigido um ao outro destes doís momcnlos. Estão os doís sempre entrelaçados um com o outro e, por isso. separáveis só pela força. Mitscherlich fala da “personalidade” “quc alguém simultaneamente tem e é“, e Plesner diz do homem que elc tem existência e. ao mesmo lempo, é existência, c que o ser-no mundo representa para o homem uma relação "entre si e si (para dizer mais exatamentec entrc ele e si)". Quem expressou isto da forma mais bela foi o poeta Dekmcl ao cscrever: “pairamos sobre a vida à qual cstamos colados". Em relação a cstas unidadc e lolalidade dialélicas que estão lígadas à facticidade psicofísica e à existência espiritual do ser aí humano, reveIa-se pela última vez 0 que já vimos repetidamcntez que a separação nítida entre o espiritual e o psicofísico só pode ser feita heu-

0 HOMEM lNCONDlClONADO

|65

rislicumenle. Mas não o pode ser, então, por outra .razão? Bem, ela deve ser uma simples particularidade heurística. já que o espírilo não é subslâncim mas puro movimemo. Ouvimos antes quc elc se pode caructerizar como o que se opõe, como o que se caloca "conlra". Como laL o que é espírito não pode nunca ser substâncía no sentido tradi~ cionaL chresenta, pclo contrário. uma entídade ontológica. e de uma enlidade ontológica nunca sc poderia falar como de uma rcalidade óntica. isto é. de substância no sentído tradicíonaL E também porque falamos do “espiritual" scmprc, somente, nesta forma de expressâo pseudo-substativa ou adjetiva substantívada e - aparentcmcnte por instinto - evitamos o substantivo “espírito": com um subsluntivo só se pode designar uma substância. E é assím que 0 traçado nítido de fronteiras cntre o espiritual e o psicofísico se torna neccssárío simplesmente porque o espiritual é, cm essência, o que se delimita a si mesmo, o que' se distingue a si mesmo o que se distingue, como existéncia (da facticídade) e como pessoa (da carátcr). a exemplo de uma ñgura que se destaca do fundo. É certo que não há no homem um sem 0 outro. No homem não há por exemplo instinto sem liberdade nem libcrdade sem instinto. Pelo contrário, como já nos foí demonstrado, toda a instintivídade tem passado, sempre, como que através de um zona de líberdade antes de se ter manifestado. e, por outro lado, a liberdade humana prccisa da instintividade. por assim dizer. como base sobre a qual dcvc ussentar - ev1'dentementc, ao mesmo tempo - também uma base sobre a qual possa erguer-se. da qual sc possa lançar. lnstinto c liberdade eslão um para o outro numa relaçao correlativa. Esta correlação é. no entanto, essencialmente diferente da que exisle entre pxyche e ph_vsis. Em contrastc com o paralelismo psícofísico obrigatório há. na verdade, alguma coisa que podíamos designar como o antagonismo facultativo psiconoético. Este antagonismo corresponde. por inteiro, à capacidade do homem de se distanciar do psicofísico. Em vez de se idcntiñcar com os inslintos, o homem dislancia-se deles - embora possa, de tal distância, também. dizer-lhes sim. Finalmente, isto forma 0 que há de humano no homemz que o homem pode dislanciar-se dos instintos e não se deve I'denlfll'car com cles - o que o animal de modo nenhum pode fazer; o animal não pode. exalamenle. identiñcar-se com os seus instintos. porque ele já é, por assim dizer. idêntico a cles. O animal não “tem“ instintos, ele “é“ os seus instintos. O animal não conhece. por conseguinle, nenhum antagonismo. vive semprc someme em paralelismo psicoñsico - sempre somente do psicoñsico unitário. O homem. porém, só comecu justumente a ser homem quando é capaz de se opor ao seu próprio psicoñsico.

|66

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

Em vez do paralelismo psicoñsico obrigatório, como sc observa no animaL encontramos. portanto, no homem, um antagonismo psiconoético; em vez da unidade corpo-alma do animal encontramos, no homcm. a lotalidade corpo-alma-espírito. É agora claro que, segundo o ponto de vista do qual nós vemops o ser homem como único e totaL ora observamos mais a unidade-totalidade. ora mais a ligação do espiritual e do seu vis-a'-vis - 0 psicofísico. Quer nos parecer, portanto, que a orientação da análise existencial dc Binswanger acentua mais a unídade. enquanto a nossa maneira de ver analíticoexistencial sublinha mais a diversidade. Binswanger vê o ser homem, o "ser-n0-mundo“ humano, como unitário - enquanto vemos, no primciro plano - como diversidade dentro desta unidade - corpo, . alma e espírito. Então essa dístância do espíritual em face do psicofísico de que se falou acima. essa distância que fundamenta o antagonismo psiconoélico nos parcce exlraordinariamente frutífera do ponto de vista tcrupêutico; pelo menos pode tornar-se frutífcra. Justamente a logoterapiu absleve-se sempre dc utilizar o antagonismo facultatívo emre exislência cspiritual e facticidade psicofísíca. A logoterapia conta com a pcssoa espirituaL com o poder do cspírito de se colocar contra 0 psiçofísico. com esse "poder de oposição” do espírito; recorre a cssc podcr, apela para esse poder. O untagonismo noo-psíquico é, por conseqüência, de grandc rcIevánciu terapêulica. Em última análise, toda a psicotcrapia deve inserír-se nelc c, em especiaL a logoterapia; porque enquanto toda a psique - conforme o paralelismo psociñsico - no ñm de comas, rcsulla sempre, dc qualquer modo, do somátíco, qualquer tomada dc posição pessoal-espiritual sempre acontece, de qualquer mod0, em frenle do psicossomático (não é obrigatório que em tal “estar em frcnte de“ sc lrate de uma oposição). ” Somente, mercê desta possibilidade de se confrontar o espiritual do homem com o psicossomático, é permitido à logoterapia, como psicoterapia “a partir do espiritual”, confrontar, por via e com os meios do espiritual (do logos), quaisquer estados psicossomáticos. A tais situações psicossomátícas não pcrtencem, de modo nenhum, apenas os instintos. Além da instint1'vidade, seriam compreen~ didos em tais situações. pelo contrário, também fenômenos como

O HOMEM lNCONDICIONADO

167

dor, medo. tristeza e desgosto. Tudo isto é suscetívcl de manífestar~se no psicofísico, e assim a pessoa espiritual do homem pode confrontar tudo isto. Sabemos que o animal não é impelido pelos instintos, já que é idêntico a eles; impelido podc sê-Io - neste sentido - propn'a-, mente. só o homem (e exclusivamentc quando sc deixa impe|ir). Tal como o homem - e o homem - tem instíntos (sem ser idêntico a eles), também pode ter doresz ele as tem, mas ele não as “c"'. Sofrer signiñca, por conseguinte. tomar posição perante as dorcs, e ísto sígniñca sempre também estar dc algum modo “acima" das dores. Que esse “estar acima", também. pode ter uma signiñcação mor.al, já foi dis~ cutido por nós repetidamente noutro lugar. 59 A este respcito, remetemos para a palavra de Hõlderlim na qual se exprímc com muita bclcza a qualidade moral dcste “estar-acima": “Sc piso na minha infelicidade, me elevo". Que o sofrimento humano implica uma to'mada de posição espirituaL que é alguma coísa diferente da dor primitiva, do medo prímitivo, da tristeza primitiva, do desgosto primitivo, concluí-se do fato de que conhecemos da clínica algumas coisas como: desespero pela tristeza, medo do medo. desgosto por causa do desgosto ou, como rccentemente Fenz assinalouz “Dor por causa da dor". Estamos aqui em prescnça de uma tomada de posição secundária, de uma posição secundária “em relação“ a qualquer estado. e, por conseguinte, também de uma decisão espiritual “perante“ um fato psicofísico. Exatamente assim como no homem toda a instintividade já é sempre modelada por uma tomada de posição espiritual - de tal modo que este cunho espirilual é. sempre, Iigado à instintividade humana com a priori espiritual ““ - assim a lomada de posição pcssoal é, sempre. o quadro em que, no homem, pode geralmente haver algo como dor, medo, etc. Escolhamos o exemplo de um homem que é interrogado e tortu~ rad0. Quc ele. sob as dores que lhe são causadas pela tortura, grita e se encolhe, é um fenômcno que cstá completamente dc acordo com o fenômeno da tortura - “de acordo”. para não dizer em paralelismo psicofísico ou, mesmo, em identidade psicofísica. É por assim dizer função do organismo psicofísico que ele se cncolha com as dorcs e grite - ele. o organismo. Mas será obra do espírito que este homem lorturado desañe a tortura na medida em que, apesar dela, não denuncie nenhum nome mas ñque em silêncio. lsto é, o upoder de resislência“ do cspírito, e elc se estcnde. exatamente, até quando o ho-

58 chu-sc Paihologie des Ger'sles. Viktor FrankL Deutickc. Vicna. I955. p. l382 “Felizmeme o homcm não precisa usar a todo o instamc essc poder de oposição. pois do

mcsmo modo c pelo mcnos na mcsma proporção cm que sc añrma contraríamcntc às dlSpOSlCÕCS hcrdudas. ao ambicnle e aos instintos, cle o faz graças a esscs mcsmos fatorcs. uma observucão que dcvo ao Dr. Gertrud Paukner".

59Comp.. enlrc oulros. “...Apesar de tudo. dizer sim à vida"-. Vlcna. Deulicke. p.__25. 60 A espiritualidadc é própria do homem. mesmo também nos planos biológico e unulo'mico. Veju-sc Poerunn. Biologie und Ge¡s!. Zuriquc. l956.

168

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

mem, martirizado, perde inteiramente a consciência. quando desmaia. Assím como o estremecimento c o grito do torturado são, pro~ priamente, um estremecimento e um grito do organismo e não da pessoa. assim também o desmaio é um desmaio do psicofísico, c não do espírito, porq ue. em última análise, o poder de resistência do espírito revela-se através desse desmaio. lmerroguemo-nos sobre as possibilidades concretas de utilizar, terapeuticamente, aquela “deiscência" interior do homem. aquelc híatus ou aquela ñssura que há cntre o psicoñsico e a pessoa. Comecemos pelas neuroses. Existe scmpre nelas um resíduo que a psicotcrapia em sentído restrito, isto é, oposta à logoterapía, não é capaz de dissolver um núcleo inextinguích por fazer parte do destino. As neuroses que aparecem realmenle para além de todo o condicionalismo psicossomático não devem ser designadas como doenças neuróticas no sentido estrito Ja palavra: representam, pelo contrário, a luta do indivíduo com um problema espiritual ou com um conflito moral (pore'm esta luta pode muito bem evoluir, como costumamos dizer, “no quadro clínico" de uma ncurosc); não representam, por consc~ guinle, em gcraL nada dc mórbido, mas o ápice da crise de maturidade imerna de um homem. Na medida em que uma neurose se baseia em um fato de algum modo ligado ao destino. importará - do ponto de vista logoterapêutíco - possibilitar ao doente tomar uma posição correta perante esse falo. Como possíveis posições, existem quatroz primeira, a passividade incorreta: aqui ter-se-ia de incluir a obediéncia cega perantc os impulsos instintivos, comportamento que, _em casos de neurose, é no entamo muito mais raro do que a forma mitigada de auto-abandono do homcm que anteriormente chamamos de fatalísmo neurótico. °' Segunda. a atividade incorretaz aqui ter-se-ía de considerar não só tudo aquilo que é inútiL mas também a luta íntcnsa do doente contra os sintomas neuróticos. especialmente a desgraçada tendência do neurótico obsessivo de, por assim dizer, tomar de assalto as representações obsessivas. Já emitimos muitas vezcs nossa opinião sobrc ísso. bem como sobrc as possibilidades terapêuticas concretas de vencer também esta tendência. °2 Terceira posicão, a atividade corretaz ela pode ser conseguida por meios psicoterapêuticos de modo que se indique ao docnte como ele se deve comportar perante os últimos resíduos. realmente ininfluenciàveis dos seus síntomasz deve objetivá-los,

6l Vejn-sc. entre 0ulros. d__e Viklor FrankL Die Psycholhlerapie ín der meiL Eine kaxuixlixche Einfúhmng fur Arlze, Dciticke. Viena. l947. pp. |24 c 165. 62 Lmn ril.. e ainda Ãrlzliche Seelsorge X.

O HOM EM lNCONDlClONADO

169

para, dcste modo, dislanciar-se deles. 63 Quarta posição, a passividade corretaz a educação dos nossos doentes neuróticos consiste cm quc aprendam, por assim dizer, a pensar c viver à margem do núcleo da neurose ligado ao destino - como, po_r exemplo, da psicopatía anancástica como fundamcnto constitucíonal de uma ncurose obsessiva porlanto ígnorá-lo, segundo as possibilidadcs. Só sc consegue scm dúvida essa ignorância, em última ana'lise, quando o doenle também aprendeu, em vez de lutar sempre em vão contra o destino, a confor_mar-se com cle. Poderia surgir a objeção de que. a despcito de se mostrar tão exata em tudo. a logoterapia vem a ser uma simples lerapêutíca sintomática ou paliativa, e não causal. Do ponto de vista puramente clínico. é verdade; no entanto. observado do ângulo metaclíníco. dáse exatamente o contrári0. Rcflítamos, simplesmente, no que já dissemos várias vezesz a disposicão psicojísica e. a par da disposição vilal, a situacão social ronstituelm em conjunto, a pasicão nalural de um homem, a qual, porém, não é decísiva. O que decide. por u'ltimo, é, a pessoa espiritual - a posicão pessoal em relação à posiçãó naturaL Quando se trata, porém, de uma posição, é também sempre possível uma ínversão, uma mudança de posição. A logoterapia trabalha assencialmente no sentido de obter cssa mudança. Entrelanto, ela não se dirige às causas primeiras, mas sim às causas ñnais do sofrimento. Não se preocupa com as causas aparentes, ísto é, com os condicio_nalismos, as cond1'tiones, mas sim com a causa concreta. a verdadeira “causa" de um sofrímenta Esta “causa" verdadeira é, todavia. - em relação a todas as (internas e externas) condiliones - colocada na passoa do doente que toma posicão, e a Iogoterapia recorre e apela para ela como que para a última instância. à qual compete a palavra decisíva. Assim, fica demonstrado, que a logoterapia represcnta, em cerlo scmido. isto é, no sentido metaclínico, absolutamente, “a" terapêutica causal - a saber aquela terapêutica que inclui no seu domínio de ação só a última e verdadeira “causa”. Voltemo-nos agora para a pergunta sobre as possibilidades fundamenmis de uma psicoterapia cm geraL e em especial da logoterapia, nas psicoses. A esse respeito, dcve-se cogítar, cm primeiro lugar, da deprcssão endógena. Como taL ela é somatogênica. Mas podería também ser compreendida como enfermidade unitária de todo o psi-

63 Compare-se com Viktor E. Frankl “Grundriss der Existenzanalysc und Logotherapie" ín Grundzuge der Neurosenlehre, otganizado por Viktor E. FrankL Viktor V. Gebsauel c J. H. Schultz. vol. 2. Urban e Schawarzenberg. Mun¡'que, Berlim, Vicna. l972. pp. 725-726.

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

64 Comparc-sc com Viktor E. FrankL “Psychagogischc Bctrcuung endogen Deprcssion" in Handbuch der Neurosenlehre und Psychotherap¡'e, organizado por Viktor FrankL Víktor E. V. Gebsattel eJ. H. Schullz. voL 4. Urban e Schawarzenbcrg. Muni-

que. Berlim, l959v pp. 429-430.

I7l

diável e sem possíbilidade de mudança? Podcríamos arrancá-lo do scu estado, fazer que se afastasse da depressão e se opuscsse à doença?

-_' v- ~r-

cofísíco. Observa-se, contudo, que, no quadro mórbido da depressão. também concorre alguma tomada de posição da pessoa doent'e. Quasc cm lodos os casos se podc dcmonstrar que o simples psícossomático ou o puro somatógeno, está, por assim dízcr, sccundariamcnte "neurolizado", na medida em que se enxertou, no cstado mórbido, um genc componente “psíqu¡co”, portanlo. por assim dizer, uma depressão reatíva. “ Aqui se mostra o que nós, anteriormente, d'esignamos como desespcro díante da tristeza ou como medo do medo. Aqui se exprime também, já, uma tomada de posíção reativa. À doença psícossomática opõe-se alguma coísa, com ela entra em comflito alguma coisa. Quem ou o que - é caso agora de perguntarmos entra em conflito com o processo psicótíco? Quem ou o que tenta defender-se da psícose? Esta entídade não pode ser, de modo algum, somente psicoñsica, deve scr, pelo contrário, essencialmente. uma oulra coísa a que é próprío poder-sc opor ao psícbfísico doentc, - poder-sc_opor num antagonismo que lhe é intrínseco. Trata-sc, na realidade, da pessoa espíritual do doente. A c0nfrontacão dela com a docnça é que faz com que enquanlo um homem comete suicídio por causa da depressão, outro expulsa os pensamentos de suicídio que o assaltam por causa dessa mesma doença. Não se pode lanÀçar na conta de um e do mesmo processo mórbido psícoñsico. idêntíco. ou paralelo, o fato de um deles ñcar absorvido na sua tristeza mórbida psicofísica, deixando-se caír, simplesmente, nessa lristeza, enquanlo o outro, como pessoa espirítuaL se mantém, por assim dizer, de fora e ao invés de agir “a partír” do psícofísico, reage à docnca. E. Stransky não assinalou o caso do oñcial atacado de depressão endógcna que manteve sua palavra de honra dc que não cometeria suicídio? E. Menninger-Lerchental não demonstrou que “dentro de certos limites o doente consegue resistir à tentação do suicídio em virtude de sua crença religiosa?" Se fosse realmente assim, como a análíse da cxistência levada a cabo por Bínswangcr nos indicou tão expressivamente, isto é, que na psícosc também estaríamos cm prcsença de um unitário “ser-nomundo" - ou, melhor ainda, se esta concepção unitáría domínante fosse a única admissível - como seria então possível qualquer influéncia logoterapêutica sobre o doente? Não deveríamos, pelo contrário, abandoná-10 ao seu destino, ao seu “ser-no-mundo” irreme-

O HOM EM INCONDICIONADO

47

170

v

Na vcrd_adc, as análises dc Bínswangcr aprofundaramp cnn'queccram, numa mcdida cxlraordinária, a nossa_ compreensão fcnomcnológíca da estrutura da imagem psicótíca do mund_o,“'do scr~nomundo psícótico. Uma coísa, porém, é querer comprcendcr uma doença, c outra pretender tratar um doemez para isto o doente_ deve, de algum modo, ser capaz de afastar-se intímamente da docnça, para

não dizer de sua loucura. Se consideroa príori a doenca como alguma coisa que domina e unitariamente fvorma todo o ser humano,' o ser-no-mundo do doente, e, portanto, por assim dizcr. ínñltra-se dc forma difusa, então não posso nunca mais compreender e apreender o doente “mesmo", a pessoa (espiritual) que está atrás de e acima de toda doença (inclusive psíquica). Tenho somente mais doença em frente de mim, e, fora ísso, nada que possa lhe opor. nada que jogar contra a força do destino de um ter~de-ser assim no mundo (maníaco. esquizofrênico, etc,). Poderia eu então ajudá-lo a criar aquele distanciamento quc, cm virtude do antagonismo facultativo psi_conoétíco, permite-lhc tomar posição, como pessoa espírituaL perante a doença psicofísica? (uma posição terapêutica de grande signíñcado). Essa tomada de posiçào sempre possíveL que nos interessa aqui, talvez, seja não só terapcuticamente signiñcativa, mas também hum_anamente. Porque não é verdade que o homem doente, como pessoa espírituaL deva manter-se simplesmente, o mais possível fora da doença psícofísica; dcve também, tanto quanto possíveL crescer, humanamente, nessc acontccímento, amadurecer nesse destíno que cmra na sua vida a partir do psicofísico. que irrompe na sua existência. Ele devc tirar da docnça algum proveito existencial como nós, anteriormentc, dissemos: cle deve “sobrepor-se" à~sua “desgraça"_psícofísica para "estar" espiritualmente “mais alto”. Minhas senhoras e meus senhorcsz já tíve a oportunidade uma vez de declarar meu Credo psiquiátrico: se a pessoa espiritual não estiver preseme atras' da barricada da psícose. embora condenada à impotência expressiva e instru'mental, se, portanto, não for verdade que a pessoa espirítual ainda que vulnerável a perlurbacões seja imune à destruicão pelo psícofísica emão não valerá a pena ser psiquiatra. Porquc se a pessoa espiritual não for poupada de todo o mal e de todaa decadência do psícofísico, se ela, pelo contrário, for afetada e afligida¡ em nome de quem deveríamos nós então, ser médicos?_Ser psiquiatra só podc valcr a pena enquanto o podemos ser, não “para” o organismo psícofísico, mas em função da pessoa espirituaL a qual, por assim dizer, esperu ser libertada por nós do handicap psicofísico. Agora de-

172

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

vo, porém, pronunciar ainda o meu segundo Credoz se não houver o antagonismo noopsíquico facultativo, se não houver, por conseguinte, uma possibilidade de a pessoa espiritual poder se opor à psicose como doença psicoñsica, nunca estaremos em condições de procedcr a uma psicoterapia (ou mesmo uma logoterapia) nas psicoses; só enquanto pudermos contar com aqucle antagonismo facultativo, só então, podemos também contar com o éxito. Em outras palavras: fundamcntalmente, só se o primeiro Credo for verdadeiro, vale a pena ser psiquiatra. e só se 0 segundo Credo for verdadeiro, estou em condicões de ser psiquiatra. A pessoa espirítual situa-se, essencialmcnle, além de toda morbidcz e mortalidade psicoñsicas; se assim n'ão fossc, cu não descjaria ser psiquiatraz não tcria sentido. E a pcssoa espin'tual é, esencíalmcn' tc, aquela que podc opor-se a toda morbidez psicoñsica, e se assim não fosse, eu não poderia ser psíquíatra, por conscguintcz não tería utilidade. Poder-se-ía pcrguntar, agora. por que então a psicotcrapía, inclusive a logoterapia, é tão pouco eñcaz nas psicoses c costuma falhar, especíalmente nos processos paranóicos, cmbora neles a integridadc da pessoa espiritual tenha sido conservada; por que não consígo atingi-los por meio de uma terapia dirigída ao cspin'tual, como a logoterapia? A inviabilidade da logotcrapia nos casos de parafrenia não signiñcaria um comprometimento da própria pessoa espiritual? Não devemos esqueccr uma coisa: já explicamos que a pcssoa. na psicose, e', nem mais nem menosz l. “invísível"; 2. “impotente”. Devemos, contudo, acrescentar çinda: a pessoa na psicose, não raramente. é também: 3. “cega” e 4 “ininfluenciável”. Cega ela é um pouco na depressão - isto é, cega para alguma coisa como scntido e valores - e m'influenciávcl ela o é um pouco na parafrcnia - isto 6, ininñucnciável por partc do médico que vigia o delírio. E apesar disso, continua válido, e, portanto, tàmbém para a pafrenia, que não se trata de nenhuma “doença do cspírito”. Por que não consigo penetrar, então, de mancira nenhuma, nesle espírito pessoal por meío da logoterapia? Por que não o alcanço? Por que não tenho nenhum acesso a elc? Porque existe aqui um encadeamemo trágico de circunstâncias: quando tento me aproximar de maneira persuasiva, das idéias delirantcs de um parafrênico, estou, por assim dizer, colocando lenha na fogucira do scu sístema delirante. A tentaliva de influênciar produz somcnte a ininfluenciabilidadc, pois no momento em que eu. para as corrigir, considero as idéias delirantes como mórbidas e errôneas condição da tcntativa de persuassão - no mesmo momento mc coloco também na flleira dos “inimigos" do doente. No momento em que trato. como tal, o doente delírante, cntro também, logo, como partc

O HOMEM INCONDICIONA DO

173

do contcúdo. no seu sistema delirante. Não sou eu qucm “cai", mas é ele quem me “derruba" para fora do papcl de um auxiliar c cmpurrame para o de pretenso conspirador. Nolens volens, cstc papel me é imposto ao tentar o tratamento. e só por isso fracasso. E aqui estamos. portanto, cm presença de um círculo vícioso no qual o doente se enreda cada vez mais: o diagnóstico impossibilita a lerapêulica - a lentaliva de desempenhar o papel de médico obrigame a representar o de “ inimígo". Em virtude dcste círculo diabóh'co. a pcssoa espiritual do doente é cercada, fechada, murada. Apcsar disso, ela não deve ser incluída no acontccimcnto mórbido psícoñsico. Quod eral demonslrandum Depois dessa digressão sobre a parafrenia, voltemos à deprcssão. Como sc sabe. ela representa uma doença hereditária e rcsulta, como taL de uma disposição especíñca psicoñsica. Somente essa disposição é transmissíveL nada mais; não é transmissíveL portanto. a maneira de lidar com ela. °5 Tal maneira não é “d¡sposta" hereditariamente, nem é predominantemente psicofísica; baseia-se na liberdade, e, por conseguinte, na responsabilidade da pessoa espirítual à qual dcve ser atribuída. Na qualidadc de alguma coisa que corresponde à pessoa espiritual e tcm a sua origem nela, signiñca a maneira concreta pessoal de “ lidar" com a disposição depressíva, e por isso. um mérito pessoaL Enquanto nunca posso ser culpado de mínha disposíção hereditária, a estrutura dessa disposição é capaz de me dar a oportunidade de realizar ou malograr uma obra pessoaL O mesmo se passa, ñnalmente, com as disposições não-mórbidas do homem: pode um talento ser hcrdado; mas a decisão sobre se o torno útil ou o desperdiço depende dc mim. Vamos, portanto. outra vez. como o destino, o destino hcreditário, pouco signiñca em si: o que “o destíno pôs". o homem tem, primeiramente. que díspor. Ele tem que dispor ainda das disposições. É válido dizer, Lambe'm, de modo geral, para além do genético, que o homem não é cerlamente responsável pcla psicose, mas certamente por sua posição perantc a psicose. É, sobretudo, responsável se agc em virtude da psicose ou de como "re-age“ à psicose. No caso de uma psicose tão avançada que mal se pode dwisar a pessoa esp1'ritual,_torna-se praticamente impossível diferencíar tal ac~

65 Examinando 2500 gêmcos. Kallmann eneonlrou ll mas nos quais um dos irmãos havia comclido suicídio'(a média de idadc registrada foi de l7 anos). Em nenhum exemplo suicidaram-se ambos os membros do par. Com basc ncssc resultados, e no matcrial fornccido pela Iitcralura cspecializada. concluiu o aulor que o suicídio de dois gêmeos não ocorre nem sequer quando cles foram cn'ados no mesmo ambienle e apresemam sintomas da mcsma psicose.

O HOMEM lNCONDIClONA DO

Falamos antcriormente da responsabilidade do homem e dissemos que ela não abrenge, oertamente aquílo que alguém recebc hereditar1'amente, mas, com certeza, o que ele organíza c constróí com fundamento em sua disposíção. Interroguem-nos agora se não sería possível estender ainda mais, conceber de forma mais radical a responsabílidade do homem, e com o propósíto de respondet, em conformidade com a libcrdade ñnal do homem, partamos do seguínte: o ñlho de um bébado, que traz talvez consigo uma disposição neuropsicopática do tipo epileptóide, tem de suportar, manífestamente, as conseqüências dos "pccados do pai”. Todavía, dcve ele também aceítar a responsabiüdade? Ninguém escolhe os scus pais; ninguém combina os próprios cromossomas. Ninguém foi, portanto, ínterrogado “se", ou menos “como", quería vir ao mundo, nínguém foi ínterr0gado e nínguém respondeu, disse sim ou não.

h o I

Ninguém dísse inícialmentc sim, mas cada um o diz constantemente, o diz a cada momento da sua existência atuaL Ele drz° semprc sim à vida, a essa sua vida incompleta; “apesar de tudo" ele sempre diz sim. apesar da sua imperfeição. “Apesar de tudo", ele diz sím. Apesar de não ter sido interrogado e de nada ler dito, apesar de não ter escolhido a vida, mas, pelo contrário. ter sido “lançado" na cxistência. apcsar de não ter de estar de acordo com islo ou aquilo da sua disposição hereditária. e também nunca tivesse estado dc acordo caso o tivessem intcrrogado, apesar de tudo. continua. não obstante, a viver. De qualquer modo. clc diz sim para tudo e assim elc é também. de qualquer modo, rcsponsável por tudoz pois essa responsabilidadc também inclui sempre uma liberdadc, tem a sua líbcrdade ulrús dc siz u liherdude de dizer não - a hbcrdade de dizer não para a vída concreta. para a vida na sua faticidade e hereditaricdade. Não sou obrigado a continuar a minha vida - posso jogá-Ia fora. Assim sou. em u'ltima análise, responsável por tudo - pela minha existência. rza totalidadc. bem como pclo meu ser-assim. em particular. Poís o homem está sempre de acordo, o seu “eu" está sempre de acordo com o seu id - mesmo quando se deixa conduzir pelos impulsos instintivos - mas também com “elcs“. os pais. os antcpassados nele. Só que esse acordo é habitualmente silencioso; nem por isso é menos reaL Por u'ltimo. há t'ambém, portamo, algo parecido com uma responsabilidade heredita'ria. Ela é responsabílídade sobrc o pano dc fundo de uma liberdade última, radícaL °° um “não" radical: o suicídio. Vamos discutir isto com um exemplo, o mais absurdo possível: certamente não sou responsável por tcr o cabelo um tamo cscuro c não louro; mas não screi responsável por não procurar um cabeleireiro para pintar o cabelo? Se eu fosse tão ingênuo a ponto de ver um inconvcniente no fato dc meu cabelo ser escuro. então teria de fato dc responder por não ter desembaraçado o mundo desse mal nem pelo suicídio nem pela pintura do cabelo. mas, pelo contrário, deixá-lo subsistir e tomá-lo a meu cargo. No mesmo sentido, devo aceítar 0 meu destino, adaptá-lo a

mim, apropriar-me dcle, torna'-lo exatamente o “meu" destino. Só o

66 Em prescnça dcssa libcrdadc radicaL é fácil compreender com que razão a teologia fala de um myslerium iniquilaIís. Visto quc, cm última análisc. nossas dccisõcs são |ivrcs. scria impossível delcrminá-las complelamente ou esclarecê-las pelo pandctcrminismo scm que permaneocsse um resíduo de mislén'o. E sc não howesse misléño dgum. cnlão não scríamos nem livres nem responsávcís c não havcria igualmeme culpa. pois não enconlraria juslifícativa.

r r~

tio ou reactio. Isto, porém, scrá tanto mais possível e necessário nos caos menos gravcs. Por conseguinte, teríamos com isso chcgado ao problema psíquiátríco da imputabilidade, um problcma que rcpresenta somcntc o reflexo clínico do problema metaclínico do Iívre arbím'o. Gostaríamos de discutir o problema clínico com base num caso concrctoz há anos, um psíc_opata esquizóide cometcu um atentado contra um emínente acadêmíco, que veío a morrcr. O laudo do perito psiquíátrico, Prof. Dr. O. PõtzL parecc-nos tcr atingído a essência do problema ao assinalar que mcsmo na ocorrência de uma agressividade muíto forte ou a ídéias delírantes íntcnsas, não se pode falar em revogar a imputabilídadc. Não ímporta se as idéias em rclação às quais é cometido um assassinato são ídéías no scntido de idéias delírantes de origem mórbida e totalmente erradas, ou no sentído de “ídéias supervalorízadas” de orígem também doentía, porém válida em_ sí, ou mcsmo se não são de orígem patológica, mas correspondem talvez a um símples fanatísmo - tudo isso é, em últíma análise, do ponto de vísta moral, completamcnte írrelevante. Com basc na psícopatia, um tipo belícoso é somente belícoso, mas não tem de se tornar assassíno. Não é a agressívidade que mata, é a pessoa quem decíde cometer um assassínato. Um homem não se toma crimínoso em conseqüêncía de uma degcnercscência psicosomátíca, mas de uma resolução moral-espiritual, que consiste no caso em achar que sc pode matar o inímígo. Todavia, no que concerne a essa resolução, é completamente irrelevante se o ínímígo é suposto ou real, se a suspcita é mórbido-delirante ou baseada na realidade e se ela sc refere a um inimigo pessoal ou a um adversárío político. Se isto tudo não fosse índiferente, então lodo indivíduo politicamente fanatizado e revoltado po.deria proceder assim e abater o seu adversário, com o mesmo direilo moral com que o faz um indivíduo psícopático.

175

amr

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

\

174

faço na medida em que o plasmo. Todavia cu não poderia fazê-lo de modo algum se o rejeitasse. se o negasse, se dcstruísse mínha vida. Assim, pois. toda existência humana. como tal, sempre cstá coIocada no domínio da responsabilidade (“sempre” signiñca não só desde scmpre. mas também “para” sempre). A responsabilidade jamais cessa; a consciência pode-sc interromper por algum tempo (no sono profundo) ou dcñnitivamente (na mortc). A responsabilidade, porém, terminaria só porque a consciência desapareceu ou porque cla deixou a consciência? Onde exíste culpa só pode existir eternidade. Seria concebível que o portador da responsabilidade. ou seja, o próprio homem, não sobrevivesse dc alguma maneira, embora a consciência se estingüisse? Consideramos o homem radicalmente responsáveL Isto, contud0, no contexto de um fundo de liberdade u'ltima. Isto no segundo plano de uma visão do homem na qual lhe atribuímos plena liberdade. O homem se nos revelou livre porquanto ser espirituaL e quando não é efetivameme livre. o é pelo menos facultativamcntc, ou pode vir a sê-lo. Nesse sentido, e só nesse. é o homem um “homem incondicionado": ele é condicionalmente incondicionado; não tem de scr o que é. mas pode sê-lo. ” Essa imagem do homem, livre porque espirituaL foi frequ"entemente adulterada pela investígação clíníca. Tudo nos leva a colaborar num trabalho de revisão, de correção da imagem do homem. Sc a investigação clínica carrcga a culpa de ter fcíto uma caricatura do homem. hoje ela está justamentc encarrcgada de recolocar as coisas no seu devido lugar. Durante muito tempo. a psiquiatria, a psicoterapia têm apresentado o homem como um ser reñexo ou um feixe de instintos. como condicionado, acionado ou determinado pelo complexo de Édipo ou oulros, pelo sentimento de 1'nferíoridade, ou quejandos, têm~no apresentado como uma marionete que estrebucha movida por ños visívcis ou escondidos, em todo o caso ridículos. Sempre o homem foi mais do que o nada; sempre, porém, foí um “nada mais que" algo que se pode explícar pela biología, a socíologia ou a psicología. E sempre o biologismo, o socíologísmo e o psícologismo pecaram contra o espiritual no homem. Todas essas imagens do homem ameaçam ele próprio: colocamno em perigo, porque com base em tais concepç'oe's, ele nunca ñca em condiçõcs de alcançar o humanismo. Enquanto só formos capazes de

67 É talvcz a isso que os tcólogos chamam de graça. ou scja, a liberdadc de poder fazer uso de sua Iiberdade.

0 HOMEM lNCONDlClONADO

l77

ver no homem o que, de uma maneira ou de outra. é condicíonado, não distinguiremos senão uma espécie de homúnculo, não percebcrcmos o homo humanus, o homem autêntico. Do biologismo. do soc'iologismo e do psicologismo não saem caminhos na díreção do humanismo, apenas do homunculisma Vimos, por outro lado, que o homem é mais do que o simplcs corpo, e alma; vimos que clc rcpresen1a, no ñm das contas. o espirituaL O homem é mais do que o organismo psícofísicoz ê pcssoa cspirituaL Nessa qualidade, é livre e responsáveL livre “do" psícofísico e “para" a rcalização de valores e o preenchimento do sentido dc sua existência. Ê um ser que luta para realizar valores e preencher o sentido. °" Não identiñcamos no homem apenas a luta pela vida. mas lambém a luta pelo sentido da vida. E auxíliá-Io nessa luta é talvez a missão mais notável da ação psíquiátrica. Não só é valida a velha fórmuIa “luta pela existência e solidariedade", mas a nova: “luta pelo scntido da vída e auxílío mu'tuo na descoberla do sentido". Não añrmamos que o homem seja dominado pela busca do prazer ou a ambição de mando; pelo contrário, mamemos a opinião de que ele é animado no mais profundo de sí, para dizer não “espiritualizado" pela “von1ade" de sentido. A vontade de podcr vê e procura exclusivamente o útiL ou seja, “um valor para mim”; a vontade de sentido, no entanto, vê, outrossím, a dignidade c dela cuída, c isto signiñca “um valor em si". Assím, a vonlade de poder é uma vomade de sentido que degenerou. Minhas senhoras e meus senhores: estou plenamente consciente dc que não aceitarão todos os traços que esbocci ncsse rctrato do homem. Não renciono. de qualquerforma, oferecer-lhes soluçõesjâ prontas› Pelo contrário, o que principalmcnte me imeressou foi mostrarlhes os problemas e, com eles, as possibilidades e impossibilidades de cada solução - ou, para dizer melhor, a possibilidade, a necessidade dc uma decisão. Não pensem que eu seja tão simplório a ponto de prctcnder dar uma resposta às questões etemas da humanidade ou elaborar novos teoremas. Minha intenção era bem diferente: queria estimulá-los a questionar em termos metaclínicos, a pensar de maneira metaclínica. Não digam que é pouco, pois é duvidoso que outra coisa. ou mais do que isso. lhcs pudesse ser oferecido. No seu extraordinário li-

me.

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

68 Comp. com Joseph MeinerlL Moderne Seinsprobleme in ihrer Bede_u1ungfu"r_ die P.r.rrnolagie Ein Beilmg zur Grundlegung der Tiefenpsychologia SchneldeL Heldcrberg. |948. p. 99: “diñcilmemc alguém podcrá duvidar que 'signiñcau'vidade' . alribuição dc semido e rcalizacão do sentido consliluam a essência do 'eu' "

_'mnf

176

vñvwirlbn .. ~q

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSÍCOTERAPIA

I Çí

Nota para a 2ê edição Tirada' de Der Wille zum Sinn de Viktor E. Frankl - conf_erêncías seIetas sobre Iogoterapia - Huber, Bcrna/Stuttgart/Viena, 1972, pp. 156-ló4. Sim. u Iiberdude é um dos fenômenos humanos! Ela é, no entanto. também um fenômeno demasiado humano. A liberdade do homem é finita. O homem não é lívre do condicionamento, é apenas livre para tomar uma posição em rclação a esse condicionamento, que não atua, aliás, de maneira inequívoca, pois, em última análise, depende do homem decidir se vai ou não se submeter. Há, por conseguinte, uma margem de manobra dentro da qual lhe é facultado elevar-se por sobre si mesm0. na dimensão humana. Embora Frcud tenha dito “a experíência demonstra que díante da fome as diferenças indíviduais se apagam. Com o aumento da imperiosa necessidade de alimelntação as diferenças desaparecem e em seu lugar manifestam-sc uniformes exigências do instinto insatisfeito” na rcalidade é 0 contrário que ocorre¡ Nos campos de concentração os homens se diferen~ uuvum Os sulafrários deixavam cair as máscaras. E os santos se ma-

69 Springcn Bcr|im. Heidelberg. l948. 70 Lehrburh der arzllichen Seelenkunde, Viena. l845. pg. ll-12.›

~.._ 4

vro Melaphysische Probleme der Medizin, °° escreveu Paul Matussekz “O que caracteriza os problemas mctafísicos é que, de um lado, são insolúveis, de outro, ir'recusáveis”. Portanto, não lhes deve pareccr muito restríto o que eu procurei sítuar no seu campo de observação. Não esq ueçam o que certa feita disse Ernst Freiherr von Feuchterslebenz “O verdadeiro pensador ñca satisfeito de tcr localizado e apontado as fronteiras do pensamento... e é uma sábía prcvísão a de ter mostrado essas fronteiras, porque o homem, onde termína seu pensamento. deve começar a sc ocupar com a questão de “para que" ele cstá propriamente ali." 7° Minhas senhoras e meus senhores: tentei, como clínico, dar-lhes o lestemunho de uma imagem verdadeira do homem. Dar-lhes testemunho do homem não só como um ser condícionado, como um ser incondicionado - do homem como um ser maís do que físico e, em todo o caso, como também ainda psíquico, do homem como um ser cspirituaL livre e responsáveL ' É sobre isto que nós, clínícos, testemunhamos. Assim sejam os nossos doentes ajudados.

0 HOM EM INCONDICIONADO

4

|78

|79

nifestavam A fome fazia vir à tona a qualidade de cada um. A fomc era semprc a mesma, em ambos os casos, os homcns é que cram díferentes. Como era mesmo o título daquelc best~seller Calories Do Not Count (Calorias Não Engordam). Em última ana'|ise, o comportamento dos homens não é dilado pelas condições, mas pela posicão que toma diante elas. Qucr clc saiba ou nã0, cabc-lhe a decísão se vai ou não se deixar subj ugar cm outras palavras, sc aceita ou não aceíta ser completamente condicíonado. Na verdade. o detcrminismo não nega a liberdade humana. Qucm o faz é o “pan-determinismo". A alternativa não é “indetcrminismo ou determinismo" mas “dctcrminismo ou pandeterminismo”. Puru falar muis uma vez em Frcud. observe-se que cle só aderiu ao pandeterminismo na teoria. Na prática não era cego para a liberdade, tanto assim que desejou alterá-la. Ao estabelecer a ñnalidadc da psicanálise, esclareceu que esta pretende dar “ao eu do doente a liberdade de escolher isso ou aquilo” (sublinhado no original). 72 A liberdade do homem contém a possibilidade dc uma tomada de posição em relacão a si mesmo, de um distanciamento relacionado a si mesmo. llustrarei o que estou dizcndo com o relato de um episódio ocorrido na l Guerra MundiaL Um médico milítarjudeu estava sentado. ao lado de um amigo, coroncL de linhagem aristocrática. num abrigo subterrâneo durantc um bombardcio. Comenta o coroncl: “Agora você cstá coxm medo. n¡a'oe'"? Percebc a superioridadc da raça ariana sobrcr a judaica?" O mcd'ico rctrucaz “Admito que estou com medo, mas por que falar da superioridade de uma raça com relação a outra? Se estivesse com tanto medo quanto eu. meu caro comnel. com certeza já tcria saído correndo”. 0 que importa, pois. não é o medo ou qualquer outro senlimento que tenhamos, é a nossa atitude em face deles.v Essa atitude é sempre baseada na libcrdade. que, por sua vez não dcixa de existir mesmo nos casos patológicos. Nós psiquiatras eslamos sempre deparando com pacientes cuja atitude diante do que possa ser neles patológico e'. por sua vez, não menos doentia. Conheço paranóicos que impulsionados por suas idéias de delírio pcrsecutório mataram os supostos perseguidores e inimigos. E conheço também paranóicos que se limitavam a fazer carelas. É que se podc agir a partir dc uma psicose. assim como reagir a partir dela e se apoiando no elemento humano. Há pacientes que por causa de uma

7l Ohras (”omplelas. voL V. p. 209. 72 Pavrchoanalvxe und Iibida Iheorie. 0bm.c ('omplelas. volumc Xlll. l923. p. 284_0.

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

dcprcssão sc suicidam, enquanto outros, por amor a uma coisa ou umu pcsso.1'. Iogram superar os ímpetos para a autodestruicão. Estou, não obstante, convencido dc que uma psicosc como a paranóia ou a depressão são pelo menos basícamente somatogênicas e podem scr explicadas pela bioquímica. Nem por isso precísamos adotar uma orientação fatalísta a respeit0. Em determinados casos nem scqucr se justiñcaría atribuir o substrato bioquímico à hercditariedade. Menos ainda do que o fator hercditário, podc a infância scr upontadu como uma influência delerminante unívoca no curso da vida. Uma leitora de Alabama mc escreveu oerta vez: “Tenho sofrído mais com a idéia de que devo tcr complexos do que em virtude de um algum complexo verdadeiro. Tudo de horrível que cxperimentei quando criança por nada no mundo o devolven'a, pois sei que dc tudo aquilo saiu muito de positivo”. Que aconteceria se jogássemos o determínismo c o pandetcrminismo um comra o outro. Para isso, teríamos de começar perguntandoz A que se deve o pandetermínismo? A sua origcm podc scr buscada numa noção imperfeita do que dístingue causa de razão (motívo). Quando alguém corta cebola ñca com os olhos cheios d'água. Suas lágrimas têm uma causa. Mas este alguém não tem motivo para chorar. Quando um alpinista se aproxima do cumc de uma montanha de 4 mil metros, podem sobrevír a ansiedade ou um sentimento de opressão. Esses sentimentos tém ou uma causa ou um motívo. A causa pode ser a falta de oxigênío. Se o alpinista no entanto, sabe que não está suñcíentemente equipado ou treinado, então sua ansiedade não se deve a uma causa, mas a um motivo. Na medida em que ser-homem signíñca “ser-no-mundo”. o mundo contém uma enormídadc de valores e de sentido. O scntído e os valores são “motivos" que acionam o homem. Quando íntcrpretamos o homem como um sístema fechado, banimos do campo visual juslamentc o mundo aberto do sentido c dos valores que constituem possíveis "motivos de ação” para o homem. Afastados os motivos e as razões, restam as causas e os efeitos. Estes, conforme o caso, são representados como reações a estímulos ou reñexos condicíonados, cnquanto as causas, conformc o caso, são rcpresentadas como precessos condicionanlu instintos ou “mecanismos disparadores automáticos“. Os instintos são algo que me empúrra, ao passo que o scntido e os valores algo que me puxa, me atraí. Tão logo aderimos à um modelo antropológico fechado, pcrdemos de vista. quanto à motivação. tudo o que de fora chama o homem, e nos concentramos naquilo que de dentro o impulsiona, a força motriz do instinto e os estímulos instintivos. O sentido e os valores

0 HOM EM lNCONDlClONA DO

|8|

constituem o logos. em cuja direção a psique se Iança. transc'cndcndo-se a si mesma. Se a psicologia quiser fazer jus à sua dcnominação. tem dc reconhecer ambas as mctades que a constitucm, logox e psy('he.

FFR

180

.. .n .. ¡ o Pm. ..

, m om . n mm t m éh

ParaElly

í í | | ¡ ¡ l | ¡ l l l | | » \ \ \ n \ \

Prefácio à primeira edição

Este volume resulta dos cursos ministrados pelo autor na Univcrsidade de Vicna no semcstre de inverno l949/50 e no verão dc l950, intitulados respectivamentc “0ntologia do Homem quc Sofre” e “Sistcmas e Problemas da Psicotcrapia" e que deram prosseguímento aos meus “Cursos Metaclínicos" rcalizados no mesmo local com o nome de “0 Problema do Corpo e Alma c o Problema da Liberdadc da Vontadc à luz da lnvcstigação Clínica". quc foram publicados em forma dc livro com o título de 0 Homem lncondicionado.

"HOMO PATIENS"

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSlCOTERAPlA

2 0 pcrigo não é que o pesquisador se especialim c sím o que o especialisla generalize Todos nós conhecemos os chamados Ierribles Jimplfhcareurx aos quais fazem companhia os Ierribles génimlisateurs como costumo chamá-los. Os primciros simpliñcam tudo. e tudo medem pela mesma escala; os scgundos atribuem um alcanoe dema-

siado cx_lcnso ao resultado de suas expen°éncias.

<-.›-

l. Psicologismo

›.

Nos °°Cursos Metaclínicos". publicados com o título de 0 Ho-. mem lncondicionado, 3 já nos esforçamos cm fazer primeiramente uma crítica do ñsiologismo; gostaríamos agora de propor uma crítica do psicologismo e do sociologismo. Somcntc dcpois de supcrados csses dois niilismos, ñcará desimpedido o acesso a uma intcrpretação do sentido do sofrimento.

0 perigo do psicologismo contínua sendo, ontem como hoje, agudo; superá-lo pela crítica é, portanto, uma necessidade sempre atual. Em nenhum outro campo isto se manífesta tão claramente quanto na psicoterapia. Vamos demonstrá-lo com o auxílio de um caso concreto tirado dc nossa experiência num serviço dc ncurologia. Veio consultar~nos um jovem aprendiz de alfaiate dízendo que o fazia “por causa da eternidade." lnterrogado, explica no's seguintes 1ermos o que tem em mente “não se pode conformar com que tudo seja tão transitório, sem um pisco de etern1'dade." Fíca particularmcnte intrig_ado com o fato de o homem ser mortal e se recorda dc que já na infância se entristecia com a idéia de que ele também morreria um dia. O que esses pensamentos denotam é nada menos que a transfb rência do campo lógico para o existenciaL A lógica límita-sc a ensinar: Sócrates é um homem; todos os homens são mortais; logo. Sócrates é mortaL Diante disto, o abandono da lógica pura e a passagcm para a esfcra existencial são ilustrados por sua aplicação à minha própria exístência concreta e pessoaL em sua síngulañdade e uni3 Dcutickc. Vicna, l949.

\-w.-.

1. Psicologismo'e Psicoterapia

,,

O psicologismo também conccbe o homem como um aparelho c sc referc a “mecanismos psíquicos". Atcntar porém cxclusivamentc ao automatismo do aparclho psíquico, signiñca deíxar de perceber a autonomia da existência cspirituaL A vída psíquica dará a impressão dc ser um jogo de forças impulsoras de funcíonamento automático, e o homcm, um fcixe de impulsos. No contcxto do psícologismo, faz-se menção a “¡mpulsos parciais" e “componentes dc ímpulsos” como se. com tais componentcs. fossc possível obtcr uma resultante, a cxemplo do que ocorre com o paralelogramo de forças.

culismo".

.._

Examinando particularmente o ñsíologismo. vemos que só admite mecanismos e quimismos. Mcsmo sc csta concepção mccânica é abandonada em favor dc um vitalismo, o ser vívo e, portanto, o ser humano, contínua a ser considerado um aparelho ou autômato dominado por rcflexos condicionados ou não. A antropologia se degcnera, então, num apêndice da biología, e o conhecimento cspccíñco de verdadeiros homens sc convcrte no estudo de detcrminados mamífcros aos quais a capacídade de caminhar cretos subíu â cabeça.

Para o sociologismo, enñm, o homcm também se torna um mero jogucte. é verdadc que não da energia vital, mas das forças sociais. Em cada um dos três aspectos, a cxistência humana carccc forçosamcnte de sentido. O homem parcce como uma marioncte movimentada ora por ños íntcrnos, ora extcrnos. Em lugar de uma autêntica pintura do homem, tcmos uma carícatura; em lugar do homem autentico. um homúnculo. É cvidente que uma tcoria tão inñel à rcalidade há dc fracassar também na pra'u'ca. Jamais o niilismo poderá levar ao humanismo, sempre dcscmbocará numa espécie de “homun-

n

gum. A existência. des_sa forma, é privada dc scntido. Ao mesmo tempo sc torna claro porque estas três modalidades de niilismo - fisiologismo. psicologismo c socíologismo - não conscgucm captar o sentidoz em sua conccpção do mundo, cada uma sc rcstrínge a uma camada da existência - física, psíquica ou social - deíxando dc lado precisamcnte o típo de existêncía em que pode aparecer algo como intencionalidade. ou seja, a cxistêncía espin'tual. Somente qua'ndo ela é lcvada em conta na sua aspiração essencial ao sentido e ao valor. é que se estabelecem condíçoe's para que vcnha a sc manifcstar o sentido da realídade e se tornar evidentc o sentído da vida. As três modalidades mencíonadas dc niilísmo não devcm ser confundidas com a ñsiologia a psícologia e a socíologia. Ao contrár¡o, o “ismo” começa justamentc quando o ângulo de visão de uma camada se amplia até chcgar a constituir uma visão do mundo, ou seja, quando tem início a generalização. * A psicologia, a ñsiología e a sociologia erram ao gcneralizar. Rcduzindo tudo acabam tomando tudo relativo, com uma exceçãoz absolutizam a si mesmas.

l89

. mwasaña

I88

_, _ _. -›-f

_

4

FUNDAM ENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

cidade. Não somente existe a idéia da monc, em geraL há também o fato de que quem pensa na morte deverá um dia por sua vez morrer. A ídéía da mortc é pensada reflexivamente com relação ao próprío ego. O sujeito não é excluído mas, ao contrário, íncluído na validade de um estado de coisas objetivo. O que foí dito é suñciente no que rcspeita à transição efetuada pelo pensamento do 'nosso paciente. lndagamos por que ele não tínha procurado um sacerdote, sem dúvida mais competente em assuntos como “eternidade”. O paciente contesta que há anos deíxou de ser relígíoso. Em contrapartída, informa que havía conversado com seu paí sobre o assunto e ele conñrmara que ludo é transitórío c que a alma não sobrevívc à morte. Perguntamos qual a proñssão do paí e soubemos que é contador. Deixamos de lado a questão dc determinar sc um contador é a pcssoa ideal para dar esclarecímentos sobre o sentído e o valor da existência. Pegamos um receítuário e ímcdíatamente o paciente expressou seu desagrado exclamando: “Por favor, nada de remédios!” Não havíamos, contudo, pensado em tal coísa e, porlanto, sem nos deíxarmos deter pelas suas palavras, escrevemos no papel o título de um folheto, redigido de maneira compreensíveL que trata do sentido da vida e examina se o caráter transitório inerente á vídá a priva de semtido. ' Recomendamos ao paciente que tornasse a nos procurar após ter lido o referido folheto. Poucos días mais tarde, ele rctornou ao ambulatório e extcrnou sua insatísfação com a publicação, mas ao mesmo tempo declarou sentir~sc melhor, pois nesse meio tempo tivera muíto trabalho e, assim. menos tempo para dedicar às suas císmas. Não cedcmos, todavia. Não podíamos permítir de modo algum que a problemática daquele homem, uma vez agítada, passasse despercebída. Muito pelo contra'rio, queríamos discutir as objeçoe's quc o paciente fazia á brochura otímísta. Queríamos guiá-lo por entre os seus recifes espirituais vindos à tona, pois elc sofria não de uma verdadcira enfermídade mentaL mas de diñculdades de ordem espirituaL Para ajudá~lo, porém, era preciso levá-lo a se adentrar em sua crise existencíaL Poderia acontecer muito facilmente que um dia estejovem tivesse menos trabalho ou ñcasse desempregado, e então se sentisse desamparado sc não contasse com ajuda espírituaL Temos, em nossa condição de médico, de evitar uma tal situação - desde que aceitemos

4 Compare-se com Kamz "A Fílosoña deve funcionar como medicamento."

WHOMO PATIENS"

l9l

a idéia de que entrc as tarefas do médico ñgura a dc tratar preventivamentc dos doentes. Será dcccrto objetado que estamos diantc de uma terapia muito peculiar c de um estranho procedimento por partc de um médico; islo é. avivar propositadamente a dolorosa inquietação de um homem que já Iograra espontaneamcntc superá-la. Quem fala assim, esquecc, no entanto, que essa inquietação - a inquiela cordis de que falava Santo Agostinho - não constítui pro~ priamente uma doença, nem mcsmo psíquica, mas, como já indicamos, uma diñculdade espiritual quc. em si mesma, não é patogêníca. e sim algo de humano, e até se poderia dizer, o'que existe de mais humano. -

I90

Sem du'vida, até hoje a psicologia médica não soube o que fazer com a descoberta de que há diñculdades que são dc ordem cspirituaL Em presença de tal inquietação dolorosa, mantinha-se perplexa. Como tcria podido, com efeito, classiñcar essa condição senão na categoria dos sofrimcntos psiquicos, das doenças mentais? lsto sc deve . unicamente ao fato de que até o presente a psicologia médica só foi capaz de distinguir entrc psicoses e neuroses. com rcsultado paradoxaL para não dizer cquívoco, de que ex defmitione as psicoses sc oríginam no plano corporaL quer dizer, são enfermidadcs somatogênicas (em vista do que, Haeberlin añrmou com razão que deveriam chamar-sc “somatoses", e Henry Ey 5 se referiu a “somatoses com sintomatología psíquica"), enquamo as neuroses, ao contrário do que seu nome levaria a crer, não constituem distúrbios do sistema nervoso, e sim estados mórbidos.provocados por reñnados motivos

› psíquicos. a saber, enfermidades psicogênicas. É certo que as psico_-

ses, consideradas do ponto de vista do tratamento e não da orígem, costumam requerer uma somatoterapia, ao passo que as neuroses precisam de uma psicoterapia. No entanto, se bem pesado, as psicoses não se deixam catalogar como enfcrmidadcs psíquicas. menos ainda podem ser qualiñcadas de enfermídades espirituais. Pois precisamente a exislência de “doenças do espírito" é algo de inconcebíveL algo que se deve rejeitar. Porque, sempre que entra em jogo o fator cspirituc.l, eo ipsis não se trata de algo dc patogênico. Adoecer é próprio do organismo psicoñsico, jamais da pessoa espirituaL Quando está em causa a pessoa espin'luaL não são mais aplicáveis as categorias nosológicas, substituídas pelas categorias noológicas. 0 par de opostos, no caso da noologia, não é “enfermo-sadio”, c sim “falso-verdadeiro.“

5 Éludex Psythialriques, Pan's, l948.

n1

"HOM0 PATIENS"

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

6 Para cilar Georg Trakk “Como parece doeme tudo que evolui!“.

193

Destas considerações sobre o diagnóstíco resultam algumas de valor terapêutico. Já indicamos que não cstávamos dispostos a ccder ao nosso pacicnte. De fato, não o deixamos em paz, a paz ilusória da ligeireza metañsica. Não podcríamos parar de qucstioná-lo cnquanto elc não tivesse encontrado o scntido de sua cxistência c. com isso. a si mcsmo, considerando que o lema dc todo psicoterapeuta é “Não o abandono até que você tcnha chegado a ser você mesmo!” Naturalmcntc, assim vai pelos arcs o tratamento tradicional da doença. Não se trata mais de liberar o homem de sua doença, e sim de guiá-lo até a sua verdade. Até a “sua" verdade - dissemos - pois ímporta menos ao tcrapeuta afcrir o grau de verdade de um conhecimcnto. do que dctcrminar a sinceridade das dedaraçõcs do pacicme. Na qualidade de médico. deve, nesse sentido permaneccr neutro. Tem a obrígação de ser tolerante, o que não só é nccessário como possíveL em rclação à vcrdade do paciente. Esta, mais cedo ou mais tardc, mostrar-se-á intolcrante, inexorách até que 0 paciente a reconheça como sua c diante da qual sinta obrigações Não compete ao médico impor ao paciente a sua própria vcrdade, procedimento inadmissívcl segundo a ética proñssional c desaconselhável do ponto 'de vista te'cnico. A verdade para a qual o paciente há de ser levado se faz reconhecer automaticamente desdc que seja a verdade dele. 7 Por amor a esta verdade, devemos despertar o doente de sua ligeireza metafísica, mesmo com risco de que haja, pelo menos transitoriamcnte. um aumenlo de tensão. Tal sofrimento tem de ser suportado e conscientemente assumido. Há muito tempo abandonamos a posição da psicotcrapia clássica; já não achamos, portanto, que a missão da terapia seja unicamente a dc tornar a pcssoa apta ao trabalho e ao prazer. É preciso capacitá-la a suportar o sofrimento. Evidentementc nos estamos referindo a um sofrimemo fatalmente necessário, ligado à crise exístencial da matun'dade. Um tratamento que o encobrisse. estabelecendo uma repressão aínda mais severa da necessidade metafísica, podería ser, é claro, menos pcnoso. Mas a vida de uma pessoa submetida a essc tratamento seria menos rica de sentido.

1

O perigo de tais equívocos categoriais cxistc sempre que se ignora a independêncía do fator espiritual com relação ao psíquico. Esta incompreensão do cspirituaL no que ele tem de peculiar, é caracterís~ tica do psicologismo. Dentro da psicologia médica o psicologismo é rcforçado todas as vezcs em que se fala de soma e psique. E o perigo psicologista cresce mais ainda quando se introduz a idéia da unidade e lolaiidade psicossomática do homem. Aí. a csse perigo, se junta outro. o do biologismo. Na verdade. ainda que o psncossomáuco constitua realmente uma unida_de, nem por isso representa a totalidade do homem. Para fonnar a totalidade, é imprescindível incluir a parte espin'tual; o espirituaL a pcssoa espirituaL é o fator que cria a unidade no indivíduo. Não basta mencionar o corporal e o mentalz tertium dalun Para o psicologísmo, porém. não há um teroeiro fator, não existe o espirítuaL pclo menos não como modo de ser indcpendente. Outrossim, o terapeuta impregnado dc psicologismo ignorará o espiritual. O caso do nosso pacíente ilustra as sérias conseqüências a que conduz obtusidade. Acontece que a “inquielação“ dclc corresponde absolutamente a uma "necessidade mclafísica", mas esta, no prisma do psicologismo, é considerada como sintoma de uma neurose. e o médico inñuenciado por essa tendência, procurará tratá-lo por métodos psicoterapêuticos. Desnecessário dizer a que levará um tal procedimcntoz a uma “repressão” da “necessidade metafísica" ou, em outros lermos, a uma educação voltada para o que Scheler chamou de “ligeireza metafísica". Acertadamente refcríu-se Caruso, em circunstâncias ana'logas, a um “aborto espir1'tual". Devemos opor-nos a isto, o que só será possível se cstivermos compenetrados, de antemão, de que por trás de uma doença aparentemente mentaL o que existc é uma díñculdade de ordem espirituaL Em outras palavras: pode ser que a crise de maturidade de um indivíduo se dcsenrolc no quadro clínico de uma ncurosc; ° não surpreende que uma pessoa que sofra a pressão de problemas espirituais c a tensão provocada pelo sentimenlo de falta de sentido se comporte dc maneira semelhanle a um neurótico. no sentido estrito do tcrmo. Por que admirar-se que alguém às vollas com uma diñculdadc espirítuaL e não um distúrbio memaL tenha insônia, sudorese. tremores, assim como o neurólico7 Apcsar da etiologia diferente de sofrímento de ambos. a sintomatologia pode ser idêntica; não devemos, contudo, permitir que a igualdade da sintomatologia nos induza a erro no diagnóstico difercnciaL na distinção entre o espíritual e o humano, de um lado. o psíquico e o cnfermo, de outro.

l ã

l92

7 “Sua" vcrdade. no emanto. jamais é “uma" verdade, mas sempre “a vetdade” - maluralmente encarada scgundo a pcrspectiva do indivíduo. Por oulro lndo. mínha pcrnpccliva, se Ihe fossc imposta. apenas deformaría a verdade. Assim, o un'íco absolulo que a verdade do homem permire alcancar resíde na unicidade absoluta da perspccllva em que a verdade se revela a cada indivíduo. Dessa forma. o pcrspectivismo nâo dmmboca forcosamcnte no relalivismo.

194

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGÍCOS DA PSICOTERAPlA

A ausência de dor à rout prix ' não pode ñgurar como norma da medicina. 0 princípio de prazer. no sentido da psicanálise, é um princípio psicológíco, e não terapêutico; e se é insustentável no campo psícológico, “ deve ser rclegado. com mais razão, da categoria de máxima terapêutica. Dc modo algum, cabe ao médico procurar a cuforia a qualquer preço, o que equivalería a uma eutanásia parciaL Cerlamente a eliminaéão da dor está entre os deveres do médico. Mas não temos o direito de fazê-lo se isto ímplica o paciente renunciar a si mesmo. Afastar por príncípío qualquer desprazer, combater íncondicionalmente as dores, inclusive os aborrecímentos e males por trás dos quais se esconde um sofrimento cxistencial signiñcativq lcva ao abandono de si mesmo. Poderia, então, acontecer que ao perder a sua dor, o homem cstivcsse ao mesmo tempo se perdendo. Em contraposicão ao egafamaL o si mesmo (das Selbst) éfaculta~ u'vo. Representa a quimessência das possibilidades do ego. Essas possíbilidades se referem à realização do sentido e à concretização dos valores. e nessa qualidade são possibílídades que se apresentam no con-

fronto do homem com as necessídades ina'dia'veis. Dexpojar alguém .

dessas possíbilidades sigmfl'ca privâ-Io do “si mesmo", que é o espaço em que resplra o ego. Contrariameme a uma teoria críminológica dc caráter naturalisla, Scheler opínou que o delinqüente tem díreito a expíar a sua culpa. E Rilke proclamou o direito do homem de morrer “sua própría morte". Acreditamos, de nossa parte, que tem ele também o dircito de sofrer sua própria dor. desde que se trate realmente de “sua” dor, do sofrimento significatívamente existencial das dores que compõem a fatalidade. Deixcmos para depois a qucstão de saber quais as condições em que o sofrimento tem sentido, e adiemos nossa resposta para quando rctomarmos 0 assunto.

2. Psicolerapia e Logoterapia Partimos da idéia de que o homem é um ser espirituaL de que ele é em essência cspirituaL No entanto, cstc fator é precísamente o que o psicologismo ígnora. Daí, a insuñciência de toda psicoterapia no semido estrito, que permanece, até hoje, psicologista: não vê o espirituaL Esta insuñciência se converte em incompetência tão logo a psícoterapia psicologista se encontra a braços com a problemática espi-

' Em francês no original (N. do T.) 8 0 pn'ncípio dc rcalidade não se contrapõc ao pn'ncípio dc prazcr. pelo comrário. sc coloca a seu serviço c o amp|ia. buscando também alcançar o prazcr (S. Freud, Obras Complela:, voI. XI. p. 379).

"HOMO PATIENS"

l95

ritual; jamais conseguirá distinguír nela algo de simplcsmcntc humano, parece-lhe, pelo contrário, estar diantc de uma docnça mcntaL Não leva a sério o homem no plano cspirituaL prefcrindo qualiñcá-lo de mórbido. Sua luta em tomo do conteúdo espirítuaL seu combate em torno de substância do scmído da vida nunca são para a psícoterapia psicologista o que realmente são. ou seja, o mais humano que exislc e o que é capaz de caracterízar o homem como tal; para cla, pelo con'trário, trata-se scmpre de algo dcmasiado humano, produto do complexo de Édipo. do sentimento de inferioridade ou dc outra coisa do género, conforme o caso. Scja como for. a psicolerapia psicologista haverá de fracassar sempre diame da problcmática espirituaL que só é abordável por uma terapia na'o-psicologista - uma terapia acima dc conce'¡'tos como complexo de Édípo ou sentímento dc inferioridade; que recusará conSiderar uma diñculdade de ordem espiritual como algo de enfermiço, pois não extrairá dessa diñculdade um complexo nem a rcduzirá a e|e. Igualmente se negará a alimemar um paciente imerso numa problemática espiritual com rcceitas - dizemos litcralmentc “alimcntá-lo”, enchendo-o de medicamentos. Quão admirávcl se revelou o “instinto" do nosso citado paciente ao rejeitar qualquer espécic de remédio! No fundo, ele sabia que só uma psicologia ccntrada no fa~ tor e.spiritual poderia ajuda'-lo. Devemos, entretanto, analisar mais de perto a psicoterapia psícologista, que não se orienta para o espirituaL preferindo ignorá-lo. O espírito do homem é espíríto personiñcado. O psicologismo. pore'm. é cego no que concerne ao espírito. Daí ele dcixar também dc lado a pessoa cspirítuaL O psicologismo trata a pessoa como se ela fosse o seu oposto ou, para utílizar uma antítese de Willian Stern, como se fosse uma coisa. “Tratada” como uma coisa, literalmente falando, signiñca a pessoa atendida por um terapeuta que não superou a influência psicologistaL A pessoa é, pois, coísiñcada, objetivada pelo psicologismo. Mas se referc à pessoa espiritual como se fossc uma coisa. demonstra nada saber sobre ela, pois uma pessoa justamente não se deixa reiñcar. A existência pessoal não é suscetível de objetivação íntegraL Jamais a existência se apresema dianle dos meus olhos como objeto; sempre estâ, pelo contrário, por lrâs de meus pensamen'tos, atras' de mim, como sujeito. Por isso, a existência, em última anâlise, constitui um miste'rio. A existência não é objetiváveL pode ser elucidáveL c isso na medida em que é compreensível para si mesma, tem autocompreensão. ° 9 Que é um fcnômeno primáño irredutích Capaz de compreendcr-se a si mesma. a cxisténcia não é capaz de compreendcr sua própria comprecnsâo. Essa autooompreen-

196

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

A autocomprcensão implícita na existência pode scr cxplícada, e na medida em que a explicação é possíveL também é possível a elucidação da exislência, a qual, porém, não sc faz mediante uma análise meramente psíquíca, e sím por meio de uma análise existencial (não confundir com análise da exístência). A análise exislcncial constituL por consegu1'nte, uma caso-limite, já que deixa ao seu objeto o caráter de sujeiro. Em contraposição, o psicologismo transforma a pessoa espiritual em objeto. Não só a pessoa. aliás: Iambém os alos espirituais passam a ser objetos. Os atos espirituais, no cmanto, são, por naturcza. scmpre imencionais, o que signiñca que eles têm, por sua vez. objetos para os quais são intencionamenle dirigid0s. No momenlo em que os próprios atos são considerados como objetos, os objetos que Ihes são próprios desaparecem de nossa visla. Já que se trata, com rclação a csses objelos, de valorcs objetivos, o psicologismo se revela. añnaL tão cego para os valores quanto já sabíamos que o é para o espírito.

'

Tanto quanlo a existêncxa', também a intencionalidade se opõe à análise exclusivamente psicológica. E assim como somente a análisc existencial preserva a característica de sujeito da pessoa espirituaL somente a an'lise fenomenológica aos valores scu caráter objetivo, dános condições de “co-efetuar" os atos e, cm vez dc prescindir os va|0-

rcs, vé-los simultaneamente. Não admitindo os valores como objetivos. o pskologismo acaba por subjetivá-los; convertcndo a pessoa em coisa, objetiva algo de subjetivo. Desta objetivacão do sujeito, a Jubjetivaçãa do objelivo forma, assim, a contrapartida. O psicologismo peca contra o espiritual em dois aspectosz primeiramente, ao deixar de lado a existência da pessoa espirituaL peca contra o “espírito subjetivo"; em segundo lugar, ao não levar em conta a imencionalidade dos atos espirituais, peca contra o “espírito objetivo”. Este duplo erro requer dupla corrcçã0. No caso da negligência da existência do sujcito cspiritual cabc uma auto-reflexão sobrc a exislência; no do descaso pela intencíonalidade dirigida para o plano objeu'vo-espiritual, impõe-se uma renexão regressiva sobre o mundo dos valores, sobre o cosmo dos valores - uma reflexão regressiva sobre o logos.

são em potencial leria de ocorrer em um nível mais allo do que o da autocompreensão primordiaL “Aquele que percebe deve possuir. a ñm de podcr percebcr. uma dimensão n mais do que o objclo que é pcrcebido" - (Y. KV Suominem em ”Acta psychiatrica ct neurologica". 60. |7. l950).

“HOM0 PATIENS"

l97

Nota para a 29 edição Na medída em que o homem é essencialmente um ser cspiritual (transcendcndo_ portanto, a physis e a psyche), Iogos (sentido) representa o aspecto objetivo, enquanto exislência (o espcciñcameme humano) representa o aspecto subjetivo dcssa espiritualidade. No entanto, ambps os aspectos estão, por assim dizer, ultrapassados e ligados um ao outro pela cssencial aulotranscendéncía do ser homcm. o que eu deñno como um |ançar-sc por cima de si mesmo na dircção dc alguma coisa ou de alguém. a saber, de um semido a ser realizado ou de um parceiro a ser encontrado; cm qualquer caso, o ser do homem é autemicamente humano na proporção em que se coloca a serviço de uma coisa ou do amor por outre4m. Sim, pode-se dizer que o homem é vcrdadeiramente ele mesmo (e. com isso. se realiza) na mcdída em que na dcdicação a uma tarefa ou na afeição a um parccíro, esquecc-se dc sí. Esta autotranscedência da existência humana se reñete no campo cognitivo sob a forma daquilo que desde Brentano e Husserl é chamado de “intencionalidade" do ato espirituaL Essa capacidade do espírito humano dc transpassar o “conteúdo" consciente e imaneme, até um “objeto" transcedente à consciência, const1'tui. ao mesmo tempo, um indício de que o espírito humano como tal. isto é. na sua qualidade espeuñ°cammtc humana. se dcstaca quah'tau'vamentc, na sua maneira de funcionar. do psiquismo dos outros seres vívos. lsto foi conñrmado não só pelo antropólogo Max Scheler, como também por Arnold Gehlen e o biólogo Adolf Portman. Finalmente, Konrad Lorenz declarou-se partidário da tese de que o fenômeno humano introduziu, e não gradualmente. uma difcrcnça qualítativa no reino dos seres vivos. Quando mc qucrem provar que um chipanzé, num dcterminado conjunto dc circunstâncias. agiu de um modo que coslumamos defínir como "humano", não vejo nisso mais que o fato de que o chipanzé, pelo menos no decorrcr daquele instante pode ser qualiñcado de humano. 3. Logoterapia e Anâlise Existencial A finalidade do que chamamos de logoterapia é incluir o logas na psicoterapia; a ñnalidade do que denominamos análise cxistencial é incluír a existência na psicoterapia. A reflexão rcgressiva psicoterapêutica sobrc o logas signiñca o mesmo que reflexão regressiva sobre o senlido e os valores. A autoreflexão regressiva psicoterapêutica sobrc a cxistêncía é igual à auto-reflexão sobre a liberdade e a responsabilidade.

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSlCOTERAPIA

Reflexão regressiva sobre o sentido e os valores equivale a reflexão regressiva sobre um dever-ser, e reflexão regressiva sobre a liberdade e a responsabilidade corrcspondc à reñexão regressiva sobre um poder-ser. Na medida em que ambos - logoterapía e análise existencial represemam uma psicoterapia orientada para o espírito, essa psicoterapia se divide em logoterapia, como terapia partindo “d0” espiri~ tuaL c em análise exístenciaL como análise voltada “para” o espirituaL Enquamo a 'logoterapia vem “do” espirituaL a análise existencial se dirige “para“ o espirituaL A logoterapia não somente pressupõe o espiritual e o mundo objetivo do sentido e dos valores, como também se serve dcles para fms terapêuticos. A análise existenciaL por sua vez, não se limita a apontar o Iogos, entcndido como aquilo que “se deve" em cada caso; vai mais longe: o que lhe importa é ev0car a existéncia, defmida como aquilo que sempre “se pode”. Em relação à logoterapia e à análise existenciaL cumpre afastar dois equívocos. O primeiro deles seria o de pensar que a logolcrapia consiste cm que 0 médico, utilizando a lógica, procurasse dissuadir 0 pacicnte de alguma noção que estc mentalizou. lsso seria confundir logos com a lógica, e ver erroneamente na logoterapia semelhança com aquele tratamento que Duboís denominou “método de persuasão”. O segundo equívoco possível não sc refere ao conceito dc Iogos na logoterapia, mas ao de “análise” na “ana'lisc exístencíal". Análise existencial não signiñca, conforme antês explicado, análise "da” existêncía, isto seria uma contraliclio in ajd'ecto. “' Nunca deñni a análise existêncial como uma análíse “da” existência, e sim como uma análise orientada “para” a exislência. A existência não é nem

-ana|isável ncm sintetízáveL No segundo caso, seria isto impossíveL já que a existência é uma síntese (basta lembrar a “apercepção sintética”, no sentido kantiano). A existên_cia é o sujeito de qualquer síntese e, por isso, nunca poderia ser objeto de uma síntese. A análise “da” existência representa uma contradicgio in adjecto, enquanto “síntese da exístência“ ou expressõcs do tipo psicossíntese ” constituem plconasmos.

Em terceiro lugar, a logoterapía se situa, no que concerne à investigação, em uma oposição heurística, e no que concernc à doutrina, em uma oposição didática à psicoterapia, tal como esta tem sido pratícada até hoje. Não pretende, contudo. ser um substituto da psi-

“HOMO PATIENS"

'

l98

coterapia, no sentído cstrito do tcrmo. E impossívcl colocar a logolerapia no lugar da psicoterapia; é necessário, apenas, complementara psicoterapia com a Iogoterapia (do mcsmo modo quc a chamada “cura médica da alma" não devc ser um substituto para a cura da alma propn'ameme dita. de caráter religioso). O último equívoco possível se relaciona com nossa formulação sobre uma psicoterapia “a partir” do cspirituaL que parecc sinônimo de “de cima para baixo”. Podcr-se-ía objetar que uma tal tcrapia lembra o caso do homcm que queria começar a construir Dclo tclhado. Mas não é assim 0 que lmporta é não dar por terminada a construção quando se chega ao u'ltimo andar. é 'não terminar scmpre por onde sc começou, a saber, na infra-eslrutur.a. para a qual a psicologia profunda diríge exclusivamcnte a sua atenção._ _ Restam ainda alguns esclarccimcntos a ser feit_os. A análisc exis~ tenciaL por exemplo, é uma direção da corrcnte ínvestigadora, não uma doutrina. Como díreção em que se move a investigação. está aberta a duas possíbilidadesz cooperar com outras direçoc's ou evoluir. Como qualquer outro rumo da investigação. a análise cxistencial é unilateral; é necessariamente unilateraL e a necessidade não só lhe é imposta, como se impõe p'or si mesma. Estve ponto necessita dc uma explicaçãoz disse P. R. Hofstãtterz “ “Cada uma das tres“ cnlidades psíquicas encomrou seu advogado entre os terapeutas - o id em Freud, o ego em Adler, o superego em C. G. Jung, R. Allers e V. Frankl”. Fazendo-se abstração do jargão psicanalítico. a cilação é válida. Não esqueçamos, porém, de uma coisaz um advogado não só tcm o direito como também o dever dc tomar o partido do seu cliente. Recordemos nossa tarefa de encontrar um corretivo para a psicoterapia psicologista c reiteremos nossa obrigação de sermos unilaterais - conforme já foi dito h,á pouco - e veremos que temos de seguir o que preceituou Kícrkegaardz “Aquele a quem cabe fazer uma correção tem de conhccer com exatidão os pomos fracos do que exíste e opor-lhc o seu contrário de maneira unílateraL fortementê unilateraL Justameme nisso resíde o corretívo e. por outro lado, rcsignação daquele a quem cabe agir assim". Não é só a alma que representa um “vasto país", segundo a expressão de Arthur Schnitzler, também a psicologia, a psicoterapia. Ocorrc que nesse vasto país pode alguém dirigir seus passos nas maís variadas direções, e, aliás, é assim que tem de agir quem desejar explorá-lo. A conclusão é que apenas a colaboração das díferentes “di-

IO Vej..'-se Die Exislenzanalyse und die Probleme der Zeit. Viena, I947. pp. 34/35. e Der unbewusste Gon. Viena. l948, p. 32. II Ver Macder. De la psyrhunalyse à Ia psychosynthese, I'encéphale. l926. p. 584.

199

12 Einlírhrung ín die Tiefenpsychologie, Viena. 1948. pg. 183-184.

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

reçõcs” surgidas na psicoterapia permitc obter os melhores efeitos no tratamcnto c os melhorcs rcsultados na pesquisa. Nunca se deverá esqueccr que justamcnte nessa colaboração a unilateralidade tcm um papel a representar, uma missão a cumprir. Acontcce aquí o mcsmo que numa orquestra, cuja execução se baseia na coordenação dos vários instrumentos; cada um dos músícos toca o scu instrumento - notc-se bem, o seu próprio instrumcnto, nada mais! lsto, no cmanto, é válido apenas para o membro dc uma orquestra, não para o músico cm scu lazcr. Aqucle que tocar insistentementc seu instrumento nas horas dc folga acabará perdendo a simpatia dos vizinhos. 0 cxemplo citado no campo da artc também vale na ciência, mostrando que a verdade da_teoría pode não servir na Brática Assim, quem estiver na frente de batalha da investigação cxemíñca dcverá cuidar somente do seu setor, não Ihe res'tando, pois, outro remédio senão o de ser “unilateral”. Isto é certo apenas no plano da atividade. não no que concerne à teoría cientíñca. Talvez seja o caso de evocar a n'validade das duas primeiras escolas do Talmude, a de Híllel e a de Schammai. Elas viviam-se digladiando até que um día uma voz ccleste sc fez ouvir ordcnando que dali em diante todas as decisões fossem tomadas de acordo com a escola de HilleL Ê que ela humíldemcnte ensínava não somente suas próprias opíníões, como as da Schammai. 0 que, dentro da teoria, vale para a doutrína, prevalece também na pra'tica, onde nos vemos igualmentç obrigados a proceder ecleticamente. Em nosso curso universitário “Psychotherapeutisches Praktikum" e no nosso lívro Die nycholherapie in der Praxis" ” advogamos a causa do eclctismo conscíente. Seria inconcebível não atuar ecleticamente na psicoterapia parque ela é, em certo sentido, uma equação com duas incógnitasz v = x + y. Com efeito, toda psicoterapia tcm de lidar com dois momemos variáveis, °°desconhecidos", íncalculáveís, duas “incógnitas”: de um lado, a individualidade do paciente, de outro, a personalidade do médico. Ademais, todo método psicoterapêutico deverá ser alterado não apenas conforme a a índividualidade do paciente, mas tambcm' em função da pérsonalidade do médico. A psicoterapia, no que se refcre ao pacientc, há de ser adaptada não apenas segundo a pessoa, mas alterada de acordo com cada uma das sítuações sucessivas do pacicnte. Nunca se deve esquemat1'zar, o essencial é improvisar e índividualizar.

13 A Psicolerapia na Prática - Ed. Pedagógica e Universitária Ltda. São Paulo.

“HOMO PATIENS"

zrj

200

201

Nada disso seria possível sem uma dose de ccletismo. Tome-se muíto cuidado. porém, para que o ecletismo não degcnere em sincrctismo, dizendoz a psicanálise, a psicologia individual, idem; logo. psicanálise somada à psicologia individual deve dar um resultado esplêndido! Menos admirável ainda seria a ver na ausência de direção uma nova direção, nem scquer quando esta “nova” direção for balizado de “universalismo”. Constituiria um paradoxo cquivalente a fundar um clube de anticlubistas. Talvez seja convcniente perguntar se. e em que scntido. a logoterapia e/ou a análise exístencial - ambas não constitucm senão duas facetas da mesma doutrina - têm alguma relação íntrínseca com a é~ poca de hoje. Perguntamo-nos, pois: até que ponto se expressa nossa época por meio de uma tal doutrina? Até que ponto se refere essa doutrina a nossos dias? Em que sentído tem algo a dizer sobre o período conlemporâneo, ou algo a dar-lhe e, nesse caso. o quê? Em outras palavrasz queremos saber até que ponto existe um condicíonamento da doutrina pela época atuaL e por outro lado, até que ponto ela convém à época. Ou expressando de outro jeiloz até que ponto a doutrina é por um lado sintoma, e até que ponto é. por outro, remédío para os dias de hoje? Em rclação à primeira pergunta, não é difícil compreender em que sentido nossa doutrina expressa o espírito da época. Já mencionamos antes que não objetivamos restabclccer a capacidade dc trabalho e de prazer do homem, e que consideramos, pelo contrário, como uma das tarefas a nosso cargo, e não das menos 1mpor1antes, a de rcstabelecer a faculdade de sofrer do homem. A determinação desse objetivo já em si renete as provações às quais esta geração foi submetida.

k

Basta no que tange ao sintomatológico. Vejamos agora o problema terapêutico. Já dissemos que a psícoterapia dcve ser modiñcada conforme a pessoa e de acordo com a situação. E isto não vale também em sentido mais amplo, em que, em Iugar de situações e pessoas, fosse falado de nações e gerações? A psicoterapia não deve também ser ajustada segundo o espírito da e'poca? E até que ponto constituem a logoterapía e a análise existencial a terapia apropriada? Até que ponto são adequadas à época e correspondem ao espírito do momento atual? A análise existenciaL segundo ouvimos, focaliza a luta do homem em torno de um scntido - não apenas o sentido do sofrimento, mas também simplesmente no sentído da vida. Para a análisc existencial, não há apenas “Iuta pela vida". expressão que deu o tílulo a

J w ¡'› :

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

do espiritual até o “plano“ do psíquico. Com isso. todo ato espirítual perdc sua referéncia intencional a objetos transcendcntais. a objetos quc transcendem o nivel do psíquico. Suprimidas as referências. ñca somcntc. no lugar do espirituaL um estado psíquico. Ondc antes havia intcncionalidadc espirituaL não resta senão facticidade psíquica. No momento, contudo, cm quc se efctua essa projcção, o humano passa a ser ambíguo. Penscmos no que sucede se projctarmos ñguras tridimensionais - por exemplo. cone, csfera, cilindro - num plano bidimensionalz essas ñguras, vistas unicamente em projeção honz'ontal, perdem imedialamente seu caráter unívoco. pois todos os três causam a impressão de um círculo, são como um e scmpre o mesmo círculo. O mesmo acontece com o psicologismo, que projeta no plano psíquico o que há de espiritual no homem: nesse caso, as visões de uma Bernadette mal se distínguem das alucinações de uma histéríca qualquer, e tanto Maomé como Dostoiewsky passam a formar na mesma ñleira dos demais epilépticos. Entendemos agora por que o psicologismo na psicoterapia sempre esteve acompanhado de um patologismo, sempre demonstrou preferência pelas patograñas; ele não só deixa de perceber o espirilual, como também, no interior do psíquico, _só vê o patológico. Um exemploz segundo Küntzli, “ “Kierkcgaard foi mimado cm excesso pelos país e no caso especíñco do pai, que era um pietista ortodoxo, foi por ele educado de forma absurda. Sua grave neurose de angúslia se baseou no ódio ao pai, como reação reprimida ao método pedagógico por aquele utilizado, ódio que o discípulo de Hcgcl transferiu para todos seus mestres e chefes, para Deus e as autoridades em geraL manífestando~o através de uma crítica desmedida. Na sua ñlosoña. o cscritor c poeta antecipou de quase um século noções da psicanálise, sem conseguir, todavia, libertar-se da enfermidade nervosa de que padecia". Abandonemos Küntzli e vejamos outro "caso” examinado por diversos aulores citados por MuralL '° Binet cstabeleceu o aeguinte diagnóstico relativamente a Jesus Cristoz "Paranóia com crise juvenil hebcfrênica"; Loosten e Hirsch também ñzeram o diagnóstico de paranóia (devido a um delírio dc grandeza. já que “acreditava ser um Deus"). Segundo Lange-Eischbaum, ” o denomínador comum em Jcsus Cristo é o patolo'gico. “Pode um homem razoável duvidar da existência de uma psicose? A idéía dc que Jesus Cn'sto foí um docnte

lSDíe Angsl als abenlãndische KrankenheiL l948. referido por Kielholz em Schweizerisrhe Medizimltrhe Wochenschnfl' 79. II5. l949. Ió Wahruinniger oder PmpheL Zurique, l946. PP. 249~250. : l7 Gen¡e, lrrsinn und Ruhm, l928. cilado por MuralL

"HOMO PATlENS"

-_.

204

205

mental está em curso. Não importa o diagnóstico que o psiquiatra estabelecaz paranóia ou esquizofrcnia incipientc são sintomas paranóides". Sua constituição inata foi cxtremadamentc csquízóidepsicopática. O mcncionado invcstigador conccdc pclo menos a Jesus “uma predisposição primária dc talento algo superior à média” “Precisamente o clcmento paranóíco despertou nos discípulos o sentimento numinoso. Nossa ética atual se encontra num nívcl tão supcrior à do Nazareno que o contraste emre elas é impressionantc. cmbora a nossa continue a ser chamada de cristã". Lange-Eischbaum tcve. contudo de cngolir o comemário de Muralt. quando este lembrou que a frase que acabamos de citar foi ímprcssa em l942. isto e', no momento em que doentes mentais cstavam scndo submctidos à eutanásia... › a) Prazer e valor Na vísão psicologísta, tudo adquire um caráter não só ambíguo, como uniforme. Uma vez que se sacriñca o objeto transcendenlc do ato intencional (o objeto espiritual) o que pcrmanece, por exemplo, de um valor objetivo nada mais é que o prazer subjetivo (notc-sc bcm, um prazer uniforme) ". * Esse prazer residual, que é sempre idêntico, seja qual for a ocasião ou a circunstãncia, acarreta um nivelamcntoz o mundo perde sua dimensão de profundidade e a realidade. o seu relevo de valores. Em resumo: o prazer é o resíduo que ñca pra trás após uma intervcnçâo psicologicisla; é o que re_sta tão logo o ato intencíonal se vê despoja~ do dc sua intencionalidade, tão logo é esvaziado de sentido. Com isto, ñca dcmonstrado que o princípío de prazer, “ além de não poder ser uma norma de tratamento. como já foi dito, não é capaz de constituir um princípio válído de explicação; ao se caracterizarem os "mecam'smos psíquic0s”, o “aparelho psíquico", como algo regulado pelo princípio de prazer, não se está favorecendo a nccessidade de explicação.

18 Comparc~se com Viclor E. V. GclsaueL Chrislenrum und HumanismuL Slutlgam l947, p. 34: “No lusco-fusco do cnfoque apcnas psicológíco, todos os gatos sâo pardos“. 19 No âmbilo_ dcsla nossa crítica do conccito psicanalítico de um princípio de prazer. o chamado princípio dc rcalidadc pode ser deixado dc lado. pois cle represema de cuto modo uma modiñcação do primeiro e lambém visa alcançar o prazer (S. Freud. Obras Complelas. volume Xl. p. 370). ou ainda signiñca “num dclerminado senlido a complcmemação do princíplo do prazer alravés de outros meios" (H. Hnrlmann. “Ich-Psycho|ogie und Anpassungsproblem". Psyche l4. 81. l960). "Um prazer momentâneo c inccrlo em suas conscqüências ê abandonado mas para ser substituído por um outro postcrior e mais garantido" (Freud. O. Comp. Vol. V. p. 4|5).

,. Á< '. _«,_

No emanto, a psicanálise pressupõe tacitamente o essenciaL já que no caso de um tratamento bem sucedido haverá sempre uma reorienlação existcnciaL O resultado então não se deve à doutrina propriamente dita, mas ao psicanalista como ser humano. Pois o psicanalísta jamais é apenas psicanalista; é ao mesmo tempo homcm. Sem dúvida quando o cfeito dc sua ação terapêutica passa a decorrer

._ ._

1 1

b) lmpulso e sentido Se a psicoterapia psícologista ígnora o espirituaL a psióoterapía orientada para o espiritual não constata, por sua vez, a existência de qualquer anseio primário de prazer. O que ela reconhece é a oríenta-

É certo que não só o psíqu1'co,também o espiritual tem a sua dinâmica. que não sc baseia, contudo, nas pulsões, mas no anscio pclos valores Ncstc anseio espiritual entra a pulsão psíquica. cntram os impulsos como cnergia “alímentadora”. Procurcmos esclarecer. com a ajuda de uma parábola. o tipo de engano que a psicanálise comete em relação à energia alimentadora da vida espirituaL Que vê um trabalhador dos servíços urbanos, da perspectiva de seu trabalho? Vê apenas canos de água e de gás, cabos de eletn'cidade. É tudo o que vê enquanto estiver afundado no mundo dos tubos. Se não conhecesse as universidades, as igrejas, os tcatros c os museus da cidade, nada saberia da sua vida culturaL Mas isto ele só pode conhecer nas horas de folga, quando vai até a cidade; enquamo permanecer nos fossos, na infra~estrutura, se moverá tãosomente no ambiente das encrgias que alimentam a vida cuItural citadina. A vida cu|tural, porém, não se compõe de ga's, água ou eletricidadc. O mesmo ocorre com o psicanalista, que não enxerga alem' da infra-estrutura psíquica da vida espirituaL Não consegue divísar senão a dinâmica efctiva e a encrgética dos impulsos. Ora, a vida espiritual não se constitui de prazer e impulso. Nenhum dos dois fatores represema 0 essenciaL nenhum dos dois importa realmente.

w

i

ção para o sentido e o esforço vísando o valor. ambos fatorcs originários. Em outras p'alavras: vê a intencionalidade dc tudo que é cspi~ rituaL Não vê somente a intencionalidade, vê igualmentc a existencialidade. Para a análise existenciaL há, antcs do querer, um dever tornado conscicnte; para a psw'ana'líse. ha'. por trás do querer conscientc, um “tem de ser" inconscientc. Para a análise exístcnciaL o homem tcm à sua frente os valores; para a psicanálíse, ele tem em suas costas os impulSOS, o id. A psicanálise considera toda cnergia como impulsíva, força impelentc, para ela tudo é vis, vis a tergo. Na verdade, o homem não é impelido pelo impulso (pulsã0) e sim puxado pclos valores. Constituíria uma violação da língua dizcrsc, no segundo caso. “ser impelido“. Os valores me atraem. não mc empurram. Para que eles se concretizem, tomo decisões livrcs e responsávcis, entrego-me ao mundo dos valores. Não se trata, de modo algum de ser em função dc uma pulsão.

y

O príncípio do prazer não é um princípio psicológico, e sim patológico; se alguma vez tiver validade, não será com referência a fatos psíquicos normais, já que originariamentc o homcm normal não se satisfaz com o simples prazer, anseia pelo sentido. O prazer é algo que se apresenta, em cada caso, por si mesmo, ao ser atingido 0 obje› tivo. 0 prazer é conseqüência, nunca meta. É o resultado de um efeito. não de uma intenção; é suscetível de ser “efetuado", mas não “intencionado". Justamente quando a intenção o coloca na mira, se esvanece. Kierkegaard añrmou que a porta que dá acesso à felicidade se abre de demro para fora; forçá-la a se_ abrir em sentido oposto acabará por bloqueá-la. Coisa parecída ocorre quando alguém tema inutilmente obrigar o sono a virz ele foge precisamente de quem o deseja muito fortemcnte. Por isso, já o compararam à pomba, que pousa na mão imóveL mas voa quando percebe que a querem aprisionar. O problema pode ser vísto com mais clareza justamente onde o prazer é o objctivo essencialz na vida sexual. É inerente à natureza das neuroses sexuais que o indívíduo, ao se esforçar para conquistar como meta o prazer que o instinto sexual lhe proporciona automaticamente, fracassa, quando satisfeito, na razão mesma desse esforço. \ Logo que, em vÀez dc nos entregarmos imencíonalmente ao objeto de uma aspíraçã0. ñxamos nosso interesse na própria aspiração, deixamos evidcntcmente de perceber o objeto, nos afastamos dele e só nos damos conta de um estad0. O lugar da íntencionalidade é tomado pela facticidade; em outras palavras, a íntenção como valor impregnado de prazer é subslituída pelo fato °°prazer”, carente de sentido. Renunciamos a algo capaz de causar prazer e nos concentramos no próprio prazer, mas este some tão logo falta aquilo que o ocasiona. lntentar o prazer leva ao mesmo resultado que ñxar-se na execução prazerosa do ato. Todo intencionar do gozo o destro'i. Outrossim, buscar o divertímcnto acaba por afastá-lo de nós. O que acontece num comportamento de tal ordem é uma conversão do prazer qua conseqüência em prazer qua intenção. Não esqueçamos. pore'm, que ísto corresponde a uma apreciação típica do neurótico. Compreendemos agora por que a psicanálise t1'nha'forçosamente de chegar à concepção do princípio de prazer: é que partindo de um resultado neurótico, ela o generalízou injustíflcadamente.

207

.- a

"HOMO PATIENS"

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

Nça_.›

--.

. . _ ._ .4

.,

206

Com certeza isso poderia ler sido obtido de modo muíto mais cômodo. Não havia necessidade de a psicanálise prlmelrameme ne-

20 Julgo muito oporluna e concisa a pilhéria cilada por Joscph Wildcr no American Journal of nycholherapy (26. 447, l972) e extraida do abundamc ancdolário corrente nos Estados Unidos. “- O scnhor é psicanalista?" “- Quc cslá tentando csconder por lrás dcssa sua pergunla?" “- É. vejo que o scnhor é mesmo psicanalisla...”

gar a existência do anseio pclos valores e depois se dar ao trabalho de trazer de volta o que escamoleara, os valorcs. Basta. no que concemc à pergunta “por que devo sublímar?” Abordemos agora outra questão que temos na ponta da línguaz “Como posso sublimar?" Sabemos de sobra que a psicanálise vê somente a pulsão, sem levar em conta o anseio pclos valores. Com isso, tornase impossível comprecnder fatorcs como a sublimação ou.a rcprcssão, e a qucstão de como justíñcar a sublimação ñca sem rcsposta, já quc, em úllima análise, conduziría a uma questão de carátcr mais seralz “Quem rcprime quem? Os impulsos do ego aos impulsos do id?" Não constituiria uma resposta adequada; chegaríamos com ela ao ponto onde chegou a psicanálise. a saber, a uma conccpção do cgo derivado gene'tícamente do íd e se construindo a si mcsmo pelo uso dos “impulsos do ego". A concepção, no entanto, é absurda e contraditória. No plano genético, como no dinâmico, é uma contradição imerna. Jamais algo de pulsional será capaz de obrigar outro algo pulsional a se transformar e ñxar outros objctivos. O instinto é incapaz de sc transformar no valioso c dominar o instintivo. Ou alguémjâ ouviu dizer que um rio tenha conxtruído uma cenlral hidrelétrica7 E impossíveL por conseguinte, conceber o ego como fundamentado nos impulsos. 0 que, entretamo, não exclui que em todo csforço pelos valores se encaíxa algo de pulsionaL já que, como dissemos, os impulsos atuam como energia alimentadora. A energia, todavia, é mobilizada pelo ego, que pode e deve dela díspor. A energia pulsional que entra na dinâmica do anseío pelos valores terá sido mobilizada por uma instância não-pulsional, cuja realidade é comprovada justamentc através dessa mobilízação. Qualquer polêmica contra a psicanálise é diñcultada pelo fato de que a psicanálise se entrincheira por trás de seu próprio psicologismo, como quando proclama que aquclcs que não se deixam convencer por ela, que não a entendem, deixam transparecer, na verdade, “resistências" que não foram submetidas à análise. Nâo deveria, comudo, a psicanálise facilitar para sí mesma as coisas a tal ponto, sobretudo porque, ao qualiñcar dessa forma as objeções de seus adversários, renuncía ao direito de ser tratada como ciência. Por mais árdua que seja a polêmica contra a psicanálisc, c contra o psicologismo em geraL a tarefa ñca facilitada. e até se torna díspensáveL pelo espetáculo dos “ismos“ a se entredevorarcm Veriñcamos como as diferentes psicologias desmascaradoras procuram desmascarar-se mutuameme. Assim, por exemplo, a psicologia individual acusa a psicanálise (e não sem razão) de revelar uma tendência para desvalorizar tudo que não seja sexual, tudo que scja sublimado, o que favorece o libídinoso; aos olhos da psicologia indíviduaL o psicanalista caiu na armadilha dos neuróticos relativamente

NL

209

4-. _ 4-x

de sua qualidade como pessoa. o psicanalistajá saiu de seu papeL Na medida em que atua graças á sua personalidade, o faz em carátcr privado, não como proñssionaL A exemplo do trabalhador das vias urbanas, que só nas horas de folga loma conhecimento da vida cultural da cidade, o psicanalista consegue conhccer a vida espiritual do próximo somenle quanto a vê do prisma de um leigo. Dissemos anteriormente que, na concepção da psicanálise, existe por trás de todo querer consciente um “tem de ser” 1'nconsciente. Assim, os objetivos a que o ego se prop0e' são apenas meios para alcançar um ñm imposto pelo id; este o consegue passando por cima do ego. Vistos desse ângulo, todos os motivos do homcm parccerão impróprios, mesmo o homem como entidade parecerá impróprio. Todas as tendências culturais, sejam de natureza teórica ou prática, estética, ética ou religiosa, em síntese, toda aspiração espiritual dará a impressão de ser mera sublimação. Se assim fosse. o espiritual não seria mais que uma mcntira da vida. um auto-engano. Para a psicanálise, pouco importa. Se eu acreditar nela, não posso ímaginar-me como um cirurgião dedicado ou um amante entusiasmado da verdade, o psicanalista procurará convcncer-me de que, na realidade, sou apcnas um voyeur ou um sadista sublimado. Em outros tcrmosz na verdade, sou um escravo dos mcus impulsos, e quando me mostro interessado por ccrtos valores ou tenciono efetivá-los estou simplesmente ñngindo para mim mesmo. Segundo a psicanálisc, existe sempre algo detrás, algo por lrás de cada coisa e de cada um; por isso cla está scmpre dísposta a dcsmascarar a realidade. É essencialmcnte uma psicoterapia desmascaradora. z° Supondo-se que as coísas se passassem realmente assim, isto é, que todo anseio de valores fosse mero fruto de minha imaginação e que eu me encontrasse sempre dominado por impulsos, não teria eu o direito dc perguntarz para que devo conscrvar este auto-engano, por ue devo sublímar? fácil prevcr qual seria a rcsposta da psicanáliscz que devo sublimar por causa da cultura. Então existe um “por causa dc”... Aí teríamos colocado a psicanálise na obrigação de admítir que cxistcm valores, quod erat demonstrandum

“HOMO PATIENS"

. .-

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

._,

208

21 ldentiñcar a consciência com o superego equivale a um flagrantc reducionismo (esKa idcnúñcação. aliás. não ê mantida na psicanálisc moderna). Mais do q_ue sim_plesmente reducionismo. é sub-humanismo. 0 pomó é assim abordado por Joscph Wilder. “Se ao construnrmos o snpcrego das cnanças proíbimos-lhes um praur momcntá~ neo ou as obrigamos a fazer coisas desagradávcis. justiñcamomos diante delas argumenlando que o objclo dessas medidas é evitar futuros sofrimentos ou aumentar fuluros prazcrcs. Esle tipo de procedimento não é especiñcamcnlc humano,' o condic1'onamenlo dos animais segue idênlico princípio. Se condiciono um animal a não tocar na comida quando sc aoende uma luz vermelha. a ñm de que se livre da descarga elétrica subseqüente. en_sinei-lhe a saériñcar o prazer do momento (comida) em beneficio dc uma ausência de dor no futuro (choque elélrico)" (“Values and thc Psychology of thc Supcrego". American Jounal of Psycholherapy, 27, 187. 203. l973). 22 0 manifesto francês foi estampado na Nouvelle Critique. junho dc l949.

2|l

não é mais que basu'dorcs. Finalmente, restam apcnas os bastidorcs graduados cm profundidades qada vez maiorcs e, cm u'ltima análisc. tudo é ilusão, omnia vana. Conforme já disscmos. por trás de todos os * “ismos" está sempre o mesmo niilismo (m'hiI-ismus). Todo relativismo, todo ceticismo acabam, entretanto. por sc anular, e é o que sucede igualmente com os “is'mos“. Na luta que man~ têm uns com os outros trocam. sem se darem conta, acusações quc derrubam esses ídolos de barro. Temos a obrigação dc ousar desmascarar a psicotcrapia “dcsmascaradora” e vencê-Ia, a este feudo do psicologismo. usando as próprias armas psicologistas. Com tal fmalidade. podemos tomar como pomo de partida a equação segundo a- qual saber cquivale a podcr. lnvertend0-a. teremos: não saber algo. ser inconscíentc dc algo, corresponde a impotência. Disso resulta que saber algo a respcito do inconsciente de alguém me dá poder sobre esse alguém. A psicologia profunda me possibilita aparentemente conhecer o inconscicntc de outrem até em seu aspecto mais recôndito. Posso chegar a saber mais sobrc ele do que elc próprio sabe. do que elc próprio é capaz de saber. Tendo adquirido por meio da psícologia abissal a visão profunda de sua alma, não somente possuo a chavc dela, mas, no ñnal de contas, tcnho a ele próprio em minhas mãos. Doravantc posso dispof livremente dele, quer dizer, de sua dinâmica afen'va e'de sua energética impulsiva, de seus complexos e mecanismos; estou, pois. diante dc sua alma como um técnico díante de um painel de comando. O que procuramos acima caractcrizar foi o tipo do médecin lechnicien, a correlação moderna, ainda que anacrônica, do homme muchine * de triste memória. Se formos ao fundo dessa atilude médicopsicologista. veremos que se origina do ressentimento, do anseio de mando. assim como - para conservar uma expressão da psicologia individual - de uma tendência desvalorizada. Trala-se de não admitir o outro como homem, em seu ser-homem, de privá-lo de sua dignídade humana. O que vemos aqui é a degradação do “tu" no id. A alma é despojada do eu. vira uma terceira pessoa. Essa tendência à despersonalização e à objetivação, essa tendéncia tecnológica nascida de um ressentimento, não constituí apcnas o fundamento da psicologia psicologista, em particular da psicanálise. mas atua também na psiquiatria em geraL numa psiquiatria que não respeita a pessoa cspiritual do doente mentaL A fmalídade desses motivos subjetivos de atitude e orientação impessoais no tocante ao

' Em francês no original (N. do Trad.)

-h-w_ _

ao poder do id. Em compensação, do pomo de vista da psicanálise, cumpre intcrpretar a psicologia indivídual, como, de certa maneíra, um meio de reprímir com maior força as pulsões. De uma maneíra ou dc outra. estamos sempre pcramc um meio para alcançar detcrminado ñm, ou o seu oposto. Agora surgem os outros ismos: um coloca o' fenômeno vital no centro do seu campo visual, é o biologísmo; outro coloca o social no lugar do vitaL é o sociologismo; existe ainda aquele que escolhe um produto híbrido de ambos, reuníndo num unílateralismo maíor os critérios unilaterais dos dois pontos de vista: o racismo. Pode acontecer, então. o que de fato já aconteceu: a psicologia individual ser acusada de não passar de “um instrumento a scrviço da ambíção judía de dominar o mundo”. Todos esses “ismos" estão constantemente empenhados em demonstrar a inautenticidade das motivações humanas. Por ñm, se chega a uma espécie de escalonamento, nos bastidorcs, dessa inautcntícidade. Pr1'mciramentc, a consciéncia é “psicologizada” pela psicanálise transformando-sc no superego; “ depois é “sociologizada", pois, a crermos numa declaração de psiquiatras franceses. o “superego não é outra coisa senão a superestrutura ideológica da classe domínante”, já que a “psicana'lise ignora o fato essencial de que os mecanismos psíquicos por ela descrítos não são maís que os fatores indiretos por cima dos quaís a realidade social chega ao índivíduo". A própría psícanálise é uma “ideologia reacionária” n que só servc para “desviar a atenção da luta política". Nesta luta. os “ismos” se combatem mutuamente. Cada um dos “ismos” vê, no seu modo de observação unilateraL uma só camada da existência, em cujo plano projeta a totalidade da realidade, indifcrente à sua plenitude cxistenciaL Este plano passa a ser a verdadeíra existência, todo o resto ñca ambíguo, vira ilusão,

“HOMO PATlENS"

-m_. «-

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

m-

210

r 212

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

enfcrmo residc em poder classiñcá~lo como um “caso", de degradálo até converte-'lo em um exemplo de “EQZ” (esquizofrenia), “P.G.P.“ (paralisia gcral progressiva), e assim por diante. Se para a psicoterapia psícologísta. o homem desaparecc por trás dos complcxos, dos quais aparenta ser um mero joguete, para a psiquíatria psicologista desaparece por trás dos sintomas, dos quais dá a impressão de ser um simplcs portador. O homem é degradado pelo psicoterapeuta à condição de um ente calculáveL añm de ser tutelado pelo psiquiatra. em face de eventual imprevisibilidadc que venha a sc manifestar. Em ambos os casos, a tendência do tratamemo é dominar o docnte. Um de meus colegas ao responder à perg'unta de por que se tornara psiquiatra, cxplicouz “Sabe de uma coisa, preferi ter a chave do manicômio em minhas mãos, a deixá-la nas mãos dos outros". Ter a chave à sua disposição, eis o âmago do problema! Ter poder sobrc os homens subjugando-lhes a alma. Daí o nimbo mágíco que envolve o mais antigo método de psicotcrapiaz o tratamen_to hipnótico. Não será difícíl entender que essa ambição de mando e essa tendência desvalorizada tenham provocado um movimento de reação, que algo em nós se revolte contra o rebaixamento da pcssoa cm coisa e do eu no id. O psicologismo não conseguiu pepetrar na psicoterapia sem encontrar resistências. 5) Psicanâlise e Psicologia lndividual Em comrastc com a psicanálise, que analisa a impulsividade, a análise existencial analisa aquílo que é dotado de sentido. O que cstá cm causa na análise existencíal é prccisamente a faculdade de a vida signiñcar algo. Mas constitui ponto pacíñco que o homem se oríenta sempre para um sentido. A existência do homem é considerada pela análise existencial como cssencialmentc governada pela vontade de sentido. A ñm de avançar em nossas ínvestigações, seria convenientc adotar heun'stico-hipoteticamente a tese de Hans Urs von Balthasar segundo a qual “o sentido da existência consíste no amor”. " Aceitando-se tal hipótcse, cumpre acentuar que amor é semprc amor dirígido para um “tu”. Só podcmos amar algo de concreto, jamais algo de abstrato. um valor qualquer. O valor só pode ser amado quando personiñcado em alguém (não necessariamente uma pessoa humana. poderá também ser uma pessoa sobre~humana. uma superpessoa, Deus, por exemplo). A pessoa é concreta, o que de mais con-

23 Walmil der WeIL Zurique. l947. p. 118.

"HOMO PATIENS"

2|3

creto existe. Esta qualidade é perccbida por qucm a ama através de seus atributos concretos; mas não são esses atributos - cssc caráter psicoñsíco - que constituem o objcto do amor, já quc todo atn'buto, todo traço de caráter, é mais ou menos ubíquo, e só a pessoa espirí~ tuaL pelo contrárío, é, em cada caso, amada, única, c somcmc ao ser percebida em sua unic¡'dadc. Enquanto se considcrcm apenas as características corporais ou as parlicularidades psíquicas, não sc trata de amor, mas de “enamoramento”. A atitude amorosa se defmc pelo fato de quc, através dc sua imagem externa e interna, é enfocada a pessoa espiritual que a imagem revela. Somente com relação à pessoa posso dizer “tu", mas não o posso dizer com relação a um valor como tal, ou seja, “algo” (em contraposiç_ão a “alguém") ou ainda a um atributo “cm" alguém, a saber, a cor do cabclo, dos olhos, a forma do nariz, o modo de falar, de sorrir e assim por díante, por mais que isso me excitc ou cntusiasme. O amor pressupõe a rcfcrência a um “tu”, uma referência que tanto a psicanálise quamo a psicologia índividual relegam ao plano secundário. enquanto privilcgiam duas outras possíveis referências: o id e o “ele". ' Com isso, teremos conñgurado as três dimensões dcntro das quais o eu se relaciona com o não-cu: tu - id - ele. Enquanto a relação entre o “eu” e o id - tal como entrc o “cu" e 0 “ele" - constitui uma relação anônima, a relação entre o “cu” c o “tu" é pessoaL Sc meu “amor" se originou apenas do id, de minha própria impulsívidade. enlão não amo verdadeíramente. Se procuro apenas um tipo impessoaL relacionando-me como id, na realidadc não amo. O amor ou é amor entre o “eu” e o “tu" ou não é nada. Geralmente o “amor" originado no id, assim como o "amor" voltado para o “ele" se condicionam mutuamente: o id jamais achará outra coisa scnão o “ele", e é justamente o que busca; enquanto o “eu" busca sempre o “tu”, e o encontra. Essa añnidade entre o id e o “ele“ se explica, além dísso, por outra causa: tão logo a relação pcssoal eu-tu decai até chegar à relação anônima id-“ele", o eu deixa de investír algo de gcnuíno, cessa dc colocar algo que lhe scja incrente no seu relacionamento com o tu; simultaneamente, não sente mais imeresse pelo tu como fator pessoal, só como anônimo. Em síntcse, o 1_'d_a partir do qual o indivíduo ama não é um eu amame, e o “ele” que é amado não é mais o tu amado. Que acontece quando o ambfse vé aprisionado na rcde categorial, no sistcma de coordenadas da psicanálise e da psicologia indiví~

' A relação que forma o nós é a relacão “EU", “TU". A relação “EU“, “ELE" nño constilui a relação amorosa existencial a que se refere o autor (N. do R.T.).

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

2|5

i

Nota para a 29 edicão Extraída de Viktor E. Frankl, “Logotherapie und Religion” in Psychotherapie und religiose Erfahrung, organizado por Wilhelm Bitter, Klelt. Stultgart. l965. pp. l35-136. A doutora Hcrzog-Dürck tem razão de assinalar que. embora considerado por Freud como um epifenômeno, o amor, na realidadc. é um

24 Conformc aconselhou Goethcz “Dcvcmos visar sempre o centro do alvo, mesmo que nem semprc se consiga au'ngi-lo".

_. . : _~ w. _ . _.-.

purrado para a frente, de um desempenho a outro, numa cscala ascendentc. No que tange a essa progressão, queremos apcnas obscrvar, entre parênteses, que o homem não dcveria competir com os outros, mas consigo mesmo. E a rigor nem isto deveria fazer. já que o esscncial não é dar o rendimemo máximo, em termos absolutos. e sim o melhor possível em cada caso. “o melhor dc si mesmo", o meIhor em relação à pessoa e às circunstâncias peculiares. Mcu rival não é outrem, nem propriamcnte eu mesmo numa época já passada: meu rival sou eu mesmo, hoje. com as possibilidades que tenho à mí' nha disposição no momemo atuaL lsso não impede que eu deva sempre ter em mira o melhor. em semido absolulo, se quiser alcançar 0 relativamento melhor. “ Talvez se argumente que é impossível saber isso ludo e não sc sentir perturbado, já que a vonlade que tende para o melhor absoluto é estorvada pelo conhecimento do relativamcnte melhor. Pcrgunte~ mos seriamentez esse conhecimento há de, forçosamente, prejudicar a procura? Não será possível querer que de minhas ações resulte o absolutameme mclhor e, ao mesmo tempo, saber que o resullado será scmprc o relatívamente melh0r? A resposta é añrmatíva, com a condição de que cu saiba que o efcito só será o relatívamemqmelhor se a intenção for de obter o absolutameme melhor. Com isso. a consciência do efeito, em cada caso insuñciente. será corretamente enlendida e não equivalerá a uma perturbação necessáría; pelo contrário, poderá servir de estímulo a uma busca de perfeição. O homem necessita de um precursor, e justamente porque dele precisa. lhe é igualmentc necessária a distância inalcançável que o separa do precursor. O precursor perdcria sua razão de ser no momento em que fosse alcançado. A vida consiste na tensão indispensável cntrc 0 que é e o que deveria ser. Pois o homem não se destina a serr mas vir a ser...

-«-_¡m_

ção brigam com o sono. Quem persegue um alvo vê-se scmpre em-'

. .,

dual? Ambas escolhcrão o que lhcs convier em cada caso: o que p^ossa ser projetado na abcissa psicologista da psicanálise ou sobre a ordenada sociologista da psicologia individual. Não se darão, todavia, ao trabalho dc considerar o amor em seu fenomcnalismo, não preservarão sua existência. o que só podcña ser alcançado por uma análise fenomenológica ou existenciaL A psicologia psicologista profunda, pclo contrário, renuncia à cxistência pcssoal do amor, voltando-sc cxclusívamentc para sua facticidade vital ou sociaL 0 que rcsta é apenas uma modalidade deñciente do amor. Nós conhecemos essas modalidades dcñcientes do amorz a libido, e o sentimento de comunidade. Eis o que resta do amor nas mãos das psicologias abismais psicologistas: de um lado, mera sexualidade, a un'pulsividade scxual do homcm; de outro, mera socicdade, o vínculo social que prende os homens. Que acontcce. ncssc processo de decadência, com a vontade dc scntido? Transforma-sc em vomade dc prazcr, no caso do abandono da existencialidade pessoal (em beneñcio da faticidadc) vital, quer dizer, da sexualidade do homem; e em vontade de poder, no caso de primazia da faticidade social, portanto, da sociabilidade do homcm. Veriñca~se, pois. que a decadência do amor sc acompanha neccssariamente de uma degencração da vomade dc sentido, que é subjetivada. Neste aspecto, a vontadc de poder se sítua em posição diteta~ mentc antagônica à vontade dc amor (de amor como sentido da vida). O poder conhece exclusivamente um sentido e um valor subjctivos e relativos, um valor “para mim"; o amor, todavia, vê também o sentido e o valor objetivos e absolutos,_ o valor “em si". O poder busca a utilidade de uma coisa; o amor, por sua vcz, rcspeita também a dignidade dc uma pessoa. 0 podcr faz do indivíduo um egoísta; o amor, em compcnsação, o torna sensívcl aos valores. Para aqueles que se inclinam a ser partidários do podcr, a scguime frase de John Ruskín pode ajudar a ver claro: “Só há um poder, o de salvar; só existe uma honra, a de ajudar". Com efeito, exíste uma relação análoga entre o poder e o senlido, de uma parte, o dasempenho e a honra de outra. Mas constituiria grave erro pensar que a busca de desempenho substitui a aspiração à honra, no semido de uma sublimação. Ocorre exatamemc o contrárioz não é a ambição que representa o fator primário, e sim a ânsia de realizar. Maís a_inda: toda ambição é, no fundo, uma busca de desempenho, uma busca que degenerou. Comparada com a ambição, o anseio de realizar é incômodo, pois se é possível “dormir" sobre os louros, o desempenho, a produ-

"HOMO¡ PATIENS"

. - . _,

2l4

Ég

216

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSlCOTERAPIA

"HOM0 PATIENS"

fcnômeno pn'mán'o da cxístência humana. Não pode scr tido como epífenômcno nem sequer no sentido dc tendêncía inibida quanto ao alvo (“zielgehemmter") ou dc uma sublimação. Fcnomenologicamcntc, é até possível demonstrar que o amor é uma pré-condição da possibilidade de surgimento da sublimação; por conseguinte, a capacidade de amar - pré-condição de toda sublimação - não pode ser o resullado de um processo de sublímação. Em outras palavras, somente em segundo plano, com relação a uma capacidade de amar prímária e cxistenciaL dc uma ínclinação origínal do homem para o amor, torna-se compreensívcl a sublímação, isto é, a integração da sexualidade na pessoa como um todo. Em síntesc, apenas o ego dírigído para o zu é capaz de íntegrar o seu id. Já disscmos o suñciente no que se refere à crítica das conccpçõcs freudianas. Contentemo-nos, numa atítude generosa, em defendcr Freud de seus próprios equívocos. Quc signiñca rcalmente a psícanálise se ñzermos abstração de todos os fatorcs condiconantcs do sécuIo XIX, de todo o verniz, daquele período? ch, o ediñcio da psi-

lll.

í i Í

IL Sociologismo

Ê

canálise repousa em dois conceitos essenciaisz o recalque e a transferência ( Verdrangung e Ubertragung). O primeiro é contrariado, no contexto da psicanálise, pelo tornar-se conscíente. Todos conheccmos a comparação feíla por Freud com o desaguamento do Zuidcrsce, assim como sua frase orgulhosa c dígna de um Prometeuz “Onde houvcr id, passará a haver ego”. No que tange à transferência, penso que se trata de um veículo para o enconlro existenciaL Portanto, a quintessência da psicanálise, aceitável ontem como hoje, pode ser formulada da seguinte maneira que abrange ambos os princípios do tornar-sc conscicnte e da transferêncíaz “Onde houver id, passará a haver ego", desde que sc acrescentez “0 ego se torna ego ao Iado do

Todo o humano é condícíonado. Por outro lado, o que distingue verdadciramente o humano é o elevar-$e acima de sua própria condicionalidade, quer dizcr, “transcendendo-a”. O homem só é autcntícamente homem na medida em que se situa - na qualídade de ser cspiritual - além de seu ñsico e psíquico. Em outras palavrasz o homem só é existencial na proporção em que se afasta tanto do vital quanto do sociaL Certamentc ele é também um ser vital e socíal (e veja-se o que foi dito, antes, sobre a psicanálise e a psicologia indívidual), mas a possibilidade de transcender as necessidades vitais e socíais faz parte de sua natureza. A sujeição do homem não é, portanto, apenas um elemento factuaL é uma realidade que clama, por assim dlz'er, para ser ultrapassada.

2l7

0 biologismo tem em mira a condicionalidadc vital do homem. a exemplo do psicologismo, cnquanto o sociologismo considcra a condicíonalidade sociaL ” Tudo, porém, é mais ou menos socialmcnte condicíonado, e por conseguinte toda investigação sobre o condicionamento social - scja de que fcnômeno - tem sentído. Não quer dizer, é claro, que qualquer formulação sirva. Seria válido pesquisar, por exemplo, as condiçõcs sociais relativas ao estudo da medicina, mas não o seria quanto à sociologia da cirurgia do cstômago; não tcria, outrossim, cabimcnto fazer um juízo político-crítico dos métodos dc operação scgundo Billroth I, II c II¡, ou responder à questão de quais métodos cirúrgicos devcriam scr empregados. O que desdc logo sc torna perfcitamentc cabívcl é dcterminar, isto sim, as condições econômicas nas quais o indívíduo, com soguro dc saúde ou sem elc, tem possibilidadc dc enfrentar uma cirurgia estomacaL lnsistimosz tudo na vida humana é condicionado socialmcntc. 0 sociologismo nada vê além destc fato; vê o humano ocrcado pelo condicionamento e nele conñnado a tal ponto que acaba perdcndo de vista o fator genuínamente humano. ~ Novamente devemos ampliar nosso cstudo - tamo no que tangc ao psicologismo quanto ao sociologismo - de modo a abrangcr tudo que lhes possa servir de base, na forma dc uma psicogênese. 0 que interessa a quem se detém exclusivamente na questão do condicionamento social? Vejamos mais de pertoz o conhecimcnto, a comprecnsão não poderiam deíxar dc estar também condicionados socíalmente. Uma análise minuciosa mostra que só cstão condícionados o sujcito que comprcende c o processo da compreensão, mas o objeto que é compreendido ou se quer comprecnder escapa de qualquer condicionamento sociaL O que se propõe a fazzr o sociologismo. no entanto, é provocar o desaparecimento - por trás da sempre recalcada plenitude de condicionamento do sujeito - 0 conhecimento do objeto! Añnal de contas, o que importa é levar o sujeito condicionado a ab~ sorver o objeto. O objcto se vê incorporado ao sujeito, é cntregue à possibilidade de condicíonamento do sujcito, no que esse extremo condionamento signiñca nos seus aspectos de dcterminação c de deñnição. 0 objeto aparece, então, do ponto de vista sociaL determínado

rw

25 Veja-sc Viktor FrankL Der Wille zum Smn', pp. l37-138.' “0 perigo não residc na mta de univcralidade. mas principalmente, pclo contrário. na aparéncia de uma totalidade do saber. na rcivindicação feila por tantos ciemistas no scntido de um 'saber global" (Jaspcrs). Assim que isto ocorre. descamba a ciêncía para a ideologia. No que dnz' respeito especiñcamcnte ao conhccimento cientíñco do homcm. a biologia dcgenera cm biologismo. a sociologia cm sociologismo c a psicologia em psicologismo."

218

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

quanto ao futuro. qua existentia, e deñnido também no modo de scr, qua essenu'a. Com isso, porém, se renuncia à objetividade do objeto o sociologismo se torna um subjetivismo. O erro cometido no sociologismo é confundir a coisa com o scu conteu'do. O conteúdo de um conhecimento é imanente à consciêncía e está subordinado à possibilidade de condicionamento do sujcito; por sua vcz, o objeto de um conhecímento transcende a consciência c não se submcte de nenhuma forma ao condicionamento do sujeito. Sabemos igualmente o motivo por que toda comprecnsão é condicionada subjetívamente no mais alto grau: é que todo conteúdo corresponde, em príncípio, a um setor apenas do campo objetivo. Os órgãos do semido desempenham uma função dc ñltro; além disso. cada órgão, num caso determinado, está sintonizado para uma ccrta frequ"ência. Mesmo o organismo total não consegue captar senão um setor do mundo, que passa a scr o seu mundo circundante cspecíñco. Todo mundo circundante representa, portanto, um aspecto do mundo, e todo aspecto, por sua vez, uma seleção do espcctro do mundo. O que nos interessa mostrar aqui é que todo condicíonamcnto, toda subjetividade do conhecimento afetam tão-somente o quc é selecionado no ato de conhecer, e não a totalidade em que se operou a seleção. Em outros termosz o conhecimento é seletivo, mas não produtiva Jamais produz o mundo, nem sequer o mundo circundante; 11m'ita-se a fazer nele uma seleção.

'

Algo parecido ocorreno organísmo social, que também condiciona a cognição e o conhecedor, mas não produz nada, nem condiciona o conhecido e o que cstá por conhecer. O sociologismo, porém, age como se também o objeto dependesse, em sua essência e sua existéncia, do fator sociológico. Daí, sucede que sempre vê apenas a relalividade sociaL À semclhança de qualquer relativismo, realitíviza tudo, com uma exceçãoz absolutaliza-se a si mesmo. Por isso é que os sociologistas se recusam a aplicar seus sociologismos a si mesmo. Eles bem sabem por quê... O biologismo e o psicologismo - que ignoram o organismo sociaL e consideram isoladamente o organismo vital, psícofísico - enfocam com exclusividade o biológico ou o psicológico, e não conseguem enxergar a pessoa espiritual por trás do organismo psicoñsic'o; deixam de reconhecer a existência do subjctivo-espiritual, enquanto o sociologismo esquece o objctivo-espiritual - o logos - já que relativiza c subjetiva tudo, referindo-o ao síciológico. Para o sociologismo, o sociológico é tudo, é todo-poderoso; o objeu'vo-espiritual não é nada, nada mais que um produto. O soc¡ologismo impõe a noção de que o sociológíco é produlivo, cm vez de seletivo, e inclusive capaz dc criar um mundo (e não apenas de extrair

"HOM0 PATIENS"

2l9

ído mundo um pedaço. o mundo circundante), capaz de criar um mundo de valores,-ainda que subjetivos e relau'vos. Que pretendem exatamente os sociologistas? Eliminar a objctividade dos objelos, c dcssa forma, onde houver valores objetivos, dçsvalorizá-los. Esta nossa añrmacão, contudo, precisa scr comprovada. o que há de ser feito com exemplos, mostrando que por trás do sociologismo (assim como do psicologismo) e por -.°ra's do seu relativismo há uma tendência à desvalorização. Como exemplo. servc-nos um livro de Theodor Hartwig intítulado Der Exislendalismus. Eine politisch-reakIionãre ldeologie (Viena, l948). chroduzimos inicialmeme um trecho quc aborda a ñlosoña em geralz “A ñlosoña é ensinada pelo Estado nas univcrsidadcs a ñm de meter na cabeça da juventudc cstudantil cerlo cstado de inadaptacão à realidade"(2). chos que o autor se ocupa pnn'cipalmente do condicionamento da ñlosoña. o que é caractcrístico do ponto de vista sociológico, embora não se possa dizer que seja típico do procedimento da sociologia. Quc a direção seguida pelo autor sc revelc unilateral é um pomo que interessa, não a nós. mas aos sociólogos. Continuemosz “A preocupação metafísica da ñlosoña alcmã a partir de Kant deveu-se ao fato de que na repartição colonial do mundo a Alemanha ñcou para trás". (l39) Também este julgamento sobre a metafísica seria da competência exclusiva dos sociólogos, se o autor não se pusesse a gencralizar ao sentenciar. por exemplo, que a inquietação metafísica é (e poder-se-ia acrescentar “nada mais quc”) “o medo do comunismo"(8). Em outra passagem ana'loga, e da mmma forma globalizante. identiñca liberdade com a liberdade do capital dos monopólios de avançar a cotovcladas". Enñm, o conceito de "nada", tal como se cncomra cm Heidegger, é equiparado ao "declínio da burguesia" (83). Parece cstranho ver o autor citar uma frase de Jaspersz “Afora os p'alpávcis molivos e situações de caráler psicológico e sociológico. atuam no mundo o absoluto da existência e a espiritualidade das idéias". Todavia, logo a crítica como sendo “derrotismo político“. capaz de prejudicar qualquer iniciativa (l74). Podersc-ia esperar que ele dissesse o contrário; mas o autor não discute, |imita-sc a pontiñcan Prosscguindo, H artwig analisa e comesta o existencíalismo também do ponto de vísta exclusivo e unilateral do sociologismoz "a crença na Iiberdade cxistencial da vontade deriva da ilusão surgida numa época cm que a liberdade de ação política era durameme reprimida por medidas dilatoriais" (159). A vonlade livre é para o autor mera ñcção_ já que “a psicologia profunda moderna acabou com o conceito de liberdade da vontade de maneira radical; os impulsos que

220

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

atuam em nosso inconsciente é que cfetivamentc dirigem nossa von~ tade“ (76). Pensamos que isto - muito mais do que a tese de Jaspers é que é “dcrrotísmo". Quem se pode espantar, portanto, com que nosso autor coloque o existencialismo entre “os absurdos", no mcsmo grupo em que situa “a magia, o ocultismo e o cubismo“? (153) Adicionando ao sociologismo o psicologismo, Hartwig añrma que 0 ñlósofo sofre dc “aberracões psíquicas” (65) c que, na verdadc “tanto o homem religioso quanto o ñlósofo são os maiorcs cgoístas" (IS-ló). Aparentemente “a psicologia abismal nos revelou o caráter neurótico, não apenas da religião, mas de toda a metafísica" (46). O autor não se dá ao trabalho de fazcr o seu diagnóstico com precisão e sericdade; de outro modo, não sc compreendc que ora se rçñra a sintomas neuróticos, ora psicóticos. Por exemplo, na págína ll, declara que “no caso do existencialísmo e da fé cristã no Além predominam as idéias delirantes", enquanto, na página 70, proclama que “a religião constitui uma espécie de neurose obsessiva”. E não nos vamos deter a discutir formulaçõesjornalísticas do tipo “a religião é o apêndice psíquico do homem".(68) No mais, a religião representa para Hartwig um narcótico cquivalente ao esporte, ao cincma e ao jazz. “Toda religião provém do pensamento infantil dos homcns primitivos; Dcus é um substituto do pai para crianças pequenas ou grandes" (86). Por quê? Porque as críanças pequcnas imaginam Deus como um ancião de barbas brancas e modos distíntos, correspondentc ao condicionamemo psicológico da imaginação humana, e as “crianças grandes" - os pais dos pequenos - imaginam Deus como um “absoluto" nebuloso, em conformidade com 0 condicionamemo sociológico de suas imaginações (¡maginações condicionadas pelo falo dc que esses indivíduos, por sua si~ tuação sociaL puderam desfrutar da cducação que lhes ofereceu a escola secundária). Scrá que é por isso, por serem estas imagens de Deus altamentc subjctivas e relativas - na qualidade de imagens - que Deus não existe? Eis uma dedução típica do sociologismo e do psicologismo! Estávamos desde o começo preparados para um tal contaminação do que não é condicionado, ou não deve sê-lo, pelo que é condicionado ou tem de sê-lo. O psicologismo de um Hartwig não é capaz de outra coisa senão de qualiñcar Deus de “produto da famasia de cerlos neuróticos obsessivos“ (l78). Assim, Deus devc tolerar que o coloquem, bem como ao livre arbítrio. entre as ñcções, destino que há de ser compartilhado pela alma (68). Como era de cspcrar, para o autor as qualidades mentais são funções do corpo (sistema nervoso) (68). Signiñcativamente, ele indaga “que hormônios desempenham um papel na origem e propagação do existencialismo" (52). Que nos seja permitido não entrar cm polémica sobre esse tipo de questão. Basta-nos

'^HOMO PATIENS"

221

íreproduzir sem comentário três frasesz “ Prosscguc-se interminavclmcnle neste tom, e seria de morrer de rir se não fosse tão trístc" (69); “o que hoje sai a lume não vale a tima c o papel gastos na imprcssão“ (20); “contra tamanhas tolíocs não adiama qucrcr argumemar" (I90). Nisso estamos de acordo com Hartwig e aquí oessamos qualquer dlscus-'

sa_'o.

De que se trata na realidade? O psicologismo e o sociologísmo. a exemplo dc todo niilismo. tencionam sempre, em última análise. alcançar um objetivoz jogar conlra a metafísíca ontológica a ciência ôntica. Para isso, Iançam mão das ciências naturais, exatas, empíricas, “puras". Mas esquecem que toda ciêncía (inclusivc as ciências naturaís) e'. por sua vez, de algum modo, mctafísica. o que ímplica a adoção dc hipóteses metafísicas. Mas porquc essa mctafísica é "implícita“, como já observamos antes, ela frequentemenle é falsa. Não esqueçamosz as deduções metafísicas de uma ciência ôntica são possíveis; as pressuposiçõcs metafísicas, no entanto, são necessárías. A Ciência é forçada a empobrecer a existência. não pode senão recortar em cada caso, do espectro da realidade, um aspecto particular do mundo. Somemc quando faço abstração dc tudo que o homem ultrapassa, somente quando ajo como se o homcm se limítasse apcnas ao ser ñsico, somente então posso dedicar-me, por exemplo. à neurologia. Para mim. como neurologista - ou melhor, quando me dedico. na qualidade de neurologista. a um homcm, um doentc - apcnas ncssc espaço de tcmpo é válido o que añrmou Hartwigz as qualidadc psíquicas são funções do sistema nervoso. Cumpre que ninguém esqueça íssoz muito antes de ter visto cm minha vida um cérebro, eu já conhecia o espiritual - sempre live consciência da espiritualídade como realidade imediata e indubiláveI. Posso colocá-la entre parénteses, devo inclusive fazê-lo, na medida cm que não deseje apenas saber algo do homcm. mas praticar a ciência do homcm, a ciência natural do homem. Ao mesmo tempo, convém Iembrar que esse colocar cntre parênteses (em benefício) da realidadc somálica cria uma ñccã0. Não arbitrariamente, mas realmentc ñnge o ncurologisla que o homem “é" um sistema nervoso, ñnge que somente existc o corporaL “como se" o homem não existisse espiritualmentc e só adquirisse realidade no plano somático. Já dissemos: a Ciência natural deve forçosameme agir “como se" o homcm fossc' exclusivamente um “sistema ncrvoso" c, como tal, carente de liberdade. Vemos. pois, que a carência de Iiberdade é que constitui uma flcça'o. E assim chegamos a um resultado diametralmcme oposto ao de Hartwig. Os deterministas não deixarão. contudo, que oonquístcmos a vitória com lanta facilidade. A certeza quanto à própria liberdade noção em que nos fundamentamos - é por eles rotulada de auto-

26 A respeito deste ponto c do que segue. veja-se W. A. StolL Schweiz Arch. Neur. 60, |947. e ain_da A. M. Becker. W. Z. Nervenhk 2. 402. 1949.

223

ímata Em outros termosz é mais verossímil que a droga mencionada cause, e não anule, o auto-enga_no sobre o livre arbítrio. Finalizemos a disçussão do tema da origem psíquica das iniciativas sociológicas com outra citação do livro dc Hartwig, a frase ñnal do texto, se não contarmos o epílogoz “Dcvemos ainda vencer a sombra metafísica da religião reavivada na roupagem do existencialismo” (l85). Contrariamente a N1'etzschc. Hartwig acha que Deus ainda não está “morto”. 0 condicionamcnto psicológíco que está na base das constantes revelações sociológicas de condicionamentos sociológicos salta aos olhos: os desmascaradores sociológicos foram psicologicamcnte desmascarados.

.~_r

engano. Não ncgam que o homem experimente a sensação de libcrdadc. mas observam que isto não signiñca que ela cxistaz trala-se, pensam, de uma ilusã0. Só o que é lícito añrmar, a seu ver, é que 0 homem vive como se fosse livre. Aparentementc, temos uma añrmação contra outra añrmação. Para prosseguir, precísamos fazer uma digressão. Os ñlósofos deterministas não são os únicos a pregar que o homem não é livre, também os esquizofrênicos paranóides añançam o mesmo, só que partem da expcriência de si mesmos como não-livres, c limitam sua tese à própria vontadc. Assim, por exemplo, dcclaram que a vontadenão é realmente deles, mas de outrem, que sua volição é comandada e influenciada por tcrceiros. e assim por diante. Alentcmos para que o ñlósofo determinista pode do mesmo rrzlodo se colocar na situação de experimcntar sua vomade como nãolirc ou, como ele preferiria expressar, a experimentá-la Iambém cbmo não-livre. Para consegui-lo, basta tomar 0,000030 gramas de ácido lisérgico. quamum sat est. 1° A intoxicação resultante se manifesta sobretudo psiquicamente através de estados de despersonalízação (e desrealizacão). transtornos da faculdadc pcrceptiva etc. Um sujeito da experiência tem a imprcssão dc que lhe falta a pele, de que está dc alguma maneira fora da pele, dentro de outra pessoa; outro acha que suas pernas inñnitamente compridas, que seu pé esquerdo se en~ contra muito quilômtros abaixo e, ñnalmente que o estômago se divide ao meio (rostos e ñguras sofrem deformações estranhas. caricaturais, e são chamados, como num certo caso, dc “rostos e ñguras de Picasso); enñm, outro sujeito ainda, sente uma “separação mpacial do ego em duas partcs" c explicaz “O que me rodcia e cu mesmo pareccmos marionetes". Como marionetes se semem também outros sujeitos de experimentação. “|:'n'quanto dura 0 efeito do LSD não se vive, se 'transcorre' ” - para citaf uma expressão espontânea de um dos pacientes. Seria preciso. emão, tomar ácido lísérgico para sentir em si mesmo a verdade do determinismo e do surrealismo? E essa verdadc seria de tal ordem que só com o auxílio de tóxicos poderia ser experimentada? Que verdade seria essa? Enñm, que um dos sujeitos de cxperimentação tenha doís eus c o outro, pernas de vários quilômetros, scrá provavelmente tão verdadeiro quanto supor que a vontade do homem não seja livre, ou, para usar ojargão dos sujeitos da experiência, que o homem seja um autó-

“HOM0 PATIENS"

Retornemos ao ponto de onde partimos. Para o sociologismo, di55emos, o sociológico é tudo, é todo-poderoso. 0 sociológico abrange o sociaL o cconômico, o político ou. em outras palavras, a sociedade. a cconomia. 0 Estado. ” Devemos, contudo, reguardar-nos de um mal-entendído que seria confundir sociedade como comunidade. A comunidade se baseia no “nós". na relação entre o “eu" e o “tu”, enquanto a socicdade se baseia no “ele", ou melhor, é constituída por esta catcgoria. A diferença se torna mais evidente ainda se, em lugar de sociedade, pensarmos em “massa". A sociedade precisa de personalidades singulares, assim como cada pcrsonalidadc precisa da sociedade para se desenvolver.

Se chamarmos de “coletivo” tudo que se opõe ao verdadeiro sentido de “comunidade", torna-se evidente que todo sociologismo se baseia. no fundo. num pensamento coletivista. Digamos, de passagem, que nos casos em que o pensamento coletivista leva a uma valoração colctivista, o padrão de medida passa a ser a utilidade socíal, ñcando de fora a dignidade pessoaL O pensamcnto colelivista é o sintoma de uma enfermidade padecnda pelo homem médlo do nosso tempo. Em suma: 0 coletivismo é apenas um dos aspectos da palologia do espírito da e'poca.

›..

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSlCOTERAPlA

27 No mcu livro Der Wille zum Sinn (Hans H uber, Berna. l972) cscrcviz "Não quercmos añrmar que o marxismo tenha ensinado que as condições econômicas e sociais dos homens sejam delerminanles de mancira exclusiva c unilateraL O marxismo. com cfeilo. admile que a relação de dependência cnlre o scr social e a consciência não se processu num sentido u'nico. havendo uma influência reativa da consciência sobre o fator social". Ass¡m. o homem não é apcnas marcado pelas condições socioeconômicas e polílicas. mostra-se capaz de plasmá-las. De nenhum modo. portanlo. deve ser uma vílima dclas e assim permanecet Pclo comrário, podc criá~las.

mh

222

224

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

Patología do espírilo da época O patologista alemão Virchow nos legou a seguinte máximaz “A política nada mais é que a medicina praticada em larga escala”. Se contemplarmos ao nosso redor a vida política, ñcaremos tentados a mudar a fórmula para “A política é a psíquiatria por atacado”. Se forjusta a frase de Virchow, o médico tem o direito de se ocupar dc polít¡ca; se for justa a nossa, então ele tem, além disso, a obri~ gacão. Fala-se hoje de “psicopolítica“ (Johannes Neumann) e até da conveniência de submeter os líderes políticos a exames psiquiátricos periódicos. A patologia do espírito da época,_ todavia. não signiñca que exista também uma doença mental da época. Está comprovado, pelo contrár¡o, que continuam a se manífestar perturbações autêntícas da mente. inclusive suicídios, independentemente das condições do momento que vivemos (sua incidência, por exemplo, não aumenta durante as crises mais agudas, ou durante as guerras). Outra coisa que nos compete comprovar é que em todas as épo~ cas existe uma añnidadc entre certas psicopatias, de um lado, e deter~ minadas orientações políticas, de outro. Os psicopatas têm sempre uma tendência ao extremismo, ao radicalismo político. 19 No Vlll Congresso de Psiquiatras Escandm'avos (Copenhaguc, l946) foi divulgado o rcsultado das investigações de uma comissão de psiquiatras que, por ordem do Ministério da Justiça da Noruega, estudara o dossiê de 60 mil antígos partidários do Quisling, tendo sido encontrados paranóicos, paralíticos. psicopatas paranóides numa proporção duas vezes e meia maior do que a média registrada para a população em geraL Descobriu-se que cerca de metade dos membros do Partido Nacional-Socíalista cra formada de psicopatas. Nas ñleiras dos combatentes noruegueses solidários com os alemães, só em 49,61/o° dos casos o quociente de imelígência se situou entre 90 a 100. Como se vê, qualquer exame psiquiátrico do dirigente político chega tarde demais. Seria preciso submeter à investigação médica a

28 Compare~se oom a formulação rcspectiva cm Anzliche Seelsorge: “O scntido da individualidadc se efeliva cxclusivamente na sociedade" (88). "Mas sc a sociedade mesma dcvc tcr um scmido. ela não pode prcscindir da individualidade. enquamo na massa o semido se anula na medida em que a singularidade represenla um fator dc perturbação em seu scio“. “Uma verdadeira sociedade é essencialmcnte uyma sociedade de

pcssoas responsáveis - a simples massa é. pelo contrán'o. a soma de serca despersonalizados" (p. 90). 29 Ornulo Odcgard. bem como Frõschaug, Acla PsydL 47. 556. l947.

“HOMO PATIENS"

225

mrassa dos psicopatas que possibílitam a chcgada ao podcr de um l lídcr político. Se desejarmos expor os principais achados proporcionados pelo exame da patologia do espírito da época, enumeraremos quatro daIes. l. A atilude provisória diante da vida - Sua origem sc deve às circunstâncias peculiares em que viveu o homem no tempo da guerra, quando cle não sabía se estaria ainda vivo no dia seguinte. Mergulhado nesse clima de transitoriedade evidente. o homem se abandona ao quxo dos acontecimentos e quando quer caplar algo de verdadeiro, percebe que já passou. Não nos libcramos ainda dessa atitude provisória que devemos à guerra; ontcm como hoje, o homem contemporânco é por ela dominado. Apoderou-sc dele uma fobia da bomba atômica; adota como slogan o aprês moi Ie deluge, ou seja, “depois dc mim, a bomba atômica“... O homem que se mantém numa atítude provisória não julga necessário tomar n deslino em suas mãos, enquanto o homem afctado pelo segundo aspecto da patologia do espírito da época, o fatalismo, nãojulga isso possíveL 0 homem da atitudc provisória diz “não vale a pena", o fatalista diz “não depende de mim". O primeiro vê na vida uma transitoricdade, 0 segundo. uma fatalidade.

$

2. A orientacão fatalisla perante a vida - O homem adquiriu essa orientação não só em virtude das experiências da guerra em geral mas, particularmente, das que teve no cativeiro. Um dos meus pacientes assim se expressou a respeito: mEstavam sempre nos empurrando". Foi sobretudo o fascismo, com seu princípio autoritário, que educou o indivíduo na fuga e no medo da responsabilidade pessoal, treinando-o para uma obediência cega ou fazendo dele, para usar o jargão da época, “um sequaz obstínado” dos líderes militares e políticos. O homem médio de nossos dias é possuído por uma superticiosa crença nos mais variados poderes do destino e o niilísmo que hoje impera favorece uma tal inclinação. O homem é imbuído dos três principais “homunculismos”: biologísmo, psicologismo e sociologismo, o que corresponde, respectivamcnte, a fazer dele um autômato movido por reflexos; um aparelho psíquico; ou um produto do sangue e da terra, da hereditariedade e do meio ambiente; em qualquer dos casos. uma criatura irresponsável e sem ll'bcrdade. Ou ele culpa a situação social em que se encontra, ou então as predisposiçoe's psicossomáticas dc que é dotado. A atitude fatalista toma como pretcxtos os impulsos, o id e o inconsc1'ente, e deforma a psicanálíse. colocando-a a seu serviço.

Tampouco está isenta de fatalismo a psicologia de Jung, que vê no “arquétipo". no “¡nc0nscicnte arcaico e cole_tivo”, uma fatalidade. Náo nos surprecndc, pois foí prccisamcntc Jung qucm, na sua crença no ínconsciente coletivo, atribuiu uma culpa colctiva aos alemães - até mcsmo aos antifascistas que cstavam nos campos dc concentração, qualiñcados, no seu entender. de nacional-socialislas inconsciemes. Com isto, em presença do “inconsciente coletivo“. cstamos _|á mgrcssando na área do tercciro diagno'stico. 3. 0 pensamento coletivista - O nacional-socialísmo, com seus critérios unicamente colctivos e globais, foi o principal educador do homem no rumo do pcnsamemo coletivista. Bastava ser alemão, quer dizer, pertencer à “nação alemã” para merecer um ponto positivo; em compensação, bastava ser judcu para encher-se dc culpa. lnfelizmente, mesmo aqueles que deveríam curar cssa enfermidade dc massa também se deixaram contagiar - do contrário não se compreenden'am as alusões à “culpa coletiva”. Bastava ser alcmão para incorrer em culpa, ou ser alvo de zombarias na condição de “prussiano” ou “burgués". Ora, quem se refere globalmeme aos “pequenos-burgueses” pode ser considerado igual aos que aludiam aos “_iudeus” num enfoque também globalizante. Emitir juízes coletívistas servc. añnaL para fugir à responsabilidade de uma opínião pcssoaL Ocorre assim, que a maioria das pessoas hoje em dia não tem opíniões, as opiniões é que as “têm”. O ponto de cristalização da opinião coletivista são os slogans. Se cles não exístissem, poderia surgir em Iugar das generalizaçõestota1itárias aquílo que lamo faz faltaz a complememação imegral dos pontos de vista. 4. 0 fanatismo - 0 homem que pensa nos moldes coletivistas d..°sconhcce a própria pcrsonah'dadc, já que é absorvido pela massa, ou dito com maior precisão, dissolve-se nela. Com o fanático não ocorre o mesmo; ém compensação, desconhece a personalidadc do outro, daquele que não pensa igual a cle. m O totalitarismo converteu o homem cm fanático. O que é o totalitarismo ñca bem claro na seguinte frase dc Hitlerz “A política é um jogo que são permitidos todos os truques". Bem, desde o tempo em

30 Somente num caso o fanáuco deíxa de ignorar a personalidade do outroz é quandc odcia. odcía pessoalmente. Melhor seria que o homcm nunca odiassc “alguém". apcnns “algo" nesse alguém

“HOM0 PATIENS"

227

que Hitler pronuncíou essas palavras até hoje, importa cada vcz menos saber que objctivos perscgue uma política do que os meios dc que ela se serve para alcançá-los. Em outras palavrasz o que importa não é a fmalidade. é o estílo da política. Existem dois estilos em política e dois tipos de políticos. Para uns. o ñm santiñca os meios. enquanto outros têm plena consciência de que certos meios são capazes dc profanar os ñns mais puros. De qualquer maneira. não é verdade que o ñm justiñquc o meio; não pode ser verdade, nem que seja pelo fato de que para o homem ao qual todos os mcios pareçam bons, tampouco o ñm será sagrado. Há em particular uma coisa qu_e deve ser preservada de se transformar num meio: é o homem. do qual disse Kam, em sua scgunda formulação do imperativo categórico, que jamais, e cm nenhuma circunstância, poderá ser degradado à situação de simples meio para um ñm. Enquanto a ñxação da atenção num ñm politiza o homem (das Bezwecken). a contemplação do sentído derradeiro humanizaria a política (die Besinnung). É preciso não ter a política na conta de uma panacéia, tanto mais que ela constitui um indício dc distúrbio patológíco. Ê claro que o que é simoma não podc ser tratamento. Na arte, a tendência politica é capaz dc envenenar uma obra. Não se dcve contudo confundir a tendência política da obra com a conseqüência política da ação do artista. “A arte não tolera nenhum programa político, nenhum itinerário rígido. Mas de si mesma a arte é sempre tendencíosa, porque tende para a humam'dade. Se o artista, por sua tendência política, é inñel à essência da arte pcla conseqüência política de sua atuação ele permanece ñel à sua condição de homem. Para os quatro achados relacionados com a patologia do espírito da e'poca, existem analogias clínicas - note-se bem, nada além de analogías. Como tais. se apresemam duas formas de cada um dos grupos conhecidos pela psiquiatria clínica, a saber, a psícose maníaco-depressiva c a esquizofrenia. O indivíduo em atitude provisória diante da existência correspondeña ao doente atacado de mania, já que deste sabemos que víve o dia-a-dia (Ludwig Biswangcr, Erwin Strauss), ñxa-se na consideração do momento presemc.

3l 0 que acontece porérn. quando a vocação artística nào se añna com a vocação de homem c alé mesmo chcga a lraí-|a? O que suoedc quando o homcm e a obra divcrgem7 A culpa é do doutor; ao público pore'm. cabc a culpa dc não sabcr Uislinguir emre o homcm e a obra. Que alguém não viva como escrevc. é tristcz mas por isso sc torna monos verdadciro o que foi cscrith

. -.-

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSlCOTERAPlA

-.s_.

226

228

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

"HOMO PATIENS"

229

FH

zv TVATBTFT

'

.

O correspondente ao homem com on'entação fatalista pcrame a vida scria o melancólico quc, na sua inibição psicomotriL sua expe- ídeuma ou outra cstão dentro do ser human0; cabe-lhe decidir, cm cada caso. qual delas se tornará uma realidade. O homem é um ser ríência de paralisação da vontadc c impotência em face do destino, que decide a todo o instante, decide sobre o que fará no instante secruza os braços, inativo (inclusive no scntido literal). guinte. O pensamento coletivista, ou melhor, a scnsação coletivista da Há somente duas “raças": a raça dos homcns dcccntes e a raça vida, tem seu equivalente na esquizofrenia catatônica, na qual sc es~ que não prestam. Juntamente porque sabemos que a primeira dos gotam todas as iniciativas e todos os interesses. Também o coletivisuma minoria. compete-nos aumentá-la e fortalecê-la. constituí mo obriga a pessoa a renunciar a qualquer iniciativa, qualquer intcchegou a um máximo de ciência, de consciência. A humanidade resse e a se nivelar aos demais. O Estado se tornà um Moloch e faz do um máximo de responsabilidade - mas. ao mesmo tcmde saber. E a homem um Golcm. po, a um mínimo da consciência da responsabilidade. O homem de O equivalente ao fanatismo é a paranóia. 0 fanático não apenas hoje sabe muito - mais do que nunca - e é responsável por muito lcmbra o paranóico - com suas idéias maníacas de grandeza, de perpor muito mais do que outrora; mas do que mcnos tem noção. mcnos seguição e de conspiração - mas às vezes é rcalmcnte um paranóico, do que nunca dantcs, é desse seu ser responsáveL na medida em que padece de idéias de supervalorização. Basta, quanto ao diagnóstico. Que poderíamos dizer agora A ñnalidade da terapia na neurose coletiva é a mesma que na insobre a terapia? Ou scrá que se aplica a nós o que Bergson dísse quan~ divídual: culmina no apelo à consciência da responsabilidade. O cado comparou os ñlósofos a médicos que diagnosticam enfermidades minho que conduz a csse objetivo passa sempre pelo indivíduo. pcla que são íncapazcs de curar? Não existiria um tratamento para o espíconsciência da responsabilídade e a añrmação da responsabilidade rito da época? do índivíduo (cxíste uma reação em cadeia de exemplo). Se admitíssemos que não, seríamos fatalistas. Mas não somos Nesse cakmínho. o que mais importa é opor-se ao fatalismo. A fatalistas. Somos, isto sim, pessimistas. Fomos levados a sê-lo. Aos condição prévna é que o homem deixe de ser considerado um autômaolhos de muitos. a história do mundo vem sendo uma série dc catást0. Na vida humana não há automatismm nem em pcquena nem em grandc escala. Não existe progrcsso automático nem decadência autrofes. nas quais o homem se precipita. O homem. todavia, dá mais a infpressão de alguém _que cai do que de uma criatura “caída”. A todo tomática do mundo, do Ocidente, etc. A supcração do fatalísmo baseía-se no conhecimento de que instante uma partc do organísmo da humanidade se infccciona e tão ninguém é anônimo e que toda situação é histórica. nem que seja no logo começa a sarar, outro ponto é afetado. semido da autobiograña, da história não eêcrita da própria vida. Esse sentimento pessimista da vida impregna também a arte. A Se quisermos levar nossos pacientes à consciência de sua responartc nem se deixa “dirjgír” nem se deixa “desviar"; nâo permitc ser sabilidade, teremos que tornar presente o caráter histórico da ex¡safastada daquilo que percebe. Se a arte há de ser verdadeira não cabe lência e, com isso. a responsabílidade do homem para com a vida. exigir que seja ao mesmo tempo sempre be1a. lsto seria confundir esAo paciente sentado diante de nós na hora da consulta recomcndatética com cosmética e fazer do artista o membro de alguma associamos que aja como se estivesse, no ñnal da vida. folheando sua bioção de embelezamemo da sociedade. Assim como o homem não é um graña e se detendo exatameme no capítulo referente ao momento turista solto no mundo, tampouco a arte é uma associação destinada atual e que, por milagre, Ihe fosse pcrmitido decidir o conteúdo do a enfeitar o reaL Fôssemos levar a sério uma tal concepção de arte, a capítulo seguinte e corrigir o que lhe parecesse passível de aiteraça'o. Patélica só poderia ser cxecutada ílcgalmcnte. Sinfonia O imperativo calegórico poderia ser reformulado da seguinte maneiSomos pessimistas e por isso mesmo. e não apesar disso, somos ra: “Vívc como se cstivesses vivendo pela segunda vez. e como se da ativistas e nunca fatalistas. Antigameme o ativismo acompanhava o primeira tivesses agido de modo tão falso como estás pretendendo faotimismo com a fé no progresso e com a felicídade que essa crença zer agora”. Por meio dessa fantasia, adquire-se consciência da resproporcionava. Hoje estamos dcsíludidos e é justamente do pessimisponsabilidade que pesa sobre cada um ao decidir o que será o próximo que o ativismo recebe os seus impulsos. mo momento. Conhecemos o homem. Chegamos a conhecê-lo como lalvez nenhuma geração anterior o tenha conhecido. Sabemos do que é capaz. Cada homem é único e onginaL e na consciência disso não nos devemos deixar desconcertar nem pelos resultados da investigação Sabemos que inventou a câmara de gás, mas também que nela cntrou oom uma pmoc nos lábios ou mmando a Marselhesa. As possibilidades das ciências naturais nem pela visão naturalista do mundo. Não nos

230

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

'

devcmos perturbar quando John Dewey diz: “A cspécie humana se compõe de uma pcquena quantidade de sercs vívos que, por um brevc período, se diferenciam um pouco mais dos demais seres de um planeta mediano de um sistema solar insigniñcante” ou se lamentaz “Comparado com a espécie humana, o cosmo é imensamentc grande". Quem se impressionará com o fato de que a Terra, em comparação com o Universo, scja pequena e nem sequer se situe no centro? Quem desse importância a isso sc pareceria com alguém que não se conformasse com o fato de Goethc não tcr nascido no centro da Terra e Kant não ter vivído em um dos seus pólos magnéticos... O fanatismo não é menos imponante do que o fatalismo nem encerra menor perigo, já que constitui uma epidemia psíquica. À semelhança de outras epidemias, também esta, de ordem psíquica. é uma conseqüência necessária da guerra; ao contrário, porém, de outras epidemias, representa também uma causa possívcl da guerra. Além do mais, é muito contagiante. Seus agentcs patogênicos são os slogans, que uma vcz lançados no seio das massas provocam uma reação em cadeia psicológica, mais perigosa do que a reação em cadeia física que servc de basc à bomba atômica. Esta não teria existido

sem aquela.

B. Da negação à interpretação do sentido

Não ínteressa à análíse existencial ou à logoterapia uma psicoterapia que se distancia tanto do sociologismo quanto do psicologismo - o que o homem “pode fazer", o que lhe é “permítido fazer“ ou o que “tem de fzer", e sim essencialmente o que “deve fazer”. Para introduzir essa categoria de “dever”, de valor, de semido. na psicoterapia. cumpre superar antes o niilismo latente em todo ñsíologismo, psicologísmo e sociologismo. Em vez da negação niilista do sentido, devese buscar a interpretação do sentido. No entanto, "interprctar" não signíñca “dar” um sentido qualquer, arbitrariamcnte, à existência. O

que importa é encontrar “o” sentido.

_Diante do problema de como é possível tal descoberta, partimos de uma resposta que costuma ser dada à questão do scntido da vidaz o sentido da vída é a própria vída! No primeiro momento, parcce que isto é uma tautologia e uma solução ñctícia. Mas se examinarmos de perto o assunto, veremos que se trata não propriamcnte de uma formulação tautológica, e sim paradoxaL Quando digo que o sentido da vída é a própria vida, a palavra “vida” é usada duas vezes c em cada uma delas, com uma acepção distinta. Na primeira, entendo por “vida" a vída factuak n_a segunda, a vida facultativa. Uma vez tal qual ela nos é dada; outra, a vída como missão a cumprir. Em outra palavras: despojada de seu caráter paradoxal, a fórmula quer dizer que o facultativo é o sentido do fatuaL Nisso se manifesta um caráter dialético. uma estrutura polar que na vída humana é ubíqua. O homem jamais “é". “sempre chegará a ser". Nunca alguém podeljà dlzer de sn mesmo “sou aquele que sou”, apenas “sou aquele que chegareí a ser”, ou “serei o que sou" - “serei

232

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSlCOTERAPlA

“HOM0 PATIENS”

233

actu, segundo a reah'dadc, o que sou potentia, segundo a possibilidarposta para a busca do sentido absoluto está fora do alcancc do ho~ da. mem. Além de incapaz de comprcender o sentido absoluto, o homem, sob nenhum aspecto, consegue reconhecê-Io. Existe também para cle um conhecimento absoluto, mas não existe um conhecimento do Absoluto. ' Ele pode chegar a um conhecimento objetivo, 1 mas não a um conhecimento objetivo de si mesmo, pelo comrário, o sujeíto é. em relação a si mesmo, transcendente. Se é certo que todo ñlosofar começa por um “assombar-se”, um °°espantar-se”. conforme ensinava a ñlosoña da Antiguidade. o verdadeiro milagre com que se depara o pensador é mistério, o fenômeno originário de sua própria cxistência. Como ñlósofo, me espanto de que sou - de que eu sou eu. Diante dessa íntima realidadc ou, para ser mais exato. diantc dessa verdade extrema, o ñlósofo deve dctcr-sc, pois ela não se deíxa deñnir em conceitos ou expressar em palavras. 3E Karl Jaspers observouz “Uma totalidade sem nada fora de si não aprcsentaría mais o caráter de uma verdade, da mesma maneira que a totalidade da matéria não teria peso.” Pode acrescentar-se na mesma linha: o Absoluto já não apresenta o caráter de algo que tem semido. A procura do sentido fracassa tão logo visa a totalidade, pois e csta ipso não pode ser abarcada com a vista. Dito de outro modo, o sentido do todo ultrapassa nossa capacidade perceptiva. Não se consegue dizer nada sobre o scntido do todo, exceto como conceitolimite, no seguinte caso: “O todo” não tem scntido, tem um “supersemído". o qual, todavia, nada tem a ver com a “metafísica". Signiñca somente “repleto de sentido". E impossível conccber o supersentido; por isso, é nccessário acreditar nele. Como é necessário acreditar no supra-signiñcativo, assim como no “fora dos sentidos”, tudo que não é sensorial mas aínda nos é dado 1'medíatamcnte. É impossívcl provar o supersentido, a não ser que nos contentemos com uma demonstração de probabilidade, ou seja, a maioria das coisas tem sentido, tem, em cada caso, um sentido concreto; portanto, a crença de que tudo tem sentido não é provavelmente destituída de sentido. Bem, a descrença no sentido do “todo”, no supersentido, alêm de não ter ela mesmo sentido, demonstra falta de amor. Com efeito. a suposição de que tudo seja desprovido dc sentido implica a outra:

l Ver “0 Homem lncondicionado". 2 ldem. 3 Segundo Arthur Kmtler, “considcrações lógicas perdem sua função de bússola no

ñ

vt

momcnto em que nos aproximamos do pólo magnêtico da verdade c do absoluto".

e +-T..

Somentc Deus pode añrmar de si mesmo “sou o que sou“. Pode fazê-lo porque é actus purus, potência aluada, possíbilidade realizada. Deus é uma congruência de ser e ser-assim, de exislentia c essenn'a. No homem, porém, há sempre uma discrepância entre, de uma parte, o ser e, de outra, o poder e o dever. Esta discrepância, esta distância entre existêncía e essência são inerentcs à vida humana como taL Na medida em que o sentido da existência humana reside na diminuição desta discrepância, no encurtamemo dessa distância, em suma, na aproximação de existência e essêncía, não se há de negligenciar o seguintez nunca se trata dc considerar “a" essência, mas a es~ sência “do" homem, que cabe ao homem realízar e representar, a “sua” essência. Trata-sc da realização da possibilídadc de valor que incumbe a cada indivíduo particularmcnte. “Chega a ser o que és" não signiñca somente “chcga a ser o que podcs e deves ser”, mas Lambém “chega a ser o que só tu podes e deves ser". Não se trata apenas de que eu seja um homem - mas de que cu seja eu mcsmo. Como se sabe, o problema do principium individualionis desemboca na pergunta de por que a toda essência está agregada uma multidão de existências, de realizações da idéia. O homem aparentemente supera esse princípio, tanto que a toda vida humana corresponde uma única cssência, sua essência individual; toda existência humana é acentuadamente exclusiva no que tange à sua essência. Sim, o homcm_ conscguc até certo ponto supcrar o principium individuationis, e inclusive chega a invertê-lo. Ao dizer isto. estamos pensando no ator que, com sua existência única, “representa“ (dá vida e corpo) uma grande variedade de “caracteres" e '“pessoas”. Se, como tudo ísso indica, o sentido da vida é que o homem realize sua cssência na existência, é evidentc que o sentido da vida há de ser sempre concreto; vale em cada caso somente adpersonam e ad situationem (ja' que a cada indivíduo, e cada situação pessoaL corresponde a respectiva realização do sentido). A questão do sentido da vida pode apresentar-sc, pois, exclusivamente de uma forma concrcta e ser respondida unicamente de uma forma atíva. Responder às perguntas da vida signiñca sempre se respo_nsabilizar por elas - “efetuar” as rcspostas. Tanto quanto é possível indagar qual o sentido da vida, deve-se perguntar pclo sentido de uma pessoa concreta e de uma situação concreta. Tão logo a invcstigação se refcrir ao todo, torna-sc-à absurda. Perguntar de um modo concreto pelo sentido é pérguntar ad hoc, isto é, visar um sentido meramente relativo, embora não na accpção do relativismo, mas na de um sentido particular. Achar res-

234

FUNDAM ENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

“HOMO PATIENS"

235

que a existéncia individual é a úníca instância que confere sentido às - seu fundamento também é desprovído de sentido. Na verdacoisas (mesmo que fracasse praticamente nessa tarefa), a única porta~ ímento de, ele “e"' sentido. dora de sentido. 0ra, isto é orgulho. A humildade faria ver que à topois declarart “no total”, este mundo, esta realidadc, Podemos talidade cabe uma parcela maior de sentido - mesmo que este não de sentido; “no fundo”. tampouco nossa existência, nosso scr, carece seja demonstráveL tem sentido, pode ter scntido, porque já “é” sentido. O supersentido não precísa, aliás, de comprovação. Provar que A distinção entre sentido c superscntido é importante na tcoele existe decerto é impossível; é também, por outro lado, dcsnecessá~ na prática. Sc os confundo, haverá uma interferência entre ria como rio. Se nada tívesse sentido, de uma maneira ou dc outra eu viria a o que representa uma desvantagem. já que se tornaria impossícles, percebê-lo; no entanto, se tudo tiver sentido, se houver um supersen~ vel agir; não haveria possibilídade de decisão, resolução, responsabitido, não preciso compreendê-lo, porquanto é impossível abarcar o lidade. Eu ñcaria paralisado, impedido em minha atuação. Porquc se todo com a vista. Em outros termosz a falta de sentido da totalidadc é acredito que - não importa o que eu faça e que resultados alcance - o que deveria ser provada, enquanto a impossibilidadc de demonstrar supersentido sobrevirá, minha atitude será prcjudícada. Devo, pelo a plcnitude de sentído não pode constituir uma refutação de sua exiscontrário, comportar-me como se tudo vá depender do que eu faça lência. A plenitude de sentido do todo constiui um conceito-limite, ou deixe de fazer. Dito de outro modo: no que concerne ao supersenou seja, 0 conceito do “supersentído”. Cabe ao cético o onus probantido, tenho de agir como se não soubesse de nada ou não acreditasse di. Pelo contrârio, quem acreditar no supersemido haverá de arcar tão~ em nada. Ainda mais que sobre o supersentido não é mesmo possível somenle com o peso de não poder comprovâ-Io. Não é, pois, verdade, saber-se nada. O supersentido aparece no “efeito”, não na intenção. como se díz com frequ“ência, que o sentido da vida é suportar a sua No momento em que estou agindo, devo restringir minha crença falía de sentído, enfrentar o “absurdo” da existência. Pelo contrário. no supersentido a ñm de ser capaz de agir. Devo ater-me tãofaz parte da vida não conscgui_r abarcar o todo, não compreender o somente ao sentido que cm cada caso percebo, em vez de visar o susentido da totalidade nem demonstrá-lo. Não basta dizer que a crense impõe. Posso conñar que, de uma maneira ou oupcrsentido, que ça num supersentido “tem sentído”, ela é semida tra, ele acabará por se impor. Posso contar com ele, mas não devo inVimos, assim, que indagar o sentido do todo leva ao fracasso; cluí-lo em meus cálculos. idêntico resultado é obtido quando se deseja investígar a razão da in~ Atenuar a crença no supersentido não quer dizer excluir essa dagação, o fundamento em que ela se apóia. crença. A realização de um sentido do qual tenho uma vaga noção A exístência é o único ser que levanta a questão do sentido. Não depende do que eu faça ou deixe de fazer; de acordo com isso, aconsó da faticidade, mas também de sua própria existencialidade. Não tecerá algo. ou não. O supersentido, porém, impor-se-á independenindaga só a respeito de fatos concretos, mas também de seu próprio do que eu venha a fazer ou deixe de fazer, com minha ajuda temente sentido, o sentido de seu scr, o qual justamente clabora a pergunta Ê ou sem ela, com minha cooperação ou sem me levar cm considcrasobre o sentído. Nesse ponto, contudo, a indagação abandona a forção. Em suma: a história em que se consuma o supersentído ocorre ma concreta para se tornar reflexiva. E cntão fracassa, dcve fracasseja alravés de minhas iniciativas, seja passando por cima de minhas sar. Pois não é possível indagar com sentido o sentido da indagação omlssoes. do sentido. Equívaleria a indagar o sentido do sentído. Não se pode_ ir além da exístência do sentido em nossas pergumas. lnterpretação metaclinica do sentido Teremos, por consegu1'ntc, dc dcsistir de cncontrar o sentido do do sofrímento que seja a busca do sentido. Busca do sentido equivale a existência. Sempre que realizamos valores, estamos cumprindo o sentido da Portanto, não é possível que a existência venha a encontrar o sentido existência, estamos impregnando-a de sentido. Os valores podem ser e a razão de seu próprio ser, não é possível que chegue ao fundamenrealizados de três modos distintos: criando algo, o mundo, por exemto de si mesma. plo; experimentando algo, como seja, abrindo-nos para o mundo. No instante em que a indagação do sentido se referc ao tod0, para a beleza c a verdade da vida; ñnalmente, sofrendo, sofrendo a como já dissemos, fracassa, porque o todo não tem sentído, tem suexístência, o destino. persentido. Aos valores que se realizam pelo sofrimento do mundo e do desNo instante em que a indagação do sentido se refere ao fundatino. o próprio fato de haver na pessoa um retraimento díante da reamento, fracassa porque - agora podemos completar nosso pcnsa-

236

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

“HOM0 PATIENS"

237

lização dos valores criadores c vivcnciais dá uma oportunidade de íxmido de que a hereditariedadc e o meio ambicnte o tomaram o que desdobramento pela adoção de uma atitude adequada. O retraimené, mas - tertium datur - no sentido inversoz se a hereditariedade e o lo necessáño e a limitação das possibilidades de valor acabam signiñmcio ambicnte formam o indivíduo, este, por sua vcz, atua sobre si cando um avanço no rumo do mais alto semido e das mais elevadas mesmo. sobre o caráter. formando o “homem", a pessoa. Complepossibilidades de valor que o sofrimento contém em si. tando a defmição dc Allers, poderíamos dizerz o homem "Iem" um caQuem seria capaz de interpretar a gestaçâo de scntido que o soráter. mas “e"' uma pessoa e "chega a ser" uma personalidade. Ao cnfrimento comporta? As possibilidades dos valores. tanto criadores trar em combinação com o caráter que o homem tcm, a pessôa que o quanto vivenciais, podem ser limitadas e, portanto, se esgotarcm; já a homem é acaba por reformá-lo, chegando assim a ser uma personalicapacidade de preenchimento de semido do sofrimento são ilimitadade. Isso signiñca que ajo de acordo com o que sou, mas também das, e por isso, os valores atítudinais se situam mais alto que os criachcgo a ser conforme o que cu venha a fazcr. dores e vivenciais no que respeita à hierarquia moraL “ Também por O homem nunca decide somente sobre algo. mas ao mcsmo temoutros motivos. po sobrc si mesmo. Toda decisão é autodecisiva. E toda autodccisão Para realizar valores criadores, necessito de alguns talentos; mas é, simultaneamente, autocriação. Enquanto forjo o destino, a pcssoa não preciso busca'-Ios, basta utilizá-los, se os tenho. Para realizar vaque sou plasma o caráter que tenho - assim “se” cria a pcrsonalidade lorcs vivenciais, também necessito de algo de que já disponho, quer que chego a ser. dizer, os órgãos respectivos - ouvidos para escutar uma sinfonia, A realização de todos os valores, todo esforço ncssc sentido olhos para contemplar uma a'rvore, e assim por diante. Mas para realizar valores atitudinais não basta ter uma faculdatambém pressupõem uma decisão. Geralmente se imagina que tal decisão é não só voluntaria como consciente. Parcce~nos, contudo, que de criadora ou uma simples faculdade vivenciaL é preciso, além dís~ existem também decísões inconscientes, pelo menos no sentido de so, ter capacidade de sofrer, o que não se recebe de presentc, requer que em sua execüção são despidas de reflexão. ser conquistado através do próprio sofrimento. Se cu tivesse em mim a capacidade de sofrer. se a tivesse recebiRecorramos a um exemplo para explicar melhor nossa idéia. do no berço, isto seria um atributo do cara'ter, algo inato e não “conUm homem se atira dc uma ponte e outro faz o mesmo para tentar quistado”, o que equivaleria à apatía, ou seja, algo que prccisamente salvá-lo. Depois do sucesso da operação de rcsgate, perguntamos ao não permitiria o surgimento do sofrimentoÍ Apatía seria incapacidasalvador como chegara a tomar a decisão de mergulhar. Responde de dc sofrer, excluindo, assim, a realização dc valores atitudínais que não sc deve falar propriamente de decisão porque o propósito de salvar a vida do outro Ihe parecera um gcsto perfeitamente naturaL através “do” sofrimento e “no” sofrimento. A resposta. portanto, levanta o seguinte ponto de discussão: uma Quem no sentido de uma realização criadora de valores sc mosação, em virtude de parecer ao que a executa perfeitameme naturaL trar incapaz de forjar o destino, poderá, no entanto, superá~lo noutro não constituirá, assim mesmo, o resultado de um esforço moral? No plano, e dc outro modo, recorrendo a valores atitudinais corretos em mcsmo instante, não passavam pela ponte outros indivíduos que tesfacc da fatalidade e através de um sofrimento altivo. 0 que pressupõc temunharam o incidente sem que lhes parecesse natural jogar-se na a aquisição da capacidade de sofrer. Essa superação imerior, que água para procurar resgatar o desesperado? abriu mão da criação extcrior, e', em última análise, e apesar de tudo, Vemos, pois, que a iniciativa salvadora, por espontânea e óbvia uma críação, ou mais exatamente, uma aotocriação. que pareça, é um “desempcnho”. Não é “natural” que isso pareça Numa formulação judícíosa, Jaspers deñniu a existêncía humanatural a algue'm. Nisso rcside precisamente o esforço moraL o dena como “decisiva": nunca “é”, mas decide, em cada caso, o que é. sempcnhoz o fato de que alguém cheguc a julgar natural uma tal De igual modo, a pessoa espiritual é “decisiva”. Por conseguinte, o ação. Nada é n'atural, tudo vem a ser naturaL Ou, para retornar a carâter é um ser que chegou a scr (gewordenes Sein). Chegou a ser no nosso exemplo: pelo menos uma vez na vida, aquele indivíduo tevc de tomar uma decisão. Compreendemos agora que toda decísão naturaL irreflexiva. e 4 E interessantc vcriñcar que a rclação de hierarquia que existe entre as três catcgorias neste sentido inconsciente, constituiu o _derradeiro elo de uma cadeia de valorcs e em conseqüéncia da qual os valorcs alitudinais sc siluam em nível superior de decisões, a primeira das quais - a protodecisão - foi mais ou menos cn'adorcs e vivcnciais é conñrmada pela pesquisa feita com l.340 pcssoas. confornos consciente. A partir dela, foram sendo tomadas as outras, cada me E. S. Lukas (L0golherapíe als Persolichkeits Iheorie. Disscnação. Viene I97 I ).

238

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPlA

vez menos conscientes. Enquanto se mantiveram conscientes, elas fo~ ram voluntárias.

,._-.v4

O que dissemos a respeito dc toda decisão, que scmpre é uma autodecisão, vale com mais razão para a protodecisão, a decisão prévia. Fazer continuamente o bem acaba por transformar o autor dos atos em um homem bom.

l I |Í

Uma ação é, em últíma análise, a passagem de uma possíbilidade à realidade, de uma “potência” ao “ato”. No que se referc especialmente à ação moraL quem age não se contenta em agir uma só vez; prossegue, e o acms sc transforma num habi:us. O que ames era ação moral vira atitude moraL O desempenho, com isso, não ñcou menor. c sim maior. O homem simples intui o possível sentido do sofrimento, da faculdade de sofrer. e o valor desta. Uma demonstração de como essa noção está profundamcntc arraigada nele nos é dada pelo caso da melancholia anaesthelica, onde aparece uma “ancstesia", ou melhor, uma “apatia”. Os pacientes se queixam de não sentirem realmente dor, de não chegarem a alcançar o verdadeiro semímento de alegria ou de sofrimento, nem sequer scndo capazes de chorar. Por estranho que soe, esses pacientes sofrem dc não poderem sofrer. Num caso de nossa experiência clínica, o enfcrmo lamcntou não sentir dor de dcntes nem ter díto reação diante da extração do dente estragado. 0 homem não se quer ver privado de comunicação “pát¡ca" com o mundo, não quer prescindir dcsse liame, ainda que ao preço do desprazer. Reiteremosz um sofrimento dignamente assumido, de cabeça erguida, repíesenta um esforço moraL lsto ñcou demonstrado. sem qualquer intervenção de nossa parte, durante uma preleção nossa em que foi apresentado um caso de um pacientc atacado de morbus liltle (paralisia cerebral infantil), com athetose double de (movimemos obsessivos acompanhados dc agudas contorsões dos membros). O jovem não pudera freqüentar a escola, mas apesar disso tinha estudado particularmcnte e lido bastante. Sc recorrermos ao esquema das “três tarefas" enumeradas na doutrina da psicologia individuaL concluiremos que a vida pouco lhe dera c muito lhe devia. “Trabalho?” Ele não era capacitado a fazer nenhum. “Comunidade?" 0 paciente contou à assistência da preleção que as pessoas o apontavam na rua com indiferença, simplesmente como um “para1ítico”... “Amor”? De início. qualquer satisfação amorosa era dc excluir. Tratava-se de um inválid0. No entanto, enfrentou a situação de maneira diferente da de outros inválídos. Como referência, cito a resposta dc uma jovem dossa categoria à qual havíamos perguntado, num hospitaL como passava a maior pane do tempo: “À noite. durmo; de dia, estou doente.”

“HOMO PATIENS"

239

Nosso inva'|ido, porém, comportava-se de modo diverso: nunca rsedeixou abater, jamais se resignou a vcgetalx Em visla da impossibílidade de realizar a tríade de valores ensinados pela psicologia individual - trabalho, comunidade, amor - buscou outros caminhos; o cmpecilho acabou sendo para ele um incentivo. A exemplo das árvores que, numa ñoresta densa, não se podendo espalhar horizontalmentc, Pv 1 crescem verticalmente, também cle, por causa de suas limitaçõcs. lanç0u-se para o alto. Hojc é um ativo funcionário de uma organização de inválidos e deñcientes. É importante notar como cnfrentou o handicap da cnfermidade; como carregou a cruz; que atitude tomou e que valores atitudinais adotou; enñm, que desempcnho levou a termo! Toda sua v1da consxstlu numa renúnc1a? Poxs bem, "reallzou“

essa renúncia, realizou-a com esforço. mas com dignidade, e inclus¡ve com graça. Realizou-a num nível humano de comportamento de tal ordem que ao apresentá-lo, na prcleção, aos nossos ouvintcs. exclamamos impulsivamcntez Ecce vila homim's! O psicoterapeuta que haja presenciado semelhante descmpenho no terreno da renúncia devc ser grato ao que viu. Através desse testemunho lhe foi dado algo - coragem e consolo - que lhe cabe transmitir a outros homens, aos seus enfermos. Mesmo em se tratando de um caso isolado, a verdade é que viu de perto que 0 esforço moral da ren'uncia não só é necessário. mas possíveL O psicoterapeuta se converte num espelho que rcflcte a imagem de homens que sofrcm de maneira exemplar. que realizam o "esforço“ da rcnúncia. Ao olhar o espelho, os outros doentes compreendem que aquilo que é exigido deles é viáveL No que concerne ao próprio médico, passará estc a se comportar com maior convicção se tiver consciência da exeqüibilidade de tal procedimento e, destarte. causará uma impressão diferente no doente de que cstiver tratando no momento. Não tcnhamos ilusõesz só aquele que estiver convcncido conseguirá convencer os outros! Unicamente aquele que tiver certeza de que mesmo um portador de morbus Iitlle é capaz de encontrar sentido para sua existência (e que foi testemunha de que esse sentido se “realizou“ ainda que uma só vez) poderá conseguir que o paciente seguinte acreditc na possibilidade de tal realização. Ele, e mais ninguém. terá condições de discernir no sofrimcnto do próximo enfermo a possibilidade de um scntido, e dc despertar nestc a vontade de encontrar tal scntido. Coragem e consolo lhe foram dados. e é 0 que terá d'e transmitir aos outros, e o que lhe será devolvido em moeda diferente. Quem não tevc a cxperiência de que convencer a alguém reforça a própria convicção? Quem não sentiu que consolar alguém serve de consolo a si mesmo? De modo que podemos mudar o docendo discimus para consolando consolamur.

240

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSlCOTERAPIA

“HOM0 PATIENS"

24l

Ntvr

0 sofrimento, por conseguinte, pode ser em princípio um dg ípara a matur1'dade. Sim, o verdadeiro produto do sofrimento é, añsempenho. Mas sofrímento quer dizer sofrimento reto, erguido, nã( nal de contas, um proccsso de maturl'dade. A maturidade prcssupõc. signiñca apcnas o produto dc um csforço moral, mas também um todavia que o indivíduo tenha alcançado uma libcrdadc interíor. crcscimento. Se suporto um sofrimemo, se o absorvo, então crcsço, malgrado sua dependência exterior. Pensemos numa situação cxtreadquiro mais força moral; ocorre um processo metabólico, c metaboma, o cativeíro ou o campo de concentração, onde o homem se cnlismo consíste na transformação de matéria-prima em força. O mascontra numa situação de enorme dependência de círcunstâncías que mo se veriñca no nível humano, com a transferência da matérialhc foram impostas ou ditadas. Vemos, entretanto, que a dcpendênprima que o destino nos impõe. O indivíduo que sofre não é capaz dc cia se manifesta no tocantc ao que faz e ao que experimcnta (com plasmar seu destino exteriormcnte, mas justamente o sofrimento lhe cfeito, que fazer no campo senão trabalhar com a pá; que cxpcrimenoferece a oporlunidade dc superar interiormente o destino. transpontar, senão fome, frío. maus tratos?). Ele é lívre, em compensação. do-o do campo fatual para o existenciaL No caso do nosso pacientc, quamo à atitude a adotar. Em outros termos. o homcm é depcndente qual era o fato? Eraz tenho morbus Iiule, enfermidade que me foi daem matéria de valores criadores e vivenciais, e Iivre no que se refere da. A situação, contudo, não ñcou nesse ponto. Elaborado existenaos valores atitudinais. Livre “de" todas as condições c círcunstâncíalmente, o fato passou a ser formulado: tenho morbus Imle e esta cias e Iivre “para" a supcração interna de seu destino, “para” o sofn'doença me foi dada para que eu a resolva; estou diante do problema mento reto e erguido. Esta liberdade desconhcce condições. é uma Iide o que fazer com ela. berdade “em quaisquer circunstâncias” e até o último alento. Situaçõcs extremas levam o homem a alcançar tanto a líberdadc Logo que transporto o fato a nível mais alto, coloco-me, coloco interior, quanto a maturidade. Elas constituem uma prova de matuminha própria vída num nível mais alto. O que qucr dizcr “crescer". ridade, um experimentum crucis. Não nos deve espantar que haja haPodcr-se-ia supor que, com tudo isso, cstaríamos sendo Ievados mens que nunca sonharam com a reprovação nos exames - sonho dc a moralizan a introduzir a ñlosoña na psícoterapia (no sentido mais ansiedade tão freqüente - mas que. repetidamente, sonharam com o amplo do termo). Não é assim. Os próprios pa'cientes é que nos tracampo de concentração. Aparentemente o campo de concentração sc zem a “ñlosoña", ou seja, problemas ñlosóñcos. Ao fazê-lo, contriencarregou de acelerar o processo de maturidade. bucm com suas respostas, de forma que nós, psicoterapeutas, não ñ~ Examinemos a carta de uma pacieme afctada de tuberculosc camos limitados ao papel de instrutor, mas freqüentemente temos a pulmonar e que, conhccc'ndo a gravidade de seu estado. tem motivos ocasião de aprender. plausíveis para pensar na mortc. “Quando é que minha vída foi mais Daremos um exemplo tirado da práticaz uma doente, de 22 anos, rica?" - escreve. “Quando eu era tão formidavelmente útil (trabalhaà qual se ñzera uma colostomia (com um orifício anal artiñcial no va como guarda-1ivros) e, assoberbada pelas obrigações, não me poventre) escreveu-nos: “A sentença de Hôlderlin “quem písa no seu dia ocupar de mim mesma? Ou nestes u'ltimos anos. quando tive de sofrimento se eleva” " me faz companhia há muito tempo. A morte me ver face a face com múltíplos problcmas espirituais? Inclusive a de meu marido me causou uma serenidade nunca antes conhecida. luta para vencer o medo da morte que tanto me atormentou c perseEmbora. de certa forma, minha vída careça de sentído, só a lembranguiu dc modo inimagináveL inclusivc isto mc parece mais valíoso do ça de que tal homem cxistiu justiñcaria minha própria existência. que uma dezena de balanços bem elaborados.” Não se deve procurar o homem só em seu ambiente imediato - bastará talvez uma obra que ele deíxou, não é necessário que ele esteja víSua vída era “mais rica3'. Esta é uma deixa para nós. Sofrer, cnvo. Não trocaria minha vída com ninguém, quero continuar sendo eu tão, não signiflca apenas esforçar-se, crescer e amadurecer, mas mcsma, apesar de doente!“ 0 sofrimento a encostou na parcdc; mas igualmente enn'quecer-se. O homem que. como já dissemos, amadupisando no sofrimento ela se elcvou por sobre si mesma. rece por meio do sofrimento. amadurece para a verdade. O sofrimen~ Sofrer signiñca agir e sígniñca crescer. Signiñca ígualmcnte t0, além de dignidade éüca, tem rclevância metafísíca. amadurccer. O indivíduo que se eleva acima de si mesmo avança O sofrimento convertc o homem em visionário e torna o mundo transparenle. A cxistência, por assim dizer, transparece numa dimcnsionalidade metafísica. É o que expressa um poema de Dehmelz “Há um poço que se chama sofrimento; ' O pensamcnto dc Hõlderlin ê formulado pclo pacieme dc maneira ligciramcnte diversa da citação feita por Frank|. (N. do T.) Dele emana a pura-avemurança;

242

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

Quem dele apenas vê o fundo, Fica espantado. Vê no mais fundo do poço Sua imagem luminosa rodeada de noite. 0h.' bcbel E a ímagem se esvanece. Brota a luz.”

"HOMO PATIENS"

243

%mir o imperatwo “sapere aude" por "pau' aude” - “atreve-te a sofrer!" O que importa é a audácia, a coragem de sofrer. Trata-se dc aceitar o sofrimento. dizer “sim" ao destino, enfrcmá-lo. Somcntc por esse caminho nos aproximarcmos da vcrdade, e não pelos caminhos da fuga e do medo ao sofrimento. “Oh! bebe!" - absorve o sofrimento - “brota a luz” - a cxistênAgora podemos cntender o que quería dízer Rílkc na carla que cia se faz transparentc, o homem olha através dela, ao ser que sofrc endereçou à condessa Sizzoz “Aquele que num momcnto qualquer se abrem perspectivas que vão até o fundo. Frente a frente com o não aceitar, numa decisão deñnitiva, todo o horror que a vida cncerra_ aquele que não o ace1'tar_iub1'losamente. não disporá das forças inabismo. comempla o homem o fundo e o que lhe é dado ver é a cstrutura trágica da vida. O que lhc é revelado é que a existência humana, comparáveis da nossa existência, ñcará à margem, e no dia da deci. no que tem de mais profundo. é a paíxão, a essência do homem é ser SãO ñnaL não tcrá pertencido nem ao reino dos vivos ncm ao dos um sofredor - Homo patiens. mortos." Três séculos foram marcados pela fuga ao sofrimento e a tentati~ Esta descoberta o homem a faz para além do bem e do mal, do va de escamotear a realidade. Ocultou-se a verdade. tentou-se evitáexperimenta de forma não-sentímcntal, sem sentifeio e do belo, a me'ntos nem ressentimentos. E-1he imposta por uma contemplação Ia rccorrendo a dois ídolosz a atividade e a racíonalidade. Não se le~ vou em conta o sofrimento. a possíbilidade de sofrer. o valor do sosimples e pura da verdade. Está junto dela, em seuinter1'or,sem ranfrimento. Os homens se cnganaram c enganaram aos outros. tentancor ou pesar. Tudo isso já está de há muito superado, ele está muito à do acreditar que com o auxílio da actio e da ratio conseguiriam acafrente. bar com a d0r, a miséria e a morte. A actio impediu que se visse a E a verdade o líberta. Porque já não é mais a “sua” vcrdade,, esqueceu~se de que a vida é paixão. A ratio, a razão, a ciêncía, passio: mas a verdade comum, a vcrdade de todos. o conseguiriam Não foi. pois, sem motivo que sc prosupostamente “Não deves encerrar teu sofrimento em ti próprio. curou gloriñca'-las c fazer a apoteose do homem racíonal, do Homo Podes submergi-lo no sofrimento de todos.” sap¡'ens, ao qual caberia ensinar como se esquivar da reaüdade, da Assim dissc Rückert no primeiro dos seus cânticos funerários innecessidade do sofrimento e da possibilidade de lhe dar um sentido. fantis musicados por Mahler. Trata-se, como dissemos, de aceitar o sofrimento. Para poder Como poderia bastar para uma tal sabedoria a imagem do hoaceitá-lo, devo tê-lo em mira, já que só então “emana dele a pura mem esculpida pelo niilismo? Conhecemos a imagem elaborada com bem-aventurança"; só “brota a luz" se “bebo", ingiro 0 sofrimento, bases nas caricaturas do biologismo, do psicologismo e do sociolose minha alma o absorve. Somente o sentimento que é objeto de uma gísmo; conheoemos o Zoon polilikon. o Homo faber, o Homo sapiem intenção deixa de ser sofrimento. Estamos, pois, diante da contraparO Homo faber. o homem meramente criador; a absolun2a'ção, a tida do prazer o quaL conforme vimos antes, cessa tão logo é visado. idolatria dos valores criadores! Viu-se apenas o homem criador. E O prazer é exclusivamente “efeito” (o “prêmio do prazer_”), jamaís onde ñcou o homem que sofre? Deu-se à existéncia humana a apaintenção; pode “efetuar-se”, quando não intcncíonado. Se, como surência de um atívo, sem passivo. O homem foí reduzído a um ser vicede nos conñitos neuróticos sexuais, ele é alvo de uma inlenção_, se o vo, sem a dimensão do sofrímento. 0 balancete da vida foi retocado caso é de prazcr e não de amor, então a intenção ñcará a meio camide modo a conter apcnas um ativo desacompanhado do passivo. nho, não alcançando o parceiro, e matando, assim, o próprio prazer. Ncle não constam nem culpa, nem dívida, nem sofrimento. Ora, para poder fazer do sofrimento o objeto de uma intenção, lcnho previamentc de transcendê-lo. Em outras palavrasz a ñm dc Qual o retrato do homem no quadro biologísta? O mais desendar um sentido ao sofrimemo. devo sofrer por alguém, por amor a volvido dos mamíferos? 0 mamífero ao qual o fato de andar ercto alguém. O sofrimento, para ter finalídade, não pode bastar-sc a sí Ihe subiu à cabeça? Sapere aude foi o seu ímperativo - “Atreve-te a mesmo. Do contrário. tornar-se-á masoquism0. Sofrímento signíñraraciocínar!" Pois bem, ele se atreveu. Atreveu-se a absolutizar a cativo equivale a “amor por”. Aceilando-o, não só o fazemos alvo de zão, a quaL no Iluminismo, foi transformada em deusa. uma intenção, mas visamos através dele algo que não é idênlíco a ele. Opomos à imagem biológica uma outra, de caráter noológíco. Trausc.c-ndemos. assim, o sofrimcnw. Ao Homo sapte'ns contrapomos o Homo pauem',' pretcndemos substi-

244

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

“HOMO PATIENS"

245

0 sofrimcnto pleno de sentido vai além de si mesmo, reporta-sc íotempo, mas o que aconteceu se coagula em Hístória. Erwin Strauss a algo "pclo qual sofremos". Em síntese, sofrimento dotado de scntideclarou que “a História é o passado que, na qualidade de coisa rcado é pura e simplesmente sacrifício. _ lizada, resiste ao dcsaparecimento.“ ° Assím, no caso de nosso paNa medida cm que é terapia, a análíse existencial se vê às voltas ciente. o scntido de sua vida resistia à extinção, do mesmo modo com a tarefa de analisar existencialmente o sentido, com vistas à pos. como o amor à esposa sc opunha à mortc dela. sibilidade de que tenha um sentido. Trata-se sempre - para usarmos uma expressão fcliz de Paul Polak 5 - de “dotar o sofrimento de um No entanto, o verdadeiro problema que levou a nos procurar é sentido". O que. como ñcou demonstrado, levará. cmultima análise, outro. Não sofre “de" melancolia, nem "por causa” de seu pesar, seu à consagracão do sofrimento como sacrifício. Iuto. O motivo pelo qual sofre é, conforme admitiu, que a ninguém Com a ajuda dc um exemplo, um caso concret0. pode esse asbeneñcia esse seu sofrimento. Como sofreria de bom grado se houpecto ser bem esclarecido. Vem procurar-nos para consulta um sevesse alguém por quem ele pudesse sofrer. alguém a quem pudessc nhor de certa idade, médico. Sofre de depressão. que logo ven'ñcaconsagrar seu sofrimento como um sacrifíciol mos não ser endógena, mas exógena, psicogênica, reativa; a depressão data da época da mone da esposa, com a qual vivera feliL Agora Uma simples reflexão lhe ensina que tampouco seu sofrimento a vida lhe parece privada de qualquer sentido. Julga que scu estado carece desse sentido. Para que comprecnda, necessitamos apenas lc~ não é realmente patológico. e somos obrigados a lhe dar razão. E cervá-lo a pensar no que teria sucedido se ele tivcsse morrido no lugar to que scu luto se prolonga por um prazo anormalmeme longo, mas da esposa; preferiria que sua mulhcr tívcsse sido colocada na situapor outro lado, a felicidade de scu casamento ultrapassou as normas ção dc pranteá-lo? Imedíatamente sc lhe torna claro que ela foi pouhabituais e nesse sentido poderia ser tida como “anormal”. Apesar pada _do desgosto de ter de sofrer o luto por ele, mas isto, há de ser de sua persistência desusada, o seu pesar constitui, pois, um afeto pago por ele com o preço do próprio sofrímento. adequado ao caso. No mesmo instante, sua vida recobrou o sentido, o luto “por" Nosso pacieme (seria exagero chamá-lo de “enfermo") índaga o alguém se transformou em sacrifício “por amor a alguém”. Foi um que deve fazer e añrmaz “Não quero remédios, para isso não seria diálogo de apenas alguns mínutos, durame o qual, porém, o pacíente necessário incomodá-lo, já que eu poderia, sendo médíco, receitá-los efeluou uma reviravolta copernicana. Não foi possívcl modiñcar para mim.” Está raciocinando corretamente, um tratamento medicafundamentalmcntc seu sofrimento. mas não representou algo o falo mentoso equivalcria a narcotízá-lo: “Os remédios não me ajudariam; de que pelo mcnos sc lhe deu um sentido? 7 minha vida não ganharia senlido. eu no máximo conseguiria esquecer que ela não tem sentido.” A influência do sacrifício na dotação de sentido pode abarcar De início, é preciso explicar ao paciente que nada nem ninguém toda uma vida. O sacrifícío é capaz de dotar de sentido até a morte, pode privá-lo daquilo que ele expcrimentou: um casamento feliz. enquanto o instinto de conservação. por exemplo. não conseguc soAinda que somente esse acontecimento houvesse enchido de sentido quer dar um sentido à vida. Vivemos numa época de pulmão de aço, sua existência, o sentido não desapareceria. Em outros.termos, colocorações artiñciais e cérebros eletrônicos. Já se previu, conformc lícamos dianle dos seus olhos o que em outras oportunidades temos vro dc um pastor servindo numa Casa de Saúde, que um dia as caberepetidoz é um erro ver apenas o restolho do lransitório, mquecendo ças dos doentes cujo organismo restamc não esteja em condições de os ccleíros replclos do passado: é um erro falar na “lima corrosiva do sobrcviver serão conservadas, “em vida”, nas clínicas do futuro, cm tempo" como se apcnas uma espécíe de erosão fosse eñcaL quando, locais especiaís, cheias de tubos e alimemadas por uma circulação arna vcrdade. para oontinuarmos usando o jargão da geología, vivcmos tiñciaL São projetos de antecipação. mas já constituem pesadelos. num contínuo aluvião. Nada está irremediavelmente perdido no Não é desejável a conservação da vida a qualquer preço, isto é, com passado, tudo está salvo, não deve recear-se que se perca. Transcorre

5 ankls ExmenzanaLvse in ihrer Bedeutung fur' Anrhropologie und nycholhempíe, Tyrolic Verlag. lnnsbruck. l949. p. 22

6 Von Sinne der Sinne - Bcrlim, l935. p. 244 7 A maioria dos estudames dc Harvard imcrrogada por Edwin Shncidman preferiu a idéia dc morrer depois da csposa para poupá~la da dor do lulo.

-l._

-

l

246

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

risco de que não scja maís uma vida, no verdadeiro sentido do lermo. Pelo contrário, tudo em nós se rebela contra a idéia de que sejamos reduzidos a uma existência puramente animaL nos termos da teoria de uma psicotcrapia biologist_a, ou na prática da conservação da vida à lout prix *. Ludwig Bíswa_nger denominou de “horror nu" uma existência mcramente ñsiológica, como a que teríamos no caso. Por que é que tudo em nós se rebela diante dessa idéia? Porque não é certo que o homcm tenha imeresse em vegetar; o que lhe importa, no fundo. é existir signiñcativamente. O essencial não é a duração da vida, e sim a plenitude de sentido. Uma vida curta pode ser bastante signíñcativa, c uma longa, permanecer destituída de sentído. Mais aindaz se não houvesse morte, a vida ínñndável não teria sentido. Pois emão o homcm estaría sempre adiando tudo. não seria necessário fazer hoje o que se poderia deixar para amanhã. Não haveria nenhuma obrígação, nem a menor responsab1'lídadc. Nada o impulsionaria a aproveitar o momento para realizar valores e preencher o sentido da vida. Os homems que chegaram perto da morte perceberam que o sacrifício é capaz de dar sentido até a ela. Os moribundos Iutam interiormente para consagrar seu sofrimento e sua morte como sacriñcio. Por isso, não é motivo de espanto que, entre homens que se encontram no cativeiro ou nos campos de concentração, se díscutam questões ñlosóñcas ou sc argumente sobre a concepção do mundo. É a autoconservação cspiritual que leva a esse comportamcnto. Não se devc desprezar a fome espiritual que se manifesta nessas ocasiõcs extremas c que não é de menor relevância que a outra, que anseia pelo não-materíal. Añnal não causa surpresa a ninguém o fato de que os internados nos campos de concentração continuem a ter fome, malgrado o que vee^m; o instinto de conservação, no sentido estrito da palavra. sobrepõe-se a todos os horrores. O mesmo ocorre no campo espiritual: a todo ser inteligente não intercssa - o que é possível camprovar - o imperatívo primum vivere deinde philosophari, mas sim prímum philosophari, deinde mon'. Díante da ameaça da morte, trata-se de, lular pelo sentido da morte... a camínhar para ela de cabeça erguida. A pn'mazia da ñlosoña, que se expressa no pnm'um philosophan', não se |egitima a partir do fator íntelectuaL e sím do exístencíal, de um pensamemo existenciaL de um pensamento ardoroso. Conhecemos um prisioneiro de um campo de conccntração que conseguiu ali introduzir clandestinamente o manuscrito de um livro, a obra de sua vida. pronto para ímprimir, a ñm de salvá-lo para tempos melhorcs. ' Em francês no on'ginal. (N. do T.).

“HOM0 PATIENS"

247

Não o conseguiu; o livro extraviou~se c nâo havia esperancas de que jamaís viessc a ser publícado. Nesta situaçâo intcrior e exteríor. o homem sentiu no fundo dc si mcsmo que mais importame do que cdítar o volume era viver, sofrer e morrer segundo o que prcscrevia o tcxto. ” Aprendemos a distinguir emrc 0 sofrimcnto signiñcativo e o que carece de sentido. Esta difercnciação nos leva a outra, a que existc entrc 0 sofrimento necessário e o dcsnecessárí0. Aquele sofrimento reto e altivo que possibílita a realização de valores atítudinaís cxístc exclusivamente como sofrimento. A realização de valores dc atitude consiste na consumação do scntido possível de um sofrimento neccssário. Quem souber que pode elimínar através de uma intervenção cirúrgica o sofrimento oríginado por uma doença e não o ñzer, ou bem padece por medo, ou quer bancar o herói e o mártir. O medo à operação equivaleria ao cscapismo; o segundo comportamento mencionado corresponderia ao masoquísmo. O escapista foge do sofrimento necessário; o masoquisla visa um sofrimenlo desnecessário. Se o escapismo signiñca queixumes, o masoquismo representa deleite na d0r. Nunca vimos_ caracterizada tão nitidamente a díferença entrc o sofrimento como necessidade fataL por uma parte, e como luxo supérfluo, de outra, do que num anúncio aparecido num diário norteamericano editado em língua alemãc “O que o céu te envia, suporta pac1'entemente; mas se são os percevejos que te incomodam, então chama Rosenstein (664 W. rua 161)”. “O que o céu te envia” isto sim, é necessidade fataL sofrimento necessário, cheio de scntido, sofrimento que possíbílita a rcalização de valores atitudinais e que deve ser suportado com paciêncía. Que é que constitui. para retornar ao tema, a essência do masoquismo? Falsiñcar o prazer, fazendo dele um desprazer. Ambos. porém. tanto o prazer como o desprazer, são sentimcntos condícíonais e não-intencionais, para utilizarmos um confronto apontado por Scheler. 0 contrário do masoquista é o indivíduo que transmuda sofrimento em desempenh0. Equidislante da lamúría e do gozo no sofrimento. ele aspira ao sofrimento, em contraste com o queixoso, mas não o considera, ao contrário do masoquista. como ñnalidade em si mesma; transccnde-o visando, através do sofrim_ento. aquele

8 Em matéria dc escrever lívros. eis como se aprcsemam as coisas. Bcrevcr não signí› ñca muito; mais imporlante é viver a vida; e muito mais ainda seria cscrever um livro scgundo o qual sc pudesse viver. O máximo. porém. scria |cvar uma vida sobrc a qual sc pudesse escrever um livro.

248

FUNDAMENTOS A_NTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

outro por amor do qual ele sofre, em uma palavra, õferecendo-lhe em sacrifício o sofrimemo. Ao dar ao sofrímento o sentido de um sacriñcio, o indivíduo o eleva do nível fatual ao existencial e, ao mesmo tempo. transcende a sí mesmo “pisando no sofriment0”, andando para cima e para frente. Nisso não há rcgrcssão, no signiñcado psicanalítico; ao contrário podcr-se-ia falar em progressão, pclo menos no scntido analítico existenciaL O sofrimemo é intencionaL se se refere ao sentido e aos valores. Esta referência pode ser desviada também para o sujeito que sofre. lntroduz-se. cntã0, no lugar do masoquismo, um autismo. A referência ao sentido e aos valores passa a ser reflexiva. auto-relativa. Recordemos a esse respeito a analogia que pode ser estabelecida com o fenômeno do esteticismo. O estcta vê tudo como uma moldura, como se fosse tema de um quadro, de uma novelaz degrada o ser a nível de mera aparência.' Foge da vida em direção à “experiência“. O mesmo sucedc com o autistaz foge do sofrimento para se rcfugiar na autocompensação. Se .o fariseu d¡z': “Vejam como sou bom", 0 que sofre autisticamente diz: “Vejam como sou miserável". O autismo se assemetha freqüentemente ao exibicionismo. quando não à prostituição. 0 que sofre retamente e de cabeça erguida jamais exibe o seu sofr1'mento. Ao que sofre não ñca bem a publíc1'dade, convém-lhe o silêncio. O sofrimento reto e altívo é sempre silencioso. No contexto de nossa diferencíação entre sofrimento necessário e sofrimento desnecessário, vale lembrar que o sofrimento necessário também podc ser voluntário. O sofrimento pode scr necessário cm função de considerações morais elevadas, por cujo amor elc é aceito voluntar1'amente. Um exemplo é o martírio. 0 masoquista sofrc propositadameme; o mártir sofre voluntariamente. O martírio nada tem a ver com o masoquismo.

Nem mesmo o penitente pode ser cquiparado ao masoquista. Que difercnça existe cntre o mártir e o penitente7 O primeiro aceita o sofrimento, o segundo o aplica em si mesmo. E, no entanto, próprio de ambos o momento dc livre arbítrio. A penilência não é outra coisa senão expiação voluntária, em conlraposição ao castig0, expiação ínvoluntária. A diferença emre o masoquista e o penitente se baseia no fato de que 0 sofrimento do penitente está orientado |'ntencionalmente. E precisamente o arrcpendimento c' a intenção, o motívo de toda penitência, Somente 0 homem arrependido tem interesse em punir-se voluntaríamente. A quem se deve o não só se arrepender, mas também o se castígar? ch, enquanto só mc arrepender, permanece o risco da rcincidência. O risco pode ser considerado afastado até certo ponto

se acrescento o desprazer da penitência, voluntariamente. Do ponto

“HOMO PATIENS"

249

íçje vista da “economia do prazer" (Freud), sai caro. A expiação tenta fechar a porta ao perigo do retorno do erro. Pensemos de novo no duplo impcrativo; o médico deverá ajudar, se possível; aliviar, quando nccessário. O médico que não rcmediasse o mal, eliminando, assim, o sofn°mento, agiria contra a ética proñssionak o que não aliviassc a dor, agiria dc modo inumano. No cntanto, já dissemos que não temos direito de extirpàr a dor a todo preço. e o acento recai na palavra “todo”, pois, de uma forma ou de 0utra, sempre há de se pagar um preço, por menor que scja. A questão é detcrminar se o preço do alivio é excessivo. Num caso concrcto. há de se estudar as círcunstâncias, ponderando o mal maior e o menor. Um paciente meu, egipto'logo, decifrador de hieroglifos, colaborador de uma enciclopédia, queria se livrar de uma neurose obsesSiva mediante uma leucotomia. Em virtude da incertcza dos resultados, em relação sobretudo a saber sc ele poderia continuar seus trabalhos cientíñcos após a operação, decidi contra. Já no caso de uma camponesa atacada do mesmo maL fui a favor, em face das vantajosas mod¡'ñcaçoe's emocionais que adviriam e da ausência de inconvenientes correspondemes no plano proñssionaL o que tornava o preço “razoável”. Ninguém pode fugir dcssa ponderação. Na prática médica, todos os dias, por exemplo, no terreno dos medicamentos, é preciso sopesar os efeitos ulteriores e secundáríos em comparação com os beneñcios terapêuticos. Todo remédio tem um efeito tóxico e o fato de que seja mínímo não altera o princípio. A diferença entre dose “terapêutica" e dose “tóxica” é graduaL e cabe ao médico tomar uma dacisão. Sc atendermos ao duplo mandamento médico “sc possíveL ajudar; quando necessár1'o,' aliviar" c claro que a segunda parte dcverá ser cumprida com risco, às vezes, de encurtar a vida do doente de algumas horas. Temos de contar sempre com esse risco, enfrentá-lo, justiñcá-lo em nossa conscíência. Subentende-sc que esses encurtamentos sc darão nos casos cxtremos dc paciemes in ultimis. 0 único ponto é determinar quando chegou a hora de tomar essa providência. Quando é o momento de passar do primeiro para o segundo mandamento. Geralmentc a possibilidade de ajudar diminui na proporção em que_ aumenta a necessidade de aliviar. O momento em questão se situa, pois, na interseção da curva descendcnte com a ascendentc. Foi o que ocorreu nun caso dramático que presenciamos durante a guerra. Não era possível encontrar prostigmina para uma doente atacada de “myasthenia gravis" ejá aprcsentando sintomas dc paralísação do diafragma. Demos instruções que lhe fossem aplicadas as últimas ampolas disponíveis. e na ocorrência dc crise de disp-

250

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

néia, morñna à vontade. Cabe a perguntaz em que difere este procedimento da eutanásia? Já expusemos repetidamente nossa rejeição da eutanásia ”. No caso em apreço, a coisa é diversaz trata-se de aliviar o sofrimento; na eutanásia, tira-se a vida com o propósito de evitar o sofrimento a qualquer prcço. Não há dúvida dc que os limites entre as duas situa~ ções são Hutuantes, imprecisos, mas seria incorreto valer-se de casos extremos para justiñcar uma cxtensão de uma tese ad absurdum. Na vida, na prática médíca, o fator moral é por si mesmo ev1'dente. O ponto de íntersecção das duas curvas - possibilidade de ajudar e necessidade de aliviar - só o médico o pode advinhar. Não há nem lei nem rcgra que o oriente nessa tarefa. Deve entregar-sc completamente à improvisação e à individuaçâo. Ncnhuma lei o auxiliará nísso. Há de decidir segundo sua consciência c 0 melhor de seus conhecimentos. Dissemos anteriormente que ele terá de “adivinhar" o momento certo. Mas só é possível adivinhar tomando como ponto de partida a faculdade dívinatória que é a consciêncía. Esta deve adivinhar; sua tarefa essencial é a sincronização da lei eterna universal com um caso singular q_ue não se deixa subordinar a ncnhuma regularidade. O saber, o intelecto não são capazes de executar tal tarefa, que compete à intuição, à divinação da consciência. “' De que serviriam leis e decretos? Na mesma proporção em que a consciência - o que exíste dc menos burocrático - se subtrai a tudo isso, sua exatídão e severidade se tornam mais ñdedignas. Nenhum tribunal do mundo consegue inquirir tão minucíosamente e scntenciar tão duramente. Mas ela o faz na intim1'dade, no silêncío, não em público. Divulgada, discutida em aberto, a decisão da consciência de cada um, de cada médico, sería mal ínterpretada. Por conseguinte, a questão aquí abordada é um caso de consciência para o médico e uma questâo de conñança para o enfermo c sua família. É necessário que a conñança do enfermo seja “cega” para que a consciéncia do médico seja “vidente”. Como vimos, essa consciência médica vê-se obrigada, de acordo com o segundo mandamento, a alíviar o sofrímento do enfermo (nã0 a qualquer custo, mas eventualmenle), o que suscita certo risco que tcm de scr enfrentado conscíentemente. Uma regulamemação Icgal ncssc setor tão delicado e sutil levaria ou ao abuso do dever médico, ou a uma má interprctação desse dever por parte do docnte. Porque de um lado o médico, apoiado na lei, podería decidir com presteza,

9 No volumc Ârrzlivhe Seelsorge, pp. 63-65 c 52-62. I0 Ver meu trabalho Der unbewusste Gau, cd. KõscL Munique. 1974.

"HOMO PATIENS"

251

ísem tcr de prestar contas à sua conscíência. enquanto dc outro o doente nunca saberia quando o médico se aproximava dcle na qua|idade de médico e quando na dc carrasco. Já houve tempo cm quc o doente não tinha mcsmo mcios dc sabé-lo. O médico efetuava então uma missão tríplicez advogado a serviço da utilidade social; juiz encarregado de decidir quanto ao valor ou inutilidade dc uma vida; enfim. executor da scntença. Se quisermos evitar que tal época retorne. deveremos alentar para a segumte passagem do Talmudez “Aquclc que destruir uma alma. não mais que uma, devcrá ser lido como alguém que deslruiu 0 universo; aquele que salvar uma alma, basta uma, será tido como alguém que salvou o mundo inteiro."

254

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

“HOM0 PATIENS"

255

favoráveis que se possa imaginar. E para tanto. não precisávamos ir Mencionei poucos nomes, e não de acordo com a hierarquia até à ñoresta virgem da África. Fízemos, então. a promessa de, Iogo Êcimüñm Falo de índivíduos lso'lados, mas penso em todos. Os poucos no dia seguintc, forçarmos um meio dc sermos também deportados. reprcsentarão os muitos, pois não está no poder dos homens fazer a E não demorou o momento. Só que à minha jovem colega não foi crônica de todos. Mas eles não precisam de cro'm'ca. nem dc monudeixado tcmpo bastante para que pudesse aproveitar a oportunidade mento; cada ato constitui o seu próprio marco, indestrutích como que sua visão ética da medicina descortinava na deportação. Logo tudo que é obra de nossas mãos. 0 ato de um homem não se deixa depois de ser internada no campo, contraiu tifo, morrendo semanas nunca desfazer; o que foi feito jamaís poderá ser anulado. E não é mais tarde. Chamava-se Dra. Gisa GerbeL Lembramo-nos dela. verdade que tenha ñcado perdido no passado; pelo contrário. no pasHavia lá também um médico de pobres do 169 Distrito, conhecisado cle está inextinguivelmente ao abrigo. do em Viena pelo nome de “o anjo de Ottakring", tipicamente vieE certo que naqueles anos a proñssão médica foi profanada. nense, que mesmo no campo de conccntração não falava de nada Não é menos certo que no mesmo tempo ela foi exallada. Alguns mécom mais ardor do que das fcstas de dcspedída numa taberna da ci~ dicos no campo faziam experiências em moribundos; outros, contudade e entoava com piscadelas e lágrimas Irechos de algumas canções do, faziam a experiência da morte em si mesmos. Recordo-me de um do gênero Era o anjo de Ottakring mas que anjo da guarda o tcneurologista berlinense, doutor Wolf, com o qual live longas palesrá a elc mesmo protegido, quando naquele dia em Auschwitz, diante tras, à noite. na barraca, sobre os problemas atuais da psícoterapia; dos meus olhos. na estação dc trem, se dirigiu para a via da esquerda pois bem. quando ele sentíu a morte se aproximar anotou num cader- ou se'ja, díretameme para a câmara de gás? Era o anjo de Ottakring. no suas rcaçoe's dos derradeiros momentos. Seu nomcz Dr. Plautus. Lembramo~nos delc. Geralmente a experíência do campo de concentração tinha caE lá havia o Dr. Lamberg, ñlho do médico-chcfe da clínica da racterísticas de grande magnitude, consistia num verdadeiro experimundialmente famosa Associação Vienense de Salvamento formada memum crucis. Nossos colegas que sucumbiram ñzeram boa ñgura. por voluntários, e conhecido de todos os alunos como autor de um Deram-nos a prova de que o homem, mcsmo nas circunstâncias mais manual de primeiros socorros med'icos. O Dr. Lamberg era um ho~ desfavoráveis, mais indignas, permanece um homem - um verdadeimem mundano, tanto na aparêncía quamo nas atitudes. Sabcm-no ro homem e um verdadeiro médic0. O que eles_conseguiram deve sertodos que o viram ainda que uma só vez. Bem, eu também o ví morivir de exemplo do que o homcm é e do que pode ser. bundo, numa barraca meio soterrada, no meío de dúzias dc vultos faQue é então o homem? Nós aprendemos a conhecê-lo como talmintos amontoados uns sobre os outros. E o derradeiro pedido que vcz nenhuma outra geração anterior o tenha feito; nós o conhecemos me fez foi para que eu afastasse o cadáver que jazia ao seu lado, enno campo de concentração, onde tudo que não lhe era essencial foí costado nele. Esse era o homem do mundo Dr. Lamberg, um dos jogado fora; onde lhe faltou tudo que havia possuídoz dinheíro, fapoucos camaradas do campo com o qual era possível mamer~se uma ma, poder, fclicídadc, rcstando apenas o que o deñne como ser huconversação ñlosóñca durante os mais árduos trabalhos em meio a mano. Sobrou o que ele não pode “ter”, mas o que deve “ser”. 0 que uma tempestade de neve. Lembramovnos de1e. ñcou foi o próprio homem, em sua essência. queimado pela dor, disLá estava ainda a doutora Martha Rappaport, minha antiga a5~ solvido pelo sofrimcnto - o elemento humano em sua quintessência. sistente no asilo Rothschild de Viena, outrora médica-assistemc de Que e', então, o homem? indagamos de novo. É um ser que semWagner-Jaureg. Uma mulher dotada de um coração que não a deixapre decide o que é. Um ser que, cm proporções ídênticas. traz consiva ver ninguém chorar sem que também prorrompesse em lágrimas. go as possibílidades dc descer ao nivel do aním_al ou se elevar à vida E quem chorou por ela quando foi deportada? - Essa era a doutora do santo. O homem é a críatura que inventou a câmara de gás; mas, Martha Rappaport. Lembramo-nos dela. ao mesmo tempo. é a criatura que foi para a câmara de gás dc cabcça E citemos. do mesmo asilo, um jovem cirurgião, Dr. Paul Fu"rst, erguida rezando o Padre-Nosso ou com a prece fúnebre dos judcus e outro médico. Dr. Ernst Rosemberg. Com ambos pude conversar nos 1a'bios. Também isso é o homem. E agora sabemos a resposta à pcrgunta antes de morrcrem. E não havia ódio no que diziam. Aos seus lábios apenas palavras de Êue no início ñzemos, rque é o homem. para que nos Icmbremos delc? assomavam saudade e de perdão. Pois o que eles um junco, mas um junco pensante, ensinou PascaL E esse pensaodiavam e nós odiamos não sâo os homens - é o sistema. Aos homento, essa conscíêncía, essa responsabilidade é que formam a dignimcns. pode-se perdoar. 0 sistema que odiamos traz para uns, culpa, e para outros, morte. dade do homem. Cabe a cada um de nós decidir se os destruímos ou

256

se os preservamos. 0 mérito ou a culpa dos individuos dependem de qual das duas atitudes é adotada. A culpa só pode se vinculada a uma pessoa, nunca se deve falar de "culpa coleu'va". É certo que alguém que '°nada fez" também pode ler culpa, precisameme pelo que “deixou de fazer”. omissão originada do medo de si mesmo ou de seus semelhantes. Aquelc, porém. que fzcar tentado a Iançar sobre ral pessoa a acusacão de covardia deverâ antes refletir se em situação ídêntica eslaria disposro a bancar o herói. Não seria melhor abandonar de vez o propósito de julgar o próximo? Paul Valéry declarou certa feita: “Si nous jugeons el accusons, lefonds n'est pas aneim“ ". Enquanto continuarmos julgando e acu~ sando o próximo, nunca chegaremos ao fundo da questão. Portamo, de nossa parte, não desejamos apenas evocar os mortos. mas também perdoar aos vivos. E assim como por cima de todos os túmulos cstendemos a mão aos que morrcram. assim, por cima de todos os ódios, queremos igualmente estendê-la aos que vivem. E quando proclamamos “honra aos mortos", logo acrescentamosz “e paz para todos os vivos de boa-vontade!"

C. Da autonomia à transcendência: A crise do humanismo

v
' Em francês no original (N. do T.)

-w.~u

_-›.?-_w -~

mww<

.v_

, v

ObServaçio Preliminar para a 2*| Ediçâo

p-7

J '!

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

É possivel que muítas das exposições que se seguem transcendam “os fundamentos antropológícos da psicoterapia” c aflorem questões de teología. Ainda assim. transcorrído mais de um quarto dc século, nada tenho a desdizer. Cumpre, todavia, não esquecer que as considerações e reflexões que vão ser lidas adiante não constítucm elcmento integrante da logoterapia, que é um método c uma técnica de psícoterapia capaz de ser praticado mesmo por quem não subscreve nenhuma das declarações aforísticas contidas neste trabalho. No que conccrne à problemática dos limites entre “Psicoterapia e Religião” (subtítulo de um de meus lívros, Der unbewusste Gom já me manifesteí bastante, seja na obra citada, seja em outras. Restrinjo-me a alg'umas citaçõesz “Para a logoterapia, a relígião não é um ponto de vista, apenas um objeto". pois a logoterapía “tem de scrvir a todos os tipos dc enfermos, crentes ou descrentes, e ser utilizada por quálquer médico independentemente do que ele, pessoalmente, pense do mundo". Em compensação, é fácil de erhender que se a logoterapia é precisamente um tratamento orientado no rumo do senu'do “há de se ocupar do fenômeno da fé. Ela julga. como Alberl Einstein, que a indagação do semido da vída é uma atitude de índole religiosa". No seu diário do período l914-16. Ludwíg Wittgenstein escrevcuz “Acreditar em Deus equivale a perceber que a vída tem um sentido.“ Numa passagem do seu diário do dia 3 de agosto de l944, “O Último Ano". anotou J. Güntherz “Certamcnte Deus pode scr concebido como o sentído.” “Em todo o caso" - lê-sc cm um dos meus escn'tos - “a logoterapia encontra sua legmmldade no fato de



v

vwwv

,-w¡

258

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGK OS L A PSlCOTERAPlA

"HOM0 PATIENS“

259

que ela não se ocupa apenas da vontade de sentido; mas também da dá a imagem de um homu'nculo, um artefato, produto artiñcial busca de um sentido ñnaL um meta-sen1ido. E a fé religiosa e'. em u'l- ínos de uma pcrspectiva exclusivista. tima análise. a crença no meta-sentido”. Já são. alia's, de nosso conhecimento os homúnculos dos diferem Também no que diz respeito a uma crítica do movimento relites “ismos”: o Homo sapiens, o Zoon politikon. o "homem” como augioso contemporâneo, já me manifesteí com toda franqueza tanto cm de reñexos, feixe de impulsos. e assim por diante. O que falta tômato Der wzbewusste Gott como em Der Mensch auf der Suche nach Sinn. niilista é o Homo patiens, a ímagem do homem que sofrc, ao quadro Embora não aderindo a crcdo ou conñssão. tenho-me inclinado de signiñcat1'vamente, realizando o seu sofrimento. Em suma, o sofre novo nos u'ltimos anos. para a tese que por muito tempo defendi e própdrio sofrimento considerado como uma consumação revestida dc tive a oportunidade de expressar, em l946, em Ãrtzliche Seelsorge, senti o. dc que talvez a melhor maneíra de deñnir Deus seja como o interlocutor de nosso diálogo interior mais ímimo. Na prática. isto quer dizer Sob muitos aspectos, o sofrimento é simplesmente um teste. Na que quando alguém, na sua mais complcla solidão e com o máximo prática, a vída de um homem tem nele, com efeito, o experimemum de honestidade para consigo mesmo, pensa e fala no plano da imecrucis, a pedra de toque, a prova de autenticidade; na teoria, a dourioridade, está se dirigindo verdadeiramente a Deus (1¡bi cor meum trina sobre o homem se valida pela maneira como é capaz de interquuitur). Pode ser crente ou ateu, pouco importa, porque “operacioprctá-lo. nalmente” Deus se defme como aquele com quem, de uma maneira Ao tentar interpretar o sentido, e não só o sentido do sofrimenou de outra, nós falamos. O crente se diferencia, portanto, do ateu to, partindo do niilismo, ou seja, da negação do semido, Iogo se perapenas por não admitir a hipótese de que está falando consigo mescebe que a categoria do semido não basta, é preciso recorrer à noção mo; acha, pelo contrário, que suas palavras alcançam alguém que dc um supersentido. Na medida em que não se cogita do ser em geraL e sim do ser humano, ou do que se chama de cxistência, do modo dc não é idêntico a ele. No espíríto de uma deñnição purameme operacíonal, o ponto é irrelevante, pois temos 0 direito de, em cada caso, ser inerente ao homem, e só a ele, vê-se igualmente não ser possível designar simplesmente aquele com quem falamos, no âmago de nós prescindir da idéia da transcendência. Uma antropologia - a teoria da existência humana - não deverá, pois, deter-se na existência, no mcsmos, Deus. que é imanente ao homem. Procur0u-se, nesla primeira parte, apresentar uma crítica do niílismo, ou melhor, dos niílísmos. a saber. daquelcs três “ismos” que isolam e absolutizam. cada um por si, uma determinada camada da existência, especiñcamente da existência humana, e se limitam às res~ pectivas perspectivas. Conforme a camada cm causa - biológicofilosóñca, psicológica ou sociológica - o resultado. no que concerne à perspectiva, será o b1'ologismo, o psicologismo ou o sociologismo. No entanto. de nenhum desses três horizontes do entendimento se poderá chegar à essêncía do homem Tudo que satisfaça às exígências da natureza humana merecc ser chamado de “humanismo”, na prática como na teoria. lmporta. contudo, ressaltar que o humam'smo, seja de que tipo for, pressupõe uma doutrina na qual tenha lugar a noção de natureza humana. E só seremos capazes de alcançá-lo depoís de termos supcrado criticamente o niílismo. ' Este, ao invés de uma imagem do homem e sua natureza,

l cha~sc Viktor E. FrankL Der Menxrh aufder Suche nach Sinn. Zur Rchumanisíerung der Psycholheropía Herdcr Freíburg im Breisgam l973.

Nos primeiros capítulos, ao fazermos a crítica do niilismo, vcriñcamos que, nessa ótica, o homem na verdade não é nada. já que ele “nada mais é do quc" o produto de condíções biológicas, psicológicas e sociológicas. Nossa crítica do níilismo consistiu em comprovar que, segundo essa concepção, o homem se tornou um nada. Já a crise do humanismo se originou do fato de que o homem passou a ser tudo. A antropologia, sendo o que é, coloca necessariameme o homem em primeiro plano. Não precisa, todavia, colocá-lo no centro. Ê, no entanto, precisamente o que faz ao temar interpretá-lo partindo dele mesmo, tomando-o por medida de si mesmo. No momcnto em que se agarra, assim, à ímanência humana, petriñca-se em antropologismo. Analogamente, a ñlosoña existencíal (a teoria da cxistêm cia humana) degenera no existencialismo ao procurar excluir a transcendêncía e a “transcendentalidade" (tendência da existência humana à transcendência). Vê-se. portanto. que depois dc sc ter superado os três grandes “ismos", cumpre ainda se resguardar contra um outr0, que consiste em ísolar ou absolutizar não mais uma das três camadas da exístên-

r 260

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

cia -' que se entrecruzam no homem. e sim o próprio ponto dc inter. seção. o que equivalc a fazer do homem um absoluto. Se a antropologia quer defender-se do risco dc antropologismo, e a ñlosoña existencial do risco de existencialismo, então não podem prescindír da transcendência. É a ciência em geraL e não só a ciência do homem. que deve referir-se constantememe à transccndência. Ninguém menos que Albert Einstcin - cuja qualidade de cientista está fora de dúvida - añrmou. em 0ut of My Later Years J: “A ciência sem a religião é manca", acrescentando, porém: "A religião scm a ciência é cega". Torna-se absolulamentc impossível para a ciência à Ia longue * obstinar-se num modo de ver “imanentista" sem se petrificar num “ismo” qualquer. Com maior razão ainda. a antropologia_ como doutrína da existência humana, não poderá deixar de referir-se à transcendência. I. Antropocentrlsmo Já ouvimos aqui que aprise do humanismo começa quando o homem pretcnde scr tudo; o amropologísmo comcça quando o homem não apenas se situa no primeiro plano da observação. mas no ponto central da valoração - torna-se a medida de toda valoração. De onde vem esta tendência? Foi Freud quem chamou a atenção para o abalo sofrido pelo homem na consciência de seu próprio valor (falou de narcisismo) cm conscqüência da mudança introduzida por Copérnico na visão do mundo. o quaL de geocêntrico passou a heliocêntrico. Parece-nos que naquele momento apoderou-se do homem um sentimento de ínferioridade planetária que, no sentido de Adler, exigiu uma compensaçãoz a aquisiçãp da consciência de um valor mais alto. Não houve, porém, apenas compensação. houve “supercompensação”. De que

2 As camadas exístcntcs são, em si mesmas. distintas em sua forma de ser. e. portanto. justiñcar~se a sua separaçãa No homem. pore'm. se aprcsentam dc tal mancira enlrelaçadas. quc só dc um pomo de vista heuríslico e arliñcíal clas se deixam considerar isoIadamcnte. 0 homem representa uma unidadc e lotalidade corporal-psíquico-.spiritua|, sendo quc o espirituaL a pessoa espírituaL é que cria. fundamcnla e garame loda cssa homogeneidade e totalidade. 0 falo de que cssa vinculação ínlima scja válida tão-somenle na cxistência humana imra vitam é um assunlo à parlev (Se valessa lambém para além da coexistência da pessoa espírilual com o scu organismo psicoñsico. no dccorrer da vida. a pcssoa cspiritual pnniciparia da mortalidade do organismo). E claro que a essas dislíntas camadas do ser correspondc algum derradeiro lenium compamliom'5. mas o único ponto comum é que lodas são camadas de um mcsmo scr, ser quc, como taL para nós, nunca chcga naturalmenlc a scr algo de facluaL 3 Philosophical lerary. Nova York. ' Em fmncês no original (N. do T.)

“HOM0 PATIENS“

26|

outro modo entender que o homem. juslamente quando dcscobre que a Tcrra não é o centro do universo, se coloquc no lugar de Deus? Exatamente naquela época começou o teocentrismo a se convcner. no campo da ñlosoña, cm antropocentrisma Ficou patcnte, em princípio. a renúncia à transcendência na interprctação do scntido da vida humana. Enquanto a antropologia, tanto a ñlosóñca quanto a ciemíñca. (por exemplo, a médica) não voltar atrás cm sua atitude preferíndo perseverar no antropocentrísmo e se entrcgar ao antropologismo, não terá condições de elaborar uma doutrina do homem que corresponda à verdade. O aniquílamento do imanentismo, e conseqüemc inclusão da transcendência, é um processo em harmonía com algo' que é inerente ao ser humano. Desde Scheler e Gehlen, sabemos que o homem é um ente aberto ao mundo, e que de modo algum sc fccha num ambiente reslrito à sua espécie. Ao contrário do animaL o que ele “tem”não é ambíente, é “mundo"; ro'mpc todo ambiente “na direção“ do mundo, e acaba ultrapassando o mundo. transcendend0-o para alcançar o transmundo. A antropologia dcve colaborar na concretização desse traço transcendental do modo de scr do homem, e pode fazê-lo renunciando a tentar oompreender m'tc¡ram'eme o homem a partir do próptio homcm. Só então será capaz de anular o niilísmo e constituir uma base sobre a qual se ediñcará o humanismo. Resumindcr a antropología tem de permanecer aberta - aberta para o mundo e o transmundo. Tem de deixar aberta a porta à transcendência, por onde passa, comtudo, a sombra do absoluto. Niilismo é negação de sentido. Para o pensamemo niilista, não só é impossível a crença num supersentído, mas até a crença em qualquer sentido. Assim, todo niilismo se caracteriza pelo ceticismo em relação ao sentido, cetícismo esse, acompanhado de um relativismo quanto aos valores. Por esse caminho, somos levados à problcmática dos valores. 0 relativismo estipula a relatividade de todos os valores. lsto é verdade? Sim, é verdade, porém num sentido diverso do pretendido pelo relativismo. Os valores não são relativos no que tange ao sujeito que valoriza, e sim a um valor absoluto. O ato de valorizar só é possível a partir de um valor absoluto, um valor máximo. que confere às coisas, aos objetos. Não se concebe o valor máximo como tal - o summum bonum senão vinculado a uma pessoa, e a uma pessoa de sumo valor, asumma persona bona. Esta terá de ser mais que uma pessoa no sentido comum; terá de ser uma superpessoa. 0 que já dissemos dos valores humanos nos mostrou que o valor mais alto há de ser um valor pessoaL Se desejarmos ilustrar o caso

264

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA “HOMO PATIENS"

0 homem pode negar às coisas o sentido do sacrifício, pode impedi~las de ser suporte do mais alto, do Senhor, para usar a fórmula de Beer-Hofmann já citada. Pode recusar-lhes o benefício do sacrifí. cio, pode obstar a realizaça'o, a obra de rcnúncia. Nessa recusa, aliás, está a causa dc IOdO desespero. Quão misteriosamente a linguagem o antecipou, em sua sabedoria! De fato, ao desespero dizemos que o homem “é levado", mas a renúncia é uma decisão que ele “efetua”. O que constitui a base do desespero é um impulso qualquer que leva o homem a não deixar que as coisas sejam o que na verdade são, suportes passagciros, c agarrar-sc a elas. 0 “ser levado” ao desespero carece de uma orientaçâo para os valores (por exemplo, os valores atitudinais), orientação que corrcsponde à realização da renúncia. Ousamos añrmar que quem está desesperado demonstra que ndolatra algo, absolutlza alguma coisa que na realidade tem um valor somente condicionado, relativo. Em compcnsação, que faz. pelo sacrifício, aquele que sacriñca? Reconhece que, correspondendo ao que está sacriñcando, existe algo de mais elevado, de mais valioso. Em síntese, reconhecc, com essa sua atitude, a híerarquía de valores. E que faz o que recusa às coisas o.sentido do sacriñcío, que se nega a renunciar e não quer aceitar o sacrifício? Arranca algo da ordem dos valores - autonomiza um valor. 0 homem, por exemplo, que se mostra incapaz de se consolar dc ter perdido algo ou de ter deixado de o adqu1'rir, por que se descspera? Porque não quer admitir que aquilo que perdeu estava apenas temporariamente “guardando o lugar” de algo que tem um valor correspondentemente mais alto, o valor máximo, a pessoa suprema, o Senhor.

"'

'_

"

Tais indivíduos julgam que a vida só é digna de viver com a condição de casarem e terem ñlhos. Como disse. contudo, Paul Polak. “não se deve ímpor condiçoe's à vida”. Signiñca que o coração não se deve prender a nada. O coração, a pcssoa íntima, não é o que se “tem”, mas o que se “é”, na parte mais recôndita do ser - não o elemento impulsivo. mas o espirituaL 0 que se pretendc designar por pessoa íntima é aquilo que no Velho Testamento é chamado dc coração. Lá está escrito que o homem deve amar a Deus “com todo o coração, toda a alma e toda a capacidade”. O que equivale a proclamar que o homem há de amar a Deus em todas as condições, em todas as circunstâncias, mesmo quando lhe tenham sido retiradas todas as possibilídades nas várias facetas da escala de valores, ou ainda quando esteja ameaçado de pcrder o pcnúltímo valor, o valor situado no penúltimo lugar da hierarquia,

*"'

Já ouvimos falar de alguém que, tendo perdido no campo dc concentração o manuscrito de um livro. a princípio, não se conseguia consolar diante da possibilidade de morrer sem o ter publicado. Mais tardc, chcgou, contudo, a “realizar” a sua renúncia. Que fez esse ho~ mem, añnal de comas'? Bem, deve ter perguntado a si mesmo: que tipo de vida seria essa cujo sentido depcndesse de se cscrever um volume e também logo divulga'-lo? Procuremos medir a profundidade abismal a que chega uma tal admissãoz a de que não se deve consentir em que circunstâncias exlcriorcs ou estados interiores - no caso, o anseio de plenitude de vida e auto~realização no campo intelectual restrinjam e limitem a visão do mundo e dos valores a uma única possibi11'dade. à idéia de que só seja possível realizar o sentido e concretizar o valor dessa forma. e não de outra. Seria difícil exempliñcar essas coisas sem cair na banalidade.

265

Mas vamos tentar. Um homem teve “má sorte no amor" c por isso está saturado da vida. 5 Casos como esse lcvam diariamentc pessoas a consultar os neurologistas. ch, esse homem está desesperado. o que quer dizer, segundo nossa interpretação, já exposta, que elc dever ser suspeito de idolatria. De fato, vê-se que se comporta justamente como se a sorte no amor fosse a única coisa imporlante na vida. Que signiñca idolatrar senâo colocar o objeto idolatrado acima de tudo o mais? Voltemo-nos para outro exemplo, mais atuaL e talvez menos triviaL Há como se sabe. numero_sas mulheres que por não se terem casado são forçadas a ñcar sem ñlhos, e entre elas muitas se desesperam com o fato, consciente ou inconscientememe (na segunda hipótese, tanto píor, do ponto de vísta do psicoterapeuta). Certamente. parece frívolo querer consolar essas mulheres, enfcitando a situação em que vivem. No cntanto, não nos resta outro expediente senão o de mostrar-lhc a distinção fundamcntal cntre estar triste e estar desesperado. Sim, é triste que uma mulher descjosa de casar e ter ñlhos permaneça solteira e infecundada. Mas não é motivo para desespero, a menos que o indivíduo haja idolatrado tal meta e tenha transformado a satísfação desse desejo numa conditio sine qua non do valor da vida. Ter um marid0, ser mãe, é um valor na existência de uma mulher e a concretização dessa possibilidade de valor atribui à vida sentido e valor; ai, porém, daquela mulher que absolutize o valor, tornzmdo-o um ídolo! Como se ser esposa e mãe constituísse a única possíbilidade de valor que a vida reserva.'...

rñ'

WAx

Y

5 Num livro anlerior. Ãrlzliche Seelsorge, pp. l47-150, refen'-me à contradição que há no uso da expressão “amor infortunado“.

266

t Q \

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

ou seja, a vida. O que se exigc é que esteja disposto a dar tudo, emregar tudo, abandonar tudo, tudo sacriñcar, em uma u'nica palavra, a disposição incondicional ao sacriñcio. Tomcmos outro excmplo de idolatria. Vamos supor que alguém visse no fato de estar ameaçado por uma doença psicótica (seja um temor real ou mero temor fóbico, uma “psicotofobia”), um motivo para suicidar-se. Por que, perguntamos, considera que sua vida carece de sentido e por que se desespera? Que terá idolatrado? Bem, deve ter idolatrado algo: idolatrou o intelecto, fez dele uma condição ímprescindível de todo sentído e valor da vida. algo que não permite que lhe seja tirado, algo sem o qual não quer continuar vívendo. Ora. em teoria, ninguém es!á livre de ñcar psicótico, mas qualquer um pode imunizar-se contra o desesper0. Desesperado só ñca quem idolatrou algo, preferiu uma coisa a todas as demais. Pode~se. sim, colocar uma coisa acima de tudo, dasde que essa coísa seja a míssão de se manter ñrme na vida em quaisquer circunstâncias. A vida: nela há de se incluir a falta de sorte no amor. o celibat0, a ausência de ñlhos e até o perigo de enlouquecer. A missão é saírmos vitorioso na existência em que, segundo Heidegger, fomos “lançados", ou que, de acordo com Jaspers, recebemos “de presente“ a partir da tra_nscendência. Sairmos vitorioso em função do leal saber e entender de cada um. A aceitação de tal missão é o único fator capaz de nos imunizar - não contra o infortúnio amoroso, a esterilidade, a psicose, etc. etc., mas contra o descspero. A supervalorização e a idolatría - raízes do desespero - extravasam da vida, chegam até a doutrina, a teoria. a ñlosoña. Não só na esfera pessoaL também no terreno objetivo, a idolatria traz consigo o desespero. Porque aquele que duvida de um supersentido, do sentido em geraL e por essa razão se desespera, também ídolatra algo: idolatra a ratío como u'nica possíbilidade de cncontrar um sentido e inlerpretá-lo. Nessa idolatria do racional fracassa o homem fáustico, como fracassa a sua réplica carícaturaL o neurótico obssessivoz ° o cético e cismado neurótico obsessivo que aspira, pclo caminho racionaL a ganhar segurança cem por cento na cognição e na decisão. Ao invés de se emregar conñantemente à profunda sabedoria do coração. do espírito “inconsciente", qucr dizer, írreñetido c nãointelectualizado ao invés de se entregar, conñante nessa emocionalidade. cm um sentido mais amplo e mais profundo, ao que há de provisório e acidental na vida, ao invés disso quer ñar-se na racionalidade.

6 Veja-sc Ârtzliche Setlsorge, pp. l76~190 e Die Bychoflheropie in der Praxis. p. 115.

T

"HOMO PATIENS"

267

Agora compreendemos o que signiñca a tão difundida e difamada cxpressão sacnf¡'c¡'um 1'ntellectus. Também o inlclecto é suscetível de ser idolatrado e isso leva ao desespero, na mcdida em que o homem se inclina a considcrá-lo com o valor máximo e ñnaL único meío de interprelar a vida e o semido. O “sacriñcio da razão” não sig~ niñca scnão o reconhccimento de que existe algo acima dela. ao qual devemos estar dispostos a sacriñcá-la. 0 sacnf1'c1'um intelleabs não é a :-enúncía ao intelecio, à ratio como tal, é apenas a renúncia à sua idolatria, uma renúncia, portanto, condicíonada, apcnas a renúncía a elevar a ratio ao nível de um valor absoluto. O homem que faz csse sacrifício não se conforma com a suposta insensatnz, o chamado absurdo da vida. nem com a falta de sentido concretamentc veriñcada. A única coisa com que sc conforma é a sua incapacidadc de comprecnder o supersentid0. E o que o salva de dasesperar-se com a ostensiva ausência de sentido é a conñança num supersentido _oculto. E uma conñança que desísle dc compreendcr o supersbntido para acreditar nele. Temos freqüentemcnte falado no sentido do sacrifício das coisas. Além de um sentido quc lhes é próprio, as coisas têm um valor próprio. Que signiñca isto? Tomemos um exemplo da vida cotidiana. Tenho na minha mão um schilling. Será esse realmente o seu valor? Ou terá talvcz outro, dependendo do fato de que eu o conserve ou o dê a um mendígo? Não valeria mais para 0 mendigo? Não seria inclusive possível dá~lo a alguém para que tivesse o maior valor possíveL seu valor integral? E não signiñcaria isso dar ao schilling o valor que lhe é próprio? Assim, ao passar para o mendígo o dinheiro, estou-lhe atribuindo um suplemento de valor. Ajudo o schilling a realizar o seu sentido, o seu sentido próprio. Vemos, por conseguinte, que a virtude da justiça, tão elogiada no Velho Testamento como o mais alto valor da pessoa. não deveria ser outra coisa que a eqüidade com relação aos valores das coisas. 7 Apreciar com jusltiça o valor de uma coisa signiñca fazer justiça à hierarquia dos valores. Apreciar de maneira justa uma coisa signiñca levá-la até o seu valor máximo. lsto é válido igualmente no que diz r,e§peito às pessoas. Porque ao ajudar uma pessoa, “curá-la”. nada mais fazemos que guiá-la até o seu valor máximo, ao valor mais alto que está reserv_ado para ela. Não foi por casualídade que Max Schelcr deñniu a “cura”. a "salvação” (das Hei1) como o máximo valor possível de uma pessoa.

7 Essa eqüidadc que cmana do ethos correspondc ao que. cm rclação às pcssoas. é o amor. o Eros.

u

.ML..ML

"| TIM

268

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

AA w

r

- -_ ñ.

Até agora. temo-nos referido, na parte da problemática do va_ |0r. tanto ao valor das coisas como ao valor das pessoas, indifereme. mente. Falta-nos aqui fazer uma menção especial ao valor da pessoa_ à dígnidadc da pessoa humana. O poeta austríaco J ura Soyfer. que morreu bastante moço ainda no campo dc concentraça'0. compôs um poema, cujos úllimos versos citamos abaixoz “Para que o homem cm nós se liberte um día hà somente um meioz perguntar a todo o instante se somos homcns,

- _-

“HOM0 PATIENS"

Somos o mal-delineado esboço do homem a ser descnhado. Nada mais que um pobre pano de boca para a gxande canção4 Chamai-nos de homens? Esperai mais um pouco.” “ Nesse comovente poema. o homem é descrito como “esboçado”, ainda a ser “desenhado". ainda por vir. Com relação à mesma idéia, vem-nos à mente um cartoon do célebre humorista americano Saul Steinberg, no qual se vê a silhueta de um homem que, Iápis na mão, desenha 0 scu próprio contorno. É fácil concluir aonde se vai chegar com ludo issoz o problema de determinar se o homem “a ser desenhado”, no sentido de Soyfer. poderá um dia na accpcão de Steinberg, desenhar-se a si mesmo. Em outros termosz o homem será capaz de “traçar" o seu próprio '°csboço", isto é, sem obedecer a um projeto? É sabido que no existencialismo se fala muilo que o homem podc projetar-sc a si mesmo e deve se "i›nvcntar”. E, assim, através dc um poema e um carloon somos levados ao âmago de uma problemática da possibilídade do autoprojcto e da auto-invenção do homem. sem recurso a um modelo, cuja efígie seria o homem. O que opomos a essa tesc é o seguintez a “invenção” do homem, a invomio hominis, se efetua na imilatio Dei. Tudo, portanto. depende de saberz o homem é uma imagem de Deus ou Deus uma simples superimagem do homem? A pergunta pode ser rcformulada. Se, por um príncípio heurístico. fazemos abs~ tração da revelação de Deus, se, por uma questão de princípio, para não dizcr expen'mental, prescindimos dc toda revelação, então seria o caso de perguntar: É Deus uma descoberta ou uma invenção do hamem? Porque se o homem é uma ínvenção de si mcsmo, tanto mais wrá invenção o modelo tomado por base de semelhantc invenção.

8 Vam Pamdíes zum Wellunergong. Globus Vcrlag, Vicna, l947. p. 2|.

'*^*_ -v-*_ ~_ -_ j

rcsponder a todo o instante que não!

269

Segundo He1'dcgger, o homem se antecipa a si mesmo. Também nós já nos deparamos anteriormenle com um fato análogo. quando mencionamos a vida como sendo o seu próprio sentido e dissemos que uma vida que seja o sentido da vida é vida facultaliva, enquanto uma vida cujo sentido seja ela mesma é vida efet1'va.° Aplicado ao homem, é o homem como ele dcve ser. uma amecipação do homem como ele é. Assim, este “ser-antecipadamente“ é a condição de toda possibilidade de existir. de toda possibilidade de ser “de outro modo”, dc chegar a ser de outro modo. de toda autodeterminação. de toda autoformação e toda auto-educação. De tudo isso, se assím podemos nos expressar, há um cquivalente "ñlogenético”. Também a humanidade “se ameçipa a si mesma” dc alguma forma, e essa antecipação é a condição de sua expansão e scu desenvolvimento seus'avanços de invento a invento. Teremos chegado, assim, ao tema do progresso, não só da auto~ invenção, mas também da invenção no sentido triviaL técnico. Já havíamos tratado antes do progresso exlerno, técnico c também da ambigüidade de todo progresso técnico. Pois, que é o progresso? Tanto o avanço da penicilina através da estreptomicina até a aureo› micina, quanto o avanço da bomba atômica por meio da superbomba atômica até a bomba de hidrogênío. Juntamente com a indícação dessa ambigü1'dade, procuramos também mostrar que, pelo menos num sentido que ultrapasse o campo da técnica, não existe progrcsso automático. Também o progresso da humanidade ultrapassando-se a si mesma - passando por cima do que a humanidadc é no rumo do que deve ser - também esse progresso não é possível sem um modelo. um modelo que nos seja trazido de fora. nos seja apresentado, entregue, para que o executemos e concretizemos. O progresso na ontogênese, como na ñlogênesc, não é ncm auto~ mático nem autônomo, nem auto-suñciente, nem autoproduzido. Conseguimos superar o niilismo com a prova da existência da existência humana. A clevação do humanismo só pode ser alcançada se a transcendência da exístência humana for cvidenciada. Ao demonstrarmos que o homem dc modo algum é determinado inequivocamente pelos fatores vitais e sociais, pelo contrário, é livre deles e responsável por sua autodetenninação - ao fazermos isto,

9 Em mcu livro Exislenzanalyse und die Prableme der ZeiL Vicna. l947, escrcviz "Scr homem não signiñca scr facultativo e sim scr cfetivo." No mcsmo scntido parecc cx~ prcssar~se Ortega y Gasset quando declarout “Ncnhum de nós é um faaum cada um de nós é um faciendum“ (discurso pronunciado em Aspen, Colorado. em homcnagcm a Goelhc, cm l949).

270

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

recuperamos a exístência humana para o seu nível autêntíco, por cima dos condícionamentos biológicos, psicológicos ou sociológicos. Doravante. cumpre, pcla introdução da noção de transcendência na ciência do homem, restabelecer uma imagem do homem maís ñel à sua natureza. Uma ímagem correta rompe não só com a factic1'dade, como também com a ímanência. Uma idéia do homem limitada à imanência não está completa. Ou bem o homem se conccbe como a imagem de Deus, ou degenera em uma caricatura de si mesmo. Vimos ser impossível que o homem seja sua própria medida. Só pode scr medido comparando-se com o absoluto, o valor absolu10, Deus. Aplícar essa medida signiñca aceitar o modelo oferecido. Adotar Deus como medida não signiñca, porém, qucrer-se comparar a Deus, o que seria atrevimento. Nesse contexto, pode-se compreender a deñnição que Martin Buber deu do pecado origínal: “0s homens pretenderam 'ser como Deus“ , fazendo, assim, malograr a realização do sentido da vida, que oonsiste em 'chegar a ser como Deus"'; com isso, “obtiveram nada além do conhecimcnto da dualidade do divino e do humano, o conhecimento do bem e do mal”. *° Prossigamos agora a partir do ponto em que falávamos do sentido do sacrifício das coisas, e perguntemos a nós mesmos qual é o oposto do sacriñcio. Eis a respostaz obtcr rccompensa. Assim se compreenderá o que é maís contrário à moralidadez wdo cálculo sobre o efeito de uma boa ação, toda especulação sobre o êxíto de uma boa obra que traga lucros. “ É evidente que precisa haver uma espec'ie de reação contra essa pseudo-ética: o desejo de ser bom, de ente, sem pcnsar nas conse~ qüências ou no éxito. Melhor agir por nada do que por uma recompensa - estc devcría ser o lema. Em La Rochefoucauld encontramos a seguinte deñnição; “A bravura perfeita consíste em fazer sem testemunhas o que scríamos capazes de fazer diante dc todo o mundo.” Combina bem com tal sentença a premiada defmição estampada num diário sueco e que ilustra a moralidadc com o procedimento de um homem que, passando diante de um mendigo cego, não só joga uma moeda de valor no chapéu, como, sem ser visto por ninguém, tira seu próprio chapéu, descobrindo-se num cumprimento. A conduta desse homem aparentemente não lem senu'do, é algo que não lhe traz vantagens. é isenta de oportunismo, pragmatismo, utilitarismo. Achamos que este exemplo vale por um tratado de e'tica, um tratado contrário a toda ética que visa resultados.

vr

y Iê I 9

lO Vom Gein des Judenrumu l9l6. ll Lô-se num canaz de propaganda dc uma loja da lotcria nacional austríacaz “Toda boa ação dá lucro. e espcro conñnnlemcme que todos os que comprarcm aqui os seus bilhelcs gunhem bons prêmios.“

“HOMO PATIENS"

271

O niílismo, sob esse aspecto, pode também ser visto como uma reação contra essa ética. Também para o niilismo, melhor “por nada“ do que “por uma recompensa"; não por amor a algo ou alguém. não por amor a uma coisa ou a uma pessoa, nem sequer por amor a Deus ou ao oéu. Uma das raizes do niilismo é o protesto contra a moral que visa resultados. É uma recusa do céu burguês. uma rejeição do bem-estar burgue's. também na forma de uma prolongação dessc bem-estar in infmimm Finalmente, encontramos a mesma intenção na arte contemporânea. Apesar de sua péssima fama. críticada como niilista, o que ela quer, no fundo, é a verdadc pura, ainda que ao preço da nudez. Para isso, num impeto apaixonado. esforça-se para arrancar do rosto de nossa época a máscara da mentira. Não é de admirar que tal empenho faça aparecer no palco as cenas maís desagradáveis - cenas no sentido pejorativo do termo. Mas mesmo que a arte arranque do rosto da época a máscara da mentira, como dissemos, pode-se estar seguro de que de há muito a vida preparava o terrenoz nos abrigos antiaéreos, nas crateras abertas pelas bombas, nos campos de concentração, em todos esses lugares se rcvelava a existência "nua" do homem, existência tanto no sentido corporal, quamo espirítual para falar como Schopenhaucr, não só 0 que o homem “tem”, mas o que o homem “e'”. O que homem tinha foi destruído pelas bombas; ñcou apenas o homem reduzido à sua nudez. Fícou o homem sozinho. Ficou realmente sozinho? Emão, com quem díalogou? Recorde~ mos a carta do jovcm médico em que descreve como, à espera da cxecução, naquela “situação-limite", falou consigo a respeito dos mesmos problemas que a análise existencial costuma abordar. Bem, será que um homem desses realmente, naquela hora, falou apenas consígo? Trata-se. entã0, de nada maís que um solilo'quio'? De imediato, vemos que há duas interpretações possíveis. A primeira sustenta que o homem nesses solilóquios íntimos mantidos em situações-h'míte fala consigo mesmo. Contra ela pode objetar~se que é tautológica. A segunda interpretação diria que em tal situação o homem, na realidade, fala com Deus, tem Deus como imerlocutor. Contra ela, pode objetar-se que é tcológica, e por esse motivo rejeitá~ la. Aparentemente, resta uma terceira imcrpretaçãoz a de que, nassas situações-limite, o homem está sozinho e fala com o nada. Mas este nada se revela logo algo de muito positivoz equivale a ludo! Na realidade, vendo bem, entrc ambos não há uma diferença tão grande. Porque Deus é tudo e é nada. Quando é que é °^nada”? Quando é comprimido num conceíto. E quando é "tudo“? Quando se cntende

272

“HOMO PATIENS“

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

por nada o incompreensíveL o inexprimíveL poís então csse nada nos diz tudo. Essc indizíveL esse sem-nome, é, já o sabemos, a pedra angular de toda ordem dc valores. Em seu nome, criam-se todos os manda~ mcntos morais - em nomc daquílo para o qual não existe nome. Nesse ínexprimíveL nesse inefáveL nesse “nada”, pronuncia o homem o “tu”. Agora, estamos diante da solução de nosso problema, agora entendemos que temos de dar à nossa pergunta uma formulação diferentc, para além das alternativas e falsas antíteses. Não sc pode abordar o problema nem tautológica nem teologicamente, mas do ponto de vista do diálogo, na acepção dada por Martin Buber e Ferdinand Ebner, segundo a qual a atividade espiritual é sempre dirigída, está orientada no rumo de outrem, do “tu". lnclusive a psícologia do desenvolvimento e a psicologia infantil sabem que o dizer “tu" precede o dizer “eu'.'. Assim, o solilóquio é somente um caso especial - o genuíno e original é o diálogo. E precisamente quando não há mnguém com quem dialogar, precisamente quando o homem parecc dizer “tu” ao vazio, ao nada, justamente aí é que fala com o Tu eterno. Eterno parque 0 homem, ainda que inconscientemente, sempre se dirigiu a Ele, e Ele sempre falou com o homem. A primeira palavra que dizemos a esse Tu já é uma resposta. Sem dúvída o homem precisa de solidão para perceber que não está sozinho, que nunca esteve sozínho; deve ter solidão para veriñcar que a sua fala consigo mesmo é e scmpre foi um diálogo. 0 “nada” a que dirige seus solilóquíos parece um nada porque não é algo que exista entre os existentes MAS é o fundamento do que exíste, a existência mesma; como se parece com o nada!... “Eis que passa junto a mím e não o vejo, afasta-se e nem assim o noto” (Jó, 9:l l). Como é fácil provar que o chamado positivismo é, na realidade, um niilismo camufladol E como é fácíl também provar que o suposto niilismo é, em última análise, uma teologia inconsequ"ente, uma teologia negativa! “ O niilismo não está sabendo disso. Aínda é válido o que Leo Gabriel comentou sobre 0 existencialismo niilista: ele é o dernier crí *, mas não a últíma palavra. A ñlosoña existencial conñrma, afmaL a sentença de Bacon de Verulam: "Pouca ñlosoña afasta o homem de Deus; muita ñlosoña o leva de volta a Deus.”

12 Hoc ipxum est Deus cognoscere, quod nos scimus nos ignomre de Deo quid sit - São Tomás de Aquino. em Dionys. c.7.l4 med. ' Em frances' no on'ginal (N. do T.)

273

Sem se dar conta, nada pressentindo, pressentindo o nada - assim o homem pressupõe Deus. Esse nada é apenas o negativo, o reverso da existência. “Tu mc verás pelas costasz mas o meu rosto não poderás ver” (Exodo. 33:23).

[I. Antropomorñsmo Si enim caelum et caeli caelorum te capere non possunl quanto magis domus haec quam aedfu'cav1'. Se exislo, existo espiritual e moralmente, existo com respeito ao sentido c aos valores, existo para algo que necessariamente me supera quanto ao valor, que se situa na hierarquia dos valores, mais alto do que eu. Em outras palavrasz existo com relação a algo que não pode ser coisa mas alguém. uma pessoa. alguém que supera minha pessoa, uma superpessoa. Em suma, se existo, existo sempre em relação “a” e “para“ Deus. Falamos anteriormente que o valor mais alto está lígado a pessoas dc valor (Schclcr) e que é de supor que o valor supremo, o valor dos valores, assim como o supersentido, estejam ligàdos a uma superpessoa. Em conexão com essa conclusão por analogia, com essa extrapolação fora do mundo, no rumo de um ultramundo. nos preocupamos em saber se não estaríamos caindo num antropomorñsmo. Chegou o momento de respondermos a esta dúvida. Já mencionamos o perigo do antropomorñsmo, a ídolatria do homem, a humanização do divino. O que estávamos procurando em nossa exposição era um acesso ao sentido do sofrimento e aquela investigação nos conduzíu, acima do verdadeíro ser do homem e do verdadeiro sentido do sofrimento, até o sentido ñnal da vida. 0 verdadeiro ser do homcm é a existência, e o sentido ñnal da vida é a transcendência. O caminho que seguimos em nossa crítica do niilismo nos levou do automatismo à existência; o caminho que, em nosso dissertar sobre a crise do humanismo, escolhcmos, nos fez ir a autonomia à transcendência. Somente a partir da transccndência sc pode encontrar o sentido final do sofrimento. lsto não signiñca senão uma confrontação com o problema da tcodicéia. Estamos porém, autorizados a abordar a questão? Tanto a análise existencial como a logoterapia têm não só o direito, mas o dever de se ocupar dessas questões, e por uma simples razão: ambas. no campo de sua aplicação psicoterapêutica, se dafrontam com a problemática relígiosa. Enquanto a análise cxístenciaL segundo resultou de nossos estudos sobre a religiosidade incons-

m-Í-^I4~ÃLM~'

...-

› < -

274

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

cicme, " prccisa procurar solucionar a repressão da relígiosidade para o plano do inconsciente. a logoterapia se vê forçada em climinar a oposicão à religiosidade que já chegou ao nível da consciência. No entanto. em contraposíção à psicanálise. da qual tomamos ambos os conceilos. julgamos que tal oposição não pode ser elímínada por transferênc¡'a, e sim através de rcfutação. Já temos manifestado rcpetidamcnte nossa opinião contrária a que o psicoterapeuta imponha sua visão do mundo ao paciente. Contra Freud, pudemos argumentar que cxiste não apenas um inconscieme impulsivo. mas também um inconsciente espiritual; não somente há uma sexualidade inconscieme. como igualmcnle uma reIigiosídade inconscicnle. Frente a Jung, foi necessário precisar quc essa religiosidade inconscíenlc pertence ao inconsciente espirituaL Limilar-se a torná-la conscicntc é parar no meio do caminho; devemos, outrossim, desarticular todos os argumentos contra a relígiosi~ dade que conseguiram Ieva'-la ao inconscicnte, quer dizer, constituíram um motivo para sua rcpressão. Consideramos. portanto. que a tarefa da logoterupl'a. no que se refere à religiosidade que de inconscieme voltou a ser consciente, é de mostrar a superñcialidade de loda argumentação ami-rcligiosa. Embora seja certo que o homem não pode ser comprecndido senão a partir de Deus, não é menos certo que freqüentemenle o acesso a Deus só pode ser encontrado a partir do homem. Se tivermos de indicar a outro o caminho que leva a Deus, não podemos tomar por base o racionaL mas o emocionaL No fundo de nosso ser há uma aspiração tão irrcsistível que não pode ser referida senão a Deus. Vemos, por conscgu1'nte. que não é a autocompreensão da existência como um processo de pensamento que é capaz dc nos levar à realidade dc Deus. mas sim a autocompreensão da vida em termos de uma aspiração. A as iração, o anseio, têm relevância metafísica, dignidade onlo|óg¡ca. ÍÊO que aparentemcnte quis dizer Franz Werfel quando escrevcuz “A sede prova a existência indubitável da água". “ Se do anseio sobe um caminho para Deus, o mesmo se dá com o amorz Amo ergo esL Esta tese não é nem menos nem mais comprovável do que a do cogilo ergo sum. Uma deduz do ato de pensar o eu como sujeito; a outra infere do ato dc amor ilimitado a Deus como objeto. '”

É o que tínhamos a dizer quanto à diferença entre o caminho racional e o caminho emocional para chegar a Deus. Resta fazcr uma |3 Veja-sc Der unbewusste Gou. Amandus Verlog. Vicna. I948 ou l949. |4 Der Verumroule Himmel IS Veju-se meu lrabalho ZeiI und Veramwonung, p. 40, Dculckc. Viena. l947.

”HOMO PATIENS"

segunda e ígualmcme neccssária diferenciaçãoz entre o camínho intelectual e o caminho existenciaL Em toda decisão relaliva à fé. cxistc tanto a possibílidade dc pensar numa díreção, como na contrária. isto é, tanto em favor de uma auséncia de semido ñnal da vida como cm favor dc um sentido ñnaL de um supcrsentido. Deus. A existêncía de Deus ou sua não~ existéncia são pcnsamentos igualmente possíveís, ainda que não necessários. Posso ser forcado a saber algo, mas nunca a acreditar nele. A crcnça começa justamente quando se escolhe livremcntc, quando sc neccssita de uma decisão que favoreça ou um ou outro dos termos da alternativa. quando os pratos da balança dos prós e dos contras estão cm igualdadc de condições, no mesmo nível. E quando, então, uquele que escolhe lança o seu próprío peso na balança. o peso de sua própria existéncia. A fé não é um pensar diminuído da realídade da coisa pensada. mas um pensar acrescido da cxisténcia daquele que pensa'. "” Deixemos agora de lado a questão da exístência de Deus c dediquemo-nos à de sua essência. A questão da naturcza de Deus, de seu ser-assim, só se pode resolver dialeticamente, já que se trata de superar um paradoxo. o da simultânea transcendência e imimidade absolu~ lax de Deus, o fato de que Ele cstá no mesmo tempo inñnitamente longe e inñnitamente perto. Primciro. a transcendêncía. Sabemos que Deus é inconcebívcl e indizíveL Ele só é crível e vivenciáveL Todas as teses das teologías parecem. a essa qu, meras equacões, equações com uma incógnita - parábolas com o tema do Deus “desconhecido". Deus é e permancce incomensurável COm relação a todo o terreno, o humano, o temporaL Não foi sem intenção que usamos a palavra “terreno“, pois o que estamos querendo exprimír talvez seja mais claro na parábola bíblica segundo a qual as idéias divinas estão com relação às humanas como o céu com relação. à Terra. A Terra ñca no espaço, enquanto o céu é o próprio espaço, a representação simbólica da dímensão espacial como laL Sempre que nos choquemos contra os limites do universo - na ínvestigação como no ensino - ou que sejamos empurrados contra eles - na vida como no sofrimento - sempre que nos encontremos frcnle a frente com o transcendcntaL a orientação ôntica há de converter-se cm ontológica. Já que deixamos de nos mover dentro do universo. não podemos mais fazer uso de categorias universais. É certo que posteriormente seremos obrigados a transferir tais categorias para o transcendental, mas aí elas valerão tão-somentc em 16 0 Homem lncandicionada FrankL

276

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

' vnuizçugnakmúu

. .;. -.

.~.

Á.

4

. ,-. .;Í. ~

~u-ndpu ew

“HOM0 PATIENS"

senlido analógico. Já dissemos, em outra parte, que todas essas ana~ logias levam a uma extrapolação, mas extrapolar signiñca 0 oposto de reduzir. Se inferimos de um nível existencial para outro, não devemos nunca tirar conclusões a posteriori mas a príori. Jamais deveríamos rebaixar o que está em cima. pelo contrário deveríamos sempre "elevar" o que está embaixo. e isso no duplo sentido de HcgeL * Um cxcmplo de redução ínadmissível scria a interpretação da idéia de Deus no senlido psícanalítico, isto é, como projeção da imagem paterna (do mesmo modo que a consciência é vista como uma introjeção). A psicanálise esquece apenas um ponto. é que sua teoria das projeções é cla própría uma projeção', a sabcr, o típico projetar dos fenômcnos espirítuais no plano do psíquico que lhe corresponde. (Veja-se o que dissemos a respeito na página 203.) Evidememente devemos estar atentos para que nossas conclusõesa priori não “entrem em curto-circuito", somente nesse caso estaríamos sendo culpados de antropomorñsmo. Precisamos ter constantememe presente ao espírito que o fundamento de toda analogia. extrapolação ou conclusão apriorística é que o máximo de essência do que estâ no nível inferior passa a ser 0 mínimo de essência do que estâ no m've1superior. Expliquemos melhor: se o espírito humano é essencialmente espírito personiñcado, não dovemos inferir disso que o espírito divino seja igualmente pessoal; anles diríamos que o espírito divino é. em sua expressão mínima, mas com maior exatidão, superpessoaL Não se perde nada nessa elevação, nada se dilui - nada mais do que aquilo que há de excessivameme humano no homcm: o elcmento eterno do homem entra imacto no plano superior '7 Para esclarecer melhor, gostaríamos de justiñcar, com base na teoria ambiental de UexkülL o conceito do direito de proceder por meio de extrapolações e pensamentos apríorísticos. Como se sabe, essa teoria chegou a ser corrígida e revista por Gehlen e Scheler. de tal forma que o homem foi liberado de seu envolvimento unilateral com o ambíente. Ele não “tem" apenas um ambiente. tem um mundo (releia-se o que foi dito nas página5262-263.) Não devemosesquecer que essa relacão entre o mundo e o ambiente precisa ser ainda umpliada até os limítcs do ultramundo e da pessoa que no sentido do Scheler. sc relaciona com ele, isto é, o que chamamos de superpessoa. A relação dupla que ora transparece corresponde, a nosso ver segmento áureo. e não vacilamos em añrmar que 0 ambiente é para o

' Hegel usou aujheben para designar a opcração dialética de “supn'mir“ e “conservar" (N. do T.). l7 Schele , Vom Ewigen im Menschem

277

mundo como o mundo é para o ultramundo. Podcríamos ainda especiñcar, acresccntandoz o impulso está para o scntido, como o scnüdo está para o supersentído. Como toda metáfora, também esta do segmento áureo tcm o scu ponto fraco. Efetivamente não vale como cálculo matemático. Deus (correlato pessoal do ultramundo, substrato pessoal do supcrscnu'do) é e continua sendo o “completamente outro", e como tal é incalculá~ vel - do mesmo modo que a Providência não é prevísível por parte do homem. O inñnito não é calculáveL mas nossa metáfora não contém de algum modo esse momento? Não evita um mal-emendído na direção do calculo? Nossa metáfora não trata apenas da relação das partes entre si. mas da relação entre uma parte e a totalidade. Mas o supersentido não se rcfere precisamcnte à totalidade? Em síntesez nossa metáfora acerta justamente porque nela não se trata unicamente da relação entre os relativos e sim, também da relação entre o relativo e o absoluto. Recapitulemosz todas as declaracões sobre Deus valem cxclusi~ vamente per analogiam. Quanto à sua personall'dade. é “como sc fosse“ pessoaL é “como que" uma superpcssoa. Da mesma forma, no que tangc aos atríbutos: Deus é bom. "é a bondade mesma” - certo. mas o que é e, de alguma forma. não o e', já que. para nós, pode ser “a bondade mesma” ou o amor, assim c0m0. para uma planta. poderá ser. nos momentos correspondentes. sol e chuva, ou, para um ani~ maL alimcnto, cova ou nính0. Ousamos apenas extrapolar, personiñcar, com base na esperança c na fé de que nós. que somos simplesmentc pessoas e não superpessoas. que temos um mundo c não um ultramundo. somos pelo menos a imagem da superpessoa. Existe, afora isso. outro motivo que nos leva a prcssentír - para não dizer concluir a posteriori - que Deus é uma pessoa. Comrariamente à opinião de Spinoza de que aquele que ama a Deus não pode desejar ser correspondido no seu amor por parte daquelc ser perfeito. acreditamos que o amor é recpíroco, e na qualidade de amor de uma pexsoa, isto e', de nossa pessoa, há de ser amor a uma pessoa, não a uma coisa. amor de um “quem". não de um “que", amor de um “tu“ Portanto. não pode ser um amor pante1'sta. No enfoque do inñnito o absoluto sc transforma em concrcto. a divindade panteísta em um Deus teísta, o üpíritual em um cspírito pessoal-concreto. em uma palavra, em um tu. O homem experimenta uma relutância em dizer “tu" quando visa Deus, quando transcende a realidade no rumo de Deus; para o homem de hoje. toda concretização é motivo de escândalo. Irrita-sc ou acha ridículo quando a boa gente que ama Deus o imagína como a um avô. de barbas brancas e tudo o mais. Apesar disso. os traços

.

l

Ê

Ê

V 278

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

antropomórñcos (ou "antropopáticos”, como os chamou Scheler num contexto análogo) com que a fé da criança e a fé de simplícidade infantil (mas'não pueril) dos adultos delineiam a ímagem de Deus deixam transparecer mais a verdadeira natureza Dele do que o pobre conceito metañsico de um absoluto abstrato. E certo que o conceito mctafísico se forma sem elementos antropomórficos, mas paga um preço por ísso: por sua exatidão e validade formais há de resígnar-se à pobreza e vacuídade de conteúdo. Onde houver a maior tensão polar, os extremos, como sabemos, se tocam. No que se refere ao paradoxo da transcendência absoluta e da inlímidade absoluta simultânea de Deus, opera-se, portanto. uma conversão dialética da transcendência em intimidade. Tuteamos exclusívamente os íntimos. Os ñlhos dos camponeses freqüentemente não dizem “tu" nem para os pais, e nós, quando nos dirígimos a um reitor, um rei, um imperador, recorremos a “eminência”, “majestade” etc. No entanto, a Deus tuteamos, a Deus, cujo nome inspira tanto temor que se usa de perífrases, a Deus reservamos o tratamento mais íntímo. E só podemos falar a Deus realmente sob a forma do “tu", pois Dele, a seu rcspcito, não se pode dizer nada. Apesar disso, díz-se muita coisa, freqüentemente, e sem necessidade. Devemos, contudo, ter constantemente presente à mente que a personalidade de um indivíduo se desvenda no instante em que se lhe diz “tu", o que é ígualmente válído no caso da superpessoa. Parece~nos que estamos diante de um paralelísmo notávek do mcsmo modo que no processo de coisiñcação do homcm, o “eu” passa a ser “se” e na conversão da humanidadc em massa, o “nós” se torna “ele”, assím no discurso da despersonalização do divino o “tu” degenera em “elc". Mesmo que escrevamos “Ele", com inicial maiúscula, nada muda. No instante em que decai o tuteio, decai a personalidade, isto é, o próprio ato de tutean Que é que salva o tuteí0? Que é capaz de unícamente fazer briIhar Deus em seu caráter de Tu, o Tu dívíno como Tu? A oração. É o u'nico ato do espírito humano capaz de tornar Deus presente como Tu. A oração atualiza, concretiza e personiññca Deus em um Tu. Este é o efeito da oração no sentido mais amplo do termo, que abrange a oração silenciosa e a oração mentaL Assim como existem canções sem palavras, há também orações sem palavras. e assím como naquelas hâ muitas que ftguram entre as mais belas, nessas quiçá se incluem as mais fervorosas. Não se dCVe aludir com desdém ao fato de que muíta gente aprende a rezar premida pela necessidade. Não há razão para que a oração feita em momentos angustiantes seja menos verdadeira, menos genuína. Prejíro a religião que 56 se manfiexla quando as coisas vão mal - nos Estados Unidos ela é chamada de “fox hole religion" - à

“HOM0 PATIENS"

279

religião que só dura enquanto as coisas andam bem - eu a chamaria de “business men religion". Quantas vezes são apcnas as ruínas que dcixam ver o céu'. A oração torna Deus prescntc. No entanto, como ato do espírito humano, ela é fugaz; é um dedícar-se por um instante, por um momento. a Deus. Por outro lado, assím como um cristal se converte em ponto de cristalização para novos cristais, assím no ato dê orar se cristaliza o símbolo. A oração passa - o símbolo perdura, e nele o ato de apresentação de Deus pode constantemente se renovar. O que a oração efetua é a intímidade da transcendência, o que o símbolo supcra é a transitoriedade da atualização. Através do conteúdo ímanente do símbolo, o objeto transcendente é sempre uma vez mais visado. Somente é necessário que essc contcúdo imanente se mantenha transparente, deíxe brilhar o objeto transcendente. Para que isso ocorra, cumpre o que o símbolo jamais seja tomado ao pé da letra. Somcnte quando ele é abrasado pelo ato íntencionaL nele raplande~ ce o transcendentaL Em cada novo ato deve-se conquistar antes de tudo o sun'bolo.

O absoluto não deve ser comprecndido conjuntamente “com" o 51m'bolo. mas “no" símbolo. Esclareçamos o ponto mediante um exemploz não se pode ver o céu nem mesmo que o iluminemos com os mais poderosos refletores. Se vemos algo, uma nuvem, isto provará apenas que não é o céu que estamos vendo. A nuvem visível é o símbolo do céu invisíveL O efeíto do símbolo poderia ser comparado ao efeito da perspectiva. Assim como a perspectiva apanha na segunda dimensão a terceira, e faz com que no plano o espaço se revele, assím o _sun'bolo, a mctáfora símbólíca, torna de alguma maneíra inteligívcl o inimelígível. Por ísso tem razão Jaspers e disse a última palavra a respeitoz o ser-metáf0ra é em si mesmo apenas uma metáfora. Do mesmo modo que existe no homem uma necessidade metafísica. exíste uma necessidade de símbolos. Quão fortemente enraizada está essa necessidade pode ser comprovado na vida de todos os dias. Diariamentc e a todo o ínstante o homem faz gestos simbólicos. ao saudar alguém, por exemplo, ou ao lhe desejar algo. De um ponto de vista racíonalísta, utilitarista, todos esses gestos símbólicos são dcsprovidos de sentido, porque não têm nem utilidade nem ñnalidade. O certo é que podem ser tudo. menos desprovidos de sentido. São apenas inúteis, ou melhor, inúteis quamo a uma ñnalidade especíñca. Isso se nota quando o homem faz gestos simbólicos. Citemos o caso da construção de um monumento funerário. Que vantagens trará a quem morreu? Claro que nenhuma. A coisa, porém, muda de ñ-

_ __

ISI

hm .~As-W ._- . .-v.4m. ... m~_- . _, ._-4rn_. .4 :-r <'-›«.4~»,›.4 ^1m~:v›~' ~. ¡- Tua

bmscadotm'amm-iodard1gnow1_'udm'dequcahomcna~ m_ prcsuda 1 um mcno ckw scr mbcads no topo da hmrq'um' mnl pdo scu m' dmn'zmdo. Não só a homcns também a nmm'" qm mxmm áo erxgddà~ monmnentcs coma~sc que xst'0 ecumu m um~' dm m'üncxm m smíthdos dmme os cxpcnl mcnms ác Padmz \.'..='o é mmmmte ese mo smhãlimf Nenhum cia morto ou vmlu timu pmxtim dzm ucm tampum a imtsm ào aesur"'.x.a.* mas a ncussidsde szm';\5h~.'-a. a neccssidadc do corsm a sabedom do mraáo dc tcdo Lm1 pom ñzcram tmça do racio~ natsmo" e ücsmvmtm o Pensemos na mtmça de Pas~ at lxcawaavsnzlwazh mwu gm'iz;us-ocoraçãodc pom anNn u mnçào quc sz mtlou no mo mbóhkn cujas' bau-' cbs sc fm euvk atravs dck eãt mraáo tinha ~ussz ramcs~ pam .amr" meuumcnms a cacs' mmm~ mwtsi quc o intdato e n razâo lg-' norszm mnb cmW qm.'<' o radomlrkmo e o uu'litansm'o uada nbcm Sançxe que c fuwr teâghsn ttma prmndn”' do s¡n'bokx cmra em quüe mm a mdmh mnfcsmnaL O fetvor relkñmo tmdc a sc padcr zo nvcbdom. czn mnftmdn'-se no mgm a dcsfazebse no illm'¡-~ uckx Prmm=-'.cn:= por musa ansda pda forma. uma forma quc ponha limim a forma SIIQJS pdo n'Iual. o ccnm'0nial o mNñnnonaL em s'ntesr. a uadxça"o coufessionaL 0 fcrvor onl mmmm_"t= amorfo qucr dcsmboczr no kito pukformado do rio da crmçi m..dmo"ual. m o que axá amcaçado pda falta de fmnnas. Pot eutra pmc a tradzça"0 confesúonal ocorre o risco dc petriñ~ wawn se ocsm o pukxü exmcudaL No momemo ctn que se trans~ íormz cm mta a rdLmlx dc slgo de dinam'ico. pasa a algo de esxá~ mo'. Em uanáonnação mz m~'to o pcngo de uma hipótcsc do fator csxáukxx o qual sznã ñxado num comeúdo doam_átim e numa forma rituaL Sc 0 peng0' para a mhg1"ão rcside no vagcu no dcsfazersc nx ausma'l.'° dc fomus e ümim o pcrizo_ para o culhx quc dewe mm o pmezmÍ çcruo_') estarâ na magsulaçâo do mmeúdo rehgom m forma na pcuiñcaáo da pmpTña forma. Sangut mn mas7 u ts~ Iul ms' m mry se mla,_'ñmm. 0 cuhc ê apenas formm apenas caminbo. Quamo mm tcnha un'nonanc1_"a a metL mcncs sr atemnrá no caminho. que ê sxmAplesmcntc um dos mcics de li chezar_. .-\ isso sc chama lolerância. .-\ E não dew scr ng1da." devc ser ñrmc R1g1"dcz na Fc suscita o fmusmo': ñrmm
"HOM0 P.-\TlENS'

wvnev

FL \'DL\IE.\T(B .-\\TROPOLOGICOS DA PMCCWTEXKHA

. uzvzg

NJ

mpcçar mmln mnmdc? \.~'ão. Ao m'\ts' dc kur a quc sc dça". ma é cmtumc cm qualqucr m que sc t'3ça. que tudo vai maL dntt~s› u ensinar a dxzcr' que não mdporu o que sc fm tudo andsv Lan ou que pdo mcuos mb smic aezemi ludo ltrá wdado Hcm.. .-\ esa _amumemaçãa. pnccm scr mnmpeüo quc nãc é o caso de m prmcuparmos mm 0 cfdnx basza a intmám A m"°ux.-io é noña - o cfeím a Deus pmencc. Para quç eÍcito a Prmíoma1"' divm fará mm quc nasu inttnção m dcsn'sds. zst'o ê ssumo que- não ü marm a wpmmXRax Jamaà sc mnscguc nbcr o que a Pmn'du›aa"' plane_ia. Trata üda um dc fnzcx o ¡\)§ííd. mmlm sru lul catca~ dcx c conhccct Fw' olh'ando de soslaio pm a an\1*dcaaa'" é um ctm. Sc um medm"' reaita um runtd'io ou mhn ums opcr:ç.io. aio dcm pcnsar na Gmçn ou Pmñdüdm nio g óar pcrgamu sc ek mcm é um instmmemo da Graça ou sc wà a .~en'1›..\\ ds Pm\'zdexz~““ cís. dcw. sim. conccmrabsr na rtcáu e na opm”m Qumto mm o ñztn mdhor instrumemo cLa Graçs tenã sido; quamo mazs .~:~ écuãkzuc azuLcm' ao trabalha maxs a Prmidehda atuará per m x'n:ume¡ño'. 0 último pmblcmx o da xcodisúx Quam iañum'a's do nn'm\mmomsm'o jà nâo rqarcscms o símpks modn dc indagankü ch ¡v::›diccx"a.' Enquamo a indagação da palmhbãa se hmm ao scnúda ón sofúmemm a reodíoãa pcrguma quc moúws tcw Dws mra pcnml tir x cmtcmà do sommMcmo c do maL Mas a pujswa °*pctmitir" nh insinua um compmmm quc o Criador sc xiu obrkszkado s faztx ccm 3 cn'axura'? sz'-°c._ por cxemploz o mai stnr mmo ccnuzism sr o hm mcm não wfrtssm não mderia scntir alez_n"a... mmo sc Dem nâo a= tivcssc em ~o;ndz\~ocs” dc criar sLm que prcsahdkwc dc um zal cfcim dc mmmtcE Ou aindx 0 som“mcmo puriñca o homcm... mmo _v:' Deus nio tixmc capaddadc dc criar homcns quc não 1:~1~:~c:.\~¡~*§cm~ do mm~'“ memo para szrcm pumx ou do mal para Lhn_**arun s srx pmdmtm Taxs respmtas as' qucstan da teod2m""a denoum uma m_ndc dosc dt ammpomonísma Rccorrtr ao cfcito dc comrasm à puánkução xúk niña apliar à moúvnção do Criador uma medida hmnmm Não conhcccmos mdhor mposza as" m'dagas'\"~cs da mzdzaia do quc aqucla que encumramm num grac:3'o. 0 pmmn cxplknndo à dassc a faculdadc taumatúmx_'~a dc Dcus wmx '*Hsn's um hotuun muito pabru wa mulhcr fakccu so nasoxblhc um ñlhc c dc não u-' nha dm'hcim para oanxramr uma ama-dc~kitc Emio Dem th um miiagrc c pcrmitiu que aquek homtm BLCNRSSC a mder amumenur." Diamc dcsm palavra5. lcsanumc o pcqucno .\huna'*o c mmenuz “Francamcnte. scnhor pmfcsson não compmndo nads. \.'âo tem u~°do mais práziw quc Deus nm mm que o homcm achm 'p:~t asualidadf dinhcim na rua t consmmk a§¡m'. mmraur uma ama~delcit63 Aí Deus não tcda predudo fazu um milagm“ .-\o quc

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA PSICOTERAPIA

o mestrc contestaz "Tolo! Sc Dcus podc fazcr.um milagrc, para que gastar dínhciro..“ O que nos faz n'r nesta píada? A ilustração dc até onde sc pode chegar no absurdo. ao tcmar atribuír a Deus mou'vos humanos e, no caso em apreço, cspecíñcamcnte recriar com a mcntalidadc de um comercíanlc as ide1"as dc Dcus. chos, pois, que o homcm não podc scr comprecndido a panir da imanência. A tentativa ncsse rumo acaba rcdundando num antropomorñsm0. Mas tampouco se pode intcrpretar o homem. ou 0 scn~ tido do sofñmento (o que nos conccmc panicularmemc) 1omando como ponto de partida a transcendência, procedimemo cujo resultado sería ídêmico ao pn'mciro. Podcmos crer que tudo é signiñcativo. tem um superscntido. lsso' sim; mas determinar qual o scntido. em que sentido há supersen~ tído. em que direção devemos interpretar em cada caso o sofn'mcnto. tudo isso são coisas que não somos capazes dc saber. Em vista da apoña de toda teodicéia, a u'nica atitude apropñada é a dc Jó. que tinha díscutido com Deus e ao qual Deus fez uma du21"a de pergumas c que pôs a mão na boca, calando-se. no antecipado saber socrático de que nada sabia. Já foi quwão do segmemo áureo em relação à extrapolação. Procurcmos, outrossím, extrapolar com respeito à teodioe1"a cm suas m'dagaçoes'. Se mostro algo a um cachorro, indicando-lhe com o dedo. ele não olhará para o lugar indicado. mas para o dedo. E se for feroz. avancará para mordê-lo. Em síntesez a função indicadora do dedo lhe ê desconhecida. não é compreensível em scu mundo. E o homem? Panindo de scu mundo, é igualmeme incapaz de interpretar os indícios pr0venícntes do ullramundo - compreendcr o sentido, por exemplo. a que de cena forma se refere 0 sofn'memo também elc avançará para o dedo indicador, discutirá com a fatalídade. Ass¡m, nosso intento de ofereccr uma interpretação metaclínica do sofrimento termina como uma questão em aberto. Cada um dos ñns. bem como todo o deñnitivo, permancce pendemc. Não é por acaso que a Cancão da Terra de Gustav Mahler ñnaliza com um acordc incomplclo e precisamente no instanle cm que pela u'ltima vez é cantada a palavra "cterno". A coincidentia oppositorium, a harmo~ nia deñnitiva, a grande oonsonãncia não nos são dadas aqui na Terra e. ponant0. rompem também os limites de uma “canção da terra". A conta do homem que sofre só é enccrrada no plano da transcendência; no da imanência. ñca em abcrto. No entanto, algo se encerra, é o circulo dc nossas reñexoe's. já que com a indagação do scntido do sofrimento acontecc o mesmo que com o sentido da vida. Sc quisermos solucionar o problema.

“HOMO PATIENS“

283

tcremos dc lhc dar uma guínada copemicanzL tomando conscien'cía dc que nos cabe responder c não pergumar. A vida mesma é uma pargunta à qual temos condíçocs' de respondcr. dc rcsponder assumindo a responsabilidade da nossa existcn'cia. E quanto à questão do sentído do sofn'mcmo? Exatamcmc o mesmo. Destc lado da crcnça num superscmido, qucm perguntar pclo sentido do sofrimento staxá passando por címa do fato dc que o pro'pn'o sofrímemo é uma pcrgunta. que somos de novo nós os interrogados, que o homem que sofre, o Homo pan'ens, é o interrogado. Não lhe cabe perguntar, e sim rcspondcr à pergunta reprmmada pclo sofn'mcnto. Terá de sair vitoríoso da prova, reahzar' o sofnm'cnIO. A cpígrafc dc Niethche que cscolhemos pode tcr a scguinte respostaz o “porquê" do sofñmento é função do “como“ alguém reoebc o sofñmemo que lhe foi ímposto pcla vída. Tudo depende da an'tudc. da orientação cm faoe do sofrimento - de um sofñmento falalmentc neccssa'n'o, único capaz de tcr sentido c possibilitar a reahza'ção dos valores atitudínaís. A resposta que o homem sofredor dá, por mcío do “como". ao “porquê”_do sofn'mento é semprc uma rcsposta sem palavras, mas, reitcremos, ela é, do pn'sma da fé num superscntido, a única sígniñcativa. E agora uma última palavra, que não se refere ao homem que sofre, mas ao próxun'o, ao que compadeoc. Tão signiñcativo quanto o próprio sofrimento é a co-participaça'o. é a compahão - tão sign1T1catívo c dc igual modo sem palavras. Confortar tem hm'ites: onde ta~ das as palavras seriam poucasz cada palavra é demazs'.

rf fç

Ê

w

<›\

^-=~4›-MM-

v

mvm,w'4~qr-m.- .«

.-v'

~ ' ^

-

'

'

282

i Ê

Blbllografla latino~umerícana sobre logoterapia

câñ

- .~_ _ .-._r

_

I . Livros Bõschcmcycry U wc, I)l(' Slnnlkagc ln Iixmlenzanulyw und I.I›gr¡lheraplo aus lhmlnghcher SlchL Wallcr dc Gruylcn Bcrlím. l977, (,'rumbaugh. Jumcs C, I:'Vt'rylhlng m Galn ~ A (¡'uldo m .S'e]/-' fulflllmvm I'h'r0ugh l.ugnanaly.vl.su NclsonJlaIL Chicago l973. I"ubry. Joscph B. I'h'o Purxull nszIaníng - A Guidc lv Ihe l'h'eory and Applirullrm af Víkmr l.". I"rankl','s I.0golherapy. Bcacon Prcss. Bosmm I968. l)icnc|l. Karlz Vrm d('r szyrhaanalyw zur l.agolhcrapia lzrnsl Rci~ nhurdL Muniquc, l973. FrunkL Viklor E. I)a.s' I.eiden am Sinnlmen Leben - Rvycholherapie fur' Ivleuua Hcrdcr. Frcihurg i. B. l977. I)er Wille zum SimL Hans Hubcr. Bcrna. |972. ___ I'h't' l)ocwr and lhe Saul ~ me Iñvychmherapy 10 l.0gulherapy. Vinlagc Booksg Nova York l973. Man'.s' Searchjm Meaning - An Immductian m I.r/galherapy. Simon and Schuster, Novu York |963. _._.I'sycholherapy and Exin1enliulism. Simon and Schustcn Nova York l967. ..___ l'h'e Will m Meanlng - Fnundalianx aml Appllcalíom af I.r›golherapy. Ncw American Library. Nova York l969. ____ I'h'0 Unmnsdans God - Rsycholherapy and 7h'eology. Simon and Schustcn Nova York l976. ..____.__ I',s'iwanálimlv y L"xi.m›nc1'alísmo. Fondo dc Cullura Ec0nómicu. México. |9SO. _.___.__ Un Pslcólogo en el Cumpo de conccnlración Ediloral Planlim Bucnos Aírcs. I955.

186

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPLA

La psicoteraplb em la práctica me'dica. Editorial Escuela, Bucnos Aircs. l966. EI dios inconscíen1e.

l966.

res. l955.

Editoral Escucla. Buenos Aires.

El hombre íncondicionada Editoral Plantin, Buenos Ai-

Hamo paliens - lnlenlo de una patodicea. Editoral Planu'n. Buenos Aires, l955. Teoria y terapia de las neurosis. Edilorial Gredos. Madrí: Jose Ferrer. Buenos Aíres. l964. La idea psicológica del hambre. Edicíones Ríalp, Madri, l965. Um Psicólogo no Campo de Concentracãa Editorial As-

ter. Lisboa. 0 Homem lncondicionado. Armênio Amado, Coimbra l968. __._ A Psicolerapia na Prâtica. Editora Pedagógica e Universítária. São Paulo l976. Leslíe. Roberl C.: Jesus and Logotherapy - The Ministry ofJequ as lnterpreted Through The Psycholherapy of Vikror FrankL Abingdon Press. Nova York l965. Tweedie, Don_ald F.: Logotherapy and the Christían Failh - An EvaIuation of Frankl's Existenlial Approach to Psychotherapy. Baker Book House, Grand Rapíds, l961. The Christian and Ihe Cauch - An lnlroduclion to Christian Logotherapy. Baker Book House, Grand Rapids, l963. Il . Capítulos de Livros Bazzi. Tullioz “Consideraciones acerca de las límítacíones y de las comraindicacíones de la logolerapía", em: chongreso internacional depsicolerapia (Barcelona, 1958). Editoríal Scientía, Barcelona l958. FrankL Viktor E.: “Logoterapia y religion", em: Psicoterapia y experiencia rel¡g'¡osa. Edíção organizada por Wílhelm Bítter. Ediciones Sigueme, Salamanca l967. Keppe, Norberto R.: A Medicina da Alma. Hemus, São Paulo, 1967 (capítulo "Logoterapia"). ____ “Reductionísm and Nihilism", em: Beyond Reductíorzism Org. por Arthur Koestler, Macmillan, Nova York l970. Mira y Lopez. Emilio: Psiquiatrfa. Líbrería El Ateneo, Buenos Aircs, 1955 (Capítulo “La psicoterapía existencial de Frankl”). __ Doctrinax psicoanaliticas. Edítorial Kapelusz, Buenos Aires. 1963 (Capítulo “La logoterapia de V. Frankl”). Sahakian, William S.: History of Psychology. Peacock, ltasca, l968

(capítulo “Viktor Frankl").

Bl BLIOG RA FIA LATINQAMERICANA

287

Psychalherapy and Counseling. Rand McNally. Chicago |969 (Capítulo “Logotherapy“). Sp|'cgelberg, Herbert: Phenomenology in Psychology and Psychiatry. Northwestern University Press, Evanston 1972 (capítulo “Viktor Frankl: Phenomenology in Logotherapy and Existenzanalyse"). of Exislencialism 5 (1965), 403. uLabiríntos do Pensamento Psícoterapêutíco". Hum~ '_,___ “Logotherapy“, The lsrael Annals of Psychialry 5 (Umvers¡dade de São Paulo) l, 23.

lll . Artigos em publícações especíalizadas. Crumbaugh. James C.: “The Application of Logolherapy". Journal of Existemialism 5 (l965), 403. "Cross-Validation of Purpose-in-Life Test Based on Frankl's Concepts”, Journal oflndivídual Psychology 24 (1968), 74. ,__._ “Frankl's Logotherapy - A New Orientatíon in Counseling". Journal of Religion and Health lO (l971), 353. __ e Leonard T. Maholíck: “The Case for Frankl°s Will to Meaning". Journal of Existemial Psychiatry 4 (l963). 43. _____ “An Experímcntal Study in Existentialism - The Psychometric Approach to Frankl's Concept of Noogcnic Ncurosis". Journal of Clinical Psychology 20 (1964), 200. FrankL Viktor E.: "Zur mimischen Bejahung und Verneínung”. lnternationale Zeitschrlft' für Psychoanalyse 10 (1924). 437. “Psychotherapie und Weltanschauung”, lnternational Zeitxchrfü für lndividualpsychologie 3 (l925), 250. “Zur geintigen Problematik der Psychotherapie“. Zentralblatl ftir Psychorherapie lO (1938), 33. _____ “The Concept of Man in Psychotherapy". Proceedings of lhe Royal Society of Medicine 47 (l954), 975. ___ °'Dimensioncs del existir humano“, Dialogo l (l954), 53. “Logos y existencia cn psicoterapía". Revista de psíquia-

tria y psicología médica de Europa y América Lalína 2 (l955). 153.

____ “On Logotherapy and Existential Analysis". American Joumal of Psychoanalysis 18 (l958), 28. __ “Analisis existencial y logoterapía". Revista de psi~ quialría y psicología meldica de Europa y América Latina 4 (l959). 42. “The Spiritual Dimension in Existential Analysís and Logotherapy”, Journal of lndividual Psychology 15 (l959). 157. “Paradoxical lnlention - A Logotherapeutic Technique". American Joumal of Psychotherapy 14 (1960), 520.

288

FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS DA PSICOTERAPIA

______ “Analisis existcncial y logoterapía", em: Congresso internacional de psicoterapía. Editorial Scientia, Barcelona. ___ “Reintegración de la psicoterapía a la medícina". Panorama médico, janeiro de l963, 6. _ “Problemas de actualidad en psícoterapía”. Psicología industrial 5 (l965), 13. __ “Labiríntos do Pensamento Psicoterapêutico". Humboldt - Revista para o Mundo Luso-Brasileiro 6 (l966), 81. ____. “Logotherapy and Existential Analysis". American Journal of Psychotherapy 20 (l966), 252. “Logotherapy”, The lsrael Annals of Psychíatry 5

(l967), 142.

_ “Dar un sentido a la vida”, La actualídad española, 2l. XL l968. .__.____ “A Logoterapia e o Seu Emprego Clínico”. Servico Bibliogrâjico Roche 38 (l970), 29. ________ “La logoterapia y su uso clínico', Servicio Bibliogrâfwo Roche 38 (l970). 53. ___ “Determinism and H umanism”, Humanitas - Journal oj lhe lnsmute of Man 7 (l97l), 23. “The Feeling of Meaninglessness”, The American Journal of Psychoanalysis 32 (l972), 85. “O Vazio Exístencial”, Servico Bibliográfxco Roche 41

(1973), 9 e 13.

___ “Encounter - The Concept and lts Vulgarization”, The Journal of the American Academy of Psychoanalysis l (l973), 73. .__ “El sentimiento de la falta de sentidoz un desafío a la psicoterapía”, Sociedad Argentina Asesora en Salud Mental (l974), 22-

28.

_ “Paradoxical lntcntíon and Dereñection", Psychotherapy.' Theory, Research and Practice 12 (l975), 226. Gerz, Hans 0.: “Experience with the Logotherapeutic Technique of Paradoxical Intention in the Treatment of Phobic and 0bsessiveCompulsive Patients”, American Joumal of Psychiatry 123 (|966), 548. HaIL Mary Harringtonz “A Conversatíon wíth Viktor Frankl of Vienna”, Psychology Today l (l968), 56. ldoate, Florentinoz “El analisis existencial de Viktor E. Frankl”, Revista de ftlosofm de la Universidad de Costa Rica 2 (l960), 263. Kaczanowski, Godfryd: “Frankl's Logotherapy”, The American Journal of Psychiatry 117 (l960), 563.

.__ “Logotherapy - A New Psychotherapeulic Tool”, Psychosomatics 8 (l967), 158.

BIBLIOG RA FIA LATINO-AMERICANA

289

Keppe. Norberto R.: “Ana'lise Existencial - Logoterapia", Arquivos (Universídadc de São Paulo) l, 23. Maslow, A.H.: “Comments on Dr. Frankl's Paper”, Joumal ofHumanistic Psychology 6 (l966), 107. Meseguer, Pedro: “EI analisis exístencial y la logoterapia de Viktor Frankl”, Razon yfe 582 (l952). Musso, Vanni: “Terceira Escola Vienense”, Folha da Tarde, 19 de março de l974, 4. Pelegrina. Hector E.: “Viktor Frankl en la Universidad de Navarra”, Actas luso-espan'olas de neurología y psiquialna' 27 (l968), 76. Scher. Jordan: “The Father of Logotherapy”, Existential Psychiatry l (l967), 439. Veylon. Roger. e Marccl Eck: “La logothérapie de Viktor E. Frankl - Une tentative de réhumanisation dc la psychothérapie”, La presse médicale 79 (l971), 224l. We1'sskopf-Joelson. Edith: “Logothcrapy and Existential Analysis”, Acta Psychotherapeulica 6 (1958), l93. lV . Filmes e “tapes” Frankl and Ihe Search for Meam'ng. Fílme produzido por Psychological Films. 205 W. 20th St., Santa Ana, CA 92706, Estados Unidos. The Exixtemial Vacuum. “Tape" produzido por Big Sur Recordings, ll7 Mitchell Boulevard, San RaphaeL CA 94903, Estados Unidos. Meaninglessness - Today's Dilemma. “Tape” produzído por Creative Resources, 4800 West Waco Drive, Waco, Texas 76703, Estados Unidos. Youth in Search ofmeam'ng. Word Cassette Library, 4800 West Waco Drive, Waco. Texas 76703, Estados Unidos. “Theory and Therapy of Neurosis”, é“Man in Search of Meaning”, série de conferências pronunciadas na United States lnternational Universíty em San Diego, Califomia, 22 cassettes gravadas por Creative Resources, 4800 West Waco Dríve, Waco. Texas

76703.

Related Documents


More Documents from ""