A Tempestade - Luiz Gonzaga De Carvalho

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TRANSCRIÇÃO1 DA AULA DE 22 DE ABRIL DE 2007 – PROFESSOR LUIZ GONZAGA DE CARVALHO NETO

A TEMPESTADE INTRODUÇÃO2

Professor: Na última aula, comprometemo-nos com dois objetivos: a) continuar comentando os dois atributos da Virgem Maria que ficaram faltando3; b) e fazer uma breve interpretação da peça “A Tempestade”4, sem ser completo e exaustivo, mas enfatizando a relação entre os personagens e a trama da tempestade e aquele esquema-cenário que meu pai faz para interpretar o filme “O silêncio dos inocentes”5. O objetivo era explicar aqueles seis componentes.

UMA COMPARAÇÃO ENTRE A TEMPESTADE E O SILÊNCIO DOS INOCENTES

Vamos começar lembrando qual era o propósito da ação no filme “o Silêncio dos Inocentes”. Depois, no final da aula, passaremos para o comentário da oração da “Ave Maria”. O que acontece no Silêncio dos Inocentes? 1

Transcrição, títulos, notas e trechos entre colchetes feitos por Carlos Eduardo de Carvalho Vargas em maio de 2007. Versão não revista pelo autor da aula [N.T.]. 2 O professor Luiz iniciou a aula com a proposta de uma série de aulas com leituras comentadas dos textos de seu pai, o filósofo Olavo de Carvalho, como um presente de aniversário para este [N.T.]. 3 Conferir transcrição da aula do professor Luiz Gonzaga sobre a Virgem Maria. A sugestão do comentário da oração veio de um aluno que estava lendo os comentários de São Tomás de Aquino sobre a Ave Maria (http://sumateologica.permanencia.org.br/) [N.T.]. 4 De William Shakespeare. Segundo o professor Luiz: “no decorrer dos séculos, os grandes críticos sempre disseram: ‘A Tempestade é uma das mais perfeitas e acabadas obras da arte de Shakespeare’” [N.T.]. 5 O professor Luiz refere-se ao livro “Símbolos e Mitos no Filme O Silêncio dos Inocentes” do filósofo Olavo de Carvalho. O leitor pode consultar o anexo II da transcrição da aula “Ave Maria” para obter esclarecimentos sobre esse “esquema-cenário” e os seus seis componentes. Como esta aula continuará o comentário sobre a oração da Ave Maria feito naquela ocasião, é importante que o aluno leia aquela transcrição e tenha em mente as suas explicações para continuar com maior proveito o estudo deste texto com o comentário da peça “A Tempestade” [N.T.].

1

Aluno: No começo, o bem e o mal estavam opostos diretamente no mesmo plano e, no final, o mal aparece como algo menor e distante, enquanto o bem torna-se central. Professor: Há duas coisas que acontecem: a) Por um lado, o Buffalo Bill é preso; b) Por outro lado, o Lecter torna-se uma influência distante e o Crawford uma influência próxima. E o que acontece na peça A Tempestade? O que é diferente no estado inicial e no estado final? Aluno: O Próspero é exilado e, depois retorna. Professor: No começo, Próspero é exilado e existe um certo antagonismo entre Milão e Nápoles. O rei de Nápoles reconhece o irmão de Próspero como legítimo duque de Milão. E isso cria um certo antagonismo entre Nápoles e Milão, que é representada ilegitimamente pelo irmão do Próspero. No final da trama, Próspero é restaurado no seu devido lugar e Nápoles e Milão se unem com o casamento dos filhos dos reis. Em um certo sentido, a primeira analogia que se pode fazer é entre a figura do Ferdinando e o papel da Jodie Foster6 no Silêncio dos Inocentes. Os personagens na trama da tempestade dividem-se em três grupos fundamentais: a) O grupo que representa o lado celeste ou bom. Este grupo contem Próspero, Ferdinando e Miranda. Todos estes personagens tendem para a inocência. b) O segundo grupo é composto pelo rei Alonso, Antônio e Sebastião. Estes três tendem para o lado da culpa. Neste grupo há uma hierarquia de culpa: em primeiro lugar vem o Antônio, que é o usurpador do trono; em segundo lugar, vem o Sebastião, que é inspirado a fazer, em Nápoles, a mesma coisa que o Antônio fez em Milão; em terceiro lugar, vem o rei Alonso por ter aceitado o Antônio como duque de Milão.

6

Isto é, a personagem Clarice [N.T.].

2

c) O terceiro grupo é composto pelos três tipos mais inferiores: Trínculo, Estéfano e Calibã. Os três são unidos na idéia de matar Próspero e tornarem-se soberanos da ilha. Os três também são unidos na embriaguez. Interpretando a peça como uma narrativa iniciática7, é, às vezes, difícil compreender qual dos dois personagens, Ferdinando ou Próspero, interpreta a alma no sentido em que Clarice interpretou no silêncio dos inocentes. É interessante que Próspero retorna a um lugar que já lhe era próprio, pois torna-se soberano de um lugar no qual ela já fora soberano. Entretanto, o Ferdinando sobe de grau no decorrer da narrativa. Torna-se soberano de Nápoles e de Milão8. Neste sentido, Próspero é mais próximo ao personagem do Crawford. Este começa sendo a principal influência sobre Clarice e a coloca diante do Lecter, deixando entre os dois pólos do bem e do mal, até que, no final, ele retorna à posição de único influente sobre ela. Mas ela subiu de grau no processo da história, pois no começo viu Lecter e Crawford como duas forças opostas no mesmo plano. E, no final, ela não vê as coisas assim. No começo, ela vê as coisas do ponto de vista do indivíduo, mas, no final, ela vê as coisas sob o ponto de vista do Espírito. Assim como Ferdinando sobe. De herdeiro de Nápoles passa a herdeiro de Milão e Nápoles. Em um certo sentido, mudando um pouco a perspectiva, os seis componentes daquele cenário podem representar tendências ou forças na alma9.

7

Esta expressão foi explicada na transcrição da aula “Ave Maria” [N.T.]. Por casar-se com Miranda, filha de Próspero [N.T.]. 9 Este diagrama foi copiado do citado livro do professor Olavo de Carvalho sobre o filme O Silêncio dos Inocentes. Este livro deve ser consultado para maiores esclarecimentos [N.T.]. 8

3

CARNEIROS 1 CRAWFOR

3

2

LECTER

CLARICE

JAME GUMB /

Buffalo Bill BODES Nenhum desses seis representa o próprio Espírito ou o próprio demônio, mas as tendências angelicais e demoníacas na alma e as respostas da alma a estas tendências. Se quisermos realmente representar a alma e o Espírito10 aqui, podemos afirmar que Milão representa o mundo do Espírito. O reino de Nápoles representa o mundo da alma, a psique. E a ilha representa o cosmos como um todo, onde todas essas forças aparecem como componentes mais ou menos no mesmo plano. Na ilha, as forças espirituais, angélicas e demoníacas, aparecem como pessoas ou personagens. Assim como, no mundo concreto, todas essas coisas aparecem como forças, sugestões e conselheiros - todos no mesmo plano. Neste mundo, pode-se conviver com Moisés e com Stalin. Embora os dois sejam indivíduos humanos, eles representam, na prática, influências espirituais completamente opostas. Qualquer sugestão apresentada pela pessoa do Stalin é necessariamente uma sugestão que conduz o indivíduo na direção da culpa. Qualquer sugestão apresentada pela pessoa do Moisés representa, pelo contrário, uma sugestão para o caminho da inocência. Entretanto, são dois indivíduos humanos, Moises e Stalin, e você pode contar a história de um com a mesma facilidade que você conta a história de outro. Eles aparecem, no plano da história, 10

Para aprofundar essa distinção conferir aulas anteriores do professor Luiz [N.T.].

4

apenas como sujeito que nasceram, fizeram algo e morreram. Assim, na ilha, cada um aparece apenas como pessoa, cada um fazendo alguma coisa. Da mesma forma, no Silêncio dos Inocentes, onde Crawford não apresenta nenhum poder sobrenatural. Então, temos três grupos de personagens principais e temos também três cenários principais, sendo que apenas um é o cenário real da peça, a Ilha, e os outros dois são apenas mencionados, Nápoles e Milão. O cenário mesmo é a ilha. Os três locais representa três planos do cosmos: a) Milão é o plano espiritual; b) Nápoles é o plano da psique ou o mundo da alma; c) A ilha como o mundo concreto, onde a realidade da alma e do Espírito aparecem como personagens do mundo corpóreo. Os três grupos de personagens representam as atividades ou influências desses três planos em uma única alma. É interessante que os dois primeiros grupos de personagens11 misturam os membros de duas famílias. No primeiro grupo temos dois membros da primeira família12, de Milão, e um membro da segunda13,de Nápoles. Você tem pai e filha da primeira família no primeiro grupo e um filho da segunda família neste mesmo grupo. Percebam que Próspero, Miranda e Antônio são de uma família e que Ferdinando, rei Alonso e Sebastião são de outra família14.

11

Onde estão, por um lado, Próspero, Miranda e Ferdinando; e, por outro, rei Alonso, Antônio e Sebastião [N.T.]. 12 Próspero e Miranda [N.T.]. 13 Ferdinando [N.T.]. 14 Para facilitar a compreensão dessa transcrição, acrescentei estas tabelas com os personagens. Perceba que as colunas do primeiro grupo e da primeira família possuem dois elementos em comum, Próspero e Miranda. Analogamente, as colunas do segundo grupo e da segunda família também possuem dois elementos em comum, Sebastião e rei Alonso [N.T.].

5

Grupos de Personagens Primeiro Grupo

Segundo Grupo

Terceiro Grupo

tendem para a inocência

Tendem para a culpa

tipos mais inferiores

Próspero

Antônio

Trínculo

Miranda

Sebastião

Estéfano

Ferdinando

rei Alonso

Calibã

Famílias Primeira - Milão

Segunda - Nápoles

Potências espirituais

Potências psíquicas

Próspero

Ferdinando

Miranda

Sebastião

Antônio

rei Alonso

Mas essa troca de dois membros (pois um membro da primeira família está no segundo grupo e um membro da segunda família está no segundo grupo) é uma pista para que a gente entenda a natureza das forças em jogo. Uma das famílias está ligada ao trono de Milão e a outra família está ligada ao trono de Nápoles. Isso quer dizer que

a primeira família corresponde às potências

espirituais, que está ligada a Milão e ao próprio mundo do Espírito. E a segunda família representa as potências psíquicas. Então, na primeira família, nos seus três componentes, pode-se encontrar os três pontos da metade superior que é feito no cenário do silêncio dos inocentes15. Próspero, como o representante das forças espirituais ou como o mestre espiritual que conduzirá a alma ao seu destino superior. E Antônio, seu irmão, um sujeito que aparece no plano do mundo como seu igual, é a sua imagem inversa. Ele representa as potências demoníacas. Seu

15

O que foi apresentado no esquema acima [N.T.].

6

propósito é conduzir a alma ao seu destino inverso. E a Miranda aparece como a imagem da própria inocência, isto é, o pólo da inocência16.

INOCÊNCIAMIRANDA

3 PRÓSPERO

1

2

ANTÔNIO

FERDINAN DO

SEBASTIÃO

CULPA CALIBÃ

O propósito do Lecter em relação a Clarice é que ela se sinta culpada. É inspirar nela uma dúvida em relação à sua incoerência fundamental. Todo objetivo dele é convencê-la de que ela apenas está fazendo tudo aquilo porque sente-se culpada da morte dos carneiros e quer apagar isso da sua consciência com um pseudo-esforço para fazer o bem. Ele quer provar que a alma é fundamentalmente culpada e que tudo que se faz em contrário é apenas projeção de um desejo de inocência. Ele não quer mostrar a realidade do ponto de vista divino, pela qual a alma é fundamentalmente inocente e é por isso que ela pode alcançar o Paraíso. Toda culpa sobre a alma é apenas a projeção da falibilidade do próprio Cosmos. A alma é fundamentalmente inocente porque o primogênito das criaturas que é essencialmente inocente. A alma é acidentalmente culpada. Isso também é expresso no relato da criação. Deus criou o ser humano no Paraíso. 16

Este diagrama foi feito inspirado no diagrama que aparece no citado livro do professor Olavo de Carvalho, substituindo as expressões próprias do filme Silêncio dos Inocentes pelas explicações dadas pelo professor Luiz sobre A Tempestade. [N.T.].

7

Primeiramente o ser humano não era culpado. Depois, o ser humano maculou-se. Mas esse estado inicial é um símbolo da próprio essência de inocência que é representado pelo Verbo encarnado. Todo esforço do diabo é para mostrar que o acidente que aconteceu com você é a sua essência. O diabo é o próprio arquétipo da corrupção. A culpa e o mal existem neste mundo. Tudo que existe neste mundo possui um modelo no mundo espiritual. O diabo é o modelo disto, da corrupção. Quando o diabo quer convencer a alma de que ela é essencialmente culpada, ela quer convencer a alma de que ela é essencialmente ele e que qualquer esforço para se livrar dessa culpa é em vão porque seria um esforço para deixar de existir. Então, o propósito do Antônio, que representa na peça as potências demoníacas, é o mesmo do Lecter no silêncio dos inocentes: inserir na segunda família, aquela que representa a alma, a culpa. Esta entrou acidentalmente na família quando o rei Alonso aceita e legitima o traidor, Antônio, como duque de Milão. Mas esta culpa é muito tênue. E o segundo passo dele é inserir a culpa de maneira mais profunda fazendo com que Sebastião traia o seu irmão, o rei. E Antônio coloca Sebastião sobre o seu domínio. Este toma a decisão de manter o seu irmão, Alonso. Então, o Sebastião representa aqui, de uma maneira diferente, aquilo que Bufalo Bill é no silêncio dos inocentes: a alma culpada ou a culpa da alma. É aquilo que a alma inocente precisa matar ou vencer desde o começo. Desde o começo, a missão da Clarice é vencer ou neutralizar o Bufalo Bill. Desde o começo fica claro que Buffalo Bill é um fruto do Lecter, assim como Clarice é um fruto do Crawford17. E, por isso, há nela uma tendência a resgatar a inocência primordial. Assim, como Buffalo Bill, ao contrário, é uma tendência a aprisionar a alma na culpa. Essas duas tendências se opõem na alma e pertencem efetivamente ao mesmo plano. Da mesma forma como Ferdinando e Sebastião pertencem ao mesmo plano pois pertencem à mesma família, isto é, a família ligada ao trono de Nápoles.

17

No diagrama acima, eles estão nos mesmos eixos: Buffalo Bill com Lecter e Clarice com Crawford [N.T.].

8

É evidente que, matando o rei Alonso, a segunda etapa seria matar o filho para completar a sua posse do trono, ele teria que matar o filho, Ferdinando. Aluno: Ele já imaginava Ferdinando morto. Professor: É por isso que São Sebastião e Ferdinando representam forças opostas no plano da alma. Qual é concretamente o propósito do Antônio e do Sebastião? Fazer com que o rei Alonso e o seu filho morram ou permaneçam aprisionados na ilha que é o cosmos, enquanto eles tomam a posse do mundo do espírito ou do mundo da alma. O papel desses dois em relação ao Ferdinando é como o papel do Lecter em relação a Clarice18. Há uma diferença de ênfase. A inocência e a culpa são representados por personagens. A Miranda representa a incoerência fundamental, para a qual tende o Ferdinando, e o Calibã representa a culpa fundamental. É só lembrar que o Calibã é filho de uma poderosíssima bruxa que tinha poder sobre a lua e para determinar as marés. Aluno: Era filho bastardo do demônio. Professor: A bruxa que tem poder de influenciar a lua e as marés, corresponde muito exatamente ao próprio fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Se vocês lembrarem das aulas anteriores, nós interpretamos o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal como sendo a tendência a determinar absolutamente os valores das coisas criadas que são intrinsecamente ambíguos.

O FRUTO DA ÁRVORE DO CONHECIMENTO DO BEM E DO MAL

O que é o conhecimento do bem e do mal? Quase sempre é possível para um ser humano, diante de um objeto qualquer, externo ou interno, classificá-lo como bom ou mal, atraente ou repulsivo, agradável ou desagradável e assim por diante. E isso é uma tendência natural. O problema para o ser humano é quando ele, magicamente, fixa esses valores de modo definitivo no objeto. Por exemplo:

18

Por isso, ao fazer o diagrama da Tempestade, coloquei Ferdinando no local do diagrama que correspondia a Clarice no silêncio dos inocentes [N.T.].

9

Em algum momento você está sem dinheiro e você pensa instintivamente: “ter dinheiro é bom”, especialmente quando você precisa obter algo que você não tem. Entretanto, isso não quer dizer que dinheiro é sempre bom, absolutamente. Você apenas constatou uma relação concreta entre a sua pessoa e o dinheiro. Essa relação concreta é facilmente classificada em atraente ou repulsiva. Mas você não pode, somente dessa experiência, saltar para a afirmação [universal e permanente] de que dinheiro é um bem ou um mal. Vejam que o fruto proibido não é o fruto da experiência do bem e do mal. Todos experimentam o bem e o mal constantemente, mas da experiência não deriva necessariamente um conhecimento. O fruto consiste na tentação de elevar uma simples experiência à categoria de conhecimento ou verdade. Nisso consiste o controle da lua e das marés. Estas variam constantemente, assim como a experiência humana do bem e do mal. Esta experiência vai modulando o valor que se dá às coisas. Um objeto que, em uma circunstância, serviu como um bem pode servir como um mal em outra ocasião. Assim, percebe-se que, em relação aos objetos, bem e mal são funções dependentes das circunstâncias. Vamos dar um exemplo: o amor natural do pai para com os filhos. Este é um objeto interno, que você capta dentro de você. Ao captar este objeto, percebe-se que é um bem. O amor aos filhos é uma coisa boa. Mas o amor natural, que é uma simpatia e uma atração, ele pode operar como um bem ou como um mal. Isso vai depender de uma outra coisa. O seu amor natural para com os seus filhos pode lhe cegar para os defeitos deles ou pode servir de instrumento para que a sua inteligência se exerça e você possa melhorar os seus filhos. Dependendo das circunstâncias, o seu amor natural vai operar de um jeito ou de outro. Ele, por si, não possui os meios para operar somente de um jeito ou de outro. Por si, o amor natural dos pais para com os filhos não irá fazer com que sejam um bem ou um mal. É você que terá de experimentá-los como um bem ou como um mal para chegar a um discernimento. Até porque os bem e o mal estão em planos diferentes. Eles não estão no mesmo plano do amor natural. O bem, em relação ao amor natural, é usá-lo em função de uma resolução livre e deliberada de educar os filhos e torná-los seres 10

humanos melhores, completando, com a sua alma, o processo que o seu corpo já fez na criação dos filhos e, assim, elevar a sua capacidade criativa. Gerar um filho é participar da capacidade criativa de Deus. Educá-lo é elevar essa participação para um grau diferente. Mas o próprio amor natural não traz consigo a decisão deliberada de educá-lo; pode ter como conseqüência, a inclinação perversa de idolatrá-lo ou de tratá-lo como um objeto que tenha a intenção de receber e de ser simplesmente servido, colaborando para a formação de um monstro. Em relação ao amor natural, existem dois defeitos contrários e uma relação que está acima dessa polaridade. Um defeito é dizer: “O amor natural que sinto pelos filhos é mal, pois eles somente servem para dar trabalho; eles devem, no máximo, no máximo, ser tolerados”. Neste caso, ficou-se o amor natural como um mal. Ou você pode dizer: “O amor natural é um bem. Isso aqui merece todos os cuidados.” Também é uma perversão. A solução está em outro plano, não é dada pelo próprio amor. É preciso perguntar: “Para que existe esse amor? Este amor existe para que eu suporte os sacrifícios necessários para educar esse sujeito. Deus me dotou desse amor em função de uma outra coisa que o amor, por si, não realiza.” Assim, o amor é transubstanciado: elevado da categoria de instinto para dom divino. Então, a bruxa, de que o Próspero fala, consiste na bruxa que consegue fixar uma das faces da lua e dizer: “A realidade é assim. Ou é lua nova ou é lua cheia”. Aluno: O filho é um monstro, como o Calibã. Professor: Se você fixa o valor de um objeto, como o amor natural do pai pelo filho, você transforma-o em um criador de um monstro. Diante de todo valor temporal, deve-se perguntar: “Qual é o sentido deste valor?” [Alunos fazem algumas perguntas e comentários sobre o assunto.] Professor: A função universal dos valores temporais é servir de instrumento para que você transubstancie a sua vida instintiva em vida espiritual. 11

Para que você eleve esses valores na sua alma. Para que você transporte a sua alma de serva do corpo em servo do Espírito. Existe na alma humana um componente que é naturalmente servo do corpo. E é na vida instintiva que nós captamos experimentalmente as coisas como boas e más ou agradáveis e desagradáveis: o que agrada é tido como bom e o desagradável é visto como mal [para a vida instintiva]. Então, por exemplo: Quando você tem um filho você experimenta as duas coisas. Quando ele lhe acorda às duas da manhã com choro é um incômodo. Naquele momento, o filho é experimentado como um mal. Depois, você vai lá, ele faz um carinho e você o experimenta como um bem. Mas se você se perguntar: “O que é este bebê? Você verá que o bem que ele é não depende dessas duas experiências. Um bebê humano que nunca foi experimentado como um bem ou um mal continua sendo um ser humano, pois seu valor real não depende dessas duas experiências. O filho dos outros é tão humano como o meu e eu não o experimento como um bem ou como um mal. Essa descontinuidade entre a experiência e o conhecimento, o que exige que o ser humano dê um salto para extrair um conhecimento de uma experiência, é a porta que o diabo aproveita. Esse hiato é simplesmente a natureza da criatura. Quando você experimenta algo como criatura, você não a experimenta como o Criador a experimenta. Somente para o Criador, a experiência é idêntica ao conhecimento. Tudo que Deus experimenta como mal é mal e tudo que ele experimenta como bem é bem, o que não acontece conosco. [Aluno faz um comentário sobre o livro “A Abolição do homem” de C.S. Lewis.] Professor: Como o autor do livro verde19 serve aos interesses demoníacos? Ao afirmar que não existe conhecimento acima da experiência. Assim, na prática, ele elevou a experiência à categoria de conhecimento. Se não

19

Livro citado pr C.S. Lewis em livro “A Abolição do homem” [N.T.].

12

há conhecimento acima da experiência, a minha experiência passa a ter o guia absoluto dos meus comportamentos. Aluno: E achata a realidade. O critério de comparação é a própria criatura. Professor: A sua própria experiência. O fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal é tratar a experiência como se fosse conhecimento. E, portanto, tratar os valores apresentados pelas situações concretas como fixos, como relações absolutas. É esquecer que esse mundo e um jogo de símbolos. As funções das coisas variam em relação ao bem e ao mal. O próprio ser humano é um símbolo que, às vezes, pode ser um Moisés e, outras vezes, pode ser um Stalin. Os valores não são explicados imediatamente, mas mediatamente. Eles somente são explicados pela pergunta: “Para que existe isso? Para que existe efetivamente esse objeto ou esse valor?” Somente podemos entender o próprio ser humano e o seu valor perguntando-nos: “Para que existe o ser humano?” Na peça A Tempestade, os três elementos inferiores, que são Trínculo, Estéfano e Calibã, não formam uma família. Eles somente tem uma coisa comum : a embriaguez, que é o estado da incapacidade de entendimento. Então, eles representam este aspecto das coisas concretas. Estas são ébrias. O ébrio não é bom nem mal; ele é incapaz de, por si mesmo, ser uma coisa ou outra. Um sujeito ébrio não é completamente responsável por aquilo que faz enquanto está neste estado. Ele é apenas parcialmente responsável, na medida em que deveria saber que se entrasse naquele estado de embriaguez, poderia cometer tais atos. Aluno: É um discernimento básico. Professor: Então, eles representam aqui, além do estado de embriaguez em geral, nos seus aspectos negativos, as coisas concretas que o ser humano experimenta. Tudo que se experimenta não é completamente bom ou mal, mas se apresenta em algumas circunstâncias como bom e, em outras, como mal. Assim como o ébrio, aparentemente sem nenhuma razão, ora faz coisas boas e, ora, faz 13

coisas más. Nesse sentido, eles representam a corporalidade em geral porque os objetos

corpóreos

apresentam

maximamente

essas

características

de

ambigüidade. Tudo que o ser humano experimenta pode ser uma coisa ou a outra. Isso é uma característica da experiência humana. Para o ser humano, até Deus pode se apresentar como um bem ou como um mal. O Paraíso é Deus se apresentando como bem e o inferno é Deus se apresentando como mal. Quando lhe acontece uma coisa terrível, você pode se perguntar: “Ah, me Deus, por que o Senhor faz com que aconteça uma coisa dessas comigo?” Ainda que você possa, nesse estado, manter a consciência de que Deus é fundamentalmente bom, concretamente Ele está aparecendo como mal para você. Você não está experimentando neste ato divino a bondade divina. Você está experimentando o contrário. Para sair dessa situação é preciso exercer um discernimento. É preciso refletir: “Deus é bom, mas sou eu que estou experimentando este ato dele como mau. É a limitação da minha experiência que me leva a vê-Lo como fazendo uma maldade para mim.” Dificilmente, a gente diz que Deus está sendo mal para a gente, mas a gente diz que Deus está sendo injusto, o que equivale a dizer que Ele está sendo mal. Aluno: “Eu não merecia isso!” “O que eu fiz para merecer isso?” Professor: Assim, o sujeito esquece que, em algum momento, para o próprio Cristo a vontade divina apareceu assim. Aluno: Naquele instante é como se Ele fosse apenas humano. Aluno: No momento em que ele diz: “Pai, por que me abandonastes”? Professor: No momento mesmo em que Ele diz: “Se é possível afasta de mim esse cálice. Faça-se a Sua Vontade e não a 20

minha.”

Aluno: È o choque das duas naturezas. 20

Conferir Mt 26, 39 [N.T.].

14

Professor: Embora Ele estivesse cônscio da sua natureza divina, a natureza humana dEle não poderia experimentar aquele destino21 senão como um mal do qual ela queria se afastar. É por isso que, na peça, o Próspero apareça como querendo impedir o casamento do Ferdinando e da Miranda. E o que faz com que o Crawford apareça cometendo alguns erros [aparentes] no silêncio dos inocentes. Isso é justamente porque a experiência humana neste mundo nunca irá eliminar completamente a descontinuidade entre o particular, ou concreto, e o universal. A identidade entre experiência e conhecimento é um atributo divino. A consciência humana pode manter a consciência do divino constantemente, mas ela não pode experimentar e saborear concretamente a Deus constantemente. Pode-se saber constantemente o que Deus é, mas não se pode sentir isso constantemente. Deixaria de ser humano. A qualidade dos grandes santos não está na capacidade de experimentar a Deus constantemente. Eles mesmo diziam: “Existe uma perfeição além da contemplação divina. Essa perfeição consiste na identificação com a consciência da sua própria humanidade”. O estado mais perfeito dos santos é a consciência de que Deus é exatamente o mesmo, quando aparece e quando não aparece. É isso que está expresso na história de Jó22. No começo dela, Deus aparecia. Jó tinha filhos, riquezas, saúdes, etc. Tudo isso simbolizava a visão de Deus que Jó tinha. Isso tudo vai desaparecendo e os outros dizem que isso aconteceu porque Deus se afastou dele. E ele responde: “É impossível que eu me afaste de Deus porque Ele é sempre o mesmo. Não interessa que Ele não esteja aparecendo para mim. Não interessa que eu não O experimente. Ele é o mesmo.” Assim23, o sujeito utiliza a sua experiência pessoal como um instrumento para a experiência da transcendência divina. Na experiência da privação, o sujeito experimenta a infinitude divina. Por mais que o sujeito contemple Deus, essa

21

A condenação e morte pelo suplício da crucificação [N.T.]. A qual é contada no livro de Jó, um dos livros sapienciais do Antigo Testamento da Santa Bíblia [N.T.]. 23 Fazendo como Jó e os santos [N.T.]. 22

15

experiência é apenas uma experiência finita da infinitude divina. Essa não é a experiência da própria infinitude. Por mais bens que o sujeito possa receber, a alma dele é sempre finita. Como ele experimenta a infinitude? Ele experimenta a infinitude na contemplação o sentido da experiência limitada ou a experiência do sofrimento. Experimentar o sentido do sofrimento ou o sentido da privação é experimentar a infinitude divina. Aluno: É pela comparação do sofrimento com o não-sofrimento? Professor: Como se sobe até a contemplação divina? Sobe-se perguntando-se por que e para que existe cada um dos valores positivos da vida? “Para que existe cada uma das coisas que experimento como um bem?” Toda vez que o sujeito faz esse processo, ele compreende o sentido daquele bem e, com isso, experimenta intelectualmente um bem maior24. Mas isso não responde à pergunta: Para que existe o contrário disso? Embora a experiência do bem, quando é usada para que o sujeito compreenda intelectualmente a experiência do bem, contemple de maneira superabundante a experiência do mal, isso não explica por que existe a experiência do mal. Dizer que “A experiência do mal existe porque você é humano” não oferece a causa final25 dessa experiência, mas somente da causa formal: “Você experimenta esse mal porque você é uma criatura limitada”. Isso não explica a finalidade dessa experiência. O atributo supremo dos santos consiste na contemplação da causa final do sofrimento. Quando ele contempla essa causa final, é como se ele morresse na cruz. Em um certo sentido, morre a sua própria limitação. Aluno: Os três embriagados significam um estado em que não se pode entender isso? Professor: Os três embriagados significam aquilo que, no ser humano, não tem como entender isso, a capacidade sensorial. Pelos sentidos, nunca se entenderá por que existe o sofrimento.

24 25

Como o professor sugeriu nos exemplos acima sobre os valores dos objetos temporais [N.T.]. No sentido aristotélico [N.T.].

16

Aluno: Pelo contrário. Aluno: E por que esses personagens aparecem na peça? Professor: Para mostrar que existe esse componente no mundo. Aluno: Para completar o ser humano inteiro. Professor: Para expressar a alma como um todo. Aluno: Existem os elementos sublimes, os horrorosos, etc. Professor: E a alma pode tender para um lado ou para o outro.

OS NÍVEIS DA REALIDADE E A DESCRIÇÃO DO SER HUMANO

Aluno: Na ilha ele está representando o ser humano inteiro. Professor: Essa tendência da experiência concreta dos bens terrenos não existem para redimir a alma, nem para corrompê-la. Existem como reflexos distantes da realidade. Em um certo sentido, eles representam a ação de Lúcifer: Isso é o que está distante do Espírito, não é o que se opõe ao Espírito26. O mundo corpóreo não é algo que se opõe ao Espírito, mas é algo, que em uma hierarquia, é algo que está mais distante do Espírito. Então, pode-se afirmar que a hierarquia da realidade possui quatro graus, em um certo sentido: a) Primeiro, existe o próprio Deus. b) No segundo andar, existem as potências espirituais, o mundo do espírito, onde já existe o demônio, que já é espiritual. No mundo espiritual, existe o predomínio das potências angélicas sobre as potências demoníacas. Isso que é representado pela vitória dos anjos sobre os demônios e com a localização dos anjos nos Céus e os demônios no fundo da terra. Anjos e demônios são potências espirituais. Essa distribuição espacial deles representa o predomínio esmagador das potências do bem. c) Abaixo, existe a psique. No mundo psíquico, as forças espirituais já se apresentam como iguais. Aluno: E, por isso, a importância do livre arbítrio.

26

No sentido que foi explicado na aula anterior sobre a Ave Maria [N.T.].

17

Professor: , no último grau, na existência corpórea, o mal parece que predomina. Mas o mal aqui não vem de uma escolha para o mal, mas vem de uma limitação. Em um certo sentido, o mundo corpóreo é o inverso do mundo do Espírito, mas ele não se opõe à divindade. Ele é apenas o mais distante do divino enquanto o mundo espiritual é o mais próximo. Em que sentido os bens corpóreos se afastam dos bens divinos? No sentido em que eles, por si mesmos, não podem causar o bem da alma humana. Por isso que, para o ser humano, a busca exclusiva dos bens corpóreos corresponde a um mal. Isso significa que, nas coisas corpóreas, o elemento bem está subordinado ao elemento mal. Assim como nas potências espirituais é o contrário. Aluno: O mundo corpóreo tende para baixo. Professor: Exatamente, tende à compressão e à dissolução. [Aluno faz um comentário sobre a relação entre virtude e mundo corpóreo.] As virtudes [em relação ao mundo corpóreo] a até os vícios podem servir como instrumento para uma elevação espiritual. Assim como Deus permite os pecados menores tendo em vista o arrependimento. É por isso que Deus cria o mundo corpóreo. Neste predomina o mal sobre o bem, mas é por este predomínio na corporalidade, a qual é uma realidade infra-pessoal ou menos pessoal, que permite que a alma eleve-se acima de si mesma. Em certo sentido, é a captação da morte que conduz à elevação da alma. É você captar que a sua vida corpórea é um ciclo que não se explica em si mesmo que permite que a sua alma se lance para o mundo espiritual. Esta limitação do mundo corpóreo é providencial em relação ao ser humano. Esta limitação existe para ocasionar essa consciência assim como é a morte do Cristo que nos redime. Na morte do Cristo, essa limitação [do mundo corpóreo] cumpre o seu papel providencial. A morte é o sinal mais claro da limitação do mundo corpóreo para o ser humano.

A INOCÊNCIA FUNDAMENTAL DO SER HUMANO 18

Da mesma forma, como a debilidade do Calibã torna-nos mais consciente da beleza da Miranda. Assim como a experiência da morte dos cordeirinhos torna a Clarice mais consciente do valor da inocência. Ao ver a morte dos cordeirinhos, no silêncio dos inocentes, ela percebe que existe uma inocência que deve ser preservada no ser humano. Ao ver o cordeirinho morrendo, ela vê o símbolo de uma inocência que deve ser preservada, não vê apenas um cordeirinho morrendo. Aluno: Símbolo da inocência perdida. Professor: Ela vê o símbolo da inocência que ela pode perder, pois o cordeirinho não perde a própria inocência ao morrer. Não é acidental o fato de ser um cordeiro, pois o Cristo é o Cordeiro de Deus. Na morte do Cordeiro você capta essa inocência que está sempre ali. A inocência fundamental da alma está no fundo da nossa existência. Ela é o primeiro ato da nossa existência. No momento em que nós passamos a existir, nós somos apenas o ato criativo divino e este é evidentemente inocente. Mas nós não temos uma experiência direta do nosso início da existência. Existe algum ser que se recorda do seu primeiro momento na existência? Não tem. A consciência é bem posterior à existência. Então, o que acontece? A culpa da morte do Cordeiro recorda o sujeito, por contraste, da inocência original, fazendo com que ele tome consciência. A consciência da inocência original depende dos sentimentos de horror e piedade. Depende da experiência do conflito entre a culpa e a inocência. Toda obra literária precisa inspirar esses sentimentos27 porque somente a experiência dos símbolos da culpa e da inocência que podem lhe tornar mais consciente da sua inocência original, para a qual você precisa retornar. Santo Agostinho lembra-se dos seus pecados no berço28. Ele está se referindo às primeiras escolhas dele entre o bem e o mal. Evidentemente, quando ele estava no berço, não havia nenhuma deliberação, mas as forças que movem a alma para o bem e para o mal já estavam lá. Essas forças se manifestam quando o sujeito experimenta a interação entre culpa e inocência no panorama simbólico

27 28

Conferir a obra “Poética” de Aristóteles [N.T.]. Conferir o livro “Confissões” de Santo Agostinho [N.T.].

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do mundo. O mesmo acontece quando você vê uma maldade, que é uma ação da culpa sobre a inocência e da inocência sobre a culpa. Por exemplo: Um sujeito foi preso pelo policial que foi lá e bateu nele. Você não viu esse conflito. Mas se o bandido entrou na residência de uma dona-de-casa, estuprou-a e saiu. Neste caso, você viu o conflito ou interação entre culpa e inocência, que desperta na sua alma o predomínio profundo da inocência sobre a culpa. A experiência externa da aparente vitória da culpa sobre a inocência recorda o sujeito de como ele mesmo é diferente disso. Essa experiência externa, no mundo corpóreo, recorda a alma de que ela não é assim. Se antes ela percebia as possibilidades de fazer o bem ou o mal e estas opções pareciam mais ou menos no mesmo plano, diante da experiência do predomínio do mal sobre o bem, ele percebe que, no fundo, a alma dele exige um predomínio do bem sobre o mal. Nisso aí reside o poder salvífico da vida do Cristo. Aluno: O filme “A Paixão de Cristo” do Mel Gibson são duas horas dessa experiência. Professor: Para você observar a temporária vitória da culpa sobre a inocência no cenário cósmico, externo à sua alma. Sem essa experiência é impossível que você recorde o predomínio da inocência sobre a culpa na sua alma. Aluno: Por isso que houve tantas conversões com aquele filme. Sem essa experiência fica tudo muito teórico. Professor: Sem perceber isso fora da sua alma, é impossível perceber isso na sua própria alma. Esse é o significado da expressão: “Deus permite um mal tendo em vista um bem”. Em última análise, ele permite o mal em vista de um bem que é impossível para o ser humano. Do ponto de vista divino, o mal é impossível, porque Deus é o Bem Infinito. Se o Bem é infinito, o mal é impossível. Aluno: Não há espaço para o mal.

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Professor: Exatamente, mas esse Bem Infinito é impossível para um ser finito. Então Deus permite a existenciação de um mal impossível para que se realize um Bem impossível. Aluno: É como uma vacina. Professor: Exatamente! Se você não experimentasse uma relativa ausência de Deus, que é o mal, seria impossível experimentar a absoluta presença de Deus, que é este Bem Infinito. Aluno: É Adão? Professor: O que significa Adão? Adão é o ser humano enquanto ato criativo. O Adão é a sua própria inocência no início da sua existência29. Ela é inocente, mas ela é ignorante. Aluno: É a Miranda sem contraste [com outras mulheres]. Professor: A Miranda não pode admirar a sua própria beleza e perfeição. É o Ferdinando que frui dessa perfeição, admirando-a. Aluno: E o Calibã. Professor: Exatamente. Do mesmo modo, a nossa inocência original não frui de si mesma. É só afastando-se dela, em certo sentido, que cada um pode vêla. È experimentando o contrário que nós sentimos aquilo. Assim como, experimentando uma coisa feia ou ruim, nós percebemos como uma coisa é bela ou boa. Aluno: E as pessoas que infligem esse mal? Elas não percebem essa culpa? Professor: Para elas, a resposta é a frase de Nosso Senhor Jesus Cristo: “É necessário que venha o escândalo, mas ai daquele pelo qual vem o escândalo vier”. A experiência da culpa precisa vir, mas ai daquele pelo qual essa experiência vier. Por quê? Porque essa experiência poderia, em um certo sentido, vir sem a intervenção da ação humana. É complicado porque somente os santos no Paraíso sabem o que é realmente possível nesse campo. Mas, em um certo

29

Conferir os três primeiros capítulos do livro divinamente inspirado do Gênesis nas Sagradas Escrituras [N.T.].

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sentido, Adão poderia ter a mesma experiência comparando a experiência que ele tinha de Deus com a experiência que ele tinha do Paraíso. Esta comparação levaria-o à mesma conclusão, mas o contraste entre Deus e Paraíso, para Adão, não era tão grande. Assim como o contraste entre uma coisa boa e uma coisa melhor não é tão grande para nós. Em um certo sentido, o ser humano poderia ter percebido essa culpa sem ter uma culpa humana, mas simplesmente observando as coisas corpóreas. Adão poderia ter observado as coisas no Paraíso e ter visto que cada uma delas era limitada por melhor que fosse. E isso seria uma encarnação [moralmente] neutra da culpa. Do mesmo modo como os bens corpóreos e naturais nos induzem ao mal, como acontece quando o amor natural pelos filhos leva os pais à idolatria dos filhos, o amor natural tem certa culpa, mas não é no sentido moral, pois o amor natural é moralmente neutro. No processo de educar os filhos, você pode, desde o começo, perceber o amor natural como um instrumento da educação e não como o principal agente da educação. Apenas como um agente instrumental. E, assim, você pode nunca cometer um erro na educação dos seus filhos. Mas, em geral, você torna-se mais perfeito na capacidade de educar observando a sucessão de acertos e erros. Em princípio, você poderia ter refletido sobre a limitação do amor natural desde o começo, mas, na prática, a sua reflexão vai se aprofundando na sucessão de acertos e erros. Estes lhe farão perceber melhor a finalidade da educação. Do mesmo jeito, o ser humano poderia perceber esse contraste entre o finito e o infinito sem nenhuma culpa humana, mas ele percebe muito melhor esse contraste quando está diante da culpa humana. Você pode analisar uma ação humana hipotética e pensar que fazer assim é um mal e fazer de outra maneira é um bem. Mas você perceberá muito melhor esse caráter de bem ou mal na ação se você testemunhar esse ato. Por exemplo: Quando você recebe a notícia de um pai que matou o filho, você fica muito mais cônscio do mal real que é você considerar o amor natural como um mal. Assim como observar a experiência de pais que mimam os filhos deixa muito

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mais nítido o mal que é a consideração do amor natural simplesmente como um bem. É como se a ação humana destacasse a desproporção natural entre o bem e o mal. Ela amplia o contraste entre o bem e o mal. Em princípio, você poderia ter essa experiência experimentando uma maçã boa e uma maçã ruim e percebendo que uma é agradável e a outra é desagradável. Aluno: Mas a alma não se impacta tanto. No cenário mundano as coisas se manifestam de maneira evidente. Professor: Quando você percebe uma ação humana corrupta e uma virtuosa você sente o que está em jogo na existência humana, incluindo você mesmo.

MAGIA E SONHO

Aluno: No livro, eu não entendi o papel da magia do Próspero e o perdão que ele dá no final [para aqueles que haviam lhe traído]. Professor: Nesses dois elementos, o uso da magia e o perdão final, estão as diferenças específicas entre essa narrativa da peça A Tempestade e no filme O Silêncio dos Inocentes. Neste, há uma história que, para uma dessas pessoas, é um caminho iniciático. Para Clarice, aquela sucessão de eventos é a subida do estado inicial de igualdade entre o bem e o mal para um estado final em que o bem é próximo e a culpa é distante. Mas o que é contado literalmente, no filme, é a história de várias pessoas. O significado literal é tal como é narrado no filme. Por outro lado, na Tempestade, o significado literal não é um conjunto de histórias humanas. E isso é explicado pelo próprio Prospero quando ele fala: “Nós somos feitos de sonho”. Essa frase é uma das chaves interpretativas da história. Qual é a característica do sonho? Todo o material do sonho é extraído da sua psique. Tudo que existe no sonho não existe no mundo espiritual ou no mundo corpóreo, mas existe somente na sua psique. O significado literal da Tempestade é o que acontece dentro de uma psique no caminho iniciático. 23

No Silêncio dos Inocentes o que acontece na psique é mostrado pela diferença entre a Clarice no começo e no final. Existe uma analogia entre a Clarice e o Ferdinando, mas este é exatamente o mesmo [neste sentido] no começo e no final, pois ele reconhece o que quer desde o começo. O Ferdinando não corresponde à alma no mesmo sentido que a Clarice no Silêncio dos Inocentes. Vamos chamar de alma da alma: aquele elemento da alma que é o próprio princípio da decisão. Ele corresponde à diferença específica da alma em relação ao corpo e ao Espírito, o livre arbítrio, o que mostra que a alma é a alma. Aluno: O Ferdinando [é essa alma da alma, esse livre arbítrio]? Professor: O Ferdinando. Ele representa uma escolha. Tudo o que está acontecendo ali é a alma. A escolha é como a alma na alma. Uma alma humana é algo que pode ir para o Céu ou para o inferno e a escolha é o princípio desse destino final. Falar que eles são feitos da mesma substância dos sonhos é falar que todos eles são elementos de uma alma. E é isso que explica a utilização da magia. O que é magia no sentido literal? Se existem os corpos e existe um mundo no qual existem os corpos, que é o mundo corpóreo, também existem as almas e o mundo no qual elas existem, que é o mundo das almas. Nesse mundo, nem todos os agentes e forças estão individualizados, assim como no mundo corpóreo. Existem corpos que não se pode denominar indivíduos, mas simplesmente elementos do mundo corpóreo. Assim como os minerais, por exemplo. A magia é o uso das forças psíquicas não-individualizadas para causar modificações no mundo corpóreo. Na magia, existe um predomínio do elemento dinâmico ou realizador sobre o elemento estático ou intelectivo. O mago capta certas coisas psíquicas e as reúne em uma certa ação ou objeto ou palavra e essa coisa realiza uma certa mudança corpórea. A força da mudança é percebida. A nossa experiência concreta de operações mágicas é muito pequena, mas elas existem. Existem fenômenos corpóreos que não são explicáveis pelo próprio elemento corpóreo, mas apenas pela presença de forças psíquicas que não são captáveis pelos sentidos. Aluno: E a hipnose? 24

Professor: Na hipnose existe um mínimo de elementos mágicos. Aluno: É como um milagre? Professor: O milagre é diferente porque as forças em jogo não são da ordem psíquica, mas são da ordem espiritual e divina. Aluno: A força psíquica age sobre o corpo? Professor: Existiu um chefe de seita aqui no Brasil que juntava um maço de pilhas na própria mão e as fundia. Tive um aluno que testemunhou isso. Não lembro o nome dele. Aluno: O mágico faz mesmo isso? Professor: Não foi ele que fez, mas foram certas forças psíquicas nãoindividualizadas. Aluno: Ele conseguiu dominá-las? Professor: Não, ele conseguiu atraí-las para aquele determinado ato mágico. O maior problema da magia está nisso. Ao ver as pilhas antes e depois da mágica, o sujeito diz: “O mágico fez isso!” Nisto reside o elemento ilusório da magia: ela dá ao sujeito que a vê e para o próprio sujeito que a pratica a impressão de que se possui algum poder e de que se domina algo que transcende a esfera humana comum. Aluno: Ele tem um domínio? Professor: Não é um domínio. Quando você persuade um ser humano de uma verdade você tem um poder sobre ele? Não é um poder sobre ele. Em um certo sentido, ele persuadiu aquelas forças a agir de uma certa maneira. Se ele tivesse poder sobre aquelas forças, ele simplesmente as usaria para aquilo que lhe interessa: obter poder sobre o mundo. Se os magos dominassem as forças com as quais eles lidam, eles seriam os dominantes do mundo. Aluno: E não são. Aluno: E qual é a relação do mago com essas forças que atrai? Ele consegue atrai-las e afastá-las quando quer? Professor: Nem sempre ele consegue atrai-las. Aluno: Ele possui alguma arte. 25

Professor: Alguma arte e algum talento. A operação mágica é semelhante à ação do sujeito carismático. Não é algo sobre o domínio deste, mas ele pode canalizar aquilo. É como um ídolo de rock: os fãs não estão sob o domínio dele. Aluno: Não é possível. Professor: Os fatores que fizeram com que os fãs de rock admirassem o ídolo não estão sob domínio deste, senão ele faria sucesso sempre. Não está sob o domínio dele, mas ele consegue veicular aquilo, em certo sentido. A magia é uma arte30, assim como qualquer outra arte. Mas quando o sujeito é um ídolo de rock tem a impressão de que e um sujeito especial. Com essa impressão, depois de adquirir fãs, ele adquire certo poder sobre os fãs, mas é apenas o poder que os fãs entregam a ele por causa do carisma, por acharem que ele é alguém especial. É clássico na história dos mágicos e bruxos serem traídos pelas forças que eles estavam atraindo. O mundo é um jogo de compensações. Em um determinado momento, o ídolo de rock veiculou certas forças carismáticas que atraíram para ele um certo número de fãs. E, assim, ele adquire certo poder sobre os fãs [na medida em que é admirado]. Na medida em que ele exerce certo poder sobre os fãs, ele perderá a capacidade de veicular aquele carisma. Na mesma medida em que ele exerce o poder sobre os fãs, as forças que ele veiculou exercerão um poder sobre ele. Aluno: E ele se perderá. Aluno: Por isso que o Próspero foi muito inteligente em libertá-los. Professor: Por isso que o Próspero somente teve poderes mágicos na ilha e não teve em Milão. Os poderes mágicos foram uma compensação cósmica pela perda do poder em Milão. A mesma coisa acontece na alma humana com as virtudes. As virtudes na alma humana são os poderes mágicos do Próspero. As virtudes são movimentos humanos que vinculam forças divinas. O exercício das virtudes veiculam forças que transcendem a alma humana. Esse exercício será abandonado no Paraíso. 30

No sentido aristotélico [N.T.].

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Todos sacrifícios virtuosos feitos nessa vida não precisarão ser continuados no Paraíso. Aluno: O uso das virtudes é parecido com essa uso mágico das forças psíquicas. Professor: É análogo. A virtude é uma magia espiritual, em certo sentido. As virtudes fazem mudanças no mundo corpóreo. Elas trazem presentes, no mundo corpóreo, qualidades divinas que estão além delas mesmas. Os efeitos das virtudes a transcendem. Por exemplo: Quando a Clarice vê a inocência daquele Cordeiro, isso faz com que ela capte algo que transcende infinitamente a inocência do animal cordeiro. A inocência do Cordeiro vincula uma coisa para ela que está muito além. A única diferença entre a magia e a virtude é que nesta não se vincula uma fora psíquica, mas uma força espiritual; entretanto, o processo é análogo. Aluno: E o perdão? Professor: O perdão existe justamente porque todos aqueles personagens são componentes da psique, os quais, no resgate final, são neutralizados e cujos sentidos são explicados. No Paraíso, todos os seus defeitos terrenos serão cristalizados como uma qualidade positiva. Quando você for para o Paraíso, os seus defeitos e limitações não serão destruídos, mas redimidos. Eles são resgatados. Eles se realizam como um sentido. Se não fosse assim, no Paraíso você deixaria de ser você mesmo para ser Deus.

“CADA TERCEIRO PENSAMENTO SERÁ A MINHA SEPULTURA”

Próspero explica o resgate desses componentes da psique no final da peça, quando diz: “Retornarei a minha Milão, onde cada terceiro pensamento será a minha sepultura”. [Alunos discutem a tradução desse trecho.]

27

Professor: O que é esse terceiro pensamento31? a) O primeiro pensamento é o primeiro pensamento que você tem no Paraíso: o pensamento de Deus, é Deus. b) O segundo pensamento é o sentido da sua história: é você. c) O terceiro pensamento é onde Deus e você se encontram. Aluno: Somente pode ser na morte. Professor: Para quem vai ao Paraíso, a morte é um elo de ligação entre ele e Deus. A morte é a identidade do sujeito e Deus. Isso é algo difícil de explicar. É na morte que tudo que você é se transforma e se cristaliza em Deus. Aluno: Por isso que ele fala “todo terceiro pensamento”. Professor: Porque você somente pode contemplar essa coisa que é una em Deus e você contemplando Deus e você, [que são os dois primeiros pensamentos]. Esta sepultura que ele fala é aquilo que é antes de você e Deus. Deus existe. E você existe. Isso quer dizer que no Ser Real existe uma raíz comum entre você e Deus. Esta somente pode ser acessada na morte. Enquanto você está vivo, ou você capta Deus ou você capta você. Os santos são claros neste ponto: “o sujeito que contempla Deus sai do estado de contemplação porque se lembra de si mesmo”. Vamos supor que um sujeito está contemplando Deus e, de repente, ele está contemplando a si mesmo e as coisas. Entre uma coisa e outra houve uma espécie de estado de inconsciência. Ele não viu o processo pelo qual saiu. Essa contemplação é o terceiro pensamento, aquilo que ele somente poderá perceber depois da morte. Aluno: Próspero está prometendo que cuidará da salvação da própria alma? Professor: Não. Quando termina a história, ele está no Paraíso. No Paraíso somente há três pensamentos. No fim da história, esta alma entrou no Paraíso. Antes disso, Próspero oscilou entre duas contemplações: conhecer a Deus e conhecer a si mesmo. E ele diz:

31

A explicação dada pelo professor Luiz vai ao encontro do comentário sobre A Tempestade feito por Martin Lings em “The Sacred Art of Shakespeare”, que foi publicado em português pela editora Polar [N.T.].

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“Agora retornarei a minha Milão, onde terei acesso a esse terceiro pensamento”. O terceiro pensamento é a contemplação da unidade entre o sujeito e Deus. Existe algo na realidade, ou no real, que, se você olhar, não sabe se é você ou Deus. Isso é o nascimento do Verbo de Deus na alma. Isso é a Mãe de Deus. Como um ser humano pode ser mãe de Deus? Para ser Mãe de Deus não se pode ser nem humano nem divino. O que é Mãe de Deus é a própria essência divina. Nesta não existe distinção entre o Criador e a Criatura. Isso aí é algo que o ser humano somente tem acesso com a morte. Por isso que os santos chegavam a um estado em que lhes era completamente indiferente estar vivo ou estar morto, mas ao mesmo tempo eles diziam: “estar morto é melhor”. O santo é o sujeito que chegou ao máximo da contemplação de Deus e da sua própria individualidade. Ele conhece maximamente Deus e a si mesmo. Nesse conhecer essas duas coisas plenamente, ele sabe que há algo que esses dois é um só, mas isso somente é visível na morte: “Somente vejo isso, se estiver morto”. Aluno: Podemos voltar à oração da Ave Maria? Professor: A partir daí. Aluno: Já estamos lá. Professor: Havia dois atributos da Virgem Maria que não haviam sido comentados: “Santa Maria” e “Mãe de Deus”.

SANTA MARIA E A PUREZA DA INTELIGÊNCIA

“Santa Maria” corresponde à pureza da determinação do Ferdinando desde o começo32. A escolha do Ferdinando é pura porque é determinada pela santidade da inteligência. Em nenhum momento a decisão da alma, que é representada pelo Ferdinando, oscila para o outro lado porque essa decisão é sustentada pela inteligência objetiva. 32

Determinação em buscar o amor de Miranda [N.T.].

29

As nossas paixões não cancelam a nossa inteligência nunca porque a inteligência é santa. Eu posso desejar ou amar o bem e o mal. Se amo o bem é melhor para mim. Se amo o mal é pior para mim. Isso quer dizer que a minha capacidade de amar não é intrinsecamente santa. Santo significa puro. A minha capacidade de amar é impura, pois pode receber tanto o bem quanto o mal. Pode ser tanto boa como má. A mesma coisa vale para a minha vontade ou capacidade de decisão. Eu posso decidir pelo bem ou pelo mal. Quer dizer que a minha vontade é impura. Mas com a inteligência não é assim. Aluno: Por que não? Professor: Porque não é a inteligência que opina. É a estimativa33 que opina. A inteligência conhece ou não conhece, mas, mesmo no ato de não conhecer, ela é pura. Não há nenhuma contaminação [ao não conhecer]. Aluno: Mesmo no ato humano de se enganar, a inteligência continua pura. Professor: Sim, pois quem se enganou foi você como sujeito total, não foi a sua inteligência. A sua inteligência não disse nada. Você não se enganou porque a inteligência disse algo errado, mas porque ela não formou o juízo. Aluno: Não está claro para mim. Professor: O objeto da inteligência é o ser e a verdade, não é o não-ser e o erro. Quando você experimenta algo como agradável ou desagradável, você precisa parar para pensar: “isso é bom ou mau?” E você precisa tomar uma decisão [entre essas opções]. A sua inteligência, nesse processo, diz o que é ou não lhe diz nada; ela não diz algo errado. Aluno: Ela enxerga ou não enxerga. Professor: Exatamente. A inteligência humana é apenas limitada, mas não é impura. Ela pode lhe dizer: “sei ou não sei”; “é isso ou não é isso”. Aluno: E você decide o que fazer com isso que a inteligência percebeu.

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Conferir, sobre a estimativa, as aulas anteriores deste curso, assim como a explicação abaixo que a distingue da inteligência [N.T.].

30

Professor: A decisão é outra coisa. É um ato posterior. O livre arbítrio pode escolher o mal, mas a inteligência não é um princípio de escolha. Nesse sentido, a inteligência é como os sentidos, como dizia São Tomás de Aquino: “Nos sentidos e na inteligência não há falsidade”. Ou você vê essa sala ou você não vê. O sentido da visão não lhe apresenta outra coisa que não é essa sala. Com a inteligência é análogo. Por isso, ela é pura intrinsecamente. Ela opera bem toda vez que ela opera. Aluno: Santa Maria significa isso? Professor: Sim. Embora a etimologia não seja certa, todas as indicações apontam para a idéia de elevação ou de princesa, como no árabe. Então, Santa Maria significa justamente isso: uma princesa pura. A inteligência é assim. Ela é, por si, a coisa mais elevada que há na alma. E ela é tão elevada que é, por si mesma, sempre pura. Qual é o problema para o ser humano? Quando a gente fala: “a inteligência errou”, não foi a inteligência que errou, mas foi o sujeito que não agüentou o não saber. A alma não agüenta a ignorância. A nossa psique quer uma resposta para todas as perguntas. E quando a inteligência não dá nenhuma resposta é possível que a alma arrisque uma resposta que não foi dada pela inteligência. Neste caso, o que você faz quando precisa tomar uma decisão? Você aceita uma hipótese, a hipótese mais firme. Esta não é um resultado da sua inteligência, mas da sua estimativa, que é a sua capacidade de operar quando você é ignorante. Mas a estimativa se engana. Nem todas as suas hipóteses são verdadeiras. É preciso testar as hipóteses da estimativa depois que são formuladas. Em um certo sentido, pode-se comparar a inteligência, tal como ela é no ser humano (e não como ela é enquanto tal, em Deus) e a estimativa com dois irmãos da mitologia grega: Epimeteu e Prometeu. Prometeu significa “o que pensa antes” e Epimeteu

é “o que pensa

depois”. Prometeu representa a sua capacidade de estimativa, isto é, a sua capacidade

de

representar

a

realidade 31

antes

que

ela

se

apresente

completamente. E Epimeteu representa a sua inteligência, que afirma algo sobre a realidade depois que esta se apresentou, sendo, assim, completamente infalível. A inteligência é o Papa da alma, é infalível, mas nem sempre se pronuncia. Aluno: A inteligência é esse instrumento para compreender o concreto em um nível abstrato. E a estimativa é a capacidade de sabedoria [prática]? Professor: Por exemplo, veja a ciência física atual, que é uma grande obra da estimativa humana. Newton não sabia o que estava em jogo realmente na mecânica celeste. Então ele pensou: “imagine se existir uma força assim, pela qual matéria atrai matéria, etc.” Ele criou uma hipótese e comparou-a com os dados observados na realidade, concluindo que essas hipóteses descrevem a realidade até certo ponto. Isso não é um ato da inteligência, mas é da estimativa. Ele não sabe se existe a força da gravidade. Ele não viu essa força. Ele viu o mecanismo celeste, tanto que essa hipótese pode ser substituída por outra mais refinada e mais eficiente. Alguns séculos depois, Einstein explicou: “não existe uma força pela qual matéria atrai matéria, mas existe uma força que distorce a matéria e o espaço”. Mas também não se sabe se existe essa força. O que se sabe é que: “em um universo em que existisse essa força, os fenômenos que existem no nosso universo”. Aluno: Mas essas hipóteses serão testadas e chamadas de inteligência? Aluno: Não. Professor: A inteligência consiste em captar realmente qual é a força agente no universo. Isso pode nunca acontecer. Pode ser que o ser humano nunca entenda isso. Aluno: A inteligência dispensa o teste. Professor: Sim, pois ela não se pronuncia enquanto não vê [seu objeto]. Aluno: Não precisa testar. Professor: É por isso que Epimeteu é representado na mitologia como sendo tolo. E Prometeu como sendo astuto. Aluno: Os atributos da Virgem Maria anunciados na oração da Ave Maria são atributos que somente nela atingiram um nível máximo. 32

Professor: Mas há uma diferença: esse atributo está presente em nós, mas simplesmente não o aproveitamos como ela o aproveitou. Qual é a diferença entre Nossa Senhora e nós? Ela decidiu não formular hipóteses sobre a realidade. E nós não agüentamos isso. Nós temos que formular essas hipóteses. Aluno: Desde a anunciação? Professor: Desde sempre. É isso que é expresso quando se conta, em uma tradição oral do cristianismo e do islamismo, que: “Desde criança, Maria recebia seu alimento dos anjos. Ela não recebia seu alimento de mãos humanas”. Isso quer dizer que a alma dela não aceitava hipóteses, mas aceitava apenas conhecimentos. Enquanto, por outro lado, nós aceitamos hipóteses constantemente e precisamos aceitá-las, uma vez que não fomos preservados do pecado original. A gente se dá mal se passar a recusar hipóteses. Nós precisamos compensar a nossa aceitação de hipóteses com a virtude da fé, pela aceitação das verdades divinas que, para nós, aparecem como hipóteses. Quando Deus fala: “se você se comportar assim, irá para o Céu; se não, irá para o inferno” – isso, para nós, é uma hipótese, mas é um conhecimento para Deus. Você não tem a evidência disso para dizer: “eu sei, isso é verdade”. Você aceita essa hipótese com toda a força que você pode. A gente aceita essa hipótese para compensar a nossa própria criação de hipóteses. Aluno: Por isso que se diz: “Aquele que não acredita em Deus, não passa a acreditar em nada, mas acredita em tudo”. Professor: Exatamente, pois a sua alma não irá resistir ao fado da sua própria ignorância. Basta você perceber como é excepcional a virtude de um Sócrates que convivia com a dúvida, reconhecendo a própria ignorância: “sou ignorante e terei que aceitar isso”. A gente não consegue fazer isso. 33

Quando terminar essa aula, retornarei para a minha casa. Por que voltarei para minha casa? Eu não tenho certeza de que é o melhor, mas somente acho que é bom. É apenas uma hipótese. Eu poderia nesse momento refletir: “não sei se é bom ir para casa, não sei se é bom ir para outro lugar, etc. e, na dúvida, não devo fazer nada. Não devo, na dúvida, tomar nenhuma decisão34.” Quando se fala que a Virgem recebia seu alimento dos anjos, significa que ela não ia buscá-lo entre os homens porque não sabia se o alimento dado pelos homens é bom ou mau. Tudo que se sabe é que esses alimentos aparentemente preservam o corpo. É importante saber que esse pleno compromisso com a própria ignorância é sobrenatural. Deus não está propondo que a gente faça isso, pois requer um poder sobrenatural que somente Deus pode infundir e que, na Virgem Maria, foi infundido desde a concepção. Aluno: O que para nós é mistério era, para a Virgem Maria, uma verdade concreta. Aluno: No Pai Nosso, o penúltimo pedido refere-se a isso? Professor: A isso. Aluno: E o fiel, ao pedir para não cair em tentação, recebe de maneira limitada essa dom do Entendimento ou da Inteligência. Professor: Mas é limitado, pois para que um ser humano agüente a ignorância, é preciso que esta se refira apenas ao mundo contingente. Se você conceituar Deus como Ele é, você agüenta a sua ignorância a respeito dos fatos deste mundo. Você agüenta completamente. Você não precisa mais elaborar hipóteses sobre este mundo. Aluno: É o puro de coração, indicado nas bem-aventuranças do Evangelho de São Mateus. Professor: É o puro de coração. Assim, ele não mais formula hipóteses, mas porque ele tem certeza acerca do absoluto. Ele tem experiência acerca do

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Nos diálogos platônicos, conta-se que Sócrates chegava a passar horas parado no mesmo local refletindo consigo mesmo, suportando a dúvida e esperando alguma percepção da inteligência [N.T.].

34

absoluto. E essa experiência compensa ou satisfaz a necessidade que a alma tem de verdade, de saber a coisas e de não estar em uma ignorância total. Aluno: De novo, apenas a Virgem Maria. Professor: Somente a Virgem Maria. Aluno: Para nós, fica a notícia dessa possibilidade.

MÃE DE DEUS

Professor: E o atributo Mãe de Deus, enunciado na oração da Ave Maria? Ela contemplou no filho dela essa unidade entre ela e Deus antes da morte. E é por isso que ela não precisa morrer. Ela morreu quando Cristo morreu na Cruz. Quando Cristo morreu na Cruz, a alma da Virgem Maria separou-se do próprio corpo e voltou. Isso também é um milagre evidentemente. Ela morreu junto35.

35

Sobre esse fato impressionante, conferir o comentário que um padre fez em uma entrevista sobre o filme “A Paixão de Cristo” de Mel Gibson, pensando no trecho do filme que poderia ser chamado de “testamento” de Nosso Senhor Jesus Cristo (pois expressa uma herança deixada pelo Cristo, conferir Jo 19, 25-27): “À margem de polêmicas, os críticos compartilham o fato de que nenhum outro filme havia apresentado de forma tão precisa a figura de Maria. A mãe de Jesus vive o drama e a dor da Paixão, ainda sabendo que se está realizando o projeto de salvação. O que gostaria de comentar a propósito desta interpretação? Pe. Castellano Cervera: É justa esta observação. A presença histórica de Maria aos pés da Cruz, segundo o Evangelho de João, é a chave para entender que a sua foi uma constante, viva e participada proximidade ao Filho em sua hora, a do Filho e a sua, desde a Ceia até a Cruz. Maria não estava ali por casualidade, mas porque havia seguido os passos do Filho, como fiel discípula e Mãe. O filme tem plena razão ao mostrá-la em diversos momentos do itinerário da Paixão. Não é uma mãe que se deixou para trás ante a condenação de seu Filho. Ela está totalmente do lado de Jesus. Mas sua presença humana, o fato de deixar-se ver por Jesus, como mostra o filme, leva uma mensagem. Maria quis fazer presente ao Filho sua participação, a consciência de viver em profunda comunhão com Ele, o que tantas vezes talvez revelou à mãe, mais ou menos explicitamente: sua paixão, morte e ressurreição. É uma presença partícipe de comunhão, de compaixão, de materna associação, no realismo de estar próxima, de deixar-se ver, de apresentar-se também sem medo como a mãe daquele Filho condenado. O que sucede aos pés da Cruz, segundo João, é expressão verdadeira do que ocorreu no caminho da cruz. Maria acompanhou o Filho em sua agonia. E esperou sua ressurreição até o terceiro dia. Uma das cenas mais fortes do filme está no momento em que, aos pés da Cruz, Maria diz a Jesus: «É corpo de meu corpo, sangue de meu sangue». E nestas palavras se esconde o mistério da Encarnação do Filho de Deus. Que diz a respeito? Pe. Castellano Cervera: Não só é uma referência ao mistério da Encarnação da qual Maria é testemunho desde o princípio até o final, desde a concepção até a Ascensão. No drama da Paixão, Maria indica que aquela carne que sofre e aquele sangue derramado na flagelação, ao longo do caminho do Calvário e na Cruz, é carne de sua carne e sangue de seu sangue. No fundo, afirma que existe a «compaixão» da mãe, que sente em sua carne e em seu sangue o quanto sofre seu Filho, como se cada dor fosse vivida e sofrida por Ela, com uma maravilhosa sensibilidade materna. Isso era sabido. Fora ouvido de Simeão como profecia. Mas agora é vivido com um realismo talvez inimaginável.” ( http://www.cepecacnabi.org.br/noticia.asp?noticiaID=29) [N.T.].

35

[Alunos comentam sobre o relato do Santo Evangelho da Paixão e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.] Professor: Depois dessa morte, era impossível distinguir, ao ver a Virgem, se a visão era de algo desse mundo ou do outro. De fato, era impossível definir. Era impossível, ao olhá-la, distinguir se você estava vendo Deus ou a mulher. Os apóstolos ao vê-la, já estavam vendo essa santidade. Eles não estão vendo uma santidade como se vê nos santos que ainda estão aqui, mas uma santidade que somente se vê nos santos que já morreram. Mas na Virgem Maria, a partir da morte e da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, isso tornou-se visível nela. Eles não sabiam se aquilo era uma pessoa ou uma aparição. O mesmo vale para o próprio Cristo depois da ressurreição. Os próprios Apóstolos não sabiam dizer36. [Aluno relembra a capacidade do Cristo ressuscitado de atravessar paredes e uma aluna pergunta, considerando esse poder, por que havia a necessidade de se retirar a pedra que cobria o Santo Sepulcro.] Professor: Por que o corpo não estava lá no Sepulcro, quando os Apóstolos foram visitá-lo? Porque o processo pelo qual se realiza essa unidade não pode ser testemunhado pelo ser humano. [Aluna repete a pergunta sobre a necessidade da retirada da pedra do Santo Sepulcro.] Professor: Não era necessário abrir a porta do Sepulcro [para que Nosso Senhor saísse dali], isso foi apenas um sinal para os discípulos, para que eles soubessem que algo aconteceu. Aluno: Se não, eles não iriam lá ver. Professor: Como eles iriam lá verificar a Ressurreição? [Se a pedra não fosse retirada,] eles teriam que violar a sepultura do Cristo, o que eles não fariam de jeito nenhum. O respeito pelo Sepulcro era tão sagrado que São João não quis entrar no Sepulcro antes que São Pedro entrasse37, pois pensou:

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Conferir, a este respeito, a dificuldade que havia em reconhecer a figura do Cristo Ressuscitado segundo os relatos dos capítulos 20 e 21 do Evangelho de São João [N.T.]. 37 Conferir Jo 20, 1-8 em http://www.bibliacatolica.com.br/01/50/20.php: [N.T.].

36

“mesmo estando aberto, posso estar violando isso aqui”. Como Cristo havia dado uma primazia para São Pedro, este saberia se está violando ou não. Aluno: É interessante que Cristo escolhe para guiar a Igreja aquele que mais formulou hipóteses. São João jamais formulou hipóteses e creu desde o começo. Com São Pedro foi diferente. Professor: Exatamente. Mãe de Deus refere-se à este atributo que pertence àquilo que está além da distinção entre o ser humano e Deus, àquilo que antecede essa distinção. Algo que o ser humano somente pode captar no Paraíso, mas que a Virgem captou antes. Imagine o que era, para ela, desde o nascimento, poder contemplar o Cristo e saber: “este aqui é Filho de Deus e meu filho”. Esta é uma experiência que nós não podemos imaginar. É muito fácil conceber que toda vida espiritual dela, a partir deste momento, estava centrada nisso, nessa reflexão acerca dessa dupla verdade. Evidentemente ela se perguntava: “como é possível isso38? Como é possível que Ele seja Filho de Deus e meu filho?” Mas ela não formulava hipóteses sobre esta questão. Então, isso quer dizer que ela agüenta essa tensão espiritual desde o momento da Anunciação39 até a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela [provavelmente] fez essa pergunta constantemente40. Esta é uma pergunta espiritual que não se coloca para nós, mas para ela foi colocada desde o começo. Todos os cristãos tendem a centrar a sua vida espiritual na pessoa do Cristo. Mas ninguém teve, da pessoa do Cristo, a mesma experiência que a Virgem Maria teve. Todo cristão tem a seguinte experiência: “em certo sentido sou filho do Cristo, pois ele é meu Pai espiritual, e, em outro sentido, sou seu irmão, pois o Pai me adotou”. Mas a gente não tem a experiência de conceber o Cristo, embora a Virgem tivesse essa experiência desde o momento da Encarnação. Isso quer dizer

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O que faz lembrar a pergunta que Nossa Senhora fez ao Arcanjo Gabriel: “Maria perguntou ao anjo: Como se fará isso, pois não conheço homem?” (Lc 1, 34) [N.T.]. 39 Conferir Lc 1, 26-38 em http://www.bibliacatolica.com.br/01/49/1.php. [N.T.]. 40 Conferir Lc 2, 51: “Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração” [N.T.].

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que ela podia examinar intelectualmente o Cristo de um ponto de vista único. Por isso ela é Mãe de Deus em um sentido no qual nós nunca seremos. De todos os atributos, esse é o que é mais exclusivo dela. Aluno: Ela é pacífica, como é expresso na última bem-aventurança. Nela todos atributos são máximos. Professor: Existe algo nela, na Virgem Maria, que transcende o humano. Existe um atributo que é próprio dela e do qual nós participamos. O ser humano participa dos atributos divinos, mas há um ser humano41 que possui um atributo que lhe é único e do qual nós somente podemos participar. Não existe nenhuma disparidade intrínseca entre nós e São Francisco ou entre nós e São João Evangelista, mas existe uma disparidade intrínseca entre nós e a Virgem Maria. É isso que permite a seguinte determinação pela Igreja, logo no começo: “Para com Deus, você tem latria, que é adoração. Para com os santos, você tem dulia, que é veneração. E para com a Virgem Maria, você tem hyperdulia42, isto é, uma espécie de veneração suprema, que você não poderia ter para nenhum outro santo. Desde que os teólogos definiram isso, eles nunca conseguiram responder se isso que você tem em relação à Virgem Maria é semelhante à relação com Deus ou com os santos. Para com Cristo, você tem latria, porque Ele é Deus e isso é fácil de definir. Para com os santos, você tem veneração, o que também é fácil de entender: o santo é como um irmão mais velho ou um pai, mas você pode se tornar um igual a ele. Mas a hyper-dulia é dulia ou latria? Ninguém poderia dizer43. 41 42

A Vigem Maria [N.T.]. Conferir, por exemplo, http://www.newadvent.org/cathen/01151a.htm [N.T.].

43

Sobre a Virgem Maria, conferir o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, elaborado por Sua Santidade, o Papa Bento XVI: “94. «Concebido por obra do Espírito Santo...»: o que significa esta expressão? Significa que a Virgem Maria concebeu o Filho eterno no seu seio, por obra do Espírito Santo e sem a colaboração de homem: «O Espírito Santo descerá sobre ti» (Lc 1, 35), disse-lhe o Anjo na Anunciação. 95. «…Nascido da Virgem Maria»: porque é que Maria é verdadeiramente Mãe de Deus? Maria é verdadeiramente Mãe de Deus porque é a mãe de Jesus (Jo 2,1; 19,25). Com efeito, Aquele que foi concebido por obra do Espírito Santo e que se tornou verdadeiramente Filho de Maria é o Filho eterno de Deus Pai. É Ele mesmo Deus. 96. O que significa «Imaculada Conceição»? Deus escolheu gratuitamente Maria desde toda a eternidade para que fosse a Mãe de seu Filho: para cumprir tal missão, foi concebida imaculada. Isto significa que, pela graça de Deus e em previsão dos méritos de Jesus Cristo, Maria foi preservada do pecado original desde a sua concepção. 97. Como colabora Maria no desígnio divino da

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Aluno: Se chamasse de “sub-latria”, ficaria feio. Aluno: Lúcifer tinha suas razões para invejá-la. Professor: Sim. Em Lúcifer, evidentemente existe um componente de inteligência e, portanto, também existe no ser dele um componente de santidade, mas isso, que há na Virgem Maria, nele não tem. E foi isso que ele odiou no homem desde o começo. É isso que tem no ser humano, e que se realizou em uma mulher, que ele odiou desde o começo. E o que ele pensou? “Vou destruir a mulher44!”. Mas foi isso que pisou na serpente45.Ele odeia todos os nossos atributos humanos, mas o que ele odeia acima de tudo é isso: é uma espécie de unidade entre o homem e Deus da qual ele não pode participar e que a Virgem Maria manifesta na Terra e os outros seres humanos somente no Céu. Em um certo sentido, pode-se estabelecer um quaternário aqui entre Deus e o homem. a) Você tem o Deus-homem na Terra, que é o Cristo. b) E você tem um homem-Deus ou ser humano-Deus no Céu, que é a Virgem. Você tem a projeção de Deus na Terra, que é o Cristo. E você tem uma espécie de antecipação do homem no Céu, que é a Virgem. A Virgem, mais do salvação? Durante toda a sua existência, por graça de Deus, Maria conservou-se imune de todo o pecado pessoal. É a «cheia de graça» (Lc 1,28) e a «Toda Santa». Quando o Anjo lhe anuncia que dará à luz «o Filho do Altíssimo» (Lc 1,32), dá livremente o seu assentimento com a «obediência da fé» (Rm 1,5). Maria entrega-se totalmente à Pessoa e obra do seu Filho Jesus, abraçando com toda a alma a vontade divina de salvação. 98. Que significa a conceição virginal de Jesus? Significa que Jesus foi concebido no seio da Virgem apenas pelo poder do Espírito Santo, sem intervenção de homem. Ele é o Filho do Pai celeste, segundo a natureza divina, e Filho de Maria segundo a natureza humana, mas propriamente Filho de Deus nas suas naturezas, existindo nele uma única Pessoa, a divina. 99. Em que sentido Maria é «sempre Virgem»? No sentido de que Maria «permaneceu Virgem na concepção do seu Filho, Virgem no parto, Virgem grávida, Virgem mãe, Virgem perpétua» (Santo Agostinho). Portanto, quando os Evangelhos falam de «irmãos e irmãs de Jesus», trata-se de parentes próximos de Jesus, segundo uma expressão usual na Sagrada Escritura.” Do site do Vaticano: http://www.vatican.va/archive/compendium_ccc/documents/archive_2005_compendiumccc_po.html . Para a versão completa do Catecismo, elaborada pelo Servo de Deus João Paulo II, conferir http://www.vatican.va/archive/ccc/index_sp.htm [N.T.]. 44

Conferir Ap 12, 4: “Esse Dragão deteve-se diante da Mulher que estava para dar à luz, a fim de que, quando ela desse à luz, lhe devorasse o filho” em http://www.bibliacatolica.com.br/01/73/12.php [N.T.]. 45 Referência ao livro do Gênesis [N.T.].

39

que qualquer um, é essa inocência original da alma. E essa inocência é divina. É por isso que ela é simultaneamente Mãe da Humanidade46. Em um certo sentido, assim como se diz que o Cristo é a divindade que se encarnou, pode-se afirmar que a Virgem é a carne que se divinizou47 porque dela é a carne do Cristo e a carne dela se tornou divina48. Isso é expresso em um dito tradicional cristão: “A carne de Cristo é a carne de Maria”49. O que expressa um mistério da religião cristã. Ora, a carne de Cristo é divina; então a carne de Maria também é. Esse é o terceiro pensamento do Próspero. Esse é o pensamento dos santos no Paraíso acerca da morte deles. No Paraíso, o santo vê a própria morte porque esta já aconteceu e eles podem recordar-se dela. Mas os santos no Paraíso vêem a morte como realmente é. A gente vê a morte como algo pelo qual a gente ainda terá que passar. Será a boca do funil. Será o momento em que não terei mais escolha. Mas os santos vêem o contrário: “este é o momento em que se abriu, para mim, a liberdade divina50”. Para a gente, a morte é o momento em que se fecha a 46

Sendo chamada, também, de “Nova Eva”, como foi chamada no parágrafo 100 do Compêndio citado em nota acima: “100. De que modo é que a maternidade espiritual de Maria é universal? Maria tem um único Filho, Jesus, mas, n’Ele, a sua maternidade espiritual estende-se a todos os homens que Ele veio salvar. Obediente, ao lado do novo Adão, Jesus Cristo, a Virgem é a nova Eva, a verdadeira mãe dos vivos, que coopera com amor de mãe no seu nascimento e na sua formação na ordem da graça. Virgem e Mãe, Maria é a figura da Igreja e a sua realização mais perfeita”. [N.T.]. 47 Sendo o ser humano mais semelhante ao Cristo como foi cantado por Dante: “Maria Santíssima é o rosto que a Cristo mais se assemelha.” (Par. 32,29-30) [N.T.]. 48

O que é concedido participar pela Graça, segundo o Compêndio citado acima: “423. O que é a graça que justifica? A graça é o dom gratuito que Deus nos dá para nos tornar participantes da sua vida trinitária e capaz de agir por amor d’Ele. É chamada graça habitual ou santificante ou deificante, pois nos santifica e diviniza. É sobrenatural, porque depende inteiramente da iniciativa gratuita de Deus e ultrapassa as capacidades da inteligência e das forças do homem. Escapa, portanto, à nossa experiência.” [N.T.]. 49

Frase de Santo Agostinho. No original, em latim: “Caro Christi, Caro Mariae”. Conferir comentários do sevo de Deus João Paulo II (http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii//angelus/1993/documents/hf_jpii_ang_19930613_sp.html) e de Santo Afonso Maria de Ligório (http://www.intratext.com/IXT/ITASA0000/_P310.HTM) [N.T.]. 50 Esta linha de pensamento pode ser encontrada em santos que profetizaram sobre o que iria acontecer nas suas existências após a morte como Santa Teresa do Menino Jesus (que pediu para ser chamada de Santa Teresinha), Santa Maria Faustina e São Padre Pio (http://www.padrepio.catholicwebservices.com/PORTUGUES/PORTUGUES_index.htm ) [N.T.].

40

liberdade humana e, a partir do qual, não se pode escolher mais nada como ser humano. Para os santos no Paraíso, a morte é o momento a partir do qual ele pode mudar tudo como Deus [o faz]. Os santos no Paraíso passam a ser a própria atividade divina sobre o mundo. É por isso que universalmente se afirma que, após a morte, os santos se tornam muito mais poderosos para nos auxiliar51.

A VIRGEM MARIA E OS OUTROS SANTOS

Aluno: Os outros santos são como soldados rasos comparados à Virgem Maria. Professor: É impossível colocá-la no mesmo patamar que os outros santos. [Alunos comentam suas devoções com Nossa Senhora e com os outros santos.] Nos outros santos você pode experimentar uma maior identidade com o drama humano, pois pode-se observar a biografia deles e dizer: “Eu cometi esse e esse pecado, como você também fez”. Aluno: Por que pedir algo para outro santo? Pede logo para a Virgem Maria! Professor: Peço para outro santo porque ele é mais parecido comigo! É somente por isso. Aluno: Sou soberbo, peço apenas para a Virgem. Mas entendi: é mais fácil entender a situação de um outro santo que cometeu os pecados. Por outro lado, a Virgem tem algo de divino que dificulta a compreensão. Professor: Exatamente. Por um lado, nós temos uma atração essencial com a Virgem Maria, pois essa inocência original continua na nossa forma de existência, mas não a vivemos como Nossa Senhora viveu. E o fato dessa inocência estar em todos os seres humanos, santos ou pecadores, é muito reconfortante. Por outro lado, nós experimentamos todos os dias a nossa culpa. E 51

A exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo que, após a morte, tornou-se mais poderoso para nos ajudar, como Ele mesmo antecipou ao despedir-se de seus Santos Apóstolos. Conferir Jo 16, 4-31 em http://www.bibliacatolica.com.br/01/50/16.php [N.T.].

41

saber que os santos tinham essa mesma culpa e se libertaram dela também é reconfortante. Aluno: Reconfortante. Professor: A nossa afinidade com o princípio é com a Virgem Maria, mas a nossa afinidade concreta é com os santos. Então, são duas afinidades que nós temos o tempo todo. É reconfortante saber que São Pedro Apóstolo negou a Cristo três vezes e está lá! Aluno: São Paulo massacrou cristãos! Professor: E está lá! Aluno: Então nós também podemos ter esperança. Professor: Quando vejo a vida desses santos, posso pensar com fé e esperança: “È possível para mim!” Quando vejo a Virgem vejo que: “Foi para isso que fui feito. É para o Paraíso que fui feito.” A vida da Virgem52 não conta a história de um indivíduo ou o esquema universal das histórias individuais, ela conta a história da espécie. A vida de um santo conta o esquema fundamental e ideal das histórias individuais. Começa aqui no pecado e termina no Paraíso. “Essa é a minha história ou, pelo menos, eu quero que assim seja”. Mas a história da espécie humana começa no Paraíso e termina no Paraíso. Começa na experiência do Paraíso e termina na experiência do Paraíso. A Virgem nos reconforta porque nos faz perceber que o Paraíso sempre nos cerca. Em certo sentido, sair do Paraíso é uma expressão temporária. As vidas dos santos nos reconfortam porque percebemos que podemos chegar no Paraíso apesar de quase estar no inferno.

52

A qual também foi revelada misticamente para Santa Brígida, para a bem aventurada Ana Catarina Emerich (em quem Mel Gibson inspirou-se parcialmente no filme sobre A Paixão; conferir http://gesu.altervista.org/doc/emmerick/passione/passione.html; uma parte de suas visões já foi publicada no Brasil) e para a serva de Deus Maria de Jesus d’Agreda (conferir, por exemplo: http://gesu.altervista.org/doc/agreda/mc1/index.html ).

42

CONCLUSÃO SOBRE A AVE MARIA E O PAI NOSSO

Aluno: A oração da Ave Maria foi elaborada aos poucos. Foi obra humana? Professor: Em um certo sentido sim, mas, segundo a Tradição, a forma atua da Ave Maria foi revelada pela própria Virgem Maria a São Domingos. De novo: a oração do Pai Nosso é divina. A oração da Ave Maria? Não se pode dizer se é divina ou humana. Aluno: É mistério, de novo. Professor: Em um certo sentido, também se pode dizer: O Pai Nosso é divino e humano; a Ave Maria é humana e divina. O Pai Nosso é Deus como Ele é aqui na Terra. E a Ave Maria é o homem como ele é no Céu. Também se pode dizer que: Os pedidos do Pai Nosso referem-se aos atributos divinos dos quais o homem tem que participar. Enquanto os atributos da Virgem Maria na Ave Maria são os atributos humanos tais como eles são visíveis por Deus no Paraíso. Como Deus aparece para nós na Terra? Ou como nós precisamos que Deus apareça para nós na Terra? Isso está expresso nos sete pedidos do Pai Nosso. Nós pedimos que Deus apareça para nós em cada uma daquelas formas, como o ato de santificação do Nome e como está expresso em cada uma daquelas sete petições. Isso é como nós precisamos que Deus apareça para nós na Terra. E como nós aparecemos para Deus no Céu? Como é expresso pelos seis atributos da Virgem Maria. Em um certo sentido, é isso: o Pai Nosso é como nós precisamos ver Deus. E a Ave Maria é como Deus nos vê. Quando Deus se pergunta: “ O que é o homem?”, ele responde com a Ave Maria. Quando nós perguntamos: “O que é Deus?”, Deus responde com o Pai Nosso. Aluno: Está entendido. 43

EPÍLOGO

Aluno: Na próxima aula já começamos com o presente do Olavo? [Alunos discutem sobre o livro que será comentado na próxima aula, escolhendo “Os Gêneros Literários” e a “Dialética Simbólica”. Alunos elogiam a aula do professor e marcam a próxima aula para o último domingo do mês de maio53. Alunos retomam o tema da magia e segue-se uma discussão sobre o assunto na linha de pensamento apresentado acima54, alertando os alunos para que saibam que estas operações existem e para que não se espantem no caso de encontrar um mágico55.]

MILAGRE E MAGIA

Professor: Entre o milagre e a magia, existe uma diferença crucial no sujeito que testemunha. A finalidade da magia é fazer com que a testemunha dela se submeta à vontade do mago. O objetivo é subordinar a vontade do sujeito à vontade do mago. No milagre, o objetivo é ilustrar a inteligência do sujeito. O milagre existe para a gente compreender coisas sobre Deus que a gente não pode compreender observando apenas as coisas naturais. Por isso que, em certa ocasião, o Cristo recusou-se a fazer milagres. Basta olhar a natureza56 para perceber os sinais57. Em princípio, o milagre existe para complementar uma necessidade natural de compreender Deus. Uma necessidade que, em princípio, pode ser satisfeita pela mera natureza. E somente quando você realmente não

53

Por coincidência, mês consagrado à Santíssima Virgem Maria [N.T.]. O tema da magia na Tempestade foi explicado acima. E, como disse o professor Luiz: “Pela descrição teórica de uma operação mágica geralmente se perde completamente a vontade de praticar uma operação mágica” [N.T.]. 55 Segundo o professor Luiz: “Sobre magia, é importante saber que existe para que o sujeito não seja pego de surpresa. Sempre pode aparecer um mago e fazer uma magia, espantando-o para convencer de que aquele é o caminho. É bom que o sujeito saiba que existe para saber que a magia não é o caminho” [N.T.]. 56 Em sentido amplo [N.T.]. 57 Como foi expresso no primeiro capítulo da epístola de São Paulo aos Romanos (Rm 1, 20) [N.T.]. 54

44

consegue (pelo que acontece de natural na sua vida) entender Deus, neste caso é que Deus opera um milagre para que você possa entendê-Lo. É somente nessa ocasião. Aluno: Se Deus gostasse de milagres, faria o tempo todo. Professor: Deus gosta da natureza, por isso a faz todo dia do mesmo jeito. Em princípio, essa natureza é um instrumento suficiente para que você me entenda. E se você quiser muito e, de fato precisar, então Deus opera um milagre na sua vida. Mas Deus nunca opera um milagre apenas porque a gente quer um milagre. Deus somente opera um milagre quando a gente quer o próprio Deus e não consegue. [Aluno testemunha um milagre que recebeu, salvando a própria vida.] Professor: Neste caso, você queria estar mais próximo de Deus e, se a sua vida acabasse naquele momento, você não poderia aproximar-se dele. Então, Ele fez um milagre. Quando é assim, Ele faz um milagre, mas não faz apenas por amor aos milagres. Aluno: Deus não faz “show”. Professor: Exatamente. [Seguiu-se outra discussão, na qual o professor distinguiu magia e bruxaria58.]

SOBRE A COMPREENSÃO DO BEM E SOBRE O MAL

Professor: O mal é algo que o ser humano somente deve observar abstratamente, com os olhos da inteligência. Nunca se deve olhar o mal concretamente. Aluno: Precisamos ter 99 aulas sobre o bem e uma sobre o mal. 58

Segundo o professor Luiz: “Esta é feita deliberadamente para entregar um sujeito ao demônio, enquanto a magia é feita apenas para entregar o sujeito ao mago. O bruxo é um servo do diabo e tem compreensão disso. O bruxo é um sujeito que decidiu: ‘prefiro ser um senhor no inferno do que um servo no Paraíso. Acabou!’ É muito difícil que a gente realmente venha a conhecer um sujeito desses porque eles são cercados das piores pessoas possíveis como alguns grandes chefes do tráfico e algumas grandes mentes comunistas – somente pessoas muito ruins. Na África e no Haiti na China e na Rússia] teríamos mais chance de encontrá-los e é por isso que a situação lá está tão ruim. Quanto mais bruxos há em um lugar, mais parecido ele fica com o inferno” [N.T.].

45

Professor: Exatamente, porque somente entende-se o mal pela experiência oposta, isto é, pelo bem. Mas o bem não é entendido em função do mal. A inteligência humana é voltada para o bem. Mas, às vezes, nós nos tornamos mais capazes de apreciar o bem por termos passado por uma experiência má. Entretanto, no campo da compreensão é o contrário: somente compreende-se o mal, compreendendo o bem59. A repulsa ao mal, muitas vezes, é reforçada pela experiência do mal. Entretanto, a compreensão do mal é proporcional à compreensão do bem.

59

Para entender uma doença, por exemplo, o médico estuda primeiramente o que é a saúde [N.T.].

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