Amh 2005 O Direito Luso Brasileiro No Antigo Regime

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DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME

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António Manuel Hespanha

DIREITO LUSO-BRASILEIRO NO ANTIGO RÉGIME

F U N D A Ç Ã O

BOITEUX Florianópolis 2005

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© António Manuel Hespanha © da presente edição: Fundação José Arthur Boiteux (2005) Ficha Catalográfica B197h

Balthazar, Ubaldo Cesar História do Tributo no Brasil / Ubaldo Cesar Balthazar. – Florianópolis : Fundação Boiteux, 2005. 200p. Inclui bibliografia. ISBN: 85-87995-49-9 1. Direito tributário – Brasil – História. 2. Constituições – Brasil. 3. Impostos – Legislação. I. Título. CDU: 34:336.2 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

EDITORA FUNDAÇÃO BOITEUX

Presidente Vice-Presidente Secretário Tesoureiro Orador

Prof. Prof. Prof. Prof. Prof.

Orides Mezzaroba Mário Lange de S. Thiago Aires José Rover Ubaldo Cesar Balthazar Luiz Otávio Pimentel

Conselho Editorial

Prof. Prof. Prof. Prof. Prof. Prof. Prof. Prof.

Aires José Rover Antonio Carlos Wolkmer Arno Dal Ri Júnior José Rubens Morato Leite Mário Lange de S. Thiago Orides Mezzaroba Luis Carlos Cancellier de Olivo Luiz Otávio Pimentel

COLEÇÃO “ARQUEOLOGIA JURÍDICA” Cátedra Aberta da Fondazione Cassamarca Sob a direção de Arno Dal Ri Júnior Diagramação

Studio S Diagramação & Arte Visual (48) 3025-3070 – [email protected]

Capa

Fernando C. Santos Jr. sobre ilustração do pintor flamengo Van Rojmers-waelen

Revisão

Ana Lúcia Pereira do Amaral

Endereço

UFSC – CCJ – 1.º andar – Sala 110 Campus Universitário Trindade CEP 88040-900 Florianópolis, SC, Brasil Telefone: (48) 331-9655 / Fax: (48) 233-0390 E-mail: [email protected] Site: www.funjab.ufsc.br

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SUMÁRIO

PREFÁCIO - À PRESENTE EDIÇÃO BRASILEIRA ................................... 7 PARTE I Introdução ........................................................................................................ 17 1. Evolução recente da história institucional e política ........................... 17 2. Linhas de força da história institucional ................................................ 21 3. Este manual ................................................................................................. 23 PARTE II - O IMAGINÁRIO DA SOCIEDADE E DO PODER 1. A sociedade .................................................................................................. 29 2. As pessoas .................................................................................................... 41 3. As coisas e as situações reais no direito de Antigo Regime ................ 69 PARTE III - O DIREITO 1. O Direito ..................................................................................................... 109 PARTE IV - OS PODERES 1. A Família .................................................................................................... 2. A Igreja ....................................................................................................... 3. As comunidades ........................................................................................ 4. Os senhorios .............................................................................................. 5. A coroa ........................................................................................................

149 187 249 281 339

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 475

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PREFÁCIO À PRESENTE EDIÇÃO BRASILEIRA

A edição original deste livro data de há dez anos e, basicamente, reporta-se apenas ao “direito do reino”. Ambos os factos constituem limitações que o leitor deve ter muito em conta. Não estou, por outro lado, em condições de listar, aqui, as contribuições novas para a história institucional do Antigo Regime português. Em todo o caso, gostaria de ousar – cá de longe e com o diminuto acesso que conhecemos a informações actualizadas sobre a historiografia de uns e outros – acrescentar umas notas bibliográficas principais, também para literatura brasileira. Começo pelos fundamentos interpretativos. Passaram por duas décadas de prova, pois, de facto, nasceram – então como marginal e arriscada hipótese – com o meu livro (e tese de doutoramento – As vésperas do Leviathan [...], de 1976. O livro foi objecto de recensões 1 e foi tido em conta e analisado 1 Ius commune, 1990, 433-435 (R. Rowland); The Journal of Modern History, 63.4(1991) 801-802 (B. Clavero); The American Historical Review, 97.1(1992) 221-222 (C. A. Hanson); The journal of modern history, 67.(1995) 758-759 (Julius Kirchner); Latin American Review, 31.1(1996) 113-134; Ann. Econ. Soc. Civ., 46.2(1991) N° 2 (mars-avril) 1991, 502-505 (J. F. Schaub). 2 Jean-Frédéric Schaub, “La penisola iberica nei secoli XVI e XVII: la questione dello Stato”, Studi Storici, anno 36, gennaio-marzo 1995; Id., “ L’histoire politique sans I’état: mutations et reformulations”, Historia a debate, III, Santiago de

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em textos de contexto mais vasto 2 . Paolo Grossi publicou, entretanto, o seu livro de descrição global da ordem jurídica medieval, que, apesar de algum tom róseo, esclareceu a arquitectura geral desse sistema de poder 3 . Entretanto, uma análise político-jurídica centrada na dispersão do poder foi ganhando espaços, culminando por ser aplicada … mesmo à França 4 . Naturalmente, os espaços coloniais não ficaram de fora desta tendência para destacar a periferização do poder, eles que constituíam, justamente, as periferias mais periféricas. Esse é o sentido mais forte do texto que publiquei no livro dirigido por João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa, O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (sécs. XVI-XVIII), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001 5 . A própria produção teórica brasileira já abordara o tema, nomeadamente nos livros de

Compostela, 1993, 217-235; Id., “Le temps et l’État: vers un nouveau régime historiographique de l’ancien régime français”, Quad. fior. st. pens. giur. mod., 25(1996) 127-182 Angelo Torre, “Percorsi della pratica. 1966-1995”, Studi storici, 1995, 799-829 (mais crítico); Roberto Bizzochi, “Storia debile, storia forte”, Storia, 1996, 93-114 3 Paolo Grossi, L’ordine giuridico mediovavle, Bari, Laterza, 1995. 4 Jean-Frédéric Schaub, La France espagnole: Les racines hispaniques de l’absolutisme français, Paris, Seuil, 2003. 5 Cf. A. M. Hespanha, “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes”), 163-187; nesse volume, ainda, interessantes contribuições para uma nova história da administração colonial brasileira: Maria Hebe Mattos, “A escravidão moderna nos quadros do império português: o Antigo Regime em perspectiva Atlântica”, 141-161; Maria Fernanda Bicalho, “As câmaras e o governo do Imperio”, 189-221; Maria de Fátima Gouvêa, “Poder político e administração na afirmação do complexo atlântico português (1645-1809)”, 285-316; cf., também, sobre o tema, Pedro Cardim, “O governo e a administracão do Brasil sob os Habsburgo e os primeiros Bragança”, Hispania. Revista del Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Madrid, vol. LXIV/i, no 216 (Enero-Abril 2004) pp. 117-156.

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António Carlos Wolkmer 6 . A que eu juntaria, pelo parentesco entre direito periférico e direito informal, o estimulante estudo de Keith S. Rosenn, The Jeito: Brazil’s Institutional Bypass of the Formal Legal System and Its Developmental Implications7 . Nas descrições mais gerais da história do direito, destaco que saíram, entretanto, duas novas sínteses muito apreciáveis: em Portugal, uma nova edição, aumentada, de Nuno Espinosa Gomes da Silva 8 ; e, no Brasil, o livro de José Reinaldo de Lima Lopes, O direito na história. Lições introdutórias 9 . Ao passo que, na história da administração colonial brasileira, aparecem novidades como os trabalhos de Airton L. Seeländer, Cerqueira-Leite 10 , o livro de Arno Wehling e Maria José Wehling, Direito e Justiça no Brasil Colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808) 11 , o número monográfico dirigido por Maria Fernanda Bicalho (ed.), “Po-

6 WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma Nova Cultura do Direito. São Paulo, Alfa-Ômega, 1994; WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralidade Jurídica na América Luso-Hispânica “in” WOLKMER, Antonio Carlos (org.) Direito e Justiça na América Indígena: Da Conquista à Colonização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 75/93. 7 Em The American Journal of Comparative Law, Vol. 19, No. 3 (Summer, 1971), pp. 514-549; entretanto traduzido para português, no Brasil. 8 Nuno Espinosa Gomes da Silva, História do direito português, 3ª ed. revista e actualizada, Lisboa, Fundação Gulbenkian, 2000; 9 S. Paulo, Max Limonad, 2000. 1 0 Polizei, Ökonomie und Gesetzgebungslehre, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2003; Airton Seelander,. „A polícia e o rei-legislador: notas sobre algumas tendências da legislação portuguesa no antigo regime”, em Bittar, Eduardo C. (org). História do direito brasileiro: leituras da ordem jurídica nacional, São Paulo: Atlas, 2003 (uma colectânea significativa do “estado da arte” no Brasil.. 1 1 Renovar, 2004; cf. ainda Arno Wehling e Maria José Wehling, Cultura jurídica e julgados do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro: a lei da Boa Razão, in Maria Beatriz Nizza da Silva, Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz, Lisboa, Estampa, 1995.

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lítica e administração no mundo luso-brasileiro”, em Tempo, 7.14(2003), com artigos dos principais nomes no ramo; o livro de Laura Mello e Souza, Norma e Conflito: Aspectos da História de Minas no Século XVIII 12 e as actas de um congresso recente, organizado por Istvan Jancsó 13 . A não esquecer, o belo trabalho de Alberto Gallo, sobre uma especificidade do regime prático dos ofícios na colónia 14 . No domínio da história da terra, destaco os trabalhos de Márcia Motta, Nas Fronteiras do Poder. Conflito e Direito à Terra no Brasil do Século XIX

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; Lígia Osório Silva, Terras

devolutas e latifúndio. Efeitos da lei de 1850 16 , e Ricardo Marcelo Fonseca, “A lei de terras e o advento da propriedade moderna no Brasil” 17 . O mundo doméstico tem, no Brasil, uma referência indispensável, correspondendo à de Otto Brunner para a história do universo doméstico europeu: Gilberto Freyre. É uma personalidade intelectual e política controversa – talvez mais em Portugal do que no Brasil, pelo modo como se deixou comprometer com a última fase do colonialismo português; mas, no conjunto, é fascinante e de um indubitável para a compreensão do mundo de Antigo Regime e dos seus prolongamen-

1 2 Belo Horizonte, UFMG, 1999. 1 3 Istvan Jancsó (org.), Brasil: formação do Estado e da Nação, S.Paulo, Hucitec, 2003. 1 4 “La venalidad de oficios publicos en Brasil durante el siglo XVIII”, em Marco Bellingeri, Dinamicas de Antiguo Régimen y orden constitucional [...],Torino, Otto Editore, 2000. 1 5 Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro/Vício de Leitura, 1998. 1 6 Campinas, UNICAMP, 1998. 1 7 Em Anuário mexicano de historia del derecho, México: Vol. XVII, 2005, págs. 97/112.

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tos quase até aos nossos dias 18 . Por isso, muitos dos autores leitores de Freyre dizem muito sobre esta sociedade perdida. À parte estes, ultimamente, este mundo das sociabilidades domésticas e, ao mesmo tempo, eclesiais, é abordado por Laura de Mello e Souza, em Inferno Atlântico: demonologia e colonização, séculos XVI-XVII 19 ; enquanto que à escravatura nos ofereceram interessantes estudos com elementos para a história do direito, entre outros Alfredo Bosi, Dialética da Colonização 20 ; Hebe Maria de Castro Mattos, com o colorido livro Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil séc. XIX

21

; Id., Escravidão e Cidadania no Brasil

Monárquico 22 ; Keila Grinberg, Liberata – a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX 23 ; Id., O Fiador dos Brasileiros: Cidadania, Escravidão e Direito Civil no Tempo de Antonio Pereira Rebouças 24 ; Júnia Furtado, Chica da Silva e o contratador de diamantes. O outro lado do mito 25 ; Sílvia Lara (org.), Legislação sobre Escravos Africanos na América Portuguesa 26 ; Kátia M. de Queirós Mattoso, “A propósito de cartas de alforria. Bahia, 1779-1850” 27 , en1 8 Cf., por último, Joaquim Falcão e Rosa Maria Barboza de Araújo, O imperador das idéias. Gilberto Freyre em questão, Rio de Janeiro, Topbooks, 2000. 19 São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 20 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 21 Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995; que 22 Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999. 23 Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994. 24 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002 25 S. Paulo, Companhia das Letras, 2003. 26 Madrid, Fundación Histórica Tavera, 2000; sobre o mundo indígena e o directo, v., ainda, Tahís Luzia Colaço, “Incapacidade indígena”. Tutela religiosa e violação do direito guarani nas missões jesuíticas,Curitiba, Juruá Editora, 2000. 27 Em Anais de História, (4): 23-52, 1972

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tre uma muito rica bibliografia, em grande parte cobrindo já o século XIX 28 . O papel dos juristas na construção de um aparelho conceitual e legislativo compatível com a escravatura fica claro no livro de Eduardo Spiller Pena 29 . O livro de Raymundo Faoro. Os donos do poder 30 , com a atenção que deu ao papel dos juristas no sistema político de Antigo Regime, foi muito inspirador, tal como os livros de José Murillo de Carvalho 31 ou de Edmundo Campos Coelho 32 , esses já dedicados ao séc. XIX, mas evidenciando algumas continuidades relevantes no político papel dos juristas. Também a obra colectiva Optima pars. Elites ibero-americanas do Antigo Regime, org. por Nuno G. Monteiro, Pedro Cardim e Mafalda Soares da Cunha, Lisboa, ICS, 2005, traz contribuições portuguesas e brasileiras para um estudo integrado de mecanismos de poder, encarados, embora, do ponto do vista dos seus titulares, e não tanto dos seus mecanismos. Se a historiografia penal de Antigo Regime tem aparecido menos 33 , o mesmo já não se pode dizer da historiografia sobre as formas de resistência e revolta. Relembro o livro de 28 Cf. http://www.oah.org/meetings/2004/grinberg.html: State of the Field: Slavery. Slavery in Brazil: The Recent Historiography. Bibliography. Organized by Keila Grinberg.University of Rio de Janeiro 29 Eduardo Spiller Pena, Pajens da casa imperial. Jurisconsultos, escravatura e a lei de 1871, Campinas, Editora da UNICAMP, 2001. 30 7ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1987. 2 vols.. 31 I – A Construção da Ordem, II – Teatro de Sombras, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Relume Dumará, 1996 (notáveis). 32 As Profissões Imperiais: Advocacia, Medicina e Engenharia no Rio de Janeiro, 18221930. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999. 33 V., em todo o caso, p.s., Textos de história, Volume 6(1998), N° duplo: 1 e 2 (Degredo no império colonial português).

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Laura Mello e Souza, Norma e Conflito: Aspectos da História de Minas no Século XVIII , já citado, o livro de Carla M. J. Anastasia, Vassalos rebeldes. Violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII

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e a obra de Luciano

Figueiredo (Luciano R. de A.Figueiredo, Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na América Portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (1640-1761). Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da FFLCH da USP, 1996), com todo o interesse que subsequentemente vem levantando 35 . No domínio da inventariação e publicação de novas fontes relevantes para a história institucional e jurídica colonial, saliento o trabalho de Esther Bertoletti (responsável pelo Projecto “Resgate”, uma iniciativa exemplar do Governo brasileiro, integrada nas comemorações do Descobrimento) e Caio Boschi 36 . Chamo a atenção para a importância da documentação publicada, por exemplo, no Códice Matoso – Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso em 1749 37 .

34 Belo Horizonte: C/Arte, 1998. 35 Cf., ainda, Luciano R. de A. Figueiredo, “Protestos, revoltas e fiscalidade no Brasil Colonial”. LPH: Revista de História. 5 (1995): 56-87. 36 Que também tem estudos de história das missões com interesse para a a história jurídica. 37 Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999. Coleção Mineiriana, Série Obras de Referência. Coordenação geral Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos, estudo crítico Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, 2002. 1999.

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É com tudo isto, e com muito mais que aqui não fica registado, que este livro deve ser reconsiderado. De momento, deixo ao leitor mais essa tarefa 38 . Por fim, agradeço à Fundação José Arthur Boiteux e aos colegas Arno Dal Ri Júnior e Orides Mezzaroba a possibilidade que me ofereceram de publicar este livro no Brasil, onde ele era praticamente desconhecido. Lisboa, Junho 2005. António Manuel Hespanha

38 V. Laima Mesgravis, “A sociedade brasileira e a historiografia colonial”, em Marcos César de Freitas (org.), Historiografia brasileira em perspectiva, S. Paulo, Contexto, 2001.

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PARTE I

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INTRODUÇÃO

Objectivos da aprendizagem Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de: •

Explicar a autonomia da história institucional, que a distingue tanto da história social como da história pura do direito;



Identificar as actuais linhas de força da história institucional.

1. Evolução recente da história institucional e política A história institucional e política, concebida como história dos mecanismos de disciplina social, é uma das mais antigas disciplinas historiográficas especializadas da tradição cultural europeia. A história do direito, cultivada autonomamente desde o século XVI, pode ser considerada como um precursor seu, embora com um âmbito mais restrito, pois ocupava-se apenas do direito oficial e letrado39 . No entanto, o romantismo do século XIX, nomeadamente a Escola histórica alemã (C. F. von Savigny, 1779-1861), alarga decisivamente o objecto desta, ao conceber o direito como uma componente cultural que emanava do “espírito do povo” 39 Sobre estes conceitos, v., infra, III.

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(Volksgeist) e que incorpora, portanto, ao lado do direito estadual e da tradição jurídica letrada (Professorenrecht), o direito “popular” ou “vivido”. No início deste século, o sociologismo jurídico (F. Ehrlich, E. Durkheim) e o institucionalismo (Léon Duguit, Santi Romano)40 acentuaram ainda mais esta identificação do direito com os mecanismos de organização e de disciplina “espontâneos” (the law in action, por contraposição a the law in the books); daí que a historiografia jurídica influenciada por estas correntes se tenha ocupado de todas as manifestações de normação social, provindas ou não do Estado. Não eram, portanto, estas orientações metodológicas que mereceriam as críticas de formalismo que a primeira geração da Escola dos Annales dirigiu contra a história política e jurídica41 . Os destinatários destas críticas eram antes os historiadores do direito, que dominavam as faculdades jurídicas e que faziam uma história “estritamente jurídica”, dirigida unicamente para a descrição da evolução do direito oficial e letrado, dos seus aspectos legislativos e conceituais (ou “dogmáticos”) (Dogmengeschichte), não considerando, nem o contexto social destes, nem as múltiplas formas de organização e de constrangimento que não têm origem no poder oficial, nem abrigo no discurso letrado sobre o direito42 . 40 Sobre estas correntes, v. Wieacker, 1993, 645 ss.; Hespanha, 1986a. 41 Cf. Hespanha, 1984; Hespanha, 1986. 42 Outros autores, com diferentes parentelas metodológicas, tinham criticado a separação rígida entre a história do direito e a história social. É o caso de Otto Brunner, que denunciou a “ideia de separação” (Trennungsdenken) cultivada pela historiografia jurídica dominante. Sobre este autor, v. Hespanha, 1984, 33 ss.

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A crítica da Escola dos Annales era justa, se dirigida apenas contra quem a merecia. Mas acabou por ter efeitos excessivos e prejudiciais. Excessivos, por atingir, indistintamente, toda a historiografia do poder e das instituições, mesmo aquela que nunca tinha perdido de vista que, como instituição social, o direito não podia deixar de manter relações multifacetadas com a realidade social envolvente. Prejudiciais, porque levou os historiadores a deixarem, inconsideradamente, fora do seu campo de análise os fenómenos institucionais e jurídicos, como se estes não fossem senão consequências directas e imediatas dos fenómenos sociais. Paradigmático é o exemplo de F. Braudel que, na sua monumental obra sobre a bacia do Mediterrâneo (justamente uma área de enorme importância no plano das formas jurídicas43 ), ignora completamente os aspectos jurídicos e político-institucionais, com os quais, nomeadamente nessa época, a cultura jurídica meridional cunhou modelos mentais, institucionais e políticos que dominaram duradouramente a cultura e a sociedade europeias quase até aos nossos dias. O que quer dizer que nem se tratava de aspectos laterais e derivados, nem de meros événements conjunturais e passageiros. Como resultado, a perspectiva da história das instituições era ignorada, sendo as formas jurídicas, institucionais e políticas reduzidas a um “mero reflexo” da prática económico-social (“economicismo”), desprovidos de espessura e autonomia.

43 Cf., infra, III.

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Os anos 70 constituíram, neste domínio da história institucional e política, uma época decisiva de mudança. Vários factores podem ser relacionados com isto: -

Em primeiro lugar, o aparecimento de novas gerações de historiadores do direito – marcados pela influência do marxismo pós-gramsciano (A. Gramsci, G. della Volpe, L. Althusser, N. Poulantzas), mais atento à autonomia dos vários níveis da prática social, e pela primeira vaga dos Annales – favoreceu a superação, quer do formalismo da história jurídica tradicional, quer do reduccionismo economicista da historiografia marxista clássica.

-

Em segundo lugar, novas correntes da teoria política e sociológica (sobretudo, autores como L. Althusser, H. Marcuse, J. Habermas, M. Foucault, P. Bourdieu, N. Luhmann) sugeriram modelos teóricos mais matizados e produtivos para a conceptualização das relações entre o contexto social e as formas político-institucionais (nos seus níveis institucional, discursivo e ideológico).

-

Em terceiro lugar, a “crise do Estado”44 e os progressos da antropologia política e jurídica (Richard Abel, Boaventura Sousa Santos, Clifford Geertz45 ) fomenta-

44 Cf. R. Ruffili (ed.), Crisi dello Stato e storiografia contemporanea, Bolonha, 1979. Que pensar com coragem e desassombro é uma tarefa arriscada prova-o a trágica morte deste autor que, pela notoriedade que adquiriu como pensador político alternativo, foi, pouco depois, assassinado pelas Brigade rosse. 45 Cf. alguns textos principais em A. M. Hespanha (dir.), Justiça e Litigiosidade. História. e Prospectiva, Lisboa, Gulbenkian, 1994.

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ram uma consciência mais viva do carácter cultural, histórico, “local”, dos paradigmas políticos e jurídicos do primeiro mundo, dominados pelo “estatismo” e pelo “positivismo legalista”46 , e abriram a via para uma história institucional mais atenta à alteridade de outros modelos de organizar e de normalizar47 . -

Finalmente, as teorias do discurso desvendaram mecanismos muito subtis de condicionamento recíproco entre o contexto e o texto, mostrando como este não apenas tem capacidades genéticas autónomas (é, neste sentido, autocriador [“autopoiético”]), como pode criar e difundir modelos de apreensão do mundo que, nessa medida, influenciam as estratégias práticas dos agentes históricos48 .

2. Linhas de força da história institucional Passada a época dos manifestos49 , esta nova história institucional entrou numa fase de realizações, das quais se podem identificar as seguintes linhas de força50 : -

Reelaboração do conceito de direito e de instituições, no sentido de uma incorporação no objecto da história (e sociologia) das instituições, quer dos mecanismos “não ofi-

46 47 48 49

Cf., Hespanha, 1984,26 ss. Portanto, menos crono- e etnocêntrica. Para alguma informação suplementar, cf., infra, III. Sobre a problemática recente da história institucional, v. o importante conjunto de contributos em Grossi, 1986, e ainda, Hespanha, 1992. 50 Cf., também, Hespanha, 1986, 1986a e 1986b; Hespanha, 1992.

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ciais” e espontâneos de organização e de disciplina, quer de formas de controlo social que não funcionam segundo o modelo da interdição e da sanção (como o direito), mas segundo mecanismos “positivos” de condicionamento (como a amizade, a liberalidade, a graça51 , o amor ou os dispositivos de “política social”, típicos do Wellfare State)52 . -

Interesse pelos mecanismos de organização e disciplina sociais “vividos” ou “espontâneos”, e pelos sistemas simbólicos (frequentemente implícitos e impensados) que os geram. Nesta medida, as instituições interessam ao historiador, quer como formas de organização prática da vida social, quer como manifestações de modelos mentais de apreensão do mundo. Neste segundo aspecto, as instituições podem ser objecto de “interpretação profunda (ou densa)” (thick [or deep] interpretation, C. Geertz)53 e revelar um universo profundo de crenças que comanda a vida quotidiana de cada cultura (inclusivamente da cultura contemporânea)54 .

51 Cf. infra, IV.5.2. 52 Cf., sobre o tema, Hespanha, 1992a. 53 Por “interpretação densa” entende-se uma leitura das práticas humanas dirigida a identificar os sistemas simbólicos (de idéias, de valores) que lhes subjazem e nos termos dos quais elas ganham sentido para os próprios agentes. 54 Todo o capítulo II.1 não é senão uma identificação do impensado social que comandava a lógica institucional da sociedade de Antigo Regime. Também nos capítulos lI.2. e lI.3., procuraremos, nesta linha, explicitar, a partir da análise institucional, as concepções muito profundas que a cultura medieval e moderna tinha acerca do que era uma “pessoa” ou uma “coisa” e mostrar como este impensado se manifestava em consequências práticas, nomeadamente em consequências normativas. Também os caps. IV.1. e IV.2. arrancam da descrição do imaginário social subjacente à regulamentação da família e da Igreja, obtido por uma “interpretação densa” das instituições e conceitos do direito.

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Interesse pelo discurso jurídico, enquanto plano autónomo de análise. Quer enquanto ele institui modelos de apreender (juridicamente) o mundo e de agir (juridicamente) sobre ele (e, logo, dirige a prática55 ), quer enquanto ele resulta, ele mesmo, de práticas de produção específicas, dependentes de factores sociais gerais e locais, que condicionam os seus conteúdos56 .

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Realce do carácter alternativo (diferente) dos modelos institucionais, jurídicos e políticos do Antigo Regime, em termos tais que se toma ilegítimo aplicar à sua descrição e interpretação as categorias com que, hoje em dia, compreendemos a política e o direito57 .

3. Este manual Neste manual de história institucional tento partir para a descrição dos mecanismos institucionais concretos de uma descrição da sua lógica profunda. Como já antes referi, uma das mais fortes aquisições da história (da sociologia e da antropologia) dos nossos dias é a ideia de que por detrás dos actos da vida quotidiana existem constelações de representações, de imagens, de categorias, de sentimentos, por meio das quais apreendemos o mundo e com auxílio das

55 No capítulo sobre o direito penal (cf., infra, 4.5.2), mostraremos como os vários conceitos (“tipos”) de crimes constituem uma grelha para classificar as acções humanas, para estabelecer semelhanças e diferenças entre elas, e para lhes atribuir resultados punitivos. 56 Sobre este tipo de análise do discurso jurídico, cf. Hespanha, 1978. 57 Cf., sobre isto, Hespanha, 1984, 24 ss., e Hespanha, 1986b.

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quais organizamos a acção. Isto acontece também com essas formas organizativas mais permanentes que são as instituições. Por isso, se identificarmos esses quadros fundamentais da cognição e da sensibilidade, os detalhes da organização social ganham o seu sentido original, tomam-se “lógicos”, previsíveis, e o seu estudo toma-se, correspondentemente, mais fácil e, ao mesmo tempo, mais produtivo. Acresce que esses quadros, além de constituírem fenómenos de longa duração58 , são também entidades que não conhecem as fronteiras dos reinos, antes tendo vigência em amplas áreas culturais. Estes que aqui descrevemos valeram, no seu fundamental, para toda a Europa sul-ocidental. Por isso, deixa-se entender facilmente a partir deles a estrutura institucional básica dos reinos ibéricos, das unidades políticas italianas e, em parte, do reino de França. Mas, em virtude da expansão da tradição jurídica romanista por toda a Europa ocidental, a capacidade modeladora deste modelo político-institucional atinge a Alemanha, a Inglaterra, a Escócia e os países escandinavos59 . Este facto da vigência geograficamente alargada das matrizes jurídico-culturais que vamos estudar dispensa-nos de proceder a uma história comparativa das instituições. Como vamos lidar, basicamente, com os dados culturais que

58 Como se pode ver, por exemplo, nas categorias do imaginário social descritas no cap. II.1. 59 Aqui, no entanto, com algumas especialidades decorrentes da cultura da Reforma.

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estão na origem comum dos mecanismos jurídicos de toda a Europa central e ocidental, ficamos a dispor de uma chave, também comum, para entender os detalhes institucionais concretos que estes dados geraram nas conjunturas dos vários reinos. A partir daqui, o estudo das particularidades não apenas se toma mais fácil, como permite relacionar os desvios com particulares conjunturas culturais e políticas e, com isto, apreender o significado das diferenças. Os exemplos e as ilustrações apresentados são, assim, quase sempre os do reino de Portugal. Com o que se cumpre um segundo objectivo do manual, qual seja o de apresentar uma descrição precisa dos quadros institucionais portugueses, desde a organização da família até à organização do reino e da Igreja. Dentro das limitações impostas pela dimensão do manual, procurou-se mesmo abordar aspectos menos tratados, como o estado das pessoas (cap. II.2.), os direitos sobre as coisas (cap. II.3.) e o direito penal (cap. IV.5.2.). Procurei simplificar, quanto possível, o texto da exposição. Mas não fiz economia da linguagem técnica precisa, quando ela era indispensável. Por meio de notas e de referências bibliográficas procuro convidar todos a um trabalho criativo e crítico de continuação (ou de reconstrução) dos resultados aqui apresentados. Tenho a noção, que aqui confesso e assumo, de que, na sua linha geral, este manual vai ao arrepio da historiografia política e institucional mais corrente entre nós. Descontando embora tudo o que tudo tem de pessoal, abono-me, sobretu25

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do, na autoridade das fontes, a que constantemente recorro e que explicitamente cito. E também, porventura, numa nova maneira de as ler, explicável a partir do que acabei de dizer na curta introdução metodológica.

Bibliografia citada GROSSI, Paolo (dir.), Storia sociale e dimensione giuridica. Strumenti d’indagine e ipotesi di lavoro, Milano, Giuffre, 1986, 2 vols. HESPANHA, António Manuel, “O materialismo histórico na história do direito”, in A. M. Hespanha, A História do Direito na História Social, Lisboa, Livros Horizonte, 1978, pp. 9-69. HESPANHA, António Manuel, “Para uma teoria da história políticoinstitucional do Antigo Regime”, in A. M. Hespanha (dir.), Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime, Lisboa, Gulbenkian, 1984, pp. 7-90. HESPANHA, António Manuel, “A história das instituições e a ‘morte do Estado’”, in Anuario de filosofia del derecho, Madrid 1986a, pp. 191-227. HESPANHA, António Manuel, “Para uma nova história do direito?”, in Vértice, 470-472, 1986b, pp. 17-33. * HESPANHA, António Manuel, Poder e Instituições no Antigo Regime. Guia de estudo, Lisboa, Cosmos, 1992. * HESPANHA, António Manuel, “O poder, o direito e a justiça numa era de perplexidades” in Administração. Administração Pública de Macau (15) (1992a), pp. 7-21 (incluindo a versão chinesa). WIEACKER, Franz, História do Direito Privado Moderno (trad. port. Privatrechtsgeschichte der Neuzeit [...]), 1967, 2.ed., Lisboa, Gulbenkian, 1993.

Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com*.

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PARTE II

O IMAGINÁRIO DA SOCIEDADE E DO PODER

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1. A SOCIEDADE

Objectivos da aprendizagem Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de: •

Identificar os traços fundamentais da constituição política do Antigo Regime e derivá-los da ideia de corpo.



Identificar os traços fundamentais do imaginário absolutista e liberal e derivá-los da ideia de indivíduo, de vontade e de pacto.



Compreender as razões do carácter central da ideia de justiça no imaginário da sociedade de Antigo Regime.



Compreender a oposição fundamental entre razão e vontade, natureza e pacto, como fundamentos teóricos da sociabilidade política.

1.1 A concepção corporativa da sociedade O pensamento social e político medieval era dominado pela idéia da existência de uma ordem universal (cosmos), abrangendo os homens e as coisas, que orientava todas as criaturas para um objectivo último que o pensamento cristão identificava com o próprio Criador. Assim, tanto o mundo físico como o mundo humano não eram explicáveis sem a referência a esse fim que os transcendia, a

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esse telos, a essa causa final (para utilizar uma impressiva formulação da filosofia aristotélica); o que transformava o mundo na mera face visível de uma realidade mais global, natural e sobrenatural, cujo (re)conhecimento era indispensável como fundamento de qualquer proposta política. Por isso teve então tanto êxito um texto do Digesto que definia a prudência (= saber prático) do direito (que, então, desempenhava o papel de teoria política) como uma “ciência do justo e do injusto, baseada no conhecimento das coisas divinas e humanas” (divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia, D,I,1,10,2). A unidade dos objectivos da criação não exigia que as funções de cada uma das partes do todo na consecução dos objectivos globais da Criação fossem idênticas às das outras. Pelo contrário, o pensamento medieval sempre se manteve firmemente agarrado à ideia de que cada parte do todo cooperava de forma diferente na realização do destino cósmico. Por outras palavras, a unidade da Criação não comprometia, antes pressupunha, a especificidade e irredutibilidade dos objectivos de cada uma das “ordens da criação” e, dentro da espécie humana, de cada grupo ou corpo social. Ligada a esta, a ideia de indispensabilidade de todos os órgãos da sociedade e, logo, da impossibilidade de um poder político “simples”, “puro”, não partilhado. Tão monstruoso como um corpo que se reduzisse à cabeça, seria uma sociedade em que todo o poder estivesse concentrado no soberano. O poder era, por natureza, repartido; e, numa socie30

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dade bem governada, esta partilha natural deveria traduzirse na autonomia político-jurídica (iurisdictio) dos corpos sociais. A função da cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio propria, o funcionamento próprio de cada uma das partes do corpo), mas por um lado, a de representar externamente a unidade do corpo, e, por outro, a de manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a cada qual o seu estatuto (“foro”, “direito”, “privilégio”); numa palavra, realizando a justiça (iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum unique tribuendi, a justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu, D,I,1,1,10,1). E assim é que a realização da justiça – finalidade que os juristas e politólogos tardo-medievais e primo-modernos consideram como o primeiro ou até o único fim do poder político – se acaba por confundir com a manutenção da ordem social e política objectivamente estabelecida. Por outro lado, faz parte deste património doutrinal a ideia, já antes esboçada, de que cada corpo social, como cada órgão corporal, tem a sua própria função (officium), de modo que a cada corpo deve ser conferida a autonomia necessária para que a possa desempenhar. A esta ideia de autonomia funcional dos corpos anda ligada, como se vê, a ideia de autogoverno que o pensamento jurídico medieval designou por iurisdictio e na qual englobou o poder de fazer leis e estatutos (potestas lex ac statuta condendi), de constituir magistra-

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dos (potestas magistratus constituendi) e, de um modo mais geral, de julgar os conflitos (potestas ius dicendi) e de emitir comandos (potestas praeceptiva). Por fim, saliente-se a ideia do carácter natural da constituição social. Daqui decorre a natureza indisponível das leis fundamentais (“constituição”) de uma sociedade (de um reino), pois estas dependem tão pouco da vontade como a fisiologia do corpo humano ou a ordem da Natureza. É certo que soberano e vassalos podem temporariamente afastar-se das leis naturais de ordenação social, pela tirania ou pela revolução; mas o mau governo, contra o qual as próprias pedras clamarão, é sempre um episódio político passageiro. O que os povos já poderão eleger – embora de acordo, também, com características objectivas das várias nações, por sua vez ligadas às particularidades da terra e do clima – são as formas de governo: a monarquia, a aristocracia, a democracia ou qualquer forma de governo misto, proveniente do cruzamento destes regimes-tipo referidos por Aristóteles. Como podem explicitar e adaptar às condições de cada comunidade, através do direito civil (ius civile, i. e., do direito da cidade) os princípios jurídicos decorrentes da natureza das sociedades humanas (ius naturale60 ). Mas a constituição natural conserva-se sempre como um critério superior para aferir a legitimidade do direito estabelecido pelo poder, sendo tão vigente e positiva como este61 . 60 Cf., infra, III. 61 Cf., infra, IV.5.3.

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Nestes termos, o direito – todo ele, mas sobretudo o natural – desempenha uma função constitucional. Impõese a todo o poder. Não pode – ou, pelo menos, não deve – ser alterado. E isto porque se funda nos princípios necessários de toda a convivência humana (affectio societatis). E não porque se fundamente num pacto primitivo ou num pacto histórico estabelecido, por exemplo, em cortes, como supõem os historiadores que sobrevalorizam o “pactismo” medieval ou moderno62 . Em virtude desta função constitucional do direito, toda a actividade política aparece subsumida ao modelo “jurisdicionalista”. Ou seja, toda a actividade dos poderes superiores – ou mesmo do poder supremo – é tida como orientada para a resolução de um conflito entre esferas de interesses, conflito que o poder resolve “fazendo justiça”63 . Caso contrário, o governo será tirania (tyrania in exercitio), podendo (e devendo) ser objecto de resistência.

1.2 O paradigma individualista Embora se lhe possam encontrar antecedentes mais recuados (oposição entre estóicos e aristotélicos, entre agostinianismo e tomismo), a genealogia mais directa do paradigma individualista da sociedade e do poder deve buscar-se na escolástica franciscana quatrocentista [Duns Scotto (12661308), Guilherme d’Occam (1300-c. 1350)]. É com ela – e com

62 Cf. ibid. 63 Cf., infra, IV. 5.l. (“paradigmas de legitimação ...”).

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uma célebre querela filosófica, a questão “dos universais” – que se põe em dúvida se não é legítimo, na compreensão da sociedade, partir do indivíduo e não dos grupos. Na verdade, passou a entender-se que aqueles atributos ou qualidades (“universais”) que se predicam dos indivíduos (ser pater familias, ser escolar, ser plebeu) e que descrevem as relações sociais em que estes estão integrados não são qualidades incorporadas na sua essência, não são “coisas” sem a consideração das quais a sua natureza não pudesse ser integralmente apreendida – como queriam os “realistas”. Sendo antes meros “nomes”, externos à essência, e que, portanto, podem ser deixados de lado na consideração desta. Se o fizermos, obtemos uma série de indivíduos “nus”, incaracterísticos, intermutáveis, abstractos, “gerais”, iguais. Verdadeiros átomos de uma sociedade que, esquecidas as tais “qualidades” sociabilizadoras agora tornadas descartáveis, podia também ser esquecida pela teoria social e política. Esquecida a sociedade, i. e., o conjunto de vínculos interindividuais, o que ficava era o indivíduo, solto, isolado, despido dos seus atributos sociais. Estava quase criado, por esta discussão aparentemente tão abstracta, um modelo intelectual que iria presidir a toda a reflexão social durante, pelo menos, os dois últimos séculos – o indivíduo, abstracto e igual. Ao mesmo tempo que desapareciam do proscénio as pessoas concretas, ligadas essencialmente umas às outras por vínculos naturais; e, com elas, desapareciam os grupos e a sociedade.

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Para se completar a revolução intelectual da teoria política moderna só faltava desligar a sociedade de qualquer realidade metafísica, laicizando a teoria social e libertando o indivíduo de quaisquer limitações transcendentes. Essa revolução levou-a a cabo um novo entendimento das relações entre o Criador e as criaturas. A teologia tomista, sobretudo através da “teoria das causas segundas” – ao insistir na relativa autonomia e estabilidade da ordem da Criação (das “causas segundas”) em relação ao Criador, a “causa primeira” – garantira uma certa autonomia da Natureza em face da Graça e, consequentemente, do saber temporal em face da fé. Mas foi, paradoxalmente, uma recaída no fideísmo, na concepção de uma completa dependência do homem e do mundo em relação à vontade absoluta e livre de Deus que levou a uma plena laicização da teoria social. Se Deus se move por “impulsos” (teoria do impetus, de raiz estóica), se os seus desígnios são insondáveis, não resta outro remédio senão tentar compreender (racionalmente ou por observação empírica) a ordem do mundo nas suas manifestações puramente externas, como se Deus não existisse, separando rigorosamente as verdades da fé das aquisições intelectuais. É justamente esta laicização da teoria social – levada a cabo pelo pensamento jurídico e político desde Hugo Grócio (1583-1645) e Tomas Hobbes (1588-1679) que a liberta de todas as anteriores hipotecas à teologia moral, do mesmo passo que liberta os indivíduos de todos os vínculos em relação a outra coisa que não sejam as suas evidências racionais e os seus impulsos naturais. 35

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Esta laicização da teoria social e a colocação no seu centro do indivíduo, geral, igual, livre e sujeito a impulsos naturais, tem consequências centrais para a compreensão do poder. A partir daqui, este não pode mais ser tido como fundado numa ordem objectiva das coisas; vai ser concebido como fundado na vontade. Numa ou noutra de duas perspectivas. Ou na vontade soberana de Deus, manifestada na Terra, também soberanamente, pelo seu lugar-tenente – o príncipe (providencialismo, direito divino dos reis). Ou pela vontade dos homens que, levados ou pelos perigos e insegurança da sociedade natural, ou pelo desejo de maximizar a felicidade e o bem-estar, instituem, por um acordo de vontades, por um pacto, a sociedade civil (contratualismo). A vontade (e não um equilíbrio – ratio – preestabelecido) é, também, a origem do direito. Guilherme d’Occam descrevera-o, ou como o que Deus estabeleceu nas Escrituras, ou como o que decorre racionalmente de algum pacto. E, laicizada a teoria jurídica, Rousseau definirá a lei como “une déclaration publique et solemnelle de la volonté, générale sur un objet d’interêt commun” (Lettres écrites de la Montagne, I,6). Perante este voluntarismo cedem todas as limitações decorrentes de uma ordem superior à vontade (ordem natural ou sobrenatural). A constituição e o direito tornam-se disponíveis e a sua legitimidade não pode ser questionada em nome de algum critério normativo de mais alta hierarquia. Daqui se extrai (na perspectiva providencialista) que Deus pode enviar tiranos para governar os homens (pecadores, duros), aos quais 36

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estes devem, apesar de tudo, obedecer. Extrai-se também que as leis fundamentais, como todos os pactos, são disponíveis, i. e., factíveis e alteráveis pelos homens, num dado momento histórico. E, finalmente, que todo o direito positivo, bem como todas as convenções, enquanto produto directo ou indirecto de pactos, são justos (“positivismo jurídico”)64 . Para além destes pontos comuns, o paradigma individualista e voluntarista na concepção da sociedade e do poder desdobra-se em certas correntes típicas. Por um lado, no providencialismo, que concebe o poder como produto da livre vontade de Deus, exercitada na terra pelas dinastias reinantes, que assim eram revestidas de uma dignidade quase sagrada. Por outro lado, no contratualismo absolutista, que concebe o pacto social como transferindo definitivamente para os governantes todos os poderes dos cidadãos. Esgotando-se os direitos naturais naqueles transferidos e não se reconhecendo outra fonte válida de obrigações (nomeadamente, a religião), o soberano ficava, então, livre de qualquer sujeição (não ser a de manter a forma geral e abstracta dos comandos, o que distinguiria o seu governo da arbitrariedade do governo despótico). Por fim, neste quadro apenas sinóptico, o contratualismo liberal, para o qual o conteúdo do contrato social estaria limitado pela natureza mesma dos seus 64 Note-se, no entanto, que a ideia de um pacto na origem das sociedades civis não era estranha à teoria política tradicional. Só que, como vimos, este pacto apenas definia a forma de governo (que Aristóteles considerara mutável); não já constituição política fundamental. E mesmo aquela, uma vez estabelecida, consolidava-se em direitos adquiridos (iura radicata) impossíveis de alterar.

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objectivos – instaurar uma ordem social e política maximizadora dos instintos hedonistas dos homens, pelo que os direitos naturais permaneceriam eficazes mesmo depois de instaurada a sociedade civil65 .

1.3 Orientação bibliográfica As obras de base para a história do pensamento político-social moderno são as seguintes: para os séculos XVI e XVII, Albuquerque, 1978, 1968, 1974; Torgal, 1981. Dispensam, em geral, a consulta de autores anteriores. Para o século XVIII, Moncada, 1949; Langhans, 1957; Dias, 1982; Pereira, 1982; 1983. Perspectivas novas para a história do pensamento político nesta época foram abertas por Curto, 1988. Síntese, Xavier, 1993. A descrição dos grandes paradigmas do pensamento político moderno, desde as suas origens medievais, estão magistralmente expostos por Villey, 1961; 1968 (com o que se pode, em grande parte, dispensar a leitura de clássicos como Otto v. Gierke ou Émile Lousse). A leitura de Wieacker, 1980 (ou, mais recente e especificamente, de Stolleis, 1988), também se aconselha, pela atenção dedicada aos pensadores políticos centro-europeus, tão influentes entre nós na segunda metade do século XVIII.

65 Sobre estas correntes, com bibliografia suplementar, Xavier, 1993, 127. Sobre as escolas do pensamento político moderno, Ibid., 127 ss.

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Bibliografia citada ALBUQUERQUE, Martim de, O Pensamento Político no Renascimento Português, Lisboa, ISCSPU, 1968. ALBUQUERQUE, Martim de, A Sombra de Maquiavel e a Ética Tradicional Portuguesa, Lisboa, Inst. Hist. Infante D. Henrique, 1974. ALBUQUERQUE, Martim de, Jean Bodin na Península Ibérica. Ensaio de História das Ideias Políticas e de Direito Público, Lisboa, Centro Cultural de Paris, 1978. ANDRADE, Alberto Banha de, Vemey e a Cultura do Seu Tempo, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1966. * CURTO, Diogo Ramada, O Discurso Político em Portugal (1600-1650), Lisboa, Universidade Aberta, 1988. DIAS, José S. da Silva, “Pombalismo e teoria política”, in Cultura. História e Filosofia, (1982), pp. 45-114. * MONCADA, Luís Cabral de, “Origens do moderno direito português. Época do individualismo filosófico e crítico”, in Estudos de História do Direito, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1949 pp. 55-178. * MELO (Freire), José Pascoal de, Institutiones iuris civilis lusitani, Ulysipone, 1789. LANGHANS, Franz-Paul de Almeida, “História das instituições de direito público. Fundamentos jurídicos da monarquia portuguesa”, in Estudos de Direito, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1957, pp. 225-356. PEREIRA, José Esteves, “A polémica do ‘Novo Código’”, in Cultura. História e Filosofia, 1(1982), p. 289 ss. PEREIRA, José Esteves, O Pensamento Político em Portugal no Século XVIII. António Ribeiro dos Santos, Lisboa, INCM, 1983. SAMPAIO, Francisco C. de Sousa, Prelecções de Direito Pátrio, Público e particular, Lisboa, 1793. SANTOS, António Ribeiro dos, Notas ao plano do Novo Código de direito Publico de Portugal [...], Coimbra, Imp. Univ., 1844.

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SILVA, Nuno Espinosa Gomes da, História do Direito Português. Fontes de Direito, Lisboa, Gulbenkian, 1991. STOLLEIS, Michael, Geschichte des öffentlichen Recht in Deutschland, voI. I Reichspublizisti und Policeywissenschaft, 1600-1800, München, C. H. Beck, 1988. TORGAL, Luís Reis, Ideologia Política e Teoria doEstado na Restauração, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981-1982,2 vols. VILLEY, Michel, Cours d’histoire de la philosophie du droit, Paris, 1961-1964. VILLEY, Michel, La formation de la pensée juridique moderne, Paris, 1968. WIEACKER, Franz, História do Direito Privado Moderno, Lisboa, Gulbenkian. * XAVIER, Ângela Barreto, & HESPANHA A. M., “A representação da sociedade e do poder”, in História de Portugal, voI. IV “O Antigo Regime”, dir. A. M. Hespanha, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 121-145.

Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com *.

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2. AS PESSOAS

Objectivos da aprendizagem Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de: •

Explicar o carácter histórico e cultural (por oposição a “natural”) de conceitos como o de “pessoa” ou de “identidade pessoal”;



Identificar pessoas “artificiais”;



Explicar o significado central dos conceitos de “pessoa” e de “estado” (por oposição a “indivíduo”) no imaginário jurídico e político do Antigo Regime;



Definir alguns “estados” da sociedade de Antigo Regime – nobres, clérigos, peões, escravos, estrangeiros, mulheres, menores –, bem como os traços fundamentais da sua situação jurídica e política.

2.1 “Estados” e “pessoas” O Código Civil português de 1867 abre com a enfática declaração de que “Só o homem é susceptível de direitos e obrigações. Nisto consiste a sua capacidade jurídica, ou a sua personalidade” (artigo 1.°). Este artigo resume a imagem que, hoje em dia, temos do universo dos sujeitos de direitos.

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Para o nosso imaginário jurídico (e político), todos os homens, mas exclusivamente eles66 , podem ser titulares de direitos e de obrigações. Embora, vistas mais em detalhe, as coisas, mesmo hoje, não sejam assim tão lineares67 , pode dizer-se que o universo dos actores no palco do direito e da política corresponde fundamentalmente ao universo dos actores no palco da vida quotidiana, tal como ela nos é dada pelo senso comum. Os suportes dos direitos e das obrigações são aqueles mesmos com que nos cruzamos na rua e que consideramos como pessoas. Por outro lado, todas as pessoas jurídicas são iguais e cada uma delas, uma e uma só. A antropologia jurídica, política (e moral) dos dias de hoje assenta fortemente nesta ideia da igualdade e da unidade das pessoas, reagindo contra todas as formas de discriminação entre elas ou de desagregação da sua identidade pessoal68 . Para o direito romano, e também para a tradição do direito comum, em contrapartida, o universo dos titulares de direito não era um universo de pessoas, no sentido que o senso comum dá (e já então dava) à palavra, mas de “estados” (status).

66 Tomamos, aqui, a palavra “homem” no seu sentido (politicamente incorrecto...) genérico, abrangendo homens, mulheres e, como diriam os juristas antigos, ... hermafroditas e eunucos. 67 Nomeadamente, porque há sujeitos de direito que não são homens, no sentido natural da palavra (v. g., as chamadas “pessoas jurídicas” ou “pessoas colectivas”, ou, ainda, os nascituros, para não falar dos “direitos dos animais”). 68 A esquizofrenia é uma doença; a duplicidade, um defeito moral; o uso de várias identidades pessoais, um crime.

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Ao criar o mundo, Deus criara a Ordem. E a Ordem consiste justamente numa unidade simbiótica; numa trama articulada de relações mútuas entre entidades, pelas quais umas dependem, de diversos modos e reciprocamente, de outras. Neste sentido, todas elas, sem distinção de inteligentes ou brutos, de seres animados ou inanimados, disponibilizam “utilidades” e se propõem colher estas, exercendo as “faculdades” de gozo inerentes à sua situação, ao seu “estado”. Por outras palavras, todas têm direitos e deveres umas em relação às outras. A natureza desses deveres e obrigações depende da posição de cada entidade (status) na ordem do mundo, sendo alheia à circunstância de disporem ou não de entendimento, de serem pessoas, no sentido mais corrente da palavra. O que fica dito já dá para entender que, ao tratar dos sujeitos da política ou do direito, o ponto de partida não há-de ser constituído pelas pessoas (i.e., os seres dotados de identidade física e racional), mas pelas condições (status, “estados”), ou seja, pelas posições relativas que as criaturas ocupam na ordem ou ordens da Criação de que fazem parte. E, assim, o status é definido como “a condição ou qualidade [das pessoas, mas usando agora a expressão num sentido que já não corresponde ao do senso comum] que faz com que alguém [ou alguma coisa] seja membro de alguma sociedade [ou organismo] e tenha comunicação com o seu direito [ou norma de organização]” (Wolfgang Adam Lauterbach, 1688)69 . 69 Cit. por Coing, 1985, I, 168. As interpolações que fizemos ao texto destinam-se a evitar uma sua leitura banalizadora, reduzindo-o às evidências de hoje.

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Esta diferente concepção do universo dos titulares de direitos tem uma dupla consequência. Por um lado, não permite uma rigorosa distinção entre sujeitos e objectos do direito, decalcada, nomeadamente, na distinção entre “pessoas” – dotadas do uso da razão, a quem caberiam, em exclusivo, os direitos e as obrigações70 – e “coisas” – privadas de capacidade racional e que ocupariam, também exclusivamente, a posição de objectos desses direitos e dessas obrigações. Pelo contrário. Direitos e obrigações podem competir, indistintamente, a homens e a outras entidades que não têm (ou já não têm) essa qualidade. Podem competir, desde logo, a seres sobrenaturais, como Deus, que, nesta medida é titular de direitos juridicamente protegidos71 tanto do domínio civil como do penal, embora o exercício e a defesa destes estejam cometidos aos seus vigários na terra (o Papa, a Igreja, os reis72 ). Também os santos e os anjos podem ser titulares de situações jurídicas, como a propriedade de bens ou a titularidade de cargos. Conhecido é o exemplo de Santo António, titular de um posto de oficial num regimento algarvio, com os correspondentes direitos, nomeadamente o de receber a sua paga. Titular de direitos podia ser, ainda, a alma (de pessoa morta), a quem 70 Realçando esta identificação entre os sujeitos de direito e os homens, e criticando a anterior “personificação” de seres irracionais, v. Ferreira, 1870, comentário ao art.o. 1.°.; cf. também, Pascoal de Melo, 1789, II, 1, 1.1 e 2. 71 Sobre o domínio de Deus sobre as coisas, v. Soto 1556, 1. IV, q. 2, art. 2. 72 Como estes não exercem direitos próprios, mas direitos de outrem, este exercício está vinculado por normas estritas destinadas a salvaguardar que os direitos são efectivamente exercidos no sentido querido pelo seu titular.

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se faziam frequentemente deixas73 . Quando Álvaro Valasco74 considerou “incivilis et ridicula” a decisão de alguns tribunais de aceitar a nomeação da própria alma para as segunda e terceira vida de um prazo “de vidas”75 , o que o chocava não era que a alma pudesse ser enfiteuta, mas que, sendo ela imortal, se prejudicasse o senhorio, pois este nunca poderia recuperar o prédio. Só neste sentido ela era, neste caso, uma “persona minus idonea” (ibid., n. 6). Personificados eram, ainda, embora só para os sujeitar a penas, os animais. São conhecidas muitas histórias de punição de animais76 . Dias Ferreira, que escrevia na década de 60 do século passado, ainda lembrava que, sendo juiz em Alfândega da Fé, tinha posto fim a um processo intentado pelo seu antecessor contra um boi que quebrara um braço a um homem77 . Mesmo as coisas inanimadas podiam ser titulares de direitos. Assim, um prédio podia ser titular de direitos de servidão, a prestar ou por outros prédios (servidões reais) ou por pessoas (servidões pessoais, como a adscrição, vinculação de certas pessoas a trabalhar certo prédio). Claro

73 Por exemplo, de rendas com as quais se pagassem missas pela sua salvação. A instituição da alma como herdeiro foi proibida pela L. 9.9.1769; cf. alvo 20.5.1796. 74 Valasco, 1588, cans. 193, n. 1 ss. 75 Sobre este instituto, v. infra, II.3. 76 Com os quais se tivessem relações sexuais (bestialidade) ou responsáveis por danos; sobre as acções de pauperie e noxal, utilizáveis no último destes casos, v. Coing, 1985, 117; Pascoal de Melo, 1789 [Inst. iur. crim.], 1. 7, 8 (não estavam em uso em Portugal). 77 Ferreira, 1870, I, 6. Só a reforma judiciária de 1832 teria posto fim a estas práticas. Sobre a punição dos danos causados por animais, V. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado pratico das avaliações e dos danos, § 36.

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que o exercício ou a reivindicação destes direitos competia a uma pessoa. Mas esta era designada pela especial situação (status, de propriedade, de administração) que o ligava à coisa. Só a identificação do direito com a liberdade e a razão, obra do racionalismo moderno78 , excluirá que seres desprovidos de inteligência possam ser titulares de direitos79 . Desprovidos, também, de qualquer substrato físico, no sentido daquele que o senso comum exige para que se possa falar de pessoa, estavam outros titulares de direitos, como o nascituro ou o defunto. O nascituro, além de ter direitos pessoais protegidos (pela punição do aborto)80 , era também titular de direitos patrimoniais, como o direito a alimentos81 e à protecção das suas expectativas sucessórias, situação a que se reportava o dito romano “nasciturus pro jam natus habetur, quoties de commodo ejus agitur”, o nascituro temse por já nascido em tudo o que diga respeito aos seus interesses)82 . Quanto ao defunto, além de ser passível de punição83 , ele era titular de direitos protegidos penalmente, como o direito à honra, o direito a sepultura e à integridade do cadáver84 , mas ainda de direitos patrimoniais. Uns e outros

78 Cf. infra, II.3. 79 Cf. Soto, 1556, IV, q. I, sect. 2, p. 283. 80 Sobre a punição do aborto no direito moderno, v. Pascoal de Melo, 1789 [Inst. iur. crim.], 9, 14 (no nosso direito não era expressamente punido; cf., em todo o caso, Ord. fil., I, 73,4; v. 35); Sousa, 1816; Carneiro, 1851,67. 81 Sobre o curador do ventre (de mulher prenha), v. Lobão, 1828, II, tit. 12, sec. IV. 82 Cf. Carneiro, 1851, I, 65 ss. 83 Privação de sepultura, infâmia, censuras eclesiásticas, Carneiro, 1851,67, n. 11 ss. 84 Cf. Carneiro, 1851, I, 67, n. 11 ss.; Sousa, 1816, 2,2,1,1, § 6.

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eram actuados ou pelo príncipe (em Portugal por meio do curador dos defuntos e ausentes85 , ou pela punição penal pública das ofensas feitas aos seus restos mortais) ou pelos herdeiros86 . Em qualquer dos casos, o verdadeiro titular dos direitos era o defunto, de que o herdeiro, mais do que representante, era a mesma pessoa87 , assumindo as próprias características e qualidades, mesmo psíquicas, do falecido. Assim, por exemplo, ‘ele respondia por disposições psíquicas pessoalíssimas do de cuius, como a sua ignorância, o seu dolo ou a sua má fé 88 . Esta sub-rogação na pessoa do defunto abrangia mesmo o sexo; e, por isso, uma herdeira podia exercer, nessa qualidade, direitos exclusivos de homens. Finalmente, são também “personificados” (personae vice fungitur, D., 49,1,22) conjuntos de pessoas, “pessoas colectivas”, “corporações”, como as Iuniversitates, collegia ou corpora89 ,90 , ou conjuntos de bens, como a herança, o fisco, as piae causae (hospitais, montes de piedade), as capelas e os morgados91 . Mas a concepção do universo dos titulares de direitos como um universo de “estados” (status) autoriza, ainda, a “personalização” de estados diferentes mesmo que coinci-

85 Cf. Lobão, 1828, II, XII, sec. 1. 86 Ou curador da herança, no caso de não haver herdeiro; cf. Lobão, 1828, II, 12, sec. 2. 87 “Haeres reputantur eadem persona defuncti” (o herdeiro reputa-se a mesma pessoa do defunto), Amara1, 1610, v. “Haeres”, n. 22 e 23. 88 Cf. Amara1, 1610, ns. 24 ss. 89 Cf. Coing, 1985, I, 167-168. 90 Para o regime das sociedades, em Portugal, cf. Gi1issen, 1988, p. 776. 91 Sobre isto, v. Coing, 1985, I,266-268.

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dam na mesma pessoa. Daí que seja considerado como um facto natural que a um homem correspondam, do ponto de vista do direito, várias personificações, vários corpos, vários “estados”. Como escreve Manuel Álvares Pegas92 , “nem é novo, nem contrário aos termos da razão, que um e o mesmo homem, sob diferentes aspectos, use de direitos diferentes”. O exemplo teológico deste desdobramento da personalidade era o do mistério da Santíssima Trindade, em que três pessoas distintas coexistiam numa só verdadeira. Mas o mesmo acontecia com o exemplo, bem conhecido, dos “dois corpos do rei”. Na mesma pessoa física do rei coexistiam a sua “pessoa privada” e a sua “pessoa pública”. Ou ainda mais, como, v. g., se o rei fosse, como era em Portugal, grão-mestre das ordens militares; ou Duque de Bragança; neste caso, já era possível distinguir nele quatro pessoas, “cada qual retendo e conservando a sua natureza e qualidades, devendo ser consideradas como independentes umas das outras”93 . Em face desta multiplicidade de estados, a materialidade física e psicológica dos homens desaparece. A pessoa deixa de corresponder a um substrato físico, passando a constituir o ente que o direito cria para cada faceta, situação ou estado em que um indivíduo se lhe apresenta. A veste tornou-se corpo; o hábito tomou-se monge. “Pessoa – escreve ainda o tradicional Lobão94 – é o homem considerado como em certo

92 Pegas, 1669, XI, ad 2, 35, cap. 265, n. 21. 93 Cf. Pegas, 1669, ibid. 94 Lobão, 1828, II, tit. I, § 1.

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estado”, ou seja, considerado sob o ponto de vista de certa qualidade “conforme a qual [...] goza de direitos diversos dos que gozam outros homens” (ibid.). Então, se são as qualidades, e não os seus suportes corporais-biológicos, que contam como sujeitos de direitos e obrigações, estes podem multiplicar-se, encamando e dando vida jurídica autónoma a cada situação ou veste em que os homens se relacionem uns com os outros. A sociedade, para o direito, enche-se de uma pletora infinita de pessoas, na qual se espelha e reverbera, ao ritmo das suas multifomes relações mútuas, o mundo, esse finito, dos homens. A mobilidade dos estados em relação aos suportes físicos é tal que se admite a continuidade ou identidade de uma pessoa, mesmo que mude a identidade do indivíduo físico que a suporta. É, como vimos, o caso da pessoa do defunto que, depois da morte, incarna no herdeiro; mas, também o caso do pai, que incarna nos filhos, mantendo a sua identidade pessoal 95 -96 . Nestes casos, a realidade jurídica decisiva, a verdadeira pessoa jurídica, é esse estado, permanente, e não os indivíduos, transitórios, que lhe dão momentaneamente uma face97 . Tal é a sociedade de estados (Stãndesgesellschaft),

95 “O pai e o filho são uma e a mesma pessoa pelo que respeita ao direito civil”, Valasco, 1588, cons. 126, n. 12. 96 A relação entre estado e indivíduo chega a aparecer invertida, atribuindo-se ao primeiro a eficácia de conformar o aspecto físico do segundo; diz-se, por exemplo, que o estado de escravidão destrói a fisionomia e majestade do homem (cf. Carneiro, 1851, 69, nota a). 97 Cf., neste sentido, Clavero, 1986, maxime, 36.

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característica de Antigo Regime, que antecede a actual sociedade de indivíduos. No entanto, nem uma tal abundância de pessoas garante – por isso mesmo que a relação entre pessoa jurídica e indivíduo empírico não é necessária – que todos os homens sejam dotados desta capacidade de gozo de direitos. E, na verdade, há pessoas que, por serem desprovidas de qualidades juridicamente atendíveis, não têm qualquer status e, logo, são desprovidas de personalidade. Tal é o caso dos escravos98 .

2.2 Os “estados” na sociedade de Antigo Regime Nesta multiplicidade de estados, sob os quais os indivíduos se apresentam e dos quais decorrem os seus direitos e obrigações, introduziram os juristas alguma ordem, tipificando alguns que, pelo seu carácter mais genérico, podiam ser geralmente assumidos pelos indivíduos. Alguns estavam ligados à própria natureza, enquanto esta capacitava ou incapacitava os indivíduos para assumirem certos papéis nas relações sociais e, assim, condicionava as situações sociais, políticas e jurídicas em que estes se podiam colocar. É o que se passa com o sexo (homens, mulheres), a idade (infantes, impúberes, menores, maiores), a perfeição psíquica (insanidade mental, prodigalidade) ou física (mudez, surdez). 98 “Quem quer que não tenha nenhum destes estados [civil, de cidadania ou familiar, status civilis, civitatis, familiae] é tido, segundo o direito romano, não como pessoa, mas como coisa”, escreve Vulteius, 1727 (cit. por Coing, 1985, 170).

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Outros estados tinham sido introduzidos pelo direito civil. Recolhendo uma sistematização que vinha do direito romano, os juristas distinguiam entre o estado de liberdade (status libertatis), perante o qual os homens se classificavam em livres e escravos; o estado civil (status civitatis), que os distinguiam em cidadãos, peregrinos e estrangeiros e, dentro da primeira categoria, em patrícios (ou nobres), clérigos e plebe; e o estado de família (status familiae), que distinguia pai, cônjuge, filhos, parentes e criados. Mas estas classificações não esgotavam a variedade enorme de estados que podiam ocorrer na República99 .

2.2.1 Nobres; clérigos e peões Uma das classificações mais em evidência na sociedade de Antigo Regime era aquela que repartia os homens em três estados, correspondentes a três grandes funções sociais: clero, nobreza e povo (Ord. af, I, 63, pr.: “[...] defensores são um dos três estados que Deus quis per que se mantivesse o mundo, ca assi como os que rogam pelo povo chamam oradores, e aos que lavram a terra, per que os homens hão de viver e se mantêm são ditos mantenedores, e os que hão de defender são chamados defensores.”). Mas, mesmo deste ponto de vista das funções sociais, a estrutura estatutária era muito mais complicada na sociedade moderna.

99 “Os estados vulgares são infinitos”, escreve Lobão, 1828, II, tit. 1, § 1; outros que podem ser considerados são os de ausente, cativo, miserável, infame, indigno, solteiro, casado, viúvo, etc.

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Desde logo, tende-se a distinguir, dentro do povo, os estados “limpos” (como o dos letrados, lavradores, militares) dos estados “vis” (como os oficiais mecânicos ou artesãos). É este o sentido da classificação de um jurista seiscentista português, Melchior Febo (século XVII) – “triplicem in nobilitate statum, alterum nobilem, mechanicum, artiumque sedentarium alterum, ultimum privilegiatorum, qui militiae, vel arte a sordida muneribus eximantur” [no que respeita à nobreza (secular), existem três estados: um o nobre, outro o mecânico e artesão, o último o dos privilegiados que, pela milícia ou pela arte se libertam das profissões sórdidas]. Também progressivamente, este estado popular intermédio entre a nobreza e as profissões vis – “estado do meio”, “privilegiados”, “nobreza simples” – vai sendo assimilado à nobreza e, no seio desta, vai-se constituindo um novo conceito diferenciador, o de “fidalguia”, ou mesmo, mais tarde e por influência espanhola, o de “grandeza”100 -101 . Esta extensão do estado da nobreza102 – e sua consequente pulverização por classificações suplementares – fica manifesta ao ler tratados da época sobre a natureza do estado nobre103 . Aí, recolhendo classificações anteriores (Aristóteles, 100 Cf. Monteiro, 1993. 101 Jorge de Cabedo (séc. XVI/XVII) – “A XXV de Abril de 1687 foi determinado em Relação que era escuso de paguar oytavo do vinho um cirurgião examinado e que se provava ter quartão na estrebaria, porque o foral não diz que quem não for nobre não pague oitavo, mas diz que o pião pague oitavo; porque no primeiro caso era necessário provar nobreza ... e no segundo caso basta provar que não pião”. 102 Cf. Hespanha 1989, 274 ss. 103 V. g. Carvalho 1634 (ed. cons. 1746); Pascoal de Melo, 1789 [Inst. iur. civ.], II, 3; Lobão ] 828, 56.

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Bártolo) e adaptando-as a antigas classificações das fontes portuguesas, distingue-se nobreza “natural” e nobreza “política” (ibid., n. 200 ss.). Na primeira, incluem-se o príncipe, os nobres “ilustres” (correspondentes aos titulares e “fidalgos de solar”; cf. Ord.fil.,V,92; V, 120); os nobres matriculados nos livros da nobreza (“fidalgos rasos”; cf. Ord. fil., II,11,9; I,48,15; III,29; III,59,15; V,120); os nobres por fama imemorial (Ord. fil., II,11,7-8); aqueles cujo pai era nobre (Ord. fil., V,92). Neste caso, a pertença ao estatuto decorre da natureza das coisas e prova-se pelos diversos modos de manifestação da tradição (desde a prática de actos que competem aos nobres até à “fama comum e firme”, ibid., n. 209 ss.), eventualmente ratificada por acto jurídico formal (como a sentença). Como natural, esta nobreza é também generativa, ou seja, transmissível por geração. Já a nobreza “política” decorre, não da natureza mas de normas de direito positivo, dos costumes da cidade (n. 264 ss.). Deste tipo é a nobreza que se obtém pela ciência(1), pela milícia(2), pelo exercício de certos ofícios(3), pelo privilégio e pelo decurso do tempo104 . Também o estado do clero105 se estende progressivamente, embora em muito menor grau do que o da nobreza.

104 A regra, nesta matéria, seria a de que têm nobreza “aqueles que se comportam como nobres, andando a cavalo, adquirem o estado intermédio de nobreza (n. 457: Ord. fil., IV, 92, I). Mas admite, além disso, os “ricos adquirem nobreza, independentemente de andarem a cavalo, desde que vivam honestamente e não se ocupem de ofícios mecânicos” (n. 459); o mesmo aconteceria com os que estão inscritos nas confrarias das misericórdias (n. 460) e os mercadores com negócio superior a 100 000 réis (n. 466: Ord. fil.,I,90 e v.138). 105 V. infra, lV.2.

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Para além dos clérigos de ordens maiores, gozavam do estatuto eclesiástico clérigos de ordens menores (tonsurados e de hábito, servindo ofícios eclesiásticos106 : (Ord. fil., II, 1,4; II, 1,27)107 ; os cavaleiros das ordens militares de Cristo, Santiago e Avis (Ord.fil., II,12), desde que tivessem comenda ou tença de que se mantivessem; ou os cavaleiros da Ordem de Malta (L. 18.9.1602 e 6.12.1612). Mas, para além disto, não poucos leigos, desde que tivessem alguma relação com os anteriores. Assim, gozavam de alguma parte do estatuto clerical (nomeadamente em matéria de foro) os escravos e os criados dos Cavaleiros de Malta108 ; os oblatos da mesma Ordem, vivendo sob obediência109 , os familiares e criados dos coleitores apostólicos, desde que não exerçam ofícios mecânicos110 ; os “frades leigos” e os noviços111 . E, mesmo no “estado do povo” muitos são os privilégios – de certas categoria profissionais, dos cidadãos de certa terra, das mulheres, dos anciãos, dos lavradores, das amas, dos rendeiros de rendas reais, dos criadores de cavalos – que eximem ao estado comum112 . 106 Exceptuam-se os donatos da Ordem de Malta e membros de certas ordens menores (Ord. fil., II, 2), como a Ordem Terceira de S. Francisco ou confratenidades do mesmo tipo, bem como os eremitas e penitentes (Pegas, 1669, t. 8, p. 322, n. 2). 107 Cf. Pegas, 1669,t. 8, p. 281, n. 3 ss. 108 Cf. Lei da Reformação da Justiça 6.12.1612, n. 6. Comentário, Cabral, 1739, 107 ss.; Pegas, 1669, t. 8, p. 3 315, n. 3. Era controverso se este regime se aplicava aos colonos e enfiteutas (Pegas, ibid., n. 19). E não se aplicava aos escravos ou criados de outras ordens. 109 Lei da Reformação da Justiça, n. 12. 110 Ibid., n. 8. 111 Ibid., ns. 14 e 15. 112 V. Hespanha, 1989,279 ss.

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Esta multiplicação dos estados privilegiados (i. e., com um estatuto jurídico-político particular) prossegue incessantemente, cada grupo tentando obter o reconhecimento de um estatuto diferenciador, cujo conteúdo tanto podia ter reflexos de natureza político-institucional113 ou, mesmo, económica (v. g., isenções fiscais), como aspectos jurídicos (v. g., regime especial de prova, prisão domiciliária) ou meramente simbólicos (v. g., precedências, fórmulas de tratamento). Com tudo isto, o que se verifica é a progressiva separação entre “estado” e as funções sociais tradicionais. Nobres são cada vez menos os apenas “defensores” (militares), ao mesmo tempo que, com o aparecimento de exércitos profissionais e massificados, muitos militares não são nobres. Uma extensão do conceito de consilium (que, inicialmente, era apenas o consilium feudal, apanágio dos nobres do séquito real) permite nobilitar os conselheiros plebeus, nomeadamente os letrados. E mesmo a riqueza – que originariamente era fundamentalmente indiferente do ponto de vista da nobreza – já é considerada nobilitante a partir do século XVI(4). Ou seja, a progressiva diferenciação social obriga a um redesenho das taxinomias sociais, embora se conserve fundamentalmente, como matriz geral de classifi-

113 V. g., interdições profissionais (como a dos cristãos-novos poderem ser admitidos a certos cargos ou “ler no Paço”; como a dos clérigos poderem ser notários; como a dos nobres poderem exercer ofícios vis); desigualdade do direito (v. g., Ord. fil., v. 120); preferência em (ou reserva absoluta de) cargos políticos (v. g., exercício de “cargos da governança” em certas terras).

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cação, o antigo esquema trinitário, a que, de resto, correspondia a representação do reino nas cortes. Saliente-se que a classificação social continua a ser entendida como decorrente da natureza das coisas – da transmissão familiar, de uma constituição que se plasma na tradição. E que, embora o direito feudal medieval incluísse nos direitos do rei (regalia) o poder de conceder armas e brasões (para além dos senhorios das terras e dos títulos correspondentes), a nobreza é entendida como uma virtude essencialmente natural, quer essa natureza seja uma disposição familiar, transmissível pelo sangue, para servir nobremente, quer seja a reputação ou fama que objectivamente decorre do exercício de certas funções sociais. Inovações drásticas nesta ordem natural introduzidas pelo arbítrio régio (privilégio real) são sempre mal recebidas, pelo menos até ao momento em que, subvertida a concepção corporativa e substituída por uma matriz voluntarista, se comece a ligar o estatuto das pessoas – como, em geral, a constituição política – a um acto de vontade soberana. Para além destes, outros estados merecem aqui destaque.

2.2.2 Livres e escravos Sobre a questão da liberdade dos homens, os juristas encontravam pontos de apoio contraditório na tradição literária (cf. infra, III) que frequentavam. Logo no início do Digesto, a célebre “lei” libertas (D., I, 5,4) afinava enfaticamente o carácter natural da liberdade e 56

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a origem já “artificial” (de direito das gentes) da escravatura114 . O texto seguinte dava como origens da escravatura ou o nascimento de mãe escrava, um acto de venda de si mesmo ou o cativeiro na guerra. Mas um texto não menos célebre, este de Aristóteles (Política, I, 4, 1259a), relacionava a escravatura com uma divisão natural dos homens, uns intelectualmente mais aptos, outros menos inteligentes e incapazes de se dirigirem a si mesmos. A tradição medieval e primo-moderna tendia para a opinião de que a liberdade era natural. Caída em desuso a venda de si mesmo (in mancipio seipsum dare)(5), mantinhamse como causa da escravatura, ou o nascimento de mãe escrava 115 , ou o cativeiro na guerra, exigindo-se agora que esta seja justa(6)116 . Todavia, a expansão europeia, sobretudo na América e no Extremo Oriente, vem colocar a delicada questão de justificar a redução à escravatura de povos contra os quais os europeus só dificilmente poderiam justificar a guerra. É neste con-

114 “A liberdade é a faculdade natural daquele que pode fazer aquilo que quiser, a não ser que seja impedido pela força ou pelo direito. A escravatura é uma criação do direito das gentes, pela qual alguém está, contra a natureza, sujeito a outrem”. 115 Em obediência ao príncipio de que o filho segue a condição da mãe (partus sequitur ventrem). Sobre a justificação deste princípio, que não apenas contradizia o favor libertatis, mas ainda a ideia do carácter mais eficiente da paternidade do que da maternidade (cf. infra, IV.I.), v. Fragoso, 1640, III, p. 618, n. 11 (como o dono suporta o risco de vida em que incorre a escrava ao dar à luz, é justo que tire também os benefícios correspondentes, adquirindo a propriedade do filho!). 116 Cf. Fragoso, 1640, III, lib. 10, disp. 21 e 22. e literatura aí citada, nomeadamente, Azpilcueta Navarro, Luís de Molina e Femando Rebelo.

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texto que se recupera a ideia aristotélica de uma servidão natural117 . Concretamente, Domingo de Soto reconhece que, tal como, dentro de uma cidade, ou até de uma família, há pessoas rudes que, consequentemente, carecem de capacidade para se dirigirem a si mesmos, também no orbe existem nações “que nasceram para servir” e que, portanto, se devem “subjugar pela força e submeter à ordem aqueles que, como feras, andam errantes e sem nenhum respeito pelas leis do pacto [de convivência política], invadindo o alheio por onde quer que passem” (De iustitia et iure, 1. IV, qu. II, a. II)(7). Nos séculos XVI e XVII, a escravatura foi uma instituição muito difundida em Portugal118 . Apesar de alguns juristas tratarem do regime das relações entre senhores e escravos119 , não deixa de surpreender um certo silêncio sobre o tema. Que se explica, seguramente, pelo facto de tal regime cair dentro da discricionariedade da gestão doméstica, cometida ao pater familias (cf. infra, IV.l). Com o advento do racionalismo iluminista, no século XVIII, a ideia da unidade do género humano ganha uma nova força. O direito, como a cultura em geral, é percorrido por uma vaga de universalismo que, neste domínio do estatuto jurídico e político dos povos exóticos, promove o igualitarismo jurídico e a aplicação geral e abstracta das leis e das soluções políticas. 117 Sobre isto, V. Anthony Pagden, The fall of the natural man and the origins of comparative ethnology, Cambridge, 1982. 118 Em contrapartida, considerava-se que o direito pátrio (cf. Ord. fil., IV, 42) extinguira os servos adscritícios; V. Fragoso, 1640, m, p. 615 s.; Pascoal de Melo, 11, I, 13. 119 Cf. Fragoso, 1640, m, p. 621 ss.; Pascoal de Melo, 11, til. 1.

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Este movimento tem várias faces. Uma delas é a tendência para a abolição das manifestações de sujeição dos não europeus aos europeus. Daí decorre o movimento antiesclavagista, que, em Portugal, encontra as primeiras manifestações legislativas ainda no período pombalino (leis de 6 e 7.6.1755 1 alv. 8.5.1750, proibindo o cativeiro de índios do Brasil120 ; alv. 16.1.1775, concedendo a liberdade a todos os filhos de escravos nascidos em Portugal; lei de 19.9.1761 e alv. 7.1.1767, proibindo o tráfico de escravos para o Reino)121 .

2.2.3 Naturais e estrangeiros O direito português de Antigo Regime sobre a qualidade de “natural”, de “vizinho” e de estrangeiro estava contido nos tits. 55 e 56 do liv. II das Ord. Fil.122 . Vigorava, neste domínio, um princípio do ius sanguinis123 , embora mitigado com algumas regras decorrentes do princípio, oposto, do ius soli124 . Era natural do reino o filho de pai português, nascido no reino. O filho de estrangeiro (ainda que a mãe fosse portuguesa), embora nascido no reino, não adquiria a naturalidade portuguesa, a não ser que o pai aqui residisse há mais 120 No que respeita aos índios do Brasil, a tradição legislativa contrária à escravidão é bastante antiga (cf. leis de 20.3.1570; 11.9.1595; 5.6.1605; 30.7.1609; 10.9.1611; 9.4.1655; 1.4.1680; 14.10. 1751). 121 Sobre a situação, no início do séc. XIX, v. Pascoal de Melo, II, til. 1; Carneiro, 1851, 101 ss. 122 Que não tinham correspondência nas anteriores, pelo que, antes, se aplicavam as regras do direito comum (cf. Gilissen, 1988,547 ss.). 123 Isto é, de que a qualidade de natural ou de estrangeiro era determinada pelo estatuto do pai. 124 Isto é, de que a qualidade de natural ou de estrangeiro era determinada pelo lugar do nascimento.

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de dez anos. Em contrapartida, o filho de português nascido no estrangeiro era, em princípio, estrangeiro (cf. Ord. fil., II, 55). A doutrina entendia que o baptismo equivalia ao nascimento, o que naturalizava os convertidos no reino. A naturalização (e desnaturalização) eram regalia reservadas ao rei (Portugal, 1673, II, c. 15). Relacionada com a questão da distinção entre nacionais e estrangeiros estava a do direito aplicável às relações em que participassem estrangeiros. O direito em vigor em Portugal (e nas suas conquistas) era, em princípio, o direito português, tal como estava contido nas Ordenações, legislação real e doutrina vigentes no reino. No entanto, este princípio não levava a uma pura e simples aplicação territorial do direito do reino; i. e., a uma aplicação genérica do direito português nos territórios sujeitos à monarquia, quaisquer que fossem os sujeitos da relação jurídica, a origem e natureza desta ou o seu objecto. Pois entravam aqui em funcionamento as normas de direito internacional privado, que regulavam os critérios pelos quais se decidia a aplicação do direito de um reino (ou de uma cidade) naquelas questões que tocassem mais do que uma ordem jurídica. Neste plano, Portugal adoptava os princípios da teoria estatutária, desenvolvida pelos juristas europeus a partir do século XIII125 . Segundo a teoria estatutária126 , a lei só se apli125 Cf. Coing, 1985, I, 137 ss. 126 Cujo texto de arranque era C. 1,1,1, Cunctos populos ...: “Queremos que todos os povos, regidos pelo império da nossa clemência [...]”.

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ca, em princípio, aos súbditos. Este princípio, que contrariava uma prática anterior de aplicar territorialmente as leis e os estatutos, conhecia, todavia, limitações, inspiradas por soluções casuísticas contidas nos textos romanos, bem como por razões de equidade. Assim, os contratos e testamentos reger-se-iam pela lei do local da sua celebração (lex actus); o processo, pela lei do foro (lex fori); o estatuto pessoal, pela lei do interessado; a situação jurídica de imóveis, pela lei da sua localização (lex rei sitae); os actos exprimindo o poder político (v. g., punição, fiscalidade, administração, etc.) estavam sujeitos à legislação territorial. Estas soluções podem ser compendiadas na fórmula de que o alcance de aplicação das normas está ligado ao alcance do poder de quem as edita: assim, no caso de bens imóveis, coincide com o território; no caso de pessoas, coincide com o universo dos súbditos127 . Nestes termos, o direito português tinha uma aplicação, em princípio, pessoal – aplicava-se a todos os naturais residentes no reino128 . Daí que estivessem, em princípio, excluídos do âmbito de aplicação do direito português os factos relativos ao estatuto pessoal de estrangeiros (como eram as populações indígenas dos territórios dominados), que, assim, se continuavam a regular pelos seus direitos pessoais. Estas regras valiam mesmo em relação aos povos sujeitos manu

127 Cf. Coing, 1985, I, 138 ss. 128 Por “Reino”, entendia-se o território europeu e as suas adjacências, bem como os territórios sujeitos (“Conquistas” dominationes); Pascoal de Melo, 1789, II,2,2, in fine.

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militari ou até aos cativos, pois estes não eram considerados escravos (Melo Freire, 1789,I,9,7). Este princípio da personalidade da aplicação do direito (ou da prevalência do “critério do sangue”, ius sanguinis) combinava-se, porém, com um outro que decorria de pontos de vista que aproximavam a questão da vigência do direito da questão do âmbito do poder político (jurisdição) do príncipe. Para esta perspectiva, a questão de qual o direito que regula uma relação jurídica não era decidida em função do estatuto pessoal dos seus sujeitos, mas sim em função da jurisdição (do poder político) sob a qual tal relação se desenvolvia. Este segundo ponto de vista tomava-se dominante sempre que a questão sub judice estivesse particularmente relacionada com a afirmação do poder do príncipe (ou com um interesse geral da república), como no caso das questões penais, administrativas, de polícia, processuais e fiscais, nas quais o direito do príncipe devia ter uma aplicação territorial, independente do estatuto pessoal dos intervenientes. O mesmo acontecia quando as questões tivessem um carácter mais real do que pessoal, como no caso de relações jurídicas sobre coisas imóveis, que deviam ser regidas pelo direito de localização da coisa (lex rei sitae). Ou em relação aos negócios praticados no país. Em qualquer destes casos, não eram reconhecidas aos estrangeiros as prerrogativas jurídicas do seu estatuto (de não naturais), sendo antes considerados como “súbditos territoriais” (Melo Freire, II,2, 11)129 . 129 Sobre o direito dos estrangeiros, cf., ainda, Carneiro, 1851, I, 82.

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No entanto, mesmo com estas restrições, os estrangeiros domiciliados eram tratados com generosidade, podendo exercer quase todos os direitos civis, incluindo o direito de propriedade sobre imóveis e a capacidade sucessória activa e passiva130 . Mas já o princípio do indigenato, que reservava os ofícios, benefícios, bens da coroa e comendas para os naturais, era recebido e tido, mesmo nos finais do Antigo Regime, como um dos poucos direitos dos súbditos em relação ao príncipe131 . De resto, vigoravam os preceitos dos acordos e tratados com os países de origem, tendo muitas comunidades estrangeiras as suas conservatórias (juízes privativos), garantidas por tratado132 . No domínio jurisdicional, também os estrangeiros estavam sujeitos aos tribunais portugueses, salvo quando existisse tratado pelo qual eles gozassem de privilégio de foro133 .

2.2.4 Homens e mulheres No direito português de Antigo Regime, a mulher gozava de um estatuto especial, decorrente daquilo que se pensava ser a sua natureza (imbecillitas sexus, inconstantia animi, rectitudo judicii, verecundia et honestas). Assim, a mulher não podia ser presa por dívidas (Ord.fil., II, 31,4; Ord.fil., 130 Em vários países da Europa, o príncipe era o sucessor dos estrangeiros (droit d’aubaine; cf. Gilissen, 1988, 511); sobre os direitos dos residentes, Pascoal de Melo, 1789,II 2, I. 131 Cf. Pegas, 1669, XI, ad 2,35, in princ., capo 4, n. 5; Portugal, 1673, II, c. 29, n. 156. 132 Cf. Thomaz, 1843, s.v., “conservatórias”. 133 Sendo então julgados pelo conservador da sua Nação (Carneiro, 1851,86 s.).

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IV, 76, ult); não podia estar em juízo senão por intermédio do seu procurador (Ord. fil., III, 47; Ord. fil., v. 124, 16); não ficava, em princípio, obrigada pela fiança dada a favor de outrem (privilégio “Velleiano”, Ord. fil., IV, 61), estava ferida de incapacidades sucessórias (v. g., nos bens da coroa (cf. infra, IV.A)134 , gozava de algum favor na aplicação das penas. No entanto, a organização corporativa não excluía as mulheres, reservando-lhes mesmo uma lei de 8.11.1785 o comércio de certos géneros. No domínio dos ofícios, vigorava o princípio, de origem romana (D., 50, 17,2) de que as mulheres não deviam ser admitidas aos cargos da república, embora se entendesse que podiam exercer a jurisdição inerente a certa dignidade (desde logo, à dignidade régia, de que não estavam excluídas pelas leis fundamentais)135 . No caso das mulheres casadas, o estatuto de mulher combinava-se com o de esposa. Na verdade, era ao marido que cabia exclusivamente a patria potestas. Mais tarde, a partir de meados do século XVIII, embora se admita que, por direito natural, à mãe competia também uma quota do poder sobre os filhos, continua a ser entendimento pacífico que esta só o podia exercer na falta do pai. Por outro lado, a mulher está, ela mesma, sujeita ao poder marital, ao abrigo

134 Sendo ainda habituais cláusulas de masculinidade nas regras sucessórias dos morgados e dos prazos; cf. Fragoso, 1640, III, 347, n. 6; 356 ss.; 506, n. 1; 540, n. 11; 603, n. 4. 135 Sobre o exercício de jurisdição eclesiástica, v. infra, IV.2.

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do qual o marido a pode: (i) castigar moderadamente (não a podia matar ou ferir, Ord. fil., v. 36, 1); (ii) matar, no caso de surpreender em adultério (bem como ao adúltero, Ord.fil., v. 25 s.; Ord.fil., v.38, pr.). Quanto aos bens, além de ser obrigada a sustentar o marido, mesmo pelas forças dos seus bens próprios, estava privada da administração dos bens do casal, que cabe sempre ao marido (Ord.fil., IV, 48; 60; 64; 66), embora com algumas limitações quanto aos poderes de disposição (v. g., de imóveis ou de bens valiosos).

2.2.5 Menores e maiores Quanto à capacidade em razão da idade, o direito estabelece várias gradações: os impúberes, incapazes de qualquer acto; os púberes minimi, maiores de 14 ou de 12 anos, consoante fossem rapazes ou raparigas, capazes de testar (Ord. fil., IV, 81, 3) e de casar; os púberes pleni (maiores de 21 ou 18 anos, capazes de se obrigarem (Ord.fil., III, 41; Ord.fil., IV, 102-103); finalmente, os maiores de 25 anos, aptos para o gozo e exercício de todos os direitos, nomeadamente o de aceder aos ofícios públicos (Ord. fil., I, 94, pr.). A maioridade podia ser concedida por graça régia, processada pelo Desembargo do Paço, aos púberes (emancipação)136 .

136 Sobre os filhos de família, v. infra, IV. 1.

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Bibliografia citada AMARAL, Antonio Cardoso do, Liber utilissimus judicum [= Summa seu praxis judicum, Ulysipone, 1610], ed. util. Conimbricae, 1740. CARNEIRO, Manuel Borges, Direito Civil de Portugal, Lisboa, 1851. CARVALHO, João de Tractatus de una, et altera quarta Falcidia [...], Comimbricae, 1634. * CLAVERO, Bartolomé, Tantas personas como estados. Por uma antropología política de la historia europea, Madrid, Tecnos, 1986. COING, Helmut, Europäisches Privatrecht. 1500 bis 1800, München, Verlag C. H. Beck, 1985. DIAS, José Sebastião da Silva, Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do século XVI, Coimbra, Faculdade de Letras, 1973. FERREIRA, José Dias, Código Civil Anotado, Lisboa, 1870. GILISSEN, John, Introdução Histórica ao Direito, Lisboa, Gulbenkian, 1988. HESPANHA, António Manuel, As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal -século XVII, Coimbra, Almedina, 1994. * HESPANHA, António Manuel, “A nobreza nos tratados jurídicos dos séculos XVI a XVIII”, in Penélope, 12, 1993. LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa, Notas a Meio, Lisboa, 1828-1829. MELO (Freire), José Pascoal, Instituciones Iuris civiles [et criminalis] lusitani, Ulysipone,1789. MOLINA, Luis de, Tractatus de iustitiae et de iure, Cuenca, 1593-1600. MONTEIRO, Nuno G., “Os sistemas familiares”, in J. Mattoso (dir), História de Portugal, Lisboa, Circulo de Leitores, 1993, vol. IV (<
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SOTO, Domingo de, De iustitia et de iure, Salmanticae, 1556 (ed. cons., ed. bilíngue, Madrid, Inst. Est. Políticos, 1968). SOUSA, José Joaquim Caetano Pereira e, Classes dos Crimes por Ordem Systematica, Lisboa, 1816. TELES, J. M. H. Correia, Digesto Portuguez, I, Lisboa, 1835-1836 (ed. cons. 1853). THOMAZ, Luís Filipe e ALVES, Jorge Santos, “Da Cruzada ao Quinto Império”, in A Memória da Nação, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1991, pp.81-164. THOMAZ, Luís Filipe, “L’idée impériale manueline”, in La découverte. Le Portugal et l’Europe. Actes du Colloque, Paris, Gulbenkian, 1990, pp. 35-103. THOMAZ, Manuel Femandes, Repertorio geral ou indice alphabetico das leis extravagantes, Lisboa, 1843. VALASCO, Álvaro, Consultationum ac rerum judicatarum in regno Lusitaniae, Ulysipone, 1588 (ed. cons. Conimbricae, 1730).

Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com *.

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3. AS COISAS E AS SITUAÇÕES REAIS NO DIREITO DE ANTIGO REGIME

Objectivos da aprendizagem Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de: •

Explicar o carácter histórico e cultural (por oposição a “natural”) de conceitos como o de “coisa” (e sua distinção em relação a “pessoa”);



Definir o conceito de “coisificação” dos direitos na ordem jurídica de Antigo Regime;



Distinguir o conceito moderno de “domínio” do conceito actual de “propriedade”;



Definir institutos como os de propriedade, enfiteuse, censo;



Explicar as tendências gerais do liberalismo individualista no que respeita às situações reais e suas manifestações em Portugal.

Se a qualidade de pessoa e o seu estatuto civil e político eram o produto de uma certa forma de imaginar o mundo humano, também o mundo das coisas (res) e as suas relações com o mundo dos homens (as situações reais) o eram.

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Vamos procurar reconstituir esse imaginário e as suas mutações, inspeccionando, quer o conceito de coisa, quer os conceitos por meio dos quais o direito modela as relações das pessoas com as coisas. Com isto procuramos atingir, por meio desta “interpretação densa” das construções jurídicas, a “antologia espontânea” da época.

3.1 As coisas O correspondente, para o direito, do nosso mundo externo, é constituído pelo conjunto das coisas. No entanto, se nos detivermos um pouco sobre o que o direito comum137 considera uma coisa, logo veremos que o mundo dos objectos jurídicos é um estranho mundo, que pouco tem a ver com o mundo dos objectos do senso comum. “Coisa é um nome geral”, escreve António Cardoso do Amaral, um jurista português do século XVII138 “compreendendo direitos, contratos e todas as obrigações [...]; trata-se de uma definição perigosa de coisa, pois, devendo a definição ser a demonstração da substância do definido, se verificam neste, no caso presente, muitas variações, de acordo com as circunstâncias dos negócios”. Nesta “definição” convém destacar dois traços: por um lado, o vastíssimo âmbito de “coisa”, que inclui realidades puramente imateriais (como os direitos e as obrigações); por outro lado, a mutabilidade das

137 Ou mesmo o direito actual, embora com outra “gramática” de construção do seu mundo de objectos. 138 Amaral, 1619, s. v. “res”, n. 1.

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“coisas” que, longe de constituírem dados a se stante, ligados a uma qualquer realidade material, são antes entidades fluidas, cuja existência e natureza dependem das circunstâncias dos negócios jurídicos que as nomeiam. Comecemos por esta última característica. Desde logo, os juristas dizem que o surgir e o desaparecimento das coisas é um facto do direito e não um facto da Natureza139 . Com isto querem exprimir os vários efeitos do direito. Em primeiro lugar que há coisas que só existem no mundo do direito, como as chamadas “universalidades”, ou seja, coisas (como um rebanho, uma exploração agrícola [fundus instructus] ou uma herança) integradas por distintos objectos materiais (ou mesmo por objectos materiais e imateriais, como direitos, créditos, etc.), a que só o direito dá unidade. Em segundo lugar, que há coisas que carecem de qualquer suporte material, como os direitos, que surgem e se extinguem no puro campo do discurso jurídico. Em terceiro lugar, que há coisas às quais o direito muda a natureza, ficcionando uma natureza que não é a “natural”, como, por exemplo, quando se considera uma renda perpétua como uma coisa imóvel, sendo que, naturalmente, não há nada mais móvel do que o dinheiro140 . Por fim, que as coisas são passíveis de classificações jurídicas diferentes e incompatíveis entre si, de acordo com o ponto de vista a partir do qual são encaradas pelo direito: uma cabra pode ser parte de uma coisa – o rebanho –, uma coisa em si 139 Cf. Amaral, 1610, s.v. “Tes”, n. 35. 140 Cf. Ord. fil.,III, 47.

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mesma e outra coisa em si mesma, mas com características diferentes depois de morta141 . Este universo incerto e flutuante das coisas jurídicas abrangia, porém, muito mais do que objectos externos do mundo empírico. Isto já se verificou na definição dada por António Cardoso do Amaral. Mas pode confirmar-se com aquela que, já nos finais do século XVIII, é dada por Pascoal de Melo: “as coisas são algo que aumenta os nossos bens e património, nesta significação se contendo também os direito e as acções (estas entendidas não tanto como coisas incorporais [...], mas enquanto meios de prosseguir os nossos direitos)” (Pascoal de Melo, 1978, III, 1, 1). Parece, portanto, que as coisas se identificam com tudo o que pode ser objecto de domínio, de se integrar num património(8). Em rigor, nem as pessoas estariam fora deste universo. Em primeiro lugar, porque certas delas podiam, globalmente, ser objecto de direitos. Referimo-nos aos escravos. A questão de saber se os homens podem ser objecto de relações jurídicas confunde-se, no seu âmbito mais geral, com a questão da legitimidade da escravatura. Para os juristas do direito comum, a escravatura não era natural, pois, por natureza, todos os homens nascem livres (D, 1, 5, 4; S. Tomás, Summa Theol., 1-2, q. 94, 5 ad 3). Mas, como explica S. Tomás, que uma coisa seja natural pode querer dizer apenas 141 Cf. Amara1, 1610, s.v. “res”, ad 2, 363.2.

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que, sem que interceda uma causa suplementar, essa coisa tem certo estatuto ou qualidades. Ora, ou por causa do pecado original ou por razões ligadas à conveniência da vida em sociedade, o direito humano criara a escravatura, tomando uns homens “coisas” de outros142 ,143 . Em segundo lugar, porque certas coisas (como as obrigações que correspondem a certos direitos sobre coisas, v. g., prestações ou deveres feudais ou jurisdicionais) são constituídas por factos pessoais, por concretas acções humanas144 . Na mundividência da época, os homens e as mulheres, os restantes seres vivos e os seres inanimados integravam-se diferentemente na ordem da Criação. Cada qual tinha aí um lugar e, decerto, o lugar do homem era mais nobre do que o das restantes criaturas. Mas, vistas as coisas de outro ponto de vista, o que existia era uma hierarquia contínua, que ia dos anjos à mais humilde das pedras, e que não permitia distinções qualitativas decisivas (como a distinção radical entre pessoas e coisas), tanto mais que, mesmo a máxima função de louvar a Deus, era desem-

142 Os teólogos dizem que esta “coisificação” dos homens só se dá secundum corpus, pois a liberdade se mantém sempre secundum mentem (S. Tomás, Summa theologica, 2-2, q. 104, 5c ad 2). 143 Alguns teólogos juristas consideram a escravatura, em certos casos, como um instituto de direito natural, ligando-a a uma desigualdade natural dos homens, dos quais uns teriam engenho para mandar e outros, em contrapartida, mais robustez física, para servir (cf., v. g., Soto, 1556, IV, 2, 2). 144 Hoje, há obrigações correspondentes aos direitos sobre as coisas (direitos reais); mas estas consistem apenas na obrigação que todos têm de respeitar o conjunto de direitos genéricos, erga omnes, do titular do direito real (a chamada “obrigação passiva universal”).

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penhada, de acordo com palavras das Escrituras, pelos lírios dos campos ou pelas pedras da calçada. Pessoas, animais, plantas e seres inanimados eram, em certo sentido, todos criaturas, comandadas por uma ordem natural da criação. Só a hipervalorização da capacidade humana de entender e de se auto determinar, típica do racionalismo e voluntarismo modernos, é que traçará fronteiras decisivas entre o mundo dos homens e o mundo dos brutos. Mas, para além desta equiparação de pessoas a coisas, é certo que o direito comum “coisificou” muitas entidades que não constituem realidades empíricas, dando aos direitos sobre elas uma protecção que, quer o direito romano, quer o direito contemporâneo, reservam para os direitos sobre objectos materiais145 . Esta especial protecção de que gozam os direitos reais (i. e., os direitos sobre as coisas) consiste, nomeadamente, em se permitir a sua reivindicação judicial em relação a qualquer pessoa (a restituição da coisa objecto de um direito real ao titular deste direito é devida por todos); o reivindicante não tem que provar qualquer obrigação especial de restituir a cargo do detentor, porque a obrigação que recai sobre este é geral e comum em relação a toda e qualquer pessoa. É isto que quer dizer a oposição, estabelecida pelos canonistas, entre um ius in re (um direito sobre a coisa) e um ius ad rem (um direito à coisa), pois este último é relativo a certa pessoa (de145 Em todo o caso, o direito actual protege, como direito real, direitos sobre bens imateriais (v. g. propriedade intelectual).

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vedor), que, por um vínculo jurídico especial (v. g., um contrato), está obrigado a entregá-la a alguém (credor). Outra manifestação desta especial protecção que o direito concede às “situações reais” é a eficácia da defesa da posse de uma coisa, ou seja, a energia com que o direito defende o uso material de uma coisa pelo seu detentor estável e contínuo, usando de meios muito eficazes contra qualquer esbulho, violento ou não, obrigando o esbulhador a restituir (restitutiones in integrum) e a abster-se de qualquer perturbação da posse, enquanto não demonstrar a sua própria legitimidade para querer usar da coisa (interdicta)146 (9). Ora o direito comum alargou muito esta possibilidade de defesa de direitos. Atribuiu-a, como já o fazia o direito romano, aos proprietários e usufrutuários. Mas autorizou também titulares de outros direitos a usarem da reivindicação e a protegerem provisoriamente as suas posses com os remédios possessórios (restitutiones e interdicta) a que já nos referimos. Assim, considerou como coisas, susceptíveis, portanto, de ser objecto de um direito real147 : (i) os direitos políticos (ou iurisdictio, regalia, direitos feudais, direitos tributários); (ii) os benefícios e ofícios; (iii) o direito de eleger, nomear ou apresentar (um magistrado, um beneficiado ou um oficial). Tudo isto equivaleu a conceber, ao lado de direitos reais sobre coisas (como na propriedade ou no usu-

146 Sobre os meios de defesa próprios do direito real no período do direito comum, v. Coing, 1985, I, 341 ss. 147 V. Coing, 1985, 342 ss.

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fruto), direitos reais sobre direitos (como, por exemplo, no caso de um direito banal)148 . Ou seja, a generalidade das prerrogativas políticas (poderes de mando, de tributação, de nomeação de oficiais) era considerada como bens in patrimonio. Daí que tivessem um regime semelhante aos bens patrimoniais em sentido mais estrito (ou seja, às coisas materiais), podendo ser vendidas, trocadas e, sobretudo, reivindicadas e defendidas de esbulhos com auxílio dos remédios possessórios. A eficácia destes meios de defesa era enorme; o que muito contribuiu para garantir o pluralismo de direitos típico da sociedade de Antigo Regime, pois qualquer titular de direitos políticos podia facilmente garanti-los, quer contra os vassalos, quer contra os concorrentes ou mesmo contra os suseranos. É isto que, a meu ver, permite caracterizar adequadamente o sistema jurídico-político como um “Estado de direitos” (Rechtsbewährungsstaat). De facto, os direitos de resistência dos particulares em relação ao príncipe configuramse como direitos de carácter privado, accionáveis perante os tribunais comuns. Mas, para além disso, as pretensões dos súbditos em relação ao príncipe são verdadeiros direitos dotados de tutela contenciosa, e não apenas meras súplicas, deixadas ao arbítrio da graça do monarca, nem direitos polí-

148 Como, neste último caso, não existe um substrato material sobre que o direito real se exerça, a posse é feita equivaler a um uso longo do direito sobre que ela incide; cf. Coing, 1985, I, 343.

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ticos, accionáveis por meios “políticos”, mas desprovidos de uma suficiente garantia no plano da jurisdição comum.

3.2 As situações reais 3.2.1 São mais as utilidades do que as coisas O pensamento jurídico dos grandes mestres do direito comum estava dominado pela ideia de uma grande ordem universal, da qual faziam parte homens e coisas, cooperando uns e outros, de acordo com as respectivas naturezas, numa estrutura finalista orientada para o bem comum. Nesta ordem, tudo tinha uma função, uma utilidade. As coisas tinham-nas também. E estas funções encaixavam-se umas nas outras, serviam-se mutuamente, numa hierarquia de bens, terrenos ou sobrenaturais, que se rematava no sumo bem sobrenatural que era o louvor de Deus. A esta ordem natural das utilidades (utilidades de pessoas, utilidades de corpos, utilidades de coisas) correspondia, da parte dos beneficiários dessas utilidades, uma ordem de “necessidades” (affectiones, amores) que criava nos usuários uma inclinação para as disfrutar. Se essas inclinações eram conformes à razão mereciam o reconhecimento do direito. A estes “desejos racionais”, a estas faculdades legítimas de gozo, chamava o direito domínio. O domínio era, portanto, “o poder ou a faculdade reconhecido a alguém de se apoderar das coisas, pondo-as à sua disposição e uso lícito, segundo as leis estabelecidas conforme à razão” (cf. De Soto, 1556, IV, 1, 1

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[280]). As situações reais reconhecidas e protegidas pelo direito reproduziam, assim, a ordem das utilidades e os estímulos de gozo que esta ordem despertava nos sujeitos. Como diz Paolo Grossi, a imagem jurídica das relações entre homens e coisas era dominada por uma Atracção do sujeito por parte do mundo das coisas e um consequente, e muito relevante, condicionamento do sujeito por parte das coisas até ao ponto de fazer emergir a coisa, de qualquer modo, como protagonista inexpresso do ordenamento... Como no primitivismo medieval, o homem desaparecia absorvido por uma rerum natura plena de energias vitais.149

Neste universo ordenado das necessidades e das utilidades, as coisas não eram essencialmente diferentes das pessoas. Algumas coisas necessitavam de outras (v. g., os animais do pasto), algumas pessoas necessitavam de outras (v. g., o senhor dos vassalos), algumas coisas necessitavam de pessoas (v. g., a terras, dos servos adscritícios) e, muito geralmente, as pessoas necessitavam de coisas. A esta cadeia das necessidades correspondia, em negativo, uma cadeia das utilidades. Daí que o conceito de domínio, como faculdade de uso, fosse muito geral, abrangendo tanto vários direitos de gozo sobre coisas (propriedade, usufruto, hipoteca, servidões, etc.), como direitos sobre pessoas (nomeadamente a jurisdição). O próprio poder de Deus sobre o mundo podia ser configurado como domínio: ou Deus não fosse o Dominus mundi.

149 Grossi, 1992, 161.

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Domingo de Soto dá conta desta potencial universalidade do conceito de domínio150 : Pode, efectivamente, alegar-se que, a seu modo, também os animais brutos têm domínio, por exemplo, sobre a erva, que lhes foi concedida para seu sustento, como se lê no Génesis. E até parece que a rainha das abelhas tem domínio sobre o seu enxame; e entre as gralhas, parece que a rainha das demais dirige o bando. E entre as feras parece que é o ferocíssimo leão que domina sobre as demais; e o gavião parece que exerce o seu domínio sobre as infelizes aves. Em segundo lugar, outro tanto se pode dizer das coisas inanimadas, as quais têm o domínio sobre este mundo sublunar, derramando sobre ele o calor e a energia (virtus) de que este se sustém e desenvolve [...]. E por isto se lê no Génesis, I, que o Sol foi criado para que presida ao dia e a Lua para presidir à noite (Soto, 1556, IV, 1,2, [p. 283]).

É desta pluralidade de domínios que dá conta a literatura do direito comum clássico. Baldo de Ubaldis, o célebre jurista perugino do século XIV escreve: Um é o domínio que se diz propriedade e este é o domínio directo. Outro é o domínio que se diz útil e este não é, a bem dizer, propriedade, antes estando sujeito à propriedade, ou porque lhe é subalterna, como no caso do domínio de hipoteca, ou o contraria, como no caso do domínio do prescribente. Ainda se fala, de forma mais lata, de domínio, a propósito do domínio de usufruto ou do domínio de qualquer servidão. Também os que têm superioridade sobre os súbditos se chamam – domini – [senhores], devendo este vocábulo ser entendido, quando ocorre, segundo a qualidade da pessoa151 .

150 Embora para a criticar. 151 Baldo, ad I. proprietatis, C. de probationibus, n. 1 [C., 4, 19,4], em Baldo de Ubaldis, in quartum et quintum Cadieis libras cammentaria, cit. por Grossi, 1992, 96.

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Esta última frase inclui, entre as modalidades de domínio, a própria jurisdição, ou seja, o poder político; era daqui que decorria a dificuldade de distinguir o público do privado, os direitos dominiais dos direitos senhoriais, que caracteriza a ordem jurídica de Antigo Regime(10). Mas o domínio não era apenas uma figura tendencialmente universal, mas ainda naturalmente multiforme. Na verdade, cada coisa tinha as suas formas naturais de ser usada, as suas utilidades, e a cada uma destas correspondia uma faculdade de apropriação dela pelos homens, um “domínio” potencial. Esta cosmovisão levava, portanto, à admissão de tantas formas de domínio – eventualmente repartidas por tantos sujeitos – quantas as faculdades de gozo das coisas. E, de facto, os juristas medievais começaram a distinguir tipos de domínios, correspondentes a tipos de uso das coisas, chegando a enumerar vinte e três, desde os domínios que tutelavam usos dirigidos a fins sobrenaturais (v. g., o domínio “beatífico”, “gratífico”, “evangélico”) até aos que correspondiam às várias utilidades temporais (domínio “directo”, “útil”, “feudal”, “usufruto”, “uso”, “hipoteca”, “servidão”, etc.). Rigorosamente, o domínio, como modelo de relação do homem com coisas, não tinha como objecto a coisa, mas uma sua utilidade. O domínio não era a coisa, mas a (pluriforme) relação de uso com ela152 .

152 Soto, 1556, IV, 1, 1 [280].

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Entre as várias modalidades de domínio não existe, sequer, uma hierarquia, pois todos os usos das coisas e as utilidades delas colhidas se encaixam, cada qual à sua maneira, na ordem do universo. Propriedade eminente, direito de usufruto, usufruto limitado, tudo são formas de domínio, cada qual correspondendo a uma utilidade específica e, no seu âmbito (i. e., no plano do gozo dessa utilidade), plena e autónoma. Na perspectiva do gozo das respectivas utilidades da coisa, tanto o senhor directo como o enfiteuta dispõem plenamente da coisa153 . Se alguma hierarquia existe entre os vários direitos que coexistam sobre a mesma coisa, ela não decorre senão da hierarquia das utilidades que cada direito garante. E, aqui, é claro que a seriação há-de corresponder a uma hierarquia conhecida: as finalidades espirituais hão-de sobrepor-se às meramente temporais; de entre estas, as utilidades que interessam ao bem comum hão-de ter a primazia sobre as meras utilidades particulares, segundo uma ordem que vai do mais comum ao mais particular (república, cidade, corporação, família). Assim, os gozos meramente pessoais hão-de ceder, primeiro, perante os interesses temporais comuns e, juntamente com estes, perante os interesses sobrenaturais. Este paralelismo entre a hierarquia das utilidades e a hierarquia dos domínios faz com que uma corrente “integrista” ligue a protecção jurídica do domínio a factores de ordem sobrenatural, como a

153 Grossi, 1992, 103.

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graça e o pecado. Assim, aqueles que estivessem em estado de graça teriam um domínio sobre as coisas alheias, a fim de poderem prosseguir as suas finalidades gratificantes154 . Em contrapartida, ao pecador ou infiel, que visava utilidades contrárias à ordem da salvação, seria negado o domínio sobre as próprias coisas, de que poderia ser despojado, pois o domínio só seria plenamente válido se se orientasse para a salvação. Foi a partir de considerações deste género que se defendeu a legitimidade da ocupação das terras dos povos infiéis ou pagãos na época da expansão europeia155 . A identificação do domínio com os vários usos das coisas criou, porém, problemas politicamente delicados quando, nos séculos XIII e XIV, se discutiu o alcance do voto de pobreza das ordens mendicantes (dominicanos e franciscanos). O que queria dizer o voto de “não possuir bens”? Concretamente, se usar dos bens, se desfrutar das suas utilidades, era ser dono, (dominus) então os franciscanos e os dominicanos eram donos de muitas coisas, nomeadamente das coisas consumíveis, i. e., daquelas que se consumiam com o uso, como a comida ou o dinheiro. Nestes casos, dizia-se desde S. Tomás (Summa th., 2-2, q. 78, a. 1), que o domínio não ápenas se confunde com o uso, mas que ambos são, para além disso, inseparáveis. Sob o impulso desta polémica, que 154 A apropriação das coisas alheias seria um acto caritativo, em benefício (espiritual) dos próprios espoliados. 155 A Segunda Escolástica (nomeadamente, Domingo de Soto) nega, porém esta conclusão, legitimando, com base no direito natural, a propriedade que os povos “encontrados” tinham sobre as suas terras e coisas (Soto, 1556, IV, 2, 1 [287]).

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atingiu proporções político-eclesiásticas extremas156 , surge a ideia de que o verdadeiro domínio não consistiria num uso fáctico, material, das coisas, mas antes numa disposição meramente subjectiva. Como escreve P. Grossi, O homem é proprietário, não porque tenha concretamente coisas na sua posse, mas porque quer ser proprietário delas, porque tem em relação a elas uma vontade apropriativa; aquele que não tem nada (nihil habens) pode ser dono de tudo (omnibus dominans) se se lhe subtrair a vontade adequada157 .

3.2.2 O modelo proprietário Esta subtileza permitia resolver, como logo se vê, o problema da pobreza dos franciscanos, mas teria também consequências profundíssimas no destino futuro do discurso sobre os homens e as coisas, da sua regulamentação jurídica e das medidas políticas tomadas acerca disso. Enfim, o que se prenuncia a partir de agora – embora a evolução ainda vá levar muitos séculos a consumar-se – é uma concepção do domínio como afirmação de uma vontade dos sujeitos sobre as coisas. Na raiz desta nova concepção do domínio está a definição do homem como ser livre e senhor dos seus actos158 , que necessita de se projectar no mundo externo das coisas

156 Sobre o tema, v. Grossi, 1992, maxime, 150 ss. (com outras referências bibliográficas). 157 Grossi, 1992, 156. 158 Cf., sobre isto, Grossi, 1973.

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para realizar essa liberdade e cumprir o seu destino cósmico (“ (...) os homens, pela sua própria natureza e direito, começaram a ser donos das suas acções para, com esta liberdade, servirem o Criador”, Soto). Assim, o domínio sobre as coisas aparece como um prolongamento do domínio sobre si próprio, o ter torna-se num mero acto de vontade do sujeito que se afirma como dono de uma coisa(11), a propriedade é um outro nome da liberdade, desse poder expansivo de afirmação subjectiva159 . O domínio adquire uma dimensão puramente subjectiva, escapando completamente ao império das coisas. Estas, as suas utilidades concretas e as modalidades concretas do seu gozo, não influem em nada a natureza do domínio, que passa a ser uma faculdade puramente subjectiva de gozo abstracto. Quem diz “abstracto”, diz tendencialmente ilimitado. Nesta concepção, falar de um direito de propriedade é falar do complexo virtual de todas as utilidades de uma coisa e dos poderes de uso correspondentes; é falar da síntese de todos os poderes que, em abstracto, um sujeito pode exercer sobre as coisas em geral160 . Esta corrente intelectual será desenvolvida pela escolástica franciscana dos finais da Idade Média. pela Escola Peninsular de Direito Natural (Segunda Escolástica) e, finalmente, culminará na concepção individualista da proprie-

159 “O domínio das coisas externas não se justifica senão pela razão de que cada um é dono das suas próprias acções; é que o domínio que cada um tem dos seus actos é a causa e a raiz daquele que tem sobre as outras coisas”, Soto. 160 Grossi, 1976, I, 200 ss.

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dade das escolas jus-racionalistas do século XVIII. As suas principais consequências, no plano dogmático, são: a) Relacionar intimamente o domínio com a vontade. A propriedade, tal como a liberdade, são as duas primeiras manifestações da tendência natural dos indivíduos para se autodeterminarem, para quererem161 . E, por isso, constituem os seus primeiros direitos naturais, com dignidade natural e fundamento teológico, pois esta vontade fundadora não é senão um reflexo da vontade e da sapiência de Deus162 . b) Definir o domínio como um direito tendencialmente absoluto; ou seja, um direito que, por natureza (a natureza de uma vontade que não suporta limites), tende a abranger todos os usos possíveis das coisas. Tal como a soberania, o domínio é absoluto e indivisível. Acontecerá que não se possa, em relação a certa coisa, gozar dela ilimitadamente, por existirem limites externos; mas, então, estamos perante um domínio “imperfeito” que, desaparecendo os limites externos163 ao seu exercício, ocupará naturalmente os novos espaços, tendendo para a perfeição (“elasticidade” do domínio). A ideia de uma multiplicidade de domínios, compreendendo cada qual apenas algumas faculda-

161 Daí que só possam ser sujeitos de domínio os seres dotados de entendimento e livre arbítrio; o que exclui que se possa falar de propriedade na titularidade de coisas ou de animais, como antes se admitia (cf. Sotto, 1556, 284). 162 Grossi, 1992, 169. 163 Nomeadamente, direitos concorrentes de outrem, como uma servidão ou um usufruto.

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des de utilização da coisa, parece agora como algo de não natural ou logicamente absurdo164 . c) Definir o domínio como um poder essencialmente privado; ou seja, originado na vontade individual, em satisfação de impulsos também individuais e, por isso, satisfazendo interesses meramente privados. Enquanto o poder público, a jurisdição, emanava, directa ou indirectamente, de uma vontade colectiva e visava satisfazer interesses públicos. Este último imaginário das situações reais, que tem sido designado como modelo “proprietário”, elaborado a partir do século XIV pela escolástica franciscana, pelo pensamento da Segunda Escolástica (Luis de Molina [15361600], Domingo de Soto [1494-1570], Francisco Suarez [1548-1617]) e pelas escolas jus-racionalistas culmina nas grandes codificações liberais dos inícios do século XIX. O artigo 544 do Code civil de 1804, um dos monumentos do modelo actual de conceber as situações reais, define a propriedade como “o direito de gozar e dispor das coisas da forma mais absoluta, desde que não se faça delas um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos”. Este texto constitui um emblema do conceito moderno (individualista, burguês, capitalista) da propriedade, sobretudo porque nele se costuma destacar o carácter absoluto e pleno 164 “Undinge”, absurdo, é como Thibaut (em 1817) classificará a ideia de um domínio dividido (cf. P. Grossi, “Tradizione e modelli nella sistemazione postunitaria della proprietà” (cf. Grossi, 1973), 201 ss).

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dos poderes do proprietário. Na época em que esta máxima foi cunhada, as suas palavras não tinham ainda as intenções que depois vieram a adquirir. Assim, o termo “absoluto” não apontava para a autorização de “um qualquer, arbitrário, a-social, uso das coisas”, típico de uma concepção liberal, pura e dura, da propriedade. Visava antes negar a existência de qualquer direito eminente, feudal ou estadual, que limitasse os poderes do proprietário(12). Mas, logo no início do século XIX, a doutrina jurídica francesa transforma esta definição num dos dogmas do liberalismo, colocando-a ao lado da divisa de J. Bentham, liberty and property, no topo da ideologia “proprietária” ou “individualismo possessivo”165 . Este modelo “proprietário” apresenta os seguintes traços estruturais: a) A propriedade é um direito natural, anterior à ordem jurídica positiva, decorrente da própria natureza do homem como ser que necessita de se projectar exteriormente nas coisas para se realizar. Alguns autores vão mesmo ao ponto de colocar a propriedade como origem do direito, direito cujo objectivo não seria senão distin-

165 A expressão é de C.B. Macpherson (Property, mainstream and critical positions, Toronto, 1978). Eco da divisa de J. Bentham, em Portugal, Costa, 1822,73,96 ss.

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guir “o meu e o teu”166 . E, na verdade, o pórtico de algumas das mais características exposições do direito civil de então é constituído pela enunciação de umas quantas “regras de trânsito” gerais dos direitos (dos “meus” e dos “teus”) dos indivíduos(13). b) A propriedade é um direito absoluto, no sentido (que era o originário do Code) de que não está sujeita a limites externos, pelo que o seu exercício não depende de condicionamentos ou autorizações externas. No momento em que foi introduzida no Code civil, esta referência ao carácter absoluto da propriedade implicava a abolição de uma série de ónus, fiscais, feudais ou comunitários, que impendiam sobre a terra. Mas iria também justificar a antipatia por todas as formas de limitação ou condicionamento da liberdade de dispor exclusivamente das coisas, anteriormente conhecidas, quer de natureza privada (v. g., as formas de comunhão e de indivisão, os vínculos, a necessidade de autorização ou outorga para alienar, os direitos de preferência, os laudémios), quer de natureza pública (v. g., os regimes de licenciamento administrativo da transmissão ou oneração do solo, os condicionamentos públicos da venda, como os monopólios ou estancos, os regimes de amortização, etc.). Propriedade absoluta é,

166 Costa, 1822, loc. cit.. Como aí se pode ver, o conceito de propriedade é utilizado para descrever todas as relações jurídicas: a liberdade pessoal é a propriedade sobre o próprio corpo, a liberdade intelectual é a propriedade sobre o pensamento, etc.

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assim, a propriedade não partilhada, aquela que não reconhece qualquer dominium eminens ou directum exterior. É a propriedade franca, que obedece à regra natural da “liberdade natural da propriedade”(14). c) A propriedade é um direito pleno, ou seja, contém em si todas as faculdades de acção que o seu titular pode desenvolver em relação à coisa, incluindo a sua destruição económica ou física. Isto significa, em primeiro lugar, que o direito de propriedade não se destina a garantir a funcionalidade económica das coisas, não visa reflectir, no campo do direito, as utilidades possíveis das coisas, antes possibilitando exercícios a-funcionais, como o não cultivo de uma terra ou a destruição de uma coisa(15). d) A propriedade é um direito tendencialmente perpétuo, daí decorrendo a tendência para o desfavor das formas temporalmente limitadas de domínio (fideicomissos, enfiteuses em vidas, cláusulas de retroacção) e a promoção da propriedade perpétua167 . e) A propriedade é, finalmente, um direito essencialmente privado, não devendo, portanto, co-envolver direitos de carácter público, como acontecera na constituição fundiária e política do Antigo Regime. Estes competiam – como vinha dizendo a doutrina desde Francisco Suarez (De legibus, I, 8 4 ss.) – à iurisdictio e não ao dominium;

167 Rocha, 1848, 319 (§ 402), 709 e 716.

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enquanto faculdades dos particulares, seriam abusivos e deviam ser abolidos168 . Ainda no século XVIII, o “modelo proprietário” aparece já bem delineado na obra de Pascoal de Melo. Aí o domínio é já apenas um, ou seja, o direito ilimitado e exclusivo de gozar de todas as utilidades da coisa: “o domínio é um certo direito sobre as coisas, pelo qual entendemos o direito de dispor livremente da coisa, extraindo dela todas as utilidades, excluindo o uso dela por outros e reivindicando-a em relação a qualquer um (Pascoal de Melo, 1789, III, 2, 1).” É certo que há direitos reais com poderes mais limitados, por lei ou por convenção (servidões, usufrutos, enfiteuses), por isso se fala de domínio pleno ou menos pleno (como mais tarde se falará de propriedade perfeita e imperfeita) (ibid, IV, 2, 4). Mas o pleno domínio, o domínio exemplar, comporta todos os poderes de fruição e de exclusão da fruição de outrem.

168 Correia Teles (Teles, 1835, I, § 741) ainda inclui no direito de propriedade os direitos de jurisdição. Mas as servidões pessoais (personae servir rei) tinham sido ou estavam a ser abolidas: a servidão doméstica, fora-o em 1771 (alvs. 16.1 e 19.9, completados pelos de 16.1.1773 e 10.3.1800); as servidões pessoais a favor de prédios foram abolidas como direitos banais pela lei de 24.7.1846 (retomando a sua extinção em 1824). Cf. Rocha, 1848, §§ 524 e 587; Lobão, 1828, 437, 442-443.

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3.3 Os dados do direito (séculos XVI-XVIII) 3.3.1 Direito comum A sociedade da Europa ocidental conhecia, desde a Idade Média, uma série enorme de situações jurídicas reais, estando os poderes sobre as coisas decalcados sobre as suas utilidades particulares, distribuídos por vários sujeitos, mutuamente condicionados, dependentes na sua efectivação e exercício de autorização alheia. Nesta estrutura institucional, a propriedade plena era a excepção, sendo a regra constituída pelas situações de domínios divididos ou imperfeitos, como as situações enfitêuticas, parciárias, censíticas, vinculares, de arrendamentos longos, de usufruto, de servidão predial. O direito, apoiado na opinião comum dos juristas do direito comum, nomeadamente de Bártolo, perfilhava a concepção atomista e dividida do domínio. A manifestação mais célebre desta concepção era a construção do feudo e da enfiteuse como um domínio dividido, competindo ao senhor o dominium directum (o domínio de direito, protegido por uma acção de direito) e ao feudatário ou enfiteuta o dominium utile (o domínio da utilidade, do gozo das utilidades práticas da coisa, protegido por uma actio utilis)(16). Apesar de alguns autores referirem que, em sentido próprio, a designação “domínio” apenas convém à propriedade plena(17), a generalidade alarga o conceito de domínio a uma ampla série de situações reais, concedendo ao usufrutuário, ao colono ou arrendatário de longo prazo, ao censuário, ao feudatário, ao enfiteuta, a dignidade de verus 91

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dominus e as faculdades jurídicas práticas que lhe andavam ligadas, nomeadamente o recurso à reivindicação, a dispensa de prestar garantia no momento de entrar na posse da coisa, a participação no tesouro achado no prédio, a protecção da posse com os remédios possessórios(18)169 . Limitando a nossa descrição à propriedade da terra, eram as seguintes as situações reais mais comuns em Portugal, na Época Moderna: a) Terras nobres (coutos, honras, behetrias e outras terras em que os senhores exercem prerrogativas senhoriais)170 . São terras isentas (total ou parcialmente) em relação aos poderes jurisdicionais ou tributários da coroa, em que, em contrapartida, o senhor cobra os tributos contidos no foral da terra (salvo aqueles que o rei expressamente tenha reservado para si na carta de doação). O domínio que compete ao senhor é um domínio feudal; ao rei, competiria sempre um domínio eminente171 ; aos cultivadores, um domínio directo, no caso de serem proprietários, ou um domínio útil, no caso de serem, por exemplo, foreiros (ou colonos de longo tempo, ou censuários). 169 Pascoal de Melo ainda admite a generalidade destes domínios, embora os designe de um modo (dominium plenum, dominium minus plenum; verum dominium, dominium minus amplum) que já os hierarquiza e confronta com o modelo do domínio pleno (cf. Melo, III, 9,28). Mas já nega a natureza dominial do direito a serviços (servidão pessoal); cf. m, 13, 4). Evolução ulterior em Hespanha, 1979,50 ss. 170 V., infra, capo IV.4. (“Os senhorios” ). 171 Que o autorizaria, nomeadamente, a revogar as doações, reavendo as terras; a expropriar ou requisitar os bens; ou a impor-lhes tributos reais.

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b) Terras vilãs. De entre as terras não nobres, os autores distinguiam entre terras alodiais e concessões precárias. Na primeira categoria estão as terras detidas hereditariamente e como alódios, apenas obrigadas a prestações tributárias ou eclesiástica (dízima). Nos documentos aparecem designadas por herdades, terras “de voz e coima”, terras de “dízima a Deus”. Na segunda categoria estão as terras detidas em precário (vitalícias ou temporárias), sujeitas ao pagamento de rendas172 e cuja alienação estava dependente da autorização do senhor173 . São as terras em colonia, em prazo (ou enfiteuse) ou em censo. Nestes casos, o domínio aparecia como dividido: ao titular do direito à renda (foro, censo) competia o domínio directo, enquanto ao cultivador (colono, enfiteuta, foreiro, censuário) competia o domínio útil. Dada a sua importância, vejamos mais detalhadamente o que era cada dos mais importantes destes institutos, nomeadamente a enfiteuse e o censo. A enfiteuse (ou emprazamento) verifica-se quando o proprietário (senhorio) de um bem imóvel (prazo) transfere o domínio útil para outrem (enfiteuta), que se obriga a pagar-lhe anualmente uma certa pensão, cânone ou foro. Até ao Código Civil de 1867, os prazos podiam ser perpétuos ou temporários. Os perpétuos chamavam-se 172 De quantia fixa ou parciárias, em dinheiro ou em géneros. 173 Esta autorização podia ser comprada, pelo pagamento ao senhor de uma soma na altura da alienação (laudémio).

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“fateusins hereditários”. Os temporários ou “de vidas” eram constituídos por um certo número de vidas (normalmente, três)174 . O censo podia ser de dois tipos. O censo consignativo era o instituto pelo qual alguém empresta a outrem certa soma, para sempre, obrigando-se este último a pagar uma certa quantia anual, consignando a este pagamento os rendimentos de certos bens imóveis. O censo reservativo verificava-se quando alguém cedia a outrem um bem imóvel, reservando uma certa renda, a pagar pelos rendimentos do imóvel cedido175 . Todas estas figuras dogmáticas são originárias do direito comum, tendo sido frequentemente aplicado a situações reais já estabelecidas, muitas vezes na Alta Idade Média, ao sabor das circunstâncias de cada caso. Daí as incertezas classificativas com que se debate a prática para encontrar a figura adequada (e, logo, o regime jurídico aplicável) a cada situação176 . c) Terras públicas e comuns. Tratava-se de terras apropriadas ou pelo rei ou colectivamente pela comunidade e destinadas ao uso ou do monarca ou do comum. As prin174 Os prazos perpétuos ou em vidas ainda podiam ser “de livre nomeação”, em que cada enfiteuta designava o seguinte, ou “de pacto e providência”, em que toda a linha de sucessão era fixada no pacto de constituição da enfiteuse. 175 A distinção prática entre enfiteuse e censos (ou mesmo arrendamentos a longo prazo) não eram simples. Sobre a distinção, v. o interessante texto de Baptista Fragoso, por mim publicado em Gilissen, 1988, 659. 176 Sobre os critérios gerais utilizados para a classificação das situações, v. Gilissen, 1988,650.

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cipais eram os baldios, os matos maninhos, as lezírias e os pauis e as minas e veios de metais. O seu uso individual podia ser concedido pelo rei (no caso das lezírias, matos maninhos e minas) ou pelos concelhos (no caso dos baldios). Comum a todos e inapropriável individualmente era o ar e o mar, bem como os rios navegáveis. Sobre todas estas terras podiam impender limitações de vária ordem. Desde logo, as limitações impostas pelo interesse comum, como a obrigação de cultivo imposta pela “lei das sesmarias”, ou as limitações impostas pelos direitos da comunidade (direito aos pastos, à caça, ao mel, à caruma e lenha, à água). Finalmente, limitações de tipo familiar. Destas, a que se tomou mais relevante foi a da inalienabilidade e obrigatoriedade de respeitar uma certa ordem sucessória, estabelecida por um anterior proprietário. É o caso dos morgados e das capelas. Mas podia existir ainda a obrigação de consultar os parentes no caso de alienação de certos bens ou, mesmo, de lhes dar preferência (laudatio parentum, direito de troncalidade, retrato familiar).

3.3.2 O direito individualista O desenvolvimento, no plano doutrinal, do modelo proprietário vem apoiar todas as soluções de política (nomeadamente, de política agrária) que tendem a fortalecer uma propriedade absoluta e ilimitada. Absoluta e ilimitada, desde logo, em relação ao Estado.

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A questão dos poderes do príncipe sobre os bens dos particulares era matéria controvertida, desde a Escola dos Glosadores177 . A doutrina dominante, na Época Moderna, era a de que o poder do rei sobre os bens súbditos configurava um dominium quoad administrationem178 domínio quanto à administração; mas este direito seria de tal natureza que o soberano não poderia ofender os direitos dos súbditos, quer por decisão individual, quer por acto normativo genérico (cf., infra cap. IV.5.3.)179 , salva suma utilidade pública (salus et utilitas publica)180 e, mesmo assim, com o dever de indemnizar. Com o advento do Estado iluminista – dominado pela intenção planificadora e providencialista – esta garantia dos direitos dos particulares cede perante o pathos regulamentador e interveniente da “boa polícia”, da ideia de disciplinar e ordenar a cidade. É por isso que a doutrina iluminista vai ressuscitar a ideia de que cabe ao príncipe o domínio eminente, pleno e universal sobre todo o reino e, logo, sobre os bens dos súbditos181 , domínio do qual decorreria a legitimidade de restringir, intervindo causa pública, o direito de propriedade. E, de facto, muitas foram as restrições introduzidas pela legislação económica e agrária iluminista(19). 177 Cf. Portugal, 1673, 1. 2, c. 11, ns. 27 ss. 178 Cf. Castro, 1622, l, c. 24, § 30 (ao rei caberia um “absolutum et universale dominium” sobre todo o reino, adquirido por conquista, compatível, porém, com o domínio dos vassalos); Portugal, 1673, 1. 2, c. 2, 27 ss. (o príncipe teria um “jus superioritatis & jurisdictionis”; os particulares um “verum dominium” ). 179 Cf. Portugal, 1673, cit., n. 19; Pegas, 1669, t. 11, p. 597-508. 180 Cf. Portugal, 1673, 1. 2, c. 11, n. 26. 181 Cf. Pascoal de Melo, 1789, III, 2, 3 “o príncipe, como tem um domínio eminente ou império (vocábulo que não gera tantas invejas) sobre os bens dos cidadãos [...]”); abonava-se em Ord. fil., III, 71,2.

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Em contrapartida, a doutrina política e jurídica liberal, a que chamámos “modelo proprietário”, bem como a doutrina económica fisiocrática, são muito sensíveis à necessidade de, no plano da política do direito, reagir contra o intervencionismo estatal na esfera dos direitos dos particulares e de, em consequência, recusar a ideia de um domínio eminente, como o faz, ainda no século XVIII, António Ribeiro dos Santos. Paralelamente, firma-se a opinião de que quaisquer direitos de natureza pública exercidos por outrem que não a coroa constituíam um “abuso” ou uma “usurpação”. Era o caso, nomeadamente, dos direitos de foral cobrados pelos senhores (cf. infra, capo IVA.). Nos finais do século XVIII e inícios do século XIX, as correntes reformistas, interessadas, por razões políticas e ideológicas (cf. infra) na “libertação da terra”, usam este argumento para justificar a abolição (ou, pelo menos, redução) dos forais(20)182 . Na verdade, o carácter fiscal das imposições neles contidas retirava-os da esfera do privado e apenas os tornava legítimos se cobrados por entidades públicas e, mesmo assim, nos limites do que fosse economicamente razoável (v. infra). A propriedade devia ser absoluta e ilimitada, ainda, em relação à própria comunidade, o que punha em causa costumes ancestrais de uso colectivo das terras, mesmo que privadas, para aproveitar os pastos, os restolhos, a lenha, a caça, 182 A C.R. de 7.3.1810 promete a supressão ou atenuação dos forais, como compensação dos prejuízos que advinham do tratado comercial angloluso de 1810 (cf. Albert Silbert, Le probleme agraire portugais au temps des premieres Cortes libérales, Paris, Gulbenkian, 1968, 23 n. 1; Hespanha, 1979,75 n. 79).

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as colmeias, as águas fluentes. Ou em relação à comunidade familiar que, em homenagem aos interesses linhagísticos, impunha restrições à alienação dos bens ou provocava a sua amortização (como no caso dos morgados)(21). Finalmente, a propriedade devia ser absoluta e ilimitada em relação aos outros particulares. Isto implicava a restrição de todos os direitos de propriedade impostos pelo interesse particular, como, nomeadamente, as servidões a favor de prédios vizinhos. É este o sentido da C. L. de 9.7.1773, que reage contra a pulverização fundiária e a multiplicação das servidões, estabelecendo medidas de alienação compulsiva de propriedades encravadas e de emparcelamento nas lezírias, olivais, vinhas e marinhas, de limite à divisão dos prédios e de extinção das servidões. Tudo isto porque, como se diz no preâmbulo da carta de lei, o excessivo retalhamento da propriedade e a sua limitação a favor dos prédios vizinhos constitui um estorvo à sua rentabilização. Contrária à rentabilização da agricultura era ainda a coexistência de direitos sobre o mesmo prédio. O caso mais comum era o da enfiteuse, em que os direitos daquele que explorava a terra (titular do domínio útil) estava duplamente limitado. Em primeiro lugar, pela obrigatoriedade de pagar um foro ao titular do domínio directo. Depois, pelo carácter temporalmente limitado do seu direito de fruição. Quanto ao pagamento pelo cultivador (senhor útil) de uma prestação periódica ao titular da sua propriedade (se98

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nhor directo), nota-se, nos finais do século XVIII, uma tendência para, em nome da rentabilização da agricultura, procurar reduzir os encargos sobre a terra. Neste ponto, a legislação pombalina foi muito prudente. Apenas em relação aos censos do Algarve, em que havia uma tradição usurária, se tomam medidas tendentes ao alívio das terras(22). Quanto à enfiteuse, apenas se retoma a doutrina da “lesão enorme”, que anulava qualquer contrato em que uma das prestações fosse desequilibrada (v. Ord. fil., IV, 13). No caso da enfiteuse, quando tivesse por objecto terras incultas, seria lesivo o contrato que estabelecesse um foro próximo do rendimento real do prédio(23). Determinações mais genéricas sobre a redução dos encargos fundiários só surgem no reinado de D. Maria I. Assim, o decreto 16.3.1799 (cf. aviso de 4.4.1799) autoriza excepcionalmente, em benefício da agricultura, a remissão dos foros e das jugadas pertencentes à coroa. O mesmo determinam os decretos de 21.11.1812 e de 6.4.1813. Em relação a rendas devidas a particulares, as cautelas foram tantas que um projecto aprovado pelo ministério em 28.3.1799, prevendo a remissão de encargos pios, foros, censos, quartos e oitavos e outros quaisquer encargos pagos à Igreja ou a corporações de mão-morta, nunca entrou em vigor(24)183 .

183 No mesmo sentido da limitação dos encargos fundiários militava a teoria do “produto líquido”, que defendia que o cálculo das prestações parciárias devia ser feito sobre o produto, depois de deduzi das as despesas de cultivo (cf. Pascoal de Melo, l, 7, 15; Manuel de Almeida e Sousa, Discurso sobre a reforma dos forais, §27; Manuel Femandes Tomás, Observações sobre o discurso [...], 70; sobre o tema, Hespanha, 1979,37).

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Quanto à limitação temporal dos direitos do enfiteuta, decorrente do carácter temporário de muitos contratos enfitêuticos (em vidas, frequentemente em três), a nova doutrina do domínio pleno e absoluto cria um paradoxo até aí inexistente. Na verdade, o direito comum, com base numa opinião de Bártolo(25), forçava o senhor directo a renovar a enfiteuse. Isto assegurava, na prática, a perpetuidade dos direitos de gozo do senhorio útil e, por isso, dava-lhe segurança para poder melhorar o prédio sem ter que recear que este lhe fosse tirado antes de ter tido tempo para amortizar as despesas feitas. Todavia, isto constituía uma violação do princípio da liberdade, já que o senhor directo via coarctada a sua liberdade de não renovar o contrato no fim do seu termo. Os juristas hesitam. Uns, mantendo-se fiéis ao princípio da liberdade, criticam a “equidade bartolina”(26); outros optam por uma solução casuística184 ; outros, finalmente, mantêm-se fiéis à opinião de Bártolo no sentido da renovação, fundando-a no direito natural do eufiteuta e seus descendentes a colher os frutos do trabalho e dinheiro investidos no prédio185 . Mas a legislação pombalina, pela C. L. 7.9.1759, estabelece a renovação do contrato enfitêutico a favor dos descendentes, ascendentes e colaterais, com fundamento nas Ordenações (Ord. man., IV, 36) e no direito natural (cf. lei cit., § 26)186 .

184 Cf. Manuel de Almeida e Sousa, Tratado pratico de todo o direito emphyteutico, Lisboa 1814 (ed. cons. 1857), II, 148 ss. 185 Cf. Pascoal de Melo, 1789, III, 11,26. 186 No mesmo sentido, a C. L. de 4.7.1768 converte os prazos eclesiásticos de passado em prazos vitalícios (§5).

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Apesar da ênfase do discurso proprietário, já desde a segunda metade do século XVIII, a sua plena concretização legal data já do século XIX, num momento mesmo bastante posterior à revolução liberal. O seu monumento é o Código Civil de 1867; mas, mesmo neste, ainda se encontram figuras um tanto espúrias de domínios limitados, como a enfiteuse e o “uso e habitação”.

Bibliografia citada AMARAL, António Cardoso do, Liber utilissimus judicum [= Summa seu praxis judicum, Ulysipone, 1610], ed. util. Conimbricae, 1740. ATTALI, Jacques, Au propre et au figuré. Une histoire de la propiété, Paris, Fayard, 1988. COING, Helmut, Europäisches Privatrecht. 1500 bis 1800. 1. Älteres Gemeinse Recht, München, C. H. Beck, 1985. COSTA, Vicente José Cardoso da, Que he o Codigo civil, Lisboa, 1822. GILISSEN, John, Introdução histórica ao direito, Lisboa, Gulbenkian, 1988. * GROSSI, Paolo, Le situazione reali nell’esperienza giuridica medievale, Padova, Cedam, 1968. GROSSI, Paolo, “La proprietà nel sistema privatistico della Seconda Scolastica”, in La Seconda Scolastica nella formazione del diritto privato moderno. Atti dell-Incontro di studio di Firenze, Milano, Giuffre, 1973. GROSSI, Paolo, “Tradizione e modelli nella sistemazione post-unitaria della proprietà”, in Quad. fior. per la storia del penso giur. moderno, 5/6 (19761977); I. * GROSSI, Paolo, Il dominio e le cose, Milano, Giuffre, 1992. * HESPANHA, António Manuel, “O jurista e o legislador na construção da propriedade burguesa-liberal em Portugal”, in Histórias das instituições. Textos de apoio, Lisboa, palie. 1979 (versão sem notas, An. soe., 61-62 (1980) 211-236.

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LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa, Notas a Melo, Lisboa, 1828-1829. MELO (Freire), Pascoal José de, Instituciones iuris civilis (e criminalis) lusitani, Ulysipone 1789,4 vols. (civilis) + 1 voI. (criminalis). PEGAS, Manuel Alvares, Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae, Ulyssipone, 1669-1703, 12 tomos + 2. PORTUGAL, Domingos Antunes, Tractatus de donationibus regilis jurium & bonorum regiae coroane, Ulysipone 1673,2 vols. ROCHA, Manuel Coelho da, Instituições de direito civil português, Coimbra, 1848. SOTO, Domingo de, De iustitia et de iure, Cuenca, 1556 (ed. fac-similada e bilingue do Instituto de Estudios Politicos, Madrid, 1967). TELES, J. M. H. Correia, Digesto portuguez, I, Lisboa, 1835-1836 (ed. cons. 1853). VALLEJO, Jesús, Ruda equidad, ley consumada. Concepción de la potestad normativa (1250-1350), Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1992.

Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com * Notas (1) Enumera aqui os doutores (n. 265 ss.: cf. Ord. fil., III,59,15; v.120; III,87,23), os licenciados (n. 278 ss.: cf. Ord. fil., v.120; III.29; III,59,15; 1,66,42); os mestres de artes (n. 283 ss.); os bacharéis, nomeadamente advogados (n. 284 ss.). Já o estatuto dos médicos seria discutível (n. 296 ss.). E indiferente (não dando nem tirando a nobreza), o dos cirurgiões (n. 308), dos boticários (n. 314), dos ourives (n. 324), dos músicos (n. 325) e dos matemáticos (n. 326). (2) Além da “milícia armada” (n. 329 ss.) – cavaleiros das ordens militares (que também têm o estatuto de clérigos), oficiais militares (condestável, almirante, capitães-mores, capitães de fortalezas, cavaleiros das companhias e cavalo, capitães e alferes de ordenanças) – inclui aqui, significativamente, a “milícia inerme” (362 ss.), na qual enumera os oficiais palatinos (v. g., o mordomomor, o camareiro-mor, os moços da câmara; “condes palatinos”, como o trichante-mor, o estribeiro-mor, o mordomo das obras; outros oficiais, como os capitães da guarda e de dos ginetes; “condes consistoriais”, como os membros do Conselho de Estado, notários régios, secretários régios, oficiais da fazenda). O mesmo estatuto teriam os oficiais da Casa de Bragança, que então não era a casa real (n. 385). (3) Dariam nobreza os ofícios e governadores de armas das províncias (n. 405), regedor das Justiças (n. 406: Ord. fil., 1,1); presidente do Desembargo do Paço (n.

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409); governador da Casa do Cível; governadores do Algarve, Brasil, Índia e Angola (n. 411); conselheiros régios (n. 412); chanceler-mor (n. 413: Ord. fil., 1,2); desembargadores do Paço (n. 416); deputados na Mesa da Consciência e Ordens (n. 416); desembargadores, em geral (n. 421: Ord. fil., v.120); corregedores (ns. 424-425); provedores (n. 426); juízes régios (428 ss.); juízes ordinários, vereadores, almotacés, procuradores dos concelhos, meirinhos e alcaides (n. 432-442, 445: Ord. fil., v.139), mas só nas terras em que era costume reservar este lugar a nobres. Já os lugares de escrivão e tabelião seriam indiferentes (n. 443 ss.). (4) Cf. Ord. fil., v.138: II, 12,2; Carvalho 1634 – “divitiae enim aequiparantur originaria nobilitas ... & divites pauperibus praeferendos in muneribus patrimonialibus” [a riqueza equipara-se à nobreza originária ... e os ricos devem ser preferidos aos pobres nos ofícios da república de natureza patrimonial V. g., tesoureiros, recebedores, depositários, etc. ?]... “Unde divites, qui soliti sunt equester incidere, praedictum statum, & conditionem nobilitatis consequuntur ... qui ex divitiis acquiratur vera et propria nobilitatem” [de onde os ricos que costumam andar a cavalo adquirem a condição nobre...pois pela riqueza adquire-se a verdadeira e própria nobreza] (I, ns. 458 ss.). (5) Cf., discutindo a questão e concluindo que, embora o homem fosse dono da sua vida, da sua fama e da sua fama, estes bens eram indisponíveis, Fragoso, 1640, III, p. 616, ns. 7 ss. (6) Em princípio, só a guerra defensiva e não provocada (i. e., em legítima defesa) era justa. Este princípio valia plenamente entre os príncipes cristãos, com o complemento de que a “guerra velha”, de que nem já se lembrava a causa, se presumia justa para ambos os lados. No interior do mundo já conhecido, a guerra contra os infiéis (“cruzada”) baseava-se na ideia de que as terras por estes ocupadas já tinham sido cristãs e que, guerreando-os e sujeitando-os, não se fazia mais do que, usando da legítima defesa, reparar uma ofensa anterior. Isto valia plenamente para a África (mormente, para a setentrional), para o Próximo Oriente e mesmo para as regiões da Índia, pois, segundo a tradição, aí teria chegado a mensagem cristã, pela pregação de S. Tomé (cf. Thomaz, 1990, 73 ss.; 1991). Mas não valia, claramente, para a América ou para o Extremo Oriente, habitadas por gentios que nunca tinham conhecido cristãos. Aí, a guerra apenas se podia legitimar pela prática pelos gentios de actos incompatíveis com as regras universais de convivência. O elenco destes actos variava um pouco. Para uns, seria apenas a interdição da divulgação da mensagem cristã (que devia ser ouvida, independentemente da sua aceitação ulterior) e a violação da paz (v. g., maltratar os embaixadores). Para outros, incluiria ainda a opressão injusta de inocentes e o impedimento do comércio pacífico, pois este seria uma forma natural de comunicação entre os homens (é a opinião de Vitória e, também, do autor anónimo de um Tratado sobre a guerra que será justa [c. 1547-1548], Dias, 1973,236,246; contra, Luís de Molina, cit. por Dias, 1973,263, que decerto não esquecia que os reis de Portugal e Espanha impediam o comércio de outros europeus dentro das suas áreas de influência). O elenco não abrangia, no entanto, nem a guerra ordenada pelo Papa, nem a aquela de que proviessem benefícios espirituais (conversão), nem a que fosse feita a pretexto da prática pelos indígenas de actos considerados pelos cristãos como bárbaros ou depravados (cf. Fragoso, 1640, III, p. 628, n. 6; Soto, 1556, lib. 5, qu. 3; também, Dias, 1973,247,254 ss., 260).

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(7) Os princípios da teologia moral peninsular quanto à escravização e ocupação dos domínios alheios estão compendiados, v. g. em Fragoso, 1641 III, I. 10, disps. 21 e 22 (onde se cita bibliografia suplementar, nomeadamente, Rebelo, 1608, I, lib. I do prael., qs. 9 e 10, e Molina, 1593, I, tract. 2, disp. 35;. A sua casuística pode ser compendiada (seguindo, sobretudo Fragoso, 1641, loco cit.) da seguinte forma: (i) excluem a escravização de cristãos por cristãos, mesmo em guerra justa, por não estar em uso; (ii) o mesmo quanto à de fiéis por infiéis, pois estes nunca gozariam de título justo para a guerra; (iii) excluem a escravização dos japoneses, pois estaria proibida por lei (de D. Sebastião) e por uma provisão do bispo do Japão; (iv) o mesmo quanto à dos chineses, ser desconhecida na China e os seus inimigos [tártaros e japoneses, sobre os quais v. a lei de 20.9.1560, em Leys, & provisões que Elrey D. Sebastião, Coimbra 1816, 129-131] carecerem de título justo para os guerrearem a cativarem, dado que as suas guerras seriam ofensivas, atento ao carácter pacífico dos chineses; (v) os índios brasileiros: apenas poderiam ser reduzidos a cativeiro em guerra justa que entre eles tivesse lugar, sendo em princípio injusta a que lhes movessem os europeus, por ser ofensiva; de qualquer modo excluíam que o cativeiro dos índios se pudesse justificar peja intenção de os converter, pois a conversão seria essencialmente um acto de adesão livre; (vi) quanto aos hindus, a sua escravização seria justa se decorresse da guerra justa que os portugueses aí conduzissem contra turcos e mouros ou reinos a eles aliados; quanto aos dos reinos amigos, só se se vendessem por uma necessidade extrema; (vii) quanto, finalmente, aos africanos (da Guiné, Angola e Monomotapa), o seu cativeiro seria legítimo apenas se proveniente de guerra justa ou da venda de si mesmos por máxima extrema; mas não já apenas para os forçar à conversão; em geral, a presunção mais provável seria a da injustiça do cativeiro, quer porque usualmente estes escravos teriam sido vendidos por infiéis que os capturavam por violência e dolo, quer porque as guerras intertribais seriam mais latrocínios do que guerras; daí que pecassem quem os vendesse ou comprasse sem prévia e cuidadosa averiguação (o bispo do Congo, D. Pedro Brandão, apenas teria dado a absolvição a menos de 200 dos 3000 comerciantes de escravos que operavam na sua diocese). (8) Sobre esta e outras classificações das coisas (móveis e imóveis, corpóreas e incorpóreas, sagradas, religiosas e santas, no comércio ou fora dele, de um dono, comuns e de ninguém [rei nullius]), cf. Amaral, 1610, s.v. “Res”; Meio, 1789, III, I, 10. (9) Uma manifestação de “coisificação” é a disponibilidade da actio furti para punir a usurpação de direitos sobre coisas (um caso particular é o do furto de uso). (10) Sobre o tema, Hespanha, 1979,52 ss.; Vallejo, 1992, 141 ss., com muitos textos impressivos (“E esta equiparação da jurisdição ao domínio prova-se assim: o príncipe tem toda a jurisdição [...] e por isto se diz senhor [dominus] de todo o mundo” (Bártolo, cit. p. 149). O domínio do príncipe (e restantes magistrados) sobre os seus súbditos e sobre as coisas existentes no seu território era descrito como um dominium quoad iurisdictionem, ou seja, um domínio dirigido a uma certa fruição (jurisdicional), como os outros domínios (v. g., o utile) se dirigiam a fruições diferentes (v. g., a fruição económica). Mais tarde, maxime com Hugo Grócio (1583-1645) fixa-se a expressão “domínio eminente”. Só quando o domínio passa a ser considerado como um poder absoluto (v. infra) é que a ideia de um “domínio político” se toma paradoxal, pois não poderiam existir dois domí-

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nios sobre as mesmas coisas. Em Portugal, o poder tributário ainda é filiado no domínio eminente por Pascoal de Meio (1789, I, 4, 7); mas tal conceito já é criticado por António Ribeiro dos Santos e problematizado por Lobão. (11) “Sem desejo e sem vontade ninguém tem domínio”, escreve Richard Connington; “como são inseparáveis o amor do domínio”, exclama John Peckham. “Isto [a aquisição do domínio] opera-se exclusivamente pela vontade interior e as manifestações exteriores, por muito fortes e eficazes que sejam naturalmente, apenas são relevantes enquanto sinais voluntários da vontade interna”, escreve Pedro de Olivo, tudo escritores franciscanos dos sécs. XIII e XIV. Manifestações desta nova dissociação entre o domínio e o uso são, por um lado, o avarento (que é dono, mas não usa) e, no outro pólo, justamente os mendicantes (que usam, mas não são donos). (12) Cf. J. Carbonnier, Droit civil. Les biens, Paris, 1978,94; M. Vidal, “La propriété dans l’École de I’exegese an France”, Quad. fior. per la storia del pensiero giuridico moderno, 1976/1977, I, 7-40. O uso do termo absoluto com este sentido de não dependente da vontade de outrem remonta, pelo menos, ao séc. XVII (“dominium est ius in re absolutum et firmum non dependens ex alterius nutus et arbitrio”, Laesius, De iustitia et de iure, 11, capo 3, dub. 8, n. 32). (13) Cf. Teles, 1835, 8/9, ns. 14 a 17: regras sobre as prioridades no exercício dos direitos concorrentes. (14) Cf. Manuel Fernandes Thomaz, Observações sobre o discurso que escreveu Manoel d’Almeida e Sousa em favor dos direitos dominicaes da coroa, donatarios, e particulares, Coimbra, 1814,80/81; Teles, 1835, I, 117 (n. 743); sobre o pretenso direito eminente do Estado, v., Lobão, 1828, III, 64. (15) Daí a antipatia da generalidade dos autores desta época pela obrigatoriedade de cultivar as terras, frequente nas leis agrárias anteriores (cf. José Acúrsio das Neves, Memória sobre os meios de melhorar a industria portugueza, considerada nos seus differentes ramos, Lisboa, 1820, 24 ss.: “é viciosa toda a lei que faz violência ao proprietário, ou ao lavrador sobre o uso do seu prédio, ou sobre o seu modo de cultura”. Já os teóricos iluministas apostavam na estrita regulamentação da produção agrícola (cf. António Henriques da Silveira, “Sobre a agricultura e população da província do Alentejo”, em Memorias economicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa, I, 41-123; Prophyrio Hermeterio Homem de Carvalho, Primeiras linhas de direito agrario, n’este reino, Lisboa, 1815. (16) Cf. Aires Pinhel, De bonis maternis, Conimbricae, 1557; D. A. Portugal, De Donationibus 1673, L 3, C. 13, n. 42; M. A. Pegas, Commentaria ad Ordi 1669, V.g. ad Ord. II, 33, 9, gl. 11 n. 2; Pascoal de Melo, 1789, III, 2,4. (17) “Dominii appelatione proprio venit directum; lato modo vero tam utilis quam directum venit” (Agostinho Barbos, “De appellatione verborum”, em Tractati varii, Lugduni, 1644, s.v. “dominium”, app. 79, n. 1); também Portugal, 1673, p. 3, c. 13, n. 42 ss. (18) Cf. Aires Pinhel, De bonis maternis, pp. 81/82; António Gama e Alvaro Valasco, Promptuarium iuridicum (elab. por Bento Pereira), Eborae, 1615, s.v. “dominium”; Portugal, 1673,1. 3, c, 13, n. 42. (19) Cf. Phorphyrio Hermeterio Homem de Carvalho, Primeiras linhas do direito agrario deste reino, Lisboa, 1815; ou Manuel Femandes Thomaz, Repertorio geral [...] das leis extravagantes, Lisboa 1843 (2.’ ed.), s.v. “Agricultura”.

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(20) Cf. Manuel Femandes Thomaz, Observações sobre o discurso que escreveu Manoel d’Almeida e Sousa em favor dos direitos dominicaes da coroa, donatarios e particulares, Coimbra, 1814. (21) Que só serão abolidos em 19.5.1863, embora legislação pombalina (Cs. L. de 7.9.1769 e de 3.8.1770; cf., suspendendo parte das suas disposições, a c.L. de 17.7.78) já tivesse tomado certas medidas destinadas a liberar a propriedade vinculada: na verdade, estas leis proíbem (ou, no caso, dos morgados, condicionam a autorização régia, dada pelo Desembargo do Paço), para o futuro, a instituição de morgados e de capelas sobre bens de raiz, mandam reverter à coroa os devolutos e extinguem os que não tenham um rendimento superior a certa quantia. Estas duas cartas de lei devem ter gerado um movimento de desvinculação que, no entanto, não foi ainda estudado (cf. Tomás António de Villanova Portugal, em Memorias de litteratura, III, 460). (22) Já havia uma tradição legislativa anterior, impondo limites aos censos ou aos juros (cf. alvs. 13.12.1614; 12.10.1643; 23.5.1698). No entanto, as providências pombalinas são especialmente relativas aos censos do Algarve. Cf. alvs. 16.1.1773 (limita os censos a 5% do produto); 4.8.1773 (reduz os censos a 1/ 3); 15.7.1779 (volta atrás, reduzindo-os apenas a 1/2). Mais tarde, discute-se a oportunidade de estender esta determinação a todo o reino. (23) Sobre a lesão na enfiteuse, v. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria ad Ordinationes, Ulysipone, 1740, IV, 327 ss.; Manuel de Almeida e Sousa, Discurso juridico, historico e critico sobre os direitos dominicaes, Lisboa 1813, § 68 ss., n. 46 ss. (24) O projecto baseava-se num voto ainda mais ousado do desembargador Francisco de Abreu, que ampliava a anterior disposição a todos os particulares. V. a documentação no A.N.T.T., Reino, mç. 356. (25) Com base num texto de Digesto relativo à concessão pública de águas (D., 43,20,1,44), Bártolo defendia a opinião de que a equidade obrigava à renovação da enfiteuse “equidade bartolina”). Sobre a equidade bartolina na doutrina portuguesa pré-iluminista, v. António Cordeiro, Resoluções theojuristicas, Lisboa, 1718, resol. 1 a 12 (adversário da renovação, fundando-se no direito comum e pátrio e na prática dos tribunais do reino, pelo menos a partir do século XVI); quanto a este último ponto, as opiniões não são, contudo, uniformes (cf. Alvaro Valasco, Decisionum, consultationum ac rerumjudicatarum, Ulysipone 1583-1601 [ed. cons. 1730], que refere haver discrepâncias na jurisprudência da Casa da Suplicação e da Casa do Cível). (26) É o caso de Vicente José Cardoso da Costa, Memoria sobre a avaliação dos bens de prazo, Lisboa 1802, 30 ss.

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Objectivos da aprendizagem Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de: •

Explicar o carácter modelar do discurso e das técnicas de decisão do direito;



Identificar os mecanismos pelos quais o direito moderno se renova e se abre ao contexto cultural e social;



Identificar os traços de casuismo e de particularismo do direito de Antigo Regime;



Definir os traços gerais do processo de recepção do direito romano e avaliar a sua importância do ponto de vista político;



Caracterizar a ordem jurídica portuguesa moderna, pré e pós-pombalina.

Num texto de há um par de anos187 , desenvolvi o tema da centralidade do “iudicium” – i. e., de um processo regulado, metódico e dialogado de decisão – como modelo de resolução dos conflitos na sociedade tradicional europeia(1). Daí resul-

187 Hespanha, 1990.

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tava uma imagem que salientava a centralidade da justiça – como norma de regulação dos comportamentos sociais –, do juízo – como técnica de certificação das posições sociais e como mecanismo de decisão dos litígios – e dos juristas – como engenheiros e mediadores das relações sociais. Algo ficou então por dizer sobre a justiça, como virtude, isto é, como norma de comportamento moral. Mas do conjunto já terá ressaltado como é indispensável o estudo das fontes jurídicas (a que acrescento, por razões que se exporão mais adiante, as fontes teológico-morais) para a compreensão dos comportamentos individuais e das estratégias sociais na Época Moderna. . Não se trata apenas de que os quadros do direito servem para entender e descrever, com uma grande economia de trabalho de pesquisa, os quadros de organização da vida colectiva; pois, de facto, na grande literatura jurídica moderna, tanto na tratadística, como na casuística, se encontram, explícitas e sistematizadas, as normas que disciplinam os comportamentos sociais, tanto nas suas relações com os poderes, mas ainda nas relações entre os particulares. Trata-se, para além disto, de que o próprio imaginário social está repassado de referências ao mundo do direito e da justiça. A justiça é o primeiro objectivo do governo, pois ela consiste no respeito da própria ordem das coisas (“iustitia est perpetua et constas voluntas ius suum cuique tribuendi”, a justiça é a vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o seu lugar na ordem do Universo, D,I,1,12, § 1); a justi110

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ça é a segunda virtude cardinal188 ; o direito é a garantia das situações sociais e individuais estabelecidas pela ordem natural e sobrenatural (“iurisprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, justi atque injusti scientia”, D,I,1,12,2); o “juízo” é uma via intelectual para a prudência e esta é a primeira virtude cardinal189 e a mestra da vida em sociedade)190 ; os juristas são os sacerdotes do justo e do eqüitativo (“jus est ars boni et aequi, § 1. Cuius merito quis nos sacerdotes appellet”, D.,I,1,1,1/2). Mas, para além de tudo isto, o direito constitui, com a teologia, o núcleo duro da cultura literária do Antigo Regime. E não apenas por, em termos do número das obras impressas durante os séculos XVI e XVII (por exemplo, em Portugal, em Espanha e em Nápoles), a tradição literária do direito ser o mais rico dos saberes especializados, logo a seguir à da teologia(2). O objectivo deste capítulo é, justamente, o de explicar, desde logo, qual era a natureza deste direito. Isto porque é essa sua natureza, tão diferente da do direito dos nossos dias, que o torna tão importante como factor de conformação das relações sociais. Veremos que o direito é considerado como muito mais do que o produto da vontade, momentânea e aleatória, dos detentores do poder político; que é considerado 188 Tendo como virtudes anexas a religião (em relação a Deus), a piedade (em relação aos pais), a observantia (em relação aos diferentes estatutos sociais), a verdade e a graça; cf. S. Tomás, Summa theologica, II.IIae, qu. 58-123. 189 Cf. S. Tomás, Summa theologica, II.IIae, qu. 47-57. 190 Sobre o juizo, S. Tomás, Summa theologica, II.IIae, qu. 60.

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como uma “razão escrita” (ratio scripta), objectiva, ligada à natureza das coisas, não instrumentalizável pelo poder, que se manifestava numa longa tradição intelectual e textual. Veremos, depois, como é que esta tradição literária e intelectual comunicava com a prática social, conformando-a e recebendo dela estímulos. A este propósito, discutiremos uma questão famosa, a de saber se esta tradição do direito letrado contribuía ou não para centralizar o poder. Finalmente, descreveremos, nos seus traços essenciais, o quadro das fontes de direito portuguesas da Época Moderna.

1.1 O direito como tradição literária Esta tradição literária é relativamente difícil de abarcar para os não iniciados. Pela magnitude do seu corpo textual, mas também pela sua sistematização, que não coincide com as actuais sedes materiae da ciência do direito, da sociedade e do poder. Mas, sobretudo, ela constitui um sistema com regras muito próprias de construção, regras essas que condicionam os sentidos de cada texto. O objectivo deste capítulo é, justamente, o de, de uma forma sintética, procurar descrever as linhas de força da arquitectura do conjunto, de modo a constituir uma introdução elementar ao seu uso historiográfico. Uma apresentação das características desta tradição merece, portanto, a pena. É o que faremos seguidamente. A tradição jurídica europeia é baseada – como outras – numa tradição literária, i. e., numa cadeia de textos cuja 112

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unidade decorre, antes do mais, da referência aos mesmos textos fundadores. No caso europeu, estes textos fundadores são, por um lado, os textos do direito romano, nomeadamente os contidos no Corpus iuris civilis, mandado elaborar por Justiniano I, imperador de Bizâncio (529 d.C.-565 d.C), e os textos de direito canónico, quer os de direito divino (as Escrituras), quer os de direito humano (nomeadamente, os contidos no Corpus iuris canonici, c. 1140-século XV). Como em todas as tradições literárias, coexistem na tradição jurídica europeia duas tensões opostas: a da autoridade dos textos fundadores, que traz consigo o sentimento de que lhes é devida fidelidade, e a da inovação, condição indispensável de uma actualização da tradição e da sua compatibílízação com o ambiente “extratextual”. Os fundamentos da autoridade dos textos fundadores são, no caso do direito canónico, o da sua natureza de textos revelados ou provenientes de autoridades providas de carisma religioso, como o Papa e os concílios(3); no caso do direito romano, a convicção do seu carácter racional (a sua natureza de ratio scripta, razão escrita). A autoridade dos textos jurídicos fundadores não era, no entanto, do mesmo tipo da autoridade dos actuais textos legais. É certo que, num caso e noutro, o intérprete não está autorizado a afastar o texto, a substituí-lo ou a submetê-lo a um “livre exame”. Mas, nos actuais textos legislativos, há alguém – o legislador – que o pode fazer, pois os textos legislativos não reproduzem uma ordem (racional ou natu113

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ral) necessária ou indisponível, mas a vontade de pessoas ou de órgãos colectivos. Vontade essa que é mutável (arbitrária) e susceptível de ser questionada no plano da política do direito (de iure condendo), embora não o possa ser no plano estritamente jurídico (de iure condito). O mesmo não acontecia, porém, no seio da tradição jurídico-textual europeia medieval e moderna, em que, decorrendo a autoridade dos textos ou da revelação ou da razão, estes eram indiscutíveis, mesmo no plano da política do direito. O que tinha duas consequências. A primeira era a de que o jurista, para além de estar obrigado a observar o texto, estava ainda obrigado a aderir à sua razoabilidade e a demonstrá-la191 ; ou seja, a cultivar um discurso “dogmático”, em que as proposições deviam ser aceites pela sua evidência interna e não pela sua dependência em relação a factores externos de constrangimento (como, nomeadamente, o poder que o príncipe tem de fazer aplicar coactivamente os seus comandos). A segunda consequência era a de que a tradição textual (e os seus cultores) gozavam de uma autoridade que era independente do poder político e, mais do que isso, superior a esse poder, pois a razão (ou revelação) gozava de uma autoridade mais elevada e mais geral do que a vontade dos príncipes. Tudo isto explica o 191 A menos que o texto contrariasse uma razoabilidade de ordem superior da própria tradição doutrinal. Por exemplo, se um texto de direito civil contrariasse gravemente um texto de direito canónico; ou se um texto de direito particular (v. g., uma lei ou um costume de reino) contrariasse a razão do direito comum (“contra tenorem iuris rationis”).

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modo subordinado como esta tradição textual integrará as normas que não se fundam directamente nos textos fundadores (como é o caso da legislação real). Esta autoridade dos textos interioriza, nos seus leitores, a ideia de que se lhes deve obediência, de que eles constituem uma matéria obrigatória de transmissão (de ensino, dogmata) e de que o único trabalho legítimo do intérprete é o da sua explicação (ou “abertura”, ex-plicare). Ou seja, o de procurar captar, com base na sua letra ou indo para além dela, todos os sentidos que eles encerram. Esta atitude reproduz o modelo de relação que os teólogos mantinham com os textos revelados e remete para a ideia de que, sendo a palavra (oral ou escrita) um meio finito e limitado de expressão, há sempre sentidos ocultos para além da superfície das palavras (ultra corticem scripturarum), sendo a tarefa do intérprete a de reconstituir, por meios racionais ou para-racionais(4), o sentido existente no espírito do autor do texto. A hermenêutica (ou teoria da interpretação) constitui, justamente, o saber que permite o aprofundamento desta tarefa de captação do sentido. Se a autoridade dos textos constitui um pólo de tensão, sobretudo num saber que visa a regulação prática do mundo extratextual, esta tensão que decorre da autoridade combina-se com a que decorre da necessidade de actualização (ou inovação). É certo que qualquer tradição literária comporta necessariamente inovação, uma vez que cada leitura constitui uma recriação do texto original. De facto, o acto de leitura integra o 115

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texto lido no horizonte intelectual do leitor192 ; e, a partir desse momento, produz-se uma dupla reacção. Os sentidos presentes nos quadros intelectuais (linguísticos, semânticos, culturais, vivenciais) do leitor enxertam-se nas palavras do texto que, assim, ganha um novo significado. E, por outro lado, esta nova leitura aumenta o arquivo de referências intelectuais do (de um novo e sucessivo) leitor. Claro que desta contextualização do texto no universo intelectual do seu receptor resulta uma enorme atenuação (senão a completa subversão) dos sentidos originais do texto recebido, mesmo quando o leitor se esforça por reconstituir o ambiente intelectual em que o texto é produzido, pois mesmo esta reconstituição está irremediavelmente dependente das categorias mentais do receptor. Mas, para além desta actualização “impensada”, pode haver uma actualização consciente e, até, voluntária, derivada do facto de o leitor (ou receptor) querer adequar o texto a novas problemáticas, quer estas provenham de outros textos (por exemplo, de textos teológicos com os quais os jurídicos devam ser postos de acordo, como aconteceu com os textos romanos em face dos textos da teologia cristã), quer elas provenham do ambiente extratextual (i. e., da sociedade à qual os textos devam ser aplicados). Neste caso, o problema que se põe é o de compatibilizar a fidelidade com a actualização. E a solução é ainda aqui a mesma – toda a inovação tem que aparecer (com mais ou menos verosimilhança) como inter192 Que, para este efeito, pode ser considerado como um “intertexto” no qual o texto lido é integrado e do qual passa a receber sentido.

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pretação, como desvendamento de sentidos já presentes, embora implicitamente, no texto. Por isso é que a tradição textual clássica do direito europeu, embora pareça imobilista e conservadora, só formalmente o é. Porque, embora as referências invoquem incessantemente os mesmos textos, estes recebem, também incessantemente, novos conteúdos, pensados ou impensados. Quando se trata de actualizações conscientes, esta tarefa de inovação exige a disponibilização de meios intelectuais muito poderosos de tratamento dos textos. Ou seja, de meios (lógicos, argumentativos, hermenêuticos) capazes de fazerem passar por sentido original do texto os novos sentidos que o autor aí quiser inserir. Isto explica também o carácter extremamente refinado e complexo da técnica de tratamento interpretativo dos textos corrente ao longo da tradição jurídica europeia. Esta complexidade da estrutura do discurso jurídico não constitui, por isso, um elemento apenas estilístico (o gosto pelas “subtilezas”, o “formalismo lógico-dialéctico”, o carácter “escolástico”), mas uma condição de actualização de textos dotados de autoridade. Com o tempo, no entanto, é certo que a função se transforma em estilo e que a sua reprodução decorre do facto de este estilo se ter incorporado também na tradição, como um seu elemento “formal”. E de ter passado, assim, tal como acontecia com as referências “materiais”, a constituir um elemento obrigatório de referência. O discurso específico que era a “literatura jurídica” caracterizava-se, assim, por uma dupla ligação à tradição. Por um lado, uma ligação “ma117

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terial” aos textos fundadores e à cadeia textual construída sobre eles; por outro lado, por uma ligação aos géneros literários consagrados e à sua morfologia estilística. Numa tradição literária em que cada peça textual não é mais do que um aprofundamento, sempre parcial e provisório, de textos fundadores com uma gama ilimitada de sentidos, cada texto não se substitui aos anteriores nem lhes retira a sua validade. Assim, a dinâmica da tradição é uma dinâmica agregativa, em que cada nova interpretação passa a coexistir com as anteriores. E não, como na tradição legislativa dos nossos dias, uma dinâmica substitutiva, em que a lei posterior derroga a anterior (pelo menos naquilo em que a contrariar). Uma tradição dotada de uma dinâmica agregativa põe, no entanto, problemas quanto à decidibilidade das soluções, pois – não coincidindo várias propostas diversas – surge o problema de saber qual delas deve ser preferida. A solução normal é a de manter a questão em aberto, deixando o campo livre a cada nova leitura para, em face do complexo de textos em presença (i. e., do intertexto), encontrar um sentido que compatibilize as várias peças da tradição textual (uma concordia discordantium). Mas, se alguma hierarquização tiver que ser feita, ela deve respeitar, ainda, a lógica agregativa da tradição. Ou seja, deve preferir a interpretação surgida mais vezes (a mais comum, communior opinio), porque esta – num mundo em que o acesso pleno ao sentido dos textos está excluído e em que, portanto, não existem senão maiores ou menores possi118

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bilidades de aproximação – é a mais provável e, também, a mais incorporada na própria tradição. Também compatível com a lógica agregativa da tradição é a solução de que preferíveis são as opiniões mais modernas, ou seja, daqueles que, tendo podido conhecer todos o intertexto tradicional e, portanto, todas as propostas hermenêuticas aí contidas, se pronunciaram em certo sentido. Em certo sentido, a lógica agregativa é, aqui, substituída por uma lógica substitutiva. Mas deve notar-se que a última opinião é como que a suma (ou o saldo) das opiniões anteriores que, de resto, não são canceladas da tradição(5). As duas anteriores soluções levam, porém, a resultados totalmente diversos quanto à dinâmica da tradição. O primeiro reforça o seu imobilismo, o império das soluções recebidas sobre as soluções inovadoras. O segundo, pelo contrário, acelera a mudança, embora limitada pela obrigação de fidelidade aos textos fundadores. De qualquer modo, o seu preço é o de uma maior indisciplina e maior incerteza. Em contrapartida, uma solução incompatível com o conceito de tradição é a de escolher como decisiva a solução preferível, do ponto de vista do intérprete, do ponto de vista da política do direito, ainda que sem qualquer base textual (“sine textum arguere [...]). Ou a solução proposta em nome de uma qualquer autoridade extrínseca à tradição (como uma lei nova do príncipe). Neste caso, fecha-se um ciclo da tradição textual, embora se possa, ao mesmo tempo, abrir um novo ciclo com base no novo texto(6). 119

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1.2 Tradição jurídica e contexto social Outra característica de uma tradição jurídica como a europeia é o seu carácter auto-referencial. Ou seja, todo o sistema de referências e de autoridades da tradição está contido nela mesma. Assim, as razões de decidir (rationes decidendi) ou são os textos da tradição (textos do Corpus iuris civilis, textos do corpus iuris canonici, glosas ou comentários sobre eles, outras obras doutrinais neles baseados) ou uma “sensibilidade jurídica” deles induzida (aequitas, ratio iuris, natura rerum)193 . O próprio direito dos reinos ou da cidades (iura propria) apenas é recebido nos termos estabelecidos pela tradição. Desde logo, o fundamento da sua recepção é um texto do Digesto (a 1. omnes populi, (D.,I,1,9); e, depois, todo o seu processamento está sujeito à ratio do direito comum. Uma norma de direito próprio contrária aos princípios do direito comum (contra tenorem iuris rationis) pode ser admitida, mas será sempre considerada como excepcional e odiosa e, no momento de ser interpretada e aplicada, será objecto de uma contínua usura que tenderá a tirar-lhe progressivamente toda a eficácia. Um fechamento ainda maior se verifica em relação às “razões de oportunidade” ou de “utilidade” experimentadas no plano das relações sociais. Em princípio, elas não são invocáveis senão enquanto forem suportadas por algum fun-

193 Que, frequentemente, se encontra já concretizada em textos integrados na tradição.

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damento textual. Tal como “o que não consta do processo, não existe” (quod non est in actis non est in mundo), também o que não é tido em consideração nos livros de direito não o deve ser no momento de decidir (i. e., quod non est in libris non est in mundo). É isto, fundamentalmente, o que separa os juristas dos “políticos” nas polémicas seiscentistas sobre o modo de governar. Enquanto os juristas pensavam que governar era “fazer justiça” e que as regras da arte de fazer justiça (iurisprudentia) estavam na tradição textual do direito, os políticos criam que se devia decidir a partir da consideração da própria realidade, levando a cabo um seu “livre exame” . Também no seu desenvolvimento ou reprodução, o sistema da tradição jurídica é auto-suficiente; ou seja, cria-se a si mesmo, apenas com os seus recursos e de acordo com as suas regras de reprodução – é autopoiésis. Já antes se disse. Não apenas qualquer solução nova se tem que fundar noutra solução anterior já existente na tradição, como essa fundamentação tem que se processar de acordo com regras de inferência (com uma ars decidendi) estabelecidas também na tradição. E, de facto, os argumentos utilizáveis em direito estão rigorosamente codificados, sendo mesmo objecto de “catálogos”, em que aparecem alfabeticamente listados e acompanhados das suas regras de uso. É o caso dos tratados de lugares comuns (tractatus de locis communibus), muito vulgares a partir do século XVI. Deve, em todo o caso, atentarse na natureza desta codificação. Nos séculos seguintes, por influência do racionalismo, também se produzem obras so-

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bre as regras de pensar bem em direito (epistemologia jurídica, metodologia jurídica, lógica jurídica). Mas, enquanto estas novas obras têm um carácter universalisante e prospectivo 194 , as mais antigas remetem para a experiência de um “pensamento pensado”; são catálogos de argumentos “comuns”, i. e., já produzidos e geralmente aceites (e não apenas produzíveis). A tradição é, assim, não apenas um sistema de proposições, mas também um sistema de regras de produzir novas proposições. O fechamento da tradição jurídica ao meio envolvente não é absoluto. Ela é sensível a estímulos exteriores; e só isso explica a sua eficácia regulamentadora durante vários séculos195 . Mas é o próprio sistema da tradição que define os limiares da sua sensibilidade em relação ao meio (ao “extratexto”), bem como o tipo de canais de comunicação (de mecanismos de textualização do extratexto) entre o meio e o sistema textual. Tal como no direito actual, essas interfaces do sistema da tradição jurídico-literária são constituídas sobretudo por “conceitos flexíveis”, ou seja, por conceitos que, pelo seu carácter pouco estruturado (no plano sintáctico), são muito sensíveis às exigências (às compressões, aos estímulos) do mundo não

194 Ou seja, estabelecem regras que são válidas pela sua evidência ou racionalidade, independentemente de terem sido “recebidas” no discurso jurídico; referem-se a um discurso a fazer (infieri) e não a um discurso feito (factum). 195 Embora deva ser salientado que o direito letrado não constituiu a única fonte de regulamentação da sociedade; longe disso. Concorrendo com ele estavam, para além do direito espontâneo, ordens normativas como a moral e a religião. Para não falar já de formas menos estruturadas e visíveis de normação social como a rotina e o senso comum.

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jurídico. Conceitos como “equidade” (aequitas, bonum et aequum), “natureza das coisas” (natura rerum, ius naturale), “interesse”, seja “privado”, seja “público” (id quod interest, salus publica [quae suprema lex est]). Qualquer destes conceitos remete para âmbitos de discussão que já não pertencem ao direito196 , esperando daí uma decisão que se incorpora, depois, no processo de raciocínio jurídico(7). Além de que no raciocínio jurídico aceite estavam incorporados argumentos que reenviavam também para a sensibilidade extrajurídica (v.g., o argumento por redução ao absurdo [ab absurdum], por paridade de razão [a pari], por maioria de razão [afortiori], a partir das consequências [a consequentis], etc.) e daí esperavam, também, uma decisão a incorporar no raciocínio. De qualquer modo, esta disponibilidade para incorporar decisões tomadas num plano extratextual não era ilimitada. O próprio sistema da tradição seleccionava as instâncias extratextuais que deviam levar a cabo esta tarefa de textualização do ambiente e que eram, nomeadamente, os tribunais. Eram, de facto, os juristas letrados envolvidos na prática que deviam dar conteúdo a esses conceitos indeterminados ou mesmo incorporar na tradição normas desenvolvidas autonomamente pela prática judiciária, normas usualmente introduzidas pelas adversativas “in foro autem...”, “in praxi autem...” (“no foro, no entanto...”, “na prática, no entanto...”). Daí que os géneros literários mais sensíveis ao 196 Qual seja a natureza das coisas, o que é que é equitativo, qual o equilíbrio desejável do interesse, o que é que é exigido pelo interesse da comunidade.

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ambiente e por onde este se integrava mais facilmente no intertexto jurídico-tradicional fossem aqueles produzidos no âmbito das instituições judiciárias – as colecções de decisões (decisiones), de alegações (allegationes), as exposições da prática judicial ou para-judicial (praxistica). De onde as inovações iam transitando para os géneros literários mais dependentes dos textos fundadores (commentaria, tractatus). Por isso, os mecanismos de abertura da tradição aos estímulos do ambiente não eram os mesmos em todos os géneros literários sob os quais se manifestava a tradição. Uma outra questão é a da abertura do sistema da tradição literária do direito em relação a outras tradições textuais, nomeadamente a da teologia ou da filosofia. Aqui, a incorporação na tradição literária do direito era facilitada pelo facto de alguns dos textos fundadores serem comuns. Era o caso, nomeadamente, dos textos das Escrituras, de que arrancava quer a tradição do direito canónico, quer a da teologia e, até certo ponto, da filosofia. Este facto de haver textos fundadores comuns às duas tradições aparentava-as o suficiente para permitir que as autoridades reconhecidas numa fossem também autoridades reconhecidas na outra. Esta emigração e imigração das autoridades explica, por exemplo, que os juristas chamem em apoio (embora normalmente subsidiário) das suas decisões a autoridade, v. g., de Aristóteles, de Séneca, de Santo Agostinho ou de S. Tomás. Para além de que estes tinham também, num plano diferente do das instâncias práticas, produzido reflexões que permiti124

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am dar conteúdo aos conceitos indeterminados a que antes nos referimos; ou seja, tinham reflectido sobre a “equidade”, sobre a “natureza das coisas” e sobre a própria “justiça” como virtude. Tinham, por outras palavras, cultivado aquele “conhecimento das coisas divinas e humanas” em que a arte do justo e do injusto se deveriam fundar (“iurisprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia”, cf. D., 1,1,10,2). Esta sensibilidade ao intertexto teológico e filosófico era, em contrapartida, mais nítida nos géneros literários característicos do meio escolar, onde, frequentemente, os mesmos autores participavam nas duas tradições, escrevendo obras tanto de teologia como de direito. É o que se passa, nomeadamente, com os grandes juristas, teólogos ibéricos da Segunda Escolástica. Uma tradição literária que, como a jurídica (ou a teológica), que se prolonga durante centenas de anos, não pode deixar de condicionar o imaginário social, mesmo o daqueles grupos sociais que não participam na sua criação e desenvolvimento. De facto, apesar de este direito letrado não monopolizar – longe disso – o universo da normação social, o certo é que ele tende a constituir o centro do direito oficial dos reinos de toda a Europa central e ocidental e, por isso, a constituir uma referência (em última instância) para toda a vida jurídica da comunidade. Ou seja, as pessoas sabem que no topo de uma ordem jurídica que era, é certo, profundamente pluralista, existia, apesar de tudo, um direito eminente, aplicado nos tribunais que decidiam em última instância 125

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e que este era o direito da tradição letrada. Daí que, na perspectiva do que pudesse vir a acontecer mais tarde (nomeadamente no plano dos eventuais recursos judiciais junto de altos tribunais letrados), se desenhasse a tendência para ir incorporando, mesmo nos níveis mais baixos da vida jurídica, elementos deste direito exemplar. Esta osmose entre a tradição jurídica letrada e a prática jurídica quotidiana efectuava-se por meio de uma série de mediações. As obras da tradição literária não chegavam à vida quotidiana na sua forma integral e original. Elas eram, de resto, escritas numa língua e num estilo que impedia a sua difusão nos meios não letrados. Por isso, as suas vias de vulgarização eram mediadores jurídicos não letrados que, não dominando de qualquer modo o sistema e as especificidades do direito erudito, dele colhiam ditos, regras muito simples, fórmulas tabeliónicas que iam incorporando na vida jurídica quotidiana, nomeadamente em função da progressiva utilização da escrita nos actos jurídicos. Esta camada de mediadores produzia, ela mesma, uma literatura própria (v. g., ars notariae), que vulgarizava o direito erudito e o vasava em broearda ou dieta simplificados, acessíveis, por tradição escrita ou oral, à generalidade da população. Neste processo de vulgarização da tradição jurídica letrada também não se pode desconhecer a importância do papel da Igreja, cuja disciplina era largamente baseada num direito que pertencia a essa tradição. E, como acontecia com a própria tradição teológica, quer a liturgia, quer a parenética, 126

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divulgavam o conteúdo do direito, modelando o nível da transmissão às características do auditório. Foi por estas vias que se foi criando uma cultura jurídica vulgar que passou a condicionar fortemente, como já descrevi noutro lado197 , o imaginário popular sobre o direito, sobre a justiça, sobre os processos sociais e, até, sobre os processos psíquicos e sobre o destino último dos homens(8). Do mesmo modo, a forma notarial (escrita e formal) decertificação das situações passa a ser tão utilizada que já se chamou à sociedade europeia moderna a “civilização do papel selado” (civiltà della carta bollata). Mas se esta centralidade do imaginário jurídico se explica pela existência destes processos de mediação, ela relacionase também com a própria centralidade do direito na sociedade medieval e moderna, uma sociedade que o historiador russo Abraham Gurevic define, muito justamente, como “construída sobre o direito198 ”. A sociedade entendia-se, na verdade, como um universo organizado, em que cada coisa e cada pessoa tinham o seu lugar, traduzindo-se toda a política num incessante esforço para manter esta ordem da criação, garantindo a cada um o seu lugar (ius suum cuique tribuendi). Já se vê que, neste contexto, todas as situações pessoais e sociais eram entendidas como garantidas pelo direito, como direitos adquiridos (iura quaesita ou radicata) e, assim, o direito to197 Hespanha, 1990. 198 Abraham Gurevic, Le categorie della cultura medievale, trad. it., Einaudi, Torino, 1983.

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mava o lugar da política (de uma política “regulada”) nos conflitos entre as pessoas, os grupos ou os reinos.

1.3 A ordem jurídica de Antigo Regime Ao contrário do que veio a acontecer a partir do momento em que se passou a conceber o direito como um discurso axiomático e more geometrico ordinatum, a ordem jurídica de Antigo Regime tinha uma arquitectura que desvalorizava a norma geral. Desvalorizava-a, desde logo, quando englobava no conceito mais geral de lei qualquer proposição dotada de autoridade, como a afirmação dos sábios. Assim, o Digesto define a lei, antes de mais, como “commune praeceptum virorum prudentium consultum” (D.,1,3,1) e esta tradição mantevese até muito tarde199 ; era, fundamentalmente, neste sentido que se falava de “leis” do Corpus iuris, pelo menos nos reinos não sujeitos ao Imperador, em que o direito romano vigorava imperio rationis e não ratione imperii (por império da razão e não em razão do Império200 ). Desvalorizava-a, em seguida, na medida em que, na lógica de construção do ordenamento jurídico, o direito especial se impunha ao direito geral, em homenagem às ideias, já expostas, de autonomia dos corpos e de que o regra co199 Cf. Siete Partidas: “estabecimientos porque los omes sepan bivir bie, e ordenadamente, segun el plazer de Dios” (I, 1, I); “lyeda q(ue) yase enseñamento, e castigo escripto que liga, e apremia la vida del hombre que no faga mal” (I, 1,4). 200 Sobre o conceito de lei neste período, v., por todos, Gilissen 1988, 291 ss. (e a minha nota, para Portugal, 318 ss.).

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mum não era outra coisa senão um equilíbrio correcto (uma recta ratio) das regras particulares. A base textual era, sobretudo, um texto do Digesto que atribuía a cada comunidade o poder de criar direito próprio (D., 1,1,9). Daqui decorria o poder estatutário das cidades (ou terras com autonomia jurisdicional), abertamente reconhecido pela doutrina e, mais concretamente, pela doutrina e lei portuguesas, que eram unânimes em reconhecer aos concelhos autonomia estatutária (de elaborar posturas201 ), ao mesmo tempo que e mostravam bastante generosas no que respeita à autoridade do costume, mesmo praeter ou contra legem. Finalmente, a norma geral estava ainda fortemente desvalorizada perante o privilégio – que a doutrina, na base de uma etimologia fantástica ([quasi] priv [ata] lex), definia como “uma quase lei de natureza particular”. Na verdade, os privilégios, decorrentes da faculdade imperial e real de dispensar a lei, constituíam direitos adquiridos (iura quaesita) ou enraizados (iura radicata) que não podiam ser revogados por lei geral, pelo menos sem uma expressa referência e com a invocação do poder extraordinário (potestas extraordinaria ou absoluta) do rei202 . Mas a desvalorização da norma não decorria apenas destes factos relacionados com a teoria da hierarquia das normas do direito comum. Decorria também do que se pensava então, primeiro, sobre a natureza do processo intelectu201 Cf. Ord.fil., I, 66, 29. V. 202 V. infra, IV.5.3.

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al de encontrar o direito (ars inveniendi, Rechtsfindung) e, depois, da relação entre a justiça e outras virtudes. Quanto ao primeiro aspecto. A doutrina jurídica medieval e moderna cria que o processo intelectual de apreensão do direito era essencialmente irredutível a regras rígidas, antes se baseando numa arte prática de encontrar a solução justa de cada caso. E o próprio modo de encontrar esta solução baseava-se numa técnica intelectual que poderia ser descrita como o tactear – guiado por uma longa experiência jurídica (e, mais em geral, da vida) – de soluções diversas, cada uma das quais inspirada por um certo equilíbrio dos diferentes pontos de vista possíveis. A tópica – ou seja, a arte de encontrar os argumentos (os “lugares” [em grego, topoi], as perspectivas) relevantes em cada caso – desempenhava um papel fundamental na primeira fase do processo intelectual. Mas a segunda parte, a hierarquização dos argumentos e o consequente achamento da solução dependia da sensibilidade histórica da comunidade jurídica (do “auditório”). E, nessa medida, o resultado (a decisão) era sempre provisório e o sistema dos resultados (o “sistema dogmático-normativo” do direito) era sempre um “sistema aberto”. Daí que as normas gerais, que constituíam a ossatura desse sistema, fossem sempre consideradas, em primeiro lugar, como pontos de chegada, e não como pontos de partida. Depois, como elementos apenas heurísticos (i. e., que dão sugestões, que a experiência diz serem válidas para a maior parte os casos), e nunca como mecanismos de encerramento automático de uma controvér-

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sia. Isto conduzia, como se vê, a um discurso jurídico muito atento às particularidades de caso e muito pronto a substituir à solução que decorria do rigor da norma geral (uma solução, i. e., stricti iur [de direito estrito]) um remédio que atendesse às particularidades do seu contexto concreto de aplicação, i. e., um remédio de “equidade”). O arbítrio do juiz (arbitrium iudicis) desempenhava, por isso, um papel fundamental na declaração do direito. Não apenas, como hoje, para decidir questões que não podem ser decididas em geral (como o cálculo dos danos e da correspondente indemnização), mas em geral, para declarar qualquer solução jurídica, mesmo em domínios tão atentos aos valores da generalidade e igualdade como o direito penal. Um jurista português escreve, sem qualquer tom de crítica, nos finais do século XVI: Hoje, todas as penas estão no arbítrio do juiz, tidas em consideração as circunstâncias dos factos e das pessoas [...] pois as leis não podem exprimir todas as circunstâncias; e, assim, é deixada a faculdade ao arbítrio do juiz, segundo a contingência dos factos e de acordo com o seu arbítrio, de aumentar ou diminuir as penas [...]. Na verdade, os juízes podem temperar as penas estabelecidas na lei em razão da amizade, quando a pena for arbitrária; pois, neste caso, podem agir de forma mais branda com o amigo, de acordo com as inclinações da sua consciência (Fragoso, 1641).

Naturalmente, esta situação potenciava muito o poder do grupo dos magistrados e pode divisar-se uma estratégia sua no sentido de defender estas prerrogativas contra qual-

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quer programa de “generalização” ou “legalização” da ordem jurídica, como o que foi posto em marcha pelos monarcas ilustrados da segunda metade do século XVI. Finalmente, a desvalorização da norma decorre ainda do parentesco que se julgava existir entre, por um lado, a justiça e, por outro, virtudes como a misericordia, a clementia e a gratia. A misericórdia, a clemência e a graça são consideradas virtudes essenciais do rei – pai e pastor dos seus súbditos, cujo coração se deveria apiedar a cada aplicação férrea da lei. Senhor da Justiça, como Deus-Pai, o rei era, também, o senhor do Amor – como Deus-Filho. E isto devia reflectir-se no quotidiano do governo. O perdão e o tempero do rigor da lei pela sua dispensa (i.e., a concessão de privilégios) são, assim, massivos na prática política. Constituem o domínio chamado “da graça”203 , provido de órgãos próprios (em Portugal, o Desembargo do Paço), e desempenhando uma função política e legitimadora fundamental, estreitamente ligada a um tópico central de legitimação das sociedades de Antigo Regime – a aproximação entre “rei” e “pai” (“patriarcalismo”). Existiam, é claro, rasgos de um apelo à unidade da ordem jurídica. Mesmo no período do ius commune clássico, funcionavam neste sentido a ideia de que existia um “direito comum” com o qual os direitos próprios se deviam harmonizar; que este direito comum possuía uma lógica global que não podia ser afastada (ratio iuris, “boa razão”); que os súbditos (do im-

203 Sobre a “graça”, Hespanha, 1993.

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perador, dos reis) tinham uma patria communis e que isso legitimava o recurso para uma última instância jurisdicional comum – a curia (imperialis; regia). Mas estas ideias, se animavam eventualmente algum jurista a declarar “odiosos” os privilégios ou a negar a validade de uma lei, um estatuto ou um costume por serem contra tenorem iuris rationis (contra os princípios do direito), não era suficiente para tirar à ordem jurídica moderna o carácter particularista a que nos referimos. É só na segunda metade do século XVIII, com o advento de novas ideias (racionalistas, axiomáticas) sobre o direito204 e com o aparecimento de novos projectos políticos de exaltação da coroa (e da sua legislação) e de consequente abatimento dos juristas como fonte autónoma de direito que se imporão medidas tendentes a erigir a lei em primeira fonte de direito, os “princípios gerais do direito” em fundamento da ciência jurídica e a obediência cega à lei em norma deontológia dos juristas205 .

1.4 Recepção do direito comum e centralização do poder Era, até há pouco, um lugar comum da historiografia portuguesa (e, em geral, europeia) da Época Moderna a afirmação da importância da recepção do direito culto europeu (o direito comum, ius commune) na centralização do poder. Hoje, este ponto de vista só pode ser limitadamente aceite.

204 Wieacker 1993, 279 ss.; Gilissen, 1988, 364 ss. Cf, para Portugal, Silva, 1985. 205 Hespanha, 1978.

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Por um lado, porque esta recepção não foi, nem tão geral, nem tão eficaz como se pensava. E, por outro, porque a própria ordem jurídica letrada não promovia tanto como se tem dito a concentração dos poderes nas mãos do rei. Abordaremos, sucessivamente, as duas questões. A problematização da tese de uma difusão precoce e decisiva do direito oficial letrado decorre de dois factos. O primeiro deles é a importância que vem sendo dada pela historiografia mais moderna (cf. Hespanha, 1983; Hespanha, 1989, p. 363 ss.) aos mecanismos informais de normação social (usos comunitários, estilos profissionais, práticas jurídicas espontâneas de certas actividades sociais, como, v. g., o comércio, normação implícita na estruturação de redes sociais), em relação aos quais o direito oficial era muito complacente. Esta complacência cifrava-se, por um lado, no reconhecimento de um “direito dos rústicos” (ius rusticorum), próprio das comunidades camponesas, incapazes de penetrar nas agudezas e subtilezas do direito erudito (in apicibus et subtilitatis iuris) (cf. Hespanha, 1983). Este direito teria as suas próprias normas não escritas – nomeadamente em matéria de contratos e de relações agrárias (direitos vicinais, sistemas de cultivos e regas). Mas, mais do que isso, a sua própria estratégia de composição dos diferendos, voltada para decisões compromissórias (“rustici dividunt per medium quaestiones” os rústicos dividem as questões a meio, Baldus de Ubaldis) e, portanto, contraditória com o estilo “adjudicatório” (um vence, outro perde) do direito erudito. Por outro lado, a abertura do 134

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direito oficial e erudito em relação a “formas inferiores” de normação ficava patente no reconhecimento que o costume e o direito local (postura, statuta) recebiam na ordem jurídica moderna. Quanto ao costume, é paradigmática a posição de um grande mestre jurista de Coimbra e Salamanca, Francisco Suarez (1548-1617) que vai ter uma enorme importância até ao advento da política iluminista do direito. Embora reconheça que o costume – de que sublinha a grande autoridade – não possa impor-se nem à lei, nem à razão, admite, não apenas a validade dos costumes não contrariados pela lei (praeter legem), mas ainda uma certa revogabilidade da lei pelo uso (de não a cumprir) (cf. Hespanha, 1994, p. 356). Na sua esteira, os juristas portugueses206 , embora reconhecendo a primazia, de princípio, da lei real, admitem a validade do costume, mesmo contra legem, numa longa série de situações (cf. Hespanha, 1994, p. 363). Questão diferente era a de relevância dos direitos locais (dos statuta) contra o teor da lei geral. Também aqui, a posição de princípio da doutrina é favorável à lei do príncipe, embora as Ord. fil. apenas considerem como nula a postura feita (i. e., elaborada) em contradição com o disposto na lei, não se referindo à incompatibilidade substancial (I, 66,29; I, 58,17). Mas, a não ser que houvesse um rescrito real anulatório, as posturas obrigavam os juízes e oficiais das terras, não podendo sequer ser revogadas pelos corregedores (Hespanha,

206 V., por todos, Amaral 1610, s.v. “consuetudo”. Outras fontes, Hespanha 1994, 356 ss.

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1994, p. 361). E que eles constituíam o direito próprio (ius proprium) da terra que, de acordo com a arquitectura, do sistema jurídico de então, se impunha ao direito comum (ius commune) do reino, tal como este, teoricamente, prevalecia sobre o direito comum da doutrina europeia. Também esta lógica de composição “particularista” da ordem jurídica, a que já nos referimos, jogava contra as políticas de centralização do poder. Na verdade, o princípio constitutivo fundamental do ordenamento jurídico moderno era o de que as normas jurídicas particulares tinham, sucessivamente, primazia sobre as normas jurídicas gerais. O fundamento textual para tal princípio era constituído por um texto do Digesto (Gaius, D., I,1,9), a célebre “lei” omnes populi, já referido: todos os povos que se regem por leis e costumes, usam um direito que em arte é seu próprio, em parte comum a todos os homens. E assim aquele direito que cada povo institui para si chama-se próprio da cidade [...]. No entanto, aquele que a razão natural institui entre todos os homens e que entre todos é observado chama-se direito das gentes [...](9).

Este texto estabelece, de facto, um “particularismo” mitigado de “racionalismo” que vai ser decisivo na constituição das regras de composição da ordem jurídica, regras essas que – combinadas com outras respeitantes às relações entre lei e privilégio (cf. Hespanha, 1994, p. 481) – vão fazer com que o direito funcione, até ao iluminismo, como um factor

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de periferização dos poderes e de garantia dos privilégios (cf. infra, IV.5.3.) contra os intentos de centralização. Mas não era só, “a partir de baixo”, destas realidades jurídicas particulares, que o direito da coroa era limitado. Ele era-o também pelo facto, já referido, de o direito real estar limitado “a partir de cima” pelo direito comum e de este escapar ao arbítrio do rei. Na verdade, o ius commune (em geral, todo o direito), antes de ser uma vontade (voluntas), era uma razão (ratio, proporção, ordem, medida). Daqui que, por um lado, o direito existisse antes e independentemente da sua volição por um monarca, constituindo, portanto, um limite da validade dos comandos emitidos pelo poder. E que, por outro, o seu conhecimento releve de um saber específico, a ser prosseguido por uma categoria específica de letrados, com métodos intelectuais próprios (cf. supra; e Hespanha, 1982, 414 ss.). Embora venha a reconhecer-se – sobretudo a partir do século XVI – que o poder real tem razões que esta razão jurídica não pode incorporar (i. e., que à “razão do direito” se opunha uma “razão de Estado”), o princípio que recolhe mais sufrágios é o de que o príncipe tem, na sua actividade normativa, que se conformar com o direito, tal como ele decorre dos textos doutrinais e dos conselhos (consilia) dos juristas207 ). Esta obrigação instituía o direito (nomeadamente, 207 Uma das mais antigas definições de lei na tradição jurídica medieval e moderna salienta esta necessária intervenção dos juristas na elaboração da lei (“lex est constitutio populi virorum prudentium consulto promulgata”, Irnério, s,c. XII); a mesma ideia de que a lei é antes de tudo, um ensinamento e não um comando aparece nas Siete Partidas de Afonso X (I,1,1):“leyenda que yaze ensefiamento, e castigo escripto [...]”. Cf. sobre o tema Hespanha 1.982,416 e Gilissen 1988, 318.

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os princípios da grande tradição jurídica do direito comum) na mais autêntica constituição do reino. E não admira, por isso, que a teoria política da época tenda a considerar mais decisivo, para a garantia constitucional, a existência de um controlo jurídico da actividade do rei por meio de tribunais do que o seu controlo político por meio das cortes208 (cf. infra, IV.5.3.). Isto levava, nomeadamente, à conclusão de que o rei não podia legislar sem o conselho dos juristas e de que, se o fizesse, era de presumir que decidira contra a ratio iuris (“sem o conselho dos [juristas] o príncipe não pode editar leis, ainda que o possa fazer sem a convocação de cortes”, escreve o jurista seiscentista Bobadilla, na sua Politica para corrigedores). Se as coisas se passavam assim no plano da criação legislativa, muito mais se passavam no plano da integração e integração do direito, sedes em que os juristas sempre tiveram uma tendência natural209 para integrar, interpretar e corrigir o direito do reino a partir dos princípios doutrinais. Tudo isto – e ainda a larga margem de arbitrium na decisão que a estrutura argumentativa do saber jurídico lhes atribuía (cf. supra; Hespanha; 1982, p. 408; Hespanha, 1986; Marques, 1992) – explica o lugar político-social central dos juristas nas sociedades europeias modernas210 .

208 Note-se que a palavra “parlamento” tanto designa um tribunal como uma assembleia de estados. 209 Note-se, além do mais, que, nas faculdades, não aprendiam o direito pátrio, mas apenas a tradição doutrinal do direito comum. Em Coimbra, v. g., o ensino do direito pátrio apenas é (e precocemente) introduzido em 1772. 210 Sobre este vastíssimo tema v. Hespanha, 1982, 418; Hespanha, 1994,516 ss. (e bibl. aí cit.); mais recentemente, v. os vários artigos incluídos em Sapere e potere...,.

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1.5 O direito português da Época Moderna Do ponto de vista jurídico, Portugal faz parte, desde o século XIII aos meados do século XIX, de um vasto espaço dominado pela tradição jurídica do direito comum (ius commune). A história do direito português – considerada a expressão no seu sentido mais restrito – é, portanto, a história do direito comum europeu, com algumas especialidades do direito do reino, mais visíveis nos domínios da organização político-administrativa (da coroa, dos concelhos, dos senhorios), do direito penal (em que Portugal dispõe da compilação global mais antiga da tradição jurídica europeia, o Livro V das Ordenações Afonsinas, de 1446) e de alguns ramos do direito contratual. Mas mesmo estas esparsas áreas de tradição jurídica mais específicas são continuamente corroídas por um discurso jurídico letrado que ia buscar toda a utensilagem doutrinal ao direito comum. No direito português, as relações entre o direito nacional e o direito comum estavam estabelecidas nas Ord. fil. (III, 64) em termos que salvaguardavam, teoricamente, a prevalência do direito pátrio (Ordenações e legislação extravagante) sobre o direito comum (Glosa de Acúrsio, Comentários de Bártolo, opinio communis doctorum)211 . Só que a prática invertia totalmente a situação, não apenas por serem muitíssimos os temas que o direito próprio do reino não

211 Cf. Hespanha 1982,500 ss. e bibl. aí citada, nomeadamente Silva, 1985,221 ss... e Cruz 1975,241 ss.

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abarcava 212 , mas sobretudo porque, formados em escolas de direito romano e canónico e dependentes de uma tradição literária própria destes dois direitos, os juristas corroiam continuamente as especialidades do direito pátrio e aproximavam-no progressivamente das soluções doutrinais do direito comum, que eles, por outro lado, controlavam. Daí, que a principal fonte para o conhecimento do direito efectivamente vigente em Portugal não seja a lei, mas sim a mole imensa de literatura produzida (e não apenas a portuguesa) durante os séculos XIV a XVIII(10). A política pombalina do direito – paralela à de outros países europeus na mesma época – visa submeter direito e juristas a um controlo mais estrito da coroa. Esta política desenvolve-se em três frentes de reforma – a da legislação, a do sistema das fontes de direito e a do ensino do direito. A reforma legislativa – que se traduziu, desde logo, num aumento muito significativo do ritmo de promulgação de textos legais (v. Gráfico I [Gilissen, 1988, p. 321] visou transferir da doutrina dos juristas para a legislação régia a normação de questões políticas ou socialmente críticas. Alguns dos preâmbulos legislativos exprimem enfaticamente esse desígnio

212 Aquilo a que hoje chamamos “direito privado” (contratos, direito das coisas, família, sucessões) tinha um tratamento mínimo nas fontes jurídicas pátrias. E, para muito do “direito público” (v. g., para o tratamento das relações entre a coroa e os restantes poderes, designadamente a Igreja, para o regime das doações de bens da coroa, para o regime dos ofícios) era indispensável integrar eventuais dados da legislação portuguesa no contexto conceitua1 e doutrina1 do direito comum. Sobre a lei em Portugal nesta época, com indicação de ritmos de edição e temáticas, v. a minha nota em Gilissen, 1988, 318 ss.

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de pôr termo a costumes doutrinais (como o reconhecimento do direito dos filhos aos ofícios dos pais [L. 22.11.1761] ou a desnecessidade de consentimento dos pais para o casamento dos filhos [L. 9.6.1755]) ou de os refundar sob a forma de normas legais (v. g., a renovação automática dos contratos enfitêuticos [7.9.1769]). Mas isto era insuficiente enquanto não fosse modificado o quadro das fontes de direito, pondo fim à precedência (prática) da doutrina e da jurisprudência sobre a lei do soberano. É isto que se realiza com a “lei da Boa Razão” (de 18.8.1769), que acaba com a relevância do direito canónico nos tribunais civis (embora não ponha termo aos privilégios eclesiásticos de foro [v. infra, IV.2.]), reduz fortemente o domínio de aplicação do costume, do direito romano e do direito comum (a “opinião comum dos doutores”) e limita a força vinculativa dos precedentes judiciais aos “assentos” da Casa da Suplicação213 . No plano da reforma do ensino do direito, a reforma dos estudos jurídicos de 1772 vem confirmar esta estratégia de privilegiar o direito pátrio em detrimento da doutrina214 . No entanto, não é ainda agora que o primado do direito pátrio fica garantido. Ao insistir na vinculação da política do direito ao “uso moderno do direito romano” e às soluções consagradas nas ordens jurídicas das “nações polidas e civilizadas”, o legislador pombalino abre a porta à influência do novo direito iluminista (e, posteriormente, liberal) dos Estados alemães e italianos e, mais tar213 Sobre a “Lei da Boa Razão” v., por todos, Hespanha, 1978, 73 ss.; Silva, 1985, 276. 214 Cf. Hespanha, 1978; Silva 1985, 259; Gilissen, 1988, 370.

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de, da França, cujos códigos tiveram uma aplicação directa em muitos domínios até à entrada em vigor do Código Civil do Visconde de Seabra (1867)215 . Ou seja, apesar de o período pombalino representar uma época de vinculação do direito à política monárquica, ele não realiza ainda aquela imagem d’Épinal, a que se referia a historiografia mais tradicional, de um direito e de um corpo de juristas funcionalizados a um projecto político centralizador.

1.6 Orientação sobre fontes e bibliografia Sobre a história jurídica europeia e suas fontes letradas, os manuais hoje mais acessíveis e actualizados são os de Franz Wieacker (Wieacker, 1980), de John Gilissen (Gilissen, 1988) e de António Cavanna (Cavanna, 1982). Para o direito canónico, v. António García y Garcia, História del derecho canónico. I. El primer milenio, Salamanca, 1967 (e bibliografia aí citada), max., pp. 25-27. V. ainda Hespanha, 1992, p. 58 ss. Para a “recepção” do direito comum (ius commune) europeu em Portugal, ver os manuais de Nuno Espinosa G. da Silva (Silva, 1985) e A. M. Hespanha (Hespanha, 1982), para além da nota abreviada em John Gilissen (A. M. Hespanha) Gilissen, 1988, max., p. 369 ss.). Sobre as principais fontes (legislativas, doutrinais e jurisprudenciais), bem como sobre as suas edições, v. Hespanha, 1992, p. 58 ss.

215 Cf., em síntese, Gilissen, 1988, 370, e bib. aí citada.

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Bibliografia citada AMARAL, António Cardoso do, Liber utlissimus ..., Ulysipone, 1610. BOURDIEU, Pierre, “La force du droit. Éléments pour une sociologie du champs juridique”, in Actes de la recherche en sciences sociales, 64(1986.11) pp. 3-19 (trad. porto em P. Bourdieu, O poder simbólico, Lisboa, Difel, 1990. CAVANNA, A., Storia del diritto privato moderno in Europa. 1. Le fonti e il pensiero giuridico, Milano, Giuffre, 1982. CRUZ, Guilherme Braga da, “O direito subsidiário na história do direito português”, in Revista Portuguesa de História, 14(1975), pp. 177-316. FOUCAULT, Michel, L’archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969. GILISSEN, John, Introdução Histórica ao Direito, Lisboa, Gulbenkian, 1988. HESPANHA, António Manuel, “Sobre a prática dogmática dos juristas oitocentistas”, in A. M. Hespanha, A História do Direito na História Social, Lisboa, Livros Horizonte, 1978, pp. 70-149. HESPANHA, António Manuel, História das Instituições. Épocas medieval e moderna, Coimbra, Almedina, 1982. HESPANHA, António Manuel, “Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique”, in Ius commune (Max-Planck-Institut f. europ. Rechtsgeschichte, Frankfurt/Main), 10(1983) 10 ss. HESPANHA, António Manuel, “Da ‚iustitia‘ à disciplina. Textos, poder e política no Antigo Regime”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Coimbra, 1986 (saído) em 1989. HESPANHA, António Manuel, As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal, século XVII, Coimbra Almedina, 1994. Sapere ele potere. Discipline, dispute e professioni nell università medievale e moderna. “Atti Del 4º Convegno” (dir. L. Avellini, A. Cristiani, A. de Benedicitis), Bologna, Comune di Bologna, 1990. HOLUB, C., Teoria della ricezione, Torino, Einaudi, 1989. MARQUES, Mário Reis, “Ciência e acção: o poder simbólico do discurso jurídico universitário do período do ‘commune’”, in Penélope, 6 (1992), pp. 63-72. 143

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* SILVA, Nuno Espinosa G. da, História do Direito Português, Lisboa, Gulbenkian, 1985. STOLLEIS, Michael, Geschichte des oeffentlichen Recht in Deutschland. VoI. I. Reichspublizistik und Policeywissenschaft, 1600-1800, Muenchen, C. H. Beck, 1988,431. * WIEACKER, Franz, História do Direito Privado Moderno (trad. port. Privatrechtsgeschichte der Neuzeit [...], 1967 (2ª ed.), Lisboa, Gulbenkian, 1993.

Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com *. Notas (1) Por “sociedade tradicional europeia” entendo, neste contexto, a sociedade medieval e moderna, mas também a sociedade tradicional camponesa dos séculos seguintes até à actualidade. A antropologia jurídica actual não deixa de encontrar um imaginário do mesmo tipo nas sociedades contemporâneas, nas sociedades fortemente dualistas não europeias, mas ainda no centro do primeiro mundo. Cf. Boaventura Sousa Santos, “O discurso e o poder. Ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica”, Boi. Fac. Direito de Coimbra, 1979; Richard Abel, “Theories of 1itigation in society. “Modem” dispute institutions in “tribai” societies and “tribal” dispute institutions in “modem” society as altemative legal forms”, in E. Blankenburg (ed.), Alternative Rechtsfformen und Alternativen zum Recht, Westdeutscher Verlag, 1982, 165-191. (2) Que inclui, de resto, muitas obras que, em rigor, se poderiam classificar também de jurídicas, como, v. g., todos os comentários à “secunda secundae” da Summa theologica de S. Tomás, nomeadamente das quaestiones – que são a maioria – em que ele se ocupa das virtudes que têm uma dimensão social, como a prudência ou a justiça. (3) Mas encontram-se também no C. J. Cano textos apenas doutrinais (como é o caso dos textos de Santo Isidoro de Sevilha incluídos no Decretum de Graciano). (4) Gnósticos ou cabalísticos; mesmo no domínio do direito, existe alguma literatura de recorte cabalístico (v. g., tratados sobre numerologia jurídica). (5) Figurando, inclusivamente, como opinião comum, reservando-se para a nova a designação de “opinião mais recente” (recentior opinio, “hodie autem ...”, “nos autem ...”) ou, inclusivamente, de “opinião mais comum” (communior opinio). (6) Nem sempre a ruptura é tão dramática como aqui se supõe. De facto, o novo ciclo textual (v. g., de comentários à legislação régia, como a série de comentários às Ordenações portuguesas) pode manter conexões muito fortes com o anterior, nomeadamente enquanto, para a interpretação do novo texto, se continua a recorrer à tradição textual mais antiga (no mesmo exemplo, a tradição do direito comum). Inclusivamente, esta pode reabsorver a nova no seu intertexto. Isto acontece, utilizando ainda o mesmo exemplo, quando se limita o alcance dos novos textos legislativos dos “direitos próprios” em função do conteúdo da tradição do “direito comum”.

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(7) De alguma maneira, funcionam como, num programa informático, as ordens que invocam procedimentos (i. e., programas independentes) destinados a produzir um “valor de retorno” que será posteriormente incorporado e trabalhado pelo programa principal. (8) Assim, o “juízo”, como processo regulado e contraditório de decidir uma questão, é usada para descrever os jogos amorosos entre dois amantes (v. g., os “juízes de amor” dos trovadores provençais), as tensões entre o prazer e o dever, o destino da alma depois da morte (cf., o “Juízo Finai”). (9) Discutia-se qual o âmbito que devia ser dado ao conceito de “populus”. Uns autores inclinavam-se para exigir a organicidade da comunidade (cf. Francisco Rodrigues, Materia de legibus (1594), ms. 5 107 BNL (publ. e, Francisco Suarez, De legibus, ed. “Corpus hispanorum de pace”, Madrid 1971,271. Outros (era a opinião dominante) exigiam que se tratasse de comunidades “perfeitas” (i. e., com capacidade para se autogovemarem) (ibid., 267 ss.; Francisco Suarez, De legibus, I, 6, 19); outros, finalmente, devolviam a questão para a ordem jurídica positiva, que poderia conferir poderes estatutários a comunidades que, aliás, não os teriam (ibid., 272/3). (10) Para a literatura portuguesa e seus géneros, V. Hespanha, 1982,511 ss. e bib. aí citada. Catálogo detalhado, com obras impressas e manuscritas, no banco de dados automatizado S. I. L. A. (Instituto de Ciências Sociais, Lisboa); algumas indicações sobre literatura estrangeira em Gilissen, 1988, 337 ss.; para uma bibliografia exaustiva, v. H. Coing (ed.), Handbuch der Quellen und Literatur der neueren europäeischen Privatrechtsgeschichte, vol. II, Muenchen, C.H. Beck, 1976.

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PARTE IV

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1. A FAMÍLIA

Objectivos da aprendizagem Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de: •

Explicar o carácter naturalmente regulado das relações familiares na sociedade de Antigo Regime e as consequências normativas desta ideia;



Avaliar a área de expansão do “modelo doméstico” como paradigma de organização política;



Identificar os princípios estruturais do imaginário da família – naturalidade, unidade, honestidade;



Caracterizar os traços gerais do regime do poder paternal, dos deveres dos filhos e da sua capacidade patrimonial, dos deveres da mulher, da transmissão do património familiar, da situação dos criados.

A imagem da família e do mundo doméstico – como grupo humano e como universo da afectividade – está presente por todo o lado no discurso social e político da sociedade de Antigo Regime. É invocada a propósito das relações entre o Criador e as criaturas, entre Cristo e a Igreja, entre a Igreja e os fiéis, entre o rei e os súbditos, entre os ami-

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gos, entre o patrão e os seus criados, entre os que usam o mesmo nome e, evidentemente, entre os que partilham o mesmo círculo doméstico. O carácter modelar desta imagem provinha, desde logo, do facto de ela constituir uma experiência comum a todos. Todos tinham uma família. E, para além disso, todos a tinham como um facto natural, i. e., fundada em relações e sentimentos que pertenciam à própria natureza das coisas. Relações e sentimentos que, por isso mesmo, eram iguais em todas as famílias, porque eram independentes da vontade dos seus membros. Uma reconstituição do universo mental e institucional da família de Antigo Regime tem, portanto, que começar por aqui, pela sua naturalidade.

1.1 Uma comunidade natural Nem o advento de uma concepção individualista da sociedade veio destruir a ideia de que a família constituía uma sociedade naturalmente auto-organizada. Um assento da Casa da Suplicação da segunda metade do século XVIII é típico desta insularidade da família, concebida ainda como um todo orgânico, no seio de uma sociedade já imaginada como um agregado de indivíduos mutuamente estranhos e desvinculados: He regra, e preceito geral de todos os Direitos, Natural, Divino, e Humano, que cada hum se deve alimentar, e sustentar a si mesmo; da qual Regra, e Preceito geral só são exceptuados os 150

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filhos, e toda a ordem dos descendentes; e em segundo lugar os pais, e toda a serie dos ascendentes.216

A mesma ideia aparece numa interessante e pouco referida obra de António da Natividade (Natividade, 1653) onde, embora – como se dirá – se opine que, no interior da família, não há lugar a falar de deveres jurídicos recíprocos, se reconhece, porém, que o direito economico, patriarcal ou da casa, que se exerce com o fundamento na piedade, é mais exigente e devido, do que o político, pois existe em virtude da unidade que existe entre o ecónomo e os membros da casa.217

Esta concepção organicista da família radicava em representações muito antigas, mas sempre presentes, sobre o especial laço com que a natureza ligara os seus elementos por normas inderrogáveis.

1.2 Carne de uma só carne A família tinha o seu princípio num acto cujo carácter voluntário a Igreja não deixava de realçar, sobretudo na sequência do Concílio de Trento (1545-1563), onde se estabelecera, enfaticamente, que “a causa eficiente do matrimónio é o consentimento” (Cone. Trident., sess. 24, cap. 1, nº 7). Um consentimento verdadeiro e não fictício, livre de coacção e de erro e manifestado por sinais externos, requisitos com os 216 Cit. por Lobão, 1828. 217 Op. IV, cap. 3, n. 8, 111.

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quais se pretendia pôr freio, tanto às pretensões das famílias de se substituírem aos filhos na escolha dos seus companheiros, como às tentativas dos filhos de escapar a estes constrangimentos casando secretamente. Mas, dado o consentimento, pouco restava, no plano das consequências do casamento, que não decorresse forçosamente da própria natureza da instituição que ele fizera surgir – o estado de casado, a família. A teologia cristã explicava este paradoxo de um acto de vontade dar lugar a consequências de que a vontade não podia dispor, concebendo a vontade de casar apenas como uma matéria informe a que a graça divina vinha dar uma forma (i. e., consequências) determinada218 . A primeira destas consequências era a obrigação, para os dois cônjuges, de se entregarem um ao outro, gerando uma unidade em que ambos se convertiam em carne de uma só carne (“Erunt duo in una caro – [serão os dois uma só carne], Génesis, 2). Esta união mística dos amantes já ocorria pelo facto mesmo do amor que, de acordo com a análise psicológica dos sentimentos empreendida pela escolástica, fazia com que a coisa amada se incorporasse no próprio amante 219 , ideia a que Camões se referia no conhecido soneto 218 A definição do casamento como um sacramento (causativum gratiae unitivae, causador da graça da união) foi feita no concílio de Florença, de 1438. 219 “Ex hoc quod aliquis rem aliquam amat, provenit quaedam impressio, ut ita loquatur, rei amatae in affectu amantis, sicut intellectum in intelligente” (do facto de alguém amar alguma coisa provém uma espécie de impressão – por assim dizer da coisa amada no afecto do amante, semelhante à da coisa apreendida intelectualmente naquele que a apreende”, Summa theologica, I, qu.37, p.267.2).

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“Transforma-se o amador na coisa amada ...”. A união conjungal não era, de resto, senão uma repristinação de uma unidade originária, pois (e esta distinção não deixará de marcar o imaginário das relações entre os sexos) a mulher saíra do corpo do homem, reintegrando-se, com o matrimónio, no plano espiritual, essa comunidade corpórea. Mas, com o casamento, esta unificação dos amantes ganhava contornos físicos, pois os cônjuges ficavam – passados dois meses de reflexão, o bimester, em que nenhum deles podia ser forçado à consumação carnal do casamento(1) – a dever um ao outro a entrega corporal (traditio corporis), tornando-se tal entrega moral e até juridicamente exigível (debitum conjugale)(2). Justamente porque se enraizava na natureza, o matrimónio devia ter um uso honesto; ou seja, devia consistir em práticas (nomeadamente sexuais) cuja forma, ocasião, lugar, frequência, não dependiam do arbítrio ou do desejo dos cônjuges, mas de imperativos naturais. Assim, a mútua dívida sexual dos esposos tinha uma medida: medida que se fundava num critério que, também ele, não dependia da vontade dos cônjuges, mas das finalidades naturais e sobrenaturais do casamento. Segundo a teologia moral da época, as finalidades do casamento eram: (i) a procriação e educação da prole; (ii) a mútua fidelidade e sociedade nas coisas domésticas; (iii) a comunhão espiritual dos cônjuges e (iv) – objectivo consequente à queda do género humano, pelo pecado original – o remédio contra a concupiscência. 153

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São justamente estas finalidades e a sua hierarquia que explicam o conteúdo dos deveres mútuos dos cônjuges, nomeadamente no plano da disciplina da sexualidade matrimonial. Assim, o facto de a reprodução aparecer como a finalidade principal do casamento implicava que a sexualidade apenas fosse tida como natural desde que visasse este fim. Seriam, desde logo, contra natura todas as práticas sexuais que visassem apenas o prazer220 , bem como todas as que se afastassem do coito natural e honesto – vir cum foemina, recta positio, recto vaso (homem com mulher, na posição certa221 , no “vaso” certo). Daí a enorme extensão dada ao pecado (e ao crime) de sodomia, que incluía não apenas as práticas homossexuais, mas ainda todas aquelas em que, nas relações sexuais, se impedisse de qualquer forma a fecundação. Mas, mesmo que “natural”, a sexualidade matrimonial não devia estar entregue ao arbítrio da paixão ou do desejo, antes se devendo manter nos estritos limites do honesto. Assim, a sexualidade – e, particularmente, a sexualidade da mulher – era drasticamente regulada por aquilo a que os teólogos e moralistas chamavam

220 “Copula [vel osculi, amplexus, tactus vel delectatio memoriae] ex sola delectatione [...] habet finem indebitum” (a cópula, beijos, abraços, afagos ou o deleite pelas recordações que visem apenas o prazer têm um fim indevido), S. José, 1791, tr. 34, n. 149 e 156 ss. 221 Sobre a gestualidade sexual, v. S. José, 1791, tr. 34, ns. 158 ss.: condenação de todas as posições sexuais diferentes daquela que veio a ser conhecida como a “posição do missionário” (amantes deitados, voltados um para o outro, com o homem por cima). Tal opção não era arbitrária, mas antes justificada com argumentos ligados à natureza e finalidade do coito humano: na verdade, esta posição seria a que melhor garantiria a fecundação, denotava a superioridade do homem e, pondo os amantes de frente um para o outro, realçava a dimensão espiritual do acto.

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o “uso honesto do casamento”. O coito não devia ser praticado sem necessidade ou para pura satisfação da concupiscência, antes se devendo observar a moderação (S. José, 1791, tr. 34, ns. 158/160). Em rigor, devia terminar com o orgasmo do homem, pois, verificado este, estavam criadas as condições para a fecundação. Tudo o que se passasse daí em diante visava apenas o prazer, sendo condenável(3). Os esposos deviam evitar, como pecaminosas222 , quaisquer carícias físicas que não estivessem ordenadas à prática de um coito honesto. Pecado grave era também o deleite com a recordação ou imaginação de relações sexuais com o cônjuge (5. José, 1791, tr. 34,163). Para além disso, o coito podia ser desonesto quanto ao tempo223 e quanto ao lugar224 . É certo que, não sendo a procriação a única finalidade do casamento, estes princípios acabavam por sofrer algumas restrições. Admitia-se, por exemplo, que os cônjuges pudessem fazer entre ambos voto de castidade, sacrificando as finalidades terrenas da sua vida em comum (procriação e adjutório mútuo) a um objectivo de natureza puramente espiritual – a união das suas almas até à morte. Ou que se excedessem os limites honestos do débito conjugal, para evitar que, levado pelos impulsos da sensualidade, um dos cônjuges fosse levado a pecar, satisfazendo-os fora do matrimónio. 222 Constituíam pecado venial (ou mortal, no caso de fazerem correr o risco de ejaculação) (S. José, 1791, tr. 34, n. 158). 223 Durante a menstruação, a gravidez e o puerpério (S. José, 1791, tr. 34, ns. 150153), durante a Quaresma e dias santos de guarda (ibid., 150). 224 Em lugar público ou sagrado (salva necessita te ...); o mesmo valia para as carícias (S. José, 1791, tr. 34, n. 156).

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1.3 Uma comunidade fundada no amor Esta união entre os cônjuges gerava, porém, vínculos suplementares, tecendo entre todos os elementos da família uma rede afectiva a que os moralistas chamavam piedade familiar, mas que os juristas não deixavam de classificar como direito, um direito de tal modo enraizado na natureza que até das feras era conhecido (“vemos que também os outros animais, e até as feras, parecem ter conhecimento deste direito”, escreve o jurista romano Ulpiano, num texto muito conhecido do início do Digesto [D.,I,1,13]). O amor fora longamente tratado pela teologia moral clássica. S. Tomás, na Summa theologica, aborda o tema em diversos contextos. Mas aqui interessa-nos mais em concreto o amor ou piedade familiar, que se desdobrava em vários sentimentos recíprocos. O amor dos pais pelos filhos, superior a todos os outros, funda-se no sentimento de que os pais se continuam nos filhos225 . Estes são, assim, uma extensão da pessoa de quem lhes dá o ser, ou seja, são a mesma pessoa, daí se explicando que os juristas façam, por um lado, repercutir directamente na pessoa do pai os actos (v. g., aquisições, dívidas, injúrias) dos filhos; que, por outro, não admitam, em princípio, negócios entre pais e filhos; e que, finalmente, considerem, para 225 “Amor parentum descendet in filios, in quibus parentibus vivunt, & conservantur [...] Filii sunt eadem persona cum patre” (o amor dos pais prolonga-se nos filhos, nos quais os pais vivem e se conservam [...] Os filhos são a mesma pessoa do pai), escreve Baptista Fragoso (citando Bártolo, séc. XIV), Fragoso, 1641, III, 1. 1, d. 1, § 1, n. 2/3.

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certos efeitos sucessórios, os filhos do pai pré-falecido como sendo o próprio pai. Dado que a mesma identidade se verificava entre o marido e a mulher, a família constitui um universo totalitário, em que existe apenas um sujeito, apenas um interesse, apenas um direito, não havendo; no seu seio, lugar para a discussão sobre o meu e o teu (a “justiça”), mas apenas para considerações de oportunidade, deixadas ao arbítrio do bonus pater famílias (a “oeconomia”)(4).

1.4 As hierarquias do amor Amor que gera identidade. Mas nem os amores deixavam de ter, no seio da família, as suas hierarquias, nem a identidade obliterava gradações nos direitos e deveres dos membros da família. Quanto ao amor, discutia-se se o amor conjugal era mais forte do que o amor pelos filhos(5). Que o pai amava mais os filhos do que a mulher parecia provável, pois o amor conjugal, se não era apenas um arrebatamento sensual (uma affectio sensitiva, menos duradoura e profunda, segundo S. Tomás, do que a afeição charitativa pelos filhos gerados), explicava-se de forma indirecta, pelo facto de a esposa ser a mãe dos filhos, o “princípio da geração”. Mas, curiosamente, daqui partiam as correntes da teologia moral (v. g. Tomás de Vio Caietanus) que, na Época Moderna, revalorizaram o amor conjugal na hierarquia dos sentimentos intrafamiliares, salientando (muito à maneira escolástica) que, sendo a causa mais importante 157

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do que a consequência, o amor pela esposa não podia deixar de suplantar o amor pelos filhos(6). E o amor da mãe pelos filhos? Seria mais forte do que o do pai? Se o amor andasse ligado ao penar, decerto que sim, pois a mãe penava antes do parto o peso do ventre; durante, as dores; e após, os trabalhos da criação (“ante partum onerosus, dolorosus in partu, post partum laboriosus”, Fragoso, 1641, p. III, 1. 1. d. 1. § 2, n. 15). Mas, se amor da mãe é mais intenso, o do pai é mais forte e mais constante. Mais forte, pois o pai é o princípio da geração, infundindo a forma numa matéria aliás inerte e informe226 . Mais constante, pois se o amor da mãe é muito intenso na intimidade da infância, é o do pai que, ao longo de toda a vida, proporciona os exemplos de conduta (“o filho sai à mãe no que respeita ao estado e condição [físicos]; mas segue o pai quanto às qualidades honoríficas e mais excelentes”, Fragoso, 1641, p. III, 1. 1, d. 1, § 2, n. 18). Este imaginário dos sentimentos familiares constitui o eixo da economia moral da família de Antigo Regime e do seu estatuto institucional. As suas grandes linhas – naturalidade, preferência dos laços generativos (agnatícios, de “parentesco”) aos laços conjugais (cognatícios, “de afinidade”), organicidade e unidade da família, sob a égide do pater – estão pré-determinados por esta antropologia do amor familiar.

226 “O pai é o princípio nobre, ministrando a mãe na geração do homem a matéria informe do corpo, que por virtude do sémen do pai é formada e disposta de forma racional”, S. Tomás, Summa theologica, IIa.IIae, q. 16, art. 10, ad prim.).

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1.5 A família, comunidade generativa Natural é o amor entre os esposos. Mas natural é também a sua primordial ordenação em relação à procriação. Daí que, contrariamente a algumas tradições que vinham do direito romano, o elemento estruturante da sociedade familiar seja o facto natural da geração, quaisquer que fossem as condições jurídicas em que ela tivesse lugar. Assim, filhos são, antes de mais, os que o são pelo sangue, independente de terem nascido na constância do casamento. Isto é particularmente verdade em Portugal, onde (contra a regra do direito comum), os filhos naturais de plebeus estão equiparados aos legítimos, pelo menos no plano sucessório (Ord.fil., IV, 92); já os dos nobres, embora adquiram a qualidade nobre do pai e tenham direito a alimentos, carecem de legitimação para herdar227 . Mas quanto à principal obrigação dos pais – o sustento e a educação – filhos eram todos, os legítimos, os ilegítimos e até com alguma limitação(7), os espúrios (i. e., aqueles cujos pais não eram nem poderiam ser casados, por existir entre eles algum impedimento não relevável [impedimento impediente], como o estado clerical ou um prévio casamento com outrem)228 .

227 Cf. Fragoso, 1641, Ibid., n.177. 228 Para além dos naturais, filhos eram ainda os que tivessem sido objecto de adopção, nos termos de institutos que vinham do direito romano, onde tinham tido grande difusão. Cf., Fragoso, 1641, p. III, 1. 1, d. 2, § 7; Pascoal de Melo, 1789, II, 5, 9; a adopção, por ser uma graça “contra direito” deve ser confirmada pelo rei (i. e., pelo Desembargo do Paço, Ord. fil, I,3,1). Sobre a adopção na história do direito europeu, Gilissen, 1988, 614 e 623.

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Esta ideia de que o pátrio poder anda ligado à geração (e não à impossibilidade de os filhos se governarem a si mesmos) faz com que, no direito português, ele seja tendencialmente perpétuo, não se extinguindo pela maioridade do filho, que pode continuar in potestate até à velhice. Na verdade, o poder paternal só terminava com a emancipação paterna ou com o casamento do filho (cf. Ord. fil., I, 88, 6), bem como com a assunção, pelo filho, de certos cargos ou dignidades (v .g., episcopal, consistorial, judicial)(8). Mesmo a morte do pai, não era suficiente, colocando o filho alieni iuris (i. e., sujeito ao pátrio poder) sob a patria potestas do avô ou, na falta deste, de um tutor ou curador, sendo menores ou incapazes. É também este carácter natural e “generativo” da família que traça os limites do seu âmbito como grupo social. Assim, se a família, em sentido estrito, engloba apenas os que se encontram sujeitos aos poderes do mesmo paterfamilias, já em sentido lato – que era o do direito canónico229 , depois recebido, para certos efeitos, pelo direito civil- abarca todas as pessoas ligadas pela geração (agnados) ou pela afinidade (cognados), ligando-as por laços morais e jurídicos que Sammuel Coceius, já no período iluminista, sintetiza do seguinte modo: “Deste estado da família decorrem vários direitos. Assim, 1º, todos os privilégios que aderem à família, também pertencem aos agnados, do mesmo modo que o uso 229 O direito canónico alargava ainda a noção de família – e alguns dos correspondentes deveres – aos pais espirituais, condição que se adquiria pelo baptismo, confissão e crisma, além de incluir também os tutores e os mestres (Fragoso, 1641, p. III. 1. 1, d. 1, §4, n.50).

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do nome e dos brasões, etc.; 2º, as injúrias feitas à família podem ser vingadas também por eles, 3º, os membros da família devem defender aqueles que não o podem fazer, pois nisto consiste a tutela legítima” (Jurisprud. naturalis et romanae novum systema, 1742, §l, 138 ss.). Tudo isto tinha correspondente no direito português230 . Esta concepção alargada da família 231 , fundada em princípios generativos e linhagísticos – e a que era sensível, sobretudo, o grupo nobiliárquico – corresponde, basicamente, ao conceito de linhagem. Mas já nada tem a ver com o conceito de família alargada, como comunidade de vida e de bens de todos os irmãos e descendentes que se pensa poder ter existido em comunidades rurais, favorecida pela existência de baldios e pastos comuns e pelo sistema de encabeçamento da enfiteuse. As Ordenações (IV, 44,1) prevêm este tipo de sociedade universal; mas ela não pertencia, claramente, ao universo com que os juristas letrados lidavam. Os mais tardios, consideram-na extravagante e exótica(9); os mais antigos pouca atenção lhe dedicam (aparte o caso da comunhão geral de bens entre os cônjuges, que era o regime matrimonial “segundo o costume do reino”, Ord.fil., IV,46, pr.; 95).

230 Dever de auxílio mútuo (cf. Ord. fil, v. 124,9), direitos sucessórios (Ord. Fil, IV, 90,94, pr., 96), direito de reagirem judicialmente contra a usurpação de armas e apelidos (Pegas, 1685, v. c. 116). 231 Que alguns estendem até ao ponto de abranger o dever de ser útil aos vizinhos (Natividade, 1653, op. v. cap. 13.).

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1.6 A economia dos deveres familiares Se todo este grupo estava ligado por deveres recíprocos, mais estritos eram, porém, os deveres entre pais, filhos e cônjuges232 . Os principais deveres do pater familias para com os filhos eram: (i) o de os educar, espiritualmente(10), moralmente233 e civilmente, fazendo-lhes aprender as letras (pelo menos os estudos menores), ensinar um ofício e, caso nisso concorressem as qualidades da família e as aptidões do filho, estudos maiores(11); (ii) prestar-lhes alimentos, nisso se incluindo a bebida, a comida, a habitação e tudo o mais que pertence ao sustento, como o vestir, calçar e medicamentos234 ; a dotá-los para matrimónios carnais ou religiosos235 . Por sua vez, os filhos deviam aos pais gratidão, obediência e obséquios 236 . O dever de gratidão obrigava os filhos, ainda que naturais ou espúrios, a ajudar os pais necessitados, quer em vida, ministrando-lhe o auxílio de que carecessem, quer depois de mortos, fazendo-lhe as exéquias e dando-lhes a sepultura, de acordo com a sua qualidade e assegurando missas por suas almas237 . Mas impedia, além disso, por exemplo, que o filho acusasse o pai em juízo ou que o matasse, ainda que para defender um ino-

232 233 234 235 236 237

Cf. Natividade 1653, op. v. per totum. Ibid., § 8 e III, 1.1, d. 1, § 4, n. 52, 15 (sobre a moralidade das filhas). Fragoso, 1641, III, L.l, d.2, § 1; Natividade 1653, op. IX; Lobão, 1828, § 1 ss. Fragoso, 1641; Natividade, 1653, op. XI; Lobão, 1828, § 56. Cf. Natividade, 1653, op. V. Fragoso, 1641, III, 1 1. 1, d. 2, § 8, ns, 226/227, 65; e 1. 2, d. 3, § 2, n. 44, 86.

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cente 238 . O dever de obediência obrigava-os a respeitar e acatar as decisões dos pais239 .

1.7 Obediência e liberdade pessoal Em alguns aspectos fundamentais, o concílio de Trento veio minar este dever de obediência dos filhos, ao sublinhar o carácter essencialmente voluntário dos actos relativos à fé, no número dos quais entravam, no entanto, alguns de grande relevo externo. Assim, pune com a excomunhão qualquer pessoa (e, portanto, também os pais) que force outra a tomar o estado religioso (sess. 25, de reformat, cap. 18). Mas o mesmo se passa quanto a decisões ainda mais críticas para a política familiar – as relativas ao casamento. O Concílio enfatiza, de facto, o carácter livre e voluntário do matrimónio. Daí que fulmine com a excomunhão quem atente contra a liberdade matrimonial e dispense os párocos de se assegurarem da autorização dos pais dos nubentes, já que este requisito podia impedir uniões queridas pelos próprios (sess. 24, de reformat., c. 1). Por isso é que os direitos dos reinos, mais atentos aos interesses políticos das famílias do que ao carácter pessoalíssimo das opções de vida, continuavam a proteger o poder paternal. É este o sentido da legislação de vários reinos europeus que,

238 Ibid., III, 1. 1, p. 1, d. 1, § 2, n. 21. 239 Em contrapartida, o pai podia castigar os filhos desobedientes, embora – tal como no caso da mulher – nos limites de uma moderata domestica correctio, não lhes causando feridas, mutilações ou a morte.

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sobretudo a partir dos meados do século XVIII, punem severamente os nubentes que desobedeçam a seus pais. Em Portugal, as Ordenações deserdavam as filhas menores (de 25 anos) que casassem contra a vontade dos pais (Ord. fil., IV, 88, 1); e, em complemento, puniam com degredo quem casasse com mulher menor sem autorização do pai (ib., v. 18). Mas as disposições liberalizadoras do Concílio, difundidas por teólogos e canonistas, influenciaram decisivamente párocos e tribunais, chegando os juristas a discutir a legitimidade destas leis régias que, indirectamente, coarctavam a liberdade do matrimónio. No tempo de D. João V causou escândalo o facto de o Patriarca de Lisboa ter ido buscar a casa de seus pais, para a proteger das imposições destes, uma donzela que queria casar sem o consentimento parental240 . Isto não podia deixar de perturbar a disciplina familiar, com tudo o que isso tinha de subversivo, no plano das relações pessoais entre pais e filhos, mas também no do controlo paterno das estratégias de reprodução familiar. Já as Cortes de 1641 tinham sido sensíveis a esta quebra da autoridade paterna na escolha dos esposos dos filhos. Mas é na segunda metade do séc. XVIII – quando se procura uma nova disciplina da república e da família – que a reacção contra esta “laxidão” se toma mais forte241 . Numa diatribe242 contra a

240 Cf. Chaves, 1989,203. 241 V. anedotas sobre o tema em “Descrição de Lisboa [...]. 1730”, Chaves, 1989, 64. 242 Bartolomeu Coelho Neves Rebelo, Discurso sobre a inutilidade dos esponsaes dos filhos celebrados sem consentimento dos pais, Lisboa, 1773.

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difusão desta “Moral relaxada, opposta a todos os princípios da Sociedade civil”, Bartolomeu Rebelo descreve a situação de “libertinagem” a que tinha conduzido a doutrina de Trento, propagada pelos teólogos “jesuítas”(12) e propõe o retomo a uma rigorosa disciplina familiar, em que a matéria das núpcias seja da exclusiva responsabilidade dos pais sem attenção alguma aos filhos, os quaes só se contemplão, como ministros e executores da vontade paterna [...] Donde se segue com infallivel certeza, que competindo aos Pais a escolha dos cazamentos, devendo estes attender às qualidades dos Espozos e Espozas, que buscão para seus filhos, não devem estes intrometer-se ao Officio paterno [...] (pp. 21-23).

Este autor não exprimia uma opinião isolada, nem a que a própria Igreja fosse insensível. Os teólogos começavam a revalorizar o valor da obediência, considerando que os casamentos não consentidos pelos pais eram frequentemente ilícitos e pecaminosos, por desobediência aos pais, sobretudo quando estes casassem indignamente, pois tais casamentos “seriam fonte de ódios, rixas, dissídios e escândalos”243 . Bento XIV publicara (em 17.11.1741) uma encíclica que atenuava os cuidados tridentinos pela liberdade matrimonial. E o Patriarca de Lisboa enviara, no início dos anos setenta, uma circular aos párocos, recomendando-lhes que se assegurassem do consentimento dos pais (Bartolomeu Rebelo, Discurso..., XV). Em 1772 (9.4), a Casa da Suplicação tomara um

243 S. José, 1791, tr. 34, II, n.71.

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assento duríssimo, ampliando a Ord. IV, 88 244 . A lei de 9.6.1775 ratifica esta orientação, deserdando os filhos e filhas (sem limite de idade) que casem sem consentimento dos pais, para além de reforçar as penas já estabelecidas nas Ordenações contra os sedutores.

1.8 Política das famílias e política da república Mas se a política pombalina da família visava este objectivo de firmar a sua autoridade e disciplina interna, visava ainda outros de “política social”, como o de lutar contra o pronunciado casticismo das famílias nobres245 e contra a tendência para os pais exercerem um “poder despótico” sobre os filhos, negando “absoluta, o obstinadamente os consentimentos ainda para os matrimonios mais uteis [...] em notorio prejuizo das Familias, e da Povoação, de que depende a principal força dos Estados”. Daí que o rei, “como Pai Commum dos [...] Vassalos”, cometa ao Desembargo do Paço, pela lei de 29.11.1775, o suprimento da autorização paterna para os casamentos da nobreza de corte, dos comerciantes de grosso trato ou nas pessoas nobilitadas por lei; e aos corregedores e provedores, o suprimento desta autorização no caso dos casamentos de artífices e de plebeus.

244 Pois, além da deserdação das filhas, nos termos aí consignados, cominava ainda a deserdação dos filhos, qualquer que fosse a sua idade (!), que se casassem, fosse com quem fosse, indigno ou digno, sem consentimento dos pais (Collecção chronologica dos assentos..., ass. 282). 245 Cf., v. g., as leis abolindo a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos, 25.5.1773 e 15.12.1 774; e o dec. contra os “puritanos” de 1768.

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Mas, de novo, a lei de 6.10.1784 reforça o controlo dos pais sobre os esponsais dos filhos, obrigando a que estes intervenham expressamente na escritura da sua celebração (nºs 1 e 2) e neles dêem o consentimento (n.º 4). Só que, como compensação, se restringe a obrigatoriedade do consentimento aos esponsais dos filhos menores de 25 anos, para além de que se mantém a possiblidade de suprir a autorização, nos termos da lei de 29.11.1775(13).

1.9 Uma comunidade de bens e de trabalho Embora não seja fácil classificar a família portuguesa de Antigo Regime – pelo menos como o direito oficial a define – como uma comunhão alargada de pessoas e de bens, existem deveres de cooperação de todos na valorização do património familiar. Um deles era o dever de obséquio dos filhos, que consistia na obrigação de prestarem ao pai a ajuda e trabalho gratuitos de que ele carecesse. No caso de estarem sob a sua patria potestas, este dever era irrestrito (ad libitum, qui totum dicit, nihil excipit), obrigando a trabalhos que, prestados a outrem, seriam pagos. Já no caso dos filhos emancipados, se entendia que esta obrigação não abrangia os trabalhos que requeressem arte ou indústria246 . Também no domínio das relações patrimoniais, a regra geral (mas, até certo ponto, também caricatural) era a de que, 246 Fragoso, 1641, III, 1. l0, d. 22, § 5, ns. 117/118, p. 650; Lobão, 1628, § 22 (este mais restritivo quanto aos deveres dos filhos).

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fazendo os filhos parte da pessoa do pai, só este era titular de direitos e obrigações, adquirindo para si os ganhos patrimoniais dos filhos sujeitos ao pátrio poder e sendo responsável pelas suas perdas. Com a consequência suplementar de que não poderiam entre si contratar. Tudo isto estava, no entanto, algo atenuado. Quanto à capacidade de adquirir, desde o direito romano que se reconhecia aos filhos a capacidade de terem património próprio (peculium) (14). E quanto aos seus poderes de contratar com o próprio pai, de há muito se superara a restritíssima norma do direito romano247 , apenas se mantendo no domínio processual248 .

1.10 Marido e mulher: uma igualdade de geometria variável As relações entre marido e mulher249 estão, também, desenhadas sobre a antropologia moderna do amor conjugal, a que acima já nos referimos. Um amor igual e desigual ao mesmo tempo. Igual, porque se baseia numa promessa comum e recíproca de ajuda, de fidelidade e de vida em comum, promessa cujo cumprimento, por seu lado, seria decisivamente facilitado pela igualdade da condição e riqueza dos cônjuges (Fragoso, 1641, III, 1. 1, d. 1, §3, 36/40). Desigual, porque, em virtude da diferente natureza do homem e da mulher, os sentimentos mútuos dos cônjuges – 247 Cf. Pascoal de Melo, 1789, IV,I,8; Lobão, 1818, § 245. 248 Fragoso, 1641, III, I. 2, d. 3, § 2, n. 43. 249 Cf., em geral, Natividade, 1653, op. IX.

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e, logo, os deveres correspondentes – não são iguais nem recíprocos. Uma boa ilustração disto é a do adultério. Embora seja, em qualquer caso, igualmente censurável do ponto de vista da moral abstracta (pois ambos os adúlteros violam a mútua obrigação de fidelidade), a moral positiva julga-o diferentemente, já que o adultério da mulher não apenas faz cair o opróbio sobre os filhos e obscurece a paternidade dos filhos (turbatio sanguinis), como segundo o célebre jurista Baldo (século XIV) – causa aos maridos uma dor maior do que a da morte dos filhos (15). Mas à desigualdade do amor, juntam-se as desigualdades naturais dos sexos, que fazem com que esta comunhão dos esposos fosse fortemente hierarquizada. Na verdade, eles constituíam uma só carne; mas, nesta reintegração num corpo novamente único, a mulher parece que tendia a retomar a posição de costela do corpo de Adão. A subalternização da esposa tinha uma lógica totalitária no ambiente doméstico. Começava logo nos aspectos mais íntimos das relações entre os cônjuges. Assim, na consumação carnal do casamento, já que se entendia que a perfeição do acto sexual se dava com o orgasmo do homem, sendo dispensável o da mulher250 . O que decorria do facto de se considerar como meramente 250 “O matrimónio só se consuma pela cópula, pela qual os cônjuges se tomam numa só carne, o que não se verifica sem a emissão de sémen pelo homem [...]. Questiona-se sobre se o sémen da mulher é um requisito necessário para a consumação. Ambas as opiniões são defensáveis, mas a mais provável é que não o seja”, S. José, 1791, tr. 34, II, n. 121.

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passivo e recipiente o papel da mulher na gestação, que se limitava a contribuir com a matéria bruta a que o homem daria a forma. Esta hierarquização devia tornar-se visível na própria gestualidade do acto sexual. De facto, seria contra natura o coito “praticado de pé, sentado ou em posição invertida, estando o homem por baixo e a mulher por cima”251 ; numa palavra, a própria expressão dos corpos devia evidenciar a posição dominante do homem. Mas a subordinação da esposa manifestava-se, depois, no plano dos actos externos, de natureza pessoal e patrimonial. Estava sujeita ao poder do seu marido252 , o que se traduzia numa faculdade generalizada de a dirigir253 , de a defender e sustentar254 e de a corrigir moderadamente(16). Deste poder de correcção estava privada a mulher. Ao explicar porque é que a mulher não podia, ao contrário do marido, abandonar o marido adúltero (a não ser no caso de “correr o risco de perversão ou de incorrer em pecado”), um moralista de seiscentos explica que “à mulher não compete a correcção do homem, como a este compete a correcção daquela, pois o marido é a cabeça da mulher e não o contrário”255 . 251 S. José, 1791, tr. 34, II, n.158. 252 Já em relação aos poderes sobre os filhos, a inferioridade da mulher decorre, como reconhecem os juristas na segunda metade do século XVIII, de respeitos que têm mais a ver com os mutáveis costumes das nações do que com a natureza do casamento (V. Pascoal de Melo, 1789, II,4,6). 253 Administrando os seus bens com bastante liberdade (Ord. fil., IV, 48; 60; 64; 66 (cf. Pascoal de Melo, 1789, IV,7,4 (e respectivas notas de Lobão); representando-a em juízo (Ord.fil., III,47). 254 Cf. Ord. fil., IV, 103, I; à mulher e às suas criadas, mesmo para além das forças do dote (Fragoso, 1641, III, I. 3, d. 4, §1, n. 9,172). 255 S . José, 1791, tr. 34, II, n. 151.

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1.11 A perpetuação da unidade: primogenitura e indivisibilidade sucessória do património familiar A unidade era, portanto, um princípio constitucional da família de Antigo Regime. Este apelo da unidade fazia-se sentir não apenas enquanto sujeitava todos os membros da família à direcção única do pater, mas também enquanto favorecia modelos de assegurar a unidade da família, mesmo para além da morte deste. Referimo-nos, antes de mais, ao instituto da primogenitura, cuja difusão se explica, porventura, por ingredientes da tradição judaica (testemunhados pelas Escrituras; cf. Exodus, 13, 22) e feudais. A raiz do direito dos primogénitos a encabeçarem a comunidade familiar estaria no facto de, por presunção que decorria da natureza, o amor dos pais ser maior em relação ao filho mais velho, bem como no carácter ungido e quase sacerdotal do filho mais velho no Antigo Testamento. O carácter antropológico e quase divino deste fundamento dos direitos de primogenitura fazia com que estes fossem inderrogáveis (salva justa causa) quer pelo pai, quer pelo rei. Na Época Moderna, porém, a antiga dignidade natural ou divina dos direitos dos primogénitos já era negada por muitos, que os fundavam antes num particular uso de certas nações quanto às regras de sucessão de determinados bens, de acordo com a sua natureza (caso dos bens feudais) ou com a vontade de um seu dono (caso dos morga-

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dos)256 . E, de facto, na Europa ocidental, o seu âmbito reduzia-se, praticamente, ao direito feudal (caso dos “feudos indivisíveis”) e, na área hispânica (ou de influência hispânica, como em certas zonas de Itália), aos morgados (e, até certo ponto, aos bens enfitêuticos)257 . Nestes casos, porém, a indivisibilidade do património familiar (e a unidade familiar a que isto força, com o realce dos direitos e deveres recíprocos dos familiares que vivem na sombra do administrador do vínculo) já tem menos a ver com a unidade natural da familia do que com as vantagens políticas (do ponto de vista familiar, mas também do ponto de vista da coroa) da indivisão dos bens das casas e da sua conservação numa certa linha sucessória. Do ponto de vista das famílias, porque a indivisibilidade do património vinculado evita não apenas o olvido do nome258 e gesta familiares, mas também a dispersão dos próprios membros da família, já que estes ficam economicamente dependentes do administrador do morgado. Do ponto de vista da coroa, porque, justamente em virtude deste último facto, obtém o encabeçamento” do auxilium das famílias (maxime, das famílias nobres) num número relativamente pequeno de intermediários (cf. Pegas, 256 Embora tal uso atribuísse ao primogénito uma certa “preeminência e dignidade” (Pegas, 1685, cap. 1, n. 3 ss.; Fragoso, 1641, p. 3, 1. 9, d. 20, § 1, n. 8, 576). 257 Sobre o princípio da primogenitura na história do direito europeu, Gilissen, 1988, 681 s.; para Portugal, Ibid., 694 ss. 258 Daí que, em geral, se excluis sem as mulheres da sucessão dos morgados, dada a sua incapacidade para transmitir o nome: “a família aumenta pelos varões em dignidade e honra e destrói -se e extingue-se pela mulheres; e por isso se diz que as mulheres são o fim da família” (Miguel de Reinoso, Observationes [...], ob. 14, nºs 9/11).

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1685, cap. 2, n. 5; Ord. fil., IV, 100,5; Lobão, Morgados,II, § 4)(17). O carácter “civil” e não “natural” dos morgados é realçado ainda mais na literatura pós-iluminista(18), que propende fortemente a considerá-los “antinaturais”, justamente por ofenderem a igualdade de direitos entre todos os filhos259 que, ele também, decorria do princípio natural da unidade da família, embora entendido de outro modo. Do carácter civil e político (i.e., “artificial”) dos morgados seguia-se que a sua criação dependia apenas do prudente arbítrio do instituidor (cf. Fragoso, 1641, p. 3, 1. 9, d. 18, § 1, n. 11), estando, portanto, aberta a nobres e plebeus, com a única limitação de que a instituição devia ter a opulência adequada aos fins por ela visados.

1.12 Entre a unidade da família e a igualdade dos filhos Com a contínua aristocratização do pensamento social durante os séculos XVII e XVIII, que tendia a operar uma concentração da nobreza no grupo dos “grandes” com o progressivo realce dos direitos de todos os filhos à herança(19) e com o advento das concepções individualistas quanto à liberdade de disposição dos bens e à vantagem (económica e fiscal) da sua circulação, reforça-se a tendência para restringir, em nome da natureza da família, a liberdade de instituir morgados àqueles casos em que o interesse público justificasse os prejuízos decorrentes da vinculação. 259 Gaetano Filangieri, Scienza della legislazione, 1780, 1,18,10; cf., para a discussão, Lobão, II, §§ 1-18.

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Permitir ou não a vinculação passa a depender do modo como se entenda o equilíbrio justo entre a “igualdade natural dos filhos”, a “política de reputação das famílias” e a “política da república”. A primeira hostil aos morgados, a segunda buscando-os como meio de adquirir ou manter o lustre social; a terceira, procurando combinar as vantagens fiscais e económicas da circulação dos bens com as da existência de uma nobreza poderosa em volta do trono. Já no século XVI, Luís de Molina exigia que a autorização régia para instituir morgados em prejuízo dos restantes filhos apenas fosse concedida no caso de o institui dor ser nobre ou de qualidade e riqueza (Molina, 1573, L. 1, cap. 14, n. 8). Pois as famílias de humilde ou obscura origem, nada tinham a perpetuar, antes procurando nos morgados um meio de, confundindo a natureza, se insinuarem entre os nobres (cf. Lobão, 1814, I, § 12 e lit. cit.). Esta “política das famílias” devia ser corrente, pois Lobão, justificando as medidas restritivas tomadas no tempo de Pombal, fala de “huma geral mania de instituir vinculos em predios de ridiculos rendimentos” (ib., § 14), apesar das limitações que alguma doutrina (não dominante no foro) tendia, como vimos, a introduzir. É apenas com as leis de 3.8. de 9.9.1770 que a “política da república” impõe às “políticas das famílias” um equilibrado respeito pelos “direitos naturais de todos os filhos à herança”, concretizando as condições (quanto à qualidade das pessoas e quanto à importância dos bens vinculados) juridicamente necessárias, para que os morgados anteriores subsistam ou outros novos se possam instituir(20). 174

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1.13 Outras fidelidades domésticas “Família” era, no entanto, uma palavra de contornos muito vastos, nela se incluindo agnados e cognados, mas ainda criados, escravos e, até, os bens. “La gente que vive en una casa debaxo del mando del senor della”, eis como define família o Dicionario de lengua castellana, da Real Academia de História (1732), invocando as Part., 7, tit. 33, 1. 6: “Por esta pai abra familia se entiende el señor de ella, e su muger, e todos los que viven so el, sobre quien ha mandamiento, as si como los fijos e los servientes e otros criados, ca familia es dicha aquella en que viven mas de dos homes al mandamiento del señor”. Mas acrescenta, em entradas seguintes, outras acepções: “número dos criados de alguém, ainda que não vivam dentro da casa”; “a descendência, ascendência, ou parentela de alguma pessoa”; “o corpo de alguma religião ou comunidade”; “o agregado de todos os criados ou domésticos do rei”; fazendo ainda equiparar “familiar” a amigo260 . Em relação a toda esta universalidade valiam os princípios inicialmente enunciados, nomeadamente o da unidade sob a hegemonia do pater, ao qual incumbiam direitos-deveres sobre os membros e as coisas da família. Era assim quanto aos criados, ligados ao dominus por uma relação que excedia em muito a de um simples mercenariato, aparecendo envolvida no mundo das fidelidades domésticas. Não é que o direito português conhecesse 260 Sobre o conceito de família v., ainda, Monteiro, 1993, 279.

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ainda a adscrição (cf. Ord. fil., IV, 28). Mas as relações entre o senhor e os servos criados desenvolviam-se no ambiente da família patriarcal (da “casa”) que criava, de parte a parte, laços muito variados. Desde logo, “criados” (famuli, “família”) eram, tradicionalmente, aqueles que viviam com o senhor “a bem fazer”, ou seja, pelo comer e dormir. São quase apenas estes que as Ord. Man. (de 1521, IV, 19) consideram, não lhes reconhecendo (como, de resto, acontece com o direito comum) direito a reclamarem uma soldada. Apesar da inversão verificada com as Ord. fil. – que passam a reconhecer um direito geral a um salário e reflectem o advento de um mundo (urbano?) muito mais expandido de relações mercenárias de trabalho (cf. IV, 32 ss.) –, a doutrina continua a resistir a integrar as relações domésticas de trabalho no “mercado do trabalho” e distingue os criados domésticos, segundo o modelo tradicional261 – cujo direito ao salário entende estar dependente de uma longa série de avaliações arbitrárias (cf. o comentário de Silva 1731 a Ord. fil., IV, 30) –dos trabalhadores mercenários externos. Os laços de vinculação pessoal – que se traduziam, nomeadamente, num muito débil direito ao salário (ou, pura e simplesmente, na sua ausência) e na necessidade de licença do senhor para abandonar a casa – 261 “Domestici sunt illi, qui cum aliquo continue vivunt, data aliqua inferioritate, ad unum panem, & ad unum vinum” (domésticos são aqueles que vivem com alguém, implicando alguma inferioridade, por um pão e um copo de vinho, Pegas, 1789, III, ad I,24, gl. 20, n. 2); cf. também Reinoso, 1625, ob. 32, n. 4 e Ord. fil., II, 11.

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existiam também no caso dos criados dos cortesãos e nos “acostados”, ou seja, daqueles que tivessem recebido do senhor algum benefício(21). Apesar de Pascoal de Melo Freire (um individualista) considerar estas leis “feudalizantes” e caídas em desuso (1789, II,1,16, in fine), Lobão (um tradicionalista) censura-o asperamente por isso, continuando a propor um modelo patriarcal das relações entre senhores e criados262 . A contrapartida deste mesmo sentimento de uma íntima comunicação entre senhor e criado era constituída pelas isenções de que gozavam os criados de eclesiásticos e nobres (Ord. fil., II,25 e 58) e o facto comum de se pedirem ao rei mercês para os seus criados263 .

1.14 A força expansiva do modelo doméstico Muito do imaginário e dos esquemas de pensamento a que acabamos de nos referir transvazavam largamente o domínio das relações domésticas, aplicando-se, nomeadamente, ao âmbito da república. Como se diz na época, “sendo a casa a primeira comunidade, as leis mais necessárias são as do governo da casa” (Natividade, 1653, op. I, cap. 1, p. 2, n. 10); e sendo, além disso, a família o fundamento da república, o regime (ou governo) da casa é também o fundamento do regime da cidade. Este tópico dos contactos entre “casa” e “república” – e,

262 Lobão invoca, significativamente, o direito dos Estados alemães que, como se sabe, conservaram até muito tarde o regime de servidão e de adscrição. 263 Cf., em geral, sobre o tema, Natividade, 1653, op. XII.

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consequentemente, entre a “oeconomia”, ou disciplina das coisas da farmília, e a “política”, ou disciplina das coisas públicas)264 –, a que a literatura recente tem dado muito destaque265 , explica a legitimação patriarcal do governo da república, em vigor durante quase todo o Antigo Regime, bem como o uso da metáfora do casamento e da filiação para descrever e dar conteúdo às relações entre o príncipe e a república e entre o rei e os súbditos. E constitui também a chave para a compreensão, num plano eminentemente político, de uma grande parte da literatura que, aparentemente, se dirige apenas ao governo doméstico. Zona de expansão do modelo doméstico é também o domínio das relações internas à comunidade eclesiástica. Não só a Igreja é concebida como uma grande família, dirigida por um pai espiritual (Cristo ou o seu vigário, o Papa [notese o radical da palavra]) e regida, antes de tudo, pelas regras do amor familiar (fraterna disciplina, fraterna correctio), como as particulares comunidades eclesiásticas obedeciam ao modelo familiar. Às congregações religiosas chamavam-se “casas”; os seus chefes eram “abades” (palavra que significa “pai”) ou “abadessas” (ou “madres”), a quem os religiosos deviam obediência filial. Os religiosos eram, entre si, “frades” (fratres, irmãos) ou sorores (sorares, irmãs; ou, também, “irmãs”). Sobre eles impendiam incapacidades e deveres tí-

264 Que Aristóteles, sintomaticamente, considerara conjuntamente no seu tratado sobre a “economia”. 265 V., por todos, Frigo, 1985a, 1985b, 1991; Hespanha, 1990; Mozzarelli, 1988.

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picos dos filhos família. A disciplina interna da comunidade era – sobretudo nas congregações femininas em que as madres não dispunham de jurisdição, por serem mulheres – concebida como uma disciplina doméstica, competindo aos superiores os poderes de que os pais dispunham em relação aos filhos. Tudo isto é bastante para mostrar o papel central que, na imaginação das relações políticas, é desempenhado pelo modelo da família. Modelo que, por outro lado, obedece a uma impecável lógica estruturante, fundada em cenários de compreensão do relacionamento humano muito profundamente ancorados nas sociedades europeias pré-contemporâneas.

1.15 Orientação bibliográfica Este capítulo segue de perto o meu artigo “Carne de uma só Carne”. Para uma compreensão dos fundamentos histórico-antropológicos da família na época moderna” (em Análise Social, 1993, número de homenagem ao Prof. Doutor Adérito Sedas Nunes), onde se podem ver detalhes suplementares. O enquadramento deste tema numa história ocidental da farmília pode ser feita com recurso à obra de James Casey (Casey, 1991), uma das mais actualizadas, equilibradas e sensíveis ao contexto institucional. Quanto aos aspectos mais especificamente jurídicos, aconselha-se a consulta dos capítulos respectivos de Gilissen, 1988, bem como das “notas do tradutor” (da minha autoria) que os seguem; aí se

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podem encontrar, também, exemplos textuais; para maiores desenvolvimentos, Coing, 1985. Indicações de bibliografia secundária portuguesa recente (geralmente sobre aspectos parcelares) podem encontrarse em Hespanha, 1992 (pp. 55 ss. e 68 s.). As fontes são, sobretudo, a literatura teológica (comentários ao sacramento do matrimónio)(22) e a literatura jurídica (da qual destacamos, como síntese, o aqui tantas vezes citado Baptista Fragoso). Mas a literatura “económica” (como Andrade, 1630; Barros, 1540; Melo, 1651; e Natividade, 1653) pode fornecer sugestões com uma tonalidade diferente.

Bibliografia citada ANDRADE, Diogo Paiva de, Cazamento peifeito em que se contem advertencias muyto importantes para viverem os cazados em quietação e contentamento, [...], Lisboa, 1630. ANTOINE, Gabriel S. J., Theologia moralis ad usum parochorum & confessariorum, Romae, 1741. BARROS, João de, Espelho de cazados, Porto, 1540. * CASEY, James, História da Família (trad. port. de The history ofthe Familily, 1989), Lisboa, Teorema, s./d. [1991]. CHAVES, Castelo Branco (org.), O Portugal de D. João V visto por Três Forasteiros, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1989. COING, Helmut, Europaisches Privatrecht. Band I. Alteres Gemeines Recht (1500 bis 1800), München, C. H. Beck, 1985. CORDEIRO, António, Resoluçoens theojuristicas [...]. V. De morgados, ou capelas vinculadas, Lisboa Occidental, 1718. FERNANDES, Maria de Lurdes C., “As artes da confissão. Em torno dos manuais de confessores do séc. XVI em Portugal”, Humanística e Teologia, 11(1990), pp. 47-80. 180

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FRAGOSO, Baptista, Regimen reipublicae christianae, Lugduni, 1641-1652. FRIGO, Daniela, Il padre di famiglia. Governo della casa e governo civile nella tradizione dell’“oeconomica” tra Cinque e Seicento, Roma, 1985. FRIGO, Daniela, “La dimensione amministrativa nella riflessione politica (secoli XVI-XVIII) ”, C. Mozzarelli (ed.) in L’amministrazione nell’Italia moderna, Milano-Giuffre, 1985,2 vols., I, 21-94. * FRIGO, Daniela, “Disciplina rei familiariae: a economia como modelo administrativo de Antigo Regime”, in Penélope, (6) 1991. * GILISSEN, John, Introdução Histórica ao Direito, Lisboa, Gulbenkian, 1989. HESPANHA, António Manuel, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a revolução”, in Hispania. Entre derechos proprios y derechos nacionales. Atti dell’incontro di studi, Firenze, 1990. HESPANHA, António Manuel, Poderes e instituições no Antigo Regime. Guia de estudo, Lisboa, Cosmos, 1992. LARRAGA, Francisco O. P., Promptuario de la theologia moral, ed. cons. (3.ª), Madrid, 1788, 2 tomos. LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa de, Tratado prático de morgados, Lisboa, Imprensa Nacional, 1814. LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa de, Notas de uso práticas e críticas [...] a Melo, Lisboa, 1818. LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa de, Tratado das acções recíprocas I. Dos pais para com os filhos. II. Dos filhos para com os pais [...], Lisboa, 1828. MELO, Francisco Manuel de, Carta guia de casados, 1651. MELO (Freire), José Pascoal, Institutiones iuris civilis lusitani, Ulysipone, 1789. MOLINA, Luís de, De hispanarum primogeniis [...], Compluti, 1573. * MONTEIRO, Nuno G., “Os sistemas familiares”, in J. Mattoso (dir.), História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, voI. IV (<
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MOZZARELLI, Cesare, (ed.), “Famiglia” del principe e famiglia aristocratica, Roma, Bulzoni, 1988, 2 vols. NATIVIDADE, Fr. António da, Stromata oeconomica totius sapientiae [...] sive de regimini domus, Olysipone, 1653. PEGAS, Manuel Alvares, Commentaria ad Ordinationes [...], 14 vols., VIysipone, 1669-1703. PEGAS, Manuel Alvares, Tractatus de exclusione, inclusione, successione et erectione maioratus, Ulyssipone, 1685. REINOSO, Miguel de, Observationes praticae [...], Olyssipone, 1625. SILVA, Manuel Gonçalves da, Commentaria ad Ordinationes [...], 4 vols., Ulysipone, 1731-1740. S. JOSÉ, Antonio de, Compendium sacramentorum in duos tommos distributum universae theologiae moralis quaestiones, ed. cons. Pampelonae, 1791.

Bibliografia sugerida – As notas assinaladas com * Notas (1) O bimester tinha como finalidade permitir a qualquer dos cônjuges uma última reflexão sobre o ingresso no estado religioso. Mas, subsidiariamente, destinava-se a aumentar, pela espera, o desejo de consumação (S. José, 1791, tr. 34, II, n. 110). (2) As limitações ao dever de entrega eram poucas: doença sexual transmissível, demência, embriaguez, pendência de divórcio, incapacidade da mulher para dar à luz filhos vivos (mas não já perigo de parto difícil). Algumas destas causas de inexigibilidade do débito cessavam sempre que a recusa causasse perigo de desavença ou de incontinência (e, logo, pecado) do outro cônjuge (S. José, 1791, tr. 34, II, n. 135 ss.). Fora destes casos, a exigência de relações sexuais tinha que se conformar, como se verá, àquilo que era considerado como um “uso honesto” do casamento (S. José, 1791, Ibid.; Larraga, 1788, tr. 9, § 8). (3) Isto penalizava, naturalmente, a sexualidade da mulher, cuja satisfação podia não coincidir com o momento da inseminação. Neste ponto, os moralistas, condescendiam um pouco com o erotismo, permitindo à mulher que não tivesse tido o orgasmo durante o coito excitar-se até o atingir ou consentindo ao marido prolongar o coito depois do seu orgasmo até ao orgasmo da mulher (S. José, 1791, tr. 34, n. 161; Larraga, 1788, tr. 9, 1, 269 ss.). Não se tratava, em todo o caso, de uma obrigação para ele, pois a mulher apenas tinha direito a um coito consumado [do ponto de vista da sua eficácia

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generativa], mas não a um coito satisfatório; por outras palavras, tinha direito a engravidar, mas não a gozar. (4) Cf. Natividade 1653, op. IV, c. 3, n. 2/3, pg. 110. Existem algumas limitações a este princípio, consubstanciadas em direitos dos filhos (v. g., “alimentos”, dotes, bens integrados em pecúlios próprios), da mulher (v. g., “alimentos” ou reparação de “injúrias”), dos criados (v. g. “soldadas”) e, até, dos escravos (v. g., a vindicação da “liberdade” ou reparação de “injúrias”), oponíveis judicialmente ao pater. (5) A questão da ordo amoris, em geral, era discutida na qu. 26 da IIa.IIae da Summa theologica: é maior o que se tem pelos mais próximos do que o que se tem pelos melhores (princípio que não deixa de ser subversivo em relação a um princípio constituinte da sociedade política), art. 7; o pai prefere a mãe, na ordem do amor, art. 10; os filhos preferem os pais, art. 9; a mulher prefere os pais, art. 11; o beneficiado o beneficiante, art. 12). (6) Cf. S. Thomas, Sumo theol., IIa.IIae, qu. 26; Fragoso, Regimen..., p. 3, 1. 1, d. 1, § 1, ns. 8/9). As fontes escriturais desta eminência do amor entre os cônjuges eram, sobretudo, Gen., 11,24 (“pela esposa, deixe o marido o seu pai e a sua mãe”), Mat., 19,6 (“e assim já não são dois, mas uma só carne”); Paul., 28,33 (“os maridos devem amar as suas esposas como a si mesmos”). (7) No caso dos filhos legítimos e naturais, os alimentos eram devidos de acordo com a qualidade e possibilidades do pai; nos espúrios apenas segundo a sua indigência (utfame non pereant), Fragoso, 1641, m, p. 153 (o A. afastase desta opinião, que seria a recebida, sendo favorável à plena equiparação); Lobão, 1828,7. (8) Cf. Fragoso, 1641, III, I. 2, d. 3, ? 3, ns. 1 ss. [sobre o termo do poder paternal] e 82 a 114 [sobre este último ponto]; Pascoal de Melo, 1789,II,5,21 ss. (contra, Lobão, 1818, ad v.27, rubr.) (9) “Confesso que nunca vi provada claramente, nem julgada no foro tal sociedade universal tacita com effeitos de expressa, nem tão pouco jámais vi escriptura de sociedade universal expressa”, escreve Lobão (Tratad ..., § 789); mas não deixa de expor uma série de regras sobre as partilhas de sociedades de amanho comum das terras paternas, constituídas, nomeadamente em meios rústicos, entre irmãos, com suas mulheres e filhos (cf. § 777 e ss.; no caso de os irmãos serem “nobres”, § 785). (10) V., sobre o seu conteúdo (doutrina sagrada; pelo menos, o credo, o decálogo, o padre-nosso e os principais mistérios da fé (Fragoso, 1641, p. III, 1. 1, d. 1, § 6, p. 21 s.). Também, Natividade 1653, op. X). (11) Cf. Ord.fil., IV,97,7; v. também, sobre o alcance desta obrigação paterna, Fragoso, 1641, p. III, 1. 1, d. 1, § 6, ns. 96 ss. (em Portugal, seria costume dever o pai custear os estudos e livros universitários do filho, mesmo que não concorde com eles. Tudo isto limitado, naturalmente, pela condição familiar e pelas posses do pai. Lobão (1828, § 47 ss.) entende que os pais nobres estão obrigados a pagar os estudos até ao grau de bacharelou doutor (§ 48). (12) Decorre das mesmas listas de “bons” e “maus” teólogos (cf. XI e 38) que dos dois lados estavam jesuítas; mas o sentido geral da teologia moral da Segunda Escolástica, dominada pelos jesuítas, era, de facto, liberalizador quanto a este ponto.

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(13) Para mais detalhes, v. o meu artigo “Carne de uma só Carne”. Para uma compreensão dos fundamentos histórico-antropológicos da família na época moderna” (a publicar em Análise social (1993), núm. de homenagem ao Prof. Doutor Adérito Sedas Nunes). (14) Nos seus vários tipos de castrense, quasi castrense, adventício e profecticio, enumerados por ordem decrescente de poderes de disposição; cf. Fragoso, 1641, III, 1. 1, d. 2, §8, ns. 229 ss.; Lobão, 1828, cap. 13. Sobre a capacidade para se obrigarem, Fragoso, 1641, III, 1. 1, d. 2, §9. (15) Fragoso, 1641, III, 1. 1, d. 1, § 3, n. 42. Daí que os juristas entendam que o adultério mútuo e recíproco não se pode compensar, pois “a impudícia na mulher é muito mais detestável do que no homem”, Ibid., III, 1. 3, d. 4, § 2, n. 41. É também esta desigualdade, do amor, do ciúme e da dor que faz com que o marido não seja punido (no secular, pois, no espiritual, sempre incorre em pecado mortal) se matar a mulher colhida em flagrante de adultério (desde que mate também o seu parceiro) (Ord.fil., v. 38, pr.; comentário, Fragoso, Ibid., § 3, 63). (16) Cf. Ord. fil.; v. 36,1; 95, 4. A propósito da moderação dos castigos, Pascoal de Meio comenta que, em portugal, mais nas classes populares do que nas elevadas, o castigo frequentemente degenera em sevícias, por causa das quais quotidianamente se afadigam osjuízes (1789, H, 7, 2). (17) Este modelo de encabeçamento era conhecido noutros domínios, nomeadamente, no da recepção de rendas e tributos, como forma de reduzir o peso do governo. (18) Cf. Lobão, 1814, §6 ss., insistindo na origem “hispânica” da instituição (em Portugal, L. 15.9.1557; Ord. fi/., 100,4; em Castela, Leis de Toro [1535] e Nova rec., v.7.). Para Castela, V. o livro fundamental de Bartolomé Clavero, Mayorazgo. Propiedad feudal en Castilla. 1369-1836, ed. alt., Madrid, Siglo XXI, 1989. (19) Já no direito seiscentista português, os direitos dos filhos eram acautelados: a livre instituição só se admitia pelas forças da quota disponível (“terça”); no caso de a instituição se fazer em prejuízo da quota legitimária dos filhos, carecia-se de um acto de graça do rei (por intermédio do seu tribunal de graça, o Desembargo do Paço), por se tratar de uma derrogação dos direitos dos filhos (Pegas, 1685, cap. 3, ns. I e 2). (20) V. comentário detalhado em Pascoal de Melo, 1789, III, t. 9 e Lobão, 1814, II, ? 13 ss.; III (max., sobre as categorias admitidas de nobreza, §§ 6 ss.; sobre as qualidades dos comerciantes, agricultores [não os da pequena agricultura ao norte do Tejo, mas os da grande agricultura do Alentejo] e letrados que podiam instituir morgados, V. §§ 13 e 16). Esta lei alargava ainda a necessidade de licença régia a toda e qualquer instituição de morgado (§ 13) e reduzia a uma única (a da Ord. fi/., IV, 100) a fórmula de sucessão nos morgados (§ 10). Esta última disposição implicava, v. g., a revogação da legislação anterior que impedia a união de morgados, a expulsão ou prejuízo das mulheres da sucessão nos vínculos, a exclusão de cristãos-novos. Notese, em todo o caso, como a interpretação que desta última regra faz Lobão (ao admitir substituições fideicomissárias complementares à vocação sucessória estabelecida na lei, nos termos da Ord. fil., IV, 87; cf. 1814, cap. 9, §15 ss.), lhe tira muito do seu alcance. (21) Cf. Ord. fi/., IV, 30: casamento, cavalo, armas, dinheiro ou outro qualquer galardão). Os criados dos estudantes, estavam obrigados a servir apenas pela roupa e calçado; os músicos e cantores, apenas pela comida (Fragoso, 1641, p.

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3, 1. 10, d. 21, § 5); o mesmo valia para as criadas das monjas, pois se entendia que o eram com o intuito de ingressarem no convento (Silva, 1731, IV, ad IV,29, pr., n. 28), para os aprendizes (ib., 30) e para os menores de sete anos, que serviam “pela criação” Ord.fi/., IV,3I,8). (22) Dos portugueses, para além dos respectivos capítulos dos compêndios gerais ou prontuários de teologia moral (dos quais destaco, Manuel Lourenço Soares [1590-.. ..], Principios, e deffiniçães de toda a teologia moral muito proveitoso e necessario [...], Lisboa, 1642; Angelo de Santa Maria [1678-1733], Breviarii moralis Carmelitani partes, Ulysipone, 1734-1738,7 tomos; Rebelo Baptista, Summa de theologia moral, Ulysipone, 1728; Bento Pereira, S.J., Elucidarium theologiae moralis, Ulysipone, 1671-1676; João Pacheco, Promptuario de theologia moral, Lisboa, 1739; Manuel da Silva de Morais, Promptuario de theologia moral, Lisboa, 1732; Tomé Botelho Chacón, Compendio de theologia moral, Lisboa 1684), v. Manuel Lourenço Soares, Compendium de sacramento matrimonii tractatus Thomae Sanches Jesuitae alphabeticum breviter dispositum, Ulysipone, 1621 (trata-se de uma adaptação de um tratado célebre, aparentemente com grande influência em Portugal): Barbosa Machado dá notícia de outros tratados manuscritos sobre o matrimónio (v.g., de Amaro de Aregas, Manuel Jorge Henriques).

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2. A IGREJA

Objectivos da aprendizagem Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de: •

Definir os contornos da Igreja como grupo e a evolução verificada a este propósito;



Definir o estado eclesiástico e o seu estatuto jurídico-político;



Avaliar o impacto normativo da moral cristã e os mecanismos da sua inculcação;



Explicar o âmbito da jurisdição eclesiástica;



Definir ofício eclesiástico e enunciar as suas competências;



Enunciar os principais tributos eclesiásticos.

2.1 A sociedade eclesial A importância da Igreja como pólo político autónomo é enorme na Época Moderna. De facto, de todos os poderes que então coexistiam, a Igreja é o único que se afirma com bastante eficácia desde os âmbitos mais humildes, quotidianos e imediatos, como as famílias e as comunidades, até ao âmbito internacional,

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onde convive, como poder supremo, com o Império, nos espaços políticos em que este é reconhecido como poder temporal eminente 266 . De um extremo ao outro, a influência normativa ou disciplinar da Igreja exerce-se continuamente. No plano da acção individual, pela via da cura das almas, a cargo dos párocos, pregadores e confessores. No plano da pequena comunidade, pela via da organização paroquial. No plano corporativo, por meio das confrarias específicas de cada profissão. Nos âmbitos territoriais intermédios, por meio da disciplina episcopal. Nos reinos, por mecanismos tão diversificados como a relevância temporal do direito canónico ou as formas tão estreitas de cooperação entre os “dois gládios”. Esta contínua presença da Igreja na organização política e institucional do mundo terreno mostra a importância que os momentos jurisdicionais vinham adquirindo na teoria e na prática eclesial. Até ao século XIII, muito permanecia de uma concepção puramente espiritual da Igreja, que a concebia como a congregação daqueles que estivessem em união com Cristo, na graça de Deus (ecclesia triumphans), ou que por isso lutassem (ecclesia militans)267 . Mas esta união com Cristo, para além de ser potencialmente universal (“católica”)268 , dependia apenas de uma disposição interior, sendo, por isso, ex266 O que, como se sabe, não existia em Portugal. 267 I. e., que estivessem a caminho – um caminho cheio de perigos e de quedas – da salvação (homines viatores). 268 Dela estavam excluídos apenas os predestinados à condenação (cf. S. Tomás Summa theologica, III, q. 8, a. 3, “resp.”, infine).

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ternamente invisível. Os filhos da Igreja eram, então, inumeráveis e externamente indistinguíveis. A enumeração que S. Tomás faz deles dá bem conta disso269 . Na verdade, Cristo era a cabeça de todos os homens (e de todos os anjos), pelo que “o corpo da Igreja é constituído pelos homens que existiram desde o princípio do mundo até ao seu fim” (ibid., “resp”.): tanto pelos que estão de facto (in actu) em estado de graça, como pelos que apenas podem vir a estar (in potentia, mesmo que, de facto, nunca o venham a estar!). Mesmo os infiéis são potencialmente membros da Igreja, pois podem estar predestinados por Cristo para a salvação (ibid., ad prim.). Mas, além dos homens, faziam ainda parte da Igreja os anjos e os bem-aventurados (ibid., a. 4). Já se vê que, com esta extensão – e, sobretudo, com esta indifinibilidade –, a Igreja não podia obter nenhuma tradução institucional. Do ponto de vista institucional, o que existiam eram as dignidades eclesiásticas terrenas instituídas por Cristo, nomeadamente o Papa, a quem competia dirigir uma parte da Igreja, a Igreja militante, constituída pelos homens que, neste mundo, caminhavam para Cristo. Neste sentido, para fins institucionais e disciplinares, mais do que a Igreja, interessavam os ofícios eclesiais instituídos (o papado, o episcopado)270 . A Igreja tende a ser definida como o conjunto dos 269 Cf. Summa theologica, III, q. 8, a. 3. 270 E, por isso, nos teólogos anteriores ao século XIV, a atenção prestada à Igreja, como corpo institucional, é muito pequena; basta compulsar um índice temático da Summa theologica, de S. Tomás de Aquino, em que as entradas relativas à Igreja são relativamente muito poucas (mesmo se considerarmos que a obra ficou incompleta). Também os tratados teológicos De Ecclesia apenas começam

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fiéis que estão unidos misticamente a Cristo, por via de uma sua união formal ao seu vigário na Terra, o Papa. Com isto, com a exigência desta comunhão visível com a Igreja visível, a congregação dos crentes adquire uma dimensão externa: os membros da Igreja podem ser identificados, contados, distinguidos dos que o não são; são formalmente admitidos (nomeadamente pelo baptismo, como janua Ecclesiae, “porta da Igreja”) e podem ser formalmente expulsos (pela excommunicatio, excomunhão, privação da comunicação)(1). E é isto que permite que à Igreja sejam aplicados os quadros do pensamento político-institucional estabelecidos para as outras comunidades (ou corpos) de homens. Esta jurisdicionalização da Igreja estava em marcha desde a Idade Média. Mas, a partir da Reforma, a teologia polémica dos católicos contra a “religião da interioridade”, contra o carácter fundamentalmente pessoal e interior da fé e da salvação, proposta pelos luteranos, tinha incentivado a valorização das dimensões visíveis e institucionais da Igreja, nomeadamente da ligação institucional e jurisdicional ao Papa como único e indispensável sinal visível da comunhão com Cristo e, logo, da pertença à Igreja. Em alguns teólogos mais exigentes e mais conhecedores da antiga tradição teológica sobre a igreja, a complexidade originária do conceito de Igreja ainda aflora. Para Francisco Suarez (que ainda bebe, de muito perto, em S. a surgir nos inícios do século XV. Cf., sobre a eclesiologia em S. Tomás e na época seguinte, Pesch, 1992, 449 ss.

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Tomás), a Igreja é “o corpo político e moral composto pelos homens que professam a verdadeira fé de Cristo” (corpus quoddam politicum, seu morale ex hominibus veram fidem Christi profitentibus compositum) 271 . Isto ainda se acentua quando, em seguida, Suarez exclui do seu campo de reflexão a Igreja triunfante e declara ocupar-se apenas da Igreja dos homens, no seu trânsito terrestre actual (Igreja “militante”) (ibid.). Todavia, ainda entende a Igreja como excedendo aquela que seria composta apenas pelos homens que se encontram em união (visível) com o Vigário de Cristo (i. e., os “católicos”, no sentido comum da palavra), continuando a defini-la em função de uma união espiritual com Cristo (“nimirum omnes, qui fidem habent, ecclesia membra essent; vero qui illa carent extra ecclesiam constitui”, ibid., n. 6). Por isso, Suarez condena concepções mais exclusivamente jurisdicionalistas que então já se faziam ouvir entre os teólogos católicos que hipervalorizavam, na sequência de Trento, os aspectos externos e visíveis da pertença à Igreja, como o reconhecimento e obediência ao Papa, o baptismo formal e a prática externa dos sacramentos e dos ritos da fé. Para ele, ainda fazem parte da Igreja os excomungados e os cismáticos, os não baptizados que aspirem ao baptismo (ibid., n. 13 ss., n. 17 ss.)(2); mas não os que se acomodam à disciplina externa da Igreja, embora sem fé (ibid., n. 23). Mas já

271 Suarez, 1622, tr. I (“de fide”), disp. 9, n. 3.

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o Compendium salmanticense de teologia moral272 , obra típica da teologia vulgar da contra-reforma, define a Igreja militante como a “congregação dos fiéis baptizados, reunidos para prestar culto a Deus, cuja cabeça invisível é Nosso Senhor Jesus Cristo nos céus, e a visível o Sumo Pontífice na terra” (ll, tract. 41, §2, n. 71). Nenhuma referência à fé como vínculo à Igreja; em contrapartida, inclusão da referência ao baptismo e à obediência ao Papa(3). Em obras ulteriores de teologia vulgar, este encerramento jurisdicionalista da Igreja acentua-se ainda, identificando-se rigorosamente a Igreja militante (da triunfante já quase não se fala) com os homens que reconhecem o Papa e a ele obedecem(4). Neste sentido, já pouco separa a Igreja de um senhorio, ou seja, de uma república humana que reconhece o mesmo senhor e que está sujeita à sua jurisdição. O único traço distintivo passa a ser, apenas, a natureza especial desta jurisdição que, ao contrário das jurisdições temporais, se ocupa de coisas espirituais. Daí que, operando neste plano diferente, ela possa dirigir-se a homens que já estão sob outras jurisdições e pretender, assim, um domínio universal (“católico”)(5). Este progressivo encerramento da Igreja numa estrutura institucionalmente fechada facilitava a instauração de 272 António de San Jose, Compendium salmanticense [...] universae theologiae moralis, ed. cons. (5.a), Pamplona, 1791. Trata-se de uma obra de vulgarização teológica, organizada em perguntas e respostas e constituindo uma súmula do famoso “Curso teológico” dos carmelitas de Salamanca (Collegii salamanticensis fartrum discalceatorum [...] cursus theologicus D. Thomae complectens. Segoviae,1634-1637).

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mecanismos disciplinares sobre os fiéis. Permitia à Igreja institucional identificar os seus “súbditos”, reclamar o monopólio da administração da graça (por meio dos sacramentos, “sinais de uma coisa sagrada, enquanto santifica os homens”), impor-lhes uma disciplina, puni-los e, finalmente excluí-los. Esta “contabilização dos fiéis” (a que correspondia, no fundo, uma contabilização da graça, que “aprisionava Deus” nas estruturas de salvação institucionalmente definidas pela Igreja) traduzia-se, nomeadamente, no arrolamento dos crentes, nomeadamente por ocasião da sua entrada na Igreja (registos de baptismo) e, depois, por ocasião da reparação periódica do vínculo da fé, mediante a confissão dos pecados, a contrição e a absolvição (róis de confessados). Com estes dois instrumentos, a Igreja controlava a entrada na Igreja e a permanência nela. Com o controlo dos restantes sacramentos, por sua vez, impedia-se que “Deus irrompesse anárquica e desordenadamente na história”, ou seja, que os homens cressem que acontecimentos ocorridos fora do controlo da Igreja fossem instrumentos utilizados por Deus para dar sinal de si e para salvar os homens. Em todo o caso, esta circunscrição dos fiéis a um número finito e contado reduzia também as pretensões ecuménicas da Igreja no plano jurisdicional, pois obrigava a reconhecer que quem estivesse fora do grémio dos fiéis escapava à jurisdição da Igreja. Isto era claro com os pagãos, em relação aos quais a Igreja apenas podia pretender a liberdade de anunci-

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ar o Evangelho273 . Mas era mais discutido e mais difícil de aceitar em relação aos hereges e cismáticos, em relação aos quais a Igreja pretendia levar a cabo uma política de reunião ou de submissão. Daí que alguns teólogos afirmem que, embora fora da Igreja, os hereges estão sujeitos à sua tutela; porque, tal como o membro cortado do corpo, continuam a “pertencer” ao corpo de que foram membros274 .

2.2 Os clérigos Como todas as sociedades humanas, a Igreja era uma sociedade ordenada e hierarquizada. A grande distinção entre os seus membros – uma distinção que se foi tomando cada vez mais estruturante275 – era a distinção entre clérigos e leigos. Um famoso jurista setecentista estabelece a distinção nos seguintes termos: Os leigos, que também se podem dizer populares, são aqueles a quem é lícito possuir bens temporais, casar, advogar causas e julgar. Os clérigos são aqueles que foram dedicados aos ofícios divinos e aos quais convém preservar de todo o estrépito” (Paulo Lancelloto, lnstitutiones iuris canonici, I,4).

Já o Diccionario de autoridades, da Real Academia Espanhola (1726) enfatiza mais um elemento formal ou externo da distinção, o de se ter recebido a prima tonsura: “todo o que

273 A questão torna-se candente com a expansão e a missionação. Cf., sobre o tema, supra II.2. 274 Suarez, 1622, tr. I, disp. 9, n.23. 275 Até ao movimento de revalorização do estado laical com o concílio do Vaticano II.

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foi admitido pelo bispo e deputado juridicamente para o serviço da Igreja, mediante a primeira tonsura, ainda que não tenha recebido outra ordem superior”. E acrescenta, valorizando agora a imposição do sacramento da ordem (ou ordenação) 276 que “ordinariamente, entende-se como o clérigo secular que tem ordens maiores” (s.v. “Clerigo”). Outros (como Amaral, 1740, s.v. “Clericus”) destacam a hierarquia relativa dos dois estados: “Do clérigo se diz que é um soldado espiritual [...] e apesar de ser filho de um qualquer artífice ou ínfimo plebeu, enquanto clérigo consagrado a Deus, é maior e superior aos soldados deste mundo, mesmo que príncipes e reis seculares” (n.º 1)”. A definição do estado clerical não era apenas importante para marcar as hierarquias dentro da sociedade eclesial, mas ainda para delimitar o âmbito dos privilégios (sobretudo jurisdicionais) do clero. E, neste plano, ele consistia numa dedicação, formal e definitiva, ao serviço divino. A formalização desta dedicação efectuava-se ou pelo sacramento da ordem, num dos seus diversos graus, ou pela colação (i. e., a nomeação para) de um benefício (i. e., ofício eclesiástico), ou pela profissão numa ordem religiosa, masculina ou feminina (Amaral, 1740, ibid., n.º 2). Das dignidades e ofícios eclesiásticos diremos mais tarde. Duas palavras, por agora, sobre a ordenação.

276 E, dentro deste, a imposição de ordens maiores ou sacras (v. infra).

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A ordenação é o sacramento em virtude do qual um leigo é ligado ao ministério da Igreja, recebendo o poder de consagrar e administrar o sacramento da eucaristia (Trento, sess. XXIII, capo III). A ordenação (ou ordem) tem sete graus: três maiores ou sacros (presbítero, diácono e subdiácono) e quatro menores ou não sacros (acólito, exorcista, leitor e ostiário [porteiro])(6). E não era acessível a todos. Dela estavam (e continuam a estar, na Igreja Católica) excluídas as mulheres. Mas, para além disso, existiam múltiplos impedimentos “irregularidades”) à sua recepção. Os canonistas identificavam três tipos de irregularidades: morais (crime 277 -278 , infâmia(7), demência, embriaguez, esponsais(8), mancebia pública, falta de vocação); físicas279 (sexo 280 , doença contagiosa [nomeadamente, lepra], falta de vista(9), privação de algum membro, aleijão ou defeito do corpo); sociais (ilegitimidade de nascimento, impureza de sangue(10), profissão de cómico281 , falta de idade(11), falta de ciência282 . As irregularidades relativas ao nascimento eram averiguadas nas habilitações de genere; as restantes eram-no nas habilitações de vita et moribus. Para além da 277 Bastava a suspeita forte, indiciada pelo facto de se ter sido pronunciado. 278 Era esta interdição de efundirem sangue que impedia os clérigos de condenarem em pena de sangue (Amaral, 1740, s.v. “Ordo”, n.º 26; Carneiro, 1896, 57). 279 Sobre elas, Amaral, 174O, S.v. “Ordo”, n.o 10 e ss. 280 “Ordinari potest homo masculus”, Amaral, 174O, s. v. “Ordo”, n.º 9. 281 Abolido pelo alv. 17.7.1771, art.ºX. 282 Saber ler e escrever, para a primeira tonsura; saber latim, para as ordens menores; licenciatura em teologia ou cânones, para o episcopato (em princípio). Cf. Conc. Trento, sess. XXII, cap. II, sess. XXIII, cap. IV e XI, de reformat.; cf. Amaral, 1740, V. “Ordo”, n.º 10.

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inexistência de impedimentos, a imposição do sacramento da ordem dependia da titularidade, pelo ordenando, de meios de subsistência. Assim, ninguém podia ser ordenado sem “título”, ou seja, sem possuir previamente e de forma pacífica um benefício, um património pessoal ou uma pensão de que se sustentasse (cf. Amaral, 1740, S. V. “Ordo”, n.o 30). Apenas se excepcionavam desta regra os professos em ordens religiosas, os jesuítas ou os missionários. Enquanto titulares de uma especial dignidade, os clérigos ordenados deviam manter regras estritas no viver, que incluíam a abstenção de jogos seculares e da caça, a não frequência de tabernas ou do teatro, um comportamento moral irrepreensível, um porte discreto, a mansidão de costumes283 , o uso de vestes clericais, a prática da tonsura ou “coroa aberta” e certas outras normas variáveis de região para região quanto ao hábito corporal284 . À profissão em ordens religiosas nos referiremos adiante. Apesar da tentativa de formalizar a entrada no estado clerical por uma qualquer solenidade (ordenação, profissão, colação de benefício) que permitisse traçar fronteiras distintas numa classificação que tantas e tão importantes consequências práticas trazia, permanecia uma certa zona de mobilidade em que a pertinência ao estado clerical acabava por se decidir quase unicamente em função de critéri-

283 Estava-lhes, por isso, vedado o porte de armas ou os desafios e duelos. 284 Na Península não podiam, por exemplo, usar barba nem bigode.

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os externos, como o uso do hábito e da tonsura. De facto, quanto aos clérigos menores, o uso de hábito e tonsura condicionava a produção de um dos mais importantes efeitos do estado clerical – a isenção jurisdicional (Amaral, 1740, s. v. “Ordo”, n.º 94)285 . Como o uso de hábitos religiosos estava rigorosamente interdito aos seculares, pode dizer-se, portanto, que mesmo no uso do hábito a face visível do estado clerical consistia, ou seja, que, ao contrário do que se diz na sabedoria popular, o hábito fazia mesmo o monge.

2.3 Uma moral omni-compreensiva e omnipresente Para desempenhar a sua missão (de condutora, de mãe e de mestra), a Igreja dispunha, quer de normas disciplinares, quer de uma malha jurisdicional e político-institucional visando a sua aplicação. Comecemos pelas primeiras. O primeiro núcleo das normas com que a Igreja disciplinava a sociedade moderna estava contido no património doutrinal ou dogmático da Igreja, integrando as obras dos teólogos. Dentro destas, salientam-se as normas morais, visando o aperfeiçoamento individual. Nos âmbitos do comportamento para consigo mesmo (monastica), do comportamento no seio da família (oeconomia), ou ao comportamento no seio da república (politica). A cada um destes grupos 285 Os clérigos menores casados (uma vez só e com mulher virgem) gozam de privilégio clerical apenas no foro criminal (Trento, sess. XXIII de reformat. cap. 6), se andarem de hábito e tonsura e forem destinados pelo bispo ao serviço em alguma igreja (Trento, sess. XXIII de reformat., cap. 6).

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correspondía um capítulo da teologia moral, corpo literário vastíssimo, que vai desde as grandes sínteses (como a segunda parte da Summa theologica, de S. Tomás de Aquino, (12251274), até aos comentários monográficos ou aos “manuais de confessores”286 , espécie de repertórios dos “casos de consciência” para uso dos confessores(12). Nos séculos XVII e XVIII, a teologia moral atinge um alcance e uma finura de análise casuística impressionantes. Estamos – pelo menos no Sul da Europa perante uma sociedade “integrista”, em que se visa – apesar de uma certa laicização do pensamento teológico operado com a escolástica tomista – uma direcção integral da vida inspirada na moral cristã e em que, portanto, os actos mais mínimos e mais íntimos estão detalhadamente regulados, quase não havendo lugar para acções indiferentes do ponto de vista do destino sobrenatural de cada um. Este ambiente integrista explica também a influência do discurso teológico sobre outros universos normativos, como, designadamente, o direito secular. Por outro lado, teologia moral (como também o do direito) da Época Moderna é dominada pela ideia de que cada acto concreto está tão individualizadamente ligado ao seu contexto que mal pode ser regulado por fórmulas gerais. O resultado é uma exuberante literatura casuística, descrevendo com minúcia as mais diversas situações morais e propondo para cada uma delas um juízo particular. Trata-se do “molinismo”, designação

286 Sobre os manuais de confessores, v., para Portugal, Bethencourt, 1990.

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proveniente do nome de um dos grandes teólogos morais da época, o jesuíta Luís de Molina (1536-1600). A capacidade que esta produção doutrinal tinha de influenciar os comportamentos quotidianos era enorme. Não porque as fontes originais do pensamento teológico fossem directamente acessíveis à generalidade das pessoas. Pelo contrário, elas constituíam um universo literário bastante hennético, escrito em latim e pleno de referências que apenas um erudito podia decifrar. Mas a cultura teológica tinha uma intenção eminentemente prática e dispunha de uma série de mediações que a faziam acessível à massa dos fiéis. Uma delas era a pregação, nomeadamente a pregação dominical, que constituía um eficacíssimo instrumento de disciplina das comunidades de crentes287 . Outro, a confissão, preceito pelo menos anual para cada fiel, por meio da qual se exercia uma disciplina personalizada e se atingiam os níveis mais íntimos da conduta de cada um. Se a pregação podia “entrar por um ouvido e sair pelo outro”, a confissão implicava o risco da não absolvição e das penas canónicas que daí decorriam. Nos casos mais graves, como a privação dos sacramentos ou a excomunhão, estas penas expunham quem violasse os preceitos canónicos a situações de marginalização social que eram mais graves do que muitas das penas seculares. Pense-se na vergonha pública que constituiria, nesses tempos, a impossibilidade de se casar pela igreja, de se ser 287 Sobre a eficácia disciplinadora da pregação (parenética), cf. Marques, 1989, maxime, I,10 ss.

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padrinho, de frequentar os sacramentos, de receber a visita pascal, de ser enterrado canonicamente. Finalmente, a disciplina eclesiástica dispunha de um outro instrumento de implementação, as visitas feitas pelo bispo ou vigário-geral a cada paróquia da diocese, ocasião para proceder a uma devassa geral da vida da comunidade, quer quanto aos aspectos do culto, quer quanto a matérias de disciplina (como, por exemplo, a existência de pecadores públicos – adúlteros, prostitutas, homossexuais, jogadores, usureiros)288 . Embora o universo dogmático e disciplinar da teologia admitisse interpretações destoantes, podia dizer-se que, no conjunto, ele ratificava – nesta época em que a dimensão profética da Palavra se acantonava em movimentos místicos sempre suspeitos de heterodoxia – a ordem social e política estabelecida. Em todo o caso, os poderes civis não deixavam de se preocupar com o seu controlo. Domínios de difícil intervenção eram a pregação e a confissão. Mas já quanto às visitas e aos abusos que as autoridades eclesiásticas aí podiam praticar, as Ordenações (II, 1, 13) previam uma intervenção moderadora do rei, como protector dos seus vassalos, contra as medidas punitivas tomadas pelos prelados que não respeitassem, na forma ou na substância, os preceitos do direito canónico.

288 Cf., para Portugal, Pereira, 1973; Soares, 1972; Carvalho, 1985a; 1990.

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2.4 Um direito próprio e autónomo A segunda fonte de disciplina eclesiástica dos comportamentos era o direito, o seu direito, o direito canónico, conjunto de normas cuja observância estava garantida pela ameaça de sanções do foro externo. Que a Igreja dispusesse, em vista da missão sobrenatural, de poderes de constrangimento sobre os crentes em matérias espirituais e que dispusesse deles de forma exclusiva era indiscutível. Na verdade, isso corresponderia a um princípio de boa ordem da sociedade que reclamava que, para cada domínio, existisse um e um só princípio ordenador289 , sob pena de confusão. A lei divina fora instituída para ordenar o homem para Deus, enquanto a lei humana visava a ordenação dos homens uns em relação aos outros. Daí que os príncipes temporais não pudessem estabelecer nada acerca das coisas espirituais e divinas, pois o seu poder não lhes fora concedido em vista da felicidade da vida futura. Pelo que este domínio ficaria exclusivamente sujeito aos pastores espirituais, nomeadamente ao Sumo Pontífice, gozando de absoluta imunidade perante a jurisdição civil(13). Mas já não o era que pretendesse a regulamentação de matérias temporais e, muito menos, que pretendesse abranger sobre o seu poder os não crentes. Daí que estas questões tivessem sido muito discutidas durante toda a Idade Média e Moderna, tanto mais que elas 289 Cf. S. Tomás, De regimine principum, n. 3.

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se relacionavam com instantes problemas de natureza política. A primeira com as relações (ou hierarquia) entre os poderes espiritual e temporal e a segunda com questões como a dos direitos civis ou políticos dos judeus e infiéis, a da liberdade de crença ou a da partilha do mundo não cristão entre os soberanos cristãos(14). As fontes sagradas não eram claras quanto à primazia ou não do poder espiritual sobre o temporal. Por um lado, parecia que, considerando a hierarquia entre o Criador e a criação, entre o bem eterno e o mundano, entre o espiritual e o temporal290 , a Igreja podia pretender um domínio superior do mundo, que lhe permitisse tutelar o poder dos reis, limitando-o ou corrigindo-o, sempre que se afastasse dos ditames de Cristo ou do seu Vigário na Terra. Esta superioridade do poder espiritual constituía a linha orientadora de uma série de cânones recolhidos no Decreto de Graciano (distinc., I, 10), sendo aceite pela maior parte dos canonistas medievais e modernos(15). Mas, por outro lado, Cristo parecia ter sido bem claro quanto à separação das esferas dos poderes espiritual e secular, nomeadamente ao distinguir, no célebre dito sobre os tributos (redite quae sunt Caesaris, Caesari, & quae sunt Dei, Deo, dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus), os direitos de Deus dos direitos do Imperador. E esta ideia de 290 A dignidade da Igreja estaria para a dos reis, como o sol estaria para a lua, ou como a alma estaria para o corpo (Fragoso, 1641, pt I,, lb. 2, dp. 4, epit., n. 269 e 302; pt. 2, lb. 1, d. 1, § 12, n. 283)

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separação nítida entre as duas esferas (dizendo de outro modo, de autonomia do poder temporal) obtinha tradução (pelo menos alegóriea) noutros passos das Escrituras(l6). No século V (494 d.C.), o papa Gelásio I, em carta dirigida ao Imperador Anastácio, formula a célebre doutrina “dos dois gládios” 291 , pela qual atribui uma mútua autonomia, nos respectivos campos, às duas esferas políticas. Ambos visariam a felicidade; mas o poder temporal, contemplando mais directamente a felicidade terrena, teria como fim a paz da república “distinta do espiritual, e separada, e não dependente, tendo em vista uma consecução mais cómoda e melhor do governo económico e político” (Somoza, 1669, Pt. I, cap. 1, n. 53). Quanto ao Sumo Pontífice, apenas potencialmente (in habitu) gozaria do poder temporal, contra os opressores dos fiéis ou da fé292 . O primado do poder real no temporal incluía também o poder de direcção dos clérigos, pois estes, como membros da república, deveriam observar as normas civis directivas (mas não punitivas), estabelecidas em vista do bem comum; o que abrangia a sua sujeição às leis de tabelamentos dos preços, de requisição de bens, de serviço militar defensivo e, mesmo, de certos tributos (pro expensis communis) (Fragoso, 1641, pt. 1, lb. 2, dp. 4, epit., n. 303).

291 “São, de facto, dois, Augusto Imperador, os poderes porque se rege principalmente o mundo: a autoridade dos sagrados Pontífices e o poder real” (c. duo sunt quippe, Decretum, I, d. 96, c. 10). V. nesta distinctio, outros textos sobre o tema. 292 Somoza, 1669, Ibid.; Mo1ina, 1593, I, disp. 29.

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Com a valorização da natureza em face da graça e do direito civil em face do direito canónico, reforça-se entre os juristas e os teólogos ainda o peso da ideia, da autonomia, na esfera temporal, do poder dos reis, não tanto em relação a Deus – de quem eles são vigários e cujos ocultos desígnios realizam (como pastores ou como castigos) – mas em relação ao Papa e à Igreja. Em todo o caso, esta autonomia não é ilimitada. Na verdade, e por um lado, em face da já referida hierarquia respectiva dos bens espiritual e temporal, o príncipe devia governar de modo a não se desviar da observância dos preceitos de Deus; embora a especificidade do governo temporal pudesse justificar, ou a regulamentação de actos indiferentes do ponto de vista sobrenatural, ou mesmo a autorização de actos condenáveis deste ponto de vista, desde que da sua proibição adviesse maior mal ou perigo dele293 . Em princípio, porém, o governo temporal estava limitado pela disciplina da Igreja, pelo menos em termos de se não poder admitir que as leis civis autorizassem actos pecaminosos294 ou que, pela complacência dos poderes temporais, a religião e os fiéis corressem perigo(17). Por outro lado, os príncipes temporais só limitadamente – i. e., enquanto o exigir o bem da república, sem qualquer

293 É o caso da permissão da prostituição, do divórcio, da usura, do teatro profano ou dos cultos não cristãos (nomeadamente, judaico). 294 Daí o disposto nas Ord. fil., III, 64, sobre a não-aplicação do direito comum (mas não do direito próprio) sempre que dela resultasse pecado.

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prejuízo do múnus clerical – podiam exercer o seu poder sobre os eclesiásticos295 . Assim, e apesar de uma perceptível tendência para a desvinculação do poder civil em relação ao religioso (“secularização”) (18), o direito canónico constitui, não apenas uma fonte importantíssima de regulação autónoma da comunidade dos fiéis no domínio espiritual, como um instrumento da Igreja militante para a tutela do governo temporal do mundo. Uma parte das normas de direito canónico (como os Dez Mandamentos) estavam contidas nas próprias Escrituras, constituindo o chamado “direito divino”. Outras tinham sido promulgadas por papas, por concílios e por sínodos, integrando o direito “da tradição”. Esta tradição fora sendo recolhida, a partir do século XII, numa monumental colecção, mais tarde designada por Corpus iuris canonici, uma das fontes principais, não apenas do direito da Igreja, mas também dos próprios direitos seculares. O Corpus iuris canonici é composto de várias compilações autónomas, elaboradas ao longo de três séculos, eventualmente contraditórias entre si. A sua primeira peça, o Decreto de Graciano (c. 1140) ou Concordia discordantium canonum (Concordância dos cânones discordantes), é, desde logo, típica deste carácter problemático e argumentativo do direito canónico. Na verdade, o que aí se faz não é muito mais do que recolher as normas disciplinares (e também 295 Fragoso, 1641, Ibid., n. 303; d. Ord.fil., n. 3.

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excertos de algumas obras meramente doutrinais, como as Etimologias, de Santo Isidoro de Sevilha, século VI) surgidas durante quase um milénio de vida da Igreja e, por isso, frequentemente contraditórias. A mais disto, Graciano apenas resume a questão considerada e propõe para ela – num curto dietum – a solução que harmonize da melhor forma os cânones disponíveis. Normas disciplinares ulteriores, também frequentemente contraditórias com os dieta de Graciano, foram sendo reunidas nas compilações seguintes: as Decretais, de Gregório IX (1234); o Sexto [livro das Decretais], de Bonifácio VIII (1298); as Clementinas, de Clemente V (1314); as Extravagantes, de João XXII (1324); e as Extravagantes Comuns (século XV)(19). A dispersão que daqui resulta, combinada com o estilo particularizante e casuista da doutrina jurídica moderna, faz com que, tal como no campo do direito temporal, a disciplina jurídica efectiva da Igreja esteja contida, sobretudo, – mas sempre de forma aberta e problemática –, nas obras doutrinais dos canonistas. O direito canónico vigorava, naturalmente, para as matérias espirituais (in spiritualibus), com o âmbito muito mais vasto que estas tinham na Época Moderna (incluindo, por exemplo, o regime do casamento, o dos pactos e contratos jurados com invocação de Deus ou dos santos). Mas, para além disso, de acordo com um critério trabalhosamente estabelecido durante a Idade Média e fixado finalmente pelo grande jurista Bártolo de Saxoferrato (1314-1357), aplicava-se ainda às matérias temporais (in temporalibus), sempre que a so-

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lução preconizada pelo direito secular conduzisse a pecado (“critério do pecado”)296 . É este o critério recolhido nas Ordenações portuguesas (“... mandamos que seja julgado [o caso, de que se trata], sendo materia que traga pecado, por os Sagrados Canones. E sendo matéria, que não traga pecado, seja julgado pelas Leis Imperiaes, posto que os Sagrados Canones determinem o contrario [...]”, [Ord.fil.], III, 64, pr.)(20). Mas, qualquer que fosse a delimitação teórica estabelecida entre os domínios de vigência dos direitos secular e canónico, o que é certo é que este último – nomeadamente o “direito divino” – gozava de uma indesmentível força expansiva sobre a ordem jurídica civil, o que – como se disse – se compreendia numa sociedade que se entendia a si mesma como dirigida para o objectivo sobrenatural da salvação e para uma antecipação na terra, tão efectiva quanto possível, da “cidade divina”.

2.5 Uma jurisdição – julgar-se a si mesma... e aos outros Uma das mais importantes prerrogativas da Igreja era o facto de dispor de jurisdição privilegiada (“foro eclesiástico”), exercida por tribunais próprios, perante a qual podia chamar mesmo os leigos. Não é preciso encarecer a importância política desta reserva jurisdicional, pois não será difícil imaginar que, nos seus tribunais, as decisões fossem mais favoráveis à Igreja e aos eclesiásticos. Ou, pelo menos, 296 Era o que acontecia, por exemplo, com a admissão, pelo direito civil, da usura ou da prescrição aquisitiva de má fé.

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que isto fosse imaginado pelos leigos que aí fossem chamados. Mas, fosse como fosse, a existência de um foro especial evitava a intromissão do poder secular (mesmo que só como aplicador do direito canónico) na vida interna da Igreja. A competência dos tribunais eclesiásticos compreendia as questões puramente eclesiásticas, quer ratione personae, quer ratione materiae297 . •

As primeiras eram aquelas em que uma das partes fosse um eclesiástico –salvo nos casos em que estes deviam responder perante as justiças civis(21).



As segundas, as relativas à disciplina interna da Igreja. Incluíam, em primeiro lugar, aquilo a que os canonistas chamavam iurisdictio essentialis. Ou seja: (i) causas em matéria espiritual, da competência do provisor da diocese; (ii) causas em matérias relativas à fé(22); (iii) causas sobre disciplina interna da Igreja; (iv) causas relativas ao matrimónio, como, v. g., anulação, depósito da mulher por sevícias, separação de pessoas, etc. (Ord.fil., v.19, pr.). Para além desta, incluíam a iurisdictio adventicia: (i) causas sobre coisas sagradas (Ord. fil., II,l,l0); (ii) causas sobre bens eclesiásticos, cuja natureza não fosse controversa(23); (iii) causas sobre dízimos,

297 Sobre a situação da doutrina setecentista sobre as relações entre a Igreja e a Coroa em Portugal, Rodrigues, 1988. Para uma perspectiva mais geral Genet, 1986.

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pensões e feros; (iv) casos de usurpação da jurisdição eclesiástica; (v) causas contra leigos nos casos de devassas e visitações (cf. Ord. fil., II,13(24); (vi) causas contra delinquentes seculares asilados nas igrejas (Ord. fil., II,5). A Igreja pretendia, além disso, a competência sobre outras matérias: como as que envolvessem pecado (com base, um tanto forçada, em Ord. fil., III,64), como a violação de juramentos (v. g., em contratos), aquelas em que as justiças seculares não actuassem (denegatio iustitiae), as causas em que existissem partes miseráveis (inopiae litigantium causa) e, em geral, todas as causas em que os litigantes recorressem, espontaneamente, às autoridades eclesiásticas (v. infra), “prorrogando a sua jurisdição”, como se dizia tecnicamente. No séc. XVIII, porém, a doutrina civilística, imbuída já de estatalismo, não reconhecia a jurisdição da Igreja nestas causas meramente civis298 . Restavam, ainda, para a jurisdição eclesiástica as questões de “foro misto” (causae mixti fori), não avocadas por um tribunal laico, de acordo com a regra da alternativa (25) . No âmbito da jurisdição eclesiástica, havia também especialidades. Para o julgamento dos membros da capela real ou dos clérigos que residissem na corte, bem como para o das ques-

298 Cf. Pascoal de Melo, 1789, 1,5, par. 24.

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tões relativas à existência299 de um direito de padroado, era competente o capelão-mor, que dava recurso para o Juiz dos Feitos da Coroa da Casa da Suplicação (cf. Barbosa, 1618, prefácio; Pascoal de Melo, I, 5, 23). Para o julgamento de membros das ordens militares (Cristo, Santiago, Avis, Malta, esta gozando de um regime um tanto particular(26), existia um ramo jurisdicional específico. Com efeito, os cavaleiros das ordens apenas estavam isentos da jurisdição temporal em matéria crime (e, mesmo aqui, apenas se gozassem de uma renda suficiente) (Ord. fil.,II, 12, 1-2 [fonte: Lei de 11.2.1536, em Leão 1569, 11.3.4.])300 . Neste caso, a competência jurisdicional de primeira instância pertencia ao Juiz dos cavaleiros das Três Ordens militares301 , nas questões que surgissem na corte, ou, nas restantes, aos ouvidores junto da Mesa mestral de cada ordem. A segunda instância era a Mesa da Consciência e Ordens302 . A terceira, o rei, como grão-mestre das ordens militares. Uma outra jurisdição eclesiástica especial era o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, que gozava de competência exclusiva em matéria de heresia, apostasia, blasfémia e sacrilégio, bem como de certos crimes sexuais (sodomia, Venus nefanda) (Regimentos de 15.3.1570, 22.10.1613, 22.10.1640 e 1.9.1774; alvará 18.1.1614). Os tribunais de primeira instân-

299 300 301 302

Para outros aspectos, v. Ord.fil., II, 1, 7. Cf. nota anterior. Hespanha, 1986, l, 459 n. 162. Sobre a qual, Hespanha, 1994, 251 ss..

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cia eram os de Coimbra, Lisboa e Évora, no continente; Goa, na Índia. Como instância de recurso, o Conselho Geral. Junto de cada um destes tribunais existia um Juízo do Fisco, que decidia as questões relativas ao confisco dos bens dos condenados (e certas questões incidentais, como os crimes de falso ou de resistência), bem como as questões em que uma das partes fosse um oficial da Inquisição ou um seu privilegiado (familiar do Santo Ofício). Os Juízos do Fisco de Lisboa e Coimbra decidiam em definitivo das questões de confisco, mas o de Évora estava submetido ao de Lisboa (Regimento de 10.7.1620, ch. 25). Como foros privativos dos oficiais e privilegiados da Inquisição, estes tribunais davam recurso para o Conselho Geral (ibid., ch. 46). Um outro ramo especial da jurisdição eclesiástica era o da Bula da Cruzada, que conhecia das questões a esta relativas, como o arrendamento das suas rendas ou, em geral, todos os litígios que daí decorressem (Regimento da Bula da Cruzada, de 10.5.1634, ns. 11, 12 e 16). A instância jurisdiciona1 era a Junta ou Tribunal da Bula da Cruzada, que conhecia, portanto, dos recursos (de apelação ou agravo) dos Comissários da Bula, bem como dos recursos das decisões dos Provedores, quando actuassem como juízes especiais dos oficiais e pessoas privilegiadas da Bula (alvará de 28.9.1761). Mesmo prescindindo destes casos especiais, vale a pena reflectir sobre a enorme extensão da jurisdição dos tribunais da Igreja. De facto, a eles podiam ser trazidas não apenas as questões em que uma das partes fosse a Igreja, uma comu212

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nidade religiosa ou um eclesiástico (ainda que a outra parte o não fosse), como uma vastíssima série de questões entre seculares que caíam na competência material do foro eclesiástico. Mas, para além da competência contenciosa reservada a que nos referimos, a Igreja dispunha ainda de uma competência jurisdicional voluntária, para aqueles casos em que as partes, por sua livre vontade, quisessem resolver os litígios perante um tribunal (ou entidade) eclesiástico (jurisdição “arbitral” ou “voluntária”). Estudos recentes têm revelado a extraordinária importância destes mecanismos de resolução de conflitos, o modo como a Igreja os promovia, incitando os fiéis a uma resolução “amigável e fraterna” (compositio fraterna, correctio charitativa), sob a sua égide, em vez de uma resolução conflitiva perante os tribunais de justiça. O que, naturalmente, contribuía para aumentar o poder disciplinar da Igreja e dos eclesiásticos – nomeadamente dos párocos, mediadores naturais nas pequenas comunidades de crentes –, tanto quanto minava o impacto da justiça secular303 . A estas prerrogativas de foro, acresce o facto de que os lugares eclesiásticos gozavam, ainda, de imunidade. Uma das suas manifestações mais importantes era a do “direito de asilo” (Ord. fil., II, V), apesar das suas múltiplas limitações (não valia para os crimes mais graves, nem para os crimes dolosos)304 , a que correspondia, no plano positivo, a compe303 Cf., sobre os processos de mediação de conflitos, Hespanha, 1993, nomeadamente os estudos de N. Castan, M. Clanchy e E. Power. 304 Cf., Hespanha, 1994.

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tência das autoridades eclesiásticas para punirem os asilados (cf. supra). Bem como, num plano já um tanto diverso, a imunidade fiscal que, constituindo embora uma regra de direito comum, tutelada por uma das excomunhões da Bula da Ceia (Bula in coena Domini, excomunhões 5 e 18), estava limitada, em face do direito nacional, aos casos de isenção expressa305 .

2.6 As pequenas vitórias do outro gládio Claro que esta situação privilegiada da Igreja era vista com preocupação pela coroa, que tentava atenuá-la de diversas formas. Uma delas era o beneplácito régio, instituído ainda durante a primeira dinastia, que obrigava a que as “cartas de Roma” fossem sujeitas, antes da sua publicação, à aprovação régia (cf. Ord. af, II,12). Mas o controlo da comunicação directa com Roma era ainda procurado por outras formas; assim, a coroa proibia que se pedissem directamente a Roma privilégios sobre bens ou benefícios eclesiásticos (cf. Ord. fil., II, 13; 14; 19), como forma de evitar, ou que o Papa chamasse a si a concessão de benesses que, de outro modo, sairiam da mão do rei, ou que se gerassem conflitos entre beneficiados da Cúria romana e beneficiados por qualquer entidade eclesiástica (bispos, cabidos, abades de ordens) portuguesa.

305 Era o caso da dízima, da portagem e da sisa (Ord. fil., II, 11, 1; II, 1, 19); mas os eclesiásticos estavam sujeitos a jugadas, salvo privilégio (Ord. fil., II, 33, 8; 57,1; 33, 25). Sobre o tema, Hespanha, 1994.

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Outra prerrogativa régia era a de proteger os seus súbditos naturais contra as violências dos eclesiásticos (a regia protectio, cf. Ord. fil., II,. 1, 13; II, 3), bem como a de punir pela justiça os criminosos que não o tivessem sido devidamente pela justiça eclesiástica. O texto das Ordenações (Ord. fil., II, 3) em que o rei reivindica esta possibilidade é um modelo de cautelas, denunciador da debilidade das prerrogativas régias perante a Igreja e os eclesiásticos(27). O rei, depois de multiplicar as declarações de que não está a usar das suas prerrogativas de justiça – que ofenderiam as isenções jurisdicionais da Igreja –, invoca apenas os seus poderes de gestão dos seus bens (as suas atribuições “domésticas”) para poder tirar aos clérigos malfeitores os bens que dele tivessem. Outra forma de penetração real era o direito de padroado, ou seja, a faculdade de apresentar dignidades eclesiásticas em inúmeras capelanias(28). Este direito, que existia também em favor de outras entidades eclesiásticas ou seculares (v. infra), possibilitava a constituição de redes clientelares e, deste modo, a organização de círculos próprios de poder que não deixavam de introduzir fissuras no bloco do poder eclesiástico. O controlo da coroa ainda se consubstanciava numa série importante de interdições que recaíam sobre a Igreja e os eclesiásticos. Uma das mais importantes era a de adquirir bens de raiz (por parte da Igreja ou de instituições religiosas, mas não por parte de clérigos, Ord. fil., II, 18). Embora, na prática, esta norma não fosse praticada, ela não dei215

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xou de constituir, em certos contextos de crise das relações entre a Coroa e a Igreja (como no período olivarista, a propósito da tributação da Igreja), uma forma de pressão. Para além disso, impendiam sobre a Igreja outras interdições: proibição de aceitar penhores (Ord. fil., II, 24); de possuir bens nos reguengos (Ord. fil., II, 16; 13, 6). Quanto aos clérigos: proibição de sucederem em bens da coroa e nos morgados (Ord. fil., II,16); de porte de armas (Ord. fil., II,1,26); de exercício do comércio (Ord.fil., IV, 16); de exercício da advocacia (Ord.fil., III, 28,1); de terem cargos de tabelião (Ord.fil., I, 80,4); de pedir benefícios ou juízes apostólicos para Roma (Ord. fil., II,13,1; L. 10.12.1515, [Leão 1569 4,12,4]; L. 3.11.1512); de atacar os privilégios do reino em relação à Santa Sé (Ord. fil., 11, 15; L. 27.5.1516 [Leão 1569,4.12.1]). Em contrapartida, a Igreja obtinha protecção das autoridades temporais que, além de reconhecerem a sua autonomia político-institucional nos termos referidos, tutelam o exercício do seu múnus, pastoral e profético, e auxiliam a manter a disciplina eclesiástica e asseguram a punição temporal dos crimes religiosos (prov. de 4.2.1496; Ord.fil., I, 6,9; 11,8).

2.7 Uma malha político-administrativa A malha do oficialato da Igreja não tinha equivalente na época. Desde Roma até a uma paróquia perdida da Beira, a Igreja dispunha de uma malha de oficiais e instituições que cobriam eficazmente o território e garantiam com

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uma eficácia absolutamente excepcional para a época as diversas funções que lhe competiam, desde as puramente espirituais, até às do foro externo, como a realização da justiça ou a cobrança dos tributos eclesiásticos. Neste último domínio, dispomos, de resto, de impressivos exemplos da eficácia comparada dos aparelhos administrativos eclesiástico e secular. Um deles refere-se à décima militar, criada, logo a seguir à Restauração, para o financiamento da guerra. A sua fonte inspiradora era a dízima eclesiástica, equivalente a um décimo da produção, cobrada em todas as paróquias. Apesar de se ter montado uma complexa estrutura para o lançamento e cobrança do novo imposto, a administração secular nunca conseguiu atingir nem a metade do que se estimava ser o rendimento da dízima a Deus. Mas, para além deste aspecto da eficácia, a Igreja criou um enorme repositório de princípios, máximas e conceitos relacionados com a administração. Não admira, por isso, que a teoria jurídica e as técnicas de organização do oficialato da Igreja tenham constituído a matriz intelectual sobre que assentou a administração civil, nomeadamente nos aspectos não jurisdicionais (pois, nestes últimos, a influência do direito romano foi maior). O conceito mais geral para designar um cargo eclesiástico é o de ofício. O ofício consiste na administração de uma “coisa ou assunto eclesiástico” (res ecclesiastica). Ao ofício corresponde, portanto, uma função e a atribuição dos poderes

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(jurisdição) correspondentes. Assim, à colação (ou dada, entrega) de um ofício corresponde a atribuição de uma jurisdição306 . Como, na estrutura administrativa da Igreja, ao desempenho de uma função correspondia a percepção de uma renda, de um “benefício” (cf., supra, 11.2.), esta última designação passou, progressivamente a substituir a primeira, tanto mais que se multiplicavam os casos em que a função associada à percepção da renda se tinha extinguido. Assim, ofício e benefício passam a constituir sinónimos, designando a mesma coisa, embora sob perspectivas diferentes. Em certos casos, à jurisdição (ordinária) correspondia uma certa primazia ou preeminência, nomeadamente nos actos litúrgicos ou capitulares (“no coro ou no capítulo”); falava-se, nestes casos, de uma dignidade. Em contrapartida, se esta primazia era meramente honorífica, não comportando qualquer jurisdição (i. e., não se unindo a qualquer ofício), falava-se de uma simples pessoa (personatus). No caso de esta primazia se limitar à percepção de um rendimento, falava-se de uma prebenda ou conezia(29). Os ofícios (ou benefícios) podiam ainda ser seculares e regulares (i. e., importando a vida em comunidade sob uma regra ou cânon), simples ou curados (i. e., envolvendo a cura de almas e administração de sacramentos). Todos estes estatutos podiam estar regulados ou no direito canónico comum (nomeadamente, no C.I. Can.) ou no direi-

306 Se o ofício é “perpétuo” (no sentido de indisponível por quem o dá), a jurisdição é ordinária; se é precário, a jurisdição é delegada.

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to canónico particular, constante de normas diocesanas particulares, escritas ou costumeiras307 . A concessão dos ofícios eclesiásticos fora inicialmente papal. Mas, por direito comum, os bispos tinham adquirido um direito (intentio fundata), cumulativo com o do Papa, à concessão dos benefícios da sua diocese. Para evitar conflitos de competência, vigorava a regra da “alternativa”, pela qual cada uma destas entidades concedia os ofícios durante seis meses intercalados do ano308 . Da concessão ou colação de benefícios deve distinguir-se a apresentação, ou direito de propositura. Em certos casos, a apresentação dos benefícios eclesiásticos podia caber a outra entidade, eclesiástica ou leiga, nos termos do direito de padroado. O direito de padroado é, segundo a definição de S. Tomás de Aquino, “o direito de apresentar clérigo para um benefício eclesiástico”(30). Trata-se, na expressão do principal tratadista português da Época Moderna (Bento Cardoso Osório), de um direito honorífico, oneroso e útil sobre alguma igreja ou renda eclesiástica que compete a alguém que, com o consentimento do Ordinário, erigiu uma igreja ou benefício ou os dotou ou que herdou esse direito de quem o tenha feito dotado” (cf. Osório, 1736, res. I, n. 3/4)309 . 307 Sobre este tema, v., v. g., Barbosa, 1632, cap. IV; mais recente, útil como roteiro, Carneiro, 1869, § 121 ss. 308 Cf. Fragoso, 1641, pt. II, lb. 1, dp. 20, § 1, ns. I ss. (655 ss.). 309 O Concílio de Trento (sess. 25, cap. 9) exigiu, pelo menos, documento autêntico ou posse imemorial para prova do direito de padroado, mandando considerar como nulos todos os padroados fundados noutros títulos, salvo quando os seus titulares fossem os reis ou imperador (cf. Bernhard, 1990,377 s.).

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Tal direito diz-se honorífico, pois encerra certas honras, como a de apresentar (í. e., indicar ao titular do direito de nomeação ou colação, normalmente o bispo) o titular do benefício (normalmente o reitor ou capelão da Igreja), a de ter a precedência nos actos de culto (como as procissões, os ofícios, a bênção, etc.), a de ter direito a preces, a cadeira especial na Igreja ou no coro, a ter sepultura em lugar de destaque, etc. (íbid., ns. 7/11). Diz-se oneroso, porque sobre o patrono recai o ónus de defender a igreja ou capela do seu padroado e de impedir que os seus bens se dilapidem (n. 12). Diz-se útil, pois o patrono, sua mulher e família têm direito a ser socorridos pelos rendimentos da Igreja se caírem na miséria (n. 14). O Concílio de Trento (sess. 25, cap. 9) proibiu os patronos de se imiscuírem na percepção dos rendimentos do benefício, deixando-os na livre disposição do beneficiado 310 . O padroado pode ser eclesiástico, leigo ou misto (Osório, 1736, res. II, n. 1), consoante o benefício foi dotado com bens da Igreja ou com bens de leigos. Os padroados não podiam ser vendidos, mas transmitiam-se por herança (íbid., n. 6). O Concílio de Trento, no sentido de libertar as igrejas e benefícios dos direitos de padroado, extinguiu a possibilidade de transmissão mortis causa dos padroados, apenas exceptuando aqueles de que fossem titulares os reis ou imperadores311 . 310 Cf. Le Bras, 1990, XIV, 378. 311 O padroado real português manteve-se, portanto.

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Apesar de a apresentação do beneficiado pertencer ao patrono, a sua colação pertence ao ordinário(31). Nos padroados eclesiásticos, o direito de apresentação é partilhado com a Santa Sé(32). Ao benefício ou igreja sobre o qual impende o direito de padroado pode ser dado um comendador, ou seja, alguém encarregado de os proteger. Nesse caso, ficam impendendo sobre os mesmos bens eclesiásticos tanto os direitos do padroeiro como os do comendador. No entanto, o comendador não faz suas as rendas do padroado, a não ser que isso tenha sido previsto no acto da instituição da comenda (Osório, 1736, p. 90, n. 2), assim como não adquire o direito de apresentação dos beneficiados (ibid., pg. 91, n. 1). Apesar destes princípios, os conflitos entre padroeiros e comendadores não foram raros, existindo diplomas de composição geral, estabelecendo a repartição das rendas do benefício por uns e outros (cf. exemplo em Osório, 1736, p. 93 s.).

a) Bispos O ofício eclesiástico central era o de bispo. O próprio Papa se intitulava bispo de Roma, tratando de irmãos os restantes bispos (ao passo que tratava os reis por filhos). A diocese era, portanto, a célula básica da administração da Igreja. Os bispos gozavam da jurisdição ordinária na sua diocese. As suas competências312 eram: (i) a administração

312 Cf. Barbosa, 1623.

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privativa de certos sacramentos e funções (crisma, ordenação, consagração de igrejas ou altares, bênção de certas alfaias de culto); (ii) a jurisdição espiritual (voluntária e contenciosa) universal(33) sobre os fiéis e coisas eclesiásticas da sua diocese, abrangendo acominação de censuras e certas penas, a visitação e percepção dos respectivos direitos313 ; e (iii) a administração dos bens da mesa episcopal ou “da mitra”314 (34). No domínio da jurisdição contenciosa, os bispos eram, na diocese, os magistrados eclesiásticos ordinários de primeira instância (câmara ou curia, tribunal do bispo) eventualmente assessorados (até 1832) pelas Mesas de justiça, constituídas pelos “desembargadores episcopais” e apoiadas pelos vigários episcopais (arciprestes, arcedíagos, vigários gerais) e por outros oficiais (promotor, escrivão da câmara, notário apostólico, distribuidor e contador)315 . A segunda instância era constituída pelas Relações eclesiásticas, tribunais colectivos com sede nas cabeças das dioceses metropolitanas (Lisboa, Braga e Évora, no Continente; Goa, na Índia)(35). A terceira instância era constituída, a partir do séc. XVII, pelo Tribunal da Nunciatura ou da Legacia316 . O Tribunal da Nunciatura tinha ainda jurisdi-

313 Direito catedrático (ou cêras) e colecta (ou procuração). 314 A partir do séc. XII, nos bens diocesanos distinguem-se os da mitra, administrados pelo bispo e os do cabido, administrados por este. 315 Cf. Carneiro, 1896, 397-403. 316 Na origem deste tribunal esteve uma bula de Júlio III, de 21.7.1554, segundo a qual as causas julgadas no reino não teriam recurso para a Santa Sé; assim, tais recursos eram também proibidos pela lei do reino (Ord. fil., II, 13, pr.; cf. ainda Carneiro, 1896, 406).

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ção de segunda instância para as causas das dioceses metropolitanas e dos territórios isentos de qualquer diocese (exempti nullius diocesis). Das decisões deste tribunal havia recurso (de “agravo” e de “apelação”) para a coroa, nos limites reconhecidos pela doutrina da regia protectio (nomeadamente em caso de abusos da jurisdição)317 . O Tribunal da Nunciatura foi abolido pelo decreto de 23.8.1833 e substituído (em 1848: convenção de 21.10.1848, art. 12; Lei de 4.9.1851) pelas secções de recurso ou pontifícias, cujos juízes eram nomeados pelo rei, sob proposta do núncio. Os tribunais eclesiásticos não tinham a possibilidade de dispor de meios coactivos temporais (desde uma lei de 4.2.1496). As disposições do Concílio de Trento que reclamavam faculdades executivas para os tribunais eclesiásticos (sess. XXV, cap. III, de reformat.) não foram recebidas318 ; por isso, em caso de necessidade, as medidas coercivas deviam ser requeridas ao braço secular (ajuda do braço secular, Ord. fil., II,8), por meio de pedido dirigido ao juiz territorialmente competente (Carneiro, 1896, p. 433).

317 Cf. aviso 3.7.1672 e Pascoal de Melo 1789, IV,7,34; magistrado competente: Juiz dos feitos da coroa da Casa da Suplicaçâo (Ord. fil., I,9,12; I, 12,5/6). Este recurso (neste caso, de agravo) existia em todos os casos de abuso da jurisdição eclesiástica (cf. Ord.fil., II,1,12-14; cf. Castro 1622; Sampaio, 1793, 109 ss.). 318 Cf. L. 2.3.1568, em Leão 1569, 279. A provisão de 19.3.1569 (= concórdia de 1578, art. XII) não foi recebida pelas Ord. fil. Sobre este tema, Caetano, 1965 e, agora, Carvalho, 1988.

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b) Cônegos As conezias (ou canonicatos) são outros ofícios eclesiásticos de nível diocesano. A instituição de cónegos diocesanos remonta aos primeiros tempos da Igreja. Tratava-se de oficiais eclesiásticos escolhidos pelo bispo, para o ajudar e se ocuparem das funções litúrgicas ou administrativas da sé. Como viviam em comunidade e debaixo de uma regra (canon), recebiam o nome de cónegos (do latim canonicus, depois cónegos). Com o tempo, distinguiram-se dois tipos de cónegos, os regulares e os seculares. Os primeiros – de que se destacam os cónegos regulares de Santo Agostinho – vivem em comunidade e sob voto de pobreza, não podendo possuir quaisquer bens pessoais, nem mesmo em administração(36). Quanto aos cónegos regulares, viviam fora da catedral, tendo, porém, aí alguma função (i. e., tendo aí um ofício) ou recebendo, apenas, aí alguma prebenda. Na Época Moderna, são estes que constituem a regra319 . Os ofícios canónicos eram vários. Deles se distinguiam alguns, instituídos por direito comum. Assim, o arcedíago (archidiaconus) ou primeiro diácono substituía o bispo nas suas funções temporais, nomeadamente judiciais320 . Nestas últimas funções adquiriram tal importância que, pouco a pouco, a sua jurisdição foi sendo considerada como ordinário (e não delegada pelo bispo); o Concílio de Trento reagiu contra este abuso, reafirmando o carácter apenas delegado da sua jurisdição e retirando-lhes 319 Cf. Barbosa, 1632, c. I, n. 46. 320 Decr. Greg. IX, I, 23; Barbosa, 1632, c. 5; Carneiro, 1896, 398.

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a competência para conhecerem das causas criminais e matrimoniais (sess. 29, cap. XX, de reformat.). No entanto, a doutrina seiscentista continua a atribuir-lhes a primazia sobre os restantes cónegos e a entender que os costumes que lhe conferiam jurisdição mais vasta (nomeadamente, jurisdição ordinária) prevaleciam sobre o direito comum321 -322 . O arcipreste (archipresbytero) ou primeiro presbítero velava pelo exercício do culto e substituía o bispo nas funções sacerdotais323 -324 . Existiam outros ofícios, dignidades e primazias capitulares (ou canónicas, canonicatos), instituídas pelo direito particular, escrito ou costumeiro de cada diocese325 : tesoureiro, custódio, sacristão, primiceiro, chantre, preposto, mestre-escola, prior326 e simples conezias(37). O colégio dos cónegos formava o cabido (ou capítulo) com importantes funções na vida da diocese. Estando esta provida de bispo (sede plena), cabe ao cabido aconselhar e auxiliar o bispo nos assuntos árduos da diocese, nomeadamente relativos a benefícios327 . Para além disso, e como competência própria, administra os bens próprios do cabido328 .

321 Barbosa, 1632, c. v. n. 36 ss. 322 O deão (decanus) era o cónego que presidia ao capítulo, normalmente o mais velho. Não se tratava de um ofício ou dignidade, pois não tinha jurisdição; mas apenas de uma primazia (Barbosa, 1632, c. 7). 323 Decr. Greg. IX, I, 24; Barbosa, 1632, c. 6; Carneiro 1896, 182. 324 Os arciprestes urbanos exerciam nas catedrais e os rurais (forâneos ou vigários da vara) tutelavam um grupo de paróquias. 325 Para estes cargos, v. Barbosa, 1623 c. 8 ss. 326 Os priores podem ser regulares e seculares e estes colegiais ou rurais. Os últimos equivalem a párocos com lugar no cabido. 327 Decr Greg. IX, II,10,4; Carneiro, 1896, 164. 328 Carneiro, 1896, 165.

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Estando a sé vaga (sede vacante), o cabido exerce o poder episcopal, a título de administrador do bispado, designando um vigário capitular329 . Ao lado dos cabidos, como colégios de cónegos, criaram-se ainda as colegiadas, presididas por um preposto (ou prior), que agrupavam os cónegos que não pudessem ter lugar no cabido catedralício330 .

c) Párocos O pároco constitui o mais comum dos ofícios da Igreja. A sua função fora definida por Cristo como a de “apascentar as suas ovelhas”, tarefa que os comentadores subdividiam em apascentar pela palavra, pelo exemplo e pela oração e que o concílio de Trento concretizara da seguinte forma: “... vigiar as Suas ovelhas, oferecer sacrifícios por elas, apascentá-las [=alimentá-las] pela pregação da palavra divina, pela administração dos sacramentos e pelo bom exemplo em todas as obras; cuidar dos pobres e outras pessoas miseráveis com cuidado paterno e incumbir-se das restantes tarefas pastorais” (sess. 23, can. 1). A vigilância dos fiéis consiste no seu conhecimento (no seu registo)(38) e no permanente cuidado em os defender dos maus costumes e em promover neles os bons (Abreu, 1700, lib. 2, cap. 2 e lib. 3). Do dever de oferecer sacrifícios, salien329 Nos tempos primitivos, os cabidos elegiam o novo bispo; na Época Moderna, essa nomeação é papal, mediante prévia apresentação do rei; mesmo os vigários capitulares deviam ser “insinuados” pelo rei; cf. Carneiro, 167 s. 330 Foram muito abundantes, tendo sido extintas em 1846, com excepção das mais importantes (lista em Carneiro, 1869, 179).

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ta-se a celebração quotidiana do sacrifício da Missa (ibid., cap. 3 e lib. 4); mas ainda orações, jejuns e outros sacrifícios pelo bem do seu povo. Do dever de pregação faz parte o anúncio solene da palavra de Deus pelo sermão, o ensino (aos domingos e dias santos) da doutrina da fé compendiada no catecismo, ou, pelo menos dos seus rudimentos(39). A administração dos sacramentos constitui a tarefa mais elevada do múnus paroquial, pois é pelos sacramentos que o pároco prepara os fiéis para receberem a graça divina331 -332 e, logo, a salvação. Deve ainda dar o exemplo na conversação (abstendo-se de conversas torpes, maledicentes e desonestas) e nos costumes (cultivando as virtudes, nomeadamente, a castidade, a temperança e a caridade)333 (Abreu, 1700, lib. 2, c. 8 a 10, lib. 6), bem como demonstrar um contínuo amor e zelo pelo bemestar dos fregueses a seu cargo constituem outra das funções do pároco. Este conjunto de funções dirigidas ao foro interno (cura penitencial) distingue-se das funções disciplinares exteriores ou contenciosas dos bispos (visitação, excomunhão, imposição de penas canónicas).

331 Note-se como, nesta formulação “pós-tridentina”, a função sacramental dos párocos condiciona a “recepção da graça”. Entre os sacramentos destacava-se o da penitência, pelo qual o pároco adquiria o poder de ligar e desligar em relação à Igreja. Sobre a função sacramental, v. Abreu, 1700, c. 7 e lib. 9. 332 Os sacramentos administrados pelo pároco são o baptismo, a penitência, a eucaristia e a extrema unção. O matrimónio é administrado pelos próprios nubentes e a confirmação (ou crisma) e a ordem pelos bispos. 333 Aos párocos estava especialmente proibido o convívio em tabernas, a embriaguez, uma pose descomposta (grandes risadas, altas vozes, correrias, vestes imodestas ou sórdidas), o teatro, as touradas, os jogos (salvo o xadrez), a caça, a pesca, o comércio ou agricultura profissionais, o porte de armas, Barbosa, 1632a, I, c. 6.

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O âmbito de exercício das funções do pároco é a paróquia ou freguesia (de fregueses = filii ecclesiae, filhos da igreja), definida por limites territoriais ou pessoais(40). Nas paróquias grandes, ao pároco podem ser designados ajudantes ou coadjutores, também designados simples curas, cujo múnus pode ser circunscrito a uma certa circunscrição territorial (curado)334 (41). A cura de almas era um benefício, ou seja uma função a que estava anexo o direito de perceber certas rendas. Neste caso, as rendas provinham de ofertas dos fiéis (oblatas, ofertas) destinavam-se à manutenção do culto e ao sustento “congruo” do pároco (daí “côngrua”; como parte das rendas destinadas ao sustento do pároco). Entendia-se que as ofertas eram feitas a Deus(42) obrigatórias apenas no plano da consciência(43). O seu conteúdo, quantidade e periodicidade decorria do direito costumeiro das paróquias, embora existissem normas sobre elas no direito canónico geral335 . A primeira categoria de rendas eram as dos bens adquiridos pela Igreja ou por contrato ou por deixas testamentárias (legados pios [v. g., “terças dos mortos” v. infra], deixas pro anima [mortulhas, lutuosas, aniversários])336 (44).

334 Com o tempo, muitos curados transformam-se em novas paróquias, adquirindo o seu cura funções paroquiais autónomas e não apenas delegadas. 335 Cf. Barbosa, 1623, loc. cit.; e Lobão, 1819 (que podem servir de guias para o estudo mais aprofundado deste tema). 336 Ou seja, bens deixados para missas por alma de alguém (Fragoso, 1641, II, 10, disp. 24, n. 3).

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A segunda categoria era a dos dízimos. Os dízimos ou décimas eclesiásticas consistiam na retribuição, institucionalizada pelos poderes eclesiástico e temporal desde o séc. VIII337 oferecida pelos crentes aos ministros que administravam os sacramentos. Consistiam na décima parte dos frutos, tanto da terra e de casas (decimas prediais), como da indústria humana, quer simples (v. g., rendas do trabalho, décimas pessoais) quer combinada com a natureza (v. g., produção de rebanhos, décimas mistas) (Barbosa, 1623, I, c. 28, n. 9). Tratava-se, assim, de um tributo de incidência muito geral; pagavam-se – na enumeração de um autor da época (Barbosa, ibid., § 1, n. 1 ss.) – de todos os frutos de prédios ou de indústria humana: de trigo e grão, palha, vinho, favas e outros legumes, nozes, amêndoas e castanhas, azeite, açúcar, peixes, abelhas, mel, cera, leite, lã, caça, pastos, lenha, feno, linho e cânhamo; de negócio e artifício, soldos militares, salários de advogados e procuradores, minas, moinhos, herança, legado ou doação, rendas da indústria ou trabalho (45). A taxa era de dez um, sem dedução das despesas, pelo menos nas prediais (46). Eram devidas338 por todos os paroquianos (ainda que eclesiásticos, salvo costume ou privilégio papal (47). O seu titular era o pároco (Barbosa, 1623, I, c. 28, §2, n. 7 ss.); embora, desde uma célebre capitular de Carlos

337 Sobre a história das décimas, V. Lobão, 1819, 86 ss., maxime, 96. Fontes de direito canónico, Decretais, III, 30 (De decimis, primitiis et oblationibus). 338 As Decretais (III, 30,14) dizem que elas constituem um quasi debitum exigível em juízo.

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Magno, se tivesse estabelecido a regra de dividir o produto das décimas em quatro partes, uma para os pobres, outra para a fábrica da Igreja, outra para o pároco e outra para o bispo. Esta repartição variou com os costumes diocesanos; os bispos participavam em geral de uma parte das décimas (quarta ou terça episcopal ou pontifical)339 . Mas, sobretudo, as décimas andavam geralmente doadas aos patronos das igrejas: sés, mosteiros, ordens militares e mesmo leigos340 . Finalmente, constituía receitas dos párocos uma série variável de ofertas feitas pelos fiéis em certas épocas festivas, por ocasião (e em retribuição) da administração de certos sacramentos ou na altura dos ofícios fúnebres e funerais. Eram as oblationes, oblatas (ou obradas) ou benesses341 . Estas ofertas estavam na tradição da Igreja como forma de participação das comunidades no sustento do culto. Mas, instituídos os dízimos, a sua necessidade e legitimidade começou a ser discutida. Quanto à necessidade, ela teria deixado de existir, pois os dízimos poderiam assegurar a côngrua dos párocos. Quanto à legitimidade, argumentava-se que as funções sagradas não podiam ser vendidas, sob pena de simonia. Para além disso, discutia-se a questão central de saber se tais ofertas eram meramente voluntárias ou se, pelo con-

339 Cf. Decretais. III, 30, 13; para Portugal, Viterbo, Elucidário, v. “Terças pontificais”. 340 As Decretais (III, 30, 15 e 17), proíbem a concessão de décimas a leigos. Mas esta proibição podia ser contornada por privilégio papal (cf. Barbosa, 1623, Ibid., n. 50 ss.). Também se admitia a invocação de concessão ou prescrição anterior ao concílio de Latrão (1139). 341 Sobre elas, v., por todos, Barbosa, 1623, l, caps. 24 a 27; Lobão, 1819.

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trário, podiam ser exigidas. Na Época Moderna, toda esta discussão se concretiza na interpretação de um texto das decrettais (De simonia [V,3]342 42) que, embora declarando meramente voluntárias, condenava aqueles que induziam os crentes a não seguirem o “louvável costume” de fazer ofertas aos párocos “pelas exéquias dos mortos, pelas bênçãos, pelos casamentos e coisas semelhantes”. Na interpretação comum dos decretalistas, este texto acabava por estabelecer a obrigatoriedade e exigibilidade das ofertas usuais343 . O concílio de Trento, apesar de alguém ter proposto o restabelecimento da doutrina primitiva do carácter livre das ofertas, não se pronunciou sobre este delicadíssimo tema. A questão tornara-se, de resto, muito sensível. Na verdade, uma parte substancial dos dízimos estava geralmente apropriada por entidades, eclesiásticas ou laicas, titulares do direito de padroado (ou de apresentação do pároco), o que deixava o culto e os párocos sem os rendimentos suficientes. Estes tentavam então forçar os paroquianos a ofertas específicas e suplementares para o seu sustento (a título de funerais, aniversários, casamentos, baptismos e outras propinas pela administração dos sacramentos)344 . Daí que qualquer medida tendente a restringir abusos neste domínio fazia correr o ris342 “Sobre a simonia e que ninguem exija ou prometa algo em troca de coisas espirituais” (epígrafe do título v.3). 343 Estas prestações estabelecidas pelo costume são, por isso, chamadas usuais (quando tivessem lugar em época certa) ou casuais (quando correspondessem a actos de culto sem momento certo [incertus an, incertus quando]). 344 Cf. Lobão, 1819, 94, 97. V. ainda Frei Joaquim de Santa Rosa Viterbo, Elucidario ..., vs. “decimas”, “mortalhas”, “obradas”, “obladas”, “tenças pontifícias”, etc.

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co de uma geral insatisfação dos curas de almas. É isto que explica o silêncio do Concílio de Trento sobre o assunto; que, no entanto, aí chegou a ser levantado (Lobão, 1819, p. 114). Em Portugal, a questão também foi conflitual. Não apenas entre os fregueses que não se queriam ver constrangidos a ofertas usuais (muito menos, a ofertas não usuais), mas também entre os párocos e os dizimeiros, a propósito da garantia de uma côngrua paroquial mínima ou da pretensão dos dizimeiros de se apropriarem também do rendimento das oblatas. Assim, em relação às igrejas e capelas que fossem comendas das ordens militares, o Papa Paulo IV obrigou, em 1555, os dizimeiros a garantirem aos párocos uma côngrua de 100 cruzados, sempre que este não os obtivesse pelas oblatas da Igreja (Lobão, 1819, p. 121). E a resolução régia de 18.7.1560 ratificou uma composição entre a Ordem de Cristo e párocos das suas novas comendas, reservando para estes últimos as oblatas usuais (“ofertas de mão beijada”, de outras ofertas por ocasião do ofertório da Missa, da administração dos sacramentos e da encomendação dos finados) (Lobão, 1819, p. 123; Figueiredo, 1790, II, 73). Indirectamente, a questão também interessava à coroa. Por um lado, porque ao rei incumbia a régia protecção dos seus vassalos contra as exacções da Igreja; depois porque, em certos casos, as ofertas eclesiásticas eram conflituais com interesses específicos cuja tutela competia à coroa345 ; finalmente, por345 É O caso das ofertas funerárias, que prejudicavam quer os órfãos (cujos interesses eram tutelados pela coroa, através dos juízes dos órfãos e provedores), quer os cativos (que beneficiavam tanto de deixas expressas como

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que a fiscalidade da coroa era conflitual com a fiscalidade real (nomeadamente, com as décimas). Além de que, tal como a carga fiscal senhorial, era mal vista pelo pensamento fisiocrático, dominante nos finais do século XVIII e hostil a todos os ónus sobre a agricultura(48). A panóplia das oblatas era muito vasta, dependendo dos usos locais. As mais importantes eram as ofertas funerárias, umas relacionadas com os ofícios fúnebres e funeral, outras com missas de sufrágio e aniversários. À primeira categoria pertencia a lutuosa, direito do pároco à melhor peça de roupa ou vaso de metal precioso, à sua escolha, por morte de um paroquiano346 . E ainda a porção canónica ou funerária (canonica portio), correspondente às despesas funerárias (com velas, paramentos e adornos, jantares dos oficiantes e coadjutores)(49) (50), paga em jantares ou vitualhas, cera, lâmpadas, vinho, hóstias, lenha, pão, milho, carneiros, etc. À segunda categoria pertenciam as dádivas para missas de sufrágio e para aniversários. Das oblatas faziam ainda parte as deixas para obras pias, recolhidas nas arcas paroquiais “das pias”. Também aqui se verificou uma evolução (que encontramos concluída na Idade Moderna) no sentido de transformar as ofertas em obrigações dos fiéis e de as fixar numa quota da herança. Assim, no século XVI, estava estabelecido o uso de distribuir em obras de heranças para que não houvesse herdeiros [“resíduos”] e cujos interesses eram defendidos pelos mamposteiros dos cativos). 346 Barbosa, 1623, I, cap. 24, n. 32.

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pias as terças dos que faleciam sem testamento, uso a que foi posto termo por um assento de 1567 (Lobão, 1819, 124). Além destas, muitas outras ofertas existiam (usuais, casuais dos párocos), algumas delas residuais dos antigos dízimos pessoais, abolidos ainda na Idade Média, outras pura e simplesmente fundadas nos costumes diocesanos ou paroquiais. Era o caso, entre outras, dos mortuarios matrimónios, conhecenças, as aleluias, loas de Natal, ofertas de Sexta Feira Santa, do dia dos fiéis, etc. (Lobão, 1819, p. 154).

d) Abades Um último ofício eclesiástico é o de abade, superior de uma comunidade de monges. A palavra “abade” significa pai, o que logo nos remete para o imaginário político que estruturava as relações dentro destas comunidades – o da família347 . De facto, embora os abades disponham de poderes jurisdicionais sobre os seus monges(51), as relações entre uns e outros, bem como o estatuto destes últimos em relação à casa, adequa-se perfeitamente ao modelo das relações intrafamiliares. Assim, os prelados e superiores dos regulares têm sobre eles toda a jurisdição espiritual e temporal, aplicando-lhes penas espirituais (excomunhão e outras privações), temporais (jejum, abstinência, prisão), “havendo-se como pais” (Carneiro, 1851, I, p. 299). Isto é ainda mais nítido nas comunidades femininas, pois aqui a abadessa 347 Do mesmo modo, o convento era também designado por “casa”. As abadessas eram tratadas por “mãe” (ou “madre”).

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– sendo mulher e, logo, incapaz de deter funções de governo político (i. e., funções jurisdicionais)só dispunha de poderes domésticos, do mesmo tipo dos que a mãe de família dispõe em relação às filhas e criadas(52). Mas, em geral, os monges são como filhos do abade: devem-lhe obediência348 ; podem ser por ele julgados sem a observância de processo (sem “figura de juízo”); podem ser castigados e metidos em cárcere (Fragoso, ibid., n. 5). No domínio patrimonial, esta semelhança com os filhos-família é enorme. Na verdade, os monges, tal como os filhos, nem têm, em princípio, património próprio, nem gozam de capacidade jurídica. A sua entrada na vida religiosa é marcada por um contrato de dote – semelhante ao das filhas que, pelo casamento, entram noutra família –, em que, além da outorga do dote, o pai renuncia ao filho (Carneiro, 1851, I, 306 ss.). A partir da sua entrada em religão, o monge morre para o mundo e toma-se incapaz de domínio e posse: adquire para o convento de que se considera filho, tal como os filhos adquirem para o pater; os seus contratos são nulos; não pode testar; carece de capacidade sucessória passiva, mesmo ab intestato349 . Ainda como os filhos, podem-lhe ser concedidos pelo superior, a título precário, alguns bens (“pecúlio”, tal como nos bens de que os filhos tinham a administração) para fins licítos e honestos (Fragoso, 1641, II, lib. 11, disp. 24, n. 15)350 . 348 Sobre as obrigações dos regulares, v. Fragoso, 1641, II, lib. 11, disp. 24, § 9. 349 O direito comum admitia que os monges herdassem para o convento; uma lei de 17.7.1769, de sentido desamortizador, priva, no entanto, os monges de capacidade hereditária passiva (Carneiro, 1851, I, 315). 350 O concílio de Trento tinha proibido os pecúlios monásticos, por serem fonte de abusos (sess. 25, cap. 39, §§ 4/5); mas a prática subsequente voltou a admiti-los.

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A entrada em religião é um acto livre, precedida por um noviciado (de um ano) (conc. Trento, sess. 24, caps. 15/ 16) e pela tomada de votos. Os votos são o de pobreza, castidade, obediência e estabilidade na vida devota351 . O voto de pobreza implica a renúncia à propriedade pessoal, comunicando-se todos os bens próprios, actuais ou futuros, à congregação, sendo administrados pelo superior da congregação, auxiliado por administrados, por ecónomos ou administradores amovíveis (cf. provis. 7.11.1790) (Carneiro, 1851, I, 292)352 . Só na sua alienação ou hipoteca devem intervir os capítulos, aos quais compete, de resto, auxiliar o superior na resolução dos negócios árduos (ibid., I, 300; Fragoso, 1641, II, lib. 11, disp. 24, § 4/5). A castidade implica a abstenção, não apenas de todas as formas de prazer sexual, mas ainda do matrimónio. A estabilidade na vida devota implica a proibição, não apenas de reverter ao estado laical, mas ainda de abandonar a ordem (apostasia, punida no foro eclesiástico, com cárcere).

2.8 Orientação bibliográfica Dado o estado actual da historiografia sobre as instituições eclesiásticas em Portugal (cf., em todo o caso, as in-

351 Para alguns monges existe um quarto voto: de defesa da religião com armas (ordens militares), de redenção dos cativos (ordem da Santíssima Trindade), obediência devota ao papa (jesuítas), cf. Carneiro, 1851, I, 292. 352 As congregações, em contrapartida, podem possuir bens, com as restrições já referidas para a aquisição de bens por entidades eclesiásticas; algumas ordens mais rigoristas (v.g., capuchinhos) não podiam possuir quaisquer bens (cf. conc. Trento, sess. 25, cap. 3).

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dicações dadas em Hespanha, 1992a, p. 69), o principal trabalho de investigação tem que ser feito sobre as fontes. Sobre as principais fontes para o estudo do direito canónico,’ V. supra. Lista das constituições diocesanas portuguesas em Vasconcelos, António G. Ribeiro de, “Nota chronologicabibliographica das constituições diocesanas portuguesas, até hoje impressas”, O Instituto, 58(1911) pp. 491-505. Sobre o direito eclesiástico do reino de Portugal, v. Ord. fil., II, 1 ss. (e os respectivos comentários de Pegas, 1669). V. ainda os tratados de Gabriel Pereira de Castro (Castro, 1622); Luís de Molina (Molina 1613, tract. 2, d. 29); Baptista Fragoso (Fragoso 1641, tomo lI); Feliciano de Oliva e Sousa (Sousa, 1648). Para os finais do século XVIII, num contexto já bastante diferente de entender as relações entre sacerdotium e imperium, v. António Ribeiro dos Santos (Santos, 1770), Pascoal de Melo Freire (Pascoal de Melo, 1789, I, 5) e Manuel Borges Carneiro (Carneiro, 1851, Liv. I, tit. 5). Já nos finais do século passado, o livro de Carneiro, 1896 (bem como a colecção de textos do volume de “Provas”) pode fornecer indicações muito úteis.

Bibliografia citada ABREU, Sebastião de, lnstitutio parochi seu speculum parochorum, Eborae, 1700. AMARAL, António Cardoso do, Liber utilissimus judicibus et advocatis, Conirnbricae, 1740, 2 vols. BARBOSA, Agostinho, De officio, et potestate episcopi tripartita descriptio, Romae, 1623.

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LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa, Dissertações sobre os dízimos ecclesiásticos e oblações pias, Lisboa, 1819. LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa, Tratado pratico compendiario das pensões ecclesiasticas, Lisboa, 1825. MARQUES, João Francisco, A parenética portuguesa e a Restauração. 16401668, Lisboa, INIC, 1989, 2 vols. MELO (Freire), José Pascoal, Institutiones iuris civilis (e criminalis) lusitani, Ulysipone, 1789,4 vols. (civilis), 1 vol. (criminalis). MOLINA, Luís de, Tractatus de iustitia et de iure, Cuenca, 1593-1600. OSÓRIO, Bento Camoso, Praxis de patronatu regio, & saeculari, U1yssipone, 1726. PAIVA, Práticas e Crenças Mágicas. O Medo e a Necessidade dos Mágicos na Diocese de Coimbra (1650-1740), Coimbra, Minerva Histórica, 1992. PEGAS, Manuel Álvares, Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae, U1yssipone, 1669-1703, 12 tomos + 2. PEREIRA, Isaías da Rosa, “As visitas paroquiais como fonte histórica”, in Rev. da Fac. Letras de Lisboa, 3.ª série (15), 1973. PESCH, Otto Hermann, Tomás de Aquino. Límite y grandeza de una teologia medieval,Barcelona, Herder, 1992 (trad. castelhana). PRAÇA, José J. Lopes, Estudos sobre o padroado portuguez [...], Coimbra, 1869. PRODI, Paolo, Il soverano pontifice. Un corpo e due anime: la monarchia papale nella prima étà moderna, Bologna, Il Mulino, 1982. RODRIGUES, Manuel Augusto “Tendência regalistas e episcopalistas em bibliotecas de Coimbra do séc. XVIII”, Revista de história das ideias 10 (1988), pp. 319-326. SAMPAIO, Francisco Coelho de Sousa, Prelecções de direito patrio, Coimbra 1793, 2 vols. SANTOS, António Ribeiro dos, “Sobre os tributos”, BNL FG 4677, fi. 75 ss. SANTOS, António Ribeiro dos, De sacerdotio et imperio ..., Lisboa, 1770.

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SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Livro das Igrejas e Capelas do Padroado dos reis de Portugal (1574), Paris, Gulbenkian, 1971. SOARES, Franquelim Neiva, A arquidiocese de Braga no século XVI. Visitas pastorais e livros de visitação, Porto, Fac. de Letras, dact., 1972. SOARES, Franquelim Neiva, “A sociedade de Antigo Regime nos inquéritos paroquiais do distrito de Braga”, in Revista theologica (13), 1978. SOMOZA, Salgado de, Tractatus de regia protectione, Lugduni, 1669. SOUSA, Feliciano de Oliva e, De foro ecclesiae tractatus, Conimbricae, 1648. SUAREZ, Francisco, Opus de triplici virtute, fide. spe et charitate, Mogunciae, 1622.

Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com *. Notas (1) Tudo isto se relaciona, em todo o caso, com questões teológicas mais vastas, nomeadamente, a da natureza da graça, dos sacramentos e, concretamente, do sacramento do baptismo. Quanto a este último ponto, uma concepção espiritualista da Igreja, “desmaterializa” o baptismo, considerando que, ao lado do baptismo institucional (“pela água”, baptismumfluminis), existe um baptismo espiritual que consiste apenas na pura vontade (votum baptismi) – dirigida pela chama da graça (logo, baptismum flaminis, baptismo pela chama) – de se abrir à salvação (d. S. Tomás, Sumo th., III, q. 68, a. 2; q. 69, a. 7; bem como o texto de Santo Agostinho, aí citado [q. 68, a. 2, “sed contra”], falando da possibilidade e um “sacramento invisível”). Em contrapartida, uma consideração jurisdicionalista da Igreja tende a reservar o carácter sacramental para o baptismo institucional (baptismum fluminis): “um só Deus. uma só fé. um só baptismo; e assim, só o baptismo fluminis é Sacramento. O baptismo flaminis, et sanguinis (i. e., pelo martírio) não são Sacramentos, chamando-se baptismos porque substituem e fazem as vezes do Baptismo fluminis quanto ao efeito, sempre que o sujeito não pode receber o Sacramento do Baptismo in re (i. e., em si mesmo)” (Francisco de Larraga, Promptuario de la theologia moral, ed. cons. Madrid, 1788, I, trat, 2, § 1, pp. 47-48); era a doutrina dominante depois de Trento (cf. sess. 7, can. 5); cf. Compendium salmanticense [ou] universae theologiae moralis, 00. cons. (5.ª), Pamplona, 1791, tract. 23, cap. un. Quanto aos restantes sacramentos, o concílio de Trento (sess. 7, can. 10) condenou a proposição de que qualquer fiel podia administrar os sacramentos, apesar de, segundo os Evangelhos, Cristo ter dado a todos os homens o poder de baptizar, de admi-

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nistrar a eucaristia e de perdoar os pecados, (Mat., 28, 19; Luc., 22, 19, João, 20, 23). Cf., v. g.. Abreu, 1700, lib. 9, sec. III, n. 19 (p. 486). (2) Embora aqui pareça estar a pensar apenas nos que estão em fase de doutrinação para receberem o baptismo formal (catecúmenos) e não ao “homo nutritus in sylva” (selvagem) que recebeu o dom da graça independentemente de qualquer contacto com a Igreja institucional. (3) Embora, em seguida, se matize um pouco, admitindo que os não baptizados podem fazer parte de uma Igreja invisível (o que, todavia, não lhes permitiria participar dos sacramentos); também os hereges e cismáticos seriam membros de direito, mas não de facto, da Igreja. (4) Entre tantos exemplos, V. Sebastião de Abreu [jesuíta, professor de teologia na Universidade de Évora], lnstitutio parochi seu speculum parochorum, Évora, 1700. Encontram-se estas definições no comentário ao Credo (“Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica [...]”). (5) Note-se que o próprio poder papal se ia também temporalizando. Com o progresso da concepção jurisdicionalista da Igreja e com a consequente e progressiva contaminação da teoria da Igreja por uma teoria do Papado concebido à maneira de um poder temporal, o Papa tende a conceber-se, cada vez mais, como um soberano entre os outros, perdendo a sua dimensão ecuménica e situando-se ao mesmo nível dos outros soberanos, no palco da política mundana. V., sobre isto, o decisivo livro de P. Prodi, Il soverano pontifice. Un corpo e due anime: la monarchia papale nellaprima étà moderna, Bologna, li Mulino, 1982. (6) Para fazer corresponder os graus da ordem (i. e., a hierarquia da igreja militante) à hierarquia dos anjos (i. e., da igreja triunfante: anjos, arcanjos, tronos, dominações, virtudes, principados, potestades, querubins, serafins, Decreto, 11. parte, C. 23, q. 3 de poenit., dist. 2, C. 45), alguns canonistas falavam de nove graus, juntando um superior (o episcopado) e um inferior (a prima tonsura). Outros, pelo contrário, consideravam que o episcopado era uma dignidade e a primeira tonsura, uma preparação para a ordem. Cf. Cardoso, 1740, V. “Ordo”, n.º 3. (7) Decorrente de heresia, cisma ou apostasia; de condenação em crime civil que a importasse (v. g., lesa-majestade); de descender de herege relapso; de se ter envolvido em duelo, como duelista ou padrinho; de condenação por sedição, libertinagem ou usura (cf. Carneiro, 1896,61 e bibl. cit.). (8) Os casados com mulher virgem podem ordenar-se, desde que declarem publicamente guardar castidade e adoptem vestes religiosas; o mesmo pode fazer quem se encontre separado da mulher por adultério desta. Em contrapartida, não podem ser ordenados os casados por duas vezes ou os casados com mulher que conhecida por qualquer outro homem. Cf. Amaral, 1740, S.V. “ardo”, n.º 17. A ordenação impede a celebração do matrimónio (Extrav. Jo. XXII,liv. VI, cap. un.). (9) Bastava a cegueira do olho esquerdo, para evitar que o sacerdote virasse a cara ao cálice e à hóstia durante a consagração, quando o missal está do lado esquerdo. A perda de um dedo, salvo o polegar, não era irregularidade. (10) Cf. CR 17.5.1612 (mandando executar um breve de Paulo V que excluía os cristãos novos do sacramento da ordem); revogado pelas LL de 25.5.1773 e 15.12.1774 (e breve de Pio VI, de 14.7.1779). (11) Variava com as ordens e com as dioceses (em Lisboa e Évora, por exemplo, não se podia receber a primeira tonsura antes dos sete anos; o diaconato exigia os 23 anos e a ordem presbiterial, os 25).

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(12) A principal fonte para o estudo da teologia moral deste período continua a ser a parte II da Summa theologica, de S. Tomás de Aquino (há edições modernas, bilingues e traduzidas em francês, italiano e espanhol). Mas, nos séculos XVI e XVII, produziram-se sumas que exerceram grande influência em Portugal e na Espanha. Sobre as principais e sobre a teologia moral da época, v. Melquíades Andrés (dir.), Historia de la teologia española, Madrid, Fundación Universitaria Espafiola, 1983, 2 vols. (13) É a doutrina tradicional (S. Tomás, Summa theol., IIa.IIae, qu. 99, art. 3), reafirmada pelo concílio de Trento (sess. 25, c. 20); sobre o tema, Fragoso, 1641, pt. I, lb. II, dp. 4, epit., n. 264 ss. (14) Sobre esta última questão, v. Fragoso, 1641, pt. I, lb. 1, dp. 2, § 4, ns. 191 ss. Gudeus), 225 ss. (pagãos); também, Serafim de Freitas, De iusto imperio lusitanorum asiatico, 1625 (ed. bilingue, Lisboa, I.N.I.C., 1983). (15) Desde o português Álvaro Pais no seu De planctu Ecclesiae, até alguns dos teólogos juristas da Segunda Escolástica (Gabriel Vasquez de Menchaca, Torquemada), passando pelos grandes canonistas italianos dos sécs. XII e XIII (Cardeal-Hostiense, Abade Panormitano, João de Andrea). Uma das fontes jurídicas invocadas era o cânone Grandi non immerito (Liber sextum, I, 8,2), relativo à deposição de D. Afonso III. (16) O Gen. falava da criação de dois luzeiros no céu, donde Inocêncio III derivara a ideia de dois poderes (“Deus fez dois grandes luzeiros, ou seja, instituiu duas dignidades, quais são a autoridade pontifícia e o poder real”, cit. Fragoso, 1641, Pt. 11, Ib. 1, dp. 1, § 12, n. 283); os Evangelistas insistiam na ideia de que “o Filho de Deus não veio ao mundo para julgar o mundo, mas para o salvar” (João, 3; Luc., 7). (17) Assim, o príncipe cristão está obrigado a impedir a divulgação de doutrinas que possam perturbar a fé dos fiéis, ou de confissões e práticas religiosas que, pela sua perfídia ou aberração, escandalizem ou corrompam os costumes. Escrevendo nos finais do séc. XVI, Baptista Fragoso – que, assume uma posição tolerante para com os judeus (Fragoso, 1641, Pt. I, lb. 1, dp. 2, § 4, n. 191 ss.) – afirma que “os impérios e os reinos são corroídos se as pessoas públicas por temeridade ou audácia chegarem a pensar que para a conservação da República e consecução da paz pública nada se deve acautelar no domínio da religião, antes se devendo permitir que cada um viva como quiser e siga o que entender mais conveniente em matéria religiosa [...] O qual erro, como muito pernicioso, deve ser erradicado completamente e por nenhumas razões permitido ao magistrado [...]” (/bid., n. 213); o que levava ao ideal expresso numa inscrição que teria visto em Paris, “unus Deus, una fides, unus Rex, una lex”. (18) Em Portugal e em Espanha existem, pelo menos a partir do séc. XVII, fortes correntes “regalistas”, defendendo as prerrogativas do monarca em relação à Igreja. Para além de tirarem partido de argumentos doutrinais como os referidos no texto, apoiam-se nos dados do direito nacional, estabelecido em concordatas sobretudo dos sécs. XV e XVI pelas quais os reis peninsulares teriam adquiridos direitos e isenções particulares em relação ao direito canónico comum (cf., para Portugal, o tratado sobre o poder real, de Gabriel Pereira de Castro [n. 1571; Castro, 1622]). Com o pensamento político ilurninista (cf. supra, 2.1), a isenção do poder temporal é fundada em argumentos doutrinais novos (cf. Santos, 1770; Pascoal de Melo, 1789, I, 5).

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(19) A edição oficial conjunta do C.J. Cano é de 1582. Manteve-se em vigor até 1917, embora actualizado pelos novos cânones e decretais (jus novissimum). Sobre a sistematização interna de cada uma das suas partes, V. Gilissen, 1988, 147. (20) É só com a lei “da Boa Razão” (de 18.8.1769) que o direito canónico se deixará de aplicar no foro civil. Mas a disciplina eclesiástica sobre certas matérias, que hoje nos parecem como essencialmente seculares, como o casamento ou o registo pessoal, manteve-se até muito mais tarde. O registo civil só é definitivamente estabelecido com o Código Civil de 1867, enquanto que os casamentos celebrados canonicamente só deixarão de ser regulados, mesmo à face do direito secular, pelo direito canónico em 1975. (21) Cf. Ord. fil., II, 1: eclesiásticos sem superior no reino (Ord. fil., II, 1, pr., magistrado competente Corregedor dos feitos cíveis), eclesiásticos que residissem na corte (Ord. fil., II,1,4:idem), membros das ordens menores (Ord. fil., II,1,4; II, 1,27: competência das justiças ordinárias laicas), questões sobre bens da coroa ou “reguengos” (património fiscal do rei) (Ord. fil., II,1,17 ss.: competência das justiças especializadas nestas matérias); outros casos: Ord.fil., II,1,1; II,1,5; II,1,20. No domínio criminal, os eclesiásticos gozavam de uma isenção geral, salvo para os crimes de lesa-majestade (Ord. fil., II, 1, pr.; II, 1,4/27). Para além das fontes citadas, podem ver-se os respectivos comentários de Pegas, 1669, e, para o período iluminista, de Melo Freire, 1789, I, 5, 23 ss. (22) Em que o vigário-geral apenas recebia as denúncias, remetendo-as ao Tribunal do Santo Ofício, cuja competência nestas matérias era exclusiva. (23) Se o fosse, a competência era da justiça secular: Ord. fil., II, 1, 5 ss. (24) Que obriga a observar o processo canónico devido (cf. Pegas 1669, t. 8, p. 142, com bibl.; Manuel Mendes de Castro, Practica Lusitana, 1619 I, n. 294 e 2 p., c. 34 per totum); a origem do preceito das Ord. fil. era uma concórdia de D. Sebastião, visando evitar o “costume de darem na estação aos domingos a pena, e admoestaçam publica somente pelas testemunhas da Visitaçam, infamando os Vassalos, que clamavam” (cap. 13, apud Pegas, ib., 143 n. 12). Sobre o tema v., agora, Carvalho 1990. (25) As causae mixti fori compreendiam: questões sobre obras pias (Ord.fil., 1,62,3940-42), sobre capelas ou associações religiosas (Ord. fil., I, 62,39), sobre casos de concubinato (Ord. fil., II,1,13; II, 9), sobre delitos mixti fori (lenocínio, incesto, envenenamento, blasfémia, usura – Ord. fil., II,9), sobre testanientos. A competência dos tribunais laicos eclesiásticos era concorrente: a partilha faziase segundo as regras da preventio ou da alternativa. Os casos mixti fori foram abolidos pelo decreto n.o 24, de 16.5.1832. Para além das fontes citadas, v. os respectivos comentários em Pegas 1669. (26) Os cavaleiros de Malta, por sua vez, seguiam a regra geral dos eclesiásticos, gozando de uma isenção geral em” matéria cível e crime (Leis de 18.9.1602,6.12.1612, art. 6). Cf. Manuel Mendes de Castro, Pratica Lusitana, 1619, I, p. 24, n. 10; Melo Freire 1789, IV, t. 3, par. 54. (27) Vale a pena transcrever uns passos: “ [...] quando em seus reinos, e senhorios alguns clérigos de ordens menores, ou sacras, ou beneficiados, comendadores e outros religiosos, e pessoas de jurisdição eclesiástica, fossem culpados em malefícios, e julgados pelo eclesiástico, e não fossem punidos, como por direito, e justiça deverião ser, e o dito Senhor soubesse em certo, elle não como juiz, mas como seu rei, e senhor, por os castigar, e evitar que tais malefícios se não cometessem, os lançaria de seus moradores, e tiraria as terras, e jurisdições,

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castelos, ofícios [...], que dele, ou de seus antecessores de graça, ou enquanto fosse sua mercê tivessem [...]. E isto não por via de jurisdição, nem de juizo, mas por usar bem de suas cousas, e afastar de si os malfeitores, e que não houvessem dele sustentação, nem mercês [ou]”. (28) Sobre o padroado v. os respectivos artigos do Dicionário de História de Portugal, Porto, Iniciativas Editoriais, 1961 e Dicionário /lustrado de História de Portugal, 1985, bem como as indicações contidas em Faria 1987, Carvalho 1989a. Literatura mais antiga, Cabedo 1603; Melo Freire, 1789, 1,5,19; Carneiro, 1896, 217; e Praça 1869. Lista das capelas e igrejas do padroado em Serrão 1971. Lista dos padroados da Ordem de Cristo (“as cinquenta comendas do Padroado”), em Cabedo, 1602, c. 18, n. 1. Formalidades e fórmulas de apresentação, Cabedo, 1602, cap. 19. Sentenças sobre casos de apresentação de beneficiados pelos reitores das Igrejas do padroado real, Pegas, 1669, XIII, p. 67 ss. (29) Falava-se também de pensão ou porção a respeito de uma prestação periódica imposta sobre o rendimento de certo benefício pelo titular da sua colação (i. e., por aquele a quem compete prover esse benefício) a favor de uma pessoa eclesiástica ou leiga (cf. Lobão, 1825, § 21 ss.). As pensões podiam ser impostas pelo Papa, pelos bispos, pelos grão-mestres das ordens militares e pelos reis (como grão-mestres ou padroeiros). (30) Sobre o padroado, fontes de direito canónico clássico, Decreto, lI, c. 16, q. 7; Decretais, Ib. 6; Trento, sess. 24 e 25. Literatura portuguesa: Cabedo, 1602; Osório, 1736. Depois de ter sido objecto de discussões nas Cortes vintistas, os padroados (salvo o da Coroa) foram abolidos pelo dec. de 5.8.1833, reservando ao governo a apresentação dos benefícios eclesiásticos (cf. Carneiro, 1896,236). (31) A colação de benefício sem a apresentação do patrono é anulável, Cabedo, 1603, c. 1, n. 3 ss. No caso de o direito de apresentação não ser exercido no prazo de quatro meses (padroados leigos) ou de seis meses (padroados eclesiásticos) a contar da vacatura do benefício, o direito caduca para o Ordinário (ibid., n. 9; Pegas, 1669, XI, p. 176, n. 6). (32) A apresentação é do patrono se o benefício vagar nos meses de Março, Junho, Setembro e Dezembro; nos restantes é da Santa Sé (Conc. Trento, sess. 24, cap. 18; Somoza, 1669, pt. 3, c. 9, n. 99). Além disso, em qualquer dos casos, o provimento deve ser feito, no caso do padroado eclesiástico, por concurso (Ibid.). (33) Exceptuavam-se, porém, os territórios nullius diocesis, dependentes directamente da Santa Sé, como são, em Portugal, as prelazias quasi episcopais (Santa Cruz de Coimbra [ab séc. XII], Santa Maria de Guimarães [ab. séc. XV], priorado do Crato [ab 1443], priorado de Tomar [ab 1554], capela real de Vila Viçosa [ab 1581], as prelazias de Moçambique [ab 1612], Pernambuco [ab 1612], Cuiabás e Goiás [ab 1745]) e algumas igrejas e. capelas privilegiadas (v. g., capela real, casa real de Santo António, Igreja das Chagas de Lisboa, capela da Universidade de Coimbra. Cf. Carneiro, 1896, 152, 157. (34) Em Portugal, a coroa recebia parte das rendas do primeiro ano dos benefícios vagos (ano do morto); cf. CR. 9.3.1801 (João Pedro Ribeiro, Ind. chron., 11, 228); alv. 3.7.1806. (35) Cf. Carneiro 1896, 404-406. As Relações tinham também competência de primeira instância nos litígios da diocese metropolitana, naqueles em que uma das partes era um bispo ou nas causas que se arrastassem por mais de dois anos nos tribunais das dioceses sufragâneas (Ibid., 404).

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(36) V. lista das congregações de cónegos regulares em Barbosa, 1632, c. I, n. 25 ss. Já os cónegos regulares de Santo Agostinho tinham uma regra mais permissiva: podiam possuir em admínistração os bens necessários ao seu sustento e a obras pias, embora esta posse fosse precária, pelo que lhes podiam ser a todo o tempo retirados pelo superior (v. Ibid., n. 19). (37) Conezia (canonia) é o direito a lugar no coro e capítulo, tendo, em princípio, anexo o direito a receber prebendas e porções diárias (sobre estas, Barbosa, 1623, c. 21). Prebenda (ou porção), por sua vez, é o direito a receber certos proventos das rendas da igreja de que se é prebendário (ou porcionário), tendo em vista o sustento próprio. Em sentido genérico, prebenda equivale a qualquer direito a receber rendas da Igreja em razão de um ofício eclesiástico. Em sentido próprio, significa o rendimento anexo a uma conezia. A palavra aplicase ainda à percepção de rendas da Igreja; independente do exercício de qualquer ofício eclesiástico, em retribuição de uma função meramente temporal; neste sentido, podem ser concedidas a leigos e por estes livremente vendidas, sem perigo de simonia (Barbosa, 1623, c. 12). (38) Os párocos tinham que manter livros de registo dos baptizados, dos casamentos e dos óbitos (Conc. Trento, sess. 24, cans. 1 e 2; dados que deviam constar e fórmulas, Barbosa, 1632a, I, cap. 7, ns. 1-10), além do registo das confirmações (ou crismas) (Ibid., n. 16); podiam ainda organizar outros registos atinentes à vida da paróquia. (39) Símbolo dos apóstolos [Credo], dez mandamentos, padre-nosso, artigos da fé sobre o baptismo, a eucaristia e a penitência (Conc. Trento, sess. 24, c. 4 e sess. 5, cap. 2; Abreu, 1700, lib. 2, caps. 4 e 5 e lib. 5). (40) A paróquia pode consistir, v.g., em certas famílias ou numa comunidade. Sempre que o âmbito dos fregueses seja uma comunidade definida em razão da natureza das pessoas (e não do território), o pároco toma a designação de capelão (é o que acontece com os encarregados de, v. g., monges, da corte, de militares, etc.). (41) Na linguagem vulgar, “cura” designa, em algumas zonas, o pároco. Noutras, é designado por abade ou prior. Originariamente, o abade era o superior ou prelado de certas congregações religiosas regulares “S. Bento, S. Bernardo, S. Basílio). E o prior era, em geral, a pessoa eclesiástica dotada de preemínência. O termo era usado: (i) para designar uma dignidade do cabido; (ii) o primeiro prelado de certas comunidades monásticas (v. g., conventos dominicanos, agostinhos, carmelitas, jerónimos); (iii) noutras comunidades (beneditinos, monges de S. Bernardo), o segundo prelado, depois do abade, frequentemente encarregado da direcção de uma comunidade subordinada à casa principal ou abadia); (iv) o superior das ordens militares ou de ordens militares). (42) O pároco era, portanto, apenas o seu admínistrador ordinário, devendo afectálas, salvo intenção em contrário do ofertante (v. g., para os cativos, para um oratório, confraria ou capela), às despesas inerentes à cura de almas (cf. Lobão, 1819, p. 164 ss.). (43) Só eram obrigatórias no plano do direito (canónico): (i) quando se deviam a título de censo ou de outro contrato; (ii) quando se deviam por testamento ou legado; (iii) quando os mínistros da Igreja carecessem de côngruo sustento, caso em que os paroquianos podem ser compelidos sob pena de excomunhão; (iv) quando estivessem introduzidos por costume de, pelo menos, dez anos (Barbosa, 1623, I, cap. 24, n. 23 ss.).

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(44) Note-se, porém, que estas aquisições estavam interditas pelas Ordenações (Ord. fil., II, 18), que proibiam qualquer aquisição de bens por contrato e obrigavam a Igreja e pessoas eclesiásticas a vender no prazo de ano e dia os bens adquiridos por qualquer outro título (cf. Sampaio, III, 18, p. 64 ss.). Esta norma foi, porém, pouco praticada; daí a reacção que suscitou a ameaça de a executar à risca, feita, como medida de chantagem sobre a Igreja, durante o valimento de Olivares. Era, por exemplo, frequente que a Igreja recebesse bens em domínio pleno e apenas alienasse, por meio de contratos de enfiteuse, o domínio útil, mantendo, portanto, as rendas. Note-se ainda como a aplicação desta lei, que obrigava à venda dos bens de raiz adquiridos e proibia a aquisição de outros bens imóveis com o produto da venda, produziria enormes quantidades de dinheiro líquido nas mãos das entidades eclesiásticas; o que explica a sua propensão, quer para despesas sumptuárias ou de consumo (também caritativas), quer para a colocação do dinheiro em padrões de juro (embora a distinção, para este efeito, entre juros e outras rendas periódicas, fosse pouco nítida na doutrina; decisivo era o critério da ligação da renda a algum bem imóvel). (45) Pelo rigor do direito, eram devidas mesmo de actividades ilícitas e torpes, como o meretrício ou as comédias, embora não estivesse em uso cobrá-las. Já os lucros usurários, eram sujeitos a décima (Barbosa, 1623, I, cap. 28, § 1,31-33). (46) Decretais, m, 30, 7; 22; 26; 28. Discutindo a questão, Barbosa, 1623, ibid., ns. 35-37;-Lobão, 1819,32 ss. O princípio da tributação do rendimento líquido é adoptado, em Portugal, pelas décimas civis, quando adoptadas; nos finais do Antigo Regime, há quem pretende estendê-lo aos tributos forais e mesmo aos cânones enfitêuticos e censíticos (cf., supra, 2.3). (47) Era o caso dos cistercienses, templários e hospitalários, dominicanos, franciscanos, cartuxos, clarissas, etc., quanto às terras que cultivassem pelas próprias mãos (mas já não pelas que dessem de colonia) (Barbosa, 1623, I, cap. 28, § 2, n. 18 s. (48) Nos finais do século XVIII, verifica-se um movimento de paróquias das dioceses de Braga e Porto no sentido de os fiéis não poderem ser constrangidos a pagar as oblatas. A questão chega à Rainha que, num decreto em que aflora claramente uma política de protecção dos paroquianos contra as exacções eclesiásticas, manda que se faça silêncio sobre a questão, enquanto não se tomassem medidas definitivas, cujo estudo encomenda ao Arcebispo de Braga (dec. 30.7.1790, Lobão, 1819, 129. (49) Segundo Lobão (Lobão, 1819, 124), uma lei de 1515 fixou a funerária numa certa quota da terça (ou quota disponível, de que o de cujus pode livremente dispor), lei que teria sido revogada em 1640, tendo subsistido os costumes locais sobre os ofícios devidos e o seu custo, consoante a natureza do falecido. O poder temporal tenta restringir as exacções eclesiásticas. Uma provisão de 1712, dirigida aos provedores, proibiu que se forçassem os herdeiros a pagar sufrágios e obras pias não estabelecidas pelos defuntos. E uma lei de 25.6.1766, fixa as despesas com sufrágios e funerárias numa quantia “racionáveis, e conforme ao direito” (Lobão, 1819, 126 ss.). (50) Das despesas funerárias, uma parte era obrigatoriamente para o pároco, a título de retribuição do seu trabalho: era a “quarta funerária”, por se ter fixado o seu montante numa quota parte das despesas funerárias e em obras pias (Barbosa, 1623, c. 25).

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(51) A sua jurisdição sobre os monges é semelhante à dos bispos nas respectivas dioceses (Fragoso, 1641, II, lib. 11, disp. 24, n. 1). (52) É a lição de S. Tomás: “foemina non potest habere aliquam jurisdictionem spiritualem [...] non habent clavem ordinis, aut jurisdictionis”; (as mulheres não podem ter qualquer jurisdição espiritual [...] pois não têm a chave da ordem ou da jurisdição); no mesmo sentido, diz Baptista Fragoso que a abadessa só tem o governo doméstico e que monjas que lhe desobedeçam pecam da mesmo forma que as filhas. Por carecerem de jurisdição, as abadessas não podiam benzer nem pregar. Todavia, os bispos ou provinciais podem cometer às abadessas, em caso de urgente necessidade, poderes de impor preceitos sob penas espirituais (Fragoso, 1641, II, lib. 11, disp. 24, § 6, n. 9).

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3. AS COMUNIDADES

Objectivos da aprendizagem Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de: •

Definir os fundamentos doutrinais e jurídicos da autonomia política das comunidades locais (concelhos);



Identificar os principais cargos concelhios e as suas atribuições;



Avaliar o equilíbrio entre o poder da coroa e os poderes comunitários, nomeadamente quanto à capacidade normativa, ao controlo dos oficiais locais e à autonomia financeira.

3.1 Os fundamentos doutrinais da autonomia de governo das comunidades territoriais A questão das relações entre o espaço e o poder fora objecto de reflexão desde a Antiguidade. Aristóteles tinha relacionado o carácter dos homens com os dados geográficos e climáticos. E, na Política, existem também algumas sugestões sobre esta interdependência entre as características do meio físico e o sistema constitucional das cidades. Na Idade Média, por sua vez, imaginou-se uma relação íntima entre os vínculos da natureza e os vínculos políticos. E, por

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natureza, entendia-se não apenas os laços familiares, mas também os laços que ligavam alguém ao torrão que o vira nascer, à sua “pátria”. Isto explica a naturalidade com que era aceite a ideia de que um grupo vivendo conjuntamente tivesse um governo próprio e autónomo, que incluiria a capacidade de estabelecer as suas próprias leis. “Os povos – tinha escrito Baldo353 – existem por direito das gentes [= direito natural], pelo que o governo dos povos é de direito natural; mas este governo não pode existir sem leis nem estatutos. Portanto, pelo mesmo facto de que os povos existem, têm os povos em si mesmos a capacidade de governo, tal como qualquer animal se rege pelo seu espírito e alma”. Baldo tomava, aqui, “povo” no sentido geral de comunidade territorial, mesmo de âmbito menor do que o reino. Daqui decorria que esta capacidade de se governar a si mesmo (iurisdictio) e de editar as suas normas jurídicas próprias (iura propria, direitos próprios; statuta, estatutos) era geralmente atribuída a qualquer comunidade humana com identidade territorial própria, desde a aldeia ao reino (aldeia(l), cidades(2), comarca(3), provincia(4)). No espaço de um reino, esta generosa atribuição de prerrogativas políticas colocava a questão de compatibilizar a jurisdição dos corpos territoriais inferiores com a jurisdição real. Francisco Suarez (n. 1548), um dos mais destacados juristas-teólogos da Segunda Escolástica, autor de um im-

353 Citado por F. Calasso, Medioevo dei diritto, Torino, UTET, 501.

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portantíssimo tratado sobre as leis (De legibus ac Deo legislato, Coimbra, 1612), fá-lo distinguindo dois tipos de comunidades, as perfeitas, que se bastam a si mesmas354 , e as imperfeitas, que necessitam do concurso de outras para o desempenho das suas funções sociais. Só as primeiras disporiam de um poder legislativo ilimitado (pleno). Quanto às segundas, o princípio geral era o de que todas as comunidades territoriais “cidades” teriam capacidade de legislar (i. e, de editar estatutos), desde que proporcionada ao âmbito da sua jurisdição (ou seja, relativamente aos seus vizinhos, às coisas situadas no seu território, aos actos aí praticados, aos crimes aí cometidos) e respeitasse as competências legislativas reservadas ao príncipe 355 . De qualquer modo, prossegue Suarez – agora em polémica com a anterior posição de Baldo no sentido da existência de uma jurisdição natural em todos as comunidades territoriais –, os estatutos das cidades que tenham reconhecido um superior e para ele tenham trespassado o seu poder político originário necessitam de aprovação do príncipe; aprovação que pode ser conferida caso a caso, por lei geral ou pelo uso e costume longamente praticados. Como se vê, Suarez, contemporâneo das grandes monarquias da Época Moderna, não pode já aceitar uma doutrina tão generosamente pluralista e descentralizadora como a de Baldo; daí que exclua dos poderes de estatuição das 354 E a que corresponderiam os reinos e aquelas cidades (como as repúblicas de Veneza, de Génova, etc.) que não reconheciam superior (qui superiorem non recognoscunt). 355 Suarez, 1612, III, c. 9, n. 17.

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comunidades as matérias reservadas ao príncipe (regalia). Mas, sobretudo, que exija o acordo deste para conferir validade aos estatutos locais. Em todo o caso, como se contenta com um acordo tácito, indiciado por um uso longo e inveterado dos estatutos sem oposição do príncipe, isto equivale a admitir que este tem que respeitar o direito longamente usado nas comunidades locais, ou seja, a sua organização, os seus costumes, os seus estatutos356 -357 .

3.2 Posturas, costumes locais e lei Em Portugal, todas estas questões foram tratadas pelos juristas. Porque, apesar de não se conhecerem, aqui, pretensões de autonomia absoluta das cidades (dos concelhos) em relação à coroa, o que é certo é que não eram raros os conflitos em tomo das prerrogativas da coroa e dos seus magistrados (nomeadamente, dos corregedores) quanto aos ordenamentos jurídicos locais (posturas, costumes). Quanto à capacidade estatutária das cidades, a questão estava resolvida nas próprias Ordenações. Na verdade, o tit. I, 66, pr., dispunha que competia aos vereadores (à câmara) ter o “carrego de todo o regimento da terra [...], porque a terra e os moradores dela possam bem viver”, especificando depois (§28 ss.) que “proverão as posturas, vereações e costumes antigos da cidade, ou villa; e as que virem são

356 As mesmas restrições se notam quanto à questão de saber se o direito ou os estatutos locais podem revogar a lei geral. V. Hespanha, 1994, II.A. 357 Sobre as relações entre direitos próprios e direito comum, v. supra, III.

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boas, segundo o tempo, façam-as guardar, e as outras emendar. E façam de novo as que cumprir ao prol e bom regimento da terra”. Claro que se podia pôr a questão (doutrinal) de saber se este poder estatutário era originário ou dependente de concessão régia. Mas, fosse como fosse, ele estava estabelecido na lei, impondo-se, também nos termos da lei, aos oficiais régios. De facto, as Ordenações também dispunham que “as posturas, e vereações, que assim forem feitas [i. e., com audição da câmara, segundo um processo estabelecido no §28], o corregedor da comarca não lhas poderá revogar, nem outro oficial ou desembargador nosso, antes as façam cumprir e guardar” (§29). O rei, esse sim, poderia alterálas se as julgasse inconvenientes, como podia alterar a lei; por isso se determinava que os corregedores, no caso de depararem com algumas posturas, “prejudiciaes ao povo e bem comum” dessem disso conta ao rei, presumindo-se que ele escreveria à câmara insinuando a revogação delas, ou mesmo que as revogaria ele próprio. Apesar deste reconhecimento da capacidade estatutária dos concelhos, o direito continha certas regras limitativas. Por um lado, as posturas não poderiam contemplar matérias cuja regulamentação estava reservada ao rei (regalia), como a criação de monopólios (estancos) ou a imposição de tributos gerais. Por outro lado, estando a capacidade de autogovemo dos concelhos ordenada ao bem particular da terra, não poderiam estes editar normas de âmbito geral. Por fim, as posturas não poderiam ofender direitos concedidos

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em geral, nem tomar ilícito o que, aliás, fosse lícito358 . É a partir destas regras que se estabelece a casuística daquilo que as câmaras podiam ou não regular por postura359 . O carácter aparentemente humilde dos temas regulados não nos deve iludir quanto à importância destas normas nas comunidades locais. De facto, que há de mais decisivo para a vida de comunidades agrárias do que essas questões de águas, de pastos, de regimentos dos mercados e das actividades económicas de que tratam as posturas?

Gráfico 1 – p. 161 no original

358 Mas admitia-se que, obtido o acordo geral, nos termos prescritos nas Ordenações (I,66,28), se estabelecessem penas e multas, se proibisse ou obrigasse à venda, se estabelecessem regimes obrigatórios de pasto, de rega, etc. Cf. Hespanha, 1994, II.4. 359 Cf. Pegas, 1669, ad I,66,28, c. IV; Fragoso, 1641, I, 1, 7, d. 19,§ 1.

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Uma outra questão era a de saber se as posturas podiam contrariar a lei geral. As Ordenações (I, 66, 29) declaram nulas as posturas que “forem feitas, não guardada a forma” nelas estabelecidas (i. e., as feridas de vício formal, quanto ao seu processo de feitura: v. g, não votadas em câmara). Mas não estende o mesmo princípio às que contradigam o disposto na lei régia. Em todo o caso, a doutrina interpretava esta disposição extensivamente, extraindo daqui o princípio de que as posturas “não podiam contradizer as leis superiores”. (Pegas, 1669, v. ad 1,66,28, c. VII, n. 2). No entanto, a ficção de que as posturas vigoravam com o acordo tácito do rei, Uma vez feitas com o concurso dos juízes locais, representantes do monarca, jogava neste caso a favor do direito local, mesmo que contrário à lei geral. De facto, a postura contra o disposto na lei seria como que uma derrogação, feita com o acordo tácito do rei, de uma norma geral para um certo âmbito local, mantendo com o direito do reino a mesma relação que, em termos gerais, o direito próprio mantinha com o direito comum360 -361 .

3.3 Magistrados e oficiais Um outro aspecto do autogoverno era constituído pela autonomia concelhia na escolha dos magistrados e oficiais locais, bem como pela forma autónoma e plena com que

360 Hespanha, 1994, II.4. 361 O mesmo tipo de questões se punha em relação aos costumes locais, cf. Hespanha, 1994, II.4.

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estes desempenhavam as suas funções. Explicar uma e outra coisa supõe, no entanto, uma breve descrição das magistraturas, órgãos e ofícios dos concelhos. (ver gráfico) Podemos sistematizar os oficiais locais em várias categorias. A primeira será a dos oficiais de governo. Deles fazem parte, desde logo, os oficiais de governo, que integram a câmara concelhia. Comecemos pelos vereadores. De acordo com as Ordenações Filipinas (I, 66), compete, em geral, aos vereadores “ter cargo de todo o regimento da terra, e porque a terra, e os moradores della possão bem viver” (Ord. fil., I,66, pr.)(5). Os vereadores eram eleitos pelos homens bons do concelho pelo sistema dos pelouros descrito nas Ordenações362 , embora a prática se afastasse, por vezes, do sistema legal. Basicamente, o sistema era o seguinte: seis “eleitores”, escolhidos de entre os mais aptos pela elite local, elaborava uma lista das pessoas “que mais pertencentes lhes parecerem para os carregos do concelho”363 . Confrontadas as listas e apurados os que mais votos tinham para cada magistratura ou ofício, os seus nomes eram escritos numa nova lista (“pauta”) e tirados à sorte364 os conjuntos de ma-

362 Ord. fil., I, 67. 363 Ou seja, para juízes, para vereadores, para procurador, para tesoureiro, para escrivão da câmara, para juiz e escrivão dos órfãos (onde fossem feitos por eleição) ou para quaisquer outros oficiais que costumassem ser eleitos (Ord.fil., I, 67, pr.). 364 Pelo sistema de “pelouros”, bolinhas de cera nas quais se metia um papelinho com o nome de um conjunto de juízes, vereadores, etc.

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gistrados ou oficiais para o próximo triénio. Os não sorteados ficavam para os triénios seguintes, até se esgotarem os nomes constantes da “pauta” (cf. Ord. fil., I, 67). Como se vê, este sistema garantia aos notáveis locais (meliores terrae, “gente da governança”) a ocupação ou distribuição das magistraturas por apaniguados seus. Nalgumas terras, normalmente nas mais importantes, a escolha final parece ter passado a ser, frequentemente, feita na corte (Desembargo do Paço), para onde eram enviadas as pautas365 . Noutras terras vigoravam costumes locais diferentes. Noutras, ainda, eram os senhores que nomeavam as justiças, embora esta faculdade carecesse de doação régia expressa. Quer a escolha fosse local ou não, os vereadores e as “justiças” do concelho, uma vez investidos, tinham uma área autónoma de competência prevista na lei e garantida pelo direito contra a usurpação. E, na legislação e jurisprudência seiscentista e setecentista, são frequentes as determinaçães no sentido de se respeitar a autonomia desta área jurisdicional. Tais determinações dirigiam-se, nomeadamente, aos corregedores ou aos poderosos locais, assim como – por ocasião das guerras da Restauração e da consequente tendência para a militarização da administração, pelo menos nas zonas de guerra – aos governadores de armas das províncias. Mas também existem testemunhos de independência das câmaras em

365 Sobre a evolução do sistema de eleições e justiças durante os séculos XVII e XVIII, V. Hespanha, 1994, II.4.

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relação aos donatários, inclusivamente àqueles que as nomeavam ou confirmavam. Os três366 vereadores, com os juízes e, eventualmente, com os mesteres, formam a câmara. Ao lado dos vereadores, e eleitos pelo mesmo sistema, existiam os almotacés367 , com competência especializada no domínio do abastecimento e da regulamentação edilícia. Eleito era, ainda, o procurador do concelho368 , a quem competia agir em nome deste em juízo ou fora dele369 . Estes ofícios concelhios são “honorários”. Ou seja, são desempenhados por titulares eventuais (e não de carreira) escolhidos pelas populações e, em princípio, não remunerados. O interesse do desempenho dos cargos estaria, então, no prestígio que lhes era inerente. Mas também, num plano menos imaterial, nas possibilidades de, usando da situação de preeminência social e política que eles garantiam, obter vantagens económicas diversas370 . A panóplia dos oficiais “políticos” do concelho (na acepção do termo na Época Moderna) era completada com os escrivães da câmara e escrivães da almotaçaria e com uma série de funcionários subalternos. Quanto ao escrivão da câ-

366 Nas terras mais pequenas é muito comum haver apenas dois vereadores (e um só juiz, em vez de dois). 367 Ord. fil, I, 69. 368 Ord. fil, I, 69. 369 Ord.fil., I, 70, 2. 370 Sobre os tipos de vantagens auferidas pelos magistrados camarários, v. Hespanha, 1994, II,4.

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mara371 , era o escrivão ordinário do concelho, encarregado de reduzir a escrito o expediente da vereação. O escrivão da almotaçaria, por sua vez, era o funcionário encarregado de escrever perante os almotacés, nomeadamente em matéria de coimas e achadas, de almotaçaria, de pesos e medidas(6). Um outro grupo de funcionários locais era o dos oficiais de justiça. Dele faziam parte, desde logo, os juízes, cujas funções372 ultrapassavam aquilo que hoje se entende ser a função jurisdicional. De facto, para além das funções de administração da justiça373 , os juízes tinham atribuições no domínio da manutenção da ordem374 , da defesa da jurisdição real375 , da contenção dos abusos dos poderosos376 , da polícia (das estalagens 377 ; das batidas aos lobos378 ; para além de deverem assistir os vereadores e almotacés379 no exercício da sua jurisdição especial em casos de injúrias a almotacés. A legislação extravagante vai progressivamente confiar-lhes novas atribuições, nomeadamente aos juízes de fora, que, com os 371 Ord.fil., I, 71. 372 Ord.fil., I, 68. 373 No domínio das funções jurisdicionais, competia aos juízes a jurisdição ordinária do concelho, julgando definitivamente dentro das suas alçadas (valores destas: Ord. fil., I,68,4 ss.) e dando apelação e agravo, daí para cima, para a Relação do distrito. Além do título das Ordenações que vimos citando, há legislação avulsa sobre os juízes. A principal pode ser encontrada em Thomaz, 1843, S.V. “juiz”. 374 Ord. fil., I, 68, ns. 3 ss., 13 a 15 e 39 ss. 375 Ibid., n. 16. 376 Ibid., n. 17. 377 Ibid., n. 20. 378 Ibid., n. 21. 379 Ibid., n. 23 ss.

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corregedores, são, em Portugal, os pivots periféricos da administração real(7). Os juízes podiam ser, como se sabe, oficiais honorários – não letrados, eleitos pelos povos de acordo com o processo previsto nas Ordenações a que já nos referimos, não remunerados – ou oficiais de carreira – letrados, e de nomeação régia. No primeiro caso, estamos perante os juízes ordinários; no segundo, perante os juízes de fora. Contrariamente a uma ideia corrente, as justiças de uma esmagadora maioria dos concelhos eram, ainda nos séculos XVII e XVIII, justiças honorárias. Nos meados do séc. XVII, havia 65 juízes de fora num total de mais de 850 concelhos, o que corresponde a dizer que apenas 8% das terras com jurisdição separada tinham justiças de carreira. Nos restantes concelhos existiam os dois juízes da Ordenação, não letrados e honorários380 . Durante a segunda metade do século XVIII, o número dos juízes de fora aumenta, mas nunca ultrapassando a quota de 20% (Monteiro, 1993, p. 310). Das estruturas do oficial ato da justiça local faziam ainda parte, os tabeliães e escrivães, os contadores, distribuidores e inquiridores e outros oficiais menores (porteiros, carcereiros, etc.). A função dos tabeliães ou escrivães naturalmente, a de reduzir a escrito os actos jurídicos ou judiciais. As

380 Um dos argumentos tradicionais das teses que descrevem o sistema político moderno como “centralizado” é justamente a da substituição dos juízes ordinários por juízes de fora, de nomeação régia. O que acaba de ser dito mostra até que ponto tais teses são, pelo menos neste particular, infundadas.

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Ordenações distinguem os tabeliães das notas, encarregados de redigir os instrumentos jurídicos que carecessem de fé pública (Ord. fil., I,78) e os tabeliães judiciais, encarregados da redacção dos actos judiciais praticados perante os juízes locais (Ord. fil., I,79) (8)381 . Embora a maior parte dos actos jurídicos não fosse reduzida a escrito382 , os tabeliães desempenhavam, neste mundo local, um importante papel de difusão de fórmulas e princípios (em versão vulgarizada) da cultura jurídica local. O mesmo papel de mediação que, no domínio da cultura religiosa, era desempenhado pelos párocos. Não admira, portanto, que as fontes da época os descrevam frequentemente como verdadeiros centros do poder institucional local, enquanto assessores dos juízes e consultores jurídicos dos particulares. Os contadores (Ord. fil., 1,91) são os oficiais encarregados de contarem as custas dos processos. Os inquiridores (Ord. fil., I,86) inquirem as testemunhas. Os distribuidores (Ord.fil., I,85), por sua vez, têm a função de distribuir as escrituras ou os feitos entre os vários tabeliães do concelho, para evitar que a concorrência entre eles promova formas de angariação de clientes contrárias à deontologia e ao interesse geral. Trata-se, em todos os casos,

381 O exercício da profissão está sujeito a exame pelo Desembargo do Paço, destinado a verificar “se bem escrevem, e bem leem, e se são pertencentes para os officios” (“Reg. dos desembargadores do Paço”, no fim do liv. I das Ord. fil., n. 71), sendo-lhes passada carta pelo mesmo tribunal (n. 56), embora o depósito do seu sinal público seja feito na relação do distrito (Ord. fil., I,44; cf., ainda, para as terras senhoriais, Ord.fil., II,45,16). 382 Sobre o tema e suas consequências histórico-culturais, Hespanha, 1994, 439ss.

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de ofícios de carreira, de tipo patrimonial (como os dos tabeliães) e de rendas exclusivamente emolumentares(9). Aderindo a este mundo dos oficiais locais, os advogados, quer os formados em Direito, quer os procuradores ou advogados do número, que, na linha dos antigos vozeiros medievais, asseguravam a representação judiciária no processo judicial tradicional e não letrado383 . Do mesmo tipo eram os chegadores das demandas ou avindores, cuja função era a de promover o acordo entre as partes384 . Um outro ramo do oficialato local, ainda próximo do anterior, é o dos órfãos. As Ordenações dispõem, de facto, que, em todas as terras com mais de 400 vizinhos, houvesse magistrados encarregues da cura dos interesses dos órfãos, em homenagem à ideia de que ao poder competia a protecção daqueles que, em virtude de uma diminuição da sua capacidade (capitis deminutio) ou de condições sociais concretas, não estavam capacitados para assumir pessoalmente a defesa dos seus interesse (incapazes, pessoas colectivas, pobres, viúvas, órfãos, dementes, pródigos, ausentes e, até, defuntos)385 . O principal dos oficiais dos órfãos era o juiz dos órfãos, eleito nos termos em que os eram os juízes ordinários. A ele competia organizar o cadastro dos órfãos e vigiar a

383 Cf. Ord. fil., I, 48. V. sobre estes últimos oficiais e sobre a apreciação que deles fazia a doutrina erudita, V. Hespanha, 1994. 384 Cf. o regimento que lhes foi dado em 20.1.1519, citado por José Anastácio de Figueiredo, Synopsis chronologica, I, 231/2. 385 Cf., para o nosso direito, os comentários de Pegas, 1669, VII (ad I,87). Fragoso, 1641, I,lb. 6, d. 15.

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administração dos seus bens pelos respectivos tutores (ns. 3 e 22), organizar os inventários de menores (n. 4 ss.), prover quanto à criação, educação e casamento dos órfãos (n. 10 ss.) e julgar os feitos cíveis em que fossem parte órfãos, dementes ou pródigos e os feitos sobre inventários e partilhas em que houvesse menores (n. 46 ss.)386 . Auxiliares dos juízes dos órfãos são os escrivães dos órfãos (Ord. fil., I,89) que devem manter o registo dos órfãos (n. 3), escrever nos inventários (n. 4), nos assentos das tutorias (n. 4), nos contratos sobre bens dos órfãos até certa valia (n. 5). Passando para o domínio fiscal, encontramos, ainda nos quadros do oficialato local, os ofícios das sisas. Os oficiais das sisas estão, em geral, previstos nos regimentos das sisas dos séculos XV e XVI (cf. supra 1.3.2. e II.4)(10). Em virtude do regime de encabeçamento das sisas – pelo qual os concelhos (na verdade, apenas cerca de um terço deles) tinha contratado com a coroa o lançamento e cobrança das sisas a troco da prestação de uma quantia fixa anual (“cabeção das sisas”) – toda a actividade de lançamento e de cobrança das sisas, bem como a própria actividade contenciosa daqui decorrente, era da responsabilidade dos órgãos concelhios, que deviam promover o processo de arrendamento, repartição e cobrança do tributo (Regimento de 1572, c. 1 ss.), por intermédio de oficiais por eles apresentados387 . Na falta destes, os

386 Dava apelação para a Relação do distrito (Ord. fil., I,88,46). 387 Para a escolha dos juízes das sisas cf. cap. 31 dos Artigos de 1476.

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agentes da administração activa, no domínio das sisas, eram, portanto, os próprios oficiais do concelho, recorrendo-se também às justiças concelhias para a execução dos revéis no pagamento do tributo (Regimento de 1476, c. 31)388 . Neste capítulo das sisas, o caso de Lisboa é particular. Aí, as sisas eram cobradas em repartições especiais (“casas”, “Sete casas”) cada qual dedicada a certos tipos de mercadoria. Do mesmo modo, os seus aparelhos administrativo-burocráticos são também diferentes (e mais completos)389 . Um último grupo de oficiais locais é constituído pelos oficiais militares. A organização das milícias locais, ou ordenanças data dos finais do século XVI (regimento de 10.12.1570)390 . Aí se dispunha que, sob o comando supremo do capitão-mor (normalmente, o alcaide-mor da terra), servisse a antiga milícia concelhia, agora organizada em companhias de ordenança às ordens de capitães, alferes e sargentos, eleitos pelos oficiais da câmara e gente da governança (n. 1 ss.). Estamos, como se vê, perante uma organização militar – de resto pouco efectiva antes das guerras da Restauração(11) – de carácter miliciano, sujeita a oficiais honorários e em que as tropas locais não estavam integradas em qualquer cadeia permanente e organizada de comando. Nem sequer em relação aos 388 Detalhes suplementares em Hespanha, 1994, II.4 e II.5 a). 389 Descrição detalhada em Hespanha, 1994, II.4. 390 Publicado em Pegas, 1669, XII, 264 ss. (com diplomas complementares); Soisa, 1783, v. 183 ss. (com outros diplomas dos sécs. XVI, XVII e XVIII sobre a organização militar).

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alcaides-mores dos castelos (cf. Ord. fil., I, 74), pois, além de que as alcaidarias não formavam uma malha contínua, a sua importância efectiva decaíra muito a partir do século XV, com o advento de novas concepções de estratégia militar.

3.4 Magistrados, oficiais, finanças e autogoverno A amplitude do autogoverno dos concelhos mede-se também pelo grau de autonomia do exercício das atribuições destes oficiais. Daí que importe fazer o balanço da sua autonomia ou dependência institucional. Começando pelos juízes. Os juízes concelhios eram os juízes ordinários na área concelhia. Isto quer dizer que lhes competia, em geral, a jurisdição sobre todas as causas, excluídas apenas as que fossem da competência de um juiz especial (como, v. g., o juiz dos órfãos ou o juiz das sisas). Esta jurisdição era exercida com grande autonomia. De facto, não tinham que receber ordens de qualquer magistrado régio (ou senhorial, no caso de terras de donatários), nomeadamente do corregedor. Este apenas podia, em relação aos juízes, verificar se estes cumpriam os seus regimentos, administrando a justiça honestamente e nos termos das Ordenações (cf. Ord. fil., I, 58, 1-6). Mas das sentenças dos juízes apenas se podia recorrer, nos termos do direito, para as Relações respectivas391 . Isto quer dizer que, em Portugal (ao

391 Esse recurso era obrigatório, oficiosamente (“por parte da justiça”), nas causas crime de maior gravidade, que não podiam, portanto, ser definitivamente sentenciadas a nível local.

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contrário do que acontecia em Castela ou em França), as justiças concelhias funcionavam de modo absolutamente independente, com recurso a magistrados eleitos localmente. E, como a competência jurisdicional dos juízes superava amplamente as matérias propriamente judiciais, tal autonomia de decisão era também o sinal de uma autonomia jurisdicional de âmbito mais vasto. A autonomia dos concelhos na eleição dos seus magistrados é um outro dos pontos que caracterizam a autonomia local, mas menos decisivo do que o anterior. Na realidade, que as magistraturas concelhias fossem formalmente nomeadas por uma entidade estranha ao concelho (em geral, o rei ou o senhor) não diz grande coisa sobre onde residiam efectivamente os centros de decisão, nem impede que, depois de eleitas, estas gozem da ampla autonomia jurisdicional antes mencionada, ficando desvinculadas da entidade que as designou e, em contrapartida, sujeitas ao controlo dos restantes órgãos concelhios392 . Um outro aspecto da autonomia da vida institucional local era o da provisão dos ofícios municipais. Embora houvesse uma polémica sobre o assunto, a doutrina dominante entendia que, ainda que a concessão dos ofícios camarários pudesse ser do rei, as câmaras gozavam, em princípio, do privilégio de os prover, privilégio que apenas podia ser revo-

392 Cf., sobre este ponto, Hespanha, 1994, II.5.

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gado nos termos gerais (ou seja, ocorrendo uma justa causa relacionada com a suprema utilidade pública)393 . Por último, um factor de autonomia ou dependência política eram as finanças. Neste plano, a base da autonomia concelhia era que o concelho pudesse fazer frente aos seus gastos com recurso às receitas próprias. Apesar de, durante os séculos XVII e XVIII, ter havido momentos de crise financeira que atingiram também os concelhos, o certo é que as instituições concelhias dispunham de uma capacidade de resistência à crise maior do que as da administração central. Nestas, de facto, o volume dos gastos (com salários e despesas fixas de funcionamento) era relativamente grande e incomprimível. Enquanto que, nos concelhos, como uma administração honorária ou paga com emolumentos, as despesas fixas eram muito menores, pelo que o aparelho político-administrativo se podia adaptar melhor aos períodos de penúria394 .

3.5 O controlo do centro Existiam, é certo, vínculos institucionais que colocavam os concelhos sob um certo controlo da coroa. Estes vínculos consubstanciavam-se na acção de algumas das magistraturas da administração periférica da coroa, nomeadamente na área do governo político, da justiça e da fazenda.

393 Cf. alv. 28.2.1634 (JJAS). Detalhes em Hespanha, 1994, II.5 e V.3. 394 Monteiro, 1994, 322 ss..; Rodrigues, 1992.

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No domínio do governo político, os concelhos estavam sujeitos à tutela do Desembargo do Paço, que a exercia por intermédio dos corregedores (cf. Ord. fil., I,58)395 . Eram estes magistrados – de que se falará mais detidamente ao descrever a administração periférica da coroa – que superintendiam na administração política dos concelhos, verificando se ela decorria de acordo com as leis e regimentos. Esta superintendência decorria, no entanto, sob a forma de uma tutela externa e não de um verdadeiro poder de direcção; daí que os corregedores, se podiam verificar a legalidade da administração do concelho, não podiam, no entanto, dar instruções aos seus órgãos, nem tão pouco avocar as suas competências 396 . Em face do que acaba de ser dito, parece lícito concluir-se que a eficácia dos corregedores como instrumentos de subordinação político-administrativa do reino era relativamente modesta, pelo menos em confronto com outras experiências europeias de constituição de níveis periféricos da administração régia. Experiências que, como veremos, são a fonte de inspiração da nova política da administração inaugurada nos meados do século XVIII397 .

395 V., para mais detalhes, Hespanha, 1994 II.5 c). 396 Salvo nos casos em que isto era permitido por lei, como, v. g., no caso da avocação as acções judiciais em que fossem partes poderosos locais ou, em geral em relação a qualquer acção, enquanto estiver na terra (Ord. fil., I, 58, 22-23). 397 Nas terras senhoriais isentas de correição, este controlo da coroa não tinha lugar. Nem os ouvidores senhoriais aí assumiam as funções dos corregedores. Na verdade, entendia-se que apenas tinha sido doado o privilégio de isenção de correição real, mas não o de os ouvidores senhoriais exercitarem os poderes de correição; v. infra, IV.4.

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Outro instrumento régio de controlo da administração real eram os provedores, encarregados de tutelar a cura dos órfãos e de outras entidades que o direito considerava feridas de incapacidade, de que o rei era um supremo protector (confrarias, capelas, hospitais, cativos, defuntos e ausentes) (cf. Ord. fil., I, 62). Em relação aos órgãos concelhios, tutelavam a actividade dos juízes dos órfãos (Ord. fil., 1,62,34/5); dos tabeliães, em matéria de “resíduos” (i. e., de bens deixados por morte para os quais não houvesse sucessor); dos tesoureiros dos concelhos em matéria de rendas concelhias (Ord. fil., 1, 62, 67 ss.); e dos restantes oficiais concelhios em matéria de obras (cf. Ord.fil., I, 62, 71)398 . Como contadores, estavam encarregados da inspecção das finanças dos concelhos, nomeadamente para garantir que estes pagavam à fazenda real a “terça de obras” (v. Ord. fil., I, 62, 67 ss.; 72 ss.). Tal como acontecia com os corregedores, as relações entre os diversos níveis desta estrutura não eram, porém, de hierarquia administrativa (de “direcção”), mas antes de tutela, em que o funcionário de escalão superior se limita a controlar a actividade do de escalão inferior por meio da reapreciação dos seus actos aquando de recurso ou da inspecção ou residência. Também dos juízes de fora se poderia dizer – e efectivamente isso foi dito – que desempenham a mesma função de controlo, tanto no plano do direito como no do governo

398 V., para mais detalhes e indicações de fontes, Hespanha, 1994, II. 4.

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(já que eles presidiam à câmara). Não sublinharemos, no entanto, este aspecto, pois o estatuto do juiz de fora é igual, no que respeita à sua autonomia em relação a cadeias hierárquicas, ao do juiz ordinário, estando ambos apenas sujeitos a um controlo indirecto, ou através dos mecanismos do recurso, ou através da sindicância periódica destinada apenas a verificar da observância das obrigações impostas pelo regimento399 . Também a tentativa de transformar os juízes de fora em supervisores dos juízes eleitos das terras vizinhas não vingou até muito tarde. D. João I ensaiara-o, com o argumento de que era provável que estes últimos não “pudessem fazer direito”. Mas, face às reacções, desiste do seu intento (cf. Ord. af., II, 59,6). Durante o século XVIII, formou-se a prática de alguns juízes de fora exercerem jurisdição sobre concelhos vizinhos menos importantes (concelhos anexos ou “concelhinhos”), prática que é coonestada, para os casos em que existisse, pelo alvo de 28.1.1785 (ADS, loc. resp.). Apesar disso, o juiz de fora apenas de forma muito indirecta servia o controlo dos poderes periféricos pelo poder central (cf., infra, IV.5.1.).

3.6 O poder municipal nos fins do Antigo Regime O pombalismo400 significou, no plano do imaginário e das estratégias de poder, a abertura – que depois se continuará no liberalismo político – de estratégias de “racio-

399 Sobre a residência (sindicância ou inspecção) dos juízes de fora e dos corregedores, feita por um desembargador nomeado pelo rei, v. Ord.fil., I,58, 31 ss.; I, 60. 400 Sobre o seu sentido político e ideológico, v. infra II.1 e Dias, 1982.

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nalização” e de disciplina da sociedade e de centralização e estadualização do poder. Ou seja, de construção de uma sociedade regida por normas abstractas, visando o interesse geral e disciplinada por um poder único e exclusivo, de que todos os outros eram meros reflexos ou manifestações. Foi por isso que, se, no plano da organização social, reagiu muito fortemente contra todas as formas de “irracionalidade”, no plano da organização política procurou exterminar todas as manifestações de pluralismo político, reduzindo os anteriores pólos políticos (pelo menos os mais visíveis) a simples delegações do poder do centro. O poder municipal não constituía uma excepção. O modo negativo como se encarava a administração concelhia, movida por interesses particulares, dominada pelo arbítrio e pelo irracionalismo, privada das luzes das novas ciências da sociedade, está bem expressa, por exemplo, em todos os preâmbulos legislativos onde se procede a reformas territoriais(12) ou em que se criam juízes de fora. Num alvará de 4.2.1773, em que se cria um lugar de juiz de fora, referem-se as perturbações, que costumam nascer do governo de juízes ordinários, e de magistrados naturais das mesmas terras, nos quais, além de faltar a ciência do direito para a boa direcção dos negócios, acrescem as paixões, que costumam produzir o amor e o ódio, em grave dano do bem comum dos povos.

Noutro, de 23.7.1766, em que se regula a administração dos baldios pelas câmaras, denuncia-se a irracionalidade e egoísmo dos critérios utilizados 271

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repartindo-se entre si, seus parentes e amigos, os vereadores, e mais pessoas que costumam andar nas governanças, por foros e pensões muito diminutas; praticando estas lesivas alienações debaixo de pretextos na aparência úteis, e na realidade nocivos ao progresso, e aumento da lavoura, e criação dos gados, à subsistência dos povos, e aos importantes objectos, a que foram aplicadas as rendas dos concelhos.

Num outro (de 28.8.1766, em que se revoga a isenção de correição do couto do mosteiro de Arouca), relatam-se de forma pitoresca os abusos dos poderosos e a incompetência e dependência das justiças locais: se acha administrada a justiça por juízes ordinários, não só leigos; ficando os delitos mais graves sem a competente satisfação por falta das precisas averiguações, e dos justos procedimentos; e nas causas cíveis preterida toda a ordem do judicial; e as decisões dellas sujeitas às paixões da afeição, ou ódio; mas ainda rústicos, que apenas sabem pôr o seu nome, e por isso dirigidos pelos advogados, escrivães, e outros oficiais de justiça da vila, que se têm coadonado com outras pessoas seculares, e eclesiásticas poderosas para satisfazerem as suas paixões, e interesses; de sorte que por um abuso neles inveterado de não observarem as leis, divinas, e humanas, nem obedecerem às minhas justiças, se têm precipitado em tais atrocidades.

Se consultarmos a literatura reformista dos finais do século, o quadro de críticas é ainda mais expressivo. o governo económico de um povo – escrevia um dos magistrados encarregados da reforma territorial, em 1795401 – pede um

401 José de Abreu Bacelar Chichorro, Memoria economico-politica da província da Extremadura [1795], ed. Moses Bensabat Amzalak, Lisboa, 1943, 101.

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manejo muito delicado, cheio de diversas combinações, e de uma muito regulada prudência, de que são incapazes (falo ordinariamente) os vereadores, e mais pessoas de que se compõem as tais câmaras para se lhe abandonar a regalia de legislarem sobre objectos de tanta importância. Uma semelhante liberdade, concedida pelas nossas leis, é incompatível com o sistema de um governo monárquico, e própria somente ou dos antigos povos livres das cidades hanseáticas ou os cantões suíços, em que cada um deles goza da autoridade suprema; mas alheia e insuportável dentro de uma nação polida, em que o rei é o único legislador.

E, depois destas considerações em que se aponta aquilo com que o racionalismo e o estadualismo emergentes não podiam contemporizar (irracionalidade administrativa, pluralismo político), remata-se com uma proposta radical, mas muito característica: As câmaras deveriam ficar, desde logo, privadas de toda a jurisdição, reduzidas a simples corpos representativos, aonde se debaterião os interesses públicos, económicos e políticos, e os seus assentos seriam enviados ao magistrado territorial, a quem tocaria a sua execução402 .

Às críticas nem sequer escapavam os concelhos sujeitos a juízes de fora403 , o que prova aquilo que antes se disse sobre a incorrecção que seria considerar estes magistrados, com o estatuto que tinham, como instrumentos de centralização do poder. Um outro publicista da mesma época, autor

402 Ibid., 102. 403 Cf. Ibid., 93.

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de uma memória sobre a comarca de Leiria404 , segue a mesma linha, censurando a generosidade com que as leis e ordenações tinham atribuído às câmaras uma jurisdição, nomeadamente uma capacidade de legislar, “mais própria para o governo das cidades livres da Holanda ou dos cantões suíços, cada um dos quais tem o seu poder legislativo, do que para Portugal, aonde não pode haver outro legislador que não seja o mesmo soberano”. O projecto, aqui, é o de incumbir S. Magestade a direcção geral da Economia Publica a hum Ministro de Estado que por meio dos intendentes provinciais faça observar, em todo o reino, as suas reais determinações nesta matéria. Estes ministros poderiam ter nas diferentes vilas dos seus distritos uns comissários ou subdelegados, que observando as suas instruções e cumprindo as ordens dos soberanos, se não afastassem jamais do uniforme plano que tivesse formado para o nosso governo interior. As câmaras ficariam sendo, então, o que elas deveriam ser: uns corpos representativos da cidade ou vila, para requererem e procurarem tudo o que pertencesse ao público.

Mas, mesmo reduzidas as câmaras a isto, o plano ainda lhes guardava uma última gota de fel: Os comissários, que seriam as pessoas mais inteligentes das terras, passariam depois a camaristas, ou vereadores, já instruídos das intenções de S. Majestade. As novas Luzes instruiriam

404 Lourenço José dos Guimarães Moreira, “O espírito da economia política naturalizado em Portugal e principalmente em Leiria”, pub. em Memória económicas inéditas (1780-1808), Lisboa, Ac. Ciênc. de Lisboa, 1987, 337-414; e em Política, administração, economia e finanças públicas portuguesas (1750-1820), ed. José V. Capela, Braga, Univ. do Minho, 241-2.

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os seus colegas; o povo conheceria, então, os verdadeiros interesses. A nação inteira reuniria os seus esforços para o bem: ela encheria de bençãos o monarca, autor da sua felicidade405 .

Em todo o caso, estes ousados planos não terão execução antes das reformas liberais (de 1832). No período pombalino e mariano, os progressos de facto institucionalizados acabam por ser pequenos. São, é certo, criados muitos lugares de juízes de fora (cerca de 40 entre 1750 e 1800). São ensaiadas, como se disse, algumas reformas territoriais. Proíbe-se que os vereadores mais velhos (“juízes pela Ordenação”) dos concelhos em que há juízes de fora conheçam definitivamente das causas durante a ausência deles, devendo esperar o seu regresso para que lhes seja posto termo (alv. 5.9.1774). Em todo o caso, a providência de maior vulto é tomada em 1785 (alv. de 18.1), quando se estabelece que os juízes ordinários dos concelhos sujeitos à tutela de um juiz de fora não possam despachar os feitos, por si ou por assessores, antes devendo mandá-los “aos juízes de fora, a qualquer das villas, em que existirem, para os despacharem”, limitando-se a publicar as sentenças. Se efectivamente aplicada, esta providência limitaria as atribuições dos juízes ordinários ao âmbito das decisões de mera gestão burocrática e executiva do processo. Em contrapartida, uma providência um pouco posterior, isenta os concelhos da suprema inspecção do Intendente-Geral da Polícia, então cri-

405 Ibid., 28.

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ado e erigido em peça chave da polícia interior do reino (aviso de 29.1.1798).

Bibliografia citada * COELHO, Maria Helena Cruz, O Poder Concelhio. Das Origens às cortes constituintes, Lisboa, C.E.F.A., 1986. DIAS, José Sebastião da Silva, “O sentido político do pombalismo”, História e filosofia, 1982), pp. 45-114. FIGUEIREDO, José Anastácio de, Synopsis chronologica [...] da legislação portuguesa (1143-1549), Lisboa, 1790,2 vols. FRAGOSO, Baptista, Regimen Republicae Christianacae, Elaborae, 1641. * HESPANHA, António Manuel, As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal- século XVII, Coimbra, Almedina, 1994. MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “As comunidades territoriais”, in J. Mattoso (coord.), História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, vol. V (“O Antigo Regime”, dir. A. M. Hespanha), pp. 303-332. PEGAS, Manuel Álvares, Commentaria ad Ordinationes Rgeni Portugalliae,Ulysipone, 1669-1703, 12 (+2) tomos. RODRIGUES, Luís Nuno, “Um século de finanças municipais: Caldas da Rainha (1720-1820) ”, in Penélope, 1992, pp. 49-70. * SILVA, Ana Cristina Nogueira da, e A. M. Hespanha, “O quadro espacial”, in J. Mattoso (coord.),História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, vol. V (“O Antigo Regime”, dir. A. M. Hespanha), 1993 pp. 39-48, (abrev. A. D. S.) SILVA, António Delgado, Collecção de legislação portuguesa [1750-1820], Lisboa, 1825-1830. SILVA, José Justino de Andrade e, Collecção chronológica de legislação portuguesa (1603-1711), Lisboa, 1854-1859, (abrev. J. J. A. S.) SOISA, José Roberto M. C. c., Sistema dos regimentos reais, 1783, Lisboa 6+3 vols. SUAREZ, Francisco, Tractatus de legibus ac Deo legislatore, Coimbra, 1612.

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THOMAZ, Manuel Femandes, Repertorio geral ou indice alphabetico da legislação extravagante [...], Lisboa, 1843.

Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com *. Notas (1) Pagus ou villa é a povoação onde não há nem governo nem tribunal próprio, ou seja, o agregado desprovido de autonomia jurisdicional. Quanto muito, pode existir algum magistrado ou oficial, com poderes delegados pelos magistrados da circunscrição político-administrativa em que se insere. Em Portugal, aldeias eram os “casais”, “lugares” ou, mesmo, as freguesias (que apenas tinham organização político-administrativa eclesiástica). No entanto, as Ordenações (Ord. fil., I, 65, 73/4) previam a existência de juízes vintaneiros ou pedâneos, delegados dos juízes ordinários do concelho, em aldeias maiores, com atribuições judiciais sobre causas de pouco valor. (2) A cidade é a circunscrição com autonomia de governo. O direito conhecia uma gradação entre elas, consoante o âmbito dessa autonomia (cf. Hespanha, 1993, II.3). Na época moderna, o título de cidade era atribuído apenas a certos aglomerados urbanos dotados de certa grandeza, definida por diversos critérios, dos quais se destacava o ser sede de bispado (cf. Hespanha, II.3). Em termos mais gerais, porém, cidade era qualquer povoação com jurisdição separada, ou seja, com autonomia de governo e de jurisdição; a que correspondia, no plano institucional, um órgão de governo colectivo (em Portugal, uma câmara e juízes). Logo, o que a doutrina jurídica diz, em geral, para as civitates aplica-se, entre nós, aos concelhos. (3) A comarca corresponde ao âmbito territorial da jurisdição de um corregedor (“correição”). Rigorosamente, não compreendia as terras isentas de correição. Mas, na linguagem vulgar, a palavra correição designava um território contínuo encabeçado pelo cabeça de correição (cujos limites coincidiam com os da provedoria respectiva), ainda que dentro dele existissem terras senhoriais isentas. Cf. Hespanha, 1994. Sobre a graduação das comarcas, cf. infra, IV.4. (4) A “província” era, em geral, a circunscrição atribuída à jurisdição de um magistrado. Em todo o caso, o termo aplicava-se também a uma circunscrição com uma identidade apenas “naturai”, proveniente das características do ambiente físico e do temperamento das suas gentes. Em Portugal, as províncias (Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e Algarve) não tinham expressão institucional, salvo, a partir dos meados do séc. XVII, no domínio militar (governadores das províncias). Cf., sobre o conceito de província, Hespanha, 1994, sobre a sua identidade corográfica, cf. Silva, 1993. (5) Competência que a lei (Ord. fil., I, 66), seguidamente, miudamente especifica, em atribuições do domínio político (defesa das jurisdições do concelho, n. 13; elaboração ou modificação de posturas, n. 28 ss.); do domínio económico – no sentido alargado que a palavra tem na linguagem política moderna (guarda e gestão dos bens do concelho, ns. 2, 6, 12; supervisão das obras do concelho, n. 24; fomento da arborização, n. 26; garantia do abastecimento, n. 8; tabelamen-

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to dos preços e dos salários, n. 32 s.); do domínio financeiro (decidir sobre despesas do concelho e fazê-las escriturar, propor aos corregedores ou Desembargo do Paço o lançamento de fintas, gerir fundos especiais, ns. 35 ss., 40 ss., 44 ss.); do domínio judicial (julgar os feitos de almotaçaria e de injúrias verbais, n. 5). Para enumeração exaustiva e comentário, Pegas, 1669, cit., t. 5 (ad Ord. fil., I, 66). (6) Dos restantes funcionários da administração concelhia ocorrentes nas fontes, referiremos, como oficiais menores ou executivos, o meirinho do concelho, encarregado de fazer executar as decisões dos órgãos dos concelhos e de fazer observar as posturas e regimentos locais; o porteiro do concelho, encarregado das relações entre a câmara e o público ou outros órgãos; o tesoureiro do concelho (Ord.fil., I, 70), encarregado de arrecadar as receitas do concelho e de efectuar as suas despesas; os recebedores, cobradores, mordomos. Como oficiais especializados, os escrivães e almoxarifes das achadas, que se encarregavam, em alguns concelhos, de parte das funções dos escrivães da almotaçaria (escrivaninha do gado achado nos lugares e tempos defesos), os escrivães e recebedores das feiras – provavelmente, ou oficiais encarregados de escreverem e receberem as taxas concelhias pagas pelos feirantes, ou oficiais encarregados da escrituração e arrecadação das sisas (inclino-me para a primeira hipótese) –, os oficiais das fontes (escrivães, mestres, olheiros) ou das obras (escrivães, meirinhos, vedores). (7) V., por exemplo, a provisão de 13.1.1580, que os encarrega do lançamento das sisas; o regim. de 23.1.1643 (art.º 10.°), que lhes comete a superintendência da cobrança do real de água; a C.R. de 15.12.1644 que lhes comete a substituição dos provedores nas terras da rainha. No séc. XVIII, com a intensificação da política de controlo da periferia, chovem sobre eles novos encargos: vigilância do contrabando, da edição de panfletos satíricos, julgamento dos feitos da alfândega na falta de juiz próprio, inspecção dos passaportes, arrecadação do subsídio literário, delegados locais do intendente de polícia, julgamento dos feitos das coutadas, etc. (8) Uma ideia do tipo de actos praticados pelos tabeliães e notários e da frequência de cada um destes tipos na época a que nos reportamos pode ser facilmente colhida na publicação Index das notas de vários tabeliães de Lisboa entre os anos de 1580 e 1747, Lisboa 1931-1935,4 vols.; ou em “Índice dos livros de notas do escrivão Christovam d’ Azevedo”, Boletim de trabalhos históricos. Arquivo municipal Alfredo Pimenta, 18(1956), 188; 19(1957),183; 23(1963) 1005; 24(1964) 100; 25(1965) 147. (9) Aparecem, finalmente, outros oficiais subalternos das justiças concelhias. Os carcereiros (Ord. fil., I,77) são os mais frequentes. Mas, no mesmo ramo de actividade, existem também os levadores dos presos, encarregados do transporte dos presos, nomeadamente para as cadeias comarcãs. Mais raros são os escrivães das aldeias e os escrivães dos testamentos, espécie de desdobramento dos escrivães notariais e judiciais do concelho, com funções nas aldeias mais distantes ou isoladas (cf. Ord.fil., I,78,20). (10) Artigos das sisas, de 27.9.1476 (em Soisa, 1783, I, cit., 205); Regimento do encabeçamento das sisas de 5.6.1572 (Ibid., 278 ss.). Sobre a problemática da data e edição destes regimentos, Figueiredo, 1790, I, 109 e 236 ss. (11) Logo nas cortes de Tomar de 1580, quer a nobreza, quer os povos, pedem a extinção dos alardos e dos ofícios das ordenanças pelas “vexações” e “opres-

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sões” que traziam aos povos (cap. XXX III do povo e XIII da nobreza). Também Manuel Severim de Faria recomendava a isenção de serviço militar como um dos privilégios com os quais se podiam motivar os lavradores para aumentar as suas culturas (cf. “Arbitrios pera a abundancia de pam em Portugal”, intr. e notas de V.M. Godinho, em “Rev. de hist. Econ. e soc.”, 5(1980), 108). São as grandes reformas militares de D. João IV que modificam radicalmente a organização honorária da milícia (regimentos das ordenanças, retomando a regulamentação sebástica, de 1642; criação da Junta dos Três Estados controlo financeiro e logístico das tropas; decreto de 18.1.1643 e regimento de 9.5.1654, JJAS; regimento do Conselho de Guerra, de 22.12.1644 – cf. Pegas, 1669, XII, 279 ss. e JJAS.; regimento das fronteiras, de 29.7.1645 – cf. Soisa, 1783, v. 416 ss.; regimento dos governadores de armas de 1.1.1650 e de 1.6.1678 – fundamental que, com os que instituem o Conselho de Guerra e a Junta dos Três Estados, cria uma estrutura permanente de comando e controlo financeiro e logístico, J.J.A.S., 59; Pegas, 1669, XII, 284 ss.; Soisa, 1783, v. 180 ss. O carácter revolucionário desta nova estrutura militar fica expresso nos problemas políticos e militares que causou e que levaram à extinção, em plena guerra, dos governadores de armas, a pedido dos povos (em 13.3.1654; cf. JJAS). (12) Existem tentativas de micro-reformas territoriais durante todo o período pombalino, muitas vezes relacionadas com planos de fomento económico (v.g., do Alto Douro e Trás-os-Montes duriense, em 6.4.1759); Açores, em 2.8.1766; Algarve, em 18.2.1773). Só mais tarde, por volta de 1790, se projecta uma reforma territorial geral (cf. Fernando de Sousa, “Portugal nos fins do Antigo Regime (Fontes para o seu estudo)”, Braccara Augusta, 31 (1977); José M. Amado Mendes, Trás-as-Montes nos fins do séc. XVIII segundo um manuscrito de 1796, Coimbra, 1981, “Introdução”, 1 ss.

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4. OS SENHORIOS

Objectivos da aprendizagem Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de: •

Equacionar a problemática da caracterização como feudal ou não do regime político-institucional dos senhorios portugueses;



Definir “direitos reais”, “jurisdições”, “bens da coroa”;



Identificar e definir os diferentes poderes e atribuições atribuíveis aos senhores;



Descrever os traços gerais de constituição e transmissão dos senhorios;



Distinguir entre senhores e meros donatários da coroa;



Delinear as linhas gerais de evolução da política da coroa em relação aos senhorios.

4.1 Introdução A historiografia político-institucional tradicional desvalorizou, em regra, a importância dos poderes senhoriais. Primeiro, pela resposta que dava à questão da existência ou não de um regime “feudal” em Portugal (v. infra). Depois,

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pela leitura que fazia da legislação e da política da coroa em relação aos senhorios durante a Época Moderna (i.e., grosso modo, a partir de D. João II)406 . Comecemos por uma breve alusão à questão do “feudalismo”. A expressão “feudalismo” foi utilizada, ainda no século XVIII, para descrever o sistema político português. Iluministas e liberais servem-se, nomeadamente, dela (com do adjectivo “gótico”) para classificar aquilo que, no plano político, consideravam contrário ao modelo político das nações “polidas e iluminadas”. Pascoal de Melo, por exemplo, usa-a, com um tom fortemente negativo, para classificar as prestações forais. Mas é no século XIX, na seqüência da obra do espanhol Francisco de Cárdenas (Ensayo sobre la historia da la propriedad territorial en España, 1873-1875) e do ensaio de Alexandre Herculano, “Da existência ou não do feudalismo nos reinos de Leão, Castela e Portugal” (Opúsculos), que o debate se situa no campo historiográfico. Herculano e Gama Barros (História da Administração Pública ..., I p. 162 ss.), fundando-se na não obrigatoriedade do serviço militar nobre, na não hereditariedade das concessões de terras aos senhores (v. infra), no uso excepcional da palavra “feudo”, na permanência de laços de vassalagem “geral” ligando todos os “naturais” do reino directamente ao rei e na conse406 Para Portugal, o panorama mais recente do regime senhorial na Época Moderna é o dado por Monteiro, 1993 (com indicações bibliográficas; v. outra bibliografia em Hespanha, 1992).

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quente existência de direitos reais inseparáveis da pessoa do rei (regalia majora), negavam a existência de feudalismo em Portugal. Já no século XX, Paulo Merêa e Torquato de Sousa Soares aderiram a estes pontos de vista, ficando estabelecida, entre nós, a opinião de que o modelo português (em geral, ibérico) de organização política na Idade Média era específico – um modelo “senhorial”, mas não “feudal”. Deve notar-se que esta visão historiográfica se adequava bem à ideologia dominante nos círculos conservadores portugueses dos séculos XIX e XX, pois sublinhava um alegado papel unificador, regulador e arbitral da coroa, semelhante ao que ela desempenhava no “cartismo” ou ao que cabia ao Estado, quer no modelo liberal, quer na concepção autoritária de Estado do corporativismo. Estes pontos de vista contribuíram para disseminar a ideia da reduzida relevância do poder senhorial no conjunto do sistema político português, já na Idade Média, mas, sobretudo, na Época Moderna. Os anos sessenta deste século são marcados, em Portugal, pela historiografia marxista. Em 1963, Álvaro Cunhal publica um ensaio sobre história medieval portuguesa (“La lutte de classes en Portugal à la fin du moyen âge”, Recherches internationales à la lumiere du marxisme, 37, (1963) pp. 93-122; trad. port. 1974); aí, as especificidades do modelo jurídico são pouco consideradas, defendendo-se, com base nos traços do modelo económico-social, o carácter feudal da sociedade portuguesa medieval; apesar de clandestino até 1974, este texto influencia a medievística subsequente (A. H. Oliveira

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Marques, Armando de Castro, António Borges Coelho, e o autor deste texto). No plano dos mecanismos de apropriação do produto económico, começa-se a realçar (por vezes com algum exagero) o peso do quinhão senhorial407 . Mas, no plano jurídico-político, é só na minha História das Instituições, 1982, que, pela primeira vez, se trata com detalhe a armadura jurídica dos senhorios e se ensaia um movimento de revalorização do poder senhorial, enquanto componente do sistema político português da Época Moderna408 . Pouco depois, José Mattoso409 reavalia de forma nova a questão do feudalismo na monarquia medieval, salientando a importância do modelo ideológico feudal (fidelidade vassalática, par serviço-benefício, linhagem) na organização interna dos grupos sociais dominantes. A importância destes valores tem sido confirmada, para a Época Moderna, por investigações mais recentes, de que se destacam as de Nuno Monteiro410 . É este o pano de fundo, caracterizado por ingredientes teóricos e ideológicos, que explica o evoluir das ideias sobre a importância do poder senhorial na historiografia portuguesa. Noutro lugar411 , avaliei de forma mais detalhada os argumentos em que se baseia a posição tradicional do declínio do regi407 E, consequentemente, a importância das lutas antisenhoriais dos finais do Antigo Regime (cf. Silbert, 1972). 408 A inspiração teórica vinha de Max Weber e de Otto Brunner; mas levava-se, também, a cabo uma revisão da teoria marxista, sublinhando a importância dos factores não económicos na caracterização dos modelos sociais, nomeadamente no “feudalismo tardio” (cf. Hespanha, 1982,1,92 ss.). 409 Mattoso, 1985, I, 47 ss. 410 Cf., como síntese, Monteiro, 1993. 411 Hespanha, 1994.

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me senhorial em Portugal a partir do século XV. Para aí remeto os leitores, aproveitando aqui apenas a conclusão geral. É, porventura, no plano simbólico ou ideológico que a tese da decadência do poder senhorial nos inícios da Época Moderna melhor se justifica. Na verdade, a doutrina deste período – é certo que na esteira de tópicos anteriores – atribui ao rei um papel central e eminente no seio do sistema do poder político. A própria legislação está impregnada deste conceito do poder real. Não apenas nas suas fórmulas (que exprimem a superioridade, o senhorio eminente e o poder “absoluto” do rei); mas também nos seus conteúdos, quando considera como essencialmente reais certos direitos (Ord. fil., II, 26), certos tratamentos (v. g., “Nosso Senhor”, Ord. fil., II, 45, 3), certas prerrogativas (v. g., nobilitar e conceder cartas de brasão, Ord. fil., II, 26; ter “relação” ou “decidir por acórdão”, Ord. fil., II, 45, 4; exercer a correição, Ord. fil., II, 45, 8, etc.). Embora seja difícil encontrar uma norma destas que não tenha sido dispensada em favor de algum senhor, não se pode ignorar o seu papel na conformação de uma certa visão do poder. Mas, mesmo o plano simbólico também é mais complexo, não se esgotando neste aspecto do papel do rei no seio do sistema político. Abrange também o papel aí reservado aos elementos nobiliárquicos e senhoriais. E, neste ponto, cumpre salientar que a ideologia moderna sempre estabeleceu uma relação íntima entre a monarquia e os estratos senhoriais, como elementos interdependentes, de tal modo que a força e 285

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prestígio da primeira repousava na força e prestígio dos segundos. O casticismo e aristocratismo da sociedade barroca peninsular reforçarão ainda o peso simbólico dos estamentos nobiliárquicos-senhoriais412 . Por muita atenção que o simbolismo mereça, como elemento conformador das relações políticas, o que é certo é que o núcleo das relações políticas se formaliza ao nível institucional. E, a este nível, os mecanismos praticados do poder contradizem, como veremos mais detidamente, as mais rotundas das afirmações doutrinais. Concentremo-nos, por isso, nas questões institucionais, descrevendo os traços mais característicos do regime jurídico e político dos senhorios. Começaremos por definir o âmbito ou conteúdo dos poderes senhoriais. Seguidamente, procuraremos averiguar a importância ou extensão – em termos geográficos, demográficos, económicos, estratégicos – dos domínios senhoriais.

4.2 O regime político-jurídico dos senhorios A caracterização dos senhorios portugueses da Época Moderna decorre do regime jurídico relativo à sua constituição, ao seu âmbito e à sua transmissão. Nos seus aspectos jurídico-institucionais, o regime senhorial português entronca numa antiga tradição de textos

412 Sobre estes aspectos, como elementos do complexo de mecanismos políticos da corte, Hespanha, 1993b.

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jurídicos, que se inicia nos Libri feodorum [livros dos feudos], uma colectânea de direito feudal lombardo dos séculos XI e XII, normalmente editada conjuntamente com o Código de Justinianeu. Na Península, o primeiro tratamento do direito dos feudos aparece nas Siete partidas (c. 1265, bem conhecidas em Portugal no século XIV). Aí se define o feudo como “bien fecho que el Senhor faze a algun ome, porque se torne su vassalo; e el faze omenaje del ser leal” (Part., IV, 26)413 . O passo seguinte fixa-se no foro de Espanha e nos correspondentes castelhanas das concessões feudais: a “terra” seria o correspondente ao “feudo de câmara”, a concessão de uma prestação económica, livremente revogável; já a “honra” seria o correspondente à concessão irrevogável (salvo o caso de falta grave dos deveres do feudatário) de bens de raiz. Ao contrário do que acontecia no direito feudal comum, os vassalos castelhanos não estariam obrigados a serviços concretos, especificados no pacto feudal, mas apenas a uma obrigação genérica de serviço leal. Esta ideia da especialidade do regime vassalático peninsular fez curso. S. Tomás (De rebuspublicis et principum institutione) também a corrobora, afirmando que, nas Espanhas, e principalmente em Castela, todos os principais vassalos do rei se chamavam ricos-homens, pois o rei daria a cada barão uma quantia, de acordo com os seus méritos, não tendo a maior parte 413 A definição dos feudistas era a seguinte: “o feudo é uma concessão livre e perpétua de uma coisa imóvel, ou equivalente, com a transmissão do domínio útil, retendo a propriedade, com prestação de fidelidade e exibição de serviços” (Curtius, Baldo).

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deles jurisdições ou meios militares que não os concedidos pelo rei. De onde decorreria a sua dependência, nomeadamente económica, em relação a este. Não é líquido que esta imagem literária de um regime senhorial mais dependente da coroa aqui do que no resto da Europa correspondesse à situação real. Num mundo escasso em registos cuidados das situações vividas, era fácil esta disseminação de imagens baseada unicamente na autoridade dos textos em que apareciam. O que é certo é que ela se perpetua, nomeadamente nos textos legais e doutrinais portugueses dos finais da Idade Média e da Época Moderna. Em Portugal, é a Lei Mental (Ord. man., n, 17; Ord. fil., II, 35) que fixa, desde os inícios do século XV, o regime das concessões vassálicas, em termos bastante próximos das concessões feudais do direito comum. Aplica-se apenas às concessões com obrigações de serviço nobre, excluindo – tal como a doutrina do direito comum – as concessões contra uma prestação económica (como as enfitêuticas, cf. Ord. fil., II, 35,7). Quanto ao serviço, adopta o “costume de Espanha” referido nas Partidas, estabelecendo (Ord. fil., II, 35, 3) que o donatário não seria obrigado a “servir com certas lanças, como por feudo, porque queria que não fossem havidas por terras feudatárias, nem tivessem a natureza de feudo, mas fosse obrigado a servir, quando por elle fosse mandado”. Quanto à devolução sucessória, afastouse o direito feudal lombardo compilado nos libri feudorum,

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que permitia a divisibilidade dos feudos, e adopta414 a solução da indivisibilidade e primogenitura. Depois, consagra a exclusão da linha feminina, em consonância, também, com a solução das Partidas. A Lei Mental favoreceu, por fim, o princípio de que os bens da coroa, embora doados, nunca perdem essa natureza, não podendo ser alienados pelos donatários sem licença régia (Ord. fil., II, 35, 3). Pouco depois, no tempo de D. João II, estabeleceu-se a regra de que as doações deviam ser confirmadas, quer à morte do donatário, (confirmação por sucessão), quer por morte do rei (confirmação de rei a rei). Dois outros títulos das Ordenações (Ord. af., II, 24; II, 40; Ord. man., II, 15; II, 26; Ord. fil., II, 26; lI, 45) interessam à definição das relações feudovassálicas na Época Moderna. O primeiro lista os direitos reais, ou seja, os direitos próprios do rei; o segundo fixa o princípio de que tais direitos, bem como as jurisdições, não podem ser tituladas senão por carta415 , fixando, suplementarmente, algumas regras de interpretação destas cartas (1). Na prática, a Lei Mental constituiu uma moldura jurídica muito complacente, sendo frequentemente dispensada, no sentido de autorizar a sucessão por linha feminina. Também a política de confirmações foi sempre generosa, mesmo nos momentos de maior tensão política. À sua som414 Decerto por atracção exercida pelo regime da sucessão da coroa e do princípio aristotélico, recebido pelo direito comum, bem como pelos direitos feudais franco e siciliano, de que “as dignidades e jurisdições não se dividem”. 415 Excluindo, portanto, a possibilidade de aquisição por prescrição, admitida pelo direito comum.

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bra, as casas nobres puderam perpetuar-se (amparadas pelo princípio da indivisibilidade, por vezes reforçado com a instituição de morgados dos bens da coroa). Todo este regime entrou em crise nos finais do século XVIII, embora tal crise tivesse sido prenunciada pela política de centralização do poder. A lei de 19.7.1790 aboliu as justiças senhoriais e as isenções de correição; os restantes direitos reais, nomeadamente, os direitos de foral e as banalidades, são abolidos na sequência da revolução liberal. Vejamos, porém, mais detalhadamente, os traços mais característicos do regime jurídico dos senhorios.

4.3 O que é um senhorio Segundo uma definição da época416 , “chamam-se senhores aqueles que estão constituídos em alguma dignidade ou poder; a quem foi concedida alguma terra, jurisdição ou império; ou em relação aos quais o povo é súbdito”. Nesta definição, o elemento chave é poder ou os seus equivalentes na linguagem jurídico política da época – iurisdictio, imperium.

4.3.1 Jurisdição Por iurisdictio (jurisdição) entendia-se, o “poder instituído pela república de dizer o direito e decidir em equidade [enquanto pessoa pública]”(2). Quanto ao imperium, ele é 416 Pegas, 1669, XII, ad II, 45, rubr., gl. 1, n. 2.

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definido como o “poder [de usar a espada] para coagir os homens facínoras”417 . Aperfeiçoamentos conceituais sucessivos levaram a que o imperium acabasse por ser sinónimo de poder de coerção de que um magistrado pode usar oficiosamente, ou em vista da utilidade pública (merum imperium) ou da utilidade de um particular (mixtum imperium)418 -419 . Em suma, senhor era quem dispunha de um poder ou jurisdição sobre outrem conferido pela república. Tal era o uso da palavra segundo o direito feudal e o direito comum. Senhor é Cristo, senhores são os reis ou os príncipes(3), senhor é o pater em sua casa em relação à sua mulher, filhos e criados. Fora disto, a palavra não se devia usar em termos genéricos: “A ninguém se deve chamar meu Senhor, ou Senhor meu, nem nosso Senhor, por serem estes títulos próprios de Deus no Céu, e do Rei na terra, e assim aos Donatários da Coroa, e Senhores de terras, só se pode escrever Senhor

417 Cf. D., 2,1,3 (note-se que o conceito de “espada” se foi desmaterializando, abarcando qualquer tipo de coerção usada ex officio pelo magistrado). 418 Sobre estas classificações v. Hespanha, 1984; Vallejo, 1992, max. 82 ss. 419 É nestes termos que Domingos Antunes Portugal descreve o conteúdo dos dois conceitos: “O mero império [...] consiste no poder supremo de gládio [...]. Assim, diz respeito à coerção dos criminosos, como, por exemplo, à condenação ou deportação e a outras coisas relativas à punição dos delitos e à composição dos litígios [...]. O misto império compete aos magistrados por direito próprio, pois adere e está compreendido na jurisdição [...], por esta razão se dizendo misto, pois está misturado com a jurisdição de tal modo que não se podem separar. E como nesta mistura umas vezes se salienta o império e noutras a jurisdição, costuma-se falar de dois graus de misto império, no primeiro dos quais se compreendem aquelas atribuições em que o império suplanta a jurisdição, como mandar fazer estipulações pretórias ou entregar a posse [...] e no segundo aquelas em que a jurisdição suplanta o império, como dar juízes aos litigantes” (Portugal, 1673,13, c. 44, n. 16).

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de tal terra, porque ainda que destas o seja, não é das pessoas”, (Pegas, 1669). Em todo o caso, senhores podem ainda ser aqueles a quem a república atribuiu jurisdição. O direito comum e feudal tendia a conceber a jurisdição senhorial como ordinária, i. e, decorrente da própria natureza política da sociedade. Os dados específicos do direito português posterior à Lei Mental (v. infra) levavam, porém, a que os nossos juristas realçassem, pelo contrário, o carácter delegado da jurisdição senhorial, considerando os senhores como lugares-tenentes do rei420 . No século XVIII, quando se insiste ainda mais no primado (ou, mesmo, no carácter exclusivo) do poder real em relação a todos os outros poderes, refere-se que era justamente esse carácter delegado dos poderes dos senhores portugueses que levara D. Duarte a sublinhar na Lei Mental (v, infra) o seu carácter não feudal.

4.3.2 Direitos reais Para além das jurisdições, o rei podia também conceder direitos seus, direitos reais (ou regalia). Em rigor, isto não importava a aquisição pelo donatário da qualidade de senhor. Mas apenas da de donatário (ou de donatário da coroa, se os bens doados fossem bens da coroa). Estas distinções exigem algumas precisões suplementares sobre o conceito de direitos reais. As fontes jurídicas dos direitos comum ou régio continham enumerações dos direitos reais (regalia). Isso acontecia 420 Cf. Pegas, 1669, loc, cit., ns, 11 e 43.

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com o texto Quae sint regalia, dos Liber feudorum, incorporados na versão medieval do Corpus iuris, e com as Ordenações (Ord.fil., II, 26; Regimento da fazenda de 1516, c. 237). Basta uma leitura do tit. 26 do livro II das Ordenações para nos darmos conta do carácter heterogéneo dos direitos aqui considerados(4). Referem-se à criação de magistrados e oficiais, de guerra e de justiça; à autorização de duelos; à cunhagem de moeda; ao lançamento de pedidos, fintas e tributos; à exigência de serviços na paz e na guerra421 ; ao domínio das estradas, dos portos422 , do mar adjacente e das suas ilhas423 , bem como das salinas424 e das pescarias425 ; ao domínio das minas426 ; à exigência de portagens e barcagens; ao domínio dos tesouros, dos bens vagos (res nullius) ou que tivessem vagado(5), dos bens dos condenados a confisco e dos infames, bem como os bens que o direito penal considerava perdidos para a coroa; às heranças vacantes, etc(6). No caso português, a lista do tit. II, 26 terminava por uma cláusula geral – “e assim geralmente todo o encarrego assi real, como pessoal, ou misto, que seja imposto pela lei, ou por costume longamente aprovado” (II, 26, 33). Assim, os ju-

421 Aqui se fundava o direito às terças dos concelhos, à expropriação por utilidade pública e à requisição de bens pela mesma razão. 422 Por aqui se justificavam as décimas das alfândegas. 423 Aqui fundavam alguns a pretensão portuguesa e castelhana ao monopólio do comércio com o ultramar. 424 Aqui se fundava o direito de pôr tributos no sal, bem como o domínio real das salinas, salgados e sapais (que muitas vezes eram dadas em sesmaria, para secagem e cultivo, Cabedo, 1601, II, 53). 425 Aqui se fundavam as sisas do pescado e os impostos das almadravas. 426 Aqui se fundava a cobrança de quintos ou outros tributos sobre a mineração.

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ristas(7) procuravam substituir estas enumerações, incompletas, por uma definição. E, assim, definiam os direitos reais como os direitos que competem ao rei enquanto pessoa pública. Distinguiam, assim, os direitos que os particulares (ou o rei, enquanto particular) tinham uns em relação aos outros em virtude de pactos, daqueles que o rei tinha em relação aos vassalos por imposição da lei ou costume. Estavam, em todo o caso, conscientes de que não se tratava de uma categoria homogénea, pois uns procediam “do supremo poder do rei”, outros de um “domínio universal” que este teria sobre o reino, outros do direito originário de conquista, outros de pactos antigos, da prescrição ou costumes longamente usados. Alguns recordam a distinção romana entre aerarium, património destinado à “defesa do estado da república, sua dignidade e salvação”, e fiscum, votado às despesas pessoais ou particulares do príncipe. Mas quase todos reconhecem que as classificações romanas não tinham relevo prático-institucional.

4.3.3 As categorias dos bens e direitos do rei. Bens privados, bens fiscais e bens da coroa Jorge de Cabedo, escrevendo nos finais do século XVI427 , classifica os direitos reais em (i) os que “procedem do supremo poder do príncipe, competindo ao rei ou em razão da jurisdição ou do poder que tem”428 ; (ii) e os que

427 Cabedo, 1601,II, dec. 42. 428 Aqui incluindo a criação de capitães de terra e mar, de magistrados e de oficiais; a autorização de justas e duelos; a cunhagem de moeda (Ibid., n. 4).

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“procedem do domínio universal do rei e lhe competem em razão de tal domínio” 429 . Com esta classificação ex causa efficiente combina-se uma outra ex causa finale, baseada na finalidade a que tais direitos estão atribuídos. Distingue então entre (i) os que “competem ao rei como senhor da coroa do reino, que são desta e de que ele não é senão administrador, visando o sustento do estado da coroa”430 e (ii) os que “o rei tem enquanto privado”(8)431 . Domingos Antunes Portugal432 mantém, basicamente, a mesma sistematização, opondo aos bens privados do rei os seus bens públicos, reais ou fiscais. Depois de aproximar esta classificação da distinção romana entre aerarium e fiscum e de salientar o seu carácter meramente académico(9), identifica os bens públicos com os bens da coroa, salientando a inalienabilidade destes(10) e enumerando as suas principais classes: cidades, vilas e castelos (n. 9 ss.), reguengos (ns. 2629), maninhos (n. 80), sesmarias (n. 91, remetendo para Ord.fil., IV,43,13) e outros (n. 93)433 . A nitidez desta bipartição, que faria incluir nos bens da coroa todo o património real é, no entanto, perturbada pelos dados legais, que se prendiam com o regime especial (quanto

429 Inclui aqui os rios, as vias públicas, os tributos. 430 Incluem os pastos, defesas, montados, matas, baldios, coutadas, granjas e casas de que a coroa tem o domínio directo ou útil. 431 Entre os primeiros, alguns seriam reservados ao rei, que não os poderia alienar (ibid.. n.5). 432 Portugal, 1673,II, c. 4,1 ss.; e III, c.43,1 ss. 433 Enumera as vias, rios, portos, ilhas, bens vagos, bens dos condenados e dos proscritos, padroados, bens dos infames, multas e penas.

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à alienação da coroa, à indivisibilidade e às regras de sucessão) introduzido pela Lei Mental (Ord. fil., lI, 35). Por um lado, as ordenações em que está transcrita a Lei Mental exigem a incorporação formal de certos bens nos “próprios da coroa” (Ord. fil., II, 36)434 (11), de onde decorria que, se não fossem incorporados, não seriam da coroa do reino e não estariam, portanto, sujeitos ao regime da Lei Mental. Por outro lado, as mesmas Ordenações estabeleciam que certos bens – que, nesta classificação de Portugal aparecem incluídos nos bens da coroa – não estavam sujeitos à Lei Mental, podendo ser alienados pelos donatários ou partilhados pelos herdeiros destes, e estando sujeitos ao regime do direito comum. Tal era o caso dos bens dados pelo rei em enfiteuse (que estavam isentos da Lei Mental, regendo-se pelo regime normal da enfiteuse; cf. Ord. fil., II, 35, 7 e IV, 41) e dos reguengos doados em propriedade plena, gratuitamente ou com a obrigação de pagamento de alguma pensão (que podiam ser livremente alienados, Ord. fil., II, 17). Portugal, muito apegado a uma classificação bipartida de longa tradição no direito comum, não cria uma categoria específica para estes bens, limitando-se a dizer que, embora sejam da coroa do reino, não se regulam pela Lei Mental (ibid., III,43,26 e 29) (12). São estes grãos de areia que obrigam juristas seguintes a introduzir alguma complexidade suplementar na classificação.

434 Ou seja, nos livros de tombo do património da coroa existentes na Torre do Tombo.

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Tratamento seguinte mais interessante é o de Manuel Álvares Pegas, no seu tratado sobre a Lei Mental, incluído nos tomos 10 e 11 do comentário às Ordenações. Pegas começa por distinguir, como Portugal, entre património privado (“enquanto pessoa orgânica”) e público (“enquanto rei, e a que chamam domínio da coroa e cuja propriedade respeita à magestade e à coroa”)(13). No entanto, como ele reconhece, as questões que se punham na prática diziam apenas respeito ao património público e, dentro deste, à distinção entre bens da coroa do reino, a que se aplicava a Lei Mental, e bens reais a que esta não se aplicava (n. 4). Do que se tratava, portanto, era de introduzir uma ulterior distinção no seio do património público do príncipe, distinguindo entre “bens patrimoniais e reais dei Rei” e “bens da coroa”. “Ha uns bens da Coroa – escreve Diogo Marchão Themudo – sujeitos à disposição da Lei Mental; outros são bens da Coroa, patrimoniais, que não são sujeitos à Lei Mental: os primeiros são aqueles que são bens da Coroa por sua natureza, como jurisdições, direitos reais, tributos, e aqueles que pela sua real, ou verbal incorporação, são bens da Coroa, e não do Fisco, nem do Príncipe patrimoniais, como os bens vacantes, e confiscados, e os bens dos próprios. E todos os mais por qualquer maneira adquiridos à Coroa, como Capelas, e Morgados, prazos vacantes, que ainda que se chamem da Coroa, não são daqueles bens que estão sujeitos à Lei Mental, ainda que sejam do Rei, e do seu Fisco como Rei, porque somente são as ditas Jurisdições, direitos reais e tribu-

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tos, e o mais que pela real, ou verbal incorporação são verdadeiramente da Coroa [...] inalienáveis e indivisíveis, sujeitos à dita Lei Mental” (in Pegas, 1669, X, p. 18). Passando à enumeração dos bens da coroa, Pegas vaios arrumando numa ou noutra categoria. Era claro que estavam sujeitos à Lei Mental, as cidades, vilas e castelos (ibid., n. 5), os montes maninhos (n. 21), as jugadas (n. 23), os direitos reais enumerados na Ord. fil., II, 26, os foros, rendas e direitos reais concedidos de juro e herdade (n. 24; cf. Ord. fil., II,35,6), os padroados (n. 25; cf. Ord. fil., II,35,5), as jurisdições (n. 26), as alcaidarias (n. 31), as décimas das ilhas (n. 34). Claramente isentos da Lei Mental estavam os bens vagos (n. 8), os bens confiscados (n. 16), as sesmarias (n. 13), os ofícios (n. 30), os direitos a desembargos régios ou as acções por serviços (n. 40)435 -436 .

4.3.4 A doutrina iluminista sobre o património régio No texto, antes citado, de Diogo Marchão Themudo já se encontra in nuce a distinção que mais tarde será feita por Pascoal de Melo Freire, ao contrapor, no âmbito dos bens reais, os bens do erário público (ou da coroa do reino) aos bens fiscais (dominiais ou reguengos). Pascoal de Melo (1,IV,1) procura aproximar-se da distinção romana entre erário público

435 Isto significa que estes direitos em relação à coroa podiam ser livremente transmitidos pelos seus titulares (cf., em todo o caso, Ord. fil., IV, 14). 436 Sobre a classificação de reguengos, capelas e comendas, v. Hespanha, “Os conceitos de património” (artigo a publicar).

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(= bens da coroa) e fisco do príncipe (= reguengos e direitos reais). Mas, nesta época de apogeu de uma concepção “pura” da monarquia e de identificação do soberano com a própria república, o nosso teórico do absolutismo iluminado não deixa de pôr reticências à distinção, que está subjacente aos conceitos romanos, entre “povo” (ou “república”) e príncipe, cada qual titular do seu património público. E, assim, adverte que a distinção romana não costuma existir de forma tão pura nas monarquias, tal como também já entre os romanos, na época do império e do dominado, se corrompera (Melo, 1789a, I,4,1). Na verdade, incorporando-se a república no monarca, os respectivos patrimónios fundiam-se também, não sendo a distinção entre erário e fisco senão uma questão de palavras. É isto que explica, uns parágrafos adiante (I,3,4), quando esclarece que, na linguagem corrente, a distinção entre bens da coroa e fiscais se baseava num uso da linguagem vulgar, que não no rigor do direito. Na verdade, a palavra fisco era usada para designar os bens que tinham vindo à coroa in malam partem (i. e., por motivos maus, como a punição de crimes e indignidades), enquanto que se reservava a expressão “bens da coroa do reino” para os bens incorporados por qualquer outra causa. E, assim, uns e outros deviam ser considerados da mesma forma quanto ao seu regime jurídico. Aparentemente, o que Pascoal de Melo pretende é um alargamento do regime dos bens da coroa a todos os bens fiscais, no âmbito de uma estratégia que o leva a também a

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considerar os ofícios como bens da coroa, sujeitos portanto às normas da Lei Mental (nomeadamente quanto à necessidade de confirmação da sua doação). Esta homogeneização dos direitos reais e a subjacente identificação entre imperante e república, encontra-se, já sem quaisquer hipotecas à tradição romana, em Francisco de Sousa Sampaio (Sampaio, 1793, II, tits. 26 ss.): “por direitos reais entendemos todos os direitos, faculdades, ou possessões, que pertencem ao Sumo Imperante, como tal, e como representante da sociedade”. Nestes direitos se compreenderiam, indistintamente, os direitos que lhe competiam em função da dignidade real, em função da representação que tinham da sociedade (direitos majestáticos essenciais) ou em função de quaisquer pactos ou costumes (direitos adventícios, maxime, bens da coroa) (II, 26, 99, n. b). Nos primeiros compreendiam-se os direitos inerentes à jurisdição régia437 e os direitos que advêm ao rei como representante da sociedade438 . Nos direitos adventícios (dominiais ou “da coroa”), compreendem-se já, sem qualquer distinção, os bens “fiscais, reguengos, jugadeiros, e em geral todos os dominiais” (II, 26,103, n. I). A categoria de bens “do erário” é reservada para os tributos gerais e terças, aplicados à satisfação das necessidades públicas (ibid.). O que se dá, portanto, é a integração, na categoria 437 Criação de magistrados, lançamento de tributos gerais, expropriações e requisições, moedagem (II, 92). 438 Aqui se compreendiam, em geral, as rei nullius ou comuns: as coisas vagas, as estradas, as rendas das pescarias, os portos de mar, os veios de metal, as presas (II,104).

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única de “bens da coroa” de todos os bens e direitos reais; com a única excepção daqueles que, por estarem votados à utilidade pública, têm uma disponibilidade limitada, embora não deixem de ser do rei439 . Alguns anos depois, António Ribeiro dos Santos é ainda mais claro e preciso ao ligar intimamente a ideia de direitos reais à ideia da unidade do poder ou majestade. Daí que António Ribeiro dos Santos distinga, cuidadosamente, a nova da antiga concepção dos direitos do rei: “direitos reaes ou majestaticos [...], ou são os direitos geraes, que emanam da natureza da sociedade civil, e do supremo poder, que nella ha; ou são os direitos particulares, que provém da constituição fundamental do reino”440 . Os primeiros são definidos, a partir da própria ideia de majestade ou soberania (ib. 25), pelo direito público universal ou pelo direito público constitucional (i. e., pela constituição fundamental do reino). Os segundos, que decorrem do “direito público puramente civil”, englobam “os direitos feudais, fiscais e tributários que se deviam aos príncipes, não tanto em razão da majestade, que por sua mesma natureza necessariamente os exigisse, como de senhorio feudal” (ibid., 7). “Os direitos majestáticos – acrescenta – são os que emanam da mesma natureza da sociedade civil e são necessários, íntimos e essenciais à soberania e, como tais, perpétuos e invariáveis. Pelo contrário entre os

439 Antes era costume dizer que eram dos povos. 440 Santos 1844, p. 8.

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direitos reais ha muitos, que são direitos, pelo assim dizer, adventicios, temporarios e variaveis” (ib., 7). A confusão entre um e outro tipo de regalia era normal nos tratadistas anteriores (Santos 1844, 8/9), justamente porque lhes faltava esta nova noção da unidade do poder, de que agora arranca a clareza da distinção441 . Se os direitos reais decorrem da majestade, já se entende que, uns, nunca possam ser separados da pessoa do rei(14); e que, outros, se presumam na sua titularidade, salvo concessão expressa442 . E que, todos, ainda que concedidos, nunca saiam, essencialmente, da esfera de prerrogativas do soberano. É o que explica Pascoal de Melo nas lnstitutiones: “A jurisdição não é própria dos senhores, que apenas a têm do rei; nisto se distinguem essencialmente as jurisdições régia e feudal (Heineccius, Elementa juris germanici, III, 1). Daqui decorre que a jurisdição apenas se possa exercer em nome do rei e de acordo com o seu arbítrio e de tal modo que ele a possa limitar ou revogar [...]” (1789, II,3,39 nota) (15),443 Por outro lado, defende-se agora, contra a doutrina anterior444 , 441 Também Pascoal de Melo os definia correspondentemente no titulo respectivo do Projecto do Novo C6digo: “Ao soberano poder e majestade, que recebemos de Deos todo-poderoso, de reger e governar nossos reinos e estados, estão inerentes certos direitos reaes ou magistérios, necessarios para procurar e manter a felicidade e segurança publica dos mesmos reinos, estados e vassalo deles ...” (Santos 1844, [Dirs. reais] 13). Mas, como nota Ribeiro dos Santos, não deixa de sucumbir perante a confusão comum aos tratadistas anteriores entre direitos reais “naturais” e direitos reais “positivos”. 442 Pascoal de Melo, 1789, II, 2, 42. 443 No mesmo sentido, v. também Sampaio, 1793, III, t. 45, § 169 e nota b. 444 Pascoal de Melo, 1789, II, 3,41 nota, p. 64, in fine, abona-se em Jorge de Cabedo 1601, (II, dec. 38, max., n. 6); mas esta decisão refere-se a uma coisa diferente – a inalienabilidade, por doação ou contrato, de uma regalia majora, a correição.

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que o rei pode sempre revogar as concessões destes poderes, mesmo feitas por contrato, pois o regime da irrevogabilidade contratual de direito comum não vigora quando os contratos têm por objecto direitos públicos e da coroa do reino.

4.3.5 Donatários e senhores Temos, portanto, que na categoria geral de donatários da coroa, cabiam situações diversas, nem todas subsumíveis na situação de senhorio. Assim, podia haver: (i) pessoas a quem o rei tinha concedido, em propriedade, bens não incluídos nos bens da coroa (reguengos, lezírias, sesmarias, morgados, capelas); eram proprietários plenos (ou alodiais), podendo livremente transmitir a outrem, inter vivos ou mortis causa, o domínio pleno ou domínio útil destes bens; (ii) pessoas a quem o rei tinha concedido, em enfiteuse, bens da coroa445 ou não, contra o pagamento de um foro, com finalidade de exploração agrícola (ad habitandum ou ad excolendum)(16); tratava-se de situações enfitêuticas normais, reguladas pelo direito comum e não pela Lei Mental (cf. Ord.fil., II, 35, 7); (iii) donatários, não enfitêuticos, de bens da coroa (tais como foros e outras rendas perpétuas, direitos de foral, mono-

445 Estes bens são da coroa, mas não estão sujeitos ao regime especial de inalienabilidade e indivisibilidade prescrito na Lei Mental (cf. Pegas, 1669, XI, c. 28, p. 62).

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pólios, relêgos, barcagens e portagens, tributos, direitos de padroado); tratava-se, então, de donatários da coroa, sujeitos ao regime estabelecido na Lei Mental; (iv) donatários de jurisdições, comportando, nomeadamente, o poder de julgar; tratava-se, aqui sim, de senhorios. (v) donatários de bens das ordens militares; não sendo bens da coroa, apesar da incorporação nesta da administração das ordens militares nos meados do século XVI, discutia-se, ainda na segunda metade do século XVII, sobre se estavam sujeitas à Lei Mental(I7); já na segunda metade do século XVIII, entendia-se que as comendas eram bens da coroa, sujeitos ao regime da Lei Mental (cf. Melo, Inst. iur. civ., II, 3, 47); por vezes, as comendas continham, para além de dízimas e terças446 , capitanias de castelos e jurisdição civil e militar. Neste último caso, podiam ser consideradas como senhorios. Como delegados ou vigários do rei, os senhores estavam, por direito comum, subrogados nos seus poderes e direitos. Sempre, todavia, com a limitação de que nunca poderiam exercer aqueles direitos reais inseparáveis da pessoa do rei, a que acima nos referimos (regalia maiora, regalia quae ossibus proncipis adhaerent). Em todo o caso, o regime português dos senhorios continha limitações maiores na aquisição, 446 Referimo-nos, não às terças “dos concelhos”, mas às terças das dizimas eclesiásticas, concedidas aos reis de Castela e de Portugal pelo Papa (Cabedo, 1601, p. 2, dec. 63).

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exercício e transmissão dos direitos senhoriais. É disto que se tratará em seguida.

4.4 A constituição dos senhorios Um dos pontos em que o direito nacional se afastara do direito comum e mesmo do direito dos reinos vizinhos da Hispania(18) fora o dos títulos de constituição dos senhorios. Enquanto que o direito comum, reflectindo o acentuado pluralismo político do feudalismo da Europa central-ocidental, era muito favorável ao alargamento do poder senhorial, o direito português, sobretudo a partir dos fins do século XIV, tendia para uma acentuada parcimónia no que respeita aos títulos de constituição de senhorios. A partir da Lei Mental, o princípio que, como vimos, vigorava nesta matéria era o de que a aquisição de direitos reais ou de bens da coroa tinha que ser titulada por um acta escrito e expresso (doação, sentença, inquirição), princípio que se fundava no texto das Ordenações (Ord. fil., II, 45, 1/ 213/6/9/10/11/34/35/56; II, 27,2)447 . Este princípio comportava consequências várias. A primeira dizia respeito à admissibilidade da prescrição como título aquisitivo de prerrogativas político-jurisdicionais.

447 Uma vez que não há variações decisivas nas diversas Ordenações, e como as Ordenações Filipinas são as que cobrem o período que nos interessa mais directamente, basearemos a análise subsequente sobretudo nestas últimas.

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A opinião dominante na doutrina portuguesa era a da imprescritibilidade contra a coroa dos direitos reais, jurisdições e bens da coroa. Neste sentido militaria o texto expresso da lei(19) (20). O direito próprio afastar-se-ia, deste modo, do direito comum, segundo o qual as jurisdições e regalia podiam, em geral, ser adquiridas por prescrição centenária ou imemorial448 . O panorama doutrinal (e, muito menos, o jurisprudencial) não era, no entanto, líquido. Por um lado, uma corrente minoritária defendia a prescritibilidade das jurisdições (mesmo da correição) e direitos reais, embora requeresse a posse imemorial449 . Por outro lado, há provas de que as posições “senhorialistas” desta corrente exerciam forte influência na prática burocrática e jurisprudencial seiscentista e setecentista: em decisões transcritas por Pegas relativas a títulos de direitos senhoriais, a posse ou costume imemoriais são admitidos como título suficiente450 . Mesmo um procurador da coroa tão cioso da defesa dos direitos e jurisdições reais como Tomé Pinheiro da Veiga parece ter admitido a regra de que a posse imemorial supriria a doação ou sentença como título de jurisdições ou regalias. A segunda consequência do princípio da doação expressa é a de que nunca se pode entender que, perante doações genéricas (como, v.g., “dôo a F. a minha vila de N .” ou “dôo a minha terra de N. com todos os direitos que 448 Cf.. para o regime do direito comum, Portugal, 1673, 1. 3, c.45. 449 Cf. Pegas, 1669, XII, p. 130; Portugal, 1673, p. II, c. 45 per totum, Valasco, 1588, cons. 141, n. 4 ss. 450 Cf Pegas, 1669, XII, p. 149 ss, 158 ss.

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aí tenha ou possa ter”), aí sejam doados, automaticamente, os direitos reais ou as jurisdições. Solução que, como se disse, contrariava a doutrina do direito comum clássico que considerava, quer os direitos reais, quer as jurisdições como acessórios do território (“a jurisdição adere ao território como a neblina ao paúl, iurisdietio cohaeret territorio sicut nebula super paludem)(21). A questão não ficava porém resolvida com o referido princípio, pois se colocava o problema de saber que significado se devia atribuir a uma doação feita nesses termos genéricos (que, diga-se de passagem, eram correntes no formulário da chancelaria régia). A opinião comum dos juristas portugueses seiscentistas distingue diversas situações, de acordo com a fórmula utilizada na doação. Se esta fosse a da “doação de toda a jurisdição, com mero e misto império”451 , dever-se-iam entender como doados todos os poderes necessários ao governo da terra (jurisdição), bem como a dada dos ofícios, pois, nos quadros do direito comum, isso implicaria a sub-rogação do senhor na posição jurídico-política do concedente, salvo quanto àque-

451 O sentido das expressões “mero e misto império” foi objecto de intermináveis discussões, desde o tempo dos glosadores (v. Hespanha 1986a, I, 526). Como síntese, a opinião comum mais tardia aceita a seguinte distinção: o mero império seria o conjunto de competências coercitivas do juiz atinentes à utilidade pública e que, portanto, ele poderia exercitar motu proprio, nomeadamente, as suas atribuições penais (potestas gladii [...] in animdvertendum facinorosos homines “poder de gládio [...] para atemorizar os criminosos”); o misto império, as competências coercitivas do juiz dirigidas à consecução de uma utilidade particular; a jurisdição simples, o conjunto de competências meramente jurisdicionais (i. e., não coercivas), visando a utilidade das partes.

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les poderes que fossem inerentes ao soberano, como atributos do seu poder supremo ou regalia maiora (nas quais se incluía, nomeadamente, a correição e o conhecimento definitivo das apelações e agravos). Se a fórmula utilizada na doação fosse a da doação da jurisdição, a doutrina entendia, de acordo com os dados das Ordenações (I, 65; II, 45), que fora doada a jurisdição para conhecer das apelações vindas das justiças da terra, quer em matéria cível, quer em matéria crime. A solução do direito português – que concordava com o direito castelhano, mas não com o direito comum, em que a concessão da jurisdição conferiria poderes para julgar em primeira instância, dando apelação para o príncipe – baseava-se no facto de a concessão da jurisdição não poder prejudicar a autonomia jurisdicional das terras, reconhecida, como vimos, pelo direito(22). No caso de doação genérica dos direitos reais, a doutrina entendia que se considerariam como doados aqueles direitos (contidos na carta de foral da terra) que os reis normalmente concediam de forma genérica (mas não os que rarissimamente eram concedidos por essa forma). O que remetia para uma interpretação das doações de acordo com o estilo da chancelaria e dava origem a uma detalhada casuística nos referiremos(23). Em conclusão, a despeito de todas as prevenções legais contra o reconhecimento dos direitos senhoriais sem título constitutivo formal (doação, sentença, inquirição), a doutrina dominante abria a porta à legitimação de situa308

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ções tituladas de forma menos rigorosa. Por um lado, enquanto admitia a eficácia da prescrição imemorial como prova do título; depois, enquanto abria mão do princípio de que as doações de jurisdições ou de direitos reais deviam ser expressas, admitindo a sua concessão por fórmulas genéricas, que alguns dos autores tendiam a interpretar de forma bastante generosa.

4.5 Conteúdo das doações A determinação do conteúdo das doações decorre já do que ficou dito na secção anterior. Resta agora, particularizar um pouco mais. Fá-lo-emos, considerando, caso por caso, as jurisdições ou direitos reais mais importantes ou mais comummente incluídos nas doações.

Comecemos pelas jurisdições.

Gráfico 2 – p. 191 no original

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4.5.1 Correição Nos termos da lei (Ord. fil., II, 45, 8/9), a correição não estava incluída nas doações, a não ser que expressamente doada. No entanto, não faltam os casos de doação da correição, quer durante o século XVI, quer durante o século XVII, quer a senhorios eclesiásticos, quer a senhorios laicos. A isenção da correição tinha como efeito, pela negativa, proibir a entrada do corregedor régio nas terras dos donatários e, pela positiva, sub-rogar o ouvidor senhorial nas funções desse magistrado real. Assim, no caso de doação da correição, os ouvidores senhoriais exercitariam todos os poderes dos corregedores, incluídos os relativos ao conhecimento de feitos por acção nova ou por via de agravo (Ord. fil., I, 65, 22 ss.).

4.5.2 Apelações Como já vimos, a jurisdição senhorial é, em Portugal, uma jurisdição de segunda instância, já que a de primeira instância pertence às justiças concelhias. O conhecimento dos recursos das sentenças dos juízes das terras constitui, portanto, a sua manifestação. Mas mesmo quanto aos recursos, as justiças senhoriais não podiam, salva doação expressa – que é corrente em relação às principais casas senhoriais –, conhecer dos agravos; pois estes deviam subir directamente (“omisso medio”) aos corregedores ou aos desembargadores dos agravos das Casas da Suplicação ou do Cível (cf. infra)452 . 452 A distinção entre apelação e agravos é, basicamente, a seguinte: as apelações são recursos quanto à decisão de fundo; os agravos são recursos quanto a aspectos formais ou de processo.

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Das suas decisões, as justiças senhoriais têm que dar recurso para o tribunal da corte. No caso de o título conter uma referência expressa à doação das apelações ou dos agravos (normalmente, quando era doada uma coisa, era doada a outra), o senhor ficava com o poder de conhecer dos agravos e, quanto aos feitos cíveis, eles terminariam no ouvidor, não havendo possibilidade de recurso para a corte453 .

4.5.3 Jurisdição Como já se disse, a doação da jurisdição era dominada pelo princípio do carácter intermédio da jurisdição senhorial, que ressalvava, para baixo, a jurisdição dos juízes das terras e, para cima, o direito real de apelação (Ord. fil., II, 45, 50 e III, 71). A jurisdição senhorial era exercida ou pessoalmente pelo senhor ou pelos ouvidores senhoriais, providos trienalmente. Devendo estes residir na terra de que são ouvidores, com jurisdição sobre outras terras do mesmo senhor num raio de 5 léguas (Ord.fil., II, 45, 32; 41/41). Por vezes, os senhores obtinham o privilégio de os juízes de fora de terras próximas serem seus ouvidores, o que os dispensava de pagar a um ouvidor próprio; outras vezes, obtinham licença para que o seu ouvidor residisse na cidade mais próxima, onde a facilidade de recrutar pessoa competente era maior.

453 Sobre as dúvidas quanto a este ponto, Hespanba, 1994, III. 5. b).

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4.5.4 Dada das justiças A dada (apresentação ou confirmação)454 das justiças das terras (juízes, vereadores e restantes oficiais dos concelhos) não pertencia, em princípio aos senhores, pois os concelhos tinham o direito da sua eleição, devendo a confirmação ser feita pelo corregedor ou pelo Desembargo do Paço (Ord. fil., II,45,2). Em muitas terras, porém, os senhores tinham o privilégio, por uso imemorial ou por doação, de fazer, apresentar ou confirmar as justiças.

4.5.5 Dada dos ofícios Os senhores não podiam, salva doação, dar os ofícios das suas terras, nem sequer os encarregados de exercer a justiça senhorial (Ord. fil., II, 45, 3). Isto decorria do carácter real do direito de criar ou provar os ofícios, que era considerado sinal da suprema dignidade do rei. Tal regra era geral e, portanto, válida para a criação de juízes de fora (Ord. fil., II, 45, 13), de oficiais da fazenda ou encarregados de conhecer dos direitos reais (Ord.fil., II, 45, 31), de oficiais da milícia (cf. A. 19.11.1631, em J.J.A.S.), de meirinhos e alcaides (Ord. fil., II, 45, 14) e de tabeliães (Ord.fil., II, 45, 15). Se a concessão da nomeação dos ofícios de fazenda ou dos direitos reais era muito rara, a concessão da dos tabeliães 454 São coisas diferentes. A “dada” consiste na nomeação definitiva pelo senhor. A “apresentação” consiste na proposta de nomeação feita pelo senhor, mantendo-se a confirmação pelo corregedor ou Desembargado do Paço. Na “confirmação”, mantém-se a escolha (ou “eleição”) pelo concelho, substituindo-se o senhor ao corregedor ou Desembargo do Paço na ratificação da escolha.

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e ofícios de justiça já era bastante comum. De qualquer modo, para além de outras limitações, os donatários estavam impedidos de vender ou arrendar os ofícios, pelo menos sem licença régia (cf. Ord. fil., I, 95, pr.).

4.5.6 Foros, tributos e direitos reais Aqui, a regra era a de que a sua doação genérica trespassaria para o donatário aqueles foros, direitos e tributos que estavam contidos no foral, salvo os que o rei não costumava doar455 . Remetia-se, portanto, para uma interpretação dos termos genéricos da doação conforme ao estilo da chancelaria, o que obrigava a uma averiguação casuística dos usos quanto à doação de cada uma das várias categorias de direitos reais456 .

4.6 Transmissão dos direitos senhoriais A transmissão dos direitos senhoriais era, como se viu, regulada pela Lei Mental, que estabelecia a forma de sucessão nos bens da coroa. A Lei Mental insere-se, como se viu, numa tradição jurídica europeia, com precedentes próximos no direito das Partidas e com precedentes longínquos na dogmática do ius commune. Todas as suas disposições (inalienabilidade, vinculação, indivisibilidade, sucessão por primogenitura e varonia) se integram nos modelos clássicos que esta literatu-

455 Cf. Pegas. 1669, XII. ad II, 45,34; Portugal, 1673.1. 3. c. 43, n. 47 ss.; Fragoso, 1641, 1. 3, d. 7, n. 55 ss. (p. 349). 456 Para uma análise detalhada de cada tipo de direitos, v. Hespanha, 1994, III.5.

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ra propôs às conjunturas sociais e políticas europeias desde o século XII ao século XVIII. Modelos puramente teóricos, cuja relação com a conjuntura sócio-política era equívoca ou contraditória; modelos que, porém, permanecem como “constrangimentos latentes” que sobredeterminam as estratégias políticas dos vários grupos sociais. Provavelmente, mais do que a resposta aos problemas da conjuntura portuguesa da baixa Idade Média, a Lei Mental representa o produto das representações que os juristas – dominados por esquemas categoriais próprios (e socialmente aleatórios) – tinham dos problemas sociais do momento e do modo mais correcto de os resolver. Como já vimos brevemente, os princípios estabelecidos pela Lei Mental para a transmissão dos direitos senhoriais eram vários. O primeiro era o da primogenitura e masculinidade: a sucessão deferia-se obrigatoriamente, por linha masculina, ao filho mais velho do donatário. O que implicava um certo tipo de indivisibilidade dos bens senhoriais por morte deste(24). A primogenitura parece expandir-se na área europeia a partir do século XII, sobretudo nas sucessões nobres. Temse insistido no seu interesse para a conservação do poder das famílias, maxime das grandes famílias; mas os argumentos “sociais” não parecem suficientemente trabalhados, pois certos dos objectivos da primogenitura eram assegurados, também, pelo regime da indivisão familiar, de resto tradicional nos direitos germânicos. Os próprios costumes feudais não 314

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eram, a este propósito, unânimes. O direito feudal lombardo consagrava a divisibilidade (Lib.feudorum, I, 8); mas o direito feudal franco ou siciliano consagravam a indivisibilidade. No sentido da primogenitura, destaca-se a permanência de certos tópicos oriundos do discurso jurídico letrado, nomeadamente o princípio de que as jurisdições e as dignidades não se dividem (dignitates et jurisdictiones non dividuntur). Bem como a sua ilustração mais eminente, a da indivisibilidade da coroa, bem estabelecida desde cedo e longamente justificada nas Partidas (II, 15,2). Em Portugal, o costume de não dividir os castelos e as honras, ou seja, os bens que importavam o exercício de poder é detectável desde os meados do século XIII. Tanto quanto se pode saber pelos estudos existentes, em Portugal o princípio da sucessão indivisível e primogenitural desenvolve-se a partir deste século, sobretudo em dois domínios: (i) o da transmissão de bens com jurisdição anexa (exemplos em Barros 1945, VIII, 254-260); a fonte era, decerto, a lei Praeterea, dos Lib. feud., II, 55, pr./1; (ii) o da transmissão de bens cujas rendas estão vinculadas a certo objectivo unitário (capela, hospital). Na segunda metade do século XIV, já é frequente assegurar a indivisibilidade dos bens da coroa doados, ou por uma cláusula da doação ou pela sua integração num morgado (Barros, 1945, VIII, 245, 270/271, 282). O argumento corrente para justificar o sistema é o da necessidade de manter o poder das famílias (ib., 267, 279), no qual se apoiava o próprio poder da coroa (cf. Pegas, 1669, XI, 315

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pg. 41, n. 2). Parece, no entanto, que este objectivo de evitar a usura do poder económico se acompanhava de um objectivo de natureza simbólica. A adopção da indivisibilidade e primogenitura tinham, antes de mais, o efeito de evocar o sistema linhagístico em uso na sucessão da coroa e das dignidades. Por aí se explica, porventura, que a doação de bens puramente patrimoniais (i. e., que não continham jurisdição nem regalia: reguengos, sesmarias, armazéns, casas, em propriedade) não estivesse sujeita à regra da indivisibilidade. A progressiva importância dos elementos simbólicos ligados ao esquema primogenitural puro leva a que sectores nobiliárquicos (mas não os juristas) insistam na exclusão da linha transversal – o que aumentava significativamente o risco biológico da extinção da estirpe – e na consagração do direito de representação em favor do neto, filho do primogénito pré-morto, que, então, afastaria o secundo-génito457 . Do ponto de vista dos interesses da família, a sucessão linhagística excluía da sucessão a parentela, nomeadamente os filhos segundos, enquanto que a masculinidade excluía as mulheres. As tensões decorrentes desta severa restrição do universo dos sucessores potenciais foram parcialmente absorvidas pela generosidade com que o direito reconheceu os direitos a alimentos e o dote a favor dos filhos e filhas (mesmo dos consanguíneos e naturais) excluídos da sucessão

457 A solução vem a ser adoptada por D. João IV – a pedido das cortes de 1641 (cap. 27 da nobreza e 26 do clero); cf. Capítulos gerais, pp. 55, 76 e 81. V. Hespanha, 1994, III.5.

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(Fragoso, 1641, III, pg. 149, ns. 46). Estes eram compensados pelo pagamento de uma soma em dinheiro, eventualmente obtida pelo empenhamento de bens da coroa; por bens patrimoniais; pela obtenção de ofícios, de títulos ou mesmo de morgados ou novos lotes de bens da coroa (eventualmente por doação, autorizada pelo rei, de certos bens da coroa já possuídos); ou, finalmente, pela obtenção de uma situação confortável na vida militar, eclesiástica ou universitária. Do ponto de vista da coroa, o reforço do modelo linhagístico também apresentava riscos, pois fomentava a constituição de casas muito poderosas, defendidas da usura das partilhas. Tanto mais que, nos bens da coroa, não existia preceito paralelo àquele que proibia ou dificultava a acumulação de morgados (Ord. fil., IV, 100, 5). E, na verdade, quase todas as grandes casas senhoriais acabam em conflito (e subsequente confisco) com a coroa – Vila Real e anexas (século XVII), Aveiro (século XVIII) ou, no século XV, a própria casa de Bragança. A fonte inspiradora do princípio da transmissão dos bens da coroa por linha masculina pode encontrar-se ou num texto do Digesto (D., 50, 17,2 – que excluía as mulheres das magistraturas e ofícios da cidade – ou uma lei dos Libri feudorum (I, 8) que excluía as filhas da sucessão dos bens feudais, no caso de o contrário não estar convencionado no pacto de investidura (cf. ainda II, 9; II, 30; II, 50; IV, 114). Também as Partidas excluíam a linha feminina na doação de terras. A ideia que estava na base desta exclusão era a da inca317

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pacidade das mulheres para a prestação dos serviços (militar ou de autoridade) que correspondiam à concessão feudal. A exclusão da linha feminina aumentava extraordinariamente o risco biológico [masculinidade]. Daí que pudesse ter representado uma eficaz medida de retomo dos bens à coroa, sendo, consequentemente, visto com maus olhos pela nobreza que, ainda em 1645, tenta sem êxito, obter a sua revogação. O seu alcance só não foi grande porque, na prática, a já referida política permissiva em matéria de confirmações lhe introduzia sistemáticas derrogações. O segundo princípio estabelecido pela Lei Mental era o da inalienabilidade dos bens da coroa, proibindo as suas alienações intervivos, salva autorização régia(25). Na prática, as alienações (nomeadamente, as compras e vendas) eram frequentes, embora sempre autorizadas pelo rei458 . Com a proibição das alienações visava-se evitar as doações de donatários a seus criados e, assim, a constituição de hierarquias feudais. O episódio da reacção de D. João I às tentativas do Condestável de doar terras aos que com ele serviam é sintomática do cuidado posto pelos reis neste ponto. O terceiro princípio da Lei Mental era o do carácter não feudal das concessões de bens da coroa (Ord. man., II, 17,2). Com este princípio – sublinhado, como já vimos, pela literatura da época (cf. supra) – obtinham-se alguns resultados práticos. O primeiro deles era o de distinguir as obriga458 Cf. exemplos em Hespanha, 1994, III.5.

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ções dos donatários das dos feudatários. Na verdade, o serviço feudal tinha um carácter pessoal, mas limitado aos termos do pacto de enfeudação(26). Em contrapartida, entendia-se que os serviços dos donatários, embora também de natureza pessoal, eram ilimitados, consubstanciados numa promessa genérica de obediência (Ord. man., II, 17, 3). Eles serviriam enquanto vassalos naturais, sem limitações na guerra defensiva e tantum intra vires (apenas até ao limite do que pudessem) na guerra ofensiva459 . O segundo resultado era o de vincar carácter em princípio temporário da doação de bens da coroa, contra o carácter petpétuo da enfeudação. O terceiro resultado era o de que em oposição à natureza em princípio divisível do feudo, só afastada no caso de concessões que contivessem dignidades ou em que o pacto fixasse o contrário, as doações de bens da coroa eram indivisíveis, como já vimos (Ord. man., II, 12; 14; 25). O quarto resultado, de acordo, pelo menos, com interpretação dos finais do Antigo Regime, era de que os poderes dos donatários não eram próprios, mas delegados pelo rei que, por isso, os podia restringir e retomar460 . Finalmente, a última consequência da distinção entre feudo e doação régia era a de que os feudos se

459 Pascoal de Melo, cuja obra reflecte a orientação centralizadora e anti-senhorial dos finais do séc. XVIII, considerem que, sendo as doações de bens da coroa sempre remuneratórias de serviços, os donatários estavam sempre obrigados a eles, mesmo em maior medida do que os outros cidadãos (Pascoal de Melo, 1789, II, 3, 28). É esta consideração que leva à criação, na segunda metade do séc. XVIII, de um imposto de duas décimas sobre as rendas dos bens da coroa (“quinto dos donatários”). 460 Cf. Pascoal de Melo, 1789, II, 3, 39.

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regulavam pelo direito feudal, contido nos Libri feudorum, nomeadamente quanto à interpretação e integração das suas cláusulas, enquanto que as doações régias se regulavam pelo direito pátrio, legislado ou consuetudinário, embora o direito feudal vigorasse como direito subsidiário461 . O principal sentido político-social da discussão sobre a natureza feudal ou não das doações de bens da coroa parece ser a da definição das obrigações militares do donatário. O preceito de Ord. man., II, 17 – “e esto nom sera por ser obrigado servir com certas lanças, porque queremos que nom sejam avidas por terras feudaes, nem ajam natura de Feudo, mas ser obrigado a no servir, quando lho nós mandarmos462 – parece ter por fim evitar que os donatários se pudessem desobrigar do serviço, invocando a falta de cláusula de serviço ou a insuficiência dos rendimentos dos bens doados para o prestar. Em todo o caso, uma parte da doutrina posterior interpreta a cláusula legal como querendo excluir o carácter obrigatório de serviço militar, pelo que este, a ser pedido, teria sempre que ser pago. O quarto princípio estabelecido pela Lei Mental era o de que os bens da coroa, mesmo doados, nunca perdiam essa natureza nem se radicavam no património do donatário, pelo que as doações careciam de confirmação periódica. Mais do que possibilitar uma reapreciação da opor-

461 V. Pascoal de Melo, ibid.. 462 A fonte é a C.R. de 8.4.1434 (Monumento henricina, v. 9 ss.).

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tunidade da doação feita, a confirmação tinha como objectivo verificar os requisitos da sucessão e provocar o reconhecimento pelo donatário da autoridade real. Na verdade, cedo se consagrou a opinião – feita equivaler pela doutrina a um dever deontológico do rei ou mesmo a um costume do reino – de que o rei devia confirmar as doações dos seus antecessores. Na segunda e terceira dinastias (e mesmo nos primeiros reinados da quarta), a política de confirmações das doações de bens da coroa foi muito liberal. De facto, não só é muito frequente a concessão do privilégio de indicação de sucessor fora dos limites impostos pela Lei Mental (“carta para tirar as suas doações fora da Lei Mental”)463 , como é praxe invariável, quando os donatários morriam sem sucessor válido à face da lei, confumarem-se os seus senhorios em parentes, por vezes um tanto longínquos. Desde o século XV, que os casos de revogação de doações se justificam sempre por faltas muito graves aos deveres do donatário, nomeadamente por traição464 . Durante os séculos XVI e XVII, a confirmação régia verifica-se na esmagadora maioria dos casos, mesmo em situações de extrema tensão política, como foram a crise de 1580 e a Restauração465 . De resto, um dos artigos das capitulações de Tomar dava uma garantia de princípio aos donatários em relação à confirmação dos bens da coroa,

463 Sentido desta dispensa, Pascoal de Melo, 1789, n, 3, 30. 464 V. exemplos em Hespanha, 1994, III.5. Regime da reversão à coroa, Pascoal de Melo, 1789, II, 3, 31. 465 V.ibid.

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mesmo quando faltassem sucessores legítimos à face da Lei Mental; embora, mais tarde (pela lei de 12.1.1587, na Collecção chronologica de ... leis ... delrey D. Sebastião, Coimbra 1819), o rei tenha restringido o alcance dessa garantia. Tudo isto confirma a asserção doutrinal de que havia no reino o costume de os reis manterem as doações feitas pelos seus antecessores(27). Nas cortes de 1641, a nobreza e clero pretendem transformar esta prática liberal em lei (cf. caps. 28 da nobreza e 16 do clero). Mas o rei, reconhecendo embora a justeza do princípio da conservação das casas nobres, responde de forma evasiva. Na segunda metade do século XVIII, esta doutrina sobre as confirmações levou uma volta completa, no sentido de as tomar livres e absolutamente dependentes da vontade do rei, como supremo juiz dos méritos e serviços dos donatários466 . O regime da confirmação era diferente, consoante o donatário tivesse tido os bens doados “em sua vida somente” ou “de juro e herdade”. No primeiro caso, entendia a doutrina dominante que, morto o donatário, a doação não aproveitava ao seu herdeiro por se tratar de uma concessio personalis. Pelo que a graça a impetrar por este era, não a confirmação da anterior doação, mas a concessão de uma nova doação. Aparte estas confirmações por sucessão, D. João II467 a introduzira o costume das confirmações de rei a rei, de acor-

466 Cf. Pascoal de Melo, 1789, II, 3, 31 ss. 467 Nas cortes de Évora de 1481, Garda de Resende, Chronica ..., cap. 29.

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do com o qual os donatários deviam pedir a confirmação das suas doações no início do novo reinado. O fundamento desta forma de confirmação seria o facto de o rei dever deixar o reino íntegro ao seu sucessor(28).

Gráfico 3 – p. 198 no original

4.7 A política da coroa quanto aos senhorios Um tópico recorrente nos juristas e politólogos da baixa Idade Média e da Época Moderna é o do dever do príncipe de recompensar os serviços dos seus vassalos. Dever a que corresponderia uma virtude, a da liberalidade, que distinguiria os príncipes excelentes468 . Isto explica o fun-

468 V., sobre a virtude da liberalidade régia, Hespanha, 1994.

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damental da política régia quanto às doações de bens da coroa, bem como às suas confirmações. A conjuntura política das primeiras décadas do século XV fora, de resto, propícia à alienação de terras. D. João I e de D. Afonso V. pressionados pela conjuntura política, alienam uma boa parte do fundo territorial da coroa. D. João I chega a ter que comprar terras que antes doara a fim de poder beneficiar os seus filhos. Nos reinados seguintes, a situação mantém-se estacionária. Nem são muitas as terras que regressam à coroa, pois mesmo as das (poucas) casas extintas são doadas de novo; nem se doam de novo terras que sempre tivessem sido da coroa. Até porque, neste último caso, estas doações deparavam com a resistência dos povos e dos concelhos que, muitas vezes, invocaram ou privilégios de serem regalengos ou usos prescritos nesse sentido. Em contrapartida, não é vulgar entre nós – como o foi, por exemplo, em Espanha – a venda de senhorios. Os exemplos que se nos deparam são, por isso, excepcionais. No século XV, surgemnos, isso sim, casos de terras doadas como satisfação de dívidas da coroa. No século XVII, os Austrias vendem algumas terras. Depois da Restauração, a ideia de realizar dinheiro com a venda de senhorios não se perdeu. Num arbítrio de 1683, o rei é aconselhado a procurar “pessoas que comprem jurisdições, logares, reguengos, officios, capazes de se poderem vender”. De D. Pedro II, encontramos pelo menos uma venda de terra. Esta situação de um país em que, como se verá, apenas cerca de um terço das terras é da coroa fixa-se,

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assim, no decurso do século XV e permanecer praticamente inalterada – se não considerarmos a incorporação na coroa da administração das terras das ordens militares, nos meados do século XVI – durante os sécs. XVI e XVII. Isto não obstante a exortação de Filipe II, no seu testamento, aos seus sucessores no sentido de não alienarem bens da coroa, exortação que era acompanhada pela revogação de todas as doações por ele feitas; o seu sucessor encarregou-se de as renovar e de lhes acrescentar algumas. Só na segunda metade do século XVII, com a subida dos Bragança ao trono, com a perda para a coroa de algumas casas senhoriais (nomeadamente, a de Vila Real) e com a criação das Casas do Infantado e das Rainhas, surgem outros domínios territoriais da família real que estabelecerão um equilíbrio novo entre o poder territorial dos dinastas e o poder territorial dos senhores. A integração do mestrado do Crato na Casa do Infantado, bem como a extinção, durante o século XVIII, das casas da Feira, de Aveiro e da Atouguia constituem pontos importantes, embora tardios, deste movimento de redução das terras do reino ao senhorio real, movimento que culminará com a extinção das jurisdições senhoriais pela lei de 13 de Julho de 1790469 .

469 Sobre a política senhorial da coroa durante o século, XVII e XVIII, v. Hespanha. 1994, III.5; e Monteiro, 1993 (que inclui cartografia dos domínios senhoriais).

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4.8 O regime senhorial nos últimos anos do Antigo Regime Os juristas portugueses dos finais do Antigo Regime eram fortemente influenciados pela literatura política, social e jurídica que, por toda a Europa, preparava profundas reformas na sociedade e no poder. Ideias-chaves desta literatura eram a exaltação da unidade do poder (i. e., a construção do “Estado”) e da generalidade e abstracção do direito e da justiça, no seio de um projecto de racionalização global dos mecanismos sociais e políticos. Todas as formas de particularismo político (jurídico ou judiciário), como todos as manifestações de desigualdade e de “irracionalidade” eram

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odiosas, embora com algumas se tivesse que condescender, para salvaguardar as formas de governo estabelecidas470 . O regime senhorial constituiu, para os juristas mais avançados da época, uma pedra dessas pedras de escândalo. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão) (29) introduz um título das suas Notas a Melo (1814) dedicado aos direitos senhoriais com as seguintes palavras: Os Grandes do Reino, os Senhores Donatários da terras com jurisdição, muitas vezes são fáceis em ampliar os seus Direitos, e terríveis aos seus vassalos, e súbditos, e concorrendo com este espírito a prepotência deles, e de seus obsequiosos Ministros, todo o Direito arma contra eles a sua presunção para se julgar extorquido dos súbditos por força, e violência, qualquer Direito ou tributo de que não mostrem justo título471 .

Era este o espírito, de que também se encontram traços evidentes em Pascoal de Melo, em Pereira e Sousa, em Coelho Sampaio, que explica a insistência em dois tópicos que, se não são novos, são pelo menos expressos com um vigor novo. O primeiro é o da natureza graciosa, precária e revogável das doações régias e da sua dependência em relação ao bem público, arbitrariamente avaliado pelo monarca. Este princípio foi sobretudo invocado na segunda metade do século XVIII, não tanto para efectivamente revo-

470 Cf., sobre o impacto dos novos ideais, individualistas, contratualistas e racionalistas e as tensões que provocavam com as instituições estabelecidas, Hespanha, 1979. 471 II, 3,17 e 18, rubr.

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gar doações, mas antes para justificar o direito da coroa a extinguir ou reduzir certos direitos seus, mesmo que daí resultasse prejuízo para os donatários. Isto acontece, por exemplo, com a lei de 4.2.1773, que extingue direitos de portagem. Suscitando um donatário, em tribunal, a dúvida se ela teria lugar mesmo nas terras senhoriais, pelo prejuízo que daí adviria aos donatários, a Casa da Suplicação determinou, por assento, que sim, pois os bens da Coroa não perdiam, pela doação, a sua natureza e “o Principe, doando, não fica ligado para não poder alterar a doação, quando concorre o bem comum dos Povos, pois a sua graça é limitada com a reserva da Alta Superioridade e Real Senhorio, que sem excepção tem em todos os que vivem no continente dos seus domínios e debaixo da sua Real Protecção, para poder em benefício do Estado e utilidade comum dos Vassalos, com a repulsa de qualquer interesse particular, fazer nova Legislação que ligue a todos em geral sem excepção” (Ass. de 24.4.1778, Collecção chronologica dos Assentos da Casa da Suplicação e do Cível, Coimbra, 1817,474)472 -473 . O segundo tópico era o do carácter limitado dos poderes senhoriais, nomeadamente, a sua estrita dependência dos termos da carta de concessão (Pascoal de Melo, II,

472 A frase provinha do preâmbulo do alvo de 29.9.1768, que limitava os privilégios da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães. 473 Em todo o caso, a lei de 19.7.1790, a que nos referiremos, prevê uma reparação pelos prejuízos (“particulares”) causados aos donatários pela extinção da jurisdição senhorial. O mesmo acontece com os projectos de reforma dos forais, dos inícios do séc. XIX (cf. Hespanha,1979).

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3, 39). Este princípio é sobretudo afirmado em relação aos direitos reais contidos nos forais e concedidos aos senhores por doações genéricas (cf. supra), afirmando enfaticamente a doutrina que não podiam ser cobrados senão os direitos expressamente contidos na carta de foral, não excluídos na carta de doação(30). Em 19 de Julho de 1790 finalmente, é promulgada a “celebérrima constituição” sobre os poderes senhoriais. Fundando-se na obscuridade e confusão do regime jurídico dos senhorios e na necessidade de promover que o exercício da justiça seja igual e uniforme, esta lei: a) Abole as isenções de correição, por “prejudiciais aos donatários e ruinosas aos povos” (art. III) e as respectivas ouvidorias isentas de correição (a. IV); as anteriores ouvidorias com privilégio de correição das casas anexas à Casa Real seriam transformadas em comarcas, postas sob a autoridade de corregedores nomeados pela Rainha e pelos Infantes, com a jurisdição geral dos corregedores (cf. Ord.fil., I, 58) (a. XXII). b) Abole as restantes ouvidorias (titulares de mera jurisdição intermédia), estabelecendo um regime geral de apelação para as Relações (a. V e VI); no território das anteriores ouvidorias, sendo suficientes, cria comarcas (a. VII). c) Nos restantes, substitui os ouvidores, “se parecer necessário” (a. VIII), por juízes de fora, “com graduação ou

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sem ela”474 , cabendo a sua apresentação ou consulta aos donatários (a. XXXVIII); no caso de se manterem os juízes ordinários, a sua nomeação caberia, em princípio, aos donatários (a. XXXIX). d) Extingue os pequenos coutos (a. XL). e) Anuncia e promove uma reforma territorial, “em benefício da justiça, e comodidade dos vassalos” (a. IX-XI). O principal objectivo da lei é, como se diz no seu preâmbulo promover que o exercício da justiça seja igual e uniforme, ou, como glosa Pascoal de Melo, “extinguir todos aqueles privilégios que, inventados com incómodo dos cidadãos, tomam a administração da justiça difícil e desigual, tomando assim todos os cidadãos em geral iguais e sujeitos, nesta parte, ao direito comum”475 . A consecução deste desiderato – típico do novo pathos universalizante e racionalizante do pensamento político e jurídico iluminista – traduzia-se, fundamentalmente, na abolição da justiça (em segunda instância) dos donatários, devendo, daqui para o futuro, todos os recursos dos juízes das terras, serem uniformemente dirigidos às relações do distrito(31). Além disto, uniformizava-se ainda – qualquer que fosse o titular do direito de nomear ou apresentar “consultar”) os 474 A “graduação. era a distinção de diversas categorias de magistrados régios: correição de primeiro banco, correição ordinária, juiz de cabeça de comarca, juiz de primeira entrância, cf. a. XXXII-XXXIV, XXXVIII. 475 Pascoal de Melo, 1789, II, 3,61.

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corregedores, juízes de fora ou juízes ordinários criados em substituição dos antigos ouvidores – o estatuto (condições de provimento, atribuições) de toda a magistratura, independentemente da qualidade real ou senhorial das terras. Sendo a jurisdição dos donatários, em Portugal, uma jurisdição de recurso, bem se pode dizer que a lei de 1790 põe fim a ela(32). Têm-se dividido as opiniões sobre a importância desta lei476 . Do ponto de vista da política do direito e da justiça

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, ela tem uma importância central, constituindo a mani-

festação legislativa sistemática do princípio, tão destacado pelo pensamento político iluminista, de que a administração de toda a justiça478 era inseparável da pessoa do rei, devendo ser, além disso, igualmente aplicada a todos os cidadãos, sob a égide do direito, do processo e da ordem judiciária comuns479 . Escrevendo por esta altura(33), Francisco de Sousa Sampaio afirma enfaticamente que “Uma das partes integrantes do Sumo Império é a judiciária (p. II, §61) [...] não pode por consequência separar-se esta parte judiciária da pessoa do monarca sem alteração na forma da Monarquia [...]” (Sampaio, 1793, III, §69, nota b). Daí que Pascoal

476 V., por último, Monteiro, 1993, no sentido de desvalorizar a sua importância prática. 477 E mesmo, lendo em conta a centralidade destes temas no pensamento político da época, do imaginário político em geral 478 E não somente a justiça soprema, por via de recurso ordinário ou extraordinário, como antes se defendia, nos quadros da teoria corporativa da sociedade e do poder. 479 Persistem diversas limitações a este principio, pois se mantém, até ao fim do Antigo Regime, jurisdições especiais (do clero, dos estrangeiros, dos militares,etc.).

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de Melo apelide a lei de 1790 de “celebérrima constituição”. Do ponto de vista estritamente jurídico (ou seja, independentemente das modalidades da sua aplicação prática), a substituição dos ouvidores por corregedores ou por juízes de fora também não era banal, pois além de pôr termo, como vimos, à jurisdição senhorial, entregava a justiça a um magistrado estatutariamente independente do senhor (ainda que apresentado por este), enquanto que o ouvidor era um oficial senhorial, dispondo de competência apenas delegada e, por isso, avocável pelo senhor (cf. Ord. fil., II, 52: o senhor pode conhecer pessoalmente das causas, mesmo tendo ouvidor). O que não se sabe ainda exactamente é qual o relevo prático, nos finais do século XVIII, do exercício das jurisdições senhoriais. Se, como ultimamente foi plausivelmente defendido (Monteiro, 1993), a jurisdição senhorial integrava um conjunto de dispositivos de domínio político das terras que facilitavam, nomeadamente, a aquisição e consolidação de direitos de natureza patrimonial, não seria facto de somenos a sua abolição. Mas só o estudo detalhado da grande massa documental produzida na sequência desta lei – tanto sobre os aspectos de reforma territorial como sobre as questões jurisdicionais provocadas pela sua entrada em vigor – poderá fazer luz sobre o tema.

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Bibliografia citada AMARAL, António Cardoso do, Summa seu praxis judicum, et advocatorum a saeris canonibus deducta, Ulyssipone 1610 (ed. cons. ecit. Liber utilissimus ..., Conimbricae 1740 [adições de José Leitão Teles]. BARBOSA, Manuel, Remissiones doctorum ... in l. 1, 2 & 3 Ordinationum Regiarum, Ulysipone 1618. CABEDO, Jorge de, Practicarum Observatiunum sive decisiumum, Ulyssipone, 1601. CABEDO, Jorge de, De patronatibus ecclesiarum regiae coronae Lusitaniae, Ulyssipone 1603. CAETANO, Marcello, História do direito português [1140-1495], Lisboa, Verbo, 1985. CASTRO, Gabriel Pereira de, Tractatus de manu regia, Ulysipone, 16221625, 2 vols. CLAVERO, Bartolomé, Mayorazgo. Propriedade feudal en Castilla, 13691836, Madrid, Siglo XXI, 1974 (nova ed. remodelada, 1989). CLAVERO, Bartolomé, “Lex regni vicinioris. Indicio de Espana en Portugal”, in BoI. Fac. Dir. Coimbra, 1983. FEBO, Be1chior, Decisiones Senarus Regni Lusitaniae, Olyssipone, 16191623, 2 vols. (ult.ª ed. 1760). FIGUElREDO, José Anastácio de, Synopsis chronologia [...], Lisboa, 1790. FRAGOSO, Baptista, Regimen reipublicae christianae, Collonia Allobrogum, 1641-1652,3 vols. MELO (Freire), José Pascoal, Institutiones iuris civilis luditani, Ulyssipone, 1789. * GILlSSEN, John, Introdução histórica ao direito, Lisboa, Gulbenkian, 1988. HESPANHA, Antônio Manuel, “O jurista e o legislador na construção da propriedade burguesa-liberal em Portuga1”, in Histórias das instituições. Textos de apoio, Lisboa, polic. 1979 (versão sem notas, An. soe., 61-62, (1980), pp. 211-236. * HESPANHA, Antônio Manuel, História das instituições. Épocas medieval e moderna, Coimbra, Almedina, 1982.

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HESPANHA, Antônio Manuel, “Représentation dogmatique et projets de pouvoir. Les outils conceptuels des juristes du ius comrnunedans le domaine de l’administration”, Wissenschaft und Recht der Verwaltung seit dem Ancien Régime, 1984, 1-28 (versão castel. em La gracia dei derecho [...], Madrid, CEC, 1994). HESPANHA, Antônio Manuel, Poder e instituições no Antigo Regime. Guia de estudo, Lisboa, Cosmos, 1992a. * HESPANHA, Antônio Manuel (em co1ab.), “O Antigo Regime”, volume IV da História de Portugal, dirigi da pelo Prof. José Mattoso, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993. HESPANHA, Antônio Manuel, “Une autre administration. La cour comme paradigme d’organisation des pouvoirs à l’époque modeme”, Die Anfãnge der Verwaltung der Europ. Gemeinschaft (=Jahrb. f. europ. Verwaltungsgesch., 4), Baden-Baden, 1992. HESPANHA, Antônio Manuel, Economia de la Cultura en la Edad Moderna, Madrid, C.E.C., 1993. HESPANHA, Antônio Manuel, La economia de la gracia (em publ. em Hespanha, 1994a). * HESPANHA, Antônio Manuel, As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal – século XVII (versão reduzida e actualizada), Coimbra, Almedina, 1993. LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa de, Discurso juridico, historico e critico sobre os direitos dominicaes, e prova d’elles ..., Lisboa, 1819. LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa de, Discurso sobre a reforma dos foraes ..., Lisboa, 1825. MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “Revolução liberal e regime senhorial. A “questão dos forais” na conjuntura vintista”, in Rev. Port. hist. (23), 1988, pp. 143-182. OLIVEIRA, António de, “A violência do poder dos cavaleiros de S. João no período filipino”, in Estudos em homenagem ao Prof Vitorino Magalhães Godinho, Lisboa, 1988, pp. 263-276. PEGAS, Manuel Alvares, Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae, Ulyssipone, 1669-1703, 12 tomos + 2.

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PEREIRA, João Cordeiro, “A renda de uma grande casa senhorial de quinhentos”, in Primeiras jornadas de história moderna, Lisboa, EL. Lisboa, 1986, pp. 789-819. PORTUGAL, Domingos Antunes, Tractatus de donationibus regiis, U1ysipone, 1673. REINOSO, Migue1 de, Observationes practicae ..., U1yssipone 1625 (ult.ª ed.1725). SAMPAIO, Francisco Coelho de Sousa, Prelecções de direito patrio, Coimbra 1793, 2 vols. SANTOS, António Ribeiro dos, “Sobre os tributos”, B.N.L FG 4677, fi. 75 ss. SANTOS, António Ribeiro dos, “Notas ao titulo I. Dos direitos reaes”, in Notas ao plano do Novo Código de direito público de Portugal do Dr. Pascoal José de Mello, feitas e apresentadas à Junta da Censura e revisão pelo D.or... em 1789, Coimbra, 1844. SILBERT, A1bert, “O feudalismo português e a sua abolição”, in Do Portugal do Antigo Regime ao Portugal do Antigo Regime, Lisboa, Horizonte, 1972. VALLEJO, Jesús, Ruda equidad, ley consumada [...]. La concepción de la potestad normativa (1250-1350), Madrid, c.E.e., 1992. VAZ (ou Valasco), Alvaro, Decisionum, consultatiomum ac rerumjudicatarum in Regno Lusitaniae, Upysipone, 1588. VAZ (ou Valasco), Alvaro, Quaestionum iuris emphyteutici, Ulyssipone, 1591.

Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com *. Notas (1) Sobre a Lei Mental, para além das sínteses de Hespanha, 1982,286 n. 526 e Caetano 1981, 513 ss., v. Figueiredo 1790, I, 26n, 167 e Ribeiro 1829, 91, 110/ 111, Manuel Paulo Merêa, “Génese da “Lei Mental” (algumas notas)”, Bol. Fac. Dir. Coimhra, 10(1926-1928) 1-15; J. Mattoso, Identificação de um país, Lisboa, Estampa, 1985, 101. A Lei Mental, com as declarações e interpretações a que foi sujeita, pode ler-se em Ord. man, II, 17, donde passou, pouco modificada, para as seguintes (Ord.fil., n, 35). Fontes doutrinais: Manuel da Costa, Tractatus

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circa maioratus, seu concessionem bonorum regiae coronae, Conimbricae, 1569; Portugal, 1673; Pegas, 1669, tomos X e XI, Pascoal de Melo, 1789, tom. II. Exemplos textuais, Gilissen, 1988, 193 ss. (2) Potestas de publico introducta cum necessitate iurisdicendi, & aequitatis statuendae [tanquam publica persona]. É a definição da Glosa, com um inciso ulterior de Bártolo. Para Portugal, V., V.g., a definição estreitamente inspirada nesta, de Domingos Antunes Portugal (portugal, 1673,1. 3, c. 44, n. 12). Sobre a evolução conceitual e divisões, cf., agora, Jesús Vallejo, Ruda equidad, ley consumada. Concepción de la potestad normativa (1250-1350), Madrid, C.E.C., 1992, maxime, 35-100. (3) Cf., sobre a diferença entre rei e senhor e a explicação de porque é que os reis de Portugal se intitulavam apenas “senhores” da Guiné, João de Barros, Décadas ..., I, liv. 6, cap. L (4) Para uma detalhada explicação do conteúdo deste título, cf., por todos, o respectivo comentário de Manuel Alvares Pegas (Pegas, 1669, IX, 1 ss.); também Portugal, 1673,1. 3, c. 42; Cabedo, 1601, II, dec. 42 ss.). (5) Caso típico é o das capelas ou morgados a que faltasse sucessor dentro da ordem de sucessão definida pelo instituidor (Cabedo, 1601, II, 51, n. 3). (6) Destes direitos, os juristas distinguiam entre direitos reais reservados ao príncipe e aqueles que ele podia transferir para outrem. Entre os primeiros contavam-se os sinais de supremo poder, como a feitura de leis gerais, a reunião de cortes, a criação de magistraturas, a justiça suprema (nomeadamente a revisão de sentença ou a justiça em última instância), o uso do poder extraordinário (potestas extraordinaria) e a concessão de medidas de graça. Embora alguns autores, na sequência da doutrina feudalisante do direito comum, entendessem que o rei podia conceder estes direitos a vassalos, desde que o não fizesse perpetuamente (cf. Cabedo, 1601, p. 2, dec. 66), mais comum era opinião no sentido da sua inseparabilidade da pessoa do príncipe, “a cujos ossos adeririam”. (7) Cf., para Portugal, Cabedo, 1601, n, dec. 42; Portugal, 1673,1.2, C. 4; 1.3, c. 43, I ss.; Pegas, 1669 (este vo1. X, de facto, 1689), X, p. 13; XI, p. 2; Pascoal de Melo, 1798a, 1,4,1 ss.; Sampaio, 1793, III, 83. (8) Conforme diz, esta distinção inspirava-se nas Siete Partidas, II, 17, 1. (9) Pondera que “hoje os príncipes não costumam ter erários distintos e todas as rendas se recolhem juntamente [...], não se devendo estabelecer nenhuma diferença entre o erário público e o privado [...] esquecido o nome de erário, se lhe substitui o de fisco, que entre nós e os castelhanos se diz câmara real [...]” (Ibid., 1. 3, c. 43, n. 6). “Quanto ao foro – escreve também M.A. Pegas (Pegas 1669, X, p. 14, n. 2) – nada interessa se o património do príncipe é privado ou público, nem mesmo quanto à possibilidade de ser protegido pelo Juiz dos Feitos da Coroa”. (l0) “Enquanto que o príncipe pode usar e abusar livremente das coisas que pertencem ao seu património privado, aliená-las livremente [...] e transmiti-las aos herdeiros, ainda que não sucedam no principado [...], já aquelas coisas que não são do príncipe, mas da majestade ou coroa, não transitam para os herdeiros e ficam sempre no império e principado, sendo apenas devidas aos que sucedem no reino” (ibid., ns. 7-8). (11) Sobre a incorporação, cf. Ord. fil., II, 36; Portugal, 1673, n. 94; Pegas, 1669, X, p. 16, n. 8; Ord. fil., II, 46; II, 35, 22.

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(l2) Jorge de Cabedo já se deparara com este problema de os reguengos poderem ser divididos. Mas considera de problemática legalidade – em face dos preceitos das Ordenações (Ord. fil., II, 35, 17-18) – uma sentença recente que o admitia (Cabedo, 1601, n, dec. 27, n. 5). (13) Pegas, 1669, X, p. 14, ns. 1-2. No tomo anterior, Pegas complica um pouco as coisas, justamente em face da necessidade de encontrar um lugar adequado para certos bens que nem eram puramente privados, nem bens da coroa, no sentido da Lei Mental: “Do património público do príncipe fazem parte várias espécies: bens fiscais, bens pertencentes ao príncipe em reconhecimento e sinal de suprema dignidade, como os tributos e censos, os bens da coroa e os reguengos” (Pegas, 1669, IX, ad II, 30, rubr, p. 329). (14) Enumeração das coisas que não podem ser doadas nem mesmo expressamente, em Melo, 1789, (n,3,40, seguindo um critério casuístico e de raiz legislativa que Ribeiro dos Santos, coerentemente, rejeita (Santos, 1844, [Direitos reais], 21 ss.). (15) E continua (dando uma nova interpretação à distinção entre concessões de bens da coroa e concessões feudais: “por isso as palavras meri et mixti imperio, do direito romano, e altae et bassae iurisdictionis, do direito feudal, que se encontram sobretudo, devem ser interpretadas segundo o espírito da nossa lei, e não significam hoje outra coisa senão a doação da simples jurisdição”, Melo, 1789, n, 3, 39 nota. Sobre isto, cf. também Sampaio, 1793, III, t. 45, § 169 e nota b. (16) Pegas, 1669, VIII, ad n,1,16; X, ad n,35, rubr., c. 4 (p. 12 ss.; X, ad n,35, rubr., c. 39 (p. 301 ss.), max. ns. 32 e 54; X, c. 41, p. 322 ss.; Xl, c. 29, p. 62; Portugal, 1673, p. 2, c. 43, ns. 24 ss. (17) Pegas, 1669, X, ad. n,35, rubr., c. 41, ns. 33 ss. (pg. 333). Também, com uma decisão, Ibid., p. 19. (18) Quanto ao regime do direito comum acerca dos poderes senhoriais v., por todos, Portugal, 1673, 1. 3, c. 45. Para um confronto entre o direito castelhano e o direito português quanto a este tema, v. Clavero, 1983 (cf., também, Cabedo, 1601, p. n, d. 41, n. 7). (19) Quanto à correição, Ord fil., n, 45, 10 (que negava o valor a qualquer posse, nova ou antiga, e a qualquer costume, ainda que imemorial); quanto aos direitos reais, Ord. fil., n, 45, 34/35 (que condenavam e invalidavam para efeito de usucapião qualquer posse de cobrar direitos para além do foral e sentença); e, em geral, Ord. fil., n, 45, 55/56 (que estabelecia a irrelevância de qualquer posse, uso ou costume contrário à letra da ordenação que estabelecia o conteúdo dos direitos jurisdicionais dos senhores). (20) Cf., neste sentido, Cabedo, 1601, p. n, d. 9, n. 2; Ibid., d. 12, n. 1 e d. 41 per totam; Valasco, 1628, q. 8, n. 21 ss.; Barbosa, l618, ad Ord. fil., n, 45, 10; Febo, 1619, p. n, d. 13, per totam; Castro, 1622, p. n, C. 37, n. 12; Fragoso, 1641,1. 3, d. 7, n. 46 ss. (21) Para a discussão da questão, v., por todos, Pegas, 1669, t. IX (ad Ord. fil., n, 28, rubr.), n. 77 ss. (22) V. Pegas, 1669, t. IX (ad n, 28, rubr), n. 82 ss. (p. 306). O princípio de que aos senhores cabia apenas a jurisdição de recurso fora já estabelecido em Portugal por uma lei de 1372. V., sobre isto, Hespanha, 1982, cit., 283. (23) Cf. Pegas 1669, IX (ad n, 28, rubr.), n. 85 ss.; Cabedo, 1601, p. n, d. 12, n. 4. (24) Note-se, de passo, que existem dois tipos de indivisibilidade do património familiar. Um deles é o da indivisibilidade que corresponde a um direito global de

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toda a familia sobre os bens (Gesamtvermögen, patrimónios em mão comum), em que todos os familiares são incluídos globalmente na herança. Um outro é o da indivisibilidade em que os bens se concentram num dos herdeiros, normalmente o primogénito e em que os restantes familiares são excluídos da herança. Apesar de se tratar de dois tipos de devolução sucessória que conduzem à indivisão, têm significados estruturais opostos (cf. Gilissen, 1988,673 ss.). (25) Proibição da venda, Ord. man., n, 17,16; Ord. fil., n, 35, 19. Proibidas estavam também a imposição de censo ou pacto de retro-vender (Pegas 1669, XI, c. 228, pg. 551) ou o emprazamento perpétuo, nas doações temporárias “enquanto for nossa mercê”, Ord. man., n, 17,22; Ord. fil., n, 35,20). No entanto, podem-se vender os frutos (ibid., pg. 548, C. 220) ou arrendar por menos de 10 anos (ibid., XI, pg. 556, c. 234), trocar por outros bens da coroa, com autorização do rei (ibid.) ou empenhar para pagamento de dote ou arras (Ord. man., n, 17, 17; Ord.fil., n, 35, 20). (26) O feudo podia ser simplex ou conditionatum, este último incluindo encargos ou cláusulas modais (moderatio exercitii); outros feudistas distinguem entre o feudum francum, livre de serviços, e o non francum, obrigado a certo serviço (Baldo 1524, pg. 4, col. 2, n. 38; pg. 5, col. I, n. 53; Fragoso 1641, III, d. 8, ? v. n. 15); mas os feudistas propendiam para entender como natural o carácter oneroso da concessão feudal (Giurba 1679, Prael. n, ns. 31, 42 ss.). (27) Cf. Valasco, 1588, C. 167, n. 5; Cabedo, 1601, p. n, d. I ss. (max., d. 19, 1 ss.); Portugal, 1673, p. 2, c. 7, n. 25; Pegas, 1669, XII, ad n, 45, 12, gl. 14, ns. 4 e 5(p. 167). (28) Para detalhes, Hespanha, 1994, III.5; doutrina dos finais do séc. XVIII, Pascoal de Melo, 1789, n, 3, 32 ss. (29) Trata-se de um jurista tendencialmente conservador, do ponto de vista social e político, autor de um libreto de defesa das posições senhoriais (Lobão, 1819, 1825; cf. Hespanha, 1979). (30) Cf., em sentido destoante, Lobão, Discurso, § 84; sobre o tema, Hespanha, 1979. (31) Note-se que, no Algarve, funcionava uma Junta de Justiça, para onde se recorria (cf. D. 15.5.1790, ADS, 605). (32) Pascoal de Melo não deixa de notar o carácter singular da faculdade genérica de apurar as pautas e de nomear as justiças atribuídas aos donatários pela nova lei, por serem contrárias às Ordenações (Ord. fil., n, 45, 2 e 13; l, 66, 30; l, 67). (33) As suas Preleções ... estão datadas de 1793, mas devem ter sido escritas antes, pois a lei de 1790 ainda aí não vem referida.

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5. A COROA

Objectivos da aprendizagem Quando terminar esta unidade, o aluno deve ser capaz de: •

Identificar as áreas de governo da coroa (justiça, graça, economia e política) e os modelos de processamento administrativo ligados a cada uma delas, bem como o estatuto típico do pessoal político-administrativo que lhes corresponde;



Descrever os traços gerais da administração periférica da coroa, identificando, nomeadamente, as cadeias hierárquicas, entre as diversas magistraturas e desenhando os respectivos organigramas;



Compreender que o “crime” é o produto de uma definição histórica e culturalmente situada;



Descrever o regime de punição de cada um dos grandes campos penais, distinguindo os vários crimes que os constituem e identificando o sistema de valores que lhes subjaz;



Descrever o modo como a punição e a graça se integram, completamente, na estratégia de disciplina da sociedade de Antigo Regime.

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5.1 Governo e administração 5.1.1 Introdução A acção política requer a disponibilidade de meios: financeiros, logísticos, institucionais, humanos, para não falar de outros habitualmente menos notados, como os meios simbólicos (saberes, discursos, iconografias). O presente capítulo visa justamente averiguar a estrutura de uns desses meios os aparelhos administrativos da coroa, quer da administração central (curial, palatina, cameral), quer da administração periférica. Nele procuraremos distinguir seus os vários ramos, o tipo de actividade político-social que levavam a cabo, as suas dependências. Observaremos, depois, a importância quantitativa de cada ramo e as principais assimetrias regionais480 . Afinal, procuraremos fazer um balanço da influência do funcionamento do aparelho político-administrativo no desenho do sistema do poder. Na estrutura político-administrativa dos meados do século XVII podem ser identificadas quatro grandes áreas: (i) a administração local; (ii) a administração senhorial ou corporativa de entidades dotadas de alguma autonomia jurisdicional (corporações, hoc sensu – v. g., Universidades de Coimbra e Évora, Hospital das Caldas, Celeiros Comuns); 480 Para este efeito, socorremo-nos dos dados averiguados, para os meados do século XVII, no nosso trabalho As vésperas do Leviathan [...] (Hespanha, 1986, republicado em 1991, com alterações, Hespanha, 1991), para onde remetemos o leitor interessado numa descrição mais detalhada.

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(iii) a administração real periférica da justiça ou da fazenda; (iv) a administração central.

Para além destas, resta um conjunto compósito de repartições e ofícios, dos quais destacaremos, pela sua importância relativa, os encarregados da administração de certos bens patrimoniais do rei, como os montados e pinhais, as lezírias ou paúis e os reguengos. Tendo descrito a área (i) no capo IV.3 e a área (ii), basicamente, no capo IVA481 , restanos a administração da coroa. Antes, porém, é útil dizer algo sobre as representações da época acerca dos âmbitos de exercício do poder da coroa.

5.1.2 Paradigmas de legitimação, áreas de governo, processamento administrativo e agentes da administração A expressão “administração da coroa” corresponde, nesta sociedade de poderes concorrentes que é a sociedade de Antigo Regime, à área de acção do poder do príncipe. Esta área não é, como veremos, homogénea; mas a sua organização interna também pouco tem a ver com as sistematizações – “por matérias” – que hoje fazemos da actividade governativa. É certo que, já desde o século XVI, se podem identificar grandes zonas de actuação dos agentes da coroa (nomeadamente, a “justiça”, a “fazenda”, a “milícia”). Mas esta classificação, aparentemente temática, não é mais do que

481 Realmente, apenas ficam de fora os oficiais corporativos, sobre os quais se pode ver Hespanha, 1986, ou 1991, cap. 2.5 b.

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o resultado de uma tipologia mais funda de actos de governo, que decorre da imagem do rei (das imagens do rei) e das correspondentes representações sobre a finalidade das suas atribuições e o modo de as levar a cabo. Estas imagens constituem, para toda a Época Moderna, uma constante; mas a sua combinação e hierarquização vão evoluindo, provocando novos entendimentos da actividade governativa da coroa, alguns deles com tradução institucional, processual e de pessoal político. É este complexo imaginário e as tipologias de organização e processamento administrativos que lhe estão conexas que descreveremos nos parágrafos seguintes. É sabido, desde a clássica obra de E. Kantorowicz, que, no rei, coexistem vários corpos. Mas aplicam-se-lhe, também, várias imagens: a de senhor da justiça e da paz, a de senhor da graça, a de chefe da casa (de grande ecónomo), protector de religião, a de cabeça da república e, como tal, de seu racionalizador e disciplinador. Cada uma destas imagens lhe atribuía certas funções e lhe garantia certas prerrogativas. Mas cada uma delas implicava tecnologias próprias de governar: (i) formas de organização dos aparelhos de governo; (ii) técnicas de processamento dos assuntos; (iii) categorias intelectuais de cálculo político; (iv) perfis de agentes político-administrativos.

Todas as fontes doutrinais medievais e da primeira época moderna nos falarão da justiça como primeira atribuição do rei. Na verdade, e de acordo com a teoria 342

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corporativa do poder e da sociedade482 , a função suprema do rei era “fazer justiça” – i. e., garantir os equilíbrios sociais estabelecidos e tutelados pelo direito –, do que decorreria automaticamente a paz483 . A justiça era, portanto, não apenas uma das áreas de governo, mas a sua área por excelência (remota iustitia, regna latrocinia [abandonada a justiça, os reinos são organizações de ladrões], havia escrito S. Agostinho, Civ. Dei., 4,4). Tal como no domínio da teoria escolástica das virtudes ela desempenha um lugar central, também na teoria tradicional do governo a justiça é “a arte das artes e alma do governo” (Pegas, 1669, I, in proem., gl. 23, n. 2), o primeiro cuidado do príncipe, que, para a realizar, deve atribuir a cada um – república ou particulares – aquilo que lhe é devido (cf. Fragoso, 1641, I, disco I, § II, n. 18), respeitando, ademais, nessa atribuição, uma particular metodologia organizacional, processual e intelectual que garantisse uma adequada ponderação dos vários pontos de vista. Esta concepção jurisdicionalista do poder484 não se esgotava, no entanto, na composição de conflitos de interesses (i. e., naquilo que nós hoje identificamos com o “termo justiça”), integrando algumas das prerrogativas que, nos nossos dias, incluiríamos na “administração activa”. O conceito chave era, para este efeito, o de merum imperium, em que a doutrina do ius commune clássico (séculos XII-XIV)485 incluía as atri482 483 484 485

Cf. supra, II.1. Cf. Hespanha, 1994, V. 2; também, Hespanha, 1990, 137. Sobre ela, Hespanha, 1990, 95 ss. V., supra, IVA.

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buições que o juiz exercia oficiosamente tendo em vista a utilitas publica (“ubicumque concernit et respicit publicam utilitatem”, Asinio, século XVII). Aqui se incluía, desde logo, o poder de editar leis (potestas leges ferendi), a punição dos criminosos (ius gladii), o comando dos exércitos, a expropriação por utilidade pública e o poder de impor tributos. Com a afirmação progressiva de outras áreas de governo (nomeadamente, da “política”), algumas destas atribuições passam a ser ligadas a outras imagens do rei e inseridas, portanto, noutros modelos de acção política. Mas pode dizer-se que, até muito tarde, esta sua vinculação ao modelo de agir jurisdicional não foi fundamentalmente abalada. E isto explica muito do estatuto prático (nos planos institucional, ideológico e pessoal) destas actividades políticas no Antigo Regime. Exercer o poder na área da justiça era, essencialmente, realizar um “juízo” (iustum iudicium), ou seja, levar a cabo um processo regulado e metódico de decisão, ouvidos todos os interessados, ponderados todos os argumentos e cumpridos todos os requisitos de competência e processuais estabelecidos pelo direito. Neste sentido, iudicium opõe-se a arbitrium, tal como – no plano das qualidades anímicas que estão no centro da actividade – a ratio (razão, ponderação) se opõe à voluntas. E, como o poder é essencialmente fazer justiça, os meios do seu exercício devem ser, fundamentalmente, iudicia, i. e., juízos proferidos pelas entidades competentes, de acordo com processos estabelecidos, orientados por modelos de raciocínio adequados (rectae rationes) e cultivados, sobretudo, por uma “arte

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de encontrar o equitativo”, a jurisprudentia. Não é, por isso de admirar que, até muito avançado o século XVIII, e exercício da política, mesmo da “alta política”, estivesse embaraçado nos meandros da justiça e fosse coisa, antes de tudo, de juristas. Pois, como escrevia, já na segunda metade do século XVII, António de Sousa Macedo, “o fim ou objecto da jurisprudencia, não he so a decisam das demandas, como cuidam os imperitos, mas igualmente o Politico decoro do governo na paz, as legitimas conveniencias da Republica na guerra, a justa razão de Estado com os Estrangeiros, a decente soberania com os Vassalos, e tudo quanto pertence à direcção do Príncipe perfeito” (Armonia politica ..., 1651). A área da “justiça” é, assim, a área em que dominam os órgãos ordinários de governo (“tribunais”, “conselhos”, “magistrados”, “oficiais”), com competências bem estabelecidas na lei, obedecendo a um processo regulado de formação da decisão, normalmente dominados por juristas que, na resolução das questões, preferem as razões da justitia e da prudentia aos arbitria da oportunidade e da conveniência. Potenciando a justiça está a graça, que consiste na atribuição de um bem que não competia por justiça, nem comutativa, nem distributiva (i. e., que não era, por qualquer forma, juridicamente devido)486 . Tal como a graça divina não destrói a natureza (antes a aperfeiçoa, S. Tomás, Summa theol..., I-2, qu. 112 1c.), também a graça régia não

486 Cf., sobre o tema, Hespanha, 1990, 140 ss.

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subverte a justiça (antes a completa). Era o que se passava com a dispensa do direito (quando, por exemplo, se manda que não se aplique uma lei a certo caso concreto, quando se declara maior um menor, quando se perdoa um crime ou, em geral, quando se pratica qualquer dos actos de dispensa do direito previstos no regimento do Desembargo do Paço); pois então o que se está é a realizar uma forma suprema de justiça, removendo a generalidade da norma em homenagem às peculiaridades do caso (cf. S. Tomás, Summa theol, II2, qu. 88 10 ad 2; Fragoso, 1641, III, disp. IV, 11,2,32 [p. 418]). Apesar desta ligação entre a graça e uma ordem objectiva superior do justo e de tudo o que daqui pode decorrer quanto ao carácter não inteiramente gratuito dos actos de graça487 , esta é, fundamentalmente, um dom, dependente da liberalidade régia, na outorga do qual o rei nem é obrigado a ouvir senão a sua consciência, nem a obedecer a qualquer formalidade ou “figura de juízo”. Pelo contrário, aqui, o sigilo da decisão é a regra principal, já que as próprias Escrituras recomendavam que não se deixasse que uma mão soubesse das liberalidades feitas pela outra. A “graça” é, portanto, o mundo do governo informal, orientado por deveres de consciência ou por deveres morais, em que as decisões se tomam no círculo mais íntimo da actividade real (a “câmara”), pela mão

487 Cf. Hespanha, “La economia de la gracia”, publ. em Hespanha, 1993b. Aí se explica como existe, na economia moral das sociedades de Antigo Regime, uma “economia da graça” que gera deveres de dar e deveres de retribuir. O que acaba por ter muita importância para a explicação de mecanismos políticos práticos, como o regime das “mercês” em Portugal.

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de “escrivães da puridade” ou “secretários”. No caso português, algumas matérias “de graça” têm um tratamento mais autónomo e regulado. É, desde logo, o caso (de fronteira) dos assuntos de graça em matéria de justiça, que são instruídos para decisão régia pelo Desembargo do Paço. E do domínio particularmente sensível de assuntos que envolviam relações com o poder eclesiástico, cuja decisão é preparada pela Mesa da Consciência e Ordens. As restantes matérias de graça são decididas informalmente pelos secretários do rei (secretários da câmara, mais tarde, secretários de Estado), embora o reconhecimento de um direito a mercês (“acção”) tenha progressivamente aproximado a gestão da liberalidade régia das tecnologias organizativas da justiça, com a sua consequente formalização (cf. os vários “regimentos das mercês”, nomeadamente o de 19.1.1671, JJAS, 186 ss.). A terceira área de governo era a oeconomia, que correspondia à imagem do rei como “chefe da casa”, marido da república e pai dos vassalos. A doutrina moderna foi particularmente expressiva sobre esta proximidade entre governar a cidade e governar a família488 . A assimilação entre um e outro ofício era profunda e de sentido não metafórico, autorizando, nomeadamente, que as regras do governo doméstico valessem para o governo da cidade e que a literatura dirigida ao pai de família (Hausväterliteratur) tivesse, afinal, uma intenção claramente política. 488 Cf. Hespanha, 1990, 142, e bibl. aí cit., sobretudo os exemplares trabalhos de Daniela Frigo.

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“A casa dos príncipes – escreve Baptista Fragoso – é a cidade; a cidade constitui o fim da casa. Por isso é preciso que aqueles que vão dirigir as coisas públicas se exercitem antes nas coisas económicas ou domésticas” (Fragoso, 1641, “Proem.”, 7). O característico deste governo doméstico era o facto de que, não existindo no interior da família (tal como ela era entendida então) interesses contrapostos entre si ou oponíveis aos do interesse familiar, faltava aqui a dualidade de interesses que caracteriza as matérias de justiça e, por isso, a decisão decorria de considerações de mera oportunidade. A gubernatio é, assim, uma expressão geral, aplicável a toda a actividade decisória que apenas envolve a ponderação de vantagens (e não de interesses protegidos), quer se aplique no âmbito da família (gubernatio filiorum et uxoris), de uma “universidade” (gubernatio communitatem monialium, por exemplo) ou da república (gubernatio reipublicae). Podia-se falar, assim, de uma potestas dominica, sobre a própria família (potestas domestica, maritalis, patria), sobre os servos e escravos (potestas despotica ou herilis), todas elas decorrentes do poder de administração (administratio) do pater sobre a sua própria casa (potestas oeconomica). De resto, a transladação do conceito de administratio do plano do governo económico para o plano do governo político era facilitado pelo aparecimento da palavra, referida a actividades políticas, em dois títulos do Corpus iuris (D., 50, 8, De administratione rerum ad civitates pertinentium; C., 11, 30, De administratione rerum publicarum), bem como pela confusão entre autoridade e propriedade, entre regnum e

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domus, entre rex e pater, que a episteme política medieval e moderna colhera dos textos de Aristóteles489 . No centro deste domínio da actividade do príncipe estavam os actos relativos ao “governo económico” do reino, entendido como rei domesticae guberntio ou dispensatio domus, seu administratio rei familiaris, quae consistit praesertim in acquisitione, & conservatione pecuniae (administração da casa, ou das coisas familiares, a qual consiste principalmente na aquisição e conservação do dinheiro). Ou seja, a gestão dos bens e interesses da coroa. Isto englobava, desde logo, os actos de gestão dos bens e rendas de que o rei era administrador. Em primeiro lugar, dos bens e rendas da coroa do reino. Depois, dos bens e rendas afectados à corte e casa real. Seguidamente, dos bens e rendas das casas anexas à real, como, em Portugal, a Casa das Rainhas (na primeira metade do século XVI e depois de 1643), a Casa do Infantado e a Casa de Bragança (depois de 1654). Depois, dos bens das ordens, de que o rei é administrador a partir dos meados do século XVI. E, finalmente, dos bens próprios da coroa, como os reguengos, as matas, as lezírias, etc., bem como das capelas do padroado rea1490 . Mas deste governo “económico” – a que com o aproximar do estatalismo iluminista, se irá chamando cada vez mais “político” – faziam ainda parte todos os actos necessários à realização do bem

489 Nomeadamente da Economia doméstica – em que, entre as espécies do governo económico (i.e., da casa [oikos]), se enumeram o governo real, dos delegados do rei, do Estado de homens livres e do cidadão privado (cf. liv. II, cap. I). 490 Sobre o conceito e âmbito do património régio, V. supra.

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estar geral do reino, nomeadamente, a garantia do seu abastecimento, pelo controlo das importações e exportações, ou a sua “boa polícia” interior. Manifestação curiosa deste poder de governo é o que se invoca, nas Ord. fil., II,3, para justificar a punição pelo rei dos clérigos que o não tivessem sido suficientemente pela jurisdição eclesiástica competente: “isto não por via de jurisdição, nem de juízo, mas por usar bem de suas cousas, e afastar de si os malfeitores, e que não houvessem delle sustentação, nem mercê”. Pertenciam, assim, ao governo económico todas aquelas decisões que, por se deixarem circunscrever ao âmbito da casa do príncipe, podiam ser objecto de avaliações de mera oportunidade. Neste sentido, a transladação para o plano da república dos princípios e tecnologias de governo da “casa” constitui uma forma de trânsito da típica administração jurisdicionalista das monarquias medievais e primo-modernas para o governo “político” das monarquias da última fase do Antigo Regime. Zona típica da informalidade, a oeconomia é-o também da reserva e do recato com que as coisas familiares devem ser tratadas. O critério de decisão é, aqui, o da discricionariedade de um “prudente pai de família”, ao qual cumpre adequar livremente os meios disponíveis à busca do sustento e engrandecimento da casa. “Sustento” e “engrandecimento” devem ser objectivos sublinhados neste momento, pois com eles se está a apontar para uma gestão que não se limita a conservar, mas a prever, a prover e a promover; isto é, para uma 350

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administração activa. Coisa que, não sendo novidade ao nível doméstico ou mesmo da comunidade, o era ao nível do reino. O processamento dos assuntos é o da gestão informal exercida directamente ou por meio de agentes livremente escolhidos e livremente descartáveis (juntas, comissários), agindo na discreção da “casa” a coberto do segredo que, também nos assuntos familiares, deve ser a regra. “Secretários”, “criados”, “validos”, “intendentes”, “juntas” são, por sua vez, os suportes desta administração doméstica. A ideia de que, para além de guardião dos interesses particulares e de chefe de família, o príncipe incarnava também, como sua cabeça, um interesse superior de toda a república tem uma antiga tradição nas fontes jurídicas. Já os glosadores tinham aproximado, no dito mnemónico de “Christus-fiscus”, esta ideia de que, tal como Cristo, cabeça do corpo místico da Igreja, resumia em si a comunidade dos fiéis e representava os seus interesses, assim o “fisco”, a pessoa pública do príncipe, tinha legitimidade para impor o interesse da república, em termos tais que perante ele cedessem os direitos dos particulares. A tradição jurídica medieval partiu daqui para reconhecer ao príncipe uma extraordinaria potestas que lhe permitiria derrogar o direito e violar direitos dos particulares “publica et magna causa interveniente”. Mas, quando a nova geração de politólogos em que se inclui N. Maquiavel e J. Bodin, começam a falar de “razão de Estado” e de “soberania”, isto é, de razões e poderes próprios da república, essencialmente distintos das

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razões e poderes dos privados, começa a surgir a ideia de que o governo da polis podia exigir que o príncipe editasse, ex officio [por sua iniciativa] e figura iudicii non servata [não observadas as formalidades do juízo], comandos ad consequendam publicam utilitatem [para realizar a utilidade pública], livremente avaliada pelo príncipe. Estamos chegados ao conceito de governo político e, a curto prazo, ao de ius publicum, um especial ramo do direito em que, pela primeira vez, o príncipe e os particulares passam a ocupar lugares não equilibrados no iudicium491 . Não se pode, contudo, dizer que o conceito de governo político fosse muito popular na literatura moderna peninsular sobre o governo, sendo conhecida a conta em que eram tidos os “políticos” e o estilo de governo que eles propugnavam492 . Apesar disso, há temas em que a invocação das prerrogativas políticas do rei tinha tradição. O primeiro é, decerto, o da punição criminal. Outro é o da regia protectio; para justificar o seu poder de castigar os clérigos, o rei não podia invocar a sua jurisdição, pois a ela escapavam os eclesiásticos. Daí que seja obrigado a invocar um poder económico, ou mesmo político (cf., muito impressivamente, Ord. fil., II, 3). Progressivamente, o conceito de governo político vai-se estendendo e abrangendo, sucessivamente, um domínio mais vasto. No período iluminista, encontramo-lo já plenamente desenvolvido. Considera-se, então, que ele engloba todas as 491 Cf. Hespanha, 1990, 144 s. 492 Cf., para Portugal, Albuquerque, 1985, max., 496 ss.

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medidas necessárias à defesa externa e interna do reino (“o príncipe deve oficiosa e activamente [“pro sua virili parte”] libertar a cidade dos seus inimigos internos e externos e fazer em tudo aquilo que julgar necessário, sem que nunca possa ser compelido a prestar contas disso”, Pascoal de Melo Freire, 1,1,2). Aqui se incluiria – segundo este coriféu do regalismo, bebido na publicística alemã e austríaca – o ius gladii, a potestas legislatoria, o ius fisci, o ius circa sacra, o ius asylii, a potestas circa agriculturam, commercium et res nauticas, o ius militaris. Mas mesmo neste final do século XVIII, não falta quem reaja contra esta extensão das prerrogativas régias a título de poder camerario, arcano, absoluto (cf. António Ribeiro dos Santos, Notas ao plano do Novo Codigo ..., Coimbra 1844,55).

Gráfico 5 – p. 221 no original

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Seja como for, os finais do Antigo Regime constituem uma época em que, claramente, a imagem do príncipe como caput reipublicae, como pessoa pública, se sobrepõe às restantes. E em que o governo assume as características de uma actividade dirigida por razões específicas (as razões do Estado), tendente a organizar a sociedade, impondo-lhe uma ordem e defendendo-a do caos originário. Inaugura-se, por outras palavras, uma era de “administração activa”, com quadros legitimadores, métodos e agentes muito distintos dos da passiva administração jurisdicionalista. Agora, o governo legitimase, planificando reformas e levando-as a cabo, mesmo contra os interesses estabelecidos. Carece-se de eficácia e o controlo sobre os aparelhos administrativos é uma condição para isso. Daí que a administração deva ser transformada num instrumento racional e adequado, liberto de todos os constrangimentos de tipo corporativo. Que os oficiais devam ser disciplináveis e livremente amovíveis, tal como se enfatiza na legislação pombalina sobre os ofícios (nomeadamente, a lei de 23.11.1770). Que os procedimentos administrativos não devam ser cogentes para o soberano, e muito menos utilizáveis pelos particulares para atrasar a acção reformadora (por exemplos, por meio de embargos dos actos régios: cf. CR. 2.11.1627, alvo 16.2.1642, alvo 10.7.1644). Que o segredo (arcana imperii) e a surpresa sejam um instrumento indispensável de governo. Esta classificação das matérias de governo permanece fundamentalmente válida como arrumação intelectual da actividade político-administrativa até aos finais do Antigo

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Regime. Ainda em 1793, Francisco Coelho de Sonsa Sampaio classifica os tribunais em “de Graça, de Justiça, da Fazenda, de Economia, e Commercio” (Prelecções de direito patrio, 1793, I, 191). Há que notar a completa autonomização da fazenda em relação à economia, explicável pela existência, desde há muito, de órgãos nela especializados (Vedores da Fazenda e, depois, Conselho da Fazenda) e o acrescento do “comércio”, por razões idênticas (Junta do Comércio), a que acresce, aqui, o enorme interesse pelo tema, sobretudo num reino que vivia substancialmente dele, a partir do advento do mercantilismo493 . Embora, no mesmo autor, já se note a hegemonia da política e da economia sobre todas as restantes áreas, quando escreve, numa frase de antologia: “He certo, que todos os Magistrados são políticos, e Economicos; porque toda a administração da Justiça se dirige a economisar [!] e civilisar os povos, e promover a segurança publica [!]” (ibid., I, 191 n. a), pois por “polícia” entende “a auctoridade que os princepes tem para estabelecerem e proverem os meios, e subsidios, que facilitem, e promovão a observancia das suas Leis” (ibid., I, 138) e considera, consequentemente, que “todos os magistrados ordinários do reino exercem algum ramo da Polícia, e Economia, mesmo considerados na particular acepção” (ibid., I, 193). Claro que, neste contexto, a hierarquia dos actos de governo passa a ser totalmente diferente. A justiça perde, natu493 Noutros autores aparece o ramo da milícia, que este não considera por o julgar fora do âmbito da sua obra (embora, de seguida, enumere os seus principais órgãos, cf. 198 ss.). É de notar a dificuldade que transparece na classificação da Mesa da Consciência (cf. 196).

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ralmente a primazia para o “direito legislativo”, a que se seguem o “direito inspectivo”, o “direito de polícia”, o “direito executivo” e o “direito de impor tributos” (cf. índice do vol. I da mesma obra), numa pirâmide que vai do estabelecimento abstracto da ordem à sua execução concreta e material494 . Num plano menos teórico e mais atento à realidade institucional, a partir desta ideia de que todo é governo político, uma classificação mais caracterizadamente temática e institucional passa a impor-se e a explicar, inclusivamente, uma maior especialização orgânica. Já se notou a autonomização da “fazenda” em relação à “economia”. O mesmo se passa com o governo do Ultramar que, depois de andar junto com o da fazenda, se autonomiza, primeiro e por pouco tempo, em 1604 (a 1606) e, definitivamente em 1642. Também os assuntos de Estado – ou seja, fundamentalmente, as relações externas – se separam dos de justiça, com a criação do Conselho de Estado, em 1569, e, depois, das respectivas Secretarias495 . O 494 Numa outra obra celebérrima, pouco anterior (Pascoal de Melo, 1789, I), esta hierarquia já se manifestava, embora as matérias de polícia e de economia não obtivessem este destaque. A polícia é definida, não como a actividade complexiva do Estado, mas por uma enumeração das matérias aí incluídas (económicas, sumptuárias, funéreas, sanitárias, edilícias, criminais, urbanísticas, educativas, de precedência e etiqueta, sobre vadios e mendigos, sobre colégios e universidades (ibid., I, 170). Significativamente, os oficiais agrupados neste sector são todos os magistrados locais que, no âmbito da polis tinham estas atribuições como naturais. A única excepção é o Intendente Geral de Polícia (criado em 25.6.1760), cujos choques com os magistrados políticos tradicionais não deixam de ser referidos e lamentados (Ibid., I, 189). 495 Os assuntos de Estado são definidos, no alv. de 29.11.1643, como “contratos, cazamentos, alianças, instruções, avizos publicos, ou secretos, que se derem a quaisquer embaixadores, comissarios, agentes, rezidentes, agentes, e quaisquer poessoas [...] que se despacharem dentro ou fora do Reino, e negócios que forem da qualidade referida” (ANTT, ms. 2608).

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mesmo se passando com os da Guerra, a partir de 1640. E, basicamente, é esta a matriz de distribuição da matéria de governo que preside ao elenco das Secretarias de Estado, até ao fim da monarquia: Reino, Justiça, Fazenda, Guerra, Negócios Estrangeiros, Marinha e Ultramar.

5.1.3 Administração periférica da coroa Decisivo para a avaliação dos equilíbrios do aparelho político-administrativo é, mais do que o estudo dos órgãos centrais da administração da coroa, o estudo das suas extensões periféricas. Ou seja, dos prolongamentos pelos quais a coroa entrava em contacto com as estruturas político-administrativas locais, nomeadamente concelhias. O que acaba de ser dito representa uma certa inovação em relação ao tratamento corrente desta questão dos equilíbrios do sistema do poder, pois não é raro que se considere como sintoma decisivo do crescimento do poder da coroa, o desenvolvimento dos conselhos e tribunais palatinos, sem curar de avaliar os meios institucionais que estes teriam para, na periferia, conhecer, controlar e dirigir os poderes políticos autónomos. As intenções de controlo da vida política e administrativa periférica verificavam-se, fundamentalmente, nos três campos da actividade político-administrativa dos sistemas de poder da época moderna: a justiça, a fazenda e a milícia, v. infra.

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5.1.3.1 A justiça Neste domínio, a administração régia apoia-se sobre dois tipos de funcionários, os juízes de fora e os corregedores. Os juízes de fora são, tal como os juízes eleitos, os magistrados ordinários dos concelhos, tendo, em princípio, atribuições iguais(1). Porém, dada, sobretudo, a formação letrada desta magistratura, a doutrina – e a própria lei – estabeleciam alguma distinção entre uns e outros496 e dos padrões oficiais e letrados de julgamento. Embora também se pudesse dizer que, sendo estes juízes nomeados pela coroa, se instituiriam, deste modo, laços mais apertados de dependência e redes mais eficazes de comando entre os magistrados locais e a administração central. Não sublinharemos no entanto, este segundo aspecto, pois o estatuto do juiz de fora é igual, no que respeita à sua autonomia em relação a cadeias hierárquicas, ao do juiz ordinário, estando ambos apenas sujeitos a um controlo indirecto, ou através dos mecanismos do recurso, ou através da sindicância periódica destinada apenas a verificar da observância das obrigações impostas pelo regimento(2),(3). Dir-se-ia, até, que aos juízes de fora é

496 As principais diferenças do regime dos juízes de fora em relação aos juízes ordinários eleitos são: (i) eram nomeados pelo rei, depois de aprovados no Desembargo do Paço (leitura de bacharéis: exame pelos desembargadores da Casa da Suplicação, votação pela mesa do Desembargo do Paço, Reg. Des. Paço, § 6); (ii) tinham, como adiante se dirá no texto, jurisdição privativa em relação aos corregedores; (iii) tinham uma maior alçada, Ord. fil., 1,65,617; (iv) usavam varas brancas, enquanto que os juízes da terra as usavam vermelhas; (v) não eram inspeccionados pelos corregedores. Sobre esta diferença de regime, V. Pegas, 1669, v. ad 1,65, rubr., n. 26. (p. 5).

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garantida uma maior autonomia do que aos juízes ordinários. Na verdade, algumas das normas das Ordenações sobre o controlo das justiças locais pelos corregedores, não se aplicavam aos juízes de fora, umas por disposição expressa da lei nesse sentido, outras por entendimento doutrinal pacífico(4). Por outro lado, entendia a doutrina que os corregedores não podiam – fora dos casos expressamente previstos na lei497 – conhecer por acção nova ou avocar as causas das terras em que houvesse juiz de fora, ao contrário do que acontecia com as causas dos juízes ordinários(5). O facto de o juiz de fora ser um oficial de fora da terra, fazia dele um elemento descomprometido em relação às relações locais de poder e de influência. É justamente isto o que se quer dizer quando, no discurso oficial, se refere as vantagens que advêm para a administração da justiça e para a pacificação das terras da existência de um oficial de justiça forâneo e estranho aos “bandos” locais. E não é raro que o frequentador das fontes da época, nomeadamente dos livros de vereações das terras onde havia juízes de fora, encontre exemplos dos confrontos entre estes e os grupos de pressão locais. Que o juiz de fora representava, de facto, um elemento perturbador dos arranjos políticos locais, isso parece um facto. O que já pode, porém, ser problematizado é que a sua acção revertesse a favor do fortalecimento do poder da co-

497 Feitos em que fossem parte juízes, alcaides, procuradores, tabeliães, fidalgos, abades, priores ou, em geral, quaisquer pessoas poderosas (Ord. fil., I,58,22).

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roa. Pois em relação a este oficial letrado podem aplicar-se as conclusões que R. Ajello tirou – na base do seu estudo sobre o caso napolitano – para o oficialato togado meridional. Ou seja, a ausência de um controlo efectivo sobre a sua actividade, quer por parte dos particulares, quer por parte do poder, dado o carácter fortemente corporativo desse grupo de oficiais e o facto de os mecanismos de controlo serem, eles próprios, movimentados pelos membros do mesmo corpo. Como conclusão – sujeita à verificação por meio de estudos monográficos baseados na análise das fontes locais –, dirse-ia que mais do que longa mão do poder central, o juiz togado é um elemento de: enfraquecimento das estruturas locais que, se joga indirectamente a favor da coroa, reverte imediatamente a favor do fortalecimento da rede burocrática de que juízes de fora, corregedores e provedores fazem parte e que, como veremos ainda, filtra toda a comunicação entre o centro e a periferia e – pelo menos em tempo de paz – adquire, assim, o controlo de mais um instrumento fundamental de governo – a informação sobre o país. Seja como for, há uma restrição fundamental ao relevo que a historiografia tradicional tem dado à criação dos juízes de fora como factores de centralização, quer ao que acaba de ser dito quanto ao seu papel de factor de dissolução da vida jurídica. Tal restrição relaciona-se com o número extremamente reduzido das terras que tinham juiz de fora. Na verdade, a rede dos juízes de fora é absolutamente insuficiente para que possa ter o impacto centralizador que a historiografia corrente lhe atribui. 360

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Um outro oficial da administração real periférica era o corregedor, magistratura criada no século XIV, inicialmente com jurisdição apenas delegada ou comissarial, abrangendo os assuntos e a área territorial contida na carta régia de delegação498 . No século XVII, os corregedores constituem já uma magistratura ordinária, com uma competência contida em geral nas Ordenações (ou legislação extravagante) e exercendo-se sobre um território determinado por providências legais ou por usos bem estabelecidos. São nomeados pelo rei por períodos trienais499 . O principal núcleo das atribuições dos corregedores dizia respeito a matérias de justiça. Neste domínio, competialhes inquirir das justiças locais (mas não dos juízes de fora, ns. 5 e 34) e dos seus oficiais (n. 2 ss.), defender a jurisidição real e a ordem pública (n. 11, 15, 18,36 ss.), inspeccionar as prisões (n. 14), conhecer por acção nova ou avocar os feitos em que, pelo poder das partes, os juízes se pudessem sentir coactos (n. 22) (53), avocar os feitos dos juízes ordinários no raio de duas léguas (n. 23)(6), conhecer dos agravos das decisões interlocutórias das justiças locais (n. 25), devassar sobre certos crimes graves (n. 32 ss.), dar cartas de seguro (n. 40), conhecer dos agravos vindos das justiças senhoriais com fundamento em negação de recurso (Ord.fil., 2,45,28). 498 Sobre a origem e desenvolvimento desta magistratura, Hespanha, 1982,252 ss. e literatura aí citada. 499 Sobre os corregedores: fonte legal – Ord. fil., 1,58, além de outra legislação extravagante que pode ser encontrada, em geral, em Thomaz, 1843, s.v. “corregedoor”; Pegas, 1669, IV, ad 1,58 (com muitas indicações bibliográficas).

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No domínio político, competia-lhes tutelar em geral o governo dos concelhos, verificando se as eleições dos juízes e oficiais dos concelhos se faziam na forma da Ordenação (Ord. fil., 1,58, n. 4)(7), autorizando fintas (até certa quantia, n. 43), propondo ao rei a reforma de posturas (que, no entanto, não pode revogar por si, n. 17), tutelando a administração financeira do concelho (n. 16). No domínio da polícia, deviam inquirir dos médicos, cirurgiões (Ord. fi!., 1,58, n. 32), de outros oficiais locais (que não estivessem sujeitos à inspecção dos provedores ou contadores) (n. 34), promover a população (n. 42), curar do estado das obras públicas da comarca (estradas, pontes, fontes, casas do concelho, picota, etc., n. 43), promover o plantio de árvores (n. 46), inspeccionar os castelos (n. 13), vigiar o contrabando de ouro e prata, bem como de cereais panificáveis (n. 35). A circunscrição de exercício das competências dos corregedores eram as comarcas. Algumas das antigas ouvidorias de ordens militares foram, na prática, transformadas em comarcas com a incorporação da administração das ordens na coroa. Já nos finais do Antigo Regime, a lei de 17.7.1790, ao extinguir as ouvidorias senhoriais, dá origem à criação de uma série de novas comarcas500 –

501

.

O corregedor é, logo a seguir ao provedor e contador, o oficial mais bem pago da administração real periférica, com

500 Cf. mapas em Silva, 1993, 40; Monteiro, 1993,313. 501 Sobre a graduação das comarcas, v., supra.

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uma renda anual cuja média para todo o país é de cerca de 180000 rs, variando relativamente pouco de comarca para comarca. Cerca de 60% das suas rendas são constituídas por salários, o que, em certa medida, dá a ideia da sua dependência em relação à coroa em termos reais. O carácter genérico das atribuições dos corregedores, fazia deles os magistrados ordinários da administração real periférica. A sua competência apenas cedia perante outros magistrados cuja competência fosse privativa(8). O facto de os corregedores constituírem a magistratura ordinária ao nível da comarca, faz com que seja em geral neles que confluam as atribuições da administração real periférica não previstas nas Ordenações. Não apenas as criadas por legislação extravagante, mas ainda as providências isoladas, cometidas caso a caso pelo rei ou pelos tribunais da corte, nomeadamente pelo Desembargo do Paço, entidade com quem os corregedores se correspondiam, a montante, nas matérias de governo. E, assim, apesar da concorrência dos provedores e contadores, os corregedores desempenham o papel de “primeiros magistrados das comarcas”, para utilizar uma expressão então corrente. Note-se, porém, que esta superintência do corregedor sobre o conjunto da vida político-administrativa da comarca se exerce, na maior parte dos casos, sob a forma de tutela, e não sob a de um verdadeiro poder hierárquico. Tanto em relação à actividade das câmaras, como à dos oficiais cuja inspecção lhe competia, o corregedor apenas podia verificar 363

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se ela decorria de acordo com os respectivos regimentos. Mas não podia, em contrapartida, dar-lhes instruções ou substituir-se-lhes, salvo nos casos em que isto era permitido por lei (como, por exemplo, a avocação das causas “dos poderosos”). Por outro lado, o impacto da acção dos corregedores fica muito diminuído pelo facto, de este nunca ter abrangido duas áreas-chave – as finanças e a milícia. Ao contrário do que aconteceu em França com os intendentes – cuja esfera de acção abrangia a administração directa (e não apenas de controlo) em domínios como o recrutamento militar, a administração da justiça, a repartição da “taille” e a cobrança de outros impostos, a regulamentação da agricultura, etc. – os corregedores portugueses mantiveram-se sempre como uma magistratura, acantonada sobretudo nos domínios do controlo do funcionamento da justiça e da tutela política dos concelhos. A razão desta modéstia relativa das funções dos corregedores parece-me radicar num dado estrutural relacionado com o modelo financeiro português. Enquanto que, em França, na Prússia e na Áustria, a coroa dependia quase exclusivamente das receitas internas do reino e tinha, portanto, um interesse vital em organizá-lo e o controlá-lo, em Portugal o grosso das receitas da coroa vinha do ultramar ou das alfândegas. As receitas internas, em contrapartida, quase não cresciam desde os meados do século XVI e cada vez menos importantes no contexto orçamental global. A guerra da Restauração e a queda, contemporânea, das receitas externas podia ter modificado a situação da administração in-

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terna. Só que, em Portugal, o esforço de mobilização dos recursos financeiros e militares internos foi canalizado por novas magistraturas independentes dos corregedores. Na área fiscal, foram criados os administradores do real d’água e os tesoureiros das décimas, quaisquer destes isentos da supervisão do corregedor e sujeitos aos provedores e à Junta dos Três Estados. Na área militar, a superintendência regional veio a caber aos governadores de armas das províncias.

Gráfico 6 – p. 227 no original

Em face do que acaba de ser dito, parece lícito concluirse que a eficácia dos corregedores como instrumentos de subordinação político-administrativa do reino era relativamente modesta, pelo menos em confronto com outras experiências

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europeias de constituição de níveis periféricos da administração régia. Em contrapartida, é ainda aqui de realçar a importância que a existência desta guarda avançada da administração letrada pode ter tido no reforço do papel político da camada burocrática, sobretudo quando – como acontece na segunda metade do século XVIII – o poder régio se começa a interessar por um conhecimento mais detalhado do país, preparatório de um seu controlo mais efectivo. Então, os magistrados que, como corregedores, tinham calcorreado a província, aparecem no primeiro plano, como detentores quase exclusivos de uma informação coro gráfica, económica e política vital para a transformação da administração do remo. O corregedor dispunha dos oficiais auxiliares costumados. Escrivães, contadores, distribuidores e inquiridores (sendo estes três ofícios exercidos normalmente em acumulação), chanceleres, executores, caminheiros, meirinhos e porteiros. Outro funcionário da administração real periférica – de difícil classificação nos quadros da tríade de que partimos (justiça, fazenda, milícia) – era o provedor. Os provedores – que, normalmente, acumulavam as suas funções com as de contador – tinham duas grandes áreas de competência. A primeira era a da tutela dos interesses cujos titulares não estivessem em condições de os administrar por si nem controlar a administração que deles fosse feita – defuntos, ausentes, órfãos, cativos; mas também o de pessoas colectivas que, por razões teóricas ou práticas, a eles devessem

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ser equiparados – confrarias, capelas, hospitais, concelhos. A segunda era constituída pelas matérias de finanças502 . No domínio dos resíduos, os provedores controlam o cumprimento das deixas testamentárias no que respeita a legados pios (Ord. fil., I,62,1). Para isso, organizam um rol dos testamentos (n.º 4), tomam as contas aos testamenteiros (ns. 5, 10, 11), apuram os resíduos dessas deixas, consignando-os ao resgate dos cativos do bispado (ns. 7 e 9). No domínio dos órfãos, o provedor superintende sobre a administração da fazenda dos órfãos e sobre a actividade dos juízes dos órfãos (n. 28), em relação ao qual tem jurisdição cumulativa (enquanto estiver na terra) e de quem recebe os agravos (n. 34), dando apelação para a jurisdição competente (em princípio, a Relação da área, n. 34). No campo da curatela dos ausentes, administra os bens destes e entrega-os a quem os reclamar (n. 38), dando apelação e agravo para a justiça ordinária (ibid.). No que toca às capelas, hospitais, albergarias e gafarias, tutela a administração dos que não sejam de fundação ou administração eclesiástica, nem estejam sob protecção imediata do rei (n. 39 ss.)503 . 502 Fonte legal: Ord. fil., I, 62; as atribuições dos provedores relativas a capelas, hospitais, albergarias, confrarias, gafarias, obras, terças e resíduos estavam regulamentadas no reg. manuelino de 27.9.1514 (em R. M. C. Soisa, Systema dos regimentos reais 1783, I, 37 ss.; sobre este regimento, v. Figueiredo, Synopsis chronologica, 1790, I, 176 ss.) e na lei de 6.7.1596. 503 Estes últimos tinham eventualmente, jurisdições particulares – tal era o caso do Hospital de Todos-os-Santos, da Misericórdia de Lisboa, das Capelas de D. Afonso IV (em Estremoz, Torres Vedras e Vieiros [Aviz]).

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No domínio da fazenda, compete aos provedores: (i) quanto às contas dos concelhos, verificar os livros de receitas e despesas dos escrivães e tomar-lhes as contas (ns. 68-72), tomar as terças e entregá-las aos respectivos recebedores (ibid.), cuidar do arrendamento das rendas reais e da cobrança das que não tenham sido arrendadas (reg. de 17.10.1516, caps. 60 e 74 ss.), prover sobre os pagamentos a fazer pelos almoxarifes (cap. 78), tomar as contas aos almoxarifes e aos recebedores (cap. 81), julgar certas questões relativas ao arrendamento de rendas reais, dando apelação e agravo para o Conselho da Fazenda, a quem também prestam contas (caps. 85 e 149); (ii) quanto a obras, prover na reparação das fortificações (n. 71); lançar fintas para obras em igrejas até certo montante (n. 77); (iii) quanto à defesa dos direitos reais, fazer o tombo dos bens da coroa (reg. de 17.10.1516, caps. 94/95), averiguar da legitimidade dos direitos reais, controlar o direito a tenças (cf. D. 24.9.1623) e superintender na cobrança dos reais d’água (reg. 23.1.1643). Os provedores estavam, assim, integrados numa estrutura sectorial da administração real bastante mais especializada do que aquela a que pertenciam os anteriores magistrados, embora o conjunto das suas competências fosse bastan-

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te heteróclito. De qualquer modo, a importância política dessas competências era bastante mais reduzida, embora ainda incluísse zonas como o controlo das contas concelhias. Os provedores exerciam as suas atribuições em circunscrições – as provedorias em geral coincidentes com as comarcas 504 . Os rendimentos dos provedores são os mais elevados de entre os oficiais das comarcas, ultrapassando geralmente os dos corregedores. Cerca de 50% eram constituídos por salários. Os rendimentos dos escrivães da provedoria são também elevados (média, cerca de 80 000 rs.), sendo quase integralmente de natureza emolumentar, pois a parte salarial corresponde apenas à retribuição dos processos em que são parte os resíduos (cf. Ord.fil., I,63,5). A montante, os provedores correspondiam-se com a Mesa da Consciência e Ordens, para onde davam apelação em matéria de defuntos e ausentes (cf. Pr. 2.4.1727); em matéria de resíduos, com o Provedor-Mor das Obras e Resíduos, para manifesto das entregas feitas aos mamposteiros dos cativos, ou com a Casa da Suplicação, para efeito de apelação e agravo das decisões sobre testamentaria (Ord. fil., 1,62,18/19) e, com esta última, nos feitos de órfãos (cf. Ord. fil., 1,88,46); com o Desembargo do Paço, em matéria de supervisão das contas dos concelhos (Ord. fil., 1,62,65) e com Conselho da Fazenda em assuntos relativos à fazenda 504 V. mapa das provedorias em Monteiro, 1993, 311.

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real (nomeadamente, arrendamento de rendas reais, contas dos almoxarifes, etc.). A jusante, entravam em contacto com os juízes dos órfãos (Ord. fil., I,62,34/5); com os tabeliães, que, em matéria de resíduos, lhes deviam fornecer a lista dos testamentos; com os mamposteiros dos cativos, a quem entregavam as somas destinadas aos cativos (Ord. fil., I,62,12 e 16); e com os almoxarifes, sobre matérias de fazenda e de terças dos concelhos (Ord. fil., I,62,68). As relações entre os diversos níveis desta estrutura não eram, porém, de tipo diferente daquelas que encontrámos no sector da justiça, pelo que não se pode falar, em rigor, de relações de hierarquia político-administrativa, mas antes de relações de tutela, em que o funcionário de escalão superior se limita a controlar a actividade do de escalão inferior através da reapreciação dos seus actos aquando de recurso ou da inspecção ou residência. Desta estrutura administrativa faziam parte, além dos provedores, outros-oficiais. Em primeiro lugar, os oficiais da provedoria – escrivães (Ord. fil., I,63), chanceleres (Ord. fil., I,62,80), porteiros (Ord. fil., I,63). No domínio dos resíduos, o funcionário principal, ao nível regional, é o mamposteiro dos cativos, encarregado de arrecadar os bens ou valores consignados ao resgate dos cativos –penas, esmolas, resíduos ou deixas testamentárias. Nomeado pelo rei através da Mesa da Consciência e Ordens, dependia desta para efeito de residência (§§41, 3, 8 do Reg.), e do Corregedor da Corte, para efei370

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tos de recurso (§5 do Reg.). Existia um por bispado, podendo cada um deles nomear mamposteiros menores nas terras do bispado (§3)505 (67). Cada mamposteiro dispõe de um escrivão próprio (de nomeação régia, §4), de um solicitador ou procurador (§7 e Ord. fil., I,64), de recebedores e de tesoureiros. Existiam ainda depositários dos resíduos, encarregados de guardar os resíduos arrecadados pelo provedor (v. g., aos testamenteiros negligentes, Ord. fil., I,62,12), enquanto este os não entregava ao mamposteiro. No domínio dos órfãos, existiam os oficiais a que já nos referimos, ao tratar do oficialato local. Aos oficiais do domínio da fazenda referirnos-emos, globalmente, de seguida, pois se trata de um outro ramo bastante diferenciado desta administração periférica da coroa, que vimos brevemente descrevendo.

5.1.3.2 A fazenda A fazenda constitui um domínio bem caracterizado da administração real periférica. Não apenas pela especificidade do seu objecto, mas ainda porque, aqui, os laços de dependência são mais apertados, aproximando-se mais do modelo da hierarquia administrativa em sentido próprio. Isto acontece, sobretudo, porque a construção dogmática tradicional do ofício506 não atingira esta zona, sendo aqui 505 A redenção dos cativos era urna obra de misericórdia atribuída à Ordem da Santíssima Trindade, por quem foi demitida à coroa em 1562 (cf. Alv. de 10.3 desse mesmo ano). Regimento dos mamposteiros de 11.5.1560, Soisa, 1783, v. 486 ss. 506 Sobre o terna, Hespanha, 1994, V. 3.

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os cargos configurados como comissões reais. Uma consequência deste diferente modelo da construção dogmática dos ofícios consiste no facto de, nesta área, a inspecção e controlo dos oficiais não obedecer ao modelo da “residência”, efectuando-se pelos modelos mais efectivos da I “instrução” e da “prestação de contas”, importados da administração eclesiástica e mesmo da administração privada ou dominial(9). Outra consequência diz respeito ao modelo de retribuição. Embora não tenham desaparecido as rendas emolumentares, encontram-se aqui oficiais que dependem quase exclusivamente do salário (v. g., almoxarifes, feitores, juízes das alfândegas). Já no caso dos escrivães, o sistema emolumentar mantém-se, como também era de esperar.

Gráfico 7 – p. 231 no original

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O oficial que assegurava a ligação entre a administração financeira central e a correspondente administração periférica era o provedor, enquanto contador507 . A ele já nos referimos. Abaixo dele, como funcionário executivo da fazenda, estava o almoxarife, cargo que resulta da integração de todas as funções de recebimento e pagamento a nível local, antes do século XV dispersas por almoxarifes particulares de cada ramo(10). As suas funções são: (i) receber as rendas dos rendeiros e as quantias entregues aos recebedores das sisas ou dos direitos reais ou entradas nas “távolas” (repartições de cobrança) dos vários tributos ou rendas (Reg., caps. 104, 111); (ii) pagar as despesas inscritas nas suas folhas (tenças, ordenados dos “filhos da folha”(11), etc.) (cap. 106 ss.), arrecadando 1 % de cada despesa para obras pias (cap. 206); (iii) decidir, na falta do contador, dos feitos cíveis e crimes em que sejam partes os rendeiros (cap. 149), dando apelação e agravo para o Conselho da Fazenda. Dentro da administração da fazenda destacava-se, pela importância da sua rede, a administração alfandegá507 Lista das contadorias, em 1516: Santarém, Leiria, Alenquer, Setúbal, Évora, Beja, Coimbra, Viseu, Guarda, Algarve, Porto, Guimarães, Moncorvo (Reg. 17.10.1516, cap. 34, em Soisa, 1783, I, 24). No século XVII, aparecem, a mais, as de Viana, Esgueira, Lamego, Pinhel, Castelo Branco, Tomar, Estremoz e Ourique.

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ria, englobando as alfândegas (marítimas), os portos secos (alíandegas terrestres) e os portos molhados (alfândegas fluviais da raia), onde se cobravam, como já se disse, as dízimas de entrada das mercadorias508 . O principal oficial das alfândegas é o feitor, que superintende no serviço de vigilância (fiscal) da fronteira, auxiliado pelos seus guardas (Reg. de 1688, caps. 2 e 39). Além deste, existem os juízes, que julgam as causas relativas aos direitos alfandegários e ainda aqueles em que sejam partes os oficiais da alfândega, dando agravo e apelação para o provedor da comarca (L. 13.5.1693) ou para o Conselho da Fazenda (reg. cit., cap 48). Como oficiais auxiliares, existem: os escrivães da alfândega, que escrevem nos feitos dos respectivos juízes; os escrivães das guias, que passam as guias que devem acompanhar as mercadorias cujo despacho não for feito na alfândega de entrada, mas no lugar de venda (ibid., caps. 14, 18-20); os alcaides das sacas que, tal como os guardas da alfândega, vigiam o trânsito ilegal de mercadorias e o contrabando (“saca”); os escrivães dos anteriores; os seladores das alfândegas, que

508 No século XVII, era a seguinte a rede aduaneira: Entre Douro e Minho – Caminha, Vila Nova de Cerveira, Vila do Conde, Esposende, Porto; Trás-osMontes – Freixo, Freixeda, Bragança e Vinhais; Beira Litoral e Estremadura – Aveiro, Buarcos, Peniche e Lisboa; Alentejo Litoral – Setúbal e Sines; Alentejo interior – Montalvão, Marvão, Castelo de Vi de, Arronches, Alegrete, Alcoutim, Vila Torpim (onde ?), Serpa, Moura, Elvas, Terena, Mértola e Campo Maior; Algarve – Lagos, Portimão, Albufeira, Faro, Tavira e Castro Marim. Durante a guerra da Restauração, os portos secos estiveram inactivos, sendo restaurados após a paz (cf. novo regimento de 10.9.1668, Soisa, 1783, II, 274 ss).

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selam as mercadorias que pagam direitos de entrada, para permitir o controlo desse pagamento e evitar a dupla tributação: os procuradores das alfândegas, que defendem os interesses do fisco nas causas relativas a direitos aduaneiros (esta competência pode também recair no feitor); os almoxarifes e recebedores, que arrecadam as rendas e efectuam os pagamentos; os porteiros, meirinhos, etc(12).

Gráfico 8 – p. 233 no original

O resto da administração fiscal e financeira era constituído por um número relativamente elevado de oficiais especializados encarregados da cobrança dos vários tributos. Destacamos, dentre estes, os oficiais das jugadas, tributo em trigo, milho, vinho e linho que recaía sobre certas terras (“terras jugadeiras” )(13). O aparelho administrativo 375

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deste ramo era desigual, consoante a importância do tributo nas várias regiões509 . Uma particularidade destes ofícios é o facto de parte das suas rendas serem geralmente pagas em géneros, no que se aproximam dos ofícios de administração dominial da coroa (dos paúis, lezírias, montados, etc.), pertencentes a uma estrutura administrativa mais arcaica, provinda da época em que as receitas da coroa eram constituídas, principalmente, por rendas dominiais e em que os modelos administrativos vigentes na sua arrecadação eram os modelos da administração dominial, porventura decalcada na administração “obedencial” da igreja(14). Outros oficiais da administração fiscal-financeira são: os do consulado ou “dos 3%”510 – escrivães, recebedores –, que aparecem em Lisboa, Caminha, Vila do Conde, Aveiro, Buarcos, Setúbal, Lagos, Vila Nova de Portimão, Faro e Tavira; os do direito do sal ou “direito novo”511 – escrivães, feitores, recebedores – que aparecem em Aveiro e Setúbal; os dos milheiros da sardinha de Setúbal; os do estanco das cartas de jogar (meirinho – aparece em Santarém); os da moeda – das casas da moeda de Lisboa e do Porto; os das almadravas; etc.

509 Os ofícios das sisas eram locais (v. supra). Em Lisboa, as sisas eram lançadas e cobradas nas “casas de Lisboa”, sobre as quais, v. Hespanha, 1994, II 4.2. 510 Sobre o consulado, v. Hespanha, 1994, II.4. 511 Reg. 20.5.1640, Soisa, 1783, v. 655 ss.

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5.1.3.3 A milícia Sobre a administração militar dependente da coroa já foi dito o principal. Salvo alguns pequenos núcleos de soldados pagos em pontos nevrálgicos da defesa da costa, ela é inexistente antes das guerras da Restauração. Com excepção, é claro, dos alcaides dos castelos (Ord. fil., 1,74); mas, na época moderna, as alcaidarias já eram postos mais honoríficos do que operacionais.

5.1.4 Administração dominial da coroa Ao lado da administração periférica votada à cobrança dos tributos, a coroa dispunha de outras estruturas administrativas votadas à administração dos seus bens dominiais; ou seja, daqueles bens de que os reis detinham o domínio a partir do acto original de conquista ou por outro modo de aquisição (compra, doação, troca, etc.)512 . Se se destaca este ramo da administração não é tanto por se querer insistir numa distinção que, ainda nesta época, é razoavelmente anacrónica – a distinção entre direitos públicos da coroa e património privado do rei513 – mas porque o regime destes funcionários tem traços específicos, denotando um maior arcaísmo e uma maior proximidade, até na designação dos oficiais, em relação às formas de administração

512 Sobre o património régio, v. supra, IV.4. 513 Sobre esta questão, v. supra, IV.4.

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do património régio em vigor na idade média. Um traço, entre outros: o da existência frequente de salários em géneros. Os principais ramos deste sector da administração dominial são os seguintes. A administração das lezírias e paúis do Tejo, que cuidava do arrendamento das lezírias e paúis reais de Albacetim, ata, Rio Maior, Ribeira, Asseca, Redinha, Malveira, Benavente, Muge, Salvaterra e Alcoelha e da polícia das respectivas valas, marachões e tapadas(15). Uma vez que não eram cultivadas directamente, as lezírias eram repartidas pelos lavradores que as quisessem arrendar (Reg. das lezírias, n. 1; Reg. dos paúis, n. 1). Sobre os quais ficavam a impender certas obrigações, quer quanto ao cultivo, quer quanto à conservação das obras de irrigação e de hidráulica, quer ainda quanto ao aproveitamento de novas terras e juncais (Reg. das lezírias, ns. 6 ss.; Reg. dos paúis, ns. 3 ss.). A principal oficial das lezírias era o provedor e contador, que superintendia sobre o seu arrendamento e polícia (Reg. das lezírias, n. 40). Abaixo dele, o almoxarife, com funções de tesoureiro, de polícia e de justiça, competindo-lhe, neste último plano, conhecer de todas as causas das lezírias e daquelas em que fossem partes os seus lavradores que tinham, portanto, privilégio de foro(16). (Reg. das lezírias, 41). Além destes, outros oficiais menores – mestres das valas (Reg. das lezírias, n. 50), recebedores (ibid., n. 51), guardadores (ibid., n. 54), alcaides (ibid., n. 56), etc. Importância semelhante têm os oficiais da administração dos montados de Campo de Ourique, zona de pastagem per378

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tencente à coroa onde vinham pastar os gados do termo e, ainda, no Inverno, gados das comarcas do interior alentejano e beirão (v. reg. de 19.1.1699, em J.J.A.S., p. 424). A utilização dos pastos e da água (além da lenha e mato para os pastores) obrigava ao pagamento de uma percentagem (normalmente, 1 %; para as varas de porcos, 2%) das cabeças do rebanho (“monta”). Esta “monta” era feita em data e lugar certo, todos os anos, sob a presidência do ouvidor dos montados, auxiliado pelos seus oficiais – escrivães, meirinhos, procuradores (c. 6). Nos concelhos, havia os juízes do verde, que marcavam as coutadas de cada vizinho (zonas em que a pastagem dos gados foreiros era vedada) (c. 21) e julgavam as coimas; eram auxiliados pelos escrivães do verde (c. 23). De âmbito geográfico mais geral era a administração das matas reais, destinada a regular o desbaste da madeira e a impedir a caça furtiva514 . O território do reino estava dividido em montarias ou coutadas, em cada uma das quais existia um monteiro-mor ou juiz das coutadas, que superintendiam na guarda das matas. O julgamento dos feitos relativos a elas era da competência dos almoxarifes (no caso das montarias) ou dos juízes das coutadas, que davam apelação e agravo para o juízo do Monteiro-Mor da corte, integrado pelo Monteiro-Mor e por dois desembargadores extravagantes da Casa da Suplicação (ibid., pp. 114 e 124).

514 V. reg. 20.3.1605, em J.J.A.S. A organização dos monteiros é extinta em 1800 (alv. 21.3, §28).

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Próxima da anterior, a administração dos pinhais – nomeadamente, do pinhal de Leiria –, regulamentada em 1597 (A. 26.7)(17), e destinada a fazer observar as normas sobre aproveitamento da lenha e madeira.

5.1.5 Administração central Do ponto de vista do poder da coroa, o pólo unificador de todos os ramos da administração periférica anteriormente descritos devia ser constituído pelos órgãos da administração central ou palatina. Dedicaremos, portanto, as páginas seguintes a uma sua rápida descrição. Na corte – Casa Real, Tribunais da Corte e Casa do Cível – encontramos, no século XVII, cerca de 600 oficiais. Número que, se bem que corresponda apenas a cerca de 5% do conjunto dos oficiais do reino, revela um assinalável desenvolvimento da administração central. As rendas por eles recebidas ascendiam, na mesma época, a mais de 42 contos, o que corresponde a c. 22% das rendas dos oficiais de todo o reino; enquanto que os salários que lhes eram pagos (cerca de 24 contos no conjunto) constituíam quase metade (39%) dos salários totais. Do ponto de vista tipológico, também se verifica aqui uma grande exuberância, pois encontramos cerca de 220 categorias (ou designações) dos ofícios, o que corresponde a aproximadamente 1/ 3 das existentes para todo o reino. Tudo isto corroboraria um fenómeno de “intensificação” da administração central comum às monarquias peninsulares, que já foi salientado por anteriores análises (v. g., a de J. Vicens Vives). 380

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Os ofícios da corte constituem, no entanto, um conjunto bastante heterogéneo, agrupado em organismos diversos, que descreveremos em seguida.

5.1.5.1 Casa Real Existe, desde logo, o núcleo da Casa Real515 . Ao lado dos oficiais maiores da casa real – mordomo-mor, estribeiromor, aposentador-mor, camareiro-mor, porteiro-mor, vedor, armeiro-mor, monteiro-mor, almotacé-mor (cf. Ord. fil., I,18), correio-mor, cevadeiro-mor, provedor-mor das obras do paço, meirinho-mor (Ord. fil., I,21) –, os ofícios da guarda, os físicos, cirurgiões e boticários, os ofícios da cozinha e copa, os reis de armas e seus oficiais, os músicos e inúmeros artífices.

5.1.5.2 Secretários Os secretários (da câmara, de despacho, de Estado) apoiavam o rei nas decisões correntes em matéria de graça e de governo516 . Constituem a sequência dos oficiais que, desde a idade média, preparavam o despacho (ou “desembargo”) do rei. Na segunda metade do século XVI, com o desenvolvimento da administração sinodal, os secretários asseguram, frequentemente, a ligação entre o rei e um dos conselhos palatinos (v. g., o secretário “de Estado”, com o Conselho de Estado; o “da Índia”, com a repartição da Índia do Conselho da Fazenda ou,

515 Para indicações bibliográficas sobre a Casa Real e os seus oficiais, v. Hespanha 1994, I, 228. 516 V. bibliografia em Hespanha, 1982, 342 e Hespanha, 1994, 243 ss.

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enquanto este existiu (1604-1614), com o Conselho da Índia; o “da Fazenda”, com o Conselho da Fazenda). Com D. João III e D. Sebastião aconteceu frequentemente que um destes secretários ganhasse um ascendente no despacho corrente (v. g., os Carneiros ou os Câmaras). Trata-se de um cargo com um regime institucional fluido, oscilando entre o de simples auxiliares privados de despacho – oral ou escrito – do monarca e o de ministros com competência para coordenar um ramo mais ou menos extenso da administração. Em geral, coexistiam vários tipos de secretários (os “da câmara”, os “dos conselhos”). A designação secretário “de Estado” apenas aparece durante o domínio filipino, provavelmente por simpatia com a designação de idênticos funcionários espanhóis. O número e designações dos secretários de Estado variou ao longo de todo o século XVII e XVIII. Em 1604, eram quatro – negócios de Estado e Justiça; matérias de Consciência e Ordens; negócios da Fazenda; petições e mercês –, cada uma das quais correspondente, como se vê à área de atribuições de um dos conselhos do Paço; só a última era transversal, preparando o despacho de quaisquer tipos de mercês. Em 1607, ficam reduzidas a duas; mas em 1631 é criada uma nova secretaria “da Índia e Conquistas”. Estas secretarias funcionavam em Madrid; em Lisboa, existiam também secretários dos vicereis ou governadores, parecendo que dois foram mais ou menos permanentes, o “de Estado” e o “das mercês”.

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Com D. João IV, atribuem-se inicialmente todas as competências a um só secretário, a que se chama “de Estado”, mas, logo em 1643 (alv. 29.11), desdobra-se esta secretaria em duas, a “de Estado” e a “das mercês e expediente” (reg. em B.N.L., ms. 8), segundo uma repartição de competências constante do mesmo alvará. Pelos finais do século XVII, criase a “secretaria da assinatura”, encarregada do processamento da parte final dos diplomas régios. Em 1736 (alv. de 28.7, CLE.LA, lI, 458), é reestruturada a orgânica das secretarias (agora “secretarias de Estado”, criando três – a do Reino, a da Marinha e Ultramar e a dos Negócios Estrangeiros e Guerra). Esta última é desdobrada em 1787. A da Fazenda é criada em 1788 (dec. 15.12). Com isto, atingese a especialização da alta administração central que encontramos nos finais do Antigo Regime e que presidirá ainda, basicamente, à repartição dos ministérios no constitucionalismo monárquico. A partir dos meados do século XVIII, aparece a figura do “ministro assistente ao despacho”, espécie de coordenador da acção dos restantes secretários517 . Em 12.3.1663, dá-se regimento ao cargo de escrivão da puridade, restabelecido a favor do valido do monarca, o Conde de Castelo Melhor, mas que não lhe sobreviveu. O governo pelos secretários régios – do mesmo modo que o governo por “untas” eventuais, que se tomou habitual no pe-

517 Sobre a estrutura e funcionamento das secretarias de Estado no séc. XVIII, importante, Subtil, 1993, 177 ss.

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ríodo dos Áustria, tanto em Portugal como em Espanha – desvalorizava os conselhos palatinos e corroía o seu poder. Daí que fossem frequentes as pressões no sentido de exigir a intervenção dos conselhos para a produção de actos executórios.

5.1.5.3 Conselho de Estado Mais institucionalizado era o Conselho de Estado518 , criado pelo Cardeal D. Henrique, ao tomar posse da regência, em 1562, para tratar de “assuntos de Estado”, ou seja – tal como são definidos, no alvo de 29.11.1643 – “contratos, cazamentos, alianças, instruções, avizos publicos, ou secretos, que se derem a quaisquer embaixadores, comissarios, agentes, rezidentes, agentes, e quaisquer poessoas [...] que se despacharem dentro ou fora do Reino, e negócios que forem da qualidade referida” (A.N.T.T., ms. 2608). O seu primeiro regimento é já de 8.9.1569, de acordo com o qual o conselho devia reunir três vezes por semana, despachando os assuntos que lhe fossem propostos pelo rei ou nos quais os conselheiros acordassem, destacando-se expressamente os assuntos da fazenda. Em 1624, dá-se-lhe novo regimento (referido no de 1645), mandando-se reunir pelo menos duas vezes por semana. Ele devia, nomeadamente, assessorar o vice-rei no despacho das matérias que cabiam na sua alçada(18). D. João IV dá-lhe novo regimento em 31.3.1645519 , espaçando ainda mais as reuniões (todas as se518 Cf. bibliografia e fontes em Hespanha, 1994,247 ss. 519 Soisa, 1783, VI, 472; Praça, I, 270; Ajuda 44-xiii-32; ANTT, Ms. Nossa Sra. da Graça, t. VII D, fl. 277 [nx. 33 – “Emendas”]; BUC, ms. 714; BNL, ms. 30, nx. 8.

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gundas-feiras), mas encomendando aos seus membros, como principais ministros do reino, a maior liberdade de opinião. Na sua função de consulta, o Conselho de Estado sofria a concorrência de “juntas” informais, como a “unta nocturna”, órgão restrito e quotidiano de consulta instituído por D. Luísa de Gusmão, talvez inspirada pela Junta de la Noche formada pelos principais validos de Filipe II. Com D. Pedro II, o Conselho de Estado reúne-se regularmente (semanalmente), embora, na sua função de conselho, fosse progressivamente substituído pelo “Gabinete do rei”, constituído pela rainha, validos, desembargadores e eclesiásticos. Esta tendência de transferir para um “gabinete” de secretários as tarefas de conselho e de coordenação política acentua-se cada vez mais. Por isso – e segundo Merêa –, a actividade do Conselho decaiu muito desde os finais do reinado de D. João V. não havendo conselheiros em 1754. Pombal reestruturou o Conselho em 1760 e nomeou cinco conselheiros; mas, não tendo estes sido substituídos por morte, o Conselho estava de novo reduzido aos secretários de Estado. Em 1796, D. Maria nomeou 14 conselheiros e deu aos ministros de Estado a categoria de conselheiros natos (av. 4.7). Parece ter deixado de reunir em 1801.

5.1.5.4 Conselho de Portugal Um outro órgão de governo central foi o Conselho de Portugal520 . 520 Cf. bibliografia e fontes em Hespanha, 1994, 249 ss.

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Constituía um dos privilégios oferecidos por Filipe II de Espanha às cortes de Almeirim de 1579. Teve um regimento em 1586, alterado em 1602 e, provavelmente, de novo por volta de 1633. Embora só agora comecem a ser feitos estudos de detalhe sobre este órgão, a sua importância política parece ter sido diminuta, ocupando-se sobretudo das trivialidades da administração, sendo os assuntos de maior vulto remetidos ao Consejo de Estado (Lynch, 1982, lI, 28). Na literatura memorialista da época (v .g. na Historia portugueza e de outras provincias do ocidente ..., de Manuel Severim de Faria, cod. 241 B.N.L.), a discussão sobre as vantagens ou desvantagens da existência do Conselho gira em torno da questão de saber se ele embaraça ou facilita o despacho das pretensões dos requerentes portugueses. Em contrapartida, no horizonte nunca aparece a sua ligação à questão da autonomia de governo portuguesa. Nestes termos, a alternativa ao Conselho de Portugal, que esteve em prática por alguns anos, de encaminhar directamente os papéis de Lisboa do Vice-Rei para um secretário (Fernão de Matos, Diogo Soares) podia apresentar vantagens, por extinguir um dos passos do percurso burocrático. Em Lisboa, por sua vez, existiram, durante o período fílipino, governadores e vice-reis, com poderes constantes do regimento de cada um.

5.1.5.5 Desembargo do Paço Para as “matérias de graça que tocassem à justiça” – de facto, a generalidade dos assuntos relativos à administração

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civil do reino – existia o Desembargo do Paço521 . Com ele se correspondiam os corregedores, quanto à generalidade das suas atribuições. Por ele se despachavam também as decisões finais sobre as “leituras de bacharéis”, que habilitavam para o desempenho das magistraturas letradas (“lugares de letras”), as quais eram também despachadas por este tribunal. Nele, finalmente, se confirmavam as eleições dos concelhos e os respectivos oficiais. Mas a sua actividade de controlo raramente configurava uma intervenção directiva, antes se cifrando quase sempre num controlo de tipo tutelar. Segundo uma notícia coeva522 , o seu serviço ocupava o presidente, dois desembargadores, sete escrivães (“Alentejo”, “Beira”, “Entre Douro e Minho”, “Lisboa”, “Mesa, letrados e ofícios” e dois extravagantes), um médico, um cirurgião, um porteiro e quatro moços de recados; setenta anos depois, a sua orgânica interna aparece, no entanto, bastante alterada – aumenta para nove o número dos desembargadores, reduzem-se a cinco as escrivaninhas (repartições ou secretarias) – “Justiça”, “Corte, Estremadura e Ilhas”, “Beira”, “Alentejo”, “Minho e Trás-os-Montes” –, e aumenta o número de oficiais menores (dez)523 .

521 Literatura, fontes e ulteriores desenvolvimentos em Hespanha, 1994, 250 ss. Por último, com antecipações dos resultados de um importante trabalho de investigação em curso, Subtil, 1993, 163. 522 Cod. 11543 da B.N.L., fls. 168-170. 523 Costa, 1706, III, 585. Para a segunda metade do século XVIII, Subtil, 1993.

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5.1.5.6 Casas da Suplicação e do Cível As Casas da Suplicação e do Cível constituem o desdobramento do tribunal da corte para as matérias de justiça(19). A sua competência era, em termos gerais, o julgamento em última instância, dos pleitos judiciais. A Casa do Cível exercia esta competência nas comarcas e ouvidorias de Entre Douro e Minho, de Trás-os-Montes, da Beira (salvo Castelo Branco) e nas de Esgueira e Coimbra (da Estremadura). A Casa da Suplicação nas restantes comarcas do reino (cf. Ord. fil., L,6,12), nas ilhas (durante certo período sujeitas às relações do Brasi1)524 , no ultramar (até à criação das respectivas Relações) e quanto a certos juízos privilegiados e especiais. Esta competência não era exercida indiscriminadamente por todos os desembargadores; antes estava repartida por certos núcleos (desembargadores dos agravos, corregedores dos feitos crimes, corregedores dos feitos cíveis, ouvidores do crime, juízes dos feitos da coroa e juízes dos feitos da fazenda (cf. Ord. fil., I, 6 ss.; Hespanha, 1986a, 330 ss.).

5.1.5.7 Conselho da Fazenda Um outro tribunal do Paço é o Conselho da Fazenda, tribunal criado em 1591, na sequência da reforma filipina da administração superior da fazenda, e em substituição dos anteriores vedores da fazenda, cujas atribuições her524 A Relação da Baía foi criada em 1609 (Regimento, 7.3.1609), extinta em 5.4.1626 e novamente restabelecida em 1652 (Regimento em 12.9.1652). A Re]ação do Rio foi criada em 16.1.1751 (Regimento em 13.10.1751).

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da(20). Embora o cargo já existisse antes, o primeiro regimento conhecido dos vedores da fazenda é o de 17.10.1516, integrado no conjunto dos Regimentos e ordenações da Fazenda (Soisa, 1783, I, 1 – 49). Aí se prevê a existência de três vedores, cada qual com o seu escrivão, com competências repartidas entre si (cap. 26-29), dispondo de atribuições no domínio da administração da fazenda real e da jurisdição, voluntária ou contenciosa, relativa a assuntos da fazenda(21). O facto de os três vedores terem competências delimitadas, superintendendo cada qual num pequeno núcleo de funcionários, deve ter levado a uma quase completa independência de cada um. De tal modo que, em 20.11.1591, Filipe I, constatando que, na prática, o que existia eram três tribunais distintos, aplicou a este domínio da administração o regime sinodal, integrando os três vedores num conselho, sujeito a um vedor presidente, ao mesmo tempo que juntava aos vedores não letrados dois outros que o eram. Surgiu, então, o Conselho da Fazenda, integrando um vedorpresidente, dois vedores não letrados e outros dois letrados (Reg. 20.11.1591, Soisa, I, 241-245). A promulgação das Ord. fil. (1603), que previam a existência de um Juiz dos feitos da fazenda (ao lado do, já existente, Juiz dos feitos da coroa) na Casa da Suplicação, vem tirar quase todas as atribuições de jurisdição contenciosa ao Conselho da Fazenda, que passa para o Juiz dos feitos da fazenda da mesma Casa. O grupo de pressão dos juristas impusera o princípio de que as matérias de justiça, mesmo

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em questões da fazenda, deviam caber a tribunais de justiça. A solução era, no entanto, gravosa para os interesses da fazenda real, que não apenas se via sujeita à apreciação de juízes não especializados, como, sobretudo, era enleada no eficaz sistema de defesa dos direitos dos particulares observado na ordem judicial comum. Assim, os anos que se seguem, praticamente até aos meados do século XVII, são o palco de um despique entre “financeiros” e “juristas”, de que são sintomas sucessivas providências legislativas, a propósito da separação de competências quanto à jurisdição contenciosa em matérias de fazenda entre a Casa da Suplicação e o Conselho da Fazenda525 . A tendência para governamentalizar a administração da fazenda, furtando-o ao controlo de um conselho, leva, durante o domínio dos Áustrias à tentativa da outorga da gestão financeira a Juntas várias526 . Mas o Conselho da Fazenda mantém-se como órgão ordinário. Por 1641-1642, na sequência da votação dos subsídios para a defesa do reino pelas cortes reunidas nesse ano527 , criase a Junta dos Três Estados, encarregada de superintender ao lançamento e cobrança das contribuições que integravam estes subsídios (décimas, real d’água, novos direitos, tributo das caixas de açúcar, mais tarde, “usuais”). A Junta mantém-se até aos finais do Antigo Regime (8.4.1813)528 . 525 526 527 528

Cf. Hespanha, 1994, 236 ss. Cf. Hespanha, 1994, 239. Sobre elas, Hespanha, 1993a. Fontes suplementares: Hespanha, 1994, 239.

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As próximas grandes modificações(22) do regime da alta administração da fazenda só se verificam no tempo de Pombal, com a reforma de 22.12.1761 (CL.E., L.A., IV, 398-429), que unificou toda a administração não contenciosa da fazenda no Tesouro Real do Reino ou Erário Régio, deixando para o Conselho da Fazenda apenas as atribuições contenciosas, até que o alv. de 17.12.1790 (A.D.S., 629) une as duas instituições numa só. Além de evidentes razões de ordem prática, subjaz às reformas josefina e mariana a ideia iluminista da unidade do Estado, bem como a mais nítida inclusão das questões da fazenda entre as matérias “de governo”, libertas de todas as peias da administração jurisdicional529 . O Conselho da Fazenda era, portanto, o órgão da corte que controlava – por processos que ultrapassavam já, em muitos casos, a simples via do recurso uma extensa área administrativa – a Casa Real (através da sua Mordomia-mor), a Casa dos Contos, a Contadoria-mor da Corte e Reino, a Casa da Moeda, as Casas da Alfândega de Lisboa, a Casa da Índia e da Mina, os Armazéns da Guiné e da Índia, as alfândegas e portos secos do reino, os contadores, os feitores régios e os almoxarifados do reino, dos próprios e dos mestrados, etc. Em todo o caso, a própria organização da fazenda pública e da sua contabilidade dificultavam este controlo pois, como já vimos, vigorava a regra do pluralismo orçamental e a da consignação de receitas a certas despesas, pelo que a 529 Sobre esta última fase da alta administração financeira, v. Subtil, 1993, 171 ss., 181 s.

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fazenda se repartia numa pluralidade de fundos dotados de grande autonomia e afectados a certas finalidades ou despesas pré-fixadas. O que reduzia bastante o poder de disposição deste órgão central.

5.1.5.8 Mesa da Consciência e Ordens Para as matérias tocantes à “consciência” e para o governo das ordens militares de que o rei era grão-mestre – existia a Mesa da Consciência e Ordens530 . A Mesa da Consciência é criada em fins de 1532 por D. João III com o encargo de o aconselhar sobre os assuntos que “tocavam à obrigação da sua consciência”. Parece que ter funcionado sem regimento até 1558 (24.11). Novos regimentos surgem em 1608: primeiro, o do Presidente da Mesa (12.8.1608); depois (23.8), o da Mesa 531 . É-lhe atribuída a tutela da administração espiritual e temporal das ordens militares (n. 16); a tutela das provedorias e mamposterias dos cativos (n. 16) e dos defuntos e ausentes (n. 16); o governo da Casa dos órfãos de Lisboa (n. 17); o provimento e governo das capelas de D. Afonso IV e D. Beatriz (n. 17); o provimento das mercearias dos reis e infantes passados (n. 17); a administração do Hospital das Caldas e de outros hospitais, gafarias e albergarias de protecção real (n. 17); a superintendência da administração da Universidade (n. 18); o provimento dos ofícios relativos às repartições que tutelava, bem 530 Bibl. e fontes, Hespanha, 1994,251 ss. 531 O primeiro publicado em J.J.A.S., 228 ss.; o segundo, em UAS., 231 ss.

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como dos das terras das ordens (ns. 18 ss. e n. 26); o governo espiritual das conquistas (n. 23; correndo, entre 1604 e 1614, o seu governo temporal pelo Conselho da Índia, então criado); bem como, em geral, todas as coisas que toquem à consciência do rei (n. 27). No domínio contencioso, era tribunal de recurso nas matérias de foro privilegiado dos cavaleiros das ordens (n. 10), bem como a instância por onde se passavam os perdões e cartas de fiança dos privilegiados (ns. 43 ss.) ou se concediam autorizações para a alienação ou subrogação dos bens das comendas (n. 42). As reformas do Erário régio promovidas por D. José I, a partir da lei de 22.12.1761, tendentes, sobretudo, à centralização da administração financeira, levam a que, por Alv. de 20.6.1774, se extingam os contos dependentes da Mesa, quer quanto às rendas das Ordens, quer quanto às dos cativos, integrando-se tudo no Erário (AD.S, 776). Em 22.4.1808 cria-se uma Mesa da Consciência no Rio de Janeiro (cf. também A 12.5.1809, sobre os ordenados dos seus membros). Embora tenha estado projectada a sua reforma nos finais do século XVIII, tendo para tal Pascoal de Melo redigido um relatório (Merêa, 1949), a Mesa acabou por ser extinta em 16.8.1833 532 .

532 Sobre os seus funcionários, cf. Hespanha, 1994, 253; Subtil, 1993, 169.

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5.1.5.9 Conselho da Índia e Conselho Ultramarino As matérias de governo das conquistas correram, até 1604, pela Mesa de Consciência. Então, reconhecendo-se a falta de um tribunal especializado para as coisas “da Índia” (como existia em Espanha, desde 1524), é criado o Conselho da Índia, a que se dá regimento em 25.7.1604 (J.J.A.S.,87)533 . Nele eram tratadas, todas as matérias, qualquer que fosse a sua natureza, relativas ao ultramar, tirando as Ilhas e Norte de África, nomeadamente: provimento dos bispados, ofícios da justiça, guerra e fazenda; despachos de parte vindos do ultramar; mercês de serviços do ultramar; etc. O despacho de naus e armadas, bem como a administração das rendas do ultramar, continuava, porém, a correr pelo Conselho da Fazenda, a fim de evitar a pulverização da gestão financeira, objectivo que a coroa já então prosseguia. A criação do Conselho da Índia deve ter provocado reacções, especialmente por parte dos deputados da Mesa da Consciência, que viam as suas prerrogativas severamente restringidas. Assim, o novo conselho resiste apenas dez anos, sendo extinto em 1614 e distribuídas as suas competências pela Mesa da Consciência e pela repartição da Índia do Conselho da Fazenda; embora tenham permanecido razões objectivas para a sua reconstituição. Com a Restauração, restabelece-se o Conselho, a que é dado regimento em 1642 [ou 1643 ?] (Reg. 14.7.1642 [ou 1643?], J.J.ªS., 151; CLE.LA, I, 431). Ao mesmo

533 V., para mais pormenores, Hespanha, 1994, 255 ss. (e bibl. aí citada).

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tempo, é extinta a repartição da Índia do Conselho da Fazenda, cujo vedor passa a ser o presidente do novo Conselho, assessorado por mais dois conselheiros de capa e espada e por um letrado. O novo Conselho não recupera, porém, as atribuições espirituais relativas ao ultramar, que continuam na Mesa da Consciência. No resto, o regimento corresponde ao de 1604, embora a competência do novo conselho em matéria de fazenda seja porventura um pouco alargada. Em 28.7.1736 (CLE.LA, II, 458) é criada, como já se viu, a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios ultramarinos, que faz a ligação entre o Conselho e o rei e tende, progressivamente, a assumir as competências governativas do Conselho534 . Em 30.8.1833 é extinto.

5.1.5.10 Conselho de Guerra O governo militar do reino correu, durante a primeira metade do século XVII, ou pelos órgãos normais de governo (nomeadamente, pelo que toca ao reino, pelo Desembargo do Paço e secretarias régias, e, pelo que toca às conquistas, pelos conselhos da Fazenda e da Índia), ou pelo Consejo de Guerra, de Madrid. A Guerra da Restauração exigiu uma maior coordenação do governo militar. Assim, logo três dias depois da revolução, em 11.12.1640, cria-se o Conselho de Guerra (J.J.A.S., 10). Dificuldades de funcionamento levam à sua reforma em 1643 (reg. 22.12.1643). A sua competência

534 Pelo alv. 16.6.1763, recebe a competência contenciosa do Conselho da Fazenda.

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abrangia tudo o que se referia à defesa do reino, embora a administração financeira da milícia competisse, como vimos, à Junta dos Três Estados. O Conselho dispunha ainda de competência disciplinar de última instância sobre os militares. A jusante, correspondia-se com os governadores de armas das províncias, criados na mesma altura. Com a criação da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra, em 1736, o Conselho de Guerra perde bastante importância como órgão de governo, embora tenha mantido as suas competências jurisdicionais e consultivas até à sua extinção em 1834535 .

5.1.5.11 Tribunais eclesiásticos Finalmente, embora quase sem impacto nas matérias político-administrativas internas, dois outros tribunais: o Conselho Geral do Santo Ofício536 e o Tribunal da Bula da Cruzada 537 . Estes órgãos da administração central dividiam entre si, como vimos, as várias matérias do governo538 . 535 Literatura e fontes, Hespanha, 1994, 256 ss. 536 Sobre o Conselho Geral do Santo Ofício, V. a síntese publicada em Serrão, 1963. Espera-se a publicação de um estudo recente e importante, de Francisco Bethencourt. Outra bibliografia, em Hespanha, 1992, 69. 537 O Tribunal da Bula da Cruzada cobrava e administrava os rendimentos provenientes da Bula da Cruzada, regularmente concedida aos soberanos portugueses a partir de Gregório XIV (bula Decens esse videtur, de 6.4.1591), destinados à conservação e defesa dos fortes do norte de África. O tribunal foi criado em 1591, tendo-se regulado pelo regimento do correspondente tribunal de Castela e por disposições avulsas até 1634, data em que lhe é dado um regimento (reg. 10.5.1634, J.JA.S., 10), que se mantém em vigor até ao século XIX. Os seus comissários eram apresentados pelo Papa e nomeados pelo rei. 538 Outros tribunais, juntas e repartições, Subtil, 1993, 258, n. 261 (fontes legislativas podem ser encontradas, sob cada nome, em Thomaz, 1843).

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5.1.6 Súmula Traçado este panorama dos grandes ramos do aparelho político-administrativo, na periferia e no centro, importa fazer um balanço final, em que se avalie a importância relativa desses ramos, se visualize o peso que este aparelho tem em relação à população do reino (notando as eventuais assimetrias regionais) e se determine o peso de cada uma das principais categorias de oficiais no conjunto. Os cálculos numéricos de seguida apresentados baseiam-se em estudos efectuados para o século XVII. Desde já se adverte que a extrapolação para os fins do século XVIII é muito arriscada, tudo indicando que se verifica, a partir dos meados de setecentos, uma sensível intensificação das estruturas políticas e administrativas centrais539 . Como também se dá uma alteração da importância política e simbólica dos vários órgãos. Por volta de 1640, existem em Portugal cerca de 11 700 oficiais da administração periférica, a que haverá que somar cerca de 500 outros da administração palatina. A importância de cada um dos ramos do aparelho administrativo anteriormente descritos é-nos dada pelo Quadro e pelo conjunto de Gráficos. Nestes últimos, os ofícios aparecem repartidos em dez grandes ramos: (1) os ofícios da administração real periférica não incluídos nas categorias 2 539 Cf., com novos dados numéricos, para os finais do séc. XVIII, que documentam um enorme crescimento da administração central (6 ou 7 vezes), Subtil, 1993, 190 ss.

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e 3; (2) os das alfândegas; (3) os da fazenda; (4) os ofícios das sisas; (5) os ofícios concelhios excluídos os das sisas, órfãos e milícia honorária (ou seja, os ofícios concelhios da justiça e da “economia” ou “polícia”); (6) os dos órfãos; (7) a milícia honorária; (8) os ofícios senhoriais ou de corporações com autonomia jurisdicional (universidades, hospitais); (9) os ofícios de tipo dominial; (10) outros. Daqui resulta claro que, com algumas variações regionais, a maior parte dos ofícios corresponde aos ofícios concelhios (cerca de 72%, incluindo aqui os ofícios da milícia honorária). Devendo notar-se que nestes se poderão ainda incluir os ofícios das sisas e os dos órfãos, com o que a percentagem subiria para 85%.

Gráfico 8 – p. 244 no original

Isto é particularmente nítido nas comarcas ao norte do Douro e na Beira interior (comarcas de Viseu, Lamego, Pinhel 398

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e Guarda). Em contrapartida, destes elementos estatísticos ressalta a modéstia, em termos quantitativos (cerca de 10%), do aparelho da administração real periférica, constituído pelos ramos (1), (2) e (3). Agrupando os anteriores dados segundo uma outra classificação, obtemos o quadro seguinte:

Gráfico 9 – p. 245 no original

Estes elementos estatísticos permitem destacar uma outra conclusão: o aparelho político-administrativo estava predominantemente voltado para a realização das funções judicial e “económica” (ou “de polícia”). À primeira estavam ligados cerca de 28% dos oficiais e à segunda cerca de 46% (incluindo aqui os ofícios “dos órfãos, resíduos e capelas”). As tarefas fiscais-financeiras ocupavam cerca de 12%, enquanto que a milícia ocupava 8%; sendo de notar que a milícia mercenária – elemento considerado central nos pro399

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cessos europeus de construção do Estado – não conta senão com pouco mais de meia centena de oficiais (uns 5 por mil, relativamente ao total). Estes números permitem-nos concluir algo sobre os fins do poder, tal como eles se manifestam na prática. Neste plano, os aparelhos de poder confirmam, até certo ponto, o modelo doutrinal dominante. Na verdade, a supremacia que os respúblicos continuavam a atribuir à justiça como fim primeiro do poder reflectia-se, no plano da acção política, na importância numérica dos ofícios de justiça, embora esta importância fosse acompanhada – ou até ultrapassada – pela dos ofícios “económicos” ou “de polícia”, a maior parte deles vindos da época medieval. O que, por seu lado, mostra como a ideia de que ao poder cabe regular os aspectos quotidianos da vida em comum não é uma inovação do “Polizeistaat”; o qual, neste ponto, apenas transportou para o nível central um modelo de acção política de há muito em vigor no nível periférico do poder (família, comunidades). Assim, o peso dos ofícios de polícia – que, notese, são quase todos ofícios concelhios – não indicia, no nosso caso, a emergência de um paradigma moderno de poder político, mas a supervivência das formas medievais de tutela comunal da vida colectiva. Já os 12% dos ofícios da fazenda representam um traço característico da organização proto-estadual do poder político, embora aqui ainda estejam incluídos os ofícios (locais) das sisas, que representam quase 50% do grupo. Se os descontar400

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mos, o significado deste sector reduz-se a uns 6% do total, dos quais – acrescente-se – metade correspondia à administração alfandegária. A justiça estava mais bem dotada, representando cerca de 5% dos ofícios totais. Mas, mesmo assim, juízes régios não existiam sequer em 10% dos concelhos.

Gráfico 10 – p. 246 no original

A tipologia dos próprios ofícios reflecte esta mesma estrutura “jurisdicionalista” da administração ou mesmo aquilo a que se tem chamado a “civilização do papel selado” (“civiltà della carta bollata”, F. Chabod). Na verdade, se retiramos do conjunto os oficiais dos concelhos – os almotacés (9% do total) e os vereadores (17% do total) –, nada menos do que um terço dos restantes oficiais é constituído por escrivães – dos quais os escrivães do público e judicial representam cerca de 40 % – e um quinto por juízes. Julgar e escrever são, pois, as tarefas paradigmáticas da administração oficial na época moderna. 401

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Por outro lado, e como também já notámos, esta administração periférica carecia de articulação, de modo a poder ser encarada como um aparelho coerente e unificado. Para isto era, desde logo, decisivo o facto de a esmagadora maioria dos oficiais pertencer, como se disse, a entidades dotadas de extensa autonomia jurisdicional – os concelhos. A unidade poderia, no entanto, provir de um esforço de articulação realizado pela administração real periférica. Mas, mesmo esta, era, em si mesma, desarticulada. Desarticulada no topo; pela falta de órgãos palatinos de coordenação, pelo menos até ao período pombalino, em que surge uma lógica “de ministério” (ou “gabinete”), dominada por uma ideia de direcção política centralizada. Mas também na periferia, por falta de um funcionário com poderes de coordenação global dos representantes locais da coroa, como o foram os intendentes franceses ou o Kreishauptmann noutros reinos da Europa. Apesar da tendência para o alargamento dos seus poderes, o corregedor foi sempre, fundamentalmente, um oficial de justiça e de “administração civil”, nunca tendo podido controlar as decisivas áreas da milícia ou da fazenda. As possibilidades de intervenção na periferia do aparelho político-administrativo da coroa eram, portanto, desde logo reduzidas, em virtude desta escassez de meios humanos.

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Gráfico 11 – p. 247, 248 e 249 no original

Mas também o tipo de relacionamento institucional entre o aparelho político-administrativo periférico da coroa e as estruturas político-administrativas que lhe estavam subordinadas dificultava uma estratégia centralizadora. De facto, e como já antes dissemos, as relações entre o centro e a periferia do sistema oficialato existentes no sistema político moderno não podem ser descritas, salvo porventura em domínios excepcionais como a milícia e as finanças, através do modelo que hoje designamos por relação hierárquica. O facto de a competência (ou jurisdição) do funcionário ser, no domínio da teoria do ofício do direito comum (v. Hespanha, 1993, V. 3; Subtil, 1993, 187 ss.), quase absolutamente garantida contra intromissões, impedia que o superior pudesse dar ordens ao inferior ou avocar as suas competências. A intervenção do superior esgotava-se assim numa actividade de tutela, dirigida a verificar o cumprimento do regimento dos oficiais “subordina-

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dos”. Esta diluição do vínculo de subordinação não se verificava apenas entre os oficiais da administração real e os da administração local com que se correspondiam a jusante; caracterizava também o próprio aparelho administrativo da coroa, nas suas ligações entre o centro e a periferia.

Gráfico 12 – p. 250 no original

Um outro aspecto a considerar, nesta descrição estrutural e global do aparelho político-administrativo periférico é o da sua distribuição regional. Os Mapas cartografam os valores da relação entre a população das diversas comarcas e ouvidorias e o número de oficiais que aí serviam, distinguindo entre o número total e o dos ofícios não honorários. No primeiro deles, a consideração dos valores dos ofícios honorários, nomeadamente nas zonas em que a dimensão média dos concelhos é pequena (Beira interior e litoral), obs404

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curece um tanto a leitura, apesar de já apontar para a relativa debilidade do enquadramento político-administrativo das zonas litorais ao norte do Tejo, das zonas transmontanas e do Alentejo interior. Mas no Mapa seguinte já se manifestam claramente as simetrias dos equipamentos político-administrativos: fortes nas comarcas ribeirinhas do Tejo (embora não tenham sido considerados os ofícios das lezírias, paúis e jugadas de Santarém), do Alentejo litoral e no Algarve (embora tenham sido descontados os ofícios das almadravas); fracos nas comarcas de Entre Douro e Minho, no litoral ao norte do Tejo e no Alentejo interior. Naturalmente que estas as simetrias terão explicações variadas, decorrentes da história político-administrativa local, que são uma análise mais detalhada pode averiguar.

Gráficos 13 e 14 – p. 252 e 253 no original

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Bibliografia citada ALBUQUERQUE, Martim de, “Política, moral e direito”, Estudos de cultura portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional, I, 1985. CABEDO, Jorge de, Decisionum ac rerumjudicatarum, Ulyssipone, 1601. COSTA, João Martins da, Domus Suplicationis Curiae Lusitaniae [...] stylisupremique Senatus consulta, Ulyssipone, 1622. FRAGOSO, Baptista, Regimen reipublicae christianae, Lugduni, 1641-1652. HESPANHA, António Manuel, As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal, século XVII, Lisboa, ed. autor, 1986,2 vols. HESPANHA, António Manuel, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a Revolução”, in P. Grossi (ed.), Hispania. Entre derechos proprios y derechos nacionales, Milano, 1990, I, pp. 135-204. * HESPANHA, António Manuel, Poder e instituições no Antigo Regime, Lisboa, Cosmos, 1992. * HESPANHA, António Manuel, As Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal- século XVII, Coimbra, Almedina, 1994. HESPANHA, António Manuel, “A “Restauração” portuguesa nos capítulos das cortes de Lisboa de 1641”, Penélope. Fazer e desfazer a história,1993, pp.29-60. HESPANHA, António Manuel, La gracia dei direcho. Economia de la cultura en la Edad Moderna, Madrid, Centro Estudios Constucionales, 1993. LANDIM, Nicolau Coelho, Nova et scientifica tractatio [...] I. De Syndicatu, Ulysipone, 1627. MELO (Freire), Pascoal, Institutiones iuris civilis lusitani, Conimbricae, 1789.HESPANHA, António Manuel, História das instituições. Época medieval e moderna, Coimbra, Almeida, 1982. MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “Os concelhos e as comunidades”, in J. Mattoso (dir.), História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 19931994, IV, pp. 333-380. PASCOAL DE MELO, Institutiones iuris lusitani, Ulysipone, 1789. PEGAS, Manuel Álvares, Commentaria ad Ordinationes Regni Portugaliae, Ulysipone, 1669-1703, 12 tomos + 2. 406

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SAMPAIO, Franscisco Coelho de Sousa, Prelecções de direito pátrio; Lisboa, 1793. SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário de história de Portugal, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1963. * SILVA, Ana Cristina Nogueira, e A. M. Hespanha, “O quadro espacial”, in J. Mattoso (dir.), História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993-1994, IV (“O Antigo Regime”, dir. por A. M. Hespanha), pp. 39-48. SILVA, José Monteiro de Andrade e, Colecção chronológica de legislação [...], Lisboa, 1854-1859. SOISA, José M. C. C. e Systema dos regimentos reais, Lisboa, 1783. * SUBTIL, José Manuel (1993), “Governo e administração”, in J. Mattoso (dir.), História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993-1994, IV, pp. 157-193. THOMAZ, Manuel Fernandes, Reportorio geral ou indice alphabetico das leis estravagantes [...], Lisboa, 1843.

Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com *. Notas (1) Sobre a jurisdição dos juízes de fora, v. Ord. fil., I, 65. Sobre as origens e evolução dos juízes de fora, cf. Hespanha, 1982, 254 s. e bibliografia aí citada. (2) Sobre a residência (sindicância ou inspecção) dos juízes de fora e dos corregedores, feita por um desembargador nomeado pelo rei, V. Ord.fil., I,6. Doutrina: por todos, Landim, 1627. (3) Também não vingou, por outro lado, a tentativa de transformar os juízes de fora em supervisores dos juízes eleitos das terras vizinhas. D. João I tentara-o, com o argumento de que era provável que estes últimos não “pudessem fazer direito”. Mas, face às reacções, desiste do seu intento (cf. Ord. af, II, 59,6). Durante o século XVIII, ter-se-á formado a prática de alguns juízes de fora exercerem jurisdição sobre concelhos vizinhos. Prática que é coonestada, para os casos em que existisse, pelo alv. de 22.1.1785, António D. S. Silva, Coll. chron. leg., loc. respect). (4) Assim, não poderiam exercer em relação aos juízes de fora as atribuições de Ord. fil, I,58, 5 e 34 (cf. Pegas, 1669, IV, ad 1,58, gl. 10, n.º 1 [pg. 543] e literatura aí citada). (5) Cf. Ord. fil., I,58,23. e Reg. do Desembargo do Paço, § 45. Pegas vai mesmo ao ponto de duvidar da possibilidade de o corregedor avocar os feitos do juiz de fora no âmbito do n. 22 (feitos de poderosos) (cf. Pegas, ad I,58, gl. 24 (p. 554),

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a literatura aí citada, nomeadamente Valasco, 1612, all. 77, n. 9 ss. A possibilidade de o corregedor conhecer por acção novas as causas nas terras em que não houvesse juiz de fora tem origem numa lei de 17.7.1527 em que, respondendo a um pedido dos povos no sentido de os corregedores não avocarem as acções dos juízes das terras, o rei decide em contrário “havendo respeito que nas outras cidades villas e lugares de suas correições onde não houver juízes de fora se seguiria mais oppressão as partes de os corregedores não conhecerê das auções novas pellos juízes não serem letrados e serem naturais da terra e não poderem com tanta brevidade nem tão livremente fazer justiça nem o dereyto das partes lhe sera tambem guardado” (José Anastácio de Figueiredo, Synopsis chromologica, 1790, I, 328). (6) Sobre a interpretação deste preceito, V. Pegas, 1669, ad I, 58, gl. 24 (p. 554). (7) A provisão de 12.8.1750 manda-os informar sobre as pessoas mais capazes de andar na governança. (8) Cf. Pegas, 1669, IV, (ad 1,58), gl. 12, n. 5 (p. 546). Privativa era, por exemplo, a competência dos provedores e contadores, pelo que os corregedores não podiam, em princípio, intrometer-se em matérias de fazenda, a não ser quando a lei expressamente o determinasse ou nas faltas do provedor (cf. Ord. fil., 1,58,10). (9) Assim, os contadores vêm de dois em dois anos a Lisboa prestar contas ao Conselho da Fazenda (Reg. 17.10.1516, cit., cap. 85); recebem deste os cadernos de assentamentos por onde os almoxarifes hão-de fazer os pagamentos e vigiam o cumprimento das instruções neles contidas (ibid., cap. 78); tomam anualmente as contas aos almoxarifes (Ibid., cap. 81), etc. Quanto a estes, além de sujeitos a este controlo, devem pedir instruções aos contadores, no caso de dúvida (Ibid., 116); enquanto que, a jusante, exercem uma idêntica actividade de inspecção e instrução sobre escrivães e recebedores (v. g., Ibid., 104). (10) Fonte legal: Ordenações da fazenda, de 17.10.1516, em Soisa, 1783, I, 62 ss. (11) I. e., oficiais com salários assentados na folha daquela repartição. (12) Sobre a alfândega de Lisboa, que tinha, como já se viu, uma organização particular, v. o Foral da Alfândega de Lisboa, de 15.10.1587, em Soisa, 1783, II, 1 ss. Comentário e decisões judiciais em Pegas, 1669, t. IX, ad 2,26, § 9 e 20, 33; 2,28, rubr. (13) Sobre as jugadas – tributo sobre cuja aplicação havia muitas questões práticas, quer quanto às terras por que era devido, quer quanto às isenções pessoais (cf. Ord. fil., 2,33) – há uma vastíssima literatura. Para a descrição sistemática, Sampaio, 1793, 102. Para a doutrina anterior: verdadeiro tratado sobre o tema, com muita jurisprudência, regimento das jugadas de Santarém de 25.3.1559, Foral novo e regimento das jugadas de Coimbra, Pegas, 1669, t. IX, ad 2,33, rubr., pg. 357 ss.; Cabedo, 1601, I, d. 188; II, d. 64. (14) Sobre este tipo administrativo, V. R. Durand, Le cartulaire du Saio-Ferrado du monastere de Grijó (XI-XIII siecles), Paris, 1971, XLVII. Os oficiais das jugadas – como o próprio tributo – estão, porventura, mais próximos da administração dominial medieval do que da administração fiscal moderna. (15) Reg. das lezírias de 24.11.1576, em Soisa, 1783, II, 289 ss.; reg. dos paúis, Ibid., 315 ss. O carácter real das lezírias decorria quer do direito comum, quer do direito pátrio (Ord. fil., II, 26). No campo do Mondego, havia também um provedor dos marachões, com os seus oficiais (reg. 8.9.1606, Pegas, 1669, IX, ad II, 33, gl. 33, ou J.JA.S., 178).

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(16) Sobre este foro especial, e os abusos a que dava lugar, Col. lego estrav., I, 14 ss., 52 ss. (17) Cf. A Arala Pinto, O pinhal do rei. Subsídios, Alcobaça, 1938-1939,2 vols. Novo regimento em 25.7.1751 (A.D.S.). (18) Reg. do Arquiduque Alberto, cap. VI e VII; Reg. do Conde de Basto, de 18.7.1633, J.J.A.S., p. 318 ss., art. 16. (19) Não existem monografias actualizadas sobre o tema, pelo que uma investigação de fundo teria que começar pelos textos legais (para a Casa da Suplicação, Ord. fil., I, 5-34; para a Casa do Cível, Ord. fil., I, 35-46; legislação extravagante abundante em Thomaz, 1843, S.V. “Relação ...”, “Casa da Suplicação”, “Casa do Cível”, “Desembargadores”) e pelos comentários doutrinais: antes de todos, Pegas, 1669, tomos II e III (v. os “estilos” da Casa do Cível, em IV, p. 13 ss.), João Martins da Costa, Domus Sul/icationis... Styli, Ulyssipone, 1608. Literatura secundária em Hespanha, 1994, 228 ss. Recentemente, com organigrama, Subtil, 1993, 170. (20) Literatura e fontes em Hespanha, 1993,236 SS. Dado o seu paralelismo com a evolução portuguesa, ainda que manifestando uma sistemática precocidade, tem interesse recordar os traços gerais da alta administração financeira castelhana. O Consejo de Hacienda existia desde 1532, com atribuições e estrutura semelhantes ao português. A cobrança e administração dos serviços (millones) votados em cortes corria pela Comissión de millones, criada por 1590, integrada no Consejo em 1658, e correspondente, nas suas funções, à nossa Junta dos Três Estados. O reforço da via governativa em matéria de fazenda leva à criação, desde 1714, de uma Secretaria de Estado e Despacho especializada, marginalizando o respectivo conselho. (21) No domínio da administração, competia-lhes: arrecadar as rendas reais (cap. 3); administrar o comércio ultramarino (incluindo as rendas da Madeira) e decidir sobre temas com ele conexos (como o abastecimento, defesa e obras das conquistas), cap. 6; tomar as contas aos almoxarifes e contadores das comarcas, bem como a outros oficiais que lhas devessem (vedores da fazenda do Algarve e do Porto, contador-mor de Lisboa, recebedores e rendeiros), passando as respectivas cartas de quitação, caps. 6 e 30. ss:; administrar os bens próprios do rei (lezírias, paços, casas, armazéns, terecenas, fortalezas), cap. 6; preparar a decisão real em todos os assuntos de graça que tocassem a fazenda, nomeadamente tenças, ordenados, padrões, dada de jurisdições, etc., caps. 7,9,50,51-54; dar condicionalemente – por cartas de “se assim é” – rendas reais, caps. 11,20; dar ofícios das sisas e direitos reais, caps. 21-33. No domínio da jurisdição voluntária, cabia-lhes: arrendar e aforar propriedades (cap. 3); arrendar rendas reais (caps. 3, 10, 52); despachar, por si ou por consulta ao rei, todas as cartas em matéria de fazenda (cap. 5). No domínio da jurisdição contenciosa, estava-lhes atribuído o conhecimento: dos recursos (eventualmente, de acções novas) em matéria de sisas, cap. 23; dos feitos em que fossem parte os rendeiros de rendas da coroa, capo 23; dos erros dos oficiais da fazenda, cap. 24; das apelações das decisões de almoxarifes, recebedores e rendeiros, capo 25; e, em geral, de “todas as cousas que pertencem à nossa fazenda, & della dependerem por qualquer via que seja”, quer por acção nova, quer por apelação, cap. 23. (22) V. lista dos seus oficiais, denotando algumas reformas internas, no reg. 29.12.1753 (Col. Leg. extr. Leis e alvs., III, 188).

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5.2 Disciplina e punição No capítulo anterior descrevemos as atribuições políticas da coroa e os aparelhos político-administrativos que as levavam a cabo. Neste capítulo, estudaremos o direito penal da monarquia, ou seja, o modo como a coroa projectava lidar com as condutas desviantes. Antes de iniciar o tratamento desta matéria, convém fazer duas advertências, que explicarão a abordagem que dela iremos fazer. Em primeiro lugar, é preciso ter claro que o direito penal oficial não é o único meio com que uma sociedade procura disciplinar as condutas desviantes. Pelo contrário, ela fálo por múltiplos mecanismos, desde a ameaça de punições extraterrenas ao escárnio e à troça, passando pelos mecanismos da disciplina doméstica. Na sociedade de Antigo Regime, a função da repressão penal é ainda mais nitidamente subsidiária de mecanismos quotidianos e periféricos de controlo. Isto explicará o carácter pouco efectivo da punição penal, a que nos referiremos adiante. Em segundo lugar, deve ser sublinhado que, justamente em função desta sua falta de efectividade, o direito penal, sobretudo no Antigo Regime, desempenha não tanto uma função de disciplina efectiva da sociedade, mas sobretudo de afirmação enfática – consagrada em normas explícitas, apoiada por aparelhos organizados e públicos de constrangimento, embebida em liturgias e espectáculos públicos – de um

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conjunto de valores sociais a defender pelo poder público. Daí que tenha sentido encarar as normas penais como manifestações de um sistema axiológico subjacente, que o poder implicitamente promete/ameaça impor, como condição mínima da convivência social. Através do direito penal, podemos, então, surpreender aquilo que a coroa (exprimindo pontos de vista culturais mais gerais) entende serem os valores indispensáveis da convivência, em termos tais que a sua defesa deve ser assumida pelo poder público. Na prática, porém, o grau de realização desta garantia mínima acaba por ser muito baixo. Pelo que o direito penal desempenha, afinal (como veremos na última parte do capítulo) uma função muito mais simbólica do que disciplinar.

5.2.1 O sistema axiológico do direito penal de Antigo Regime O crime, em si, não existe. Ele é produzido por uma prática social de censura, discriminação e de marginalização, prática mutável e obedecendo a uma lógica social muito complexa. Sobre os resultados desta primeira actividade de constituição dos “objectos criminais” projecta-se uma segunda grelha de classificação, esta doutrinal, produzida pelo discurso jurídico penal. Este redefine os “crimes vividos”, construindo novos conceitos (“tipos penais”), e organiza e interrelaciona estes últimos em grandes categorias, referidas a certos valores (religião, vida, segurança, propriedade).

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Na descrição que se segue, tomaremos como base as grandes categorias definidas, já nos finais do século XVIII, por Pascoal de Melo540 .

5.2.1.1 Crimes contra a ordem religiosa É apenas nas Ordenações filipinas (1604) que os “crimes religiosos” aparecem agrupados. Nas Manuelinas (1521), estes tipos penais ainda aparecem dispersos. Aparentemente, a erupção deste objecto “crime religioso” no discurso legislativo português ocorreu na segunda metade do século XVI, possivelmente na sequência do aparecimento de um foro especial para estes delitos, o Tribunal do Santo Ofício, cuja competência (privativa da jurisdição ordinária, quer civil, quer eclesiástica) abrangia todos os “negócios atinentes à fé”. Num regimento mais tardio – o de 1640, que sistematiza e explicita a prática anterior – lá aparece a série de crimes com que abre o Livro V das Ord. fil.- apostasia (tit. VII), renegação (tit. VII), heresia (tit. VII), cisma (tit. VIII), disputa de matérias religiosas (tit. XI), blasfémia (tit. XII), desrespeito do Santíssimo Sacramento ou dos Santos (tit. XIII), feitiçaria (tit. XIV), bigamia (tit. XV), falsidade em assuntos religiosos (tit. XIV), detenção de livros proibidos (tit. XX), perjúrio (tit. XXIV) e sodomia (tit. XXV)541 . Ou seja, a partir daqui, os crimes 540 Pascoal de Melo um grande jurista (e, também, um grande penalista), que escreveu na segunda metade do séc. XVIII. É autor de umas famosas lnstitutiones iuris criminalis lusitani, Ulysipone, 1789, bem como de um projecto de código criminal, pioneiro e muito avançado para a época. V., Hespanha, 1989. 541 Cf. U.A.S.; sobre a competência do Santo Ofício, em Portugal e em geral, Fragoso, 1641, II, lib. v. disp. 13 per totam.

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cujo conhecimento pertencia à Inquisição destacavam-se, em virtude desta particularidade jurisdicional, formando uma categoria a que o legislador passou a ser sensível, na arrumação dos títulos do livro terribilis das Ordenações. A heresia tinha uma longa tradição textual no direito comum, em textos de direito romano ou em textos de direito canónico(1). No direito peninsular, ele aparece na legislação desde o início do século XIII542 . Nas suas grandes linhas, era o seguinte o regime da heresia segundo o direito comum: (i) A heresia é, sobretudo, um delito “da vontade” e não “do entendimento”; embora seja definida como um “erro”, ela só era punida quando com o erro concorressem a firmeza do ânimo e a pertinácia. Daí as distinções feitas a partir da caracterização psicológica do acusado (confitente v. inconfitente; primário v. relapso). (ii) É, em princípio, um delito de baptizados, ou seja, de pessoas pertencentes ao grémio da Igreja, pois só então estão sob a sua disciplina, da qual a disciplina temporal se entende como subsidiária543 . O direito distinguia, de facto, a heresia da apostasia e da infidelidade. A segunda só era excepcionalmente 542 Cf. lei de 1211, lei 3; Livro das leis e posturas, 10/11; Partidas, VII, 26, pr. e ss. 543 No entanto, um cânone do Sextum (V, 13) prevê a punição dos judeus convertidos ao cristianismo e novamente tomados ao judaísmo.

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punida. A terceira não era, em geral, punida. O estatuto penal destes comportamentos religiosos reflecte uma situação de pluralismo religioso. Na verdade, o que se punia não era a diversidade de religião, mas a violação da ortodoxia pelos que permaneciam no seio da Igreja. Nem esta se arrogava o direito de punir os não crentes, nem o poder temporal considerava o pluralismo religioso incompatível com a unidade política da sociedade. Estas oposições ir-se-ão esbatendo, à medida que se vai estabelecendo a ideia de “religião do reino”, segundo a qual a violação do princípio da unidade religiosa equivalia ao crime de lesa majestade. (iii) Só é punida a heresia manifesta, mas não já a cometida “nullo signo oris aut facti” (sem sinal oral ou de facto), pois a Igreja não julgaria coisas ocultas. (iv) É um delito cujo conhecimento compete aos tribunais da Igreja(2).Mas como estes não podem aplicar penas de sangue, devem entregar os réus a punir corporalmente ao braço secular (Decretais, v. 13, 1; 15, 1). Segundo uma opinião comum em Portugal no século XV, o juiz secular a quem se recorria não devia reapreciar o processo, mas apenas limitar-se a aplicar a pena; mas as Ordenações afonsinas e manuelinas prescreviam um papel mais

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interveniente do juiz secular, na esteira de uma opinião de Bártolo544 . (v) As penas previstas na tradição jurídica são: a excomunhão; a privação de ofícios e benefícios; a degradação; a incapacidade jurídica; o confisco; a prisão e as galés; a infâmia até à segunda geração; a morte pelo fogo. As Ordenações recebem o regime do direito canónico, reconhecendo a jurisdição da Igreja neste domínio545 . Mas, de facto, o tribunal competente acabava por ser um tribunal régio, o da Inquisição, a quem os tribunais seculares asseguram toda a cooperação (Ord. fil.,II, 6). A distinção entre heresia, apostasia e infidelidade atenua-se, à medida em que Igreja e poder vão preferindo o princípio da unidade religiosa ao do pluralismo; é o que acontece, nomeadamente, depois da conversão forçada de judeus e mouros. O que mais importa destacar, na ulterior evolução histórica deste campo penal é que, com a secularização do direito, que se nota na segunda metade do século XVIII, o regime destes crimes passa a ser fundado na ofensa feita, não à religião verdadeira, mas à religião estabelecida e à ordem social de que esta faz parte. Neste sentido, não interessa, por um lado, que a religião estabelecida seja verdadeira546 ; e, por 544 Cf. Amaral, 161O, v. “haeresia”, n. 16. 545 Plenamente, só as Ord. fil., v.I. 546 Cf. Pascoal de Melo, 1789, II, 1 “[...] a Nação, a qual dificilmente se pode conceber sem alguma religião, verdadeira ou falsa”; critica ao ateísmo dos livre-pensadores, II, 8).

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outro, qualquer crime contra a ordem social pode ser considerado como crime religioso. Pascoal de Melo chega a definir como antireligiosos todos os actos que atentem contra os bons costumes, as leis divinas, as naturais e até as civis (“todos os delitos podem ser chamados eclesiásticos, estando sujeitos, no foro da consciência, à punição da Igreja, às penitências, censuras e penas canónicas”, Pascoal de Melo, 1789, II, 2). Assim, a heresia torna-se, antes de tudo, num “crime público civil, pois se entende que todo aquele que ofende ou despreza a religião pública destrói os mais fortes vínculos sociais” (Pascoal de Melo, 1789, II, 4), originando “infinitas desordens, tumultos e perturbações, que a mesma sociedade deve acautelar” (Pascoal de Melo, 1844, 15). Daí que a punição civil deste crime não considere os aspectos espirituais, pois “os homens não foram postos para vingar as ofensas feitas a Deus” (ibid.) e, por isso, a gravidade do crime não seja avaliada pela magnitude espiritual ou teológica das ofensas, mas pela medida das perturbações sociais provocadas (v. g., sedições ou criação de partidos religiosos), pelo escândalo causado (cf. Pascoal de Melo, 1844,24) ou pelo mal real provocado547 . No plano da tipificação548 , a secularização leva a que se prescindam de traços que apenas tinham significado numa concepção puramente religiosa ou teológica do crime, como, 547 V. g., os feiticeiros não são punidos senão pela malícia e sofrimentos físicos a que as beberagens derem causa, Pascoal de Melo, 1844, 9495; os perjúrios, pelos prejuízos provocados a terceiros, Cod., VII; 1. 548 Isto é, da definição das condutas que integram certo tipo penal e a que, portanto, corresponde uma certa pena.

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por exemplo, a distinção entre hereges confitentes e inconfitentes. E, pelo contrário, se introduzam novas distinções, estas relacionadas com a perigosidade social dos actos (v. g, a distinção entre heresia simples e heresia sediciosa, Cod., V, 6)(3). No plano da natureza e medida da pena, as consequências desta laicização do conceito de crime religioso são também importantes. A pena deve corresponder, não à magnitude da ofensa feita a Deus, mas à perturbação da ordem social (cf. Pascoal de Melo, 1844, 20). Por outro lado, o simbolismo religioso perde todo o sentido: a morte pelo fogo, que se ligava a uma antiga ideia de purificação, é, agora considerada como cruel e sem proporção com o delito. Por isso, vão ser propostas novas penas, não apenas mais brandas, mas, sobretudo, com uma nova simbologia, espelhando a ofensa, não a Deus, mas aos vínculos sociais. Estas novas penas vão, então, encenar as consequências do delito, numa dramatização em que o criminoso é o protagonista: ele, que pôs em risco os vínculos sociais, vai ser objecto de uma dessocialização, vai perder a consideração pública (infâmia), a capacidade jurídica (confisco, incapacidade sucessória, perda de ofícios) e, finalmente, vai ser expulso do convívio social (degredo) (Cod., V). Finalmente, no que respeita à competência jurisdicional, a secularização do conceito de crime religioso exige que o seu conhecimento compita a tribunais seculares. É por isso que o próprio Pascoal de Melo elabora um projecto laicizante e

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estatizante de regimento da Inquisição549 . O Tribunal do Santo Ofício acaba por ser extinto por uma lei de 5.4.1821. A punição da blasfémia tem também uma longa tradição jurídica550 . Na Península, as Partidas (VII, 28) estabelecem um sistema hierarquizado, que se comunicará às fontes ulteriores. Esta hierarquização verifica-se, em primeiro lugar, quanto ao autor da blasfémia (“quanto mas honrado, e mejor lugar tiene, tanto peor es el yerro”)(4), estabelecendo-se uma gradação que ia de rico homem a “otro orne de los menores”551 . No plano do destinatário da ofensa, distingue-se entre ofensa a Deus, à Virgem e aos santos. Distingue-se ainda entre a blasfémia por palavras e a blasfémia por actos (v. g., cuspir na cruz ou feri-la com pedra ou faca). Em Portugal, uma lei de 6.7.1315 (Ord. aj., v. 99, 1) aplicava aos que blasfemassem contra Deus ou contra a Virgem a pena de corte da língua e morte pelo fogo. Nas Ordenações (Ord. aj., tit. cit., Ord. man., v. 34 e Ord. fil., v. 2) retomam-se, nos seus traços gerais, as distinções das Partidas. Neste sistema de tipificação e de punição, que se manterá até ao iluminismo, os traços mais interessantes são os seguintes: Em primeiro lugar, a promoção de uma visão hierarquizada, quer da sociedade terrena, quer da sociedade ce-

549 Sobre a política da coroa relativamente à Inquisição, no séc. XVIII, v., por último, Marcos, 1990,29 ss. 550 Levítico, c. 24; D., 12,2, de jurejurando; Decretais, v. 26, c. 2. 551 Partidas, VII, 28.

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leste. O grande é mais punido, não apenas porque sobre ele recai uma maior responsabilidade, mas também porque a sua punição constitui um exemplo para o pequeno (“punitio maior est exemplum, timor et metus minorum”). Mas, diferenciando a pena segundo a qualidade do ofendido, destaca-se, para além disso, a natureza hierarquizada da própria sociedade celeste, de que a da terra é o reflexo e, com isso, o carácter sagrado da ordem. Em segundo lugar, e agora no plano do sistema das penas, é interessante notar, não apenas a gradação das penas em função do estatuto do criminoso, mas ainda a lógica desta gradação. Com efeito, há penas que se aplicam a nobres – multa e degredo – e penas que se aplicam a vilãos – açoites, multa e galés. Ou seja, os nobres punem-se no património (mais fortemente do que os vilãos) ou na honra (degredo). Os vilãos punem-se no património, ou no corpo (por castigos físicos ou trabalhos forçados). Não se trata apenas de um sistema punitivo estatutário, mas ainda de uma manifestação da hierarquização dos bens honra/corpo/fortuna que não é o mesmo para todos os homens. Para os nobres, o bem mais caro é a honra, enquanto que o corpo, mero suporte da honra, não constitui um objecto autónomo de punição. Para os vilãos, não sendo a honra relevante, o bem mais caro é o corpo. A feitiçaria é um outro dos crimes religiosos(5). Em Portugal, uma lei de 19.3.1401 (Ord. af, v. 42, pr.) pune as adivinhações para achar ouro e prata. Mas deviam ser também punidas muitas outras práticas que se encon419

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tram tipificadas, quer na tradição do direito comum, quer nas Partidas552 . As Ordenações afonsinas (V, 42, 4) alargam a punição (com a morte) a todo o tipo de feitiçaria. Na longa justificação aí contida não se invocam os argumentos clássicos das fontes romanas sobre os prejuízos que da feitiçaria adviriam à saúde e tranquilidade dos homens, mas o seu carácter de pecado, pela participação demoníaca que haveria em todas essas actividades. Ao sistema das penas subjaz o mesmo princípio estatutário, embora atenuado, e a mesma gradação dos bens já antes encontrada. Pascoal de Melo (Pascoal de Melo, 1789, pg. 81/82) dá como ridículos as feitiçarias, encantamentos, filtros e augúrios punidos pelas Ordenações e como desproporcionadas as penas aí estabelecidas 553 . O que acontecera fora que, para o racionalismo das Luzes, a magia deixara de ser crível; e, apesar da insistência de algumas das fontes anteriores no tópico dos prejuízos “naturais” (doenças, burlas) causados pelos feitiços, é evidente que, por detrás da punição de certas práticas – nomeadamente daquelas que apenas consistiam em rituais e palavras (mala carmina) – estava a convicção da sua eficácia, agravada pelo carácter insidioso e imparável dos processos. 552 Adivinhar em espelho, água, cristal ou coisa luzente, cabeça de homem morto, animal, ou na palma da mão de menino ou mulher virgem; encantamentos; feitiços de amor; beberagens. Permitidos são a astronomia e os encantamentos benéficos (tirar demónios, desfazer nuvens de granizo, matar gafanhotos ou pulgões). Uma lei de 22.3.1499 (cf. Ord. man., v. 33) acrescenta-lhes práticas especificamente portuguesas (v. g., benzer com espada que tivesse passado três vezes o Douro e Minho). 553 Cf. Cod., “Provas”, p. 28.

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Por fim, o perjúrio, violação de juramento (“aquele que voluntariamente viola juramento; mentira produzida contra juramento) 554 . Pelo direito civil, produzia infâmia (C., 2,4, 41; D., 3, 2, 21) e era castigado com a flagelação (D., 12, 2, 13, 6). No direito português, a punição aparece com uma lei de 11.1.1302 (cf. Ord. af. v. 57, 1/2), em que se punem o falso testemunho com a decepação de pés e mãos. D. Afonso V. considerando estas penas excessivas estabelece os açoites e o corte da língua (“porque pecam com ela”, ib., n. 4). Nas Ordenações seguintes (Ord. man, v. 8; Ord. fil., 54), a inclusão do perjúrio como crime religioso mantémse. Mas começam a notar-se sinais de laicização, quando se multiplicam as ligações do perjúrio a outros crimes de falso. Assim, a doutrina começa a entender que ele pode ser cometido mesmo por pessoas não ajuramentadas, pelo que o valor da fé pública, da confiança social (e, nomeadamente, negocial) tende a sobrepor-se, cada vez mais, aos valores estritamente religiosos. Ou seja, nos dispositivos simbólicos destinados a fazer respeitar a palavra dada, valores jurídicos laicos, como o respeito do princípio pacta sunt servanda, começam a equivaler às prescrições religiosas. As soluções expressamente propostas na obra de Pascoal de Melo555 , ou implícitas no seu sistema de tipos e de categori554 Por sua vez, o juramento era definido como “pedido, dirigido formalmente ou virtualmente a Deus para que sirva como testemunha para confirmar a verdade daquilo que se afirma ou se promete”. V. Amaral, 1610, v. “juramentum”, n. 36 ss.; Fragoso, 1641, p. 630, n. 115. 555 Pascoal de Melo, 1789, n, 17 ss.; -Pascoal de Melo, 1844,1. 7; “Provas”, 25 ss.

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as, ratificam esta linha de evolução, considerando o crime como essencialmente civil “pelo dano, que dele se segue ao público” (Cod., p. 25) e porque “ofende e escandaliza os homens bons e as leis publicas, que mandam observar todas as convenções e promessas, e com especialidade as juradas” (p. 26).

5.2.1.2 Crimes contra a ordem moral Sob a rubrica de crimes “morais”, Pascoal de Melo reúne uma série de tipos que, na tradição doutrinal anterior, já apareciam agrupados, embora com outros agora separados. Os principais são o adultério, o estupro, e os crimes “contra a natureza” (sodomia, bestialidade, masturbação). A punição do adultério tinha obedecido a duas lógicas diferentes, uma de direito romano, outra de direito canónico. No direito romano, o adultério era considerado como uma violação da “lei conjugal”, ou seja, da exclusividade que a mulher deveria ao marido quanto às relações sexuais556 . O que estava em causa era, fundamentalmente, o interesse familiar em impedir a turbatio sanguinis, a dúvida quanto à paternidade dos filhos nascidos na constância do matrimónio557 . Por outro lado, requere-se a consumação das relações sexuais ou, mesmo, a gravidez558 . 556 Sobre o impensado das obrigações sexuais dos cônjuges, cf. supra. 557 “O adultério comete-se na mulher casada, sendo o seu nome assim composto a partir de “parto concebido com outro”, D., 48, 5, 34, 1). Consequentemente, o adultério apenas podia ser cometido pela mulher casada e pelo seu amante, já não por homem casado com mulher solteira. Nem por mulher casada de mau porte (exceptio plurium). 558 A doutrina estabelecia uma complicada casuística das relações amorosas que configuravam o adultério, bem como dos factos que o indiciavam. Neste

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No direito canónico, pelo contrário, o adultério é considerado como a violação da fidelidade conjugal (Decretum, C. XXXII, qu. 5, c. 15; C. 20-23), podendo, por isso, ser cometido por ambos os cônjuges. Para além de que o critério de avaliação dos actos é naturalmente diferente e menos rigoroso, aceitando-se a relevância de certas formas de adultério por pensamentos559 . Este diferente tratamento do adultério relaciona-se, possivelmente, com duas economias da sexualidade e da família, em conflito na cultura europeia desde a baixa Antiguidade. Uma, que alguns autores fazem corresponder a um ambiente de recessão demográfica, de maior permissibilidade sexual, embora limitada pela lógica da defesa da identidade da família, enquanto instituição política. Outra, correspondente a áreas ou épocas de plétora demográfica, dominada por uma concepção negativa e restrita da sexualidade, que a procurava confinar ao âmbito da família rigorosamente organizada em termos monogâmicos560 . O direito canónico e a disciplina eclesiástica da família encarnam a promoção e defesa deste segundo modelo, desenvolvendo uma acção com-

último plano, os juristas eram bastante estritos, não se contentando alguns sequer com o facto de os amantes serem encontrados na cama, despidos (solus cum sola, nudus cum nuda). Com este rigor probatório que se encontra também noutros crimes sexuais (v. g., bestialidade e sodomia, v. Gomez, 1555, ad 1, 80, n. 33 ss.) – procurava-se decerto limitar a perseguição penal destes actos. Mas outros, mais rigoristas, consideravam já como adulterinos os actos preparatórios do coito (“veluti mutuis amplexibus, & osculis”, Barbosa, 1618, ad v. 38, 2, p. 31). 559 Corelia, 1744, pg. 66, ns. 1-2. 560 Cf. Goody, 1972.

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binada para estirpar dos costumes europeus a sexualidade extra-familiar, profundamente enraizada. As Ordenações (Ord. fil., v. 25; 28; Ord. man., v. 15; 25; Ord. fil., v. 7; 12; 20) seguiram, fundamentalmente, a via do direito romano, com todas as suas consequências. Assim, o adultério do marido não era, por via de regra, punido561 ; e o da mulher só era considerado relevante quando tivesse havido consumação de relações sexuais. Mas, neste caso, a lei era muito severa na protecção dos interesses político-familiares, o que era característico de uma sociedade onde prevaleciam valores casticistas e linhagísticos: o adultério era, em geral, punido com a morte, sendo o marido ofendido autorizado a tirar desforço por suas próprias mãos (Ord. fil., v. 38). Legislação extravagante da segunda metade do século XVIII (alv. de 26.9.1769) reforçara ainda o carácter “familiar” dos interesses protegidos, ao tornar a perseguição do crime totalmente dependente de acusação do marido. A análise do regime penal do concubinato reforça ainda a impressão de que, no seio desta tradição de enquadramento penal das práticas sexuais, o que estava em causa não era tanto a defesa de uma ordem moral, como a defesa dos interesses da família enquanto grupo político. De facto, o concubinato era permitido pelo direito romano (D., 25, 7 De concubinis), tendo sido proibido apenas pelo direito canónico Embora, de acordo com o “critério do pecado” (formulado

561 Ord. fil., v. 28, pr. (concubina “teúda e manteúda” no domicílio conjugal).

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pela doutrina medieval acerca da hierarquia entre os dois direitos e recolhido em Ord. fil., III, 64), tal proibição devesse ter passado para o direito civil, o certo é que a nossa lei só punia o concubinato de homem casado e, ainda assim, só no caso de decorrer com escândalo público e, sobretudo, com dissipação, a favor da concubina, do património familiar562 . Tão pouco eram punidos o “coito vago” e o meretrício. Apesar deste tom um tanto laxista da legislação – pelo menos, em relação à sexualidade masculina – desenvolviase, paralelamente, uma política sexual mais repressiva, amparada, sobretudo, pelo aparelho disciplinar da Igreja. De facto, nas visitações, os bispos deviam inquirir dos casos de concubinato e barregania, procedendo contra eles criminalmente, nos termos do direito canónico (cf. Ord. fil., II, 1, 13). Por influência destas visitações, surge legislação que comete aos magistrados seculares o encargo de devassar sobre os “pecados públicos” (cf. alvo 25.12.1608, 21 e 22) e, segundo Pascoal de Melo, juízes “moralistas” chegavam a punir o adultério simples (com mulher solteira) de homens casados (Cod., “Provas”, 32). É justamente contra este rigorismo – que perturbava, muitas vezes, a ordem familiar estabelecida, levantando suspeitas falsas ou importunas – que reage a legislação pombalina (cf. C.L. 19.8.1769, 12) e, em geral, toda a doutrina iluminista.

562 Isto acontecia quando o marido sustentasse a concubina (Ord. fil., v. 28, pr.), mas já não quando ele “tivesse o hábito da promiscuidade carnal” (Amaral, 1610, v. “concubinatus”, p. 218, col. 1).

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No projecto de Codigo criminal, de Pascoal de Melo (t. XI) acolhe-se uma concepção totalmente diferente da ordem sexual, recebendo-se, em geral, a concepção canónica de adultério, como violação da fidelidade conjugal; com isto, passa a punir-se, tanto o adultério do marido, como o da mulher, embora com penas diferentes, adequadas à diferente natureza do sexo segundo o “pensar geral da nação” (mas, afinal, mais duras para a mulher) (cf. 6 e “Provas”, pp. 33-34). A punição do adultério tende a libertar-se da primazia dos interesses político-familiares (i. e., de defesa da legitimidade dos filhos da mulher casada). Agora que a natureza contratual do casamento começa a ser destacada, toma-se decisiva a fidelidade, como manifestação do respeito pela palavra dada (pacta sunt servanda). Ao mesmo tempo, o Estado chama a si a defesa de uma certa ordem sexual, até aí mantida pelo direito canónico. Com isto se anuncia o puritanismo da sociedade burguesa, que identifica a sexualidade permitida com a sexualidade entre os cônjuges, embora admita, como válvula de escape, uma promiscuidade sexual policiada e “exterior” à sociedade oficial, proporcionada pela prostituição563 . O regime penal do estupro confirma o modelo de valorização da sexualidade a que nos vimos referindo. O direito romano punia como estupro dois tipos de conduta: ou as relações sexuais com virgem menor (puellae defloratio, D., 48, 6, 34) ou as relações sexuais impostas a 563 O “coito vago” ou o “meretrício” não são punidos no projecto de Código de Pascoal de Melo, embora sejam sujeitos a medidas de polícia (Cad., XI, 3).

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uma mulher com violência (D., 48, 5, 6, 2 e Nov., 141 e 150), enquadrando-as no crime de violência. O direito moderno tende a enfatizar mais a defesa dos valores familiares do que a defesa da “inocência”. António Cardoso do Amaral, fundando-se numa opinião comum, defende que “quem estupra uma virgem na casa do pai, comete rapto de virgindade e aleivosia, mesmo que a não leve para outro lugar, devendo ser punido com as penas dos raptores [...]; pois com o estupro não se ofende apenas a virgem, mas também os seus pais e consanguíneos [... Em contrapartida], quem estupra uma virgem que o quer e consente, a nada está obrigado para com essa mulher, nem no foro da consciência, nem no foro contencioso, desde que a rapariga não esteja sob o poder do pai, mãe, tutor, curador ou afim; pois a mulher emancipada tem poder sobre o seu corpo quanto ao foro externo e, nas suas coisas, cada um é o moderador e o árbitro” (Amaral, 1610, v. “stuprum”, ns. 11-12). Apenas se exigia que se não usasse fraude (dona, presentes, blanditiae, carícias) para obter o consentimento. Os únicos limites da sexualidade fora do casamento, para solteiros, eram, portanto, as limitações impostas pela ordem familiar e a proibição da violência ou do engano564 .

564 Alguns autores introduziam ainda outras restrições à sexualidade inter valentes: as ordens clericais, certas relações político-sociais (v. g., entre ama e escravo ou criado, entre tutor e tutelada, etc.), a diversidade de religião, bem como aquilo que era considerado como a natureza do sexo (sobre este último ponto, v. Gomez, 1555, ad 1. 80, ns. 5 ss.).

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Outra era a perspectiva dos canonistas, subsidiária da moral sexual da Igreja. Aqui, o princípio era o do carácter ilícito e pecaminoso do coito, sobretudo se praticado fora do matrimónio (“todo o outro coito é ilícito e reprovado pela lei divina [...] de onde se deve fugir da fornicação como da peste”565 . As Ordenações (Ord. fi/., v. 5; Ord. man., v. 14; Ord. fil., v. 18 e 23) recolhem, no fundamental, o sistema romano, punindo como estupro as relações sexuais com violência (Ord. fil., 18, 3) ou com virgem ou viúva, honesta e menor de 25 anos in patris potestate (ibid., v. 23, 3). A legislação extravagante mais importante é constituída pelas leis de 19.6.1775 e de 6.10.1784 (A.D.S.). A primeira visa proteger a familia contra a utilização do estupro como forma de forçar casamentos que os pais, de outro modo, não consentiriam. Para isso, à estratégia canónica de reparar o pecado pelo matrimónio subsequente opôs-se a de devassar oficialmente de tais crimes e de aplicar aos culpados penas civis. O pecado permaneceria, mas os interesses políticos das famílias ficariam mais salvaguardados. A segunda estratégia era a de, além de impedir a queixa de estupro a mulheres (maiores de 17 anos) que tivessem consentido nas relações sexuais, diferenciar as penas aplicadas em função da idade das mulheres. Afinal, reforça-se a protecção dos interesses familiares, mesmo com o sacrifício da ordem “moral”. Tal é, também, a orientação

565 Mesmo no matrimónio, a castidade era a virtude máxima, pecando venialmente o marido “que só por causa do prazer e voluptuosidade tenha trato com a mulher”, Gomez, 1555, ad 1. 80, n.º 3.

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do projecto de Pascoal de Melo (tit. XII) que, porém, descriminaliza o estupro de donzela com quinze anos feitos (XII, 10).

5.2.1.3 Os crimes contra a ordem política Nos crimes contra a ordem política incluem-se a lesamajestade e a violência. O tratamento penal da lesa-majestade remonta a dois títulos do Corpus iuris civilis, D., 48, 4, ad legem Juliam de magestatis, e c., 9, 8, id.. Nestes textos, a configuração do crime é pronunciadamente estatalista: o crime é definido como um delito contra o povo romano e a sua segurança. Esta tradição é recolhida no Cód. visigót. (II, 1, 8), no direito canónico566 e, mais tarde, nas Partidas (VII, 2)567 . É justamente nas Partidas que surge uma segunda tradição textual, bastante importante para o direito português, em que o crime de lesa-majestade é integrado no delito mais geral de traição, este despido de qualquer conotação estatalista e feito equivaler a uma ofensa praticada com falsidade e vileza (VII, 2, 20). Em todo o caso, o texto distingue a lesa-majestade ou traição (contra o rei, ou seu senhorio, ou contra o bem comum da terra) do aleive (contra qualquer outro homem). No direito português, a primeira providência legislativa sobre a lesa-majestade aparece com D. Afonso II (cf. 566 Decretais, n, C. 6, q. 1, c. 22; De poenit., D. 1, c. 9. 567 Sobre a história da lesa-majestade na doutrina do direito comum moderno, cf. Sbriccolli, 1974.

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Ord. af., v. 2), numa lei em que a traição aparece confundida, quer com a aleivosia, quer com a heresia: “[...] a saber, se os davanditos trabalharam em nossa morte, ou de nosso filho, ou de nossos parentes achegados, os quais temos que são parte do nosso corpo, ou em morte de seu senhor, ou hereges [...]” (Ord. af., v. 2, 1). As Partidas influenciam decisivamente as Ord. af., bem como o conceito aí subjacente de poder e de delito político. Terminada a enumeração dos casos de lesa-majestade, o texto afonsino passa (n. 22) – aplicando-lhe um regime punitivo semelhante – para um crime que, embora se não chame “traição” ou “aleive”, corresponde ao acto aleivoso ou traiçoeiro típico, ou seja, o acto daqueles que cometem alguma ofensa contra seu amigo ou senhor, com traição ou aleivosia. O traço mais característico do regime das Ord. af. é justamente esta não autonomização da ofensa feita ao rei em relação a outras ofensas praticadas aleivosamente contra uma pessoa comum. Dir-se-ia que, na escala de valores que subjaz à fixação do tipo penal, o vínculo entre súbdito e rei se não distingue fundamentalmente do vínculo entre o homem e Deus, entre o vassalo e o seu senhor, entre o amigo e o seu amigo e, mesmo (como se comprovaria por outros textos, mesmo posteriores, que aproximam o traidor do parricida), entre o filho e o pai. Com isto, é toda uma matriz de compreensão dos vínculos políticos que se exprime. Pois estes aparecem justificados, ao mesmo tempo, pelos deveres da religião, da obediência, da amizade e da piedade familiar. Nestes ter-

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mos, qualquer violação a este complexo resulta no mesmo crime; embora, no seio do tipo penal, se estabeleçam gradações. Se contrastarmos o texto das Ordenações com a tradição anterior, parece que assistimos a uma progressiva regressão do conceito de “Estado”, desde os textos “publicistas” do Corpus iuris, passando pelas versões já menos nítidas das Partidas, até desembocar num estado de obliteração da especificidade do supremo poder e dos vínculos de dependência em relação a ele. Já as Ordenações seguintes marcam o advento, neste plano, da consciência da especificidade do poder real. A lesamajestade é, agora568 , um crime especificamente dirigido contra o poder supremo, embora a sua gravidade conheça gradações consoante o carácter mais ou menos directo, mais ou menos grave, da ofensa. Os conselheiros régios e os magnates deixam de aparecer entre os protegidos pela punição; o mesmo se passa com os senhores ou os oficiais subalternos569 . Por outro lado, a lesa-majestade aparece, agora, claramente distinta da aleivosia, a que é dedicado um texto independente mais adiante (tit. 37). O poder supremo é concebido como intimamente relacionado com a pessoa do rei. Enquanto que os textos romanos falavam do populus ou da civitas, os textos medievais e modernos falam do rei, do seu

568 Cf. Ord.fil., v. 6. 569 Embora a questão fosse discutida (Cf. Farinnacius, 1606, q. 112, n. 136 ss.). As Ord. fil. reservavam outros títulos para a tipificação das ofensas aos magistrados (v.g., tits. 48 ss.).

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corpo, da sua família (ns. 1 e 21), do seu palácio (n. 24), da sua imagem (n. 8), da sua presença pessoal (n. 7), das suas ordens directas e pessoais (ns. 2-6, 23, 25-26). No conjunto, o que sobreleva é uma concepção personalizada do poder, em que o crime político é configurado, não como uma ofensa feita à ordem política, seja quem for que a actue, mas uma ofensa pessoal ao rei. Com o iluminismo570 manifesta-se, em primeiro lugar, a ideia da especificidade dos laços que ligam o vassalo ao imperante. Isto salienta-o Pascoal de Melo, logo no início da justificação do articulado relativo à lesa-majestade do seu projecto de Código criminal: a principal obrigação do súbdito é a fidelidade; e, por isso, o maior crime que ele pode cometer é a traição, e lhe chamo alta em diferença dos crimes particulares; porque o amigo infiel ao seu amigo e bemfeitor, o criado ao amo, o clérigo ao seu bispo, e o súbdito ao superior, não é tão criminoso e infiel, como aquele, que o é à sua Pátria” (“Provas”, 36/37).

Por outro lado, o poder político despersonaliza-se. O crime de alta traição ou lesa-majestade deixa de visar principalmente a pessoa do rei, passando a dirigir-se contra a república, como todo politicamente organizado. Sendo assim, embora o soberano desempenhe na organização política um papel central e, por isso, seja aqui especialmente contemplado, todas as instituições e todos os magistrados são agora defendidos pela punição da lesa-majestade. Daí que se passe 570 Sobre o crime de lesa-majestade no período pombalino, V. Marcos, 1990, 95 ss.

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a punir, nesta sede, a sedição, o tumulto, a resistência aos magistrados, delitos que, as Ordenações, eram punidos noutros títulos (tits. 44-51).

5.2.1.4 Os crimes contra a ordem pública – a violência A punição da violência tinha uma longa tradição textual571 . Na esteira das fontes romanas, distinguia-se entre violência pública (vis publica) e violência privada (vis privata); esta distinção não partia, no entanto, nem da qualidade das pessoas ofendidas, nem dos interesses ofendidos pela acção violenta. Mas de certas características da acção (como, v. g., o uso de armas). Entre os casos de violência pública estavam, por isso, arrumadas condutas tão diversas como o estupro, a violação de uma casa pela força, a usurpação violenta da posse, a convocação de homens armados para uma acção violenta, o abuso de poder por um magistrado. O traço comum de todos estes tipos parece ser a violação do monopólio “estadual” da força, como forma de garantir a paz pública. Eram, assim, punidos todos os actos que a violavam ou a colocavam gravemente em risco, quaisquer que fossem o estatuto e a intenção dos seus autores. Assim, a tradição romana da punição da violência insinua uma concepção de violência que equipara a exercida sobre pessoas privadas à que tem por objecto pessoas públicas ou funções do soberano (ou seus magistrados). 571 D., 48, 6, ad legem Corneliam de vi publica; D., 48, 7, da legem Corneliam de vi privara.

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A tradição medieval portuguesa da punição da violência é constituída por leis (cf. Ord. af., v. 35; 45; 50; 66; 76/77; 95/97; 106). Ao lado desta tradição prática, existe também uma tradição letrada572 que adaptava a casuística das fontes romanas ao contexto político-social medieval, dando um novo relevo aos tipos penais que correspondiam à política régia de instauração de uma paz do rei proscrição da violência nos juízos, repressão de violência dos clérigos, dos senhores e dos oficiais (sobretudo “fiscais”), regulamentação das tréguas e pazes. Em suma, o rei, como fonte da justiça (i. e., do equilíbrio da ordem social “natural”), impõe a sua paz; ou seja, proíbe qualquer ofensa desta ordem, sobretudo por meios violentos graves. Nas Ordenações seguintes, a violência tende a ser, sobretudo, a ofensa de pessoas públicas – nomeadamente, ofensas ao corpo ou honra dos magistrados (cf. Ord. aj., v. 91; 104; Ord. man., v. 36; 75; Ord.fil., 48-51). Enquanto que (i) as violências contra pessoas privadas, antes pertencentes a este “campo”, passam a ser tratadas noutros contextos – v. g., violação e estupro, no dos crimes sexuais; usurpação violenta de posse, no dos meios processuais de tutela da posse – e (ii) a punição da vingança privada se toma cada vez menos enfática (salvo no que respeita ao duelo, Ord. fil., v. 43). A esta emergência do “público”, nomeadamente traduzido na autoridade da camada burocrática, corresponde, no plano doutrinal, uma reinterpretatio da distinção romana 572 Baseada no Cod. vis., VIII, I, de invasionibus et direptionibus, e nas Partidas, VII, 10.

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entre violência “pública” e “privada”. No século XVI, Jacques Cujas define a violência pública como “aquela que, contra o direito, se exerce contra as pessoas públicas, que detêm império e poder”. Ou seja, a violência toma-se mais grave, não já quando se manifesta pelo uso das armas, mas quando é “sediciosa”, isto é, dirigida contra um magistrado573 .

5.2.1.5 Crimes contra as pessoas – a honra No direito romano, todos os valores pessoais não patrimoniais estavam protegidos pela punição das injúrias (v. D., 47, 10, De iniuriis et famasis libellis). Apesar da tendência pós-clássica para a punição criminal de certas categorias de injúrias, o sistema romano tende a tratar as injúrias apenas sob o ponto de vista, “privatístico”, de ofensa de interesses meramente individuais, ofensa compensável por uma indemnização “de direito privado”574 . Estes traços do regime do direito romano pesaram sobre o sistema medieval575 e moderno. O direito comum segue esta mesma construção “privatista”, ao classificar as injúrias como um delito privado, sujeito, antes de tudo, a uma acção civil (e não penal), visando uma indemnização ao ofendido. Na prática, o móbil de muitas acções de injúria era, decerto, o interesse económico. Mas, na imagética dos textos, a 573 É também este o sentido da distinção no projecto de Pascoal de Melo (tits. 16-24). 574 Não eram indemnizáveis senão os danos morais, mesmo no caso da ofensa corporal, pois os danos físicos não poderiam ser objecto de avaliação, já que o corpo de um homem livre não tinha preço (in hominis liberi corpore nulla corporis aestimatio fie ri potest (cf. D., 9, 3, I, 5; D., 9, 3, 7). 575 Cf. Partidas, VII, 9.

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actio injuriarum não prosseguia recompensas pecuniárias, pois “a honra não se paga”. As fórmulas de estimação da indemnização constituem então prodígios de retórica que visam avaliar ... o inavaliável – “antes queria ter perdido ou não ter ganho tal soma do que ter sofrido esta injúria”576 . Por outro lado, a honra deixa de ser, nesta sociedade fortemente corporativa, um bem puramente individual. Pois existem grupos de pessoas de tal modo ligadas que a ofensa feita a uma se reflecte no património moral das outras. É o que se passa com a família comunidade doméstica (cf. D., 47, 10, 1,3); mas a doutrina tinha identificado outros grupos do mesmo tipo. As Ordenações portuguesas não se ocupam expressamente das injúrias (não corporais)577 , recebendo implicitamente o sistema do direito comum. Recebe, nomeadamente, o regime “privatista” da punição. Longe de se comprometer na vingança da honra de cada um, estabelecendo punições “públicas”, “criminais”, a coroa deixava subsistir o sistema de indemnização “provada”, canalizando todos os seus esforços no sentido de evitar meios violentos de reparação, como o duelo ou a vingança privada(6).

5.2.1.6 Crimes contra as pessoas – o corpo. Salvo no que respeita ao homicídio, a tradição textual sobre os crimes contra o corpo das pessoas provém dos textos romanos relativos às injúrias (cf. D., 47, 10). As ofensas 576 V., por todos, Gomez, 1552, III, ch. 4, n. 7, p. 86 577 Excepções Ord. fil., v. 42, 50; v. 84.

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corporais eram, portanto, apenas uma das espécies de injúrias, pelo que para elas vale tudo o que antes se disse, quer sobre a natureza “simbólica” das ofensas, quer sobre o carácter “privatista” da punição. Pelo que toca ao primeiro ponto, é interessante destacar que a doutrina do direito comum pune duramente condutas que, do ponto de vista da ofensa física, eram quase irrelevantes – como as bofetadas, ou mesmo a ameaça de as dar 578 . Como pune com extrema dureza a deformação do rosto (“dar cutilada no rosto”, Ord. fil., v. 35, 7), pois nele se reflectia a formosura de Deus. Tudo isto leva-nos a uma conclusão mais geral. O corpo, durante todo o período do direito comum, foi considerado como um apêndice e suporte da honra. Por isso, as ofensas infligidas ao corpo eram apenas encaradas – alvo nos casos extremos – como atentados à consideração social devida. Daí que as consequências físicas das feridas não fossem, em princípio, consideradas para a fixação da indemnização579 ; como, por outro lado, à mesma ofensa podiam corresponder punições diferentes, considerada a qualidade das pessoas envolvidas.

578 Para a doutrina dominante, dar bofetadas constitui uma injúria atroz, que dava lugar a uma pena que podia ir até à de morte, “de acordo com o estado da pessoa que comete a injúria e do da que a recebe” (Gomes, 1552, III, ad. cap. 4, n.º 5, p. 91). 579 A doutrina do direito comum introduzia uma excepção a este princípio: devia avaliar-se a cicatriz ou deformidade causada a uma rapariga não casada, aos escravos (e aos animais), pois nestes casos a integridade física tinha um valor económico (v. Gomez, 1552, III, ch. 4, n. 12, p. 88).

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Pelo que respeita ao carácter privatista, o regime das ofensas não se libertou facilmente deste traço típico do regime das injúrias. Uma lei portuguesa da segunda metade do século XIV (cf. Ord. af, v. 32) estabelece uma punição “criminal” para todas as feridas dolosas; mas as Ord. af. (V, 32,4) voltam ao sistema romano, que se mantém nas seguintes(7).

5.2.1.7 Crimes contra a verdade Os crimes de falso tipificavam, desde a época romana, os atentados à verdade das coisas – “a falsidade é o delito público que se comete quando alguém ciente e dolosamente muda a substância da verdade em prejuízo de outrem”(8). As Ordenações580 dão um relevo até aí desconhecido às falsificações cometidas por oficiais. O poder garante a verdade dos actos, dos escritos, dos testemunhos, dos selos, do saber dos oficiais. Pois todos estes elementos são, por sua vez, a garantia da veracidade dos actos de comunicação com o poder (ou perante o poder). Em contrapartida, a verdade dos escritos particulares (a comunicação entre particulares) não é quase nunca protegida. A seguir, neste domínio de “verdade garantida”, aparece a da identidade pessoal, incluindo a verdade do nome, da familia e do estatuto social, protegidas pela punição dos partos supostos (Ord. fil., v. 55, pr.), da apropriação dos nomes, títulos ou brasões (Ord. fil., v. 92). Um outro domínio da verdade garantida é o da verdade das 580 Ord. af., v. 31; 37-40; 55; 60; 89; Ord. man., v. 7-9; 56; 59; 62; 64-65; 86; Ord.fil., v. 52-59; 64-67; 71-74; 76.

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coisas, ou melhor, de certas coisas estratégicas no seio das relações sociais e económicas: a moeda (Ord.fil., v. 12), os metais e pedras preciosas (Ord. fil., v. 56), os géneros alimentícios (Ord. fil., v. 57 e 59), as medidas (Ord. fil., v. 58) e a terra (Ord. fil., v. 67). Protegida, também, a verdade dos negócios (Ord. fil., v. 65: dupla venda da mesma coisa; Ord.fil., v. 68: falência fraudulenta) (9).

5.2.1.8 Crimes contra o património Também o sistema moderno dos crimes contra o património é fortemente estruturado pela tradição textual romana. No direito romano, as ofensas patrimoniais davam origem a acções privadas dirigidas à indemnização do ofendido (actio furti, actio injuriarum, actio legis Aquiliae, a que correspondiam os três grandes tipos de crimes de incidência patrimonial – o furto, as injúrias e o dano), todas elas de carácter fundamentalmente “privatista”, ou seja dirigidas à indemnização do ofendido. As sanções “criminais” que se encontram no sistema moderno de punição destes delitos documentam uma progressiva “publicização” do campo581 . Daí que o direito comum medieval, em vez de considerar o furto sobretudo como um delito privado, ressarcível por meio de uma poena (compensação do dano sofrido, por vezes agravada ao duplum ou

581 Esta publicização já se notava em textos romanos pós-clássicos, sobretudo para ofensas patrimoniais violentas (roubo).

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ao quadruplum), encara-o, predominantemente, como uma ofensa à paz, cumulando a pena civil com uma sanção criminal (pena de morte, cortamento de membro, flagelação). Como dizem as Partidas (VII, 14, 17): “tomar [...] la cosa furtada [...] pechar quatro tanto como aquello que valia [...] Otrosi deven os judgadores [...] escarmentar os furtadores publicamente com feridas de açotes”. Em Portugal, existia uma tradição antiga de punição criminal do furto (cf. Ord. aj, v. 65). Nas Ord. man. (V, 37), estabelece-se o regime que se vai manter durante os séculos seguintes (Ord. fil., v. 60): o furto é sempre objecto de uma punição criminal, agravada no caso em que se verifiquem circunstâncias especiais, já previstas pelo direito comum clássico (reincidência, coisa ou lugar sagrado, valor da coisa). Importa realçar o significado da consideração do valor da coisa como circunstância agravante do crime. Com isto, o furto ganha a dimensão de um crime patrimonial, em que os principais valores ofendidos são, não a paz (como nos crimes de violência, dos quais eram aproximados as espécies mais graves de furto), mas valores económicos. O património toma-se, agora claramente, num objecto autónomo de protecção criminal582 . O projecto de Pascoal de Melo representa a consumação desta tendência para a autonomização e progressiva hegemonia da protecção dos valores patrimoniais sobre to582 Embora apareçam elementos de tipificação que remetem, ou para a protecção de outros bens – nomeadamente, valores religiosos (Ord. fil., v. 60, 4) ou a paz (Ord. fil., v. 60, 1; 61) – ou para antigas tradições textuais – v. g., a especial punição da treincidência.

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dos os outros. Em primeiro lugar, a importância determinante do valor da coisa como critério de tipificação (Cod., XXXVI, 2-5). Depois, a força polarizadora do tipo penal “furto” sobre outros tipos que, ainda que incluíssem também ofensas a valores patrimoniais, anteriormente eram encarados sobretudo do ponto de vista de outros valores (v. g., a usura, o roubo de coisas sagradas, o cerceamento de moeda). Agora, eles são considerados, sem mais, como tipos de furto, assim se manifestando a supremacia que os valores patrimoniais (digamos, a defesa da propriedade privada) vão adquirindo na valoração penal.

5.2.2 A prática da punição 5.2.2.1 O direito penal da monarquia corporativa O sistema penal da monarquia corporativa caracterizava-se por uma estratégia correspondente à própria natureza política desta. Ou seja, se, no plano político, o poder real se confronta com uma pluralidade de poderes periféricos, frente aos quais se assume sobretudo como um árbitro, em nome de uma hegemonia apenas simbólica, também no domínio da punição, a estratégia da coroa não está voltada para uma intervenção punitiva quotidiana e efectiva. De facto, a função político-social determinante do direito penal real não parece ser, na sociedade “sem Estado” dos séculos XVI e XVII, a de efectivar, por si mesmo, uma disciplina social. Para isso lhe falta tudo – os meios institucionais, os meios humanos, o domínio efectivo do es441

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paço e, por fim, o domínio do próprio aparelho de justiça, expropriado ou pelo “comunitarismo” das justiças populares ou pelo “corporativismo” dos juristas letrados. A função da punição parece ser, em contrapartida, a de afirmar, também aqui, o sumo Poder do rei como dispensador, tanto da justiça como da graça. É nesta perspectiva que, a meu ver, deve ser lido o direito penal da coroa. Feita esta leitura, nesta perspectiva, não deixaremos de convir que, em termos de normação e punição efectiva, o direito penal se caracteriza, mais do que por uma presença, por uma ausência. Vejamos como e porquê. Comecemos por aspectos ligados à efectivação positiva, por assim dizer, da ordem real. Com esta se relaciona, desde logo, a questão da capacidade que os juristas têm, no sistema do ius commune, de estabelecer autonomamente o direito. No entanto, como esta questão nos irá sobretudo interessar num ulterior momento, deixemo-la por agora. Fixemo-nos, para já, no grau de aplicação prática da ordem penal legal. Os dispositivos de efectivação da ordem penal, tal como vinha na lei, careciam de eficiência. Primeiro, pela multiplicidade de jurisdições583 , origem de conflitos de competência – descritos por muitas fontes como intermináveis –, que dilatavam os processos e favoreciam fugas de castigo. Depois, pelas delongas processuais – de que todas as fontes nos dão 583 V., Hespanha, 1992, 41 ss.

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conta –, combinadas com o regime generoso de livramento dos arguidos, a que nos referimos. Finalmente – e é este o tema que, agora, nos passa a interessar –, pelos condicionalismos de aplicação das penas. Condicionalismos de dois tipos. De natureza política, isto é, relacionados com o modo como a política penal da coroa se integrava numa política mais global de disciplina régia; ou de natureza prática, relacionada com as limitações dos meios institucionais, logísticos e humanos na disponibilidade da coroa. Comecemos por estes últimos e, no final, concluiremos com os primeiros. Tomemos para exemplo a pena de degredo. Quando aplicada para o ultramar, ela obrigava a espera, por vezes durante meses ou anos, de barcos para o local do exílio584 ; o réu ficava preso à ordem da justiça, nas cadeias dos tribunais de apelação, tentando um eventual livramento, aquando das visitas do Regedor da Justiça. De qualquer modo, uma vez executada a deportação, faltavam os meios de controlo que impedissem a fuga do degredo. As mesmas dificuldades existiam nas medidas, preventivas ou penais, que exigissem meios logísticos de que a administração da justiça carecia. Era o que se passava com a prisão – de resto, raramente aplicada como pena –, que obrigava à existência de cárceres seguros, à organização de ope584 Isto levou a que se determinasse que o lugar do degredo fosse fixado genericamente (“para Angola”, “para o Brasil”), embora conheça decisões de degredo “para Bissau”, “para Cacheu”, “para a ilha do Principe”, “para o Maranhão”.

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rações onerosas de transporte de presos (as odiadas levas de presos), à disponibilidade de meios de sustento dos detidos, embora parte do cibo corresse à conta destes. As únicas penas facilmente executáveis eram as de aplicação momentânea, como os açoites, o cortamento de membro ou a morte natural. Mas como veremos de seguida, mesmo estas parece terem sido, por razões diferentes, raramente aplicadas. Vejamos agora o que acontecia com a mais visível das penas – a pena de morte natural, prevista pelas Ordenações para um elevado número de casos, em todos os grandes tipos penais, salvo, porventura, nos crimes de dano585 . Prevista tantas vezes que, nos fins do século XVIII, se conta que Frederico o Grande, da Prússia, ao ler o livro V das Ordenações, teria perguntado se, em Portugal, ainda havia gente viva (a prática da masturbação era punida com a morte … 586 . Na prática, todavia, os dados disponíveis parecem aconselhar uma opinião bem diferente da mais usual quanto ao rigorismo do sistema penal. Na verdade, a pena de morte natural era, em termos estatísticos, muito pouco aplicada em Portugal587 . Um autor que escrevia já nos inícios do século XIX referia que em Portugal se passava “ano e mais” sem se executar a pena de morte (Melo, 1816,50).

585 Ver os casos de aplicação de pena de morte ao período das Ordenações, Correia, 1977. 586 Embora, no séc. XVIII, a Inquisição, para onde estes crimes eram remetidos pelos juízos seculares, se contentassem, sensatamente, com umas brandas penas espitituais. 587 Cf., com dados estatísticos, Hespanha, 1990.

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Esta não correspondência entre o que estava estabelecido na lei e os estilos dos tribunais não deixou de ser notado pelos juristas. Conhecem-se tentativas de, por via da interpretação doutrinal, pôr o direito de acordo com os factos. Uma delas foi através da interpretação da expressão “morra por ello”, utilizada nas Ordenações. Jogando por este facto de que, para a teoria dp direito comum, a morte podia ser “natural” e “civil” e que esta correspondia ao degredo por mais de 10 anos(10). Já Manuel Barbosa entendia que tal expressão correspondia a exílio (perpétuo ) (11). A mesma era expressa em termos gerais, na opinião de Domingos Antunes Portugal – “regularmente, onde quer que a lei fale de pena capital, não se entende morte natural mas degredo”(12). Ainda no século XVIII, esta opinião fazia curso, agora fundada numa opinião do desembargador Manuel Lopes de Oliveira, que distinguia entre os casos em que a lei utilizava a expressão “morra por ello” ou pena de morte, sem outro qualificativo – que corresponderiam à pena de morte civil – e “morte natural” – que corresponderia à morte física. Com base nisto; este autor apelidava os juízes que aplicavam indistintamente a pena de morte natural como “práticos ignorantes” (imperiti Pragmatici) e “carniceiros monstruosos” (immanissini camifices). Os argumentos do desembargador eram débeis e a sua opinião, apesar de ter reunido alguns sufrágios (nomeadamente de Paulo Rebelo, num Tractatus iure naturali manuscrito) e de ser cotada de “a mais pia”, não chegou a

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triunfar588 . Mas não deixa de ser curioso que, na polémica gerada por esta opinião, ninguém acusou o desembargador de laxismo ou a sua opinião de perigosa para a ordem social. Na verdade, o que ele tentava fazer era justificar com argumentos legais uma prática geral, por outros menos provocatoriamente fundada no poder arbitrário do juiz de adequar a pena às circunstâncias do delito e do delinquente. Esta diversidade de justificação não era, em si mesma, dispicienda. Pois, como diremos, o segredo da eficácia do sistema penal do Antigo Regime estava justamente nesta “inconsequência” de ameaçar sem cumprir. De se fazer temer, ameaçando; de se fazer amar, não cumprindo. Ora, para que este duplo efeito se produza, é preciso que a ameaça se mantenha e que a sua não concretização resulte da apreciação concreta e particular de cada caso, da benevolência e compaixão suscitadas ao aplicar a norma geral a uma pessoa em particular. Por isso, qualquer solução que abolisse em geral a pena de morte – v. g., por meio de uma interpretação genérica dos termos da lei – comprometia esta estratégia dual de intervenção do direito penal da coroa. Juízes havia, no entanto, que se gabavam de, em toda a vida, nunca terem ordenado ninguém à morte, antes terem dela livrado muitos réus (Seco, 1880, 672). O que se passava com a pena de morte, parece ter-se passado – em grau porventura diferente – com algumas ou-

588 Sobre esta discussão, com exposição e crítica dos diferentes argumentos, v. Repertório às Ordenações, maxime, IV, 40(a) e I, 434(b).

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tras penas corporais, de que as fontes que utilizámos também oferecem poucos testemunhos de aplicação. Parece, em vista disto, que o leque das penas praticadas no plano do sistema punitivo régio ficava afinal muito reduzido e, sobretudo, carecido de medidas intermédias. No topo da escala, teoricamente, a pena de morte; mas, sobretudo, o degredo, com todas as dificuldades de aplicação – e consequente falta de credibilidade – a que nos referimos. Na base, as penas de açoites – inaplicáveis a nobres e, em geral, aparentemente pouco usadas, pelo menos a partir dos fins do século XVII – e as penas pecuniárias. Assim, e ao contrário do que muitas vezes se pensa, a punição no sistema penal efectivamente praticado pela justiça real do Antigo Regime – pelo menos até ao advento do despotismo iluminado – não era nem muito efectiva, nem sequer muito aparente ou teatral. Os malefícios ou se pagavam com dinheiro, ou com um degredo de duvidosa efectividade e, muitas vezes, não excessivamente prejudicial para o condenado. Ou, eventualmente, com um longo e duro encarceramento “preventivo”. Ou seja, mais do que em fonte de uma justiça efectiva ou quotidiana, o rei constitui-se em dispensador de uma justiça apenas – e, acrescente-se, cada vez mais – virtual. Independentemente dos mecanismos de graça e da atenuação casuística das penas, que estudaremos a seguir, o rigor das leis – visível na legislação quatrocentista e quinhentista (a legislação manuelina tende a agravar o rigor e 447

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crueldade da punição) – fora sendo temperado com estilos de punir cada vez mais brandos. Passemos, agora, ao pólo oposto da punição: o perdão ou, mais em geral, as medidas que, na prática, traduziam a outra face da intervenção régia em matéria penal – o exercício da graça. Tem sido ultimamente destacado o carácter massivo do perdão na prática penal da monarquia corporativa589 . E tem sido mesmo destacado que o exercício continuado do perdão destruía o seu carácter imprevisto e gracioso e o transformara, pelo menos para certos crimes, num estilo e, com isto, num expediente de rotina. No plano doutrinal, este regime complacente do perdão radica, por um lado, no papel que a doutrina do governo atribuía à clemência e, por outro, no que a doutrina da justiça atribuía à equidade. Quanto à clemência como qualidade essencial do rei, ela estava relacionada com um dos tópicos mais comuns da legislação do poder real – aquele que representava o príncipe como pastor e pai dos súbditos, que mais se devia fazer amar do que temer590 . Embora constituísse, também, um tópico corrente que a clemência nunca poderia atingir a licença, deixando impunidos os crimes (justamente porque um dos deveres do pastor é, também, perseguir os lobos)(13), estabelecia-se como regra de ouro que, ainda mais 589 Espera-se a publicação de um importante estudo de Luis Miguel Duarte sobre o tema. 590 Cf. sobre o tema, largamente, Fragoso, 1641, I, 1.1, dispo 1, parág. 3 p. I, 2.

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frequentemente do que punir, devia o rei ignorar e perdoar (“Principem non decere punire semper, nec semper ignoscere, punire tamen saepe, ac saepius ignorare officium regi um esse; miscere clementiam, & severitatem pulchriu s esse”)591 , não seguindo pontualmente o rigor do direito (“Ex praedicitis infertur non esse sequendum regulariter, quod praecipuit jus strictum ... summum ius, summam crucem [vel] injuriam”592 . Este último texto aponta já para um outro fundamento teórico da moderação da punição – ou seja, o contraste entre o rigor do direito e a equidade de cada caso. Fundamento que, valendo para todos os juízes – pelo que reservamos uma referência mais alargada para o momento em que tratarmos dos fundamentos teóricos do poder arbitrário dos juristas, valia ainda mais para o juiz supremo que era o rei. Concluindo. Pelos expedientes de graça realizava-se o outro aspecto da inculcação ideológica da ordem real. Se ao ameaçar punir (mas punindo, efectivamente, muito pouco), o rei se afirmava como justiceiro, dando realização a um tópico ideológico essencial no sistema medieval e moderno de legitimação do poder, ao perdoar, ele cumpria um outro traço da sua imagem – desta vez como pastor e como pai –, essencial também à legitimação. A mesma mão que ameaçava com castigos impiedosos, prodigalizava, chegando ao momento, as medidas de graça. Por esta dialéctica do terror e da clemência, o rei constituía-se, ao 591 Ibid., n. 53. 592 Ibid., n. 57.

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mesmo tempo, em senhor da Justiça e mediador da Graça. Se investia no temor, não investia menos no amor. Tal como Deus ele desdobrava-se na figura do Pai justiceiro e do Filho doce e amável. Assim, o perdão e outras medidas de graça, longe de contrariarem os esforços de construção positiva (pela ameaça) da ordem régia, corroboram esses esforços, num plano complementar, pois esta ordem é o instrumento e a ocasião pelos quais se afirma ideológica e simbolicamente, em dois dos seus traços decisivos – summum ius, summa clementia – o poder real. Da parte dos súbditos, este modelo de legitimação do poder cria um certo habitus de obediência, tecido, ao mesmo tempo, com os laços do temor e do amor. Teme-se a ira regis; mas, até à consumação do castigo, não se desespera da misericordia. Antes e depois da prática do crime, nunca se quebram os laços (de um tipo ou de outro) com o poder. Até ao fim, ele nunca deixa de estar no horizonte de quem prevarica; que, se antes não se deixou impressionar pelas suas ameaças, se lhe submete, agora, na esperança do perdão. Trata-se afinal de um modelo de exercício do poder coercitivo que evita, até à consumação final da punição, a “desesperança” dos súbditos em relação ao poder; e que por isso mesmo, tem uma capacidade quase ilimitada de prolongar (ou reiterar) a obediência e o consenso, fazendo economia dos meios violentos de realizar uma disciplina não consentida. Em comunidades em que os meios duros de exercício do poder eram escassos, modelos que garantissem ao máxi450

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mo as condições de um exercício consentido do poder eram fortemente funcionais. Tudo combinado – no plano da estratégia punitiva, do funcionamento do perdão ou do livramento e da escala de penas efectivamente aplicável e aplicada –, o resultado era o de um sistema real/oficial de punição pouco orientado para a aplicação de castigos e, finalmente, pouco crível neste plano. O controlo dos comportamentos e a correspondente manutenção da ordem social só se verificava porque, na verdade, ela repousava sobre mecanismos de constrangimento situados num plano diferente do da ordem penal real. A disciplina social baseava-se, de facto, mais em mecanismos quotidianos e periféricos de controlo, ao nível das ordens políticas infra-estaduais – a família, a Igreja, a pequena comunidade593 . Neste conjunto, a disciplina penal real visava, sobretudo, uma função política – a da defesa da supremacia simbólica do rei, enquanto titular supremo do poder punitivo e do correspondente poder de agraciar. Para isto, nem era preciso punir todos os dias, nem sequer punir estrategicamente do ponto de vista dos interesses de disciplina da vida social (i. e., punir os atentados mais graves ao convívio social). Disto se encarregavam usando tecnologias disciplinares diversas, os níveis infra-reais de or-

593 Sobre os poderes punitivos destas ordens infra-reais: (i) sobre o poder punitivo do pater, Fragoso, 1641, I disp. I, 4 n.º 89 e III, dispo 3 parág. 2; 1610, S,V. “pater”, n.º ss.; cf. Ord. fil., v. 38 e V. 95, 4 e respectivos comentadores; (ii) sobre o poder punitivo da Igreja, V. o voI. II da mesma . obra, per totum.

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denação. A justiça real bastava intervir o suficiente para lembrar a todos que lá no alto, meio adormecida mas sempre latente, estava a suprema punitiva protestas do rei. Tal como o Supremo Juiz, o rei devolvia aos equilíbrios naturais da sociedade o encargo de instauração da ordem social. Por outro lado, para se fazer lembrar e reconhecer, para manter a carga simbólica necessária à legitimação do seu poder, o rei dispõe de uma paleta multímoda de mecanismos de intervenção. Pode decerto punir; mas pode também agraciar, assegurar ou livrar em fiança; como pode, finalmente, mandar prender. Pode optar, isto é, tanto pelo meio desgastante da crueza, como pelo meio económico do perdão. Ao fazer uma coisa ou outra, afirma-se na plenitude do seu poder e no cabal exercício das suas funções. Pois – segundo uma conhecida máxima do início do Digesto – a realização da justiça (leia-se, da disciplina social) exige uma estratégia plural, em que, ao lado do medo das penas, figuram os prémios e as exortações (non solum metu poenarumn, verum etiam premiorum quoque exhortatione, D., 1, 1, 1, 1.).

Bibliografia citada AMARAL, António Cardoso do, Summa seu praxis judicum, Ulysipone, 1610. BARBOSA, Manuel, Remissiones doctorum [...], Ulysipone, 1618. CASTRO, Gabriel Pereira de, Tractatus de manu regia [...], Ulysipone, 1622-1625. CORELIA, Jaime de, Pratica de confessionario, Coimbra, 1744.

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CORREIA, Eduardo, “Estudo sobre a evolução das penas no direito português”, BoI. Fac. Dir. Coimbra, (53), 1977. FARINACCIUS, Prospero, Praxis, et theoricae criminalis [...], Lugduni, 1606. FRAGOSO, Baptista, Regimen reipublicae christianae, Collonia allobrogum, 1641-1652,3 tomos. GOMEZ, António, Variae resolutiones [...], Salamanticae, ed. cons. Opera omnia, Ventiis, 1747. GOMEZ, António, Commentarii in leges Tauri, Salamanticae, 1555; ed. cons. Opera omnia, Ventiis, 1747. GOODY, Jack, “The evolution of family”, in P. Laslett (ed.), Household and family in past time, Cambridge, 1972. * HESPANHA, António Manuel, “Da justiça” à “disciplina”. Textos, poder e política no Antigo Regime”, Estudos em homenagem ao Prof Eduardo Correia, Coimbra, 1986 (publ. em 1989). MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo, “A legislação pombalina”, Bol. Fac. Direito de Coimbra, supl. (33), 1990, 1-314. MELO, Francisco Freire de, Discurso sobre os delitos e as penas [...], Londres, 1816. MELO, Pascoal de lnstitutiones iuris criminalis lusitani, Ulysipone, 1789. MELO, Pascoal de, Codigo criminal intentado pela rainha D. Maria I, com as provas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1844. PHAEBUS, Me1chior, Decisiones Senatus Regni Lusitaniae, Ulysipone, 1619. PORTUGAL, Domingos Antunes, Tractatus donationibus regiis [...], Ulysipone, 1673. SBRICCOLLI, Mario, Crimen laesae magestatis. II problema del reato politico alle soglie della scienza penalistica moderna, Milano, 1974. SECO, António Luiz de Sousa Henriques, Memorias do tempo passado e presente [...], Coimbra, 1880.

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Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com *. Notas (1) Cf., sobretudo, Cod. theod., XVI, 5, 43/52/54; c., 1,5, de hereticis et manicheis et samaritiis; C., I, 7, de apostatis; C., I, 9, de iudeis et coelicolis; Dec. Grat., C. I, q. 5 e C. I, q. 6; Decretais, v. 7; Sextum, v. 2. (2) Note-se que uma concordata de 3.1.1416, atribui a natureza de “caso real”, dependente da justiça real, a punição de judeus e mouros convertidos ao cristianismo e que retomassem à antiga fé. Cf. Castro, 1610, I, ns. 175/176. (3) Um outro exemplo de um elemento tipificador tornado inútil é a distinção entre a ofensa à religião católica feita por um baptizado ou um não baptizado. Tal distinção tinha antes sentido, na medida em que, na heresia, como violação da ortodoxia, não podia cair senão um crente. No entanto, a extensão do conceito aos não crentes tinha uma antiga tradição no direito português (lei de 3.1.1416, baseada num costume anterior e num texto do Corpus iur. cano (Sextum, v. 13). Também o perjúrio já estava fortemente laicizado, pois a doutrina fazia equivaler ao perjúrio a violação de compromissos tomados sem juramento religioso (Barbosa, 1618, ad. Ord. fil. v. 54, n. 7). (4) A regra de que ao mais digno se devia aplicar uma pena mais pesada aflora frequentemente nas fontes romanas e canónicas. Baldo (§ si quis vero usu temerario do tit. II, 53, de pace tenenda ods Lib. feud.) distinguirá: “ou pela nobreza se aumenta a qualidade do delito, sendo o nobre mais punido; ou pela nobreza não se aumenta a qualidade do delito e então o nobre é mais punido do que o plebeu se se tratar de pena pecuniária; mas, tratando-se de pena corporal, o plebeu é mais punido”. (5) Tradição textual: Dec. Grat., II, C. 26, q. 1, C. 1 (“os feitiços são aquelas artes pelas quais, sob a capa de uma religião fingida, se chamam os santos, se usa da ciência da adivinhação ou se promete uma qualquer visão do futuro” (a definição é de Santo Isidoro de Sevilha, Ethim., VIII, c. 9); qs. 3 e 4; C., IX, 18; Partidas, VII, 23). Ord. aj., v. 42; Ord. man., v. 33; Ord. fil., v. 3. A feitiçaria era um crime de foro misto, punido com penas eclesiásticas e civis. V. Barbosa, 1618, ad Ord., v. 3 a 5; Amaral, 1610, V. “sortilegium”; Fragoso, 1641, I, p. 1, I. lI, p. 161 (dec. 4, § 6). (6) No projecto de Código criminal de Pascoal de Melo, que aqui nos continua a servir como modelo da política criminal iluminista, a principal novidade, no que respeita ao tratamento penal das injúrias, consiste na punição “pública” pelo encarceramento e multas a favor de obras pias. Ou seja, a honra particular torna-se num bem público protegido pelo Estado. Embora o mesmo Estado tenda a reduzir o âmbito dos actos capazes de injuriar, reagindo contra a susceptibilidade exarcebada da sociedade de Antigo Regime às questões da honra (cf. Hespanha, 1990). (7) Cf. Hespanha, 1990. No projecto de Pascoal de Melo (tit. 34) estabelece-se uma pena pública para os ferimentos, que acrescia à indemnização civil. Por outro lado, a medida da pena é fixada segundo critérios funcionais e fisiológicos (feridas mortais, perigosas, que causem deformação, simples).

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(8) Gomez, 1555, ad I. 83 finalem, p. 337. As principais fontes são D., 48, 10, 3, que contempla a falsificação de testamento, de documentos, de moeda, o uso de nome falso, a venda da justiça, a venda dupla da mesma coisa, o parto suposto, a redacção de documentos que não correspondem à vontade das partes. Cf., ainda, Partidas, VIl,7. ( 9 )Sobre a evolução dos crimes de falso nos finais do Antigo Regime, cf. Hespanha, 1990. (10) Phaebus, 1619, d. 156, ns. 5-10. (11) Barbosa, 1618, ad Ord. v. 18,3, n, 10 [p. 298]. (12) Portugal, 1673, 1,2, C. 25, n. 53/5. (13) Ibid., n. 42-42, 52, infine, p. 53 e 60-62. Na literatura clássica, estabelecera-se uma larga polémica com os estóicos, para quem a clementia em relação aos criminosos equivalia à licença. Mais tarde, penalistas iluministas reagirão, de novo, contra o perdão, com idêntico fundamento.

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5.3 Os limites do poder A historiografia liberal, ao colocar a questão dos limites do poder, era guiada, naturalmente, pela imagem que a teoria política da época tinha do poder e da forma de o limitar. Os limites do poder, no Estado oitocentista, mediam-se pela existência, ou da divisão dos poderes, ou de instituições representativas. Daí que, naturalmente, se aplicasse o mesmo critério às monarquias de Antigo Regime. E, assim, toda a problemática dos limites do poder fosse reconduzida às questões do carácter concentrado ou não do poder monárquico e da existência de cortes. Claro que a limitação do poder também podia decorrer do princípio da legalidade, que obrigava o Estado a respeitar o direito, no decurso da sua actividade. Porém, uma vez que a teoria jurídica oitocentista fazia equivaler o direito à lei e esta era um produto da vontade estadual, tal limitação era meramente formal. Só poderia deixar de o ser, se o direito escapasse ao controlo do Estado, como o direito natural ou uma qualquer espécie de direito criado por órgãos não estaduais (v. g, a actividade “livre” dos juristas). Como já vimos (supra, 3.), esta era, justamente, a situação do direito no Antigo Regime. Por um lado, ele era razoavelmente independente do poder da coroa, pois se fundava em dados “naturais” interpretados, com bastante independência, por um corpo de juristas. A fonte da sua legitimidade não era a vontade estadual, mas antes a ratio e a auctoritas dos juristas.

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Por outro lado, como também já vimos (supra, II.3), os direitos (e também aqueles que hoje consideramos “direitos políticos”) eram considerados como “coisas”, integradas no património, e garantidas pelos processos jurídicos comuns de garantia os direitos sobre coisas. Esta protecção era muito efectiva; mas desenrolava-se no estrito plano do direito e dos tribunais. Era aqui – e não, fundamentalmente, na rua ou em assembleias representativas – que “a política”, quotidianamente, se fazia594 . O que acaba de ser dito já anuncia a linha que se vai seguir na abordagem dos limites do poder. Não realçaremos tanto aquilo que, no século XIX, vai ser considerado como decisivo (como as cortes ou os mecanismos de participação no poder) quanto aquilo que, na prática de resistência ao poder da época moderna, era todos os dias accionado. Ou seja, os meios de direito595 . Meios de direito eram, desde logo, as consequências práticas – i. e., no plano dos resultados jurídicos concretos596 – das concepções acerca das relações entre direito divino, direito natural e direito terreno, entre razão (ratio) e vontade (voluntas) como factor de geração do direito.

594 CL, sobre a justiça no quadro dos meios de resistência ao poder, Hespanha, 1993, 451 ss. 595 Sobre as formas de resistência ao poder na sociedade de Antigo Regime, v. Hespanha, 1993, ibid.. 596 E não, apenas, no plano da filosofia política e jurídica.

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5.3.1 Os limites constitucionais Era opinião comummente recebida, entre os juristas do ius commune, que o poder dos reis era limitado, em função mesmo do modo como lhes fora conferido. Na verdade, o poder real ou proviria directamente de Deus ou procederia dos homens. Em qualquer dos casos, fora conferido, antes de tudo, tendo em vista o bem da sociedade597 . Testemunhos deste carácter derivado e vinculado do poder real eram tanto as designações usadas nas Escrituras para referir os reis (“pastores”, “ministros”, “administradores”), todas elas apontando para um poder exercido em vez ou em benefício de outrem, como a autoridade de autores antigos ou medievais, nomeadamente de Aristóteles (Etica a Nicómaco, VIII, 10, 1160b, 7; Politica, III, 7, 1279b) e de S. Tomás (Sum. theol., II.II, 42, 2 ad 3; De regimine principum, III, 2, 133). Da tradição textual sobre os limites do poder real faziam ainda parte dois célebres textos do Digesto. Um deles era a famosíssima “lei” princeps (D., 1,3,31) que dispunha que o príncipe está liberto da obediência às leis (princeps a legibus solutus). Outro, o fragmento D, 1,4,1, que dava valor de lei à vontade do príncipe (quod principi placuit, legis habet vigorem), pois o povo ter-lhe-ia trespassado, pela “lei régia”598 , o seu império e

597 Estas ideias são comuns aos juristas e teólogos peninsulares dos finais do séc. XVI e inícios de XVII. Seguimos de perto a linha de exposição desenvolvida por João Salgado de Araújo, num seu interessante texto sobre a “constituição” do reino português (Araújo, 1627); cf. Também Suarez, 1612, 133 ss. 598 A “lei régia” era o acto pelo qual o povo romano, reunido em comício, atribuía o poder ao Imperador.

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poder. Ao comentar este acto instituidor das monarquias, os juristas modernos consideravam, porém, que tal concessão do poder fora condicionada, configurando uma espécie de contrato em que o príncipe se comprometera a usar do poder recebido para “fazer e distribuir justiça, sustentar e defender a religião”(1). E a esta condição teriam os príncipes ficado irrevogavelmente obrigados, pois, por direito natural, estariam obrigados a honrar os contratos celebrados599 . Estas opiniões dos juristas decorriam de concepções mais gerais da doutrina política tardo-medieval e primo-moderna. De facto, para a doutrina política dominante nos séculos XVI e XVII, a respublica, como corpo político, não era o produto das vontades de governantes e governados, expressas num qualquer pacto político ou contrato social, mas de uma ordem natural pré-estabelecida. Neste sentido, as cortes nem tinham constituído o corpo da república, nem detinham em exclusivo a representação desta. No entanto, pode ler-se em alguns autores que as cortes constituem o fundamentum regni600 ou que o poder dos reis teria sido instituído pelos povos, reunidos em cortes (comitia). É aqui que tocamos uma das questões-chave da construção pri-

599 Este pacto obrigaria também por direito divino, pois esta eleição popular teria sido apenas a concretização numa pessoa de uma disposição da ordem divina da Criação segundo a qual as comunidades humanas devem dispor de governo. Utilizando uma fórmula muito característica da época, dir-se-ia que, a eleição popular constituia a matéria a que a vontade de Deus dava a forma (Araújo, 1627, p. 7). 600 Cf. Portugal, 1673, I. 2, c. 24, n.5.

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mo-moderna da teoria política das comunidades perfeitas, desenvolvida, nomeadamente, pelos juristas ibéricos da Segunda Escolástica601 , que tentam combinar a concepção naturalista e objectivista da sociedade e do poder, dominante a partir do século XIII (cf. supra, 2.1), com elementos da tradição política e jurídica romana, que faziam da vontade dos povos o fundamento da ordem política. Nos juristas, tratava-se de combinar, sobretudo, o contraste entre a ideia de uma ordem política enraizada na natureza das coisas, que postularia uma relação indisponível entre o governante e os governados, e os textos jurídicos que, a propósito da lex regia de imperio (D., 1,4,1) ou da constituição dos iura propria vel civilia (D., 1,1,9), sublinhavam a eficácia da vontade dos povos no estabelecimento da constituição política e do direito. Mas, mesmo fora da tradição jurídica, existiam também referências à variabilidade das formas de governo(2). Dado que, nestes termos, natureza e vontade (ou pacto) aparecem como fundamento do governo faz com que uma leitura menos atenta da teoria política desta época a aproxime dos modelos contratualistas dominantes a partir do século XVIII. E por isso é que vale a pena sublinhar um pouco mais os

601 Chama-se Segunda Escolástica à escola teológica que, depois do Concílio de Trento retoma o ensinamento de S. Tomás, combinando-o, no entanto com ingredientes (de sentido voluntarista e individualista) da Escolástica franciscana do séc. XV. Os principais representantes desta escola são teólogos, dominicanos ou jesuítas, peninsulares, nomeadamente provindos dos meios universitários de Valhadolide, Salamanca, Coimbra e Évora. Sobre o pensamento político e jurídico da Segunda Escolástica, Mattei, 1982, Grossi, 1973.

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limites dentro dos quais vontade e pacto são eficazes na teoria político-constitucional peninsular dos séculos XVI e XVII. Esta digressão é, nomeadamente, importante, para fixar o conteúdo dos conceitos centrais na teoria das cortes, como os de “dualismo”, “pactismo”, “representação”. Para dar conta da teoria política portuguesa do século XVII, apoiar-nos-emos, nomeadamente, numa obra decisiva da teoria política, publicada em Coimbra em 1613, por um dos mais importantes teólogos da época – a Defensio fidei catholicae adversus anglicanae sectae errores, com responsione ad apologiam pro iuramento fidelitatis, et Epistolam ad Principes Christianos Serenissimi Jacobi Angliae Regis, Coimbra, 1613(3). O ponto-chave de toda a obra é o de saber se o poder dos reis decorre ou não directamente de Deus. Francisco Suarez concede que, em última instância (“tanquam prima causa et universalis”, II, 2), todo o poder (como todas as coisas) vem de Deus, como Criador do Mundo (I, 6; II, 2), embora, posta assim tão genericamente, a questão fosse inútil. Para a reconduzir a um plano prático, seria, todavia, necessário distinguir duas modalidades de criação. Uma originada por um acto específico e próprio de vontade (“causam proximam et per se”, II, 2); outra, efeito indirecto de um acto voluntário que, criando qualquer coisa com uma certa natureza e finalidades específicas, cria ao mesmo tempo todos os atributos (nomeadamente, os atributos políticos) que lhe convêm, sem que, para isso, sejam necessários actos ulteriores de vontade.

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Aplicada ao poder em sociedade, esta tese provocava uma “naturalização” dos poderes constitucionais, ou seja, dos poderes que decorriam da própria natureza (da ordem imanente) da sociedade. O poder de governo, nas suas manifestações e finalidades superiores, não decorria, assim, de um acto de criação ou de outorga especial de Deus, mas, pelo contrário, da própria natureza da sociedade, tal como ela tinha sido modelada pela Providência. Segundo as próprias palavras de Suarez, “uma vez constituída a sociedade civil, a sujeição dos particulares ao poder público ou principado político é uma consequência da conservação conveniente da natureza humana” (I, 8). De tal modo que se podia dizer que “o poder em abstracto foi conferido por Deus aos homens na cidade ou na comunidade perfeita, e não por um acto ou outorga especial ou positiva, diferente da criação da natureza [da comunidade], decorrendo, portanto, do acto primário da sua fundação. Por isso, em virtude desta forma de outorga, o poder político não reside numa só pessoa ou num corpo determinado, mas na totalidade do povo ou do corpo da comunidade” (II, 5). Pôr nestes termos a questão da origem do poder constitucional era afirmar o carácter indisponível, para os reis e para os homens, deste poder, afastando, neste plano, concepções políticas de tipo voluntarista ou pactista. Pois não pode haver pactos ou determinações voluntárias da ordem política quando esta decorre da própria natureza da sociedade, ligada à

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natureza do homem602 . A função (officium) do rei ou dos súbditos está definida à partida e de forma necessária. Não há, por isso, espaço para o arbitrário, nem do rei (actuando contra o seu officium), nem dos súbditos (impondo ao rei limitações incompatíveis com a natureza do seu poder)603 . Que não é o facto que institui a constituição mostra-o ainda uma consideração suplementar. Com efeito, sendo a sociedade um corpo místico unificado, o poder “constitucional”, enquanto tal, deve ser um, residindo num só pólo, independentemente da constituição concreta (pessoal ou colegial) deste pólo (I, 5, 6). Nesta medida, não havendo uma dualidade de poderes, não há também fundamento teórico para a ideia de “dualismo” – de dois poderes, o rei e o reino, que se equilibram e se põem de acordo sobre a constituição política –, ou para a de “pactismo”. Rei e súbditos fazem parte da mesma unidade, o corpo místico da república. A forma das suas relações políticas está fixada de antemão, não necessitando de (não podendo) ser pactada. A sua representação mútua é assegurada pelo seu carácter mutuamente simbiótico, pela sua qualidade de partes da mesma entidade (pela sua participação comum no todo). A manutenção dos equilíbrios naturais da ordem política é assegurada, não por uma qual602 Ou melhor, pode haver factos, mas estes ou são inúteis (se corroboram a ordem da natureza) ou ineficazes (se a contrariam). 603 Esta concepção naturalista, objectivista ou necessária dos laços jurídicopolíticos não era exclusiva da teoria constitucional; também a natureza da família exigia um certo desenho (forçoso e limitador da vontade dos seus membros) dos status do marido, da mulher, dos filhos, dos parentes, ete. (cf. supra, IV.l).

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quer forma de governo misto ou partilhado, pela existência de instituições representativas, nem por uma qualquer forma de pacto, mas pelo respeito, assegurado pelos órgãos de justiça, dos direitos e deveres recíprocos (iustitiam dare, scl., ius suum cuique tribuere). E, se se fala em representação a propósito das cortes, não se trata senão da representação no sentido de “manifestação pública e visível” do todo. Contudo, há outros níveis de organização da respublica, em que os membros do corpo político já têm poderes de disposição. Já não se trata da ordem constitucional, mas antes do regime político, do qual Aristóteles tinha estabelecido uma classificação tripartida bem conhecida. Os juristas também reclamavam para os povos a possibilidade de modelar o regime, com base nos citados textos do Digesto, em que se referia a possibilidade de o povo, através de actos de vontade, decidirem das leis da cidade e de identidade dos governantes. A distinção deste dois níveis é muito importante para distinguir e hierarquizar os diferentes planos nos quais se põem as questões políticas. Assim, a existência ou não de órgãos representativos dos governados era um problema de regime, que devia ser discutido no plano (opinável) da bondade ou oportunidade de cada regime ou forma de governo. E não um problema que dissesse respeito à legitimidade última (constitucional) do poder, pois esta apenas exigia que se respeitassem as limitações do poder decorrentes da vinculação deste ao bem comum, qualquer que fosse a forma de

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garantir a eficácia destas. Eficácia que, em princípio, estaria assegurada pela submissão dos governantes à justiça604 . Em termos jurídico-constitucionais, esta dualidade das fontes da ordem política está na origem da dualidade de planos em que actuam os mecanismos de limitação do poder. Num plano, garante-se a legitimidade do poder, i. e., a observância das normas de um governo justo. Num outro, garante-se o cumprimento do pacto de regime605 . O controlo do primeiro nível é garantido pelo primado da justiça, que se manifesta, quer no plano da ética, quer no da justiça estricta. Ao primeiro corresponde o estabelecimento de órgãos encarregados de avaliar o cumprimento pelo rei dos seus deveres de consciência. Tal era o caso da Mesa da Consciência606 . No plano da justiça, a garantia de bom governo repousava na existência de tribunais e de uma ordo iudiciorum (ordem de juízo) bem estabelecida, bem como à sujeição de toda a actividade política às regras de justiça. A violação destes limites fazia com que o rei, ainda que o fosse por um título legítimo, se transformasse num tirano quanto ao exercício do poder (tyrania in exercitio). Além deste controlo do primeiro nível, podia (ou não) haver um segundo plano de controlo, estabelecido pelo pacto de governo. Era, nomeadamente, o caso dos regimes de604 Cf. Suarez, 1613, III, e. 35. 605 É certo que há uma relação entre o primeiro e o segundo, pois a violação do pacto de regime constitui urna ofensa à justiça (precisamente à regra de que “os pactos devem ser cumpridos”, pacta sunt servanda). 606 Araújo, 1627, I, 117.

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mocráticos, oligárquicos ou mistos, em que o pacto designava vários titulares para exercer, de forma combinada e equilibrada, o poder. O que era levado a cabo pela institucionalização de cortes, parlamentos ou dietas. Nestes casos, as competências relativas de cada titular deviam ser rigorosamente respeitadas. Em contrapartida, nos regimes monárquicos puros, este segundo nível de controlo não existia. No caso português, a generalidade dos autores inclina-se para a sua definição como “monarquia pura”(4). As únicas limitações do poder do rei derivam da natureza do seu officium, nomeadamente dos seus deveres para com a justiça e a religião. Neste contexto, as cortes ou eram “juntas” mais solenes, convocadas para aconselhar o rei nos negócios mais graves e difíceis (ardua et difficilia negotia regni)607 , ou eram congregações de particulares directamente afectados pelas decisões projectadas pela coroa e que, nos termos da teoria política de um “Estado guardião de direitos” (Rechtsbewährungsstaat), deviam dar o seu acordo às decisões que tocassem as suas esferas políticas608 . Em todo o caso, esta concepção das cortes como instância de outorga do consentimento das entidades interessadas, conduzia a uma consequência, já presente no texto citado. Se as cortes eram apenas um meio de representar os titulares dos direitos ameaçados, podia haver outros meios de obter o 607 Araújo, 1627, I, 140 s.; Portugal, 1673, II, c. 24, n. 4. 608 “Quod omnes tangid ab omnibus approbari debet” [o que toca a todos deve ser aprovado por todos]. Sobre as manifestações desta segunda concepção na prática política portuguesa do séc. XVII, v. Hespanha, 1991, 1993.

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seu consentimento, como a consulta particular, etc. Com o que a reunião das cortes pode ser evitada, como, de facto, se tentou em algumas conjunturas políticas seiscentistas. De tudo isto decorria que o poder real, para além de dever respeitar o primado da religião e, para alguns autores 609 , do próprio Papado, devia também, ser racional, ou seja, respeitar a razão da sua instituição. Absolutos deste império da razão, reclamando-se de uma soberania sem limites (“irregular”, i. e., sem regra), só “o imperador dos turcos e os mais príncipes que vivem, sem lei, e sem vestígio nem mesmo de razão natura1”610 . O reconhecimento destes limites não era importante, apenas, no campo da filosofia ou da doutrina políticas. Mas também no plano do direito, pois era princípio jurídico bem estabelecido que uma determinação contrária ao direito divino611 , ao direito natural ou à razão natural não tinha validade jurídica(5), podendo ser anulada em tribunal, a pedido de titulares de interesses por ela ofendidos.

609 O mais notável é o cardeal Roberto Belarmino (15421621, Disputationes christianae fidei, 1599, De summo Pontifice, 1559), que reflectia as posições póstridentinas mais favoráveis à supremacia temporal do Papa. 610 Araújo, 1627, p. 23 v., n. 69, citando em seu favor Cabedo, 1601, I, d. 12, n. 9. Embora não o refiram, os dois autores polemizam com Jean Bodin que, nos seus Les six livres de la Republique (1576, I, 8) defendera, pela primeira vez, a existência de um poder único e ilimitado dos reis, a que chamara “soberania”. 611 Contra a religião e a justiça não se deve obedecer aos reis, Araújo, 1627, n. 70 (funda-se em S. Tomés, S. th., II.II, q. 41, a. 3).

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5.3.2 Os direitos particulares Deixando de lado a questão da ofensa do direito divino ou das isenções da Igreja, importa salientar que essa realização da justiça a que os príncipes estariam obrigados consistia, essencialmente, na realização da justiça, ou seja, no respeito dos interesses particulares estabelecidos ou “enraizados”. Debrucemo-nos, portanto, sobre a panóplia destes direitos particulares e o seu sistema de defesa judicial. Na análise dos interesses dos particulares, a doutrina do direito comum, começava por distinguir os direitos adquiridos (iura quaesita); os direitos a adquirir (iura quaerenda); e as meras expectativas (spes). O direito adquirido é o que compete a alguém, “de forma presente, perpétua e irrevogável”, podendo incidir sobre uma coisa corpórea ou incorpórea612 . O direito a adquirir era o que, não existindo no presente, dependia de um evento futuro (v. g., uma condição ou um termo)613 . A mera expectativa distingue-se dificilmente do anterior, constituindo, na verdade, uma situação de expectativa menos forte (como, v. g., a expectativa sucessória de outros herdeiros que não os filhos). Uns direitos incidiam sobre coisas (iura in rem), outros sobre acções, sobre umfacere, v. g., o cumprimento de uma obrigação (iura ad rem).

612 Pegas, 1669, II, ad Ord. I, 3, gi. 9, c. n. 60. 613 Ibid., ad Ord. II, 96, c. 4, n. 62. Por exemplo, a expectativa de um filho (herdeiro necessário) à herança de seu pai; o direito de um credor aos juros ainda não vencidos.

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Todos estes direitos – e mesmo as expectativas mais fortes, do tipo iura quaerenda – eram invioláveis por determinação individual (rescriptum) do príncipe. Mesmo por determinação geral (lex) só seriam violáveis os direitos fundados na lei positiva; mas não já os que tivessem uma fonte superior, como o direito natural ou das gentes614 . Assim, eram invioláveis, tanto por rescripto como por lei: a propriedade dos súbditos615 ; os direitos surgidos de pacto ou contrato616 ; os privilégios concedidos em virtude de um serviço prestado ou a prestar (privilegia ob benemerita ou remuneratoria); mas não já os gratuitos, que cediam perante a lei geral 617 ; os direitos adquiridos por sentença618 ; os direitos adquiridos por nomeação testamentária619 -620 . Os limites mencionados não eram, em todo o caso, absolutos ou insuperáveis. Por um lado, o rei dispunha da faculdade de rescindir os contratos injustos ou imorais. Por outro lado, os direitos adquiridos não prevaleciam contra a potestas extraordinaria (poder extraordinário) do príncipe, poder que este podia invocar para satisfazer uma suprema utilidade pública(6).

614 Em geral, sobre o tema, Suarez, 1612, p. 143 ss. 615 Sobre o caso da expropriação, v. Pegas, 1669, VII, p. 638 ss.; Fragoso, 1641, I, p. 256, n. 32; Cabedo, II, dec. 75, n. 13; Febo, 1619, I, 94. 616 Fragoso, 164 I, I, p. 256; Cabedo, 1601, II, d. 75. 617 Fragoso, 1641, I, p. 33 e 256 n. 33; Cabedo, 1601, II, dec. 75; Portugal, 1673, I, c. 2, n. 54 ss. 618 Pegas, 1669, VII, ad. Reg. Sen.., c. 20, n. 2 ss. 619 Portugal, 1673, lI, c. 2, n. 61 ss.; Fragoso, 1641, I, p. 256 n. 33. 620 Sobre alguns direitos em particular (provimento em ofício público, doações régias), v. Hespanha, 1993, v. 3.

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De facto, a teoria política reconhecia ao rei uma prerrogativa extraordinária, justificada por uma causa de suprema utilidade pública em que o rei, tal como Deus ao afastar a lei da natureza no caso de milagre, violava os mecanismos ordinários da justiça (7). Tratava-se, em todo o caso, de um meio extremo, para ser usado com sumo cuidado, justificado sempre por uma suprema causa, evidente, superveniente, racional, extraordinária, e que nunca poderia ser usada contra a consciência e a piedade. Caso contrário, tratar-se-ia de “desordem ou tirania” (Portugal, 1673, n, c. 2, 16-18). Mesmo assim, o uso da potestas extraordinaria obrigava a indenização dos prejuízos causados e a restituição do direito, passada a necessidade621 .

5.3.3 A tutela dos direitos A tutela dos direitos particulares desdobra-se, em Portugal, em dois momentos: antes da consumação do acto, por meio do controlo prévio e oficioso da sua conformidade com o direito; e, depois da sua consumação, tanto por meio do instituto da nulidade ipso iure das decisões ilícitas do poder, como por meio da faculdade, concedida aos prejudicados, de se oporem à sua execução. O controlo prévio da conformidade dos actos régios com “as Ordenações ou Direito” (Ord. fil., I, 2, 2) competia ao Chanceler-mor do Reino, que devia comprovar se as cartas

621 Exemplos de utilização deste poder: Portugal, 1673, II, c. 11,7 ss.

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régias iam contra os direitos do rei, “ou contra o povo, ou clerezia, ou outra alguma pessoa, que lhe quite ou faça perder seu direito”. Caso isto acontecesse, devia remetê-las, sem as selar, ao Desembargo do Paço, para verificação. Mas a tutela mais geral dos direitos dos particulares era a efectivada pelos meios judiciários normais. Em Portugal, e nos quadros gerais oferecido pelo direito comum, os recursos dos particulares contra os actos do poder político lesivos dos seus direitos eram vários. Em primeiro lugar, estava prevista a nulidade das determinações do poder contrárias às Ordenações ou “direito expresso” (Ord.fil., I, 2, 11; I, 30, 1.). Os juízes deviam recusar-se a aplicá-las e os particulares podiam oporse à sua execução por meio de embargos622 . Outro tipo de recurso previsto na lei era o agravo ordinário (Ord. fil., III, 84, 4), utilizável contra os actos ilegais e prejudiciais praticados por oficiais e dotados de efeitos suspensivos. Por último, dado o carácter patrimonial destes direitos, os seus titulares podiam lançar meios de todos os expedientes processuais de manutenção da posse, como os interditos. Da frequência como eram usados estes meios de defesa dos direitos dos particulares diz bem uma carta régia de 1634 (C.R. 20.3.1634), segundo a qual rara era a provisão régia de ofício que não era embargada.

622 Também podiam pedir a declaração judicial da sua nulidade (cf Hespanha, I 993a, 5.1).

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Bibliografia citada ARAÚJO, João Salgado de, Ley regia de Portugal, Madrid, 1627. CABEDO, Jorge de, Practicarum observationum sive decisionum, Ulysipone, 1601. FEBO, Melchior, Decisiones supremi Senatus Regni Lusitaniae, U1ysipone, 1619. FRAGOSO, Baptista, Regimen reipublicae christianae, Lugduni, 1641 (ed. cons., Collonia Allobrogum, 1737, 3 vols. GROSSI, Paolo (dir.), La Seconda Scolastica nellaformazione deI diritto privado moderno, Milano, Giuffre, 1973. HESPANHA, António Manuel, “As cortes e o Reino. Da União à Restauração”, Cuadernos de historia, moderna, Madrid, Univ. Complutense, 11.25-26, 1991,36 ss. * HESPANHA, António Manuel, “A resistência aos poderes”, in J. Mattoso (dir.), História de Portugal, IV (“O Antigo Regime dir. A.M. Hespanha”), Lisboa, Círculo de Leitores, 1993), pp. 451-458. * HESPANHA, António Manuel, As Vésperas do Leviathan [...], Coimbra, Almedina, 1994. MATTEI, Rudolfo de, Il pensiero politico italiano nell’ étà della contrariforma, Milano-Napoli, Riccardo Ricciardi Ed., 1982, 2 vols. PEGAS, Manuel Alvares, Commentaria ad Ordinationes regni Portugalliae, Ulysipone, 1669-1703, 12+2 toms. PORTUGAL, Domingos Antunes (1673), Tractatus de donationibus regiis, Ulysipone, 1673. SUAREZ, Francisco, Tractatus de legibus ac Deo legislatore, Conimbricae, 1612 (ed. crítica dir. por Luciano Perefia, Madrid, C.S.Le., 1971. SUAREZ, Francisco, Defensio fidei catholicae adversus anglicanae Sectae errares [...], Coimbra, 1613 (ed. util., “Corpus Hispanorum de pace” [com o título Principatus politicus], Madrid, 1972.

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Bibliografia sugerida – As obras assinaladas com *. Notas (l) A formulação concreta, de Araújo, 1627, p. 6 (também 7 V., n. 26; 24, n. 71 s.]). (2) Cf. a referência de Aristóteles à variabilidade das formas de governo, de acordo com as constituições pactadas de cada cidade, Politica, 2 e 3. (3) O livro de Suarez é uma resposta, discretamente encomendada pelo Papa, às obras de Jaime I de Inglaterra sobre o poder soberano e absoluto dos reis e sobre o direito de exigirem um juramento de fidelidade dos súbditos. A ed. util. à a do Corpus hispanorum de pace, Madrid, 1963. (4) Cf., v. g., Araújo, 1627; Portugal, 1673, n, c. 24, ns. 21/22; 33/34; Pegas, 1669, I, ad proem., gl. 101, n. 1. (5) Já a contradição com a mera razão jurídica (do direito “civil” por oposto a direito “natural”) importava uma consequência grave, mas menos radical: uma determinação contra rationem iuris era insusceptível de ser estendida para além do caso concreto a que dissesse respeito; cf. D., 1,3,14 (“o que é recebido contra a razão do direito não deve ser levado às consequências [i.e., é insusceptível de extensão]”, cf. ainda D., 1,3,15 e 16. (6) Segundo Salgado de Araújo (Araújo, 1627, p. 23, n. 68) as espécies do poder do príncipe são: (i) ordinário, sujeito às leis quanto à sua observância; (ii) absoluto regulado, sujeito à razão e lei natural; e (iii) absoluto irregular. Este último não competiria a ninguém, nem mesmo a Deus (“tal soberania compete mais ao imperador dos turcos e aos mais príncipes que vivem, sem lei, e sem vestígio, nem mesmo de razão natural [...]; mesmo o segundo modo de poder nunca foi concebido pelo povo em virtude da Lei Régia a príncipe nenhum, senão que foram eles que com ele se alçaram, o qual dizem que com a tácita permissão dos povos, foi lançando raízes, de sorte que já hoje os reis o têm e lhes convém para muitas coisas em ordem à recta administração da justiça. (n. 69, p. 23 v.). (7) Sobre a potestas absoluta vel extraordinaria, v. Portugal, 1673, n, c. 2, n. 16 ss.; Cabedo, 1601, II, dec. 79; Fragoso, 1641, p. I, 1. 1, d. 3, ? 2, n. 211. Ainda que as duas expressões sejam equivalentes, os autores usam a primeira (“absoluta”) para designar o poder de decidir contra a lei e a segunda (“extraordinária”), para designar o poder de violar direitos de particulares.

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António Manuel Hespanha

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