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FILHAS DE BABILÓNIA
:
DO AUTOR Na
Livraria Aillaud c Bcrtrand
Jardim das Tormentas, contos.
A
Via Sinuosa, romance
— *^t^f*^^AH
Terras do Demo, romance
— 2.* ed.
Filhas de Babilónia y novelas.
NO PRELO
Kstrada de S. Tiago, contos.
.
A AQUILINO RIBEIRO
FILHAS DE
BABILÓNIA NOVELAS *-ífc
Jk91
^^
fv^
i
LíTrarías Ãillaud e Bertra&d
PARIS-LISDOA LivRARU Chardroh Porto
I
Livraria Frahcisco Altes
I
1920
Rio de Janeiro
v^v^-
'967
Todos
os exemplares vão rubricados pelo autor.
JOÃO DE BARROS
t
Parte doeste livro escrevia-a ha anos
em
Paris, a Babilónia, cuja taça d'ouro
inebria
toda a terra, como bradava e
brada ainda do fundo dos séculos a vo^ irosa
do profeta; a outra parte em Por-
tugal, permitindo-me de acrescentar á
Salamonde a pa-
Cartilha do abade de
gina velhissima, tão
leis
da
aos cultos
duma moral complacente com
submersos, as
comum
vida. Daqui,
por localisação e
por alegoria, as Filhas de Babilónia.
Ao tema
versado não é propicia esta
hora, tão cheia
da
gritos de chacal
— de homem para homem
tilintada
de dolars e
e
de povo para povo. Já Ovídio^ escriptor
que floresceu na Edade d' Ouro fechada aos quatro dias do mês de agosto do ano
igi4, expendeu seu
da Redenção de formoso engenho
Eva no
em
restaurar
Paraíso. Sendo aqui
Adão
um seu
e
lon-
ginquo sequai, confesso o pecado de não engeitar
uma
mim
e dos
de
prosa
feita,
desenfadada
homens para y
um mundo
que morreu,
Lisboa, maio de igio.
A. R.
os OLHOS DESLUMBRADOS (Caderno
dum
voluptuoso)
Os
olhos deslumbrados (Caderno
dum
voluptuoso)
I
Em
caminho de ferro, através da chã pasmada de Castela-a- Velha. Todas as tristezas de principio de inverno, do entardecer e do deserto, entraram para a carruagem, tomaram os lugares vazios^
penduraram-se aos espaldares pescoço. Quase que se
e
ao nosso
podem
palpar;
teem corporeidade de viajantas. Ainda ouço e melhor vejo os tamancos do chefe que na última estação, de bandeirola no sovaco, as
mãos encaba-
das nas mangas do tabardo até os cotovelos, tida.
deu com a cabeça o
Eram de
incouras,
sinal
com
de par-
testeiras
douradas, e seu belo sonido de matraca
FILHAS DE BABILÓNIA
4
rompia singular por entre o fragor metálico da manobra. Era a voz de presença da Espanha.
Há
já
uns bons quilómetros andados
não obstante, as montanhas do Douro continuam a mover-se a oeste, ronceiramente. Só o rolar do infinito sobre o infinito terá aquela subtil cadência na e,
mobilidade.
Lá vão correndo
um
ra-se-me que alêm^
corvo, empoleirado
naquele pinheiro
solitário,
estupefacto a vê-las correr.
A
A
nem
— nem
em
baixo.
planície c o trem esgalgam-se, qual
deles mais incansável.
dos,
olhar
está
nós, não,
que conserva o garbo castelhano olhar à retaguarda,
e íigu-
com
Surrada dos ga-
a sarna dos restolhos velhos e
da urze a grisalhar, parece que Deus, ali,
só
casal.
O
semeou
E uma
cinzas.
Nem
moita,
nem
sala de bailar dos ventos.
comboio espalha o arfar de quem foge com medo. Se não com medo, mais melancólico que um herói no exílio, entro para a
os OLHOS DESLUMBRADOS
D
carruagem. Os passageiros, que na adua-
na socorri com a minha sciência das
acabaram de arrumar a complexa bagagem. O papá, de boné em viseira, mãos cilhadas no joelho, tem esta fisionomia oficiosa do viajante sete partidas,
que embala as horas, rilhando a idea
Mesmo mais do que
da chegada.
isso^
encontro-lhe este ar de obsessão interior,
aparentemente semi-desatento, dos
enfermos que, entre outros enfermos,
aguardam na
sala de espera
dos mé-
dicos a vez de consulta. Ela não, vive
momento por momento.
— estorninhos voam
sobre
floridos e é
trejeitando na
mim
neve
—
Porque são
curiosos.
grande regalo sentir-lhes o
vôo sobre nós, baixo a dente,
Já seus olhos
poiso-a
vista,
condescen-
sobre o pé, espiritual
como um Menino-Jesus
e
tão volup-
tuoso que nele vão espojar-se os cupi-
dinhos todos do
meu
serralho.
Pouco há ainda, emquanto o papá
me
agradecia
murmurando
desta Espa-
FILHAS DE BABILÓNIA
6
nha que não sabe línguas, nem penetra a intenção próxima das coisas, seu sa-
XV
pato Luís
que
cais,
minhas botas americanas. Bem
a par de sei
cantou na areia do
no ritmo quase acidental de
foi
passeantes que abrem o passo na
mesma
Embora, já marchamos por trilhos combinados, já houve entre nós uma re-
linha.
lação de simpatia, e daí nossos sexos
— tudo entre homem e mulher reduz a sexo — encetarem o jogo da conjunção. se
Depois, na gare plácida, à beira do pi-
homens que com os
quete de
purrava
mos
um
um
em-
vagão devoluto, deambula-
silenciosos, o
pensamento de cada
dentro de seu «jardim».
No meu
tava ela resccndente e formosa talvez eu,
rins
um
;
es-
no dela
carabineiro, rosadas teias
de aranha.
me passeiam, do meu eu social
Sinto que os olhos dela
procuram
inteirar-sc
pelo halo
de características imateriais
que há
cm
lodo o
homem
e
ainda pelas
luvas, que calço, cor de azeitona verde, a
os OLHOS DESLUMBRADOS
J
gravata adrede desdenhada, a fronte
em
vasta meia lua, este geito desarticulado
que
me
deu o uso do florete e o abuso
de viver. Baldado esforço, sou cispado
como uma arca nova ou assim me julgo. Mas forma a sua idea e nunca há ilusão numa idea que nasce para morrer.
Nas malas-artes de
mava
eu,
seduzir costu-
nos bons tempos, abando-
nar-me, assim
como um
ouriço escor-
regando lentamente da couraça, no que ria exaustiva,
em mim, minha luxúmeu orgulho, um enfado
uma
emotividade toda orgâni-
havia de especial benignO;
ca, feras domésticas
que soltava
e en-
jaulava a prazer. Vezes sucedia assombrá-las,
o que era de
sombro
é
bom
jogo
;
o as-
na mulher e na guerra o primeiro passo da derrota. A fascinar esta donazinha de pé pequennio, nem Belial desejaria ser.
um tico,
Um joven cura persuasivo,
ingénuo colegial, sim.
um
poeta român-
Vem-me mesmo
o receio de
que a assuste; mas n§o? sinto
em
nii-
FILHAS DE BABILÓNIA
8
nhãs carnes como raios intoldáveis sol
dum
nascente os raios do seu olhar.
Desvio dela toda a suspeita de aten-
em contra do instinto marrado nela como podengo ante caça de altanaria. ção,
Alheio-me, mesmo, e ouço a música bár-
bara do comboio e nela
em
seu diabó-
volume colho uma canção doce, vagabunda. E lembra-me a donzela das velhas trovas, sentada de cima duma penha a cantar, emquanto passa, com
lico
lusido tropel,
Nas
senhor da Biscaia.
vidraç^s^ búcias da cacimba, de-
buxa-se tre
um rico
uma
choupos
flora caprichosa. e
Por en-
codeços emaranhados,
consigo ver no primeiro plano
um
gi-
gante de barretina e perna de pau, to-
cando gaita de dansa
e é
um
foles.
Um
homúnculo
urso. Depois a floresta
recua até confins indevassáveis e torna-se
um
scenário mágico, de mil cores.
Vejo
as
magnólias de grandes flores
brancas,
embocadas como
tedral, as olaias cobertas
sinos de ca-
de lágrimas cor
.
os OLHOS DESLUMBRADOS
9
de vinho loreno, laranjais prenhes de frutos
maduros. Minha retina é
ceira
Da
feiti-
a abundância enfada-me e tudo se
;
esvai
uma
como
as riquezas de Pedro
Cem.
alucinação ótica, descaio no jogo
mecânico, racional, do que há mais
vo em mim que
é o cérebro.
acti-
Vou subme-
tendo a cabine a cálculos aritméticos.
O
compóe-se de vinte e seis ripas ou vinte e sete, cômputo feito duma emenda. Não ostenta em seu verniz luteto
zidio
bosques miraculosos, mas, a
canto,
uma máscara
ra-se-me.
Os
um
ganhou com
Um.
trinta
e
de histrião depa-
olhos são duas dedadas de
lampeanista, a boca
mento.
um
.
.
uma
provável
dois.
quatro
junta que arre-
.
.
letras.
descarrila-
três letreiros.
.
A mnemónica
desta cifra seria os trinta dinheiros de
Judas mais os quatro evangelistas; ou os números da harmonia perfeita, vene-
rados dos pitagóricos, 8-4; muitas até
Lá ouço, outra vez, na raivosa do aço, a terna cantiga
a obssessão. sinfonia
!
FILHAS DE BABILÓNIA
IO
errante. Parece
um
hino
flébil a
alguém
que está longe.
As malas dos
em
viajantes teem argolas,
que o coiro mareou com o suor das
mãos, cravadas com
uma.
A
mais rotunda
o rótulo de Coimbra.
seis
pregos cada
baldeada ostenta
e
Coimbra,
.
.
uma
estreloiçada de cimbalos, a Antónia que
me
conjurava na hora intima a dar-lhe
mordicadas nos braços Onde eu vou Uma das malas tecn a housse ponteada .
.
.
quando a côr
a vermelho,
é
de açafrão.
Por baixo, o cabedal está gasto. As housses
foram renovadas
e
falam baixinho
de mediania que tem vergonha de se mostrar. Plntre elas vai amolentada
em
condecinha
trança
de
vermelho,
branco e verde. Talvez a tecesse nitenciário
.
.
.
uma
um
pe-
um honrado cesteiro. Que
me
importa? Dentro viajará o necessá-
rio,
toalha de mãos, lencinhos de assoar,
calças dela que trasbordaram das las.
jLá
com
ma-
as calças deixaria arrancar
o coração e fechá-lo dentro, o libidinoso!
os OLHOS DESLUMBRADOS
I
l
Reflectindo que seria louca presunção
supor que os olhos dela
me
passeiem
ainda, considero que na cretone do encosto, por detrás
do papá^ há uma quei-
madura de cigarro ou de charuto, e vem-me o apetite de fumar. Ainda saco da cigarreira, mas não me decido, teria
com
de pedir-lhe licença, interromper
uma
vénia banal a tecitura misteriosa
da rede que a seus sentidos meus
senti-
dos vão lançando. Volto a doidejar
com
o pezinho que, inadvertido ou inocente,
na perna cruzada,
se
mostra tão diabo-
licamente tentador. Deve ser
neve
com
um
pé de unhas côr de rosa e veias de
azul diluído
em
leite.
E um pé
que anda
duas polegadas acima da
alto,
terra, e
dá a seu torso a quebradura de Niobe espavorida. salto.
E
Os felinos inflectem assim no
a linha incidente da queda. Este
tacão mavioso apareceu tarde. Mediante a mulher teria
ganho a batalha da Idade-Média entre as diabruras do cs~
ele,
pírito e a
divindade da carne.
FILHAS DE BABILÓNIA
12
O
pé dela é rechonchudinho sem demais; cabe na cova da mão; quase o
cobre um beijo. Se fosse a minha amante, os seus pantufos, ao desnudar do corpo,
bem
quais seriam.
sei
.
as
.
minhas mãos
trémulas.
Fatigo-me de divagar. Meus olhos correm,
afinal, afoitos a
buscar os seus
A volúpia de vê-la, não mo pode ela tolher.
que fogem.
ao me-
nos,
Visual-
mente é minha sua pele, sua cor, seu modelado, seu talhe, hão-de percorrê-los estes que a terra ha-de tragar, tão real ;
como estando em meus
e perfeitamente
braços.
É uma
posse
e,
nela, queira
um pouco
não queira, perderá
que
de sua
capitosa pureza.
Não
Tem desta.
sei
bem
se é
mulher se
é criança. »
a estatura daquela e a expressão
Mas não
.Mais tenro
que
vale ela,
a
pena rebusca
para divino gozo,
arrebatou a águia a Ganimedes.
Não
me lembro bem cm quem desfrutei aquela linha substantiva, tão sensual.
Em
An-
j
os OLHOS DESLUMBRADOS
gela'
não, que era
uma
l3
trágica.
Tam-
pouco em Mina que caía no espasmo angélico dum querubim adormecido. Elsa range os dentes e soluça. Ah Agora me I
recorda, é o
rictits
de Marta,
la petite
Tu m'é-
alsacienne au cinema. Dizia-me
branles
comme à un
]prunier !
Eu
aba-
nava-te, tu sacudias-me até as raízes
imprescrutáveis da minha vida, enterra-
das pelas campas na poeira de meus avós, os mais remotos.
A
feição mulheril desta, imóvel, é a
de Marta. Transportada, deve executar aquela
mesma pantomima do
deleite
onde nascia e morria todo o geito harmonioso de formação e consumpção. Marta, porem, dava-se por natureza^ sem medida esta diz-mo sua boca ;
voluntária
—
— deve pôr uma louca orde-
nação no amar.
Seu grau de feminilidade, quase tão vago como sua identidade, escapa-me. O vestido, curto por moda, esconde-me a sazão em que vai levada. Traja sim-
FILHAS DE BABILÓNIA
14
pies,
mas com graça;
a mantinilha
lilás,
rolada na cabeça à maneira de turbante, assenta- lhe sobre o rosto, mescla de cereja,
vinho velho e
não
será,
para não
dum
leite,
a matar. Será,
uma virgem sem ter
história,
história,
ou
nos horizontes
honesto burguês, comerciante, bu-
rocrata, professor,
espinhas da testa
marido a catar as nos primeiros meses
de noivado.
Também
não
identifico o papá.
Não
denota luxo, mas é avisado o corte do vestuário. Pedra
na gravata, botões de
Traz pêra à passa-piolho, bem cuidada, mas sem o quid mefistofélico que dá este acessório,
oiro falam de muita gente.
e
dai
inútil
como
o
queixo varrido.
Olhar lento a mover-se, abdómen escorreito,
mãos muito brancas
e assea-
mas um asseado quase de manicuro ou de quem dispõe de tempo para das,
se
enlevar
em
seu amanho, nervosas
mas sem o empalme que dá o volante, seguras mas sem a presa que dá o ouro,
os OLHOS DESLUMBRADOS
não
está
banqueiro
ali
nem senhor de cipe.
roça.
l5
nem capitalista, Menos um prín-
Aquelas muitas malas falam de
mediocracia. Ela, sim, podia ser
uma
princesinha, se não traísse já no olhar a
mundo de quem
sensibilidade pelo
se
sente baldeada nele.
Agora reparo,
a fisionomia
ressuma bondade,
um como
do papá
doce lua-
ceiro de convalescente. Palpita-me
um homem
de profissão
liberal,
ali
incom-
preendido ou incompetente^ que não
soube vencer. Esta idea irrita-me,
fi-
ca-me a martelar no cérebro, longo
es-
uma categoria idónea, por simpatia com ela, mas não a
paço. Procuro-lhe alta,
acho.
Nem
a de gramático lhe vai.
Anoiteceu; a carruagem fica isolada
do comboio
e
do mundo. Consigo
fur-
tar-me à idea mortificante daquele anonimato.
Entrego-me a
meu pensamento presa em que a banha.
é
ela
e,
sujeito,
como água de
re-
divina adolescente se
;
II
Muitas estações, muitas léguas do-
baram
nada
já e
me roubou
a ela.
ma
roubou ou nada Quatro pessoas insta-
mas breve
as
anulei, lhes risquei toda a existência
do
laram-se na carruagem,
livro
dos vivos e dos mortos.
Em
face,
duas velhas donas carregadas de anos
uma mulheraça loira, rente a mim que só, por
à minha ilharga, nutrida, tão
pude aperceber-me de seu semblante farfalhudo. Mais ao largo um cura torsão,
scismava
.
.
.
scismava
com o
ementas de suas ovelhas, ou
bispo, as
um
doce
pecado de joven confessada. Pela aparência de muito equilíbrio,
nem dele.
nem
ascética
comodamente abstraí Também, sem esforço, lancei fora fragúeira,
os OLHOS DESLUMBRADOS
do entendimento às açafatas tentava
uma
I7
Os-
tristes.
dente de oiro
e,
luzente,
sua poalha era menos viva que a
chama
piedosa que se lhe desprendia da fronte,
meio dos bandós esfipados como asa de corvacha já caduca. Uma e outra pareciam-se com as imagens xilografadas, a
em
velho papel; que, nas galerias, se
mostram esmorescentes por vidro empoeirado. Viajo só
com
E
bamboando sobre las forçantes.
passei.
ela, e esta
articulada de aço, é
dum
trás
uma
carruagem,
discreta liteira
as sogas de duas
Seus lábios de tanto
mu-
me
mostram os agravos das camélias sequiosas. Eu vou quebrado dos rins, mas meus espíritos rejuvenescem a cada
beijar
mirada que lhe lanço.
o coruto branco
Ao
longe, fraldeja
dum campanário
Vamos em chouto medido
rural.
pela estrada
soalheira e, andando, andando,
campo-
neses soltam a salvação, desbarretando
a figura velazquenha.
É domingo, o prior
rezou a missa, casou uns noivos, bate
FILHAS DE BABILÓNIA
l8
no largo
um
fandango, ao
Do
deiro infernal.
som do pan-
balcão da pousada,
rescendente de cravos, debruçamo-nos
ambos par e
o
sol
a par.
estuam, a
As cores, as danças alma ibérica, feita de
sangue e de amor^ sobe até nossas almas
bebemos vinhos rubros, e nossas bocas dão mil beijos e nossos braços mil abrae
ços.
A
eternidade suspendeu-se
em
nós.
Assim a transporto comigo, na bulha dum comboio aceso, repleto de gente, batendo o railhe com furor. Apitos, esta-
uma estação. Lá entra um homem em sapatos que rugem, mala de côr sangrenta em riste. Não é dos que hesitam às portas, mas vai direito ao lugar com a segurança
los de aço, luzes, vultos.
de
quem sabe que
de reserva por
um
é
.
.
o seu, ah lhe está
preestabelecimento
concatenado, vindo do fundo dos tempos. e
Abanca
palpando a
antecipação
e,
desabotoando o casaco
carteira, fica a olhar
as
damas
sem
sorumbáticas.
Aquele sobretudo, a grossas leivas ver-
os OLHOS DESLUMBRADOS
I9
des e vermelhas, cor de carne podre, irrita-me; sua cachaceira sanguínea en-
furece-me.
Todo
assanha a minha
êle
mesmo não posso desfazer-me dele. E entre mim e ela atranca-se um corpo, uma afronta, este Por
antipatia.
isso
ou de
inexplicável de volume, de cor
som que
faz arrancar
um
bezerro e ga-
nir os perus.
Não
um
é
peninsular, vê-se-lhe na
pelagem do queixo, ruiva erva de verão sobre
um
rochedo. Sinto
ganas de lhe preguntar quem
que
vem
perturbar
como
e rala
é,
e
para
meu embevecimento
de amor. Lá compõe o boné de quadradinhos e mostra o ócciput calvo dentro
um
de
aro de mechas brancas
como
imagem geométrica de Saturno, o esbandulhado. Farejo nele
um
um
a
astro
inglês,
americano, destes que apodrecem
de ricos a explorar as terras pobres do sul.
Quero que o
Quedo reage
em
seja e basta.
a examiná-lo e
meu
cérebro
simultaneidade, a perder de
FILHAS DE BABILÓNIA
20
vista.
A
verdade é que eu, se não
mo, admiro
esti-
do progresso, eu o pródigo voluptuário que desbaratei a legitima a correr mundo, e bailarinas, semimundadas amantes cavaleiros
estes
—
nas, mulheres respeitadas
— podia reunir
um bordel copioso. Perante como que
eles, sente-se
a potência avassaladora
duma
sumamente capitoso vê-la ir-se desdobrando. A humanidade é a sua lousa de operações e nada fórmula algébrica
e é
mais delirante que a o
mundo
fazer girar o
presentantes de é à bruta
mão
uma
que calcam
crispada sobre
mundo. Mas,
re-
civilização pirata,
em
sua madracice
as raças da latinidade; ou, emissários
dos países novos, teem a contundente grosseria e grotesco dos recêm-vindos
á civilização. Sob suas botas fleugmáticas calcam usos, costumes, tendências
despertas ou adormecidas, abastardando
o carácter, coisa que vale a e
luz eléctrica
o bifeteque a escorrer sangue. Por isso
os detesto.
os OLHOS DESLUMBRADOS
21
Eu, criatura amoral, preso a tradição
como um brâmane. histéricas
dida
por
numa
uma
Sofro de paixões
página de arte per-
ruína ou
num
cunhal de
ci-
dade morta. Deleitam-me os velhíssimos
povoados de ninhos e os vasos de mangericão medrando sobre o encosto de uma varanda. E nunca faltei com o salve-o Deus ao lavrador que, conduzindo a rabiça do celta, pragueja atrás dos bois. Tudo isto porque beirais vermelhos
venero nestas
frioleiras a
terminável dos mortos que
Lá
vai o
procissão in-
me
geraram.
homem meditando, desfiando
talvez algarismos.
A
luz,
porem, de mi-
nhas considerações, sua personalidade de mero produto quantitativo esvai-se, e
eu torno á suave companheira pela posse
da qual daria todas as minas, todo o aço, todas as montanhas de dólares das
Amé-
meus
avós.
ricas, se
Mais
não a
um
civilização de
arranco vindicativo da
nidade e acabo de riscar de rito
meu
lati-
espí-
a aventesma. Concentro-me todo
!
:
FILHAS DE BABIlÓNIA
22
nela.
Só
minha espádua,
aqui, à
dama
a
um
pouco minha entrega. Nas oscilações da margorda, sonolenta, desvirtua
cha, a barriga de sua perna toca ao de
minha perna. São
leve
deleitáveis, e
por
macias,
titilaçóes
aí se
escoa
da minha voluptuosidade.
um
Um
sopro
quase
nada que não consigo vedar, para me
Mas
dar a hipóstase absoluta
com
forço a representação
sentando-a a
meu
lado,
não
e,
ao corpo encosta. E ondas
é à outra, é
meu corpo se de deleite sobem em meus dela que
após outras, cálidas rebro c
um
ela.
umas meu cé-
nervos,
e suaves, e
receptor embriagado.
o comboio penetra no torvelim
Mas duma
estação, fogos, choques bárbaros, árvo-
O
pre-
uma
vez,
res de ferro, discos coloridos.
goeiro clama
— Salamanca Salamanca!.
um
.
.
Comprei
aí,
Cristo dulcíssimo de Morales. Elsa
pendurou-o à cabeceira de nossa cama, propiciatório.
III
o
comboio entorpecera. Via decor-
rer os minutos, longos
como
dias de ca-
labouço, cair do relógio ventrudo da
gare
com
lentidão peganhosa
a
das
gotas meladas.
No tes,
cais,
em
contra dos vultos erran-
só a luz eléctrica dava
uma
impres-
são de presença, da estranha personalidade objectiva. Parece que exercia
ali
animoso de preenchimento. Contra o muro, caras de mulheres serranas vendiam espasmo; e, pelo asfalto o papel
espelhento das chuvas,
um
cura
desli-
sava mais manso que palmípede preto
num
charco. Outros viageiros.
eu mal
me
.
.
mas
apercebia de seus vultos gra-
FILHAS DE BABILÓNIA
24
da cantina, era como
ves. Sons, vozes
do cabo do mundo. Não se sentia o pulsar da locomotiva, o nosso pulsar difuso de viajantes. Era a imponse partissem
derabilidade.
A
sineta tangeu afinal, e entrei
assonância
com
A
«o de fora».
em
fonda
começou a revessar seu mundo, os malteser> de pau e manta que adoram o Menino nos quadros de Kibera, os marchantes de borla no sombrero^ os carabineiros
de filhos à
trela.
Uma
chica
passou a cantarolar El alma de Dios.
Como lesma teiro
sobre
negro
uma
abóbora, o pon-
avançava no mostrador
branco.
—
in-
frio,
está
coiT
partir.
.
.
sede que mate?
Graciosamente,
meus bons
ofícios,
de bebida
e,
;
fazendo
acreditar
propus-me ir à cata sem pompa em minha di-
:
os OLHOS DESLUMBRADOS
ligência,
pude guiar
deja de águas.
Não
25
até ela provida bansei
o que murmurou,
então, sua voz enleada; só lhe fixei o timbre, a música
com que
desejaria sair
mundo, para eterno gozo da minha alma. Era a voz pura de
os umbrais deste
uma
criança, destas
que,
em
sonhos,
ouço a negaciar minha mocidade moribunda. Sou assim monstruoso, desperto trago
um
arraial
comigo, dormindo, es-
cuto e vejo os paraízos que se
me vão
fechando. Já a sineta deu o segundo sinal cais,
a
e,
turba multa ordenava-se.
no
Os
sacos de chita tinham subido os estri-
bos sujos das terceiras;
um
harmónio
chorava. Menino de coro, seminarista,
um
mocinho dirigiu-se muito desenganado ao cura El senor obispo no viene. O cura abriu os braços na mesura larga do oratefratres e lento, com a sua-
— —
vidade oleosa da gente eclesiástica, desapareceu.
.
FIÍHAS DE BABILÓNIA
20
Clareara novamente a gare. Perante as cabeças broncas de «adoração», as
serranas erguiam
O
um
olhar de lágrimas.
chefe dera dois passos á frente; lá
longe, na noite, a locomotiva arquejava,
cuspia vapor e chama, e a hulha exalava seu odor acre de vertigem.
Um matulão
do correio no mo-
atirou a última bolsa
;
vimento inclinado de alcançar,
uma
se-
nhora, seguida de dois bebés, acorreu.
Terceiro repique
Virgen
/
e
:
adios ! id
com
la
o comboio, estirando os ten-
dões, desamarrou. Recuos elásticos das
vigas de ferro e dos letreiros, saltos ás-
peros de barras, a confusão, os fogos todos da cidade cortejando-nos.
Rolamos; eu
A dama
íito-a, ela fita-me.
retardatária
.
anda em busca
de lugar. Vejo, pelo corredor fora, sua
sondando os compartimentos, temperando seu rasgo dum sorriso amável. Atrás, os meninos bôbela cabeça loura
cas-abertas e esgrouviados.
Ainda
ali
vão dois lugares devolutos,
:
os OLHOS DESLUMBRADOS
mas Deus
a leve para longe. Gosto de gosto, muito
crianças,
27
embora sejam
me levem a desesperar de mim, à data em que sua puberdade em flor coincidirá com a minha meninas
e louçãs e
sazão de envelhecer. Neste momento,
porem, detestaria essas crianças alvas, pernaltas, fugidas
dum
retábulo
real
de Velasquez, se poisassem entre nós.
Quero
ir
só
com
ela,
sem anjos que me
aborreçam.
Mas
—
(4
a bela
mamã
passa adiante.
Temos, então, o prazer de
com um
patrício?
viajar
— preguntou-me
à
queima-roupa o papá, atirando a gazeta que lia. Declinei uns breves dados sobre mi-
nha caderneta
civil e ele
tornou
— (jMas vive em Portugal? — Uns meses do ano, pela quadra lá
da caça e do mosto. passo-o Paris,
calha.
O
resto
do tempo
ao acaso da inspiração,
em
Berlim,
em
em Veneza, onde
:
FILHAS DE BABILÓNIA
28
O
viajante
cunspecção
contemplou-me com
cir-
e proferiu
— Nós somos dos arredores do Porto
e
vamos
a
Montmorency,
terra de
minha
mulher. Estabelece-se,
intimidade muito tificial,
—
a
certa
fácil,
altura,
posto que ar-
A
entre passageiros.
dir-se-ia
— provoca a
uma
vertigem
descongelação
homem homem ci-
de preconceitos e reservas que o civilizado nutre para
com
o
tumbas volantes, o trato social traz um cunho imperioso de instintiva solidariedade. Sob a alçada desta lei, se achava de certo o papá, quando, por veredas quase rectilíneas, quebrou o anonimato comigo. Era arquitecto, e
vilizado. Nestas
um
alardeou
papel armoriado dos Ri-
badalia ventilando o trasteio
de estar
em
sua vivenda de verão.
ignorava-lhe a existência lhe vira
o
duma
e,
sala
Eu
tampouco,
nome nas gazetas, o que é o dentro duma profissão liberal
cúmulo a na nossa terra de
soalheiro.
os OLHOS DESLUMBRADOS
29
Arquitecto ignorado ou ignorante,
ti-
uma
nha
ali
ela,
náo podia abstrair de todo
obra prima
e,
admirando a dele.
Mas bem me quisera parecer, é um homem bom ou, melhor, um bom homem. Tem as bondades éticas do homem, mas não dum homem. Vou jurá-lo
:
é destes
sombra é
;
e,
que passam sem deixar
sendo desses,
e arquitecto,
quase paradoxal.
Divagamos, eu
sei lá
por onde, da
Catedral de Colónia à Ponte sobre o Tejo.
em
Eu
falava para ela
beleza, era
dade.
um
Entretanto
subsidiário
em
arte e
arauto da feminili-
estudava-o,
como
da psicologia que sobre a
cabeça loura de sua
Em
e,
filha ia edificando.
todo o tempo só
uma
vez lhe vi
máscara de bondade que me incutia uma dor absurda. Foi quando desafivelar a
puxou da carta dos Ribadalta. A mobilidade do rosto parou-lhe no rictus dum simples. Mostrou os dentes, sem riso; as gorovinhas da face repuxaram-lhe os
FILHAS DE BABILÓNIA
3o
lábios; dilataram-se-lhe as narinas.
uma pobre alma
Era
escâncaras, des-
às
vanecida.
Em tura.
hora normal, detestaria esta cria-
Nunca
nem de
fui
casas^
estes contactos.
julgo-os pelo
pática e íico
sindico
nem
de falências,
de ho.nens.
Como
Temo
sou supersticioso,
fenómeno da atracção sima duvidar de mim. A minha
piedade, aqui, é de fariseu.
Falando-me, não tinha a noção do categórico que existe no monossílabo;
contestava-me transigindo; negava-me
por
uma
longa curva de afirmativas;
o sim e o não eram idiotismos na sua
E com
linguagem.
«todavia» idea
dos
acometer.
o seu «é verdade»
desarmava-me. Dava-me a Horácios que fugiam para
Mas
aqui por frouxidão de
temperamento e não delicadeza ou subtileza de animo.
Oh mas !
ela era bela
de ver, embria-
gante de desejar. Por seus lábios e sua posse, durante minutos, marcharia firme
.
:
:
os OLHOS DESLUMBRADOS
:
3l
ao cadafalso; deixassem-ma abraçar e
um
deixassem-ma mandassem-me morrer. ^iComo
abraçaria
gozar
e
leproso;
não havia de perdoar ao pobre arquitecto de tanto divino?
E
entregiiei-me
com lisura, com verdade, que eu, quando me entrego, sou mais inocente que um cordeirinho de mama.
todo
Trocamos os cartões e êle, lendo o meu, num esforço remissivo de memória
declarou
— <jEste tranho,
nome não me
de todo es-
é
mas donde?
Genoveva, para quem o bilhete
se
encontrava no raio visual, exclamou
—
j
Oh
papá, não
te
lembras da peça
a que nos levou Joaninha? deste senhor.
Era o
grito
Mas
era
.
de surpresa
duma
criança
contente.
Ele quedou
um momento
silencioso a
buscar equilíbrio para aquela circunstância e disse, batendo na testa
— jA
Ponte do
Fumo,
.
.
agora
me
.
FILHAS DE BABILÓNIA
32
lembro! Senhor, admiro-o. Tenho muita
em
honra
conhecê-lo.
com
Ela sorria-me;
—O
teatro é
ate,
um tombo
nadam,
que
nadar.
.
arte fácil,
Quatro pessoas,
senhora.
que as
uma
ênfase, proferi:
.
outras
minha
uma corda
ao mar; umas
não sabem
que
Aí está o teatro de tese.
.
o meu.
Genoveva era minha cia a
dos,
leitora;
conhe-
meia dúzia de trabalhos publica-
romances sem viscondessas, contos
serq padres-curas. Ignorava o livro mais
O
Pavão é o rei dos animais. Rasgadamente fui à mala e ofereci-lhe o exemplar que levava recente, e mais inofensivo
:
para Elsa.
Depois o silêncio poisou entre nós,
remoendo eu
e ela
de longe.
O
vorava o
railhe.
nosso conhecimento
comboio devorava.
.
.
de-
Quebrantados, esten-
demo-nos sobre as banquetas. O semblante afável de Genoveva dizia-me: «Ora quem o senhor é. Um homem ce-
.
ÒS OLHOS DESLUMBRADOS
lebrado.
jNão
Mas tem o
ar melancólico
33
.
.
terá sido feliz?».
Vaidoso
e infatuado
como
lord By-
ron, tinha a veleidade de descobrir isto e considerei:
amar com as figuras que desdobrei de minha alma monstruosa, onde irás tu? Os nos«Almazinha que
fiz
vibrar e
sos destinos teem já muitos pontos de
intersecção; incorrigível
—
quem sabe?! Velho fauno
— dizia-me
a voz da cons-
no pendor quando ela começa a subir a colina da vida. Nem ela te alcança, nem tu a podes esperar. Só uma Poníe do fumo, em que escurecesse ciência
tu vais
;
vossa razão e vosso passo, vos poderia levar
um
ao outro!»
:
IV
Luminosas, as pupilas de Genoveva fitavam-me.
E não me pude
assestar sobre elas
um
tolher de
olhar terno, olhar
de genuflexão perante tão subida mercê, e sal
de agradecimento á beleza univer-
que
semeia flores na vereda das
feras, e faces
hostil
das Espanhas. E, novamente doi-
do-varrido, o o
j
pulquérrimas no trajecto
meu
espírito interrogou
Qual será a rota desta almazinha?
jíQual será, entre os mais felizes
dos
homens, o primeiro a beber naqueles lábios tão amáveis?» Oh! não seria eu, homem amolentado a
quem os anos começavam a pesar
desejar e a possuir, para
trinta e cinco
os OLHOS DESLUMBRADOS
como
trinta e cinco robles
35
vindos de
No meu fogo para seduzir uma mais nada. Mas em-
Noé. jNão, não podia ser eu! peito havia ainda
viúva de major,
bora, ao sentir aqueles olhos límpidos
uma ternura nova planava acima de meu pensamento debruçados sobre mim,
crapuloso
como
sol
sobre água choca.
O trem esfalfava-se na campina coberta
de breu,
e,
emquanto o
à rédea solta, o
espírito corria
meu ouvido começou
a
no rumor bárbaro do comboio uma melodia larga e majestosa. Nela distinguir
se aliava ao eco dos espaços, batidos
pelos ventos, o esbravejar das forças
reprimidas
como
corcéis de guerra.
E
era mais soberana que a voz do mar,
em que mal
tremeluz
uma
nota à
glori-
homem. Depois, variações sinfónicas, duma opulência vagneriana, desenharam-se a meus ouvidos. Coros
ficação do
riais,
orquestrações de alta dinâmica, as
gamas todas do aço cantando inspiradamente. ^ Porque não há artista que tra-
36
FILHAS DE BABILÓNIA
duza as melodias estranhas
em
boio projectado
dum com-
bólide, aquele leit-
motiv tão dominador da corrida, todo
o batuque ciclópico do monstro?
Genoveva
!
Chama-se Genoveva
criança loura, que diante de ter a
compostura de mulher
bilhão das cousas.
como
mim
afeita
esta
quere
ao
tur-
O nome é perfumado
as amendoeiras
em flor. ^Que
ida-
As espáduas são de mulher, os olhos, porém, conservam toda a mobilidade inestilizável das crianças. São quentes, mas não seguros. Não me fitam com demora e morrem pela curiosidade de se banhar nos meus. Seduz-me diabólicamente, porquê ? de terá
?
Inegavelmente porque estou gasto e ela
é
um
depravado de inverno. rio
do do
botão de rosa e ela é pura.
O
pai,
porque sou
Eu sou um
queixo dela
um
;
é,
abrir
ao contrá-
queixo de vontade.
cabelos, enrolados a Greuze,
Os
devem-na
cobrir até os pés; todavia, na raiz da fronte
uma
leve
penugem
infantil aloira
os OLHOS DESLUMBRADOS
ainda.
Que
idade tem?
^i
3/
doze, quinze,
dezassete anos? Impossível atinar; são
em que é táo temerário assegurar a criança como entrever a mulher. E uma criança nos assim as madonas de Mainardi
anos, mulher, parece-me bem, no desejo
de ser mulher.
^E que
é a vida
senão
vontade ?
— Que ardor — meu anjo — Debaixo de neve — respondia — Ver-se-iam os cameu anjo !
dizia
cínico.
lhe
liai.
já
fora os
em minha cabeça, se não artifícios com que os encobre a
toleima.
Ah!
belos brancos
i
já
não posso
ter
esperança;
não posso, não quero, não devo
me
!
iludir-
Sou curioso de tudo o que tem
curiosidade, lá isso sou
;
gostaria de per-
ceber, tactear, gozar o seu interior,
como um
maquinismo
relojoeiro
;
mais que
Há um fundo de equilíbrio em mim, uma voz sensata que se poria a isso não.
berrar, se fosse asno
:
és
um
a ladrar á madrugada.
'—Caiisas-rne hilaridade
triste
lobo
— tornava a
!
!
FILHAS DE BABILÓNIA
38
metade
eii
— nesse
Como
sempre,
do meu
satânica
desespero tão eloquente.
sátiro ladino, afias as unhas,
j
Possas tu
cair sobre a franganinha
— Não!
Não! Bem sei quanto um propósito moral é pouco em par com o ou sentimento desenfreado. Bem que o instinto dispõe duma força
vício sei
uma folha no oceano interior que o homem traz consigo. Concentrando todo o meu diabólico irreprimível e a razão é
querer, talvez orientasse tasse
— até
mim
— ou desorien-
esta criança, deslum-
brada no limiar da vida. Mas não quero, porque d'ora-avante desejo moer até o derradeiro minuto
em
aborrecimento, e
quem diz aborrecimento diz paz, os dias que me restam de vida. Que esforço de imaginação Quando a levas ao tálamo, glorioso
—
i
(i
bandalho? Quero encomendar questra
uma
or-
rial.
— Maldito sejas! — Genoveva
está-te nas garras; está
9
;
.
os OLHOS DESLUMBRADOS
nas garras do
moço
3
velho que não larga
a presa, não perdoa,
j
Repara como o
olhar dela se espenuja!
^i
Imaginas tu
que seus sentidos ainda não penetraram a traça
em que a vais emaranhando? Ela
adivinha-te e rende-se.
observa-a.
A
Está rendida
.
locomotiva silvou; os semáforos
duma gare imensa obscuridade
do
bielas amolecia.
fustigaram a semi-
vagão.
O
jogo
das
Ergui-me da banqueta
em que as minhas duas personalidades, uma correcta e sentimental de cidadão comum, outra
luxuriosa e cínica de in-
disputavam ao ritmo do aço rolando no aço. Genoveva sor-
corrigivel doido,
ri a-me.
;
Por muito tempo, ao compasso de
cem rodas saltando de
carril
em
carril,
meu pensamento tresvariou. Pesaroso, umas vezes, como jogador que deixou sorver sua fazenda, despejado e alvar,
como grilheta para o há apelação nem agravo. outras,
«Genoveva,
— dizia
êle
qual não
— quando na
cómoda se baralharem com as cartas de amor hediondas receitas de botica, amará e será amada. gaveta de minha
Talvez seja noiva albergue
na
c
e
em
seu cérebro se
um lupanar.
assim
jA natureza humaMas não será menos vir-
!
gem, nem sua boca menos cândida.
arminho só
é
O
imaculado na roupagem
os OLHOS DESLUMBRADOS
em
4!
sua vida animal não é diferente de
qualquer imundo varrão.
Em deleitação
morosa, dormirá Genoveva com seus cavaleiros de baile e
com
que tem fama de devasso
aquele e,
um
moço
dia,
ao
cortar o ângulo de seu piso, lhe lançou
tão turva mirada. Dormirá, porventura,
com o
com o jovem prior de que ouve missa, e com quem menos se deve deitar é com seu noivo cocheiro da casa,
ou seu marido. O silêncio e a noite levarão à sua cama um cortejo de sátiros. E o seii pensamento acolhê-los há porque o pensamento, a noite, e o silêncio ;
são os três conjurados contra a castidade.
Se cruzasse comigo, quando os dedos reboludos das massagistas ainda
tamborilavam na
pele, talvez
comigo. Talvez dormíssemos dade, traindo ela
me não
dormisse
em
reali-
um marido, que poderá
ser jogador e frequentar as cocottes, e
rendendo eu
tributo,
com meu coração
inconstante, à si^a formusura liberal a
FILHAS DE BABILÓNIA
42
dum coração inconstante é mais agradável ao amor que o dum coração fiel. A variedade em que se dar-se; O tributo
move
a natureza só permite à nossa sin-
uma homenagem
ceridade
Trairíamos o burguês
e
passageira.
eu
seria,
o
que está na dinâmica do meu temperamento, impetuoso e dominador. Nunca
amor mavioso como os rondós de Gluck, nem Genoveva iria buscar
pratiquei o
do
este fora
leito legal.
Esse
tal
que não
passa de gatinho doméstico repugna-me.
Garra recolhida, blandiciosa, no galanteio, garra desembainhada, ardida,
no empalme foram o segredo de meus sucessos.
Assim
seria de verdade, se eu
como
retroceder
romanzas cel
!
Mil e
e são o
:
eh
um
!
pudesse
os dons paladinos das
torna atrás, ó
meu
cor-
cavalos arrastam as vidas
tempo. Deixá-lo.
.
.
alguns anos
mais, quando eu recorrer às perrucas,
sua cinta maternal será
um
autêntico
saco pele de crocodilo, nanja essa es-
os OLHOS DESLUMBRADOS
48
galgada ânfora que fará tontas as mãos
que a toquem,
e
secará de
sede
os
E com este blasda vida, me recon-
lábios
que a beijem.
femar
das
leis
forto.
Mas
lá
está ela
porfiadamente,
que
com
me
fita,
resolução.
me
fita
O
seu
— diz-mo a sciência dos pressentimentos — repreende-me; são mil setas olhar
mansas, suavíssimas, contra o scéptico
em mim e vinha rabugento e cabisbaixo. Bem as sinto e, ó minha vir-
que mora
gem
prometo matar esse scéptico e crer em ti e na redenção dos corpos do tempo que passa. E, perante o teu olhar magoado, ajoelho em acto de adoração plena, adoração retirada de tudo o que amei e venha a amar por louca, eu
tantas quantas faculdades afectivas, do
berço à cova, surgir.
Eu
te
em mim surgiram e hão-de
prometo, também, que este
olhar que te torno, se prolongará até
o último lampejo de meus olhos, guar-
dando-te
assim
doce,
assim
jovem,
:
FILHAS DE BABILÓNIA
44
assim amável, qual hoje
membros
E
meu
amo? .
teus
.
O
O
Sei lá...
papoula im-
amor chega
— Se me amai*
amor apodera-se
E
imaginação.
Hoid-
instinto voluptuoso.
em mim pela sensualidade. Talvez.
belle
<-da
ficarás, assim, a
perecedora de
Se a
De
lestos e tua pele rósea varro
para sempre a que foi mière».
te vejo.
destas
delas pela
possibilidades
construo pensamentos, confusos
como
mais loucos que
Roma
florestas de noite,
a arder, cheios de sons, de cores,
com
borbotões efémeros de desespero e de confiança. E,
tal
um mar
onduloso, em-
balam-me, vão-me embalando, longa, perdidamente.
.
.
e, entre,
perpassa muito
cem
escoteira a música das
rodas. Passa
como que à margem do meu cérebro escoteira, mas bem acesa de acento triunDepois, o meu cérebro começa a fal. trabalhar
automática
«Este comboio tem
e
uma
vadiamente estrutura
ma-
ravilhosa, cabeça, pulmões, nervos, co-
luna dorsal,
membros
ágeis».
Emquanto
os OLHOS DESLUMBRADOS
45
houver jumentos ^e moleiros claudican-
do pelos caminhos, há-de-se-lhe admi-
emquanto
não iludir soberanamente a resistência da matéria há-de se admirar seu fôlego girar a potência
;
Seu
gantesco.
se
rompante
passo
mesmo majestade. Agora lá por uma recta inquebrantável dia.
tem
vai
êle
e fugi-
Sinto-o na trepidação toda longi-
tudinal, de vante à ré.
mem,
e o
Os
freios fre-
aço rescanha no aço. E'
tufão vinculado a
um
canal.
A
um
planície
deve estremecer alucinada sob o fragor da centopeia ardente. Deve estre-
mecer tudo o que há de estática na natureza e no homem do monstro novo que engole as distâncias com impetuosa ira.
O
desfile
romano, que
se descobria
ao
cadenciado das legiões triunfan-
tes, soltaria
primores
o seu
duma
io.
E' certo, reúne os
bela máquina, subtileza,
energia, rigor e isso que choca as obras primas
do aço
em
todas
e nas finas es-
tampas do reino animal, brusqueria.
FILHAS DE BABILÓNIA
46
Falta-lhe, porém,
um
quase nada ou
um
quase tudo-— alma. Neste particular é quase táo inferior
como um
pião.
O
man-
pião vai onde o
da a baraça, o comboio o seu piso terável.
inal-
Esta rectibilidade é o sinal da
sua bruteza.
Tem um
só trilhar e já o
protozoário tinha a faculdade de direcção.
E
forte e é estúpido
o comboio.
O
avião, na sua fase ainda embrionária,
dispõe
uma
duma
atitude
sensibilidade
ao arbítrio que
o aviador é o cérebro
um
;
;
um
e
receptiva, é a
alma;
um
fazem
simbiose coloca-se, na pro-
esta
gressão da sciência, perto da natureza.
E um
pássaro. Daí o ser o avião
uma máquina
inteligente, e o
comboio
parar na escala dos primitivos, rígido
e
como o
interminável diplodocus que
beatamente se deixou morrer
Tudo
em
sua
avançando ou recuando. Sobre o aeroplano tem o gigantaria.
comboio, por
vai assim
privilégio,
o desfrute ra-
os OLHOS DESLUMBRADOS
47
cional dos panoramas, da terra e dos outros, e o aborrecimento que é o desfrute de
boio
nós mesmos. Já sobre o com-
tinha
a
eternidade
eternidade,
da
o privilégio
liteira
num
bastante,
precurso destes, a poder amar, noivar, esposar esta menina, aborrecê-la.
.
.
en-
viuvar.
Tempos hão-de vir em que, d'asa hectométrica, com ron-ron mais atroante
que o Niágara, veículos aéreos, enor-
mes como Potsdamer-Bahnhofy salvarão as latitudes,
de continente para con-
Mais adiante ainda, viajarão os corpos no céu como hoje as ando-
tinente.
rinhas,
quero, vilha,
e
as almas no Paraíso.
Dum
dum vou-me,
pular-se há a Se-
ao
Tombuctú.
cómodo
e
Cairo,
a
Será
não haverá mais propriedade
rústica e urbana, indefensável a estes ióes circulatórios.
ceria
uma
janela,
Eu, então, só conhea janela
do quarto
onde dormisse Genoveva.
Entramos num
túnel
;
parece que há
FILHAS DE BABILÓNIA
48
uma
exaltação de velocidade
rame trepida
;
;
o madei-
a bulha é horrísona, ras-
pante, compacta, sincopada de estrépitos
bárbaros, detonantes, e
duma
grita
oitava. Interrogo a imaginativa
:
é
em
um
gigante perna de pau, perseguido de mil
demónios a uivar, que corre, que tamborila na calçada sua fuga célere, unijâmbica. Rolamos numa nebulosa. Genoveva, no tom ronde-bosse do fumo, semelha-sc à Minerva dum dracma antigo.
VI
Genoveva dorme, mas eu não posso dormir. A isso se opóe o meu estado de excitação e o incomensurável respeito
que tenho por mim. e
O
sono
é
um ladrão,
eu não quero ser esbulhado do que
granjeei por astúcia,
próprio e dos outros.
engenho
O
homem
estudo
que granjeei
este alinho imperturbável e
complexa de
e
é
ordenação
que se sente
e
man-
têm superior, sobretudo, esta máscara toda latina, levemente irónica para ofuscar,
um
quase nada sorridente para
sempre espiritual, e onde as rugas nada teem que ver com o tempo, atrair,
mas com a benignidade
interior de
que
são as iniludíveis vibrações. Será a ta4
FILHAS DE BABILÓNIA
5o
em que
se concerta a
falência, talvez, por isso
mesmo mais
boleta
duma
casa
mè ocupo dela. Onde o sono me
levaria, sei eu:
em
detestado moço-velho que escondo
mim, amarrado ao pelourinho de e cinco anos, cheios e e
ao
trinta
pesadões insónias ;
noitadas escritas na face; o topete,
rompendo o escantoado da
fronte, pe-
nacho de gavião velho. Talvez o
lábio,
em sua concom uma lesma en-
escorregando, se parecesse, gestão de luxúria,
goiada; talvez da boca se escapulisse o
hausto roufenho dos realejos que teem
um
século de peditório.
Senão tudo
isto,
mais temível que ser surpreendido a far
um
bi-
de assoar, pelo menos
lenço
deixaria de ser o que virtualmente sou.
mesmo, consoante a madre
Seria eu
natureza, e mais exacto, mais idóneo,
sou o que por palavra
por
me
fiz,
numa
não sou. Ai cheguei metamorfose infinitamente
o que
uma
subtil,
artificio
quase
subconsciente, por
isso
I
*:
os OLHOS DESLUMBRADOS
mesmo
em
incerta
teoria.
Que
5
é
I
mo-
que tenho
de
que Genoveva, ao surpreender-me
em
ral,
diz-mo
a intuição
meu envelope
próprio, sentiria
a hedionda, a abjecta
se
pena de quem
é
Por isso me resguardo. houvesse alguma vez de dormir com
para quem não
E
pena,
é.
esta poldra deliciosa, antes
que meus
olhos se fechassem, havia de assegurar-
-me primeiro com de seu sono
com
bem fatigada Ou teria uma torre segredo para me en-
fatigá-la
solto.
fechaduras de
cerrar e dormir o sono dos justos, j Esses casais de burgueses que e
acordam no mesmo
mo eu lhes invejo Não posso
e
xá-los voltejar
leito
desejo.
farândola.
não quero dormir. Dei-
bem
Em
Que
de ferro, co-
a ingénua animalidade!
vivos e aliciadores
sobre a divina cabeça os
meu
amam, dormem
silfos
alados do
sono, abrandariam a
bailem, que cabriolem,
que quebrem e se requebrem até a embriagar, até a enlouquecer, até que ar-
ranquem à roda os génios voluptuosos
FILHAS DE BABILÓNIA
52
que, tímidos ou dormentes, há no seio dela.
Ela dorme e é a sempre-mesma. Tal-
vez
um
Seria
pouco mais anjo na imobilidade.
uma
procurar reversos.
heresia
Nada de novo lhe encontram meus olhos, mas não meu sentimento mais criador que o Padre. Passo a passo, cubro horas loucas
e
aí
des-
horas de remansado
carinho, acolhidas ternas e adeus sus-
do
pirosos, enlevos
espírito e arrebata-
mentos dos corpos, tudo o que encerra
um
tronco vibrátil e
E quedo-me
um
coração
liai.
a sonhar, a sonhar cons-
cientemente, enquanto os olhos divagam
dentro dos quatro taipais que nos levam.
Quem
vai connosco, não
sei.
Manchas
esbranquiçadas, manchas baças, tremulantes tre,
— devem
ser os passageiros.
En-
só considero que o arquitecto vai
tombado sobre a de Pisa.
O
ilharga
como
dispersivo morreu
a
Torre
em mim,
desde que os olhos de Genoveva come-
çaram
a falar para
meus
olhos.
os OLHOS DESLUMBRADOS
Chamo-me
53
a juízo proba e sincera-
mente, tanto mais que ninguém está no
Franco falar, o de meu irmão lavrador que tem a singeleza impressionante do rei Wamba. Doido varrido Doido varrido Pretório.
—
Cai
!
!
em
consulta o entendimento, e
ti,
hás-de soltar risadas malucas sobre esse
disparatado sonhar.
— Ai
meu anjo da guarCatão. Mas disparatado,
vem
da...
não,
porquê
?
o
— Porquê? vais a
ludibriar-te e a lu-
dibriar esta criaturinha.
Tu
és a volu-
bilidade, ela a inocência desprevenida.
Conquistá-la-ias hoje para a repudiares
amanhã. Que
se
renda
e
breve chorará
o cativeiro.
— Não
vejo,
da entrega.
— Essa
.
sequer, a possibilidade
.
possibilidade desenha-se.
teu prestígio
de
homem
O
de letras des-
lumbrou-a; a novidade do amor seduziu-a.
Ela
sonha contigo.
.
.
contigo,
!
FILHAS DE BABILÓNIA
54
marido
talvez,
rico, artista,
eternamente
amante, gloriosa contigo glorioso.
— Prouvera a Deus — Mas certo sabe-lo bem. E, ouve, é
e
(iprender-te-ias a esta rapariga
— Porque não?! — Seria o salto
dum
?
quinto andar.
Dela só sabes que é bonita, tem o pé espiritual e o talhe voluptuoso. Imaginaste
uma
pilha de promitente sensua-
lidade e por aí se veio a atear o teu delírio.
Não
duvides, o
deliciosos pela luxúria. se é
duas
amor chega nos
O que sabes dela,
uma amante de escasso para uma
o bastante para noites,
amante de
é
já
oito dias.
Para esposa, nada.
Ela pode-te ser diametralmente oposta,
quando tu és taciturno, toleirona quando tu és um delicado, gostar de fadinhos quando tu não suportas um recital de órgão. Pode ter taras físicas, ter medo dos gatos que tu adoras, tocar boleros no piano que tu aborreces, farfalhuda
gostar de valsar o tango.
A
família,
na
os OLHOS DESLUMBRADOS
actual linhagem^,
ou
um
táveis
santo
—
pode contar
— coevos por
e até a
55
um
herói
igual detes-
mãe, francesa de ex-
portação, pode ter sido regateira ou cocotte.
O que
que terás de
é indubitável é
suportar a mediocridade do pai, ateiçoar-lhe, passo a passo, muletas para
andar.
.
.
Um
horror!
— E que mais? — Dando
de barato que
tes contras exista, ^
nenhum
des-
pensaste já no que
almazinha inexperiente^ ao pé da tua, monstruosa, insaciável de tudo,
seria esta
cansada de tudo? Pensa bem. é
veio
dias,
de poucas águas.
senão
horas,
.
.
Em
aquilo
curtos
esgotá-la-ias,
sua
jucundidade, seus meandros de senti-
mento e de sonho, seus transportes, sua compreensão e intuição das cousas. Devassarias a sua alma tão cedo como o seu corpo. E tu, porque és um voluptuoso, precisas além dos braços que te apertem, de almas, duma alma que se multiplique. Precisas da alma mil almas.
FILHAS DE BABILÓNIA
56
Breve a conhecerias como as tuas mãos, e ela não teria nada de novo a dar-te^
porque
dum
se daria
jacto e sua inflo-
rescência não lhe permite, por ora, re-
novamentos.
Com
^
que havia de com-
prar-te, a pobre, pelos lá
da
fácil
lua de mel? Esta
— Quem me
vilis
CidnOy
est Atthis, ut ante
— Sim, sim das de Corina. — Estou
.
não
te serve.
serve? ViUs Atnythone^
mihi cândida
grata
tempos fora, para
.
.
Non
méis
oculis
!
dessa espécie, dobra-
farto de correr a aventura
louca da insaciedade. Esta bastar-me-ia,
formosa como
é,
tendo apenas, a mais
o chilrear simples
dum
pintassilgo.
— Bem, mas passando por sobre
es-
ses mil contraditórios, esta
mocinha tem
dum homem
rico, terno,
necessidade sentimental,
todo
dela.
Consumiste
quase a paterna, a ponto que se não fora a providencia de teu irmão irredu-
tivelmente celibatário, terias de recorrer
ao emprego público; toda a preo-
os OLHOS DESLUMBRADOS
cupação são os teus ções;
j
57
livros, as tuas cria-
ternura, junto à nevrose de ar-
tista, tê-la
— Não
hás sempre? sei,
nem me importa
saber.
jijQue é o sentimento senão a mola
empurra pela colina da vida, para cair ou nos exaltarmos mais, equivalentes, afinal, do mesmo trânsito irrefragável ? Obedecer é a nossa obrigação, a nossa melhor obrigação de suoculta que nos
!
periores.
—
Deixarias a Europa, o teu diabó-
licamente adorado Paris para morar na aldeia
?
— Porque não — Dai, quando Serra,
^i
?!
o inverno aperte na
levarás tua mulher, que fatal-
mente tem apetites de sociedade, aos teatrelhos de Lisboa, às exposições de arte rançosa, aos chás
dos Ribadalta e
outras niquices enfadonhas
— Resignar-me — às
praias,
?
hei.
onde
um badameco
acatitado lhe fará a corte?
.
!
.
.
.
FILHAS DE BABILÓNIA
58
— Resignar-me — Então anda, mas não esqueças que hei.
poisas sobre a fronte a coroa de espi-
nhos do amor. Ela é moça, ces.
tu envelhe-
Estas alianças quebram, as mais
das vezes, por
aí.
.
— A ventura — E Elsa? ^Como desligarias de Elsa? — Como me desliguei de Antónia, de Marta, de tantas outras. — Quem com mata com morre —A uma parábola te
ferro
ferro
.
.
justiça é
— Bem,
anda
celeste.
lá,
pobre, louco, velho,
( perverso.
.
— Queira
ela! queira ela!.
.
Genoveva, por entre o rebuço da mantinilha,
tudo
espreitava-me.
isto, contei-lhe
tudo
Disse-lhe
isto, e
a
meus
olhos sinceros seus olhos floridos con-
juraram a não temer.
vil
Já rolamos
em
terras de França.
uma boa hora que
lá
Há
vão os Pirinéus,
damasquinados de neve, e o meu louco sonho de ser um camponês basco, fanático de Deus e de D. Carlos, e, alta noite, descarregada a mulinha do contrabando, vir de escopeta ao ombro, abraçar Genoveva, trémula de frio e de receio ante a Virgem do Pilar. A minha >
7
condição é pensar, e
doido
como
meu pensar
fugitivo
galope do vento.
Entramos nas landes
e,
quando olho
aos lados a floresta interminável de pinheiros, tenho a impressão de aspirar o
ambiente místico e profundo tedral.
O
duma
ca-
próprio eco do comboio tem
:
FILHAS DE BABILÓNIA
6o
a plangência arrastada dos órgãos. Esforço
um
quase nada a fantasia e da
música bárbara
retiro
um
oratório deli-
cado de Palestrina. Escolho a S.
letra
José e o menino cortando cedros
um
para
tear de Maria.
A machada
res-
que ouviu
soa, Jesus canta a cantiga
aos pescadores de Tiberiade.
Um pardon
um
m'sieur e
que, debruçando-se,
cavalheiro,
me toma
as vistas
da portinhola, desviam-me da Terra dos milagres para esta fraternal Terra da guilhotina. este
A
homem
França é
com
que,
isto
A
pouco,
todo o desplante,
cônscio do seu direito,
comodidade.
um
mulher,
me roubou a uma loura afá-
vel de olhar liberal a prometer,
queda
para compensação. Fico a cogitar porque adoro eu omní-
modamente
este país extraordinário.
certo que o adoro. Para cá trouxe
cérebro rude e estes
um
predicados
poente.
O
E
um
coração de cera;
cambiaram
de
ex-
cérebro tornou-se maleável
Vlll
Todos
vamos scismando.
três
quebramos
vezes,
um
pregunta,
scisma por
a
nada, lançado por
A*s
uma
um
uma famimim e ela o
de nós, sem rebuço e com liar
sem-cerimónia. Entre
entendimento
— entendimento
so e sorvedor mil almas
com
misterio-
a força louca de
— não pode
ser
mais profun-
do.
Acanhadas, nossas bocas observam
as
convenções, nanja nossas mentes.
Inocente, habituou-se já a que a beije e a enlace rolar
em
braços
;
vergonhosa ainda,
torno do
rijos.
já
sabe
meu pescoço
seus
Essa certeza vem-me de
seu cérebro para
meu
luz de seus olhos para
cérebro
meus
como
olhos.
a
os OLHOS DESLUMBRADOS
69
Entretanto, perpassa-me na consciência
que tenho de quebrar
com
Elsa, a
minha última amante, e despedir-me de Paris, a minha grande amante. Tem de ser, será.
dum
Ao
azar, a primeira resolução,
olhar de
Genoveva a segunda. Por
agora, não penso na materialidade estúpida desses passos.
O
papá vai meditabundo, mas de
O
prazenteiro parecer.
arquitecto igno-
rado lisonjeia-se da possível associação
com o
escritor
que tem nome. A' minha
sombra poderá
edificar
bons ou maus
prédios, obter o prémio Valmor, vir a ser célebre, sujeito
finalidade esta de todo o
que mexe
vez, essa aura,
ou
em lè
artes.
Antevê,
tal-
nas gazetas o relato
do auspicioso enlace de M.^"^ Genoveva «filha
do
ilustre arquitecto»
tinto escritor.
com o
dis-
Saboreia os nomes dos
paraninfos, provavelmente os Ribadalta
uma banda, o Presidente da República, com um jogo de escovas de prata em estojo forrado a seda, a outra. Aqui, a
:
FILHAS DE BABILONÍA
8o
— Aí vem você Se conhecesse a mi' nha situação não mangava. — Que passa? — Que passa? Olhe, vejo-me à !
se
se
da ruína, sem apelo nem remé-
beira dio.
.
.
Pode
crer!
Ficou a olhar para mim, eu a olhar para
estribado
êle e,
posto
propósito
movimento
sem
que
em meu
interior,
acrescentei
— Elsa ra. —A — Não .
custa-me os olhos da ca-
.
literatura
.
.
.
?
Falhou ?
falemos nisso. Portugal está
cada vez mais bêbedo de
com menos
gosto de leitura.
vãs joga o dominó ou valsa.
ção que
lê
política e
Nas horas
A
popula-
satisfaz-se indiferentemente
com Montepin ou Daudet. ^ Como há-de, pois,
medrar
ali
arte que baste àquele
que a cultiva?
— Escreva fados para guitarra. — Em suma, a prosa que manipulo não dá para os
alfinetes
de Elsa.
!
os OLHOS DESLUMBRADOS
— Pobrezinho
8l
Porque não compõe em francês ? Experimente ... Soubesse eu! Mas não sei; herda!
^
—
uma
-se
língua
com uma gêba
de nosso
pai.
— Julguei que Elsa estivesse bem
es-
criturada ...
— Está, mas
nada
lhe chega; é
uma
pródiga; gasta mais que a amante de
um
banqueiro judeu.
---
Para que voltou?
— Pregunte-me, antes, o que
fui
fazer
meu pais. Sabe para quê? Vender uma das terras que herdei, espremer a teta da vaquinha, como diz um irmão ao
que
lá tenho.
A
mas traduz com
expressão é ridícula, felicidade o
meu
patri-
mónio, malbaratado por França e Aragança,
bem magro, bem
português. Ki
tem
— Pois
não pode, diga-o sem rebuço a Elsa. Que compre um vestido a menos. se
— Impossível.
Ná, não quero abrir6
FILHAS DE BABILÓNIA
82
me como uma
1 cancela a mulher nenhu-'
—
dirá você. Porquê? ma. Porquê? porque as mulheres só nos respeitam
enquanto nos não conhecem. Depois é
um
crime imperdoável, sobre-
crime,
uma
para
tudo,
amante, não
ter
di-
nheiro.
— E'
uma verdade onde cabem mil mentiras. Mas, ouça, há um remédio, case. O casamento — diga-se em abono é vantajoso em casos exdo estupor
—
tremos.
— Com quem
?
diga-me onde há
uma
«burra» que queira casar.
— Não
me
percebeu. Você está en-
tradote para cavalarias altas. brilha
negativas que
peias qualidades
fazem viver
e
morrer
um homem
percebido das mulheres. newi
Não
nenhum Adónis, nunca
ou mártir que eu saiba. escritor é pouco. recite
Alem disso
Musset.
— Graceje.
O
seu
desa-
é atleta, foi
herói
nome de
Só sendo viúva que
!
os OLHOS DESLUMBRADOS
— Nada
disso.
com
casar, era
Quando
A
Elsa.
83
lhe dizia de
pobre rapariga
que tem por você fatacaz maluco aceitaria às
mãos ambas.
O amigo
ganharia
assim a diferença que vai de amante a esposa.
— Não compreendo. — E fácil,
eu lhe mostro.
Um
amante
tem apenas deveres, um marido direitos, não ? Elsa ganha obra de dois mil francos
você torna-se
;
adminis-
ipso facto
trador de vinte e quatro mil francos ao ano.
Não
integrada
é
má
pechincha.
bem no
destas poderia ser
século,
uma
— Vá para o diabo
!
Com
pessoa,
uma
esposa
mina. j
Mais de vinte
quatro mil francos, gasta ela
em pó
e
de
arroz
— uma
(i
Donde vem o Pactolo ?
.
.
.
Fale
vez verdade: ^rnão há outras ra-
zoes que o forcem a tão singular projecto
?
— Talvez.
— Bem
•
me
queria parecer.
Você
é
.
.
.
FILHAS DE BABILÓNIA
84
português de mais para fazer contas.
para descartar-se
que
duma mulher
.
só por-
se arruine.
— Realmente. — Outra mulher
—E — Bonita
?
possível. ?
— De enlouquecer. — Jovem — Um botão de rosa — Rica .
?
.
.
.
?
— Náo palavra — E* doido E^ doido — sei,
.
!
de mostrar
.
!
e,
depois
uma admiração muito
iró-
nica, quedou-se pensativo.
Eu dias
meu romance de dois sem medo do vitupério, por
ia
—
trazer
ali
coação de alma hipertrophiada e necessidade de desafogar minha imensa ternura
—
e,
ante o geito mordaz, acanhei-
mesmo tempo, escorregar para dentro de mim do êxodo delirante que me tomara. Genoveva,
-me. Senti-me, ao
não obstante, que comigo andava, co-
.
os OLHOS DESLUMBRADOS
migo
veio.
Aquela hora estaria
85
ela, tal-
descalçando o pé pequenino que tão afoitamente se conjugou com o trivez,
minha planta de batedor; afagando os seios que arfavam por mim; beijando meu nome no livro que lhe dei. Que eu morava nela era mais certo que um Deus reger as almas dos vivos e dos mortos. Ela também morava em mim... moraria ora e sempre
lho de
.
.
mão arteira e lenta, percorria a face com a «borla» do pó de arroz à cata do tom que lhe dava uma sinElsa, de
geleza transparente de impuberdade; e,
operação -se,
feita,
com o
mirando-se e remirando-
báton arqueou mais os olhos^
deteve-se a avivar-lhes a expressão ad-
onde a inocênduma gota azul nadava em alvaiade
mirativa, muito celeste, cia
puro.
Eu
seguia-lhe
olhos enfadados, espírito ia ta,
I
os movimentos
com
emquanto, inquieto, o
da outra, a
inefável,
para es-
a feiticeira. Entrementes, Paulo pu-
!
!
:
FILHAS DE BABILÓNIA
92
—é
Estava
certo
— de
costas voltadas
ao pano de céu que cobriria a doce Genoveva.
Mas
seu pensamento
em meu
pensamento começava já a toldar-se dos fumos azuis, muito ténues, dum doce sonho sonhado. Elsa veio nas pontas dos pés, e enro-
lando-me os braços ao pescoço, poisou a face contra a
minha
— O meu lobinho está a scismar — Que tens — preguntei eu, de]
?
j
feito ?
pois de abanar os fútil
scisma que
— Que tenho de sempre
:
ombros em prova da
me
trabalhava.
feito ?
— A mesma cousa
de casa para o teatro, do
teatro para casa. Ui! fecha
Está
um
a janela!
frio
— Aborreceste- menos que eu! — murmurei empurrando as vidraças. — Oh, que vida abominável vais te
i
.
.
.
!
i
ouvir.
O
director queria obrigar-me a
no sketch novo da revista o Polo Ártico. Recusei e por um triz que não fui despedida. Sabes quem me vafazer a foca
^;
.
;
.
os OLHOS DESLUMBRADOS
leu? o jeiíne-homme do
g3
Gil-Blas que
ameaçou Delmont de lhe pôr a careca à mostra. Só queria que tu ouvisses os \
impropérios que o estafermo vomitou contra mim^ diante do pessoal todo!
De
galdéria
tudo o que lhe veio
bem me
chamou-me à cabeça. As outras
para baixo,
diziam
Polaire fêz de urso
:
Simonne de galinha; a divina Raquel
um
fez
são
dia de
umas
pata.
invejosas,
Não umas
quis saber; intrigantes.
Agora o brinquinho
é a Roselinde.
gina tu a Roselinde
com
j
Ima-
pantorrilhas de
algodão e maneiras de criada de serEstou
vir...!
muito desgostosa
—O
director é
um ...
amar-te de joelhos
.
larvado. ;
^
Se
me deixasses
Passaria a vida a
destas galés?!
Não
teatro,
.
.
— Um macacão
sair
do
desgostosa
.
percebi aquela voz destrembe-
Ihada.
— Sim,
o teatro
se consentisses
...
— reiterou
em
ela.
que largue
.
.
FÍLHAS DE BABILÓNIA
94
— És
uma
— respondi
com desdém que me
criança!
o ar de mais piedoso
pode subir ao rosto. E, tornando-lhe costas, pus-me a girar na salinha silenciosa. Assim andei uns minutos de catadura
hostil, até
que
fui
para
gada imóvel contra a parede,
mesmo tom
despiciente
:
ela, pre-
e disse
no
— ^iLembras-te
da trabalheira que houve para entrares
no ^ouffes?
— Deixá-lo
!
Estou
Todas
farta.
duções da scena morreram para
—
num gatimanho
e,
acrescentou
:
— Bonito! eu
não
mês
.
Mas
possuo,
;
.
.
galantaria,
— Hoje só tenho uma,
és tu.
o teatro dá-te o que 2:000
teatro
por
francos
o dá o teatro o leva.
Vai-se tudo no trajar
ti
mim
.
—O
quê ?
de
as se-
Não me
.
.
visto para
.
tudo.
E
para
mim, nem para
visto-me para a plateia, para que o
Bouffes continue a ser o bordel mais
chique do boulevard. Ainda ontem o rector dizia à Corália, tu sabes, jo
di-
ma-
I
MAGA DAS RUAS
Maga
Vivia
das ruas
com sua mãe, em
Paris,
rapariga especiosa de corpo e de
uma ma-
neiras e que se entregava ao mister
vida airada. Paquerette lhe
da
chamavam
os adoradores porque seu talhe era es-
galgado mais que natural, e tanto e
em uma
graça havia
que parecia de mulher,
flor,
mimo
sua cabecinha loura aparição indivisível
nascer do sol
num
jar-
dim maravilhoso de Le Nôtre.
Com tão peregrinas
galas, Paquerette
triunfava nos lugares de prazer, e seus
amantes eram muitos e de qualidade.
A
mãe, que
em tempos ao
rés
da pa-
vana exercera a profissão, explorava
MAGA DAS RUAS
t 1
^
alêm-mar. Estas cousas, absurdamente
pareciam passar,
sem
existir,
darem
se
da ausência de Paquerette.
E
muito se ressentia a deliciosa que o
fio
conta
dos dias vergasse, assim, ao peso das diversões para os outros que não para
E
ela.
em
para honestamente se dar
es-
pectáculo ao boulevard^ seus dedos preguiçosos
— aqueles dedos que só sabiam
beliscar a
bochecha dos galãs
nhar-se-lhes pela cabeleira
nhos vivazes
—
se
e
embre-
como
rati-
deixaram morder da
agulha a reformar os arcaicos e sumptuosos vestidos que alvoroçaram os bailes.
mamã
não esquecera a primitiva sabedoria do açafate de costura. E, pelo que yiam exposto Providencialmente, a
nas lojas dos mercadores, ambas con-
certaram maravilhas
de leveza
e
de
graça.
O que
tempo, porém, corre mais depressa
um
medo; breve marearam as rendas
ladrão que tem
deliram as sedas e
de Bruxelas no corpo esgalgado de Pa-
.
MAGA DAS RUAS
— Já disse ao
rio
Foi
! .
!
j
Primeiro
me
l3l
deitaria eu
.
ali
o dia de juízo; rogos, deses-
peros, injúrias e unhas pelejaram
sanha brava.
O
conciergCj que,
dade das revoltas,
é
um
com
na
ci-
indiscutido e
intangível soberano, acudiu e aplacou-
-os
com
o invocar o direito ao sossego,
dos mais locatários. Serenando, decidiu o
moço
-Ihes,
escrever às
manas
a contar-
de coração nas mãos, seu grande
romance de amor. elucidativo
e
Como documento
carinhoso lhes enviava,
também, o retrato de Paquerette do tempo em que Paris era dela, e ela louca, maviosa célula do grande monstro.
IV
Chegou
a fase do enforcado das gran-
des terras: romarias seguidas ao Montepio,
empréstimos humilhantes, cartas
aos antigos adoradores- de Paquerette, ora pela
mão mendiga de
Leo, ora pelos
dedos breves de Paquerette. Leo, por fim,
escancarou também a bolsa, porque o estrangeiro prometeu-lhe
uma
casa de
campo, com vacas taurinas a pastar no
—
pombas meigas das que arrulham nos beirais e vêem comer ao re-
relvedo e
gaço
—
para quando fosse senhor da
legitima, o
que não podia tardar estando
o pai, gotoso e morfanho, a dar o tombo
no
seio de Abraão.
deixou-se
seduzir
Como boa pelo
francesa,
«para
quan-
MAGA DAS RUAS
l33
do» que está do outro lado da realidade
mesmíssima cousa do lado de cá. Mais raisonneuse
e que, pelo perto, é a
que estar
que raisonnable, pela razão mesma de sua índole prática acreditava
em
em
granjas e
vacas, e sua boa fé arruinou-a.
graças a
as
ela,
as semanas^
E
semanas rolaram sobre
num
desfile
manso de
dias
outonais, cheios de langor e de sombras.
Do tícias
Armando, impiedosas nochegaram afinal. As manas, fa-
país de
lando-lhe
de tacões
altos,
davam-lhe
formalizadas tratamento de senhoria e
juravam
riscar o
nome do
todo o sempre, se
êle
irmão, para
teimasse
em
lhes
meter à cara a mulher perdida que não tivera pejo
de se deixar retratar
metade do peito ao até à joga!
léu e a perna á
O moço nem
com mira
lágrimas teve
para consolar-se. Expediente após expediente, veio a
mudança
sub-reptícia de casa,
chamada
desde os tempos imemoriais dos truões
I
FILHAS DE BABILÓNIA
^4
e ribaldas
bois
déinénagement à
la cloche
de
um
porque não dá mais alarme que
chocalho de pau. Gisou-a Leo, experta
na
moina de Paris e os compatriodo moço emprestaram seus om-
alta
tas
I
bros para aquele lance de galharda pa- 1 godeira.
Quando
a nova morada, pital, caia
um
pela alva, alcançaram
num
dos getos da ca-
molhinheiro de finas e
gidas paraganas.
breu hediondo,
A atmosfera um breu que
era
ál-
dum
se podia
não
palpar. Através da vidraça búcia,
nem céu nem terra, e aquele quarto, tapetado de papel sujo e roto, com es-
luzia
tigmas de crime e de amor, inomináveis, adquiria
uma
O
deitou-se sobre o catre a solu-
moço
çar.
obsidiante subjectividade.
Paquerette cingiu-lhe o pescoço de
seus braços, a
— Mas
rir,
a rir tresloucada:
que tolinho
!
^
não achas
isto
patusco?
Chorou
ele
por muito tempo até que
a luz dealbou a cumieira das casas e
pôs a nu a goela funda da rua.
A
per-
MAGA DAS RUAS
l35
der de vista, atropelava-se toda judiaria
antiga,
com empenas
minés mais emmaranhadas que que.
O
tom limoso dos
uma
e
cha-
um
bos-
séculos, sobre o
negro das ardósias e o vermelhão das
do alcandor todo uma pele de salamandra esburacada. A poente,
telhas, fazia
a torre de Clóvis dominava e tinha
um
ar bronco, aborrecido, de ver passar os
séculos
com
asa
ligeira.
Uma
das suas
ventanas deitava para o bairro; e na sua voz rouca intimava, ainda, a tavolagens e oficinas do bairro, o couprefeu.
Saint Médard,
com uma
feia cor-
cova de velho, agachava-se a todo o fundo, e a tacaniça
duma
casa aguda,
ao gosto normando, escondia a graça das torres de Saint-Etienne e a orgulhosa cúpula do Panthéon.
panorama
O
mais era
um
persistente, fechado a todos
os pontos por
um
céu baço, de destroços
inextrincáveis.
Era o seu ninho de corujas. E ali, no meio da bafoeira nojenta das mansar-
FILHAS DE BABILÓNIA
l36
das, a vida
recomeçou para
lada e cheia de saltos.
Na
eles atribu-
casa mobilada
haviam deixado grande parte dos haveres mas, em compensação, achavam-se forros de mais de dois mil francos que de-
viam ao estalajadeiro e lojistas do bairro. Estavam, porem, na míngua, sem mais que empenhar, e a melancolia, senão o enfado, pairava sobre os amantes
grandes
as
asas
dum
como
avejão negro.
meses de dura, o que é o infinito no voo duma borboleta como Paquerette. E no entanto, se mais ralos, não eram os beijos menos quentes nem menos voluptuosos que os da primeira possessão.
Aquela existência tinha
já dezasseis
Ante os incitamentos de sua mãe e sob capa
bem
lançada, decidiu-se,
afi-
nal Paquerette, na esperança de cinco luises, a visitar
o papá Méritac. Era este
um
senhor de indiscutida honorabilida-
de,
membro da Academia
Morais e Politicas ria
e,
de Sciências
por cuja mão, cor-
o prémio anual de Virtude.
Um livro
.
MAGA DAS RUAS
tréfia.
I
Tudo o que
1^3
era empenhável, esta-
va empenhado, afora a cruzinha de ouro insignificante, que a velha trazia ao peito
j
como
;
talismã propiciatório. Foi a úl-
tima a ser alijada. Leo desatou-a do
;
cordãozinho de seda, sem
'
uma voz
de
censura, mas, dois dias depois, estalando j
de fome e de geiro,
imerso
— Ande
!
frio, disse
em
saia
para o estran-
sonolência búdica: !
vá roubar Vá roubar !
o primeiro passante que tope a geito.
.
Porque espera?
Armando ergueu
os olhos para ela e
medo. Tinha o ar alucinado, o movimento projectante da onça que for-
iteve
ma e
o pulo.
E
saiu.
..
bateu a cem portas
com alguns francos, colhidos, ali, como um andador de almas.
tornou
aqui e
Essa noite, reflectindo seu trato a sa-
do estômago cheio, percorreram demoradamente a gama dos recursos
tisfação
adoptáveis nestes naufrágios dos necessitados.
Um só entreviam, susceptível de
salvá-los
;
mas tinham cobardia do seu
.
FILHAS DE BABILÓNIA
144
uma
pensamento,
cobardia comparável
à daqueles que, vivendo vida de irmão?,
teem melindre em declarar-se namorados. Leo, porém, cortou cerce: Olhe, meu menino, aqui não go-
—
em senao tal judeu de má morte,
verna vida, navegue. Amanhã,
do horas, corra banqueiro ou lá o que
que
é,
lhe
pre a viagem. Vá, reconcilie-se família e
tudo.
Um
com
a
acuda a quem lhe sacrificou mês, dois meses passam num
ninguém
lha
também não tenho mais
nin-
rufo; esta criança
rouba; eu,
com-
é sua,
guém. Esbagoado em lágrimas, o moço anuiu, .
com
protestando ber-se
com
juras e trejuras rece-
Paquerette ou queimar os
miolos.
Partiu aleluia
um
com
sábado de os hilros
sol,
já a
um
dia de
bailarem
em
Notre-Dame. No cais, apoiada a Leo, não ficava a Paquerette, aparição
volta de
indivisível
mas uma
de mulher, triste-feia
flor,
nascer do
dos baldoes.
sol,
FILHAS DE BABILÓNIA
l56
de consciência, o sentido circunspecção
formado da projecção do eu sobre o
mundo
exterior, fazia dele
moral.
Tendo
lhante e da
daquele.
lei,
um homem
a aversão do seu seme-
não calcava
Não
esta e doía-se
com
simpatizando
S.
Pe-
tamancos os salões divinos do César, seria capaz de ter acompanhado Bruto. Apesar de cinco
dro, profanando de
anos de civilização, não era
um
Aqui estava
defeito
um scéptico.
da sua recepti-
vidade. Paris fora, apenas, a sua escola
de cerebral
e
de voluptuoso.
com Paquerette, afávelmente como quem desvira bolso que não anda sujo nem acoita roubo, se abria com ela. E Paquerette, Avistando-se a miúdo
através da jaula corrida, assestava os
sem perfeitamente a descortinar, imersa nas sombras e contradições de criatura talhada à imagem olhos sobre a fera,
e
semelhança de Deus. Outras vezes,
dava-lhe
conselhos quanto ao enlace
com Armando
e
o
modo
de se conduzir
:
MAGA DAS RUAS
iSy
em terras que, sendo bárbaras, presumiam de civilizadas. E tudo resumia em aforismos^ ou regras de viver na burguesia local,
o que esflorava a jovialidade
naquele ninho de trasgos. Dizia-lhe
«A
Matareca é para a menina uma ilha misteriosa no meio dum mar de sargaços. Tem de ir um pouco à ventura. Dos Matarecas, o que conheço é roteiro de pouca monta. Sei que ostenfamília
tam escudo partido em pala pante; na segunda, azul, cente, vermelho, e
Veraneiam em de dote
um
braço nas-
uma espada
vila
de prata.
própria; dão dois ou
por inverno.
uma
a pri-
com um cerdo negro rom-
meira^ de oiro
três bailes
;
A mamã
ruela de casas
trouxe
em
Nite-
Quanto à nobre linhagem estronca por alturas da quarta ou quinta ge-
roy. ai
ração
num
magarefe de cevados
marra, ambulante, de feira Mata-recos lhe
chamavam e
em
e
de
feira.
daí derivou
o aristocrático apelido e a heráldica his-
.
FILHAS DE BABILÓNIA
l58
I Não
toriada dos Matarecas. é tão exacto
como Paquerette
um
ascendência
preux
ladrão de estrada.
ter
isto
na sua
um
chevalier e
.
— Essa boa — Todos os temos, é
que
ria,
!
e
por quadrilhas,
Mas continuando
daqui até Adão.
:
O
Mata-recos deixou grosso cabedal, or-
denou é
um filho
uma
e
bacharelou outro. Este
Ma-
das cepas confessadas dos
tarecas.
Agora
veja, fidalgo das dúzias,
meio plebeu, burguês de gema, está na
como
sociedade sobre
um
pé,
esses grous extáticos
à beira
dum
pântano.
Detesta a plebe, evita a burguesia,
não tem
um
nas serras, sua mulher
palácio antigo,
nem
mas
solar
nem sangue aguado, nem foi
formosa para ser doudi-
com que
vanas, requisitos estes
poderia
ser acolhido pela nobreza. Vive entre
duas águas vida de nababo, mais aborrecido que caimão
num
aquário.
^A me-
nina assina MarnefF, não? Seja francesa, assine
De
Marneíf. Se
bem me
recorda,
MAGA DAS RUAS
I
Sq
OS MarneíF foram honrados impressores
Mexeram com
de livros no século xv.
podiam muito bem, de espada
prelos,
em punho, na coluna dos
cruzados, ter
tomado parte no saque de Bisâncio. Ninguém poderá investigar ao certo. Uma De MarnefF, mesmo que não leve consigo lindo azul
um
ceitil
furado,
palmo de rosto
—
e Paquerette
que não
foi
e
mas
só o seu
o seu sangue
tem-no bem azul
debalde que todo o francês
que se prezou cedeu sua dona a cem reis
de França vert-galants
— só com a
sua simples aristocracia de raça, a
uma
,De MarneíF cabe entrar de cabeça alta
no nobiliário dos Matarecas. Esta pode
uma
Lá dentro, o que será a batalha, não sei. Mas olhe, admiração, contemplação, assiduidade, homenagens ser
porta.
de devota a manipanso,
ganham sempre
com homens deste jaez. Borde-lhe chinelas com as cores do arco-iris e tempejre-lhe
pratinhos moles. Se
pistada
dum
um
dos régulos da
dia for
terra,
que
FILHAS DE BABILÓNIA
r6o
seu sogro seja feito comendador, sena-
dor ou cousa parecida, e terá vencido.
«Convença-se de que sua sogra padece de queixa interior que os facultativos
mais prespicazes não penetram.
Faça-lhe mezinhas
;
conte lhe horrores
das criadas e moteje do vestido das amigas.
E
leia-lhe
o folhetim mais mo-
langueiro, vertido do francês na gazeta
mais
reles.
«Tenha o maior cuidado com os imponderáveis da vida doméstica. A menina, que foi
sempre uma gazela, não
está
ao par de sua
eles
constituem os alicerces da virtude
filial,
alta significação. Pois
feminina, e o cimento
compreensão
No tom
caseira.
Em
duma boa
que residem?
da voz, na demora do olhar, o
respeito aos tiques de cada
um,
um
ai!
porque da janela que se abriu vem ao
papá uma corrente de
dum
ar,
diminutivo á sogra
a fiautinha
com
dores de
.
.
MAGA DAS RUAS
l6l
um
dedo erguido em ameaça ao esposo que se demorou no clube. Cousa nenhuma e imensidades. Uma mordaça valente para as sogras tece-se barriga,
com
estas teias de aranha.
«Prepare-se a dar a seu marido
ninhada de
filhos
.
uma
.
— Que horror! — exclamava Paquealém de francesa, era oriunda
rette que,
da Normandia.
— Não,
a
Deus
é
um hábito respeitável, grato
e à pátria.
Naquele país não ha de dimanche,
apenas o
filho único, Jils
há
de todos os dias da semana.
filhos
Como
se diz das videiras, as
carregam.
— Ah! — E' o céu...
mamãs
ali
.
que
Questão do das águas, a bênção do Selhe
digo.
nhor.
«Tenha longos
com
as
e variados colóquios
cunhadinhas
e
mais meninas II
FILHAS DE BABILÓNIA
102
inocentes, não faltando ao dever de industriá-las nas
mais hediondas poucas
vergonhas. Daqui nasce
uma suprema-
da sua parte, cumplicidade reciproca
cia
e estima delas. Este principio é
mente
suma-
basilar.
«Seja preguiçosa. Lá ser dona é ser indolente, mais indolente que
que
um
uma
poeta, que
uma
gata,
sultana. Sur-
preenda-se a despertar nas barbas do meio-dia. E, para de portas a dentro,
não
se penteie; tal garridice daria nas
vistas
das vizinhas que a apontariam
ás criadas,
as criadas
a sua sogra
e-
sua sogra a seu marido. Enrole os ca-' belos na nuca, vista
voluptuosa
como
uma
bata e fica
ninfa
à
flor
das
águas.
abordada por galante, a palavra de riposta é esta i Por quem «Se na rua
for
:
me toma, cavalheiro ? largo, cavalheiro.
—
— ou — Passe de :
MAGA DAS RUAS
linda voz,
bem
Se for à província
visi-
«Paquerette tem
timbrada tar
tias
e doce.
l63
uma
de óculos, é conveniente es-
premê-la na glote, elevá-la ao tom de ocarina. e é
Por
ainda se usa o rinchado
lá
muito pitoresco.
«Importante
:
Não
aporte àquelas pa-
ragens sem empunhar
uma
lorgnette,
jiNão sabe exactamente o que seja?
desmoda
justifica a
lorgnette é
uma
sua ignorância.
A A
luneta portativa qiie se
fecha sobre cabo de tartaruga ou de
metal
como
as
navalhas de barbear.
Nasceu aqui com os Trianons e morreu com os Trianons. Lá é um apetrecho de preciosidade inextinta. Serve ás
para envidraçar a soltura
damas
com que
a
hão-de examinar, a poucas polegadas de distância, dos pés à cabeça, ao corte
do seu vestido, à estamparia do seu padrão, às
pomadas que póe no
rosto.
— E' simplesmente ridículo! — Será, mas de vista desarmada só
FILHAS DE BABILÓNIA
164
as peixeiras. E'
um
utensílio
mais de
mulher para mulher que de mulher para
homem. Não esqueça; aquele do
é o pais
mo-
os catitas chapados no
vitral;
nóculo, as mulheres na lorgnette.
«Respeite as glórias de sua pátria
adoptiva e não blasfeme do céu que lá
teem.
O
céu é o Nilo de
lá
;
é sa-
grado.
«Nem sempre
é
anodino de conse-
quências, não obstante as remessas de civilização
que daqui para
tantemente, no teatro,
lá
vão cons-
em costumes
pelo
livro e a gazeta, o entretenimento extra-
conjugal. Vai-se praticando
com
riscos
para a mulher. Ainda a travessia, pela rua,
de
equivoca.
senhora
O
a conivência ter aí
um
só,
é
tormentosa e
processo clássico é obter
duma pessoa
quarto alugado.
de família
A
<
conivêncit
obtêm-se, chorando-lhe nos braços
grande romance de amor. Etc,
sei|
etc.
1
MAGA DAS RUAS
l'65
Paquerette recebia estas instruções, galhofando, prometendo recorrer a to-
dos os
artifícios
da virtude e a todas as
virtudes do artifício para conquistar a
nababia. Nas horas sérias, expunha-lhe suas apreensões quanto ao acesso
numa
de respeitabilidade, e à
família, zelosa
sempre possível quebra de palavra do amante. Logo
êle
acudia
com
mil vozes
aquietantes, subtilezas traçadas sobre a
meio e das pessoas^ envolvidas na maranha.
psicologia do
Mas
enaltecendo as facilidades do
projecto não deixava de apontar os escolhos, e
em
tal
jogo parecia entreter-se
a redoiçá-la. Assim,
aventando que as
gentes semi-selvagens tão prontamen-
amam como repelem, atenuava em dizer que, a um moço quási donzel como
te
Matareca, ligações desta natureza dei-
xam
raízes
em que
a paixão reverdece
senão ao primeiro lance de olhos ao roçar,
novamente, da pele com a mulher
amada. Talvez fosse preciso
ir
picá-lo à
l66
FUHAS DE BABILÓNIA
-
i
E confirmava a sua com um judicioso discurso
lura natal... talvez!
proposição
sobre a reacção operada pelas distân-
que exerce a céu grave para um céu
cias e o efeito destrutivo
passagem dum
troca-tintas, sob o qual tudo corre
geiro
como
viria
o amante,
nele as nuvens de Abril. iria ela.
E
li-
Não
para obstá-
culos e contratempos de carácter, indi-
cava remédios como
um
físico
de almas.
VII
Raro era o dia em que Marcos e Paquerette se não encontrassem, em casa dela ou em casa dele, um quarto de rés-do-chão,
como
arca de Noé, arvo-
rando cama, pilhas de
livros,
encavala-
mentos de quadros e gravuras. E a perder de vista divagavam sobre os tempos vindouros e o país trigueiro onde seu passo de mulher alta e esgalgada e
sua tez de loura destacariam poila
num
Quando
como pa-
centeal. se
não podiam visitar, se car-
teavam, falando-lhe o moço desta guisa: «jSó agora sinto
bem
a barbaridade de
não morar num palácio por sua causa, minha amiga! Nele teria um solerte ne;
!
FILHAS DE BABILÓNIA
l68
grinho para lhe abrir a porta
—
e
:
uma
passadeira,
em
— só a
i si
persa antigo,
para lhe receber os passos». Ela, sensibilizada, reflectia
— E um rapaz adorável Ainda
marcavam encontros em
se
concertos e bailes públicos e por aí pas-
seavam
sérios e graves
como
casal
que
à folia só concede a fineza de a ver gozar. E, se às vezes
faziam-no
uma valsa, como quem
arriscavam
senhorilmente
presta culto à nobre arte da dança.
Entretanto Paquerette entregava-se o
mais mecanicamente possível ao antigo tráfico,
porque não tinha outro meio de
vida e queria entrar
como
em
Em
terras de gentio.
do que Leo dia,
e ela
parisiense
contribuição
costuravam
talhando pelos padrões da
noite e
moda
e
edificando chapéus sobre as carcaças
de arame que se vendem nos bazares. E, no silêncio do trabalho, seu coração
sobrepassava seus dedos, entrevendo-se
em marcha
pela cidade descuidosa,
com
MAGA DAS RUAS
I
69
lojistas,
em mangas
o
reverberante, a vê-la passar,
toldo
cocheiros
jogando
de
camisa
num
esquineta
a
sob
banco de pedra, procissões devotas curriando a rua abrasida,
um
cal-
como rezava
viajante que despejara nos prelos
as suas impressões. E, trémula, sentia já
e
saudades de Paris, a alegre, ruidosa
obumbrante
floresta.
chegavam
do amante, inchadas todas de promessas e Letras
sobre
letras
chochas de realidades.
Nem com um
chavo furado, de adiantamento,
se es-
portulava a nababia. Próximos e afastados, os parentes todos estavam a ferro e
fogo
com Armando por môr da
de-
sobediência que ousara cometer e dos intuitos inconfessáveis
— Pobre rette,
anjo
!
que ainda nutria.
— suspirou
beijocando o retratelho que acom-
panhava a última missiva. É o que eu previa
—
Paque-
i
Marcos.
—E
preciso
ir
!
— declarou
ao encontro do
rapazinho, senão escapa-nos.
:
FILHAS DE BABILÓNIA
lyO
— Escapa-nos
.
.
.
!
?
—
e
no
geito de
dum
Paquerette sentiu-se a estranheza
modo
de dizer que denunciava propósi-
tos de
comandita a que ninguém o con-^
'
vidara.
porem, apercebendo-se do
Ele,
de
tais palavras,
— Escapa,
efeito
atalhou de pronto
não por impulso prómas porque a isso o coage a
prio^
com
família
opressões,
vexames,
dos os recursos de quem tem na
Compreende,
sota e az.
M.'"*
to-
mão
Paque-
rette ?
Compreendeu assente
dum
em
e desde esse dia ficou
seu espirito,
com
a evidência
postulado, que apenas por esforço
o amigo. E desde essa hora, mais afã pôs em sua
próprio podia recuperar
indústria, já
deambulando por boule-
vards e jardins, nas,
submissa
já
frequentando taver-
até
para abraços
velhos, a pedir podridero.
va-se
como
se
a
Mas
de
entrega-
sua carne estivesse
ausente de acto impuro.
MAGA DAS RUAS
I7I
Uma
manhã, estava ela ainda na cama, Leo deu entrada a um vulto muito estranho na penumbra, rolante e todo negro, afora o extremo dum dos vértices de alvo luzidio. Era o ilustre Méritac, vestido de luto pesado, e a sua calva
ebúrnea.
O ,
velho sentou-se á cabeceira e,aper-
tando-lhe muito a mão,
longado choro.
Não
rompeu em pro-
sabia Paquerette
que chaga havia a curar, tanto os solu-
eram convulsivos
ços
vam
e lhe
embarga-
a voz. E, estreitando-lhe a cabeça
contra o seio nu, lha afagou, proferindo
doces nadas, e Méritac era
como um
borrego preto entre as coixas níveas
duma ovelha
branca.
Desemperrou-se-lhe, afinal, a ra, retórico e
fala,
pa-
gemebundo, contar a sua
desdita. Falecera-lhe a cara consorte, a
virtuosa e admirável matrona M.""^ ritac!
O
génio benéfico do seu
companheira de suas rar
vigílias
ímprobo da Chasteté
Mé-
lar,
a
no elabo-
et le droit atra-
.
!
.
FILHAS DE BABILÓNIA
172
pers
.
siècles
les
fora ceifada
Nunca mais! nunca
parca.
placável
mais
— Pobre rette.
pela im-
— murmurou Paqueconsuma — exortou Leo —
coco
!
— Não Tinha, os dias cheios. — Estava nova. Sim, tinha mais se
talvez,
.
O
co anos do que eu ...
que
.
cin-
é isso ?
.
.
Ah, era boa de mais para andar neste
mundo.
.
— Coitado, faz-lhe — Era um anjo. .
corrigiu
meus
as
falta. .
provas
.
Foi» ela
da
que me
Chasteté.
Os
Academia revia-os ela e retocava-os. Era muito erudita. Chegou até a publicar um folhetim no Echo de Paimboouf. discursos na
Méritac assoou-se, limpou as
mas, tit
e dai inquiriu
lágri-
do estado de son pe-
chouXy de sa petite gigolette. E, dan-
dO'lhe pancadinhas na face e ela cha-
mando-lhe safadinho, todo dos necrológios.
se
desviaram de
.
.
MAGA DAS RUAS
lj3
— O teu meliante? — indagou Mé— Quem — proferiu fingindo
ritac.
ela
?
não acertar
com
,
da
o objecto
refe-
rência.
— O estrangeiro.
— Ah, um
sim,
.
.
o mocinho pálido que
tomou o passo na Rua da Sorbonne? Era um doido não sei dia nos
.
parece que partiu
— Não sabes? — Ceguinha eu com
êle.
.
.
.
.
.
.
.
seja.
Nunca
nada
tive
.
— Partiu — confirmou
mar.
.
Leo.
— Foi ma-
.
— Sério
?
— Tão certo como eu quarta-feira,
em
dia
vir à luz
do bento
numa
S.
Cu-
cufate.
Méritac mostrou-se jubiloso daquela
emergência las, trajo
ra,
que
prescrevendo mil caute-
decente, olhos baixos, candu-
apenas
em
e,
um
arzinho de maquillage
Paris o sem-sal é suspeito
—
— con-
I
FILHAS DE BABILÓNIA
74
vidou Paquerette a
visitá-lo
em
sua
mo-
rada, para o que deveria inculcar-se
como prima da cuidado to,
parvónia. xMas muito
— repetia — um vestidinho pre-
maneiras de menina burguesa, nada
Madame Boulet, a concieralma mesmo dum detectiva.
de farfalha. ge, era a
depondo um beijo muito casto na fronte do seu brinquinho, depois de larE,
gar a nota azul, se
foi
pincháo
e satis-
feito.
Os
primeiros dias de outono fugiam
rápidos e as cartas de
amor de Ar-
mando empilhavam-se, trasbordavam já duma caixinha de charutos, catalogadas e enastradas com fitilhos de seda. E, sendo sempre abundantes em afecto e em razoes, eram chochas em feitos. Entretanto Paquerette entesourava e Leo sorria o seu scepticismo de experiente
ante a idea fixa da amorosa. Já os preparativos de viagem corriam
sob bons auspícios, recebeu
ela
legrama-pneumático de Marcos
um em
te-
que
.
1 FILHAS DE BABILÓNIA
l8o
gens.
Um
outono com a dignidade
dum
de Thule vagueando de manto e co-
rei
um
roa por
uma
parque
de minhas
^i
— Longe — Eu
— tornou Marcos. Mas não
disso...
.
sei
.
o que deseja.
transportar-se
vés dos espaços, se transporta
ser
de bazar.
sei...
bem.
sei
viajar.
de
Paquerette não se deixa tentar
;
por sabedorias...?!
não
Ao pé
o castelo de Luy-
telas,
uma bugiganga
nes era
—
solitário.
uma
com
.
em
.
Desejaria
corpo, atra-
a rapidez
com que
em pensamento. Em suma,
estrelinha cadente daqui para
determinado ponto.
— Não! Não agora — respondeu
.
seria isso, pelo
menos
sorrindo àquela
ela,
recorrência de amor.
— Consulte o seu peito.
— Vão
escarnecer.
quereria ser
.
.
.
.
Quereria.
uma mocinha da
andar, talvez, atrás das cabras,
.
.
aldeiaT ferir os
dedos às amoras pelos silvados, nâcj saber que há mundo.
—
!
MAGA DAS RUAS
— Ora! Paquerette
Ser patega para cobiçar ser !
— gracejou o pintor.
— Sim, o coração
a
l8l
é insatisfeito.
Mas
melhor vida não será aquela que me-
nos nos faz sentir que vivemos?!
— Assim
penso
— apoiou
Marcos.
Cá por mim, amaldiçoo Eva, a primeira que bebeu o veneno do
mus que inventou o de o engarrafar.
A
espírito, e
alfabeto,
ou
Cadarte
selvajaria é o estado
mais idóneo à felicidade.
— ^jQuem o tolhe de para o centro de Africa — berrou o pmtor. — Afinal, Marcos ainda se não nesta hora? — (íQual o seu ir
?
defi-
é
niu.
ideal,
preguntou Paquerette.
— Ainda
não pensei Olhe, ser compreendido e obedecido. Para quê ? ^ Para tiranizar os ou.
.
.
—
tros
.
.
.
?
— Pelo contrário, para não
ter
o des-
gosto de molestar,
— Caprichoso — Devaneios pueris — proferiu o pin-
FILHAS DE BABILÓNIA
l82
tor.
—O
que neste instante há de mais
desejável é que na estalagem, que dali
nos está acenando pelo avental branco
do criado, os vinhos sejam genuínos, de três assobios, e os acepipes,
como
os
dos frades, dignos de se lhes rezar antes e depois.
Vamos, que estou com uma
fome exaltada. E, metendo para aquele lugar de sombras, por indústria adaptado a estância da gula e do amor, com ostras regadas a Saumur, começaram a banquetear-se. Reinou o vinho velho, a alegria e a intimidade, e Paquerette, regalada, julgava ressurgidos seus tempos de esplendor,
nos restaurantes caros do Bois,
Quando desbancaram, propôs nesa que se passasse àquelas
ali
a
lio-
a noite já que
horas dificultoso seria achar
transporte para a cidade. Aceite o que,
após breve relutância de Paquerette, docemente,
com
a pausa de
quem quer
matar as horas, foram subindo a colina adormecida.
:
:
MAGA DA SRUAS
l83
Marcos parecia taciturno, e Paquerette murmurou, procurando ler-lhe nos olhos
— mal
^1
Pensa
em bem, ou pensa em
?
— Penso — respondeu intôno de verdade. — Mil bem-hajas. era
si
êle,
com
Cedo, ainda os copos tilintavam nos caramachéis, se dirigiram a pedaria a pedir pousada.
mou uma
O
argola de chaves
uma
hos-
porteiro toe,
por
um
comprido corredor, os conduziu a duas alcovas que olhavam sobre imenso vale.
A
terra afundava-se sob a claridade di-
fusa das estrelas
tarem muito
alto,
mundo.
— Aí
teem!
chando as
e, dali,
parecia-lhes es-
suspensos sobre o
— pronunciou
êle,
fe-
janelas.
Paquerette alçou para Marcos olhos surpreendidos;
e,
como não encontrasse
os dele, proferiu
— Quero um quarto para mim.
.
!
.
:
FILHAS DE BABILÓNIA
184
— Só há
estes devolutos
— declarou
Embaraçados pareceram
todos. Re-
o porteiro. solutamente, após
mudo
conciliábulo,
murmurou Marcos para Paquerette Dormimos juntos.
—
.
— Ah, não! — ... como dois manos
A
rapariga quedou-se
.
.
um momento
silenciosa e despediu:
— Não, santo Deus, não — Vamos a outro hotel! — berrou o em tom desabrido. Não lhes há de ser fácil topar
pintor
—
mida
— sentenciou o porteiro.
dor-
Paquerette estacara de olhos no chão e,
em voz
— Em — Pois ri
O
seca, o artista questionou:
que ficamos, madetnoiselle ? seja
!
— ciciou
ocuparam um Marcos e Paquerette
pintor e a lionesa
aposento e entre foi
ela.
entendido que ela o precederia
e
que, mal terminasse seu amanho, daria
no
frontal a senha de livre entrada.
MAGA DAS RUAS
E
assim
foi;
l85
Paquerette passou adian-
te,
deixando a Marcos no vão da jane-
la,
chupando
talisga
e
um
nervoso cigarro. Pela
da posta adjacente^ quebrava-se
requebrava-se
em
simiescas revolu-
ções a silhueta esgrouviada do diácono bizantino.
Soaram no tabique batidas
com
as pancadinhas
os nós dos dedos.
Marcos
entrou.
Paquerette aguardava, recostada na
cama, os cabelos em onda, os seios debruçados da camisa de batiste lassa e transparente. Dois lacinhos azuis segu-
ravam-na às espáduas e pareciam ali aves do paraíso. Descansavam sobre o lençol os braços nus, abertos em lira, na cadência amorosa da garra que em momento delirante se há de fechar. Uma grande almofada, ao lado da cabecinha loura, chamava outra cabeça. Paquerette sorria e toda ela, na atitude de agrado e desalinho, dava a im-
!
FILHAS DE BABILÓNIA
l86
pressão de estar ansiosa pela romaria
ao templo
cie
Eros, esse onde os peca-
dos só se resgatam pecando.
Sem gastar vozes, com geito livre se bem que sensivelmente precipitado, procedeu Marcos às cerimonias do
com
E,
em
a segurança
homem que está
do
sua alcova, diante de sua amada, er-
gueu a dobra da roupa
e,
lançou sobre Paquerette. tiu,
deitar.
debateu-se
e,
sem guarte,
Mas
se
ela resis-
arquejante, ameaçou:
— Se me força, — Está doida! — Grito — disse novamente, alteangrito
!
do a voz. Ante o fulgor que chamejava nos olhos da rapariga, a acometida de Marcos quebrantou-se.
E
logo ela aprovei-
tou para ladear de tronco e tomar a posição
mais apta à defensiva. Marcos
sentiu a derrota e, invadido lera surda,
a sacudia Ihe
ao tempo que, a
com
duma cóuma parte,
dureza, a outra, pisava-
brutalmente o seio nú.
!
:
.
:
MAGA DAS RUAS
Paquerette, primeiro
com
depois
brio,
— Socorro
!
Num momento
87
com moderação,
rompeu
Socorro
I
!
chamar
.
a .
.
curto de trégua, ou-
viram-se pancadas no
muro
e a
voz
agra do pintor
—
i
Marcos, deixe
Marcos, deixe Esbaforido
lá esse
estafermo!
lá
parvo,
e
quebrado no
moço balbuciou umas vozes sem ritmo e sem exame que soavam como tábua contra tábua. Em tom cho-
ímpeto, o
roso, levemente
molhado de indignação,
Paquerette dizia:
— sou e
i
Bem
uma
sei,
sou
uma mulher do fado!
perdida! jsou capaz de roubar
de matar! jMas do que não sou capaz,
juro-lhe, é
de enganar o
com um amigo!
meu amante
Juro-lho! Estou mais
baixa que a lama das ruas,
não
! .
.
.
isso
Marcos
não
puilou
! .
mas
isso
.
da cama, pálido. e
es-
túpido, e correu vivamente a vestir-se.
Já meio arranjado,
havendo readquirido
.
:
.
FILHAS DE BABILÓNIA
l88
a serenidade, acercou-se dela
em voz
e,
lenta, escarninha, disse-lhe
— Tem
razão,
vende amor
que M.^"^
esqueci
não o dá. Perdoe, foi uma loucura não ter tilintado sobre a pedra desta mesa os tantos francos da e
tarifa.
— Valia mais,
se perder
valia! Valia mais
do conceito que
não
lhe mereço,
e assim teria evitado o trabalho desta
emboscada.
— A sua presunção diverte-me. Emboscada — que outra cousa O !
.
?
foi?
^rPois
se-
nhor trouxe-me ao engano...
— Ao engano andei eu, minha branca flor.
Nunca, por nunca, imaginei que
fosse tão sábia a sua inocência.
.
— Quere dizer o meu desbragamento. Mas
diga, ^por que palavras
ou
factos o
autorizei a julgar-me disposta a ser sua
amante
?
— Pela razão mesrha de ficar neste quarto.
ter
anuído a
MAGA DAS RUAS
—A
cabala vinha de longe,
189
.
Per-
.
cebo agora!
— E' facto;
mentir- lhe-ia se negasse
que há muito nutria o desígnio de abusar da sua castidade
tom mofareiro.
— tornou
êle
em
— O passageiro da cabine
reservada era eu. Quanto a este lance,
não o preparei,
acredite. Aconteceu.
com reciprocidade de posse, para amanhã olhar a amante com aborrecimento, mas não com meQue
desejava
tê-la
nos estima a Paquerette, é muito certo.
não quis seguir o caminho ordinário que, percorrido por homem que não seja pateta de todo, leva sempre ao
Para
isso
alvo.
Queria doudice na nossa amizade,
um momento, por uma noite. Ri-se ? Tem razão, para mulher vulgar homem vulgar e eu não fui mas só de
salto,
por
vulgar.
Paquerette mostrava já no parecer aquele luaceiro de suavidades que era
o mais formoso dos seus encantos
não sabia
êle se
;
mas
era aquela expressão
FILHAS DE BABILÓNIA
igO
de ironia, se o júbilo do triunfo, se a luz de que se alumiava a firmeza daquela estapafúrdia lialdade.
— Repito — continuou traça
êle
— com
a
costumada do mais simples D. Juan ^
Paquerette teria hoje, conscienciosamen-
sujado as barbas do
te,
que lho digo
reca. Teria,
me
MataAgora não
tal Sr.
eu.
censure tentar enganar o
meu amigo.
meu amigo;
concessões
Ele nunca destas
foi
não as faço
a quem-quere. Fre-
qúentava-lhe a casa, frequentava
não era por
Não invoque
era por
êle,
o
si.
Por
;
mas, si
só.
homem que não vale uma
hóstia de estricnina.
—
Valha
não
que
valha,
i
é
meu
amante!
— Ninguém lho rouba,
Quem
esteja segura.
E,é precisamente porque ninguém lho quere, porque c um triste ninguém, um perfeito pedaço d'asno, porque lhe é rotundamente inferior, que Paquerette o ama, ou amou. deixe. E' comigo.
—
lho quere?
.
.
.
!
MAGA DAS RUAS
I9I
I
— Não
deixo, já
poisou as patas.
,
bem
já
!
lhe
f
se era
que a alimária aqui
Ora diga-me reflectiu amor o sentimento que :
<j
votava? Não será antes piedade
e
daí o sacrificar-lhe, por brandura de
[
coração, o que l
uma
mulher pode
sacri-
Não, não era a êle que amava, mas na condição do pobre diabo a sua [(mesma condição de mulher que tem alficar?
1
[
turas...
l
gosto de sacrifício, sadismo,
necessidade
—
ii
}
com
j
i
^
êle
dum
Puh, e empurra-me a que case ?!
— Porque
I
'
„;
i
I
i
í
t
gigolô.
não? Amante
é
um
e
ma-
rido é outro. Aquele deve ter méritos,
faculdades de simpatia
;
a este,
como
ra-
zão social, tudo basta e nada basta.
Armando é filho de mandarim, será amanhã um quidam rico, convêm-lhe Não desista .
— ^iQuere
continuar, então, a ser o
do pobre rapaz? Sempre, e a ser sempre o amigo
Mefistófeles
—
.
verdadeiro de Paquerette,
FILHAS DE BABILÓNIA
192
— E' uma crueldade. — E' um gozo para para
si.
Seja a
mim, um betr esposa, mas não a aman-
Ele não a merece
te.
deixa
uma mulher
ter
;
um homem
fome
qut
e frio, sofrei
todas as misérias, não a merece. E' ume indignidade de carácter demorar nele
í
simpatia, quanto mais o amor. Depois.,
depois Paquerette é
uma harpa
delicada
não sabe tocar. Paquerette, que concertara seu desa
que
êle
com
escutava
linho,
evidente
praze
aquele discurso cínico, às mulheres agra
dando sempre as flores que lhes as mãos bizarras.
esfolhan
— Mademoiselle Paquerette enganou —
-me bem enganado reatou Marcos, me neando a cabeça num geito benigno. — E enganou-me porque a tinha no ro das pessoas sensatas.
Uma vez que acei
tou dormir aqui, implicitamente a julgiu
rendida ao que acaba de negar-me.
— De corpo alma, explosivamente — Bastava-me de corpo. Assim com^
e
MAGA DAS RUAS
num
parêntese
em que
IqS
se exerce a lou-*
cura da mocidade, os caprichos do acaso.
.
.
a resolução elegante de evitar
um
contrasenso.
—
j
Que
— Um
combinou à porta ? absurdo. Senão considere Pase
:
uma rapariga adorável, luxuestá uma noite que, de igual, só as no Paraíso de Adão e Eva. Não
querette é riosa;
noites
acha? Imagine que se observava à risca o que se preceituou de antemão e que,
em conformidade, me punha a ressonar a seu lado, costas com costas. ^Não era uma torpe ofensa à sua juventude ? Era. Bem sabe que, ao menos que se não seja
um
enjeitado da natureza, apenas se
dorme insensível ao lado duma mulher quando é feia como o Demo ou velha como a Notre-Dame. Paquerette olhava para êle
muito
e
fitos
luminosos.
com
Um
brando banhava seu rosto
olhos
sorriso
duma
con-
descente doçura.
— Viu
?
.
.
.
— tornou
êle,
arripiando i3
:
HlHAS DK BAHllÓNIA
104
I num
caímos
bigode
^)
contrasenso
temível.
uma pausa em que a sua cabeça dobava com pezar, declarou voito para Paris Bem. A estas horas!?. Lá hei-de chegar. Vou agastado E, após
— — —
.
,
.
.
.
porque
fui
néscio,
.
mais néscio que
um
donzel. Julguei-a concorde e quis dar-
me o
prazer espontâneo, à troglodita.
assalto. Assaltei-a
verdade
?
como um
Perdoe, se
De
não c dou tempo ao temtigre,
po, lugar a que a volupluosidade que
em mim
havia sidade
em
alevantasse a voluptuo-
passiva
que há
em
si,
como
bem organizado, Panão teria chamado o «outro»
todo o corpo
querette à baila.
também as pálpebras sob o peso sensível duma leve melancolia, e os braços, como dantes, tomaram a posição de braços que E\d dobrou a cabeça, desceu
estão
em guarda
— Fui um
;
para abraçar.
randc tolo
— continuou
êle.
.
:
MAGA DAS RUAS
num tom
—
to.
ÍÇO
arrastado de arrependimeii
Afinei excessivamente
jos e a
corda estalou.
Acabava de
E
meus
penal
é
-
dese-
pena!
laçar a gravata e foi cor-
em busca do
rer os quatro cantos
junco.
Depois, veio para o pé da cama, de
chapéu na mão,
e ai se
quedou
trejei-
tando^ indeciso.
— Enganou-me
bem enganado!
tornou a dizer, de olhos
—
já sorridentes
nos olhos trémulos.
— Foi riu
imprudência minha
!
— profe-
de rosto submisso, voz que-
ela
brada.
—
]
— declarou, palavras. — O
Pois vou ficar a Paris
!
sem embargo daquelas meu amigo substituir-me há em tudo o que fôr mister.
— Mas
ve-me.
fique!.
.
.
Fique.
.
.
ou
le-
.
Marcos quedou
um momento
a con-
templá-la e disse
— ,:Para que
se repita
o absurdo?
Paquerette baixou os olhos e naquela
!
:
FILHAS DE BABILÓNIA
196
humildade e naquele silêncio se
certifi-
que o absurdo se não repetiria. Mas o demónio do orgulho, o despeito da sofrida derrota, a quebra do impre-
cou
êle
visto
levaram-no a
dizer, crispando os
nervos
— Agora E
é tarde
resolutamente se meteu a caminho
de Paris.
IX De Madame
Méritac a Armando Matareca
Meu amiguinho Acabo de empilhar a um canto da mesa as tuas cartas da última semana; era uma inundação, é :
um
do
do qual o chinês pesa-papéis me olha já por cima do ombro com ar de muita ironia. Ainda as não li, nem é provável que venha a lê-las; teem mais letras que agora
castelo,
alto
Les Misérables e,franquezinha, falta-me fôlego para tanto.
Ao
acaso, apenas, relanceei
um
uma
fra-
pensamento além. Sofres, morres, vives no inferno, e queres saber porque te não escrevo, o que faço, o que não faço, o que me será azado fazer ou não fazer. Deus do céu, a tua se aqui,
FILHAS DE BABILÓNIA
19^
I curiosidade enfadar-me-ia se não
esti-
em que até eram cordiais. Náo
vesse nesta hora das Santas a conjurar o diabo
não escrevi, pronto. O que faço? Olha, o teu horóscopo não se enganou de muito. Mademoiselle Paquerette está morta, bem morta e em seu escrevi porque
invólucro terrestre vive rescente
Madame
uma
Méritac.
fera e flo-
Não
te es-
pantes, a outra, que do retrato de Leon
Bonnat.
em
trajo cor de
hierático
mas
olhar
defronte,
par
ali
morango,
parecer afável,
mange
me
geito
está a
des pissenlits
la racine. Já lhe desfolhei
perpétuas
sobre a campa, regalei os pobres, podei os cravos,
me
para que a sua sombra
seja propicia.
Ao
deitar, êle
duma
cama, eu doutra, todas as noites rezamos a novena pela beatitude da sua alma.
Há uma quinzena, amiguinho, que oOU Madame Méritac à face de Deus c d js homens. Há uma quinzena e parece-rne ainda ontem!
Nunca o boulevard
MAGA BAS RUAS
1
99
me deu uma impressão de alarido e jovialidade como essa quinta-feira de sol em que um coche catita me desceu coberta de branco e vaporosa na passadeira vermelha que tapetava a escadaria nobre da Madalena. Leo conven-
ceu-me a não me pintar nem empoar, e eu ia assim com a face que Deus me deu, como uma açucena dos campos. Trabalhava-me o receio de que parecessem mais velhos os meus vinte e três anos, e
não houvesse frescura em
minha pele. Os olhos, de quem me via, asseguraram-me que não; M."^^ la Vicontesse de Broussailles
como
a
uma
beijou-me muito
e,
criança, afagou-me os ca-
minha pombinha minha doce pombinha! E^ uma dama muito respeitável. Um operário, também, à entrada, berrou mesmo no nariz de Méribelos dizendo
tac:
o
:
P/j; une jolie poule!
meu
!
— com o que
esposo ficou desvanecido.
Imagina tu a grande nave da Madalena cheia á^ luzes, de casacas pretas e
.
FILHAS DE BABILÓNIA
204
— Falta-me de
terva casa.
Logo,
Celina.
congressistas
entrará
Não tenho dama que
Ela tinha
tacto
e
mesmo
ter-lhe-ia
uma
ca-
nesta
os receba.
dedo inspirado
lido
— — — Não, tolinha, é um
eu.
de síntese
livro
em mãos.
que trago
— Se queres — Não, missão
.
umas páginas de
La folie dans le faux ménage. E uma comédia.^ preguntei scientifico-social
.
...
tal
esposa
...
só a
uma
incumbe
esposa
.
.
.
a
uma
E preciso
que sejamos morais. Não houve recepção aos congressistas
do
ilustre
sociólogo, e
um
inverno
começou
logo, cheio de vento, de chuva,
isolador
como
largava ai
li
;
a peste. Méritac não
me
exigia-me no seu gabinete, e
toda a colecção de Arthème, desde
Mémoires dun àne, ao Roi Pausole. Mas eu, que prezo muito a liberdade, as
fugia-lhe e ele corria atrás de
mim. Para
próximos e afastados, para colegas
e
outros, eu era o sua secretária, a sua
.
.
.
:
.
MAGA DAS RUAS
205
bem embora eu não dedos em tais aparelhos.
dactilógrafa,
saiba
pôr os
Ele é
que pianotava, para dar à casa o simu-
que era
lacro de
—
^*
Minha
eu.
flor
vez, mais terno
— disse-me
êle,
que de ordinário
uma
— se
passasses a morar de todo nesta casa
—
E a moral, meu velho ? — A moral está salva. Exerces
?
j
funções
.
aqui
.
— De amante Não, meu só os canários. não. Em — Como senhora .
.
.
amigo,
gaiola,
.
.
— Senhora de quê — Do meu coração
? .
.
— Ora, não dá para um — Minha senhora. minha mulher. pilaf.
.
.
.
casando.
— É assunto para -
Trouxe-o
muitos dias. afervorou.
em
A
reflectir.
suspensão e
em
transe
minha hesitação mais o
Quando lhe
dei uma resposta,
entre favorável e dubitativa,
para os joelhos e disse-me
puxou-me
!
2o6
..
FILHAS DE BABILÓiSlA
— E hás-de
amar muito o
teu papá-
zinho?
— Consoante fôr amada. — Dormiremos na mesma cama? j
--Ah, isso não! Não posso dormir acompanhada Deus me livre .
.
,
— No mesmo quarto, queres — Se não ressonares?. — ^E hás-de muito, sim Nesse ponto, sou uma — Nisso não Estás-me a ofender. — Bem, bem. Olha ... rapa?
.
.
sê-lo
fiel
?
.
.
fera.
se
fala.
e
.
.
.
£)
zinho ... o gigolô ?
—
(í
Qual gigolof Diabos me levem,
percebo
.
.
se
.
— Diabos me levem, não Uma não E muito senhora — Entendido, não torno a — Correste então com o gigolô,., assim? não — Qual gigolô ou qual carapuça?! se diz.
fina
jura.
feio.
.
jurar.
é
Fale claro!
Engasgou, não tornou a
importu-
MA6A Das ruas
com
nar-me
207
devassas da minha vida
particular.
o meu casamento. Decidiu-se hoje, amanhã encetou-se o
Assim
preparo a
se decidiu
duma
tal
revolução. Estofou-se
casa de novo, trasteou-se
nho para mim,
um
um
salãozi-
quarto para Leo,
correram-se os armazéns de
modas
e
de
bragal, distríbuiram-se anúncios, solici-
tou-se por via do patriarcado a
bênção
Sua Santidade. Foi um mês de prodigiosa azáfama nesta casa. de
Na
uma
Méritac
scena de imorredoiro
De braço dado me levou
rismo.
trar-me ante o retrato de Celina pedir-lhe
a
êle,
com
véspera, portas a dentro, tive
vénia para
o
li-
a prose,
com
matri-
mónio.
— Minha doce, minha inolvidável es— tu em minha alma posa — dizia êle
onde há ria
;
paz
um
lês
ahar perpétuo à tua
tu sabes as desordens de
um
sabes
coração deixado só
como
a soledade
me
e
memó-
que
é ca-
fogoso; tu
é insuportá-
.
o DERRADEIRO FAUNO
estivera nas garras
uma
belos louros, as
costas era
duma
fera.
217
Dos
ca-
trança desfeita para
como ramo
de
mimosa
amarfanhado outra, descendo-lhe pelos peitos até varrer o chão, lembrava vara ;
florida a
que se apoiasse. E, pelos ras-
gões do chambre,
um
seio branco, re-
chonchudo, com mais vergonha que se o próprio Padre Santo António lhe publicasse os segredos,
mostrava o ma-
milo, tão rubro, tão jucundo
morango primeiro que pinta
como o no mo-
rangal.
Chorava em fonte, e suas lágrimas punham no fogo rijo das dez horas um doce refrigério de orvalhada.
— O ^
i
diabo fez pouco de
clamou o abade. mulher.
—E
—O
ti
?
1
— ex-
diabo é espírito,
.
— redarguiu chocarreiro. — ^E
espirito
na em tom
cornos não é
? ^
?
j
!
O
Felicia-
carne e
senhor já não se lem-
uma
bra de ter lido que não
foi
nem duas que ó foram
caçar escarra-
só vez
!
2l8
!
fILHAS DE BABILÓNIA
panchado na cama com as freirinhas de Santa Radegonda?! çNáo se lembra? Homem, ao que come e ao que dorme está mesmo asno chapado Jesuíno, levando em graça o remoj
que, pôs-se a carear a mocinha. ela, inflectindo
especara sahos,
em
Mas
a cabeça sobre o peito,
seu choro, manso, sem
como de
vide aparada fora de
sazão.
— Deixe-a,
está
—
sufocadinha
— tor-
nou Feliciana. O Baltasar maluco é que viu e é que conta. «Alto como a lôrre; anda que desaparece; com o lume dos olhos acende o lume do mato; êle passa e íicam os penedos a abanar» (jora o que há-de ser? Todos nós conhecemos essa história respondeu o abade com ar de a história do bicho mau que rábula lambe a donzelia às moças emquanto um
—
— —
—
cristão reza o credo.
minha
jNão
nasci ontem,
rica
Exaltada, Feliciana invocou o teste-
I
o DERRADEIRO FAUNO
munho dos Escrituras;
pastores e a e,
fé
219
nas Santas
azeda, puxando a
ca-
chopa pelo braço, de chanquinha chocalheira pela casa dentro, despediu.
Padre Jesuíno volveu à varanda mascando aquela máxima dos ascetas sobre as filhas de
Eva Non
pecimia tam
difficilis
lier.
Estava
:
est vel
murus^
custoditu
um grande
vel
quam mu-
dia, e ali
quedou
mais tempo do que lhe era necessário para
rezar
consolado do
tércia,
sol
que lhe varria o reumatismo dos ossos
na terra de batatal, puxava cá para fora, pequeninos, verdes e dobrados e,
como orelhas de gato, os olhos nascentes. Nas velhas cepas, contra os muros, os pâmpanos tinham já mais de palmo, e
os abrunhos,
em
suas árvores, eram
maiores que os ovos da escrevedeira.
com Deus, cede que tinha uma certidão
E, contente consigo e
dendo à idea
de óbito a passar, se
No
foi dali.
porém, os arquejos da desflorada soaram alto, perturbando-o. cartório,
220
FILHAS DE BABILÓNIA
I duma
avisando
angústia que parecia
sobreexceder o pudor feminino enxovalhado.
E
Jesuino, largando
um
movido pela curiosidade,
também ao nela a que
a caneta,
pouco
desenfado, postou-se à ja-
uma
alto, se ageitara
videira ferral, caindo de
em
gelosia de
comodamente deixar ver sem Devassava-se
dali
o longe
e
modo
a
ser visto.
o perto, as
abas do povo farfalhudas de primavera e
vasando verde até os montes de além,
cobertos ora do gris rastiço do mato
ora do negro drapejado das moitas % pinhais, e na esguelha
em
do prédio
ângulo se desdobrava
—a
— que
cozinha
e dependências, sobre as quais a cha-
miné aà lavradora», corpulenta,
perfi-
lava o seu chapelão largo de pagode.
Assestando o olho, através da janela corrida da sala de jantar, de pronto Je-
suino enxergou o lance
um
Feliciana
com
na mão, de cócoras diante da
pires
rapariga
:
;
esta,
trecortando os
num mocho, ensoluços com o beber a
sentada
:
o DERRADEIRO FAUNO
lentos goles por
uma
chávena.
221
Em voila
via-se luzir o verniz das cadeiras de palhinha, e na gaiola de folha, preso pelo
pé, o papagaio figurava
numa daquelas
suas melancólicas crises de proscrito,
com lã
a
cabeça sob a asa^
um
novelo de
verde mal dobada.
Com
brando
geito,
sem pôr impa-
ciência nas preguntas, interrogou Feli-
em
ciana à moça, mal a viu
—
^jDize
lá,
sua sina
tinha parecenças de ho-
mem ? f
— Não tenhas medo de culpa tua.
.
.
^:|A gente
falar,
pode
não
foi
lá adivi-
nhar as armadilhas que o demo tece?!
Não pode! r •
— Conta
lá...
faltaste
sabes que não
Não o quero aos meus quanto mais a ti que nunca me
quero o teu mal. inimigos,
Bem
j
ao respeito Escândula, eu, tam!
bém nunca te dei. Quando andavas de maranha com o meu estudante que é um
:
222
FILHAS DE BABILÓNIA
—
não está aqui que nos ouça aconselhei-te para teu detrimento ? Que te disse eu ? Que lhe não desses trela que isto de Coimbra e tarimba é como amores de freira e flores de amendoeira que cedo vêem e cedo vão. Eu não queria encarregos na casa, e bem hajas tu que não fizeste ouvidos moucos. Passou... Mal-empregadinha o galo doido
—
êle
j]
ç!
i
suceder-te a avaria tua
lá
!
.
.
.
Aquilo
foi
por
madrinha, essa zouvineira da
Rita Quaresma, que te não pôs por
lá
mão com a fé toda, no baptizado, Pobre de quem nasce com má estrela Não chores mais ... és uma feiona a chorar. a
j
!
Chama-te mas é à Nossa Senhora da Lapa que te alimpe da sarna do mafarrico. Promete-lhe nove voltas sem fala.
Mas agora dize lá: tinha de homem ? ^ ou de bicho ? tj
parecenças
Vergonhosa, a mocinha obstinava-se
em
seu mutismo, até que, muito apalea-
da, muito afagada, lá contou
mais
flébil
que
fio
numa voz
de água a correr
!
o DERRADEIRO FAUNO
.
223
— Andava
eu pelo pé da Fonte do Vermelhão, a fazer na renda, com olho no gado, não
me
caísse
por
algum
lá
anho na cova da raposa. Perto badala-
mas eu não via reIbanhos nem pastores. De repente, ouvi i^vam os chocalhos,
um
restolhadoiro no orgueiral
avistando
para
uma
e^
borrega, disse de
com Deus
:
não
mim
Dialho da borrega que
caiu nas madrigueiras
—
e fui a correr.
Não tinha dado grandes passos quando me senti agarrada pelas costas e, em menos dum amen-Jesus, dei o tombo no chão. Cuidei que fosse o Bahasar, que
não é a primeira que faz, e peguei him calhau para lhe dar com ele ^ Ora, >abe vocemecê como se descasca uma á
Assim fácil me abriu os dedos. Depois tapou-me a boca, a cara toda
3eijinha?
.
Ai triste de
mim
!
j
triste
— Fartou-se — e !
iana deu
um
estalo
a
de
.
mim
senhora Feli-
com
a língua na
)esarosa significação de cousa ruim con-
umada.
—
^
Pelos vistos era
homem?
!
228
FILHAS DE BABILÓNIA
em
de coalho
que tivessem caído duas
pétalas de rosa, e o pescoço, mais alto
que de razão, parecia na parte que se sobrepunha ao chambre, de andar à
queima do
sol e
do vento, cingido duma
larga gargantilha de oiro velho.
Todo
o
corpo, entre fresco e madurinho, tão enfeitado de graças que se dissera de íidalguinha, de pastora não.
Padre Jesuino, posto que entrado nos sessenta desde o
S.
Mateus, não
perdera ainda a faculdade de admirar
uma
bela
natureza
de
mulher.
Nus,
agora, só os corpinhos dos neófitos lhe
mãos calosas. Deixá-lo, aldemenos aos olhos, emquanto o viá-
passavam
pelas
;
não entrasse a porta, ninguém poderia roubar o condão de ver Elevá-los, com a hóstia, no ofertório, tico lhe
enlevá-los sobre as maravilhas terrenas
do Senhor, era sempre adorar a divindade E forte desta moraJ, Jesuino seguia atentamente o exame de Feliciana. Aquele corpo era luxurioso e fascinante,
!
:
o DERRADEIRO FAUNO
dos
tais
que tornariam toda
de inverno
Bem
um
229
uma
noite
só instantinho de céu.
excogitado, porém, outros sinais de
não mostrava além das dedadas nas pernas. E tal comedimento num
violência
bicho e
tal
um
Ihiam-no de formar vel
num homem
aspereza
to-
conceito razoá-
sobre tão singular passo.
Antes de enfiar-lhe a camisa lavada,
desprendendo até tais
éle os
incensos vege-
do estendedoiro, Feliciana dete-
ve-se a cobri-la
dum
olhar último, re-
missivo. E, provavelmente,
achando-a
também núbil, com um ar fragrante de acácia em flor, rindo-se proferiu Não vá a tua desgraça mais longe :
—
que agrados não
homem. Tens
te
faltam para caçar
até de sobra.
guarde, o bicho que
foi
.
.
Deus
não era
te
mau
entendedor Arreiadinha de fresco, penteada, a
Micas Olaia amanhecia outra. Feliciana exultava
— jVês
como
a
minha roupa
te vai
!
23o
bem!
FILHAS DE BABILÓNIA
Quem te vir e te não conheça, tomauma
por
-te
a saia
.
assim
.
.
mestra régia. Apanha mais
também
.
.
.
Eu quando
sabia luxar. jriVá, sempre que-
ver se alguém no povo
ria
era nova,
te fazia isto ?
As tamanquinhas de Feliciana
estre-
loiçaram e Jesuíno desviou-se da janela.
Em
seu espirito ficava assente que a
rapariga fora violada de maneira que
não
honra ao seu instinto de mu? Ná, Que dissimulasse
fazia
lher. I
^
.
.
.
!
aquelas coisas escondiam-se e ela não
escondera,
e,
uma
vez publicadas, ex-
plicam-se e ela não sabia explicar. bicho.
que
a
.
.
Mas
Fera não. Diabrete? Verdade
casuística
da confissão previa
com o demónio. O incubato? Lampanas! Mas também é certo, no mundo dos fenómenos há mistérios o incubato
para os quais a melhor classificação são ainda estas palavras absurdas.
—
e
.
.
o senhor abade assim matutava,
quando Feliciana apareceu com a moça a pedir novamente os exorcismos.
o DERRADEIRO FAUNO
Travando da bolsinha de
23 1
chita
com
a sobrepeliz,
o barrete e o ripanso, Je-
sulno
logo
saiu
com
elas
direito
à
Igreja.
Lá fora, no largo de S. João, o povo andava de alevante, como se o campanário houvesse dado voz de franceses à vista. Tinham-se esvaziado para ali as casas e as hortas, e mulheres, pastores,
homens armados de espingardas quilhas para irem bater a Serra,
mas ásperas
Com
e
aulidos
em
ga-
comentavam.
o corredoiro, os gados que volta-
vam da pastagem ali
e for-
matinal estancaram
a monte. E, assim tumultuoso, só
arraial
de
nómadas
ao
erguer
das
tendas e atafais
Mal
se apercebeu
da Micas Olaia, a
par do abade e de Feliciana, a turba-
multa
convergiu
para
eles
e
envol-
Falavam uns confusamente, à characina, erguiam outros o punho fechado em ameaça. E era um nunca aca-
veU'Os.
bar de fisionomias lorpas de
sçnsilpili-
!
:
232
FILHAS DE BABILÓNIA
dade e de dizeres pernósticos da criatura
—
jlsto foi
em
volta
façanha de vagabundo!
— jQual, mas foi de lobisomem! — Juro pelas meninas dos meus olhos foi
-
— protestava
um
pode
urso sábio ou chimpazé
ter sido
brasileiro
— que
só
escapo da jaula aos saltimbancos.
— jNão
culpem, não culpem
homem
— rompeu a clamar a senhora Feliciana — Culpem mas o diabo ne-
nem
fera
!
é
j
gro do inferno que
já pela
boca verda-
deira do Baltasar doidinho o apontou o
Deus que tudo vê e tudo sabe O Zé da Venda torcia os lábios,
in-
crédulo.
—O
Diabo!? Tem as costas largas acabou por proferir com evio Diabo Aqui m'amigos, quem dente desdém.
—
—
armou armou
à mulher nanja à cristã.
Coitanaxa, que se chame à milagrosa
Virgem Santa Eufemia para que o estrago não vá mais longe. retorquiu a moça Não há dúvida .
—
—
.
.
o DERRADEmO FAUNG
233
—a
Virgem Santa Eufemia, que ajuda tanta mulher a bem parir, bem pode livrar esta desgraçadinha da prenhez. Pode. Agora lá quanto a que o demónio se disfarça em chibarro e outras alimárias para fazer pouco das donzelas, é mais que sabido. Olhem do padre
\
que a
em trajo
S. Felipe até
se lhe apresentava,
ou não
escrito
cujo ânimo a
madama
o grande cão
!
^rEstá
meu senhor?
está escrito,
— Está
de
— respondeu Jesuíno,
nada era mais
acessível
que à comodidade.
— Grande
a
um
coira
— dizia
gingando
canto o pai da rapariga, a
«para a sossega»
vinhaça
não
1
foi
—
quem
tinham atufado de
Quere fazer acreditar que homem que se deitou a ela !?. j
.
Eu bem sei dos maninelos que lhe andavam a cheirar às fraldas... Bácora, j
até o Baltasar
maluco
trazia
babadinho!
— Mas não me quis — rosnou o doi— Sanxa-marranxa, mais ra! — em pezaroso, por guina!
do.
lhe vale-
I
e
geito
II
José Quaresma, presidente da junta
de paróquia, lançou
uma
Leopoldina
Quaresma
de porta
em
a tia
e
finta
;
sua
filha
tiraram,
porta, por aquela corda de
povos, a esmola para
S.
Sebastião;
e,
no último domingo de Setembro, já os campos, borrifados pela névoa, se cobriam da penugem rubra dos centeais nascentes, pôde celebrar-se a
propiciatória
festividade
glorioso que
Roufins
ao mártir
advoga junto da cúria
leste as aldeias linas,
em
andaços
e
ce-
montesinhas contra mamais flagelos que, a não
se lhes descobrir
caminho, devem ma-
nar do céu. Veio de sermão encomen-
dado o padre Jesuíno, que
era por ga-
o DERRADEIRO FAUNO
24 1
Ihardia de parecer, largura dos peitos, afoiteza
no
gesto,
em
tudo apesar dos
De em
sessenta anos, o perfeito pregador.
minuto a minuto, até o meio-dia,
suas éguas pretas rabonas, foram apean-
do os curas das redondezas que vinham acolitar.
Rogou mais o Quaresma
a cha-
ranga de Vila Leboreira tão sabida capela a magnificar ao Senhor,
em
um
arraial a fazer virar
em
como
O
danso.
povo, largando as ovelhas paridas e os
porcos no chambarii, levantou dos gares
e,
lu-
toda a santa manhã, moroso,
engoiado nas capuchas os caminhos da sua
tristes,
encheu
sombra movente,
penitencial.
Pela longa
Nave
fora,
no desdobre
dos vales e no escorregadoiro dos tesos
em que
latejasse alma, sonhava-se, ha-
via semanas e semanas,
O
com o
fim dos
dava-o o monstro, tão misterioso como contumaz, que de uma tempos.
sinal
em uma roubava prendadas
a flor às donzelas mais
e casquilhas.
Zagaias e va16
FILHAS DE BABILÓNIA
242
queiras,
em
moças de jorna
morgadinhas,
e
despeito dos resguardos e esconju-
ros,
sofreram a
breve trecho,
temerosa. A-
desfeita
num
circuito de muitas
não havia aldeia ou almuinha que não fosse provada por aquele génio es-
léguas,
tranho de concupiscência.
Debalde o serrano apelou para ho-
mens da governança e santos bons advogados.
A
serra que,
com
os seus cônca-
vos de leiva gorda lhes enchia as arcas de grão e os palhais de palha, lhes fartava
rebanhos
e boiadas, e,
ano por ano,
os
abastecia de lenha para a fogueira e de
mato para os jante
estábulos, oferecia ao pu-
padreador velhacoito seguro
e in-
Scismaram ainda em lhe pregar o fogo de lés a lés. Mas, além de que seria deitar a correr a fome nedevassável.
gra, defesas
ao incêndio havia planuras
calvas, barrocais e lájea,
com
morros calcados dt
cafurnas onde acoitar-se
um
batalhão de ogres. E, que assim não fosse,
salvá-lo-iam
os
jarretes
mal-
o DERRADEIRO FAUNO
248
ágeis que de cabrito bravo, que lhe per-
mitiam de violar no
mesmo
dia,
à tar-
uma cachopa de Nacomba, e, às trindades, uma mateira de Ren-
dinha,
logo
dilhe, a três léguas
lhos
das velhas, por ata-
onde não consta que santo rom-
pesse as sandálias.
Batidas sobre batidas foram levadas
homens
a cabo pelos
válidos das po-
voações, mediante o levantamento
Ao toque
massa.
bem
em
de buzinas, espoletas
escorvadas, podengos e mastins
aos rastos, calcaram bouças e espiolha-
ram
penedais.
fusilaria
boca
!
De tempos em quando,
nutrida
pega
pavoridos;
!
e,
crepitava;
vozes
de
repercutiam nos ecos es-
da surriada, sucedia
er-
guerem morto o raposo inexperto ou o caçapo maluquinho, logrados pelo espavento, ao farandolar na relva ou ao dormir a
sesta.
Do decantado
bicho
mau, nem pegada.
Acabaram por desistir era combater com o ar, que de ar ou elemento pare;
FILHAS DE BABILÓNIA
244
eido devia ele ser
feito, e
com
a
monta-
nha/ cousa assim incomensurável violável
Em
e in-j
como Deus.
algumas freguesias, os párocos,^
trepando aos visos dos montes, de cruz
benzeram o termo; gargantearam os exorcismos de Santo Ambrósio alçada,
arcebispo; os
fiéis,
chamaram em
mais
por santos, patriarcas e confes-
sores; foi
como
as cigarras, nas segas,
a pedir orvalho ao céu tiaga
latim,
em
fogo
;
a bes-
não sofreu mordaça nem
tro-
peção.
Redobraram de sentido pastora não saia a monte sem a escoltar homem ;
aparelhado dos pés à cabeça de armas de escapulários.
De
noite, os
e
mais ardi-
dos pernoitavam de plantão na boqueira das ruas e na encruzilhada dos cami-
nhos; acendiam lumaréus pelas eiras;
andavam em rondas
pelos quintais e de
espera por detrás das paredes. Muitas noites,
aldeias inteiras
olho, sobressaltadas por
não fecharam
um rebate
falso
Ò DERRADEIRO FAUNO
ao pegar do primeiro sono.
I
Ao cabo
de
tempos, os serranos andavam derrea-
&
I
245
dos de pavor e daquela trabusana de guerra.
Os povos deram,
então, largas às ver-
sões mais maravilhosas. Se não era ho-
mem, que eram -humanas^ nem
aquilo andanças sôbrefera
dos bosques que
nem diabo que lhe galhos, nem lobisomem
tinha discernimento,
minguavam
os
que se movia sobre dois pés, jque ria? Velhos pernósticos,
almotolias de
barro,
nados entre as
deram corpo à
crença do Anti-Cristo, debutando seus flagícios
Em
tal
com
se-
em
forçar as donzelas.
asserto destoavam, porém, os
espíritos realistas que,
em
negócios de
amor por brando tagaté ou raivoso geito, viam sempre uma violência bem vulgar deste mundo. nestes auges que o Quaresma
(Foi
que além de devocioneiro votava o disvêlo mais cauto à integridade de Leopoldina, pucela viva do sangue e taful
FILHAS DE BABILÓNIA
252
agravo ao
silêncio,
f'
uai balbuciar de
menino, a cochichada das rezas, o garro
dum
padre. E, na
pi-
morna morri-
nha que soprava da igreja e engrossava com o vazio da sacristia, o santo sacrifício foi passando por sobre eles, de cavaco sobre colheitas e fenos, patético
no Agftus Dei, de
S.
triunfal
no Evangelho
João.
Breve, ainda o abade do Touro, naquela sua voz encatarroada do cigarro matinal, não garganteara o e já
ite
missa
est
o alevante soara, rumoroso, arras-
tado,
como por grande
gada duma-
faina.
E não
caterva a
lar-
tardou que a
padraria toda entrasse de roldão a des-
paramentar, zangarelhando, cruzando cutiliquês
conforme seu desafogo de ho-
mens naquele tica
trânsito
da rigidez hierá-
para o mais solto à vontade.
Leopoldina
reapareceu
a
chamar
suas reverendíssimas; e largando logo toque-toque, ruela abaixo, puseram pé
em
casa do Quaresma,
com
os era-
:
o DERRADEIRO FAUNO
— Vejamos — proferiu cinto, atento
na roda
— Primo:
dades de arbítrio.
o Padre Ja-
atenta.
umas
se rejeita
tenta por outras, é
203
um
ente
só se
e
com
facul-
^É ou não é?
— Concedo. — Secundo: quais
escolhe? As boni-
E, portanto^ susceptível de gosto,
tas.
mesmo dizer, um delicioso. Isto é um dom raro das criaturas. Nego confessou o Padre Jacinto ia
—
— os
—
dons são o imaterial, do puro en-
tendimento, e tinto
só vejo
ai
em
jogo o ins-
da torpeza.
— Santo Agostinho chamou à formosura lume cheiroso da graça.
que
êle
O
facto é
sabe distinguir entre mulher e
mulher; vai direito ao lume cheiroso;
não
se engana.
Imanente a este hábito
não existirá, colega, o poder dum dom muito espiritual? Lá do fundo, o Padre Jesuino, de pé,
de selecção
em
riste
^
a travessa
em que acabava
de
espostejar dois loiros capóes, vozeava
FILHAS DK BABILÓNIA
264
—
^
Sabichôes
lá
do cabo, vai um naco
de frango?
Durante minutos ouviram-se apenas as vozes gulosas e o rascanhar das fa-
amputando. Padre Aurélio saboreou do prato, bebeu um bom gole de vinho
cas,
c, satisfeito^
proferiu para
Moura Seco:
— Não me dá razão — Assim se me afigura — respondeu com acento de benignidade. — Há ?
^
ele
outra circunstância que omitiu e merece
não há memória de que o estranho ser volte a cobiçar-se da sua vítima. Curioso, o abraço do monstro ser
ponderada
:
;
é
uma
tro
vacina para o abraço do mons-
1
— Pois
dispõe
se assim é
duma
— disse Aurélio —
sensibilidade estética que
só se encontra nas naturezas requintadas.
Com
vénia sua, Padre Jacinto, as
mulheres devem ser para
êle
eleição que, depois de servir
atiram fora.
—O
que
êle
deve ser
vasos de
uma
vez, se
— proferiu
o
.
.
o DERRADEIRO FAUNO
205
abade da Rua num meneio sorridente da cabeça é da raça do imperador Proculo que se gloriava de, em quinze
—
dias, ter
engrossado o ventre a cem
vir-
gens sarmatas.
— Arreda — cuspinhou
o
!
Padre
Amaral.
'
— Para quem está familiarizado com os autores antigos — tornou o abade da Rua que era infatigável a historiar — os não causam assombro. Os seres de hoje teem perdido de
feitos deste frascário
tudo, até potência.
Cómodo, aquele
extraordinário césar
que bateu bacanal cubinas!.
—
jReparem-me para
com
trezentas con-
.
— Prece-me — chalaceou Moura Seco i
que cá o abade anda enfronhado de
mais na crónica de Citerea
—
— Nada
disso
! .
.
— respondeu sorrindo um
pouco vou respigando. Depois a memória, louvores ao Senhor que aqui nos tem reunidos, não me foi infiel como os denleio
muito e desse muito
FILHAS DE BABILÓNIA
274
tajado que a velha religiosa só atinou
com
estas vozes patéticas ante o bispo
patético
«
:
anos sou
— Credo!.
freira,
com tão
há
Há
.
.
trinta
quarenta
madre-aba-
marmanjo, nada vi que se pareça!» Ai teem os meus reverendos colegas o que o velho bruxo dessa,
me
perfeito
contou.
— (íQua! a moralidade, Padre Moura Seco — questionou alguém entre as ?
gargalhadas dos convivas.
—A
moralidade é transparente.
No
caso actual será preciso procurar perto.
.
.
dentro da ordem natural das cou-
Só
sas.
deste
mundo não
Já nas
na
e
está fora deste
mãos
mundo o que
é.
bailadeiras de Leopoldi-
de Maria da Encarnação, qual
delas mais perluxosa,
de cabelinho a
doidejar sobre as tempes, o arroz doce,
com
polvilhamentos fulvos
de canela
sobre brancura de jaspe, discorria pelos
A tia Quaresma, com os fados, viera
pratos dos reverendos.
contente consigo e
!
:
o DERRADEIRO FAUNO
acocorar-se
SyS
mesmo
à ilharga do padre
mãos
cilhadas no peito, a
Jesuíno e de
banha das bochechas a
luzir,
abria
grande aranzel sobre o bicho garanhão
que ceifava a
das donzelas. E,
flor
com
olhinho de malignidade, muito desbocada, dizia
—
(iiEle
bem
sabe
com que
lambis-
Havia de ser comigo que não voltava mais a montar na gente e, floreando aquele gesto vigoroso com que torcia no tanque os adeitos de estopa, góias se mete
?
!
—
acrescentava tau
.
.
— Eu
lhe
o
cata-
.
Mas em
face,
uma côdea cabritinho, o
num moesburgar com
escanchado
cho, nada borracho, a
sem
dera
de pão
um
pernil
Quaresma dava
dizer buz.
E que
lá
do
rico
à cabeça,
nos refolhos da
sua alma estivesse a dizer para a
mu-
«não tentes a Deus!» ou que
esti-
lher,
vesse já deitando as duras contas ao festim,
Mas
ninguém o
ia jurar.
a tarde declinava. Já o sol fize-
FILHAS DK BABILÓNIA
276
ra O seu giro por cima das casas da vila e,
afogado na meia-névoa à outra ban-
da, parecia
olhar
um
olho
céu a
para os sacerdotes. Chegavam
lufadas metálicas a
mesmo do
charanga,
duma
rapsódia que
bem comida
e
tocava ao desenfado no largo de
bebida, S.
João.
Desdenhosas da hora penitencial, as chanquinhas de verniz e os sapatos de brocha bateriam a terra em redondo. Pelas janelas abertas,
um pouco
do de
suma dos abades. Mas os copos, meados ou
fora viera quebrar a beatitude
cheios de vinho aqui e além, eram so-
bre a toalha branca
de alegria.
A
como
rosas rubras
pipa do Quaresma tinha o
espicho de pau ainda
em
alto,
que os
chegavam toucadinhos de espuma^ o espirito todo a chilrear. E, empurrando-se com saúdes e máximas socangiróes
bre a curteza vida, gole por gole, satisfação
Uma
sem nuvens
foi
a
ressurgindo.
hora assim, mais sorrateira que
asa de andorinha pelo céu,
foi
passan-
o DERRADEÍRO FAUNO
do.
O
Padre Chança,
— modo
de passar
afinal,
um
277
conseguiu
migalho
— reu-
número para o monte. Lento, mais pausado que um velho prelo a vomitar niu
dum
os fólios
Rua
incunábulo, o abade da
discreteava à flor dos séculos e dos
prodígios
com
a segurança filosofal
dum
Hesidoro de Sevilha.
— Pois chamem-lhe
balda, se quise-
rem, a esta minha predilecção pelos antigos.
sem
A
verdade
avental,
é
nem
que falando de tudo,
luvas isoladoras,
me
óculos, a facúndia delas
deleita.
nem Pois
esse Ulisses Aldrovandi compraz-se na
descrição do
admirar
com
homem
silvestre,
os seus olhos e de que dá
umas estampas. Homo
ma
que pôde
e pelos tópicos,
villosus lhe
cha-
que enumera, nu,
coberto de grenha, célere na corrida, arteiro
na emboscada, extraordinaria-
mente semifero como pónio Mela, lejo
que
bem
habita
já inculcava
condiz estas
Pom-
com o animaparagens.
Se
temos de buscar a decifração do enigma
286
FILHAS DE BAB1LÓNI\
no tempo santo, para a ViaSacra. Gonfessava-se todos os domingos e recebia a comunhão pelos dedos reboludos, amarelos do tabaco, do Padre Jesuino, se lhe não era azado santificar-se nino
em
e,
função solene, nas localidades pró-
ximas, pelos dedos longos e pálidos
jovem presbítero. de
filhos,
O
dum
Padre Jesuino, pai
caçador, seareiro de cereais
nanja de almas, repugnava ao seu gosto
de espiritual.
Mas
era o pároco colado
e ela resignava-se a ser ja
uma dona de igre-
na igreja mal casada. Castiçais, lâmpa-
nunca a pôr um vestido em prova seus dedos de modista foram mais solertes e inteligentes que, em madrugadas de dodas, vasos, reluziam de limpos
mingo, a enfeitar os altares res
— das
:
e
com
as flo-
primeirinhas às derradeiras
— que brotassem nos quintais. A paixão ascética,
passo a passo, foi-a
empolgando, a pontos de uma noite a família, norteada a tempo, a ir colher à vista de
Lamego, numa caterva de mô-
o DERRADEIRO FAUNO
-
287
i
que o
ças
Padre Baldomero
sobre Espanha
com
destino a
dirigia
um
reco-
lhimento. Deixava o pai caduco, a paralítica, e a feia
doida envergonhou-se da
empresa. Mas,
tada,
não
mãe
com
ver a rota cor-
se lhe entibiou o fervor pelo di-
Tinha o pressentimento que havia de ser bem-aventurada como Santa Inês, dizia em voz alta. E ou Santa Iria vino.
—
agarrava-se a todas as sotainas e concorria a todas as festas. Neste jogo a
sua pele tão fina e côr de rosa chegou a adquirir o
tom das
virgens embalsa-
madas. .
Foi nestes auges de iluminismo que
Pedro Jirigodes a viu
e se cativou dela.
Tinha para a moça a pecha dos quarenta anos, a nomeada de matador com o que amontoara um invejável pecúlio e o ar mal assombrado que lhe imprimiam as sobrancelhas, encrespadas na fronte de lés a lés, e o bigode farto, muito negro e vassoirudo, que lhe fechava a boca. Mas Pedro Jirigodes
—
—
388
FIÍ.HAS
DE BABILÓNIA
era alguém. Trajava de casimira sobre
o escuro, chapéu de palha desabado sobre a fronte, corrente de oiro, de grossos elos,
com uma peça
de jarra por
sempre assim por feiras e funções, carapuças no ar, mão afável berloque,
e,
— ^como vai o amigo? — era o dumas
rigodes. Vivia
terras
em
simo, arrematadas
do Santís-
Viseu à porta
fechada, e de dinheiros a juros
Não mexia uma
Sr. Ji-
altos.
palha; quando não
passeava, caçava; quando não caçava,
andava no
um
rio à pesca. Era, sobretudo,
grande batedor de montes e enge-
nhoso inventor de laços. Encoimavam-no de torpes enormidades e era muito respeitado. Já
uma vez se desempenhara
com honra do da ral.
vila
cargo de administrador
de Moimenta,
em época
eleito-
Tinham-no por pessoa de conheci-
mentos, muito morigerada de costumes c assinava
quarenta, tituir
o Século.
rijo
família
como o
Homem
sobre os
aço, queria cons-
— dizia-se — para
o que
o DERRADEIRO FAUNO
289
mandara erguer sobre a estrada um prédio de boa cantaria e boa telha de Pampilhosa, e requestava, maluco de todo, à Maria da Encarnação.
Tantas odiento,
o que é
pechas
deviam-lho
tornar
mormente a da idade e do físico, sempre de monta mesmo para
donzela que destina suas graças às celestiais
bodas,
com noivo provado
a co-
lher as mais fragrantes virgindades. Pois
não o repeliu com náusea, não melancolicamente, invocando as suas juras de ;
castidade, o despediu
com
brandura.
Pedro Jirigodes não renunciou com ;
lenta e hábil
manobra
subornou vizinhas
foi-se insinuando;
e beatas; conciliou o
padre missionário à sua causa, mediante
umas pernas de
vitela e trutas
mandadas
de peita os pais empurravam-na, certos ;
com o casamento das garras do beatério. E umas com máximas da
de libertá-la
vida farta e regalada e não menos virtuosa, o apóstolo
com exemplos de
tos conjúgios, lentamente a
san-
foram aba>9
.
FILHAS DE BABILÓNIA
2^0
Era só em campo a defender-se; Pedro Jirigodes teimou e, em meados de Maio daquele ano, quando as poldras fogem dos lameiros a nitrir, ao fechar da festa de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens, de que fora mordomo,
lando.
obteve o sim, tão renhido
com Nazareno.
Àquela data, andava a correr o processo de estado livre de Jirigodes, que por terras da estranja arrastara mais de dúzia
de anos, para que o matrimónio se consumasse.
Tudo em seu
isto
repassava o Padre Jesuíno
cérebro não destituído de dis-
cernimento, diante da cabecinha louca.
— Ouves uma voz. — pronunciou essa abade com mansidão. — E .
o
.
diz
voz? Repete-mo, outra vez. Maria da Encarnação, à Serra «i subirás; sem pau nem pedra, o medo .
—
enxotarás!».
— Ah!
^;E é
quando
estás a dormir
ou acordada?
— Em
sonho,
meu
padre,
mas tam-
1
.
o DERRADEIRO FAUNO
29
bêm já a ouvi uma noite, no instante mesmo em que acabava de rezar a salve-rainha do terço.
— É preciso desconfiar de sonhos. Em
autores dignos de todo o crédito, tenho lido
que os sonhos tanto são instrumento
como dos génios infernais. sim, mas ouvi-a, também, na
dos anjos
— Pois
posse dos meus cinco sentidos, tão real e perfeitamente
vós,
meu
como agora vos ouço
a
padre.
— (iParece-te,
então,
que
te
man-
dava ir lá acima, à Nave, dar cabo do ? monstro Assim o julgo. ^ Donde partia a voz? Não sei; soava-me bem distinta aos ouvidos, mas não trazia direcção determinada. Figurou-se-me que falava .
.
.
— —
—
mesmo
E
era
sobre
uma voz
como nunca
O
mim.
.
mas não o
muito bonita,
ouvi.
confessor
.
juro.
uma voz
.
desentranhou-se
em
preguntas que giravam todas sobre o
:
FILHAS DE BABILÓNIA
292
mesmo
tema, porque na sua casuística
constituía aquele caso
uma
novidade, e
o seu espírito, exercitado na lavoura, a
educar os
filhos e a bater as lebres, es-
tava pouco apto a abarcar
cendente problema.
uma
E
resposta decisiva
— Minha
filha,
um tão trans-
esquivou-se a dar
com
dizer
sobre táo misterioso
chamo, não posso eu pronunciar-me. Sei que mais duma criatura recebeu por este conduto mandado do céu para execuções cá na terra. Mas, se a memória me não engana, também há exemplos destas vozes serem falaciosas, emitidas pelos espíritos malignos.
o prelado.
—A
.
voz
Vou
consultar
.
é tão
maviosa que só pode
do céu. Ouço~a e fica-me o corpo banhado num gozo tão incomparável, táo doce, que me esqueço de mim e da
vir
terra!
— dizendo
o que,
em tom
exal-
tado, arqueava os olhos para o alto, nas
sumo deleite. mas todas as cautelas
reminiscências do
— Pois
sim,
.
o DERRADEIRO FAUNO
O
diabo aprendeu artes
sábios
nas academias. Cada
são poucas.
com
os
vez está mais subtil selho
vem
j
!
meu con-
Aceita o
sossega e esperemos o que resol-
:
lá
—
298
j
no
E
alto
.
.
entretanto continua o flagelo
meu padre. E exacto, mas o mal Ah,
à solta!?
.!
.
i
--
é tão miste-
que para debelá-lo toda a prudêné recomendável. Vá, minha filha,
rioso cia
modera-te nessa sede de sacrifício que a outra cousa não corre a tua magnani-
midade. Modera-te e reza três avemarias a
Nossa Senhora do
para que
te
Bom
sopre inspiração.
estas e parecidas palavras
Conselho
—E
com
quebrou o
ansioso transe daquela almazinha.
Duas semanas decorreram estupros foram perpetrados tristes, alheias
e
novos
em
terras
ao mundo, à beira de ve-
caminhos romanos adormecidos. A missa conventual voltou novamente a moça a rogar ao abade que a
lhos
ouvisse de confissão,
.
FILHAS DE BABILÓNIA
294
— Meu voz não
medo
padre
— murmurou
se cala:
«A
ela
—a
Serra subirás, o
enxotarás». Ouço-a cinco e
seis
vezes por noite. ^;0 senhor Bispo ainda
não respondeu?
— Não ainda não teve tempo. — Pois, meu padre, estou decidida a ;
subir à serra, aos píncaros mais altos,
à ventura de Nosso Senhor.
—
bom num
A
i
minha filha, um galope não lhe dá volta
serra é grande,
cavalo a dia.
Tem
muita furna.
.
.
muito valhacouto... Perdias- te!
— Deixá-lo! — Se aldemenos acompanhada?! — Não quero ninguém. Judit tamsó à tenda de Holofernes. bém — Os tempos são outros, alminha i
fosses
i
foi j
do Senhor! Os tempos são outros, e nós não somos os judeus. Nisto de. de copulação, eram raça pouco escrupulosa. Sara, mulher do grande Abraão, .
pintou o sete no Egipto,
\
.
.
.
.
o DERRADEIRO FAUNO
— Tudo pago zelas
O que eu sofra estará
bem
amanhã se puder dizer as donpodem andar sem receio por esses se
:
caminhos de Cristo
— Lá
me
.
.
Eu não Faz mesmo
farás.
digo não.
nada
295
nem
digo sim,
conta que
de
ouviste.
— A voz do céu — Quem sabe lá!? — E. Tenho-a esconjurado noite por é
noite,
pondo
vras
se sois
:
.
.
alma toda nestas palavoz divina falai-me, se sois a
dos anjos das trevas, arrenego
em nome
do Padre, do Filho e do Espírito Santo. E não se calava e mais melodiosa era. Já observei que tendes queda para .
—
o misticismo.
Com
as naturezas muito
sensíveis dáo-se, por vezes,
de alucinação auditiva outras.
Quero eu
são do ouvido
.
dizer,
.
.
.
fenómenos
visual .
pode
.
.
e
isso ser ilu-
.
— Tão repetidamente
?
!
Deus Nosso
Senhor não permitiria que assim fôssç lograda.
29S
FILHAS DE BABILÓNIA
bem-aventurados como as carapuças a todas as cabeças. O Padre Jesuino le-
vava mais tempo, no monte, a ajoujar
um
coelho ao cinto que, à banca, a
transferir
um
sermão de Santo Antão
ou das lágrimas de S. Pedro para os Espinhos do Senhor. O resto era com a memória e memória ti-
para
S. Brás,
nha bem fresca, mediante uma economia cerebral, em que só, morosas e roedoras como larvas, passavam e re-
passavam
as dívidas relaxadas de pé de
altar.
Com
a idade e o
gravame dos
filhos,
que eram perdulários, a sua ferramenta
menos que
teológica estava pouco
de uso. Dirigir pois
um
fora
relatório ao bis-
po, submnistrando-lhe o caso da visionária, era tarefa
em boas
com que não
condições de arcar.
Com
estava ralhos
bom senso, como para pessoa que teima em abrir uma porta à marrada,
e vozes de
aconselhou-a. Debalde
;
Maria da En-
carnação, certa de lhe vir do alto a mis-
:
:
o DERRADEIRO FAUNO
de
são
abalou
salvadora,
em
deliberada que nunca
299
dali
mais
seu propó-
sito.
Ao
nascer do sol do dia seguinte, de-
pois de mungir as vacas, o
Tomás Pa-
com não
ver a filha a pé, cotovia no madrugar, foi à porta do teiro,
estranho
quarto
—
Maria da Encarnação, oh lá! Arriba, já anda tudo fora. Como não sentisse rumor nem voz, j
.
mas
ia a bater,
ter
.
ocorreu-lhe que poderia
passado mal a
noite, atreita
como
andava a insónias e pesadelos, e que estivesse de pouco tempo presa deste sono tardeiro, mais pesado que a morte. E, largando plantar
um
com
moço
o
e
o
filho
a
quartel de feijões, que já se
calara o vento galego e as rolas arru-
lhavam
lascivas e
as outras
motetavam umas com
em voos
planados pelos pi-
nhais, entre engulir duas buchas disse
para a mulher, entrevadinha na cama
— jMal-o-haja
os
padres
que nos
!
300
:
.
FILHAS DE BABILÓNIA
hão-de derrancar a moça! Chamei-a,
nem deu acordo de
A
si.
velha quedou-se a rezar a coroa de
Nossa Senhora, que era aquele o seu mês, e a contar pelos dedos a soldada
que deviam ao paquete com o ano quási fora. O tempo foi dobando, passou meia
manhã
e a filha
— Maria
sem dar
sinal.
—
grida Encarnação!... Eh, Maria da tou a velha por fim.
—
j
Encarnação Figurando-se-lhe
gemer, sus-
ouvir
pendeu-se, assustada, de ouvido à escuta.
— Miau-miau! — Morte mate o gato Cape cape! — berrou para o bichano, por cima !
!
j
;
das arcas, na roubalheira.
O
gato deu
um
pulo, escapuliu-se, e
a paralítica volveu a gritar
— Maria ta-te,
filha,
pelo almoço
da Encarnação!... Levanchega .
ai
o pai desatinado
.
Chamou, tornou
a chamar. Inalterá-
3 IO
FILHAS DE BABILÓNIA
pros por bruta força no silêncio dos
bosques
à beira dos caminhos silen-
e
ciosos.
A furto umas, impávidas outras, guardando um sigilo de catacumenos, voluntariosas as donzelas ofertar sua flor
iam aos montes
ao voluptuário messias.
Entretanto avançava a prenhez das
e
Bem rogaram
mães bárbaras morfanhas a intervenção da Virgem
eleitas.
as
Santa Eufemia, de bruxos ras.
O
gadora.
pólen possuía a virtude propa-
A
Micas Olaia
sentir as dores
omem,
foi
a primeira a
do parto Acudiram as
comadres para cortar lobi
e benzedei-
e bentas
a trave, se fosse
para o esconjura-
rem para o Inferno, se desse mostras de diabinho. Duvidavam ainda e o mesmo senh^^r
Padre Jesuino falou claro:
— Se a
não fôr à nossa imagem e floreava e semelhança, esganem- no! o gesto com que na serra afogava as perdizes que caiam de asa. Nasceu um rapagão perfeito. Pôs-se cria
—
o DERRADEIRO FAUNO
3
I I
como a dizer cá estou, e em menos dum credo, entre grandes
logo a vagifj
upas, a sugar o seio farto da mãe. Após a
Micas, pariram as outras, cismos,
nem
já
receios de monstruosidade.
Todos os crianços eram, por e formosos.
escorreitos
mal,
nem
sem exor-
olhado,
nem
igual, sãos,
E não houve tinha que lhes
pagasse.
Ante
os filhos do matrimónio
eles,
eram uns arrelampadinhos que reciam enjeitados de Deus.
até pa-
Não tinham
a cor, a pujança natural, o indicio de
força e esbelteza dos filhos do Inefável.
Confundido
abade
compungido, o senhor
torcia a cabeça,
os apóstolos tur^
e
:
murmurando com
Judicia divina
dum
nescin-
non audaci sermone discutienda sunt
sed formidoloso siltntio veneranda.
IV
o
Baltasar encavou os socos
outro, meteu-os
um
no
debaixo do braço,
e
vergado, a boca quase nos joelhos, pos-
banda de Jirigodes. Estava a romper a manhã, destas manhãs alviçareiras de agosto, tão movediças que ainda as sombras correm se a trotar à
pela terra
como
cabras pretas que vão
seu destino e já o céu parece a este
uma
suspensão aluvial de rosas, rosas brancas mais e mais esfloradas. Andorinhas
roçavam já de asa veloz humedecidas pelo orvalho, e o cartaxo
A
e
o tejasno
apareciam extáticos sobre
como
eremitas a rezar mati-
distância,
porem, flutuava ainda
os marcos nas.
as rodeiras
o DERRADEIRO FAUNO
este arzinho de noite,
vultos
um tom
3l3
que imprimia aos
dormido, de quase sen-
tida sensibilidade.
Para
lá
das abas do povo, o sino das
almas tangeu, arrepiou o ar
silente
com
sons muito vagarosos, muito melados,
trémulos de mistério e de morte.
mão
Com
a
canhota, o Baltasar benzeu-se; e
Pedro Jirigodes, embora pouco acessível à piedade, tirou o chapéu e rezou. Rezou, primeiro, pela livração das almi-
nhas que penam no fogo do Purgatório, e às quais, lar,
por sua natureza crepuscu-
são de melhor refrigério as avé-
-marias que sobem da terra na solidão
do lusco-fusco depois, para que ;
lhe
não
ânimo nem o amparo do anjo da guarda no grave intento que
falecesse o
cometia. E, reconciliada tos
com
os espíri-
a velha consciência, estugando o
passo, meteu a direito pelos restolhais, leiras
sobre leiras calcinadas da canícula,
varridas há muito do penetrante per-
fume das ervas maninhas
e
do gordo
.
3
FILHAS DE BABILÓNIA
14
Um
rescendor das espigas gradas. outro
feto,
ou
guarda-sol das lebres, enno-
doava o campo
lívido de seara.
Silenciosos, leva que leva trolhos fora,
mais e mais a manha
ia
clareando. Já
pelo pendor dos oiteiros se distinguiam a
chupar o húmus, ralos
e ferrados
sarna, a urze e o sargaço'; fronteira,
pequenos pinhais
cabeludos;
e,
na chã
já,
se
como
erguiam
de torcidos pelas rebana-
das do temporal, lembravam maltas
e
maltas de caminhantes, dobrados, der-
reados sob enormes trouxas, rompendo o passo para as bandas do nascer do sol.
—
— Mexe-me
essas gâmbias, Baltasar
disse Jirigodes,
maluco que nhã fora .
De
parando á espera do
se atrasara.
— Está
a
ma-
.
verdade,
como
se fonte farta la-
vasse tudo, a natureza inteira dealbava.
Os
horizontes estendiam-se até onde
consentia o parapeito dos altos. Lá estava a Serra da Estrela, coberta de
man-
o DERRADEIRO FAUNO
tel lilás
e
com
duma
3l5
velaturas de bronze, severa
dignidade de maioral a apas-
centar pela extensão rebanhos de e
tes
oiteiros; a
mon-
ermidinha de Santo
Antão fraldejava em seu morro e tinha a graça duma pomba branca empoleirada
;
logo abaixo, nos Alhais, luzia so-
bre o casario baço o curuchéo >
sia,
E
em
ardo-
negro-burnido, da torre normanda.
por
ali
em
fora,
por batalhões, os pe-
nedais apresentavam, sob os jorros da luz,
uma
doce carantonha de bons
gi-
gantes.
— Baltasar — pronunciou
Jirigodes
—
no remansar do passo, colina acima estás bem certo que o viste? Assim os meus olhos vissem o
—
mundo a arder! E boa! (íQue mal
—
te fêz
o mundo,
homem ?
— (íQue mal me
Quando
passo:
fêz,
lá vai
sanxa-marranxa? o maluco, o
dom
golondrom enterram um defunto Baltasar, pega da vestia mais rota; as ra;
:
!
FILHAS DE BABILÓNIA
3l6
parigas, eu a chegar-me, logo as grandes coiras tero lero lero, tenho quanto quero :
Mas
pior, ainda, são os rapazes.
— a pobre de Quintela —
dia pilharam-me
vomecê
Um
sabe,
com
a
Zingamocha
e
levaram-me a passear pelos seroes, nu como minha mãe me botou ao mundo. Cães Também lhes roguei praga e em !
hora
foi
que
se cumpriu.
— Praga — Sim, senhor;
;
Olarila
?
ensinou-ma, minha
mãe, que tinha muita virtude que cometia. fiz ?
Olhe,
^^
uma
Quer que noite,
em
tudo o
lhe conte
como
estavam apagadas
todas as luzes no céu, fui-me para o Oiteiro
da Forca
e deitei-me
de joelhos a
rezar. Rezei a santos e santas, a virgens
e mártires, e
quem
rezar,
mens
ali
quando mais não
tinha a
chamei pelas almas dos hoenforcados. Vieram todas, de
matador, de ladrão dos quatro caminhos, de judeus que esfaquearam a hóstia
do
altar.
Eram um
arraial e
vinham mais, cantarolando
cada vez tuturutu.
!
Siy
o DERRADEIRO FAUNO
Minha mãe, tinha-me para
trás,
nem
dito
mostres medo. Finquei
os joelhos no chão e
quedei no meio
ali
avantesmas, todas
das
não olhes
:
de ossos tão
brancos que até tornavam a noite branca e se via tudo
irmão ?»
—
elas.
—
e
dê
Que o
—
nas
nhadas, batidas e rebatidas o mar».
areias
«
queres,
resmoças os homens que hajam de as levem desemmoçadas, pre-
as
levar,
«Que
roda.
— diziam-me
tranglo-mango pondi
em
Eu
como
às
de joelhos, e elas
passando e preguntando sempre: «Que queres, irmão?» E lá se sumiram todas
na
noite,
será
!
j
vozeirando
Vê
:
assim será! assim
a praga que lhes roguei
dia seguinte, a Micas
?
No
Olaia via sem
querer o céu de costas.
— ^Então chamo — Sei
o quer que é veio ao teu
?
lá ?
!
i
Quem manda
é
Deus
Agora considere vomecê a padralhada há milhentos anos a ganir guardar cas:
tidade! guardar castidade!
e,
vai senão
3
I
FILHAS DE BABILÓNIA
8
quando, o mulherio rompe por essa serra
Nosso Senhor e a pedir ao anjo que as venha cobrir. Safadeza, curas, bispos e papas nasceram fora a entoar ladainhas a
para enganar o
bém
era tolo
:
mundo O mundo tam!
j(ipois
não
via,
nos telha-
dos, pardais e pardalocas a satisfazer os
mingava o canem o grão nos campos?! A
seus gostinhos, e não lhes lor
do
sol
minha raiva é estar velho e ser um aleijadinho. As moças, quando eu me chego a elas^ depois de lhe fazer todos os apa-
dizem-me que é pecado. Sou mais triste que a erva dos caminhos
paricos,
! .
— Valha-te
o
criador
dos
As raparigas são como as
rejas
é
.
.
— Pois
.
melros,
Baltasar. .
.
ce-
para quem trepa. é..
trepei noutros
.
é
para quem trepa. Já
tempos às cerejeiras.
Uma
vez deitaram-me abaixo e parti as costelas.
As raparigas são como
também roguei praga. costelas, mas no povo mal ama-
são, e às cerejas
Parti as
as cerejas,
duram, criam logo bicho.
SlQ
o DERRADEIRO FAUNO
— Es um lá
:
j
feiticeiro temível.
Mas
a que altura do dia o viste
— Era
olha
?
meia manhã quando muito,
ainda havia orvalho no mato.
—
lá
<:
E
que andavas a fazer na Serra,
tão longe?
— Eu
vivo mais na Serra que nos
povos.
A
canto
me
Serra é minha amiga, a cada oferece cama.
Chego-me
às
quando os pastores não vêem, e No verão dá-me pútegas, quantas
cabras, teto.
me pede como
o apetite.
A
Serra
E como
— Eu
era êle sei lá.
— Tinha — Tmha ^
.
quero-lhe
te viu,
moscou.
?
Era como
era.
feições de criatura?
e de
bom
.
a minha mãe.
— Então o anjo, mal
^
.
boa pmta. Ele no seu
passo por vilas e aldeias
e,
só
com
mossinhas de bem querer, não havia solteira
ou casada que
lhe fugisse.
Mas
anda i:oberto de peles como ouvi contar que andava S. João nos desertos. Sempre quero ver se me levas a
—
.
320
FILHAS DE BABILÓNIA
Agora toca-lhe. Vês? já o milhafre anda pelo céu à coca das perdizes que saem a almoçar o grão dos restovê-lo.
lhos.
Toca-lhe.
As cousas
nham a
todas,
pouco a pouco,
como um
a lume
Sobre os
.
livro
muito
giestais ajoujados de
vagem de
clara felpa, fora
vi-
lido.
vagem e como se Ê
que mais imponderável que
neles caíra neve, muita neve, desta
pousa directa
um enxame
e
de mariposas. Lameiras de
tenro pasto, orgueirais de pendão a esfarelar-se
em
carvalhiços
limalha ruiva, tufos de
verde-mate
cresciam
desvão da terra de restolho, pondo cercadura animada
Numa
em
uma
sua cor morta.
belga de painço,
amanhada ao
tentame na vastidão do matagal, espantalho,
no
um
mais disforme que Judas
derriçado dos corvos e escorrido dos
humores ao oitavo dia, abria braços mcomensuráveis. Quase por cimai^ a cotovia subira ao céu e por
padejando de asa, a
rir
lá se
dêU ou
perdia^
a entoar
|
.
o DERRADEIRO FAUNO
O
kíries
trás
ao
sol
nado. Ele
lá
321
rompera de-
dos montes, mais loiro que a broa ao
do forno, derramando pela terra a mansa amarelidão do azeite na azenha. Lá vinha, e toda a sensibilidade do sair
ermo, da mais imediata à mais ocuita,
Passaram corvos grasnando; os animaizinhos do Senhor, no chão e nos ares, romperam na lidairada. Já os pinheiros, aprumando-se daquela sua marcha penitencial, pareceram ser, sob os primeiros raios, filas de monges negros em ordem de canto-chão numa Ve-
palpitou.
lha Sé.
— Baltasar, anda-me. A cavalo na vassoura mais depressa. — Nunca ninguém me ensinou — Dizem que bruxo — Sou Pedro, afocinhado ias
tais
artes.
és
.
.
cristão, tio
na pia benta por mãos da Ana Fusca que é cristã e confessada.
— Desenvolve-te.
bom
.
.
temos ainda
um
migalho que bater. 21
332
FILHAS DE BABILÓNIA
O
doido atrás de Jirigodes esbofava.
Iam subindo
com
vestidas
Agosto loiro
as ribanceiras da Serra, as
já alto,
cores
mortiças
sombrio nas matas,
do
dum
esvaento no chão raio de seara,
pardo pelos morros, tons de chama nos coutos.
Uma
lágrima de sol coalhado
sobre o tojo e o sargaço, flor azul
alfinete
uma
estranha
suspensa de fina haste
como
de chapéu, falavam ainda do
Maio que
pelos montes arrastara rica
capa de asperges, episcopal. Sentia-se
que o outono começara a tecer sobre escura lencaria seu catafalco de broca>
Mas, para o vale. por entre as lombas, da poalha doirada do sol emergia o luaceiro verde dos milharais e campos de semeadura. Uma nesga do rio scintilava a todo o fundo, e era um espelho ora a quebrar se ora a refazer-se do dos.
vivo lume. tos
em
feiras
E
flor
nas abas dos lugares, sou-
erguiam na alvura espacial
de oiro, da mais abundante e fan-
tástica joalharia.
323
o DERRADEIRO FAUNO
Sempre
a direito,
e regatos levados e
azangando paredes
em
cantarola, subindo
descendo, atingiram os picotos
altos.
Lentamente, a alma de Jirigodes fora lavando-se na pureza do dia, deprimindo-se entre infinito e infinito.
Pedregulhal negralhento, ora reboludo à flor da terra, ora cravado
como
ossa-
das mal sepultas, escarpas alampanhadas de rabugem, bouças fofas de mato galego ou de sargaço ribeirinho, morros
na postura de cavalos a pino, colinas crespas a correr à doida, tureza
ali
como
se a na-
se deixara invadir de pânico,
era a Nave.
E, entretanto,
uma grande paz
pai-
rava sobre aquele tropo-galhopo de cousas, todas
como
mudas, todas
em
suspensão,
se fossem a própria inflorescên-
Pedro Jirigodes ouviu pulsar o coração e na inalterável imobicia
do
silêncio.
lidade o sol
objectivo de
da
mesmo tomava um relevo pessoa, como se se tratasse
visita rara
do senhor daquela honra.
FILHAS DE BABILÓNIA
324
— ^Estamos bem aqui, Baltasar? — Melhor, nem no crescente da lua que
em
lá
para a gente montar a cavalo.
selim
do paredão um penedo uma cova ao meio? Lá, uma
para
^'Vê
mesmo um
baixo parece
como
lá
cabeça de padre, que acabe de cantar
não
missa, feita
.
.
tem
a
bem
coroa mais
.
— Vejo. — Foi
lá
que o descobri.
numa
Sentando-se
pedra, a
espin-
garda traçada nos joelhos, Jirigodes
xou espairecer os
olhos,
dei-
vagamente a
scismar. Daquele ponto cimeiro, avista-
va-se o perto e o longe a mui grande distância
em
redondo.
Dezenas de olhavam- se
oiteirinhos, logo abaixo,
em
turba multa por cima
dos côncavos, parecia estarem dos sob a torreira a
uma
mu-
voz de pre-
sença que houvessem de lhes
Eram
ali
pedir.
calvos, desta tristura dos cerros
contraída a ouvir chiar a forca e gras-
o DERRADEIRO FAUNO
nar os corvos sobre os justiçados.
32
5
Mas
nas corgas, pelos sopés, a giesta piorneira^ a orgueira e
dravam
fortes,
o tojo alvarinho me-
ao acento taramela das
águas de rocha.
Um
ou outro carvalho, vindo do génesis, carregado de musgos e de ninhos, bracejava. Pedro Jirigodes, das noites de espera pelas luas, conhecia
aqueles
andurriais
de
erva doce
onde os coelhos vinham doidos a valsar e até a
Para
raposa de ameijoada. lá,
em
escaleira
cada vez mais
distante, os tesos sucediam-se nus,
uma coirama
com
ressequida de mato, ou
trechos negros de bosque. Já neles se
lobrigavam^
como pontos minúsculos
movediços, os rebanhos
a ripar a far-
falha dos arbustos ainda verdes.
A
todo o fundo,
duma imensa
como no concavo
almofia, os lugares de-
nunciavam-se pelos espanejamentos sobre o vermelho da telha moirisca, fresca do forno, lanços caiados de moradias,
o campanário, o fumo, o halo que res-
^
320
FILHAS DE BABILÓNIA
cende
ao
mana. Por
—
céu
'qui,
estendendo a
a
por
mão
conglomeração hu-
'li
— disse
Baltasar
diante dos olhos de
— as melhores serraninhas pa-
Jirigodes
garam contas à
criação.
De começo não
queriam, agora pelam-se por mais. Estou
por
vingado, Pai da vida! Por 'li
.
.
'qui,
.
A mão onde nasce
do louco apontava Soutosa,
uma
ovelha nasce iim pastor
enroscada nas matas
como raposa em
Apontava S. Martinho, escorregando na vertente, das mais provadas logo adiante Peva, com o Patrono ao alto a branquejar, pequenino como um ovo, as manchas dos palheiros madrigueira.
;
em
capindó, a igreja matriz de três po-
voações, a estrada nova muito clara na
paisagem baça, cheia de fuga, de ideas
vagas para vagos horizontes e pessoas. E num gesto largo, indicava do outro lado
do
rio, a
outras aldeias,
todo o
lés,
outras e
marcadas no mar de
o DERRADEIRO FAUNO
327
maninho pela luma^ha verde dos seus oásis.
— Baltasar —
disse Jirigodes
aperta e tu hás-de estar
Vamos
à trincadeira. quela lapa.
De
com
sol
apetite
para debaixo da-
vimos tudo
lá
—o
e
ninguém
nos vê.
Abrigaram-se
com
a
penha
e,
puxan-
do dò bornal, Jirigodes repartiu com o louco e deu-lhe de beber da borracha. Feito o que, Jirigodes verificou a caçadeira, extraindo e
metendo os cartuchos,
provando com os
estalidos claros dos
cães que a fecharia estava
em
ajeitando-se no chão,
quedou com
a espingarda
ali
se
regra. E,
no braço, numa posição
perfeua de espera.
— (iPVa que se pranta vomecê assim — preguntou Baltasar. — P'ra quêP P'ra melhor meter dois ?
zagalotes na pele do anjo, se nos der a
honra de
se mostrar.
— Ficavam-lhe
as
mãos
"
tolhidas
proferiu o doido mansamente.
—
.
328
FILHAS DE BABILÓNIA
— Êle que apareça. — O chumbo, mesmo, não cava. — A pólvora A cem passsos, e meu. — Tio Pedro, ao pé de mim não
lhe to-
é fina.
é
dis-
para.
— Se tens medo, vai-te embora. — Não me vou embora ao pé ;
de
mim não dispara. Não?
— — Não!. — respondeu o louco com arreganho — Com penas de me meter diante.
.
— Pior para — Deixá-lo! Emquanto eu aqui ti.
ver não dá fogo.
um
Eu não vim para
esti-
guiar
matador, sabe vomecê.
— Viesses
as lerias
que não viesses, não são dum louco que me hão-de em-
bargar caminho.
— Tio Pedro — tornou Baltasar, exaltando-se — ouvi contar na venda do
Nastácio que vomecê matou
um contra-
I
.
!
o DERRADEIRO FAUNO
329
em terras de Almeida, para Não acreditei. Os assassinos
bandista, lá
o roubar.
trazem sangue nas unhas
também ajoelhado
lhas vi brancas. Vi-o
ao
o corpo de Nosso
altar a receber
Senhor Jesus Cristo, sassinos ficam
com
eu sempre
e
e
dizem que os
as-
sem aproximam da
a língua de fora,
a poder recolher, se se
mesa da comunhão. Não acreditava, acredito agora. Acredito até que vomecê o cravou de facadas à falsa
fé e
levou o
cadáver às costas, mais duma légua, para o deitar ao
— jCala-te sapo — Não me
A
rio.
que calo.
te
esgano,
filho
dum
Aqui não matará.
.
Serra é santa. Ri-se?! Olhe, era eu
pequeno, mataram
um homem
minho de Lamego, ao
no ca-
avistar da Orca.
ao fim
não podia chegar a êle. ^Quere saber o que sucedeu? A Serra^ num redondo de
Esteve
lá três dias,
já se
muitas léguas, começou a secar, a secar
como
se fosse
alma
cristã a
que tivesse
.
o DERRADEIRO FAUNO
e
quase invisível que
345
o
fica instilando
céu ao cabo de dias de aguaceiro,
com
a coronha da espingarda juntando ocioso a areia perdida aos pés, deixou voar as horas.
O
Baltasar, afinal, acordou.
E
circun-
vagando a cabeça, os braços estendidos para a frente,
dum sos
em
arco,
como
as tenazes
escorpião, disse de olhos lumino-
:
— Ainda
ai está, tio
Pedro.
— Estou e estarei.
— Mal empregado tempo; o Inefável não vem
.
.
— Quem sabe. — Sei-o Não eu.
vem. Vomecê que-
como ao
contrabandista, oh,
.
ria
matá-lo
não
.?
é a êle!
—E a a não com a maluqueira, meu grande tinhoso. — Se eu digo que não êle e é
]
ti,
se te
lhe
Vomecê não quere
calas
já
vem!...
acreditar, ouça.
.
.
Baltasar ergueu-se e veio-se plantar
de pé diante de Jirigodes.
FILHAS DE BABILÓNIA
3-4-6
— Ouça — tornou iluminado — acabo de
êle
num
acento de
sonhar
e
no so-
nho o anjo do Senhor apareceu-me. «Baltasar
— disse-me
êle
— tu
és
pobrezinho de Nosso Senhor, mais
que
um
cardo nascido
num
um
triste
canto onde
deitam as sujidades e os trastes que
já
não prestam, mas o teu coração é bom e é simples, e a verdade entra nele como o sol pelas vidraças. Tens razão em supor quem eu sou enviado do alto a regenerar o mundo. Os padres, os bispos, os papas estragaram a santa reli-
com castramentos e castidades. Estragaram o género humano com uma gião
mordaça aos
do amor, e tu és uma das vitimas, Baltasar. O que era apetites
natural tornou se
um
vicio,
colocado
fora da natureza; o instinto preverteu-se à força de procurar exercer-se.
razão, Baltasar. aleijões,
O mundo
Tens
esiá cheio de
de fealdades hediondas, de en-
fermidades, porque os homens deixaram atraiçoar as
leis
da vida. Baltasar, o teu
o DERRADEIRO FAUNO
347
pai era mentecapto, andava pelos cami-
nhos com
um ramo
de oliveira a cantar
o bemdito. Herdaste, o sangue de teu pai e és
um
pobre do
espírito.
Se eu
ti-
vesse tocado tua mãe, serias beio, forte,
desempenado, cavarias a horta e as raparigas não te fugiriam com gatimanhos de inocência. Tens razão, Baltasar.
mando
dos padres
c dos bispos, dos jarretas c
cambados,
Esse Jirigodes
vem
a
dos velhos, lambuzeiros de donzelas,
Matou, tem marcado na face o signo de matador. Mas, não temas; eu sou invulnerável ao ferro, ao fogo, a todas as maldades dos homens, Bemdito e prostitutos.
sejas, Baltasar,
bemdito
sejas,
que
me quiseste guardar;
porque o teu coração
simples se deixou penetrar da verdade
da minha missão». Aqui está o que disse.
cheiro,
A
face
dele
me
resplandecia;
um
em
flor
que todos os soutos
não igualam, rescendia dele. Foi-se e cu acordei; há muito que estou acordado, mas não quis bolir, nem abrir os
.
FILHAS DE BABILÓNIA
348
olhos, para
são se
celeste.
não perturbar em Ai tem vomecê.
não acredita,
mim .
a vi-
Agora
.
se quere ainda esperar,
espere.
E
dizendo
Jirigodes,
isto,
um
Baltasar lançava sobre
olhar inflamado, reprova-
dor, de profeta.
— Não me gastes a paciência — murmurou Jirigodes encrespando as sobrancelhas. — Tu doido é o que és
mas mais doido Daqui em
ti.
te vale,
e
fui
eu
em me
guiar por
não abres mais a
diante,
boca, ouves tu? Se falas, esborrachoFico, não
-te.
Se queres
tens
nada que me pedir contas.
largar^, larga.
— Pois fiquemos —
.
disse o doido sen-
tando-se.
E
O
ficaram.
O
céu todo era
meio-dia transcorreu.
uma
grande rodoma em
brasa, sufocando a terra. Recortados
nos longes, os penhascos pareciam arder
numa
labareda
de álcool, muito
branca, que eram os lumaréus da canícula.
Nem
cicio
de vento,
nem
ruflar de
o DERRADEIRO FAUNO
asa.
A
das.
No
849
imobilidade das cousas esmaga-
emtanto a água de rocha,
lá
em
manava sempre^ mas num murmurinho tão ligeiro que só o empenho baixo,
de ouvir ouvia.
O
sol
virou sobre o Caramulo
tida de brocatel
com Ihama
dum
;
ves-
amarelo desbotado
a oiro, peitoral branco
com
matizes açafrão, pinchou a folosa sobre
uma
vergôntea de giesta; de cabeção
vermelho alaranjado saiu
alga, piar.
barrete verde
dumas carquejas o
pisco a
Um grilo arriscou as duas notas do
seu motete
Era a
A
e
;
as rãs e os ralos coaxaram.
tarde.
catadura dos montes desanuviava;
levantou-se o vento, e nos cerros os pinheiros apareceram derreados
suas cargas colossais
;
sob as
na chã, os cães
latiram e o
latir
os penedos
como umaestreloiçada de vi-
No mato vestiram uma dros.
atroou, repercutiu entre
e nos coutos as tintas re-
tonalidade terna,
numa
quase sincope outonal. Nuvens alvas
35o
FILHAS DE BABILÓNIA
corriam
ligeiras e
eram como bandos
de grous que vão emigrando. Pedro rigodes repartiu o resto do bornal Baltasar e
comeram
Ji-
com
silenciosos, entre-
tanto que o arraial da tarde
ia
esmore-
cendo.
As paredes deitaram sombra cabonde estenderem duas vezes sobre
para
se
ela; a
Serra da Estrela cobriu
roxo
os côncavos tornaram-se lagos de
;
melancolia.
um sendal
Esmoreceram os espaneja.
mentos claros dos povoados; luziam muito os seixos, escureciam os bosques. jar
Um
perdigão rompeu a cacare-
para o outeiro
e os ares e a Serra
encheram-se da nostalgia
dum
toque de
recolher.
— Vai-te — disse Jirigodes. — Eu — respondeu, — Também fico
fico...
sem
mais, Baltasar.
Os rebanhos que, lá ao fundo, tinham reaparecido, despareceram. O sol
parou sobre o Caramulo, pareceu
toirar contra
uma
das suas agulhas
esai-
o HKRRADKiKO FAUNO
tas
num esborrachamento
Um
de ovo. grl-gri! e
gritinho
35
í
gemas
de
serôdio cantou
emudeceu. Era a
noite.
— Vai-te — tornou — Vou quando vocemecê
Jirigodes. fôr
— con-
testou o louco.
uma
Acendeu-se
estrela
no céu, de-
pois outra e outra. Ocioso, breve
Jiri-
godes contou onze. Velaram-se chãs e oiteiros e a
vez mais
abóbada
em
celeste floria
cada
cravinas de oiro. Maqui-
nalmente Jirigodes
foi
seguindo a ilumi-
nação dos espaços, cachos, renques, suspiros de luz, praia de brasas na mar-
gem de
lá
gueu-se,
mas
da
noite.
O
crescente er-
tão diáfano que não obs-
cureceu o mais pequenino botão daquele
imenso
roseiral.
A
própria estrada de
rompia de céu a céu, com empedrado tão miúdo que parecia uma S.
Tiago
lá
rasteira de cinzas quentes.
Pedro Jirigodes,
acabaram de
quando os
astros
se acender, retirou a vista
cansada, cansado
também o
seu espírito
FILHAS DK BARH.ÓNIA
352
de vaguear. Olhou ao longe, ao rés do
mas
solo,
a opacidade
para
lá
grisalho de serguilhas. ali
atmosfera
da corga em que desdobrava num estendal
tolhia a vista
o mato se
da
E
em
caindo
si,
no meio do ermo, a par dum doido,
em
desafio ao desconhecido,
um
terror
Mas fora senha quedar ali, quedava. E mão na espin-
inesperado o assaltou. sua
garda, os olhos mergulhados na noite
ficaram a espiar os rumores das som-
Dos almargeais distantes, chegava diluída na aragem a chocalhada das
bras.
rãs.
perto o cantar do ralo pare-
Ali
amarelo sem saber porque; era
cia-lhe
um som
mortuário, de debaixo da terra.
As águas, essas lá iam sempre correndo, cantando um canto sem fim. A força de as ouvir, de devassar a noite de olhos
parados, esqueceu-se do que viera fazer.
.
.
não
se
podia lembrar.
.
.
ali
De-
da memória a noção do tempo e o sentimento do lugar onde pois, varreu-se-lhe
estava.
Confusamente
sentia-se na pista
.
;
:
o DERRADEIRO FAUNO
353
de Maria da Encarnação que por
um
outro o trocara. Mais nada.
Vozes alegres vieram banhar de extremo gozo a sua quietude. Era um cântico, mais e mais animoso, e êle, dando um sacolão aos membros inertes, levantou-se estremunhado. Ah, sim, estava no cume da Nave, à espera A lua !
lá ia alta
entre as estrelas
Mas
..
ha!.
lá
em
bem
acesas.
baixo na chapada
cantavam Pedro Jirigodes esfregou os olhos e viu e presenciou a roda galhofeira. Era .
uma dum
.
cadeia de vultos esguios vulto mais alto.
frescas
E
em
volta
as gargantas
alçavam a álacre modinha E
ó senhor ladrão,
Ande ligeirinho Não queira ficar Na roda sozinho.
Pedro Jirigodes julgou-se ainda a sonhar; palpou-se, fechou olhos. Estava
bem
e
desperto.
abriu
Em
os
baixo, 23
!
FILHAS DE BABILÓNIA.
354
a sarabanda prosseguia
e,
subitamente,
no lançar da trova percebeu a voz argentina, educada nas Novenas de Igreja, de Maria da Encarnação. Depois, um timbre muito suave e alto figurou- se-lhe
da Joaninha da Fonte
;
um
tremolo da
Francesinha. E, por claróes seguidos e repentinos, a verdade foi-se-lhe desven-
Em
volta
furtando-se
das
dando.
arrostando
com
Cabras Espingarda
coté.
do anjo, as barregãs, aldeias
pela
calada,
a noite, batiam o sari-
1
cm
punho, Pedro Jirigo-
des lançou-se. Ser estranho, ágil
como
um gato, troncudo como um sapo
imen-
Era o Baltasar. rcgouDeixa-me, excomungado!
so, caiu sobre êlc.
— — gou Jirigodes. — Aqui náo matará! — Deixa-mc — repetiu britando-lhe a cabeça com a espingarda. — Aqui não matará !
Quando garam
dele,
as
mãos do louco
um
grande
se despe-
silêncio pairava
o DERRADEIRO FAUNO
355
sobre a terra, Pedro Jirigodes fitou o doido, de olhos abertos para as estrelas infinitas,
braços
em
cruz na terra en-
sanguentada, e entrou a tremer, a
tre-
como se o seu corpo todo fosse a haste duma paveia balouçada no venmer,
daval.
(Paris-Lisboa).
5
índice
Os olhos deslumbrados Maga das ruas
O
derradeiro fauno
i
107
2
1
ACABOU DE 8K IMFRIMm áSTB LIVRO A TRINTA
DE MAIO DE MIL NOVE*
CENTOS B VINTE NA
TI-
ANUÁRIO COMERCIAL, LISBOA. POGRAFIA DO
I
PQ 9261 R5F5
Ribeiro, Aquilino Filhas de Babilónia
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