Aquilino Ribeiro - Filhas De Babilonia

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FILHAS DE BABILÓNIA

:

DO AUTOR Na

Livraria Aillaud c Bcrtrand

Jardim das Tormentas, contos.

A

Via Sinuosa, romance

— *^t^f*^^AH

Terras do Demo, romance

— 2.* ed.

Filhas de Babilónia y novelas.

NO PRELO

Kstrada de S. Tiago, contos.

.

A AQUILINO RIBEIRO

FILHAS DE

BABILÓNIA NOVELAS *-ífc

Jk91

^^

fv^

i

LíTrarías Ãillaud e Bertra&d

PARIS-LISDOA LivRARU Chardroh Porto

I

Livraria Frahcisco Altes

I

1920

Rio de Janeiro

v^v^-

'967

Todos

os exemplares vão rubricados pelo autor.

JOÃO DE BARROS

t

Parte doeste livro escrevia-a ha anos

em

Paris, a Babilónia, cuja taça d'ouro

inebria

toda a terra, como bradava e

brada ainda do fundo dos séculos a vo^ irosa

do profeta; a outra parte em Por-

tugal, permitindo-me de acrescentar á

Salamonde a pa-

Cartilha do abade de

gina velhissima, tão

leis

da

aos cultos

duma moral complacente com

submersos, as

comum

vida. Daqui,

por localisação e

por alegoria, as Filhas de Babilónia.

Ao tema

versado não é propicia esta

hora, tão cheia

da

gritos de chacal

— de homem para homem

tilintada

de dolars e

e

de povo para povo. Já Ovídio^ escriptor

que floresceu na Edade d' Ouro fechada aos quatro dias do mês de agosto do ano

igi4, expendeu seu

da Redenção de formoso engenho

Eva no

em

restaurar

Paraíso. Sendo aqui

Adão

um seu

e

lon-

ginquo sequai, confesso o pecado de não engeitar

uma

mim

e dos

de

prosa

feita,

desenfadada

homens para y

um mundo

que morreu,

Lisboa, maio de igio.

A. R.

os OLHOS DESLUMBRADOS (Caderno

dum

voluptuoso)

Os

olhos deslumbrados (Caderno

dum

voluptuoso)

I

Em

caminho de ferro, através da chã pasmada de Castela-a- Velha. Todas as tristezas de principio de inverno, do entardecer e do deserto, entraram para a carruagem, tomaram os lugares vazios^

penduraram-se aos espaldares pescoço. Quase que se

e

ao nosso

podem

palpar;

teem corporeidade de viajantas. Ainda ouço e melhor vejo os tamancos do chefe que na última estação, de bandeirola no sovaco, as

mãos encaba-

das nas mangas do tabardo até os cotovelos, tida.

deu com a cabeça o

Eram de

incouras,

sinal

com

de par-

testeiras

douradas, e seu belo sonido de matraca

FILHAS DE BABILÓNIA

4

rompia singular por entre o fragor metálico da manobra. Era a voz de presença da Espanha.





uns bons quilómetros andados

não obstante, as montanhas do Douro continuam a mover-se a oeste, ronceiramente. Só o rolar do infinito sobre o infinito terá aquela subtil cadência na e,

mobilidade.

Lá vão correndo

um

ra-se-me que alêm^

corvo, empoleirado

naquele pinheiro

solitário,

estupefacto a vê-las correr.

A

A

nem

— nem

em

baixo.

planície c o trem esgalgam-se, qual

deles mais incansável.

dos,

olhar

está

nós, não,

que conserva o garbo castelhano olhar à retaguarda,

e íigu-

com

Surrada dos ga-

a sarna dos restolhos velhos e

da urze a grisalhar, parece que Deus, ali,



casal.

O

semeou

E uma

cinzas.

Nem

moita,

nem

sala de bailar dos ventos.

comboio espalha o arfar de quem foge com medo. Se não com medo, mais melancólico que um herói no exílio, entro para a

os OLHOS DESLUMBRADOS

D

carruagem. Os passageiros, que na adua-

na socorri com a minha sciência das

acabaram de arrumar a complexa bagagem. O papá, de boné em viseira, mãos cilhadas no joelho, tem esta fisionomia oficiosa do viajante sete partidas,

que embala as horas, rilhando a idea

Mesmo mais do que

da chegada.

isso^

encontro-lhe este ar de obsessão interior,

aparentemente semi-desatento, dos

enfermos que, entre outros enfermos,

aguardam na

sala de espera

dos mé-

dicos a vez de consulta. Ela não, vive

momento por momento.

— estorninhos voam

sobre

floridos e é

trejeitando na

mim

neve



Porque são

curiosos.

grande regalo sentir-lhes o

vôo sobre nós, baixo a dente,

Já seus olhos

poiso-a

vista,

condescen-

sobre o pé, espiritual

como um Menino-Jesus

e

tão volup-

tuoso que nele vão espojar-se os cupi-

dinhos todos do

meu

serralho.

Pouco há ainda, emquanto o papá

me

agradecia

murmurando

desta Espa-

FILHAS DE BABILÓNIA

6

nha que não sabe línguas, nem penetra a intenção próxima das coisas, seu sa-

XV

pato Luís

que

cais,

minhas botas americanas. Bem

a par de sei

cantou na areia do

no ritmo quase acidental de

foi

passeantes que abrem o passo na

mesma

Embora, já marchamos por trilhos combinados, já houve entre nós uma re-

linha.

lação de simpatia, e daí nossos sexos

— tudo entre homem e mulher reduz a sexo — encetarem o jogo da conjunção. se

Depois, na gare plácida, à beira do pi-

homens que com os

quete de

purrava

mos

um

um

em-

vagão devoluto, deambula-

silenciosos, o

pensamento de cada

dentro de seu «jardim».

No meu

tava ela resccndente e formosa talvez eu,

rins

um

;

es-

no dela

carabineiro, rosadas teias

de aranha.

me passeiam, do meu eu social

Sinto que os olhos dela

procuram

inteirar-sc

pelo halo

de características imateriais

que há

cm

lodo o

homem

e

ainda pelas

luvas, que calço, cor de azeitona verde, a

os OLHOS DESLUMBRADOS

J

gravata adrede desdenhada, a fronte

em

vasta meia lua, este geito desarticulado

que

me

deu o uso do florete e o abuso

de viver. Baldado esforço, sou cispado

como uma arca nova ou assim me julgo. Mas forma a sua idea e nunca há ilusão numa idea que nasce para morrer.

Nas malas-artes de

mava

eu,

seduzir costu-

nos bons tempos, abando-

nar-me, assim

como um

ouriço escor-

regando lentamente da couraça, no que ria exaustiva,

em mim, minha luxúmeu orgulho, um enfado

uma

emotividade toda orgâni-

havia de especial benignO;

ca, feras domésticas

que soltava

e en-

jaulava a prazer. Vezes sucedia assombrá-las,

o que era de

sombro

é

bom

jogo

;

o as-

na mulher e na guerra o primeiro passo da derrota. A fascinar esta donazinha de pé pequennio, nem Belial desejaria ser.

um tico,

Um joven cura persuasivo,

ingénuo colegial, sim.

um

poeta român-

Vem-me mesmo

o receio de

que a assuste; mas n§o? sinto

em

nii-

FILHAS DE BABILÓNIA

8

nhãs carnes como raios intoldáveis sol

dum

nascente os raios do seu olhar.

Desvio dela toda a suspeita de aten-

em contra do instinto marrado nela como podengo ante caça de altanaria. ção,

Alheio-me, mesmo, e ouço a música bár-

bara do comboio e nela

em

seu diabó-

volume colho uma canção doce, vagabunda. E lembra-me a donzela das velhas trovas, sentada de cima duma penha a cantar, emquanto passa, com

lico

lusido tropel,

Nas

senhor da Biscaia.

vidraç^s^ búcias da cacimba, de-

buxa-se tre

um rico

uma

choupos

flora caprichosa. e

Por en-

codeços emaranhados,

consigo ver no primeiro plano

um

gi-

gante de barretina e perna de pau, to-

cando gaita de dansa

e é

um

foles.

Um

homúnculo

urso. Depois a floresta

recua até confins indevassáveis e torna-se

um

scenário mágico, de mil cores.

Vejo

as

magnólias de grandes flores

brancas,

embocadas como

tedral, as olaias cobertas

sinos de ca-

de lágrimas cor

.

os OLHOS DESLUMBRADOS

9

de vinho loreno, laranjais prenhes de frutos

maduros. Minha retina é

ceira

Da

feiti-

a abundância enfada-me e tudo se

;

esvai

uma

como

as riquezas de Pedro

Cem.

alucinação ótica, descaio no jogo

mecânico, racional, do que há mais

vo em mim que

é o cérebro.

acti-

Vou subme-

tendo a cabine a cálculos aritméticos.

O

compóe-se de vinte e seis ripas ou vinte e sete, cômputo feito duma emenda. Não ostenta em seu verniz luteto

zidio

bosques miraculosos, mas, a

canto,

uma máscara

ra-se-me.

Os

um

ganhou com

Um.

trinta

e

de histrião depa-

olhos são duas dedadas de

lampeanista, a boca

mento.

um

.

.

uma

provável

dois.

quatro

junta que arre-

.

.

letras.

descarrila-

três letreiros.

.

A mnemónica

desta cifra seria os trinta dinheiros de

Judas mais os quatro evangelistas; ou os números da harmonia perfeita, vene-

rados dos pitagóricos, 8-4; muitas até

Lá ouço, outra vez, na raivosa do aço, a terna cantiga

a obssessão. sinfonia

!

FILHAS DE BABILÓNIA

IO

errante. Parece

um

hino

flébil a

alguém

que está longe.

As malas dos

em

viajantes teem argolas,

que o coiro mareou com o suor das

mãos, cravadas com

uma.

A

mais rotunda

o rótulo de Coimbra.

seis

pregos cada

baldeada ostenta

e

Coimbra,

.

.

uma

estreloiçada de cimbalos, a Antónia que

me

conjurava na hora intima a dar-lhe

mordicadas nos braços Onde eu vou Uma das malas tecn a housse ponteada .

.

.

quando a côr

a vermelho,

é

de açafrão.

Por baixo, o cabedal está gasto. As housses

foram renovadas

e

falam baixinho

de mediania que tem vergonha de se mostrar. Plntre elas vai amolentada

em

condecinha

trança

de

vermelho,

branco e verde. Talvez a tecesse nitenciário

.

.

.

uma

um

pe-

um honrado cesteiro. Que

me

importa? Dentro viajará o necessá-

rio,

toalha de mãos, lencinhos de assoar,

calças dela que trasbordaram das las.

jLá

com

ma-

as calças deixaria arrancar

o coração e fechá-lo dentro, o libidinoso!

os OLHOS DESLUMBRADOS

I

l

Reflectindo que seria louca presunção

supor que os olhos dela

me

passeiem

ainda, considero que na cretone do encosto, por detrás

do papá^ há uma quei-

madura de cigarro ou de charuto, e vem-me o apetite de fumar. Ainda saco da cigarreira, mas não me decido, teria

com

de pedir-lhe licença, interromper

uma

vénia banal a tecitura misteriosa

da rede que a seus sentidos meus

senti-

dos vão lançando. Volto a doidejar

com

o pezinho que, inadvertido ou inocente,

na perna cruzada,

se

mostra tão diabo-

licamente tentador. Deve ser

neve

com

um

pé de unhas côr de rosa e veias de

azul diluído

em

leite.

E um pé

que anda

duas polegadas acima da

alto,

terra, e

dá a seu torso a quebradura de Niobe espavorida. salto.

E

Os felinos inflectem assim no

a linha incidente da queda. Este

tacão mavioso apareceu tarde. Mediante a mulher teria

ganho a batalha da Idade-Média entre as diabruras do cs~

ele,

pírito e a

divindade da carne.

FILHAS DE BABILÓNIA

12

O

pé dela é rechonchudinho sem demais; cabe na cova da mão; quase o

cobre um beijo. Se fosse a minha amante, os seus pantufos, ao desnudar do corpo,

bem

quais seriam.

sei

.

as

.

minhas mãos

trémulas.

Fatigo-me de divagar. Meus olhos correm,

afinal, afoitos a

buscar os seus

A volúpia de vê-la, não mo pode ela tolher.

que fogem.

ao me-

nos,

Visual-

mente é minha sua pele, sua cor, seu modelado, seu talhe, hão-de percorrê-los estes que a terra ha-de tragar, tão real ;

como estando em meus

e perfeitamente

braços.

É uma

posse

e,

nela, queira

um pouco

não queira, perderá

que

de sua

capitosa pureza.

Não

Tem desta.

sei

bem

se é

mulher se

é criança. »

a estatura daquela e a expressão

Mas não

.Mais tenro

que

vale ela,

a

pena rebusca

para divino gozo,

arrebatou a águia a Ganimedes.

Não

me lembro bem cm quem desfrutei aquela linha substantiva, tão sensual.

Em

An-

j

os OLHOS DESLUMBRADOS

gela'

não, que era

uma

l3

trágica.

Tam-

pouco em Mina que caía no espasmo angélico dum querubim adormecido. Elsa range os dentes e soluça. Ah Agora me I

recorda, é o

rictits

de Marta,

la petite

Tu m'é-

alsacienne au cinema. Dizia-me

branles

comme à un

]prunier !

Eu

aba-

nava-te, tu sacudias-me até as raízes

imprescrutáveis da minha vida, enterra-

das pelas campas na poeira de meus avós, os mais remotos.

A

feição mulheril desta, imóvel, é a

de Marta. Transportada, deve executar aquela

mesma pantomima do

deleite

onde nascia e morria todo o geito harmonioso de formação e consumpção. Marta, porem, dava-se por natureza^ sem medida esta diz-mo sua boca ;

voluntária



— deve pôr uma louca orde-

nação no amar.

Seu grau de feminilidade, quase tão vago como sua identidade, escapa-me. O vestido, curto por moda, esconde-me a sazão em que vai levada. Traja sim-

FILHAS DE BABILÓNIA

14

pies,

mas com graça;

a mantinilha

lilás,

rolada na cabeça à maneira de turbante, assenta- lhe sobre o rosto, mescla de cereja,

vinho velho e

não

será,

para não

dum

leite,

a matar. Será,

uma virgem sem ter

história,

história,

ou

nos horizontes

honesto burguês, comerciante, bu-

rocrata, professor,

espinhas da testa

marido a catar as nos primeiros meses

de noivado.

Também

não

identifico o papá.

Não

denota luxo, mas é avisado o corte do vestuário. Pedra

na gravata, botões de

Traz pêra à passa-piolho, bem cuidada, mas sem o quid mefistofélico que dá este acessório,

oiro falam de muita gente.

e

dai

inútil

como

o

queixo varrido.

Olhar lento a mover-se, abdómen escorreito,

mãos muito brancas

e assea-

mas um asseado quase de manicuro ou de quem dispõe de tempo para das,

se

enlevar

em

seu amanho, nervosas

mas sem o empalme que dá o volante, seguras mas sem a presa que dá o ouro,

os OLHOS DESLUMBRADOS

não

está

banqueiro

ali

nem senhor de cipe.

roça.

l5

nem capitalista, Menos um prín-

Aquelas muitas malas falam de

mediocracia. Ela, sim, podia ser

uma

princesinha, se não traísse já no olhar a

mundo de quem

sensibilidade pelo

se

sente baldeada nele.

Agora reparo,

a fisionomia

ressuma bondade,

um como

do papá

doce lua-

ceiro de convalescente. Palpita-me

um homem

de profissão

liberal,

ali

incom-

preendido ou incompetente^ que não

soube vencer. Esta idea irrita-me,

fi-

ca-me a martelar no cérebro, longo

es-

uma categoria idónea, por simpatia com ela, mas não a

paço. Procuro-lhe alta,

acho.

Nem

a de gramático lhe vai.

Anoiteceu; a carruagem fica isolada

do comboio

e

do mundo. Consigo

fur-

tar-me à idea mortificante daquele anonimato.

Entrego-me a

meu pensamento presa em que a banha.

é

ela

e,

sujeito,

como água de

re-

divina adolescente se

;

II

Muitas estações, muitas léguas do-

baram

nada

já e

me roubou

a ela.

ma

roubou ou nada Quatro pessoas insta-

mas breve

as

anulei, lhes risquei toda a existência

do

laram-se na carruagem,

livro

dos vivos e dos mortos.

Em

face,

duas velhas donas carregadas de anos

uma mulheraça loira, rente a mim que só, por

à minha ilharga, nutrida, tão

pude aperceber-me de seu semblante farfalhudo. Mais ao largo um cura torsão,

scismava

.

.

.

scismava

com o

ementas de suas ovelhas, ou

bispo, as

um

doce

pecado de joven confessada. Pela aparência de muito equilíbrio,

nem dele.

nem

ascética

comodamente abstraí Também, sem esforço, lancei fora fragúeira,

os OLHOS DESLUMBRADOS

do entendimento às açafatas tentava

uma

I7

Os-

tristes.

dente de oiro

e,

luzente,

sua poalha era menos viva que a

chama

piedosa que se lhe desprendia da fronte,

meio dos bandós esfipados como asa de corvacha já caduca. Uma e outra pareciam-se com as imagens xilografadas, a

em

velho papel; que, nas galerias, se

mostram esmorescentes por vidro empoeirado. Viajo só

com

E

bamboando sobre las forçantes.

passei.

ela, e esta

articulada de aço, é

dum

trás

uma

carruagem,

discreta liteira

as sogas de duas

Seus lábios de tanto

mu-

me

mostram os agravos das camélias sequiosas. Eu vou quebrado dos rins, mas meus espíritos rejuvenescem a cada

beijar

mirada que lhe lanço.

o coruto branco

Ao

longe, fraldeja

dum campanário

Vamos em chouto medido

rural.

pela estrada

soalheira e, andando, andando,

campo-

neses soltam a salvação, desbarretando

a figura velazquenha.

É domingo, o prior

rezou a missa, casou uns noivos, bate

FILHAS DE BABILÓNIA

l8

no largo

um

fandango, ao

Do

deiro infernal.

som do pan-

balcão da pousada,

rescendente de cravos, debruçamo-nos

ambos par e

o

sol

a par.

estuam, a

As cores, as danças alma ibérica, feita de

sangue e de amor^ sobe até nossas almas

bebemos vinhos rubros, e nossas bocas dão mil beijos e nossos braços mil abrae

ços.

A

eternidade suspendeu-se

em

nós.

Assim a transporto comigo, na bulha dum comboio aceso, repleto de gente, batendo o railhe com furor. Apitos, esta-

uma estação. Lá entra um homem em sapatos que rugem, mala de côr sangrenta em riste. Não é dos que hesitam às portas, mas vai direito ao lugar com a segurança

los de aço, luzes, vultos.

de

quem sabe que

de reserva por

um

é

.

.

o seu, ah lhe está

preestabelecimento

concatenado, vindo do fundo dos tempos. e

Abanca

palpando a

antecipação

e,

desabotoando o casaco

carteira, fica a olhar

as

damas

sem

sorumbáticas.

Aquele sobretudo, a grossas leivas ver-

os OLHOS DESLUMBRADOS

I9

des e vermelhas, cor de carne podre, irrita-me; sua cachaceira sanguínea en-

furece-me.

Todo

assanha a minha

êle

mesmo não posso desfazer-me dele. E entre mim e ela atranca-se um corpo, uma afronta, este Por

antipatia.

isso

ou de

inexplicável de volume, de cor

som que

faz arrancar

um

bezerro e ga-

nir os perus.

Não

um

é

peninsular, vê-se-lhe na

pelagem do queixo, ruiva erva de verão sobre

um

rochedo. Sinto

ganas de lhe preguntar quem

que

vem

perturbar

como

e rala

é,

e

para

meu embevecimento

de amor. Lá compõe o boné de quadradinhos e mostra o ócciput calvo dentro

um

de

aro de mechas brancas

como

imagem geométrica de Saturno, o esbandulhado. Farejo nele

um

um

a

astro

inglês,

americano, destes que apodrecem

de ricos a explorar as terras pobres do sul.

Quero que o

Quedo reage

em

seja e basta.

a examiná-lo e

meu

cérebro

simultaneidade, a perder de

FILHAS DE BABILÓNIA

20

vista.

A

verdade é que eu, se não

mo, admiro

esti-

do progresso, eu o pródigo voluptuário que desbaratei a legitima a correr mundo, e bailarinas, semimundadas amantes cavaleiros

estes



nas, mulheres respeitadas

— podia reunir

um bordel copioso. Perante como que

eles, sente-se

a potência avassaladora

duma

sumamente capitoso vê-la ir-se desdobrando. A humanidade é a sua lousa de operações e nada fórmula algébrica

e é

mais delirante que a o

mundo

fazer girar o

presentantes de é à bruta

mão

uma

que calcam

crispada sobre

mundo. Mas,

re-

civilização pirata,

em

sua madracice

as raças da latinidade; ou, emissários

dos países novos, teem a contundente grosseria e grotesco dos recêm-vindos

á civilização. Sob suas botas fleugmáticas calcam usos, costumes, tendências

despertas ou adormecidas, abastardando

o carácter, coisa que vale a e

luz eléctrica

o bifeteque a escorrer sangue. Por isso

os detesto.

os OLHOS DESLUMBRADOS

21

Eu, criatura amoral, preso a tradição

como um brâmane. histéricas

dida

por

numa

uma

Sofro de paixões

página de arte per-

ruína ou

num

cunhal de

ci-

dade morta. Deleitam-me os velhíssimos

povoados de ninhos e os vasos de mangericão medrando sobre o encosto de uma varanda. E nunca faltei com o salve-o Deus ao lavrador que, conduzindo a rabiça do celta, pragueja atrás dos bois. Tudo isto porque beirais vermelhos

venero nestas

frioleiras a

terminável dos mortos que



vai o

procissão in-

me

geraram.

homem meditando, desfiando

talvez algarismos.

A

luz,

porem, de mi-

nhas considerações, sua personalidade de mero produto quantitativo esvai-se, e

eu torno á suave companheira pela posse

da qual daria todas as minas, todo o aço, todas as montanhas de dólares das

Amé-

meus

avós.

ricas, se

Mais

não a

um

civilização de

arranco vindicativo da

nidade e acabo de riscar de rito

meu

lati-

espí-

a aventesma. Concentro-me todo

!

:

FILHAS DE BABIlÓNIA

22

nela.



minha espádua,

aqui, à

dama

a

um

pouco minha entrega. Nas oscilações da margorda, sonolenta, desvirtua

cha, a barriga de sua perna toca ao de

minha perna. São

leve

deleitáveis, e

por

macias,

titilaçóes

aí se

escoa

da minha voluptuosidade.

um

Um

sopro

quase

nada que não consigo vedar, para me

Mas

dar a hipóstase absoluta

com

forço a representação

sentando-a a

meu

lado,

não

e,

ao corpo encosta. E ondas

é à outra, é

meu corpo se de deleite sobem em meus dela que

após outras, cálidas rebro c

um

ela.

umas meu cé-

nervos,

e suaves, e

receptor embriagado.

o comboio penetra no torvelim

Mas duma

estação, fogos, choques bárbaros, árvo-

O

pre-

uma

vez,

res de ferro, discos coloridos.

goeiro clama

— Salamanca Salamanca!.

um

.

.

Comprei

aí,

Cristo dulcíssimo de Morales. Elsa

pendurou-o à cabeceira de nossa cama, propiciatório.

III

o

comboio entorpecera. Via decor-

rer os minutos, longos

como

dias de ca-

labouço, cair do relógio ventrudo da

gare

com

lentidão peganhosa

a

das

gotas meladas.

No tes,

cais,

em

contra dos vultos erran-

só a luz eléctrica dava

uma

impres-

são de presença, da estranha personalidade objectiva. Parece que exercia

ali

animoso de preenchimento. Contra o muro, caras de mulheres serranas vendiam espasmo; e, pelo asfalto o papel

espelhento das chuvas,

um

cura

desli-

sava mais manso que palmípede preto

num

charco. Outros viageiros.

eu mal

me

.

.

mas

apercebia de seus vultos gra-

FILHAS DE BABILÓNIA

24

da cantina, era como

ves. Sons, vozes

do cabo do mundo. Não se sentia o pulsar da locomotiva, o nosso pulsar difuso de viajantes. Era a imponse partissem

derabilidade.

A

sineta tangeu afinal, e entrei

assonância

com

A

«o de fora».

em

fonda

começou a revessar seu mundo, os malteser> de pau e manta que adoram o Menino nos quadros de Kibera, os marchantes de borla no sombrero^ os carabineiros

de filhos à

trela.

Uma

chica

passou a cantarolar El alma de Dios.

Como lesma teiro

sobre

negro

uma

abóbora, o pon-

avançava no mostrador

branco.


in-

frio,

está

coiT

partir.

.

.

sede que mate?

Graciosamente,

meus bons

ofícios,

de bebida

e,

;

fazendo

acreditar

propus-me ir à cata sem pompa em minha di-

:

os OLHOS DESLUMBRADOS

ligência,

pude guiar

deja de águas.

Não

25

até ela provida bansei

o que murmurou,

então, sua voz enleada; só lhe fixei o timbre, a música

com que

desejaria sair

mundo, para eterno gozo da minha alma. Era a voz pura de

os umbrais deste

uma

criança, destas

que,

em

sonhos,

ouço a negaciar minha mocidade moribunda. Sou assim monstruoso, desperto trago

um

arraial

comigo, dormindo, es-

cuto e vejo os paraízos que se

me vão

fechando. Já a sineta deu o segundo sinal cais,

a

e,

turba multa ordenava-se.

no

Os

sacos de chita tinham subido os estri-

bos sujos das terceiras;

um

harmónio

chorava. Menino de coro, seminarista,

um

mocinho dirigiu-se muito desenganado ao cura El senor obispo no viene. O cura abriu os braços na mesura larga do oratefratres e lento, com a sua-

— —

vidade oleosa da gente eclesiástica, desapareceu.

.

FIÍHAS DE BABILÓNIA

20

Clareara novamente a gare. Perante as cabeças broncas de «adoração», as

serranas erguiam

O

um

olhar de lágrimas.

chefe dera dois passos á frente; lá

longe, na noite, a locomotiva arquejava,

cuspia vapor e chama, e a hulha exalava seu odor acre de vertigem.

Um matulão

do correio no mo-

atirou a última bolsa

;

vimento inclinado de alcançar,

uma

se-

nhora, seguida de dois bebés, acorreu.

Terceiro repique

Virgen

/

e

:

adios ! id

com

la

o comboio, estirando os ten-

dões, desamarrou. Recuos elásticos das

vigas de ferro e dos letreiros, saltos ás-

peros de barras, a confusão, os fogos todos da cidade cortejando-nos.

Rolamos; eu

A dama

íito-a, ela fita-me.

retardatária

.

anda em busca

de lugar. Vejo, pelo corredor fora, sua

sondando os compartimentos, temperando seu rasgo dum sorriso amável. Atrás, os meninos bôbela cabeça loura

cas-abertas e esgrouviados.

Ainda

ali

vão dois lugares devolutos,

:

os OLHOS DESLUMBRADOS

mas Deus

a leve para longe. Gosto de gosto, muito

crianças,

27

embora sejam

me levem a desesperar de mim, à data em que sua puberdade em flor coincidirá com a minha meninas

e louçãs e

sazão de envelhecer. Neste momento,

porem, detestaria essas crianças alvas, pernaltas, fugidas

dum

retábulo

real

de Velasquez, se poisassem entre nós.

Quero

ir



com

ela,

sem anjos que me

aborreçam.

Mas



(4

a bela

mamã

passa adiante.

Temos, então, o prazer de

com um

patrício?

viajar

— preguntou-me

à

queima-roupa o papá, atirando a gazeta que lia. Declinei uns breves dados sobre mi-

nha caderneta

civil e ele

tornou

— (jMas vive em Portugal? — Uns meses do ano, pela quadra lá

da caça e do mosto. passo-o Paris,

calha.

O

resto

do tempo

ao acaso da inspiração,

em

Berlim,

em

em Veneza, onde

:

FILHAS DE BABILÓNIA

28

O

viajante

cunspecção

contemplou-me com

cir-

e proferiu

— Nós somos dos arredores do Porto

e

vamos

a

Montmorency,

terra de

minha

mulher. Estabelece-se,

intimidade muito tificial,



a

certa

fácil,

altura,

posto que ar-

A

entre passageiros.

dir-se-ia

— provoca a

uma

vertigem

descongelação

homem homem ci-

de preconceitos e reservas que o civilizado nutre para

com

o

tumbas volantes, o trato social traz um cunho imperioso de instintiva solidariedade. Sob a alçada desta lei, se achava de certo o papá, quando, por veredas quase rectilíneas, quebrou o anonimato comigo. Era arquitecto, e

vilizado. Nestas

um

alardeou

papel armoriado dos Ri-

badalia ventilando o trasteio

de estar

em

sua vivenda de verão.

ignorava-lhe a existência lhe vira

o

duma

e,

sala

Eu

tampouco,

nome nas gazetas, o que é o dentro duma profissão liberal

cúmulo a na nossa terra de

soalheiro.

os OLHOS DESLUMBRADOS

29

Arquitecto ignorado ou ignorante,

ti-

uma

nha

ali

ela,

náo podia abstrair de todo

obra prima

e,

admirando a dele.

Mas bem me quisera parecer, é um homem bom ou, melhor, um bom homem. Tem as bondades éticas do homem, mas não dum homem. Vou jurá-lo

:

é destes

sombra é

;

e,

que passam sem deixar

sendo desses,

e arquitecto,

quase paradoxal.

Divagamos, eu

sei lá

por onde, da

Catedral de Colónia à Ponte sobre o Tejo.

em

Eu

falava para ela

beleza, era

dade.

um

Entretanto

subsidiário

em

arte e

arauto da feminili-

estudava-o,

como

da psicologia que sobre a

cabeça loura de sua

Em

e,

filha ia edificando.

todo o tempo só

uma

vez lhe vi

máscara de bondade que me incutia uma dor absurda. Foi quando desafivelar a

puxou da carta dos Ribadalta. A mobilidade do rosto parou-lhe no rictus dum simples. Mostrou os dentes, sem riso; as gorovinhas da face repuxaram-lhe os

FILHAS DE BABILÓNIA

3o

lábios; dilataram-se-lhe as narinas.

uma pobre alma

Era

escâncaras, des-

às

vanecida.

Em tura.

hora normal, detestaria esta cria-

Nunca

nem de

fui

casas^

estes contactos.

julgo-os pelo

pática e íico

sindico

nem

de falências,

de ho.nens.

Como

Temo

sou supersticioso,

fenómeno da atracção sima duvidar de mim. A minha

piedade, aqui, é de fariseu.

Falando-me, não tinha a noção do categórico que existe no monossílabo;

contestava-me transigindo; negava-me

por

uma

longa curva de afirmativas;

o sim e o não eram idiotismos na sua

E com

linguagem.

«todavia» idea

dos

acometer.

o seu «é verdade»

desarmava-me. Dava-me a Horácios que fugiam para

Mas

aqui por frouxidão de

temperamento e não delicadeza ou subtileza de animo.

Oh mas !

ela era bela

de ver, embria-

gante de desejar. Por seus lábios e sua posse, durante minutos, marcharia firme

.

:

:

os OLHOS DESLUMBRADOS

:

3l

ao cadafalso; deixassem-ma abraçar e

um

deixassem-ma mandassem-me morrer. ^iComo

abraçaria

gozar

e

leproso;

não havia de perdoar ao pobre arquitecto de tanto divino?

E

entregiiei-me

com lisura, com verdade, que eu, quando me entrego, sou mais inocente que um cordeirinho de mama.

todo

Trocamos os cartões e êle, lendo o meu, num esforço remissivo de memória

declarou

— <jEste tranho,

nome não me

de todo es-

é

mas donde?

Genoveva, para quem o bilhete

se

encontrava no raio visual, exclamou



j

Oh

papá, não

te

lembras da peça

a que nos levou Joaninha? deste senhor.

Era o

grito

Mas

era

.

de surpresa

duma

criança

contente.

Ele quedou

um momento

silencioso a

buscar equilíbrio para aquela circunstância e disse, batendo na testa

— jA

Ponte do

Fumo,

.

.

agora

me

.

FILHAS DE BABILÓNIA

32

lembro! Senhor, admiro-o. Tenho muita

em

honra

conhecê-lo.

com

Ela sorria-me;

—O

teatro é

ate,

um tombo

nadam,

que

nadar.

.

arte fácil,

Quatro pessoas,

senhora.

que as

uma

ênfase, proferi:

.

outras

minha

uma corda

ao mar; umas

não sabem

que

Aí está o teatro de tese.

.

o meu.

Genoveva era minha cia a

dos,

leitora;

conhe-

meia dúzia de trabalhos publica-

romances sem viscondessas, contos

serq padres-curas. Ignorava o livro mais

O

Pavão é o rei dos animais. Rasgadamente fui à mala e ofereci-lhe o exemplar que levava recente, e mais inofensivo

:

para Elsa.

Depois o silêncio poisou entre nós,

remoendo eu

e ela

de longe.

O

vorava o

railhe.

nosso conhecimento

comboio devorava.

.

.

de-

Quebrantados, esten-

demo-nos sobre as banquetas. O semblante afável de Genoveva dizia-me: «Ora quem o senhor é. Um homem ce-

.

ÒS OLHOS DESLUMBRADOS

lebrado.

jNão

Mas tem o

ar melancólico

33

.

.

terá sido feliz?».

Vaidoso

e infatuado

como

lord By-

ron, tinha a veleidade de descobrir isto e considerei:

amar com as figuras que desdobrei de minha alma monstruosa, onde irás tu? Os nos«Almazinha que

fiz

vibrar e

sos destinos teem já muitos pontos de

intersecção; incorrigível



quem sabe?! Velho fauno

— dizia-me

a voz da cons-

no pendor quando ela começa a subir a colina da vida. Nem ela te alcança, nem tu a podes esperar. Só uma Poníe do fumo, em que escurecesse ciência

tu vais

;

vossa razão e vosso passo, vos poderia levar

um

ao outro!»

:

IV

Luminosas, as pupilas de Genoveva fitavam-me.

E não me pude

assestar sobre elas

um

tolher de

olhar terno, olhar

de genuflexão perante tão subida mercê, e sal

de agradecimento á beleza univer-

que

semeia flores na vereda das

feras, e faces

hostil

das Espanhas. E, novamente doi-

do-varrido, o o

j

pulquérrimas no trajecto

meu

espírito interrogou

Qual será a rota desta almazinha?

jíQual será, entre os mais felizes

dos

homens, o primeiro a beber naqueles lábios tão amáveis?» Oh! não seria eu, homem amolentado a

quem os anos começavam a pesar

desejar e a possuir, para

trinta e cinco

os OLHOS DESLUMBRADOS

como

trinta e cinco robles

35

vindos de

No meu fogo para seduzir uma mais nada. Mas em-

Noé. jNão, não podia ser eu! peito havia ainda

viúva de major,

bora, ao sentir aqueles olhos límpidos

uma ternura nova planava acima de meu pensamento debruçados sobre mim,

crapuloso

como

sol

sobre água choca.

O trem esfalfava-se na campina coberta

de breu,

e,

emquanto o

à rédea solta, o

espírito corria

meu ouvido começou

a

no rumor bárbaro do comboio uma melodia larga e majestosa. Nela distinguir

se aliava ao eco dos espaços, batidos

pelos ventos, o esbravejar das forças

reprimidas

como

corcéis de guerra.

E

era mais soberana que a voz do mar,

em que mal

tremeluz

uma

nota à

glori-

homem. Depois, variações sinfónicas, duma opulência vagneriana, desenharam-se a meus ouvidos. Coros

ficação do

riais,

orquestrações de alta dinâmica, as

gamas todas do aço cantando inspiradamente. ^ Porque não há artista que tra-

36

FILHAS DE BABILÓNIA

duza as melodias estranhas

em

boio projectado

dum com-

bólide, aquele leit-

motiv tão dominador da corrida, todo

o batuque ciclópico do monstro?

Genoveva

!

Chama-se Genoveva

criança loura, que diante de ter a

compostura de mulher

bilhão das cousas.

como

mim

afeita

esta

quere

ao

tur-

O nome é perfumado

as amendoeiras

em flor. ^Que

ida-

As espáduas são de mulher, os olhos, porém, conservam toda a mobilidade inestilizável das crianças. São quentes, mas não seguros. Não me fitam com demora e morrem pela curiosidade de se banhar nos meus. Seduz-me diabólicamente, porquê ? de terá

?

Inegavelmente porque estou gasto e ela

é

um

depravado de inverno. rio

do do

botão de rosa e ela é pura.

O

pai,

porque sou

Eu sou um

queixo dela

um

;

é,

abrir

ao contrá-

queixo de vontade.

cabelos, enrolados a Greuze,

Os

devem-na

cobrir até os pés; todavia, na raiz da fronte

uma

leve

penugem

infantil aloira

os OLHOS DESLUMBRADOS

ainda.

Que

idade tem?

^i

3/

doze, quinze,

dezassete anos? Impossível atinar; são

em que é táo temerário assegurar a criança como entrever a mulher. E uma criança nos assim as madonas de Mainardi

anos, mulher, parece-me bem, no desejo

de ser mulher.

^E que

é a vida

senão

vontade ?

— Que ardor — meu anjo — Debaixo de neve — respondia — Ver-se-iam os cameu anjo !

dizia

cínico.

lhe

liai.



fora os

em minha cabeça, se não artifícios com que os encobre a

toleima.

Ah!

belos brancos

i



não posso

ter

esperança;

não posso, não quero, não devo

me

!

iludir-

Sou curioso de tudo o que tem

curiosidade, lá isso sou

;

gostaria de per-

ceber, tactear, gozar o seu interior,

como um

maquinismo

relojoeiro

;

mais que

Há um fundo de equilíbrio em mim, uma voz sensata que se poria a isso não.

berrar, se fosse asno

:

és

um

a ladrar á madrugada.

'—Caiisas-rne hilaridade

triste

lobo

— tornava a

!

!

FILHAS DE BABILÓNIA

38

metade

eii

— nesse

Como

sempre,

do meu

satânica

desespero tão eloquente.

sátiro ladino, afias as unhas,

j

Possas tu

cair sobre a franganinha

— Não!

Não! Bem sei quanto um propósito moral é pouco em par com o ou sentimento desenfreado. Bem que o instinto dispõe duma força

vício sei

uma folha no oceano interior que o homem traz consigo. Concentrando todo o meu diabólico irreprimível e a razão é

querer, talvez orientasse tasse

— até

mim

— ou desorien-

esta criança, deslum-

brada no limiar da vida. Mas não quero, porque d'ora-avante desejo moer até o derradeiro minuto

em

aborrecimento, e

quem diz aborrecimento diz paz, os dias que me restam de vida. Que esforço de imaginação Quando a levas ao tálamo, glorioso



i

(i

bandalho? Quero encomendar questra

uma

or-

rial.

— Maldito sejas! — Genoveva

está-te nas garras; está

9

;

.

os OLHOS DESLUMBRADOS

nas garras do

moço

3

velho que não larga

a presa, não perdoa,

j

Repara como o

olhar dela se espenuja!

^i

Imaginas tu

que seus sentidos ainda não penetraram a traça

em que a vais emaranhando? Ela

adivinha-te e rende-se.

observa-a.

A

Está rendida

.

locomotiva silvou; os semáforos

duma gare imensa obscuridade

do

bielas amolecia.

fustigaram a semi-

vagão.

O

jogo

das

Ergui-me da banqueta

em que as minhas duas personalidades, uma correcta e sentimental de cidadão comum, outra

luxuriosa e cínica de in-

disputavam ao ritmo do aço rolando no aço. Genoveva sor-

corrigivel doido,

ri a-me.

;

Por muito tempo, ao compasso de

cem rodas saltando de

carril

em

carril,

meu pensamento tresvariou. Pesaroso, umas vezes, como jogador que deixou sorver sua fazenda, despejado e alvar,

como grilheta para o há apelação nem agravo. outras,

«Genoveva,

— dizia

êle

qual não

— quando na

cómoda se baralharem com as cartas de amor hediondas receitas de botica, amará e será amada. gaveta de minha

Talvez seja noiva albergue

na

c

e

em

seu cérebro se

um lupanar.

assim

jA natureza humaMas não será menos vir-

!

gem, nem sua boca menos cândida.

arminho só

é

O

imaculado na roupagem

os OLHOS DESLUMBRADOS

em

4!

sua vida animal não é diferente de

qualquer imundo varrão.

Em deleitação

morosa, dormirá Genoveva com seus cavaleiros de baile e

com

que tem fama de devasso

aquele e,

um

moço

dia,

ao

cortar o ângulo de seu piso, lhe lançou

tão turva mirada. Dormirá, porventura,

com o

com o jovem prior de que ouve missa, e com quem menos se deve deitar é com seu noivo cocheiro da casa,

ou seu marido. O silêncio e a noite levarão à sua cama um cortejo de sátiros. E o seii pensamento acolhê-los há porque o pensamento, a noite, e o silêncio ;

são os três conjurados contra a castidade.

Se cruzasse comigo, quando os dedos reboludos das massagistas ainda

tamborilavam na

pele, talvez

comigo. Talvez dormíssemos dade, traindo ela

me não

dormisse

em

reali-

um marido, que poderá

ser jogador e frequentar as cocottes, e

rendendo eu

tributo,

com meu coração

inconstante, à si^a formusura liberal a

FILHAS DE BABILÓNIA

42

dum coração inconstante é mais agradável ao amor que o dum coração fiel. A variedade em que se dar-se; O tributo

move

a natureza só permite à nossa sin-

uma homenagem

ceridade

Trairíamos o burguês

e

passageira.

eu

seria,

o

que está na dinâmica do meu temperamento, impetuoso e dominador. Nunca

amor mavioso como os rondós de Gluck, nem Genoveva iria buscar

pratiquei o

do

este fora

leito legal.

Esse

tal

que não

passa de gatinho doméstico repugna-me.

Garra recolhida, blandiciosa, no galanteio, garra desembainhada, ardida,

no empalme foram o segredo de meus sucessos.

Assim

seria de verdade, se eu

como

retroceder

romanzas cel

!

Mil e

e são o

:

eh

um

!

pudesse

os dons paladinos das

torna atrás, ó

meu

cor-

cavalos arrastam as vidas

tempo. Deixá-lo.

.

.

alguns anos

mais, quando eu recorrer às perrucas,

sua cinta maternal será

um

autêntico

saco pele de crocodilo, nanja essa es-

os OLHOS DESLUMBRADOS

48

galgada ânfora que fará tontas as mãos

que a toquem,

e

secará de

sede

os

E com este blasda vida, me recon-

lábios

que a beijem.

femar

das

leis

forto.

Mas



está ela

porfiadamente,

que

com

me

fita,

resolução.

me

fita

O

seu

— diz-mo a sciência dos pressentimentos — repreende-me; são mil setas olhar

mansas, suavíssimas, contra o scéptico

em mim e vinha rabugento e cabisbaixo. Bem as sinto e, ó minha vir-

que mora

gem

prometo matar esse scéptico e crer em ti e na redenção dos corpos do tempo que passa. E, perante o teu olhar magoado, ajoelho em acto de adoração plena, adoração retirada de tudo o que amei e venha a amar por louca, eu

tantas quantas faculdades afectivas, do

berço à cova, surgir.

Eu

te

em mim surgiram e hão-de

prometo, também, que este

olhar que te torno, se prolongará até

o último lampejo de meus olhos, guar-

dando-te

assim

doce,

assim

jovem,

:

FILHAS DE BABILÓNIA

44

assim amável, qual hoje

membros

E

meu

amo? .

teus

.

O

O

Sei lá...

papoula im-

amor chega

— Se me amai*

amor apodera-se

E

imaginação.

Hoid-

instinto voluptuoso.

em mim pela sensualidade. Talvez.

belle

<-da

ficarás, assim, a

perecedora de

Se a

De

lestos e tua pele rósea varro

para sempre a que foi mière».

te vejo.

destas

delas pela

possibilidades

construo pensamentos, confusos

como

mais loucos que

Roma

florestas de noite,

a arder, cheios de sons, de cores,

com

borbotões efémeros de desespero e de confiança. E,

tal

um mar

onduloso, em-

balam-me, vão-me embalando, longa, perdidamente.

.

.

e, entre,

perpassa muito

cem

escoteira a música das

rodas. Passa

como que à margem do meu cérebro escoteira, mas bem acesa de acento triunDepois, o meu cérebro começa a fal. trabalhar

automática

«Este comboio tem

e

uma

vadiamente estrutura

ma-

ravilhosa, cabeça, pulmões, nervos, co-

luna dorsal,

membros

ágeis».

Emquanto

os OLHOS DESLUMBRADOS

45

houver jumentos ^e moleiros claudican-

do pelos caminhos, há-de-se-lhe admi-

emquanto

não iludir soberanamente a resistência da matéria há-de se admirar seu fôlego girar a potência

;

Seu

gantesco.

se

rompante

passo

mesmo majestade. Agora lá por uma recta inquebrantável dia.

tem

vai

êle

e fugi-

Sinto-o na trepidação toda longi-

tudinal, de vante à ré.

mem,

e o

Os

freios fre-

aço rescanha no aço. E'

tufão vinculado a

um

canal.

A

um

planície

deve estremecer alucinada sob o fragor da centopeia ardente. Deve estre-

mecer tudo o que há de estática na natureza e no homem do monstro novo que engole as distâncias com impetuosa ira.

O

desfile

romano, que

se descobria

ao

cadenciado das legiões triunfan-

tes, soltaria

primores

o seu

duma

io.

E' certo, reúne os

bela máquina, subtileza,

energia, rigor e isso que choca as obras primas

do aço

em

todas

e nas finas es-

tampas do reino animal, brusqueria.

FILHAS DE BABILÓNIA

46

Falta-lhe, porém,

um

quase nada ou

um

quase tudo-— alma. Neste particular é quase táo inferior

como um

pião.

O

man-

pião vai onde o

da a baraça, o comboio o seu piso terável.

inal-

Esta rectibilidade é o sinal da

sua bruteza.

Tem um

só trilhar e já o

protozoário tinha a faculdade de direcção.

E

forte e é estúpido

o comboio.

O

avião, na sua fase ainda embrionária,

dispõe

uma

duma

atitude

sensibilidade

ao arbítrio que

o aviador é o cérebro

um

;

;

um

e

receptiva, é a

alma;

um

fazem

simbiose coloca-se, na pro-

esta

gressão da sciência, perto da natureza.

E um

pássaro. Daí o ser o avião

uma máquina

inteligente, e o

comboio

parar na escala dos primitivos, rígido

e

como o

interminável diplodocus que

beatamente se deixou morrer

Tudo

em

sua

avançando ou recuando. Sobre o aeroplano tem o gigantaria.

comboio, por

vai assim

privilégio,

o desfrute ra-

os OLHOS DESLUMBRADOS

47

cional dos panoramas, da terra e dos outros, e o aborrecimento que é o desfrute de

boio

nós mesmos. Já sobre o com-

tinha

a

eternidade

eternidade,

da

o privilégio

liteira

num

bastante,

precurso destes, a poder amar, noivar, esposar esta menina, aborrecê-la.

.

.

en-

viuvar.

Tempos hão-de vir em que, d'asa hectométrica, com ron-ron mais atroante

que o Niágara, veículos aéreos, enor-

mes como Potsdamer-Bahnhofy salvarão as latitudes,

de continente para con-

Mais adiante ainda, viajarão os corpos no céu como hoje as ando-

tinente.

rinhas,

quero, vilha,

e

as almas no Paraíso.

Dum

dum vou-me,

pular-se há a Se-

ao

Tombuctú.

cómodo

e

Cairo,

a

Será

não haverá mais propriedade

rústica e urbana, indefensável a estes ióes circulatórios.

ceria

uma

janela,

Eu, então, só conhea janela

do quarto

onde dormisse Genoveva.

Entramos num

túnel

;

parece que há

FILHAS DE BABILÓNIA

48

uma

exaltação de velocidade

rame trepida

;

;

o madei-

a bulha é horrísona, ras-

pante, compacta, sincopada de estrépitos

bárbaros, detonantes, e

duma

grita

oitava. Interrogo a imaginativa

:

é

em

um

gigante perna de pau, perseguido de mil

demónios a uivar, que corre, que tamborila na calçada sua fuga célere, unijâmbica. Rolamos numa nebulosa. Genoveva, no tom ronde-bosse do fumo, semelha-sc à Minerva dum dracma antigo.

VI

Genoveva dorme, mas eu não posso dormir. A isso se opóe o meu estado de excitação e o incomensurável respeito

que tenho por mim. e

O

sono

é

um ladrão,

eu não quero ser esbulhado do que

granjeei por astúcia,

próprio e dos outros.

engenho

O

homem

estudo

que granjeei

este alinho imperturbável e

complexa de

e

é

ordenação

que se sente

e

man-

têm superior, sobretudo, esta máscara toda latina, levemente irónica para ofuscar,

um

quase nada sorridente para

sempre espiritual, e onde as rugas nada teem que ver com o tempo, atrair,

mas com a benignidade

interior de

que

são as iniludíveis vibrações. Será a ta4

FILHAS DE BABILÓNIA

5o

em que

se concerta a

falência, talvez, por isso

mesmo mais

boleta

duma

casa

mè ocupo dela. Onde o sono me

levaria, sei eu:

em

detestado moço-velho que escondo

mim, amarrado ao pelourinho de e cinco anos, cheios e e

ao

trinta

pesadões insónias ;

noitadas escritas na face; o topete,

rompendo o escantoado da

fronte, pe-

nacho de gavião velho. Talvez o

lábio,

em sua concom uma lesma en-

escorregando, se parecesse, gestão de luxúria,

goiada; talvez da boca se escapulisse o

hausto roufenho dos realejos que teem

um

século de peditório.

Senão tudo

isto,

mais temível que ser surpreendido a far

um

bi-

de assoar, pelo menos

lenço

deixaria de ser o que virtualmente sou.

mesmo, consoante a madre

Seria eu

natureza, e mais exacto, mais idóneo,

sou o que por palavra

por

me

fiz,

numa

não sou. Ai cheguei metamorfose infinitamente

o que

uma

subtil,

artificio

quase

subconsciente, por

isso

I

*:

os OLHOS DESLUMBRADOS

mesmo

em

incerta

teoria.

Que

5

é

I

mo-

que tenho

de

que Genoveva, ao surpreender-me

em

ral,

diz-mo

a intuição

meu envelope

próprio, sentiria

a hedionda, a abjecta

se

pena de quem

é

Por isso me resguardo. houvesse alguma vez de dormir com

para quem não

E

pena,

é.

esta poldra deliciosa, antes

que meus

olhos se fechassem, havia de assegurar-

-me primeiro com de seu sono

com

bem fatigada Ou teria uma torre segredo para me en-

fatigá-la

solto.

fechaduras de

cerrar e dormir o sono dos justos, j Esses casais de burgueses que e

acordam no mesmo

mo eu lhes invejo Não posso

e

xá-los voltejar

leito

desejo.

farândola.

não quero dormir. Dei-

bem

Em

Que

de ferro, co-

a ingénua animalidade!

vivos e aliciadores

sobre a divina cabeça os

meu

amam, dormem

silfos

alados do

sono, abrandariam a

bailem, que cabriolem,

que quebrem e se requebrem até a embriagar, até a enlouquecer, até que ar-

ranquem à roda os génios voluptuosos

FILHAS DE BABILÓNIA

52

que, tímidos ou dormentes, há no seio dela.

Ela dorme e é a sempre-mesma. Tal-

vez

um

Seria

pouco mais anjo na imobilidade.

uma

procurar reversos.

heresia

Nada de novo lhe encontram meus olhos, mas não meu sentimento mais criador que o Padre. Passo a passo, cubro horas loucas

e



des-

horas de remansado

carinho, acolhidas ternas e adeus sus-

do

pirosos, enlevos

espírito e arrebata-

mentos dos corpos, tudo o que encerra

um

tronco vibrátil e

E quedo-me

um

coração

liai.

a sonhar, a sonhar cons-

cientemente, enquanto os olhos divagam

dentro dos quatro taipais que nos levam.

Quem

vai connosco, não

sei.

Manchas

esbranquiçadas, manchas baças, tremulantes tre,

— devem

ser os passageiros.

En-

só considero que o arquitecto vai

tombado sobre a de Pisa.

O

ilharga

como

dispersivo morreu

a

Torre

em mim,

desde que os olhos de Genoveva come-

çaram

a falar para

meus

olhos.

os OLHOS DESLUMBRADOS

Chamo-me

53

a juízo proba e sincera-

mente, tanto mais que ninguém está no

Franco falar, o de meu irmão lavrador que tem a singeleza impressionante do rei Wamba. Doido varrido Doido varrido Pretório.



Cai

!

!

em

consulta o entendimento, e

ti,

hás-de soltar risadas malucas sobre esse

disparatado sonhar.

— Ai

meu anjo da guarCatão. Mas disparatado,

vem

da...

não,

porquê

?

o

— Porquê? vais a

ludibriar-te e a lu-

dibriar esta criaturinha.

Tu

és a volu-

bilidade, ela a inocência desprevenida.

Conquistá-la-ias hoje para a repudiares

amanhã. Que

se

renda

e

breve chorará

o cativeiro.

— Não

vejo,

da entrega.

— Essa

.

sequer, a possibilidade

.

possibilidade desenha-se.

teu prestígio

de

homem

O

de letras des-

lumbrou-a; a novidade do amor seduziu-a.

Ela

sonha contigo.

.

.

contigo,

!

FILHAS DE BABILÓNIA

54

marido

talvez,

rico, artista,

eternamente

amante, gloriosa contigo glorioso.

— Prouvera a Deus — Mas certo sabe-lo bem. E, ouve, é

e

(iprender-te-ias a esta rapariga

— Porque não?! — Seria o salto

dum

?

quinto andar.

Dela só sabes que é bonita, tem o pé espiritual e o talhe voluptuoso. Imaginaste

uma

pilha de promitente sensua-

lidade e por aí se veio a atear o teu delírio.

Não

duvides, o

deliciosos pela luxúria. se é

duas

amor chega nos

O que sabes dela,

uma amante de escasso para uma

o bastante para noites,

amante de

é



oito dias.

Para esposa, nada.

Ela pode-te ser diametralmente oposta,

quando tu és taciturno, toleirona quando tu és um delicado, gostar de fadinhos quando tu não suportas um recital de órgão. Pode ter taras físicas, ter medo dos gatos que tu adoras, tocar boleros no piano que tu aborreces, farfalhuda

gostar de valsar o tango.

A

família,

na

os OLHOS DESLUMBRADOS

actual linhagem^,

ou

um

táveis

santo



pode contar

— coevos por

e até a

55

um

herói

igual detes-

mãe, francesa de ex-

portação, pode ter sido regateira ou cocotte.

O que

que terás de

é indubitável é

suportar a mediocridade do pai, ateiçoar-lhe, passo a passo, muletas para

andar.

.

.

Um

horror!

— E que mais? — Dando

de barato que

tes contras exista, ^

nenhum

des-

pensaste já no que

almazinha inexperiente^ ao pé da tua, monstruosa, insaciável de tudo,

seria esta

cansada de tudo? Pensa bem. é

veio

dias,

de poucas águas.

senão

horas,

.

.

Em

aquilo

curtos

esgotá-la-ias,

sua

jucundidade, seus meandros de senti-

mento e de sonho, seus transportes, sua compreensão e intuição das cousas. Devassarias a sua alma tão cedo como o seu corpo. E tu, porque és um voluptuoso, precisas além dos braços que te apertem, de almas, duma alma que se multiplique. Precisas da alma mil almas.

FILHAS DE BABILÓNIA

56

Breve a conhecerias como as tuas mãos, e ela não teria nada de novo a dar-te^

porque

dum

se daria

jacto e sua inflo-

rescência não lhe permite, por ora, re-

novamentos.

Com

^

que havia de com-

prar-te, a pobre, pelos lá

da

fácil

lua de mel? Esta

— Quem me

vilis

CidnOy

est Atthis, ut ante

— Sim, sim das de Corina. — Estou

.

não

te serve.

serve? ViUs Atnythone^

mihi cândida

grata

tempos fora, para

.

.

Non

méis

oculis

!

dessa espécie, dobra-

farto de correr a aventura

louca da insaciedade. Esta bastar-me-ia,

formosa como

é,

tendo apenas, a mais

o chilrear simples

dum

pintassilgo.

— Bem, mas passando por sobre

es-

ses mil contraditórios, esta

mocinha tem

dum homem

rico, terno,

necessidade sentimental,

todo

dela.

Consumiste

quase a paterna, a ponto que se não fora a providencia de teu irmão irredu-

tivelmente celibatário, terias de recorrer

ao emprego público; toda a preo-

os OLHOS DESLUMBRADOS

cupação são os teus ções;

j

57

livros, as tuas cria-

ternura, junto à nevrose de ar-

tista, tê-la

— Não

hás sempre? sei,

nem me importa

saber.

jijQue é o sentimento senão a mola

empurra pela colina da vida, para cair ou nos exaltarmos mais, equivalentes, afinal, do mesmo trânsito irrefragável ? Obedecer é a nossa obrigação, a nossa melhor obrigação de suoculta que nos

!

periores.




Deixarias a Europa, o teu diabó-

licamente adorado Paris para morar na aldeia

?

— Porque não — Dai, quando Serra,

^i

?!

o inverno aperte na

levarás tua mulher, que fatal-

mente tem apetites de sociedade, aos teatrelhos de Lisboa, às exposições de arte rançosa, aos chás

dos Ribadalta e

outras niquices enfadonhas

— Resignar-me — às
praias,

?

hei.

onde

um badameco

acatitado lhe fará a corte?

.

!

.

.

.

FILHAS DE BABILÓNIA

58

— Resignar-me — Então anda, mas não esqueças que hei.

poisas sobre a fronte a coroa de espi-

nhos do amor. Ela é moça, ces.

tu envelhe-

Estas alianças quebram, as mais

das vezes, por

aí.

.

— A ventura — E Elsa? ^Como desligarias de Elsa? — Como me desliguei de Antónia, de Marta, de tantas outras. — Quem com mata com morre —A uma parábola te

ferro

ferro

.

.

justiça é

— Bem,

anda

celeste.

lá,

pobre, louco, velho,

( perverso.

.

— Queira

ela! queira ela!.

.

Genoveva, por entre o rebuço da mantinilha,

tudo

espreitava-me.

isto, contei-lhe

tudo

Disse-lhe

isto, e

a

meus

olhos sinceros seus olhos floridos con-

juraram a não temer.

vil

Já rolamos

em

terras de França.

uma boa hora que





vão os Pirinéus,

damasquinados de neve, e o meu louco sonho de ser um camponês basco, fanático de Deus e de D. Carlos, e, alta noite, descarregada a mulinha do contrabando, vir de escopeta ao ombro, abraçar Genoveva, trémula de frio e de receio ante a Virgem do Pilar. A minha >

7

condição é pensar, e

doido

como

meu pensar

fugitivo

galope do vento.

Entramos nas landes

e,

quando olho

aos lados a floresta interminável de pinheiros, tenho a impressão de aspirar o

ambiente místico e profundo tedral.

O

duma

ca-

próprio eco do comboio tem

:

FILHAS DE BABILÓNIA

6o

a plangência arrastada dos órgãos. Esforço

um

quase nada a fantasia e da

música bárbara

retiro

um

oratório deli-

cado de Palestrina. Escolho a S.

letra

José e o menino cortando cedros

um

para

tear de Maria.

A machada

res-

que ouviu

soa, Jesus canta a cantiga

aos pescadores de Tiberiade.

Um pardon

um

m'sieur e

que, debruçando-se,

cavalheiro,

me toma

as vistas

da portinhola, desviam-me da Terra dos milagres para esta fraternal Terra da guilhotina. este

A

homem

França é

com

que,

isto

A

pouco,

todo o desplante,

cônscio do seu direito,

comodidade.

um

mulher,

me roubou a uma loura afá-

vel de olhar liberal a prometer,

queda

para compensação. Fico a cogitar porque adoro eu omní-

modamente

este país extraordinário.

certo que o adoro. Para cá trouxe

cérebro rude e estes

um

predicados

poente.

O

E

um

coração de cera;

cambiaram

de

ex-

cérebro tornou-se maleável

Vlll

Todos

vamos scismando.

três

quebramos

vezes,

um

pregunta,

scisma por

a

nada, lançado por

A*s

uma

um

uma famimim e ela o

de nós, sem rebuço e com liar

sem-cerimónia. Entre

entendimento

— entendimento

so e sorvedor mil almas

com

misterio-

a força louca de

— não pode

ser

mais profun-

do.

Acanhadas, nossas bocas observam

as

convenções, nanja nossas mentes.

Inocente, habituou-se já a que a beije e a enlace rolar

em

braços

;

vergonhosa ainda,

torno do

rijos.



sabe

meu pescoço

seus

Essa certeza vem-me de

seu cérebro para

meu

luz de seus olhos para

cérebro

meus

como

olhos.

a

os OLHOS DESLUMBRADOS

69

Entretanto, perpassa-me na consciência

que tenho de quebrar

com

Elsa, a

minha última amante, e despedir-me de Paris, a minha grande amante. Tem de ser, será.

dum

Ao

azar, a primeira resolução,

olhar de

Genoveva a segunda. Por

agora, não penso na materialidade estúpida desses passos.

O

papá vai meditabundo, mas de

O

prazenteiro parecer.

arquitecto igno-

rado lisonjeia-se da possível associação

com o

escritor

que tem nome. A' minha

sombra poderá

edificar

bons ou maus

prédios, obter o prémio Valmor, vir a ser célebre, sujeito

finalidade esta de todo o

que mexe

vez, essa aura,

ou

em lè

artes.

Antevê,

tal-

nas gazetas o relato

do auspicioso enlace de M.^"^ Genoveva «filha

do

ilustre arquitecto»

tinto escritor.

com o

dis-

Saboreia os nomes dos

paraninfos, provavelmente os Ribadalta

uma banda, o Presidente da República, com um jogo de escovas de prata em estojo forrado a seda, a outra. Aqui, a

:

FILHAS DE BABILONÍA

8o

— Aí vem você Se conhecesse a mi' nha situação não mangava. — Que passa? — Que passa? Olhe, vejo-me à !

se

se

da ruína, sem apelo nem remé-

beira dio.

.

.

Pode

crer!

Ficou a olhar para mim, eu a olhar para

estribado

êle e,

posto

propósito

movimento

sem

que

em meu

interior,

acrescentei

— Elsa ra. —A — Não .

custa-me os olhos da ca-

.

literatura

.

.

.

?

Falhou ?

falemos nisso. Portugal está

cada vez mais bêbedo de

com menos

gosto de leitura.

vãs joga o dominó ou valsa.

ção que



política e

Nas horas

A

popula-

satisfaz-se indiferentemente

com Montepin ou Daudet. ^ Como há-de, pois,

medrar

ali

arte que baste àquele

que a cultiva?

— Escreva fados para guitarra. — Em suma, a prosa que manipulo não dá para os

alfinetes

de Elsa.

!

os OLHOS DESLUMBRADOS

— Pobrezinho

8l

Porque não compõe em francês ? Experimente ... Soubesse eu! Mas não sei; herda!

^



uma

-se

língua

com uma gêba

de nosso

pai.

— Julguei que Elsa estivesse bem

es-

criturada ...

— Está, mas

nada

lhe chega; é

uma

pródiga; gasta mais que a amante de

um

banqueiro judeu.

---

Para que voltou?

— Pregunte-me, antes, o que

fui

fazer

meu pais. Sabe para quê? Vender uma das terras que herdei, espremer a teta da vaquinha, como diz um irmão ao

que

lá tenho.

A

mas traduz com

expressão é ridícula, felicidade o

meu

patri-

mónio, malbaratado por França e Aragança,

bem magro, bem

português. Ki

tem

— Pois

não pode, diga-o sem rebuço a Elsa. Que compre um vestido a menos. se

— Impossível.

Ná, não quero abrir6

FILHAS DE BABILÓNIA

82

me como uma

1 cancela a mulher nenhu-'



dirá você. Porquê? ma. Porquê? porque as mulheres só nos respeitam

enquanto nos não conhecem. Depois é

um

crime imperdoável, sobre-

crime,

uma

para

tudo,

amante, não

ter

di-

nheiro.

— E'

uma verdade onde cabem mil mentiras. Mas, ouça, há um remédio, case. O casamento — diga-se em abono é vantajoso em casos exdo estupor



tremos.

— Com quem

?

diga-me onde há

uma

«burra» que queira casar.

— Não

me

percebeu. Você está en-

tradote para cavalarias altas. brilha

negativas que

peias qualidades

fazem viver

e

morrer

um homem

percebido das mulheres. newi

Não

nenhum Adónis, nunca

ou mártir que eu saiba. escritor é pouco. recite

Alem disso

Musset.

— Graceje.

O

seu

desa-

é atleta, foi

herói

nome de

Só sendo viúva que

!

os OLHOS DESLUMBRADOS

— Nada

disso.

com

casar, era

Quando

A

Elsa.

83

lhe dizia de

pobre rapariga

que tem por você fatacaz maluco aceitaria às

mãos ambas.

O amigo

ganharia

assim a diferença que vai de amante a esposa.

— Não compreendo. — E fácil,

eu lhe mostro.

Um

amante

tem apenas deveres, um marido direitos, não ? Elsa ganha obra de dois mil francos

você torna-se

;

adminis-

ipso facto

trador de vinte e quatro mil francos ao ano.

Não

integrada

é



pechincha.

bem no

destas poderia ser

século,

uma

— Vá para o diabo

!

Com

pessoa,

uma

esposa

mina. j

Mais de vinte

quatro mil francos, gasta ela

em pó

e

de

arroz

— uma

(i

Donde vem o Pactolo ?

.

.

.

Fale

vez verdade: ^rnão há outras ra-

zoes que o forcem a tão singular projecto

?

— Talvez.

— Bem



me

queria parecer.

Você

é

.

.

.

FILHAS DE BABILÓNIA

84

português de mais para fazer contas.

para descartar-se

que

duma mulher

.

só por-

se arruine.

— Realmente. — Outra mulher

—E — Bonita

?

possível. ?

— De enlouquecer. — Jovem — Um botão de rosa — Rica .

?

.

.

.

?

— Náo palavra — E* doido E^ doido — sei,

.

!

de mostrar

.

!

e,

depois

uma admiração muito

iró-

nica, quedou-se pensativo.

Eu dias

meu romance de dois sem medo do vitupério, por

ia



trazer

ali

coação de alma hipertrophiada e necessidade de desafogar minha imensa ternura



e,

ante o geito mordaz, acanhei-

mesmo tempo, escorregar para dentro de mim do êxodo delirante que me tomara. Genoveva,

-me. Senti-me, ao

não obstante, que comigo andava, co-

.

os OLHOS DESLUMBRADOS

migo

veio.

Aquela hora estaria

85

ela, tal-

descalçando o pé pequenino que tão afoitamente se conjugou com o trivez,

minha planta de batedor; afagando os seios que arfavam por mim; beijando meu nome no livro que lhe dei. Que eu morava nela era mais certo que um Deus reger as almas dos vivos e dos mortos. Ela também morava em mim... moraria ora e sempre

lho de

.

.

mão arteira e lenta, percorria a face com a «borla» do pó de arroz à cata do tom que lhe dava uma sinElsa, de

geleza transparente de impuberdade; e,

operação -se,

feita,

com o

mirando-se e remirando-

báton arqueou mais os olhos^

deteve-se a avivar-lhes a expressão ad-

onde a inocênduma gota azul nadava em alvaiade

mirativa, muito celeste, cia

puro.

Eu

seguia-lhe

olhos enfadados, espírito ia ta,

I

os movimentos

com

emquanto, inquieto, o

da outra, a

inefável,

para es-

a feiticeira. Entrementes, Paulo pu-

!

!

:

FILHAS DE BABILÓNIA

92

—é

Estava

certo

— de

costas voltadas

ao pano de céu que cobriria a doce Genoveva.

Mas

seu pensamento

em meu

pensamento começava já a toldar-se dos fumos azuis, muito ténues, dum doce sonho sonhado. Elsa veio nas pontas dos pés, e enro-

lando-me os braços ao pescoço, poisou a face contra a

minha

— O meu lobinho está a scismar — Que tens — preguntei eu, de]

?

j

feito ?

pois de abanar os fútil

scisma que

— Que tenho de sempre

:

ombros em prova da

me

trabalhava.

feito ?

— A mesma cousa

de casa para o teatro, do

teatro para casa. Ui! fecha

Está

um

a janela!

frio

— Aborreceste- menos que eu! — murmurei empurrando as vidraças. — Oh, que vida abominável vais te

i

.

.

.

!

i

ouvir.

O

director queria obrigar-me a

no sketch novo da revista o Polo Ártico. Recusei e por um triz que não fui despedida. Sabes quem me vafazer a foca

^;

.

;

.

os OLHOS DESLUMBRADOS

leu? o jeiíne-homme do

g3

Gil-Blas que

ameaçou Delmont de lhe pôr a careca à mostra. Só queria que tu ouvisses os \

impropérios que o estafermo vomitou contra mim^ diante do pessoal todo!

De

galdéria

tudo o que lhe veio

bem me

chamou-me à cabeça. As outras

para baixo,

diziam

Polaire fêz de urso

:

Simonne de galinha; a divina Raquel

um

fez

são

dia de

umas

pata.

invejosas,

Não umas

quis saber; intrigantes.

Agora o brinquinho

é a Roselinde.

gina tu a Roselinde

com

j

Ima-

pantorrilhas de

algodão e maneiras de criada de serEstou

vir...!

muito desgostosa

—O

director é

um ...

amar-te de joelhos

.

larvado. ;

^

Se

me deixasses

Passaria a vida a

destas galés?!

Não

teatro,

.

.

— Um macacão

sair

do

desgostosa

.

percebi aquela voz destrembe-

Ihada.

— Sim,

o teatro

se consentisses

...

— reiterou

em

ela.

que largue

.

.

FÍLHAS DE BABILÓNIA

94

— És

uma

— respondi

com desdém que me

criança!

o ar de mais piedoso

pode subir ao rosto. E, tornando-lhe costas, pus-me a girar na salinha silenciosa. Assim andei uns minutos de catadura

hostil, até

que

fui

para

gada imóvel contra a parede,

mesmo tom

despiciente

:

ela, pre-

e disse

no

— ^iLembras-te

da trabalheira que houve para entrares

no ^ouffes?

— Deixá-lo

!

Estou

Todas

farta.

duções da scena morreram para



num gatimanho

e,

acrescentou

:

— Bonito! eu

não

mês

.

Mas

possuo,

;

.

.

galantaria,

— Hoje só tenho uma,

és tu.

o teatro dá-te o que 2:000

teatro

por

francos

o dá o teatro o leva.

Vai-se tudo no trajar

ti

mim

.

—O

quê ?

de

as se-

Não me

.

.

visto para

.

tudo.

E

para

mim, nem para

visto-me para a plateia, para que o

Bouffes continue a ser o bordel mais

chique do boulevard. Ainda ontem o rector dizia à Corália, tu sabes, jo

di-

ma-

I

MAGA DAS RUAS

Maga

Vivia

das ruas

com sua mãe, em

Paris,

rapariga especiosa de corpo e de

uma ma-

neiras e que se entregava ao mister

vida airada. Paquerette lhe

da

chamavam

os adoradores porque seu talhe era es-

galgado mais que natural, e tanto e

em uma

graça havia

que parecia de mulher,

flor,

mimo

sua cabecinha loura aparição indivisível

nascer do sol

num

jar-

dim maravilhoso de Le Nôtre.

Com tão peregrinas

galas, Paquerette

triunfava nos lugares de prazer, e seus

amantes eram muitos e de qualidade.

A

mãe, que

em tempos ao

rés

da pa-

vana exercera a profissão, explorava

MAGA DAS RUAS

t 1

^

alêm-mar. Estas cousas, absurdamente

pareciam passar,

sem

existir,

darem

se

da ausência de Paquerette.

E

muito se ressentia a deliciosa que o

fio

conta

dos dias vergasse, assim, ao peso das diversões para os outros que não para

E

ela.

em

para honestamente se dar

es-

pectáculo ao boulevard^ seus dedos preguiçosos

— aqueles dedos que só sabiam

beliscar a

bochecha dos galãs

nhar-se-lhes pela cabeleira

nhos vivazes



se

e

embre-

como

rati-

deixaram morder da

agulha a reformar os arcaicos e sumptuosos vestidos que alvoroçaram os bailes.

mamã

não esquecera a primitiva sabedoria do açafate de costura. E, pelo que yiam exposto Providencialmente, a

nas lojas dos mercadores, ambas con-

certaram maravilhas

de leveza

e

de

graça.

O que

tempo, porém, corre mais depressa

um

medo; breve marearam as rendas

ladrão que tem

deliram as sedas e

de Bruxelas no corpo esgalgado de Pa-

.

MAGA DAS RUAS

— Já disse ao

rio

Foi

! .

!

j

Primeiro

me

l3l

deitaria eu

.

ali

o dia de juízo; rogos, deses-

peros, injúrias e unhas pelejaram

sanha brava.

O

conciergCj que,

dade das revoltas,

é

um

com

na

ci-

indiscutido e

intangível soberano, acudiu e aplacou-

-os

com

o invocar o direito ao sossego,

dos mais locatários. Serenando, decidiu o

moço

-Ihes,

escrever às

manas

a contar-

de coração nas mãos, seu grande

romance de amor. elucidativo

e

Como documento

carinhoso lhes enviava,

também, o retrato de Paquerette do tempo em que Paris era dela, e ela louca, maviosa célula do grande monstro.

IV

Chegou

a fase do enforcado das gran-

des terras: romarias seguidas ao Montepio,

empréstimos humilhantes, cartas

aos antigos adoradores- de Paquerette, ora pela

mão mendiga de

Leo, ora pelos

dedos breves de Paquerette. Leo, por fim,

escancarou também a bolsa, porque o estrangeiro prometeu-lhe

uma

casa de

campo, com vacas taurinas a pastar no



pombas meigas das que arrulham nos beirais e vêem comer ao re-

relvedo e

gaço



para quando fosse senhor da

legitima, o

que não podia tardar estando

o pai, gotoso e morfanho, a dar o tombo

no

seio de Abraão.

deixou-se

seduzir

Como boa pelo

francesa,

«para

quan-

MAGA DAS RUAS

l33

do» que está do outro lado da realidade

mesmíssima cousa do lado de cá. Mais raisonneuse

e que, pelo perto, é a

que estar

que raisonnable, pela razão mesma de sua índole prática acreditava

em

em

granjas e

vacas, e sua boa fé arruinou-a.

graças a

as

ela,

as semanas^

E

semanas rolaram sobre

num

desfile

manso de

dias

outonais, cheios de langor e de sombras.

Do tícias

Armando, impiedosas nochegaram afinal. As manas, fa-

país de

lando-lhe

de tacões

altos,

davam-lhe

formalizadas tratamento de senhoria e

juravam

riscar o

nome do

todo o sempre, se

êle

irmão, para

teimasse

em

lhes

meter à cara a mulher perdida que não tivera pejo

de se deixar retratar

metade do peito ao até à joga!

léu e a perna á

O moço nem

com mira

lágrimas teve

para consolar-se. Expediente após expediente, veio a

mudança

sub-reptícia de casa,

chamada

desde os tempos imemoriais dos truões

I

FILHAS DE BABILÓNIA

^4

e ribaldas

bois

déinénagement à

la cloche

de

um

porque não dá mais alarme que

chocalho de pau. Gisou-a Leo, experta

na

moina de Paris e os compatriodo moço emprestaram seus om-

alta

tas

I

bros para aquele lance de galharda pa- 1 godeira.

Quando

a nova morada, pital, caia

um

pela alva, alcançaram

num

dos getos da ca-

molhinheiro de finas e

gidas paraganas.

breu hediondo,

A atmosfera um breu que

era

ál-

dum

se podia

não

palpar. Através da vidraça búcia,

nem céu nem terra, e aquele quarto, tapetado de papel sujo e roto, com es-

luzia

tigmas de crime e de amor, inomináveis, adquiria

uma

O

deitou-se sobre o catre a solu-

moço

çar.

obsidiante subjectividade.

Paquerette cingiu-lhe o pescoço de

seus braços, a

— Mas

rir,

a rir tresloucada:

que tolinho

!

^

não achas

isto

patusco?

Chorou

ele

por muito tempo até que

a luz dealbou a cumieira das casas e

pôs a nu a goela funda da rua.

A

per-

MAGA DAS RUAS

l35

der de vista, atropelava-se toda judiaria

antiga,

com empenas

minés mais emmaranhadas que que.

O

tom limoso dos

uma

e

cha-

um

bos-

séculos, sobre o

negro das ardósias e o vermelhão das

do alcandor todo uma pele de salamandra esburacada. A poente,

telhas, fazia

a torre de Clóvis dominava e tinha

um

ar bronco, aborrecido, de ver passar os

séculos

com

asa

ligeira.

Uma

das suas

ventanas deitava para o bairro; e na sua voz rouca intimava, ainda, a tavolagens e oficinas do bairro, o couprefeu.

Saint Médard,

com uma

feia cor-

cova de velho, agachava-se a todo o fundo, e a tacaniça

duma

casa aguda,

ao gosto normando, escondia a graça das torres de Saint-Etienne e a orgulhosa cúpula do Panthéon.

panorama

O

mais era

um

persistente, fechado a todos

os pontos por

um

céu baço, de destroços

inextrincáveis.

Era o seu ninho de corujas. E ali, no meio da bafoeira nojenta das mansar-

FILHAS DE BABILÓNIA

l36

das, a vida

recomeçou para

lada e cheia de saltos.

Na

eles atribu-

casa mobilada

haviam deixado grande parte dos haveres mas, em compensação, achavam-se forros de mais de dois mil francos que de-

viam ao estalajadeiro e lojistas do bairro. Estavam, porem, na míngua, sem mais que empenhar, e a melancolia, senão o enfado, pairava sobre os amantes

grandes

as

asas

dum

como

avejão negro.

meses de dura, o que é o infinito no voo duma borboleta como Paquerette. E no entanto, se mais ralos, não eram os beijos menos quentes nem menos voluptuosos que os da primeira possessão.

Aquela existência tinha

já dezasseis

Ante os incitamentos de sua mãe e sob capa

bem

lançada, decidiu-se,

afi-

nal Paquerette, na esperança de cinco luises, a visitar

o papá Méritac. Era este

um

senhor de indiscutida honorabilida-

de,

membro da Academia

Morais e Politicas ria

e,

de Sciências

por cuja mão, cor-

o prémio anual de Virtude.

Um livro

.

MAGA DAS RUAS

tréfia.

I

Tudo o que

1^3

era empenhável, esta-

va empenhado, afora a cruzinha de ouro insignificante, que a velha trazia ao peito

j

como

;

talismã propiciatório. Foi a úl-

tima a ser alijada. Leo desatou-a do

;

cordãozinho de seda, sem

'

uma voz

de

censura, mas, dois dias depois, estalando j

de fome e de geiro,

imerso

— Ande

!

frio, disse

em

saia

para o estran-

sonolência búdica: !

vá roubar Vá roubar !

o primeiro passante que tope a geito.

.

Porque espera?

Armando ergueu

os olhos para ela e

medo. Tinha o ar alucinado, o movimento projectante da onça que for-

iteve

ma e

o pulo.

E

saiu.

..

bateu a cem portas

com alguns francos, colhidos, ali, como um andador de almas.

tornou

aqui e

Essa noite, reflectindo seu trato a sa-

do estômago cheio, percorreram demoradamente a gama dos recursos

tisfação

adoptáveis nestes naufrágios dos necessitados.

Um só entreviam, susceptível de

salvá-los

;

mas tinham cobardia do seu

.

FILHAS DE BABILÓNIA

144

uma

pensamento,

cobardia comparável

à daqueles que, vivendo vida de irmão?,

teem melindre em declarar-se namorados. Leo, porém, cortou cerce: Olhe, meu menino, aqui não go-



em senao tal judeu de má morte,

verna vida, navegue. Amanhã,

do horas, corra banqueiro ou lá o que

que

é,

lhe

pre a viagem. Vá, reconcilie-se família e

tudo.

Um

com

a

acuda a quem lhe sacrificou mês, dois meses passam num

ninguém

lha

também não tenho mais

nin-

rufo; esta criança

rouba; eu,

com-

é sua,

guém. Esbagoado em lágrimas, o moço anuiu, .

com

protestando ber-se

com

juras e trejuras rece-

Paquerette ou queimar os

miolos.

Partiu aleluia

um

com

sábado de os hilros

sol,

já a

um

dia de

bailarem

em

Notre-Dame. No cais, apoiada a Leo, não ficava a Paquerette, aparição

volta de

indivisível

mas uma

de mulher, triste-feia

flor,

nascer do

dos baldoes.

sol,

FILHAS DE BABILÓNIA

l56

de consciência, o sentido circunspecção

formado da projecção do eu sobre o

mundo

exterior, fazia dele

moral.

Tendo

lhante e da

daquele.

lei,

um homem

a aversão do seu seme-

não calcava

Não

esta e doía-se

com

simpatizando

S.

Pe-

tamancos os salões divinos do César, seria capaz de ter acompanhado Bruto. Apesar de cinco

dro, profanando de

anos de civilização, não era

um

Aqui estava

defeito

um scéptico.

da sua recepti-

vidade. Paris fora, apenas, a sua escola

de cerebral

e

de voluptuoso.

com Paquerette, afávelmente como quem desvira bolso que não anda sujo nem acoita roubo, se abria com ela. E Paquerette, Avistando-se a miúdo

através da jaula corrida, assestava os

sem perfeitamente a descortinar, imersa nas sombras e contradições de criatura talhada à imagem olhos sobre a fera,

e

semelhança de Deus. Outras vezes,

dava-lhe

conselhos quanto ao enlace

com Armando

e

o

modo

de se conduzir

:

MAGA DAS RUAS

iSy

em terras que, sendo bárbaras, presumiam de civilizadas. E tudo resumia em aforismos^ ou regras de viver na burguesia local,

o que esflorava a jovialidade

naquele ninho de trasgos. Dizia-lhe

«A

Matareca é para a menina uma ilha misteriosa no meio dum mar de sargaços. Tem de ir um pouco à ventura. Dos Matarecas, o que conheço é roteiro de pouca monta. Sei que ostenfamília

tam escudo partido em pala pante; na segunda, azul, cente, vermelho, e

Veraneiam em de dote

um

braço nas-

uma espada

vila

de prata.

própria; dão dois ou

por inverno.

uma

a pri-

com um cerdo negro rom-

meira^ de oiro

três bailes

;

A mamã

ruela de casas

trouxe

em

Nite-

Quanto à nobre linhagem estronca por alturas da quarta ou quinta ge-

roy. ai

ração

num

magarefe de cevados

marra, ambulante, de feira Mata-recos lhe

chamavam e

em

e

de

feira.

daí derivou

o aristocrático apelido e a heráldica his-

.

FILHAS DE BABILÓNIA

l58

I Não

toriada dos Matarecas. é tão exacto

como Paquerette

um

ascendência

preux

ladrão de estrada.

ter

isto

na sua

um

chevalier e

.

— Essa boa — Todos os temos, é

que

ria,

!

e

por quadrilhas,

Mas continuando

daqui até Adão.

:

O

Mata-recos deixou grosso cabedal, or-

denou é

um filho

uma

e

bacharelou outro. Este

Ma-

das cepas confessadas dos

tarecas.

Agora

veja, fidalgo das dúzias,

meio plebeu, burguês de gema, está na

como

sociedade sobre

um

pé,

esses grous extáticos

à beira

dum

pântano.

Detesta a plebe, evita a burguesia,

não tem

um

nas serras, sua mulher

palácio antigo,

nem

mas

solar

nem sangue aguado, nem foi

formosa para ser doudi-

com que

vanas, requisitos estes

poderia

ser acolhido pela nobreza. Vive entre

duas águas vida de nababo, mais aborrecido que caimão

num

aquário.

^A me-

nina assina MarnefF, não? Seja francesa, assine

De

Marneíf. Se

bem me

recorda,

MAGA DAS RUAS

I

Sq

OS MarneíF foram honrados impressores

Mexeram com

de livros no século xv.

podiam muito bem, de espada

prelos,

em punho, na coluna dos

cruzados, ter

tomado parte no saque de Bisâncio. Ninguém poderá investigar ao certo. Uma De MarnefF, mesmo que não leve consigo lindo azul

um

ceitil

furado,

palmo de rosto



e Paquerette

que não

foi

e

mas

só o seu

o seu sangue

tem-no bem azul

debalde que todo o francês

que se prezou cedeu sua dona a cem reis

de França vert-galants

— só com a

sua simples aristocracia de raça, a

uma

,De MarneíF cabe entrar de cabeça alta

no nobiliário dos Matarecas. Esta pode

uma

Lá dentro, o que será a batalha, não sei. Mas olhe, admiração, contemplação, assiduidade, homenagens ser

porta.

de devota a manipanso,

ganham sempre

com homens deste jaez. Borde-lhe chinelas com as cores do arco-iris e tempejre-lhe

pratinhos moles. Se

pistada

dum

um

dos régulos da

dia for

terra,

que

FILHAS DE BABILÓNIA

r6o

seu sogro seja feito comendador, sena-

dor ou cousa parecida, e terá vencido.

«Convença-se de que sua sogra padece de queixa interior que os facultativos

mais prespicazes não penetram.

Faça-lhe mezinhas

;

conte lhe horrores

das criadas e moteje do vestido das amigas.

E

leia-lhe

o folhetim mais mo-

langueiro, vertido do francês na gazeta

mais

reles.

«Tenha o maior cuidado com os imponderáveis da vida doméstica. A menina, que foi

sempre uma gazela, não

está

ao par de sua

eles

constituem os alicerces da virtude

filial,

alta significação. Pois

feminina, e o cimento

compreensão

No tom

caseira.

Em

duma boa

que residem?

da voz, na demora do olhar, o

respeito aos tiques de cada

um,

um

ai!

porque da janela que se abriu vem ao

papá uma corrente de

dum

ar,

diminutivo á sogra

a fiautinha

com

dores de

.

.

MAGA DAS RUAS

l6l

um

dedo erguido em ameaça ao esposo que se demorou no clube. Cousa nenhuma e imensidades. Uma mordaça valente para as sogras tece-se barriga,

com

estas teias de aranha.

«Prepare-se a dar a seu marido

ninhada de

filhos

.

uma

.

— Que horror! — exclamava Paquealém de francesa, era oriunda

rette que,

da Normandia.

— Não,

a

Deus

é

um hábito respeitável, grato

e à pátria.

Naquele país não ha de dimanche,

apenas o

filho único, Jils



de todos os dias da semana.

filhos

Como

se diz das videiras, as

carregam.

— Ah! — E' o céu...

mamãs

ali

.

que

Questão do das águas, a bênção do Selhe

digo.

nhor.

«Tenha longos

com

as

e variados colóquios

cunhadinhas

e

mais meninas II

FILHAS DE BABILÓNIA

102

inocentes, não faltando ao dever de industriá-las nas

mais hediondas poucas

vergonhas. Daqui nasce

uma suprema-

da sua parte, cumplicidade reciproca

cia

e estima delas. Este principio é

mente

suma-

basilar.

«Seja preguiçosa. Lá ser dona é ser indolente, mais indolente que

que

um

uma

poeta, que

uma

gata,

sultana. Sur-

preenda-se a despertar nas barbas do meio-dia. E, para de portas a dentro,

não

se penteie; tal garridice daria nas

vistas

das vizinhas que a apontariam

ás criadas,

as criadas

a sua sogra

e-

sua sogra a seu marido. Enrole os ca-' belos na nuca, vista

voluptuosa

como

uma

bata e fica

ninfa

à

flor

das

águas.

abordada por galante, a palavra de riposta é esta i Por quem «Se na rua

for

:

me toma, cavalheiro ? largo, cavalheiro.



— ou — Passe de :

MAGA DAS RUAS

linda voz,

bem

Se for à província

visi-

«Paquerette tem

timbrada tar

tias

e doce.

l63

uma

de óculos, é conveniente es-

premê-la na glote, elevá-la ao tom de ocarina. e é

Por

ainda se usa o rinchado



muito pitoresco.

«Importante

:

Não

aporte àquelas pa-

ragens sem empunhar

uma

lorgnette,

jiNão sabe exactamente o que seja?

desmoda

justifica a

lorgnette é

uma

sua ignorância.

A A

luneta portativa qiie se

fecha sobre cabo de tartaruga ou de

metal

como

as

navalhas de barbear.

Nasceu aqui com os Trianons e morreu com os Trianons. Lá é um apetrecho de preciosidade inextinta. Serve ás

para envidraçar a soltura

damas

com que

a

hão-de examinar, a poucas polegadas de distância, dos pés à cabeça, ao corte

do seu vestido, à estamparia do seu padrão, às

pomadas que póe no

rosto.

— E' simplesmente ridículo! — Será, mas de vista desarmada só

FILHAS DE BABILÓNIA

164

as peixeiras. E'

um

utensílio

mais de

mulher para mulher que de mulher para

homem. Não esqueça; aquele do

é o pais

mo-

os catitas chapados no

vitral;

nóculo, as mulheres na lorgnette.

«Respeite as glórias de sua pátria

adoptiva e não blasfeme do céu que lá

teem.

O

céu é o Nilo de



;

é sa-

grado.

«Nem sempre

é

anodino de conse-

quências, não obstante as remessas de civilização

que daqui para

tantemente, no teatro,



vão cons-

em costumes

pelo

livro e a gazeta, o entretenimento extra-

conjugal. Vai-se praticando

com

riscos

para a mulher. Ainda a travessia, pela rua,

de

equivoca.

senhora

O

a conivência ter aí

um

só,

é

tormentosa e

processo clássico é obter

duma pessoa

quarto alugado.

de família

A

<

conivêncit

obtêm-se, chorando-lhe nos braços

grande romance de amor. Etc,

sei|

etc.

1

MAGA DAS RUAS

l'65

Paquerette recebia estas instruções, galhofando, prometendo recorrer a to-

dos os

artifícios

da virtude e a todas as

virtudes do artifício para conquistar a

nababia. Nas horas sérias, expunha-lhe suas apreensões quanto ao acesso

numa

de respeitabilidade, e à

família, zelosa

sempre possível quebra de palavra do amante. Logo

êle

acudia

com

mil vozes

aquietantes, subtilezas traçadas sobre a

meio e das pessoas^ envolvidas na maranha.

psicologia do

Mas

enaltecendo as facilidades do

projecto não deixava de apontar os escolhos, e

em

tal

jogo parecia entreter-se

a redoiçá-la. Assim,

aventando que as

gentes semi-selvagens tão prontamen-

amam como repelem, atenuava em dizer que, a um moço quási donzel como

te

Matareca, ligações desta natureza dei-

xam

raízes

em que

a paixão reverdece

senão ao primeiro lance de olhos ao roçar,

novamente, da pele com a mulher

amada. Talvez fosse preciso

ir

picá-lo à

l66

FUHAS DE BABILÓNIA

-

i

E confirmava a sua com um judicioso discurso

lura natal... talvez!

proposição

sobre a reacção operada pelas distân-

que exerce a céu grave para um céu

cias e o efeito destrutivo

passagem dum

troca-tintas, sob o qual tudo corre

geiro

como

viria

o amante,

nele as nuvens de Abril. iria ela.

E

li-

Não

para obstá-

culos e contratempos de carácter, indi-

cava remédios como

um

físico

de almas.

VII

Raro era o dia em que Marcos e Paquerette se não encontrassem, em casa dela ou em casa dele, um quarto de rés-do-chão,

como

arca de Noé, arvo-

rando cama, pilhas de

livros,

encavala-

mentos de quadros e gravuras. E a perder de vista divagavam sobre os tempos vindouros e o país trigueiro onde seu passo de mulher alta e esgalgada e

sua tez de loura destacariam poila

num

Quando

como pa-

centeal. se

não podiam visitar, se car-

teavam, falando-lhe o moço desta guisa: «jSó agora sinto

bem

a barbaridade de

não morar num palácio por sua causa, minha amiga! Nele teria um solerte ne;

!

FILHAS DE BABILÓNIA

l68

grinho para lhe abrir a porta



e

:

uma

passadeira,

em

— só a

i si

persa antigo,

para lhe receber os passos». Ela, sensibilizada, reflectia

— E um rapaz adorável Ainda

marcavam encontros em

se

concertos e bailes públicos e por aí pas-

seavam

sérios e graves

como

casal

que

à folia só concede a fineza de a ver gozar. E, se às vezes

faziam-no

uma valsa, como quem

arriscavam

senhorilmente

presta culto à nobre arte da dança.

Entretanto Paquerette entregava-se o

mais mecanicamente possível ao antigo tráfico,

porque não tinha outro meio de

vida e queria entrar

como

em

Em

terras de gentio.

do que Leo dia,

e ela

parisiense

contribuição

costuravam

talhando pelos padrões da

noite e

moda

e

edificando chapéus sobre as carcaças

de arame que se vendem nos bazares. E, no silêncio do trabalho, seu coração

sobrepassava seus dedos, entrevendo-se

em marcha

pela cidade descuidosa,

com

MAGA DAS RUAS

I

69

lojistas,

em mangas

o

reverberante, a vê-la passar,

toldo

cocheiros

jogando

de

camisa

num

esquineta

a

sob

banco de pedra, procissões devotas curriando a rua abrasida,

um

cal-

como rezava

viajante que despejara nos prelos

as suas impressões. E, trémula, sentia já

e

saudades de Paris, a alegre, ruidosa

obumbrante

floresta.

chegavam

do amante, inchadas todas de promessas e Letras

sobre

letras

chochas de realidades.

Nem com um

chavo furado, de adiantamento,

se es-

portulava a nababia. Próximos e afastados, os parentes todos estavam a ferro e

fogo

com Armando por môr da

de-

sobediência que ousara cometer e dos intuitos inconfessáveis

— Pobre rette,

anjo

!

que ainda nutria.

— suspirou

beijocando o retratelho que acom-

panhava a última missiva. É o que eu previa



Paque-

i

Marcos.

—E

preciso

ir

!

— declarou

ao encontro do

rapazinho, senão escapa-nos.

:

FILHAS DE BABILÓNIA

lyO

— Escapa-nos

.

.

.

!

?



e

no

geito de

dum

Paquerette sentiu-se a estranheza

modo

de dizer que denunciava propósi-

tos de

comandita a que ninguém o con-^

'

vidara.

porem, apercebendo-se do

Ele,

de

tais palavras,

— Escapa,

efeito

atalhou de pronto

não por impulso prómas porque a isso o coage a

prio^

com

família

opressões,

vexames,

dos os recursos de quem tem na

Compreende,

sota e az.

M.'"*

to-

mão

Paque-

rette ?

Compreendeu assente

dum

em

e desde esse dia ficou

seu espirito,

com

a evidência

postulado, que apenas por esforço

o amigo. E desde essa hora, mais afã pôs em sua

próprio podia recuperar

indústria, já

deambulando por boule-

vards e jardins, nas,

submissa



frequentando taver-

até

para abraços

velhos, a pedir podridero.

va-se

como

se

a

Mas

de

entrega-

sua carne estivesse

ausente de acto impuro.

MAGA DAS RUAS

I7I

Uma

manhã, estava ela ainda na cama, Leo deu entrada a um vulto muito estranho na penumbra, rolante e todo negro, afora o extremo dum dos vértices de alvo luzidio. Era o ilustre Méritac, vestido de luto pesado, e a sua calva

ebúrnea.

O ,

velho sentou-se á cabeceira e,aper-

tando-lhe muito a mão,

longado choro.

Não

rompeu em pro-

sabia Paquerette

que chaga havia a curar, tanto os solu-

eram convulsivos

ços

vam

e lhe

embarga-

a voz. E, estreitando-lhe a cabeça

contra o seio nu, lha afagou, proferindo

doces nadas, e Méritac era

como um

borrego preto entre as coixas níveas

duma ovelha

branca.

Desemperrou-se-lhe, afinal, a ra, retórico e

fala,

pa-

gemebundo, contar a sua

desdita. Falecera-lhe a cara consorte, a

virtuosa e admirável matrona M.""^ ritac!

O

génio benéfico do seu

companheira de suas rar

vigílias

ímprobo da Chasteté

Mé-

lar,

a

no elabo-

et le droit atra-

.

!

.

FILHAS DE BABILÓNIA

172

pers

.

siècles

les

fora ceifada

Nunca mais! nunca

parca.

placável

mais

— Pobre rette.

pela im-

— murmurou Paqueconsuma — exortou Leo —

coco

!

— Não Tinha, os dias cheios. — Estava nova. Sim, tinha mais se

talvez,

.

O

co anos do que eu ...

que

.

cin-

é isso ?

.

.

Ah, era boa de mais para andar neste

mundo.

.

— Coitado, faz-lhe — Era um anjo. .

corrigiu

meus

as

falta. .

provas

.

Foi» ela

da

que me

Chasteté.

Os

Academia revia-os ela e retocava-os. Era muito erudita. Chegou até a publicar um folhetim no Echo de Paimboouf. discursos na

Méritac assoou-se, limpou as

mas, tit

e dai inquiriu

lágri-

do estado de son pe-

chouXy de sa petite gigolette. E, dan-

dO'lhe pancadinhas na face e ela cha-

mando-lhe safadinho, todo dos necrológios.

se

desviaram de

.

.

MAGA DAS RUAS

lj3

— O teu meliante? — indagou Mé— Quem — proferiu fingindo

ritac.

ela

?

não acertar

com

,

da

o objecto

refe-

rência.

— O estrangeiro.

— Ah, um

sim,

.

.

o mocinho pálido que

tomou o passo na Rua da Sorbonne? Era um doido não sei dia nos

.

parece que partiu

— Não sabes? — Ceguinha eu com

êle.

.

.

.

.

.

.

.

seja.

Nunca

nada

tive

.

— Partiu — confirmou

mar.

.

Leo.

— Foi ma-

.

— Sério

?

— Tão certo como eu quarta-feira,

em

dia

vir à luz

do bento

numa

S.

Cu-

cufate.

Méritac mostrou-se jubiloso daquela

emergência las, trajo

ra,

que

prescrevendo mil caute-

decente, olhos baixos, candu-

apenas

em

e,

um

arzinho de maquillage

Paris o sem-sal é suspeito



— con-

I

FILHAS DE BABILÓNIA

74

vidou Paquerette a

visitá-lo

em

sua

mo-

rada, para o que deveria inculcar-se

como prima da cuidado to,

parvónia. xMas muito

— repetia — um vestidinho pre-

maneiras de menina burguesa, nada

Madame Boulet, a concieralma mesmo dum detectiva.

de farfalha. ge, era a

depondo um beijo muito casto na fronte do seu brinquinho, depois de larE,

gar a nota azul, se

foi

pincháo

e satis-

feito.

Os

primeiros dias de outono fugiam

rápidos e as cartas de

amor de Ar-

mando empilhavam-se, trasbordavam já duma caixinha de charutos, catalogadas e enastradas com fitilhos de seda. E, sendo sempre abundantes em afecto e em razoes, eram chochas em feitos. Entretanto Paquerette entesourava e Leo sorria o seu scepticismo de experiente

ante a idea fixa da amorosa. Já os preparativos de viagem corriam

sob bons auspícios, recebeu

ela

legrama-pneumático de Marcos

um em

te-

que

.

1 FILHAS DE BABILÓNIA

l8o

gens.

Um

outono com a dignidade

dum

de Thule vagueando de manto e co-

rei

um

roa por

uma

parque

de minhas

^i

— Longe — Eu

— tornou Marcos. Mas não

disso...

.

sei

.

o que deseja.

transportar-se

vés dos espaços, se transporta

ser

de bazar.

sei...

bem.

sei

viajar.

de

Paquerette não se deixa tentar

;

por sabedorias...?!

não

Ao pé

o castelo de Luy-

telas,

uma bugiganga

nes era



solitário.

uma

com

.

em

.

Desejaria

corpo, atra-

a rapidez

com que

em pensamento. Em suma,

estrelinha cadente daqui para

determinado ponto.

— Não! Não agora — respondeu

.

seria isso, pelo

menos

sorrindo àquela

ela,

recorrência de amor.

— Consulte o seu peito.

— Vão

escarnecer.

quereria ser

.

.

.

.

Quereria.

uma mocinha da

andar, talvez, atrás das cabras,

.

.

aldeiaT ferir os

dedos às amoras pelos silvados, nâcj saber que há mundo.



!

MAGA DAS RUAS

— Ora! Paquerette

Ser patega para cobiçar ser !

— gracejou o pintor.

— Sim, o coração

a

l8l

é insatisfeito.

Mas

melhor vida não será aquela que me-

nos nos faz sentir que vivemos?!

— Assim

penso

— apoiou

Marcos.

Cá por mim, amaldiçoo Eva, a primeira que bebeu o veneno do

mus que inventou o de o engarrafar.

A

espírito, e

alfabeto,

ou

Cadarte

selvajaria é o estado

mais idóneo à felicidade.

— ^jQuem o tolhe de para o centro de Africa — berrou o pmtor. — Afinal, Marcos ainda se não nesta hora? — (íQual o seu ir

?

defi-

é

niu.

ideal,

preguntou Paquerette.

— Ainda

não pensei Olhe, ser compreendido e obedecido. Para quê ? ^ Para tiranizar os ou.

.

.



tros

.

.

.

?

— Pelo contrário, para não

ter

o des-

gosto de molestar,

— Caprichoso — Devaneios pueris — proferiu o pin-

FILHAS DE BABILÓNIA

l82

tor.

—O

que neste instante há de mais

desejável é que na estalagem, que dali

nos está acenando pelo avental branco

do criado, os vinhos sejam genuínos, de três assobios, e os acepipes,

como

os

dos frades, dignos de se lhes rezar antes e depois.

Vamos, que estou com uma

fome exaltada. E, metendo para aquele lugar de sombras, por indústria adaptado a estância da gula e do amor, com ostras regadas a Saumur, começaram a banquetear-se. Reinou o vinho velho, a alegria e a intimidade, e Paquerette, regalada, julgava ressurgidos seus tempos de esplendor,

nos restaurantes caros do Bois,

Quando desbancaram, propôs nesa que se passasse àquelas

ali

a

lio-

a noite já que

horas dificultoso seria achar

transporte para a cidade. Aceite o que,

após breve relutância de Paquerette, docemente,

com

a pausa de

quem quer

matar as horas, foram subindo a colina adormecida.

:

:

MAGA DA SRUAS

l83

Marcos parecia taciturno, e Paquerette murmurou, procurando ler-lhe nos olhos

— mal

^1

Pensa

em bem, ou pensa em

?

— Penso — respondeu intôno de verdade. — Mil bem-hajas. era

si

êle,

com

Cedo, ainda os copos tilintavam nos caramachéis, se dirigiram a pedaria a pedir pousada.

mou uma

O

argola de chaves

uma

hos-

porteiro toe,

por

um

comprido corredor, os conduziu a duas alcovas que olhavam sobre imenso vale.

A

terra afundava-se sob a claridade di-

fusa das estrelas

tarem muito

alto,

mundo.

— Aí

teem!

chando as

e, dali,

parecia-lhes es-

suspensos sobre o

— pronunciou

êle,

fe-

janelas.

Paquerette alçou para Marcos olhos surpreendidos;

e,

como não encontrasse

os dele, proferiu

— Quero um quarto para mim.

.

!

.

:

FILHAS DE BABILÓNIA

184

— Só há

estes devolutos

— declarou

Embaraçados pareceram

todos. Re-

o porteiro. solutamente, após

mudo

conciliábulo,

murmurou Marcos para Paquerette Dormimos juntos.



.

— Ah, não! — ... como dois manos

A

rapariga quedou-se

.

.

um momento

silenciosa e despediu:

— Não, santo Deus, não — Vamos a outro hotel! — berrou o em tom desabrido. Não lhes há de ser fácil topar

pintor



mida

— sentenciou o porteiro.

dor-

Paquerette estacara de olhos no chão e,

em voz

— Em — Pois ri

O

seca, o artista questionou:

que ficamos, madetnoiselle ? seja

!

— ciciou

ocuparam um Marcos e Paquerette

pintor e a lionesa

aposento e entre foi

ela.

entendido que ela o precederia

e

que, mal terminasse seu amanho, daria

no

frontal a senha de livre entrada.

MAGA DAS RUAS

E

assim

foi;

l85

Paquerette passou adian-

te,

deixando a Marcos no vão da jane-

la,

chupando

talisga

e

um

nervoso cigarro. Pela

da posta adjacente^ quebrava-se

requebrava-se

em

simiescas revolu-

ções a silhueta esgrouviada do diácono bizantino.

Soaram no tabique batidas

com

as pancadinhas

os nós dos dedos.

Marcos

entrou.

Paquerette aguardava, recostada na

cama, os cabelos em onda, os seios debruçados da camisa de batiste lassa e transparente. Dois lacinhos azuis segu-

ravam-na às espáduas e pareciam ali aves do paraíso. Descansavam sobre o lençol os braços nus, abertos em lira, na cadência amorosa da garra que em momento delirante se há de fechar. Uma grande almofada, ao lado da cabecinha loura, chamava outra cabeça. Paquerette sorria e toda ela, na atitude de agrado e desalinho, dava a im-

!

FILHAS DE BABILÓNIA

l86

pressão de estar ansiosa pela romaria

ao templo

cie

Eros, esse onde os peca-

dos só se resgatam pecando.

Sem gastar vozes, com geito livre se bem que sensivelmente precipitado, procedeu Marcos às cerimonias do

com

E,

em

a segurança

homem que está

do

sua alcova, diante de sua amada, er-

gueu a dobra da roupa

e,

lançou sobre Paquerette. tiu,

deitar.

debateu-se

e,

sem guarte,

Mas

se

ela resis-

arquejante, ameaçou:

— Se me força, — Está doida! — Grito — disse novamente, alteangrito

!

do a voz. Ante o fulgor que chamejava nos olhos da rapariga, a acometida de Marcos quebrantou-se.

E

logo ela aprovei-

tou para ladear de tronco e tomar a posição

mais apta à defensiva. Marcos

sentiu a derrota e, invadido lera surda,

a sacudia Ihe

ao tempo que, a

com

duma cóuma parte,

dureza, a outra, pisava-

brutalmente o seio nú.

!

:

.

:

MAGA DAS RUAS

Paquerette, primeiro

com

depois

brio,

— Socorro

!

Num momento

87

com moderação,

rompeu

Socorro

I

!

chamar

.

a .

.

curto de trégua, ou-

viram-se pancadas no

muro

e a

voz

agra do pintor



i

Marcos, deixe

Marcos, deixe Esbaforido

lá esse

estafermo!



parvo,

e

quebrado no

moço balbuciou umas vozes sem ritmo e sem exame que soavam como tábua contra tábua. Em tom cho-

ímpeto, o

roso, levemente

molhado de indignação,

Paquerette dizia:

— sou e

i

Bem

uma

sei,

sou

uma mulher do fado!

perdida! jsou capaz de roubar

de matar! jMas do que não sou capaz,

juro-lhe, é

de enganar o

com um amigo!

meu amante

Juro-lho! Estou mais

baixa que a lama das ruas,

não

! .

.

.

isso

Marcos

não

puilou

! .

mas

isso

.

da cama, pálido. e

es-

túpido, e correu vivamente a vestir-se.

Já meio arranjado,

havendo readquirido

.

:

.

FILHAS DE BABILÓNIA

l88

a serenidade, acercou-se dela

em voz

e,

lenta, escarninha, disse-lhe

— Tem

razão,

vende amor

que M.^"^

esqueci

não o dá. Perdoe, foi uma loucura não ter tilintado sobre a pedra desta mesa os tantos francos da e

tarifa.

— Valia mais,

se perder

valia! Valia mais

do conceito que

não

lhe mereço,

e assim teria evitado o trabalho desta

emboscada.

— A sua presunção diverte-me. Emboscada — que outra cousa O !

.

?

foi?

^rPois

se-

nhor trouxe-me ao engano...

— Ao engano andei eu, minha branca flor.

Nunca, por nunca, imaginei que

fosse tão sábia a sua inocência.

.

— Quere dizer o meu desbragamento. Mas

diga, ^por que palavras

ou

factos o

autorizei a julgar-me disposta a ser sua

amante

?

— Pela razão mesrha de ficar neste quarto.

ter

anuído a

MAGA DAS RUAS

—A

cabala vinha de longe,

189

.

Per-

.

cebo agora!

— E' facto;

mentir- lhe-ia se negasse

que há muito nutria o desígnio de abusar da sua castidade

tom mofareiro.

— tornou

êle

em

— O passageiro da cabine

reservada era eu. Quanto a este lance,

não o preparei,

acredite. Aconteceu.

com reciprocidade de posse, para amanhã olhar a amante com aborrecimento, mas não com meQue

desejava

tê-la

nos estima a Paquerette, é muito certo.

não quis seguir o caminho ordinário que, percorrido por homem que não seja pateta de todo, leva sempre ao

Para

isso

alvo.

Queria doudice na nossa amizade,

um momento, por uma noite. Ri-se ? Tem razão, para mulher vulgar homem vulgar e eu não fui mas só de

salto,

por

vulgar.

Paquerette mostrava já no parecer aquele luaceiro de suavidades que era

o mais formoso dos seus encantos

não sabia

êle se

;

mas

era aquela expressão

FILHAS DE BABILÓNIA

igO

de ironia, se o júbilo do triunfo, se a luz de que se alumiava a firmeza daquela estapafúrdia lialdade.

— Repito — continuou traça

êle

— com

a

costumada do mais simples D. Juan ^

Paquerette teria hoje, conscienciosamen-

sujado as barbas do

te,

que lho digo

reca. Teria,

me

MataAgora não

tal Sr.

eu.

censure tentar enganar o

meu amigo.

meu amigo;

concessões

Ele nunca destas

foi

não as faço

a quem-quere. Fre-

qúentava-lhe a casa, frequentava

não era por

Não invoque

era por

êle,

o

si.

Por

;

mas, si

só.

homem que não vale uma

hóstia de estricnina.



Valha

não

que

valha,

i

é

meu

amante!

— Ninguém lho rouba,

Quem

esteja segura.

E,é precisamente porque ninguém lho quere, porque c um triste ninguém, um perfeito pedaço d'asno, porque lhe é rotundamente inferior, que Paquerette o ama, ou amou. deixe. E' comigo.



lho quere?

.

.

.

!

MAGA DAS RUAS

I9I

I

— Não

deixo, já

poisou as patas.

,

bem



!

lhe

f

se era

que a alimária aqui

Ora diga-me reflectiu amor o sentimento que :

<j

votava? Não será antes piedade

e

daí o sacrificar-lhe, por brandura de

[

coração, o que l

uma

mulher pode

sacri-

Não, não era a êle que amava, mas na condição do pobre diabo a sua [(mesma condição de mulher que tem alficar?

1

[

turas...

l

gosto de sacrifício, sadismo,

necessidade



ii

}

com

j

i

^

êle

dum

Puh, e empurra-me a que case ?!

— Porque

I

'

„;

i

I

i

í

t

gigolô.

não? Amante

é

um

e

ma-

rido é outro. Aquele deve ter méritos,

faculdades de simpatia

;

a este,

como

ra-

zão social, tudo basta e nada basta.

Armando é filho de mandarim, será amanhã um quidam rico, convêm-lhe Não desista .

— ^iQuere

continuar, então, a ser o

do pobre rapaz? Sempre, e a ser sempre o amigo

Mefistófeles



.

verdadeiro de Paquerette,

FILHAS DE BABILÓNIA

192

— E' uma crueldade. — E' um gozo para para

si.

Seja a

mim, um betr esposa, mas não a aman-

Ele não a merece

te.

deixa

uma mulher

ter

;

um homem

fome

qut

e frio, sofrei

todas as misérias, não a merece. E' ume indignidade de carácter demorar nele

í

simpatia, quanto mais o amor. Depois.,

depois Paquerette é

uma harpa

delicada

não sabe tocar. Paquerette, que concertara seu desa

que

êle

com

escutava

linho,

evidente

praze

aquele discurso cínico, às mulheres agra

dando sempre as flores que lhes as mãos bizarras.

esfolhan

— Mademoiselle Paquerette enganou —

-me bem enganado reatou Marcos, me neando a cabeça num geito benigno. — E enganou-me porque a tinha no ro das pessoas sensatas.

Uma vez que acei

tou dormir aqui, implicitamente a julgiu

rendida ao que acaba de negar-me.

— De corpo alma, explosivamente — Bastava-me de corpo. Assim com^
e

MAGA DAS RUAS

num

parêntese

em que

IqS

se exerce a lou-*

cura da mocidade, os caprichos do acaso.

.

.

a resolução elegante de evitar

um

contrasenso.



j

Que

— Um

combinou à porta ? absurdo. Senão considere Pase

:

uma rapariga adorável, luxuestá uma noite que, de igual, só as no Paraíso de Adão e Eva. Não

querette é riosa;

noites

acha? Imagine que se observava à risca o que se preceituou de antemão e que,

em conformidade, me punha a ressonar a seu lado, costas com costas. ^Não era uma torpe ofensa à sua juventude ? Era. Bem sabe que, ao menos que se não seja

um

enjeitado da natureza, apenas se

dorme insensível ao lado duma mulher quando é feia como o Demo ou velha como a Notre-Dame. Paquerette olhava para êle

muito

e

fitos

luminosos.

com

Um

brando banhava seu rosto

olhos

sorriso

duma

con-

descente doçura.

— Viu

?

.

.

.

— tornou

êle,

arripiando i3

:

HlHAS DK BAHllÓNIA

104

I num

caímos

bigode

^)

contrasenso

temível.

uma pausa em que a sua cabeça dobava com pezar, declarou voito para Paris Bem. A estas horas!?. Lá hei-de chegar. Vou agastado E, após

— — —

.

,

.

.

.

porque

fui

néscio,

.

mais néscio que

um

donzel. Julguei-a concorde e quis dar-

me o

prazer espontâneo, à troglodita.

assalto. Assaltei-a

verdade

?

como um

Perdoe, se

De

não c dou tempo ao temtigre,

po, lugar a que a volupluosidade que

em mim

havia sidade

em

alevantasse a voluptuo-

passiva

que há

em

si,

como

bem organizado, Panão teria chamado o «outro»

todo o corpo

querette à baila.

também as pálpebras sob o peso sensível duma leve melancolia, e os braços, como dantes, tomaram a posição de braços que E\d dobrou a cabeça, desceu

estão

em guarda

— Fui um

;

para abraçar.

randc tolo

— continuou

êle.

.

:

MAGA DAS RUAS

num tom



to.

ÍÇO

arrastado de arrependimeii

Afinei excessivamente

jos e a

corda estalou.

Acabava de

E

meus

penal

é

-

dese-

pena!

laçar a gravata e foi cor-

em busca do

rer os quatro cantos

junco.

Depois, veio para o pé da cama, de

chapéu na mão,

e ai se

quedou

trejei-

tando^ indeciso.

— Enganou-me

bem enganado!

tornou a dizer, de olhos



já sorridentes

nos olhos trémulos.

— Foi riu

imprudência minha

!

— profe-

de rosto submisso, voz que-

ela

brada.



]

— declarou, palavras. — O

Pois vou ficar a Paris

!

sem embargo daquelas meu amigo substituir-me há em tudo o que fôr mister.

— Mas

ve-me.

fique!.

.

.

Fique.

.

.

ou

le-

.

Marcos quedou

um momento

a con-

templá-la e disse

— ,:Para que

se repita

o absurdo?

Paquerette baixou os olhos e naquela

!

:

FILHAS DE BABILÓNIA

196

humildade e naquele silêncio se

certifi-

que o absurdo se não repetiria. Mas o demónio do orgulho, o despeito da sofrida derrota, a quebra do impre-

cou

êle

visto

levaram-no a

dizer, crispando os

nervos

— Agora E

é tarde

resolutamente se meteu a caminho

de Paris.

IX De Madame

Méritac a Armando Matareca

Meu amiguinho Acabo de empilhar a um canto da mesa as tuas cartas da última semana; era uma inundação, é :

um

do

do qual o chinês pesa-papéis me olha já por cima do ombro com ar de muita ironia. Ainda as não li, nem é provável que venha a lê-las; teem mais letras que agora

castelo,

alto

Les Misérables e,franquezinha, falta-me fôlego para tanto.

Ao

acaso, apenas, relanceei

um

uma

fra-

pensamento além. Sofres, morres, vives no inferno, e queres saber porque te não escrevo, o que faço, o que não faço, o que me será azado fazer ou não fazer. Deus do céu, a tua se aqui,

FILHAS DE BABILÓNIA

19^

I curiosidade enfadar-me-ia se não

esti-

em que até eram cordiais. Náo

vesse nesta hora das Santas a conjurar o diabo

não escrevi, pronto. O que faço? Olha, o teu horóscopo não se enganou de muito. Mademoiselle Paquerette está morta, bem morta e em seu escrevi porque

invólucro terrestre vive rescente

Madame

uma

Méritac.

fera e flo-

Não

te es-

pantes, a outra, que do retrato de Leon

Bonnat.

em

trajo cor de

hierático

mas

olhar

defronte,

par

ali

morango,

parecer afável,

mange

me

geito

está a

des pissenlits

la racine. Já lhe desfolhei

perpétuas

sobre a campa, regalei os pobres, podei os cravos,

me

para que a sua sombra

seja propicia.

Ao

deitar, êle

duma

cama, eu doutra, todas as noites rezamos a novena pela beatitude da sua alma.

Há uma quinzena, amiguinho, que oOU Madame Méritac à face de Deus c d js homens. Há uma quinzena e parece-rne ainda ontem!

Nunca o boulevard

MAGA BAS RUAS

1

99

me deu uma impressão de alarido e jovialidade como essa quinta-feira de sol em que um coche catita me desceu coberta de branco e vaporosa na passadeira vermelha que tapetava a escadaria nobre da Madalena. Leo conven-

ceu-me a não me pintar nem empoar, e eu ia assim com a face que Deus me deu, como uma açucena dos campos. Trabalhava-me o receio de que parecessem mais velhos os meus vinte e três anos, e

não houvesse frescura em

minha pele. Os olhos, de quem me via, asseguraram-me que não; M."^^ la Vicontesse de Broussailles

como

a

uma

beijou-me muito

e,

criança, afagou-me os ca-

minha pombinha minha doce pombinha! E^ uma dama muito respeitável. Um operário, também, à entrada, berrou mesmo no nariz de Méribelos dizendo

tac:

o

:

P/j; une jolie poule!

meu

!

— com o que

esposo ficou desvanecido.

Imagina tu a grande nave da Madalena cheia á^ luzes, de casacas pretas e

.

FILHAS DE BABILÓNIA

204

— Falta-me de

terva casa.

Logo,

Celina.

congressistas

entrará

Não tenho dama que

Ela tinha

tacto

e

mesmo

ter-lhe-ia

uma

ca-

nesta

os receba.

dedo inspirado

lido

— — — Não, tolinha, é um

eu.

de síntese

livro

em mãos.

que trago

— Se queres — Não, missão

.

umas páginas de

La folie dans le faux ménage. E uma comédia.^ preguntei scientifico-social

.

...

tal

esposa

...

só a

uma

incumbe

esposa

.

.

.

a

uma

E preciso

que sejamos morais. Não houve recepção aos congressistas

do

ilustre

sociólogo, e

um

inverno

começou

logo, cheio de vento, de chuva,

isolador

como

largava ai

li

;

a peste. Méritac não

me

exigia-me no seu gabinete, e

toda a colecção de Arthème, desde

Mémoires dun àne, ao Roi Pausole. Mas eu, que prezo muito a liberdade, as

fugia-lhe e ele corria atrás de

mim. Para

próximos e afastados, para colegas

e

outros, eu era o sua secretária, a sua

.

.

.

:

.

MAGA DAS RUAS

205

bem embora eu não dedos em tais aparelhos.

dactilógrafa,

saiba

pôr os

Ele é

que pianotava, para dar à casa o simu-

que era

lacro de



^*

Minha

eu.

flor

vez, mais terno

— disse-me

êle,

que de ordinário

uma

— se

passasses a morar de todo nesta casa



E a moral, meu velho ? — A moral está salva. Exerces

?

j

funções

.

aqui

.

— De amante Não, meu só os canários. não. Em — Como senhora .

.

.

amigo,

gaiola,

.

.

— Senhora de quê — Do meu coração

? .

.

— Ora, não dá para um — Minha senhora. minha mulher. pilaf.

.

.

.

casando.

— É assunto para -

Trouxe-o

muitos dias. afervorou.

em

A

reflectir.

suspensão e

em

transe

minha hesitação mais o

Quando lhe

dei uma resposta,

entre favorável e dubitativa,

para os joelhos e disse-me

puxou-me

!

2o6

..

FILHAS DE BABILÓiSlA

— E hás-de

amar muito o

teu papá-

zinho?

— Consoante fôr amada. — Dormiremos na mesma cama? j

--Ah, isso não! Não posso dormir acompanhada Deus me livre .

.

,

— No mesmo quarto, queres — Se não ressonares?. — ^E hás-de muito, sim Nesse ponto, sou uma — Nisso não Estás-me a ofender. — Bem, bem. Olha ... rapa?

.

.

sê-lo

fiel

?

.

.

fera.

se

fala.

e

.

.

.

£)

zinho ... o gigolô ?





Qual gigolof Diabos me levem,

percebo

.

.

se

.

— Diabos me levem, não Uma não E muito senhora — Entendido, não torno a — Correste então com o gigolô,., assim? não — Qual gigolô ou qual carapuça?! se diz.

fina

jura.

feio.

.

jurar.

é

Fale claro!

Engasgou, não tornou a

importu-

MA6A Das ruas

com

nar-me

207

devassas da minha vida

particular.

o meu casamento. Decidiu-se hoje, amanhã encetou-se o

Assim

preparo a

se decidiu

duma

tal

revolução. Estofou-se

casa de novo, trasteou-se

nho para mim,

um

um

salãozi-

quarto para Leo,

correram-se os armazéns de

modas

e

de

bragal, distríbuiram-se anúncios, solici-

tou-se por via do patriarcado a

bênção

Sua Santidade. Foi um mês de prodigiosa azáfama nesta casa. de

Na

uma

Méritac

scena de imorredoiro

De braço dado me levou

rismo.

trar-me ante o retrato de Celina pedir-lhe

a

êle,

com

véspera, portas a dentro, tive

vénia para

o

li-

a prose,

com

matri-

mónio.

— Minha doce, minha inolvidável es— tu em minha alma posa — dizia êle

onde há ria

;

paz

um

lês

ahar perpétuo à tua

tu sabes as desordens de

um

sabes

coração deixado só

como

a soledade

me

e

memó-

que

é ca-

fogoso; tu

é insuportá-

.

o DERRADEIRO FAUNO

estivera nas garras

uma

belos louros, as

costas era

duma

fera.

217

Dos

ca-

trança desfeita para

como ramo

de

mimosa

amarfanhado outra, descendo-lhe pelos peitos até varrer o chão, lembrava vara ;

florida a

que se apoiasse. E, pelos ras-

gões do chambre,

um

seio branco, re-

chonchudo, com mais vergonha que se o próprio Padre Santo António lhe publicasse os segredos,

mostrava o ma-

milo, tão rubro, tão jucundo

morango primeiro que pinta

como o no mo-

rangal.

Chorava em fonte, e suas lágrimas punham no fogo rijo das dez horas um doce refrigério de orvalhada.

— O ^

i

diabo fez pouco de

clamou o abade. mulher.

—E

—O

ti

?

1

— ex-

diabo é espírito,

.

— redarguiu chocarreiro. — ^E

espirito

na em tom

cornos não é

? ^

?

j

!

O

Felicia-

carne e

senhor já não se lem-

uma

bra de ter lido que não

foi

nem duas que ó foram

caçar escarra-

só vez

!

2l8

!

fILHAS DE BABILÓNIA

panchado na cama com as freirinhas de Santa Radegonda?! çNáo se lembra? Homem, ao que come e ao que dorme está mesmo asno chapado Jesuíno, levando em graça o remoj

que, pôs-se a carear a mocinha. ela, inflectindo

especara sahos,

em

Mas

a cabeça sobre o peito,

seu choro, manso, sem

como de

vide aparada fora de

sazão.

— Deixe-a,

está



sufocadinha

— tor-

nou Feliciana. O Baltasar maluco é que viu e é que conta. «Alto como a lôrre; anda que desaparece; com o lume dos olhos acende o lume do mato; êle passa e íicam os penedos a abanar» (jora o que há-de ser? Todos nós conhecemos essa história respondeu o abade com ar de a história do bicho mau que rábula lambe a donzelia às moças emquanto um



— —



cristão reza o credo.

minha

jNão

nasci ontem,

rica

Exaltada, Feliciana invocou o teste-

I

o DERRADEIRO FAUNO

munho dos Escrituras;

pastores e a e,



219

nas Santas

azeda, puxando a

ca-

chopa pelo braço, de chanquinha chocalheira pela casa dentro, despediu.

Padre Jesuíno volveu à varanda mascando aquela máxima dos ascetas sobre as filhas de

Eva Non

pecimia tam

difficilis

lier.

Estava

:

est vel

murus^

custoditu

um grande

vel

quam mu-

dia, e ali

quedou

mais tempo do que lhe era necessário para

rezar

consolado do

tércia,

sol

que lhe varria o reumatismo dos ossos

na terra de batatal, puxava cá para fora, pequeninos, verdes e dobrados e,

como orelhas de gato, os olhos nascentes. Nas velhas cepas, contra os muros, os pâmpanos tinham já mais de palmo, e

os abrunhos,

em

suas árvores, eram

maiores que os ovos da escrevedeira.

com Deus, cede que tinha uma certidão

E, contente consigo e

dendo à idea

de óbito a passar, se

No

foi dali.

porém, os arquejos da desflorada soaram alto, perturbando-o. cartório,

220

FILHAS DE BABILÓNIA

I duma

avisando

angústia que parecia

sobreexceder o pudor feminino enxovalhado.

E

Jesuino, largando

um

movido pela curiosidade,

também ao nela a que

a caneta,

pouco

desenfado, postou-se à ja-

uma

alto, se ageitara

videira ferral, caindo de

em

gelosia de

comodamente deixar ver sem Devassava-se

dali

o longe

e

modo

a

ser visto.

o perto, as

abas do povo farfalhudas de primavera e

vasando verde até os montes de além,

cobertos ora do gris rastiço do mato

ora do negro drapejado das moitas % pinhais, e na esguelha

em

do prédio

ângulo se desdobrava

—a

— que

cozinha

e dependências, sobre as quais a cha-

miné aà lavradora», corpulenta,

perfi-

lava o seu chapelão largo de pagode.

Assestando o olho, através da janela corrida da sala de jantar, de pronto Je-

suino enxergou o lance

um

Feliciana

com

na mão, de cócoras diante da

pires

rapariga

:

;

esta,

trecortando os

num mocho, ensoluços com o beber a

sentada

:

o DERRADEIRO FAUNO

lentos goles por

uma

chávena.

221

Em voila

via-se luzir o verniz das cadeiras de palhinha, e na gaiola de folha, preso pelo

pé, o papagaio figurava

numa daquelas

suas melancólicas crises de proscrito,

com lã

a

cabeça sob a asa^

um

novelo de

verde mal dobada.

Com

brando

geito,

sem pôr impa-

ciência nas preguntas, interrogou Feli-

em

ciana à moça, mal a viu



^jDize

lá,

sua sina

tinha parecenças de ho-

mem ? f

— Não tenhas medo de culpa tua.

.

.

^:|A gente

falar,

pode

não

foi

lá adivi-

nhar as armadilhas que o demo tece?!

Não pode! r •

— Conta

lá...

faltaste

sabes que não

Não o quero aos meus quanto mais a ti que nunca me

quero o teu mal. inimigos,

Bem

j

ao respeito Escândula, eu, tam!

bém nunca te dei. Quando andavas de maranha com o meu estudante que é um

:

222

FILHAS DE BABILÓNIA



não está aqui que nos ouça aconselhei-te para teu detrimento ? Que te disse eu ? Que lhe não desses trela que isto de Coimbra e tarimba é como amores de freira e flores de amendoeira que cedo vêem e cedo vão. Eu não queria encarregos na casa, e bem hajas tu que não fizeste ouvidos moucos. Passou... Mal-empregadinha o galo doido



êle

j]

ç!

i

suceder-te a avaria tua



!

.

.

.

Aquilo

foi

por

madrinha, essa zouvineira da

Rita Quaresma, que te não pôs por



mão com a fé toda, no baptizado, Pobre de quem nasce com má estrela Não chores mais ... és uma feiona a chorar. a

j

!

Chama-te mas é à Nossa Senhora da Lapa que te alimpe da sarna do mafarrico. Promete-lhe nove voltas sem fala.

Mas agora dize lá: tinha de homem ? ^ ou de bicho ? tj

parecenças

Vergonhosa, a mocinha obstinava-se

em

seu mutismo, até que, muito apalea-

da, muito afagada, lá contou

mais

flébil

que

fio

numa voz

de água a correr

!

o DERRADEIRO FAUNO

.

223

— Andava

eu pelo pé da Fonte do Vermelhão, a fazer na renda, com olho no gado, não

me

caísse

por

algum



anho na cova da raposa. Perto badala-

mas eu não via reIbanhos nem pastores. De repente, ouvi i^vam os chocalhos,

um

restolhadoiro no orgueiral

avistando

para

uma

e^

borrega, disse de

com Deus

:

não

mim

Dialho da borrega que

caiu nas madrigueiras



e fui a correr.

Não tinha dado grandes passos quando me senti agarrada pelas costas e, em menos dum amen-Jesus, dei o tombo no chão. Cuidei que fosse o Bahasar, que

não é a primeira que faz, e peguei him calhau para lhe dar com ele ^ Ora, >abe vocemecê como se descasca uma á

Assim fácil me abriu os dedos. Depois tapou-me a boca, a cara toda

3eijinha?

.

Ai triste de

mim

!

j

triste

— Fartou-se — e !

iana deu

um

estalo

a

de

.

mim

senhora Feli-

com

a língua na

)esarosa significação de cousa ruim con-

umada.



^

Pelos vistos era

homem?

!

228

FILHAS DE BABILÓNIA

em

de coalho

que tivessem caído duas

pétalas de rosa, e o pescoço, mais alto

que de razão, parecia na parte que se sobrepunha ao chambre, de andar à

queima do

sol e

do vento, cingido duma

larga gargantilha de oiro velho.

Todo

o

corpo, entre fresco e madurinho, tão enfeitado de graças que se dissera de íidalguinha, de pastora não.

Padre Jesuino, posto que entrado nos sessenta desde o

S.

Mateus, não

perdera ainda a faculdade de admirar

uma

bela

natureza

de

mulher.

Nus,

agora, só os corpinhos dos neófitos lhe

mãos calosas. Deixá-lo, aldemenos aos olhos, emquanto o viá-

passavam

pelas

;

não entrasse a porta, ninguém poderia roubar o condão de ver Elevá-los, com a hóstia, no ofertório, tico lhe

enlevá-los sobre as maravilhas terrenas

do Senhor, era sempre adorar a divindade E forte desta moraJ, Jesuino seguia atentamente o exame de Feliciana. Aquele corpo era luxurioso e fascinante,

!

:

o DERRADEIRO FAUNO

dos

tais

que tornariam toda

de inverno

Bem

um

229

uma

noite

só instantinho de céu.

excogitado, porém, outros sinais de

não mostrava além das dedadas nas pernas. E tal comedimento num

violência

bicho e

tal

um

Ihiam-no de formar vel

num homem

aspereza

to-

conceito razoá-

sobre tão singular passo.

Antes de enfiar-lhe a camisa lavada,

desprendendo até tais

éle os

incensos vege-

do estendedoiro, Feliciana dete-

ve-se a cobri-la

dum

olhar último, re-

missivo. E, provavelmente,

achando-a

também núbil, com um ar fragrante de acácia em flor, rindo-se proferiu Não vá a tua desgraça mais longe :



que agrados não

homem. Tens

te

faltam para caçar

até de sobra.

guarde, o bicho que

foi

.

.

Deus

não era

te

mau

entendedor Arreiadinha de fresco, penteada, a

Micas Olaia amanhecia outra. Feliciana exultava

— jVês

como

a

minha roupa

te vai

!

23o

bem!

FILHAS DE BABILÓNIA

Quem te vir e te não conheça, tomauma

por

-te

a saia

.

assim

.

.

mestra régia. Apanha mais

também

.

.

.

Eu quando

sabia luxar. jriVá, sempre que-

ver se alguém no povo

ria

era nova,

te fazia isto ?

As tamanquinhas de Feliciana

estre-

loiçaram e Jesuíno desviou-se da janela.

Em

seu espirito ficava assente que a

rapariga fora violada de maneira que

não

honra ao seu instinto de mu? Ná, Que dissimulasse

fazia

lher. I

^

.

.

.

!

aquelas coisas escondiam-se e ela não

escondera,

e,

uma

vez publicadas, ex-

plicam-se e ela não sabia explicar. bicho.

que

a

.

.

Mas

Fera não. Diabrete? Verdade

casuística

da confissão previa

com o demónio. O incubato? Lampanas! Mas também é certo, no mundo dos fenómenos há mistérios o incubato

para os quais a melhor classificação são ainda estas palavras absurdas.



e

.

.

o senhor abade assim matutava,

quando Feliciana apareceu com a moça a pedir novamente os exorcismos.

o DERRADEIRO FAUNO

Travando da bolsinha de

23 1

chita

com

a sobrepeliz,

o barrete e o ripanso, Je-

sulno

logo

saiu

com

elas

direito

à

Igreja.

Lá fora, no largo de S. João, o povo andava de alevante, como se o campanário houvesse dado voz de franceses à vista. Tinham-se esvaziado para ali as casas e as hortas, e mulheres, pastores,

homens armados de espingardas quilhas para irem bater a Serra,

mas ásperas

Com

e

aulidos

em

ga-

comentavam.

o corredoiro, os gados que volta-

vam da pastagem ali

e for-

matinal estancaram

a monte. E, assim tumultuoso, só

arraial

de

nómadas

ao

erguer

das

tendas e atafais

Mal

se apercebeu

da Micas Olaia, a

par do abade e de Feliciana, a turba-

multa

convergiu

para

eles

e

envol-

Falavam uns confusamente, à characina, erguiam outros o punho fechado em ameaça. E era um nunca aca-

veU'Os.

bar de fisionomias lorpas de

sçnsilpili-

!

:

232

FILHAS DE BABILÓNIA

dade e de dizeres pernósticos da criatura



jlsto foi

em

volta

façanha de vagabundo!

— jQual, mas foi de lobisomem! — Juro pelas meninas dos meus olhos foi

-

— protestava

um

pode

urso sábio ou chimpazé

ter sido

brasileiro

— que



escapo da jaula aos saltimbancos.

— jNão

culpem, não culpem

homem

— rompeu a clamar a senhora Feliciana — Culpem mas o diabo ne-

nem

fera

!

é

j

gro do inferno que

já pela

boca verda-

deira do Baltasar doidinho o apontou o

Deus que tudo vê e tudo sabe O Zé da Venda torcia os lábios,

in-

crédulo.

—O

Diabo!? Tem as costas largas acabou por proferir com evio Diabo Aqui m'amigos, quem dente desdém.





armou armou

à mulher nanja à cristã.

Coitanaxa, que se chame à milagrosa

Virgem Santa Eufemia para que o estrago não vá mais longe. retorquiu a moça Não há dúvida .





.

.

o DERRADEmO FAUNG

233

—a

Virgem Santa Eufemia, que ajuda tanta mulher a bem parir, bem pode livrar esta desgraçadinha da prenhez. Pode. Agora lá quanto a que o demónio se disfarça em chibarro e outras alimárias para fazer pouco das donzelas, é mais que sabido. Olhem do padre

\

que a

em trajo

S. Felipe até

se lhe apresentava,

ou não

escrito

cujo ânimo a

madama

o grande cão

!

^rEstá

meu senhor?

está escrito,

— Está

de

— respondeu Jesuíno,

nada era mais

acessível

que à comodidade.

— Grande

a

um

coira

— dizia

gingando

canto o pai da rapariga, a

«para a sossega»

vinhaça

não

1

foi



quem

tinham atufado de

Quere fazer acreditar que homem que se deitou a ela !?. j

.

Eu bem sei dos maninelos que lhe andavam a cheirar às fraldas... Bácora, j

até o Baltasar

maluco

trazia

babadinho!

— Mas não me quis — rosnou o doi— Sanxa-marranxa, mais ra! — em pezaroso, por guina!

do.

lhe vale-

I

e

geito

II

José Quaresma, presidente da junta

de paróquia, lançou

uma

Leopoldina

Quaresma

de porta

em

a tia

e

finta

;

sua

filha

tiraram,

porta, por aquela corda de

povos, a esmola para

S.

Sebastião;

e,

no último domingo de Setembro, já os campos, borrifados pela névoa, se cobriam da penugem rubra dos centeais nascentes, pôde celebrar-se a

propiciatória

festividade

glorioso que

Roufins

ao mártir

advoga junto da cúria

leste as aldeias linas,

em

andaços

e

ce-

montesinhas contra mamais flagelos que, a não

se lhes descobrir

caminho, devem ma-

nar do céu. Veio de sermão encomen-

dado o padre Jesuíno, que

era por ga-

o DERRADEIRO FAUNO

24 1

Ihardia de parecer, largura dos peitos, afoiteza

no

gesto,

em

tudo apesar dos

De em

sessenta anos, o perfeito pregador.

minuto a minuto, até o meio-dia,

suas éguas pretas rabonas, foram apean-

do os curas das redondezas que vinham acolitar.

Rogou mais o Quaresma

a cha-

ranga de Vila Leboreira tão sabida capela a magnificar ao Senhor,

em

um

arraial a fazer virar

em

como

O

danso.

povo, largando as ovelhas paridas e os

porcos no chambarii, levantou dos gares

e,

lu-

toda a santa manhã, moroso,

engoiado nas capuchas os caminhos da sua

tristes,

encheu

sombra movente,

penitencial.

Pela longa

Nave

fora,

no desdobre

dos vales e no escorregadoiro dos tesos

em que

latejasse alma, sonhava-se, ha-

via semanas e semanas,

O

com o

fim dos

dava-o o monstro, tão misterioso como contumaz, que de uma tempos.

sinal

em uma roubava prendadas

a flor às donzelas mais

e casquilhas.

Zagaias e va16

FILHAS DE BABILÓNIA

242

queiras,

em

moças de jorna

morgadinhas,

e

despeito dos resguardos e esconju-

ros,

sofreram a

breve trecho,

temerosa. A-

desfeita

num

circuito de muitas

não havia aldeia ou almuinha que não fosse provada por aquele génio es-

léguas,

tranho de concupiscência.

Debalde o serrano apelou para ho-

mens da governança e santos bons advogados.

A

serra que,

com

os seus cônca-

vos de leiva gorda lhes enchia as arcas de grão e os palhais de palha, lhes fartava

rebanhos

e boiadas, e,

ano por ano,

os

abastecia de lenha para a fogueira e de

mato para os jante

estábulos, oferecia ao pu-

padreador velhacoito seguro

e in-

Scismaram ainda em lhe pregar o fogo de lés a lés. Mas, além de que seria deitar a correr a fome nedevassável.

gra, defesas

ao incêndio havia planuras

calvas, barrocais e lájea,

com

morros calcados dt

cafurnas onde acoitar-se

um

batalhão de ogres. E, que assim não fosse,

salvá-lo-iam

os

jarretes

mal-

o DERRADEIRO FAUNO

248

ágeis que de cabrito bravo, que lhe per-

mitiam de violar no

mesmo

dia,

à tar-

uma cachopa de Nacomba, e, às trindades, uma mateira de Ren-

dinha,

logo

dilhe, a três léguas

lhos

das velhas, por ata-

onde não consta que santo rom-

pesse as sandálias.

Batidas sobre batidas foram levadas

homens

a cabo pelos

válidos das po-

voações, mediante o levantamento

Ao toque

massa.

bem

em

de buzinas, espoletas

escorvadas, podengos e mastins

aos rastos, calcaram bouças e espiolha-

ram

penedais.

fusilaria

boca

!

De tempos em quando,

nutrida

pega

pavoridos;

!

e,

crepitava;

vozes

de

repercutiam nos ecos es-

da surriada, sucedia

er-

guerem morto o raposo inexperto ou o caçapo maluquinho, logrados pelo espavento, ao farandolar na relva ou ao dormir a

sesta.

Do decantado

bicho

mau, nem pegada.

Acabaram por desistir era combater com o ar, que de ar ou elemento pare;

FILHAS DE BABILÓNIA

244

eido devia ele ser

feito, e

com

a

monta-

nha/ cousa assim incomensurável violável

Em

e in-j

como Deus.

algumas freguesias, os párocos,^

trepando aos visos dos montes, de cruz

benzeram o termo; gargantearam os exorcismos de Santo Ambrósio alçada,

arcebispo; os

fiéis,

chamaram em

mais

por santos, patriarcas e confes-

sores; foi

como

as cigarras, nas segas,

a pedir orvalho ao céu tiaga

latim,

em

fogo

;

a bes-

não sofreu mordaça nem

tro-

peção.

Redobraram de sentido pastora não saia a monte sem a escoltar homem ;

aparelhado dos pés à cabeça de armas de escapulários.

De

noite, os

e

mais ardi-

dos pernoitavam de plantão na boqueira das ruas e na encruzilhada dos cami-

nhos; acendiam lumaréus pelas eiras;

andavam em rondas

pelos quintais e de

espera por detrás das paredes. Muitas noites,

aldeias inteiras

olho, sobressaltadas por

não fecharam

um rebate

falso

Ò DERRADEIRO FAUNO

ao pegar do primeiro sono.

I

Ao cabo

de

tempos, os serranos andavam derrea-

&

I

245

dos de pavor e daquela trabusana de guerra.

Os povos deram,

então, largas às ver-

sões mais maravilhosas. Se não era ho-

mem, que eram -humanas^ nem

aquilo andanças sôbrefera

dos bosques que

nem diabo que lhe galhos, nem lobisomem

tinha discernimento,

minguavam

os

que se movia sobre dois pés, jque ria? Velhos pernósticos,

almotolias de

barro,

nados entre as

deram corpo à

crença do Anti-Cristo, debutando seus flagícios

Em

tal

com

se-

em

forçar as donzelas.

asserto destoavam, porém, os

espíritos realistas que,

em

negócios de

amor por brando tagaté ou raivoso geito, viam sempre uma violência bem vulgar deste mundo. nestes auges que o Quaresma

(Foi

que além de devocioneiro votava o disvêlo mais cauto à integridade de Leopoldina, pucela viva do sangue e taful

FILHAS DE BABILÓNIA

252

agravo ao

silêncio,

f'

uai balbuciar de

menino, a cochichada das rezas, o garro

dum

padre. E, na

pi-

morna morri-

nha que soprava da igreja e engrossava com o vazio da sacristia, o santo sacrifício foi passando por sobre eles, de cavaco sobre colheitas e fenos, patético

no Agftus Dei, de

S.

triunfal

no Evangelho

João.

Breve, ainda o abade do Touro, naquela sua voz encatarroada do cigarro matinal, não garganteara o e já

ite

missa

est

o alevante soara, rumoroso, arras-

tado,

como por grande

gada duma-

faina.

E não

caterva a

lar-

tardou que a

padraria toda entrasse de roldão a des-

paramentar, zangarelhando, cruzando cutiliquês

conforme seu desafogo de ho-

mens naquele tica

trânsito

da rigidez hierá-

para o mais solto à vontade.

Leopoldina

reapareceu

a

chamar

suas reverendíssimas; e largando logo toque-toque, ruela abaixo, puseram pé

em

casa do Quaresma,

com

os era-

:

o DERRADEIRO FAUNO

— Vejamos — proferiu cinto, atento

na roda

— Primo:

dades de arbítrio.

o Padre Ja-

atenta.

umas

se rejeita

tenta por outras, é

203

um

ente

só se

e

com

facul-

^É ou não é?

— Concedo. — Secundo: quais

escolhe? As boni-

E, portanto^ susceptível de gosto,

tas.

mesmo dizer, um delicioso. Isto é um dom raro das criaturas. Nego confessou o Padre Jacinto ia



— os



dons são o imaterial, do puro en-

tendimento, e tinto

só vejo

ai

em

jogo o ins-

da torpeza.

— Santo Agostinho chamou à formosura lume cheiroso da graça.

que

êle

O

facto é

sabe distinguir entre mulher e

mulher; vai direito ao lume cheiroso;

não

se engana.

Imanente a este hábito

não existirá, colega, o poder dum dom muito espiritual? Lá do fundo, o Padre Jesuino, de pé,

de selecção

em

riste

^

a travessa

em que acabava

de

espostejar dois loiros capóes, vozeava

FILHAS DK BABILÓNIA

264



^

Sabichôes



do cabo, vai um naco

de frango?

Durante minutos ouviram-se apenas as vozes gulosas e o rascanhar das fa-

amputando. Padre Aurélio saboreou do prato, bebeu um bom gole de vinho

cas,

c, satisfeito^

proferiu para

Moura Seco:

— Não me dá razão — Assim se me afigura — respondeu com acento de benignidade. — Há ?

^

ele

outra circunstância que omitiu e merece

não há memória de que o estranho ser volte a cobiçar-se da sua vítima. Curioso, o abraço do monstro ser

ponderada

:

;

é

uma

tro

vacina para o abraço do mons-

1

— Pois

dispõe

se assim é

duma

— disse Aurélio —

sensibilidade estética que

só se encontra nas naturezas requintadas.

Com

vénia sua, Padre Jacinto, as

mulheres devem ser para

êle

eleição que, depois de servir

atiram fora.

—O

que

êle

deve ser

vasos de

uma

vez, se

— proferiu

o

.

.

o DERRADEIRO FAUNO

205

abade da Rua num meneio sorridente da cabeça é da raça do imperador Proculo que se gloriava de, em quinze



dias, ter

engrossado o ventre a cem

vir-

gens sarmatas.

— Arreda — cuspinhou

o

!

Padre

Amaral.

'

— Para quem está familiarizado com os autores antigos — tornou o abade da Rua que era infatigável a historiar — os não causam assombro. Os seres de hoje teem perdido de

feitos deste frascário

tudo, até potência.

Cómodo, aquele

extraordinário césar

que bateu bacanal cubinas!.



jReparem-me para

com

trezentas con-

.

— Prece-me — chalaceou Moura Seco i

que cá o abade anda enfronhado de

mais na crónica de Citerea



— Nada

disso

! .

.

— respondeu sorrindo um

pouco vou respigando. Depois a memória, louvores ao Senhor que aqui nos tem reunidos, não me foi infiel como os denleio

muito e desse muito

FILHAS DE BABILÓNIA

274

tajado que a velha religiosa só atinou

com

estas vozes patéticas ante o bispo

patético

«

:

anos sou

— Credo!.

freira,

com tão





.

.

trinta

quarenta

madre-aba-

marmanjo, nada vi que se pareça!» Ai teem os meus reverendos colegas o que o velho bruxo dessa,

me

perfeito

contou.

— (íQua! a moralidade, Padre Moura Seco — questionou alguém entre as ?

gargalhadas dos convivas.

—A

moralidade é transparente.

No

caso actual será preciso procurar perto.

.

.

dentro da ordem natural das cou-



sas.

deste

mundo não

Já nas

na

e

está fora deste

mãos

mundo o que

é.

bailadeiras de Leopoldi-

de Maria da Encarnação, qual

delas mais perluxosa,

de cabelinho a

doidejar sobre as tempes, o arroz doce,

com

polvilhamentos fulvos

de canela

sobre brancura de jaspe, discorria pelos

A tia Quaresma, com os fados, viera

pratos dos reverendos.

contente consigo e

!

:

o DERRADEIRO FAUNO

acocorar-se

SyS

mesmo

à ilharga do padre

mãos

cilhadas no peito, a

Jesuíno e de

banha das bochechas a

luzir,

abria

grande aranzel sobre o bicho garanhão

que ceifava a

das donzelas. E,

flor

com

olhinho de malignidade, muito desbocada, dizia



(iiEle

bem

sabe

com que

lambis-

Havia de ser comigo que não voltava mais a montar na gente e, floreando aquele gesto vigoroso com que torcia no tanque os adeitos de estopa, góias se mete

?

!



acrescentava tau

.

.

— Eu

lhe

o

cata-

.

Mas em

face,

uma côdea cabritinho, o

num moesburgar com

escanchado

cho, nada borracho, a

sem

dera

de pão

um

pernil

Quaresma dava

dizer buz.

E que



do

rico

à cabeça,

nos refolhos da

sua alma estivesse a dizer para a

mu-

«não tentes a Deus!» ou que

esti-

lher,

vesse já deitando as duras contas ao festim,

Mas

ninguém o

ia jurar.

a tarde declinava. Já o sol fize-

FILHAS DK BABILÓNIA

276

ra O seu giro por cima das casas da vila e,

afogado na meia-névoa à outra ban-

da, parecia

olhar

um

olho

céu a

para os sacerdotes. Chegavam

lufadas metálicas a

mesmo do

charanga,

duma

rapsódia que

bem comida

e

tocava ao desenfado no largo de

bebida, S.

João.

Desdenhosas da hora penitencial, as chanquinhas de verniz e os sapatos de brocha bateriam a terra em redondo. Pelas janelas abertas,

um pouco

do de

suma dos abades. Mas os copos, meados ou

fora viera quebrar a beatitude

cheios de vinho aqui e além, eram so-

bre a toalha branca

de alegria.

A

como

rosas rubras

pipa do Quaresma tinha o

espicho de pau ainda

em

alto,

que os

chegavam toucadinhos de espuma^ o espirito todo a chilrear. E, empurrando-se com saúdes e máximas socangiróes

bre a curteza vida, gole por gole, satisfação

Uma

sem nuvens

foi

a

ressurgindo.

hora assim, mais sorrateira que

asa de andorinha pelo céu,

foi

passan-

o DERRADEÍRO FAUNO

do.

O

Padre Chança,

— modo

de passar

afinal,

um

277

conseguiu

migalho

— reu-

número para o monte. Lento, mais pausado que um velho prelo a vomitar niu

dum

os fólios

Rua

incunábulo, o abade da

discreteava à flor dos séculos e dos

prodígios

com

a segurança filosofal

dum

Hesidoro de Sevilha.

— Pois chamem-lhe

balda, se quise-

rem, a esta minha predilecção pelos antigos.

sem

A

verdade

avental,

é

nem

que falando de tudo,

luvas isoladoras,

me

óculos, a facúndia delas

deleita.

nem Pois

esse Ulisses Aldrovandi compraz-se na

descrição do

admirar

com

homem

silvestre,

os seus olhos e de que dá

umas estampas. Homo

ma

que pôde

e pelos tópicos,

villosus lhe

cha-

que enumera, nu,

coberto de grenha, célere na corrida, arteiro

na emboscada, extraordinaria-

mente semifero como pónio Mela, lejo

que

bem

habita

já inculcava

condiz estas

Pom-

com o animaparagens.

Se

temos de buscar a decifração do enigma

286

FILHAS DE BAB1LÓNI\

no tempo santo, para a ViaSacra. Gonfessava-se todos os domingos e recebia a comunhão pelos dedos reboludos, amarelos do tabaco, do Padre Jesuino, se lhe não era azado santificar-se nino

em

e,

função solene, nas localidades pró-

ximas, pelos dedos longos e pálidos

jovem presbítero. de

filhos,

O

dum

Padre Jesuino, pai

caçador, seareiro de cereais

nanja de almas, repugnava ao seu gosto

de espiritual.

Mas

era o pároco colado

e ela resignava-se a ser ja

uma dona de igre-

na igreja mal casada. Castiçais, lâmpa-

nunca a pôr um vestido em prova seus dedos de modista foram mais solertes e inteligentes que, em madrugadas de dodas, vasos, reluziam de limpos

mingo, a enfeitar os altares res

— das

:

e

com

as flo-

primeirinhas às derradeiras

— que brotassem nos quintais. A paixão ascética,

passo a passo, foi-a

empolgando, a pontos de uma noite a família, norteada a tempo, a ir colher à vista de

Lamego, numa caterva de mô-

o DERRADEIRO FAUNO

-

287

i

que o

ças

Padre Baldomero

sobre Espanha

com

destino a

dirigia

um

reco-

lhimento. Deixava o pai caduco, a paralítica, e a feia

doida envergonhou-se da

empresa. Mas,

tada,

não

mãe

com

ver a rota cor-

se lhe entibiou o fervor pelo di-

Tinha o pressentimento que havia de ser bem-aventurada como Santa Inês, dizia em voz alta. E ou Santa Iria vino.



agarrava-se a todas as sotainas e concorria a todas as festas. Neste jogo a

sua pele tão fina e côr de rosa chegou a adquirir o

tom das

virgens embalsa-

madas. .

Foi nestes auges de iluminismo que

Pedro Jirigodes a viu

e se cativou dela.

Tinha para a moça a pecha dos quarenta anos, a nomeada de matador com o que amontoara um invejável pecúlio e o ar mal assombrado que lhe imprimiam as sobrancelhas, encrespadas na fronte de lés a lés, e o bigode farto, muito negro e vassoirudo, que lhe fechava a boca. Mas Pedro Jirigodes





388

FIÍ.HAS

DE BABILÓNIA

era alguém. Trajava de casimira sobre

o escuro, chapéu de palha desabado sobre a fronte, corrente de oiro, de grossos elos,

com uma peça

de jarra por

sempre assim por feiras e funções, carapuças no ar, mão afável berloque,

e,

— ^como vai o amigo? — era o dumas

rigodes. Vivia

terras

em

simo, arrematadas

do Santís-

Viseu à porta

fechada, e de dinheiros a juros

Não mexia uma

Sr. Ji-

altos.

palha; quando não

passeava, caçava; quando não caçava,

andava no

um

rio à pesca. Era, sobretudo,

grande batedor de montes e enge-

nhoso inventor de laços. Encoimavam-no de torpes enormidades e era muito respeitado. Já

uma vez se desempenhara

com honra do da ral.

vila

cargo de administrador

de Moimenta,

em época

eleito-

Tinham-no por pessoa de conheci-

mentos, muito morigerada de costumes c assinava

quarenta, tituir

o Século.

rijo

família

como o

Homem

sobre os

aço, queria cons-

— dizia-se — para

o que

o DERRADEIRO FAUNO

289

mandara erguer sobre a estrada um prédio de boa cantaria e boa telha de Pampilhosa, e requestava, maluco de todo, à Maria da Encarnação.

Tantas odiento,

o que é

pechas

deviam-lho

tornar

mormente a da idade e do físico, sempre de monta mesmo para

donzela que destina suas graças às celestiais

bodas,

com noivo provado

a co-

lher as mais fragrantes virgindades. Pois

não o repeliu com náusea, não melancolicamente, invocando as suas juras de ;

castidade, o despediu

com

brandura.

Pedro Jirigodes não renunciou com ;

lenta e hábil

manobra

subornou vizinhas

foi-se insinuando;

e beatas; conciliou o

padre missionário à sua causa, mediante

umas pernas de

vitela e trutas

mandadas

de peita os pais empurravam-na, certos ;

com o casamento das garras do beatério. E umas com máximas da

de libertá-la

vida farta e regalada e não menos virtuosa, o apóstolo

com exemplos de

tos conjúgios, lentamente a

san-

foram aba>9

.

FILHAS DE BABILÓNIA

2^0

Era só em campo a defender-se; Pedro Jirigodes teimou e, em meados de Maio daquele ano, quando as poldras fogem dos lameiros a nitrir, ao fechar da festa de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens, de que fora mordomo,

lando.

obteve o sim, tão renhido

com Nazareno.

Àquela data, andava a correr o processo de estado livre de Jirigodes, que por terras da estranja arrastara mais de dúzia

de anos, para que o matrimónio se consumasse.

Tudo em seu

isto

repassava o Padre Jesuíno

cérebro não destituído de dis-

cernimento, diante da cabecinha louca.

— Ouves uma voz. — pronunciou essa abade com mansidão. — E .

o

.

diz

voz? Repete-mo, outra vez. Maria da Encarnação, à Serra «i subirás; sem pau nem pedra, o medo .



enxotarás!».

— Ah!

^;E é

quando

estás a dormir

ou acordada?

— Em

sonho,

meu

padre,

mas tam-

1

.

o DERRADEIRO FAUNO

29

bêm já a ouvi uma noite, no instante mesmo em que acabava de rezar a salve-rainha do terço.

— É preciso desconfiar de sonhos. Em

autores dignos de todo o crédito, tenho lido

que os sonhos tanto são instrumento

como dos génios infernais. sim, mas ouvi-a, também, na

dos anjos

— Pois

posse dos meus cinco sentidos, tão real e perfeitamente

vós,

meu

como agora vos ouço

a

padre.

— (iParece-te,

então,

que

te

man-

dava ir lá acima, à Nave, dar cabo do ? monstro Assim o julgo. ^ Donde partia a voz? Não sei; soava-me bem distinta aos ouvidos, mas não trazia direcção determinada. Figurou-se-me que falava .

.

.

— —



mesmo

E

era

sobre

uma voz

como nunca

O

mim.

.

mas não o

muito bonita,

ouvi.

confessor

.

juro.

uma voz

.

desentranhou-se

em

preguntas que giravam todas sobre o

:

FILHAS DE BABILÓNIA

292

mesmo

tema, porque na sua casuística

constituía aquele caso

uma

novidade, e

o seu espírito, exercitado na lavoura, a

educar os

filhos e a bater as lebres, es-

tava pouco apto a abarcar

cendente problema.

uma

E

resposta decisiva

— Minha

filha,

um tão trans-

esquivou-se a dar

com

dizer

sobre táo misterioso

chamo, não posso eu pronunciar-me. Sei que mais duma criatura recebeu por este conduto mandado do céu para execuções cá na terra. Mas, se a memória me não engana, também há exemplos destas vozes serem falaciosas, emitidas pelos espíritos malignos.

o prelado.

—A

.

voz

Vou

consultar

.

é tão

maviosa que só pode

do céu. Ouço~a e fica-me o corpo banhado num gozo tão incomparável, táo doce, que me esqueço de mim e da

vir

terra!

— dizendo

o que,

em tom

exal-

tado, arqueava os olhos para o alto, nas

sumo deleite. mas todas as cautelas

reminiscências do

— Pois

sim,

.

o DERRADEIRO FAUNO

O

diabo aprendeu artes

sábios

nas academias. Cada

são poucas.

com

os

vez está mais subtil selho

vem

j

!

meu con-

Aceita o

sossega e esperemos o que resol-

:





298

j

no

E

alto

.

.

entretanto continua o flagelo

meu padre. E exacto, mas o mal Ah,

à solta!?

.!

.

i

--

é tão miste-

que para debelá-lo toda a prudêné recomendável. Vá, minha filha,

rioso cia

modera-te nessa sede de sacrifício que a outra cousa não corre a tua magnani-

midade. Modera-te e reza três avemarias a

Nossa Senhora do

para que

te

Bom

sopre inspiração.

estas e parecidas palavras

Conselho

—E

com

quebrou o

ansioso transe daquela almazinha.

Duas semanas decorreram estupros foram perpetrados tristes, alheias

e

novos

em

terras

ao mundo, à beira de ve-

caminhos romanos adormecidos. A missa conventual voltou novamente a moça a rogar ao abade que a

lhos

ouvisse de confissão,

.

FILHAS DE BABILÓNIA

294

— Meu voz não

medo

padre

— murmurou

se cala:

«A

ela

—a

Serra subirás, o

enxotarás». Ouço-a cinco e

seis

vezes por noite. ^;0 senhor Bispo ainda

não respondeu?

— Não ainda não teve tempo. — Pois, meu padre, estou decidida a ;

subir à serra, aos píncaros mais altos,

à ventura de Nosso Senhor.



bom num

A

i

minha filha, um galope não lhe dá volta

serra é grande,

cavalo a dia.

Tem

muita furna.

.

.

muito valhacouto... Perdias- te!

— Deixá-lo! — Se aldemenos acompanhada?! — Não quero ninguém. Judit tamsó à tenda de Holofernes. bém — Os tempos são outros, alminha i

fosses

i

foi j

do Senhor! Os tempos são outros, e nós não somos os judeus. Nisto de. de copulação, eram raça pouco escrupulosa. Sara, mulher do grande Abraão, .

pintou o sete no Egipto,

\

.

.

.

.

o DERRADEIRO FAUNO

— Tudo pago zelas

O que eu sofra estará

bem

amanhã se puder dizer as donpodem andar sem receio por esses se

:

caminhos de Cristo

— Lá

me

.

.

Eu não Faz mesmo

farás.

digo não.

nada

295

nem

digo sim,

conta que

de

ouviste.

— A voz do céu — Quem sabe lá!? — E. Tenho-a esconjurado noite por é

noite,

pondo

vras

se sois

:

.

.

alma toda nestas palavoz divina falai-me, se sois a

dos anjos das trevas, arrenego

em nome

do Padre, do Filho e do Espírito Santo. E não se calava e mais melodiosa era. Já observei que tendes queda para .



o misticismo.

Com

as naturezas muito

sensíveis dáo-se, por vezes,

de alucinação auditiva outras.

Quero eu

são do ouvido

.

dizer,

.

.

.

fenómenos

visual .

pode

.

.

e

isso ser ilu-

.

— Tão repetidamente

?

!

Deus Nosso

Senhor não permitiria que assim fôssç lograda.

29S

FILHAS DE BABILÓNIA

bem-aventurados como as carapuças a todas as cabeças. O Padre Jesuino le-

vava mais tempo, no monte, a ajoujar

um

coelho ao cinto que, à banca, a

transferir

um

sermão de Santo Antão

ou das lágrimas de S. Pedro para os Espinhos do Senhor. O resto era com a memória e memória ti-

para

S. Brás,

nha bem fresca, mediante uma economia cerebral, em que só, morosas e roedoras como larvas, passavam e re-

passavam

as dívidas relaxadas de pé de

altar.

Com

a idade e o

gravame dos

filhos,

que eram perdulários, a sua ferramenta

menos que

teológica estava pouco

de uso. Dirigir pois

um

fora

relatório ao bis-

po, submnistrando-lhe o caso da visionária, era tarefa

em boas

com que não

condições de arcar.

Com

estava ralhos

bom senso, como para pessoa que teima em abrir uma porta à marrada,

e vozes de

aconselhou-a. Debalde

;

Maria da En-

carnação, certa de lhe vir do alto a mis-

:

:

o DERRADEIRO FAUNO

de

são

abalou

salvadora,

em

deliberada que nunca

299

dali

mais

seu propó-

sito.

Ao

nascer do sol do dia seguinte, de-

pois de mungir as vacas, o

Tomás Pa-

com não

ver a filha a pé, cotovia no madrugar, foi à porta do teiro,

estranho

quarto



Maria da Encarnação, oh lá! Arriba, já anda tudo fora. Como não sentisse rumor nem voz, j

.

mas

ia a bater,

ter

.

ocorreu-lhe que poderia

passado mal a

noite, atreita

como

andava a insónias e pesadelos, e que estivesse de pouco tempo presa deste sono tardeiro, mais pesado que a morte. E, largando plantar

um

com

moço

o

e

o

filho

a

quartel de feijões, que já se

calara o vento galego e as rolas arru-

lhavam

lascivas e

as outras

motetavam umas com

em voos

planados pelos pi-

nhais, entre engulir duas buchas disse

para a mulher, entrevadinha na cama

— jMal-o-haja

os

padres

que nos

!

300

:

.

FILHAS DE BABILÓNIA

hão-de derrancar a moça! Chamei-a,

nem deu acordo de

A

si.

velha quedou-se a rezar a coroa de

Nossa Senhora, que era aquele o seu mês, e a contar pelos dedos a soldada

que deviam ao paquete com o ano quási fora. O tempo foi dobando, passou meia

manhã

e a filha

— Maria

sem dar

sinal.



grida Encarnação!... Eh, Maria da tou a velha por fim.



j

Encarnação Figurando-se-lhe

gemer, sus-

ouvir

pendeu-se, assustada, de ouvido à escuta.

— Miau-miau! — Morte mate o gato Cape cape! — berrou para o bichano, por cima !

!

j

;

das arcas, na roubalheira.

O

gato deu

um

pulo, escapuliu-se, e

a paralítica volveu a gritar

— Maria ta-te,

filha,

pelo almoço

da Encarnação!... Levanchega .

ai

o pai desatinado

.

Chamou, tornou

a chamar. Inalterá-

3 IO

FILHAS DE BABILÓNIA

pros por bruta força no silêncio dos

bosques

à beira dos caminhos silen-

e

ciosos.

A furto umas, impávidas outras, guardando um sigilo de catacumenos, voluntariosas as donzelas ofertar sua flor

iam aos montes

ao voluptuário messias.

Entretanto avançava a prenhez das

e

Bem rogaram

mães bárbaras morfanhas a intervenção da Virgem

eleitas.

as

Santa Eufemia, de bruxos ras.

O

gadora.

pólen possuía a virtude propa-

A

Micas Olaia

sentir as dores

omem,

foi

a primeira a

do parto Acudiram as

comadres para cortar lobi

e benzedei-

e bentas

a trave, se fosse

para o esconjura-

rem para o Inferno, se desse mostras de diabinho. Duvidavam ainda e o mesmo senh^^r

Padre Jesuino falou claro:

— Se a

não fôr à nossa imagem e floreava e semelhança, esganem- no! o gesto com que na serra afogava as perdizes que caiam de asa. Nasceu um rapagão perfeito. Pôs-se cria



o DERRADEIRO FAUNO

3

I I

como a dizer cá estou, e em menos dum credo, entre grandes

logo a vagifj

upas, a sugar o seio farto da mãe. Após a

Micas, pariram as outras, cismos,

nem



receios de monstruosidade.

Todos os crianços eram, por e formosos.

escorreitos

mal,

nem

sem exor-

olhado,

nem

igual, sãos,

E não houve tinha que lhes

pagasse.

Ante

os filhos do matrimónio

eles,

eram uns arrelampadinhos que reciam enjeitados de Deus.

até pa-

Não tinham

a cor, a pujança natural, o indicio de

força e esbelteza dos filhos do Inefável.

Confundido

abade

compungido, o senhor

torcia a cabeça,

os apóstolos tur^

e

:

murmurando com

Judicia divina

dum

nescin-

non audaci sermone discutienda sunt

sed formidoloso siltntio veneranda.

IV

o

Baltasar encavou os socos

outro, meteu-os

um

no

debaixo do braço,

e

vergado, a boca quase nos joelhos, pos-

banda de Jirigodes. Estava a romper a manhã, destas manhãs alviçareiras de agosto, tão movediças que ainda as sombras correm se a trotar à

pela terra

como

cabras pretas que vão

seu destino e já o céu parece a este

uma

suspensão aluvial de rosas, rosas brancas mais e mais esfloradas. Andorinhas

roçavam já de asa veloz humedecidas pelo orvalho, e o cartaxo

A

e

o tejasno

apareciam extáticos sobre

como

eremitas a rezar mati-

distância,

porem, flutuava ainda

os marcos nas.

as rodeiras

o DERRADEIRO FAUNO

este arzinho de noite,

vultos

um tom

3l3

que imprimia aos

dormido, de quase sen-

tida sensibilidade.

Para



das abas do povo, o sino das

almas tangeu, arrepiou o ar

silente

com

sons muito vagarosos, muito melados,

trémulos de mistério e de morte.

mão

Com

a

canhota, o Baltasar benzeu-se; e

Pedro Jirigodes, embora pouco acessível à piedade, tirou o chapéu e rezou. Rezou, primeiro, pela livração das almi-

nhas que penam no fogo do Purgatório, e às quais, lar,

por sua natureza crepuscu-

são de melhor refrigério as avé-

-marias que sobem da terra na solidão

do lusco-fusco depois, para que ;

lhe

não

ânimo nem o amparo do anjo da guarda no grave intento que

falecesse o

cometia. E, reconciliada tos

com

os espíri-

a velha consciência, estugando o

passo, meteu a direito pelos restolhais, leiras

sobre leiras calcinadas da canícula,

varridas há muito do penetrante per-

fume das ervas maninhas

e

do gordo

.

3

FILHAS DE BABILÓNIA

14

Um

rescendor das espigas gradas. outro

feto,

ou

guarda-sol das lebres, enno-

doava o campo

lívido de seara.

Silenciosos, leva que leva trolhos fora,

mais e mais a manha

ia

clareando. Já

pelo pendor dos oiteiros se distinguiam a

chupar o húmus, ralos

e ferrados

sarna, a urze e o sargaço'; fronteira,

pequenos pinhais

cabeludos;

e,

na chã

já,

se

como

erguiam

de torcidos pelas rebana-

das do temporal, lembravam maltas

e

maltas de caminhantes, dobrados, der-

reados sob enormes trouxas, rompendo o passo para as bandas do nascer do sol.



— Mexe-me

essas gâmbias, Baltasar

disse Jirigodes,

maluco que nhã fora .

De

parando á espera do

se atrasara.

— Está

a

ma-

.

verdade,

como

se fonte farta la-

vasse tudo, a natureza inteira dealbava.

Os

horizontes estendiam-se até onde

consentia o parapeito dos altos. Lá estava a Serra da Estrela, coberta de

man-

o DERRADEIRO FAUNO

tel lilás

e

com

duma

3l5

velaturas de bronze, severa

dignidade de maioral a apas-

centar pela extensão rebanhos de e

tes

oiteiros; a

mon-

ermidinha de Santo

Antão fraldejava em seu morro e tinha a graça duma pomba branca empoleirada

;

logo abaixo, nos Alhais, luzia so-

bre o casario baço o curuchéo >

sia,

E

em

ardo-

negro-burnido, da torre normanda.

por

ali

em

fora,

por batalhões, os pe-

nedais apresentavam, sob os jorros da luz,

uma

doce carantonha de bons

gi-

gantes.

— Baltasar — pronunciou

Jirigodes



no remansar do passo, colina acima estás bem certo que o viste? Assim os meus olhos vissem o



mundo a arder! E boa! (íQue mal



te fêz

o mundo,

homem ?

— (íQue mal me

Quando

passo:

fêz,

lá vai

sanxa-marranxa? o maluco, o

dom

golondrom enterram um defunto Baltasar, pega da vestia mais rota; as ra;

:

!

FILHAS DE BABILÓNIA

3l6

parigas, eu a chegar-me, logo as grandes coiras tero lero lero, tenho quanto quero :

Mas

pior, ainda, são os rapazes.

— a pobre de Quintela —

dia pilharam-me

vomecê

Um

sabe,

com

a

Zingamocha

e

levaram-me a passear pelos seroes, nu como minha mãe me botou ao mundo. Cães Também lhes roguei praga e em !

hora

foi

que

se cumpriu.

— Praga — Sim, senhor;

;

Olarila

?

ensinou-ma, minha

mãe, que tinha muita virtude que cometia. fiz ?

Olhe,

^^

uma

Quer que noite,

em

tudo o

lhe conte

como

estavam apagadas

todas as luzes no céu, fui-me para o Oiteiro

da Forca

e deitei-me

de joelhos a

rezar. Rezei a santos e santas, a virgens

e mártires, e

quem

rezar,

mens

ali

quando mais não

tinha a

chamei pelas almas dos hoenforcados. Vieram todas, de

matador, de ladrão dos quatro caminhos, de judeus que esfaquearam a hóstia

do

altar.

Eram um

arraial e

vinham mais, cantarolando

cada vez tuturutu.

!

Siy

o DERRADEIRO FAUNO

Minha mãe, tinha-me para

trás,

nem

dito

mostres medo. Finquei

os joelhos no chão e

quedei no meio

ali

avantesmas, todas

das

não olhes

:

de ossos tão

brancos que até tornavam a noite branca e se via tudo

irmão ?»



elas.



e



Que o



nas

nhadas, batidas e rebatidas o mar».

areias

«

queres,

resmoças os homens que hajam de as levem desemmoçadas, pre-

as

levar,

«Que

roda.

— diziam-me

tranglo-mango pondi

em

Eu

como

às

de joelhos, e elas

passando e preguntando sempre: «Que queres, irmão?» E lá se sumiram todas

na

noite,

será

!

j

vozeirando



:

assim será! assim

a praga que lhes roguei

dia seguinte, a Micas

?

No

Olaia via sem

querer o céu de costas.

— ^Então chamo — Sei

o quer que é veio ao teu

?

lá ?

!

i

Quem manda

é

Deus

Agora considere vomecê a padralhada há milhentos anos a ganir guardar cas:

tidade! guardar castidade!

e,

vai senão

3

I

FILHAS DE BABILÓNIA

8

quando, o mulherio rompe por essa serra

Nosso Senhor e a pedir ao anjo que as venha cobrir. Safadeza, curas, bispos e papas nasceram fora a entoar ladainhas a

para enganar o

bém

era tolo

:

mundo O mundo tam!

j(ipois

não

via,

nos telha-

dos, pardais e pardalocas a satisfazer os

mingava o canem o grão nos campos?! A

seus gostinhos, e não lhes lor

do

sol

minha raiva é estar velho e ser um aleijadinho. As moças, quando eu me chego a elas^ depois de lhe fazer todos os apa-

dizem-me que é pecado. Sou mais triste que a erva dos caminhos

paricos,

! .

— Valha-te

o

criador

dos

As raparigas são como as

rejas

é

.

.

— Pois

.

melros,

Baltasar. .

.

ce-

para quem trepa. é..

trepei noutros

.

é

para quem trepa. Já

tempos às cerejeiras.

Uma

vez deitaram-me abaixo e parti as costelas.

As raparigas são como

também roguei praga. costelas, mas no povo mal ama-

são, e às cerejas

Parti as

as cerejas,

duram, criam logo bicho.

SlQ

o DERRADEIRO FAUNO

— Es um lá

:

j

feiticeiro temível.

Mas

a que altura do dia o viste

— Era

olha

?

meia manhã quando muito,

ainda havia orvalho no mato.





<:

E

que andavas a fazer na Serra,

tão longe?

— Eu

vivo mais na Serra que nos

povos.

A

canto

me

Serra é minha amiga, a cada oferece cama.

Chego-me

às

quando os pastores não vêem, e No verão dá-me pútegas, quantas

cabras, teto.

me pede como

o apetite.

A

Serra

E como

— Eu

era êle sei lá.

— Tinha — Tmha ^

.

quero-lhe

te viu,

moscou.

?

Era como

era.

feições de criatura?

e de

bom

.

a minha mãe.

— Então o anjo, mal

^

.

boa pmta. Ele no seu

passo por vilas e aldeias

e,



com

mossinhas de bem querer, não havia solteira

ou casada que

lhe fugisse.

Mas

anda i:oberto de peles como ouvi contar que andava S. João nos desertos. Sempre quero ver se me levas a



.

320

FILHAS DE BABILÓNIA

Agora toca-lhe. Vês? já o milhafre anda pelo céu à coca das perdizes que saem a almoçar o grão dos restovê-lo.

lhos.

Toca-lhe.

As cousas

nham a

todas,

pouco a pouco,

como um

a lume

Sobre os

.

livro

muito

giestais ajoujados de

vagem de

clara felpa, fora

vi-

lido.

vagem e como se Ê

que mais imponderável que

neles caíra neve, muita neve, desta

pousa directa

um enxame

e

de mariposas. Lameiras de

tenro pasto, orgueirais de pendão a esfarelar-se

em

carvalhiços

limalha ruiva, tufos de

verde-mate

cresciam

desvão da terra de restolho, pondo cercadura animada

Numa

em

uma

sua cor morta.

belga de painço,

amanhada ao

tentame na vastidão do matagal, espantalho,

no

um

mais disforme que Judas

derriçado dos corvos e escorrido dos

humores ao oitavo dia, abria braços mcomensuráveis. Quase por cimai^ a cotovia subira ao céu e por

padejando de asa, a

rir

lá se

dêU ou

perdia^

a entoar

|

.

o DERRADEIRO FAUNO

O

kíries

trás

ao

sol

nado. Ele



321

rompera de-

dos montes, mais loiro que a broa ao

do forno, derramando pela terra a mansa amarelidão do azeite na azenha. Lá vinha, e toda a sensibilidade do sair

ermo, da mais imediata à mais ocuita,

Passaram corvos grasnando; os animaizinhos do Senhor, no chão e nos ares, romperam na lidairada. Já os pinheiros, aprumando-se daquela sua marcha penitencial, pareceram ser, sob os primeiros raios, filas de monges negros em ordem de canto-chão numa Ve-

palpitou.

lha Sé.

— Baltasar, anda-me. A cavalo na vassoura mais depressa. — Nunca ninguém me ensinou — Dizem que bruxo — Sou Pedro, afocinhado ias

tais

artes.

és

.

.

cristão, tio

na pia benta por mãos da Ana Fusca que é cristã e confessada.

— Desenvolve-te.

bom

.

.

temos ainda

um

migalho que bater. 21

332

FILHAS DE BABILÓNIA

O

doido atrás de Jirigodes esbofava.

Iam subindo

com

vestidas

Agosto loiro

as ribanceiras da Serra, as

já alto,

cores

mortiças

sombrio nas matas,

do

dum

esvaento no chão raio de seara,

pardo pelos morros, tons de chama nos coutos.

Uma

lágrima de sol coalhado

sobre o tojo e o sargaço, flor azul

alfinete

uma

estranha

suspensa de fina haste

como

de chapéu, falavam ainda do

Maio que

pelos montes arrastara rica

capa de asperges, episcopal. Sentia-se

que o outono começara a tecer sobre escura lencaria seu catafalco de broca>

Mas, para o vale. por entre as lombas, da poalha doirada do sol emergia o luaceiro verde dos milharais e campos de semeadura. Uma nesga do rio scintilava a todo o fundo, e era um espelho ora a quebrar se ora a refazer-se do dos.

vivo lume. tos

em

feiras

E

flor

nas abas dos lugares, sou-

erguiam na alvura espacial

de oiro, da mais abundante e fan-

tástica joalharia.

323

o DERRADEIRO FAUNO

Sempre

a direito,

e regatos levados e

azangando paredes

em

cantarola, subindo

descendo, atingiram os picotos

altos.

Lentamente, a alma de Jirigodes fora lavando-se na pureza do dia, deprimindo-se entre infinito e infinito.

Pedregulhal negralhento, ora reboludo à flor da terra, ora cravado

como

ossa-

das mal sepultas, escarpas alampanhadas de rabugem, bouças fofas de mato galego ou de sargaço ribeirinho, morros

na postura de cavalos a pino, colinas crespas a correr à doida, tureza

ali

como

se a na-

se deixara invadir de pânico,

era a Nave.

E, entretanto,

uma grande paz

pai-

rava sobre aquele tropo-galhopo de cousas, todas

como

mudas, todas

em

suspensão,

se fossem a própria inflorescên-

Pedro Jirigodes ouviu pulsar o coração e na inalterável imobicia

do

silêncio.

lidade o sol

objectivo de

da

mesmo tomava um relevo pessoa, como se se tratasse

visita rara

do senhor daquela honra.

FILHAS DE BABILÓNIA

324

— ^Estamos bem aqui, Baltasar? — Melhor, nem no crescente da lua que

em



para a gente montar a cavalo.

selim

do paredão um penedo uma cova ao meio? Lá, uma

para

^'Vê

mesmo um

baixo parece

como



cabeça de padre, que acabe de cantar

não

missa, feita

.

.

tem

a

bem

coroa mais

.

— Vejo. — Foi



que o descobri.

numa

Sentando-se

pedra, a

espin-

garda traçada nos joelhos, Jirigodes

xou espairecer os

olhos,

dei-

vagamente a

scismar. Daquele ponto cimeiro, avista-

va-se o perto e o longe a mui grande distância

em

redondo.

Dezenas de olhavam- se

oiteirinhos, logo abaixo,

em

turba multa por cima

dos côncavos, parecia estarem dos sob a torreira a

uma

mu-

voz de pre-

sença que houvessem de lhes

Eram

ali

pedir.

calvos, desta tristura dos cerros

contraída a ouvir chiar a forca e gras-

o DERRADEIRO FAUNO

nar os corvos sobre os justiçados.

32

5

Mas

nas corgas, pelos sopés, a giesta piorneira^ a orgueira e

dravam

fortes,

o tojo alvarinho me-

ao acento taramela das

águas de rocha.

Um

ou outro carvalho, vindo do génesis, carregado de musgos e de ninhos, bracejava. Pedro Jirigodes, das noites de espera pelas luas, conhecia

aqueles

andurriais

de

erva doce

onde os coelhos vinham doidos a valsar e até a

Para

raposa de ameijoada. lá,

em

escaleira

cada vez mais

distante, os tesos sucediam-se nus,

uma coirama

com

ressequida de mato, ou

trechos negros de bosque. Já neles se

lobrigavam^

como pontos minúsculos

movediços, os rebanhos

a ripar a far-

falha dos arbustos ainda verdes.

A

todo o fundo,

duma imensa

como no concavo

almofia, os lugares de-

nunciavam-se pelos espanejamentos sobre o vermelho da telha moirisca, fresca do forno, lanços caiados de moradias,

o campanário, o fumo, o halo que res-

^

320

FILHAS DE BABILÓNIA

cende

ao

mana. Por



céu

'qui,

estendendo a

a

por

mão

conglomeração hu-

'li

— disse

Baltasar

diante dos olhos de

— as melhores serraninhas pa-

Jirigodes

garam contas à

criação.

De começo não

queriam, agora pelam-se por mais. Estou

por

vingado, Pai da vida! Por 'li

.

.

'qui,

.

A mão onde nasce

do louco apontava Soutosa,

uma

ovelha nasce iim pastor

enroscada nas matas

como raposa em

Apontava S. Martinho, escorregando na vertente, das mais provadas logo adiante Peva, com o Patrono ao alto a branquejar, pequenino como um ovo, as manchas dos palheiros madrigueira.

;

em

capindó, a igreja matriz de três po-

voações, a estrada nova muito clara na

paisagem baça, cheia de fuga, de ideas

vagas para vagos horizontes e pessoas. E num gesto largo, indicava do outro lado

do

rio, a

outras aldeias,

todo o

lés,

outras e

marcadas no mar de

o DERRADEIRO FAUNO

327

maninho pela luma^ha verde dos seus oásis.

— Baltasar —

disse Jirigodes

aperta e tu hás-de estar

Vamos

à trincadeira. quela lapa.

De

com

sol

apetite

para debaixo da-

vimos tudo



—o

e

ninguém

nos vê.

Abrigaram-se

com

a

penha

e,

puxan-

do dò bornal, Jirigodes repartiu com o louco e deu-lhe de beber da borracha. Feito o que, Jirigodes verificou a caçadeira, extraindo e

metendo os cartuchos,

provando com os

estalidos claros dos

cães que a fecharia estava

em

ajeitando-se no chão,

quedou com

a espingarda

ali

se

regra. E,

no braço, numa posição

perfeua de espera.

— (iPVa que se pranta vomecê assim — preguntou Baltasar. — P'ra quêP P'ra melhor meter dois ?

zagalotes na pele do anjo, se nos der a

honra de

se mostrar.

— Ficavam-lhe

as

mãos

"

tolhidas

proferiu o doido mansamente.



.

328

FILHAS DE BABILÓNIA

— Êle que apareça. — O chumbo, mesmo, não cava. — A pólvora A cem passsos, e meu. — Tio Pedro, ao pé de mim não

lhe to-

é fina.

é

dis-

para.

— Se tens medo, vai-te embora. — Não me vou embora ao pé ;

de

mim não dispara. Não?

— — Não!. — respondeu o louco com arreganho — Com penas de me meter diante.

.

— Pior para — Deixá-lo! Emquanto eu aqui ti.

ver não dá fogo.

um

Eu não vim para

esti-

guiar

matador, sabe vomecê.

— Viesses

as lerias

que não viesses, não são dum louco que me hão-de em-

bargar caminho.

— Tio Pedro — tornou Baltasar, exaltando-se — ouvi contar na venda do

Nastácio que vomecê matou

um contra-

I

.

!

o DERRADEIRO FAUNO

329

em terras de Almeida, para Não acreditei. Os assassinos

bandista, lá

o roubar.

trazem sangue nas unhas

também ajoelhado

lhas vi brancas. Vi-o

ao

o corpo de Nosso

altar a receber

Senhor Jesus Cristo, sassinos ficam

com

eu sempre

e

e

dizem que os

as-

sem aproximam da

a língua de fora,

a poder recolher, se se

mesa da comunhão. Não acreditava, acredito agora. Acredito até que vomecê o cravou de facadas à falsa

fé e

levou o

cadáver às costas, mais duma légua, para o deitar ao

— jCala-te sapo — Não me

A

rio.

que calo.

te

esgano,

filho

dum

Aqui não matará.

.

Serra é santa. Ri-se?! Olhe, era eu

pequeno, mataram

um homem

minho de Lamego, ao

no ca-

avistar da Orca.

ao fim

não podia chegar a êle. ^Quere saber o que sucedeu? A Serra^ num redondo de

Esteve

lá três dias,

já se

muitas léguas, começou a secar, a secar

como

se fosse

alma

cristã a

que tivesse

.

o DERRADEIRO FAUNO

e

quase invisível que

345

o

fica instilando

céu ao cabo de dias de aguaceiro,

com

a coronha da espingarda juntando ocioso a areia perdida aos pés, deixou voar as horas.

O

Baltasar, afinal, acordou.

E

circun-

vagando a cabeça, os braços estendidos para a frente,

dum sos

em

arco,

como

as tenazes

escorpião, disse de olhos lumino-

:

— Ainda

ai está, tio

Pedro.

— Estou e estarei.

— Mal empregado tempo; o Inefável não vem

.

.

— Quem sabe. — Sei-o Não eu.

vem. Vomecê que-

como ao

contrabandista, oh,

.

ria

matá-lo

não

.?

é a êle!

—E a a não com a maluqueira, meu grande tinhoso. — Se eu digo que não êle e é

]

ti,

se te

lhe

Vomecê não quere

calas



vem!...

acreditar, ouça.

.

.

Baltasar ergueu-se e veio-se plantar

de pé diante de Jirigodes.

FILHAS DE BABILÓNIA

3-4-6

— Ouça — tornou iluminado — acabo de

êle

num

acento de

sonhar

e

no so-

nho o anjo do Senhor apareceu-me. «Baltasar

— disse-me

êle

— tu

és

pobrezinho de Nosso Senhor, mais

que

um

cardo nascido

num

um

triste

canto onde

deitam as sujidades e os trastes que



não prestam, mas o teu coração é bom e é simples, e a verdade entra nele como o sol pelas vidraças. Tens razão em supor quem eu sou enviado do alto a regenerar o mundo. Os padres, os bispos, os papas estragaram a santa reli-

com castramentos e castidades. Estragaram o género humano com uma gião

mordaça aos

do amor, e tu és uma das vitimas, Baltasar. O que era apetites

natural tornou se

um

vicio,

colocado

fora da natureza; o instinto preverteu-se à força de procurar exercer-se.

razão, Baltasar. aleijões,

O mundo

Tens

esiá cheio de

de fealdades hediondas, de en-

fermidades, porque os homens deixaram atraiçoar as

leis

da vida. Baltasar, o teu

o DERRADEIRO FAUNO

347

pai era mentecapto, andava pelos cami-

nhos com

um ramo

de oliveira a cantar

o bemdito. Herdaste, o sangue de teu pai e és

um

pobre do

espírito.

Se eu

ti-

vesse tocado tua mãe, serias beio, forte,

desempenado, cavarias a horta e as raparigas não te fugiriam com gatimanhos de inocência. Tens razão, Baltasar.

mando

dos padres

c dos bispos, dos jarretas c

cambados,

Esse Jirigodes

vem

a

dos velhos, lambuzeiros de donzelas,

Matou, tem marcado na face o signo de matador. Mas, não temas; eu sou invulnerável ao ferro, ao fogo, a todas as maldades dos homens, Bemdito e prostitutos.

sejas, Baltasar,

bemdito

sejas,

que

me quiseste guardar;

porque o teu coração

simples se deixou penetrar da verdade

da minha missão». Aqui está o que disse.

cheiro,

A

face

dele

me

resplandecia;

um

em

flor

que todos os soutos

não igualam, rescendia dele. Foi-se e cu acordei; há muito que estou acordado, mas não quis bolir, nem abrir os

.

FILHAS DE BABILÓNIA

348

olhos, para

são se

celeste.

não perturbar em Ai tem vomecê.

não acredita,

mim .

a vi-

Agora

.

se quere ainda esperar,

espere.

E

dizendo

Jirigodes,

isto,

um

Baltasar lançava sobre

olhar inflamado, reprova-

dor, de profeta.

— Não me gastes a paciência — murmurou Jirigodes encrespando as sobrancelhas. — Tu doido é o que és

mas mais doido Daqui em

ti.

te vale,

e

fui

eu

em me

guiar por

não abres mais a

diante,

boca, ouves tu? Se falas, esborrachoFico, não

-te.

Se queres

tens

nada que me pedir contas.

largar^, larga.

— Pois fiquemos —

.

disse o doido sen-

tando-se.

E

O

ficaram.

O

céu todo era

meio-dia transcorreu.

uma

grande rodoma em

brasa, sufocando a terra. Recortados

nos longes, os penhascos pareciam arder

numa

labareda

de álcool, muito

branca, que eram os lumaréus da canícula.

Nem

cicio

de vento,

nem

ruflar de

o DERRADEIRO FAUNO

asa.

A

das.

No

849

imobilidade das cousas esmaga-

emtanto a água de rocha,



em

manava sempre^ mas num murmurinho tão ligeiro que só o empenho baixo,

de ouvir ouvia.

O

sol

virou sobre o Caramulo

tida de brocatel

com Ihama

dum

;

ves-

amarelo desbotado

a oiro, peitoral branco

com

matizes açafrão, pinchou a folosa sobre

uma

vergôntea de giesta; de cabeção

vermelho alaranjado saiu

alga, piar.

barrete verde

dumas carquejas o

pisco a

Um grilo arriscou as duas notas do

seu motete

Era a

A

e

;

as rãs e os ralos coaxaram.

tarde.

catadura dos montes desanuviava;

levantou-se o vento, e nos cerros os pinheiros apareceram derreados

suas cargas colossais

;

sob as

na chã, os cães

latiram e o

latir

os penedos

como umaestreloiçada de vi-

No mato vestiram uma dros.

atroou, repercutiu entre

e nos coutos as tintas re-

tonalidade terna,

numa

quase sincope outonal. Nuvens alvas

35o

FILHAS DE BABILÓNIA

corriam

ligeiras e

eram como bandos

de grous que vão emigrando. Pedro rigodes repartiu o resto do bornal Baltasar e

comeram

Ji-

com

silenciosos, entre-

tanto que o arraial da tarde

ia

esmore-

cendo.

As paredes deitaram sombra cabonde estenderem duas vezes sobre

para

se

ela; a

Serra da Estrela cobriu

roxo

os côncavos tornaram-se lagos de

;

melancolia.

um sendal

Esmoreceram os espaneja.

mentos claros dos povoados; luziam muito os seixos, escureciam os bosques. jar

Um

perdigão rompeu a cacare-

para o outeiro

e os ares e a Serra

encheram-se da nostalgia

dum

toque de

recolher.

— Vai-te — disse Jirigodes. — Eu — respondeu, — Também fico

fico...

sem

mais, Baltasar.

Os rebanhos que, lá ao fundo, tinham reaparecido, despareceram. O sol

parou sobre o Caramulo, pareceu

toirar contra

uma

das suas agulhas

esai-

o HKRRADKiKO FAUNO

tas

num esborrachamento

Um

de ovo. grl-gri! e

gritinho

35

í

gemas

de

serôdio cantou

emudeceu. Era a

noite.

— Vai-te — tornou — Vou quando vocemecê

Jirigodes. fôr

— con-

testou o louco.

uma

Acendeu-se

estrela

no céu, de-

pois outra e outra. Ocioso, breve

Jiri-

godes contou onze. Velaram-se chãs e oiteiros e a

vez mais

abóbada

em

celeste floria

cada

cravinas de oiro. Maqui-

nalmente Jirigodes

foi

seguindo a ilumi-

nação dos espaços, cachos, renques, suspiros de luz, praia de brasas na mar-

gem de



gueu-se,

mas

da

noite.

O

crescente er-

tão diáfano que não obs-

cureceu o mais pequenino botão daquele

imenso

roseiral.

A

própria estrada de

rompia de céu a céu, com empedrado tão miúdo que parecia uma S.

Tiago



rasteira de cinzas quentes.

Pedro Jirigodes,

acabaram de

quando os

astros

se acender, retirou a vista

cansada, cansado

também o

seu espírito

FILHAS DK BARH.ÓNIA

352

de vaguear. Olhou ao longe, ao rés do

mas

solo,

a opacidade

para



grisalho de serguilhas. ali

atmosfera

da corga em que desdobrava num estendal

tolhia a vista

o mato se

da

E

em

caindo

si,

no meio do ermo, a par dum doido,

em

desafio ao desconhecido,

um

terror

Mas fora senha quedar ali, quedava. E mão na espin-

inesperado o assaltou. sua

garda, os olhos mergulhados na noite

ficaram a espiar os rumores das som-

Dos almargeais distantes, chegava diluída na aragem a chocalhada das

bras.

rãs.

perto o cantar do ralo pare-

Ali

amarelo sem saber porque; era

cia-lhe

um som

mortuário, de debaixo da terra.

As águas, essas lá iam sempre correndo, cantando um canto sem fim. A força de as ouvir, de devassar a noite de olhos

parados, esqueceu-se do que viera fazer.

.

.

não

se

podia lembrar.

.

.

ali

De-

da memória a noção do tempo e o sentimento do lugar onde pois, varreu-se-lhe

estava.

Confusamente

sentia-se na pista

.

;

:

o DERRADEIRO FAUNO

353

de Maria da Encarnação que por

um

outro o trocara. Mais nada.

Vozes alegres vieram banhar de extremo gozo a sua quietude. Era um cântico, mais e mais animoso, e êle, dando um sacolão aos membros inertes, levantou-se estremunhado. Ah, sim, estava no cume da Nave, à espera A lua !

lá ia alta

entre as estrelas

Mas

..

ha!.



em

bem

acesas.

baixo na chapada

cantavam Pedro Jirigodes esfregou os olhos e viu e presenciou a roda galhofeira. Era .

uma dum

.

cadeia de vultos esguios vulto mais alto.

frescas

E

em

volta

as gargantas

alçavam a álacre modinha E

ó senhor ladrão,

Ande ligeirinho Não queira ficar Na roda sozinho.

Pedro Jirigodes julgou-se ainda a sonhar; palpou-se, fechou olhos. Estava

bem

e

desperto.

abriu

Em

os

baixo, 23

!

FILHAS DE BABILÓNIA.

354

a sarabanda prosseguia

e,

subitamente,

no lançar da trova percebeu a voz argentina, educada nas Novenas de Igreja, de Maria da Encarnação. Depois, um timbre muito suave e alto figurou- se-lhe

da Joaninha da Fonte

;

um

tremolo da

Francesinha. E, por claróes seguidos e repentinos, a verdade foi-se-lhe desven-

Em

volta

furtando-se

das

dando.

arrostando

com

Cabras Espingarda

coté.

do anjo, as barregãs, aldeias

pela

calada,

a noite, batiam o sari-

1

cm

punho, Pedro Jirigo-

des lançou-se. Ser estranho, ágil

como

um gato, troncudo como um sapo

imen-

Era o Baltasar. rcgouDeixa-me, excomungado!

so, caiu sobre êlc.

— — gou Jirigodes. — Aqui náo matará! — Deixa-mc — repetiu britando-lhe a cabeça com a espingarda. — Aqui não matará !

Quando garam

dele,

as

mãos do louco

um

grande

se despe-

silêncio pairava

o DERRADEIRO FAUNO

355

sobre a terra, Pedro Jirigodes fitou o doido, de olhos abertos para as estrelas infinitas,

braços

em

cruz na terra en-

sanguentada, e entrou a tremer, a

tre-

como se o seu corpo todo fosse a haste duma paveia balouçada no venmer,

daval.

(Paris-Lisboa).

5

índice

Os olhos deslumbrados Maga das ruas

O

derradeiro fauno

i

107

2

1

ACABOU DE 8K IMFRIMm áSTB LIVRO A TRINTA

DE MAIO DE MIL NOVE*

CENTOS B VINTE NA

TI-

ANUÁRIO COMERCIAL, LISBOA. POGRAFIA DO

I

PQ 9261 R5F5

Ribeiro, Aquilino Filhas de Babilónia

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